Camponeses brasileiros
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Camponeses brasileiros

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FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Herman Voorwald Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Assessor Editorial Antonio Celso Ferreira Conselho Editorial Acadêmico Cláudio Antonio Rabello Coelho José Roberto Ernandes Luiz Gonzaga Marchezan Maria do Rosário Longo Mortatti Maria Encarnação Beltrão Sposito Mario Fernando Bolognesi Paulo César Corrêa Borges Roberto André Kraenkel Sérgio Vicente Motta Editores-Assistentes Anderson Nobara Arlete Zebber Christiane Gradvohl Colas

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Presidente da República GUILHERME CASSEL Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário DANIEL MAIA Secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento Agrário ROLF HACKBART Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ADONIRAM SANCHES PERACI Secretário de Agricultura Familiar ADHEMAR LOPES DE ALMEIDA Secretário de Reordenamento Agrário JOSÉ HUMBERTO OLIVEIRA Secretário de Desenvolvimento Territorial JOAQUIM CALHEIROS SORIANO Coordenador-geral do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural VINICIUS MACÁRIO Coordenador-executivo do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO (MDA) www.mda.gov.br NÚCLEO DE ESTUDOS AGRÁRIOS E DESENVOLVIMENTO RURAL (NEAD) SBN, Quadra 2, Edifício Sarkis – Bloco D – loja 10 – sala S2 CEP: 70.040-910 – Brasília/DF Tel.: (61) 2020-0189 www.nead.org.br PCT MDA/IICA – Apoio às Políticas e à Participação Social no Desenvolvimento Rural Sustentável

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CLIFFORD ANDREW WELCH EDGARD MALAGODI JOSEFA SALETE BARBOSA CAVALCANTI MARIA DE NAZARETH B. WANDERLEY (Orgs.)

Camponeses brasileiros Leituras e interpretações clássicas volume 1

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© 2009 Editora UNESP Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C198 v.1 Camponeses brasileiros: leituras e interpretações clássicas, v.1/ organização Clifford Andrew Welch... [et al.]. – São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. 336p. (História social do campesinato brasileiro) ISBN 978-85-7139-954-9 (Editora UNESP) ISBN 978-85-60548-51-4 (NEAD) 1. Camponeses – Brasil – História. 2. Camponeses – Brasil – Condições sociais. 3. Camponeses – Brasil – Atividades políticas. 4. Brasil – Condições rurais. 5. Posse da terra – Brasil. 6. Movimentos sociais rurais – Brasil – História. I. Welch, Clifford Andrew. II. Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural. III. Série. 09-3675.

CDD: 305.5633 CDU: 316.343

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História Social do Campesinato no Brasil Conselho Editorial Nacional Membros efetivos Ariovaldo Umbelino de Oliveira (Universidade de São Paulo) Bernardo Mançano Fernandes (UNESP, campus de Presidente Prudente) Clifford Andrew Welch (GVSU & UNESP, campus de Presidente Prudente) Delma Pessanha Neves (Universidade Federal Fluminense) Edgard Malagodi (Universidade Federal de Campina Grande) Emilia Pietrafesa de Godoi (Universidade Estadual de Campinas) Jean Hebette (Universidade Federal do Pará) Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (Universidade Federal de Pernambuco) Leonilde Servolo de Medeiros (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, CPDA) Márcia Maria Menendes Motta (Universidade Federal Fluminense) Maria de Nazareth Baudel Wanderley (Universidade Federal de Pernambuco) Maria Aparecida de Moraes Silva (UNESP, campus de Araraquara) Maria Ignez Paulilo (Universidade Federal de Santa Catarina) Marilda Menezes (Universidade Federal de Campina Grande) Miguel Carter (American University, Washington – DC) Paulo Zarth (Unijuí) Rosa Elizabeth Acevedo Marin (Universidade Federal do Pará) Sueli Pereira Castro (Universidade Federal de Mato Grosso) Wendy Wolford (Yale University) Coordenação Horácio Martins de Carvalho Márcia Motta Paulo Zarth

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO À COLEÇÃO 9 PREFÁCIO 19 INTRODUÇÃO – ESTUDOS CLÁSSICOS BRASILEIROS SOBRE O CAMPESINATO 23 Clifford Andrew Welch Edgard Malagodi Josefa Salete Barbosa Cavalcanti Maria de Nazareth Baudel Wanderley

PARTE I O DEBATE NOS ANOS 1960 1 Formação da pequena propriedade: intrusos e posseiros (1963) 45 Alberto Passos Guimarães

2 Uma categoria rural esquecida (1963) 57 Maria Isaura Pereira de Queiroz

3 As tentativas de organização das massas rurais – As Ligas Camponesas e a sindicalização dos trabalhadores do campo (1963) 73 Manuel Correia de Andrade

PARTE II OLHARES TEÓRICOS 4 O conceito de camponês e sua aplicação à análise do meio rural brasileiro (1969) 89 Otávio Guilherme A. C. Velho

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Sumário

5 A brecha camponesa no sistema escravista (1979) 97 Ciro Flamarion S. Cardoso

6 A questão da agricultura de subsistência (1981) 117 Maria Yedda Linhares & Francisco Carlos Teixeira da Silva 7 A utopia camponesa (1986) 135 Octávio Ianni

8 Campesinato e escravidão: uma proposta de periodização para a história dos cultivadores pobres livres no Nordeste oriental do Brasil: 1700-1875 (1987) 145 Guillermo Palacios

PARTE III MODOS DE VIDA E REPRODUÇÃO 9 O campônio marginal no Brasil rural (1957) 181 Kalervo Oberg

10 As formas de solidariedade (1964) 193 Antonio Candido

11 Casa e trabalho: nota sobre as relações sociais na plantation tradicional (1977) 203 Moacir Palmeira

12 Migração, família e campesinato (1990) 217 Klaas Woortmann

PARTE IV LUTAS CAMPONESAS 13 O levante dos colonos contra seus opressores (1858) 241 Thomas Davatz

14 Que são as Ligas Camponesas? (1962) 271 Francisco Julião

Sobre os autores 299

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APRESENTAÇÃO À COLEÇÃO

Por uma recorrente visão linear e evolutiva dos processos históricos, as formas de vida social tendem a ser pensadas se sucedendo no tempo. Em cada etapa consecutiva, apenas são exaltados seus principais protagonistas, isto é, os protagonistas diretos de suas contradições principais. Os demais atores sociais seriam, em conclusão, os que, por alguma razão, se atrasaram para sair de cena. O campesinato foi freqüentemente visto dessa forma, como um resíduo. No caso particular do Brasil, a esta concepção se acrescenta outra que, tendo como modelo as formas camponesas européias medievais, aqui não reconhece a presença histórica do campesinato. A sociedade brasileira seria então configurada pela polarizada relação senhor–escravo e, posteriormente, capital–trabalho. Ora, nos atuais embates no campo de construção de projetos concorrentes de reordenação social, a condição camponesa vem sendo socialmente reconhecida como uma forma eficaz e legítima de se apropriar de recursos produtivos. O que entendemos por campesinato? São diversas as possibilidades de definição conceitual do termo. Cada disciplina tende a acentuar perspectivas específicas e a destacar um ou outro de seus aspectos constitutivos. Da mesma forma, são diversos os contextos históricos nos quais o campesinato está presente nas sociedades. Todavia, há reconhecimento de princípios mínimos que permitem aos que investem, tanto no campo acadêmico quanto no político, dialogar em torno de reflexões capazes de demonstrar a presença da forma ou condição camponesa, sob a variedade de possibilidades de objetivação ou de situações sociais. Em termos gerais, podemos afirmar que o campesinato, como categoria analítica e histórica, é constituído por poliprodutores, integrados ao jogo de forças sociais do mundo contemporâneo. Para a construção da história social do campesinato no Brasil, a categoria será reconhecida pela produção, em modo e grau variáveis, para o mercado, termo que abrange, guardadas as singularidades inerentes a cada forma, os mercados locais, os mercados 9

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em rede, os nacionais e os internacionais. Se a relação com o mercado é característica distintiva desses produtores (cultivadores, agricultores, extrativistas), as condições dessa produção guardam especificidades que se fundamentam na alocação ou no recrutamento de mão-de-obra familiar. Trata-se do investimento organizativo da condição de existência desses trabalhadores e de seu patrimônio material, produtivo e sociocultural, variável segundo sua capacidade produtiva (composição e tamanho da família, ciclo de vida do grupo doméstico, relação entre composição de unidade de produção e unidade de consumo). Por esses termos, a forma de alocação dos trabalhadores também incorpora referências de gestão produtiva, segundo valores sociais reconhecidos como orientadores das alternativas de reprodução familiar, condição da qual decorrem modos de gerir a herança, a sucessão, a socialização dos filhos, a construção de diferenciados projetos de inserção das gerações. O campesinato emerge associadamente ao processo de seu reconhecimento político, ora negativo, ora positivo. Por tais circunstâncias, a questão política, constituída para o reconhecimento social, enquadrou tal segmento de produtores sob a perspectiva de sua capacidade adaptativa a diferentes formas econômicas dominantes, ora pensadas pela permanência, ora por seu imediato ou gradual desaparecimento. Como em muitos outros casos de enquadramento social e político, uma categoria de auto-identificação, portanto contextual, produto de investimentos de grupos específicos, desloca-se, sob empréstimo e (re)semantização, para os campos político e acadêmico e, nesses universos sociais, sob o caráter de signo de comportamentos especialmente hétero-atribuídos ou sob o caráter de conceito, apresenta-se como generalizável. Vários autores, retratando a coexistência do campesinato em formações socioeconômicas diversas, já destacaram que o reconhecimento dessa nominação, atribuída para efeitos de investimentos políticos ou para reconhecimento de características comuns, só pode ser compreendido como conceito, cujos significados definem princípios gerais abstratos, motivo pelo qual podem iluminar a compreensão de tantos casos particulares. Para que a forma camponesa seja reconhecida, não basta considerar a especificidade da organização interna à unidade de produção e à família trabalhadora e gestora dos meios de produção alocados. Todavia, essa distinção é analiticamente fundamental para diferenciar os modos de existência dos camponeses dos de outros trabalhadores (urbanos e rurais), que não operam produtivamente sob tais princípios. Percebendo-se por essa distinção de modos de existência, muitos deles se encontram mobilizados politicamente para lutar pela objetivação daquela condição de vida e produção (camponesa). Em quaisquer das alternativas, impõe-se a compreensão mais ampla do mundo cultural, político, econômico e social em que o camponês produz e se reproduz. Da coexistência com outros agentes sociais, o camponês se 10

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constitui como categoria política, reconhecendo-se pela possibilidade de referência identitária e de organização social, isto é, em luta por objetivos comuns ou, mediante a luta, tornados comuns e projetivos. A esse respeito, a construção da história social do campesinato, como de outras categorias socioeconômicas, deve romper com a primazia do econômico e privilegiar os aspectos ligados à cultura. Ao incorporar as múltiplas dimensões da prática dos agentes, destacamos o papel da experiência na compreensão e explicitação política das contradições do processo histórico. Essas contradições revelam conflitos entre normas e regras que referenciam modos distintos de viver, em plano local ou ocupacional, colocando em questão os meios que institucionalizam formas de dominação da sociedade inclusiva. Tais postulados serão demonstrados nos diversos artigos desta coletânea, voltada para registros da história social do campesinato brasileiro. A prática faz aparecer uma infinidade de possibilidades e arranjos, vividos até mesmo por um mesmo grupo. Quanto mais se avança na pesquisa e no reconhecimento da organização política dos que objetivam a condição camponesa, mais se consolidam a importância e a amplitude do número de agricultores, coletores, extrativistas, ribeirinhos e tantos outros, nessa posição social ou que investem para essa conquista. A diversidade da condição camponesa por nós considerada inclui os proprietários e os posseiros de terras públicas e privadas; os extrativistas que usufruem os recursos naturais como povos das florestas, agroextrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais e catadores de caranguejos que agregam atividade agrícola, castanheiros, quebradeiras de coco-babaçu, açaizeiros; os que usufruem os fundos de pasto até os pequenos arrendatários nãocapitalistas, os parceiros, os foreiros e os que usufruem a terra por cessão; quilombolas e parcelas dos povos indígenas que se integram a mercados; os serranos, os caboclos e os colonos assim como os povos das fronteiras no sul do país; os agricultores familiares mais especializados, integrados aos modernos mercados, e os novos poliprodutores resultantes dos assentamentos de reforma agrária. No caso da formação da sociedade brasileira, formas camponesas coexistem com outros modos de produzir, que mantêm relações de interdependência, fundamentais à reprodução social nas condições hierárquicas dominantes. Assim, a título de exemplo, ao lado ou no interior das grandes fazendas de produção de cana-de-açúcar, algodão e café, havia a incorporação de formas de imobilização de força de trabalho ou de atração de trabalho livre e relativamente autônomo, fundamentadas na imposição técnica do uso de trabalho basicamente manual e de trabalhadores familiares, isto é, membros da família do trabalhador alocado como responsável pela equipe. Esses fundamentais agentes camponeses agricultores apareciam sob designação de colonos, arrendatários, parceiros, agregados, moradores e até sitiantes, termos que não podem ser compreendidos sem a articulação 11

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com a grande produção agroindustrial e pastoril. Se recuarmos um pouco no tempo, veremos que, ao lado de donatários e sesmeiros, apareciam os foreiros, os posseiros ou – designando a condição de coadjuvante menos valorizada nesse sistema de posições hierárquicas – os intrusos ou invasores, os posseiros criminosos etc. Os textos da história geral do Brasil, nos capítulos que exaltam os feitos dos agentes envolvidos nos reconhecidos movimentos de entradas e bandeiras, trazem à tona a formação de pequenos povoados de agricultores relativamente autárquicos. Posteriormente, tais agentes produtivos serão celebrados pelo papel no abastecimento dos tropeiros que deslocavam metais e pedras preciosas, mas também outros produtos passíveis de exportação e de abastecimento da população das cidades ou das vilas portuárias. Desse modo, o campesinato, forma política e acadêmica de reconhecimento conceitual de produtores familiares, sempre se constituiu, sob modalidades e intensidades distintas, um ator social da história do Brasil. Em todas as expressões de suas lutas sociais, seja de conquista de espaço e reconhecimento, seja de resistência às ameaças de destruição, ao longo do tempo e em espaços diferenciados, prevalece um traço comum que as define como lutas pela condição de protagonistas dos processos sociais. Para escrever sobre essa história é preciso, portanto, antes de tudo, refletir sobre a impositiva produção dessa “amnésia social” ou dessa perspectiva unidimensional e essencializada, que apaga a presença do campesinato e oculta ou minimiza os movimentos sociais dos camponeses brasileiros, consagrando – com tradição inventada – a noção do caráter cordato e pacífico do homem do campo. Ou fazendo emergir a construção de uma caricatura esgarçada do pobre coitado, isolado em grande solidão e distanciamento da cultura oficial, analfabeto, mal-alimentado. Ora, tais traços aviltantes, para olhares que os tomassem como expressivos da condição de vida e não do sujeito social, revelavam as bases da exploração e da submissão em que viviam, seja como agentes fundamentais ou complementares do processo produtivo da atividade agroindustrial e exportadora. Estimulados a coexistirem internamente, ao lado ou ao largo da grande produção, os agentes constituídos na condição camponesa não tinham reconhecidas suas formas de apropriação dos recursos produtivos. Assim sendo, são recorrentemente questionados e obrigados a se deslocar para se reconstituir, sob as mesmas condições, em áreas novamente periféricas. Da mesma forma, em outras circunstâncias, são submetidos a regras de coexistência consentidas e por vezes imediatamente questionadas, dada a exacerbação das posições hierarquizadas ou das desigualdades inerentes às condições de coexistência. A presença dos camponeses é, pois, postulada pela ambigüidade e desqualificação, quando os recursos por eles apropriados se tornavam objeto de cobiça. Entendemos, no entanto, que, sob processos relativamente 12

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equivalentes, esses agentes elaboraram, como traço comum de sua presença social, projetos de existência fundamentados em regras legítimas e legais, princípios fundamentais para a construção de um éthos e de regras éticas, orientadores de seu modo de existência e coexistência. Sob tais circunstâncias, a constituição da condição camponesa torna o agente que lhe corresponde o portador de uma percepção de justiça, entendida aqui não como uma abstração teórica sobre o direito aos recursos produtivos, e sim como uma experiência baseada em modos de coexistência: sob formas de comunidade camponesa; na labuta diária pela sobrevivência; na relação com a natureza; e nas práticas costumeiras para a manutenção e a reprodução de um modo de vida compatível com a ordem social, institucionalizada por aqueles que se colocam socialmente como seus opressores. Levando em consideração o conjunto de fatores que vimos destacando, podemos caracterizar alguns elementos constitutivos de certa tradição do campesinato brasileiro, isto é, como expressão da existência permitida sob determinadas constrições e provisoriedades e sob certos modos de negociação política. Essa negociação não exclui resistências, imposições contratuais, legais ou consuetudinárias, ou questionamentos jurídicos, que revelam e reafirmam a capacidade de adaptação às condições da produção econômica dominante. Menos do que um campesinato de constituição tradicional, no sentido da profundidade temporal da construção de um patrimônio material e familiar, vemos se institucionalizar, como elemento distintivo, um patrimônio cultural inscrito nas estratégias do aprendizado da mobilidade social e espacial. Estratégias que visam, entre outros objetivos, à busca do acesso aos recursos produtivos para a reprodução familiar e a exploração de alternativas, oferecidas pelas experiências particulares ou oficiais de incorporação de áreas improdutivas ou fracamente integradas aos mercados. Os camponeses instauraram, na formação social brasileira, em situações diversas e singulares e mediante resistências de intensidades variadas, uma forma de acesso livre e autônomo aos recursos da terra, da floresta e das águas, cuja legitimidade é por eles reafirmada no tempo. Eles investiram na legitimidade desses mecanismos de acesso e apropriação, pela demonstração do valor de modos de vida decorrentes da forma de existência em vida familiar, vicinal e comunitária. A produção estrito senso se encontra, assim, articulada aos valores da sociabilidade e da reprodução da família, do parentesco, da vizinhança e da construção política de um “nós” que se contrapõe ou se reafirma por projetos comuns de existência e coexistência sociais. O modo de vida, assim estilizado para valorizar formas de apropriação, redistribuição e consumo de bens materiais e sociais, se apresenta, de fato, como um valor de referência, moralidade que se contrapõe aos modos de exploração e de desqualificação, que também foram sendo reproduzidos no decorrer da existência da posição camponesa na sociedade brasileira. 13

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As formas exacerbadas de existência sob desigualdades socioeconômicas se expressam, sobretudo, na exploração da força de trabalho coletiva dos membros da família e na submissão aos intermediários da comercialização, que se associam a outros agentes dominantes para produzir um endividamento antecipado e expropriador. Essas formas de subordinação, que põem em questão as possibilidades de reprodução da condição camponesa, contrapõem-se à avaliação de perenizadas experiências positivas de construção da condição camponesa. Um exemplo de experiências positivas é a institucionalizada pelos sitiantes, dotados de autonomia para se agregarem por vida coletiva em bairros rurais. No contexto de lutas sociais, os trabalhadores foram construindo um sistema de crenças partilhadas e inscritas em seu cotidiano de lutas pela sobrevivência e reprodução social. Essas lutas são orientadas pela definição do acesso aos recursos produtivos, de forma legal e autônoma, como fator fundamental para sua constituição como agente produtivo imediato, isto é, contraposto ao cativo ou subjugado no interior das fazendas e, por tal razão, dispondo de relativa autonomia. Nos termos dessa tradição, a liberdade é um valor para expandir uma potencialidade, ou seja, capacidade para projetar o futuro para os filhos e para socialmente se valorizar como portador de dignidade social. Na construção da formação social brasileira, o modo de existir reconhecido pela forma camponesa, menos que um peso da tradição da estabilidade e de longas genealogias, como ocorre, por exemplo, em formações sociais européias, é uma idéia-valor, orientadora de condutas e de modos de agregação familiar ou grupal. Na qualidade de valor, é um legado transmitido entre gerações, reatualizado e contextualizado a cada nova geração que investe nessa adesão política. O peso desse legado, quando não compreendido, leva aos estranhamentos muito comuns em relação à persistência da luta pelo acesso aos recursos produtivos e mesmo em relação ao deslocamento de trabalhadores definidos como urbanos, que engrossam movimentos de sua conquista. As possibilidades de existência que a condição camponesa permite vão se contrapor, em parte por equivalência comparativa, às condições de exploração de trabalhadores da indústria, do comércio e de serviços. Esses traços, sempre presentes porque realimentados como um legado de memórias familiares e coletivas, vão atribuir sentido às constantes mobilidades de trabalhadores. Os deslocamentos justificam-se pela busca de espaços onde haja oportunidade de pôr em prática modos de produzir e de existência, desde que fundamentados pela gestão autônoma dos fatores produtivos, das condições e produtos do trabalho e da orientação produtiva. Levando em conta tais elementos, definidos como constitutivos de uma tradição e alargando a compreensão da diversidade de situações, reafirmamos a presença do campesinato como constitutiva de toda a história do Brasil. Tais produtores estiveram vinculados à exploração colonial, 14

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integrando-se a mercados locais ou a distância; reafirmaram-se como posição desejada no decorrer da transição do trabalho escravo para o trabalho livre; abasteceram os processos de agroindustrialização de produtos destinados à exportação; e, entre outras tantas situações, por mais de um século, vêm ocupando a Amazônia. Atualmente, apresentam-se como um dos principais atores da cena política, constituída para tornar possível a construção de sociedade erguida sobre bases mais igualitárias, capazes, então, de fundamentar os princípios democráticos de coexistência social e política. Portanto, as negociações em torno das alternativas de ocupação do espaço físico e social marcaram e impregnaram a proposição de modos de vida orientados por valores cuja elaboração tornou possível a legitimidade da coexistência política e cultural. Modos de vida que também reafirmam o direito à luta pela autonomia, emblematizada pela célebre referência à vida na fartura. Ora, tudo isso, relembramos, fora construído no contexto de imposição de formas de dominação objetivadas com base na grande produção. Por esse motivo, a vida segundo a lógica expropriatória objetivada na grande propriedade foi concebida como destruidora da dignidade social. A honra estava (assim e inclusive) pautada pela defesa do acesso à alimentação, todavia em condições socialmente concebidas como adequadas à reprodução saudável do trabalhador e dos membros de sua família. Dessa forma, no Brasil, os produtores agregados pela forma de organização camponesa estão presentes como atores sociais que participaram e participam da construção da sociedade nacional. Esse reconhecimento não se funda tão-somente em uma dimensão politizada de defesa dessa visibilidade social. Ele também se explica pelos princípios de constituição das formas hegemônicas de organização da produção social. Destacaremos três dimensões desse protagonismo. Em primeiro lugar, o campesinato representa um pólo de uma das mais importantes contradições do capital no Brasil, que consiste em sua incapacidade de se “libertar” da propriedade fundiária. O significado que a propriedade da terra tem até hoje, como um elemento que ao mesmo tempo torna viável e fragiliza a reprodução do capital, gera uma polarização (de classe) entre o proprietário concentrador de terras (terras improdutivas) e aquele que não tem terras suficientes. Desse fato decorrem duas conseqüências principais. Por um lado, essa contradição não é residual na sociedade brasileira, constituindo-se um dos pilares de sua estrutura social; por outro, a principal luta dos camponeses é pela construção de seu patrimônio, condição sine qua non de sua existência. Essa luta foi e continua sendo muito forte em diversos momentos e sob as mais variadas formas. Ela tem um caráter eminentemente político e corresponde ao que se costuma chamar o “movimento camponês”. Assim, a luta pela terra e pelo acesso a outros recursos produtivos não assume apenas a dimensão mais visível das lutas camponesas. Ela se processa igualmente em um nível menos perceptível, por outras formas de resistência 15

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que dizem respeito às estratégias implementadas pelos camponeses para trabalhar, mesmo em condições tão adversas, e assegurar a reprodução da família. Essa dimensão tem, de fato, menor reconhecimento pela sociedade e mesmo na academia. Ao se afirmar historicamente essa dimensão, é importante ressaltar a capacidade dos camponeses de formular um projeto de vida, de resistir às circunstâncias nas quais estão inseridos e de construir uma forma de integração à sociedade. Essas são práticas que têm um caráter inovador ou que revelam grande capacidade de adaptação e de conquistas de espaços sociais que lhes são historicamente inacessíveis. Consideramos necessário registrar e reconhecer as vitórias, por mais invisíveis que sejam. Por último, há uma terceira dimensão, também pouco reconhecida, até mesmo entre os acadêmicos, que consiste na valorização da forma de produzir do camponês. Esta se traduz pela adoção de práticas produtivas (diversificação, intensificação etc.), formas de uso da terra, relações com os recursos naturais etc. Formam-se, assim, os contornos de um saber específico que se produz e se reproduz contextualmente. É claro que o campesinato não se esgota na dimensão de um métier profissional, nem a ela corresponde um modelo imutável, incapaz de assimilar mudanças, mas é imprescindível para que se possa compreender seu lugar nas sociedades modernas. Sua competência, na melhor das hipóteses, é um trunfo para o desenvolvimento “de uma outra agricultura” ou para a perseguição da sustentabilidade ambiental e social como valor. E, na pior das hipóteses (para não idealizar a realidade), um potencial que poderia ser estimulado na mesma direção. Não é sem conseqüência que sua existência seja hoje tão exaltada como um dos pilares da luta pela reconstituição dos inerentes princípios de reprodução da natureza, tão subsumidos que estiveram e continuam estando a uma racionalidade técnica, em certos casos exagerada pela crença em uma artificialização dos recursos naturais reproduzidos em laboratórios e empresas industriais. Ora, os princípios de constituição e expansão do capitalismo desconhecem e desqualificam essa competência. Do ponto de vista político, a negação dessa dimensão, tanto à direita (que defende a grande propriedade como a única forma moderna ou modernizável) quanto à esquerda (que terminou enfatizando apenas a dimensão política da luta pela terra), tem como conseqüência a negação do camponês como agricultor. As políticas agrícolas chamadas “compensatórias” só reforçam a visão discriminadora. Em conclusão, reiteramos, por um lado, a universalidade da presença do campesinato, que abarca os diversos espaços e os diferenciados tempos. E também, por outro, a variedade de existências contextuais, visto que essa variedade só indica a valorizada adaptabilidade dos agentes e dos princípios abrangentes de constituição da forma camponesa. Portanto, mesmo que corresponda à revalorização de uma tradição (patrimônio de valores institucionalizados nas memórias e na projeção social), a reprodução do campesinato nas sociedades contemporâneas é um fato social do mundo 16

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moderno, e não resquício do passado. Por essa perspectiva, ultrapassa-se a velha e surrada concepção unilinear da inexorável decomposição do campesinato. Como os processos históricos têm demonstrado, ela não é tendência geral ou lei inevitável. Em vez dessa concepção, que, reafirmando a substituição das classes fundamentais, augura (e até vaticina) o fim do campesinato, escolhemos pensar e registrar as múltiplas alternativas, resultado de conquistas e resistências de atores sociais que se referenciam a um modo de produzir e viver coexistente com um mundo moderno. Entrementes, é nesse mesmo mundo, cujos analistas vêm acenando (e, por que não, também vaticinando) com o desemprego em massa como princípio de constituição econômica, em que a diversidade cultural é reafirmada para fazer frente a uma vangloriada homogeneização política e cultural, que os camponeses se reorganizam em luta. Por essa conduta clamam exatamente pela manutenção da autonomia relativa, condição que o controle dos fatores de produção e da gestão do trabalho pode oferecer. Conselho Editorial

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PREFÁCIO

Apresentamos aos leitores – especialmente aos militantes camponeses, aos interessados e aos estudiosos da questão camponesa no Brasil – uma obra que é o resultado de um fantástico esforço intelectual e coletivo. A elaboração da História Social do Campesinato no Brasil envolveu grande número de estudiosos e pesquisadores dos mais variados pontos do país, num esforço conjunto, planejado e articulado, que resulta agora na publicação de dez volumes retratando parte da história, resistências, lutas, expressões, diversidades, utopias, teorias explicativas, enfim, as várias faces e a trajetória histórica do campesinato brasileiro. A idéia de organizar uma História Social do Campesinato no Brasil aflorou no fim de 2003, durante os estudos e os debates para a elaboração de estratégias de desenvolvimento do campesinato no Brasil que vinham sendo realizados desde meados desse ano por iniciativa do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), com envolvimento, em seguida, da Via Campesina Brasil, composta, além de pelo próprio MPA, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), pela Pastoral da Juventude Rural (PJR), pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab). Essa idéia foi ganhando corpo quando se envolveram, primeiro, o pesquisador Horácio Martins de Carvalho e os pesquisadores Delma Pessanha Neves, Márcia Maria Menendes Motta e Carlos Walter Porto-Gonçalvez, que decidiram, em reunião nas dependências da Universidade Federal Fluminense (UFF), no início de 2004, com dirigentes da Via Campesina, lançar o desafio a outros tantos que se dedicam ao tema no Brasil. O resultado foi o engajamento de grande número de pesquisadores, todos contribuindo de maneira voluntária. Foram consultadas cerca de duas centenas de pesquisadores, professores e técnicos para verificar se a pretensão de elaborar uma História Social do 19

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Campesinato no Brasil tinha sentido e pertinência. A idéia foi generosamente aceita, um Conselho Editorial foi constituído, muitas reuniões foram realizadas, os textos foram redigidos e o resultado é a publicação destes dez volumes da Coleção História Social do Campesinato no Brasil. Nesta Coleção apresentamos diversas leituras sobre a história social do campesinato no Brasil. Nossa preocupação com os estudos sobre o campesinato se explica pelo fato de, na última década, ter havido um avanço dos trabalhos que promoveram os métodos do ajuste estrutural do campo às políticas neoliberais. Nessa perspectiva, a realidade do campo foi parcializada de acordo com os interesses das políticas das agências multilaterais que passaram a financiar fortemente a pesquisa para o desenvolvimento da agricultura. Esses interesses pautaram, em grande medida, as pesquisas das universidades e determinaram os métodos e as metodologias de pesquisa com base em um referencial teórico de consenso para o desenvolvimento da agricultura capitalista. Desse ponto de vista, o campesinato tornou-se um objeto que necessita se adequar ao ajuste estrutural para que uma pequena parte possa sobreviver ao intenso processo de exploração e expropriação do capitalismo. Poucos foram os grupos de pesquisa que mantiveram uma conduta autônoma e crítica a essa visão de mundo em que o capitalismo é compreendido como totalidade e fim de todas as coisas. Nesse princípio de século, o conhecimento é ainda mais relevante como condição de resistência, interpretação e explicação dos processos socioterritoriais. Portanto, controlá-lo, determiná-lo, limitá-lo, ajustá-lo e regulá-lo são condições de dominação. Para criar um espaço em que se possa pensar o campesinato na história a partir de sua diversidade de experiências e lutas, a Via Campesina estendeu o convite a pesquisadores de várias áreas do conhecimento. Quase uma centena de cientistas responderam positivamente à nossa proposta de criar uma coleção sobre a história do campesinato brasileiro. Igualmente importante foi a resposta positiva da maior parte dos estudiosos convidada para publicar seus artigos, contribuindo com uma leitura do campesinato como sujeito histórico. O campesinato é um dos principais protagonistas da história da humanidade. Todavia, por numerosas vezes, em diversas situações, foram empreendidos esforços para apagá-lo da história. Esses apagamentos ocorrem de tempos em tempos e de duas maneiras: pela execução de políticas para expropriá-lo de seus territórios e pela formulação de teorias para excluí-lo da história, atribuindo-lhe outros nomes a fim de regular sua rebeldia. Por tudo isso, ao publicar esta importante obra, em nosso entender, de fôlego e profundidade, queremos fazer quatro singelos convites. 20

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Convite à Leitura Esta obra merece ser lida pela riqueza de informações, pela abrangência com que aborda o tema e pela importância da história social do campesinato para compreender o Brasil. Convite ao Estudo Além da mera leitura, é uma obra que deve ser estudada. É preciso que sobre ela nos debrucemos e reflitamos para conhecer esse tema em profundidade, quer em escolas, seminários, grupos de estudo, quer individualmente. Esta Coleção é um desafio, pois retrata uma realidade que, aqueles que estiverem comprometidos em entender o Brasil para transformá-lo, precisam conhecer profundamente. Convite à Pesquisa Esta obra, composta de dez volumes, é fruto e resultado de muita disciplinada e dedicada pesquisa. É, portanto, desafio a mais investigações e a que outros mais se dediquem a esses temas. Embora uma obra vasta, com certeza mais abre do que encerra perspectivas de novos estudos, sob novos ângulos, sobre aspectos insuficientemente abordados, sobre realidades e histórias não visibilizadas, com enfoques diferenciados. Há muito que desentranhar da rica e variada história social do campesinato brasileiro, e os autores desta obra sentir-se-ão imensamente realizados se muitas, rigorosas, profundas e novas pesquisas surgirem estimuladas por essa sua importante iniciativa. Convite ao Debate Esta não é uma obra de doutrina. E mesmo as doutrinas devem ser expostas ao debate e ao contraditório. Quanto mais uma obra sobre a história. Convidamos ao debate dos textos, mas, além disso, ao debate sobre o sujeito social do qual a Coleção se ocupa: o campesinato e sua trajetória ao longo da história do Brasil. E que esse não seja um debate estéril ou esterilizante que se perde nos meandros da polêmica pela polêmica, mas que gere ações na sociedade, nas academias, nos centros de pesquisas e nas políticas de Estado em relação aos camponeses e ao mundo que os circunda e no qual se fazem sujeitos históricos. A Via Campesina do Brasil reconhece e agradece profundamente o trabalho árduo e voluntário dos membros do Conselho Editorial e de todos os envolvidos no projeto. Sem o desprendimento e o zelo desses professores, sem essa esperança renovada a cada dia pelas mais distintas formas e motivos, sem a acuidade acadêmica, o cuidado político e a generosidade 21

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de todos os envolvidos não teríamos alcançado os resultados previstos. De modo especial nosso reconhecimento ao professor Horácio Martins de Carvalho. Agradecemos também ao Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead), do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Ao promover estudos e pesquisas sobre o universo rural brasileiro o Nead viabilizou, com a Editora da UNESP, a publicação desta Coleção. A Via Campesina experimenta a satisfação do dever cumprido por ter participado desta importante iniciativa, desejando que se reproduza, se multiplique e gere frutos de consciência, organização e lutas nas bases camponesas em todo o território nacional. Via Campesina do Brasil agosto de 2008.

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INTRODUÇÃO ESTUDOS CLÁSSICOS BRASILEIROS SOBRE O CAMPESINATO

Este volume da Coletânea História Social do Campesinato tem como objetivo apresentar alguns dos autores que, no Brasil, produziram obras relevantes sobre o camponês. Ele visa a estimular o leitor a aprofundar seu conhecimento acerca dos debates conceituais sobre a natureza do campesinato brasileiro. As leituras selecionadas dão conta das temáticas que surgiram, principalmente a partir dos anos 1960 e 1970, num cenário nacional e internacional, que registrava um movimento de redescoberta de camponeses. Esses camponeses, como cultivadores comprometidos com uma forma particular de tratar o solo, produzir alimentos e garantir o sustento de suas famílias e a reprodução de trabalhadores, segundo uma cultura típica dos pequenos grupos e modos de vida, vieram a ser resignificados, em seu conjunto, como uma classe. A situação e a condição do campesinato, no entanto, estiveram quase sempre em contestação, porque o modelo de desenvolvimento no qual se inspiraram reformistas da época parecia não contemplar a presença de uma classe portadora dessas características. A polarização entre proletariado e burguesia, decorrente do modelo, deixava pouca margem a outras interpretações, de conteúdo mais empírico, que revelassem a presença de classe ou modos de produção camponeses. O campesinato, uma categoria esquecida, espúria, em processo de diferenciação social, em direção a uma das classes polares do capitalismo, era o sinônimo do atraso, da fragilidade política e da dependência; acrescia-se a essas fragilidades a noção da ineficiência econômica, técnica, resultante do seu tradicionalismo e aversão ao risco. Esse quadro amplo do lugar dos camponeses na sociedade de classes parecia definir a sorte desses habitantes do campo: a pouca visibilidade, uma morte constantemente anunciada, embora adiada, a condição de ameaçados, economicamente, socialmente, politicamente. No entanto, os acontecimentos políticos e as várias guerras camponesas do século XX, como demonstra o antropólogo Eric Wolf (1984), tornaram claros os meandros da luta e das possibilidades dos camponeses nos novos cenários 23

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Introdução

mundiais. As várias contestações e formas de resistência desenvolvidas por grupos particulares elevaram os camponeses de vários cantos do planeta à condição de protagonistas que se firmaram por suas qualidades de lidar com as demandas da subsistência, da justiça e da nação. No caso brasileiro, a situação dos camponeses parece ser ainda mais crítica. Até as últimas décadas do período colonial, um campesinato composto de uma mistura de portugueses pobres, povos indígenas e africanos conseguiu fazer parte da formação social nas regiões do Centro-Sul e Nordeste. Contudo, as pressões do sistema mundial capitalista, entrando em sua primeira fase de industrialização, estimularam políticas e ações que acabaram por acirrar a precária situação de sobrevivência dos cultivadores pobres livres no período imperial. Um processo de expansão das monoculturas das fazendas, bem como os privilégios concedidos aos grandes latifúndios na virada do século XVIII, reduziu ainda mais as terras camponesas. No século XIX, intensificou-se o processo de exteriorização da produção, visando a abastecer os mercados europeus, deixando limitado espaço para a produção de alimentos. Por outro lado, os usos de trabalho forçado, numa estrutura social marcada pelos poderes dos senhores da terra sobre escravos e, por extensão, sobre os bens e pessoas das vizinhanças da casa-grande, constituíram as bases para o fortalecimento do poder local e de constrangimentos a outros personagens do campo. Tais condições de dominação foram consolidadas com a Lei de Terras de 1850, que privatizou a posse, e com o Regulamento das Terras de 1913, que passou o controle das terras devolutas do governo federal para os governadores provinciais. É assim que os historiadores Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva (1999) explicam as condições adversas de desenvolvimento dos camponeses do Brasil. A discussão dos autores aqui considerados revela a preocupação em situar as bases para compreender esse caráter de ameaçados dos camponeses no Brasil. Para a organização do tomo, os textos escolhidos foram agrupados em quatro partes. I. A primeira parte inclui aqueles textos cujos autores estavam envolvidos no debate político, nos anos 1950 e 1960, sobre a natureza da sociedade brasileira e as perspectivas para o seu futuro. No centro dessas reflexões estava a configuração das classes sociais e, de modo especial, a natureza e o papel histórico do campesinato. O contexto imediato desse debate é dado pela efervescência das Ligas Camponesas e pela elaboração no Congresso Nacional do Estatuto do Trabalhador Rural, promulgado em 1963. GUIMARÃES, A. P. Formação da pequena propriedade: intrusos e posseiros. In: . Quatro séculos de latifúndio. São Paulo: Fulgor, 1963.

O texto, com o qual Alberto Passos Guimarães comparece neste tomo, foi tirado de seu livro clássico Quatro séculos de latifúndio, no qual ele analisa 24

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não somente a gênese da estrutura agrária brasileira, mas também seus efeitos sobre os camponeses e sobre o conjunto da sociedade brasileira, da época colonial até meados do século passado. O autor faz um levantamento dos mecanismos que foram sistematicamente postos em ação para impedir que os pequenos agricultores e trabalhadores livres sem terra pudessem ter acesso à propriedade da terra e contribuíssem dessa forma para a construção de uma economia forte e democrática. Alberto Passos Guimarães traz as nuances do debate sobre o caráter histórico da agricultura brasileira, debate que na época colocou, em lados opostos, os defensores da tese da existência do capitalismo no nosso meio rural contra aqueles que entendiam que o campo brasileiro estava dominado por relações feudais. Alberto Passos figurava entre aqueles que defendiam o caráter feudal de nossa estrutura agrária. Assim, para ele, a propriedade fundiária representava ainda um monopólio colonial e feudal da terra. E o tipo de feudalismo criado pela colônia portuguesa do Brasil evidenciava uma situação ainda mais grave do que havia sido o feudalismo clássico, na evolução histórica européia. Ele introduz argutamente uma diferença entre o “monopólio feudal da terra” propriamente dito, ou seja, a forma própria de feudalismo europeu, e o “monopólio colonial, feudal e escravista da terra”, a forma típica da formação brasileira. Se o primeiro feudalismo acabaria permitindo, ao longo dos séculos, a inclusão progressiva da população como camponeses parcelários, o segundo tipo, o nosso “feudalismo”, moldado pelo sistema da monocultura, pelo sistema da “plantação”, teria produzido na população livre a “repugnância pelo trabalho”, afastando-a, ou mesmo excluindo-a do processo produtivo. Ele então analisa as condições de vida da massa de homens livres, escravos forros e fugidos ou índios, reduzidos todos à situação de uma população completamente marginalizada, uma vez que não podiam ingressar na força de trabalho oficial, constituída essencialmente por escravos, nem ter acesso, pelo esforço próprio, aos meios naturais de produção, particularmente à terra. Nesse contexto, discute o efeito diferenciado, no Brasil, da teoria do economista inglês Wakefield, defensor da tese da “colonização sistemática”. Wakefield defendia a criação de um preço artificial para a terra e a sua venda a preços bem elevados para impedir que os imigrantes, que estavam deixando a Europa para a Austrália ou outras colônias da Inglaterra, se apropriassem das terras livres das colônias. O objetivo era fazer surgir um “exército industrial de reserva” de trabalhadores nas colônias, para garantir suprimento de força de trabalho para os investimentos dos grandes proprietários e comerciantes de além-mar. Alberto Passos faz uma discussão do significado da legislação social na nossa história agrária, mostrando o efeito da luta de classes dos senhores contra os homens livres pobres, ou seja, do permanente cerceamento, por 25

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Introdução

parte da aristocracia rural, de que os homens livres pudessem ter acesso à posse legal de terra. Trata-se visivelmente de uma situação que não é recente, mas que perdura até hoje, e que para Alberto Passos tinha uma razão teórica precisa: o atraso das relações sociais no campo. Uma situação que explica também o significado social da grilagem de terras e sua tolerância pelo Estado: tratase de um mecanismo permanente de turbação da posse dos camponeses, como um meio para impedir que esses trabalhadores rurais (posseiros) consigam legitimar suas posses e consolidar a propriedade de terra, muitas vezes obtida pelo próprio trabalho de desbravamento. São, portanto, questões colocadas na própria gênese da formação histórica do Brasil, mas que permanecem existindo amplamente na atualidade, enquanto a estrutura agrária continua até hoje a representar um ponto de tensão nas relações de classe no campo. Por tudo isso, o texto de Alberto Passos Guimarães nesta coleção torna-se uma presença indispensável. QUEIROZ, M. I. P. de. Uma categoria rural esquecida. Revista Brasiliense (São Paulo), n.45, p.83-97, 1963.

O artigo da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, apresentado neste tomo, foi publicado em janeiro de 1963, como uma contribuição da autora ao debate da sociedade a respeito da regulamentação do trabalho na agricultura. É nesse momento, com efeito, que o Congresso Nacional está elaborando o Estatuto do Trabalhador Rural, lei que, promulgada em março desse mesmo ano, normalizou, pela primeira vez, todos os regulamentos que deviam reger a contratação de trabalhadores para as atividades agrícolas e as atividades de pequenos agricultores, especialmente em relações de dependência como arrendatários e parceiros. A intervenção de Maria Isaura Pereira de Queiroz introduz uma nova dimensão ao debate, ao chamar atenção para a existência, no Brasil, de uma ampla categoria de trabalhadores do campo que não vivenciam diretamente a relação polarizada entre o capital/propriedade da terra e o trabalho. Tratase dos pequenos agricultores sitiantes, presentes em todas as regiões, que constituem a “parcela mais importante da população ligada à terra, em nosso país”. Eles se caracterizam por um gênero de vida particular, cujas bases são constituídas pela agricultura de subsistência, então pouco vinculada ao mercado, e pela sociabilidade dos pequenos grupos de vizinhança, nos termos em que Antonio Candido já havia analisado. Apesar de sua importância numérica, a fragilidade da produção de excedentes e a distância geográfica dos bairros freqüentemente impediam o reconhecimento social dos sitiantes, ora claramente desconhecidos, nas estatísticas e nas políticas públicas, ora vistos apenas de forma negativa, como os não-produtores e não-consumidores, excluídos portanto dos processos de desenvolvimento da sociedade. A autora aponta para a existência 26

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de três tipos de sitiantes, que se distinguem em função do modo de acesso à terra: o proprietário, o posseiro e o agregado. Ameaçados pelo que ela chama a “penetração da civilização moderna no interior dos Estados”, os sitiantes sofrem as conseqüências da dupla degradação, econômica e social. As propostas em debate na sociedade desconsideravam essa situação, para a qual “nenhuma referência concreta” fora feita. A solução preconizada pela autora é a reforma agrária que, sem destruir o modo de funcionamento que lhes é próprio, assegure o acesso dos sitiantes à propriedade da terra, ao mercado, a uma educação de qualidade e lhes ajude na gestão do seu estabelecimento familiar. ANDRADE, M. C. de. As tentativas de organização das massas rurais – As Ligas Camponesas e a sindicalização dos trabalhadores do campo. In: . A terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Editora Brasiliense, 1963.

Geógrafo de formação e estudioso dos processos políticos e econômicos do desenvolvimento regional, Manuel Correia de Andrade vem abordar significativas questões sobre os passos desse desenvolvimento. Em A terra e o homem no Nordeste (1963), o autor procura analisar facetas várias da relação entre os elementos formadores da região, pelo exame dos aspectos históricos, geográficos e políticos que marcam os processos nos quais estão imbricados aqueles que tiram o sustento da agricultura e da pecuária. O texto escolhido para este tomo focaliza um aspecto pouco comum nesses tipos de análise, o das lutas diárias de populações submetidas à busca pela sobrevivência. O autor aborda no último capítulo da obra, que lhe deu reconhecimento entre os melhores livros do século XX, a questão das Ligas Camponesas. Em assim fazendo, comprou, evidentemente, uma briga com setores do governo central, o que lhe valeu a decisão de arrancá-lo do volume, já na edição seguinte. Na última edição póstuma, a obra foi impressa segundo o formato original. O autor adentrou no campo do debate sobre as possibilidades de organização do que denominou de massas rurais, focalizando processos de formação das Ligas Camponesas e a sindicalização dos trabalhadores rurais. Delineou as formas usuais de resistência dos trabalhadores às miseráveis condições de subsistência, sugerindo que as políticas de colonização decantadas pelo governo central, embora oferecessem saídas individualizadas, via migração, seriam pouco efetivas para a solução dos problemas da maioria. Por outro lado, o autor chega a pontuar que essas massas são, em geral, despossuídas de direitos e frágeis nas suas relações com os poderes políticos e econômicos nacionais e locais. O autor examina as condições de expansão das usinas, os desmontes das áreas de produção de alimentos, observando também como as pesadas cobranças feitas aos foreiros determinaram uma situação insustentável que levou ao desenrolar do movimento das Ligas Camponesas. 27

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Introdução

Os registros feitos pelo autor chamam atenção pelos aspectos da dominação e da exploração dos camponeses, nas suas acepções – de trabalhadores da cana e foreiros – como também para o fenômeno das “formas cotidianas de resistência” (Scott, 2002), que expõem os controles sobre os trabalhadores, bem como o potencial das lutas em situações em que os direitos da subsistência e da justiça estejam ameaçados. Manuel Correia de Andrade faz assim um texto construído empiricamente para virar um problema de pesquisa, no qual são apresentadas hipóteses valiosas sobre a questão da mobilização das massas em situações de extremo constrangimento físico, socioeconômico, moral e político. Sendo assim, a atualidade da contribuição desse autor está reconhecida não apenas no seu conteúdo histórico, mas pelos novos tipos de exploração que têm lugar nos novos e velhos espaços da produção da cana no país. II. Na segunda parte, abrimos o leque para a inclusão de cinco textos. Eles têm em comum o esforço de compreensão teórica do campesinato, por meio da construção de conceitos e de categorias analíticas para explicar as particularidades desse ator social na sociedade brasileira, constituído, como já foi dito, nos limites da escravidão e da concentração fundiária. VELHO, O. G. A. C. O conceito de camponês e sua aplicação à análise do meio rural brasileiro. América Latina (Rio de Janeiro), v.12, n.1, p.96-104, 1969. Considerando as limitações do modelo de desenvolvimento do país, Otávio Guilherme Velho parece encontrar, na análise de situações empíricas particulares, um ponto de partida para compreender a possibilidade de desenvolvimento de um campesinato, numa situação de fronteira e, por extensão, no país. Por meio de um modelo que contempla situações-limite – fronteira amazônica e Nordeste brasileiro –, o autor estabelece indicadores para demonstrar os eixos centrais do seu estudo. No seu entendimento, as situações camponesas no país poderiam ser entendidas num continuum camponês-proletário, expresso entre dois pólos definidos por um máximo de campesinidade e um máximo de proletarização. Considerando as condições de acesso à terra no Nordeste, determinadas segundo as demandas da monocultura, menos terra, mais mão-de-obra, maior integração ao sistema nacional, teríamos, conseqüentemente, conforme o autor, menos camponeses e mais proletários. O outro pólo, avaliando a abertura da fronteira amazônica pela pavimentação dos caminhos em direção ao Norte do país e a disponibilidade de terras, apostaria numa hipótese de fortalecimento de um campesinato na fronteira (mais terra, menos mão-de-obra, menor integração ao sistema nacional), mais camponeses com menor proletarização. O pólo oposto, a zona da mata em Pernambuco, emerge como o exemplo de situações definidas pelo máximo de proletarização e, por conseguinte, com reduzido potencial para experiências camponesas. 28

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É, pois, verdade que esse entendimento de situações camponesas ameaçadas parece influenciar as análises que o grupo de pesquisa acima indicado desenvolve. O autor constrói o seu olhar sobre as realidades empíricas, com base nos estudos sobre o lugar das fronteiras no desenvolvimento nacional e avança pelo esforço comparativo para entender o movimento dos atores localizados, poderíamos aventar, segundo um linguajar contemporâneo, entre situações que favorecem a expansão e construção de condições camponesas e outras que as inibem. Em descompasso com o que observa Foster sobre a imagem do bem limitado, o autor vem examinar o fato de que, em condições de amplo acesso à terra, haveria a possibilidade de expansão de situações camponesas; ao contrário, onde houvesse menor acesso à terra, maior integração ao sistema nacional e mão-de-obra abundante, a tendência seria o máximo de proletarização. Passados trinta anos dessa contribuição do autor, torna-se instigante avaliar de que maneira os recentes desenvolvimentos da monocultura, que vem a se estabelecer no Norte, e os novos usos do solo no Nordeste do país poderiam sugerir outras tendências. Igualmente interessante seria examinar os casos das novas mercadorias que, movidas pelos mecanismos de qualidade definidos pelos mercados globais, estão a exigir outros tipos de relação com a terra, o trabalho e o meio ambiente, vindo, provavelmente, a confluir na expansão de experiências camponesas. CARDOSO, C. F. S. A brecha camponesa no sistema escravista. In: Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.

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O texto de Ciro Flamarion Cardoso coloca o tema da gênese do campesinato, no Brasil e nas Américas, de um modo geral, em uma perspectiva teórica e histórica bem ampla. Ele discute a formação do escravo-camponês, a formação de um protocampesinato no interior da própria plantation escravista colonial. Trata-se, na verdade, de um tema ainda pouco visualizado nos debates sobre o campesinato e sobre a formação social brasileira. Isso porque o sistema da plantation foi visto prioritariamente como um empreendimento mercantil, e o debate se manteve, sobretudo, centrado nos aspectos gerais desse sistema, ou seja, no seu eventual caráter feudal ou capitalista. O autor, seguindo a trilha aberta pelo historiador polonês Tadeusz Lepkowski, percorre a larga produção historiográfica que permite fundamentar a sua tese da formação de um campesinato dentro do sistema escravista nas Américas. E não se trata de identificar o surgimento do campesinato apenas nos quilombos, ou seja, no aglomerado de escravos fugidos do sistema, portanto fora do grande empreendimento mercantilista. Ainda que os quilombolas também representem uma forma de camponeses no período colonial, o autor examina aqui prioritariamente as “atividades agrícolas realizadas por escravos nas parcelas e no tempo para trabalhá-las, concedidos para esse fim no interior das fazendas”. Trata-se das atividades que os escravos desenvolviam no pouco tempo livre, em pequenos lotes de terra concedidos 29

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em usufruto pelas fazendas, que deram origem a uma espécie de “mosaico social”, de atividades em que a figura do escravo se assemelhava bastante à figura de um camponês semi-autônomo. A cessão de terras aos escravos para implantarem cultivos de subsistência visava à diminuição do custo de manutenção da força de trabalho, nas conjunturas de arrefecimento do comércio do açúcar. É por isso que, nos diversos períodos e situações coloniais, há uma pressão, seja partindo do escravo, no sentido de obtenção de parcelas onde pudesse autonomamente desenvolver sua própria lavoura, seja partindo dos senhores ou da própria autoridade colonial, em sentido contrário, visando a limitar ao mínimo essa prática. É interessante observar que a mesma problemática tem lugar na disputa entre o morador e o senhor de engenho, em época bem recente, sendo essa reivindicação presente tanto na plataforma das Ligas Camponesas como na fixada em lei no Estatuto da Lavoura Canavieira. O texto chama atenção para o caráter generalizado dessa prática nas colônias e nos estados americanos (sul dos Estados Unidos), com destaque para as colônias inglesas e francesas do Caribe. A prática chegou a ter tal amplitude que levou o antropólogo estadunidense Sidney Mintz a duvidar da existência de um verdadeiro sistema escravista nas Américas. Mas não foi menos importante no Brasil, ainda que seja um aspecto pouco estudado de nossa história. Daí o interesse em incluirmos este texto neste tomo. LINHARES, M. Y.; TEIXEIRA DA SILVA, F. C. A questão da agricultura de subsistência. In: . História da agricultura brasileira: combate e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981.

O ensaio selecionado é parte de um breve livro dos historiadores Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, ambos do mundo intelectual e universitário do Rio de Janeiro. O livro nasceu a partir de um trabalho que Linhares apresentou em 1976. Ofereceu um balanço da literatura multidisciplinar sobre a história da agricultura no Brasil e sinalizou a necessidade de pesquisar a história não da grande lavoura de exportação, mas a do campesinato, que produz o sustento do povo brasileiro desde 1530, uma história do abastecimento da colônia e do império. A iniciativa nasceu de uma proposta da Fundação Getúlio Vargas, recebeu amparo – ironicamente – da ditadura, por meio do Ministério da Agricultura (Linhares tinha sido cassada pelo mesmo regime em 1968) e acabou dando origem ao Centro de Pós-Graduação de Desenvolvimento Agrário (CPDA) e ao Programa de Mestrado em História Agrária na Universidade Federal Fluminense (UFF). Além do livro selecionado, foram produzidos vários outros estudos – por exemplo, dois volumes da História do abastecimento (1979) e Terra prometida (1999) –, mas a história agrária ganhou poucos aderentes entre os historiadores brasileiros, a grande maioria preocupada com temas urbanos, literários e paradigmas alheios à terra brasileira. 30

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Como uma das frentes a ser retomadas com o fim da ditadura, a questão agrária foi bastante debatida no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980. Partindo da realidade, os cientistas e fundações de amparo à pesquisa foram mobilizados a partir dos problemas expostos no campo pelo movimento sindical dos trabalhadores rurais e das mobilizações dos camponeses e sem-terra. Os estudiosos se dividiram em função do objeto e do método de abordá-lo. Dois grandes grupos se formaram, refletindo os debates da época pré-golpe: um grupo insistiu que a etapa capitalista tivesse chegado ao campo, fazendo o proletariado rural seu objeto de estudo, e outro grupo, inclusive Linhares e Teixeira da Silva, enfatizou a persistência de formas econômicas não capitalistas, instigando pesquisas sobre o campesinato. Foi esse o principal objetivo da seleção feita. Os autores queriam estimular seus colegas a examinar o lado social do abastecimento da colônia, mostrando como a evidência empírica então disponível apoiava suas asserções sobre a história antiga da “gênese das formas camponesas”. Questionaram várias teses, inclusive a tese de feudalismo que anima a obra de Alberto Passos Guimarães, a hipótese do atraso do desenvolvimento capitalista da escola paulista do historiador Caio Prado Júnior e até o argumento da “brecha camponesa” de seu parceiro Ciro Cardoso. No caso, acertam Linhares e Teixeira da Silva, “a brecha camponesa não era a única forma de produção de alimentos na colônia. À margem do latifúndio, existia todo um segmento de produtores profundamente vinculados a este, e que deveriam atender suas necessidades [...para não falar...] dos pequenos produtores do agreste e do sertão, além, é claro, da pecuária”. Com várias citações de documentos históricos, os autores desafiaram “toda uma tradição historiográfica brasileira que procura ver as formas de vida camponesas como um elemento novo na paisagem brasileira” e apontaram “um novo caminho” para a realização de “um sem-número de verificações empíricas”. IANNI, O. A utopia camponesa. In: Ciências Sociais hoje. São Paulo: Cortez Editora e ANPOCS, 1986.

O tema do campesinato não aparece entre os temas mais freqüentes da produção do sociólogo Octávio Ianni. Esse autor dedicou sua vida intelectual a muitos temas, com destaque para a questão racial – seu tema inicial – e para as questões da mudança social e desenvolvimento econômico do Brasil. Mas a preocupação com a política é essencial em produção intelectual. Nesse sentido, na análise da problemática social do campo, chama atenção particularmente seu texto “A utopia camponesa”, originalmente apresentado em 1986, na reunião anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), no qual destaca a importância do campesinato nas grandes revoluções sociais da era pós-revolução industrial. Como ponto de partida contextualizador, Ianni alinha as concepções predominantes na tradição marxista. Faz preliminarmente um apanhado 31

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Introdução

das situações que deram margem a uma compreensão não revolucionária do camponês. E tenta colocar, em face de uma tradição marcada pela insensibilidade das conjunturas históricas, uma nova compreensão. Seu esforço inicial é pôr em destaque fatos marcantes da história contemporânea. Ianni está consciente de que o campesinato está presente nas lutas democráticas dos séculos XIX e XX, e mantém isso com energia. Ele sabe que esse é o período de luta do proletariado contra o capital, após a revolução liberaldemocrática, promovida sob a liderança da burguesia. Mas percebe, com clareza, o desencontro entre o modo de vida camponês e as formas burguesas de dominação. “As revoluções burguesas seriam mal explicadas se não se leva em conta a maior ou menor presença do campesinato.” Feita a ponderação inicial, Ianni caminha em uma direção crítica do marxismo doutrinário. No entanto, sua percepção vai muito além do que uma simples releitura dos clássicos. O fato de o camponês não poder ser enquadrado no modelo-padrão de uma “classe revolucionária” não o impede de recolocar o significado das lutas camponesas. Há uma análise dos enfrentamentos dos posseiros que é muito diferente da dos autores em voga até os anos 80. Os enfrentamentos revelam um lado político – eis o que percebe Ianni. Eles não estão fora da história. Eles não realizam uma história ultrapassada nem uma história marginal. Eles se enfrentam com o capital, que é a força hegemônica da atualidade. Logo, não estão fora da atualidade: pois não se enfrentam contra uma realidade passada, mas moderna, pós-moderna, absolutamente atual. Assim, Ianni resgata vários elementos da sociabilidade camponesa, e resgata um elemento pouco visível e pouco presente nas análises feitas até então: a importância e a força da comunidade camponesa. “Aliás, não foi por acaso que Marx embatucou quando Vera Zasulitch lhe perguntou, em 1881, se havia possibilidade de que a comuna rural russa se desenvolvesse na via socialista; ou se, ao contrário, estava destinada a perecer com o desenvolvimento do capitalismo na Rússia.” E assim, esta retomada tardia da questão camponesa serve também para Ianni descobrir um “novo” Marx, escondido atrás da eloqüente resposta a Vera Zasulitch. E Ianni registra entusiasmado: “Esse é um dos momentos mais intrigantes e bonitos da biografia intelectual de Marx”. É interessante que Ianni sentiu a força desses textos, mantidos durante décadas em silêncio, talvez pelo seu poder de detonar o doutrinarismo, presente na corrente dominante do marxismo até então. Mas, ainda em 1986, poucos escutaram a voz de Octávio Ianni. Esse é também o motivo pelo qual o incluímos neste tomo. PALACIOS, G. Campesinato e escravidão: uma proposta de periodização para a história dos cultivadores pobres livres no Nordeste Oriental do Brasil: 17001875. Dados (Rio de Janeiro), v.30, n.3, p.325-356, 1987.

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Camponeses brasileiros

Como Linhares e Teixeira da Silva, o historiador Guillermo Palacios encontrou em sua pesquisa amplo motivo para falar do campesinato brasileiro nos séculos anteriores ao século XIX. O artigo incluído neste volume trata não só do campesinato no Nordeste nos anos 1800, mas também no período colonial em geral. Diferentemente de Caio Prado Júnior, muito citado por ser o primeiro analista a reconhecer – em seu formidável estudo Formação do Brasil contemporâneo, de 1942 – a existência de pequenos agricultores no período colonial, Palacios revela um conhecimento profundo de evidências, inclusive o comentário do governador de Pernambuco feito em 1759, segundo o qual existia uma “alternativa camponesa” ao escravismo, sistema geralmente destacado como predominante, senão único da época colonial. É justamente essa questão – a natureza da relação entre os mundos da grande plantation, de produção para exportação, e do pequeno agricultor, de produção doméstica – que divide muitos estudiosos, inclusive alguns autores clássicos presentes neste volume. Extensivamente apoiado com mais de sessenta longas notas de rodapé, o artigo de Palacios dá privilégio ao desafio de “periodização”, ou seja, o mapeamento cronológico da história dos camponeses do Nordeste, sem perder oportunidades para entrar nos debates. A partir de uma pesquisa pontual, a investigação de uma revolta de gente pobre em 1851-1852, Palacios foi inspirado a voltar atrás na busca das origens da rebelião e não parou de acompanhar seu objeto até chegar aos anos 1700. É o período de 1700 a 1760 que demarca como formativo do campesinato em Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Para Palacios, a brecha camponesa na ordem escravocrata não está dentro da plantation, mas fora dela, onde a crise do sistema de exportação de açúcar criou condições para milhares de pobres trabalhadores construírem sua liberdade no campo como agricultores autônomos. Uma vez emancipados de sua dependência do sistema açucareiro, vão passar gerações produzindo para sustentar suas famílias e para o mercado de algodão e de mandioca, bem como de outros produtos destinados à alimentação da população escravizada e urbana. O segundo período, que Palacios começa em 1760 e termina em 1810, é demarcado pelo auge dessa formação e pelo início de seu declínio, a partir de 1790, quando o Brasil começa a recuperar sua posição no mercado mundial de açúcar na ocasião da revolução dos escravos no Haiti. Como foi comum em outras partes da América Latina, tais como no Peru e no México, a independência não foi vista com bons olhos pelos camponeses. O terceiro período indicado por Palacios (1810 a 1848) trata dos ataques perpetrados pela oligarquia rural e autoridades contra o campesinato. O projeto nacional no início da fase liberal do capitalismo global contava com a formação agressiva da classe dominante. O Estado empregou seus poderes para organizar os bens do país, inclusive as terras e braços dos camponeses. Palacios documenta várias campanhas para cercear o campesinato em favor 33

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Introdução

da expansão das fazendas de cana-de-açúcar com seus escravos. A Lei de Terras de 1850, normalmente associada com esse processo, é comentada na discussão do quarto período, 1850-1875, mas o autor dá um peso maior à Lei Eusébio de Queiroz, também de 1850, ao Regulamento do Registro de Nascimento e Óbitos e ao Regulamento do Censo Geral do Império, de 1851. Foi a implementação desses dois regulamentos, no contexto do fim efetivo do comércio de cativos africanos, que inspirou as revoltas que foram o objetivo original do pesquisador. Por meio da análise dessas revoltas, Palacios nos demonstra como os pobres cultivadores livres expressaram sua identidade de classe camponesa ao perceber, em seus manifestos de resistência contra o projeto burguês, como compreenderam bem a intenção dos decretos de dar um fim à sua liberdade campestre e consolidar sua redução a commodities para o mercado de trabalho “livre”. Nunca mais, argumenta Palacios em 1987, haveria no Brasil um campesinato tão verdadeiro em termos estruturais e mentais. III. A terceira parte reúne autores de importância teórica comparável à dos reunidos na segunda parte, com a particularidade de que suas pesquisas e suas construções conceituais enfocavam situações concretas distintas de reprodução do campesinato brasileiro. OBERG, K. O campônio marginal no Brasil rural. Sociologia (São Paulo), v.19, n.2, p.118-132, 1957.

A presença de Kalervo Oberg neste tomo, reservado para autores nacionais, exige explicações. Nascido no Canadá e filho de pais finlandeses, Kalervo é um renomado antropólogo, que trabalhou em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, onde lecionou alguns anos na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, em meados dos anos 50, ocasião em que foi instigado a se posicionar sobre os problemas agrários brasileiros. Seu texto, publicado na revista da escola, teve grande repercussão no país e marcou, naquele momento, os debates sobre a questão agrária e o campesinato. Envolvido pelo clima da época de entender a estrutura social do campo, aliado ao funcionamento da economia agrícola, Kalervo se propõe a examinar a origem de um grupo social ao qual chama de “campônio marginal” e analisar as condições pelas quais esse agrupamento se reproduz no contexto socioeconômico do campo brasileiro. Seu primeiro esforço é mostrar como está organizado o setor agrário no Brasil, no qual distingue quatro grupos: a “plantação” monocultora, as fazendas de gado, as granjas de gado leiteiro, que combinam agricultura com pequena criação, e, um quarto segmento, a agricultura familiar, resultante da imigração européia ou asiática. Além desses segmentos, o autor identifica um quinto grupo entre os que “cultivam pequenos tratos de terra na propriedade de outros, estando sujeitos a um conjunto espantoso de regulamentos de posse”. Kalervo o descreve como 34

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um “pequeno produtor de subsistência ou roceiro, que produz culturas alimentícias primárias”. Além de não possuir a propriedade – e ter apenas a posse – este autor identifica outro tipo de instabilidade: a técnica de cultivo instável, itinerante, dependendo da queima das matas e capoeiras. Sempre dependendo do grande proprietário, de quem é um agregado, rendeiro, meeiro ou mesmo trabalhador assalariado. Sua análise inicial focaliza a diferença desse pequeno em relação ao camponês europeu ou asiático. Há três aspectos relevantes no texto desse autor. Primeiro, a importância que adquirem em sua análise as técnicas produtivas dos diversos segmentos. Há no texto toda uma avaliação das técnicas empregadas pelos caboclos e pelos camponeses, de tradição européia. Em segundo lugar, a classificação do camponês como “marginal”, seguindo uma tendência da época. Kalervo entende esse camponês como “marginal”, porque parte da idéia de que ele não é produto da história econômica, mas um resultado da mistura das raças, particularmente a negra e a ameríndia. Um terceiro e último aspecto destacado pelo autor, mas não menos importante – e em certo sentido em confronto com afirmações anteriores –, é o surgimento, no Sul do país, de uma classe de camponeses “completos”, porque estes sim eram simultaneamente donos da propriedade da terra, do capital e do trabalho. Seria este grupo o gérmen de uma nova classe de lavradores? É a questão que permanece. CANDIDO, A. As formas de solidariedade. In: . Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964. (Edições posteriores pelas editoras: Livraria Duas Cidades e Editora 34).

O livro de Antonio Candido é uma análise profunda e multifacetária do modo de vida de grupos sociais existentes no Sudeste do país, especialmente em regiões dos estados de Minas Gerais e São Paulo, cujo traço comum é a cultura rústica caipira. Suas características étnicas e culturais, suas trajetórias sociais e as transformações de seu modo de vida são o objeto mesmo da pesquisa realizada pelo autor. Antonio Candido encontrou os caipiras numa situação de parceiros em uma fazenda de proprietário absenteísta. Sobre as “ruínas do latifúndio improdutivo”, essas famílias caipiras assumiram a organização da produção a seu modo e com os recursos de que dispunham. Foi assim que “a cultura tradicional se refez como cicatriz”. O autor define esses grupos sociais como camponeses. Porém, os elementos definidores do campesinato, no sentido clássico, encontram-se, nesse caso, em níveis “mínimos vitais e sociais”. De fato, produzindo para garantir a dieta mínima, falta a esses camponeses, como demonstra, o equilíbrio resultante do sistema da policultura-pecuária. O mecanismo das roças itinerantes garante a mobilidade espacial, pela qual procuram compensar a precariedade dos recursos produtivos. Os níveis 35

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Introdução

mínimos são igualmente observados na vida social, cuja expressão é o bairro rural, modo de sociabilidade própria dos caipiras, recriado na fazenda “quase bairro”. A esse “mínimo social” corresponde uma base territorial e um sentimento de localidade; é nele que os camponeses encontram o complemento eventual, mas indispensável, ao trabalho da família; é nele que se manifesta a vida lúdico-religiosa do grupo vicinal. Ao adotar o enfoque das transformações dos meios de vida, Antonio Candido superou os limites da abordagem então predominante dos “estudos de comunidade”. Assumindo o método dialético, preocupou-se em não descrever simplesmente os fatos ou considerá-los como a expressão da ordem natural das coisas, mas de apresentá-los como um problema social, atinente à sociedade brasileira. O resultado da pesquisa revelou um ângulo da história de São Paulo do qual foi possível perceber outro personagem, o caipira camponês, desconhecido ou relegado em algumas leituras históricas. Finalmente, considerando que, “a um ajustamento total, sucede uma pluralidade de ajustamentos”, o autor afirma a resistência do sitiante caipira – de forma heterogênea, sem dúvida – às transformações ocorridas na sociedade paulista. O texto escolhido é aquele em que Antonio Candido analisa a sociabilidade camponesa. PALMEIRA, M. Casa e trabalho: nota sobre as relações sociais na plantation tradicional. Contraponto (Rio de Janeiro), v.2, n.2, p.103-114, 1977.

Nos anos 1970, uma equipe de antropólogos do Museu Nacional, sob a coordenação geral de Roberto Cardoso de Oliveira, realizou uma pesquisa em duas grandes regiões do país com o intuito de compreender as formas e os processos de funcionamento e de reprodução do campesinato subordinado, no interior do sistema da plantation (Nordeste) e no contexto de expansão ocupacional de fronteiras (Norte). A primeira parte, coordenada pelo antropólogo Moacir Palmeira, estendeu seu campo de observação a diversas áreas da região açucareira de Pernambuco e da Paraíba, privilegiando como objeto de estudo a diversidade de categorias de sujeitos e de relações que pudesse expressar a condição de camponês subordinado às plantações dominantes. O antropólogo Otávio Guilherme Velho foi o coordenador da pesquisa nas fronteiras, da qual resultou, igualmente, uma obra considerada clássica. O artigo de Palmeira, que incluímos neste tomo, tornou-se uma referência geral para o conjunto das pesquisas, então em curso, a respeito da condição do morador dos engenhos. A natureza do trabalho nos engenhos e nas usinas de açúcar do Nordeste sempre esteve no coração do debate sobre as relações de trabalho na agricultura brasileira e mesmo sobre a natureza do próprio capitalismo brasileiro. O caráter ambivalente dessas relações é resultante do fato de que a condição de assalariado, vendedor da força de trabalho, se realiza de forma associada à concessão de moradia no engenho e à possibilidade de 36

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uso de um pequeno sítio, no qual o morador poderia organizar, de forma extremamente precária e com uma autonomia mínima, uma produção de alimentos, complementar ao salário. Caio Prado Júnior já chamara atenção para essa situação particular, ao enfatizar que o morador era um trabalhador adequado e necessário à acumulação do capitalismo que se reproduzia na economia canavieira do Nordeste. Para ele, a dimensão dominante no sistema de morada era dada pela condição de trabalhador da cana, força de trabalho principal dos engenhos e usinas, apenas “disfarçada” pela forma da moradia e pelo acesso ao sítio. Em seu artigo, Moacir Palmeira dirige o seu olhar para o outro lado dessa relação, ao analisar as diversas categorias de trabalhadores engajados nas plantações de cana e as distintas modalidades de morada. Mais do que um disfarce, o acesso ao sítio cria para o morador a oportunidade de tomar decisões, organizar a produção, coordenar o trabalho da família e vender o excedente, oportunidades que o aproximam da experiência do campesinato e que se apresentam como um ideal a ser buscado por outros trabalhadores não moradores. Tradicionalmente, a morada se inscrevia como um elemento das relações paternalistas entre proprietário e empregado, fundadas em noções de dependência e de lealdade e outorgadas segundo critérios pessoais e particularistas. A legislação brasileira, no entanto, a incorporou, reconhecendo o acesso ao sítio como um direito dos trabalhadores. Embora mais uma promessa do que uma realidade, exatamente no momento da expulsão em massa dos moradores, a lei do sítio se tornou uma arma poderosa nas negociações classistas entre senhores de engenho e canavieiros. WOORTMANN, K. Migração, família e campesinato. Revista Brasileira de Estudos de População (Campinas), v.7, n.1, p.35-53, 1990.

Os estudos clássicos sobre o campesinato tradicional fazem sempre referência ao profundo enraizamento das comunidades camponesas a um lugar, visto como a terra ancestral, conquistada pelos seus antepassados e depositária do trabalho e do afeto de seus membros. Essa construção do pertencimento a um território, no entanto, longe de isolar os camponeses no mundo fechado do parentesco, supõe a abertura para a sociedade mais ampla. A migração se inscreve no mundo camponês como um dos caminhos dessa abertura. Klaas Woortmann, um dos antropólogos brasileiros há muitos anos dedicado ao estudo do campesinato, entende a experiência da migração como “parte integrante (das) próprias práticas de reprodução” do campesinato. Para o autor, migrar não significa abandonar a comunidade de origem, o que ele ilustra com a distinção, proposta pelos próprios sitiantes por ele pesquisados, entre “viagem” e “saída”. À viagem correspondem as formas de migração dos jovens – migração pré-matrimonial – e a migração circular 37

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Introdução

dos chefes de família. A saída ocorre lá onde se esgota o acesso à terra, visto como um dos “componentes centrais da reprodução do campesinato”. No entanto, mesmo nesses casos, a migração definitiva não significa necessariamente uma ruptura em relação à família e à comunidade local, com as quais os que saíram guardam fortes vínculos afetivos e compromissos de solidariedade. Na intrincada rede de espaços sociais construídos e que se articulam por meio da circulação e da mobilidade dos camponeses, o sítio familiar permanece como o “espaço fundamental” para a reprodução social. As experiências de migração são vivenciadas de forma distinta por sitiantes fracos e fortes. Essa constatação permite a Klaas Woortmann perceber que a migração não está associada apenas às necessidades econômicas do camponês, isto é, à fragilidade de sua base produtiva, que o obrigaria a buscar em outros lugares a complementação de renda necessária à sua sobrevivência local. “A migração tem um sentido simbólico-ritual, para além de sua dimensão prática”, e a compreensão desse sentido é, precisamente, o objeto de seu artigo. IV. Finalmente, integram a quarta parte deste livro duas contribuições de atores sociais envolvidos nas lutas, em momentos distintos, que, assim, aparecem como líderes e dão voz aos camponeses. DAVATZ, T. O levante dos colonos contra seus opressores. In: . Memórias de um colono no Brasil (1850). Tradução, prefácio e notas de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EDUSP/Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1980 [1858].

A própria condição do campesinato como classe pobre, afastada dos centros e freqüentemente brutalizada pela classe dominante, dificulta substancialmente a recuperação de sua história social. Um produto dessa exclusão perversa é uma alta taxa de analfabetismo entre os camponeses. Por isso, a história distante tem sido reconstruída com bastante criatividade, utilizando fontes documentais produzidas pelo opressor, como processos criminais e relatos de militares enviados para reprimir suas ocasionais rebeliões. Foi justamente esse trágico apagão da memória coletiva da maioria da população do mundo que fez o memorial de Thomas Davatz, um educador suíço que emigrou para o Brasil na condição de colono do café no ano de 1855, tão precioso quando traduzido pelo inspirado historiador Sérgio Buarque de Holanda, em 1941. Ele nos explica, por exemplo, como foi que esses trabalhadores do campo passaram a se chamar “colonos” e não “camponeses”. As primeiras levas da Confederação Germânica da Suíça e de outras nações da Europa ocidental foram, na maior parte, de origem urbana e se identificaram não como homens do campo (Bauer) e sim como colonos (Kolonist), buscando no Novo Mundo a liberdade para reconstruir sua vida. Davatz e o grupo que o acompanhou para participar na formação 38

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das grandes fazendas paulistas de café foram extremamente infelizes nessa busca, mas por isso, ironicamente, temos no memorial dele a expressão própria desses imigrantes esperançosos. Contratados pela Vergueiro & Cia, os colonos precisavam lidar com um homem poderoso, o senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, latifundiário ainda atípico no Brasil por estar disposto a experimentar formas de trabalho livre, numa ordem dominada pela escravidão. Foi um dos inovadores que moldaram a integração do Brasil no sistema capitalista mundial como produtor de recursos naturais – café, cacau, borracha etc. – para a industrialização dos Estados Unidos e da Europa, com uma seletiva adaptação de liberalismo, que manteve a base autoritária do controle dos donos de terra. Enquanto Davatz e outros colonos sonhavam em conquistar nas terras brasileiras a liberdade que lhes faltara no Velho Mundo, Vergueiro e seus colaboradores fizeram tudo para aproximar o sonho de um mundo novo com o pesadelo da escravidão. Vergueiro foi do grupo que advogou a Lei de Terras e os regulamentos de registro e recenseamento que inspiraram a rebelião dos camponeses em 1851. Para muitos analistas, é naquele momento que o Estado começa a construir o aparato hegemônico de controle da população camponesa. É justamente a resistência contra esse processo que nos orientou na seleção do texto tirado do livro Memórias de um colono no Brasil, em que Davatz vai descrever e justificar o “levante dos colonos contra seus opressores”. Lembrando a violência tão presente na questão agrária hoje em dia, o conflito dos parceiros articulado pelo “mestre-escola” Davatz em 1857 parece extremamente calmo. Em sua essência, os colonos reclamaram condições de trabalho e cobrança de valores que não foram apresentados na propaganda que atraiu os imigrantes para sair de suas casas na Suíça. Acharam que iriam encontrar as condições para melhorar sua vida tornando-se camponesesproprietários, por meio da eventual apropriação de terras no Brasil. Somente a experiência vivida lhes daria a oportunidade de aprender, na prática de trabalho na Fazenda Ibicaba, que Vergueiro era líder dos que acabaram com qualquer proposta de facilitar a distribuição de terras para os colonos. Aproveitando esse perfil do senador Vergueiro, os colonos conseguiram atrair a atenção de autoridades externas, principalmente o cônsul da Suíça no Brasil, para forçar o senador a cumprir as condições prometidas. A não ocorrência de violência pessoal contra os colonos se explica não porque Vergueiro era homem pacífico e iluminado, mas por causa dessa articulação e dos sistemas de sigilo e segurança mantidos pelos colonos mobilizados. Davatz, como a voz desse campesinato em formação, se coloca com calma, firmeza e a certeza de estar no lado justo do processo histórico. JULIÃO, F. Que são as Ligas Camponesas? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962. (Cadernos do Povo Brasileiro, v.1).

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Introdução

Francisco Julião Arruda de Paula ficou conhecido no Brasil e no mundo como líder das Ligas Camponesas, que foram reiniciadas em Pernambuco nos anos 1950 e permanecem até hoje como uma das maiores referências da luta camponesa. A vinculação de Julião com o movimento camponês decorreu de sua atuação como advogado na Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP), associação criada pelos moradores e foreiros do Engenho Galiléia, no município pernambucano de Vitória de Santo Antão. A história do surgimento dessa associação é algo emblemático e revelador. A associação havia surgido originalmente com a finalidade de juntar recursos para enterrar os mortos com dignidade (comprar o caixão) e para obter uma escola na vila do Engenho Galiléia. Na ocasião, os moradores do engenho – da mesma forma que moradores de outros engenhos – passaram a ser “botados pra fora” pelo senhor de engenho, isto é, passaram a ser demitidos da propriedade em que trabalhavam havia décadas, sem nenhum tipo de indenização. Ameaçados de expulsão do engenho, procuraram apoio jurídico na pessoa do advogado Francisco Julião, que na ocasião estava iniciando seu mandato de deputado estadual. Em seus discursos e escritos, Julião utilizava-se de imagens e referências históricas, bem como da Bíblia, com as quais os camponeses nordestinos eram familiarizados. E foi tão-somente a partir da simples iniciativa de seu presidente de organizar a defesa jurídica de alguns dos moradores que a imprensa pernambucana chamou a associação de “liga camponesa”, acusando o grupo de desenvolver atividades subversivas comunistas. Na época, os movimentos camponeses não apenas ganhavam manchete, mas faziam história mundial: em diversas partes do mundo, na América Latina, África e Ásia, os camponeses estavam lutando com armas na mão, envolvidos em lutas anticolonialistas e socialistas. No entanto, o contexto político nacional e mundial estava dominado pela chamada guerra fria. A identificação do movimento dos foreiros e moradores do engenho com o comunismo internacional foi imediata e evidente aos olhos dos setores dominantes da imprensa, da economia e da política. Daí a importância do texto de Julião, na época, como fonte de informação direta e, hoje, como um documento da história. Até antes do advento do golpe militar em 1964, as ligas sofreriam violenta e dolorosa repressão, o que foi narrado no filme Cabra marcado para morrer, do diretor Eduardo Coutinho. O texto aqui reproduzido traz uma seleção das várias partes do ensaio de Julião, o primeiro da série Cadernos do Povo Brasileiro, que a Editora Civilização Brasileira lançou em 1962, em formato de livro de bolso. A publicação se esgotou rapidamente. No volume, o autor narra a história dos moradores do Engenho Galiléia e das Ligas Camponesas, explica os métodos de difusão adotados pelo movimento e justifica as três frentes de ação utilizadas pelas Ligas Camponesas: “no campo, na Justiça e na Assembléia”. 40

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Camponeses brasileiros

As obras selecionadas para este tomo se inscrevem em campos disciplinares diversos, que propõem visões distintas e analisam experiências múltiplas do campesinato, em momentos igualmente diferentes da sua história. Na verdade, seriam muitos os autores que poderiam ser escolhidos por esse critério fundamental. No entanto, para a seleção aqui apresentada, a prioridade foi dada aos textos que estão hoje esgotados e inacessíveis. Naturalmente, tivemos de obedecer, também, a critérios formais, referentes à cessão de direitos autorais. Em seu conjunto, esses critérios justificam a ausência de outros autores, reconhecidamente clássicos, pela repercussão do seu pensamento. Este tomo se distingue em vários aspectos dos demais tomos da História Social do Campesinato. Em primeiro lugar, não se trata de textos que pudessem ser encomendados pelos organizadores aos seus respectivos autores, mas, ao contrário, uma vez definidos os textos, tivemos de localizar os atuais detentores dos direitos autorais e respectivas editoras, para a obtenção da devida licença de publicação. Em segundo lugar, a digitalização dos textos trouxe problemas técnicos específicos, uma vez que os originais foram publicados em condições muito desiguais. Como critério geral, optamos por reduzir ao mínimo possível a interferência editorial, evitando introduzir modificações que alterassem a feição original dos textos, mesmo que eventualmente tais modificações pudessem ser justificadas pelo critério da uniformização ou do respeito à ortografia oficial. Nesse sentido, exatamente por serem textos de períodos diferentes, optamos por manter a ortografia original da época da publicação, corrigindo apenas os erros ortográficos que pudéssemos supor ter origem na composição tipográfica, ou seja, na forma como os textos eram produzidos na ocasião. Em terceiro lugar, chamamos atenção para a dificuldade que a adequação dos textos às dimensões do espaço, programado para cada autor, nos impôs. Tivemos de proceder a uma seleção rigorosa de capítulos ou trechos das obras que melhor expressassem o escopo deste tomo e da própria coleção. Essa limitação, em alguns casos, nos obrigou a cortes no texto, em si mesmos indesejáveis quando se trata de mostrar a riqueza das análises e dos argumentos desenvolvidos. Os cortes se fizeram necessários em dois casos específicos: nos escritos de Thomas Davatz e Francisco Julião, em que o texto excluído é indicado com o seguinte símbolo [...]. De um modo geral, mas particularmente no caso das contribuições aqui inseridas que são parte de uma publicação maior, enfatizamos que o conhecimento completo das posições dos autores aqui apresentados não dispensa a consulta às suas obras originais. É nosso desejo que as contribuições dos autores aqui estampadas sirvam de motivação para novas iniciativas editoriais de republicação das respectivas obras dos autores, aqui apresentados conjuntamente, mas de uma forma apenas parcial. 41

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Introdução

Queremos expressar nosso agradecimento aos parentes e representantes legais dos direitos autorais, eventualmente o próprio autor, mas não sempre, não apenas por ceder sem custo o direito de incluir seu texto na coletânea, mas muitas vezes ajudando com informações adicionais. Deixamos aqui o registro do agradecimento anônimo. Neste longo processo de preparação editorial dos textos tivemos a colaboração de várias instituições e pessoas, cuja lista nos é impossível reproduzir neste momento. Ainda que de maneira anônima, gostaríamos de deixar registrado nosso preito de gratidão. Clifford Andrew Welch Edgard Malagodi Josefa Salete Barbosa Cavalcanti Maria de Nazareth Baudel Wanderley

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, M. C. de. A terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Brasiliense, 1963 LINHARES, M. Y.; TEIXEIRA DA SILVA, F. C. Terra prometida: uma história da questão agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1999. SCOTT, J. Formas cotidianas da resistência camponesa e MENEZES, M. O cotidiano camponês e a sua importância enquanto resistência à dominação: a contribuição de James Scott. Revista Raízes (Campina Grande), v.21, n.1, janeiro a junho: p.9-44, 2002 [1985]. WOLF, E. Guerras camponesas do século XX. Rio de Janeiro: Globo, 1984 [1969].

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PARTE I

O DEBATE NOS ANOS 1960

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1 FORMAÇÃO DA PEQUENA PROPRIEDADE: INTRUSOS E POSSEIROS (1963)* Alberto Passos Guimarães

Foram precisos três séculos de ásperas e contínuas lutas, sangrentas muitas delas, sustentadas pelas populações pobres do campo contra os todo-poderosos senhores da terra, para que, por fim, a despeito de tantos insucessos, despontassem na vida brasileira os embriões da classe camponesa. Só no limiar do século XIX, portanto, há pouco mais de cem anos, começaram a surgir os frutos dessa irredutível e prolongada batalha, abrindo-se as primeiras brechas nos flancos mais vulneráveis do opressivo sistema latifundiário, com a implantação, principalmente ao sul do território nacional, e em bases estáveis, de outros tipos menos agigantados e mais modestos de propriedade agrária. Durante 388 anos, o latifúndio colonial e feudal e seu semelhante, o sistema escravista de plantação, lançaram mão dos mais variados meios a seu alcance para impedir que as massas humanas oprimidas, que vegetavam a ourela das sesmarias ou se agregavam aos engenhos e fazendas, tivessem acesso à terra e nela fixassem em caráter permanente suas pequenas ou médias explorações. Quando aqui e ali o fizeram, longe do núcleo principal das plantações e a seu derredor, eram, mais cedo ou mais tarde, expulsas com a dilatação dos cultivos ou das criações dos grandes senhores. E, se lhes concediam pequenos tratos de terra para a agricultura necessária ao seu sustento, era com a finalidade de mantê-las subjugadas, como mão-de-obra de reserva, dentro ou às proximidades dos latifúndios. Embora seja correto situar, objetivamente, o aparecimento da pequena propriedade no Brasil, como instituição consolidada, durante o primeiro * Publicado originalmente como GUIMARÃES, A. P. VI Formação da pequena propriedade: I. Intrusos e posseiros. In:

. Quatro séculos de latifúndio. São Paulo: Fulgor, 1963.

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Formação da pequena propriedade: intrusos e posseiros (1963)

quartel do século passado, após a introdução de imigrantes europeus nas regiões meridionais, seria um grave erro deixar de levar em conta a anterior etapa de gestação da classe camponesa, a qual parte, sem nenhuma dúvida, de um longo processo de espoliação, cujas primeiras conseqüências foram a incorporação aos engenhos de açúcar de uma multidão de trabalhadores livres miseráveis: os agregados. A crônica histórica não é pródiga em informações a respeito das origens dessa camada de semiproletários do campo, que ela faz aparecer em nosso quadro rural já desprovidos de todos os meios de produção e sem nenhuma função importante na estrutura produtiva. Sabe-se, porém, pelo que reponta numa e noutra página de nossos cronistas e historiadores, que esse contingente numeroso de brancos e mestiços quase-escravos foi, em grande parte, um produto das primeiras manifestações da luta de classes na América portuguesa. “Esta luta entre as classes do trabalho e a aristocracia territorial prolonga-se por muito tempo”, esclarece Rocha Pombo. “Os pequenos sesmeiros resistiram o mais que puderam à preeminência dos grandes”, diz aquele historiador: Primeiro, até fins do século XVII, cuidaram de remediar-se da penúria trabalhando nas engenhocas e molinotes fabricando aguardente (de mais fácil processo que o açúcar) e fazendo farinhas. Este último artigo não dava, porém, lucros compensativos, e andava sempre muito sujeito às fintas: de modo que mal o fabricavam para o gasto da família. Tiveram de preferir a aguardente. ... Em 1706 (Prov. de 18 de setembro) impõem-se penas severas aos senhores de engenho que fabricassem aguardente. Bem se vê que a proibição não feria os senhores de engenho, pois estes tinham mais interesse em produzir açúcar. Os decretos visavam tanto a proteger o similar que vinha do reino como a reduzir os pequenos lavradores a só fazer farinha, ou então a plantar cana para os engenhos reais... Por fim... foram extintas as engenhocas. Abolidas agora as engenhocas e impedidos de cuidar de mais de uma cultura, que recurso restava aos lavradores nas terras onde a cana fosse a lavoura mais compensativa? Não havia outro senão vender as roças aos fabricantes de açúcar. Dava-se então o que era fácil prever: os donos de engenho combinavam-se para fixar o preço da matéria-prima; e bem pode imaginar-se o que fariam. ... O resultado não podia falhar: pouco a pouco, para ir subsistindo, os lavradores tiveram de ficar em alcance com o patrão. Por fim, não tiveram mais forças para resistir aos arrastamentos daquela miséria: endividados com os grandes senhores, tiveram os pequenos sesmeiros de vender-lhes o resto de terras que lhes haviam deixado; e por muito ditosos ainda se davam os que podiam ficar vivendo nas mesmas como rendeiros. Os que não mereciam essa confiança de “tomar terras de renda” (pois para isso decerto que não era preciso ser um fazendeiro abastado, mas era necessário que não fosse, ao menos, pobre até a miséria) consolavam-se de ficar como agregados, sob a “proteção” do senhor. Havia-se completado o processo, e estava feita a evolução do sistema. (Rocha Pombo, p.53)

Isso se dera no Nordeste açucareiro. Mas tal sucessão de acontecimentos iria repetir-se, depois, no distrito de Campos dos Goitacazes, onde por toda 46

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parte se espalhariam, em torno dos poderosos senhores de latifúndios, os “supostos possuidores de fracas e tributárias engenhocas”. “Estes proprietários de tributárias engenhocas não são proprietários, são uma negaça”, diria Muniz de Souza. Cedo eles se encontrariam, após inúteis tentativas, “sem açúcar, sem dinheiro e endividados”. De tal maneira evoluiu o sistema de espoliação dos pequenos e médios lavradores, em proveito dos latifúndios, que, pelo ano de 1820, Saint-Hilaire iria observar: Se existem no distrito dos Campos dos Goitacazes pequenas propriedades, não é menos verdadeiro que a maior parte das terras da região acha-se dividida em 4 fazendas de imensa extensão: a do Colégio, outrora pertencente aos Jesuítas; a de São Bento, pertencente aos Beneditinos; a do Visconde de Asseca e enfim a do Morgado. (Saint-Hilaire, 1941, p.364)

Outro episódio cheio de lances dramáticos da guerra contra os molinotes, engenhocas ou microengenhos iria desenrolar-se às proximidades dos centros de mineração, nos seus momentos de prosperidade. Juntavam-se os interesses dos grandes proprietários, temerosos das desordens cometidas pelos seus escravos quando abusavam da bebida, aos interesses do reino, que não queria competidores com a aguardente d’além-mar. A esta era atribuída todas as virtudes, inclusive as medicinais, enquanto as gerebitas ou cachaças nativas eram acusadas de causar várias moléstias e outros malestares, compreendendo estes os levantes dos escravos e dos produtores pequenos e médios, oprimidos pelos poderosos da terra e da metrópole. No território das Minas Gerais, como eram engenhocas não só as de aguardente, mas a grande maioria das de açúcar, as perseguições aos microengenhos, como os trata Miguel Costa Filho em seu valioso estudo sobre a formação da indústria canavieira naquela região, tomariam feições mais graves: Em conseqüência e em obediência a essa ordem (refere-se o autor à baixada em 12 de junho de 1743), Gomes Freire de Andrada, que se destacou no combate aos engenhos, lançou um bando, aliás muito depois, pois traz a data de 11 de fevereiro de 1745. O curioso nesse bando é que o Governador e Capitão-General da Capitania incluiu na interdição os engenhos de açúcar, não obstante a ordem régia aludir somente aos engenhos de fabricar aguardente. Se no papel assim fez, na ação não se revelou menos conseqüente, menos severo, menos inimigo dos engenhos, quer os de cachaça, quer os de açúcar (Costa Filho, 1963, p.168).

Parece-nos, pois, destituída de fundamento a afirmação de alguns historiadores, entre eles Alberto Ribeiro Lamego (1945, p.107),1 sobre 1

“De modo geral na história do Brasil, nas regiões açucareiras, o feudalismo latifundiário dos grandes senhores de terras diretamente precede o moderno capitalismo. Excepcionalmente em Campos tal seqüência é antecedida de mais de um estágio inicial, partindo da pequena propriedade em que se funda, ali, toda a indústria do açúcar.”

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o caráter “excepcional” da pequena propriedade em Campos ou noutra região isolada de nosso país. O processo de despojamento da incipiente camada camponesa, graças ao qual foi preservado o domínio absoluto do monopólio da terra nas mãos de uma minoria aristocrática, está presente, por todo o nosso passado, não apenas em Campos, mas na imensidade do território brasileiro. Menos fundamentada ainda é a versão que, situando o aparecimento da pequena propriedade a partir da colonização estrangeira instituída ao sul durante o século XIX, desvincula-a de seu anterior processo histórico e apresenta-a como um produto exclusivo da “largueza de visão” das classes dominantes, súbita e supostamente interessadas em dividir parte de seu poderio com os cultivadores desprovidos de fortuna. E de todo injustificável seria a idéia de que a pequena propriedade tivesse retardado por tanto tempo sua irrupção, como fato histórico acabado, por causa da “indolência” das populações nativas ou de sua “incapacidade” para o trabalho. Como se percebe, essas concepções equivocadas fariam apagar da história a longa e obstinada batalha que os elementos geradores da classe camponesa tiveram de travar contra os seus inimigos, até emergirem definitivamente na vida rural brasileira. Tais concepções implicam a negação do papel dinâmico da luta de classes, substituindo a secular evolução desse processo criador, que culminou com a institucionalização da pequena propriedade no alvorecer do século XIX, por uma coleção de decretos de suas majestades imperiais. Jamais, ao longo de toda a história da sociedade brasileira, esteve ausente, por um instante sequer, o inconciliável antagonismo entre a classe dos latifundiários e a classe camponesa, tal como igualmente sucedeu em qualquer tempo e em qualquer outra parte do mundo. “A economia política”, escreveu Marx (e também a historiografia, acrescentamos nós), confunde, em princípio, duas espécies muito diferentes de propriedade privada, uma das quais está baseada no trabalho próprio do produtor e outra sobre a exploração do trabalho alheio. Esquece que a última não apenas é a antítese da primeira como também que cresce unicamente sobre seu túmulo (Marx).

No Brasil, essa antítese ou esse antagonismo aparece em forma inversa, e aí temos uma particularidade importante de nosso desenvolvimento histórico. Enquanto noutros continentes, e após iniciada a civilização (na Grécia e Roma antigas, na Frísia, em Flandres e no Baixo Reno), a propriedade latifundiária surge e se desenvolve sobre as ruínas da pequena propriedade camponesa, em nosso país, ao contrário, a propriedade latifundiária foi implantada primeiro, e a pequena propriedade camponesa somente vai surgir muito tempo depois, quando o rígido sistema latifundiário começa a decompor-se. 48

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Desde os primórdios da ocupação de nosso território, esboçavam-se e, com o tempo, foram tornando-se cada vez mais nítidas as grandes linhas da política seguida pela aristocracia rural, coerente com seu espírito de casta e seus interesses de domínio. Muito mais tarde, quando se tornaram conhecidas as idéias de Wakefield sobre a “colonização sistemática”, verificou-se que estas coincidiam, em seus aspectos básicos, com a orientação primitivamente adotada pelos fidalgos portugueses em nosso passado colonial. As ligeiras dessemelhanças entre a conduta de nossos colonizadores e a política preconizada nas teses wakefieldianas derivavam da diferença das condições existentes numa e noutra época. A “colonização sistemática” fundava-se no princípio de que as terras virgens não deviam ser postas ao alcance das populações pobres por preços baixos, a elas acessíveis, porque, se assim acontecesse, os homens e mulheres mais capazes se transformariam em produtores independentes em vez de se engajarem como trabalhadores nas propriedades dos latifundiários. Para assegurar reservas de braços disponíveis, convinha aos senhores, portanto, estabelecer um preço “suficientemente alto” a fim de que a terra não pudesse ser adquirida com facilidade pelos pobres do campo. Pelo exposto, compreende-se que as teses de Wakefield correspondiam a um período em que a terra já se tinha convertido em mercadoria, o que ainda não se havia verificado em nosso país antes do século XIX. A aristocracia rural portuguesa, no Brasil colonial, e a nobreza rural brasileira, logo depois da independência, não precisaram recorrer a esses artifícios do sistema mercantil, porque no seu tempo a terra era ainda um privilégio de casta e não uma mercadoria. Bastava impedir, por meios jurídicos, as doações e, por meios violentos, as ocupações, àqueles que, ao arbítrio dos grandes senhores dominantes da metrópole ou no Estado nacional nascente, não possuíssem dotes de nobreza ou fartura de dinheiro para merecer sesmarias. A terra-privilégio é uma categoria histórica do feudalismo e sua transformação em terra-mercadoria exige um longo processo que só termina com a existência em larga escala das relações mercantis. Já nos referimos, apoiados nos estudos de Couty, ao fato de que, ainda à altura da década de 1980, no passado século, os fazendeiros de café tinham dificuldade na obtenção de créditos, entre outros motivos, em virtude de não encontrarem mercado para a venda de suas terras, cujo valor comercial era quase nenhum. O próprio Couty cita o caso de uma fazenda que fora trocada no começo do século por um cavalo, um fuzil e um velho casaco, fazenda essa avaliada posteriormente em 100 contos no ano de 1854 e em 200 contos no ano de 1878. À medida que a propriedade territorial vai perdendo sua condição original de doação privilegiada, para adquirir qualidades mercantis e converter-se em valor negociável, as idéias da “colonização sistemática” ingressam no 49

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patrimônio jurídico da classe dos senhores rurais, corporificando-se, afinal, na legislação do Império. “De resto”, escreve Rui Cirne Lima, “francamente wakefieldianos se haviam já mostrado o anteprojeto da Seção do Império e o projeto Rodrigues Tôrres”. A doutrina do “sufficiently high price” é sustentada pela Consulta de 8 de agosto de 1842 da Seção do Império, tomada sobre a proposta de Bernardo de Vasconcelos e José Cesário de Miranda Ribeiro. Declara a consulta: Um dos benefícios da providência que a Seção tem a honra de propor a Vossa Majestade Imperial é tornar mais custosa a aquisição de terras... Como a profusão em datas de terras tem, mais que outras causas, contribuído para a dificuldade que hoje se sente de obter trabalhadores livres, é seu parecer que dora em diante sejam as terras vendidas sem exceção alguma. Aumentando-se, assim, o valor das terras e dificultando-se, conseqüentemente, a sua aquisição, é de esperar que o imigrado pobre alugue o seu trabalho efetivamente por algum tempo, antes de se fazer proprietário. (Consulta do Conselho de Estado sobre assuntos da competência do Ministério do Império, coligada e publicada por ordem do governo por Joaquim José da Costa Medeiros e Albuquerque. Rio de Janeiro, p.71ss.) (Lima, p.78).

Era exatamente essa a substância do pensamento wakefieldiano, do qual se impregnaram várias das disposições legais do Império, sem excluir a Lei das Terras, promulgada em 1850. Marx, que dedicou um capítulo de O capital ao teorizador do colonialismo britânico, a ele se refere nestes termos: E. G. Wakefield tem o grande mérito não de haver descoberto algo novo sobre as colônias, mas de ter revelado nestas a verdade sobre as relações capitalistas na mãe-pátria. ... Antes de mais nada, Wakefield descobriu, nas colônias, que possuir dinheiro, meios de subsistência, máquinas e outros meios de produção não dá a um homem o caráter de capitalista se lhe falta um complemento – o trabalhador assalariado – o outro homem forçado a vender-se voluntariamente. Descobriu, assim, que o capital, em vez de ser uma coisa, é uma relação social entre pessoas, relação essa que se estabelece por intermédio das coisas. ... Dê-se, por via governamental, à terra virgem um preço artificial, fora da lei da oferta e da procura, que obrigue o imigrante a trabalhar longo tempo como assalariado, antes de haver ganhado dinheiro bastante para comprar terra e de tornar-se um camponês independente. O fundo resultante da venda das terras a um preço relativamente proibitivo para o trabalhador assalariado... empregue-o o governo... na importação de pobres-diabos da Europa para as colônias a fim de oferecer, assim, ao senhor capitalista seu mercado de trabalho assalariado. ... Eis aí o grande segredo da “colonização sistemática” (Marx).

Como se vê, os postulados de Wakefield apenas consagram, em termos modernos, um sistema que, noutras condições, já vigorava em nosso território desde os instantes iniciais da colonização lusitana. Remontam, pois, ao primeiro século, as barreiras que obstavam a fixação à terra dos cultivadores carentes de recursos. 50

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O que ficou dito mais atrás sobre a colonização estrangeira no século passado (e voltaremos ao tema, explorando-o nos seus aspectos relevantes) não diminui sua enorme significação, que de fato teve, naquele processo histórico de gestação da propriedade camponesa. Todavia, muito mais importante que a figura do colono, nesse mesmo processo a que este também mais tarde se incorpora, é a do posseiro ou intruso, principalmente o posseiro ou intruso nativo, que enfrenta, primeiro, o poder latifundiário desde tempos mais recuados, quando nenhuma lei o protege; nada senão sua própria audácia o ampara. Ao atacar de frente o todo-poderoso sistema latifundiário, ao violar suas draconianas instituições jurídicas, a posse passa à história como a arma estratégica de maior alcance e maior eficácia na batalha secular contra o monopólio da terra. Intrusos e posseiros foram os precursores da pequena propriedade camponesa. A princípio, as invasões limitavam-se às terras de ninguém nos intervalos entre as sesmarias, depois orientaram-se para as sesmarias abandonadas ou não cultivadas; por fim, dirigiram-se para as terras devolutas e, não raramente, para as áreas internas dos latifúndios semi-explorados. À força da repetição desses atos de atrevimento e bravura, pelos quais muitos pagaram com a vida, foi que o sagrado e até então intangível monopólio colonial e feudal da terra começou a romper-se. É verdade que nem sempre a posse serviu à pequena propriedade, não se ignorando que por ela também se constituíram vários latifúndios. Mas, se ao latifúndio estavam abertos todos os caminhos e todas as possibilidades de formação e expansão, à pequena propriedade quase não restava, durante os três primeiros séculos, senão uma única via de acesso: a posse. “Apoderar-se de terras devolutas e cultivá-las”, observa Cirne Lima, tornou-se coisa corrente entre os nossos colonizadores e tais proporções essa prática atingiu que pôde, com o correr dos anos, vir a ser considerada como modo legítimo de aquisição do domínio, paralelamente a princípio e, após, em substituição ao nosso tão desvirtuado regime das sesmarias. ... Depois da abolição das sesmarias, então, a posse passou a campear livremente, ampliando-se de zona a zona à proporção que a civilização dilatava a sua expansão geográfica. Era a ocupação tomando o lugar das concessões do poder público, e era, igualmente, o triunfo do colono humilde, do rústico desamparado, sobre o senhor de engenhos e fazendas, o latifundiário sob o favor da metrópole. A sesmaria é o latifúndio, inacessível ao lavrador sem recursos. A posse é, pelo contrário – ao menos nos seus primórdios –, a pequena propriedade agrícola, criada pela necessidade, na ausência de providência administrativa sobre a sorte do colono livre e vitoriosamente firmada pela ocupação (Lima, p. 45).

As condições terrivelmente opressivas vigentes nos primeiros séculos, que esmagavam no nascedouro o despontar da classe dos pequenos cultivadores independentes, forçando-os a engrossar os contingentes de rendeiros empobrecidos, lavradores obrigados e agregados ou moradores 51

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dos engenhos e fazendas, contribuíam também para limitar a expansão da agricultura, para retardar ou impedir a diversificação dos cultivos e para atirar ou manter na ociosidade uma cada vez mais numerosa massa humana. O monopólio feudal da terra já por definição é restritivo do progresso econômico e social, mas não em tão elevado grau quanto o é o monopólio colonial, feudal e escravista da terra. Aquele ainda permite, em condições dadas, certo e limitado florescimento proporcional ao ritmo de crescimento da população, concedendo a uma parte desta a oportunidade de empregar seus braços na cultura da terra, como camponeses parcelários. Não ocorre a mesma coisa com o latifúndio colonial, feudal-escravista, enquadrado no sistema de plantação, que inspira à população livre repugnância pelo trabalho e a expulsa de sua estrutura produtiva. No começo do século XVIII, quando a população da colônia mal acabava de transpor a casa de um milhão, não só era grave a situação da agricultura de subsistência como já inquietante era a da agricultura de exportação. Tanto a grande como a pequena lavoura entravam numa fase de aniquilamento, agravada a seguir com o crescente surto da mineração, que desencaminharia para a cata do ouro e dos diamantes correntes maciças de escravos, trabalhadores livres e ociosos das vilas e dos campos. Um fato novo surge em conseqüência desse deslocamento do centro econômico colonial para os arredores das minas: os arremedos do mercado interno. O movimento migratório para esses pontos de convergência levará à implantação, pelas áreas próximas, de lavouras de milho e outros gêneros de subsistência, ao florescimento de invernadas e criatórios e atrairá para ali os gados maior e menor, além de artigos de consumo necessários e supérfluos, produzidos aqui e no além-mar. Daí por diante, o ouro enriquecerá outras camadas de empresários escravocratas, mas permitirá, ao lado disso, que os homens de pequenos recursos participem dessa atividade extremamente lucrativa, chegando aos milhares a soma dos “faiscadores”. Gente de toda parte e de toda espécie corre para as minas, inclusive grandes levas de reinóis, fazendo com que a metrópole se mostre inquieta tanto com o rápido despovoamento do reino quanto com o intensivo povoamento da colônia. Coincide com o súbito aumento da procura de gêneros a escassez dos mesmos por todo o território colonial, e, como resultado, os preços de todas as mercadorias alcançam alturas vertiginosas (Antonil, 1923, p.261).2 2

“O irem também às minas os melhores gêneros de tudo o que se pode desejar foi causa que crescessem de tal sorte os preços de tudo o que se vende, que os senhores de engenhos e os lavradores se achem grandemente empenhados, e que tudo por falta de negros não possam tratar do açúcar, nem do tabaco, como faziam folgadamente nos tempos passados, que eram as verdadeiras minas do Brasil e de Portugal. E o pior é que a maior parte do ouro, que se tira das minas, passa em pó e em moedas para os reinos estranhos: e a menor é a que fica em Portugal e nas cidades do Brasil.”

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Entretanto, essa prosperidade explosiva é de relativamente curta duração. E os frutos dela, os maiores e os melhores quinhões, não são colhidos pela colônia, mas pela metrópole e por outros “reinos estranhos”. Das 1.500 toneladas de ouro extraídas, muito pouco, quase nada, fica para o enriquecimento da sociedade colonial. Antes de definitivamente esgotado o surto minerador, o que ocorrerá à altura de 1780, dá-se um refluxo dessas populações instáveis na direção da lavoura proporcionando-lhe expressivo reflorescimento. Alguns acontecimentos importantes haviam concorrido para recolocar o Brasil em situação francamente favorável no mercado mundial de produtos coloniais. A neutralidade, mesmo inconsistente, de Portugal nos conflitos internacionais permitia-lhe desenvolver seu comércio e tirar dessa posição vantajosa grandes proveitos. Acresce que, por essa ocasião, graves perturbações nas colônias inglesas e francesas das Antilhas haviam desorganizado sua adiantada indústria açucareira, alijando-a dos mercados consumidores e deixando sem concorrentes o açúcar do Brasil. E, além de tudo isso, um novo produto de exportação – o algodão –, cuja experiência de cultivo não nos era alheia, passava a ser objeto de intensa procura, após as descobertas do fuso e do tear mecânico e os acelerados progressos da manufatura de tecidos na Inglaterra. Tudo se compunha para abrir à nossa agricultura grandes estímulos e excelentes perspectivas de expansão de suas forças produtivas. Mas a isso se oporiam a rigidez do monopólio da terra, as ultra-atrasadas relações de produção vigentes e, de modo especial, o caráter privilegiado de casta da propriedade agrária. O renascimento da produção agrícola só poderia triunfar por força de uma ruptura, mínima que fosse, dessa poderosa barragem que represava o crescimento econômico. Por sua vez, alguns fatores internos constituíram outras significativas determinantes dessa ruptura. A mineração tinha ocasionado uma redivisão do trabalho, já não éramos exclusivamente uma feitoria agrícola. As atividades econômicas diversificavam-se, outros centros de produção e de consumo tinham surgido, esboçava-se o mercado interno, crescera o consumo de carnes e grãos e com ele a necessidade de desenvolver a criação de gado e a cultura de subsistência. Com o desdobramento do território, o número de capitanias eleva-se a dezenove, por onde se espalhavam perto de três milhões de habitantes, entre os quais era considerável o número dos chamados “ociosos” ou “vadios”, isto é, um enorme contingente de pessoas desocupadas, a quem o monopólio da terra, em sua primitiva feição, não dava a menor possibilidade de trabalho remunerado (Prado Júnior, 1942, p.280).3 3

“O número desse elemento indefinido socialmente é avantajado; e cresce contínua e ininterruptamente porque suas causas são permanentes. No tempo de Couty, ele o calcula, numa

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Nem sempre fielmente retratados por muitos de nossos historiadores, que freqüentemente os vêem, tal como os senhores rurais da época, como uma multidão de bandoleiros e desclassificados, esses “ociosos” ou “vadios”, pelo menos na sua melhor parte, constituíram importante instrumento de pressão e de combate contra o outrora inviolável direito latifundiário de propriedade. Vamos encontrá-los, pela segunda metade do século XVIII e por todo o século XIX, transformados em “intrusos” ou “posseiros” e novamente espoliados e oprimidos no curso de suas audazes lutas pela conquista de um pedaço de terra. À grande massa de população desocupada, acrescida no correr de muitos anos e engrossada com os reforços provindos do declínio da mineração, não restava outra alternativa senão a de forçar as portas do sistema latifundiário. Este já não pôde resistir às invasões que em ondas sucessivas iriam alastrar-se nos núcleos principais, dentro das fronteiras econômicas distendidas para o centro-sul do território pelo surto minerador. Desafiando o poder das oligarquias agrárias, multiplicavam-se as posses e, com elas, ganhava largas dimensões e consistência a nova classe dos pequenos cultivadores da terra. Muitos daqueles posseiros retornariam à sua antiga condição de párias, quando as épocas de renascimento da agricultura desencadeavam outras avalanches de latifundismo, como aconteceu, primeiro, nas áreas canavieiras do Norte e do Sul e, depois, quando o café iniciou sua marcha através do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Nessas épocas verificava-se certa contenção ou regressão no processo evolutivo da pequena propriedade, e durante as mesmas também alguns posseiros se transformavam em latifundiários. As sesmarias não eram mais as únicas vias de acesso à ocupação territorial e a situação de fato que se criava viria a exigir alterações da ordem jurídica tradicional, passando-se a admitir a legitimidade das ocupações sem título de propriedade e tentando-se discipliná-las. Por fim, como acertadamente observa Cirne Lima, a Resolução de 17 de julho de 1822, pondo termo ao regime das sesmarias no Brasil, sancionava apenas um fato consumado: a instituição das sesmarias já havia rolado fora da órbita de nossa evolução social (Lima, p.44). população total de 12 milhões, em nada menos que a metade, 6 milhões. Seria menor talvez a proporção nos três milhões de princípios do século; mas, ainda assim, compreenderia com certeza a grande, a imensa maioria da população da colônia. Compõe-se, sobretudo, de pretos e mulatos forros ou fugidos da escravidão; índios destacados de seu habitat nativo, mas ainda mal ajustados na nova sociedade em que os englobaram; mestiços de todos os matizes e categorias, que, não sendo escravos e não podendo ser senhores, se vêem repelidos de qualquer situação estável, ou pelo preconceito ou pela falta de posições disponíveis; até brancos, brancos puros, e entre eles, como já referi anteriormente, até rebentos de troncos portugueses ilustres, como estes Menezes, Barreto, Castro, Lacerda e outros que Vilhena assinala em Cairu, arrastando-se na indigência.”

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A partir dessa data, ao contrário de cessarem, sucedem-se as doações das terras públicas que se iriam converter em imensos latifúndios, mas também prosseguem as ocupações de lotes menores, por parte dos pequenos cultivadores, intensificando-se os litígios, as contendas entre sesmeiros e posseiros confinantes, os esbulhos dos lavradores sem recurso pelos senhores dos latifúndios. Na primeira metade do século XIX, o número de posses já igualava ou superava o número de propriedades obtidas por meios diferentes da simples ocupação. É possível que, noutras áreas do país, as coisas se passassem à semelhança do que ocorria em Minas, onde em 1845, em uma superfície de 18 mil léguas quadradas, cerca de 45% dessa área, ou 8 mil léguas quadradas, correspondia às “posses e loteamentos arbitrários” (Vasconcelos, p.39-40 apud Iglésias, 1958, p.66). Ressalve-se, porém, que onde o velho tipo de latifúndio colonial, feudal e escravista lançara raízes mais profundas, como no Nordeste açucareiro, a posse dificilmente teria tomado, àquela época, proporções muito extensas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTONIL, A. J. Cultura e opulência. São Paulo: Melhoramentos, 1923. p.261. COSTA FILHO, M. A cana-de-açúcar em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ed. do I.A.A., 1963. p.168. LAMEGO, A. L. O homem e o brejo. Rio de Janeiro: 1945. p.107. LIMA, R. C. Terras devolutas. p.45, 78. MARX, K. O capital. livro I. cap. XXV, XXII. PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo. Martins, 1942. p.280. ROCHA POMBO, J. F. da. História do Brasil. Edição do Centenário, 1966. p.53. SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil. 1941. p.364. (Coleção Brasiliana). VASCONCELOS, F. D. P. de V. Mensagem 1855. p.39-40 apud IGLÉSIAS, F. Política econômica do Governo Provincial Mineiro. Rio de Janeiro, 1958. p.66.

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2 UMA CATEGORIA RURAL ESQUECIDA (1963)* Maria Isaura Pereira de Queiroz

O Brasil, escrevia em 1953 Jacques Lambert, tem 50 milhões de habitantes, mas apenas 12 milhões de consumidores e ainda menos de produtores (Lambert, 1959, p.95). Queria significar que a grande maioria de nossa população rural, vivendo quase em economia fechada, não trabalha para o desenvolvimento econômico do país. Denominamos economia fechada aquela em que o produtor consome o que produz, não se enquadrando no mundo moderno da produção, em que esta é orientada para a obtenção de lucros decorrentes de transações em mercado. A economia fechada é incompatível com o desenvolvimento econômico porque limita as ambições e os esforços dos trabalhadores exclusivamente à satisfação das necessidades familiares; levada às últimas conseqüências, significa o isolamento dos sitiantes em suas propriedades, cultivando as roças, sem estímulo para desenvolver relações econômicas com os vizinhos de que resultariam as feiras; dentro de sua ótica não há sentido em produzir para abastecer outras áreas e auferir proventos, pois não há lugar para lucro. É claro que muito raramente se alcança tal extremidade, e em qualquer economia fechada se desenvolve alguma troca; conforme o desenvolvimento das trocas pode resultar uma transformação em economia de mercado, com o aparecimento e a utilização do dinheiro. No Brasil coexistiram sempre economia fechada e economia de mercado, desde os primeiros tempos coloniais. Daí ter Jacques Lambert podido dividir o país, ainda nos dias de hoje, em um Brasil arcaico e em um Brasil moderno, com base nos dois tipos de economia. A economia fechada não * Publicado originalmente como QUEIROZ, M. I. P. de. Uma categoria rural esquecida. Revista Brasiliense (São Paulo), n.45, p.83-97, 1963.

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é no Brasil senão raramente o modo de vida de famílias; dá sempre lugar à formação de comunidades denominadas “bairros” dentro das quais há sempre alguma troca de produtos, chegando a se instalarem feirinhas pobres e rudimentares. A economia da sociedade global, porém, é uma economia de mercado, e sempre o foi; as grandes plantações produziram sempre para a exportação, e sua organização exigiu elementos muito diferentes, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista da mentalidade dos próprios indivíduos envolvidos. À sombra dessa economia predominante – porque era a que aparecia como mais importante –, desenvolveu-se a outra, que permitiu que sobrevivessem famílias destituídas dos haveres necessários para formar os grandes latifúndios produtivos; e, como é regra geral, aquelas foram muito mais numerosas do que as abastadas... As comunidades em questão levam uma existência rude, grosseira, em que, como já salientamos, o dinheiro é pouco utilizado. O gênero de vida que levam é marcado pela coletivização das atividades, sendo a principal delas a ajuda mútua no trabalho, sob a forma de mutirão, muxirão, batalhão ou outro nome qualquer: quando, para determinada tarefa, se requer quantidade de mão-de-obra, os habitantes da comunidade atendem à convocação, sabedores de que poderão contar com o auxílio dos outros, em condições idênticas. Falamos em “existência coletiva”, porque raramente algo se passa naquelas comunidades, em matéria de atividades, que não seja levado a efeito em grupo. Religião, política, lazer, tudo serve de ocasião para agrupamentos e reuniões, e as próprias questões familiares transbordam do núcleo para se tomar problemas que interessam à comunidade toda. Quanto mais próspera uma comunidade desse tipo, maior a quantidade de atividades em comum: os mutirões, as novenas, as comemorações familiares, as reuniões eleitorais congregam os indivíduos, mostrando que a comunidade forma realmente uma unidade centralizadora das famílias que a compõem – unidade que muitas vezes pode estar dividida em duas metades em conflito. Desde que entrem em decadência, por questões econômicas ou outras, então desaparecem, a par da ajuda mútua, as festas religiosas; esvai-se o interesse pela política; e as comemorações familiares, restritas, passam sem que se dê fé. Francisco de Assis Ferreira de Resende, em suas memórias que datam de meados do século XIX, aponta a diferença entre sitiantes e fazendeiros, categorias que nunca se confundiram. Por volta de 1860, ao passo que a vida da família do fazendeiro era uma vida de isolamento e de uma reclusão mais ou menos completa, a classe inferior dos habitantes do campo e que se compunha de pequenos sitiantes ou de camaradas e de agregados dos fazendeiros vivia... em uma como que completa promiscuidade; pois que não só toda a família, homens e mulheres, juntos, se ocupavam da maior parte dos serviços, e estavam com os vizinhos em relações muito contínuas; porém, ainda ocasiões havia em que, sob o nome de mutirões, todos esses vizinhos se reuniam para ir ajudar a alguns deles

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que se viam com o seu serviço mais ou menos atrasado ou que tinham urgência de concluir um serviço qualquer; auxílio esse, que, embora muitas vezes reiterado, eles entretanto nunca deixavam de prestar; e de prestá-lo da melhor vontade; porque, além da certeza de que todos tinham da retribuição quando dela precisassem, esses mutirões, cujo resultado era às vezes de importância imensa para aqueles que os faziam, convertiam-se ao mesmo tempo para todos em um dia de verdadeira festa... (Resende, 1944, p.190-1).

Assim, enquanto a vida de uma fazenda “era, como acima já disse, uma vida de reclusão e de isolamento” (Resende, 1944, p.192), esta outra se definia pela solidariedade vicinal e apresentava outros traços que continuaram a caracterizá-la: a tarefa agrícola executada pelos braços familiares, inclusive os femininos, o que dava à mulher uma vida muito mais livre, diferente da prisão nas casas-grandes; a falta de uma divisão do trabalho digna de menção, que impossibilitava a prática de uma coordenação mais complexa de tarefas e, conseqüentemente, tornava desnecessária grande reflexão sobre os trabalhos a ser executados; a igualdade de todos os membros da comunidade, derivada de sua igual posição social e das tarefas iguais que desempenhavam; a vida levada em comum pelos vizinhos, em tal continuidade de relações que o magistrado mineiro fala até em “promiscuidade...”. Raramente esse estilo de vida, no entanto, deu lugar a comunidades florescentes, raramente se institucionalizou de maneira clara, não chegando a permitir que se generalizasse uma vida rural bem organizada nas áreas de agricultura de subsistência. Os laços de vizinhança rompiam-se com facilidade por fatores os mais variados, tendo como resultado uma desorganização social que chegava às raias da anomia. O que impediu que as formas de ajuda mútua, como o mutirão, dessem sempre todo o rendimento econômico que tinham em potencial e evoluíssem para uma economia de mercado. A igualdade básica entre os vizinhos, que todos tentavam ciumentamente resguardar, foi um dos focos maiores de disputa e de desorganização. Todavia, quando um indivíduo da comunidade pôde se impor aos outros, mercê de suas qualidades pessoais, fazendo vigorar nela alguma disciplina, a desorganização encontrou barreiras. Os fatores que determinaram a persistência desse gênero de vida até nossos dias foram vários. Em primeiro lugar, a vasta extensão de terras desocupadas permitia aos indivíduos sem recursos se instalar onde bem quisessem, vivendo do que lhes proporcionavam as roças. Em segundo, a constante falta de braços num país em expansão fazia que fossem sempre absorvidos quaisquer excedentes de população que viessem gravar a situação dos bairros. A falta de numerário concorria também para desequilibrar qualquer desenvolvimento, pela desproporção entre os trabalhos em andamento e o dinheiro necessário para pagá-los. Principalmente no campo, as camadas menos abastadas viam-se forçadas a viver de seus produtos, trocando-os na feira por outros de que necessitassem, o dinheiro raramente 59

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tendo curso muito difundido no interior do país e não podendo ser acumulado nos tradicionais “pés-de-meia” camponeses. Nessas condições, não era possível contratar mão-de-obra, nem alargar plantações, nem pensar em modernizações de agricultura – isto é, não era possível a evasão do círculo da economia fechada. Esta constituiu, pois, o inevitável de milhares de famílias rurais que, embora possuíssem alqueires e mais alqueires doados em sesmaria, não dispunham do dinheiro necessário para pô-los a render economicamente. A importância numérica dessa categoria de trabalhadores rurais até hoje não pode ser calculada com precisão. Os bairros são comunidades de habitação dispersa, centralizados por pequeno núcleo de meia dúzia de casas em torno de igrejinha ou capela; para atingir todas as casas são necessárias caminhadas longas por picadas, e os recenseadores desdenham fazê-las – limitam-se a perguntar no núcleo quantos habitantes mais ou menos há por ali. Os questionários de recenseamento só se referem a “estabelecimentos agropecuários” compreendidos como agricolamente organizados e normalmente produtivos em nível comercial; quedam desprezadas as humildes roças, que passam a “não existir” oficialmente. Dessa circunstância se origina a constatação paradoxal efetuada por Domício de Figueiredo Murta para o estado de Minas Gerais: comparando a população do estado com o baixo índice do consumo, conclui que “inexistem, teoricamente, 3.600.000 habitantes, caso a sua sobrevivência dependesse exclusivamente dos produtos analisados”; isto é, a produção reconhecidamente existente, a produção oficial do estado de Minas Gerais, só alimentaria 53% da população total, que é de 8 milhões de habitantes. O que equivale dizer que os 3.600.000 referidos vivem em economia de subsistência (Murta, 1961, p.78). Caio Prado Júnior afirma que somente 27,2% da área total brasileira é constituída por grandes propriedades monocultoras; seu engano é apontar o restante como “desabitado” (Prado Júnior, 1960, p.184). O cálculo da área cultivada não tem de ser feito em função somente das propriedades economicamente rendosas, mas em função da quantidade de população existente comparada com o consumo alimentar oficial, como efetuou Domício de Figueiredo Murta; a “sobra” pertencerá ao regime de agricultura de subsistência. Ou melhor, calculando-se um mínimo necessário para a sobrevivência, verificar se os alimentos dados como consumidos no Brasil chegariam para nutrir a quantidade de habitantes constatada pelos recenseamentos, ou se uma parte destes seria “teoricamente inexistente”, como foi constatado para Minas Gerais. Para Jacques Lambert, “ao passo que as grandes culturas de exportação cobrem apenas três milhões e meio de hectares, as culturas de víveres ocupam quatorze milhões” (Lambert, 1959, p.141). Poder-se-á argüir que também colonos de fazendas podem possuir suas roças, pois uma das modalidades 60

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de pagamento da mão-de-obra – modalidade mantida pela escassez de numerário – consiste no direito de “utilizar com culturas próprias, ou ocupar com suas criações, terras do proprietário em cuja grande exploração ele (o assalariado) está empregado” (Prado Júnior, 1960, p.212-3). Todavia, as roças de colonos e arrendatários são pouco numerosas, quando confrontadas com as roças de sitiantes independentes, e estas constituem a maior parte daqueles 14 milhões de hectares. Por isso, Jacques Lambert observa que o Brasil, ao contrário do que habitualmente se afirma, não é um país predominantemente monocultor, e sim um país de policulturas; a pequena roça de policultura “fornece alimentação aos sessenta milhões de habitantes do Brasil e emprega a maioria dos homens do campo” (Lambert, 1959, p.142). A economia fechada não é particular a determinadas regiões mais atrasadas do país; por toda parte se encontra, de mistura com as grandes propriedades de agricultura comercial, chegando até a beira das grandes cidades, numa distribuição inteiramente irregular. Ainda há meia dúzia de anos, às portas da metrópole que é São Paulo, caboclos viviam praticamente em economia fechada em Santana do Parnaíba, no Embu, em Guarulhos. Nos vales do Paraitinga e do Paraibuna, na região da serra de Botucatu, na zona de Itapetininga e municípios vizinhos, por toda parte é forte ainda o índice da agricultura de subsistência (Nogueira, 1962, p.127)1, e o estilo de vida segue o mesmo esquema básico – salvo peculiaridades regionais –, do que encontramos no Nordeste seco, no médio São Francisco, na região serrana do Paraná e de Santa Catarina, e assim por diante. A situação da agricultura de subsistência, em sua coexistência com uma economia comercial que é a economia oficial da sociedade global brasileira, apresenta três modalidades: a) persistência, em áreas muito pouco atingidas por esta última forma de agricultura; b) decadência, quando com esta coexiste na mesma área; c) revitalização, quando a área, antes bafejada pelo progresso econômico, se viu por ele desertada. No local onde outrora o latifúndio monocultor exerceu seu império, como no vale do Paraíba, ressurge a agricultura de subsistência, reaparece a economia semifechada, mal se encerrando a fase do apogeu, mostrando que as condições gerais do país ainda propiciam sua continuidade. Há zonas em que sempre existiu a agricultura de subsistência. Assim, no Nordeste seco, ao lado de algumas grandes fazendas de gado, vicejaram as roças dos sitiantes. Ali o roceiro é, grande parte das vezes, dono da terra em que planta, seja por aquisição, seja, mais freqüentemente, por herança. As propriedades vão se fragmentando nas mãos de uma quantidade de herdeiros que, disseminados pelas antigas sesmarias, ocupam seus sítios respectivos e são donos em comum; nem sempre o latifúndio em questão 1

Em Itapetininga, por exemplo, Oracy Nogueira cita 7,05% de estabelecimentos empenhados em agricultura em grande escala e 92,95% em agricultura em pequena escala.

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está todo ocupado, podem existir grandes tratos ainda vazios, à espera de maior proliferação dos herdeiros... Essa situação vem de longe. Em 1858, o jornal O Araripe, editado no Crato, pedia uma medida do governo que vedasse a subdivisão da propriedade territorial na região, pois esta se transformava em centenas de sitiocas, multiplicando as questões em torno das aguadas: nos inventários, os bens imóveis deveriam ser adjudicados a um só herdeiro, ou vendidos a um só comprador, que pagasse a cada herdeiro, em dinheiro de contado, o que lhe coubesse (Pinheiro, 1950, p.123).

Em 1926, persistia a situação, conforme conta Zenon Fleury Monteiro; na maioria das vezes, “Vivem os herdeiros e co-herdeiros em comum, são domínios indivisos, vindos já de algumas gerações passadas”, cuja delimitação seria hoje dificílima, pois “encontram-se na maior balbúrdia as genealogias que lhes dão direito a herança ou a co-participação de terceiros, a compra, por preços ínfimos, e sobre instrumentos legalmente nulos” (Monteiro, 1926, p.51-2, 62). Assim, aparentes grandes propriedades eram, na verdade, quantidade de pequenos sítios. Wilson Lins narra o mesmo para o médio São Francisco, onde “as fazendas de maior proporção... hoje em dia, contam no máximo com quatro léguas de extensão”, que quase todas são “pequenas propriedades de légua e meia, e até menos, o que vale dizer que não existe mais latifúndio por ali” (Lins, p.26-7). Situação idêntica é encontrada ainda hoje nas áreas de agricultura de subsistência de um estado em desenvolvimento econômico tão diferente, como é o estado de São Paulo. No município de Itapetininga, por exemplo, Oracy Nogueira encontrou a partilha informal entre os herdeiros. Mesmo entre os descendentes de antigos sesmeiros ou proprietários, no município, uma parte considerável vive em áreas juridicamente indivisas, por falta ou inconclusão de inventário, sem saber ao certo a cota ideal de cada interessado ou quanto somam os herdeiros... (Nogueira, 1962, p.88). A dispersão pelos herdeiros não é a única responsável por essa fragmentação em roças; meeiros e rendeiros, para usar a expressão de Zenon Fleury Monteiro, também “se confundem com os herdeiros dos latifúndios indivisos” e, como estes, não podendo pagar empregados, “são os próprios cultivadores do trato de terra que lhes coube” pelo contrato efetuado com o proprietário (Monteiro, 1926, p.58). Finalmente, há ainda os que moram de favor em partes da propriedade. Porque, esclarece sempre o mesmo autor, na impossibilidade dos proprietários de vastos domínios... porém sob lavra a extensão de terras que lhes coube por herança, incluídas as partes compradas, quando indivíduos da classe proletária, sem arrimos, lhes imploram moradia, cedem os recantos que lhes sobram, onde permitem levantar casebres e manter algumas criações e plantações, às vezes mesmo sem remuneração de espécie alguma... (Monteiro, 1926, p.52-3).

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Situação semelhante foi encontrada no estado de São Paulo, onde Oracy Nogueira, contando de Itapetininga, fala dos posseiros que, “aos poucos, vão regularizando sua situação...” (Nogueira, 1962, p.88), isto é, conseguindo o reconhecimento da posse por usucapião. Os posseiros se estabelecem em terras ainda não aproveitadas, quer de proprietários, quer do governo. Grande quantidade de terras é ainda devoluta no país, e se nem mesmo o estado de São Paulo tem pleno conhecimento da extensão da área nessas condições que ainda possui, que não se dirá dos outros estados? Estas devem somar dezenas ou centenas de milhares de hectares, em todo o território nacional (Marcondes, 1962, p.15, 53). Num e noutro caso, estão aqueles sitiantes sujeitos à expulsão quando surgem proprietários com títulos verdadeiros ou falsos; o que acontece invariavelmente quando a zona, por uma razão qualquer, se valoriza. Expulsos de suas roças, espoliados de suas plantações, vivem verdadeiros dramas, de que é exemplo o acontecido em Malacacheta (estado de Minas Gerais) há algum tempo (Queiroz et al, 1958). Três tipos de ocupantes de solo podem, pois, viver como sitiantes: o proprietário, o posseiro e o “agregado”. Todos eles são cultivadores independentes, que dispõem da totalidade de sua colheita; diferenciam-se neste ponto do arrendatário, que, podendo também plantar roças policultoras de que tiram a subsistência, é, no entanto, obrigado a pagar ao proprietário da terra um aluguel ou em dinheiro, ou em parte do produto. Se considerarmos, portanto, a posse definida pela ocupação de fato e pelo benefício trazido à área ocupada, e não pela sua legitimação legal (que nos “bairros” não tem muito sentido, pois neles não vogam sistemas administrativos racionais), deparamo-nos com uma série de “proprietários” de roças. O caso aparentemente divergente é o dos “agregados” que pediram um trato de terra para cultivar e que têm, pois, consciência de que a terra não é sua. No entanto, se abstrairmos essa circunstância e atentarmos para o trabalho e para a posse plena de ocupantes de toda a produção, a dessemelhança desaparece (Müller, 1951).2 Dizer qual das três categorias de ocupantes é a mais avantajada numericamente, no país todo, não é possível por falta de dados. Associado a esse tipo de economia, encontramos sempre o mesmo gênero de vida. Aubert de la Rüe, que percorreu palmo a palmo o Polígono das Secas, conta que nada distingue o vaqueiro, o agregado, o posseiro, da maioria das famílias abastadas, ricas em terras, porém, as mais das vezes destituídas de dinheiro, que não compram senão o indispensável e obtêm de sua propriedade o essencial para satisfazer suas necessidades (Rüe, p.33-4).

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Nossa definição de sitiante difere da que é efetuada por Nícia Lecocq Müller, pois não englobamos entre eles aqueles que pagam um aluguel qualquer pela terra.

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Mesmo quando há, por acaso, assalariados, todos “vivem como se uma só família fossem, distinguindo-se pouco os patrões dos empregados, os mandantes dos mandados, muitos dos quais intimamente se tutelam”, explica Zenon Fleury Monteiro (1926, p.59). A situação de trabalho é sempre idêntica, pois mesmo os donos de grandes domínios “são eles próprios que trabalham a terra, recorrendo ao proletariado remunerado apenas quando o serviço aumenta demasiado, em determinadas épocas ano” (Monteiro, 1926, p.58). Wilson Lins notou a mesma identidade de vida no médio São Francisco, “todos vestiam o mesmo gibão de couro, moravam nas mesmas casas de taipa, comiam a mesma carne-seca com farinha grossa e rapadura salobra” (Lins, p.35). Nossas pesquisas no interior da Bahia mostraram condições coincidentes. No estado de São Paulo, o gênero de vida dos sitiantes não difere. Oracy Nogueira observou, no município de Itapetininga, que 70% dos habitantes rurais moram em casas de sapé e piso de terra batida, caixotes fazendo as vezes de móveis, latas vazias substituindo vasilhame; de tal modo que colhe-se a impressão de que ou nunca foi superada a miséria generalizada constatada por Saint-Hilaire, no primeiro quartel do século XIX, ou a ela se retomou por toda parte, depois de surto de prosperidade (Nogueira, 1962, p.150-1, 155).

Outros estudiosos que se têm interessado pelo meio rural, como Antonio Candido de Mello e Souza e José Vicente Freitas Marcondes,3 eram impressionados com essas mesmas circunstâncias. Não foram diferentes as observações feitas ainda este ano por uma equipe de alunas da Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais e Letras que, sob nossa orientação, efetuaram pesquisas de “bairro” no município de Paraibuna. A tese de doutoramento de Antonio Candido de Mello e Souza focalizou a ruína econômica dos “bairros” paulistas diante do avanço da civilização industrial. O caboclo não recusa o progresso, pelo contrário; e isso o esmaga. Vivendo num estreito círculo de trocas, percebe a invasão de suas feiras por objetos produzidos industrialmente (para só falar desse fator de desorganização econômica e social, proveniente da civilização urbana, embora existam inúmeros outros) e passa a sentir a necessidade de um excedente de produção que lhe permita adquirir tais utilidades. Tende então a abandonar a policultura, que lhe garantia a subsistência, pelo cultivo de um produto só, cujo preço ouviu dizer que está em alta; deixa de lado o artesanato e todas as outras atividades complementares de sua economia. Não alcança, todavia, o resultado almejado; na feira, os objetos são sempre mais caros do que os cruzeiros que conseguiu ganhar. E, o que é trágico, não colhe mais 3

Antonio Candido de Mello e Souza realizou pesquisas no município de Bofete e interior de Mato Grosso, encontrando situações básicas semelhantes. José Vicente Freitas Marcondes desenvolve suas pesquisas em cinco municípios do vale do Paraitinga.

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o necessário para sua subsistência, depende dos cereais vendidos na feira para completar a alimentação; não produz mais os utensílios de que antes se valia nem pode comprar os que são fabricados. Sofre um abaixamento terrível no nível de sua vida econômica e, depois de lutar algum tempo sem resultado, adota uma das alternativas: ou servir como assalariado noutras fazendas, ou partir para as cidades (Souza). De um modo geral, a organização dos “bairros” está em crise no estado de São Paulo em virtude da expansão industrial. Em certas zonas, tais comunidades conseguem conservar alguma vitalidade, por se associarem de maneira frutífera com alguma outra produção e passando então a funcionar em economia semifechada. No município de Paraibuna, a instalação de duas grandes usinas de laticínios nas proximidades fez com que pequena criação de gado fosse possível com a agricultura de subsistência; teve como resultado, porém, grande diminuição da área cultivada para a formação dos pastos, determinando a expulsão de uma série de habitantes dos “bairros” para as cidades. A organização do “bairro” se mantém, o nível de vida não sofreu visível abaixamento, mas tudo isso foi possível devido à depopulação sofrida pelo município.4 No entanto, nos municípios vizinhos estudados por José Vicente Freitas Marcondes, grande número de “bairros” se desfez, seus habitantes sucumbiram à miséria e vivem da caridade da Assistência Vicentina (Marcondes, 1962, p.50). No Nordeste seco e nas áreas do médio São Francisco, que servem de segundo ponto de reparo para nossas observações, não existe um avanço de civilização industrial que venha agir como fator direto da ruína dos “bairros”. É indiretamente que sua ação se exerce, pela atração das grandes cidades e das zonas de economia florescente sobre os habitantes do sertão: as regiões industrializadas de São Paulo e Rio de Janeiro, a zona em desenvolvimento do norte do Paraná, a formação de Brasília. A sangria que a mão-de-obra rural sofre, no Nordeste, determina o empobrecimento dos “bairros”: são principalmente os homens os migrantes, a população mais capaz do ponto de vista agrícola, fazendo diminuir conseqüentemente as colheitas. A economia interna das famílias rurais fica sacrificada, os braços dos velhos, das mulheres, das crianças cultivam tratos menores de terra, e o excedente, que era vendido ou trocado nas feiras, tende a desaparecer. Nos povoados e vilarejos, cujos habitantes exercem muitas vezes funções artesanais ou outras, não plantando mais, o preço dos gêneros sobe e eles se vêem constrangidos a um regime mais frugal. Diferentemente, porém, da emigração dos “bairros” paulistas, não se trata aqui de um processo irreversível, o retorno à vida anterior é ainda possível e freqüente. Desses migrantes que partem para o Sul ou para Brasília, a tentar 4

Observações efetuadas por uma equipe de alunas nossas, da Seção de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Letras da USP, em julho de 1962.

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a sorte, há uma parte que fica em vaivém durante algum tempo, ganhando dinheiro fora de seus pagos para regressar assim que imaginam ter alcançado o suficiente para melhorar de vida; retornando ao Sul quando os meios se esgotaram, com o intuito de refazer o pecúlio. Parte regressa definitivamente ao Nordeste, parte se estabelece definitivamente no Sul. Qual a importância numérica do retorno ou da fixação? Não existem dados a respeito. Seja para os nordestinos, seja para os paulistas, a emigração ou a penetração da civilização moderna no interior dos estados não têm como conseqüência apenas a degradação econômica. Indo para a cidade ou obrigados a trabalhar para terceiros, a posição social dos sitiantes também se altera. Nos “bairros”, todos têm o mesmo status social, a estratificação social é incipiente, a liderança (que nunca é hereditária, e que não se confunde com a posse de maior quantidade de bens) se define pelos dotes pessoais, geralmente. Quando os integrantes de uma estrutura igualitária como essa abandonam a agricultura de subsistência pelo lugar de assalariado, seja rural, seja urbano, integram-se em estrutura diferente, estratificada em vários graus segundo o poder econômico, e nela vão ocupar o nível inferior da escala social. Passam a viver num mundo em que o homem não galga posições pelas suas qualidades intrínsecas, reconhecidas pelos que o rodeiam e o conhecem de perto; mas sim pelo poder econômico que soube enfeixar nas mãos, adquirido seja como for... Além da degradação econômica, sofrem os sitiantes também degradação social. Passam a viver, outrossim, num universo para o qual não foram preparados, pois os valores da vida rural são inteiramente diferentes dos valores da vida urbana. O que sucede no estado de São Paulo aponta um triste caminho ao sitiante, o caminho da ruína sem remédio. O desenvolvimento econômico excessivamente rápido de certas regiões do país tem igual resultado, por atrair um número muito elevado de braços que desertam as lides agrícolas dos “bairros” atrás da miragem de salários elevados e de enriquecimento fácil; os que permanecem, insuficientes para ganhar a vida das famílias, sofrerão também abaixamento de seus níveis de vida, sem falar na falta de gêneros para vilarejos e povoados, nos quais parte da população depende também das pequenas roças dos sitiantes circunvizinhos. Nas cidades, o acúmulo de uma mão-de-obra mal preparada para a vida urbana tende a ser excelente meio de cultura para a formação de vagabundos e degenerados. Desequilibrada a vida do campo, para grande parte da população, poderse-á manter o ritmo do desenvolvimento econômico geral? Muito se fala em reforma agrária ultimamente, e os projetos vão dos mais radicais aos mais moderados (Marcondes, 1962, p.45).5 As medidas pro5

José Vicente Freitas Marcondes mostra que, de 1946 a 1958, vinte projetos foram apresentados ao Congresso Nacional especificamente sobre reforma agrária, dentro dos 213 que diziam respeito a modificações ligadas à propriedade agrícola e assuntos correlatos.

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postas dizem respeito, em geral, à dualidade fazendeiro-assalariado, como se o meio rural brasileiro se compusesse somente dessas duas categorias. Não há dúvida de que o assalariado rural está a exigir uma série de medidas semelhantes às que já obteve o assalariado urbano, e que o problema das explorações imobiliárias no interior exige que alguma coisa seja feita no sentido de proteger o pequeno proprietário, permitindo-lhe o acesso à terra também em zonas florescentes. No entanto há que pensar também no sitiante, isto é, no indivíduo que vive ainda na forma mais elementar de economia agrícola, seja ele proprietário, posseiro ou “agregado” – e até agora nenhuma referência concreta lhes foi feita. Para que os projetos de reforma digam respeito à totalidade da população rural brasileira, é preciso que se dirijam expressamente a essa categoria – a parcela mais importante da população ligada à terra em nosso país. Seu problema, à primeira vista, parece ser o da propriedade. Quando legalmente donos, por herança, torna-se necessário garantir a manutenção da posse, de que são esbulhados por espertalhões, assim que a zona ganha alguma importância econômica. Quando donos de fato, por ocupação e benefícios feitos (e a mais pobre das roças é benefício, num país de léguas de território ainda economicamente inexplorado), há também que assegurarlhes a posse contra proprietários ausentes, interessados tão-somente na valorização das glebas e, muitas vezes, contra o próprio Estado, quando é este o proprietário. Quando “agregados”, também não devem permanecer indefesos diante do arbítrio dos proprietários. Como se vê, não se trata propriamente da divisão de grandes propriedades entre assalariados, solução arriscada que pode redundar em multiplicação das roças de subsistência, dadas as condições atuais do país. Trata-se de salvaguardar os direitos de quem ocupou uma terra abandonada e deserta, nela trabalhando e plantando. No entanto, o aspecto de manutenção dos direitos talvez não seja o mais importante, se aprofundarmos nosso exame. O problema crucial é conseguir que os sitiantes – muitas vezes proprietários legais de suas glebas – aumentem o rendimento do trabalho, incorporando-os à produção de mercado com o menor prejuízo para o nível de sua existência, antes conseguindo que este também se eleve. Num país em que as terras devolutas são ainda em quantidade, o que permite a ocupação tranqüila de roças por largos anos, não é propriamente na falta de terras que se localiza o âmago do problema. Dois fatores avultam aqui: a falta de instrução e a falta de financiamento. Para o sitiante que vive em agricultura de subsistência, nenhum financiamento acessível existe, (Marcondes, 1962, p.36).6 Por outro lado, não tem ele desenvolvimento mental suficiente para organizar seu trabalho de modo que consiga 6

Nossa equipe de alunas averiguou em Paraibuna que o auxílio da Caixa Rural existente só é acessível a quem já possua um pecúlio, isto é, uma ínfima minoria.

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plantar para o consumo e produzir para vender em quantidade apreciável na feira. Não que o reputemos um indivíduo de capacidades intelectuais pouco desenvolvidas; o que há é que não exercita em sua vida cotidiana as qualidades requeridas pela complexidade da economia de mercado. Uma das noções básicas desta, e que falta em geral ao sitiante conforme tivemos possibilidade de averiguar, é a da divisão do trabalho. De acordo com o costume nos “bairros”, todos fazem as mesmas coisas ao mesmo tempo: todos semeiam, todos cuidam das plantas, todos colhem ou então todos folgam. Quando o pai vai para a roça, o filho também vai, mesmo que só haja trabalho para um. Assim há em várias etapas e épocas do trabalho rural, muitas vezes, um desperdício de mão-de-obra, que poderia ser empregada noutros misteres também produtivos. Em suma, as condições do trabalho, na agricultura de subsistência, não levam ao fomento de uma organização racionalizada, imprescindível na economia moderna, porque não desenvolvem as qualidades de reflexão necessárias. Assim, mesmo que o financiamento pusesse ao alcance do sitiante os meios para se evadir do círculo da economia fechada, sua mentalidade provavelmente o impediria de utilizá-los de maneira proveitosa. Dir-se-á que estamos diante de uma população inepta, condenada à ruína e à decadência social, que seria preciso extinguir para substituí-la por outra, mais atilada, já “domesticada” pelo desenvolvimento econômico. E isso porque uma campanha educativa, mesmo executada com a maior largueza de meios e a maior dedicação por parte dos mestres, levaria tempo demasiado e não conseguiria salvar da desintegração quantidade desses bairros. No Nordeste baiano, num ponto do território quase no limite com Alagoas, localizou-se um “santo” que dedicou sua existência à comunidade formada em torno dele. É dotado de dons terapêuticos extraordinários, e a gratidão dos doentes que curou mais os donativos dos fiéis que procuram agradar-lhe, proporcionam a ele meios pecuniários que o transformam em rico proprietário. Os bens que assim reuniu – terras, dinheiro – foram postos a serviço do grupo que lidera, tanto para melhoramentos que dizem respeito ao vilarejo (como a instalação da força elétrica) como aos indivíduos que à sombra dele se acolheram. Como sua experiência é muito maior do que a dos adeptos, pois conhece as cidades grandes do Sul, onde viveu grande parte da sua vida, aconselha-os e, mercê da sua autoridade indiscutida, organiza-lhes a vida econômica segundo outros moldes, mas sem fazê-los perder a liberdade de trabalho a que estão acostumados. Se consultado, dá o seu parecer, mas nada impõe, e o indivíduo se sente livre de seguir ou não o conselho – o que sem dúvida faz, porque tem fé na capacidade do líder. Os adeptos recorrem também a ele como se fosse o banco da comunidade, mas banco especialíssimo que não cobra juros nem exige pagamento com datas marcadas... Sua existência significa um princípio de ordem introduzido 68

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no povoado (antes reputado pela preguiça e ferocidade dos autóctones), e em sua comunidade se reorganizaram todas as práticas de ajuda mútua, a começar pelo mutirão, que tinham caído em desuso. Palma, mandioca, algodão, melancia são produtos que o “santo” fez plantar além das roças habituais, e que sua gente não estava habituada a cultivar. Cada qual planta quanto pode; os que querem entregam a colheita ao “santo”, que, por meio de dois auxiliares, a quem confiou os dois caminhões que comprou, vai colocá-la em feiras muito mais distantes das que normalmente poderiam ser alcançadas. Transformou-se a vida desses sitiantes, que prosperaram sem abandonar sua organização socioeconômica primitiva. A bolsa, os conhecimentos, a autoridade do “santo” foram os fatores da mudança. No entanto, tudo isso certamente se arruinará desde que, por qualquer motivo, ele desapareça do local.7 O caso que apontamos anteriormente não é o único, e muitas vezes os próprios coronéis desempenharam funções semelhantes em seus municípios, constituindo fatores de progresso para os sitiantes que junto deles se acolhiam, mas infelizmente não constituíram maioria. Donde se infere que a autoridade do líder natural da comunidade é extremamente importante para promover uma aceitação rápida de novas maneiras de ser, assim como uma reorganização da comunidade aproveitando os comportamentos tradicionais suscetíveis de auxiliar para o melhor rendimento da vida econômica. A retomada da prática do auxílio mútuo em todas as atividades comunitárias,8 que não eram mais realizadas antes que o “santo” aparecesse na região, contribuiu para possibilitar plantações mais extensas, que vieram a beneficiar as diferentes famílias que compõem o grupo. A indicação das culturas suscetíveis de alcançar melhor preço a propaganda que faz o “santo” de técnicas agrícolas modernas (seu sonho é ver os adeptos utilizarem máquinas, como tratores e outras) contribuíram para dar um sopro de maior ambição àquelas vidas estagnadas num nível que reputavam aceitável. Tudo isso animou os mais empreendedores, que puderam também contar com o auxílio monetário do líder. E assim a população local entrou num ritmo diferente de trabalho e de produção, que contrasta inteiramente com o marasmo das famílias vizinhas que não pertencem à comunidade. Todos esses resultados seriam ainda mais extraordinários, não estivesse o povoado sujeito à calamidade periódica das secas. 7

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Analisamos esse caso, comparando-o com o que se passa nos “bairros” paulistas em desorganização, no artigo Désorganisation des petites communs brésiliennes. Cahiers Internationaux de Sociologie (Paris), v.XXVIII, 1960. Essas práticas comunitárias não existem apenas ao nível da labuta agrícola. O próprio trabalho feminino de bordados e tecidos se beneficia delas. Assim, a mulher que sabe tecer no tear contribui com seu trabalho, aquela que plantou o algodão entra com a matéria-prima, e o produto auferido com a venda do pano ou da rede é dividido entre ambas. Comportamentos como esses desaparecem todas as vezes que a solidariedade do “bairro” se desfaz.

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Esse exemplo será único? Ou, ainda, necessitar-se-á sempre da autoridade fora do comum de um “santo” para alcançar tais melhorias? Provavelmente não, uma vez que há casos de “coronéis” que puderam também ter o mesmo papel; e o mais importante, na mesma região, é o exemplo de Delmiro Gouveia, cuja memória é venerada pelos habitantes, conforme pudemos averiguar in loco, mercê do impulso que lhe deu com suas iniciativas industriais, com a proteção que dispensou aos tabaréus que entravam como operários nas empresas que montou e com a elevação de nível de vida que trouxe a estes. Assim, em primeiro lugar, torna-se necessário descobrir qual o líder natural da comunidade, a fim de que este possa insuflar aos seus dirigidos uma série de conselhos que reorganizem a vida em grupo, cujos laços muitas vezes estão ameaçados pela anomia, e mesmo em situações mais favoráveis são muito frouxos para sustentar o peso de uma mudança socioeconômica. Uma imposição vinda de fora, que estatuísse novas condutas a ser adotadas pelos componentes do “bairro”, não teria resultados tão frutíferos e poderia mesmo chegar ao insucesso. Os roceiros brasileiros são, via de regra, muito ciosos de sua independência e acatam ordens dos que reconhecem merecer-lhes o respeito, mercê na maioria dos casos da gratidão que conquistou; o exercício da autoridade, de acordo com o conhecimento que temos da vida dos “bairros”, é comandado pelo princípio básico do do ut des – alcança prestígio aquele que serviu os companheiros; o acatamento a conselhos e a pedidos está na razão direta dos benefícios recebidos, da simpatia demonstrada. Há que educar, pois, esses líderes naturais, ou, antes, dar-lhes certa orientação, uma vez que geralmente se trata de indivíduos mais inteligentes, mais experientes, mais instruídos, mais capazes do que os outros. Eles serão os melhores guias e intermediários entre a comunidade que vive em economia fechada e a sociedade global organizada segundo a economia de mercado. O próprio financiamento – que deve ter características particulares, pois de nada adianta oferecer ao sitiante empréstimos em tais condições que os prazos de pagamento se transformem em pesadelo pela dificuldade de fazer frente a eles – poderia tê-lo como intermediário, pois tal líder é uma garantia, aos olhos dos roceiros, de que não estão arriscando seu trabalho, deixando-se prender por um mecanismo que não compreendem e que poderá devorá-los. Será a garantia humana que lhes é necessária, pois vivem no universo das relações humanas, e não das relações legais. Finalmente, a existência do hábito de atividades coletivas, que o estreitamento dos laços comunitários provavelmente tenderá a reforçar, constituiria excelente base para associações rurais como sindicatos e cooperativas, entendidos os primeiros como meios da defesa da mão-de-obra rural; como organismos que permitem maior elevação do nível da produção e do consumo, os segundos. E também nesse particular os líderes naturais poderão desempenhar o papel de introdutores e de garantias das novidades, diante da população sitiante. 70

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Modificando nalguns pontos sua organização, estreitando mais ainda sua cooperação com os vizinhos, instruído de como utilizar novos princípios na programação de suas tarefas rurais e novos produtos a ser cultivados, financiado em suas iniciativas – tudo isso com um mínimo de atrito com a organização antiga, e empregando liderança e comportamentos já existentes –, o sitiante talvez possa conservar sua autonomia de trabalho, a posse de sua terra, quando já é proprietário, elevar seu nível de vida e integrar-se num mercado mais amplo do que o das feirinhas locais. Aumentando produção e lucro, incluir-se-á também cada vez mais entre os consumidores, ampliando o mercado interno do país, ainda incipiente, tornando menos prováveis a decadência e os êxodos desastrosos. A simples distribuição da propriedade, nas condições atuais, não terá outro efeito a não ser multiplicar sitiantes em economia fechada, com seu fadário de paulatino empobrecido. A sindicalização, para uma população que tudo ignora das leis, que efeito poderá ter? A longo prazo, essa segunda medida terá suas conseqüências; mas é hoje que os sitiantes do estado de São Paulo sentem cada vez mais o efeito da ruína, a qual amanhã se estenderá ao resto do país, sacrificando a população agrícola mais numerosa que possuímos, e base de subsistência dos municípios do interior. Exorbitamos de nossa qualidade de simples estudiosos da realidade rural brasileira para aventar medidas em prol da população de sitiantes, em virtude do total desconhecimento que dessa categoria mostram os projetos de revisão ou de reforma agrária até hoje preconizados. Não figurando nas estatísticas e recenseamentos, são ignorados pelos que idealizam transformações da estrutura rural do país, e a literatura sociológica e antropológica existente sobre eles não atingiu ainda nem os políticos nem a massa de intelectuais, muito embora se trate da parcela mais importante de nossa população economicamente autônoma. Como os 3.6000.000 sitiantes mineiros, cuja vida é “teoricamente” impossível diante da produção e do consumo do estado em questão, toda essa categoria simplesmente inexiste na vida oficial do país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LAMBERT, J. Os dois Brasis. Ministério da Educação e Cultura: Rio de Janeiro, 1959. p.95 LINS, W. O médio São Francisco. 2.ed. Salvador: Livraria Progresso. p.26-7. MARCONDES, J. V. F. Revisão e reforma agrária (Quatro Estudos). São Paulo, 1962. p.15, 53. MONTEIRO, Z. F. À margem dos Carirys. São Paulo: Helios, 1926. p.51-2, 62. MÜLLER, N. L. Sítios e sitiantes no estado de São Paulo. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1951. MURTA, D. de F. Nota prévia sobre a estrutura agrária de Minas Gerais. Revista Brasileira de Ciências Sociais (Belo Horizonte), v.1, n.1, p.78, 1961.

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NOGUEIRA, O. Família e comunidade. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1962. p.127. PRADO JÚNIOR, C. Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil. Revista Brasiliense (São Paulo), mar.-abr., p.184, 1960. PINHEIRO, I. O Cariri. Fortaleza: 1950. p.123. QUEIROZ, M. I. P. de. et al. Estudos de Sociologia e História. São Paulo: Anhembi, 1958. QUEIROZ, M. I. P. de. Désorganisation des petites communs brésiliennes. Cahiers Internationaux de Sociologie (Paris), v.28, 1960. RESENDE, F. de A. F. de. Minhas recordações. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. p.190-1. RÜE, A. de la. Le Brésil Aride. Paris: Gallimard. p.33-4. SOUZA, A. C. de M. e. Os parceiros do Rio Bonito, MS.

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3 AS TENTATIVAS DE ORGANIZAÇÃO DAS MASSAS RURAIS – AS LIGAS CAMPONESAS E A SINDICALIZAÇÃO DOS TRABALHADORES DO CAMPO

(1963)* Manuel Correia de Andrade

A difícil situação em que se encontram os trabalhadores sem terra do Nordeste, constantemente a agravar-se, sobretudo a partir de 1950, faz que a massa camponesa procurasse por si mesma uma solução e afastasse a possibilidade de resolução do problema agrário regional pela colonização. Esta, tal com o é concebida pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e pela CRC, e em face dos meios de que uma e outra dispõem, seria, se bem-sucedida, uma solução a longo prazo e beneficiaria apenas um pequeno número, ao passo que a maioria absoluta dos camponeses continuaria a vegetar, como ocorre até hoje, em condições subumanas de vida. Desse fato se aperceberam não só os estudiosos dos nossos problemas sociais como os políticos, o clero e o próprio povo, uma vez que o espírito de revolta externado de quando em quando nos pontos mais diversos do Nordeste e as formas embrionárias de organização vêm surgindo dia a dia. Os proprietários de terra, alarmados, temem a reação camponesa, temem a reforma agrária preparada por políticos e técnicos, receiam os planos de recuperação econômica e nada fazem visando a melhorar a produtividade de suas terras, aumentar verticalmente a produção, a fim de poder disponibilizar para as culturas de subsistência as áreas que fossem gradualmente liberadas pela grande cultura, sobretudo a canavieira. * Publicado originalmente como ANDRADE, M. C. de. As tentativas de organização das massas rurais – As Ligas Camponesas e a sindicalização dos trabalhadores do campo. In: . A terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Brasiliense, 1963.

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A situação alarmante é admitida por todos, uma vez que o próprio governador Aluísio Alves não titubeia em afirmar: Ou se acha uma solução com medidas de financiamento maciço da produção que melhore o Nordeste, ou não chegamos a 1º de janeiro de 1963 sem uma convulsão talvez sangrenta. Quem não acreditar ponha o calendário no bolso e espere para ver,

e continua: “Ou as elites decifram o Nordeste em 62, abrindo uma porta de esperança, ou então serão responsáveis – porque advertidas – do imprevisível revolucionário” (Meira, 1961a). Não acreditamos que seja mera força de expressão a afirmativa do governador potiguar de que: “Ou se resolvem os problemas ou o Nordeste se levanta dento de um ano”. E o superintendente da Sudene, autor e responsável por um Plano de Desenvolvimento do Nordeste, ao falar ao mesmo repórter, afirmou peremptoriamente: Se se tem em conta que três quartas partes do Nordeste passam fome todos os dias do ano, que esta miséria resulta de que o homem nordestino não tem oportunidade de utilizar sua capacidade de trabalho e que ao mesmo tempo as melhores terras do Nordeste são subutilizadas e os capitais formados na região tendem a emigrar, resulta que o sistema econômico está socialmente condenado, devendo ser modificado em suas bases. Ora, não é possível modificar as bases de um sistema de organização econômica e social senão mediante métodos revolucionários. Historicamente, essas transformações ocorrem espontaneamente, sob a forma de cataclisma. Hoje, estamos em condições de diagnosticar uma situação histórica, identificar suas tendências predominantes e condicionar o seu desenvolvimento. Portanto, estamos em condições de dirigir uma revolução.

Em artigo posterior,1 o ilustre economista afirma haver uma dualidade básica na revolução brasileira, uma vez que, enquanto os operários urbanos têm direito de organização e participam de uma sociedade aberta, os camponeses não possuindo qualquer direito não podem ter reivindicações legais. Se se organizam, infere-se que o fazem com fins subversivos. A conclusão necessária que temos a tirar é que a sociedade brasileira é rígida em um grande segmento: aquele formado pelo setor rural.

Interessante é que, conhecendo a realidade rural nordestina, não teve o senhor Celso Furtado a lembrança de procurar auscultar as necessidades mais prementes do trabalhador rural nordestino e aconselhar o atendimento de suas reivindicações mais urgentes, como a necessidade de que lhe fosse estendida a proteção da legislação trabalhista, nem de procurar regular no campo os contratos de arrendamento e de parceria. Problemas que preocupam o ministro da Agricultura, que, em seu projeto de Reforma

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Reflexões sobre a pré-revolução brasileira III. Jornal do Comércio, Recife, 22 mar. 1962.

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Agrária, enviado ao Parlamento, procura regular essas relações em seus arts. 29 a 38.2 O deputado federal Aderbal Jurema, após realizar inquéritos no interior de Pernambuco, compreendendo a difícil situação que atravessamos e a opressão que recai sobre arrendatários e “condiceiros”, devido à alta renda cobrada aos primeiros e aos baixos salários pagos aos últimos (em Vitória de Santo Antão, a 50 quilômetros do Recife, o “dia de condição” ainda é pago a 70 e 80 cruzeiros, ao passo que o litro de farinha já atingiu o elevado preço de 170 cruzeiros), chega a propor à Câmara Federal “a mudança e não a reforma da estrutura agrária do país” e a sugerir que as usinas sejam transformadas “em centros cooperativos, sobretudo para que possamos resolver o drama social do Nordeste”.3 Referindo-se ao deputado Francisco Julião, afirmou o representante pernambucano na Câmara Federal: com suas Ligas Camponesas – precisamos dizer alto e bom som nesta Casa – o sr. Francisco Julião antecipou-se, através do fato social, às leis, ou melhor, a realidade do trabalhador nordestino fez que o sr. Francisco Julião organizasse suas ligas antes que a legislação chegasse ao campo, porque ela já existe.

O agravamento contínuo da crise e as dificuldades de vida cada dia maiores levaram os trabalhadores rurais a atitudes de revolta, de desespero, como ocorreu no já famoso Engenho Galiléia. Esse engenho, como outros localizados em áreas marginais, distantes das usinas, foi ficando de “fogo morto” na década de 1930, quando os preços do açúcar eram baixos e passaram seus proprietários a “forar” suas terras a pessoas que cultivavam frutas e cereais destinados a abastecer o Recife e demais centros nordestinos. Passava então o proprietário a viver na cidade, da renda da terra, sem trabalhar na propriedade e, às vezes, visitando-a esporadicamente. Um feitor, homem de sua confiança, cobrava os “foros” anuais, fiscalizava a prestação do “cambão” ou da “condição” e servia de intermediário entre o proprietário ausente e os que lavravam a terra. No período posterior à guerra de 1939-1945, os altos preços do açúcar e a abertura de estradas provocaram a ampliação da capacidade das usinas, que foram reequipadas e conquistaram as terras marginais. Essa conquista seria feita à custa do desaparecimento dos antigos banguês – os senhores de engenho tornavam-se fornecedores de cana – e com o sacrifício dos foreiros, que eram expulsos de seus sítios a fim de que os canaviais das usinas se expandissem imperialisticamente pelas terras que lavravam, às vezes, havia dezenas de anos. Assistimos pessoalmente ao desmonte de

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Anteprojeto de Lei de Reforma Agrária. JUREMA, A. Sindicalização rural para a mudança democrática. (Câmara Federal). Comunicação pessoal.

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velhos pomares e cafezais devido à sede impiedosa de terras para a cana nos municípios pernambucanos de Vicência e Amaraji. Os foreiros, acossados pelos proprietários, recorriam à Justiça, mas o processo judicial era demorado e eles dificilmente conseguiam pagar por muito tempo a um advogado e, enquanto permaneciam no “sítio”, eram constantemente ameaçados pelos vigias e agregados do proprietário. Poucos resistiam até o fim. Foi essa situação difícil que levou os arrendatários de Galiléia a organizar nesse engenho, sob a direção do próprio feitor – Zezé da Galiléia – uma sociedade beneficente com o pomposo título de Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (Callado, p.35). A organização dessa sociedade irritou o filho do senhor de engenho, que, vendo no espírito associativo nascente entre os foreiros um perigo para seu patrimônio, procurou despejar os moradores. Estes, liderados por Zezé da Galiléia e por Manuel Severino de Oliveira, recusaram-se a obedecer-lhe, levando o proprietário a mover contra eles, no fórum de Vitória de Santo Antão, ação de despejo. Procurando um advogado que os defendesse, os foreiros terminaram no escritório de Francisco Julião, que, com pouco mais de quatrocentos votos pessoais, conseguira, por meio de votos de legenda, eleger-se para o palácio Joaquim Nabuco. Era o único representante do Partido Socialista na Câmara Estadual; resolveu, então, defender de graça, uma vez que os foreiros não podiam pagar e que ele como deputado “ganhava bem do Estado”. Pego de surpresa, não tinha Julião, certamente, um plano para resolver o problema agrário nordestino (Meira, 1961b); conhecia, porém, o meio rural, uma vez que era filho de senhor de engenho e irmão de agricultores de Bom Jardim; à medida que defendia os “galileus”, Francisco Julião notou que casos idênticos surgiam em todo o estado e que o problema, antes apenas judiciário, tornara-se, na verdade, social. Achou, assim, que saía da alçada de juízes e advogados e atingia a dos legisladores. Por isso, utilizando seu mandato, passou a combater na Câmara e na imprensa o “cambão” e o “foro”. Achou que sua maior missão era despertar a grande massa camponesa para a luta, para a tomada de consciência de sua força e de suas necessidades, evitando que as tentativas de solução do problema agrário fossem elaboradas de cúpula, por intelectuais e políticos que quase sempre desconhecem a realidade camponesa. Para melhor estruturar as organizações de luta dos camponeses, legalizou a 1° de janeiro de 1955 a sociedade fundada pelos “galileus”, que existia até então apenas de fato. Apesar de continuar denominada Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, tornou-se esta conhecida em todo o Brasil por seu nome de guerra, bem menos extenso, de Ligas Camponesas. Esse nome tem tanta aceitação que na Paraíba o vocábulo “camponês” identifica os associados das Ligas. A fim de evitar o despejo dos foreiros de Galiléia, Julião apresentou à Câmara Estadual um projeto de lei desapropriando o engenho, o qual foi aprovado e sancionado pelo governador do estado. 76

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O exemplo de Galiléia foi um estopim e, em 1960, as Ligas já possuíam associados em 26 municípios pernambucanos da Mata, do Sertão e Agreste,4 alastrando-se rapidamente pela Paraíba, onde surgiram grandes núcleos em Santa Rita, Sapé, Mamanguape, Guarabira, Pirpirituba, Espírito Santo e outros centros de menor importância. O núcleo de Sapé é o mais importante por contar com perto de 7 mil associados. Atualmente, as Ligas têm influência em todo o Nordeste, uma vez que seus núcleos são numerosos no Piauí, no Ceará, onde as várias associações municipais se congregam formando uma federação sob a liderança de José Leandro, e na área baiana do São Francisco. Em Alagoas, seus primeiros núcleos estão sendo fundados em Viçosa e Atalaia. Em alguns estados, como o Piauí e a Paraíba, têm as Ligas contado com a compreensão dos governadores – Chagas Rodrigues e Pedro Gondim –, mas têm encontrado séria reação por parte dos grandes proprietários de terras. Na tenacidade com que empunha sua bandeira, Julião aceita o apoio de todos, chegando a afirmar certa vez: “Não vemos inimigos no soldado, no padre, no estudante, no industrial, no comunista; o inimigo é o latifundiário”. Acusado por alguns de místico e de utilizar o misticismo para aliciar os camponeses, afirma: O papa João XXIII foi o primeiro papa a vir de origem camponesa. A Encíclica que ele acaba de fazer é uma prova de que o papa veio aprovar as Ligas Camponesas e “Usamos em nossa pregação as palavras da Bíblia. Sim, porque a Bíblia é um livro revolucionário”.

Também não titubeia em aconselhar a seus liderados que se associem aos sindicatos rurais que os padres vêm fundando nas várias paróquias. Inegavelmente, tem Francisco Julião condições de liderança e é apontado como um autêntico líder. Sua influência está continuamente a crescer, seu prestígio está em ascensão entre os foreiros, pequenos proprietários e moradores. Observa-se, porém, que as Ligas têm maior apoio nas áreas onde dominam os foreiros e os moradores de “condições”, sendo sua organização quase nula nas regiões onde dominam os canaviais de usina, onde a proletarização do homem é a mais completa, sendo por isso, nas Recomendações sobre a Reforma Agrária do intitulado Instituto Brasileiro de Ação Democrática, acusado de “evitar cuidadosamente de ferir os interesses da grande propriedade e açular as massas rurais contra as áreas de baixa produtividade e exploração decadente” (Ávila, p.217). A nosso ver, tal fato deriva de serem os foreiros homens que têm alguma coisa de seu, alguns poucos bens a 4

Eram as seguintes as cidades pernambucanas com sedes das Ligas Camponesas: Recife, Olinda, Paulista, Igaraçu, Goiana, São Lourenço da Mata, Pau d’Alho, Limoeiro, Bom Jardim, Orobó, João Alfredo, Surubim, Jaboatão, Moreno, Vitória de Santo Antão, Gravatá, Bezerros, Caruaru, Belo Jardim, Pesqueira, Buíque, São Bento do Una, Bonito, Cortês, Escada e Cabo.

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defender e de terem um nível cultural mais elevado e melhores condições de resistência, uma vez de posse de seus sítios. Também, tendo lavouras próprias, ficam fixados a seus sítios – casos há de foreiros e moradores que ocupam os sítios em que nasceram, tendo substituído nestes os pais – e são mais facilmente alistados nas Ligas. Quanto aos trabalhadores assalariados, são verdadeiros nômades que estão constantemente a mudar-se de um lugar para outro. No engenho em que trabalham alojam-se nos “castelos”, que muitas vezes são antigas senzalas, e aí permanecem apenas alguns dias, partindo sempre para outro lugar. Em geral, nada possuem a não ser alguns “molambos” que, enrolados, formam as “trouxas” quando partem de uma usina para outra. Difícil é, assim, filiá-los a um núcleo da Liga, pois não se fixam em parte alguma. Também grande parte se afasta das Ligas temendo a reação do proprietário e de seus prepostos, que quase sempre é violenta. Faz alguns anos foi um morador ferrado a “ferro em brasa”, como se fosse um animal, na zona sul de Pernambuco, e, em abril de 1962, foi o líder das Ligas Camponesas em Sapé, João Pedro Teixeira, na Paraíba, assassinado, dizem que a mando de proprietários rurais. Também agora, em março de 1962, as Ligas lançaram uma “Denúncia ao Povo” por perseguições impostas a camponeses por autoridades policiais de Rio Formoso, afirmando que em conseqüência da filiação de velhos trabalhadores àquelas. Não se deve concluir, porém, pela inexistência de influência das Ligas nas cidades onde elas não têm núcleos, uma vez que o próprio Julião afirma, referindo-se à sua organização: A coisa cresceu desordenadamente. Agora é que estamos ensaiando um cadastro. Há o camponês filiado de peito aberto e há o que não quer ou não pode aparecer e fica como uma força latente, atuando subterraneamente. Não há em toda a Zona da Mata e boa parte da zona semi-árida do Nordeste um camponês que já não seja potencialmente da Liga. Em qualquer estado do Nordeste, mesmo onde a Liga não foi fundada, é comum um camponês injustiçado dizer para o capataz ou para o patrão: “graças a Jesus Cristo a Liga vai chegar. Será nossa liberdade”.

Os chefes militares que muito se preocupam com a atuação das Ligas acreditam que elas tenham de 30 a 35 mil adeptos em Pernambuco e cerca de 80 mil no Nordeste (Meira, 1961b). Uma das mais freqüentes acusações que são feitas a Francisco Julião por parte de intelectuais e técnicos da direita e do centro é que ele não deseja resolver o problema agrário, uma vez que é um simples demagogo a fazer agitação e a procurar garantir sua cadeira de deputado. Afirmam mesmo que ele não tem programa; o deputado e romancista, porém, em sua pregação pela reforma agrária afirma que procura despertar as massas a fim de que elas participem da solução de seus problemas, evitando que uma solução de cúpula, imposta de cima para baixo, venha a modificar a 78

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estrutura agrária brasileira sem consultar os interesses do homem do campo. Acha que a experiência e as reivindicações dos que mourejam a terra têm de ser levadas em conta ao se fazer uma lei agrária. Suas idéias gerais, porém, foram expostas em documentos lidos a 15 de setembro de 1961, ao ser iniciada a Campanha pela Reforma Agrária,5 em que, após criticar os planos da Sudene, da Revisão Agrária de São Paulo e da CRC, apresentou o que chamou de os dez mandamentos das Ligas Camponesas. São os seguintes os dez mandamentos do deputado Francisco Julião: 1) Acha que os estados federados, usando das prerrogativas constitucionais que lhes destinam o imposto territorial (este, após a conferência, passou à competência dos municípios), devem aumentar a tributação sobre a terra, até hoje irrisória, “passando de prática inexistência atual do imposto territorial para a sua regulamentação altamente progressiva, a partir de uma avaliação realista da propriedade e discriminando-se as taxas com base na extensão de cada estabelecimento”. 2) No âmbito federal, deve ser feita a arregimentação de todos os que desejam resolver o problema agrário visando, de logo, a “lutar pela reforma da Constituição para definir o justo preço, de maneira a reprimir a especulação e permitir o pagamento das indenizações em bônus ou títulos de dívida pública”. 3) A necessidade de que se legisle, desde logo, com base no art. 147 da Constituição de 1946, procurando alcançar a “regulamentação de arrendamento e da parceria, à base de prazos longos e preços módicos, considerada ainda a possibilidade de aforamento, nos casos de utilização adequada da terra a ser definidos”. Aponta a Resolução n.6, de 7 de agosto de 1957, da Novacap, sobre a utilização das terras do Distrito Federal como modelo aceitável para o que pleiteia acima. 4) Aproveitamento ao máximo das cooperativas mistas e de produção, cuja economia pode ser reforçada à base do beneficiamento e da industrialização. 5) Estabelecimento das sanções eficientes, pela tributação e outros meios, contra a concentração monopolista da terra. 6) Aceitação dos programas de colonização se houver “doação de terras em usufruto ou entrega de títulos de propriedade a associação cooperativa de camponeses; auto-administração e ampla associação dos colonos em todas as fases da atividade agrícola; repúdio à especulação imobiliária”. 7) Aplicação plena à população rural dos direitos assegurados na Constituição, na legislação trabalhista e demais leis que beneficiam os trabalhadores urbanos com “garantia dos direitos civis e políticos, 5

Dez mandamentos das Ligas Camponesas para libertar os camponeses da opressão do latifúndio. s. n. t.

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repressão aos despejos, às polícias privadas e a todas as ofensas à integridade física, à segurança e ao trabalho camponês”. 8) Eliminação dos abusos do intermediário pela organização de cooperativas que garantam o abastecimento de alimentos e matériasprimas e organizem a comercialização dos produtos. 9) “Reestruturação da lavoura canavieira: 1) utilização de 10% da área dessa lavoura previstos no Estatuto Canavieiro para o cultivo de gênero alimentícios, em terras contínuas, de condições adequadas de fertilidade, mediante o planejamento do poder público, em forma de associação e cooperação camponesa; 2) zoneamento agrícola, visando a diminuir a área de cultivo da cana e elevar a sua produtividade através de melhorias tecnológicas; 3) sindicalização conjunta de assalariados da lavoura e da indústria açucareira; 4) representação de camponeses e assalariados no Conselho Nacional e no Regional do Instituto do Açúcar e do Álcool.” 10) Estimular, como “coroamento de todas essas medidas”, a criação das Ligas Camponesas em todo o território nacional porque elas “são a Lei e a Ordem contra o latifúndio, que é a anarquia e a desordem”. Parte dessas idéias foi aceita pelo ministro da Agricultura no anteprojeto de lei que enviou ao Parlamento. Reconhecendo, assim, a necessidade de elevação do imposto territorial com taxação progressiva que se elevará à proporção que aumente a extensão da propriedade; a regularização legal dos contratos de arrendamento e parceria; a extensão da legislação trabalhista aos trabalhadores rurais; e ainda uma adoção de processo sumário “para a solução dos litígios entre os proprietários, arrendatários, parceiros e trabalhadores nas zonas rurais”.6 Acreditamos, porém, que de todos esses itens são o 5° e o 6° aqueles a que mais se apega o deputado Francisco Julião, uma vez que está sempre a reclamar a necessidade de dar-se terra aos camponeses, exclamando que o “pedaço de terra que se dá ao trabalhador rural é como o galho de embaúba que se joga a quem se está afogando em um rio”. Dada a terra, acredita ele, torna-se mais fácil organizar-se o crédito a juros módicos, dar-se a orientação técnica agrícola e fundar-se as cooperativas que comercializarão os produtos. Vê-se, assim, que o citado deputado tem um programa que se diferencia dos planos da Sudene e da CRC, porque pretende beneficiar não uma pequena parte da massa rural trabalhadora, mas, de uma forma ou de outra, a todos os que mourejam a terra. Seu programa não é ainda um esquema rígido a ser aplicado às mais diversas regiões geográficas, o que seria uma catástrofe em uma região tão diferenciada como o Nordeste ou, pior ainda, 6

MONTEIRO FILHO, A. Exposição remetida ao Conselho de Ministros acompanhando o anteprojeto de Lei da Reforma Agrária.

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em um país continental como o Brasil. Certas medidas, como a elevação do imposto territorial, a sindicalização dos trabalhadores rurais, a regularização expressa dos contratos de arrendamento e parceria, o respeito aos direitos de cooperativas, a extinção das polícias privadas etc., são reconhecidas como exigíveis e necessárias, teoricamente, por quase todos. São raros os que ainda hoje afirmam publicamente o apoio à manutenção do status quo. Claro é, porém, que a aplicação desses princípios gerais deve ser feita consultando as condições locais, a fim de que a reforma agrária não seja levada ao fracasso e daqui a alguns anos não se esteja a pleitear uma reforma da reforma agrária. É bem verdade que deve haver um órgão supervisor que administre a aplicação das modificações da estrutura fundiária e esse órgão e a legislação devam ser bastante dinâmicos para acompanhar a evolução do problema e para ir dando as soluções que couberem, no espaço e no tempo, aos problemas que forem surgindo. Os conservadores acusam freqüentemente as Ligas de insuflar os trabalhadores contra os proprietários e as têm apontado como responsáveis por incêndios em canaviais. O deputado Julião defende-se dessas acusações assegurando não estar em seus propósitos a ação terrorista. Na realidade, todos os anos surgem notícias de incêndios que devoram centenas e, às vezes, milhares de toneladas de cana, dando prejuízos aos proprietários, pois a “cana queimada” tem de ser moída dentro de dois ou três dias e as usinas descontam uma importância perto de 10% do valor destas. Devese, porém, salientar que muitas vezes os incêndios são provocados por faíscas desprendidas das locomotivas da rede ferroviária ou das estradas de ferro das usinas, ou muitas vezes os próprios cortadores de cana sem nenhuma orientação política ateiam fogo ao “partido” a fim de obter maior produção; freqüentemente, é o proprietário ou o usineiro que manda pôr fogo no partido de cana em área restrita, a fim de apressar o fornecimento, uma vez que esse apressamento compensa a diminuição de 10% do valor do produto, permitindo a mais rápida conclusão da safra. Acreditamos que em alguns casos um trabalhador injustiçado ou julgando-se injustiçado por seus patrões procure vingar-se tornando-se incendiário de canaviais; estes seriam alguns casos entre os demais que enumeramos e não justificam o ambiente de temor que levou muita gente a afirmar serem os incêndios previamente organizados e executados por aviões, como se divulgou pela imprensa na presente safra.7 Incendiários aprisionados pela polícia nas declarações que prestaram não têm, até hoje, demonstrado a participação das Ligas Camponesas nesses atos de verdadeiro terrorismo.8 Há, assim, muita fantasia, muito boato, propagado propositadamente, com o fito de incompatibilizar as Ligas com o poder público e provocar a repressão a estas, 7 8

Diário de Pernambuco, 16, 17 e 18 jan. 1962. Diário de Pernambuco, 21 e 28 dez. 1961.

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como há também os boatos provocados pelo pânico que atinge a parte da população quando esta defronta com problemas sociais mais agudos e fica temerosa de ver-se prejudicada pelas soluções dadas a eles. Choque mais sério ocorreu recentemente na Paraíba, no Engenho Miriri, entre associados das Ligas Camponesas e o proprietário de um latifúndio de 15 mil hectares. A maioria dos moradores dava um dia de “cambão” por semana ao proprietário como aluguel de um sítio de meio hectare. Alertados de que um dia de “cambão por semana equivalia a 52 dias anuais e que aos salários correntes esses 52 dias representavam Cr$ 6.240,00 anuais, importância que em dois anos correspondia ao valor da terra que lavravam”, despertaram os agricultores, passando a pleitear o direito de pagar o foro em dinheiro. Eliminava-se, assim, o “cambão”. O proprietário não aceitou a proposta, ameaçando expulsar os moradores que fossem filiados às Ligas. Surgiram daí divergências entre moradores e vigias do coronel, resultando, até o dia 17 de março de 1962, em lutas nas quais “dois capangas haviam sido mortos a foice e a machado; um administrador ferido; um vigia desaparecido com um balaço na coxa; e dois camponeses fulminados por tiros de 38”. Sobre o choque, o dr. Sílvio Porto, chefe de Polícia da Paraíba, assim se expressou: O apelo à Polícia para solução de problemas como os das Ligas Camponesas é de um primarismo que incomoda. Essa prática é defendida somente pelas organizações fascistas que atribuem ao poder armado a solução de todos os problemas. Ao contrário de se apelar para a Polícia, esse apelo deveria ser endereçado ao Congresso Nacional, aos órgãos de desenvolvimento econômico.

Enquanto isso, o líder do governo na Assembléia Estadual, deputado Vital do Rêgo, afirmava em nome do governo atribuir os crimes de Miriri a “uma estrutura que considera superada e cuja reforma deve ser empreendida urgentemente”.9 Dessas declarações se conclui que o governo paraibano se acha compenetrado do momento que atravessamos e já compreendeu que a questão não é um caso de polícia, que os problemas sociais têm de ser solucionados pelo equacionamento das necessidades da nação. Só os grandes proprietários menos esclarecidos é que lutam desesperadamente, expulsando de suas terras os sócios influentes das Ligas, a fim de deter a maré montante que estas representam. A arregimentação das massas rurais, porém, não é feita apenas por políticos de esquerda como Julião. A Igreja entrou na disputa do controle das massas e padres e bispos passaram a organizar também seus sindicatos rurais: em alguns municípios ela começa a agir, sindicalizando os

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Diário de Pernambuco, 18 mar. 1962.

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trabalhadores, orientando-os e defendendo-os nas lutas contra os grandes proprietários quando surgem choques. Alguns padres jovens, porém, escudados na recente Encíclica “Mater et Magistra”, do papa João XXIII, quando afirma que “os trabalhadores da terra devem sentir-se solidários uns aos outros e colaborar na criação de iniciativas cooperativistas e associações profissionais ou sindicais” (Papa João XXIII, p.85), tratam de congregar os homens do campo que seguem os seus conselhos. Entre os sacerdotes empenhados na organização dos camponeses, o mais famoso é o jovem padre Antônio Melo, da Cidade do Cabo, em Pernambuco. Sua fama, como a de Julião, se estende por todo o território nacional e, segundo os jornais do Recife, de 7 de abril de 1962, ao visitar Pernambuco o governador Magalhães Pinto, de Minas Gerais, mostrou desejo de conhecê-lo e com ele manteve, no Aeroporto dos Guararapes, longa palestra sobre os problemas agrários do Nordeste. Moço, disposto, corajoso, é o líder dos camponeses de sua paróquia, tendo tido forte desavença com os administradores das terras da Usina José Rufino, após sua desapropriação pelo estado e a tentativa de expulsão dos moradores desta. Fala bem, expõe realisticamente os problemas e aponta as soluções sem meias palavras. Sua fama iniciou-se quando a Companhia Pernambucana de Borracha Sintética (Coperbo) começou a tentar expulsar das terras que vendera à CRC os trabalhadores aí existentes, trabalhadores que deveriam, é lógico, ser pela compradora transformados em colonos. A estes o governo oferecia Cr$ 30.000,00 em troca das plantações, das casas e de sua saída. Os trabalhadores recusaram-se a sair; violências foram praticadas e o padre que já assistia trabalhadores do Engenho Tiriri, filiados às Ligas Camponesas, veio em seu auxílio. Iniciada a luta, procurou ele se entender com o prefeito, com o deputado eleito pelo município e com os jornais, sem obter resultados. Abriu então as baterias contra o governador, alegando que, “eleito pelo povo, deveria ele resolver os problemas sociais”. Unido aos camponeses, movimentou a Juventude Universitária Católica, encheu as ruas de faixas, fez comícios, prometeu juntar-se aos trabalhadores se a polícia fosse usada contra eles e chamou a atenção de todos sobre a injustiça que se queria cometer. Após tanto movimento, o governo cedeu, uma vez que “anunciou por escrito que os camponeses ficariam nas suas casas até que fossem instalados convenientemente nos lugares a eles destinados” (Meira, 1961c). Como focalizou com rara inteligência o jornalista Mauritônio Meira, o padre tem idéias definidas que expõe sem subterfúgios, pois diz: “É tão errado começar a organizar camponeses dentro da teoria bolchevista como da católica”, e acrescenta: “O camponês não tem nada com as brigas ideológicas, ele tem é que reclamar o seu direito e cumprir os seus deveres”. Apesar de discordar ideologicamente de Julião, afirma ser este positivo 83

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com o “despertar de consciência que despertou no camponês”. Conclui com afirmativas como esta: A revolução agrária tem de ser feita, mas não devemos partir do preconceito de que deve ser feita pacificamente, como dizem os capitalistas; ou na briga, como querem os comunistas. A forma de revolução são as circunstâncias históricas que vão dizer. Se ela não puder ser feita pacificamente, então teremos de enfrentar a realidade da luta,

e continua quando botamos um carro para correr na estrada, não podemos dizer por antecipação qual a marcha que vamos usar. A estrada é que escolhe a marcha, como a reforma agrária vai escolher seus meios. Se for necessário um tapinha, daremos um tapinha, como daremos o murro se preciso (Meira, 1961c).

No Rio Grande do Norte, no famoso vale do Seridó, o monsenhor Emerson Negreiros vem sindicalizando os trabalhadores rurais e enfrentando a ira dos proprietários que o ameaçam constantemente. Ele, porém, disposto, corajoso, apoiado pelo bispo de Natal, enfrenta o ataque dos inimigos e continua a sindicalizar seus camponeses ao mesmo tempo em que lhes dá assistência médica e dentária. Afirma por isso que “a Igreja deve-se tornar mais corajosa e mais cristã, combatendo o latifúndio”. Não são apenas esses, porém, os sacerdotes nordestinos que se voltam para os problemas do povo e procuram dar aos camponeses a assistência de que necessitam. Alguns bispos são hoje famosos pela porfia que enfrentam em favor de trabalhadores rurais, como D. Avelar Brandão, de Teresina, D. Severino Mariano, de Pesqueira, D. José Terceiro, de Penedo, e D. José Távora, de Aracaju. Do bispo de Penedo, dizem pessoas influentes e melindradas com sua atuação que se preocupa mais com a assistência aos colonos de Pindorama do que com as orações em sua catedral, que dá mais tempo aos problemas da terra que aos do céu. E ele, impassível, move céus e terras a fim de conseguir créditos, adubos, arados e conselhos técnicos para os camponeses de sua diocese. Esse movimento de sindicalização é tão atuante que hoje existem no Nordeste dezenas de sindicatos rurais à espera de reconhecimento pelo Ministério do Trabalho, cabendo ao ministro realizar com presteza o reconhecimento destes. Partem os padres com tanta ênfase para a sindicalização dos trabalhadores do campo que acreditamos terem eles compreendido que se a Igreja continuasse a desdenhar os problemas terrenos perderia o apoio do homem do campo, justamente aqueles junto aos quais ela tem maior influência. Vê-se, assim, que no Nordeste a sorte está lançada e que os paliativos de uma política de colonização a longo prazo, concebida tecnicamente em gabinetes, sem consultar os interesses dos que mourejam a terra, dificil84

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mente contribuirão para minorar a situação dos trabalhadores sem terra e solucionar a tremenda crise em que se debatem. Os preços dos gêneros de primeira necessidade são elevados, sobem cada vez mais, enquanto os salários continuam inferiores ao mínimo. A miséria levou o trabalhador rural a tomar conhecimento de sua força, a não esperar pelos doutores, a exigir seus direitos. Passou o medo dos proprietários e dos feitores e, organizados por políticos de esquerda, como Julião, ou por sacerdotes católicos, como Antônio Melo, passam os trabalhadores rurais a exigir maior compensação pelo seu trabalho. Agitam-se, esperneiam, são perseguidos, reagem e exigem a cota correspondente à sua participação na produção, desejam melhores dias. Daí concluirmos que estamos vivendo em um período crítico: ou as reivindicações populares justas são atendidas e são dadas ao homem do campo condições de vida compatíveis com a dignidade humana, ou a revolução prevista pelo governador Aluísio Alves será inevitável e a estrutura fundiária arcaica que aí temos ruirá, arrastando em sua queda tudo que nela se apóia. Sua situação é tão difícil, suas condições são tão precárias que a essa altura ninguém a defende, todos a atacam, desde os comunistas até os católicos, divergindo apenas pela maneira mais ou menos rápida, mais ou menos radical de como planejam destruí-la. Assim a velha estrutura montada pelos portugueses no século XVI, que foi se modificando pouco a pouco nos quatro séculos de nossa evolução histórica, acha-se hoje diante do maior impacto com que se deparou, impacto mais sério, acreditamos, que o enfrentado no fim do século XIX com a abolição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Anteprojeto de Lei de Reforma Agrária. ÁVILA, F. B. de. A reforma agrária: a lei e o plano em recomendações sobre a reforma agrária. p.217. CALLADO, A. Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco. p.35. Dez mandamentos das Ligas Camponesas para libertar os camponeses da opressão do latifúndio. s. n. t. Diário de Pernambuco, 16, 17 e 18 jan. 1962. Diário de Pernambuco, 21 e 28 dez. 1961. Diário de Pernambuco, 18 mar. 1962. MEIRA, M. Nordeste, as vítimas da imprevisão. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 9 dez. 1961. . Nordeste, as sementes da subversão. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 11 nov. 1961. . Nordeste, a Revolução de Cristo. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 2 dez. 1961. MONTEIRO FILHO, A. Exposição remetida ao Conselho de Ministros acompanhando o anteprojeto de Lei da reforma agrária, s. d. PAPA JOÃO XXIII. Carta Encíclica “Mater et Magistra” sobre a recente evolução da Questão Social à Luz da Doutrina Cristã. Síntese Política, Econômica e Social, ano III, n.11, p.85. Reflexões sobre a pré-revolução brasileira III. Jornal do Comércio, Recife, 22 mar. 1962.

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PARTE II

OLHARES TEÓRICOS

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4 O CONCEITO DE CAMPONÊS E SUA APLICAÇÃO À ANÁLISE DO MEIO RURAL BRASILEIRO

(1969)*

Otávio Guilherme A. C. Velho

Nos últimos anos tem havido, em círculos acadêmicos e não acadêmicos, uma rediscussão de certas categorias sociológicas tradicionalmente utilizadas para descrição e interpretação de nossa realidade. Essas categorias rediscutidas foram em geral transpostas de análises que se referiam originalmente à Europa ocidental, tal como ocorre com a noção de feudalismo, de campesinato etc.1 Como se pode perceber pelos exemplos citados, em boa parte das vezes essa discussão tem relevância especial para a análise e interpretação do meio rural. Isso talvez se explique em parte com a observação de Max Weber de que “De todas as comunidades, a constituição social dos distritos rurais são as mais individuais e as que relação mais íntima mantêm com determinados fatos históricos” (Gerth e Mills in: Weber, 1967). Em outras palavras, os fatos rurais tenderiam sempre a uma certa especificidade local, em contraste com a tendência à universalidade dos fatos urbanos. Sabemos muito bem, de nossa própria experiência nacional, quanto as situações urbanas concretas podem afastarse desse modelo universalizante, bem como, na medida em que se rejeite um dualismo ingênuo e estanque, como diz o próprio Weber, que “não existe uma sociedade rural separada da comunidade urbana, no presente, em grande parte do mundo civilizado”. De qualquer forma, no entanto, posta de maneira geral, a observação de Weber parece conter algo de verdadeiro. * Publicado originalmente como VELHO, O. G. A.C. O conceito de camponês e sua aplicação à análise do meio rural brasileiro. América Latina (Rio de Janeiro), v.12, n.1, p.96-104, 1969. 1 Há, porém, casos em que a aplicação original não se refere à Europa, como acontece com a noção de burguesia nacional, utilizada no contexto de países asiáticos sujeitos à ação do colonialismo europeu, especialmente China.

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O conceito de camponês e sua aplicação à análise do meio rural brasileiro (1969)

Neste artigo, nossa preocupação básica gira em torno da noção de camponês. Na literatura científica, e mais ainda na literatura política, tem-se utilizado essa expressão de forma um tanto indiscriminada. Contra isso se levantou Caio Prado Júnior argumentando a favor da utilização mais precisa da noção de camponês, reservada então para designar exclusivamente o pequeno agricultor que é empresário de sua própria produção (Prado Júnior, 1966, p.204-5).2 Não se trata absolutamente, como à primeira vista pode parecer, de uma questão de importância menor. Por trás dessa discussão está a idéia de que o abuso da noção de camponês deve-se a uma série de “desvios”, que vão desde a subestimação da penetração do capitalismo no campo brasileiro, levando à proletarização rural, até a pregação mais ou menos ingênua de projetos de reforma agrária em que a pequena propriedade é privilegiada e considerada um ideal a ser assegurado.3 No plano mais estritamente político estaria a questão de saber-se que gênero de reivindicações estaria mais próximo da consciência de nossos “rurícolas”, se a posse da terra ou a salarial (Gerth e Mills in: Weber, 1967). O conceito de camponês referia-se originalmente a um fato bem localizado estrutural e historicamente, não tendo sido inclusive o termo criação de cientistas sociais, mas apenas tendo sido apropriado por esses. O maior ou menor alargamento no uso desse conceito dependerá em grande parte de seu valor explicativo nas diversas situações concretas.4 Esse problema já teve de ser enfrentado pelos estudiosos no próprio âmbito europeu, em especial ao transpô-lo dos quadros do feudalismo para a situação de liberto 2

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“... a massa rural brasileira tem sido indiscriminadamente assimilada, no seu conjunto, a um campesinato. Isto é – se queremos dar a essa expressão ‘campesinato’ um conteúdo concreto e capaz de delimitar uma realidade específica dentro do quadro geral da economia agrária – trabalhadores e pequenos produtores autônomos que, ocupando embora a terra a títulos diferentes – proprietários, arrendatários, parceiros... –, exercem sua atividade por conta própria. Esse tipo de trabalhadores, a que propriamente se aplica e a que se deve reservar a designação de ‘camponeses’, forma uma categoria econômico-social caracterizada e distinta dos trabalhadores dependentes que não exercem suas atividades produtivas por conta própria e sim a serviço de outrem, em regra o proprietário da terra que, nesse caso, não é apenas proprietário, mas também e principalmente empresário da produção. Os trabalhadores de que se trata neste último caso são empregados, e suas relações de trabalho constituem prestação de serviços. ... Observaremos por ora que é à categoria de trabalhadores empregados e não de camponeses propriamente que pertence a grande maioria da população trabalhadora rural brasileira. E os trabalhadores empregados constituem não somente essa maioria, mas ainda ocupam os principais e decisivos setores da economia agrária do país. Trata-se ou de assalariados puros (quando então a relação de emprego e dependência com respeito ao proprietário, empregador e empresário da produção é indisfarçável), ou de ‘meeiros’ que só formalmente se assemelham a parceiros propriamente, mas são de fato ‘empregados’, tanto quanto os assalariados.” Ver a resenha de Caio Prado Júnior sobre Posse e uso da terra e desenvolvimento socioeconômico do setor agrícola (CIDA). América Latina, ano 10, n.3, p.117-24, 1967. Para Bengala, por exemplo, a questão é discutida, entre outros, por Ramkrishna Mukherje em The Dynamics of a Rural Society. Berlim: Akademie-Verlag, 1957.

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que tenta adaptar-se a uma economia capitalista de mercado, tal como vão encontrá-lo Marx, Weber e outros.5 Todavia, parece certo que esse maior ou menor alargamento na utilização do conceito não poderá deixar de observar a dicotomia camponês versus proletário rural,6 e desde já, quanto a isso, não parece restar dúvida de que a advertência de Caio Prado Júnior sem dúvida tem sua importância. Trata-se, porém, de uma questão empírica a ser investigada: a de verificar como situar as diversas ocorrências concretas que se apresentam em nosso meio rural. Desde já, fica consignado que certamente não se trata de tarefa fácil, dada a variedade de manifestações locais de agrupamentos e classes. Seria necessário, a par de uma cuidadosa análise das precárias informações estatísticas existentes, que se realizassem cuidadosos trabalhos de campo que cobrissem áreas efetivamente representativas de complexos regionais significativos. É bem possível, inclusive, que no decorrer de um estudo dessa natureza a própria problemática inicial fosse modificada ou enriquecida. De qualquer maneira, a existência de uma problemática bem determinada e altamente significativa, que se enquadraria na questão maior das classes e dos agrupamentos sociais no meio rural, certamente evitaria que os estudos se tornassem puramente descritivos. No sul do estado do Pará, municípios de Marabá e São João do Araguaia, encontramos uma situação bem determinada, cujo estudo, embora não tenha ainda sido aprofundado, talvez já possa, em virtude de certas peculiaridades muito interessantes, servir como um dos apoios empíricos iniciais para penetrarmos na problemática de que falamos, e eventualmente auxiliar no estabelecimento de uma teoria geral da estrutura de classes no meio rural brasileiro.7 Uma característica básica dessa zona é que possui áreas vastíssimas que ainda não foram ocupadas, as quais, para efeitos práticos, prolongam-se “indefinidamente” para oeste. A ocupação começou a dar-se, inicialmente, por causa da extração da castanha. Hoje, porém, em virtude de uma série 5

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Isso sem mencionar o alargamento na utilização do conceito que obriga à clássica distinção entre camponeses pobres e camponeses ricos (entre os quais podem estar incluídos o kulak russo, o farmer americano etc.). Nesse sentido, nossa preocupação aqui prende-se exclusivamente ao chamado camponês pobre. Outra dicotomia, mas que aqui não nos interessa, apesar de sua importância para o antropólogo, é entre situação camponesa e tribal, entendida a primeira como aquela que está de alguma forma integrada num Estado que a transcende, ao contrário da segunda, em que não existem detentores de poder exteriores a ela e a que esteja submetida. Ver Eric R. Wolf. Peasants. Nova Jersey: Foundations of Modern Anthropology Series, Prentice-Hall, 1966. (Ed. Brasileira: Sociedades camponesas, Rio de Janeiro: Zahar, 1970.) Já tratamos dessa situação, sob outro enfoque, em Análise preliminar de uma frente de expansão da sociedade brasileira, Revista do Instituto de Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, v.IV, n.1. Ver, ainda, de OLIVEIRA, R. C. de. Problemas e hipóteses relativos à fricção interétnica: sugestões para uma metodologia. Ibidem.

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de fatores, alguns diretamente ligados à castanha,8 vai assumindo uma importância cada vez maior a atividade agrícola, a qual já é a principal responsável pela fixação mais permanente em novas áreas. Um dos fatores responsáveis por essa nova situação é uma espécie de homestead em vigor a partir de 1964, que assegura ao indivíduo e a seus descendentes a posse de até 100 hectares de terras devolutas que tenham ocupado e onde tenham realizado certas benfeitorias. Essa posse, portanto, para quase todos os efeitos, equivale à propriedade da terra. A diferença essencial – a impossibilidade de vendê-la – agiria no sentido de fortalecer ainda mais a permanência do padrão de ocupação atual. Esses pequenos agricultores não sofrem a interferência direta de ninguém sobre sua produção propriamente, a não ser sob a forma de certas tentativas incipientes de estímulos, em especial à plantação de arroz, da parte de nova agência do Banco do Brasil e de uma cooperativa recém-criada sob os auspícios do Banco do Brasil, ambos funcionando em Marabá.9 Em relação à intensidade da vida comunal, existem dois tipos sociais na área: aquele que vive isolado com sua família no meio da mata e o que vive em pequenas “comunidades” rurais. Aliás, deve-se dizer que em geral essas “comunidades” se iniciam por um empreendimento isolado. Aos poucos, outras famílias nucleares vão, então, chegando ao local, em geral parentes do primitivo ocupante (num caso que tivemos ocasião de observar, havia mais de sessenta pessoas, quase todas aparentadas entre si, vivendo juntas). Pode-se imaginar, inclusive, que o mesmo processo venha a ocorrer com muitos dos atuais moradores isolados na mata.10 Atualmente, no entanto, são poucos os que se dedicam exclusivamente à atividade agrícola. Durante a época da safra da castanha vão trabalhar nos castanhais, onde recebem um “salário disfarçado”. Possuem, portanto, dois papéis sociais bem distintos, o de apanhador de castanha e o de agricultor. Fixando-nos em sua face agrícola, vemos, ainda, que ao lado disso têm, de certa forma, de se adaptar a uma situação que é, sob certos aspectos, 8

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Como a flutuação no preço da castanha e um enrijecimento do sistema de arrendamento de castanhais. Uma pressão indireta são os atritos esporádicos com arrendadores de castanhais em torno de limites, que em um caso, pelo menos, em que havia muitos posseiros envolvidos, chegou a ser discutido em nível estadual. Parece não haver muito acordo entre os diversos autores a respeito da importância da vida comunal na caracterização do camponês. Enquanto Lefèbvre (La vallée de Campan. Paris: PUF, 1963), por exemplo, acentua bastante esse aspecto, Wolf (Peasants. Nova Jersey: Foundations of Modern Anthropology Series, Prentice-Hall, 1966. Ed. Brasileira: Sociedades camponesas, Rio de Janeiro: Zahar, 1970), seguindo Marx (O dezoito brumário de Luís Bonaparte), prefere acentuar o individualismo do camponês. Talvez na verdade se trate de uma tensão não contraditória entre o individualismo e a comunidade onde o camponês vê projetada sua própria imagem. De qualquer maneira, Marx, citado por Wolf, já se referia ao camponês francês do século XIX.

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Camponeses brasileiros

exatamente o inverso da situação camponesa clássica. Ao passo que nessa temos, como regra geral, uma abundância de mão-de-obra ao lado de recursos em terra relativamente escassos, aqui temos terras praticamente ilimitadas e uma relativa escassez de mão-de-obra, o que, combinado, atrai um fluxo migratório, vindo especialmente do Maranhão; o que os aproxima, sob esse aspecto, da situação do pioneiro norte-americano em sua marcha para o Oeste. Isso sem mencionar o fato de não se tratar de uma situação dada tradicionalmente e sedimentada ao longo dos anos, mas, sim, de estar em processo de constituição. No entanto, apesar desses aspectos – combinação com uma atividade que obedece a outro sistema, situação não dada tradicionalmente, terras abundantes e mão-de-obra escassa –, vemos que no essencial satisfazem o critério estabelecido por Caio Prado Jr. para a caracterização de camponeses, ou seja, trata-se de pequenos agricultores autônomos. Os dois últimos fatores, aliás, servem, no caso, para auxiliar a manutenção do sistema, evitando que surja uma estratificação intransponível e sociologicamente significativa entre proprietários e não proprietários e mantendo, assim, uma homogeneidade social bastante alta. Uma possível mudança de sistema é substituída por um contínuo desdobramento no espaço do mesmo sistema. A hipótese que temos é que a situação descrita representa, em termos brasileiros, um caso-limite. Seu valor, numa análise comparativa em âmbito nacional, estaria exatamente nisso. É limite por estar, sem chegar a ser uma sociedade tribal, próximo do ponto ideal de máximo afastamento possível, física e socialmente, dos principais centros (sua produção é quase exclusivamente de subsistência), caracterizando, assim, uma situação de integração mínima no sistema nacional (e internacional). É ainda um caso-limite pela situação extrema de abundância de terras e de escassez de mão-de-obra.11 Além disso, pode-se comprovar empiricamente que o aparecimento e a manutenção do tipo camponês na área são, precisamente, conseqüência, antes de mais nada, da presença desses três fatores como caso-limite, de tal maneira que, supondo um sistema, os três constituiriam variáveis independentes, e o tipo camponês a variável dependente do sistema. Numa configuração “estruturalista”, portanto, tudo levaria a crer que o quarto elemento do sistema – o camponês definido como o pequeno agricultor autônomo –, para que o sistema seja coerente, teria de representar também um caso-limite. Ou seja, segundo essa hipótese, e supondo, para argumentar, que as situações camponesas que viessem a ocorrer no Brasil teriam 11

Interessante observar que a atividade de coleta da castanha, apesar de contígua, já caracteriza um sistema bem diferente em relação a essas variáveis, uma vez que a disponibilidade de terras já é mais limitada, por depender da existência de castanheiros em volume rentável e por ficar na dependência das vias de transporte, tratando-se de um produto de exportação e, por esta mesma razão – tratar-se de um produto de exportação –, sua integração com o sistema nacional, e especialmente com o internacional, já é bem maior.

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O conceito de camponês e sua aplicação à análise do meio rural brasileiro (1969)

de guardar a mesma relação com essas três variáveis, o grau máximo de autonomia camponesa possível no Brasil estaria próximo desse caso e de seus congêneres que se manifestem em frentes de expansão agrícola da sociedade brasileira. Dessa maneira, as demais situações rurais no Brasil se distribuiriam desde esse máximo de “campesinidade” até um máximo de “proletarização” no caso-limite oposto, passando, no intervalo entre os dois extremos, por toda uma série de casos intermediários que deverão ser analisados para atingir, em relação aos aspectos selecionados, uma visão global e organizada do meio rural brasileiro. terra (>) mão-de-obra ( 3 salários

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1,06

Pensionistas e aposentados

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Trabalhadores assalariados

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8,51

Fonte: Pesquisa de campo (2004).

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Estes dados de renda devem ser tomados de forma cautelosa e em termos aproximados, porque a imensa maioria de unidades familiares carece de um método rigoroso e confiável de contabilidade doméstica.

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Diversidade do campesinato: expressões e categorias

As circunstâncias atuais de maior dependência do mercado e baixa capacidade de geração de renda da comunidade negra, por meio das estratégias tradicionais de subsistência, forçaram a adoção de novas iniciativas econômicas, teoricamente mais intensivas em produção e mais rentáveis em termos monetários. As novas iniciativas de piscicultura, de manejo de açaizais nativos na várzea e de criação de galinhas em granja vão nessa direção. Os três projetos são de gestão e participação coletiva, ainda que restritos aos associados fundadores. A participação das famílias nestes novos projetos produtivos é parcial – menos de uma em cada duas famílias tem algum membro envolvido, e somente 31% dos novos empreendedores participam em mais de um projeto comunitário. Em geral, nestas novas iniciativas produtivas, destaca-se uma elevada capacidade organizativa interna dos associados e uma regulamentação sistemática dos trabalhos coletivos a serem desenvolvidos. Apesar disso, atualmente, o funcionamento dos três projetos mostra dificuldades convergentes de execução: todos eles estão nas primeiras fases de implantação, os retornos econômicos são ainda baixos, e a assistência técnica tem sido, de momento, irregular, ineficiente e pouco sistemática. De fato, esses novos empreendimentos encaixam-se de maneira diferente na dinâmica organizacional das famílias. O projeto comunitário de manejo de açaizais, por exemplo, adapta-se razoavelmente bem à idiossincrasia do grupo humano. Não em vão, os quintais das casas são autênticos sistemas agroflorestais e as novas técnicas silvícolas propostas para aumentar a produção da palmeira de açaí são convergentes com as utilizadas ancestralmente pelas populações quilombolas da Amazônia nos arredores das suas residências. Em contrapartida, os projetos de piscicultura e a criação de galinhas, embora sejam iniciativas com um grande potencial de geração de renda, são atividades dependentes de apoios externos, econômicos e técnicos, ante a incapacidade endógena de se investir em insumos externos (alimentação artificial) e a falta de experiência histórica do grupo humano com relação a elas. O seguimento de ambas as iniciativas permite confirmar os fatores de dependência pela compra de ração e de assessoramento técnico, circunstâncias que as convertem em vulneráveis. As melhorias nas condições de vida, a reprodução social e cultural do povoado e a manutenção de práticas agroextrativistas de baixo impacto ambiental não se desenvolvem de forma autista, alheias à sociedade maior que lhes rodeia. Desenvolvimento endógeno não é sinônimo de autarquia nem de endêmico. Daí, o significado neste ensaio da relevância do apoio institucional nos processos de etnodesenvolvimento, em que as instituições públicas ou privadas devem erguer-se como agentes sociais estimuladores e catalisadores das ações levadas a cabo pelas famílias camponesas, sem cair em práticas paternalistas “de cima para baixo”, nem patrimonialistas. 179

Comunidade negra de Itacoã

Em teoria, as diretivas institucionais para se promover o desenvolvimento local nas comunidades rurais giram em torno de dois conceitos: 1) garantir os serviços sociais nos assentamentos locais sem os quais não há sociedade humana, pequena ou grande, que funcione; 2) apoiar econômica e tecnicamente, de forma eficiente e profissional, aquelas novas iniciativas produtivas requeridas ante as transformações ocorridas no mundo rural amazônico nas últimas três décadas. Em relação ao primeiro ponto, Itacoã, apesar de ser uma localidade carismática e, de certa maneira, privilegiada em investimentos públicos locais, apresenta deficiências nos serviços sociais: assistência sanitária precária, falta de recursos educativos de qualidade, transporte fluvial irregular e privado, inexistência de rede elétrica e de saneamento básico e canalização parcial de água. A respeito do segundo ponto, como já foi mencionado, a assistência técnica dos órgãos públicos é deficitária pela sua ineficiência e pouca sistematização. Estas duas disfunções das políticas institucionais não deixam de ser obstáculos para a implementação eficaz de políticas de desenvolvimento na localidade de estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O território, o manejo da biodiversidade e a organização social interna são os três pilares básicos para o desenvolvimento das comunidades rurais amazônicas. As três categorias interatuam e complementam-se formando um “tripé”, utilizando um símile, capaz de sustentar toda uma estrutura social organizada sempre e quando tais pilares não estão frágeis. Em linhas gerais, a comunidade negra de Itacoã tem os “três pés” do “tripé” em condições aceitáveis. O território, no qual vivem há mais de 120 anos, foi recentemente reconhecido pelas instituições públicas competentes, sendo demarcado e titulado como propriedade coletiva. A riqueza de árvores frutíferas, a variedade de recursos potenciais existentes nas matas e o acervo cultural de plantas medicinais nos quintais das residências familiares mostram como a biodiversidade do lugar se encontra em bom estado de conservação. A mobilização política, a capacidade organizativa e as estreitas relações interpessoais de seus habitantes são bons indicadores da fortaleza e consistência das estruturas sociais da localidade em estudo. Contudo, apesar de ser verdade que a comunidade negra de Itacoã apresenta, recordando o símile, um “tripé” com aceitável estrutura nos seus “pés”, é possível, por meio de uma análise mais profunda, detectar algumas fissuras em cada uma delas. Com relação ao território, a localidade quilombola está densamente povoada, ou seja, a relação entre o número de habitantes e a superfície espacial 180

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

é alta. As cifras demográficas manifestam uma tendência ao crescimento populacional para os próximos anos em razão da presença dominante de pessoas jovens, com idades compreendidas entre zero e 21 anos, ao passo que as dimensões da área titulada estão estabilizadas, sem aumentos previstos para os próximos anos. Alguns sintomas de alerta apontam nesta direção: há propensão à baixa produtividade da terra por diminuição do tempo de repouso e aparição de conflitos de gestão familiar e comunitária da várzea, minoritária em extensão. A respeito da biodiversidade, a ação conjunta de pressão demográfica e limitação territorial intervém contra o tradicional ciclo de fertilização da agricultura itinerante de “corte e queima” e pode chegar a comprometer a benevolência ambiental do sistema agrícola tradicional. Caso ocorra esta ameaça, a riqueza biológica do espaço de uso comum pode ser prejudicada de maneira especial, especialmente em alguns dos seus ecossistemas de “reserva”: várzea e capoeira. Por último, a organização social da comunidade apresenta descontinuidades e diferenciações significativas: apesar do elevado grau de participação política e organizativa do povoado, a presença não majoritária de famílias com algum membro insertado nas novas iniciativas econômicas e a constatação empírica de certo desequilíbrio social intracomunitário (nas condições econômicas, residenciais e, mesmo, de apoderamento simbólico) gera algumas incertezas acerca da extensibilidade das transformações socioeconômicas e políticas levadas a cabo pela associação comunitária, representante legal da comunidade e proprietária da terra. Em relação à categoria de análise proposta no ensaio, a comunidade negra de Itacoã apresenta potencialidades e limitações ao etnodesenvolvimento. Um primeiro elemento potencialmente capaz de favorecer a melhoria das condições socioeconômicas e culturais da localidade é a estreita relação da sua população residente com a natureza. As diferentes pesquisas etnobotânicas elaboradas na área de estudo confirmam a magnitude e a relevância da sabedoria popular com relação ao ambiente natural e seus possíveis aproveitamentos em benefício próprio, como garantia de subsistência e reprodução social do grupo humano. O calendário das atividades produtivas de acordo com os ciclos naturais e a manutenção da biodiversidade nos quintais, áreas de várzea e capoeira, bem como a grande variedade de espécies vegetais úteis identificadas e coletadas (com 90 espécies de plantas medicinais e 48 árvores ou arbustos de interesse alimentício e/ou comercial reconhecidos), são alguns dos exemplos dessa manifestação epistemológica. A comunidade negra de Itacoã apresenta um elevado acervo de plantas medicinais em seu território, especialmente nos quintais das casas, com a presença apreciável de plantas não autóctones em virtude da histórica comunicação com a metrópole e a elevada mestiçagem dos habitantes da 181

Comunidade negra de Itacoã

região. Destaca-se, finalmente, que o conhecimento botânico e medicinal das plantas está mais concentrado em algumas pessoas de idade mais avançada e do sexo feminino, porém se observa certa propagação cognitiva por toda a comunidade por meio da transmissão oral dos conhecimentos, intercâmbio não monetário e práticas cooperativas. Nas últimas duas décadas, em Itacoã, à idiossincrásica capacidade de trabalho e sacrifício humano de seus habitantes tem-se unido uma significativa capacidade de organização e articulação política comunitária, constituindo um segundo fator potencial de desenvolvimento local. Atualmente, o fortalecimento sociopolítico da comunidade é uma constatação empírica que impede práticas autoritárias e arbitrárias de agentes políticos e econômicos externos como a compra de terras e de votos e exige da administração pública competente o cumprimento da legislação vigente e dos direitos sociais constitucionalmente consensuados como universais pela sociedade moderna brasileira. A proximidade da localidade de estudo com a cidade de Belém, apesar da relação dialética estabelecida entre ambas, apresentadas neste ensaio, é, em seu conjunto, outro fator catalisador dos processos de etnodesenvolvimento. Isso se deve ao fato de se substituírem parcialmente as carências sociais presentes na comunidade, se diminuírem os efeitos prejudiciais da comercialização de produtos primários de baixo valor no mercado, se evitarem relações de dependência com agentes intermediários típicas de regiões rurais afastadas dos núcleos urbanos e de difícil acesso e, por último, se aproximarem geograficamente as instituições públicas envolvidas no desenvolvimento comunitário. Entretanto, os vetores ambientais, socioeconômicos e políticos que atuam como fatores limitantes ao etnodesenvolvimento são também visíveis em Itacoã. A baixa produtividade da terra é um deles. As causas e conseqüências desse fenômeno geram uma crise no modelo de auto-suficiência alimentar e de independência técnica dessas populações, acrescida ainda mais pela limitação territorial e o crescimento populacional. As barreiras estruturais e sociais ao desenvolvimento são endêmicas na região amazônica e traduzem-se em carências nos serviços de saúde e educação, transporte irregular e privado e baixo alcance no abastecimento de água, luz e saneamento básico. Estas e outras funções são competência das diferentes administrações públicas, responsáveis também por apoiar financeira e tecnicamente as novas iniciativas produtivas das comunidades rurais direcionadas para uma melhor inserção no mercado e maior grau de diversificação de suas atividades produtivas. As evidências de campo e a análise das atuações institucionais manifestam a necessidade de melhorias com relação à oferta de serviços públicos e assessoramento técnico. As relações comerciais entre os produtores locais e o centro urbano são outro fator limitante no que diz respeito às estratégias produtivas orienta182

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

das para a venda de produtos naturais. O escasso controle dos preços das mercadorias vendidas, o caráter varejista da comercialização e a inviabilidade efetiva de implantar sistemas de maior beneficiamento dos recursos primários produzidos são elementos condicionantes que restringem a capacidade de geração de renda. Por último, vale sublinhar que as intervenções realizadas pelas instituições públicas e de direito privado em Itacoã não podem ser enquadradas como políticas para o etnodesenvolvimento, não foram construídas juntamente com a comunidade local e desenvolvem-se sob o paradigma clássico de “cima para baixo”. Além disso, a contínua chegada de projetos à comunidade está carregando os seus moradores de obrigações, compromissos e financiamentos, provocando mudanças nos ritmos de trabalho e no calendário das atividades produtivas, o que está conduzindo a uma rápida tendência homogeneizadora do modelo de agricultura familiar.

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Comunidade negra de Itacoã

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7 DESENVOLVIMENTO DO EXTRAVISMO DO AÇAÍ E MUDANÇAS NA SOCIOECONOMIA DE RIBEIRINHOS MARAJOARAS* José Antônio Magalhães Marinho

INTRODUÇÃO

O extrativismo do açaí é uma atividade praticada secularmente na Amazônia e atualmente apresenta grande dinamismo nessa região (Mourão, 1999). Todavia, até pouco tempo, essa atividade voltou-se basicamente para o auto-consumo, razão pela qual as concentrações de açaizeiros (Euterpe oleracea Mart.) eram pouco alteradas pela ação humana, visto que a abundância natural desses palmeiras garantia a quantidade de frutos necessária ao atendimento das necessidades domésticas. Assim, o manejo restringia-se basicamente às touceiras ou “toiceiras”1 dos quintais, onde os frutos geralmente eram coletados. Esta dinâmica, no entanto, começa a mudar com a progressiva demanda do açaí para o mercado, verificada no decorrer das três últimas décadas. Neste período, além das motivações vinculadas historicamente à sua importância alimentar (valor de uso), a extração desse fruto passa a ser determinada cada vez mais por interesses de natureza econômica (valor de troca), decorrentes da ampliação do seu comércio (Nascimento, 1999). Isto fez que em diversas áreas do estuário amazônico o açaí se tornasse uma das principais fontes de renda, sobretudo com o declínio de outras atividades agroextrativistas tradicionais. * Este artigo traz, de maneira sucinta, algumas questões discutidas a fundo em dissertação recentemente apresentada ao curso de Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento do Naea/UFPA, sob orientação da Prof. Dra. Rosa E. Acevedo Marin. 1 Esta expressão é usada pelos extratores do rio Pracuúba. Por esta razão, será privilegiada neste trabalho, até porque se refere aos açaizais localizados nesse rio.

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Desenvolvimento do extrativismo do açaí

No médio rio Pracuúba, na Ilha de Marajó, a memória social informa que, há pouco mais de duas décadas, a extração desse fruto para fins comerciais era pouco desenvolvida. Isso porque os primeiros circuitos comerciais desse produto, apesar de remontarem à década de 1940, eram limitados. Além do mais, eram associados aos circuitos de comercialização da borracha, do arroz (Oryza sativa L.) e da banana (Musa sp. div.), produtos importantes economicamente na época e que eram negociados com base no escambo e nas relações de patronagem típicas do sistema de aviamento. Todavia, o posterior enfraquecimento dessas relações, acompanhado do crescente interesse de mercado pelo açaí, possibilita a emergência de um novo ambiente econômico. Neste, cada vez mais, em lugar da exclusividade típica das relações de aviamento, a comercialização desse fruto passa a se definir na esfera da concorrência. Com isso, a liberdade de compra e venda e as transações comerciais monetarizadas também começam a prevalecer. Por sua vez, refletindo esse movimento de valorização do açaí, verificamse também sensíveis mudanças na interação dos ribeirinhos com a natureza. O crescente interesse por esse fruto estimula cada vez a intervenção humana na composição florística das áreas inundáveis. Isto com o intuito de favorecer o desenvolvimento e a ampliação dos açaizais. Em conseqüência, esses palmeirais passam a dominar a paisagem, manifestando formalmente a crescente importância desse recurso. Nesse contexto, observa-se que a emergência da economia do açaí contribuiu para estabelecer importantes mudanças nas relações ecológicas e socioeconômicas no médio rio Pracuúba. Em decorrência deste fato, a questão principal que se discute é até que ponto essas mudanças romperam com aquelas relações tradicionais verificadas no desenvolvimento inicial dessa economia e como se vêm projetando no âmbito das interações homem–natureza, por meio da atividade do manejo. Esses aspectos carecem ainda de uma apreciação mais pormenorizada, sob risco de se incorrer facilmente em simplificações. Com este intuito, o que segue é uma rápida discussão sobre algumas interpretações do extrativismo vegetal na Amazônia. Em seguida, resgatam-se alguns fragmentos históricos que vêm marcando a exploração do açaizeiro no estuário amazônico. Faz-se, então, uma abordagem do desenvolvimento da economia do açaí no médio rio Pracuúba. Por fim, intenta-se uma descrição analítica da realidade concreta da extração e do manejo, bem como das relações socioeconômicas imanentes a essas atividades e à comercialização do açaí.

ALGUMAS INTERPRETAÇÕES SOBRE O EXTRATIVISMO VEGETAL NA AMAZÔNIA O extrativismo vegetal na Amazônia vem se desenvolvendo historicamente por dois processos de obtenção de recursos: a coleta e o aniquilamento. 186

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

No primeiro processo, a extração é fundamentada na coleta de produtos florestais, maneira pela qual a integridade da planta-matriz é mantida. A obtenção pelo aniquilamento, por sua vez, ocorre quando a fonte geradora do recurso é abatida ou quando a velocidade de regeneração desta fonte se mostra inferior à capacidade de extração (Homma, 1992; Allegretti, 1994). Como exemplos de extração por coleta e por aniquilamento destacam-se o extrativismo da seringa e da madeira, respectivamente. Ainda de acordo com esses autores, nessa região existem algumas espécies cuja extração pode ocorrer tanto por aniquilamento quanto por coleta. Um dos exemplos mais conhecidos é observado na exploração do açaizeiro, palmeira da qual se pode obter o açaí, pelo processo de coleta, e o palmito, por meio do aniquilamento. A intensificação da extração por aniquilamento pode, entretanto, reduzir drasticamente a coleta, uma vez que a planta matriz é inevitavelmente abatida. Mas isto será visualizado com mais clareza a seguir. Antes, é necessário evidenciar, ainda que sucintamente, algumas interpretações que vêm polarizando as discussões sobre a viabilidade ambiental e socioeconômica do extrativismo vegetal na Amazônia. Nesse quadro, especialmente nas últimas décadas, merece destaque um conjunto de interpretações que tem apontado não só as limitações, mas o próprio fim do extrativismo vegetal nessa região. De acordo com essas interpretações, tal atividade constitui um dos grandes males que, além de impedir o desenvolvimento socioeconômico regional, gera e reproduz a pobreza, pois, ao não estimular a modernização dos processos produtivos, contribui para a manutenção de relações socioeconômicas injustas (Benchimol, 1992; Homma, 1992; Amin, 1997). Todavia, esse viés interpretativo tem sido alvo de muitas críticas relacionadas mormente ao caráter simplificado com que se tem abordado essa atividade. Uma das principais limitações apontadas neste sentido refere-se ao próprio conceito de extrativismo adotado. De acordo com Rego (1999), o conceito que serve de base para essas interpretações restringe-se apenas à coleta de produtos naturais com produtividade baixa ou declinante. Por isso, essas abordagens encontram-se ainda presas ao dilema “extrativismo puro” ou “domesticação”. Em conseqüência, qualquer atividade de manejo, criação ou beneficiamento da produção, mesmo que dentro de um sistema produtivo e de um modo de vida extrativos, não constitui mais extrativismo, mas domesticação. Todavia, nessa região, especialmente na esfera do extrativismo vegetal, a utilização desse conceito é indevida. Em primeiro lugar, porque se restringe ao aproveitamento dos estoques de recursos primitivos, sem a intervenção racional para ampliá-los (Rego, 1999). Todavia, como mostra este autor, apoiado em Diegues (1996), é sabido que grupos primitivos contribuíram 187

Desenvolvimento do extrativismo do açaí

para a própria biodiversidade da floresta amazônica, introduzindo espécies nativas e exóticas e praticando formas de manejo tradicionais que favoreciam o desenvolvimento das espécies úteis em detrimento das demais. Neste contexto, a opção pelo uso do conceito de “extrativismo puro” no estudo da extração vegetal na Amazônia conduz a interpretações enganosas, posto que a floresta dessa região já vem sofrendo intervenção humana há milênios. Além do mais, a exploração econômica dos ecossistemas amazônicos ocorre também de maneira integrada. Nesses ecossistemas, a especificidade na exploração dos recursos renováveis reside não apenas no uso imediato (coleta de recursos animais e vegetais), mas nos usos mediatos (cultivos, criações e beneficiamento da produção). Estes são praticados, cada vez mais, por produtores autônomos e organizados e dentro dos valores e crenças das sociedades que habitam esses ecossistemas (Neto, 1997; Rego, 1999). Assim, na Amazônia, a apreensão do extrativismo pressupõe a inserção dessa atividade num universo em que a interação homem–natureza gera conhecimento empírico e simbólico capaz de orientar os diversos sistemas de manejo. É com base neste ponto de vista que se deve abordar a dinâmica atual da extração vegetal na região.

O EXTRATIVISMO DO AÇAÍ NO ESTUÁRIO AMAZÔNICO O açaizeiro (Euterpe oleracea Mart.) é uma palmeira nativa da Amazônia. Nessa região, encontra condições pedológicas e climáticas adequadas ao seu desenvolvimento e apresenta-se distribuída de maneira mais densa na área do estuarina amazônico, na qual ocorre nas várzeas, geralmente em forma de toiceiras (Calzavara, 1972). Por isso, a extração do açaí é uma atividade influenciada tanto pela dinâmica das safras quanto pelas condições ambientais peculiares a esses ecossistemas varzeiros. O aproveitamento desses açaizais, efetuado por homens, mulheres e crianças, vem sendo feito historicamente de maneira integrada. Diversos estudos evidenciam que o açaí sempre foi utilizado para a produção de “vinho”, os estipes das palmeiras, quando amadurecidos, para a construção de casas rústicas, e as folhas, para coberturas e paredes provisórias, além do palmito, que também é amplamente aproveitado (Calzavara, 1972; Nogueira, 1997). Com isto, verifica-se que o açaizeiro sempre foi apropriado em sua totalidade, fornecendo diversos produtos fundamentais para a sobrevivência humana no interior amazônico. Contudo, até o final dos anos 60, o produto mais importante extraído dessa palmeira era o açaí. Tal importância decorria do fato de que o “vinho” desse fruto constituía elemento essencial na dieta das famílias que o 188

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

coletavam, além de ser eventualmente comercializado, adquirindo então o sentido de possibilidade de geração de renda (Mourão, 1999). Não obstante, a importância do açaí decorria muito mais do valor de uso, como alimento, do que do seu valor de troca, como meio de obtenção de renda. A partir dessa época, entretanto, a crescente demanda pelo palmito redimensionou profundamente a exploração dos açaizais. Isto porque o abate das palmeiras passou a ser orientado, cada vez mais, por determinações exclusivamente econômicas. Em conseqüência, ensejou-se um intenso processo de devastação dos açaizais, pois o intuito da prática extratora visava abater o máximo de palmeiras possíveis, com a finalidade de abastecer as inúmeras fábricas palmiteiras que atuavam livremente na área estuarina (Mourão, 1999). Com isto, em pouco mais de dez anos, uma séria crise socioeconômica e ecológica deflagrou-se em diversos municípios situados nessa área, onde tal processo se intensificava. A atenuação desta crise só começou a partir de 1985, quando o estabelecimento de uma legislação disciplinadora da ação dessas fábricas permitiu a restauração gradativa do potencial produtivo dos açaizais. Isto é evidenciado em diversos estudos (Arzeni e Jardim, 2004; Grossmann et. al., 2004) que mostram que a extração do açaí se vem firmando progressivamente, até em antigas áreas onde a extração de palmito tomou feições extraordinárias, como nos municípios de Gurupá e Abaetetuba. Neste quadro, é possível afirmar que o extrativismo do açaí se reveste novamente de grande importância para a reprodução familiar no estuário amazônico. Desta feita, porém, tal importância não decorre mais apenas do caráter alimentar (valor de uso), mas progressivamente da possibilidade de geração de renda monetária com a comercialização (valor de troca) desse fruto. De fato, atualmente, os circuitos comerciais desse produto tornaram-se muito mais abrangentes do que aqueles de outrora. Em estudo de 1995, Nascimento (1999) evidencia numerosas estruturas comerciais de açaí que interligam a cidade de Belém a diversos municípios do Marajó, baixo Tocantins, Guamá e outras localidades mais próximas. É da ampliação dessas estruturas comerciais e da influência do mercado que a economia do açaí se desenvolve no médio rio Pracuúba, como se observa adiante.

A DINÂMICA DA ECONOMIA DO AÇAÍ NO MÉDIO RIO PRACUÚBA O rio Pracuúba nasce nos extensos igapós da localidade Pau-de-rosa, em São Sebastião da Boa Vista, sul da Ilha de Marajó, e estende-se por esse município até a foz, onde deságua na margem esquerda do rio Pará. É um rio muito conhecido nas feiras urbanas devido ao expressivo volume de 189

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açaí que coloca no mercado, o que faz de São Sebastião da Boa Vista um importante produtor desse fruto na Ilha. Em 2003, por exemplo, apenas na Feira e no Porto do Açaí, em Belém, foram comercializadas 229.754 rasas de açaí oriundas desse município, aproximadamente 5.877.350 kg de frutos. Em relação aos outros municípios da Ilha, apenas Ponta de Pedras superou esta produção nesse ano, com 391.490 rasas (9.787.000 kg) comercializadas nessas feiras (Secon, 2003). Os açaizais que conferem grande importância econômica ao rio Pracuúba, entretanto, não estão distribuídos uniformemente. Na verdade, estão localizados sobretudo no seu médio curso (Figura 7.1), que se estende, grosso modo, do vilarejo “Pedras” até a localidade “Jorité”. À jusante deste perímetro, esses palmeirais aparecem apenas em pequenas formações e, a montante, ocorrem de maneira esparsa, onde são explorados economicamente apenas no inverno, única época em que o escoamento da produção pode ser feito por via fluvial. A ocupação humana nesse rio está diretamente relacionada à ocorrência dos açaizais. Por isto, no seu médio curso, é mais densa. Nesse perímetro, em meados de 2004, estimou-se a presença de mais de 1.000 habitantes, os quais podem majoritariamente ser referidos como ribeirinhos – termo este utilizado amplamente na Amazônia para designar o campesinato que reside à margem das águas e vive da extração e do manejo de recursos florestais-aquáticos e da agricultura em pequena escala (Hiraoka, 1993). Os ribeirinhos do médio rio Pracuúba apropriam-se dos açaizais de maneira privada, o que permite o reconhecimento de certa heterogeneidade do ponto de vista socioeconômico entre eles. Isto se verifica na medida em que ao lado de “sem-terras” convivem grandes, médios e um numeroso contingente de pequenos “proprietários” de açaizais. Concretamente, são esses atores que desenvolvem e organizam a extração e a comercialização do açaí, como será visto a seguir. O incremento da economia desse fruto, entretanto, é recente nessa área. A memória social informa que até meados da década de 1970 o extrativismo da borracha, bem como o cultivo da banana e do arroz, constituíam as atividades econômicas mais importantes. Essas atividades agroextrativistas voltavam-se, em sua maior parte, para o abastecimento dos entrepostos comerciais de Santo Antônio e Cocal, que se localizavam em São Sebastião da Boa Vista, e o entreposto de Jararaca, situado no município de Muaná. Isto ocorria porque os grandes comerciantes donos desses entrepostos financiavam e/ou compravam essa produção interiorana, mediante o estabelecimento de relações peculiares ao sistema de aviamento. Introduzido na Amazônia desde o período colonial, esse sistema fundamentado no adiantamento de mercadoria a crédito consolidou-se durante o apogeu da extração da borracha (Aramburu, 1994), quando os extratores 190

Figura 7.1. Mapa de localização do médio rio Pracuúba em São Sebastião da Boa Vista.

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recebiam mercadorias e utensílios de trabalho dos seringalistas, que eram comerciantes, para pagar com o látex que extrairiam no seringal. Como geralmente os bens adiantados eram supervalorizados em relação à produção extrativa, o extrator sempre ficava endividado e, assim, sob a vigilância dos patrões para que não fugisse e não desviasse a produção (Teixeira, 1980). A opressão e a exploração, portanto, eram as marcas desse sistema à época. Daí, o aviamento passou a se remodelar, adquirindo um aspecto menos policial, o que não comprometeu a sua utilização no interior amazônico nem a manutenção de suas relações injustas. Pelo contrário, essas relações continuaram se reproduzindo, ainda que envoltas numa moralidade especial que caracterizava o sistema. Nesta, “a fidelidade comercial do freguês era um termo de uma relação na qual o outro termo eram as obrigações morais que os patrões tinham para com seus fregueses em casos de dificuldades” (Aramburu, 1994, p.83), ou seja, por meio dessa moralidade estabeleciam-se relações de poder nas quais, em troca da possibilidade de ajuda, o freguês era obrigado a negociar sua produção com o patrão, sob risco de perder o crédito e a confiança deste. No bojo dessas relações é que a comercialização do açaí germina no médio rio Pracuúba. O primeiro agente a desenvolver essa atividade, de acordo com a memória social, enviava pequenos carregamentos de fruto para os entrepostos comerciais mencionados, onde também comercializava a sua produção de arroz e borracha. Ao final de cada quinzena, acertava as contas, ocasião em que recebia o pagamento da produção em forma de mercadorias como sal, cachaça, tabaco e até pirarucu salgado, ou seja, nesta época, a comercialização do açaí era desmonetarizada e baseavase em relações de exclusividade, devido ao reduzido número de agentes econômicos interessados na compra desse fruto e à conseqüente falta de concorrência que isso acarretava. A comercialização do fruto, grosso modo, permaneceu assim a até o final da década de 1960, quando começou a apresentar importantes redefinições. A principal delas materializou-se na ampliação do circuito comercial para Belém, o que, de um lado, contribuiu para expandir a demanda pelo fruto e, de outro, possibilitou o estabelecimento de transações com outros agentes econômicos, cujas práticas não obedeciam a nenhuma moralidade especial. Além disso, pagavam a produção em dinheiro. Em conseqüência, a economia do açaí dava um importante salto no sentido de se libertar das relações de aviamento, as quais também já começavam a dar sinais de enfraquecimento. De fato, sobretudo a partir de meados da década de 1970, essas relações começaram a se enfraquecer em São Sebastião da Boa Vista. O que estava por trás dessa crise era o declínio dos entrepostos comerciais locais. 192

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Sustentados em grande parte pela lucrativa exportação de madeira, esses entrepostos estavam sendo duramente atingidos por uma lei de 1974 que impedia a exportação desse produto em tora e, em particular, pelas mudanças no capitalismo mundial, que elevaram as taxas de juros e comprimiram drasticamente o tempo de pagamento dos empréstimos (Aramburu, 1994). Isto fez que os lucros e os financiamentos em longo prazo que sustentavam a rede de aviamento para o interior findassem, comprometendo inevitavelmente as atividades que dela dependiam. Neste contexto, marcado de um lado pelo enfraquecimento dessa rede de aviamento e das atividades agroextrativistas nela baseadas e de outro pela ampliação do circuito comercial do açaí para o mercado urbano de Belém, as atividades relacionadas à extração e ao comércio desse fruto tornam-se progressivamente importantes no médio rio Pracuúba. Nesse processo, as interações dos ribeirinhos com os açaizais adquirem uma nova dimensão. Como a obtenção de renda passa a depender cada vez mais desses açaizais, a interação começa a se orientar no sentido de aumento da produtividade. Disso resulta não apenas a conservação, mas a intensificação do manejo dos açaizais, prática que localmente é norteada sobretudo pelo conhecimento empírico, adquirido na interação diária com o ecossistema local. No âmbito das relações socioeconômicas, por sua vez, corporificam-se relações de trabalho e de comercialização diversas da época do aviamento. Embora casos de exclusivismo e subordinação típicos dessa época ainda persistam, nota-se que a economia do açaí se estrutura, cada vez mais, com base na liberdade de compra e venda, o que se reflete na progressiva autonomia dos “proprietários” de açaizais em relação aos agentes comerciais. Uma descrição analítica dessas relações é feita a seguir, começando pelas interações concretas instauradas pelos ribeirinhos no e com os açaizais.

O PROCESSO DE EXTRAÇÃO DO AÇAÍ A extração do açaí, em termos amplos, não é uma atividade tão simples quanto parece. Envolve, inicialmente, a localização dos cachos maduros, o que nem sempre é fácil, dada a variedade de nuanças dos frutos no açaizal. Em seguida, pressupõe a coleta dos cachos selecionados, fase na qual o extrator tem de escalar a palmeira e, depois, fazer a debulha dos cachos coletados (Figura 7.2) e a catação, etapa cuja finalidade principal é retirar os caroços que ainda não estão em condições de ser aproveitados. Assim, concretamente, a extração do açaí constitui um processo complexo que exige muita habilidade, experiência e cuidado do extrator, sob risco de cair da palmeira ou ser picado por serpentes que costumam ficar camufladas no meio das toiceiras. 193

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Figura 7.2. Jovem extrator debulhando o açaí num paneiro de arumã. Foto: Marinho, 2004.

Na área do médio rio Pracuúba, esse processo adquire grande intensidade nos períodos do ano em que se registram as maiores quantidades de açaí amadurecido, ou seja, nas safras. Anualmente, ocorrem duas safras: uma abrange os meses de fevereiro e março e outra estende-se de maio até meados de novembro. Na primeira, conhecida localmente como safra do inverno, grande parte das palmeiras não frutifica e a extração é extremamente afetada pelas freqüentes chuvas que molham as palmeiras e dificultam a coleta dos cachos. Na safra do verão, esses empecilhos praticamente desaparecem, fato que, aliado à grande frutificação das palmeiras, aumenta de maneira exponencial a quantidade de açaí coletado. Nesses períodos, a extração do fruto envolve toda a família. Esta, entendida como um grupo social que habita o mesmo espaço e tem por objetivos comuns a cooperação econômica e a reprodução (Simonian, 2003), apresenta como autoridade doméstica, geralmente, um casal, que distribui as atividades econômicas entre si e os filhos menores. Tal distribuição é definida, em linhas gerais, de acordo com o sexo e a idade de cada membro do grupo, o que não significa um rígido seccionamento de funções entre o 194

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chefe da família, as crianças (geralmente meninos) e a esposa. Não obstante esta, em geral, desempenhar as atividades consideradas menos pesadas no açaizal, também desenvolve os serviços domésticos praticamente sozinha. Quando a família se desloca para os açaizais, seja ela de um “sem-terra”, de um “pequeno” ou até mesmo de um “médio proprietário”, as tarefas são distribuídas, em geral, da seguinte maneira: ao homem (chefe da família) e às crianças cabe a coleta do açaí e à mulher cabe a debulha e a catação. Na prática, entretanto, esta divisão de tarefas é muito fluida. Quando já existem muitos cachos de açaí coletados, por exemplo, é comum que todos participem da debulha, visando terminar logo o serviço. As mulheres, por sua vez, também podem ajudar na coleta propriamente dita, embora, pelo observado, isto seja menos comum. Deste modo, nota-se que o sistema econômico praticado pelas famílias extratoras do médio Pracuúba, assim como outros grupos ribeirinhos da Amazônia, requer uma polivalência de conhecimentos e habilidades (Acevedo e Castro, 1998), o que é fundamental, em última análise, para a reprodução do grupo familiar. Nas grandes propriedades, onde os açaizais são constantemente manejados, um extrator pode chegar a coletar, com a ajuda dos filhos e da esposa, até 50 latas de açaí por dia. Já nos açaizais menores, esta quantidade pode baixar para 25 a 30 latas por dia (até o meio-dia). Mesmo assim, esse aproveitamento não é desprezível quando se leva em consideração que pouquíssimos extratores conseguem atingir a casa das 20 latas/dia, quando estão trabalhando sozinhos. Isto porque gastam muito tempo na tarefa da debulha e da catação, que são demoradas e maçantes. Na prática, isto significa que o trabalho feminino e, em especial, o infantil são fundamentais para elevar a renda familiar. Todavia, o envolvimento de mulheres e crianças no processo extrativo tem um custo social. No caso das mulheres, este custo vem na forma da dupla jornada de trabalho, que elas têm de enfrentar diariamente. Em relação às crianças, especialmente as do sexo masculino, esse custo vem por meio de um processo de aprendizado precoce que as expõem à dura realidade extrativa desde os seis ou sete anos de idade. Nesse sentido, pode-se dizer que a extração do açaí, na área do médio rio Pracuúba, não é um trabalho tipicamente masculino e tampouco somente de trabalhadores adultos. A mão-de-obra feminina e a infantil são amplamente utilizadas nos açaizais, sem praticamente nenhuma restrição. Mas esta complementaridade e polivalência típica dos grupos ribeirinhos amazônicos têm um preço: a sobrecarga de trabalho das mulheres e o envolvimento precoce das crianças numa atividade arriscada até mesmo para extratores mais experientes. Entretanto, no âmbito local, isso parece normal, pois já está enraizado nos costumes e contribui, em última análise, para a reprodução familiar. 195

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O MANEJO DOS AÇAIZAIS O manejo dos açaizais desenvolve-se especialmente nos meses de entressafra do açaí. Começa, assim, timidamente em setembro, quando este fruto escasseia, intensificando-se nos meses seguintes. Retrai-se em fevereiro e março, época na qual ocorre uma pequena safra de inverno, readquirido, após este período, um novo impulso até o final do mês de maio, quando a grande safra do verão se inicia. Não se trata, entretanto, de um sistema de manejo baseado em orientações técnicas. Trata-se, isto sim, de sistemas de manejo tradicionais, respaldados essencialmente no conhecimento empírico e na representação que cada ribeirinho faz de seu açaizal, prática, aliás, comum às populações amazônicas (Acevedo e Castro, 1998; Rego, 1999). Por esta razão, concretamente, esses sistemas apresentam-se diversificados, embora o que os impulsione seja o desejo de elevar a produtividade de açaí, não obstante a comercialização dos palmitos também se mostrar importante. Mediante essa diversidade de manejo, é possível diferenciar pelo menos três grupos de açaizais no médio rio Pracuúba. O primeiro deles, restrito basicamente às poucas grandes propriedades, é constituído de açaizais em que se pratica uma espécie de “manejo intensivo” (Grossmann et al., 2004). Neste sistema, a vegetação de maior porte já foi completamente eliminada com a derruba e o anelamento das árvores,2 ficando apenas o açaizeiro. Por este motivo, as atividades que permanecem sendo praticadas nesses açaizais são, basicamente, o corte da vegetação rasteira, por meio da roçagem, e o desbaste das toiceiras, por meio do abate das palmeiras excedentes. Cabe destacar que esta última atividade é de suma importância para o processo de manejo, pois, além de reduzir a competição entre as palmeiras, o que eleva a produção de frutos, possibilita a geração de renda, pela comercialização do palmito abatido. Assim, permite aos “proprietários” de açaizais obter recursos não apenas para custear o manejo, como para adquirir produtos fundamentais para a manutenção da família numa época de reconhecida dificuldade econômica. Além do grupo de açaizais intensivamente manejados, outro grupo que se destaca é aquele em que se desenvolve uma espécie de “manejo intermediário” (Grossmann et al., 2004). A principal característica desse sistema é a completa eliminação da vegetação sem valor econômico, conservando-se apenas as espécies que apresentam algum interesse comercial e/ou utilidade para as famílias, como a andirobeira (Carapa guianensis Aubl.) e a pracuubeira (Mora paraensis Ducke). Por isso, nesses açaizais, a derruba e 2

Trata-se de fazer um anel em torno do tronco das árvores, a fim de que sequem lentamente sem causar danos à vegetação subjacente.

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o anelamento das árvores são seletivos e o desbaste das toiceiras constitui, também, atividade primordial. No médio rio Pracuúba, este tipo de açaizal é dominante, sendo que dois fatores contribuem para isto. O primeiro vincula-se à preocupação de se disponibilizar, na propriedade, outros recursos comercializáveis além do açaí, o que seria essencial na hipótese de enfraquecimento da economia desse fruto. O segundo relaciona-se à idéia amplamente aceita de que as palmeiras precisam de um pouco de sombra para que seus frutos fiquem bem “pretos”, ou seja, de ótima qualidade para a comercialização. Logo, percebe-se que o “manejo intermediário”, além de se basear em conhecimento empírico, envolve também estratégias que buscam garantir a reprodução social futura. Ainda com relação ao grau de intervenção nos açaizais, é possível discernir um terceiro grupo, no qual a intervenção se mostra ainda incipiente. Segundo Grossmann et al. (2004), predomina nesses açaizais um sistema de “manejo moderado”, cuja principal característica é a retirada somente de algumas espécies da flora, consideradas indesejáveis por causa de espinhos, como os murumuruzeiros (Astrocaryum murumuru), por exemplo. Todavia, este sistema de manejo atualmente se mostra residual, devido às mudanças de mentalidade que apontam no sentido da ampliação dos açaizais. Verifica-se, então, que o manejo dos açaizais no médio rio Pracuúba é uma atividade dinâmica. Ainda que apresente formas diferentes, o limite que separa cada uma delas é fluido, até mesmo dentro de uma única propriedade. Assim, o sistema “moderado” de hoje pode ser o “intermediário” ou o “intensivo” de amanhã – tudo depende do conhecimento empírico e da visão do “proprietário”3 do açaizal. Além disso, trata-se de uma atividade importantíssima do ponto de vista econômico, não apenas porque contribui para aumentar a produtividade de frutos, mas porque gera renda numa época de economia francamente enfraquecida.

AS ATIVIDADES COMPLEMENTARES Além da extração do açaí e do manejo dos açaizais, outras atividades como a caça, a pesca, a agricultura e o artesanato também são desenvolvidas no médio rio Pracuúba. Essas atividades, entretanto, voltam-se muito mais ao atendimento das necessidades de uso do que de troca. A exceção é o

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O uso das aspas, neste caso, busca expressar o sentido parcial com o qual o termo proprietário está sendo empregado, pois se refere a agentes (proprietário de açaizal) que têm domínio sobre áreas que formalmente são de propriedade exclusiva da União, como as áreas de várzeas, por exemplo.

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artesanato de rasas que, notadamente nas épocas de safra, se transforma num importante meio de obtenção de renda, em especial para as famílias que possuem apenas pequenos açaizais ou que nada possuem. A apropriação dos recursos da fauna ocorre particularmente por meio das caçadas. Localmente, a principal modalidade de caçada é a “lanternação”, a qual consiste em incursões noturnas na mata, nas quais o “lanternador” (caçador munido de lanterna e espingarda) busca abater determinadas espécies de mamíferos de hábitos noturnos, como o tatu-de-rabo-mole (Lysiurus unicinctus) e a paca (Coelogenys paca). Todavia, como se trata de uma prática feita geralmente em grupo e as caças almejadas atualmente se tornam cada vez mais raras e ariscas, o que é obtido nas “lanternações” direciona-se apenas para o consumo da família. A pesca também é desenvolvida pelos ribeirinhos pracuubenses. Não se trata de uma atividade de grande porte, pois envolve apenas o uso de pequenas malhadeiras, sobretudo nos igarapés, onde capturam pequena quantidade de peixes, como a traíra (Hoplias malabaricus) e o jeju (Hoplerythrinus unitaeniatus). Mas, assim como no caso da “lanternação”, o produto da pesca volta-se predominantemente ao consumo familiar. A agricultura de corte e queima, por sua vez, é praticada em particular nas terras de famílias que sempre tiveram tradição na produção de farinha. Nestas propriedades, nas áreas de terra firme, as roças são preparadas nos meses de junho e julho, queimadas e plantadas nos meses de agosto e setembro e desmanchadas no verão seguinte, sobretudo quando a safra do açaí começa a fracassar. Por se tratar de pequenas formas de cultivo, a maior parte da produção serve apenas para atender às necessidades domésticas, fato que não impede a venda de alguns quilos de farinha, de vez em quando. Diferente desta atividade, bem como da caça e da pesca, é o artesanato de rasas (Figura 7.3), que são os recipientes em que o açaí é acondicionado do açaizal até os locais onde é comercializado. Por isso, sobretudo no decorrer das safras, têm uma demanda elevada. Nesses períodos, o preço da rasa varia de R$ 0,70 até R$ 1,00. Há famílias que produzem até oitenta unidades por semana, conseguindo obter uma renda que, embora bastante inferior àquilo que se poderia com a extração do açaí, tem grande importância para quem não possui açaizais. Assim, não se pode deixar de reconhecer a importância do artesanato como uma atividade geradora de renda complementar para as famílias pracuubenses. Pode-se dizer o mesmo da caça, da pesca e da agricultura que, embora não sejam importantes na geração de renda, de vez em quando, sobretudo quando o açaí fracassa, contribuem para garantir o sustento das famílias. No fundo, isso mostra que a exploração econômica dos açaizais ocorre de forma integrada a outras práticas, fato que permite a reprodução social mesmo quando a extração de frutos escasseia. 198

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Figura 7.3. Acima, a artesã começando a tecer uma rasa e, abaixo, uma rasa já acabada. Foto: Marinho, 2004.

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AS RELAÇÕES DE TRABALHO NOS AÇAIZAIS As relações de trabalho na extração do açaí As duas principais relações de trabalho estabelecidas entre “peconheiros” 4 e “proprietários” de açaizais no médio rio Pracuúba são a meia e as taxas fixas. A primeira envolve principalmente “peconheiros” e “médios proprietários”, já a segunda estrutura-se basicamente entre “peconheiros” e “grandes proprietários”. Todavia, tanto num caso quanto no outro, o extrator é sempre submetido a mecanismos de exploração e, até mesmo, de coerção. A meia é uma forma de contrato social muito comum nas relações de trabalho envolvendo extratores de açaí e “proprietários” de açaizais na Ilha do Marajó. Na prática, concretiza-se por meio de um breve acerto entre o “peconheiro” e o “dono” do açaizal, no qual, além de se comprometer em dividir a produção coletada, o extrator abdica tacitamente de comercializar a parte do açaí que lhe cabe (Mourão, 1999; Nascimento, 1999). Nestes termos, quando o extrator apanha dez latas de açaí, cinco latas ficam para ele e cinco vão para o “dono” do açaizal, agente que, geralmente, só efetua o pagamento ao extrator depois de comercializar toda a produção. Mesmo assim, embora se fundamente nesses mecanismos, esta relação é aceita pelos “peconheiros” como uma relação justa. Eles não manifestam descontentamento quanto a ela e muito menos quanto aos “proprietários” que a adotam como regra em seus açaizais. Isto porque a meia já se “naturalizou”, ou seja, já se tornou tão comum que mesmo aqueles agentes que são desfavorecidos por ela não a questionam, deixando-se levar pela força da expressão que sugere igualdade. Além da meia, outra relação de trabalho que se estabelece nos açaizais pracuubenses é o pagamento de taxas fixas. Esta relação social caracteriza-se fundamentalmente pelo fato de o “peconheiro” receber apenas uma pequena parcela do valor de cada lata de açaí que extrai, independentemente das variações de preço desse produto. Nesta relação, não interessa ao “peconheiro” se a lata do açaí vai ser vendida a R$ 5,00 ou a R$ 10,00, pois sabe que o pagamento que vai receber por cada uma delas se mantém imutável diante das flutuações de preço tão comuns no decorrer da safra. Em visita a uma das três propriedades em que essa relação se estabelece, constatou-se que, de junho até meados de agosto de 2004, o “peconheiro” recebia apenas R$ 2,00 por lata de açaí extraída. Contudo, neste mesmo período, o preço desta unidade de medida sempre se manteve em torno de R$ 8,00, no próprio rio Pracuúba. Em Belém, onde o açaí dessa propriedade era negociado, obtinham-se preços ainda melhores. Mesmo assim, tomando 4

Esta expressão, no médio rio Pracuúba, é usada para designar os extratores que atuam nos açaizais de outrem.

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como referência o preço de R$ 8,00 verifica-se que, a cada lata comercializada, 75% (R$ 6,00) do preço fica com o “dono” do açaizal, ao passo que somente R$ 2,00, ou seja, 25% daquele valor vai para o extrator. Assim, para cada quatro latas que extrai, o “peconheiro” recebe apenas o equivalente a uma. O estabelecimento dessa relação tão desigual não se encontra, entretanto, desprovido de justificativas. A principal delas fundamenta-se na necessidade de manejo dos açaizais. Segundo os “proprietários”, a despesa para manter um açaizal limpo e apto para produzir mais frutos é muito grande. Como não trabalham com financiamento de nenhum banco, argumentam que não podem melhorar o pagamento dos “peconheiros”, ainda que, assim mesmo, expressem em seus discursos a idéia de que ajudam esses extratores, até dividindo seus ganhos com eles. É sempre o pessoal daqui que apanha. Eles chegam dizendo eu quero defender o da bóia, aí eu digo: pois não, vamos comer juntos (...). Eu pago pra eles por lata. Conforme o preço, eu pago um real, dois reais, não posso pagar muito porque a gente tem de ganhar o da gente e a despesa é muito grande para fazer um trabalho desse [entenda-se manejo do açaizal]. (Entrevista, agosto de 2004)

Esses “proprietários” de açaizais não mencionam, entretanto, que o palmito extraído na atividade do manejo contribui para financiar essa atividade. Levando em consideração este fato, o argumento de que não se pode melhorar o pagamento dos “peconheiros” por causa do manejo torna-se bastante fragilizado, sobretudo quando se verifica que essa atividade, em tais açaizais, está resumida, em grande parte, ao desbaste das toiceiras, como mostrado. Este argumento, portanto, não serve para justificar a deterioração do pagamento dos “peconheiros”, pois nessas propriedades o manejo, muitas vezes, até se autofinancia. Assim, com uma breve análise das principais modalidades de relações de trabalho estabelecidas na extração do açaí, percebe-se que existe um discurso persuasivo buscando justificá-las. Daí muitas vezes nem serem reconhecidas pelos “peconheiros” como relações desiguais e, mesmo quando isto ocorre, devido ao fato de a espoliação do trabalho tomar feições extraordinárias, esses extratores nem sempre podem escapar porque a situação em que se encontram não permite.

As relações de trabalho no manejo dos açaizais O manejo dos açaizais no médio rio Pracuúba é praticado em propriedades de todos os tamanhos. Nas de menor extensão, a atividade envolve basicamente a mão-de-obra familiar, ainda que em determinados momentos envolva também relações de ajuda mútua. Nas médias e nas grandes propriedades, além da mão-de-obra familiar, o manejo pressupõe a contrata201

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ção de trabalhadores adicionais, cuja remuneração diária é de R$ 12,00. Portanto, essa atividade não se fundamenta em relações assalariadas, mas no trabalho familiar, envolvendo, às vezes, relações de ajuda mútua, e na contratação de trabalhadores diaristas, o que nem sempre é fácil, devido ao baixo pagamento oferecido. Desta maneira, nas pequenas propriedades, o manejo é desenvolvido basicamente pelo chefe da família e seus filhos, sobretudo aqueles que ainda lhe rendem obediência. Isto se verifica especialmente na etapa de desbaste das toiceiras, atividade cuja possibilidade de geração de renda a torna de suma importância para a reprodução familiar na época de entressafra do açaí. Contudo, o manejo para a ampliação dos açaizais pressupõe outras atividades mais pesadas, nas quais a presença de mais braços é essencial para que o trabalho avance. Este é o caso da derruba e da roçagem, atividades que, além de mais trabalhosas do que o desbaste das toiceiras, não geram nenhum retorno econômico imediato. Para desenvolver tais atividades, a contratação de mãode-obra adicional torna-se de grande importância. Mas isto é geralmente inviável para o “pequeno proprietário”, pois os R$ 12,00 que terá de pagar ao trabalhador, além da alimentação, pesam no orçamento doméstico. Nessas circunstâncias é que alguns “pequenos proprietários” recorrem à ajuda de seus parentes e vizinhos. A principal forma de ajuda mútua identificada nesse sentido é a troca de dias. Trata-se de uma relação em que, aglutinados em pequenos grupos de trabalho, cada “pequeno proprietário” se responsabiliza em prestar serviço espontaneamente na terra dos outros, recebendo em troca não o dinheiro, mas o trabalho dos demais membros que compõem o grupo. Neste esquema, tais grupos funcionam como pequenos circuitos de troca (Maués, 1993) nos quais prevalecem relações mútuas e desmonetarizadas. O envolvimento nesses grupos, para vários “pequenos proprietários”, é o que permite a ampliação de seus açaizais. Daí a constatação de que esse tipo de relação, além de se manter, continua sendo muito importante para a socialização e a reprodução familiar no interior amazônico. No entanto, deve-se ressaltar que a troca de dias é uma relação que se restringe apenas aos “donos” de pequenos açaizais. Nas médias e grandes propriedades esse tipo de relação não existe. Nestas, devido à extensão dos açaizais, o manejo envolve, além da mão-deobra familiar, a contratação de trabalhadores diaristas. Contudo, isto nem sempre é fácil. Primeiro, porque boa parte dos potenciais trabalhadores não é excluída da terra. E segundo porque, mesmo na época de entressafra, ninguém simpatiza com a idéia de se mortificar o dia inteiro para receber R$ 12,00, dinheiro que nem sempre dá para comprar a bóia da família.5 5

Só para se ter uma idéia, no médio rio Pracuúba, durante a pesquisa de campo, 1 kg de charque (carne seca) custava R$ 8,00 e 1 kg de farinha era vendido a R$ 1,20.

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Em face desta resistência, sobretudo os “grandes proprietários” usam de astuciosas estratégias para recrutar os trabalhadores, como se observa a seguir. (...) aí eu ideiei como limpar este mato. Um mato grande, só eu, aí eu chamei o pessoal e disse: bem, vocês querem trabalhar, vamos limpar o mato prá nós apanhar o açaí. Ninguém topou. Aí eu disse: bem pessoal, eu vou fazer o seguinte com vocês: eu pago a diária de vocês, eu dou a bóia pra vocês, agora eu quero que todo mundo que apanha açaí no meu mato me venda um dia da semana, um dia só. Agora vai ter um detalhe: eu tô com setenta e poucos “peconheiros”, aquele que não vim ajudar a trabalhar no mato, ele pode ter a vaga dele ou ele pode não ter, porque vai ter vaga só para quem me ajudar no mato (...). (Entrevista, agosto de 2004)

Como se vê, inicialmente, o “proprietário” do açaizal sugere que a responsabilidade do manejo é de todos, como se o açaizal fosse área de uso comunitário. Somente depois da recusa dos trabalhadores é que ele se responsabiliza pelas despesas do manejo, mas como se estivesse assumindo um compromisso de todos sozinho. Por isso, em contrapartida, exige que os seus “peconheiros” trabalhem no manejo, caso contrário não terão suas vagas asseguradas na safra do açaí vindoura, ou seja, mesmo estabelecendo relações de trabalho extremamente desiguais na extração, o “grande proprietário” ainda consegue coagir seu “peconheiro” para atuar no manejo. Isto se dá graças ao ganho relativamente rápido obtido com a coleta do açaí, mesmo que nesta atividade as relações sejam também muito desiguais. Logo, observa-se que, ao lado de relações de reciprocidade, que nada têm a ver com a identidade objetiva envolvida na troca mercantil (Abramovay, 1992), a implementação do manejo também envolve formas de subordinação da força de trabalho. Subordinação esta que não se dá propriamente pela expropriação da terra, mas pelo fato de os trabalhadores que atuam na extração serem os mesmos que são chamados para trabalhar no manejo. Assim, são obrigados a aceitar este trabalho sob a ameaça de não poderem atuar na próxima safra. Constata-se, portanto, que as relações de trabalho nos açaizais são articuladas e fortemente “personalizadas”, sendo inútil tentar compreendê-las sem considerar aspectos que extrapolam a simples racionalidade econômica.

OS AGENTES ECONÔMICOS E A COMERCIALIZAÇÃO DO AÇAÍ Os marreteiros de açaí Os marreteiros de açaí que atuam no médio rio Pracuúba são agentes econômicos que apresentam grande mobilidade e senso de oportunismo para aproveitar as brechas que o mercado oferece. Em geral, dedicam-se 203

Desenvolvimento do extrativismo do açaí

apenas à comercialização do açaí, mas, eventualmente, alguns também vendem mantimentos, sobretudo peixe e frango. A diversidade entre eles, contudo, vai além, sendo possível identificar pelo menos três categorias, que são denominadas aqui “marreteiros da beirada”, “freteiros” e “barqueiros”. A categoria dos “marreteiros da beirada” agrupa um grande número de pequenos marreteiros que atua na compra e venda do açaí ali mesmo, no próprio Pracuúba. Comumente, possuem pequenas embarcações, nas quais se deslocam no rio para cima (montante) e para baixo (jusante), encomendando e negociando os frutos com os “proprietários” de açaizais. Embora contem com prestígio e poder de compra, o que particulariza esses marreteiros é o fato de comprarem o açaí para os “barqueiros” ou para os grandes “freteiros”, recebendo uma comissão sobre cada lata comprada. Os “freteiros”, por sua vez, são marreteiros que, embora não disponibilizem de grandes embarcações, vendem açaí nos mercados urbanos, mediante o pagamento de uma taxa por lata transportada, chamada localmente de frete. O preço dessa taxa varia de acordo com a distância da viagem e com os acertos entre o “freteiro” e o dono ou encarregado das embarcações. Na safra do verão de 2004, o preço do frete para Belém e Abaeté era R$ 1,00; para Santana, no Amapá, cobrava-se R$ 1,50. A terceira categoria de marreteiros que atua na economia do açaí é a dos “barqueiros”. Estes, como a expressão sugere, são atravessadores que viajam em embarcações particulares ou alugadas, transportando os carregamentos de açaí até as cidades. Diferentemente da fase embrionária da economia desse fruto, na qual o dono da embarcação costumava monopolizar o transporte, os “barqueiros” de hoje, além da produção própria, também transportam o açaí dos “freteiros”. Com isso, ganham o frete, rendimento que muitas vezes não apenas cobre as despesas de viagem, como ainda possibilita ganho adicional. Como se percebe, os marreteiros de açaí não atuam isoladamente, nos dias atuais. Ao contrário, agem por meio de variados arranjos estruturais que se formam de acordo com as afinidades e possibilidades de ganho que cada um oferece. Embora sejam diferentes e concorram acirradamente entre si, esses agentes econômicos dependem, de fato, continuamente uns dos outros para se manterem como tal.

As relações entre marreteiros de açaí e “proprietários” de açaizais A comercialização do açaí, no médio rio Pracuúba, desenvolve-se, em geral, com base no princípio da liberdade de compra e venda. Isto se observa nas transações envolvendo a maioria dos “proprietários”, com exceção daqueles que possuem grandes açaizais, que geralmente negociam o açaí 204

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

nas cidades. Ainda assim, nos interstícios dessas transações, persistem determinados mecanismos pelos quais a venda do açaí se confunde com um conjunto de prestações pessoais (Abramovay, 1991), vinculadas a relações de subserviência. Portanto, embora pareça funcionar inteiramente sob o princípio da livre concorrência, a comercialização do açaí ainda encerra relações personalizadas, que evidenciam a maneira incompleta pela qual os mecanismos de mercado ainda se apresentam. Nas safras, entretanto, este aspecto é pouco visível. A intensa movimentação dos marreteiros em busca do açaí ofusca as relações de subserviência, de sorte que todas as transações envolvendo esses agentes e os “proprietários” de açaizais parecem se estabelecer com base na concorrência, como se observa na “encomenda” e, sobretudo, no ato da transação propriamente dita. A “encomenda” é o primeiro contato entre os “marreteiros da beirada” ou os “freteiros” e os “médios” e “pequenos proprietários”. Neste contato, os marreteiros externalizam seu interesse na compra do açaí, dizendo o preço que estão pagando na lata e a hora em que passam na beirada. Os “proprietários”, por sua vez, geralmente especulam, afirmando que o preço está baixo ou que já têm outras “encomendas”, a fim de que o marreteiro melhore sua proposta. Ao final deste breve diálogo, quase sempre chegam a um acordo provisório, no qual o “proprietário” se compromete a negociar uma parte ou a totalidade da produção, desde que o preço oferecido seja bem generoso. Em geral, os marreteiros fazem a “encomenda” pela manhã. Primeiro porque se a fizerem com um dia de antecedência, o “proprietário” do açaizal pode começar a coletar o açaí desde então, o que é prejudicial para a qualidade do fruto. E segundo porque, pela manhã, determinados marreteiros já sabem como está a comercialização do açaí nas feiras urbanas, tendo feito ligações telefônicas6 para as cidades. Com isso, podem elaborar suas metas e estratégias de compra, sempre tentando escapar dos constantes riscos presentes nessa atividade. Todavia, a “encomenda” não envolve nenhum mecanismo que mantenha o “proprietário” dependente do marreteiro. Neste acordo, geralmente, estes não ficam com rasas e muito menos com dinheiro dos marreteiros. Por esta razão, no fundo, a “encomenda” não passa de um simples acerto verbal, que se presta muito mais para motivar a coleta do açaí do que para assegurar sua venda a determinado marreteiro. No médio rio Pracuúba, a fluidez na comercialização do açaí verifica-se notadamente nas ocasiões de concorrência acirrada. Em tais ocasiões, pela manhã, é comum que os “proprietários” de açaizais se comprometam com determinado marreteiro e mais tarde, por volta do meio-dia, negociem o 6

Na ocasião da pesquisa, constatou-se que dos 207 estabelecimentos contabilizados no médio rio Pracuúba, 19 (9,17%) já tinham antena telefônica.

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Desenvolvimento do extrativismo do açaí

açaí com outro que, embora não lhes tenha feito a “encomenda”, dispõe-se a pagar vinte ou trinta centavos acima do preço acertado anteriormente por cada lata. Como afirma um experiente marreteiro, “a melhor coisa que se pode fazer é não acertar nenhum preço na hora da ‘encomenda’, é melhor dizer que você paga o mesmo preço que os outros estão pagando”. Esta preocupação dos marreteiros evidencia que o extrativismo do açaí, na área em apreço, é uma atividade desenvolvida cada vez mais por proprietários autônomos (Rego, 1999), com liberdade para negociar sua produção com quem lhes oferecer o melhor preço. Diferentemente da fase embrionária, na qual poucos compradores ditavam a forma de pagamento (em geral, a troco de mercadorias), a maioria dos “proprietários” pode, atualmente, escolher com quem vai negociar e o preço que mais lhe agrada. Todavia, ainda se reproduzem nesse ambiente econômico determinadas transações cujos princípios escapam à liberdade de compra e venda. São transações em que a comercialização do açaí se desenvolve sob o princípio do exclusivismo, no qual os preços não são determinados no âmbito da concorrência, mas pelos agentes comerciais. Em geral, essas transações estabelecem-se no início das safras, quando é comum que “pequenos proprietários” procurem um “barqueiro” a fim de que este compre para eles pequenos motores marítimos em Belém. Como não têm dinheiro suficiente para pagar esses motores à vista, esses “pequenos proprietários” comprometem-se a entregar todo o açaí que extraírem na safra para o fiador (o “barqueiro”) até que a dívida seja quitada. Todavia, quando aceita a proposta, este agente econômico sempre avalia a produção que recebe abaixo do preço. Com isto, é comum que o agente devedor, ao final da safra, precise vender o palmito de seu mato para o fiador até que sua dívida seja paga. Neste sentido, constata-se que o princípio da liberdade de compra e venda não está plenamente consolidado no comércio do açaí. Embora se manifeste em grande parte das transações subjacentes a ele, persistem casos fundados em relações de subordinação que nos fazem lembrar o antigo sistema de aviamento. É com base nesse tipo de relação que determinados agentes comerciais ampliam seus ganhos exponencialmente, o que mostra que as relações de mercado se manifestam ainda de maneira parcial no comércio do açaí.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se evidenciou no início deste trabalho, encontram-se bastante em voga interpretações que apontam o desaparecimento do extrativismo na Amazônia. Tais interpretações indicam que esta atividade, além de primitiva, é insustentável tanto do ponto de vista ambiental, quanto socioeconô206

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

mico. Por esta razão, não apenas criticam a permanência, como antevêem o fim de tal atividade na região. Ao contrário dessas abordagens, entretanto, estudos mais recentes vêm mostrando a emergência da extração de produtos florestais, como o açaí, por exemplo, em diversas áreas do estuário amazônico. Nessas áreas, a extração desse fruto, ainda que tenha sido ameaçada nos anos 70 e 80 pela desenfreada extração de palmito, reafirma-se atualmente como uma atividade de extrema importância para a reprodução social das famílias ribeirinhas. Importância esta relacionada não apenas ao valor alimentar do “vinho” do açaí, mas à geração de renda decorrente da sua comercialização. Neste sentido, percebe-se como as interpretações que antevêem o fim do extrativismo na Amazônia são limitadas. Embora possam apresentar alguma validade para o estudo de processos extrativos predatórios, como ocorreu no caso do palmito, de nada servem para o caso da extração de recursos como o açaí, porque não permitem visualizar o conhecimento tradicional que norteia essa atividade, assim como a sua indiscutível importância socioeconômica atual. Nos açaizais do médio rio Pracuúba, tais aspectos mostram-se com grande evidência. Verificou-se que o extrativismo do açaí não é tão simples (primitivo) quanto parece e, além disso, está intrinsecamente articulado às diversas formas de manejo dos açaizais. Isto porque constituem atividades fundamentadas em um mesmo conhecimento de base empírica, acumulado pelos ribeirinhos na sua permanente interação com a natureza. Nesses termos, o incremento do manejo não descaracteriza e tampouco determina o fim do extrativismo do açaí, mas constitui, na verdade, um salto de qualidade no interior da própria atividade extrativa, resultante do conhecimento e do “olhar” dos ribeirinhos sobre os açaizais. Por sua vez, na esfera socioeconômica, o quadro é complexo, envolvendo tanto relações desiguais, como a meia e o pagamento de taxas fixas, quanto relações de reciprocidade, como a troca de dias. Na comercialização do açaí, em particular, observa-se a crescente autonomia dos “proprietários” de açaizais em relação aos marreteiros de açaí, ainda que transações típicas da patronagem persistam. Ou seja, tomado-se de um ponto de vista concreto, o extrativismo do açaí envolve relações diversificadas que não se fundamentam apenas na exploração, mas na liberdade de compra e venda e até mesmo na cooperação. Com isto, a visão do extrativismo atrelado apenas à manutenção de relações desiguais mostra-se extremamente limitada, pois deixa de considerar, além da reciprocidade, a crescente autonomia dos ribeirinhos na comercialização desse fruto. No entanto, é importante destacar que o crescente interesse de agentes empresariais capitalizados tende a intensificar as mudanças na economia do açaí. Em certa medida, isto já se verifica em Muaná, município vizinho de São Sebastião da Boa Vista. Ali, uma indústria voltada à produção da polpa 207

Desenvolvimento do extrativismo do açaí

desse fruto, a “Muaná Alimentos Ltda.”, já está interferindo na organização espacial das comunidades ribeirinhas locais, com a aquisição de terras para a produção de açaí e palmito (Brabo, 2002). A intensificação da atuação desses agentes, assim, representa uma grande ameaça principalmente à autonomia que os ribeirinhos vêm adquirindo do declínio das tradicionais relações de aviamento.

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Diversidade do campesinato: expressões e categorias

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PARTE III

RECONVERSÕES IDENTITÁRIAS, MOBILIDADE E CAMPESINATO

8 CAMPESINATO, FAMÍLIA E DIVERSIDADE DE EXPLORAÇÕES AGRÍCOLAS NO

BRASIL

Afrânio Raúl Garcia Jr. e Beatriz Alasia de Heredia

INTRODUÇÃO

O Brasil é percebido hoje como possível primeira potência agrícola do século XXI, com chances de superar os Estados Unidos da América, atual líder mundial. As atenções desta perspectiva estão concentradas em sua condição de grande exportador de produtos agrícolas e agroindustriais. Poderia tal imagem ofuscar as profundas transformações econômicas e sociais ocorridas ao longo do século XX que dotaram o país de parque industrial integrado e interdependente em sua evolução, de cidades urbanizadas parcialmente segundo os padrões mais modernos, de redes de transporte e comunicações interligando os pontos mais recônditos do território, de sistema bancário e financeiro que conecta decisões de investimento e de poupança de empresas e pessoas físicas situadas no país ou inseridas nos mercados financeiros internacionais? Ou ainda de sistema educativo e mercado cultural (edição, teatro, música, dança, rádio, televisão, internet etc.) em rápida expansão, favorecendo a competitividade dos centros universitários no campo científico e a criatividade artística em nível internacional? Todo observador atento da evolução histórica do Brasil ao longo do século XX não poderia deixar de ficar surpreso se a coletividade nacional do início do terceiro milênio fosse reduzida a imagens que reproduzem estereótipos freqüentes até a metade do século XX, em que a grande lavoura (café, cana-de-açúcar, algodão, cacau, tabaco, borracha) ou a pecuária extensiva pretendiam deter o monopólio dos interesses econômicos a serem contemplados na gestão do futuro da coletividade. A retórica atual sobre o agronegócio inscreve-se numa antiga tradição de exclusivismo das elites agrárias. Persistiria a parte a esconder o todo? 213

Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil

A “vocação agrícola do Brasil” continuaria a ser invocada, como um mantra plurissecular, para impedir a percepção da profunda diversidade dos atores do mundo rural e agroindustrial? Continuaríamos a ser prisioneiros da crença no caráter único e inexorável de apenas uma via de desenvolvimento do capitalismo no campo: a que privilegia os grandes estabelecimentos agroindustriais, hoje rebatizados de global players, defendida com unhas e dentes por bancada de parlamentares que se identificam como “ruralistas”? Fato é que mesmo após a abolição da escravatura, a apreensão dos modos de sociabilidade do mundo rural persistiu voltada para o grande domínio agroindustrial, para o universo das casas-grandes e das senzalas, e só gradualmente surgiram descrições e análises do campesinato marginal às áreas de grande plantação, como nas regiões onde a cafeicultura entrou em decadência (Cândido, 1964), ou na periferia das regiões canavieiras (Andrade, 1957 e 1964) do Nordeste, ou ainda em faixas do território destinadas exclusivamente a famílias de imigrantes europeus, como o Vale de Itajaí (Seyferth, 1974), a serra gaúcha (Santos, 1978) ou partes do Paraná. Tudo se passou como se o bloqueio de todas as tentativas de instaurar uma representação profissional ou sindical de lavradores e/ou pequenos agricultores tivesse tido o efeito de bloquear o reconhecimento simbólico do campesinato como objeto de pensamento. Pode-se constatar que as tentativas de criação das Associações de Lavradores, por militantes ligados ao PCB, em 1945-1947, e sua retomada posterior com a fundação da ULTAB nos anos 50 e a criação das Ligas Camponesas em Pernambuco e na Paraíba coincidem com os primeiros estudos sociológicos em profundidade desse grupo social. Talvez a novidade não seja tanto dos personagens sociais estudados quanto do novo olhar que se instaura sobre o espaço rural, não mais se aceitando que a hegemonia dos grandes proprietários seja tal que impeça a observação e a descrição da diversidade dos modos de vida e de trabalho e de conceber a vivência no mundo rural. Francisco Julião (1962, 1968) sempre chamou a atenção para o fato de a primeira sede da associação, que ficará famosa sob o rótulo de Liga Camponesa, ter sido instalada em Recife, porque só na capital havia aliados com força suficiente para deter a violência arbitrária dos senhores de engenho e usineiros. Esse fato pode nos fornecer uma pista para entender a dimensão da violência simbólica do silêncio sobre a condição camponesa, cujos efeitos se estendem até o presente.

AGRICULTURA FAMILIAR, OBJETO CONCRETO OU TÍTULO NOMINAL? Hoje em dia, há uso generalizado da expressão “agricultura familiar” ou da designação de agentes econômicos do universo agrícola como “agricultores familiares”, mostrando como muita água correu debaixo da ponte nos 214

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

últimos cinqüenta anos. Nos círculos acadêmicos a expressão “agricultura familiar” foi consagrada, sobretudo por seu uso por Maria Nazareth Wanderley (1994), em obra votada à comparação da agricultura no Brasil, na França e na Polônia, e por Ricardo Abramovay (1991), em livro confrontando os padrões internacionais de estruturação do campo econômico dedicado à agricultura com o brasileiro. A referência a padrões internacionais nesses dois autores permite a demonstração de que a agricultura moderna baseada exclusivamente em trabalho assalariado é a exceção na Europa, não sendo de modo algum a regra. O padrão mais freqüente é a empresa agrícola fazendo uso do trabalho da família que a possui e a faz funcionar, embora as condições de vida e de trabalho variem fortemente, por exemplo, entre policultores, criadores de gado leiteiro, horticultores ou viticultores (Jollivet et al., 1984; Champagne, 2002; Garcia-Parpet, 2009). Note-se que mesmo diante de desemprego maciço, desde o primeiro choque petrolífero em 1973, não se expandiu o assalariamento agrícola em larga escala na Europa. O caso das usinas de açúcar e álcool brasileiras, baseadas totalmente em força de trabalho contratada, constitui assim uma singularidade que só pode ser explicada pela nossa história, cuja singularidade reproduz padrão de áreas de plantation do novo mundo (Wolf e Mintz, 1957), mas em hipótese alguma reproduz o padrão internacional mais recente. A generalização do uso da categoria “agricultura familiar” foi largamente facilitada pela implantação, ainda nos anos de 90, do Pronaf, quando a política de crédito a juros reduzidos privilegiou de forma inédita uma faixa de agricultores de menos recursos econômicos, desvinculando-os dos grandes produtores que se haviam beneficiado, desde a modernização conservadora promovida pelo regime militar, de taxas de juros subsidiadas. Esse reconhecimento oficial da diversidade de atores do mundo agrícola, quebrando o monopólio dos grandes produtores e do agronegócio, abriu a possibilidade ao desenvolvimento de uma infinidade de projetos inovadores e contribuiu para demonstrar que o leque das transformações do mundo rural admite múltiplas alternativas e possibilidades (cf. Lima e Wilkinson, 2002). Mas se essa expressão ficar vinculada apenas a uma política pública, estaremos diante do mesmo erro e da armadilha de só percebermos agentes sociais quando chegam a ser nomeados pelo Estado. Perde-se de vista que o debate intelectual, ou a seqüência de mobilizações políticas, pode constituir instâncias decisivas de crítica das classificações do mundo social em vigor, de nomeação de novas possibilidades. Por que aceitar que apenas o exercício do poder de Estado dotaria um conjunto de indivíduos e agentes econômicos de existência legitimada? Para abrir o espaço à mobilidade de grupos dominados não há nada de pior, pois toda atividade intelectual parece só ter validade quando voltada para a competição pelo exercício do mando de Estado. Não seria de se estranhar 215

Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil

que muitas análises e debates já realizados, como o tema recorrente da diferenciação social do campesinato ou das origens da proletarização em larga escala, nos anos 70, sejam abandonados, impedindo a cumulatividade do conhecimento e empobrecendo o referencial das questões examinadas. O reducionismo economicista instala-se com facilidade: o significado de “agricultura familiar” fica preso ao de “agricultura patronal” ou agronegócio, como seu contrário. Contudo, que sentidos o adjetivo familiar especifica? Além de designar que a relação entre o responsável pelo estabelecimento agrícola e qualquer outro trabalhador não se caracteriza pelo vínculo do assalariamento, mas que pertencem à mesma rede familiar, que implicações têm este último fato? De modo mais imediato, o laço familiar lembra que a atividade econômica não esgota o conteúdo da relação, pois ela pode envolver atividades de reprodução biológica dos indivíduos, além de social, por meio da transmissão de conhecimentos e de patrimônio. Mas é pela inscrição dos agentes no espaço social, onde ganham existência, que se podem avaliar os significados que essa expressão permite particularizar. Assim, buscaremos, a seguir, resgatar os debates intelectuais a propósito da transformação do meio rural brasileiro que torna o adjetivo “familiar” um marcador de questões sociológicas a serem examinadas e de ferramentas conceituais para fazê-lo. Familiar passa, assim, de algo dado e evidente para vínculo social singular a ser examinado em seu próprio contexto, como é de praxe em antropologia social. Estranhar o familiar (Da Matta, 1978) é condição para buscar entender as redes assim designadas como relações sociais.

FAMÍLIAS DE TRABALHADORES COMO AGENTES ECONÔMICOS DO MUNDO RURAL O fim da Segunda Grande Guerra permitiu mudanças no espaço político e intelectual brasileiro, com a liquidação da censura à imprensa e às edições, sendo seguidas por toda a liquidação do marco autoritário do Estado Novo. A esperança de democratização do Estado e da sociedade no Brasil fez crescer entre os círculos de intelectuais o interesse pelas classes populares das cidades e dos campos, passando o tema da reforma agrária a figurar entre os que mais desencadearam polêmicas na Assembléia Constituinte de 1946 e no parlamento brasileiro até o golpe de 1964 (Camargo, 1981). Fato é que dessa época em diante começam a ser feitas monografias para tese de doutorado, como os “Parceiros de Rio Bonito” de Antônio Cândido (1964; a tese foi defendida em 1954), voltadas para o estudo da morfologia social das redes de sociabilidade onde se afirmam novos contingentes de sitiantes e de pequenos produtores. Preocupação semelhante pode ser detectada, 216

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

ainda nas obras suscitadas pela USP, nos livros posteriores de Maria Isaura Pereira de Queiróz (1965, 1973a e b) e de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1974), em que a noção de bairro rural se apresenta como o lugar de modos de vida e de cultura particulares, em contraponto à ênfase exclusivista nas fazendas de café. É pertinente recordar que o grupo estudado por Antônio Candido é caracterizado como um “quase bairro”, porque composto por aforantes que cultivam terras de antiga fazenda de café, conhecendo declínio econômico com a concorrência das áreas novas de planalto paulista mais ao sul. A condição de sitiantes ameaçados difere tal conjunto de agricultores tanto da categoria dominante – os fazendeiros de café – quanto da massa de famílias que lhes era diretamente subordinada – os colonos de café. Posição intermediária, que só podia ser compreendida se relacionada a todas as demais categorias sociais, viventes do mundo das cidades ou do mundo rural. A situação de colono supõe família; fazendeiros também têm família. A diferença específica dos sitiantes, do bairro rural, provém da relação de subordinação particular com as camadas dominantes tanto no campo como na cidade. A ameaça analisada por Antônio Candido não é apenas econômica, ou no vínculo com a terra onde residem e que cultivam, mas também cultural, pois com as cidades se desenvolvem padrões culturais divulgados por novos meios de comunicação bem diversos dos que prevalecem nos bairros rurais, vistos como suportes sociais da cultura caipira. Os desafios da afirmação desse novo ator social são múltiplos, e sua compreensão supõe a referência constante ao movimento do conjunto do espaço social. No final dos anos 60, a institucionalização da pós-graduação em ciências sociais favoreceu a produção de monografias baseadas em pesquisas de campo pacientes e minuciosas, em que o estudo de pequenos produtores agrícolas, fazendo uso do trabalho de seus próprios familiares, tem um lugar de destaque (Garcia Júnior e Grynszpan, 2002). É no momento mais negro do regime militar, entre 1968 e 1975, quando a expulsão ou suspensão de estudantes, a demissão sumária de docentes e pesquisadores e a tortura sistemática dos oponentes se tornaram práticas corriqueiras que observar e escutar diversas categorias de classes subalternas e grupos étnicos estigmatizados (ameríndios, negros) se trasformaram em atividades intelectuais asseguradoras do prestígio acadêmico. Elas acumulavam então a notoriedade de se desvincular do desprezo que os oficiais militares da alta patente e frações de grupos profissionais, como engenheiros e economistas, devotavam a todas aquelas camadas que não se voltavam para a aceleração do crescimento econômico, e o mérito de seguir padrões internacionais de ensino e pesquisa, ingrediente neutralizador de ingerência de autoridades impostas, mas que sabiam que o desenvolvimento tecnológico supunha tal gênero de modernização universitária. Retomando categorias de pensamento “nativas” de cientistas sociais da época: esses estudos e 217

Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil

pesquisas permitiam examinar a “face escondida da lua” ou as vias de mudança histórica mais favorável às camadas subalternas ou à implantação de espaço público democrático. Não foi seguramente obra do acaso que um dos livros mais estudados desde essa época se intitulava Origens sociais da ditadura e da democracia, do historiador norte-americano Barrington Moore Jr. (1967), tendo por foco central a análise do caráter decisivo das transformações sociais no campo para o entendimento da construção dos Estados modernos, a começar pelos casos da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos, confrontados com os de países asiáticos (Japão, China, Índia), mas considerando ainda as trajetórias da Alemanha e da Rússia para efeitos comparativos. A mudança das relações entre senhores e camponeses articula-se de múltiplas formas com a ascensão da classe de grandes comerciantes e industriais, bem como com os detentores do poder político tradicional (reis, imperadores), sempre como uma das componentes fundamentais da evolução do espaço político. Aprofundar os estudos de caso no Brasil permitia, portanto, examinar variantes de transformações históricas analisadas em escala internacional e testar modelos de análise elaborados para além de situações estritamente ocidentais (o que contribuía para seu prestígio entre antropólogos). A pesquisa voltada para a compreensão das transformações sociais do mundo rural no Brasil, desde a segunda metade dos anos 60, fez largo uso das representações coletivas, ou das “categorias nativas”, empregadas pelos diferentes agentes sociais para designarem o universo social e natural em que se inserem, assim como seu pensamento metafísico. A riqueza dos termos e das dimensões analisadas pela objetivação da cosmologia nativa de grupos subalternos mostrava que a diferenciação social era uma constante, tanto para classes dominadas quanto para classes dominantes. Entender os modos de dominação social, as tensões a que estão submetidos, as mobilizações de diferentes grupos e seus efeitos, bem como as transformações possíveis com maior ou menor probabilidade, implicava distanciar-se de qualquer perspectiva homogeneizadora de classes em disputa, sobretudo as visões dicotômicas simplistas, como exploradores e explorados, opressores e oprimidos etc., oposições facilmente encontráveis em retórica de denúncia de injustiças sociais flagrantes, mas de pouca valia quando se queria entender processos de transformação social e formas de percepção e experiência da vida cotidiana. A vasta produção de monografias desde então restituiu as categorias imediatas dos agentes obrigando a análise a refinar os instrumentos de compreensão das transformações sociais e a recusar qualquer reificação de categorias nominais. Cada categoria social concreta, com existência atestada por seu uso pelos vários agentes sociais com que elas convivem, ou que as usam para designarem suas próprias condições no espaço social, ganha sentido com a especificação das formas de dominação em que estão inseridas. Assim é 218

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

que as posições intermediárias como a de sitiante, pequeno proprietário ou posseiro, ou ainda arrendatário ou parceiro, se opõem tanto à base da escala social, aos moradores de engenho, aos colonos e aos agregados – cuja existência está submetida à autoridade dos grandes proprietários, sobretudo no tocante aos padrões de residência e de trabalho – quanto ao topo da pirâmide, diferindo dos senhores de engenho, usineiros ou fazendeiros de várias qualidades – cujas atividades se restringem a dar ordens aos que subordinam e a verificar seu cumprimento, podendo gozar de estilos de vida mais afeitos com aqueles exibidos no mundo urbano. Esse molde tripartite do mundo rural é claramente uma simplificação que visa relembrar como cada condição concreta é tributária de situações sociais e históricas configuradas com a implantação de universo de grandes plantações fundadas no trabalho de escravos vindos da África. Não há porque isolar um só personagem social, atribuindo-lhe qualidades que prefigurariam certa evolução do mundo rural, em vez de estudar como os movimentos de cada condição social se combinam ou se chocam com aqueles buscados pelas demais categorias. Aqui, como em outras situações examinadas com as lentes acumuladas pelas ciências sociais, a evolução do todo não pode ser depreendida pela simples soma das partes e menos ainda pelo conhecimento de só uma das componentes. O conhecimento daqueles que foram denominados sitiantes, agricultores, lavradores, entre outras denominações, supõe sempre que se especifiquem os feixes de relações sociais em que se inscrevem, mesmo (e sobretudo) se estivermos interessados em examinar os modos de operação de suas famílias como unidades de produção e de consumo. Por sua vez, a simples análise sociológica da posição ocupada por todo agente no espaço social não esgota o exame das questões que permitem entender o comportamento dos indivíduos e das famílias, assim como as categorias de percepção de que são portadores e que informam suas reações, práticas e estratégias. Há singularidades que têm a ver diretamente com o fato de que o grupo doméstico é o quadro das atividades produtivas, mas também é o horizonte onde o consumo individual e coletivo ganham significado e é, ainda, a mesma rede de relações que permite o surgimento de novas gerações e assegura a transmissão de saberes e do patrimônio material acumulado pelas gerações precedentes. Em artigo publicado no início dos anos 70 (Heredia e Garcia, 1972), tentamos esboçar, do exame das representações de agricultores da zona da mata pernambucana confrontadas às práticas observáveis por investigação etnográfica, configurações dos grupos domésticos como unidades de produção e consumo, como a oposição casa–roçado (ou casa–sítio), referência central do cálculo efetuado para mobilizar o esforço dos diferentes membros e para pensar a distribuição do necessário ao consumo. Analisamos, ainda, como a criação de animais permitia minorar os efeitos de flutuações bruscas da produção ou do consumo, constituindo atividades-chave de reserva e de acumulação de recursos 219

Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil

ao longo do ciclo agrícola ou entre ciclos agrícolas sucessivos. Por último, estudamos a oposição entre roçado familiar e roçadinho individualizado dos filhos que visava harmonizar o ciclo da unidade doméstica como um todo com o ciclo de vida de cada membro até o casamento e a partição do grupo inicial. Todos os grupos domésticos investigados estavam inseridos no mercado de terras, vendiam nas feiras ou para as feiras os resultados dos seus cultivos e da sua criação de animais, participavam de mercados de trabalho local como ofertantes ou como usuários eventuais; por conseguinte, não havia nenhum vestígio de tendências autárcicas ou voltadas para a auto-subsistência. Havia apenas modos de lidar com as flutuações de preços e quantidades comercializadas que não se reduziam aos comportamentos supostos universais de empresas agrícolas; para compreender a lógica e os significados dessas práticas e dos cálculos que as informam, a objetivação das modalidades de materialização do grupo doméstico como unidade de produção, ou como unidade de consumo, ou, ainda, de suas variações ao longo dos ciclos agrícolas ou de ciclos de existência humana, demonstrou ser fundamental para o entendimento de fatos observáveis e relatos recorrentes. Se o próprio título do artigo fez referência a “trabalho familiar e campesinato”, para dialogar com a redescoberta de fértil tradição na Europa central e na Rússia de estudos sobre economia camponesa, é que o vínculo familiar não implicava ausência de laços mercantis mantidos pelo grupo doméstico, muito pelo contrário. Apenas há padrões estruturais de materialização do grupo doméstico, como consumidores ou como produtores, há objetivos incontornáveis para qualquer autoridade doméstica que precisam ser resgatados e descritos para compreender como esses estabelecimentos agrícolas apresentam movimentos distintos dos apresentados pela teoria econômica neoclássica como universais. A análise mais completa do material constituído para as dissertações de mestrado (Heredia, 1979; Garcia, 1983) permitiu esmiuçar as pistas antes esboçadas, e os resultados mostraram-se convergentes com investigações animadas por propósitos semelhantes, tendo por referência grupos de pequenos agricultores de outras regiões do Brasil, a demonstrar a recorrência dos padrões descritos para o Nordeste e mesmo a persistência de certas representações nativas ou certos valores culturais. Confirmava-se a pertinência da tentativa de se especificarem os modos de existência de grupos domésticos de agricultores ocupando posições intermediárias, em universo sob a hegemonia de plantation de produtos tropicais, a revelar outras vias de transformação social do campo e da sociedade brasileiros. Obras como as de Lia Fukui (1979) sobre sitiantes em São Paulo, análises de repertórios estatísticos como as empreendidas por José Graziano da Silva e outros (1978), densas monografias de cunho etnográfico como os estudos realizados sobre regiões do Estado do Rio de Janeiro por Eliane Cantarino O’Dwyer 220

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

Gonçalves Bastos (1977) ou por Delma Peçanha Neves (1981), ou, mais ao sul, em análise de campesinato tendo por origem a imigração européia de finais do século XIX, desfrutando de formas de estabilidade de condições de reprodução sem equivalentes nos outros casos, como a obra de Giralda Seyferth (1974) sobre descendentes de alemães e a de José Vicente Tavares dos Santos (1978) sobre descendentes de italianos, ou sobre a particularidade do campesinato de fronteira na Amazônia, como investigado por Otávio Velho (1972, 1974), José de Souza Martins (1980), Neide Esterci (1987) e Leonarda Musumecci (1988). Essas monografias impuseram novas questões e modos de tratá-las que renovaram as análises de transformação do mundo rural, assentando em bases sólidas os questionamentos sobre as explorações agrícolas ou de pecuária, cujos fundamentos estão relacionados aos modos de existência de laços familiares, seja como grupo doméstico, seja como rede que predetermina estratégias matrimoniais e padrões de descendência física, de nomes patronímicos, e de bens materiais ou de pertencimento religioso ou cultural. Relidas hoje, elas mostram a fecundidade da observação sistemática de grupos subalternos do mundo rural e a pertinência da análise das categorias nativas como revelador da dinâmica social e da legitimidade maior ou menor dos modos de dominação em vigor. A menção constante ao debate sobre modos de produção, seu número e sua seqüência necessária, que talvez tornem muitas análises ou polêmicas difíceis de se acompanhar nos dias atuais, não deveriam porém provocar o esquecimento de que tais disputas internas ao paradigma marxista surgiram na tentativa de impedir que o evolucionismo primário, como consagrado pelos famosos cinco estágios da humanidade impostos pela ortodoxia estalinista durante a terceira internacional comunista, aparecesse como único princípio explicativo (cf. Aarão Reis et. al., 2008). Não cabe aqui aprofundar o retorno reflexivo sobre os princípios teóricos que sustentavam as análises de cientistas sociais nas décadas de 1960, 1970 e 1980,1 mas sim lembrar que os debates antes referidos retomavam questões e retóricas de argumentação empregadas na discussão sobre a relação entre os modos de existência do campesinato e o desenvolvimento do capitalismo no campo na Europa, incitando a uma leitura mais cuidadosa dos diferentes participantes da polêmica. Em particular, um dos ângulos da polêmica mais abordados focalizava o significado das estatísticas coletadas pelos zemtvos, desde o século XIX, se era uma diferenciação reversível do campesinato como sustentava Alexander Chayanov (1966), sublinhando os efeitos do ciclo de vida doméstico sobre o balanço 1

O leitor interessado na história social do tratamento da questão agrária por cientistas sociais brasileiros pode consultar Garcia e Grynszpan (2002), que se inscreve na seqüência de ensaios bibliográficos sobre as transformações sociais no campo: Gnaccarini e Moura (1983), Santos (1988 e 1990), Musumeci (1991), Sigaud (1992) e Love (1996).

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Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil

produção/consumo, ou uma decomposição da camada camponesa entre uma burguesia e um proletariado rurais, como Vladimir I. Lenine (1969) defendeu em seu estudo sobre o Desenvolvimento do capitalismo na Rússia. As modalidades da hegemonia da grande exploração agrícola, contraposta à capacidade de sobrevivência dos estabelecimentos familiares, acenderam vivos debates na Alemanha e na Europa central, como se pode verificar em Questão agrária de Karl Kautsky (1899), que dialoga explicitamente com a investigação empírica dirigida por Max Weber para o Verein fur Zocial politik (1892, assim como Michael Pollak, 1986). Considerada mais de perto, a evolução histórica das relações no campo, quer na Europa ocidental, quer na Europa central, suscitava modéstia a qualquer leitor cuidadoso e atento; as simplificações abusivas ficaram como marcos dos descaminhos da afirmação ideológica e/ou da concorrência acadêmica nem sempre leal. Por sua vez, a riqueza e a densidade do material empírico analisado por cada contendor, no debate europeu, impunham respeito, dado o avanço e o apuro dos instrumentos metodológicos, sobretudo no nível estatístico. A confrontação das contribuições teóricas de diferentes horizontes – para não esquecer as referências à escola de Chicago com Robert Redfield (1953), na famosa monografia de Antônio Candido (1964) – não acarretou necessariamente ecletismo das formas de se pensar a relação entre campesinato e o desenvolvimento do capitalismo no campo, mas o debate entre os estudiosos obrigou certamente a tentar explicitar em que o estudo do caso brasileiro acrescentava ao entendimento de processos universais (Love, 1996). A análise dos modos de operação e dos processos de decisão de grupos familiares socialmente situados, apresentada adiante, deve constituir um teste da fecundidade intelectual do esforço de pesquisa realizado. A singularidade das mudanças do mundo rural, acompanhando o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, compreendida em sua complexidade, contribui em alto grau para se entender a multiplicidade das vias de transformação equivalentes nos quatro continentes (sobre a multiplicidade das vias de transformação no campo, ver Bloch, 1952; Moore Júnior, 1967; Love, 1996; Sachs, 1997).

CATEGORIAS DE ENTENDIMENTO E QUESTIONAMENTOS PARA COMPREENDER FAMÍLIAS COMO AGENTES ECONÔMICOS DO MUNDO RURAL Não buscaremos a seguir retomar exaustivamente a totalidade das questões estudadas ao longo dos últimos cinqüenta anos, mas privilegiaremos aquelas que ressaltam a especificidade dos cálculos e das práticas de atores econômicos em que a família serve de matriz básica para a mobilização das 222

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

equipes de produção e, simultaneamente, como referência dos padrões de consumo a serem atingidos com regularidade fixada.2 Partiremos de uma observação freqüente sobre grupos domésticos camponeses: ressalta-se a indissociabilidade entre a unidade de produção e a unidade de consumo, pois tanto uma como a outra fazem apelo aos mesmos membros da família e estão regidas pelos mesmos padrões de autoridade doméstica. Só que muitos revelam sua exterioridade, ou desprezo, por essas unidades ao exprimirem que tais grupos domésticos tenderiam à autarquia ou viveriam em autarquia. Em termos claros: a unidade de produção seria responsável pela totalidade ou pela maioria dos bens materiais consumidos pelo grupo doméstico, como se a inscrição em relações mercantis regulares ou não existisse ou fosse irrelevante. Tais preconceitos são comuns aos portadores da ideologia do sistema de mercados (Polanyi, 1980), aos que acreditam que a evolução da humanidade teria por princípio uma economia natural, passando gradativamente a circuitos de trocas mercantis de importância crescente. O campesinato é assim percebido como um pólo intermediário entre as sociedades primitivas e as sociedades de mercado. Qualquer pessoa que conviva com grupos de camponeses brasileiros não pode esquecer que o feijão de que se alimentam é cozido com sal, que não produzem, que as refeições são servidas em louça após preparo em panelas, que estão vestidos e, mais recentemente, calçados, para dar exemplos bem corriqueiros. A auto-suficiência não está na economia camponesa; ela é característica, sobretudo, dos que dissertam sobre o universo social sem se deslocarem de suas condições de existência cotidiana, tomando sua imaginação, ou fantasmas, por fatos observáveis. Os grupos camponeses de que estamos tratando – os sitiantes, os agricultores, os lavradores, os posseiros, os assentados – estão sempre inseridos em sistema de mercado, participam do mercado de terras, do mercado de produtos, do mercado de trabalho; há sistematicamente venda e compra de mercadorias. Assim, tanto há produção que pode ser destinada ao autoconsumo como produção especialmente feita para venda; os habitantes de uma mesma casa podem ser mobilizados pelo chefe de família para ajudá-lo na faina cotidiana, mas pode haver trabalho de terceiros remunerado a dinheiro que substitua esforço de membro doente, idoso, ou cujo sexo ou idade os tornem inaptos 2

Foi com prazer que retomamos a leitura da primeira versão do artigo “Trabalho familiar e campesinato”, escrito por Beatriz Heredia, onde apresentamos como hipóteses empiricamente fundadas os padrões de comportamento de unidades familiares camponesas da Zona da Mata do Nordeste, bem como a análise das “categorias nativas” que informavam o desempenho e a percepção de tais práticas. Essa seção é sobretudo um retorno aos questionamentos esboçados em seminário de pesquisas coordenado por Moacir Palmeira no PPGAS do Museu Nacional em 1972, após o primeiro trabalho de campo no Nordeste. Como assinala o trabalho rigoroso realizado por Love (1996), a datação precisa da pesquisa científica é um recurso indispensável para a história da evolução das idéias, já que é a polêmica entre pontos de vistas antagônicos que assegura a pertinência dos avanços científicos.

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Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil

para a tarefa. O grupo doméstico materializa-se como unidade de produção em configurações particulares, como também é o caso de sua materialização como unidade de consumo, mas a circulação dos bens e das pessoas admite perfeitamente trocas mercantis e conhecimento da flutuação dos preços. Apenas os padrões de legitimidade da autoridade doméstica estão relacionados ao fato de se ter de obter o necessário para a reprodução de um mesmo conjunto de pessoas, de uma casa na linguagem nativa, mediante a mobilização do esforço desse mesmo conjunto de pessoas. Os padrões que conferem legitimidade às autoridades sobre o estabelecimento agrícola não estão vinculados a maior ou menor rentabilidade financeira dos recursos que podem ser mobilizados a cada ciclo agrícola, até o trabalho dos próprios membros da família. Em certo sentido, o aprovisionamento regular da unidade doméstica é um constrangimento inicial, uma referência constitutiva do grupo doméstico como tal. A elaboração dos balanços e cálculos ligados à produção, estocagem e destino dos produtos é que fica diretamente vinculada a este objetivo. Nos estudos realizados no Brasil, a oposição casa–roçado, casasítio, casa–lavoura, ou mais genericamente casa–campo, surge como central na ordenação das práticas de consumo e de reprodução física dos membros do grupo doméstico e na mediação com a mobilização do trabalho de seus membros e dos recursos que adquirem. O esforço renovado a cada ciclo agrícola no campo, no sítio ou no roçado permite a obtenção de produtos que direta ou indiretamente contribuirão para enfrentar as necessidades de consumo da casa. O ciclo do aprovisionamento da casa é bem mais constante ao longo do ano, sendo as feiras semanais um marco temporal freqüente dos grupos descritos, sobretudo no que se refere a bens alimentares, variando os demais itens de consumo, como roupa, calçado e mobiliário, segundo a sazonalidade da produção do estabelecimento agrícola. O ciclo agrícola tem, via de regra, marco temporal bem mais rígido, com épocas de colheita associadas à abundância e à escassez para os momentos que precedem as colheitas do ano seguinte. Uma das questões centrais do cálculo efetuado pelos responsáveis por grupos domésticos camponeses é justamente entre colheitas cíclicas e perecíveis, concentradas em determinadas épocas do ano, e padrões de consumo regulares ao longo do tempo. Como exploraremos adiante, são as modalidades de proceder a esse ajustamento, que passa por vendas e compras a dinheiro, que estão na raiz da associação indevida entre “excedente camponês” e venda de produtos agrícolas.

Grupo doméstico e sua materialidade na produção e no consumo Um eixo fundamental de nosso trabalho foi o de questionar o que não raro havia sido designado como característica básica desse tipo de exploração 224

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

agrícola, ou seja, a impossibilidade de dissociar a unidade de produção da unidade de consumo. De fato, a literatura das ciências sociais já assinalara que tais unidades econômicas apresentam a particularidade de serem compostas por indivíduos vinculados por laços independentes das necessidades dos processos produtivos, isto é, são as relações de parentesco que delimitam os membros que podem ser mobilizados para as mais variadas tarefas. Tais unidades são contrapostas às empresas capitalistas, compostas por assalariados recrutados segundo as necessidades de rentabilidade monetária do montante de dinheiro investido – princípios bem diferentes dos que regem relações entre indivíduos que também fazem parte das mesmas unidades de consumo. A unicidade entre unidade de produção e unidade de consumo não implicava, porém, identidade entre esses pólos, já que um consumidor pode estar excluído do grupo de trabalhadores mobilizáveis dependendo de sua idade (crianças, idosos), gênero (oposição masculino/ feminino e sua redefinição ao longo do ciclo de vida) e estado de saúde (doenças, invalidez). A análise por nós realizada demonstrava a relevância de se diferenciar o conjunto mobilizado para a produção e aquele que se materializava por ocasião do consumo, permitindo detalhar relações de gênero e de geração, assim como hierarquias e princípios de autoridade para enunciar as decisões. Os que se agrupam para o consumo coletivo (residindo em comum, tomando refeições etc.) não o fazem da mesma maneira nos diversos atos produtivos, variando tais configurações ao longo dos ciclos de vida individuais e domésticos. São essas diferenças que imprimem a especificidade dos modos de funcionamento dessas explorações agrícolas e acarretam modalidades de cálculo e estratégias econômicas também específicas. Ao falarmos do conjunto de pessoas que trabalham e consomem conjuntamente, tratávamos de grupos domésticos, ou seja, conjunto de indivíduos que buscam assegurar a reprodução física e social de cada um e do coletivo assim formado. No caso estudado, eram compostos basicamente por pais e seus filhos solteiros, em alguns casos se admitindo a presença dos pais de um dos membros do casal. A família elementar, por vezes acrescida de membros de terceira geração ascendente, era a forma mais freqüente dos grupos domésticos. Se usamos a expressão grupo doméstico, e não família, é para assinalar que mesmo membros de uma só fratria pertencerão ao mesmo grupo doméstico inicial, mas farão parte de grupos distintos após seus casamentos; os laços constituídos por mecanismos de aliança matrimonial e de filiação incidem sobre a formação dos grupos domésticos, mas não devem ser confundidos ou reduzidos a esta dimensão. Família supõe, ainda, a reprodução social em seu sentido mais amplo, incluindo-se a transmissão de nome patronímico e do capital simbólico acumulado por gerações anteriores, transmissão de patrimônio material e cultural. Essas 225

Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil

dimensões dos vínculos familiares excedem os objetivos da reflexão aqui proposta.3 O casamento, sancionado ou não por cerimônia civil ou rito religioso, coincide com o momento inicial do grupo doméstico, acarretando uma autonomia do casal em relação aos grupos domésticos de cada cada cônjuge. Nesse momento, há a formação de economia doméstica independente, ou seja, um orçamento que reflete a existência de cozinha separada e de mecanismos próprios de aprovisioná-la, sobretudo por meio dos produtos agrícolas ou derivados da criação de animais, seja por venda seguida de compra dos alimentos essenciais, seja pelo autoconsumo. Com o trabalho na exploração agrícola – sítio ou roçado –, materializa-se a unidade de produção, ao passo que a unidade de consumo tem na casa o eixo de suas atividades. O homem pai de família centraliza as decisões nas atividades agrícolas, ao passo que à mulher mãe de família cabe a responsabilidade pela organização do consumo. Na medida em que é o trabalho no sítio ou roçado que fornece os elementos e as condições de existência da casa, atribui-se à exploração agrícola a condição de pólo dominante na oposição. A localização e o aspecto da casa predeterminam a autonomia do grupo doméstico nela abrigado. Se a casa é habitada por moradores ou colonos, isto é, situada em grandes plantações e acarretando a subordinação pessoal dos residentes ao dono da propriedade (Palmeira, 1976), os cultivos permanentes ou temporários sob a forma de sítios ou roçados também supõem o controle direto ou indireto do grande proprietário. Mesmo dentro dos grandes domínios, a localização da residência no arruado da propriedade, próximo às casas-grandes, marca a precariedade do vínculo do morador com o senhor, ao passo que as casas de morada contíguas a sítios de árvores frutíferas são sinal de relações privilegiadas entre os residentes e os habitantes das casas-grandes, até mesmo de vínculos superiores a duas gerações. Quando localizada a moradia fora do espaço sob o controle direto dos grandes proprietários, quer se trate de pequenas propriedades ou mesmo de ruas, como são designados os locais de concentração de prédios precários de antigos habitantes do mundo rural, agora residindo em periferias urbanas ou vilarejos, a autonomia dos grupos domésticos tende a afirmar-se não só na esfera do consumo e das modalidades de reprodução social (cultos religiosos, redes abertas de conhecidos e de amizade etc.), como também nas decisões sobre os usos do potencial de trabalho de seus membros e do destino dos cultivos de seus roçados ou sítios. Ou ainda de suas criações de animais domésticos. Se a terra para plantio pode provir do patrimônio 3

Para hipóteses mais recentes sobre a particularidade dos mecanismos de aliança e de filiação no Brasil, sobretudo no universo social engendrado pela grande plantação açucareira, partindo de reconsideração das teses de Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala (1933), consultar Garcia Júnior (2007).

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Diversidade do campesinato: expressões e categorias

imobiliário familiar, hipótese sempre muito prezada, a exploração agrícola pode depender freqüentemente de terras arrendadas a dinheiro ou pagas sob a forma de modalidades de parceria em cultivo comercial. As condições impostas a rendeiros ou meeiros não costumam ser tão restritivas quanto é costumeiro nas situações de morada ou de colonato. Ser dono de chão de casa aparece como valor supremo, assegurando inclusive tentativas para se exercer o pequeno comércio (como feirante ou dono de bodega) ou o artesanato, além de preservar a liberdade de escolha de devoção religiosa ou de pertencimento à associação, sindicato ou grupamento político. Chão de casa prima sobre terra de agricultura na afirmação ou na conquista da autonomia de decisões sobre a vida individual ou doméstica; os padrões de transmissão de terra têm demonstrado como o fracionamento de terras agrícolas está ligado a assegurar chão de casa para um novo casal. Se as considerações anteriores se referem sobretudo às áreas de grandes plantações voltadas para exportação, elas não perdem a pertinência quando se estudam as áreas de colônias atribuídas a imigrantes europeus ou japoneses da segunda metade do século XIX até os anos 20-30 (Seyferth, 1974; Santos, 1978). Nesses casos, a ameaça não provém tanto da expansão das grandes propriedades vizinhas como do estoque limitado de terras em poder dos descendentes dos primitivos imigrantes e a conseqüente ameaça de fracionamento do patrimônio imobiliário nas gerações seguintes. Garantida a autonomia de possuir a disposição do próprio corpo e do tempo, ou seja, afastada a ameaça de ingerência de poderes extradomésticos, a oposição casa, roçado ou sítio serve para se pensar e demarcar o lugar de cada membro do grupo doméstico segundo o reconhecimento social das atividades produtivas que realiza, em um ou outro âmbito, mesmo no cuidado com a criação de animais. O peso da polaridade inverte-se, pois a casa fica associada a repouso ou restauração das forças, ao passo que as atividades agrícolas no sítio ou roçado dão as condições para que o consumo doméstico se efetue, sendo o controle dessas atividades percebido como prerrogativas do pai de família. Em contraposição, a organização do consumo e do descanso na casa é percebida como atribuição feminina e de responsabilidade da mãe de família. A oposição masculino/feminino inscreve-se dessa maneira na ordenação das tarefas cotidianas, tanto agrícolas como de criação, negócio, artesanato ou de preparo do necessário ao consumo e à restauração da vitalidade. Várias monografias, não exclusivamente sobre o Nordeste, registraram como o uso da categoria trabalho e do verbo trabalhar está associado à oposição entre atividades vinculadas ao sítio ou roçado e atividades de manutenção da casa ou de preparo do consumo, não consideradas passíveis de serem valorizadas como equivalentes em importância e merecedoras da designação de trabalho. As análises etnográficas da categoria trabalho mostraram ser um poderoso revelador das hierarquias sociais no interior do grupo doméstico, dos princípios de 227

Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil

legitimidade da autoridade doméstica, e igualmente da cosmologia dos agentes para pensar a relação homem–natureza e os significados últimos de suas práticas. Vale lembrar que o uso da expressão terra de trabalho no importante documento de Itaici publicado pela CNBB nos anos 80 estava diretamente vinculado à afirmação de uma via camponesa de transformação do mundo rural (CNBB, 1980; Martins, 1980; Heredia, 1979; Garcia Júnior, 1983; Sigaud, 1979; Woortmann e Woortmann Júnior, 1997). Desde o artigo publicado em América Latina, havíamos analisado que a criação de animais domésticos, fossem eles de certo porte (bovinos, equinos) ou “miunças” (caprinos, ovinos, suínos e aves), aparecia como atividade mediadora entre a agricultura do sítio/roçado e o consumo da casa, desempenhando funções claras de reserva e acumulação. Em anos de fartura, a criação ampliava-se, usando-se para alimentá-la parte dos subprodutos obtidos a título de ração (o que o economista polonês Jerzy Tepicht [1973] denominara autoconsumo intermediário), ao passo que em anos adversos, como os das secas nordestinas, a venda em larga escala de criação permitia a aquisição de alimentos de primeira necessidade. Em Terra de trabalho (Garcia Júnior, 1983, p.178) havia mesmo retomado comentários estatísticos do IPEA salientando o paradoxo constatado de queda de preço da carne bovina em anos de seca do Nordeste. Como destinatários potenciais dos produtos da lavoura, os animais de criação compartilham com os membros da casa a condição de consumidores, dos que compõem o “gasto da casa”; mas, exceto os cães, gatos e passarinhos, a criação pode propiciar o gasto da casa em momentos de precisão, por carência de alimentos fundamentais ou mesmo ameaça de fome, ou ainda por doenças ou visitas inesperadas. A criação supõe a agricultura e serve mesmo para paliar sua eventual insuficiência. A expansão da agricultura que possibilita o acréscimo de plantel é assim instrumento privilegiado de acumulação camponesa. Numerosas foram as etnografias que registraram posteriormente a posse da criação como meio de acumular para o casamento e as despesas de instalação de novo grupo doméstico. Exatamente por ser a criação de animais o instrumento por excelência de reserva e acumulação de grupos domésticos camponeses, ficou evidente o impacto do simbolismo vinculado à expansão da pecuária baseada em pastos semeados pelos próprios agricultores em terras alheias, a título de foro ou arrendamento exigido pelos grandes proprietários, na inversão manifesta em que o alimento do gado impede o cultivo de alimentos para o grupo doméstico. A terra de gado condena ao desenraizamento, materializa a expropriação (como no caso do cercamento dos campos na Inglaterra analisado por Karl Marx [1967]), de grupos camponeses de vários tipos, cuja sobrevida dependia totalmente de estoques de terra de trabalho, expressão equivalente nesse contexto à terra de agricultura (Heredia, 1979; Martins,1980; Garcia Júnior, 1983, 1990). 228

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

Note-se que a oposição masculino/feminino também impera no domínio da criação: os animais de maior porte (equinos, bovinos) ou destinados ao transporte para fora do mundo doméstico são associados ao pai de família ou a algum de seus filhos já rapazes. Os de menor porte (caprinos, ovinos, suinos, aves), os bichos de terreiro, são cuidados pela mãe de família ou pelas filhas, decidindo elas mesmas a venda do plantel e o destino do dinheiro assim arrecadado (objetos de consumo da esfera feminina como vestuário, calçado, cosméticos, adereços etc.). A trilogia agricultura–criação–gasto da casa informa, portanto, as estratégias coletivas e individuais para se enfrentarem as variações das necessidades de consumo doméstico ao longo do tempo, tanto as flutuações sazonais (época chuvosa e faina pesada na lavoura; época seca e raridade de estoques e de tarefas agrícolas), quanto na sucessão dos anos. A oposição masculino/feminino estrutura domínios distintos, mas complementares, com primazia do cultivo agrícola, associado ao homem pai de família, sobre a manutenção da casa, espaço tido como próprio para as mulheres mães de família. Mas a entrada no mundo social pelo nascimento, ou a saída quando da morte, passava-se, até a medicalização crescente desses cuidados, fundamentalmente na esfera da casa sob a hegemonia feminina. O carater indissociável do vínculo entre unidade de consumo e unidade de produção apresenta-se, então, não como uma coletividade de indivíduos homogêneos e intercambiáveis, como tende a ser concebido o processo de trabalho industrial ou agroindustrial, mas conformado pela distinção de domínios complementares pensados como mundo das mulheres e mundo dos homens. Note-se que, embora a imensa maioria dos grupos domésticos seja constituída por um casal inicial, forte é a variação dessas unidades segundo a composição de cada qual por sexo e idade. Os estudos empíricos assinalam como as atividades atribuídas a cada descendente do casal inicial, mesmo seu processo de socialização aos valores e estilos de vida dos grupos a que pertencem, dependem da posição de cada indivíduo na fratria e de sua composição por sexo e idade. Não é incomum a adoção formal ou “pegar para criar” meninos ou meninas quando a fratria apresenta uma inclinação demasiado acentuada para um dos pólos. Migrações precoces também são observadas em tais situações, buscando-se certo equilíbrio entre membros masculinos e femininos nos grupos domésticos. A demografia dos grupos domésticos camponeses não pode ser reduzida a determinismos biológicos, sem que se estudem as práticas concretas de cada casal para limitar, aumentar ou conservar os dependentes nascidos como filhos. As estratégias de casamento, de perpetuação ou de rompimento de vínculos matrimoniais ou de simples co-habitação, como as regras de filiação legítima e de transmissão do nome patronímico e de patrimônio material e cultural são componentes fundamentais da evolução da demografia de grupos domésticos camponeses 229

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e, portanto, de seu potencial produtivo. Laços familiares designam assim modalidades de se manter, criar ou destruir relações entre indivíduos não redutíveis a processos biológicos ou a determinismos ecológicos que aumentam ou diminuem as chances de sobrevida.

Ciclo de vida do grupo doméstico e variações da produção e dos gastos A própria idéia de existência de grupos domésticos como quadro das práticas permitindo a reprodução humana acarreta como seu corolário a noção de ciclo de vida do grupo doméstico como formulou Meyer Fortes (1958). Cada unidade inicia-se pelo casamento e finda pelo desaparecimento do casal inicial, conhecendo uma expansão seguida de contração ao longo do ciclo, ela mesmo variável em função dos destinos sociais seguidos pelos filhos, com ênfase nas práticas matrimoniais ou migrações para outros espaços geográficos. Se as teorias propostas por Alexander Chayanov (1966) ganharam pertinência por relação aos seus adversários, que pretendiam explicar a diferenciação social do campesinato pelo desenvolvimento das relações capitalistas, foi por demonstrar que sem se prestar atenção à variação da composição por sexo e idade de diferentes grupos domésticos, ao estágio de ciclo de vida de cada unidade, em síntese, ao potencial de força de trabalho e de competências mobilizáveis por cada chefe de família, qualquer diferença de riqueza ou de renda não poderia servir de indicador de processos irreversíveis de mudança social. O estudo da mobilidade familiar ou individual, descendente ou ascendente, torna imprescindível a identificação do momento de ciclo de vida de cada grupo doméstico, até no tocante ao montante de terra capaz de permitir a manutenção de suas condições de existência ao longo do tempo. As etnografias realizadas no Brasil demonstram que os filhos de agricultores, ao passo que residem na casa de pais vivos, independentemente de suas idades, conservam-se sob a autoridade paterna, e mesmo seus esforços produtivos não são classificados como trabalho, mas como ajuda. A plena masculinidade está associada ao estabelecimento de um novo casal, passando, então, o indivíduo, qualquer que seja sua idade, de rapaz a homem ; do mesmo modo, a condição de mulher, ou de esposa, supõe o abandono da condição de moça, sendo que o casamento aparece como uma dimensão ainda mais explícita para o reconhecimento da condição de indivíduo do que no caso masculino. Essas modificações arriscadas da condição social de cada um, que nunca podem ser reduzidas às suas componentes biológicas, aumentam o interesse pela compreensão dos modos de operação da solidariedade intradoméstica, sem os identificar com os modos de funcionamento da solidariedade familiar entre indivíduos pertencentes a grupos domésticos distintos, mesmo quando originários 230

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

de fratrias idênticas. As regras de transmissão de patrimônio material e simbólico balizam os processos sucessórios e vínculos intergeracionais, incidindo diretamente nos capitais econômicos (terras, equipamentos, meios financeiros etc.) e culturais (escolaridade, vínculos religiosos, associativos etc.) que podem ser mobilizados por qualquer grupo doméstico ao longo de seu ciclo de existência. A socialização dos filhos residindo na casa paterna passa também pela atribuição progressiva de meios de se realizar o balanço entre o desejo de adquirirem bens para seu gozo pessoal (vestuário, adereços) e o esforço a ser dispendido com atividades agrícolas ou de criação de animais que proporcionam a renda monetária para adquiri-los. Atribuição de terra e de meios para o cultivo de roçadinhos a filhos que ultrapassaram a primeira infância foi também constatada em várias regiões do Brasil, assim como plantios que não diferem de lavouras predominantes no roçado familiar (mandioca, milho, feijão etc.), mas cujo destino não visa o abastecimento da casa e sim o provimento do consumo individual. Se as necessidades aumentam com a idade e a própria individualização dos filhos, aumentam também a superfície cultivada por cada filho e o esforço despendido, progressivamente articulado com atividade de criação de animais, sobretudo nos momentos que antecedem o casamento. A própria definição do que seja infância, e das atividades que lhes são características, está também relacionada à possibilidade ou obrigatoriedade de escolarização dos filhos (Linhares, 2004); a mobilização dos filhos em atividades agrícolas no presente impede-os de acumular um grau de escolaridade que facilite sua reconversão individual no futuro. Tanto o roçadinho quanto a criação possuída individualmente podem ser usados para o consumo coletivo da casa em situação de precisão, saldando os pais as dívidas com os filhos em ciclos agrícolas posteriores. O primado do gasto da casa sobre os gastos individuais não implica, pois, necessariamente, anulação de diferenças entre os filhos, tampouco a individualização de cada um ameaça os equilíbrios propiciadores da solidariedade familiar. Variações dos ciclos agrícolas entre anos de abundância ou de escassez combinam-se, mas não se confundem, com variações no ciclo de vida de cada grupo doméstico. Nada há, portanto, de “economia natural” ou de auto-subsistência nos grupos camponeses estudados por cientistas sociais no Brasil; há formas sociais de se lidar com variações climáticas e sazonais a cada ciclo agrícola, há formas sociais para se enfrentarem as modificações impostas pelo ciclo biológico das pessoas e pelo ciclo de vida do grupo doméstico a que pertencem. Todas essas modalidades de comportamento observável correspondem a oposições simbólicas, a antagonismos sistemáticos de classificações, cuja decodificação permite torná-las compreensíveis. Teoricamente, as configurações sociais são tão complexas e variáveis quanto as estudadas em empresas inscritas em “economias de mercado”; seria 231

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um erro sociológico descartá-las como “estruturas elementares” que nada revelam de especial sobre o conhecimento da racionalidade econômica.

Temporalidade descontínua do ciclo agrícola Um dos problemas mais recorrentes nas análises econômicas sobre as atividades agrícolas, como salientou Georgescu-Roegen (1963), é estudá-las conservando a concepção de tempo das atividades industriais e urbanas. Tal tempo, particularmente em linhas de montagem, é uniforme e reversível. Oportunidades perdidas, por panes eventuais, podem ser recuperadas mediante prolongamento das jornadas de trabalho ou pela aceleração de cadências. Na agricultura, há tarefas dificilmente postergáveis, como reza o ditado: “choveu, plantou”. Terra não umedecida não permite semeadura com chances de sucesso, colheitas proveitosas impõem seus momentos. Resumindo: a mobilização da força de trabalho não é uniforme ao longo do ciclo agrícola, e o não desempenho de determinadas tarefas em certas fases são fatos irreversíveis naquele ano. Há, portanto, momentos de pico das fainas agrícolas e momentos de vazio, independentemente da organização do esforço produtivo. O uso do potencial produtivo da família ao longo do ano e o montante da colheita dependem do volume de trabalho nos momentos de pico do ciclo agrícola. Assim, as inovações em equipamentos e maquinário ou adubos e defensivos agrícolas são rejeitadas ou adotadas mais pela diminuição das exigências de trabalho que acarretam no momento do pico do ciclo do que pela rentabilidade financeira do investimento realizado (cf. Chayanov, 1966). Não foi por acaso que o motor em casas de farinha se difundiu rapidamente, pois poupava trabalho extradoméstico em etapa decisiva do beneficiamento da mandioca, componente indispensável da comida. Já a invenção de equipamento de arrancar mandioca, mesmo com todos os cuidados ergonômicos, encontrou poucos adeptos entre agricultores familiares, pois é tarefa que pode ser distribuída no tempo. O conhecimento preciso da temporalidade do ciclo agrícola, que varia não só com o clima e a pluviosidade, mas também com o tipo de lavoura adotada, permite entender melhor a lógica das práticas e estratégias dos grupos domésticos. Outro exemplo clássico é o das migrações sazonais (Menezes, 2002), que não acarretam nenhum problema se o deslocamento se efetuar durante as épocas de vazio do ciclo agrícola. Porém, grande é o desfalque da força de trabalho familiar se a migração coincidir com os momentos de preparação dos cultivos para a semeadura, ocorrência provocada muitas vezes pelo fim dos estoques de alimentos e de escassez de recursos monetários, impondo o trabalho assalariado temporário como paliativo. As ameaças à reprodução do grupo doméstico não são uniformes ao longo do ciclo agrícola, e muitas estratégias econômicas só ganham sentido se o analista reconstituir as exigências em trabalho ao longo do ciclo completo. 232

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Lavouras comerciais e lavouras com alternatividade autoconsumo/venda Consorciar lavouras de periodicidade diferente, mesmo com queda de produtividade por hectare, é prática freqüente porque permite aumentar o trabalho ao longo de todo o ciclo agrícola e dispor de lavouras em diferentes momentos para assegurar o “gasto da casa”, seja pelo autoconsumo, seja pela venda da produção para uso dos rendimentos assim obtidos na compra do indispensável ao consumo da casa. Essa queda de produtividade do trabalho, que assegura a elevação da produtividade da terra explorada, só aparece quando os cálculos se referem ao ciclo agrícola completo; Tepicht (1973) denominou tal prática de substituição de terra por trabalho. Fato é que durante o desenrolar de cada ciclo agrícola o consorciamento de lavouras de diferentes épocas de colheita diminui a ociosidade do potencial de trabalho doméstico. Muitas vezes, cultivos destinados ao autoconsumo são consorciados com lavouras comerciais, como é freqüente nos roçados de algodão no Nordeste (Garcia Júnior, 1990); as lavouras alimentares de ciclo mais rápido financiam em certo sentido a espera da renda proporcionada pelo cultivo comercial. Cultivos irrigados são em geral adotados com grande presteza, porque criam a possibilidade de se redefinir completamente o ciclo agrícola e tornam possível o trabalho agrícola em momentos que antes eram de forte ociosidade (Novaes, 1985; Caron e Sabourin, 2001). Outra característica fundamental da economia familiar de grupos camponeses brasileiros é a combinação recorrente de lavouras ditas “para o gasto da casa” e de lavouras para venda; a dissertação de mestrado de Eliane Cantarino Gonçalves Bastos (1977) sobre citricultores fluminenses apresenta o tÍtulo eloqüente de “Laranja e lavoura branca”. É incrível como após tantas demonstrações empíricas datando de três décadas continuem a proliferar mal-entendidos sobre os significados das práticas de agricultores, freqüentemente rotulados de “rotineiros” ou de “apegados a tradições ultrapassadas”. Há cultivos voltados exclusivamente para venda, nos quais a produtividade valor por hectare e por recursos despendidos constitui a motivação básica, porque uma parte do orçamento doméstico só pode ser suprida por compra de mercadorias a dinheiro (sal, açúcar, querosene ou luz elétrica, produtos de limpeza, vestuário etc.). Porém, uma parte da alimentação pode provir de cultivo próprio, como é freqüente com farinha de mandioca, feijão, milho, batata etc. Essas lavouras denominadas com freqüencia de “para o gasto” ou de “lavouras brancas”, podem ser objeto de autoconsumo, mas também podem dar origem a mercadorias, objetos de compra e venda a dinheiro. Permitem o gasto da casa em itens imprescindíveis, que não podem faltar à mesa, podendo circular do sítio ou do roçado para a casa ou passarem por circulação mercantil antes de seu consumo 233

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final. Com Beatriz Heredia (1979), denominei tal duplicidade de funções de lavouras marcadas pela alternatividade autoconsumo/venda. Na análise da economia dos agricultores do brejo e do agreste da Paraíba (Garcia Júnior, 1990) foi apresentada formalização matemática para demonstrar que a flutuação dos preços entre os dois tipos de lavoura poderia ser de tal monta que o chefe de família pudesse manter a opção de cultivos com alternatividade, mesmo se sua produtividade valor por hectare, calculada pelo preço médio anual, fosse inferior à das lavouras destinadas à venda. Como o gasto da casa com certos alimentos, percebidos como a materialização do que é comida, é um dado inquestionável e pouco sujeito a variações de curto prazo, só oscilando em função do número de pessoas a serem alimentadas, a decisão de continuar a produzir tais cultivos não revela uma falta de sensibilidade à flutuação dos preços, mas, ao contrário, formas de responder às variações de preços colocando o grupo doméstico em posição vantajosa para garantir seu consumo em qualquer circunstância. Não creio também haver “aversão a risco” da parte dos grupos domésticos, mas apenas a busca de correr riscos inerentes às variações dos ciclos agrícolas em posição vantajosa para enfrentá-los. Sob esse aspecto, é verdade que tal cálculo pode manter-se sempre que a exploração agrícola não seja institucionalizada sob a forma de empresa independente, de tal maneira que se rompa a possibilidade de estarmos diante de um só orçamento doméstico. Havendo empresa agrícola com contabilidade própria, mesmo quando possuída e operada por um só grupo doméstico, haverá duplicidade de balanços de fontes de recursos para despesas e despesas efetivamente efetuadas, e os cultivos com alternatividade podem-se transformar em itens residuais ou apenas complementares. Mas, em todo caso, o predomínio das lavouras marcadas pelo signo da alternatividade autoconsumo/venda é perfeitamente compatível com uma aguda sensibilidade dos chefes da unidade doméstica à flutuação de preços.

Outra falsa questão: a comercialização do excedente camponês Outra observação errônea, que ignora a literatura disponível desde os anos 70, refere-se à parcela da produção agrícola doméstica dedicada à venda, qualificada quase sempre de “excedente camponês”. É curioso observar que o alvo de tais comentários nunca é o cultivo destinado apenas à venda, como laranja (Gonçalves Bastos, 1977), abacaxi, maracujá (Heredia, 1979) ou algodão (Garcia Júnior, 1990), semeados para serem fontes de rendimentos monetários; a observação do destino de tais entradas de dinheiro revela que o poder de compra é empregado para propiciar o consumo da 234

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casa. Talvez por isso não engendrem imagens de excedentes de produção acima do consumo regular. É justamente quando o objeto da atenção está focalizado nas lavouras com alternatividade que a representação da parcela comercializada como excedente prospera. Questionados sobre venda de feijão, de milho, de farinha de mandioca, de arroz, de tubérculos, de frutas e de certas verduras, agricultores de vários pontos do país respondem: “vendo o mais-do-queo-gasto da casa”. Muitos parecem contentar-se com o significado aparente de tal afirmação e acham-na convincente como alicerce empírico da idéia de excedente além do consumo necessário. Caso se persista observando o destino do rendimento monetário, chegariam provavelmente às mesmas conclusões que às de etnografias meticulosas desde os anos 70: o rendimento equivalente ao “mais-do-que-o-gasto” serve apenas para se adquirir o necessário ao gasto de épocas posteriores. Em miúdos: a venda a dinheiro é apenas uma forma de diferir no tempo o consumo da unidade doméstica. Por que diferir o consumo passando pelo mercado? Muito simples: mais complicado ou impossível é possuir instalações para estocagem e armazenamento de produtos agrícolas em escala suficiente para impedir sua deterioração rápida (a exemplo de silos, frigoríficos etc.), capazes de garantir o consumo da unidade doméstica ao longo das 54 semanas do ano. A venda do “mais-do-que-o-gasto”, ou seja, da parcela que se deterioraria antes de seu consumo efetivo, como a compra de alimentos para o consumo da família, permite de fato ajustar o ciclo de produção agrícola, reduzido freqüentemente a uma colheita anual, ao ciclo de consumo, bem mais constante ao longo do ano. As variações sazonais da produção agrícola podem assim ser compatibilizadas com a regularidade do consumo de alimentos percebidos como essenciais ao longo de todo o ano. O “excedente” temporário, que arriscaria ser perdido por completo, nada tem de “excedente sobre o consumo” quando o raciocínio inclui a totalidade do ciclo anual. Essa “preferência pela liquidez”, transformando em moeda estoques de “comida”, ou vice-versa, para nada perder de item essencial, em sentido bem diferente do conceito forjado por John Maynard Keynes (1936), nada revela de fonte de riqueza acima dos níveis de subsistência ou de recursos superiores aos padrões considerados aceitáveis pelos próprios grupos domésticos. Assim se pode entender como agricultores brasileiros continuam a comercializar o “mais-do-que-o-gasto” em anos nos quais se sentem ameaçados de fome, ou, ainda, pode-se compreender a venda maciça de criação em anos de seca do Nordeste. A metamorfose de parcelas da produção de alimentos em “liquidez monetária” em nada altera o objetivo principal de assegurar a reprodução do grupo doméstico mediante a mobilização dos esforços desse mesmo grupo doméstico. Tudo dentro da racionalidade a mais estrita. 235

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Economia camponesa e acumulação Não há nenhum fundamento empírico a sustentar que os conceitos de acumulação de riqueza e o de economia camponesa sejam incompatíveis. Recapitulamos, anteriormente, como a criação de animais dotava a economia de grupos domésticos de poderoso mecanismo de reserva para enfrentar momentos de precisão ou de acumulação para despesas adicionais de consumo ou de investimento. Entre elas se observam a compra de novos equipamentos ou instalação de melhorias que permitam aumentar o potencial produtivo da família ao longo do ciclo agrícola ou diminuir o esforço em épocas cruciais. No Brasil, como também em diversos outros países, como na Polônia, estudada por Boguslaw Galeski (1972), nem sempre há distinção entre equipamento que aumente a capacidade produtiva da unidade doméstica e melhoria de seu estilo de vida, como na compra de veículos automotores como carros e motocicletas, instalações elétricas ou de novos meios de comunicação, acesso a água para usos diversificados, melhorias do conforto nas casas e dos galpões e dispensas. A melhoria dos padrões de vida ou sua deterioração – em outras palavras, a acumulação de recursos ou o empobrecimento – são processos que não derivam de nenhuma tendência inerente à economia camponesa; são processos que devem ser examinados de perto para se tornarem inteligíveis. A expansão da pecuária baseada em pastos semeados, em face da exigüidade do estoque de terras de muitas famílias camponesas, acarretou forte desacumulação ou mesmo expropriação das condições de existência de contingentes numerosos. Programas recentes de apoio público à cavação de poços artesianos em regiões agrestes ou semi-áridas têm, por sua vez, permitido atividades agrícolas, pecuárias, de artesanato ou de pequeno comércio nunca antes exploradas. O que se passa com os grupos camponeses depende em larga medida do que se passa com as categorias dominantes, os grandes proprietários e novos grupos econômicos, e mesmo empresas financeiras. A rolagem de dívidas dos “ruralistas” ou de seus representados com bancos públicos, em vez da execução de hipotecas de terras que dotem a reforma agrária de recursos ampliados, constitui desde os anos 90 um dos eixos principais da manutenção de tendências que impedem a acumulação de amplos setores de agricultores e a instalação em boas condições de novos contingentes de assentados. A histórica “socialização dos prejuízos”, posta em prática por instituições hoje extintas, como IBC para o café, IAA para o açúcar, dentre outras, continua a funcionar como mola central bloqueando reconversões em larga escala de diversos setores de pequenos e médios agricultores no campo brasileiro. Que fique claro: a falência ou o declínio de grandes explorações abre os horizontes para a acumulação da economia camponesa; o crescimento subvencionado do agronegócio priva a economia camponesa dos meios de sua expansão. 236

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

Idéia muito difundida em meios letrados, mas que se afasta completamente dos registros historiográficos ou de observações etnográficas recentes, é a que assimila grupos domésticos de camponeses a estabelecimentos exclusivamente agrícolas, excluindo-se atividades de artesanato, pequeno comércio ou inscrição temporária em mercado de trabalho, em locais próximos à residência rural ou implicando migrações para outras regiões. Sem aprofundar as origens do preconceito contra atividades comerciais (para tal, vale consultar M. F. Garcia-Parpet [2008]), cabe assinalar a freqüência da combinação de atividades agrícolas com o pequeno negócio, o que assegura, aos grupos domésticos que logram fazê-lo, meios suplementares de lidar com épocas de fartura e épocas de escassez ao longo do ciclo agrícola (Garcia Júnior, 1990), além de os inserir de forma duradoura em circuitos mercantis permitindo proximidade e familiaridade com flutuações de preços e mecanismos monetários e financeiros mobilizados nestas ocasiões. Os rendimentos do negócio permitem enfrentar os momentos mais difíceis de se efetuar o ajuste entre o ciclo da produção agrícola e o ciclo de consumo, justamente o que antecede o plantio do ciclo agrícola seguinte,4 sem ter de se recorrer a migrações. Por sua vez, muitos negócios só podem ser duradouros se o intermediário não depender apenas dos lucros que propicia para garantir o consumo de seu grupo doméstico; em outras palavras, caso o negócio fosse uma atividade especializada, seria totalmente inviável – só se sustenta porque pode ser combinado com a agricultura. O mesmo poderia ser dito para muito artesanato, notando-se que sua freqüência é tanto maior nos momentos de vazio do ciclo agrícola. A especialização em atividades agrícolas e pecuárias exige uma distribuição uniforme do trabalho e dos rendimentos ao longo do ano, situações bem diferentes das que se observam no campo de forma generalizada tanto histórica como geograficamente. Repetindo com Georgescu-Roegen (1963): não há porque ser etnocêntrico e universalizar o caráter uniforme e reversível do tempo das atividades industriais e urbanas; muitas explorações decretadas “inviáveis” por economistas e técnicos agrícolas nada mais fazem do que enfrentar racionalmente situações diferentes das configuradas pelos parâmetros escolhidos pelos “especialistas” letrados. O estigma de “camponeses irracionais” só perdura se não se questiona os fundamentos racionais dos modelos impostos pelos que se dizem estar apoiados em conhecimentos científicos. Da mesma forma, cada grupo doméstico de camponeses pode enfrentar situações de precisão sem dispor de meios para tanto; é ainda mais freqüente resolver pela venda da força de trabalho, como diarista ou por empreitada, por exemplo, tal dificuldade. Com Beatriz Heredia, cheguei a sugerir que o caráter vergonhoso do alugado no Nordeste possa ser entendido, além de se submeter à remuneração diminuta, como evidência de que o agricultor 4

Na França, esse momento crucial entre dois ciclos agrícolas sucessivos recebeu a categorização de soudure, que poderia ser traduzido por “solda”.

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ou membro de sua família que o pratica esteja desprovido dos meios de ajustar os dois ciclos (produção e consumo). Portanto, está “desequilibrado” ou cheio de dívidas. A migração em direção a mercados de trabalho longínquos permite eufemizar os motivos da precisão, mas é prática comumente utilizada em situações análogas. O respeito de um chefe de família depende de “não deixar seu povo passar fome”; assim, pode realizar várias tarefas que nada tenham a ver com trabalho agrícola, sem que negue que se identifica basicamente através da condição de agricultor. O momento do ciclo de vida do migrante é um qualificativo importante, pois a partida de um rapaz buscando recursos para casar não é percebida da mesma maneira que a de um pai de família “querendo se equilibrar”. O deslocamento de moças, de mulheres casadas, viúvas ou separadas também é indicativo da condição de vida de seus grupos domésticos de origem, se estão “equilibrados” ou “desequilibrados”. Por isso mesmo as tarefas realizadas dentro ou fora de grupos domésticos nunca são isentas de avaliações morais, de modo algum redutíveis ao montante de renda monetária que podem proporcionar. Estar submetido a urgências imperativas sem meios de enfrentá-las afeta a própria possibilidade de o indivíduo formular qualquer projeto (cf. Bourdieu, 1963; Castel, 1993), ou mesmo de se sustentar como pessoa autônoma. Mesmo se nossa restropectiva não foi exaustiva, esperamos que ela possa servir ao menos para relembrar como a etnografia meticulosa de atividades e de classificações empregadas por grupos domésticos de camponeses brasileiros permite a construção de questões sistemáticas a serem examinadas, bem como de categorias de análise que as permitem tratar, alargando o horizonte de entendimento das modalidades de participação de explorações domésticas camponesas na transformação do espaço rural e do conjunto de atividades agrícolas e agroindustriais. Com o perdão por repetirmos: muitos comportamentos condenados como “anti-econômicos” ou “irracionais” por economistas e cientistas sociais não se apoiam em observações empíricas sistemáticas, nem em retrospectivas sérias da literatura disponível. A subsistência desses julgamentos só pode ser atribuída à má-fé, a menos que se promova a ignorância à virtude científica.

RECONVERSÃO DE CAMADAS DESENRAIZADAS E PERSPECTIVAS DE FUTURO PARA O MUNDO RURAL Durante o regime militar (1964-1985), a política de repressão ou de inibição das mobilizações camponesas, até mesmo quando reclamavam a aplicação estrita das leis trabalhistas e a vigência do salário mínimo (ou dos dispositivos do Estatuto da Terra garantindo contratos menos leoninos de arrenda238

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

mento e parceria, ou ainda o respeito das benfeitorias e explorações agrícolas dos posseiros, consolidando por sua instalação definitiva em patrimônios imobiliários desapropriados para fins de reforma agrária), favoreceu as vias de transformação social privilegiando a reconversão de família de grandes proprietários. A contenção do protesto camponês diminuía os custos morais, políticos e monetários da expulsão maciça de antigos moradores, colonos ou agregados de grandes plantações agroexportadoras ou das fazendas de gado. A política agrícola de juros subsidiados e de incentivos fiscais para grandes proprietários e para grandes empresas industriais e financeiras que investissem no campo complementou o arsenal de apoios e subvenções a favorecer o modelo que ficaria conhecido como a “modernização conservadora” (Silva, 1982; Delgado, 1985; Palmeira e Leite, 1997). A perda de concessões tradicionais feitas a colonos de fazenda de café, a moradores de engenho ou vaqueiros e agregados de fazenda de gado, como a residência gratuita, o acesso à lenha e à água disponível no domínio, aos lotes de terra para sítios e roçados, a possibilidade de criação de animais de terreiro, entre outras, provocou uma pauperização absoluta dos contingentes que se deslocaram para a periferia das cidades. Assim, foram para as pontas de rua de pequenas, médias ou grandes cidades sem deter recursos para se instalar segundo os padrões das unidades domésticas urbanas, forçados a exibirem padrões que só poderiam aparecer como degradantes, se confrontados ao passado no mundo rural ou a famílias urbanizadas de longa data. A tal ponto constitui uma perda de referências básicas que o passado de carências e de controles arbitrários dos senhores passa a ser idealizado como “era de fartura” (Sigaud, 1971, 1979). Sem sítios ou roçados que assegurem ao menos parte do gasto da casa e trabalho nos momentos de vazios do ciclo das lavouras comerciais, sem a criação dos bichos de terreiro para enfrentar a precisão, tendo que pagar por chão de casa, acesso à água, à lenha ou ao combustível para cozinhar, submetidos a todas as urgências para assegurar a subsistência dos grupos domésticos, com o colapso de estratégias que garantiam a existência cotidiana configurando um verdadeiro desenraizamento social, tais grupos contam com parcas chances de efetivas estratégias de reconversão de suas condições sociais. Mais grave ainda é que a precariedade crescente pressiona para que tais grupos domésticos incrementem a oferta de trabalho assalariado, contribuindo para agravar a sobre-oferta de trabalho seguida de baixos salários, aquém do mínimo legal, e de aceitação de condições de trabalho aviltantes (cf. a excelente monografia de Maria Aparecida de Morais Silva, 1999). As dificuldades de reprodução camponesa repercutem negativamente sobre os padrões de vida do proletariado rural. A reversão dessas tendências supõe que se dotem as camadas empobrecidas de meios para atingir padrões decentes de existência, não apenas por meio de políticas de renda mínima como o bolsa família (que têm o grande 239

Campesinato, família e diversidade de explorações agrícolas no Brasil

mérito de fixarem patamares de decência), mas, sobretudo, de acesso a chão de casa ou a residências providas de serviços essenciais (saneamento, água, energia elétrica, escolaridade para descendentes, serviços de saúde) e também de acesso à terra para plantio e criação de animais. Restaura-se por essa via a capacidade dos próprios grupos domésticos de participarem ativamente da melhoria de suas condições de existência, abandonando de vez a posição de eternos objetos de filantropia dos “grandes”, ou daqueles qualificados de “homens” aos olhos dos que se desqualificam ao se perceberem como “cabras”. Por isso mesmo não pode haver dúvidas de que políticas de reforma agrária, contendo a expropriação do campesinato submetido, e estabilizando as condições de desenvolvimento da economia camponesa, constituem o caminho privilegiado para reverter a degradação das condições de vida dos mais necessitados. Não se deve esquecer, porém, que a melhoria dos padrões de vida das camadas empobrecidas dependerá, sobretudo, da capacidade dos grupos domésticos para se apropriarem das oportunidades a que tiverem acesso, dotando-se de perspectivas de futuro que justifiquem a mobilização de esforços individuais e coletivos (Leite, 2003). Retomar o conhecimento acumulado pelas ciências sociais para compreender o sentido das práticas e das estratégias empregadas pelos novos beneficiários da reforma agrária é reforçar as chances de serem apoiados os esforços que os grupos domésticos tendem a utilizar na busca de melhoria de seus padrões de existência. A desconsideração do significado das práticas usuais e das categorias de pensamento que as acompanham nada mais faz do que duplicar em nível dos que exercem os ofícios intelectuais a distância social que os separa das camadas mais modestas da população, composta por assalariados rurais e por agricultores pequenos e médios. Mas é a liberdade coletiva que pode ficar comprometida, pois sem a reconversão bem-sucedida de parcelas condenadas à pauperização, e objetivamente excluídas de jogos culturais e políticos, não se consolida uma democracia suscetível de permitir que cada indivíduo se aproxime da condição de sujeito dos destinos da coletividade e de sua própria existência. Estaríamos condenados a ser escravos de nosso passado de escravidão, alimentando eternamente a onipotência de poucos com a miragem de futuro de “grande potência”? Não aumentaríamos nosso grau de liberdade coletiva reconhecendo as modalidades próprias de reconversão de setores desfavorecidos, que alargam os horizontes dos meios de transformação social? A imagem de “maior celeiro do mundo” servirá unicamente para reafirmar a hegemonia do agronegócio, condenando, como no passado, o campesinato à ameaça de fome e à incerteza quanto à sua reprodução? Ou abrirá espaço para afirmação da diversidade de explorações agrícolas no campo, permitindo que, à fartura do aprovisionamento das casas, se agregue a possibilidade de elaborar verdadeiros projetos de futuro por essas famílias? 240

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

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9 FAMÍLIAS CAMPONESAS, MIGRAÇÕES E CONTEXTOS

NORDESTE: ENTRE O “CATIVEIRO” E O “MEIO DO MUNDO” DE PODER NO

Russell Parry Scott

INTRODUÇÃO

Este trabalho se desenvolve em torno da idéia da utilização da força de trabalho familiar como base na organização camponesa. Enfatiza que o vínculo de camponeses com estruturas de poder mais amplas matiza as suas condições de vida. Por meio da ênfase em migrações, é possível compreender algumas das combinações de estratégias de uso diversificado de mão-de-obra familiar, em diferentes tempos e locais. É um artigo de revisão sumária de três décadas de pesquisa do autor entre camponeses do Nordeste, focalizando resultados concretos. Primeiro, examina-se o caso de migração e organização doméstica entre moradores da zona canavieira de Pernambuco nos anos 70, demonstrando a sua sensibilidade aos fluxos nacionais, regionais e locais de migração e ao convívio com contextos de poder em engenhos diferentes e na ponta da rua, compreendido por eles como a uma vivência “entre o cativeiro e o meio do mundo”. O segundo e o terceiro casos examinados situam-se, respectivamente, no agreste pernambucano e no oeste maranhense nos anos 80 e referem-se às migrações inter-regionais e às estratégias domésticas. Este estudo relata as estratégias de famílias camponesas de emigrar, realizar migrações circulares e retornar num esforço de “indivíduos migrarem para as famílias poderem se perpetuar onde estão”. As diferenças entre o envio de migrantes para o Centro-Sul (sobretudo São Paulo) do agreste pernambucano e o envio para a fronteira amazonense por famílias no oeste maranhense evidenciam quanto os contextos de poder locais e a proximidade a “destinos promissores” afetam a adoção de estratégias familiares diferentes. No quarto caso, acompanham-se mais de duas décadas da luta de camponeses, posseiros, meeiros e irrigantes 245

Famílias camponesas, migrações e contextos de poder no Nordeste

da beira do rio São Francisco ao serem removidos forçosamente e reassentados em novos locais ao longo do rio, modificando a sua maneira cotidiana de produzir e se relacionar, transformando a sua própria campesinidade. As últimas reflexões ressaltam a multiplicidade de estratégias migratórias e as fragilidades e forças dos laços familiares quando inseridos numa variedade de contextos de poder.

VISÃO GERAL Trabalhadores rurais e camponeses não diferem de outros grupos humanos. Constroem grupos domésticos para se beneficiarem. Neste esforço comum, criam-se especializações por sexo, idade e parentesco. Esses grupos internamente hierárquicos operam em ambientes que contêm grupos poderosos decididos na sua intenção de explorar os mais fracos. O empobrecimento dos trabalhadores rurais e camponeses e a repressão das suas lutas resultam num realinhamento constante das relações domésticas. O fluxo de pessoas, entre grupos domésticos e entre regiões, transfere a energia humana mais produtiva para contextos nos quais classes mais poderosas possam explorála, ou em que as próprias famílias podem aproveitá-la melhor. Este trabalho enfoca tal jogo de administração de trabalho familiar como uma complexa articulação que procura equacionar as contribuições para a família e as demandas externas sobre a energia e produtos dos trabalhadores individuais. Examina diversos contextos de poder em momentos históricos diferentes ressaltando adaptações e resistências locais na sua relação com a composição e estratégias de grupos domésticos. Neste caminho, identifica representações camponesas que diferem de contexto em contexto, oscilando entre idéias associadas ao “cativeiro”, referentes a forças locais para o controle externo da administração familiar da força de trabalho, e o “meio do mundo”, referente a forças que promovem a migração, circulação e liberdade da mão-de-obra individual, distanciando-a da sua família de origem. O “cativeiro” e o “meio do mundo” são duas opções domésticas entre as quais agricultores e trabalhadores rurais nordestinos se articulam historicamente. Como “cativos”, colocam o seu trabalho à disposição de empregadores locais em troca do salário e de alguns “favores”. Como viajantes “no meio do mundo”, são móveis e disponíveis a empregadores em áreas mais dinâmicas, cada vez mais separadas das suas casas de origem. Um exame cuidadoso da variação na composição e organização de grupos domésticos de trabalhadores, com atenção especial aos contextos diferentes de adaptação criados localmente, mostra a articulação entre as pressões da classe dominante local de intensificar o cativeiro e a procura individualizada, desarticuladora de estratégias familiares de sobrevivência do trabalhador de 246

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

se soltar “no meio do mundo”, nem mesmo mantendo contato com a sua casa de origem. Em outros termos, do ponto de vista dos grupos domésticos dos trabalhadores, o “cativeiro” refere-se a qualquer controle direto da força de trabalho familiar por outro fora do grupo doméstico. Estar no “meio do mundo” diz respeito à perda definitiva dessa força de trabalho familiar, sem se especificar quem agora controla esse trabalhador. São dois pólos opostos em relção à mobilidade e à participação no grupo doméstico. Os dois pólos se confundem. “O cativeiro”, termo simbolicamente ligado ao passado escravagista e à prepotência senhorial, aproxima-se do “meio do mundo”, termo que simboliza a “liberdade” de cada trabalhador vender sua força de trabalho a quem ele quiser. Mesmo assim, em ambos os pólos há uma perda sensível de controle do grupo doméstico sobre a disposição do seu trabalho familiar, evidenciado nos dois casos discutidos neste trabalho e comentados no final. No primeiro caso são vistos trabalhadores rurais pernambucanos nos anos 70, detalhando contextos locais de uso local de trabalho e de inserção nos fluxos de migração nacionais, incluindo dois engenhos particulares, um engenho de reforma agrária e a ponta da rua de uma sede municipal. No segundo caso são examinadas famílias camponesas no agreste pernambucano e no oeste maranhense nos anos 70 e 80, enfocando as suas estratégias de migrações inter-regionais e as suas implicações na recomposição das estratégias locais de uso de trabalho e acesso a recursos. Um terceiro caso, a migração forçada de agricultores atingidos pela barragem de Itaparica, não é desenvolvido aqui.1

O PRIMEIRO CASO: TRABALHADORES RURAIS NA ZONA CANAVIEIRA PERNAMBUCANA Uma história de classes dominantes e o controle de trabalhadores rurais pernambucanos Os padrões específicos de uso de trabalho na zona da mata, a zona açucareira de Pernambuco, têm-se transformado no tempo, mas a política de repressão à força de trabalho tem sido um elemento constante. Durante séculos, o governo, comerciantes e senhores de engenhos colaboraram numa atividade de produção que se erguia numa base de trabalho de escravos e moradores livres que plantavam onde os canaviais não atingiam (Melo, 1975; Andrade, 1986; Scott, 1981, 1989). O governo protegia os senhores de engenho, impedindo desapropriações, estendendo empréstimos e tolerando dívidas. 1

O caso pode ser visto no livro Descaso planejado (Scott, no prelo).

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Famílias camponesas, migrações e contextos de poder no Nordeste

No século XIX a pressão mundial de abolição da escravidão e o fluxo de escravos para as áreas de cafeicultura mais prósperas contribuíram para o encarecimento da população escrava. A população de moradores livres tornou-se mais importante para trabalhar nos canaviais. Com as oscilações do mercado, variava a intensidade do uso desta população residente de trabalhadores produtores da sua própria subsistência. Para ter acesso à terra, pagava-se com mercadorias, dinheiro ou dias de trabalho. Desta forma, os plantadores nordestinos já possuíam uma força de trabalho “livre” e ao mesmo tempo “cativa” quando se promulgou a abolição no fim do século (Melo, 1975; Andrade, 1986; Eisenberg, 1974). No Centro-Sul, nesta época, a imigração renovava a força de trabalho de colonos na agricultura e de operários urbanos. No Nordeste, dependiase da sua própria população sem renovação imigratória significativa. Os plantadores de açúcar, com um governo estadual benevolente, resistiram às tentativas internacionais de se arrancar o controle do setor industrial da produção. Eles mesmos procederam à concentração da produção em unidades industriais chamadas usinas, cujos domínios incluíam extensões vastas de terra. Crescia a produção açucareira no Centro-Sul, ameaçando tirar uma fatia maior dos mercados interno e de exportação. A centralização do Estado Novo atingiu o setor açucareiro. O IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), em 1933, passou a atuar como principal controlador da produção nacional. O Centro-Sul ampliou a sua fatia de mercado, mas também ocorreu uma série de medidas protetoras da indústria açucareira nordestina, aliada na defesa da organização empresarial de grande escala, como adoção de cotas e autorização para equipamentos de modernização. Para sobreviver, as classes dominantes nordestinas intensificaram as suas demandas sobre o trabalho dos moradores, permitindo-lhes menos dias dedicados à sua própria produção de subsistência. Crescia a população, diminuía-se o acesso à terra. Após a terceira década de século, houve um decréscimo na imigração estrangeira no Centro-Sul, e o Nordeste tornouse a fonte principal de trabalhadores rurais para essa região. O Nordeste, antigamente o ponto de destino de uma população escrava produzida na África, transformou-se em produtor e em ponto de origem de trabalhadores. A competição das classes dominantes regionais e nacionais para usar o trabalhador nordestino implicou um agravamento da exploração dos trabalhadores rurais. A mobilização política do fim dos anos 50 e do início dos anos 60, com as ligas camponesas e os sindicatos, exigiu mais acesso à terra e melhores condições de trabalho. A mobilização culminou numa greve geral em 1963 e num aumento substancial em salários, e foi uma força na promulgação de legislação nacional reconhecendo os direitos a um salário mínimo, ao descanso semanal, a férias, ao 13o salário, a roçados e a outros benefícios. O encarecimento do fator “trabalho” que estes ganhos implicaram para os 248

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

empregadores levou-os a intensificar a expulsão dos moradores dos engenhos particulares (Melo, 1975; Andrade, 1986; Scott, 1981, 1989; Sigaud, 1979). O golpe de 1964 trouxe a repressão imediata e brutal da atividade política e sindical de camponeses e trabalhadores. Sucessivos programas para a transformação da zona da mata articulados nacional e internacionalmente (Sudene – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste; Geran – Grupo Especial para Racionalização da Agroindústria Canavieira do Nordeste; Proterra – Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agropecuária do Norte e do Nordeste) invariavelmente proclamavam duas metas: a criação de empresas rurais eficientes e a reforma agrária. Algumas poucas áreas, onde os empresários tinham sido particularmente ineficientes e os trabalhadores, particularmente exigentes, sofreram modificações que aumentaram o acesso à terra para alguns trabalhadores (Scott, 1981, 1989; Sigaud, 1979; Andrade, 1986). A implementação dos programas governamentais favoreceu a criação de “empresas rurais” e não a “reforma agrária”. As classes dominantes regionais usaram o crédito disponível para capitalizar as suas agroindústrias e empresas corporativas empenhadas em atividades econômicas diversificadas. A política de expulsar os moradores reinou como forma de evitar despesas com trabalhadores “fichados”. Os “fichados” que ficaram no engenho formaram um núcleo de trabalhadores ao qual geralmente se destinam as tarefas mais árduas, justamente as que trabalhadores eventuais, chamados de “clandestinos”, recusariam realizar. Essas medidas dos empregadores redundaram na relação de muitos dos benefícios ganhos na legislação e nos dissídios coletivos (Palmeira, 1977; Sigaud, 1979; Scott, 1981; Suarez, 1977). A população “clandestina”, os trabalhadores eventuais, povoava, sobretudo, as periferias das cidades. O acesso à terra para plantar para comer ou trocar diminuiu notavelmente, como complemento. O setor autônomo comercial oferecia uma alternativa precária; muitos convertiam salas ou janelas das suas casas em pontos para pequenas vendas. Os seus fregueses eram colegas, trabalhadores tão pobres quanto eles. Não havia muito espaço para a atividade crescer. Muitos, desiludidos com as oportunidades econômicas da zona da mata, partiram para tentar melhorar a vida em outros lugares. Na competição histórica para o controle sobre o uso de trabalho de migrantes nordestinos, isto representou um ganho para os donos do capital, empregadores nos destinos destes migrantes. Como é que os grupos domésticos de trabalhadores se articulavam, montando estratégias econômicas diversas em contextos em que havia claras diferenças de acordo com a manifestação local das políticas predominantes de uso de trabalho? Os contextos pesquisados nos anos 70 (Scott, 1981) incluem um engenho particular de uma empresa modernizante (Céu Azul), um engenho particular de uma empresa paternalista (Casa Grande), um engenho onde se implantou uma 249

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reforma que distribuiu a terra entre os trabalhadores (Bueiro Velho) e um bairro periférico de trabalhadores clandestinos (Vila da Enchente).

Os engenhos particulares – cativeiro e produtividade O primeiro contexto é o dos engenhos particulares (Céu Azul e Casa Grande). Os dois engenhos pesquisados representam dois pontos no espectro de relações sociais e técnicas de produção: o primeiro engenho investe fortemente em tecnologia poupadora de mão-de-obra e reforça trabalho regularizado no direito, e o segundo investe menos em tecnologia e promove relações paternalistas sem qualquer referência a direitos. Mesmo assim, os dois operam com estratégias semelhantes. Quais são os privilégios ganhos nestes engenhos e como é que o trabalhador “cativo” os paga? O pagamento é tolerar o infringimento constante no espaço doméstico privado da casa pelos representantes do proprietário do engenho. • Primeiro privilégio: a casa. A esses trabalhadores concede-se a casa para morar sem descontar nenhum valor correspondente à concessão. Deve-se aceitar o espaço – freqüentemente apertado, sem conforto, sem luz, sem água – que o administrador designa à família. Muda-se, se o administrador assim desejar. A casa é “do engenho”, e este fato é usado para justificar incursões no que seriam horas “de folga” ou horas dedicadas “à casa”. • Segundo privilégio: a renda. Esses grupos domésticos têm, na média, uma renda monetária semanal maior que trabalhadores em outras situações (60% acima da média aproximada da época de US$ 25,00). Eles têm que trabalhar nas tarefas mais árduas no engenho durante seis dias por semana. Os empregadores atraem clandestinos de fora do engenho, designando as tarefas mais favoráveis para eles. Isto foi mais claro no engenho “paternalista”, perto da cidade, que no engenho particular modernizante. Quando uma tarefa é tão ruim que ninguém de fora do engenho a fazia pelo preço oferecido, ela vira tarefa para trabalhador “fichado”. Os grupos domésticos podem recuperar parte da perda da renda que isto implica empregando outros membros da família como trabalhadores, sem contrato, ou seja, clandestinos. Desta forma, a energia que cada grupo doméstico despende nos serviços de engenho incrementa-se, e o engenho particular garante uma produtividade maior. • Terceiro privilégio: o roçado. Os trabalhadores fichados têm acesso a roçados, como manda a “lei dos sítios”. Este acesso é mais uma função da proximidade a reservas de trabalho que de respeito à lei. O roçado ainda é visto como um favor concedido pelo dono. À medida que o empregador demanda cada vez mais serviços do trabalhador e da 250

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

sua família nos canaviais, os roçados, cada vez mais distantes, ficam abandonados, com plantações de produtos que demandam pouco investimento de tempo e de trabalho. Na entressafra e quando falta serviço nos engenhos, os roçados tornam-se fonte para recuperar parte dos salários perdidos. A articulação entre a produção no setor capitalista e a produção no setor autônomo é transparente nesta situação. • Quarto privilégio: o criatório. Nos engenhos é facilitada a criação de aves e bichos de pequeno porte, o que melhora a dieta e facilita o transporte. Mas nos engenhos particulares há muita repressão contra os animais de pequeno porte por duas razões. Primeiro, nos arruados, as senzalas antigas, a proximidade das casas e o movimento da vizinhança dificultam a criação dos bichos. Segundo, a própria administração do engenho se encarrega de matar porcos e cabras que se aventuram nos canaviais do proprietário. O risco do investimento familiar é evidente. • Quinto privilégio: vendas. O mercado para pequenas vendas nos engenhos, onde há trabalhadores com uma renda segura, é bastante favorável, e muitos se dedicam a atividades de pequeno comércio. No entanto, as usinas e os engenhos formalmente restringem estas vendas, temendo a competição com os canaviais para o tempo de trabalho dos trabalhadores. Também atrapalham as vendas promovidas pelos próprios armazéns das usinas e pelos concessionários dos barracões. Estes últimos são comerciantes profissionais que têm acordos com os proprietários. Vendem “fiado” aos trabalhadores, o que contribui para a sua fixação no engenho. De fato, então, só se permitem “vendas” quando são claramente complementares, e não competitivas, ao trabalho assalariado e às atividades comerciais do dono de engenho. Arrolar outros pontos que demonstram as limitações impostas aos trabalhadores dos engenhos particulares seria redundante. A estratégia do empregador claramente é de “captar” a energia de um número máximo de membros produtivos de cada grupo doméstico, dirigindo-a para a produção de cana. Grupos domésticos que produzem autonomamente só interessam se a produção complementa, e não substitui, o trabalho assalariado. A composição dos grupos domésticos nos dois engenhos particulares reflete essa lógica. Selecionam muitos homens solitários, freqüentemente dependentes do barracão até para a preparação da sua refeição. Em média, l5% dos grupos domésticos (18,8% em Céu Azul e 13,5% em Casa Grande) nos engenhos particulares é deste tipo, quase sempre dependentes e trabalhando quase exclusivamente pelo salário. No pique da safra o número de “homens solitários” aumenta com a migração sazonal de trabalhadores do agreste. Nas casas com casais, as esposas e filhos são pressionados a ajudar os homens no trabalho; 75% dos grupos domésticos são de casais, a maioria com filhos, e em Céu Azul, em 3/4 desses grupos, os outros membros 251

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contribuem para a renda da família. Mulheres sem maridos e sem filhos na idade de trabalhar não acham apoio nos engenhos particulares. Casas chefiadas por mulheres somam apenas 4,2% dos grupos no Céu Azul e 13,5% em Casa Grande, quase todas compostas por viúvas com filhos mantidos nos engenhos pela combinação de laços paternalistas e o trabalho dos seus filhos. Os grupos domésticos dos engenhos particulares têm em média 4,9 membros, abaixo das médias de grupos no contexto da periferia da cidade (5,2) e do engenho de reforma agrária (5,8). Estes grupos usam intensivamente o próprio trabalho. Os trabalhadores dos engenhos particulares são “cativos”, e a composição dos seus grupos domésticos reflete o seu cativeiro. Quem vai morar e trabalhar, onde e quando, depende da vontade do administrador que promove os interesses de uma empresa lucrativa.

O engenho da reforma agrária – a recuperação da autonomia e a fuga do cativeiro A fuga do cativeiro dos engenhos particulares pode ocorrer por meio da recuperação de acesso à terra (o caso excepcional) ou da mudança para a cidade, para os “pontos da rua” (a regra). O caso do engenho Bueiro Velho, apesar de ser uma exceção, demonstra como os trabalhadores organizam os seus grupos domésticos sob as condições de acesso à terra e as limitações impostas pelo contexto desfavorável a estes programas de reforma, nos anos 70. No engenho Bueiro Velho, a distribuição da terra em parcelas de, na média, 12 hectares foi resultado do fracasso empresarial de uma usina, conjugada com a mobilização política do início dos anos 70. Os poucos programas que redistribuíram terra na zona da mata são administrados principalmente por agências governamentais e, em alguns casos, por indivíduos. Inexiste coordenação entre estes programas. O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) opera nos anos 70 como órgão governamental encarregado de lidar com a reforma agrária num contexto que enfatiza mais o esforço de colonizar o Centro-Oeste e a Amazônia em grandes projetos. É a agência governamental responsável pela cooperativa que une os parceleiros do engenho Bueiro Velho e dos outros engenhos atingidos pela chamada “reforma”, cria sérias limitações à policultura pela política de somente admitir financiamento para o plantio de cana, e não concede apoio para lavoura branca. Assim, mantém a monocultura e a continuada submissão dos parceleiros à estrutura de poder dominante na região de grandes empresas e assalariamento. Os trabalhadores que tentam estabelecer uma base independente e diversificada de produção experimentam uma frustração sistemática dos seus esforços. Apesar da hostilidade do contexto, os parceleiros beneficiados neste programa fraco de reforma agrária são inequívocos em avaliar positivamente 252

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a sua fuga do “cativeiro”, por terem-se tornado “pequenos proprietários”. Percebem-se diferenças notáveis quando comparados aos moradores de engenhos particulares: 1) A casa, muito modesta, é própria e localiza-se preferencialmente no sítio, perto do plantio. Erguem-se casas adicionais para filhos e outros parentes. 2) A renda monetária semanal é consideravelmente menor, sendo acima de 60% com valores menores que a média de US$ 25. Por sua vez, os ganhos na época da safra são consideravelmente maiores. Trabalham com outros parceleiros de maneira ocasional, com freqüência, num valor abaixo do mercado, evidenciando uma solidariedade entre eles. 3) O roçado é aproveitado por todos. Ocasionalmente, levam-se sacos de farinha para vender na feira, bem como bananas e alguns outros produtos, e complementa-se o consumo direto em compensação à limitação à renda semanal. O plantio da lavoura branca é feito sem acesso a crédito, chegando até a ser uma atividade autônoma combatida pela cooperativa implantada pelo governo. 4) Criar bichos é muito mais fácil, não havendo nenhuma perseguição como a que ocorre nos engenhos particulares. 5) Vendas estabelecidas na casa, de produtos comerciais não agrícolas, não são fáceis de se organizar no engenho Bueiro Velho, haja vista o limitado poder aquisitivo dos parceleiros, a dispersão das casas e a repressão direta pela cooperativa, a qual desestimula esta atividade por achar que desvia a atenção para fora do trabalho agrícola. Poucos o fazem. Os grupos domésticos neste engenho de reforma são visivelmente mais coesos que os dos engenhos particulares. Constroem redes de ajuda mútua compostas de “parceleiros” e seus parentes e amigos residentes, a quem se cedem casas. Os grupos domésticos possuem tamanho médio maior (5,8 membros) que os grupos pesquisados e possuem significativamente menos produtores por consumidor. Eles têm a maior proporção de crianças e jovens (65% abaixo de 19 anos de idade, comparada a 60% nos engenhos particulares e 54% na rua), e a sua composição parece obedecer mais de perto à sucessão de fases do seu ciclo de desenvolvimento. O peso adicional da maior proporção de consumidores encontra alívio na capacidade autônoma de o grupo doméstico alocar os seus participantes entre trabalho na própria parcela, trabalho com outros parceleiros e trabalho clandestino em engenhos particulares. Os parceleiros chefes de família são os mais assíduos no trabalho apenas na área de parcelas. As mulheres seguem este mesmo exemplo. Os filhos e outros parentes trabalham numa freqüência maior nos engenhos particulares no entorno da área da reforma, onde o pagamento é maior. No engenho Bueiro Velho há pouquíssimas residências de homens solitários ou de mulheres sem maridos; 85,7% dos grupos têm o casal pre253

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sente como a sua base fundamental. Nestes grupos com casais predomina a família nuclear (76,4%), com apenas 6,9% das famílias sem filhos e 16,7% de famílias extensas – a menor proporção entre todos os grupos estudados. Em vez de estenderem as suas famílias na mesma residência, os parceleiros preferem construir outras casas, onde os seus filhos casados ou outros parentes possam estabelecer grupos residencialmente separados. Sem deixar de promover a solidariedade entre os parentes e amigos que residem na mesma parcela, isso atenua os conflitos que a residência comum acarreta.

A periferia da cidade – a caminho do “meio do mundo” A outra fuga do cativeiro é mudar-se para a cidade. Esta “fuga” tem se tornado uma “opção imposta” para os grupos domésticos indesejados pelos engenhos particulares ou para os grupos indispostos a aceitarem as intrusões contínuas dos empregadores sobre os espaços de trabalho e da casa. Obter uma casa na rua envolve um investimento acima da capacidade de muitos. O preço de ter a liberdade de uma casa na rua é, freqüentemente, de arcar com um aluguel e diminuir a renda monetária disponível para comprar alimentos. Ao passo que o trabalhador clandestino, residente na “rua”, pode desfrutar de tarefas diárias que rendem mais monetariamente e que são mais “maneiras”, escolhendo entre os empreiteiros e engenhos diversos que oferecem trabalho durante a safra, este mesmo trabalhador é o primeiro dispensado na entressafra. Não há segurança quanto à ocorrência de trabalho, nem diária, nem sazonalmente. De fato, monetariamente, a renda semanal é aquém da dos que moram nos engenhos particulares e dos que são parceleiros. A gravidade desta situação acentua-se pela impossibilidade virtual de complementar a dieta com produtos de roçados (quase inexistentes) e de criatório (impraticável na cidade). A intensa atividade comercial de vendinhas minúsculas marca o sonho de deixar de cortar cana com as estratégias de sobrevivência em condições de extrema pobreza. Cada grupo doméstico tenta esticar o seu poder de consumo vendendo a colegas tão pobres quanto eles mesmos. As compras em pequenas quantidades resultam no encarecimento da vida do pobre. Exemplificando, comprar óleo de cozinha em copinhos de 100 ml custa mais que comprar uma lata inteira. Então, na cidade, vive-se uma liberdade economicamente muito precária. Os grupos domésticos da cidade são os mais propensos à desarticulação e à reorganização. Sem patrimônios domésticos suficientes para se montarem estratégias eficazes, esse grupo é o que mais vive o drama de ter pessoas, já, no “meio do mundo”, sem nenhum contato com as suas famílias de origem. Os grupos domésticos na Vila da Enchente são fundamentalmente os que os engenhos particulares expulsaram. Ao passo que no engenho particular Céu Azul 60% dos grupos domésticos tinham mais que um provedor de renda 254

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monetária e no engenho da reforma Bueiro Velho essa porcentagem foi de 49%, na Vila da Enchente essa cifra era de apenas 41%. Essa falta de provedores complementares chama ainda mais atenção quando se considera que a população de rua é mais velha (os 7,5% dos habitantes têm mais de 70 anos de idade e representam uma proporção que é o dobro da dos engenhos, e os 17,2% entre 40 e 59 anos, também maior que nos outros locais pesquisados). São pessoas mais velhas, sem filhos em idade de trabalhar morando com eles. Também são grupos que contam mais com mulheres que com homens, exatamente o inverso dos grupos nos engenhos particulares. Ainda, 14% desses grupos são chefiados por mulheres, quase todas com dependentes que não trabalham. Os grupos domésticos na cidade têm os seus laços fragilizados. A saída dos engenhos para a cidade cria uma reserva de trabalho local fora dos custos contabilizados pelos empregadores, e cada vez mais propensa a migrar.

As migrações e “o meio do mundo” Independentemente de onde residem os grupos de trabalhadores rurais da zona da mata, em engenhos particulares, em engenhos de reforma agrária ou na rua, são todos sujeitos a um processo migratório que coloca “o meio do mundo” como saída para as dificuldades de sobrevivência. A quinta parte da população do engenho Céu Azul foi renovada no período de um ano, saindo alguns, entrando outros. Na Vila da Enchente, a “renovação” foi ainda mais intensa. Somente no Bueiro Velho é que a renovação foi menos intensa, não atingindo 10% da população de grupos domésticos, e esteve concentrada entre os parentes dos parceleiros, sem patrimônios particulares a defenderem. O quadro geral para a zona da mata é de uma área que age como uma peneira: recebe migrantes, distribuindo-os de acordo com os contornos dos seus grupos domésticos, e depois deixa muitos passarem para outras regiões. Dois terços da população mudou-se três vezes ou mais durante a vida, e a quinta parte já acumulou mais que dez mudanças. Para onde se destinam as pessoas que saem desses grupos domésticos? Nos anos 70, somente 62% deles se mantinham na zona da mata de Pernambuco e Alagoas; 5,7% iam para o agreste, um retomo à origem camponesa; 14,7% iam para o Recife, deixando o mercado de trabalho agrícola e procurando trabalho na indústria, comércio e serviços da capital do Estado; e 16,5% preferiam o caminho para São Paulo e alguns outros destinos no Centro-Sul. As cifras de migração indicam que quase a terça parte (31,2%) dos que saíram dos grupos domésticos da zona da mata teve como destino os centros de emprego mais dinâmicos do Recife e de São Paulo, sendo que 72% do fluxo para o Recife é feminino e 73% do fluxo para São Paulo é masculino, demonstrando a seletividade muito diferenciada dos dois destinos. 255

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A distribuição de grupos domésticos de trabalhadores entre contextos locais na zona da mata ocorre de acordo com as estratégias de sobrevivência de uma classe dominante local, visando sobreviver no mesmo mundo onde vivem os trabalhadores rurais. A concentração de renda e de crescimento favorece regiões onde as classes dominantes já afirmaram a sua presença. As classes dominantes locais lutam para manter o controle sobre o que tradicionalmente têm controlado – terra e indústria, no caso dos usineiros pernambucanos –, aliando-se às classes dominantes nacionais. No entanto, com as diferenças salariais vigentes, manter uma força de trabalho produtiva disponível no local se torna particularmente difícil. Manter o “cativeiro” é custoso. A renovação da população da zona da mata continua alimentada por jovens camponeses que deixaram o agreste e, cada vez mais, por trabalhadores da própria zona da mata que ainda guardam altas taxas de natalidade no período (média de nove filhos por mulher acima de 45 anos). Mas esta população alimenta, em seguida, o fluxo de migrantes à procura de rendas maiores em outros lugares. Muitos migrantes jovens deixam os seus dependentes na zona da mata para assegurar a sua “empregabilidade” fora. Embora haja algumas remessas para as famílias de origem para providenciar a criação desses dependentes, os grupos domésticos da zona da mata arcam com a maioria das despesas com a produção desses trabalhadores em potencial. Cada vez mais existem os membros da família que saíram e sumiram, sem dar notícias. Eles estão “no meio do mundo”, expressão sempre falada com um ar de perda e de saudade por trabalhadores em todos os contextos locais. É curioso notar que a mesma força de trabalho favorecida nos engenhos particulares, onde se vive mais intensamente o “cativeiro” imposto por empregadores decididos a aproveitar a produtividade (homens jovens, grupos domésticos com mais trabalhadores), é aquela oferecida para compor os fluxos para “o meio do mundo” mais distante, para São Paulo. Entre o cativeiro e o meio do mundo, há uma certeza: o grupo doméstico dos trabalhadores rurais da zona canavieira pernambucana assume grande parte dos custos de reprodução da força de trabalho usada dentro e fora da própria região.

Competição para o uso de trabalho – classes dominantes e grupos domésticos de trabalhadores O caso específico examinado aqui pode ser entendido numa perspectiva mais ampla. Historicamente, todo o sistema mundial capitalista é construído sobre uma base de repressão da força de trabalho. Esta repressão é particularmente severa em nações periféricas, onde o baixo custo da força de trabalho beneficia outras classes, dentro e fora da nação. Estas políticas são reforçadas por um aparato estatal forte, protetor dos interesses dos poderosos e legitimador de si mesmo e da nação. Como co-participante 256

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neste Estado, as oligarquias agrícolas continuam a exercer controle sobre o trabalho, ao passo se articulam diante das transformações na estrutura de poder nacional. A concentração de indústria, finanças, comércio e serviços governamentais em áreas favorecidas de nações periféricas subdivide as classes dominantes nacionais. Nessas regiões beneficiadas a concentração favorece alguns grupos empresariais nacionais e internacionais. Nas regiões mais distantes, mantém-se um controle com maior participação da oligarquia e desenvolvem-se estratégias econômicas privilegiando a exportação de bens agrícolas, aumentando a capacidade nacional de importar. Arma-se uma competição entre classes dominantes regionais e nacionais para se garantir controle sobre a força de trabalho e o capital. Fluxos de migrantes das regiões desfavorecidas oferecem o seu trabalho a custos baixos para empregadores em regiões favorecidas. Para empregadores nessas regiões, a reprodução da força de trabalho que efetivamente emprega é reduzida na medida em que ela tem se sustentado fora do setor capitalista, e mesmo fora da própria região geográfica favorecida. Como conseqüência, a combinação de recursos disponíveis para trabalhadores em áreas de emigração e a própria composição dos fluxos migratórios são indicadores importantes da efetivação da estratégia nacional de uso do trabalho. Quais são as combinações de recursos disponíveis? Grupos domésticos aproveitam setores diferentes da economia ao produzir e sustentar trabalhadores. Nas regiões desfavorecidas, todos os grupos domésticos sofrem limitações severas: no entanto, a sua fonte básica de renda é freqüentemente de salários do setor capitalista. Do setor governamental, recebem alguns serviços e transferências de bens e de rendas monetárias. Do setor da produção doméstica, aproveitam bens de subsistência para consumo imediato e renda de atividades de mercado, desempenhados autonomamente. As combinações do aproveitamento destes três setores diferem entre trabalhadores em contextos locais diferenciados. O papel do grupo doméstico como unidade de consumo leva-o a produzir para uso, não para troca. Mercadorias são vendidas por dinheiro que, em seguida, é usado para a compra de outra mercadoria para consumo. Isto é o inverso da lógica capitalista de produção, em que as mercadorias servem como veículo para produzir dinheiro. Como é o sistema capitalista que domina, os que produzem para uso estão sujeitos à exploração em pelo menos duas instâncias – quando oferecem o seu trabalho ou o produto do seu trabalho no mercado e quando adquirem mercadorias produzidas no setor capitalista. Os produtores capitalistas competem pelos mesmos recursos utilizados por grupos domésticos de camponeses e de trabalhadores de diversas formas. De fato, em situações empíricas diferentes algumas ações dessas unidades capitalistas, sejam elas predominantemente agrícolas, industriais, mercantis ou financeiras, podem contribuir para a consolidação de 257

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certas formas de produção camponesa e autônoma. O empenho, então, do grupo doméstico, como unidade de consumo, é de defender constantemente o seu acesso aos recursos – sejam eles de capital, terra ou trabalho – sempre contra a incursão de grupos mais poderosos. Um dos campos principais de competição para recursos disponíveis ocorre na própria composição do grupo doméstico, onde se manifestam claramente os efeitos diferenciados de tentativas de controlar o fator “trabalho”. No decurso do seu ciclo de desenvolvimento, os grupos domésticos agregam e perdem pessoas ao passo que adequam a sua composição etária e de sexo às variações nas condições para o uso de recursos. Nem sempre os grupos domésticos têm êxito. Muitos caem vítimas da conjugação dos seus próprios ciclos e das ações das classes dominantes nacionais e regionais. Ao tentar sobreviver e expandir, estas últimas competem para o uso do trabalho mais produtivo. Para entender os efeitos dessa competição, dois elementos são bastante valiosos: as distribuições diferenciadas de grupos domésticos sob o domínio de grupos de poder locais diferentes e a “drenagem” de trabalhadores produtivos para fora das regiões desfavorecidas, em benefício dos empregadores nas regiões onde se concentra o capital. Os termos variam de um local para outro, mas a lógica do “cativeiro” e do “meio do mundo” perdura, com modificações decorrentes dos processos históricos de políticas nacionais e locais de uso de trabalho, bem como de acordo com as próprias especificidades de locais diferentes.

O SEGUNDO CASO: AGRICULTURA FAMILIAR E MIGRAÇÕES EM PERNAMBUCO E NO MARANHÃO Há muitos espaços onde a agricultura familiar de policultura conseguiu se firmar com articulações dispersas com as estruturas de poder locais. Nesses locais, as pressões sobre o acesso à terra e o uso da força de trabalho são constituídas por uma multiplicidade de pontos de encontro entre famílias camponesas e estruturas de poder mais amplas. Em dois locais pesquisados no início dos anos 80, o agreste pernambucano e o oeste maranhense, é possível identificar a tensão entre o uso local da mão-de-obra familiar e o uso de estratégias migratórias inter-regionais numa tentativa de beneficiar os migrantes e suas famílias (Arizpe [1981] já delineou bem esta estratégia no caso do México). Ao referirem-se aos constrangimentos e potencialidades para as estratégias adotadas de articular a mão-de-obra familiar, os camponeses nos dois locais empregam uma terminologia de uma riqueza simbólica que extrapola os limites do “cativeiro” e do “meio do mundo”. Remetem-se às especificidades de vivenciar o avanço de pecuária, de produtos comerciais e de grilagem, numa rede de exploração mais heterogênea que a da zona da mata pernambucana. 258

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No início da década de 1980, as duas áreas pesquisadas figuravam entre muitos outros pontos de origem notáveis de fluxos migratórios inter-regionais que começavam a mostrar sinais de esgotamento relativo. Garanhuns e o agreste meridional de Pernambuco são áreas de policultura que se inserem numa rede antiga de migrações tradicionais de camponeses para a zona da mata do Estado e, sobretudo, para São Paulo. Já em torno da cidade de Santa Inês, do Maranhão, os camponeses, também dedicados à policultura, foram reforçados pelas levas de retirantes e de emigrantes estimulados pelos projetos de colonização da Sudene. A atração da fronteira amazonense com a promessa, muitas vezes ilusória, da possibilidade de juntar grandes fortunas rapidamente atrai o migrante para estender ainda mais a procura das suas vantagens, agora para fora da região. Em ambos os locais, a pecuária exerce uma força expulsora por meio da clássica restrição ao acesso de terras para plantar. A questão é como sobreviver como família camponesa nestas condições (Woortmann, 1985, 1995; Suarez, 1982; Garcia Júnior, 1988, 1989; Menezes, 2002, 2004). A intensidade de emigrações das décadas precedentes ao início dos anos 80 permitiu o estabelecimento de redes de contatos e remessas entre os migrantes e as suas famílias de origem, às vezes por meio de migrações circulares em que as pessoas passam temporadas suficientes para se envolverem em trabalho nos dois pólos principais dos locais de origem e de destino. Além disso, o fluxo de migrantes retornados lavra um trabalho contraditório de atrair novos migrantes (quando as narrativas e os sinais externos de sucesso convencem sobre a sua viabilidade) e de frear novas saídas (quando não convencem). Isto se dá de formas diferentes entre camponeses pernambucanos ligados ao Centro-Sul e camponeses maranhenses ligados à fronteira paraense e amazonense. Esses fluxos migratórios têm implicações para o estabelecimento de diferentes cenários de confrontações nas estruturas de poder locais (Garcia Júnior, 1988; Suarez, 1982; Scott, 1984; Santos, 1988; Andrade, 1986; Menezes, 2002). Nas suas estratégias migratórias, os grupos têm sido apresentados tanto como “veículos de sobrevivência”, cujos membros ativamente procuram estabelecer uma rede de ajuda mútua entre parentes e afins, quanto como o local onde se dá a reprodução da força de trabalho para uso social, tanto doméstico como extradoméstico. Independentemente da forma específica tomada, a pressão e superexploração da força de trabalho pelos proprietários dos meios de produção são as regras dominantes no regime de capitalismo autoritário brasileiro (Velho, 1976). Toda “estratégia de defesa de classe” gira em torno dos “acasos” de combinação de recursos locais e da forma como os componentes das próprias estruturas de poder locais se articulam com os componentes de estruturas mais abrangentes. Desta perspectiva, o fato que o Nordeste é um espaço regional onde se dá a reprodução de uma força de trabalho nacional deve repercutir 259

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nas estruturas locais. Para examinar tal questão, pergunta-se, (sem poder responder tão simplesmente) quem é beneficiado pela migração? Nesse exercício de situar a opção por uma estratégia doméstica migratória em relação à sua articulação com manifestações locais de estruturas de poder mais abrangentes, partimos do princípio de que o primeiro cenário de confrontação provável é na relação imediata de exploração da força de trabalho por uma classe dominante que quer usufruir ao máximo os benefícios da propriedade dos meios de produção. Mas não convém tratar monoliticamente “trabalhadores” e “capitalistas” sem abordarmos as lutas “internas” que ora enfraquecem, ora fortalecem setores específicos de cada grupo. A pergunta inicial desdobra-se em três questões inter-relacionadas para cada local investigado: 1) O que a migração significa para a exploração local da classe trabalhadora? 2) O que significa para a união da classe trabalhadora? 3) O que significa para a união da classe dominante? As manifestações concretas das estruturas de poder local dão-se nas relações sociais travadas na disputa para recursos no ambiente local. Cada grupo doméstico entra numa luta por recursos para a sobrevivência dos seus membros. Nessa luta, o acesso à terra é de importância primordial. Para os que procuram estabelecer uma base para o grupo doméstico agir com relativa autonomia, a luta também é por um fundo mínimo que permita a realização do plantio, limpa e colheita ou da operação de um “negócio” da família. Para realizar essas duas lutas, a unidade doméstica ajusta seus próprios padrões de reprodução física e social de acordo com as demandas do ambiente onde opera. O “adversário” nessa luta é a firma, o grileiro ou o fazendeiro como entidade, cujas metas se afastam da sobrevivência das pessoas que trabalham, enquadrando-as como um dos fatores de produção – terra, trabalho e capital.

A terra – produtora de subsistência/produtora de trabalhadores – Garanhuns Há duas lutas de terra distintas. Uma, no campo, envolve o acesso direto aos meios de produção doméstica para famílias camponesas. A outra, na cidade, envolve o acesso a um local da moradia para o trabalhador urbano. O camponês, ao ser expulso e ingressar no “meio do mundo” urbano, experimenta ambas as realidades. Em Garanhuns, Pernambuco, e em Santa Inês, Maranhão, o camponês luta para garantir o seu acesso à terra para produzir a sua subsistência. O trabalho agrícola assalariado não é uma opção viável localmente, adiante da pecuarização promovida por setores da classe dominante que disputam 260

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diretamente a terra com os camponeses. Quando a terra passa do camponês para o fazendeiro que cria gado, ao aumento do valor da produção mercantilizada por hectare corresponde uma diminuição no emprego de mão-de-obra e uma pauperização da população que antigamente dependia da terra para subsistir. Em Garanhuns, durante os mais de quarenta anos em que os fazendeiros estão fechando o acesso à terra, a área tem sido uma das fornecedoras dos maiores contingentes de mão-de-obra para fora: tanto cortadores de cana para a zona canavieira vizinha, quanto trabalhadores rurais e urbanos para o Centro-Sul (Suarez, 1982; Garcia Júnior, 1988; Menezes, 2004). Os “sitiantes” proprietários utilizam um sistema de herança que adia, se não evita, a subdivisão excessiva de suas terras, o que resultaria na impossibilidade de elas servirem como base para uma luta desigual contra os grandes proprietários para ter acesso aos meios da sua própria sobrevivência. Legalmente, todos os filhos têm direito a uma parte igual da terra dos pais, mas, de fato, com a saída de alguns filhos, negocia-se entre irmãos e outros parentes próximos, a preços módicos, o direito sobre o sítio herdado. Com certa freqüência, a “terra de herdeiros” é recomposta quase na sua integridade sob um único dono ou poucos donos proximamente aparentados (ver Moura e Woortmann para discussões pormenorizadas desta lógica). Esta “compra” ou “cessão” preferencial para os parentes promove um padrão de “inalienabilidade” da terra para a qual o movimento migratório pode dar uma contribuição positiva, diminuindo a pressão sobre a terra e/ou oferecendo uma oportunidade de obter recursos fora para investir na terra. Evitar o esfacelamento dos sítios é extremamente difícil. A subdivisão pode ser precipitada pela volta de alguns herdeiros de São Paulo ou de outros destinos ou, também, com a resolução de alguns de não abandonarem a terra dos sítios. Quando a estas pressões internas se acrescentam as pressões dos fazendeiros ou bancos para os camponeses venderem, hipotecarem ou simplesmente abandonarem os sítios, estes enfrentam uma condição de perda iminente da sua terra e de urbanização por expulsão. Localmente, tornam-se arrendatários com direitos de plantar para seu próprio consumo apenas durante alguns meses, em troca de uma obrigação de posteriormente plantar palma e deixar o gado tomar conta. Quando não há terras disponíveis para arrendar, raramente aparecem alternativas, nem no campo nem na cidade, e a idéia de viajar torna-se mais atraente pela própria falta sazonal de recursos locais. A luta dos sindicatos rurais de Garanhuns, do início dos anos 80, concentra-se, frustradamente, em tentar obter terra ou contratos em que os arrendatários pudessem ter condições mais favoráveis de produzir durante o ano todo. A liderança do Sindicato Rural de Garanhuns inclui alguns membros que passaram vários anos fora do Nordeste nos anos 50 e 60, trabalhando intensivamente para segurar as terras que ainda hoje possuem. 261

Famílias camponesas, migrações e contextos de poder no Nordeste

Esta mesma liderança desaconselha tal caminho aos camponeses proprietários e arrendatários da área, alegando que as condições de emprego fora pioraram e que a terra em Garanhuns está muito mais difícil de comprar ou beneficiar apenas com o ganho de trabalho fora. Acreditam que a ilusão de “melhoras” em São Paulo enfraquece as suas tentativas de defender a classe localmente (Scott, 1984; Baeninger, 2000). Muitos migrantes evitam a confrontação direta. Entregam o que têm para tentar a sorte longe. Com o avanço da pecuarização, a tendência é de arrendatários suplantarem pequenos proprietários cada vez mais. Neste sentido, a migração torna-se um expediente para sobrevivência imediata de uma classe empobrecida, enfraquecendo os sindicatos rurais da área, sem oferecer potenciais novos acessos à terra. Localmente, na luta pela terra, quem está sendo beneficiado pelo movimento migratório inter-regional em Garanhuns? Os fazendeiros de gado recebem as suas terras beneficiadas por arrendatários que se deslocam periodicamente ao perder o acesso à terra. A maior intensidade de migração inter-regional, especialmente emigrações e migrações circulares, de Capoeiras e Caetés, áreas de Garanhuns onde o gado predomina quando comparado com a migração nas áreas de maior produção tradicionalmente camponesa, como Palmeirina, corrobora esta interpretação. É uma combinação de fatores locais e extralocais que estabelece os padrões de reprodução da força de trabalho em Garanhuns. A tradição de migração sazonal para os canaviais litorâneos limita-se por causa do crescimento dos bairros periféricos urbanos na zona canavieira. Ao mesmo tempo, a dinamização da industrialização paulista e a integração rodoviária nacional abriu uma alternativa que reforçava o padrão existente de fornecimento de mão-de-obra para fora (Scott, 1984, 1995; Garcia Júnior, 1988; Salles, 1982). As mulheres dos grupos domésticos camponeses de Garanhuns têm maior fecundidade que as mulheres pesquisadas no oeste maranhense rural e nas cidades de São Luiz e Recife, nesse período dos anos 80. Na medida em que a opção de trabalho fora se evidencia cada vez mais inviável para a reprodução local dos camponeses, apresenta-se um reforço em torno do processo: a “terciarização” da economia local em que os filhos de camponeses e antigos camponeses, impossibilitados de continuar trabalhando a terra, procuram um nicho em que o comércio, o negócio familiar, os “serviços prestados” etc. assumem o papel de “garantor”, ainda que precário, de sobrevivência. As proporções maiores de emigrantes em relação a migrantes de retorno (ou seja, quem sai, fica fora) e a pobreza dos recursos realmente obtidos fora e transferidos para a unidade de origem contribuem para uma reavaliação da viabilidade de uma estratégia de reprodução que valorize grandes números de filhos. Uma ocorrência sugestiva dessa tendência acontece durante as eleições de 1982, quando alguns médicos facilitam o acesso à esterilização a mulheres em Garanhuns em troca de votos. Entre as 262

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

mulheres camponesas desperta-se muito interesse e a procura é grande, já que em outros tempos não teriam condições econômicas de se submeterem à cirurgia. De fato, nesta região tem havido, dos anos 80 até a atualidade, uma notável queda na fecundidade.

A terra – produtora de subsistência/produtora de trabalhadores – Santa Inês Em Santa Inês, nos anos 80, os camponeses são desbravadores de áreas devolutas, à procura de uma “liberdade” que os afaste da perda de grande parte da sua produção, por expropriação ou por seca. Expulsos de áreas onde antigamente plantavam, eles vêem-se perseguidos pelas próprias condições de que fogem. O acesso às terras locais está sendo fechado por fazendeiros e grileiros interessados tanto em exploração bovina quanto em especulação imobiliária com a implantação de grandes projetos governamentais e internacionais de infra-estrutura e de extração de recursos minerais e vegetais (Scott, 1984; Santos, 1988; Andrade, 1998; Almeida, 1994). Os projetos de colonização dentro da área perdem sua capacidade de absorver novos contingentes de migrantes ou provam-se ineficazes para o pequeno produtor em face do poder dos fazendeiros. Nas áreas anteriormente devolutas, os posseiros enfrentam pressão, especialmente por meio de manobras cartoriais e atividades de capangas, para abandonar a área “devoluta” que eles ocuparam com décadas de benfeitorias. Assim, a “agricultura itinerante” do Maranhão não é motivada apenas por técnicas rudimentares e espoliativas de uso da terra. Alguns são expulsos diretamente, outros abrem mão das suas terras por preços módicos que mal indenizam o trabalho investido na terra plantada. Dos que ficam, muitos se tornam arrendatários ou parceiros com pagamentos cada vez maiores aos donos da terra. Outros entram em conflito aberto, demarcando e documentando a sua ocupação e o beneficiamento da área, auxiliados por sindicatos locais e membros da Igreja simpatizantes com a sua luta (Scott, 1984; CIMI, 2006). Nessas tentativas de estabelecer “o direito adquirido” para poder continuar plantando para si mesmo, a migração inter-regional, mesmo circular para os garimpos, freqüentemente se torna um inimigo. Os fazendeiros e seus aliados taxam a ausência temporária dos chefes de família e dos filhos como “abandono” da lavoura, apesar de os camponeses homens terem deixado para trás as mulheres e outros familiares justamente para tomar conta dela. Os próprios fazendeiros, cercando grandes espaços para pastagens, diminuem a terra disponível para lavoura, para alegar que o abandono é espontâneo e que faz parte de uma “herança cultural indígena” do camponês – ou pelo menos de uma prática espoliativa da terra. Não cabe dúvida de que entre os camponeses na fronteira há quem prefira uma agricultura 263

Famílias camponesas, migrações e contextos de poder no Nordeste

itinerante em que sempre está “desbravando a mata”. Mas o estabelecimento de “centros rurais”, comunidades bastante coesas que ocupam a área juntos, implica que o intuito da maioria é ficar na área desbravada (ver Moran [2000] e Meggers [1997] para o sentido de “centros” na área rural da Amazônia). Mais que em Garanhuns, o camponês da fronteira maranhense é receoso do trabalho assalariado, especialmente em ambientes urbanos. Apesar das condições regimentadas do trabalho nos garimpos para onde migra, continua percebendo como essencialmente um trabalho “autônomo” em que uma turma que trabalha reparte a sorte de uma jazida rica com a divisão do seu “trabalho por produção”. Os grandes projetos governamentais e particulares fazem parte de um fenômeno intensificado na década de 1970 e início de 1980, e a forte migração inter-regional documentada nesta região é um reflexo disso, muito mais que um resultado da proximidade geográfica do Maranhão ao Pará. A entrada do camponês na fronteira maranhense foi uma tentativa de uma classe camponesa descobrir condições para se reproduzir. Nesta migração inter-regional de unidades inteiras, houve um favorecimento de grupos domésticos menores cuja locomoção foi facilitada pelo seu próprio tamanho. Além disso, o fato de os babaçuais oferecerem uma atividade coletora, que dá um rendimento que possibilita às mulheres o estabelecimento de uma relação mais simbiótica do que subordinada aos homens, na divisão do trabalho familiar, pode favorecer a adoção de padrões de comportamento que favorecem mais a preservação da saúde feminina, particularmente uma fecundidade menor. Essas duas forças capazes de operar na manutenção de baixa fecundidade no Maranhão rural são merecedoras de investigação mais direta para elucidar seu papel real na determinação dos padrões de reprodução biológica e social nessas áreas. O próprio aumento da migração masculina também faz que a simples ausência dos homens seja fator contribuinte para a manutenção da baixa fecundidade. A migração inter-regional é intensiva, mas fortemente circular. Não representa o abandono de uma estratégia de vida camponesa, mas, sim, uma tentativa de reforçar os próprios grupos domésticos com recursos que há poucos anos se apresentam como “disponíveis”, o que está em pleno acordo com as observações de outros autores citados ao longo deste trabalho (Woortmann, 1985, 1995; Arizpe, 1981; Menezes, 2002, 2004; Garcia Júnior, 1988, 1989). Como a maioria dos “El Dorados” deste mundo, este traz mais desilusões que soluções. Localmente empobrecidas e encurraladas, com a ausência dos seus homens, as famílias deixam de contestar tão ativamente as ações expropriadoras de terra e de capital, para, extralocalmente, engajarem-se na extração de valores criados em projetos cujos benefícios são muito remotos à vida na sua própria lavoura. O Estado, como repartidor de terra, assume um papel aparentemente ambíguo na determinação desses movimentos populacionais na fronteira. 264

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

De um lado, ele promete o acesso à terra para pequenos produtores, como ocorre na área da Colone, que nasceu com os primeiros planos da Sudene de habitar o oeste Maranhense com emigrantes do Nordeste semi-árido. Como este movimento é uma tendência historicamente estabelecida no Nordeste, descobriu-se que não havia necessidade de estimular de maneira ativa a vinda de “colonos”. Por meio de seus programas de assentamento, a área serve como “freio” do movimento de expansão na fronteira. Assim, o Estado toma uma feição contraditória como benevolente protetor dos interesses dos pequenos agricultores, mesmo que haja “malogros ocasionais” na sua atuação. De outro lado, é o Estado que estimula os grandes projetos extrativos e de infra-estrutura (Carajás, Serra Pelada, Tucurui, Jari etc.) e que abre as linhas de crédito para a pecuarização e a consolidação do controle da terra de fazendeiros e de plantadores de produtos comerciais para exportação em outros locais na fronteira maranhense, paraense e amazonense em geral. Esses programas, em conjunto, estimulam o esvaziamento masculino da pré-Amazônia maranhense, reforçando assim o argumento despistador do “abandono da lavoura” propagado pelos fazendeiros locais e pelos grileiros, e criam alguns dos mecanismos pelos quais as classes dominantes estabelecem e legitimam o controle da terra para apoiar o seu domínio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: PERMUTAÇÕES DO CATIVEIRO E DO MEIO DO MUNDO Quando o trabalhador rural ou morador da zona da mata de Pernambuco emprega as noções de “cativeiro” e do “meio do mundo” para referir-se às frustrações das suas tentativas de controlar a própria articulação da mãode-obra familiar, ele retrata uma cognição histórica brasileira produzida localmente, mas cuja aplicabilidade se estende para a multiplicidade de contextos de poder nos quais o campesinato se insere. De um lado, o do “cativeiro”, há severas limitações impostas à autonomia da decisão sobre a disposição do trabalho familiar no contexto local. De outro lado, o do “meio do mundo”, há severas ameaças à unidade do grupo doméstico, provenientes das migrações que dão liberdade de movimento aos componentes da família à procura de uma vida melhor. Os “cativeiros” não são iguais – há os engenhos particulares, os engenhos de reforma agrária, as pontas de rua, os sítios dispersos de policultura tradicional, os sítios de terras devolutas em fronteiras de expansão. Invariavelmente, mesmo em tempos históricos distintos, esses contextos demonstraram a capacidade de criar constrangimentos diferentes à articulação da mão-de-obra familiar. Mesmo quando o contexto local não conduz ao uso do termo “cativeiro”, os camponeses em cada local identificam os fatores limitantes às suas ações e criam os termos adequados para se referirem a 265

Famílias camponesas, migrações e contextos de poder no Nordeste

tais constrangimentos. Isto redunda na elaboração de estratégias familiares de resistência à exploração local e de aproveitamento oportuno dos espaços permitidos e conquistados para o exercício do trabalho formal. A fuga do cativeiro, nestas instâncias, configura-se como uma esperteza construída pelo profundo conhecimento das “coordenadas” das realidades locais que redefinem constantemente as oportunidades de controle de mão-de-obra familiar e o encontro de meios de sobreviver. A última instância, à qual muitas famílias camponesas são levadas a recorrer, é de soltar os membros da família no “meio do mundo”. Este “meio do mundo” é um espaço simbólico de uma “liberdade” que se apresenta a todos como uma maneira de aproveitar recursos em locais mais distantes, onde o contexto de poder também não está mais tão ao alcance do conhecimento familiar. As estratégias de recomposição dos grupos domésticos, mantendo contatos regulares com os emigrados, procuram significar a migração como uma maneira de contribuir para a manutenção da família camponesa no seu local de origem. Nem sempre a estratégia dá certo. Nem sempre fracassa. O “meio do mundo” continua respondendo às pressões de classes dominantes que articulam políticas de uso de trabalho que as favorecem num mundo cada vez mais globalizado e repleto de trabalhadores desempregados. As mudanças, tanto em fluxos migratórios quanto na composição das relações familiares em novos espaços rurais, dão pistas para a compreensão da tensão que marca a vida camponesa, entre o cativeiro e o meio do mundo.

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Diversidade do campesinato: expressões e categorias

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10 MIGRAÇÕES: UMA EXPERIÊNCIA HISTÓRICA DO CAMPESINATO DO

NORDESTE

Marilda Aparecida de Menezes

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é analisar como a migração tem sido uma experiência histórica de reprodução social do campesinato do Nordeste brasileiro. Fundamentamo-nos na discussão de alguns autores do campesinato, especificamente aqueles que tratam do significado das migrações para a reprodução social da família e em pesquisas realizadas com pequenos proprietários, moradores e rendeiros nas microrregiões do sertão de Cajazeiras e agreste da Borborema, no Estado da Paraíba, nas décadas de 1980 e 1990. Para analisar a relação entre migrações e campesinato, nos termos propostos por vários autores (First, 1983; Garcia Júnior, 1989; Menezes, 1985, 2002; Silva, 1988, 1992, 1999; Sozan, 1976; Woortmann, 1990), propomos três eixos de análise. Primeiro, as migrações como estratégia de reprodução social dos camponeses em processos de transformação social. Segundo, as migrações e a dinâmica da família, ou seja, o ciclo de vida, gênero e idade dos filhos (Menezes, 1985, 2002; Silva, 1992). Terceiro, as migrações como uma experiência intergeracional do campesinato (Holmes, 1983; Menezes, 2002). Esses três eixos serão desenvolvidos de dois contextos de transformação social. Primeiro, analisaremos os pequenos proprietários, moradores e rendeiros dos municípios de Bonito de Santa Fé e São José de Piranhas, que se localizam na microrregião do sertão de Cajazeiras, Estado da Paraíba, que era caracterizada pelo consórcio entre culturas alimentares, algodão e pecuária em finais da década de 1970 e início de 1980. Segundo, analisaremos os moradores e rendeiros da região do agreste, microrregião de Campina 269

Migrações: uma experiência histórica do campesinato do Nordeste

Grande, Estado da Paraíba, na década de 1990. Nas duas microrregiões, a migração tem sido uma prática social histórica dos pequenos proprietários, moradores e rendeiros, remontando, conforme nossa pesquisa, aos primórdios do século XX. Quem migra é o indivíduo, no entanto, a migração é uma estratégia familiar que se fundamenta no ciclo de vida, idade e sexo. Alguns membros da família ficam e outros partem; os que partem podem se estabelecer definitivamente nos locais de destino ou retornar periodicamente. O fluxo de pessoas entre espaços diferenciados é tecido por redes de familiares e de amizade, aproximando, de maneira simbólica, espaços geograficamente distantes.

CAMPONESES E MIGRANTES: ALGUMAS PERSPECTIVAS A discussão contemporânea sobre camponeses enfatiza que eles não são uma categoria homogênea, mas se constituem historicamente por meio de processos de diferenciação social (Shanin, 1965, 1970, 1980; Galeski, 1972, p.46). No entanto, constata-se uma concordância em relação a algumas características comuns na definição de camponês, sintetizadas por Shanin: O campesinato consiste em pequenos produtores agrícolas que, com a ajuda de equipamentos simples e do trabalho de suas famílias, produzem principalmente para seu próprio consumo, e para o cumprimento de obrigações com os detentores do poder econômico e político. (Shanin, 1965, p.23)

Como observamos, a definição de Shanin enfatiza a produção familiar voltada prioritariamente ao autoconsumo como uma característica central do campesinato. No entanto, em diversos contextos históricos, no Brasil e em outros países, há um desequilíbrio entre produção e necessidades de consumo, ocorrendo a necessidade de trabalho assalariado complementar como uma estratégia de reprodução familiar. No Brasil (Garcia Júnior, 1989; Menezes, 1985, 2002; Scott, 1982, 1995; Woortmann, 1990), argumenta-se que o processo de diferenciação camponesa pode ser analisado por meio de múltiplas estratégias de reprodução social, tais como emprego local, pequeno comércio, artesanato, assim como migrações em busca de trabalho assalariado. Garcia Júnior (1989, p.12-3) estudou trajetórias migratórias entre camponeses das regiões do brejo e do agreste no Estado da Paraíba e concluiu que: A análise de trajetórias individuais e familiares revela a existência, nessa região do Nordeste, de migrantes que se tornaram operários ou empregados urbanos no Sudeste, mas também a presença de indivíduos que conquistaram ou reproduziram a condição camponesa graças a uma passagem temporária pelo mercado de trabalho industrial.

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Diversidade do campesinato: expressões e categorias

Na mesma perspectiva, Woortmann (1990, p.35) afirma: A migração de camponeses não é apenas conseqüência da inviabilização de suas condições de existência, mas é parte integrante de suas próprias práticas de reprodução. Migrar, de fato, pode ser condição para a permanência camponesa.

As migrações como uma estratégia de reprodução social do campesinato também são observadas por pesquisadores de outros países. Sozan (1976, p.199) estudou o que classifica como “camponeses–trabalhadores” da Hungria, que migravam para a região central de Burgenland, na Áustria, e concluiu que eles constituem uma categoria teórica e histórica. Na Europa Central, esta categoria vem do excesso populacional agrícola, que existe desde o século XVIII. First (1983, p.184), ao analisar os camponeses de Moçambique, que trabalharam em minas de ouro e carvão, bem como na agricultura canavieira na África do Sul, considerou que os salários das minas são essenciais para a reprodução camponesa. O relacionamento entre o campesinato e os setores de mineração, agrícola ou industrial é de dissolução e sustentação da produção camponesa. A importância da migração para a reprodução do campesinato é também desenvolvida por outros pesquisadores na América Latina e na Europa (Butterworth e Chance, 1981; Meillassoux, 1977; Vargas, 1982; Cliffe, 1978). As diferentes perspectivas teóricas assumidas por todos os autores advêm das características de cada estudo de caso, bem como dos seus quadros teóricos. Muitos autores fundamentam suas análises na abordagem da preservação ou desintegração dos camponeses. Alguns concluem que a dependência do trabalho assalariado ocasiona uma total proletarização. Neste caso, a categoria atribuída a esse grupo está relacionada à sua condição de migrantes e trabalhadores. Eles são trabalhadores migrantes, migrantes do trabalho, migrantes sazonais, circulares ou temporários (Breman, 1985; Spiegel, 1980). Outros argumentam que a migração é uma estratégia importante para a reprodução social dos camponeses. Neste caso, eles são geralmente considerados camponeses (Garcia Júnior, 1989;1 Woortmann, 1990; Menezes, 1985). Outros estudiosos entendem que a dependência do trabalho assalariado causa uma relação contraditória, podendo tanto dissolver quanto sustentar a reprodução camponesa. Nesse caso, a categoria atribuída é camponeses–trabalhadores (First, 1983; Holmes, 1983; Menezes, 2002; Silva, 1992; Sozan, 1976). Apesar das diferenças de classificação conceitual entre os autores, há um reconhecimento comum de que as migrações nem sempre expressam 1

“Trabalhar com a heterogeneidade das relações sociais não é, assim, uma questão descritiva, uma mania de antropólogo com o rigor empírico, mas a condição de possibilidade de constituir um campo de questões a serem examinadas, uma problemática.” (GARCIA JÚNIOR, 1989, p.27.)

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Migrações: uma experiência histórica do campesinato do Nordeste

uma desintegração do campesinato, mas têm representado uma estratégia de longa duração de reprodução social em contextos que limitam as suas condições de reprodução social.

CAMPONESES DO SERTÃO PARAIBANO: MIGRAÇÕES E FAMÍLIA Os municípios estudados – Bonito de Santa Fé e São José de Piranhas – localizam-se na microrregião do sertão de Cajazeiras, no Estado da Paraíba. A região está relacionada à história da interiorização do gado. A pecuária, antes de penetrar sertão adentro, era uma atividade secundária à agricultura da cana-de-açúcar. Com a valorização desta cultura, o gado vai sendo empurrado para o interior, constituindo-se no fator fundamental do povoamento do sertão (Andrade, 1980; Alves, 1978, p.2; Woortmann, 1995). O algodão como cultura comercial foi trazido ao Brasil pelos ingleses no século XIX, que tinham como principal fornecedor os Estados Unidos da América. O algodão, a pecuária e as culturas alimentares formavam o chamado “sistema produtivo tradicional”, baseado no consorciamento do algodão arbóreo (mocó), do milho e do feijão de corda ou macassar. A produção do algodão no sertão perdeu a sua importância no mercado mundial quando o Japão, durante a Primeira Guerra Mundial, expandiu seu parque industrial têxtil e, em 1933, ocupava o primeiro lugar entre os exportadores de produtos de algodão, posição até então ocupada pela Inglaterra. Da mesma forma que a Inglaterra, o Japão imprimiu uma política visando garantir mercados fornecedores de algodão, e foi com esta finalidade que, em 1933, 23.150 japoneses migraram para o sul do Brasil (Alves, 1979, p.86). O algodão produzido no Nordeste na época da hegemonia inglesa no mercado mundial era de tipo mocó ou seridó, o qual se destinava à fabricação de tecidos finos e de boa qualidade. O tipo implantado em São Paulo era herbáceo, variedade produzida nos Estados Unidos da América (Grabois e Aguiar, 1980, p.33). Outra inovação surgida na década de 1930 são as fibras e fios sintéticos, que serão combinados com o algodão herbáceo para formar o fio misto (algodão sintético). Esta fibra artificial influenciou substancialmente as regiões produtoras de algodão, pois os países importadores passaram a ter maior poder de barganha, já que não dependiam totalmente da fibra natural. São Paulo passou a representar o principal produtor de algodão para exportação, já que produzia o tipo herbáceo, adequado ao cruzamento com fio sintético. Os efeitos dessas transformações econômicas e tecnológicas não tardaram no Nordeste. A perda da importância do algodão nordestino perante o do Centro-Sul levou os grandes e, em certa medida, os médios proprietários a optarem pela atividade mais lucrativa: a pecuária (Lira, 1983, p.86-7). O algodão como cultura comercial era a principal fonte monetária do peque272

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

no proprietário, e para o grande proprietário era uma cultura subsidiária à pecuária, destinada a rebaixar os seus custos de produção. A decadência do algodão afetou significativamente as condições de reprodução social dos pequenos proprietários e moradores. Os pequenos proprietários, que não tinham capital para se tornarem criadores, dependiam da comercialização do algodão para garantir a parte monetária de sua subsistência, como vemos neste depoimento: O garrote do pobre é uma arroba de algodão, quando ele tem prá vender, quando não tem prá vender fica sem nada, dá-se um jeito de sofrer na roça de qualquer um, um dia alugado. Ou, então, fica sem nada. Ele já tá desprevenido, às vezes uma doença, uma precisão, e ele tendo o algodão, não, ele vai se manter. Como pobre, pouquinho, mas vai ter. (Pequeno proprietário)

O pequeno tamanho da terra, a escassez de água, a ausência de assistência técnica e de crédito e a expropriação do excedente na comercialização não permitem que a pequena unidade de produção garanta as necessidades básicas da família. Além disso, os pequenos proprietários são frágeis às crises de produção na região, geralmente causadas pelas secas. São obrigados, freqüentemente, a recorrer à venda de animais, que representam a principal reserva de valor. O morador trabalha em regime de parceria. A partilha varia em função do acordo fixado entre patrão e morador. Há uma tendência para o patrão se responsabilizar pela cerca, broca e plantio da semente de algodão, o que o desvincula de obrigações ligadas a benfeitorias junto ao morador. Neste caso, a partilha é “meia” de todas as culturas (50% para o morador e 50% para o patrão). Esta relação vem sofrendo modificações ao longo dos anos, sempre evoluindo para uma maior extração do produto do trabalho, como nos relata um morador: Na propriedade que meus pais moravam era 1/6 de milho, feijão, algodão; depois foi diminuindo prá 1/5. Isto foi mais ou menos em 1940; é sabedoria do patrão. Aí o tempo foi mudando e os proprietários também foram diminuindo, eu sei que hoje (entrevista realizada em 1985) está em 1/4 (das culturas alimentares), mas 1/2 de algodão. (Morador)

O gado passou a competir em situação vantajosa, palmo a palmo, pela terra, solapando os direitos do morador, que, além da roça consorciada com algodão, tinha direito à criação de alguns animais, principalmente caprinos, suínos e aves. No início da década de 1980, não se encontrava, praticamente, patrão que permitisse a criação. Esses animais são tradicionalmente “a criação de pobre” e representam uma reserva de valor permanente para todas as despesas monetárias da família: compra de mercadorias, socorro numa doença, despesas de cerimonial e outras. 273

Migrações: uma experiência histórica do campesinato do Nordeste

O morador tem acesso limitado aos meios de produção necessários para garantir a reprodução da família, pois a plantação de capim passa a competir com as áreas destinadas ao plantio de culturas alimentares, como bem relata um ex-morador: Hoje terra boa não fica para o morador, não. É só prá criá gado; o povo daqui prá terra boa só enxerga gado logo; aí quer dizer que ele faz pastagem prá fazê forragem prá o gado. É bom prá o patrão, prá nós não, porquê morador não vai comê o capim; o morador podia comê uma batata, um feijão, um tomate. (Rendeiro, ex-morador)

O assalariamento é, agora, condição imprescindível para sobrevivência do morador. Este terá que se exaurir, trabalhar mais intensivamente por horas a fio, explorar mais intensamente o trabalho das mulheres, dos filhos, inclusive dos menores. Nessas condições, a permanência do morador na propriedade dependerá, na grande maioria das vezes, da sua capacidade de suportar a expropriação de suas condições de reprodução. A fraca atuação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais faz com que não existam ações organizadas para a conquista dos direitos dos moradores A sua saída não ocorre por expulsão direta do patrão, mas ele vai perdendo, gradativamente, as suas condições de acesso à terra, alguns “direitos” da relação de morada, como o adiantamento de dinheiro por ocasião de necessidade da família, até o momento em que decide sair da propriedade. Esta forma de expulsão do morador no sertão Paraibano é similar à “expulsão indireta”, estudada por Sigaud (1979) para o caso do morador dos engenhos e usinas de cana de açúcar na zona da mata pernambucana na década de 1970.2 Embora seja uma ação individual ou da família e não se expresse em ações coletivas, é uma forma de luta, de resistência à situação de exploração em que vivem os moradores. Uma vez morando na rua, transformam-se em rendeiros, que têm, ainda, no acesso precário à terra sua base de reprodução. O rendeiro sente-se mais livre para “escolher” o patrão, para expressar suas opiniões e para colocar questão na justiça, na expressão de voto. É mais fácil um rendeiro colocar questão no sindicato do que um morador. Essa categoria inclui trabalhadores que vivem em áreas urbanas do município, que continuam a cultivar pequenos pedaços de terra em locais distantes de 2

Sigaud (1979, p.76-7), analisando as pressões indiretas e a saída calculada, conclui que “por detrás das idéias do botar para fora e do gosto e vontade se poderia depreender a dinâmica de um processo que não permite nem a proprietários, nem a trabalhadores uma hegemonia absoluta, em relação ao sentido que está assumindo. Assim, nem o proprietário pode mandar embora trabalhadores indiscriminadamente, embora sempre possa jogar com a ameaça de botar para fora, a qual, por sua vez, é eficaz porque o modelo da morada não tem mais condições de reprodução e não porque proprietários disponham de uma força ilimitada. Por outro lado, também o trabalhador nunca sai totalmente de gosto e vontade, na medida em que sofre um conjunto de pressões que serão ressentidas em função de uma maior ou menor força do proprietário, mas sim a partir da própria posição que ocupe segundo o modelo diferenciador da morada e da força de seu sindicato”.

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Diversidade do campesinato: expressões e categorias

suas casas; aqueles que vivem na área rural, mas não têm terra, e pequenos proprietários, com terra insuficiente, que em geral possuem um “chão de terra” e plantam em terras de outros proprietários (Andrade, 1980, p.152; Menezes, 1985). Na pesquisa empírica notei também que, em geral, os rendeiros sentem-se à vontade para contar sobre sua situação, ao passo que os moradores parecem sempre mais medrosos e em questões que envolvem diretamente um julgamento do patrão, dizem “os patrões”, acrescentando não raras vezes: “não o meu, o meu é bom”. Dada a precariedade das alternativas locais e existindo possibilidade de trabalho em condições comparativamente melhores em relação às locais, alguns membros da família, muitas vezes, migravam como estratégia de sobrevivência. O destino mais importante era São Paulo, mas havia também migração para Brasília. A migração para São Paulo remonta à década de 1930, conforme a memória de pessoas mais idosas. Os que já migraram funcionam como verdadeiro canal de informações, por meio das cartas e dos retornos constantes à origem. São os que estão em São Paulo que enviam o sinal verde para o momento exato da migração. Havia um inter-relacionamento entre Bonito de Santa Fé e São José de Piranhas com São Paulo muito mais intenso do que com outros municípios da própria microrregião, como Cajazeiras.3 Migrar, principalmente para os moradores e rendeiros, é um sinal de libertação. Ao decidirem tentar a vida em outro lugar é como se dessem um basta à situação que ali vivenciam. Muitos contam com orgulho que, ao irem para São Paulo, não dependem mais do patrão. A migração, assim como a saída do morador para as pontas de rua, é considerada, na percepção do trabalhador, uma libertação da relação de dependência direta do patrão. Embora seja uma alternativa individual, a decisão de partir não deixa de ser uma forma de luta, uma predisposição para buscar recursos em São Paulo e poder retornar, em momento oportuno, para suas localidades no Estado da Paraíba ou fixar moradia em São Paulo (Garcia Júnior, 1989; Menezes, 1985, 2002). Quanto aos grupos que migram, são tanto os pequenos proprietários quanto os moradores e rendeiros, porém o fato de ter ou não a propriedade da terra determina diferenças no processo migratório. Para os pequenos proprietários, a migração de alguns membros da família alivia a pressão demográfica sobre a terra, permitindo que outros membros fiquem na propriedade. Um caso esclarecedor é o de um pequeno proprietário com cinqüenta tarefas (mais ou menos 16 ha). Ele tinha dez filhos, dos quais cinco eram solteiros (quatro mulheres e um homem com 18 anos de idade), três eram casados na Paraíba e dois filhos casados moravam fora (um homem em São Paulo – entrevistado – e uma filha em Vitória da Conquista, 3

Cajazeiras dista, aproximadamente, 30 km de São José de Piranhas e 45 km de Bonito de Santa Fé.

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Migrações: uma experiência histórica do campesinato do Nordeste

na Bahia). Este pequeno proprietário lançou mão de diferentes estratégias: dois filhos casados ficaram morando na propriedade e trabalhavam com ele numa propriedade vizinha, como rendeiros. Outra estratégia utilizada foi a migração de um filho, logo após o seu casamento. O pai acreditava que não tinha outra solução. Entrevistado em São Paulo, este filho revela que, como a terra do pai era insuficiente, a única alternativa no local seria trabalhar de rendeiro: para ser meeiro4 o lugar é São Paulo. Prá quem não tem o lugar é São Paulo, porque o cara vem do norte prá cá, chega aqui, arruma um lugarzinho prá morar, arruma serviço numa fábrica, vai trabalhar, mesmo que tem que pagar um aluguelzinho, mas se der prá ele pagar aluguel por mês, comê, vesti e calçá, tá bom demais, não tem esse negócio de ficar devendo prá ninguém. Lá na Paraíba mesmo que tem inverno, prá quem não tem é seco, porque o que o morador faz só dá prá pagá o patrão. Tem deles que não faz prá pagá o patrão. Por isto que é pior do que seca, e sendo seca aí pronto acabou. (Ajudante, filho de pequeno proprietário)

Para os pequenos proprietários, portanto, a migração de alguns filhos impede a subdivisão da terra, facilitando a reprodução dos que nela permanecem. Os moradores e rendeiros, por não possuírem terra, são mais propensos a migrar do que os pequenos proprietários. A migração do morador, do meeiro é bem maior do que a do pequeno proprietário. Tem gente que tem uma propriedadezinha aqui, que se amarra, nem que sofre muito, se amarra e acontece que é melhor mesmo. Quem não tem nada, coitado, já viu. Padece no sofrimento mesmo. (Morador)

Os pequenos proprietários, moradores e rendeiros têm seu processo migratório marcado não apenas pelas condições objetivas de reprodução, como também pelo tamanho da família e momento do ciclo de vida da unidade familiar (Durhan, 1978; Holmes, 1983; Menezes, 1985, 2002). Considerando o ciclo de vida da família, os jovens de vinte a 29 anos de idade são potencialmente mais propensos a migrar,5 pois têm maiores necessidades de itens de consumo pessoal, tais como roupas, higiene e lazer. Quando as condições de reprodução são limitadas, essas despesas são sacrificadas 4

5

Os rendeiros também se autodenominam meeiros, devido à partilha do algodão ser de meia (50% para o rendeiro e 50% para o patrão). Pesquisas posteriores confirmam que os jovens solteiros e recém-casados constituem o grupo de idade mais importante dos migrantes (MENEZES, 2006). Estudo recente sobre os migrantes do sertão paraibano que migraram para trabalhar no corte de cana em São Paulo na década de 2000 também identificou que a maioria, em torno de 90%, é de migrantes entre 18 e trinta anos de idade (SILVA, 2006; MENEZES e SILVA, 2007). Pesquisas realizadas em assentamentos rurais na região do brejo paraibano mostraram que os jovens, homens e mulheres, migram como uma estratégia de conquistar sua autonomia e, também, ajudar monetariamente a família (MARQUES, 2006; MENEZES, MALAGODI e MARQUES, 2007; MALAGODI e MARQUES, 2007).

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Diversidade do campesinato: expressões e categorias

por causa dos produtos de alimentação básica. Então, a possibilidade de atender àquelas necessidades é vislumbrada pela migração para São Paulo, onde almejam ter acesso a certos bens que raramente conseguiriam em sua terra natal. As oportunidades de trabalho urbano em São Paulo, também, eram maiores para os jovens (Camargo et al., 1975, p.80). Além disso, as dificuldades de moradia tornavam São Paulo mais atrativo para os jovens solteiros. Estes são mais livres para aceitar trabalhos na construção civil, morando nas próprias obras. Assim, não precisavam alugar uma casa ou construir um barraco numa favela, condição básica para a instalação de um migrante casado. Nestas situações também se encaixavam homens casados que deixam a família na Paraíba e vivem em São Paulo como “solteiros”, de forma a reduzir ao mínimo o custo de sua reprodução, pois o salário deve sustentar a si mesmos e à família que ficou na cidade natal. Quando os casados migram com a esposa e os filhos, geralmente levam em conta o número de filhos. Muitos dizem que é possível se tentar a vida em São Paulo quando se tem até dois ou três filhos. Um número maior torna a situação complicada, pois aumenta o próprio custo da migração – passagens, despesas iniciais de instalação na cidade – e há dificuldades para encontrar casa para alugar. A análise do ciclo de vida no processo migratório é, portanto, fundamental para compreender porque numa mesma família uns migram e outros não. Assim, alguns motivos, como “não migrei porque não gosto de São Paulo”, relatado por um irmão de migrante, somam-se ao fato de ser casado e único filho que ficou trabalhando com o pai. É importante também considerar a migração das mulheres. Estas, no campo, desempenham, em geral, tarefas domésticas, e na cidade, podem ter acesso a trabalhos remunerados. De forma mais habitual, migram primeiro os filhos mais velhos; o que geralmente ocorre no momento da maioridade do rapaz e da moça: 18 anos. O primeiro que migra abre caminho para os irmãos que o seguem, em um processo que se diferencia no tempo de fragmentação e recomposição familiar. A migração dos vários membros da família é realizada por meio de redes familiares e de amizade: tios, primos, amigos e vizinhos. As redes sociais organizam o processo migratório em todas as etapas – antes, durante e na chegada a São Paulo –, demonstrando a importância das relações de reciprocidade nos diversos espaços e tempos que marcam a(s) trajetória(s) migratória(s) dos indivíduos ou famílias. As redes sociais organizam as conexões entre os que migram e os que ficam, por meio do fluxo de informações, veiculadas, na época, por cartas e mensagens orais, fluxo de mercadorias – presentes, remédios, utensílios domésticos, fluxo de dinheiro que um parente envia a outro. São, também, as redes sociais – amigos, parentes e vizinhos – que orientam quando se deve ou não migrar, geralmente considerando a possibilidade de emprego (Durhan, 1978, p.135; Menezes, 1985, 2002). 277

Migrações: uma experiência histórica do campesinato do Nordeste

A migração como estratégia para enfrentar o processo de expropriação dos pequenos proprietários e moradores mostra que a família, ao se segmentar entre as áreas rurais e a cidade, garante a sua reprodução social tanto em relações de trabalho assentadas no acesso aos meios de produção como em relações de trabalho assalariadas. Assim, a migração entre o sertão paraibano e a região do ABC paulista nas décadas estudadas (1970 e 1980) conecta esses espaços sociais por meio das redes familiares e de amizade, fluxos de mercadorias, bens simbólicos, idéias e experiências (Menezes, 2002; Vincent, 1987). Veremos como essa perspectiva também se verifica no agreste paraibano na década de 1990.

CAMPONESES DO AGRESTE PARAIBANO: MIGRAÇÕES E FAMÍLIA Fagundes mora na microrregião do agreste da Borborema no Estado da Paraíba, Nordeste do Brasil. O agreste é uma região de transição entre a zona da mata e o sertão. Em certos lugares, ele é bem característico em seus aspectos, mas, em outros, pode ser confundido com a zona da mata em seus trechos mais úmidos e com o sertão nos mais secos (Andrade, 1980, p.31). As principais atividades econômicas de Fagundes são a agricultura e a pecuária. O algodão, que foi a principal cultura comercial, caiu de 1.160 hectares, em 1970, para 7, em 1985, e 20 hectares em 2000, praticamente desaparecendo da paisagem agrícola. Esse declínio na cultura do algodão influenciou significativamente a sobrevivência dos camponeses, tornando-os mais dependentes do trabalho assalariado. Esse processo é analisado em estudos sobre transformações agrícolas no Estado da Paraíba (Alves, 1978; Lira, 1983; Menezes, 1985). A expansão da pecuária entre 1970 e 1985 contribuiu para a expulsão de moradores para a periferia da área urbana do município e sua transformação em rendeiros. Essa categoria inclui trabalhadores que vivem em áreas urbanas do município, que continuam a cultivar pequenos pedaços de terra em locais distantes de suas casas e aqueles que vivem na área rural, mas não têm terra, e pequenos proprietários, com terra insuficiente, que também plantam em terras de outros proprietários (Andrade, 1980; Menezes, 1985). Em resumo, os camponeses no agreste paraibano são os pequenos proprietários e os rendeiros. Os moradores, devido ao processo de expansão da pecuária e a decadência do algodão, já descrito para a região do sertão paraibano nas décadas de 1970 e 1980, existiam em número bem reduzido na região do agreste da Borborema na década de 1990. Todas as categorias têm acesso precário à terra e, conseqüentemente, trabalham em alguma outra atividade, tal como pequenos negócios, emprego como servidores do município ou trabalho assalariado na localidade ou em outras regiões. As migrações têm sido uma estratégia central na reprodução dos 278

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

pequenos proprietários, moradores e rendeiros desde princípios do século XX. Eles migram para trabalhar nas usinas de cana-de-açúcar na zona da mata pernambucana ou para trabalhar na indústria ou setor de serviços nas metrópoles da região Sudeste, principalmente o Rio de Janeiro. Para compreender a relação entre migração e as condições de existência dos pequenos proprietários, moradores e rendeiros do agreste paraibano, utilizamos como metodologia o estudo de trajetórias migratórias de um grupo de vinte camponeses – migrantes, cujas idades variam entre vinte e 77 anos. O levantamento de dados foi realizado nos anos de 1995 e 1996. As trajetórias migratórias captam a multiplicidade de pontos de cruzamento entre a história dos indivíduos, das famílias e dos grupos sociais aos quais pertencem. Desde princípios do século XX, os camponeses do agreste paraibano têm migrado para as usinas de cana-de-açúcar do Estado de Pernambuco, para trabalharem no corte de cana. Essa é a clássica migração sazonal entre as regiões do agreste e da zona da mata, bem relatada por Andrade (1980, p.152): A colheita do algodão, iniciada em dezembro, estende-se geralmente até janeiro, quando a terra é restituída ao proprietário a fim de que o gado solto nos velhos roçados se alimente com a rama do algodão e a palha do milho. Em março novamente a terra volta às mãos dos agricultores para o reinício do ciclo anual de cultura; esses agricultores são os que, em setembro, quase não tendo o que fazer no agreste, migram para a área açucareira a fim de trabalhar nas usinas que neste mês iniciam a moagem, fazendo as migrações sazonais típicas do Nordeste, desde o Rio Grande do Norte até Sergipe.

Em termos socioeconômicos, a conexão entre as regiões agreste e zona da mata (Andrade e Potengy, 1980a, p.261) representa uma complementaridade entre a economia camponesa-latifundiária e a plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Suarez, 1977, p.36-7) e tem-se constituído como um tradicional “corredor de migração” (Silva, 1999). Qunto às condições de reprodução dos camponeses, a migração sazonal tem representado, desde o início do século XX até o século XXI, uma alternativa de obtenção de renda monetária para suprir as necessidades da família, devido ao precário acesso à terra, ao ciclo agrícola com as diferenças entre inverno e verão, às oscilações econômicas na principal cultura comercial – o algodão –, bem como à ausência de crédito e assistência técnica. No caso estudado, os salários ganhos nas usinas de cana-de-açúcar não permitiram um processo de acumulação que viabilizasse a compra de terra, instalação de benfeitorias, compra de animais; apenas permitia suprir as necessidades de reprodução da família. Nas décadas de 1950, 1960 e 1970, o movimento migratório mais recorrente do agreste paraibano era para as metrópoles do Sudeste brasileiro, principalmente o Rio de Janeiro. Alguns migrantes fixaram-se nos locais 279

Migrações: uma experiência histórica do campesinato do Nordeste

de destino e outros mantiveram as raízes na terra natal, retornando várias vezes. Entre os que migraram nas décadas de 1960 e 1970, o emprego na indústria era o grande sonho, pois significava a possibilidade de adquirir uma profissão, bem como o acesso aos benefícios sociais. Sendo originários de atividades agrícolas e tendo baixos níveis de escolaridade, a construção civil foi, via de regra, a primeira atividade para os camponeses–trabalhadores migrantes. Além das oportunidades de emprego e profissionalização, havia, ainda, uma relativa facilidade para se adquirir um terreno e construir a casa própria, viabilizando-se, assim, a permanência na cidade (Menezes, 1985). Os grupos que começaram a migrar na década de 1970 tiveram menores possibilidades de fixação nas cidades ou de ter alguma poupança para investir em seus locais de origem do que os das décadas de 1950 e 1960, o que contribuiu para a intensificação das migrações temporárias e a chamada “migração de retorno” (Menezes, 1985; Amaral e Nogueira, 1993). Ao passo que as condições de trabalho e moradia se deterioraram na região Sudeste do Brasil, desde a década de 1970, há uma maior demanda de trabalho sazonal na plantation açucareira no Estado de Pernambuco. Além disso, o trabalho no corte de cana passou a ser uma alternativa concorrente aos empregos urbanos no Rio de Janeiro ou São Paulo, após a implementação do contrato formal de trabalho, que garante aos canavieiros os mesmos direitos que os trabalhadores urbanos, como férias, 13o salário e fundo de garantia por tempo de serviço. No entanto, as duas opções, a plantation açucareira ou os empregos urbanos, continuam a ser plausíveis para indivíduos e famílias, e a decisão por uma ou outra depende das condições de trabalho e moradia dos vários espaços aos quais os camponeses–trabalhadores migrantes pertencem, bem como do ciclo de vida, sexo, avaliações e percepções dos migrantes quanto às condições de trabalho, direitos trabalhistas e moradia (Silva, 1992, p.167; Menezes, 2002). Se nas décadas de 1950 e 1960 a reprodução da condição camponesa poderia ser garantida pela migração de parte dos membros da unidade familiar, desde meados da década de 1970 se notam diferenças significativas nas condições de reprodução social dos camponeses–trabalhadores migrantes. Para aqueles que começaram a migrar na década de 1970, a possibilidade de comprar terra com economias enviadas ou trazidas pelos migrantes tem-se tornado mais remota. A renda auferida tem sido apenas suficiente para suprir as necessidades básicas de suas famílias. Apesar de ser rara a possibilidade de construir uma base de capital pela aquisição de terra, insumos e equipamentos, há um grupo significativo de migrantes que orientam sua vida no sentido de permanecer na terra natal, adquirindo ou construindo uma casa. O estudo realizado por Garcia Júnior na região do brejo paraibano (1989, p.14) identifica que a aquisição da casa própria é um passo essencial na emancipação dos moradores. A compra de terra ou casa tem um significa280

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

do material e simbólico na trajetória social de camponeses das regiões do agreste, brejo e sertão do Estado da Paraíba. A migração como uma estratégia permanente de adaptação das famílias camponesas às condições insuficientes de reprodução social pode ser observada quando se analisam as trajetórias migratórias de famílias por duas ou três gerações. Descreveremos brevemente o caso das famílias de sr. Benedito e do sr. Arnaldo. Sr. Benedito nasceu em 1923, migrou para o Rio de Janeiro em 1951, 1957, 1961 e 1968, deixando a mulher e os filhos morando na terra de seus pais. Com o dinheiro economizado, ele comprou uma pequena propriedade. Ele tem três filhas e três filhos; todos iniciaram a sua trajetória migratória na década de 1970. Em 1995, as três mulheres eram solteiras e moravam no Rio de Janeiro, trabalhando como empregadas domésticas. Uma delas teve uma filha e um filho, os quais foram criados pelos avós na Paraíba. O neto que sr. Benedito criou migrou pela primeira vez para o Rio de Janeiro em 1994, com 18 anos de idade, completando assim um ciclo de três gerações de migrantes. Os três filhos do sr. Benedito foram várias vezes ao Rio de Janeiro e também trabalharam no corte de cana-de-açúcar no vizinho Estado de Pernambuco, porém não conseguiram comprar terra, apenas construíram suas casas na terra do pai. A trajetória migratória da família do sr. Benedito mostra, assim como em outros casos, que a migração acompanha o ciclo de vida do indivíduo e da família e é praticada pelas gerações. A trajetória da família do sr. Arnaldo é similar à do sr. Benedito. Sr. Arnaldo nasceu em 1918 e, quando tinha apenas 12 anos, em 1930, realizou a primeira migração para trabalhar no corte de cana nas usinas do Estado de Pernambuco. Ele foi levado pelo pai e continuou trabalhando 25 anos não consecutivos na área canavieira, até a década de 1970. Sr. Arnaldo levou seu filho mais velho, Cláudio, que nasceu em 1938, para trabalhar nas usinas quando tinha 8 anos de idade. Cláudio foi ao Rio de Janeiro, com 34 anos, em 1962, ficando apenas um ano. Ele narra sua experiência de ser levado pelo pai aos 8 anos de idade para trabalhar nas usinas de cana de açúcar. Sabe? Pai trabalhava em Pernambuco. Aí começou me carregar prá o Pernambuco, eu já com idade de oito anos prá nove, já comecei trabalhar em Pernambuco mais ele. Ele dizia que era mode eu tomar conta das panela, não sei o que... Chegava lá, pegava uma enxada, dizia: vamos ajudar eu... e eu ía... Limpar mato. Era, eu era pequeno, ía mais ele prá lá, cozinhar panela, chegava lá, eu dizia, eu não vou ficar só não, ele dizia, vamos pro serviço, leve uma enxada e vai limpar mato aí. Arrancar, não tinha quem limpar, era perto do barraco, sabe! Aí... trabalhava só prá ele, ajudando ele só. Às vezes me dava só um trocadinho para eu comer um doce, uma coisa, assim, só para o domingo. Eu trabalhava só prá ele, comprava uma roupa, uma coisa, era assim. Era muito pequeno quando eu comecei trabalhar no meio do mundo6 (Cláudio, fita 22: 2-4) 6

Sobre a expressão “meio do mundo”, veja o artigo de Parry Scott nesta coletânea.

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Migrações: uma experiência histórica do campesinato do Nordeste

No caso das famílias camponesas, a iniciação no trabalho desde tenra idade é uma prática social que, além da necessidade da cooperação dos braços na produção, representa um processo de aprendizagem do trabalho como valor que constitui homens e mulheres honrados, como é recorrente em inúmeras narrativas das mulheres e dos homens sobre sua infância (Menezes, 2002, p.195; Woortmann, 1990). Cláudio levou seu filho mais velho, Roberto, à plantation açucareira, quando ele tinha 12 anos. A trajetória de vida de Roberto seguiu o modelo de seu pai e avô. Aí pai falava que ia me levar para o Pernambuco... eu rapava de casa, só chegava em casa quando pai já tinha ido embora para o Pernambuco... com medo de ir, porque... Quando foi num ano, aí pai foi pro Pernambuco, né? Aí ele chegou, aí eu disse, amanhã... ele chegou num sábado. Aí eu disse, quando for amanhã eu também vou pro Pernambuco, ele disse, vai não. Eu disse assim, eu vou. Eu tinha 7 anos...Trabalhava junto com meu pai. Depois de duas semanas, nós voltávamos. (Roberto, fita 21: 15)

Cláudio reproduziu a mesma atitude de seu pai, ao levar seus filhos, em idade precoce, para trabalhar na plantation açucareira. Seu filho mais velho, Roberto, tentou evitar ser levado pelo pai, mas, finalmente, percebeu que não seria possível e aceitou como algo natural e inquestionável. Roberto freqüentava a escola, aprendeu apenas a assinar o nome, não lê nem escreve. Quando ainda freqüentava a escola, foi progressivamente assumindo sua identidade como trabalhador e desistiu da escola. Roberto trabalhou nas usinas de cana-de-açúcar, de 1975 até 1995, e, então, migrou pela primeira vez para o Rio de Janeiro, esperando economizar algum dinheiro para seu casamento. Ele continuava morando no Rio de Janeiro até o ano de 2008. Seus três irmãos já tinham migrado para o Rio de Janeiro, e dois deles aplicaram a poupança trazida na compra de uma pequena mercearia no bairro. As irmãs mais velhas de Roberto, que tinham 21 e 24 anos, estavam cursando escola secundária, e os irmãos mais jovens, de 10 e 13 anos, também estavam estudando. Suas irmãs trabalhavam como empregadas domésticas para famílias locais. O pai não permitiu que as filhas migrassem para trabalhar. Os exemplos das famílias do sr. Benedito e sr. Arnaldo mostram como a migração tem sido uma experiência que se transmite intergeracionalmente nas famílias camponesas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Além de serem definidos como uma unidade de produção familiar, os camponeses também são caracterizados por suas relações sociais, descritas sob a noção de “comunidade camponesa”: 282

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

Uma comunidade pode ser definida como um grupo humano localizado territorialmente e unido por laços de interação social e interdependência, por um sistema integrado de valores e normas aceitas, e pela consciência de serem distintos de outros grupos delineados por linhas similares. Elevada auto-suficiência deve ser adicionada como uma característica dominante da tradicional comunidade camponesa (...). A comunidade aldeã é altamente coesa, mas, ao mesmo tempo, é diversificada em grupos e facções diferentes e conflitantes. (Shanin, 1972, p.32-3)

Galeski (1972, p.168) segue a mesma perspectiva de Shanin: A coesão da aldeia é enfraquecida pelos efeitos de forças sociais mais amplas, pela influência da cidade e da indústria, e pelas mudanças que ocorrem na unidade de produção camponesa e internamente no extrato camponês.

A noção de comunidade camponesa como um espaço demarcado territorialmente e auto-suficiente gerou estudos que consideram a migração um fenômeno tanto capaz de desintegrar quanto de afirmar as relações de proximidade, os valores e o sentimento de pertencimento. Shanin (1985, p.152) compreende que a migração é ao mesmo tempo uma forma de desintegração e de reprodução social dos camponeses, na medida em que os que migram mantêm tanto as famílias que ficam nas suas localidades quanto fazem investimentos em animais e compra de terra. No entanto, classifica-os como “um grupo analiticamente marginal do campesinato”. O grupo marginal compartilha algumas, mas não todas, características dos camponeses; em geral, tais diferenças podem ser apresentadas numa escala de mais ou menos (Shanin, 1970, p.44): Camponeses–trabalhadores representam uma forma de penetração industrial das cidades no campo (eventualmente eles podem representar sua mútua interpenetração). O camponês–trabalhador crescentemente conserva sua fazenda meramente para fins de consumo e como um lugar para viver, ao passo que a maior parte de sua renda é gerada na cidade.

O camponês que migra é analiticamente marginal, pois a comunidade camponesa é considerada uma organização social e econômica integrada internamente e que tenderia a desintegrar-se com a penetração do modo de vida urbano. Essa compreensão tem sido objeto de debate entre os autores do campesinato e das migrações. Breman (1985), que estudou os trabalhadores migrantes na cana-deaçúcar na Índia, também compreende que os estudos da comunidade camponesa tendem a não perceber a importância das migrações. Os estudos sobre a Village têm contribuído para uma similar retificação do passado por enfatizar a natureza fechada e a continuidade da ordem local, e por prestar

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Migrações: uma experiência histórica do campesinato do Nordeste

pouca ou nenhuma atenção, em termos gerais, para a importância que a migração tem assumido como deslocamento de trabalho. (Breman, 1985, p.191)

Almeida (2007, p.171), em uma excelente análise das teorias do campesinato, também critica as concepções que concebem o caráter fechado da comunidade camponesa: Essas considerações visam indicar que, no fundo, o que soldava in extremis a noção de campesinato era a conexão entre um chão e um povo: camponeses seriam, como nações, gente enraizada em um território, com idéias mais ou menos conservadoras e técnicas agrícolas. Essa conexão entre grupo social, idéias e coisas – encerradas em um território discreto e isolado do exterior – deixa de ter peso para iluminar o mundo de migrantes móveis, de famílias-rede dispersas entre diferentes zonas geográficas segundo os fluxos migratórios, de estratégias de reprodução que acionam diferentes técnicas e espaços.

Na perspectiva de Almeida, o centro da análise não é mais o grupo social vinculado a um território, mas, antes, as múltiplas estratégias utilizadas pelos sujeitos para reproduzirem a si mesmos e suas famílias, tanto no local quanto fora. Há uma aproximação com a perspectiva de Vincent (1987, p.381), que toma como análise os indivíduos e não as atividades ou os lotes de terra: ... um focus de investigação centrado no movimento dos indivíduos (e não na atividade em lotes fixos de terra) e nas relações sociais que se estabelecem em função de sua interdependência econômica permite estruturar padrões de carreira individual, que se entremeiam dentro e fora da textura da vida rural local regional, para dentro das periferias e bairros urbanos (...). Paradoxalmente, este focus em indivíduos, e não nas relações entre homem e terra, tão familiares na literatura, incita a um exame mais detido da essência supostamente estável dessas relações, permitindo-lhes perceber mudanças e avaliar a ilusória aparência de estabilidade estrutural, enquanto o conteúdo está em fluxo.

Concordamos com as críticas elaboradas por Brandes (1975), Vincent (1987) e Almeida (2007) à noção de comunidade camponesa como a “conexão entre um chão e um povo” e, com base em nossa experiência de pesquisa com famílias de camponeses cujas trajetórias individuais e familiares são marcadas por diferentes movimentos migratórios e inserções no trabalho, entendemos que a noção de comunidade não é a mais apropriada, pois apresenta limites na compreensão da mobilidade de diversos sujeitos sociais que compõem a “comunidade”. A noção de redes sociais envolvendo formas de ajuda mútua, solidariedade, amizade, reciprocidade entre familiares, amigos e vizinhos, tem-se revelado uma ferramenta metodológica importante para compreender-se o fluxo de pessoas, objetos, informações e símbolos entre diversos espaços sociais em tempos diferenciados, bem como formas de organização de determinados grupos sociais (Menezes, 2002). 284

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

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11 RECIPROCIDADE E CIRCULAÇÃO DE CRIANÇAS ENTRE CAMPONESES DO SERTÃO Emilia Pietrafesa de Godoi

INTRODUÇÃO

Estudos etnográficos mostram que poucas sociedades caracterizam a adoção pela separação radical da criança da família de origem e a substituição de sua identidade, como o fazem as muitas sociedades ocidentais modernas. Em diversas situações camponesas contemporâneas tal fenômeno não se dá assim. Este é o caso estudado no sertão do Piauí, onde se encontram vários graus de “transferência de crianças”: em um pólo, tem-se a adoção plena, embora esta nunca apague a posição da criança como filha ou filho na sua família de origem, e, no outro pólo, a passagem temporária da criança de uma unidade familiar para outra. Entre uma e outra forma, encontram-se vários compromissos engenhosos. Conforme o caso, a circulação amputa ou incha a rede de parentesco, modifica radicalmente ou amplia o número de pessoas que dispõem de autoridade, direitos e deveres com relação às crianças. Algumas abordagens interpretativas atribuem o tipo de circulação de crianças encontrado sobretudo no meio rural à raridade ou à abundância dos recursos disponíveis e ao ajuste entre o número de pessoas ativas em uma unidade familiar e as necessidades de produção para a manutenção de sua existência. Sem negar a importância desses fatores, parece-me necessário restituir essa prática ao universo da reciprocidade como parte de uma ética segundo a qual ela é dada como generosa e obrigatória entre vizinhos, parentes e compadres. Além disso, proponho que este seja um aspecto da organização social de muitas configurações camponesas.1 1

Inspirada em Elias Scotson (2000), vou usar aqui preferencialmente o termo “configurações camponesas” a “grupos camponeses”. Esta expressão remete ao “modo como os indivíduos se

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Circulação de crianças é uma expressão usada nos estudos etnográficos para designar todas as práticas por meio das quais se dá a transferência de responsabilidade sobre uma criança de um adulto para outro e que implica a mobilidade infantil. O que me levou a refletir sobre a circulação de crianças foi meu estranhamento diante da freqüência com que ela ocorre no Brasil, e não somente em contextos rurais, mas urbanos também.2 Paralelamente à constatação da existência desta circulação infantil vem outra: o caráter menor, ou mesmo oculto, dessas práticas nas etnografias brasileiras. Mas lendo estudos etnográficos de outras partes do mundo nos damos conta de que se trata de um fenômeno visível para os muitos pesquisadores que se dedicam ao estudo do parentesco, do casamento e da família. Esse tema é trabalhado, por exemplo, em várias monografias sobre a África (Dupire, 1988; Goody, 1982; Goody, 1969; Lallemand, 1980), a Oceania (Carroll, 1970; Brady, 1976), a Ásia (Massard, 1983 e 1988) e entre os esquimós (Dufour, 1984; Guemple, 1979). Em todos esses lugares, chama a atenção o caráter “informal” e freqüentemente reversível da passagem ou da entrega de um filho para outra unidade familiar em contextos rurais ou próximos a eles. Para o caso brasileiro, existem estudos, como o de Cláudia Fonseca (1995), que constatam a prática de circulação de crianças como parte da estrutura básica da organização do parentesco em segmentos de baixa renda. Esta constatação é importante, pois desloca o tratamento do tema como um “problema social” para o de um processo social, isto é, a circulação de crianças não é vista como reflexo do “colapso dos valores tradicionais, mas justamente como parte destes mesmos valores” (Fonseca, 1995). Fonseca mostra, por exemplo, que não é porque não são queridas que as crianças circulam, mas justamente porque são muito queridas e representam, corporificam a idéia de família como valor (Woortmann, 1990). O ponto de partida das reflexões que se seguem sobre situações encontradas entre camponeses do sertão é que essa prática tem um significado específico integrado a um modelo cultural de família partilhado por alguns segmentos da nossa população, sobretudo rurais ou de origem rural, que não é aquele dominante na sociedade brasileira.3

2

3

agregam, como e por que eles formam entre si uma dada configuração ou como e por que as configurações assim formadas se modificam” (ibidem, p.57). A expressão recupera, portanto, a idéia de processo e evita a compreensão equivocada de um grupo autocontido. Os dados aqui trabalhados foram registrados em pesquisas de campo realizadas em diferentes momentos no final da década de 1980, mas, principalmente, quando da minha volta ao campo nos povoados de São Raimundo Nonato, no sertão do Piauí, em janeiro e fevereiro de 1996. Em uma vila porto-alegrense estudada por Fonseca (1995, p.87) “a metade das mulheres com mais de vinte anos já entregou pelo menos uma criança aos cuidados de outrém: consangüíneos (23%), parentes afins (12%), estranhos (22%) ou à Febem (32%)”. A autora informa que dos outros 11% das crianças em circulação não se sabe o destino. Como assinala Cláudia Fonseca, ao contrário das crenças com base na psicologia, próprias das classes médias, o papel de pai e mãe responsável não é o de manter uma relação

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RECIPROCIDADE E CIRCULAÇÃO DE CRIANÇAS EM CONTEXTOS RURAIS Em minhas pesquisas no sertão do Piauí, particularmente em povoados do município de São Raimundo Nonato, localizado no sudeste daquele Estado, a prática de várias unidades domésticas de incorporação de crianças nascidas em outras famílias sempre me chamou muito a atenção, sobretudo quando me debruçava sobre o parentesco e a sucessão. Não podia deixar de notar quanto a inserção dessas crianças modelava diferentemente a trama da rede do parentesco. Em um primeiro momento, interpretei essa prática como sendo uma estratégica de reprodução da família camponesa ligada ao seu ciclo demográfico (Fortes, s.d.): uma das situações de “adoção” sendo aquela em que não se tem mais força de trabalho suficiente no interior da unidade familiar, seja porque os filhos migraram ou porque se casaram e fundaram sua própria família, seja pelas duas razões ao mesmo tempo. Mas essa resposta me parecia insuficiente. Sem negar as pressões econômicas, parece-me que um indivíduo só pode transferir o seu filho sem qualquer mal-estar no interior de uma sociedade ou de um grupo que legitima esse tipo de prática e a propõe mesmo como boa e benéfica para as pessoas nela implicadas. Em seu “Ensaio sobre a dádiva”, M. Mauss trata daquilo que ele chama de “sistema de prestações totais”, isto é, das obrigações mútuas entre dois grupos ou dois indivíduos, encontradas em todas as sociedades. Por essa feliz expressão, além da multiplicidade de domínios implicados – jurídico, econômico, religioso, político –, encontra-se também o caráter variado dos bens colocados em jogo nas trocas. Nas palavras de Mauss 1974, p.44-5): Em primeiro lugar, não são indivíduos, e sim coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam [...] Ademais, o que trocam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis e imóveis, coisas economicamente úteis. Trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes, ritos, mulheres, crianças, danças, festas...

Este autor insere, pois, a circulação de crianças nas redes das trocas e toma-a como um meio de ligar doador e donatário. Assim, no caso dos polinésios de Samoa, ele sublinha: a criança, que a irmã e, por conseguinte, o cunhado, tio uterino, recebem do irmão e do cunhado para criar, é ela mesma chamada de tonga, um bem uterino. Ora, ela é o emocional apropriada com sua criança, mas sim o de assegurar que certas necessidades “objetivas” sejam atendidas. “A mãe biológica quase nunca considera ter abandonado os seus rebentos... Mães que entregam seus filhos a outros consideram que sacrificaram suas prerrogativas maternas em benefício destes... Essa idéia de sacrifício materno é subjacente aos esforços que ocasionalmente se vê a mãe biológica fazer para extrair ajuda material do tutor da criança; a idéia implícita é: ‘eu te emprestei meu filho, agora o que tu vais me emprestar?’” (FONSECA, 1995, p.36).

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canal pelo qual os bens de natureza indígena, os tonga, continuam a escoar da família da criança para esta família. De outro lado, a criança é o meio para seus pais obterem bens de natureza estrangeira (oloa) dos pais que a adotaram... (ibidem, p.50-1).

Segundo Mauss, alguns autores nomeiam impropriamente de “adotados” crianças em fosterage.4 Nesse caso, além de se constituírem elas mesmas em bens de circulação, as crianças são também os meios pelos quais circulam objetos de valor e, ademais, elas ligam grupos de pessoas, mais do que indivíduos particulares. Essas considerações de Marcel Mauss nos fazem pensar as várias modalidades de circulação de crianças dentro de um universo por meio de uma linguagem específica, a da reciprocidade. Muitos autores tentaram precisar o sentido do termo fosterage. Suzanne Lallemand (1993) cita um trabalho realizado nas Ilhas Ellis por Y. Brady, Transaction in kinship: adoption and fosterage in Oceania, em 1976, e a distinção que este autor faz aproxima-se muito da distinção que fazem os próprios sertanejos entre “filho adotado” e “filho de criação”. Segundo Brady, as pessoas das Ilhas Ellis opõem fosterage e adoção. Esta corresponde ao que chamam de “o verdadeiro filho adotado”. O primeiro é informal e não implica a herança da terra. Ora, justamente o “dom de terra” da parte do tutor, isto é, a possibilidade da herança da terra, transforma o fosterage – ou, traduzindo para o termo dos sertanejos: a criação – em adoção; pois no caso das Ilhas Ellis, a promessa de um dom de terra equivale a uma operação formal de adoção. O dom de terra a um filho em fosterage transforma-o em “verdadeiro filho adotado” e fecha todas as possibilidades de casamento com os filhos do tutor (Lallemand, 1993, p.138-9). É por isso que se entende que a circulação de crianças constitui um aspecto da organização social de muitos grupos camponeses. A diferença fundamental neste contexto entre criação e adoção é que a primeira supõe a possibilidade de aliança por meio do casamento com os filhos ou filhas do tutor, o mesmo não sendo possível para o “verdadeiro filho adotado”.5 4

5

Fosterage, do inglês foster: to take someone else’s child into your family for a period of time but without becoming their legal parent (verbete in Longman Dictionaries), corresponde, exatamente, aos chamados “filhos de criação”, ao fato de uma família integrar temporária ou permanentemente uma criança em seu seio, sem que isso implique a adoção legal. Este termo designa, pois, a transferência em geral temporária e parcial de direitos e deveres paternos entre um adulto e outro. Note-se que na tradução brasileira do “Ensaio sobre a dádiva” (MAUSS, 1974), o tradutor optou por manter o termo utilizado pelo autor. A partir deste momento passarei a empregar o termo criação utilizado pelos meus interlocutores no sertão do Piauí quando estiver tratando de práticas que se reportam a modalidades de fosterage descritas e também para me contrapor à adoção formal e legal. Fonseca (1995) opta por continuar a empregar o termo adoção sem adjetivo para designar práticas de fosterage e adoção legal ou adoção formal para designar a transferência permanente e total de crianças prevista na legislação contemporânea.

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A definição de “filhos de criação” dada pelos sertanejos corresponde, então, à descrição do fosterage das Ilhas Ellis, na Oceania, pois, aqui como lá, os filhos de criação não herdam nenhum direito sobre as terras, mesmo se eles nelas trabalham, e são “casáveis” com as filhas ou filhos consangüíneos da família de acolhida. É preciso dizer, no entanto, que eles são tratados como “filhos da família”, não lhes sendo jamais negada afeição. Leach (1968) veria aqui o parentesco como uma linguagem e um código que regula o acesso e a transmissão dos recursos básicos daquela coletividade, notadamente a terra. Existem estudos em contextos rurais no Brasil nos quais se encontra a menção à adoção. É o caso do trabalho comparativo realizado por Ellen Woortmann (1995) entre colonos do Sul do Brasil e sitiantes do Nordeste brasileiro. No caso dos colonos, a prática de adoção privilegiada é a de um sobrinho/afilhado por parte de um casal sem filhos, transformando-o em herdeiro. No entanto, a autora traz um caso em que o marido era filho único (portanto, sem sobrinhos) e a esposa era a única filha mulher de uma colônia distante... A este fato veio se somar a orientação patrilinear que privilegia a adoção do afilhado/sobrinho do marido, para que o casal viesse a adotar um filho de colonos “mais fracos”.6 Também os casos de adoção entre sitiantes em Sergipe, estudados pela autora, referem-se a casais sem filhos e também relacionados à instituição do compadrio. Ellen Woortmann lembra que os “afilhados trabalham nas terras dos padrinhos sem filhos, o que lhes confere direitos sobre essas terras, pela conjunção entre o princípio do trabalho – pois só têm direito à terra aqueles que nela trabalham – com a condição de afilhado, isto é, de um filho ‘espiritual’” (ibidem, p.270). Os casos estudados pela autora são situações que implicam a “adoção informal”, com ou sem reconhecimento legal posterior, que incidem sobre a transmissão do patrimônio.7 Klass Woortmann (1990) lembra, para o caso dos sitiantes de Sergipe, que essa “realocação do afilhado e sua transformação em herdeiro se coaduana com o padrão de nominação, já que é o padrinho que transmite o sobrenome ao afilhado e não o pai ao filho” (ibidem, p.32). No sertão do Piauí registrei vários graus de transferência de crianças. Em um pólo encontramos a adoção que, apesar de ser uma transferência plena, nunca é marcada pelo apagamento completo da posição do indivíduo como filho ou filha na sua família de origem. Em outro pólo, a passagem temporária de uma criança para outra unidade familiar. As razões evocadas pelos camponeses para “pegar filhos de criação” são basicamente 6

7

Forte e fraco são categorias do universo camponês brasileiro, um par de oposições que remete à condição e posição social de pessoas no interior de uma coletividade. Isto não significa que os casos de “filhos de criação” como os estudados no Piauí não existam nesses outros contextos.

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de duas ordens: de um lado, a ajuda dada aos “doadores” quando os pais naturais não possuem recursos para criá-los, quando os filhos ficam órfãos ou nascem de uma relação ilegítima; de outro lado, o desejo da família de criação de compensar a falta de filhos de um determinado sexo e também a substituição de um filho ou filha mortos. Assim, seu Manuel Lourenço cria um filho de sua própria filha, que faleceu deixando sete filhos que foram repartidos entre pessoas da família, tias e tios, espalhados por vários povoados no sertão do Piauí. Beloniza me fala de “ajuda”, quando ela conta que criou sua afilhada a partir da idade de um ano e oito meses e explica: “Sua mãe era uma fracassada, ela não era casada”. Prossegue: “Eu não registrei essa filha no meu nome, mas eu dei essa ajuda”. O termo ajuda aparece recorridas vezes no universo camponês. Klass Woortmann (1990) fez uma excelente análise do termo por meio de vários exemplos etnográficos, demonstrando que ele pode conter distintos significados. Lembro aqui, seguindo as recomendações de Malinowski (2002), que os termos lingüísticos correspondem a fatos de cultura e de conduta; isto significa que, para entendê-los, a experiência e a situação são de extrema importância. Assim, no caso que acabamos de mencionar, em que o termo se conjuga com uma relação hierárquica entre “pai de família” e filha, ele é expressão mesmo dessa hierarquia e da honra do pai de família e não uma expressão da reciprocidade entre iguais, como é sugerido quando essa “ajuda” (“pegar um filho para criar”) se dá, por exemplo, entre compadres, senão iguais em condições materiais, pelo menos iguais em honra (Woortmann, 1990) como, em geral, os “parentes” são percebidos no mundo rural. Dina me conta que “cria os filhos de gente mais necessitada da família, de um parente mais fraco”. Ela mesma criou uma irmã: “Quando eu me casei, minha mãe tinha gêmeas. Eu vim morar com o meu marido e eu trouxe a minha irmã e eu criei ela até que ela se casou. Mesmo depois do casamento, ela morou comigo e ela ainda teve uma filha aqui. No começo, ela e seu marido moraram aqui”. Dona Aldenora cria uma sobrinha e se justifica dizendo que ela só teve filhos e queria ter uma filha. Também dona Rosa cria uma filha depois de ter perdido a sua. Em todos os casos, verifica-se que certos tipos de doadores são privilegiados: são pessoas da família ou compadres. O dom se faz, assim, entre iguais e parceiros de múltiplas trocas, proclamando que não é vergonhoso, mas generoso, e a própria linguagem expressa isso, quando se fala em ajuda a um parente ou compadre, como dito em parágrafo anterior. Entretanto, a mobilidade infantil implica também pessoas que têm entre si relações menos simétricas. Assim, seu Valdemar “pegou para criar” uma filha – Elis – de seu morador, quando esta tinha dez anos, isto é, idade em que a menina já pode desempenhar tarefas indispensáveis aos cuidados da casa 294

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como buscar água, lavar louça, dentre outras atividades.8 Também dona Maria Coelho, sogra de seu Valdemar, “pegou” Leciana com a idade de nove anos, outra filha do mesmo morador. Esse caso é interessante, pois com a idade de 16 anos, Leciana, solteira, ficou grávida, e dona Maria devolveu-a a seus pais, que são, na verdade, seus vizinhos. Assiste-se a uma verdadeira circulação de crianças e jovens, que podem ir e vir entre as unidades familiares. Dentro desse contexto, um filho ou filha de criação não goza do mesmo status de um filho ou filha nascido na família. Será aceito e apreciado enquanto desempenhar seu papel filial de forma adequada. Não há constrangimentos em mandálo de volta para o lugar de origem – a criança ou o(a) jovem não é concebido(a) como emocionalmente frágil, à semelhança da percepção também encontrada nos estudos de Fonseca (1995 e 1987) em uma vila porto-alegrense. As crianças estão sempre presentes em meio aos adultos nas diversas atividades. Na Figura 11.1, elas estão na “casa de farinha” assistindo ao processamento da mandioca para o fabrico da farinha. Assim se dá o aprendizado de ser homem e mulher no sertão.

Figura 11.1. Crianças na “casa de farinha” assistindo ao processamento da mandioca.

Dona Ana, do povoado Limoeiro, teve 11 filhos e “pegou” outros nove para criar. Ela conta que algumas crianças eram “da família”, de uma sobrinha, de uma prima; mas sua generosidade e sua situação de “parente mais 8

Morador, na área da pesquisa, não é o agregado. Os próprios sertanejos fazem a distinção dizendo que o agregado é “sujeito”, ao passo que o morador é representado como “livre”. Diversas vezes encontrei seu Valdemar trabalhando na roça com o seu morador, algo impensável para a condição de agregado. Nos povoados estudados não havia agregados – categoria reservada nesta região para os “moradores de grandes propriedades”, de fazendas.

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forte” são conhecidas, e mesmo as pessoas que não pertencem à família, que moram nos povoados vizinhos, vêm lhe entregar seus filhos: Alguns eram parentes, outros eu nunca tinha visto antes. Eu pedia e as pessoas me davam, outros vinham me trazer os filhos. Vieram trazer o Manuel Rato pequenininho e disseram: “Ó, eu vim aqui lhe dar esse menino porque eu sei que não posso criar”. Eu passava noites sem dormir olhando aquele pedacinho de homem. A mãe desse aí era sobrinha de meu marido.

O fato de ser considerada “um parente mais forte” não seria o suficiente para as pessoas a procurarem para entregar-lhes os filhos. Dona Ana possuía, sem dúvida, um capital simbólico (Bourdieu, 2004) forte, expresso nos atributos de generosidade, hospitalidade, dignidade e senso de honra. Capital que lhe rendia mais capital: mais parentes, maior rede de ajuda e solidariedade. Podemos ver aí uma das dimensões simbólicas dessas práticas. Nesse sistema não existe a pretensão de igualar os diversos tipos de pais. Quem sustenta e quem socializa a criança cumpre uma função paterna e tem, por isso, direito ao status de pai ou de mãe adotivos, mas não se confunde com o de pais ou mães biológicos. Nessa visão hierárquica do mundo, própria do universo camponês (Woortmann, 1990), a diferença não representa necessariamente uma ameaça. Desta forma, a discriminação entre “filhos legítimos” e “filhos de criação” não é concebida e vivida como uma injustiça. Os “laços de sangue”, nesse contexto, têm precedência sobre relacionamentos contratuais como a “criação” e a adoção: “o sangue puxa”.9 Como foi dito, os filhos de criação não herdam direitos sobre a terra. Aliás, os dados indicam que os direitos adquiridos sobre a terra distinguem fortemente os filhos de criação daqueles que são incorporados por meio da adoção plena, introduzindo a interdição do casamento na família de acolhimento. Apesar disso, os filhos de criação recebem como os filhos consangüíneos o que os sertanejos chamam de “semente de gado”, mais precisamente “semente de gadinho”, como é referido o rebanho caprino. Ellen Woortmann (1995) pesquisou entre camponeses em Sergipe e encontrou a expressão “semente” para referir-se à primeira cabra – miunça, como se diz tanto em Sergipe como no Piauí – dada pelo padrinho por ocasião do batizado. Como observa a autora, “o batismo não é apenas o momento do 9

Sangue é uma categoria explicativa de relações inter e intrafamiliares e está presente entre camponeses de distintas partes do mundo. Há estudos clássicos sobre campesinato que tratam da questão, como o de Conrad Arensberg, The Irish countryman (1959), sobre o camponês irlandês, que mostra que o sangue pode ser associado a uma má conduta ou ainda ao sucesso ou ao fracasso e à posição social. Uma pessoa pode, até, ser insultada por meio de seu sangue, e o insulto recair sobre toda a sua ascendência familiar. Ellen Woortmann também encontrou esta categoria entre os colonos do Sul do Brasil, mas com outros significados, podendo ser quente ou frio e estar relacionado à sexualidade. Em outras partes do Brasil, como no caso estudado, o sangue remete à índole e a atributos de caráter.

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nascimento simbólico de uma criança cristã – que neste momento deixa de ser pagã –, mas também o começo de um adulto, de um pai de família ou de uma dona de casa” (ibidem, p.290). Observe-se que, no caso do Piauí, dar a “semente” não é atribuição exclusiva do padrinho. Existe uma hierarquia na representação camponesa dos animais segundo a importância e o prestígio que lhe são atribuídos. O gado bovino é o mais prestigioso dos animais criados, e os homens adultos são os responsáveis por eles.10 O próprio termo “gadinho” indica o caráter de menor prestígio do rebanho caprino. Mas tanto aqueles que cuidam do rebanho caprino como quem cuida do rebanho bovino são chamados de vaqueiros. Todas as famílias têm seu “gadinho”, mas somente os parentes “mais fortes” possuem gado. Não estaremos exagerando se afirmarmos que, em certa medida, a criação dos animais marca as etapas sucessivas da vida do sertanejo. A constituição do rebanho de um indivíduo é progressiva, ela segue os “ritos de passagem” que marcam sua vida e começa com o nascimento ou com a sua incorporação em uma nova família – no caso dos “filhos de criação” – com o dom de uma “semente de gadinho”. Esta é constituída de um ou dois animais, de toda maneira de pelo menos uma fêmea, para que a criança possa começar a constituir seu próprio rebanho. As crianças, menino ou menina, desde muito pequenas são encorajadas a cuidar dos animais. O “pai de família” jamais se apropriará de seus animais, somente em caso de necessidade – pois as necessidades da família prevalecem sobre as do indivíduo – e, ainda nesses casos, essa apropriação toma a forma de um empréstimo, que o pai tem a obrigação moral de restituir.11 O ciclo da criação começa, então, com o dom de uma “semente de gadinho” e, com o passar do tempo, o objetivo é passar do “gadinho” ao gado, mesmo se poucos dentre eles chegam a realizar esse ideal. Como no caso dos camponeses de Sergipe estudado por Ellen Woortmann (1995), esses animais constituem a preparação da condição de um produtor independente, e pode-se mesmo dizer que aí começa a preparação para o casamento, que no caso dos “filhos de criação” pode se dar com primos e irmãos de criação. 10

11

É importante notar que entre os camponeses das outras áreas do Nordeste brasileiro – zona da mata e agreste – somente as atividades relacionadas diretamente com a terra são designadas, localmente, pelo termo trabalho (GARCIA, 1983), ao passo que na zona do sertão as atividades relacionadas à “criação” sempre tiveram prestígio e são também referidas pelo termo trabalho. Essas atividades constituem também os temas privilegiados das narrativas orais, apontando para a sua importância no universo simbólico dos sertanejos. No sertão, mesmo se os cães são considerados animais domésticos, eles não são companheiros de brincadeiras apreciados pelas crianças, como em outros lugares: este papel é dado aos cabritinhos. Com o casamento, tanto o rapaz como a moça levam o rebanho constituído para a sua nova morada. E, no caso de migração, se o rapaz ou a moça que migrou precisar de algum recurso, a pessoa que ficou responsável pelo rebanho vende uma ou mais cabeças para “apurar o dinheiro” e enviá-lo.

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Reciprocidade e circulação de crianças entre camponeses do sertão

Figura 11.2. O ciclo da criação começa com a “semente de gadinho” (caprinos) recebida pelo menino ou pela menina, tendo por objetivo, com o tempo, passar do “gadinho” ao gado.

Vale lembrar que esses sertanejos são agricultores, mas reconhecem no trabalho de vaqueiro um status privilegiado. Os filhos de criação podem deixar a família que os acolheu não somente pelo casamento, mas também para migrar para a cidade – e, nesses casos, eles não perdem os seus rebanhos. O caso de Manuel Rato (este apelido deve-se muito provavelmente a seu aspecto frágil quando chegou à casa de dona Ana) é ilustrativo. Ele migrou para São Paulo, mas deixou seu rebanho de cabra, formado da “semente de gadinho” recebida, aos cuidados de outro filho de criação, Donizete, de dez anos de idade. Ele é seu “vaqueiro”, como dizem, isto é, ele cuida das cabras de Manuel e tira a “sorte”: um cabritinho de cada quatro nascidos. Como se constata, essas transações traduzem-se por prestações de serviços e, igualmente, em uma ocasião para o pequeno vaqueiro começar a constituir seu próprio rebanho. O sistema de sorte é um sistema de remuneração dos vaqueiros existente desde o século XVII e vigente até os dias atuais.12 12

Há duas categorias de vaqueiros: “de leite” e “de sorte”. Os vaqueiros e as vaqueiras de leite cuidam do rebanho e em troca recebem o leite. Em geral, são “pais e mães de família” com um rebanho muito pequeno e insuficiente para o aprovisionamento de suas casas. Os de sorte recebem um animal de cada quatro nascidos e assim vão aumentando seus próprios rebanhos.

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Diversidade do campesinato: expressões e categorias

Além das práticas de transferência de crianças por criação, no sertão também se encontra a adoção plena. É o caso de Auricélio, que foi adotado por seu Sancho. De fato, antes de ser filho de seu Sancho, Auricélio é seu afilhado de batismo. Ele é filho de uma família vinda de Pernambuco durante a década de 1960 para trabalhar na construção da Rodovia Fortaleza–Brasília, que atravessa na proximidade dos povoados onde moram os sertanejos de quem falo aqui. O pai de Auricélio abandonou a sua mãe, que, dispondo de poucos recursos, voltou para Petrolina. Seu Sancho adotou, então, o seu afilhado, na época com dez anos. Mesmo nesse caso de adoção plena, os laços com a família de origem não foram cortados. Auricélio visita sua mãe consangüínea de tempos em tempos. Seu Sancho também se ocupou de suas irmãs que nunca se casaram, Adelaide e Francisca. As filhas celibatárias adultas podem integrar de forma duradoura e mesmo permanente a unidade familiar de um irmão. Existe, ainda, outro tipo de transferência temporária de filhos muito corrente. Trata-se do envio dos filhos a parentes ou compadres instalados nas cidades como condição de acesso à educação e/ou aprendizado profissional. Esse tipo de circulação é visto senão como um meio de mobilidade social, ao menos como sua promessa. Ainda nesse caso, a circulação pode ser compreendida no âmbito da reciprocidade, como no caso de dona Aldenora, cujo filho está na cidade na casa de sua comadre para fazer seus estudos. Em contraprestação, dona Aldenora cuida do rebanho de cabras que a comadre deixou no povoado quando de sua migração.

Figura 11.3. Crianças e adultos em um fim de tarde no povoado.

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Reciprocidade e circulação de crianças entre camponeses do sertão

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em um artigo seminal, Joan Vincent (1987) faz uma crítica à representação da vida rural como estável, conservadora e imutável e, conseqüentemente, às abordagens teóricas e metodológicas que levam a essas representações. Ele propõe que estas sociedades devem ser estudadas como um “fluxo organizado”. Este fluxo estaria organizado em três grandes eixos: o movimento das pessoas; as conexões dessas com o passado; e suas conexões com o exterior com ênfase nos campos sociais por onde circulam. É no primeiro desses eixos que a autora insere a circulação de crianças, e sua hipótese é de que mulheres, crianças e rapazes são as pessoas mais móveis nessas sociedades. Quero chamar a atenção para alguns aspectos. Primeiro, para o próprio fato de inserir as crianças como atores sociais que merecem atenção no esforço para se compreender essas configurações sociais. Depois, para as razões desta inserção que acabam por remeter à ordem econômica ou ecológica. Nas próprias palavras da autora, a distribuição de crianças entre grupos familiares rurais relacionados entre si deve ser compreendida à luz dos processos de desenvolvimento dos respectivos grupos residenciais, das exigências periódicas de formas diferentes de agricultura (e pastoreio) e, acima de tudo, das variações regionais. (Vincent, 1987, p.385)

Não discordo da idéia de que a raridade ou a abundância dos recursos disponíveis e o ajuste entre o número de pessoas ativas de uma unidade doméstica e sua produção contribuem para modular o tipo de circulação de crianças no interior de uma sociedade. Mas, além dessas noções (pressão ecológica e formas eficientes de produção), parece-me que não é exclusivamente a procura de vantagens materiais que determina o aumento ou a redução de crianças em uma unidade familiar. É preciso também ver essa prática como parte de uma ética que a concebe como generosa e obrigatória entre vizinhos, parentes e compadres – não nos esqueçamos de que estamos diante de uma sociedade, no caso da sertaneja, regida antes pela honra do que pelo cálculo econômico. Além disso, e é o que tentei demonstrar, a circulação de crianças nos contextos rurais só pode ser entendida se inserida na rede de prestações de todas as ordens que envolvem parentes, vizinhos e compadres, remetendo a questões referentes ao casamento, herança e sucessão e, por conseqüência, à reprodução da própria existência social dessas populações. Uma última observação importante para se entender a circulação infantil é o paralelo que fazem alguns autores entre adoção e casamento. Estudiosos que trabalharam na África e também no Sudeste Asiático propuseram uma relação entre a aliança por casamento e a aliança por adoção e se perguntam se a circulação de alguns filhos não é uma espécie de substituto de certos tipos de casamento. Também Sahlins (1980) sublinha a semelhança desses 300

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

dois procedimentos vendo na “adoção o mesmo título que no casamento, um modo de aliança entre grupos”. E é nesse sentido que, em vez de considerarmos a circulação de crianças somente como um rearranjo interno de um grupo doméstico, podemos pensar as suas várias faces como parte de um sistema marcado pela reciprocidade entre parceiros de múltiplas trocas e como um aspecto da própria organização social de muitas configurações camponesas.

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12 DE SITIANTES A IRRIGANTES: CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA, CONVERSÃO E PROJETOS DE VIDA Ramonildes Alves Gomes

INTRODUÇÃO

Neste artigo pretendemos analisar o processo de construção identitária de um grupo de atores sociais: os irrigantes – categoria criada pelo Estado para diferenciar os agricultores da pequena produção que cultivam na faixa seca dos agricultores das faixas úmidas de terras beneficiadas pelo Estado com infra-estrutura para instalação dos projetos de irrigação. Os irrigantes, sejam eles grandes empresários do vale do São Francisco, sejam agricultores familiares dos perímetros irrigados, têm em comum a mediação do Estado nos processos sociais que, historicamente, legitimaram a construção da sua identidade. O estudo de caso realizado no PISG (Perímetro Irrigado de São Gonçalo), especificamente com um grupo1 de famílias irrigantes, abriu a possibilidade de se analisar a construção da identidade do irrigante, como processo social de conversão e/ou reconversão2 de atores. 1

2

É importante esclarecer que em determinados momentos do texto utilizaremos o termo “grupo”, algumas vezes para fazer referência ao grupo doméstico, ao conjunto de indivíduos que, vivendo ou não na mesma casa, possui uma economia doméstica comum (TEPICHT, 1973; GALESKI, 1979). Outras vezes, dependendo do contexto da narrativa, o termo grupo refere-se ao conjunto das famílias colonas que residem nos núcleos habitacionais e/ou agrovilas do PISG. Para atender aos objetivos da discussão que pretendemos, consideramos apropriado utilizar o termo reconversão para analisar as estratégias utilizadas pelas famílias irrigantes para não perder os vínculos com um passado como sitiantes, que guarda e assegura uma racionalidade econômica e moral que lhes é mais confiável. O termo reconversão foi bastante trabalhado por Afrânio Garcia (1989), para analisar as estratégias de conversão adotadas pelos grandes proprietários das fazendas de cana-de-açúcar para permanecerem na condição social de senhores de engenho.

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De sitiantes a irrigantes: construção identitária, conversão e projetos de vida

O PISG está localizado no município de Sousa, Estado da Paraíba, na mesorregião do sertão paraibano; possui área total de 4.100 ha e superfície irrigada de 2.364 ha. Em 1971, quando teve início a colonização do Projeto, o DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) selecionou 477 famílias, as quais foram gradativamente assentadas em lotes que variam de 3,5 a 5 hectares. Segundo dados do Censo de 2000, estima-se que a população do PISG seja, atualmente, superior a 3.654 habitantes. A maioria das famílias selecionadas residia em sítios menores (5, 7 até 10 hectares), cujas áreas foram desapropriadas para a construção do Projeto; outras residiam no sítio Cajá, uma área de aproximadamente 2.500 ha que pertencia a uns 50 proprietários. A maior parte desta área pertencia ao casal sr. Ticha e d. Amélia e também correspondia à maior faixa de terra desapropriada; de lá se originaram algumas das famílias que fizeram parte do grupo de informantes desta pesquisa.3 No PISG também há famílias provenientes de outros sítios que ficam na área rural dos municípios circunvizinhos, entre eles Pombal, Santa Cruz, Nazarezinho, Marizopólis, São José da Lagoa Tapada e Lastro. Dos sitiantes4 que já viviam em São Gonçalo, poucos eram proprietários das terras. A maioria, no entanto, trabalhava como moradores, parceiros e arrendatários. Em geral, as relações de trabalho tradicionais, comumente experimentadas no tempo do sítio, baseadas na subserviência, possuíam uma dinâmica que levava esses sitiantes a organizarem primeiro o que pertence ao patrão, e só depois fazer algo por si. Garcia Jr. (1988), ao analisar a condição de “sujeito” do sitiante paraibano, em oposição à do agricultor “liberto”, afirma que as expressões “sujeitos e libertos” originalmente refletem a oposição material e simbólica, presente nos discursos dos trabalhadores rurais. Ao descreverem suas trajetórias sociais, esses indivíduos revelam as mudanças ocorridas no modo de residir, nas relações de trabalho e nos espaços sociais, recorrendo sempre às expressões sujeitos e libertos para indicar as posições sociais dos agentes. Motivados pela necessidade de se tornarem libertos, esses sitiantes, chefes de família, fizeram escolhas e tomaram decisões que, de maneira

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As informações utilizadas foram obtidas em entrevistas com os irrigantes mais antigos do perímetro, especialmente o sr. Sérgio Costa, residente no núcleo I, que foi o primeiro irrigante selecionado pelo DNOCS. O “sítio”, assim como a autodenominação sitiante arrogada nas falas desses informantes, não corresponde exatamente ao sítio descrito por Ellen Woortmann (1997), que designa geralmente a parcela de terra que foi o ponto de partida adquirido, por herança, de um camponês e que, por sua vez, é um espaço composto de partes articuladas (espaço da moradia – casa – e espaço da produção – roça) de propriedade do grupo doméstico e dos membros que dele descendem. Para as famílias do PISG, em geral, o sítio é a referência espacial feita ao lugar de origem, onde os informantes e/ou seus antecessores viviam trabalhando na condição de: moradores, arrendatários e parceiros (WOORTMANN, 1981, p.69-70).

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sutil, revelaram intencionalidades, finalidades e objetivos. É importante também analisar o contexto no qual as famílias sitiantes fizeram a opção de transformar a vida no sítio, pela vida dentro do projeto de irrigação, apostando na possibilidade de melhorar as condições de vida da família e com o esforço dela própria, certamente representadas pelos usos diversos dos aspectos que identificam os tempos e espaços opostos (o sítio e o perímetro irrigado) (Garcia, 1989, p.245). Para essas famílias, a vinda para o PISG significou, por um lado, a realização do desejo de ter um pedaço de terra e a possibilidade de planejar o futuro e assegurar a continuidade do grupo familiar. Por outro lado, o abandono da condição de sitiante, portador de um senso prático e de uma lógica concreta, costumeira e imediatista, que, aos poucos, se transformou num senso mais instrumental, orientado para interesses e fins que superaram as fronteiras do pequeno grupo (a família) e da sociedade de interconhecimento (a comunidade local). Como conseqüência deste movimento, constata-se também um processo de mudança identitária, embora, para Anselm Strauss (1999, p.108), a mudança identitária não se reduza apenas à posição social ou à função ocupada pelos sujeitos, a exemplo das famílias sitiantes, para quem se tornar irrigante implicou uma espécie de ascensão social e econômica. Discorreremos sobre tais aspectos adiante. A conversão das famílias sitiantes em irrigantes, num primeiro momento, possibilitou que estas desenvolvessem capacidades e potencialidades, assim como experimentar situações evidenciadas na sociabilidade dos grupos, no modo de produzir e lidar com o mercado. Como sitiantes, afirma uma das entrevistadas: “A gente vivia tão isolado que só ia carro lá quando tinha um acabando de morrer”, e a relação com o mercado expressava-se numa lógica de dons e contradons, ou seja, se o morador encontrasse tudo no sítio, ele devia tudo ao patrão (Garcia, 1989, p.247), portanto, as relações de compra e venda, quando existiam, ficavam limitadas ao próprio sítio. O segundo momento, o processo de conversão, é re-significado pela experiência e trajetória de vida das famílias, por meio das formas de resistência que expressavam a preservação do modo de vida anterior (no tempo do sítio), por exemplo, o cultivo de produtos que compõem a dieta básica – feijão, milho, mandioca e jerimum –, a criação de pequenos animais – aves, porcos e cabras –, as puxadas nas casas para acomodar as filhas e os filhos casados, portanto, os costumes do sítio vivenciados num projeto de irrigação. A hipótese inicial acerca desse processo é que a transformação das famílias sitiantes em colonas irrigantes foi uma estratégia de “negociação” com o Estado simbolizada por relações de troca. Pode-se, de certa forma, afirmar que, para as famílias, esse negócio envolvia a proteção do Estado e o reconhecimento público dos colonos irrigantes como sujeitos de direi306

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tos. Para o Estado, representado pelo DNOCS, o sucesso dos Perímetros Irrigados legitimava a eficiência do aparelho de Estado na resolução de conflitos, especificamente dos conflitos decorrentes da concentração de rendas e de terras. Nos itens que seguem, observaremos que as diferentes concepções entre os atores sobre a realização dos projetos de vida dentro do PISG revelam a tensão que fundamentou a construção da identidade do irrigante. Ao polarizar os discursos e a memória nos espaços e tempos, entre a vida no sítio e a vida depois, no PISG, os sujeitos reafirmam as estratégias de conversão e reconversão.

ATORES, CONCEPÇÕES E TENSÕES: AS FAMÍLIAS COLONAS E O DNOCS Os projetos de irrigação construídos pelo DNOCS, na década de 1970, de modo geral, beneficiaram famílias sitiantes, com ou sem terra, que foram assentadas para se tornarem colonas. A estratégia do DNOCS era a dinamização de áreas precarizadas pelos efeitos das secas, mas também por práticas tradicionais de clientelismo e sujeição, “por meio do estímulo à agroindústria, a criação de uma mentalidade empresarial entre os pequenos produtores, mediante os incentivos à produção irrigada”.5 As ações empreendidas pelo DNOCS vão confrontar-se com as expectativas das famílias beneficiárias, especialmente em relação ao modo de produzir, baseado em formas tradicionais, portanto, sem nenhum ou com pouco emprego de tecnologia; e no tocante às relações de produção, assentadas no uso da mão-de-obra familiar prevalecentes. Esse dado pode ser percebido num fragmento de memória, cujos aspectos referenciam o modo de vida que marca a trajetória desses sitiantes. Meu pai tinha 25 braças de largura, naquele tempo chamava-se braça, né? E a propriedade do sítio Cajá era do rio à central que é mais ou menos uma extensão de uns 3 km, né? Naquela época só se plantava arroz e muito pouco, naquela época não tinha mangueira, não tinha coqueiro, as culturas permanentes não tinha nada, só banana assim mesmo banana-maçã. Pois bem, então aconteceu o mal do Panamá e essa banana desapareceu da irrigação. Aí, foi introduzida a banana-nanica, então todo mundo começou a plantar a banana-nanica. Aí foram se evoluindo e surgiu seu Ticha e dona Amélia, que era um dos proprietários mais antigos, eles fizeram um sitiozinho de mangueira, de coqueiro e foram modificando a situação da cultura do sítio deles (...). (Sr. L.R. – Primeiro colono selecionado para o PISG.)

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MINTER/Sudene. Plano Integrado para o Combate Preventivo aos Efeitos das Secas no Nordeste, 1973.

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Quando nós morava no sítio Exú, eu ia levava a comida pra fazer na roça com os 3 menino pequeno, um pegado no braço assim, outro aqui [aponta para a saia], um caldeirão grande aqui na cabeça e outro no quarto, o que era pequenininho, num dava pra ir de pés (aponta pros quadris), agora isso num só quente que quando chegava lá chega tava ardendo o juízo de quente, aí chegava, dava o almoço aí voltava vinha arrumar a casa e vinha fazer a janta, aí banhava eles tudinho quando chegava aí já tava tudo morto de enfadado, só era dá banho neles, dava as mamadeiras jogava na rede, nós também caia na rede quando era 4 horas já tava no ar. (C. N., 66 anos, colono.)

Naquela época, segundo relato do colono, o arroz era a cultura predominante em São Gonçalo; ainda não havia o plantio de frutíferas. A única cultura permanente era a banana-maçã. Esta espécie foi acometida por uma praga conhecida como mal do Panamá, que inviabilizou o seu cultivo, razão por que, em seguida, foi iniciado o plantio da banana-nanica. Dos sitiantes que já viviam em São Gonçalo, poucos eram proprietários das terras. A maioria, no entanto, trabalhava como moradores, parceiros, arrendatários. A condição de morador, parceiro ou arrendatário implicava a existência de um patrão, para cuja lavoura deveria ser dada prioridade, em detrimento da própria roça. No sítio, a base econômica era a policultura de subsistência. Plantava-se no sequeiro, o que, segundo as famílias, era inseguro, deixando-as vulneráveis às mudanças do clima. Nessa situação, elas teriam que plantar apenas no período de inverno (das chuvas) e armazenar em silos e depósitos o máximo que podiam, porque, nos meses e anos seguintes, poderia instalar-se uma nova seca. Como todo camponês, esses sitiantes também apresentam uma economia, cuja racionalidade está baseada no “aprovisionamento”, que, segundo Godoi (1999, p.91), tomando como base a leitura de Shalins (1970), é uma forma de produzir que não se restringe apenas à produção para uso, mas também à produção para a troca e a obtenção direta e/ou indireta dos bens que não produzem. Nos períodos de estiagem, não havia água suficiente para atender às necessidades domésticas (lavar, cozinhar, limpar a casa e fazer a higiene pessoal) nem para manter a “miunça”, animais de pequeno porte, cuja carne servia de mistura para complementar a dieta alimentar. Animais de grande e médio porte como gado, caprinos e ovelhas eram criados em quantidade bastante reduzida, porque além da falta de água havia a dificuldade de conseguir grãos, ração e pastos para alimentá-los. No tempo da seca, “andava-se léguas em busca de alguma área verde e de cacimbas ou poços que tivessem uma sede d’água ou qualquer sinal de umidade”. Mesmo assim, quando o ano era bom de inverno, não significava, necessariamente, que a colheita estava assegurada, uma vez que os reservatórios de água eram pequenos. Por isso era necessário racionar o uso da água para suprir a carência nos longos períodos de estiagem. E, quando chegava a seca, 308

Diversidade do campesinato: expressões e categorias

a alternativa era a migração para os centros urbanos ou o alistamento nas chamadas frentes de trabalho, a emergência.6 No sítio, muitas vezes, confunde-se o patrão com o padrinho, ou o quase parente. O patrão é o dono da propriedade, uma espécie de protetor. Geralmente, o morador podia plantar o necessário para a subsistência da sua família e criar pequenos animais, mas deveria, primeiro, cuidar da propriedade e dos interesses do proprietário (patrão) e só depois poderia dedicar-se ao seu roçado. Caso houvesse algum acordo entre o patrão e o empregado que implicasse remuneração, esta poderia ser adiantada e, posteriormente, descontada no dia do pagamento. Na condição de morador, os chefes de família ganhavam pouco e não possuíam casa nem terra. Em geral, não se pegava em dinheiro. Já quando trabalhavam como diaristas, o pagamento era praticamente imediato. Tão logo terminassem o serviço, o patrão pagava o valor acordado. Em qualquer dos contratos, era necessário trabalhar, obrigatoriamente, todos os dias para ganhar ao menos o suficiente para se fazer a feira. Observemos a narrativa: O patrão, que eu morei com ele, melhor do que ele não tinha. Podia ter igual. Num era homem que vivia olhando pro que a gente fazia, tomando o que era da gente, não. Mas, por exemplo, trabalhava a semana todinha. Do sábado pro domingo fazia a feira. Na segunda-feira, ia começar a mesma coisa. Num sobrava nada, nem tinha um legume em casa pra comer, se precisasse dum remédio tinha que falar adiantado que em dinheiro mesmo não pegava. Era o da feira e mal, tinha que trabalhar mesmo, se falhasse um dia num dava pra fazer a feira... Hoje em dia não, hoje em dia a gente trabalha, tem dificuldade, mas sempre é melhor, porque o que a gente pega é da gente. Trabalha lá no que é da gente mesmo, né? Onde a gente criou os filhos tudinho. Se fosse como antes eu não sei como era não, eu acho que já tinha era morrido. (C. N., 66 anos, colono.)

Entre os sitiantes de São Gonçalo, além da morada, outras formas de relações de trabalho foram vivenciadas, como a meia e a renda. A meia consistia num tipo de contrato no qual a exploração da terra era feita pelo trabalhador e metade da produção era entregue ao patrão. No caso da renda, o contrato era feito nos seguintes termos: o trabalhador tinha o direito de explorar a terra, produzir e “lucrar” nela por um período de dois, três ou cinco anos. Ao final deste tempo, o rendeiro teria que pagar o valor acordado, em contrato, ao proprietário da terra, além de devolvê-la nas condições em que lhe fora entregue. Observemos a narrativa: 6

“Emergência” é o termo utilizado na língua comum em referência às frentes de trabalho, que consistiam no aproveitamento da força de trabalho disponível, nos períodos de seca, para executar atividades como construção de rodovias, fazer a limpa dos canteiros laterais das estradas, construção de açudes etc. Segundo Andrade (1922, p.65), a vantagem desta política é que dava trabalho aos sertanejos na própria área seca, evitando que eles se deslocassem para o litoral e congestionassem as grandes cidades.

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Eu nasci no sítio Pedregal dos Mendes, né. Meu pai fez uma renda nesse sítio em 35. Até 35, ele morava com os Mendes. O meu pai, quando eu era pequeno, aí ele fez essa renda. Aí, a gente veio pra o Juazerinho e aconteceu que os donos do Juazerinho, que é o pai de Pedroza, ele faleceu aí ficou pra dois o pedaço de terra lá. Aí ficou. Esse Pedroza era um rapaz solteiro e eu tinha uma irmã também solteira, aí aconteceu dele casar com a minha irmã. Aí meu pai, no ano de entregar a renda, meu pai morreu... Essa renda era assim: você arrenda uma propriedade por tantos anos. Eu não lembro o total em dinheiro, acerta o valor da renda e a forma de pagamento, se vai ser com 1 ano, 2 ano, e no final entrega a terra do jeito que pegou. Eu sei que completava a renda em 42. Em 42 ele já ia entregar a renda, né. Aí ele morreu. O menino já tinha casado com a minha irmã. Aí eu fiquei, eu já tava lá, aí fiquei com ele, me casei aí fiquei com ele. Até vim pra cá fiquei trabalhando com meu cunhado. (Sr. M. A. de Sousa, 75 anos, colono.)

As condições de vida (habitação, educação e saúde) dessa população, no tempo do sítio, eram marcadas pelo baixo padrão. Em geral, as casas eram de taipas, chão batido e sem saneamento, não dispunham de água encanada nem energia elétrica. Praticamente não existiam escolas na região, o que explica um índice de analfabetismo elevado. A taxa de mortalidade infantil também era bastante elevada. Com freqüência, aconteciam mortes, sobretudo de crianças recémnascidas. Nem mesmo as mães souberam responder quais eram as causas dessas mortes. Algumas ainda explicaram que as mais comuns foram: o nascimento dos dentes, dor de barriga ou porque a criança havia nascido laçada. Na maioria das famílias vindas dos sítios, a quantidade de filhos vivos e criados corresponde a 50% do número de vezes que essas mulheres e mães de família engravidaram. Segundo relato de uma informante: “Nasceram doze filhos e morreram seis de nascimento de dente, morreram tudo novinho”. Nos sítios, as famílias eram geralmente nucleares e numerosas, formadas pelo pai, pela mãe e por doze, quinze, até dezoito filhos. A demanda de trabalho exigia o sacrifício de todos os braços do grupo doméstico. Ainda que houvesse escolas, o trabalho árduo da roça, no sertão árido, aliado às dificuldades geográficas (rios, morros, distâncias e a escuridão da noite) e às irregularidades de chuvas, comprometia o estudo dos filhos. Talvez por essa razão tornar o estudo acessível aos filhos tenha-se transformado num objetivo a ser perseguido. Para essas famílias, instrução, ou estudo, é um bem desejado e importante para a qualidade de vida. A gente sempre pensou em dá estudo aos filhos, né. Mesmo depois de casado eu inda tentei com eles, mas não quiseram mais não. E já depois de casado num ia forçar, né? (...) Só a minha filha mais velha é formada, em professora, né. Mas esse que veio aí e outro que tá em casa, depois de casado, inda estudaram, mas depois disse que num tinha condições de trabalhar e estudar. Mas, assim mesmo antes deles casar só ia pra roça de meio dia, porque eu dizia: “Você tem que estudar”. De

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manhã ia pra roça, à tarde já ia pra escola, ia cuidar em fazer uma tarefa, fazer uma coisa e eu disse: “Depois de casado vocês podem continuar estudando, que o que eu puder fazer eu faço”. Mas não quiseram de jeito nenhum. (Dona N., 57 anos, esposa de colono.)

Nas famílias sitiantes, o pai era o chefe da casa e responsável pela provisão do grupo doméstico, mas, em geral, não tinha acesso ao crédito bancário. Sem terra e sem capital para investir em outro sistema de produção, as famílias praticavam predominantemente a agricultura de subsistência, utilizando, basicamente, a força de trabalho familiar. As técnicas utilizadas caracterizavam-se por um incipiente grau de mecanização, o que resultava em pouca rentabilidade. A agricultura praticada nos sítios seguia a histórica lógica produtiva do sertão, qual seja, produzir para o autoconsumo. O morador e sua família cuidavam dos pequenos roçados, que mais pareciam manchas restritas em meio à vasta caatinga. As mulheres e os filhos ajudavam trabalhando na roça, dividindo o tempo entre o trabalho da casa e o roçado, onde faziam o serviço maneiro: limpar o terreno, plantar e colher. No tempo do sítio, a terra era boa e a produção, diversificada, dispensando o uso de agrotóxicos. Havia uma interação baseada no “afeto da terra”7 e na certeza quanto aos direitos individuais e de uso dos recursos, dado que se manifesta numa lógica de equilíbrio entre os homens e a natureza. Apesar dos profundos limites ao exercício das atividades na roça, esses agricultores, como moradores e rendeiros, podiam, mesmo que precariamente, tomar iniciativas relativas ao processo produtivo, priorizando sempre o plantio daquilo que era necessário para satisfazer as necessidades de consumo do grupo familiar. Nesse caso, os produtos cultivados eram: feijão, milho, mandioca e as culturas de vazante. E, apesar das dificuldades, criavam a “miunça”: galinhas, porcos, bodes, que serviam de “mistura” para as refeições mais reforçadas nos fins de semana ou quando recebiam visita. No sítio, com formas e arquiteturas diferentes, existia o espaço da reza, da escola, da cura, do lazer, tudo isto vivido “numa proximidade máxima da natureza” e numa distância relativa entre as casas dos parentes e vizinhos. Entretanto, a sociabilidade definida pelo prazer da interação era muito forte, porém bastante limitada ao espaço interno do sítio. Longe de ser uma cápsula protetora do camponês, o sítio é um espaço legítimo de reprodução de uma ordem moral relativamente endogâmica, que prioriza 7

Neste artigo utilizamos a expressão “o afeto da terra” por considerar que é bastante apropriada, todavia, corresponde ao título de uma obra de Brandão (1999, p.63), denotando o significado da terra e do trabalho na roça para aqueles que dela tiram os meios para sobreviver. Assim, ao perguntar a um informante do bairro Chapéu Grande por que, apesar de aposentado, ainda dedicava horas do dia a trabalhar no quintal ou mesmo no terreno dos outros, Brandão afirma que obteve a seguinte resposta do seu informante: “Eu planto porque fiz isso a vida toda e tomei gosto pelo ofício”.

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o bem-estar do grupo, mas que não exclui sua participação no mercado, em especial nos mercados locais e nas feiras livres, onde sua presença é particularmente visível. As características da sociabilidade no sítio, descritas pelos informantes, guardam grande semelhança com aquelas registradas nos trabalhos sócioantropológicos realizados por Maria Izaura Pereira de Queiroz (1973), Antônio Cândido (1964), Lia Fukui (1979), Klass Woortmann (1988), Carlos Rodrigues Brandão (1995) e Ellen Woortmann (1997). Todos consideram que a vida social no sítio é retratada como um lugar em que a família está diretamente integrada à lógica simbólica do trabalho, sendo este lugar constituído por um conjunto de espaços articulados entre si. Como já afirmamos, as relações de trabalho caracterizavam-se pela exploração, subserviência e privação. Segundo os colonos mais antigos, “o pior mesmo era trabalhar e nunca ter nada”. O “lucro” obtido com a venda dos produtos pertencia sempre ao patrão. Não havia como pensar na criação dos filhos nem como planejar o futuro, oferecer-lhes oportunidades para desenvolver habilidades, aptidões e construir seu próprio destino. Nesse sentido, o trabalho na irrigação abriu os horizontes dessas famílias. Observemos a narrativa de um informante quando questionado sobre o que mudou na sua vida quando se tornou irrigante: Olhe, mudou porque é o seguinte, eu trabalhava no Maranhão era muito bom, mas, por outro lado, a agricultura de sequeiro é uma agricultura que além de não ter valor é uma cultura incerta, especialmente nas épocas difíceis. Então, o seguinte, a cultura irrigada é uma cultura certa, você tem seu pão certo, tá entendendo, porque tendo água tá tudo certo. É como eu já lhe disse, eu me sinto bem-sucedido graças a Deus, não tenho do que reclamar não. Eu tô muito feliz, Deus nunca me deixou faltar o necessário, a roupa, a alimentação. Meus filhos, hoje, se num estudaram até onde eles quiseram é porque não quiseram. Mas as minhas filhas, as mulheres só têm uma que não fez pedagógico, as outras todas fizeram e não continuaram a estudar porque não quiseram. Os homens inda estudaram até o 2o grau. Hoje, é que eu vejo que a vocação deles é roça mesmo. É tanto que todos eles trabalham na agricultura. (Sr. L. R., colono.)

Constatamos que, apesar dos critérios de seleção adotados pelo DNOCS, o não reconhecimento do saber fazer e dos interesses dos sujeitos beneficiários do Projeto gera tensões que afetam tanto o projeto de autonomia idealizado pelos sitiantes quanto as expectativas do próprio Estado, ou seja, a aceitação sem resistência do novo modo de vida e das normas impostas pelas famílias. Para o DNOCS, a internalização de normas como não contratar trabalhadores, não plantar cultura branca8 (milho, feijão, arroz, mandioca), não 8

“Cultura branca” é um termo utilizado pelos sitiantes para se referir ao cultivo de produtos para o autoconsumo, que compõem a dieta básica destes sujeitos.

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fazer reformas nas casas, não criar nas agrovilas e não comercializar fora da cooperativa, era uma condição sine qua non para que o projeto de irrigação atingisse os objetivos da política de irrigação. Portanto, ser agricultor não era o único critério para que os sitiantes selecionados se transformassem em empresários. Era necessário construir um novo habitus, um conjunto de estruturas e disposições que deveriam ser, antes, internalizadas pelas famílias, como requisito para adquirir essa nova cultura, um novo estilo que, na visão do DNOCS, incluía a aceitação de um conjunto tecnológico para a agricultura e uma visão empreendedora para os sitiantes. O conjunto tecnológico implica estratégias e técnicas impostas pelo DNOCS aos colonos, com intuito de atingir os objetivos de eficiência na produção e competitividade, tanto no mercado local como no nacional. Entre as estratégias destacam-se o crédito, a assistência técnica e a promoção de técnicas modernas, incluídas no pacote da “revolução verde”, ou seja, quimificação (herbicidas, fungicidas e agrotóxicos) e tecnificação (uso de tratores e máquinas nas diversas etapas do processo de produção). Como estratégia empreendedora para capitalizar os colonos e viabilizar a comercialização da produção, o DNOCS decidiu criar uma Cooperativa. E, em 1973, foi criada a Cooperativa Agrícola Mista dos Irrigantes de São Gonçalo Ltda. (CAMISG), tendo como função, por intermédio do DNOCS, repassar o crédito bancário e orientar as atividades de comercialização, a compra de insumos industriais e a administração dos irrigantes. Costa (1984, p.117) assinala que a CAMISG foi criada de cima para baixo, sendo os colonos obrigados a se filiarem porque esta era uma exigência para que pudessem permanecer no Projeto. Sem conhecer a dinâmica de uma cooperativa, os colonos entendiam que esse era um meio seguro de captar os recursos necessários para investir na produção. Os colonos produziam com a garantia de entregar a produção a um terceiro, neste caso, à CAMISG, para que esta comercializasse. Após a entrega da produção, os colonos recebiam o pagamento na forma de parcelas.9 Como a maioria dos cooperados era analfabeta, tornava-se difícil para eles compreender os cálculos. Ao mesmo tempo que funcionava como um “subsetor” do DNOCS, a cooperativa era também um instrumento de coerção do Estado, que, impondo seu controle ao irrigante, viabilizava o projeto de “modernização” da agricultura. Embora alguns lotes tenham sido entregues aos irrigantes com 1 ha de banana já plantado, a maioria dos colonos chegou ao PISG sem 9

“Parcelas” era o acerto de contas quinzenal feito em dinheiro entre a cooperativa e os colonos. O valor das parcelas era pago mediante a entrega da produção e após a pesagem do produto. Além da parcela, a cooperativa fornecia também sementes, maquinários, tratores, adubos e fertilizantes. Dispunha de técnicos e transporte para escoar a produção. Com a falência da cooperativa, todas essas facilidades acabaram, ficando os colonos nas mãos dos agiotas, para subsidiar a produção, e dos atravessadores, para comercializá-la.

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condição de fazer nenhum investimento. Desse modo, nos primeiros meses das famílias no perímetro, a cooperativa teve de fazer um adiantamento de recursos por empréstimo, para viabilizar a residência delas no Projeto. Assim, a vida no perímetro passou a ser regulada por um regime que as famílias irrigantes denominam de “tutela do DNOCS” e que traduz a postura assistencialista adotada pelos funcionários e administradores do Projeto. A tensão aventada no início deste ponto afetou diferentemente os atores envolvidos. Os informantes relatam que as condições de bem-estar experimentadas pelas famílias no início do projeto eram uma estratégia para atrair os irrigantes. Já os técnicos afirmam que a atenção dispensada às famílias fez que elas ficassem “mal-acostumadas”, acomodadas, esperando que o DNOCS solucionasse todos os seus problemas. No entanto, paralelamente a esse assistencialismo, constata-se, nas atitudes do DNOCS, uma postura autoritária, que subordinava as famílias às regras e decisões do órgão. Para que essas regras fossem cumpridas, as famílias passavam por treinamentos (estágios), cujo objetivo era instruí-las sobre a nova maneira de produzir e criar. Por exemplo: incentivava-se a produção de culturas com valor de mercado – tomate, melão, arroz, cenoura, melancia, limão, entre outras; não era permitida a criação de animais soltos – galinha, bode, pato; as famílias passaram a residir em agrovilas com vizinhança, casas numeradas, alinhadas em ruas, virada uma para a outra, de forma semelhante aos bairros urbanos. Também eram obrigadas a cumprir horários, trabalhar nos dois turnos, manhã e tarde, sem horário para a “sesta” e, ainda, aproveitar os espaços da casa e da roça como espaços distintos e com especificidades – a casa era exclusivamente para morada, ao passo que a roça era o lugar do trabalho, da produção. Além de orientar a convivência social das famílias, o DNOCS impunha restrições, regras de disciplina e de controle que regulavam não apenas o processo produtivo, mas também a vida social dentro dos núcleos, conforme revela um informante: O cabra pra entrar pra ser colono tinha que estagiar 15 dias, o cabra num bebia, num jogava aqui. O chefe daqui, antigamente, se descobrisse que o cabra tava com uma garrafa de cana dentro de casa... Antigamente num tinha geladeira, num tinha nada, tinha um pote, sabe o que é uma manilha? Aí sabe o que era que o cabra fazia? Pegava um pote, botava dentro da manilha, botava a manilha em cima, enchia o pote d’água, botava a garrafa de cana dentro da manilha ali pro cabra nem sonhar, porque se o chefe soubesse que o cabra bebia cachaça, eles tinham um carro velho que dizia: “olhe encha esse carro e vá rodar enquanto o carro tiver óleo, é pra deixar solta lá... só deixe de rodar quando o óleo se acabar, que num é pra ficar essa gente aqui dentro não”(...). (Sr. J. G., 66 anos, colono.)

Vê-se que as regras impostas extrapolavam os limites do público e do privado, de modo que as famílias não podiam receber visitas sem pedir autorização ao gerente do projeto, tampouco fazer qualquer festiva para 314

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comemorar datas como aniversário, casamento ou batizado. Alegava-se a necessidade de evitar os vícios e, sob este discurso, o DNOCS cerceava completamente as liberdades individuais. Maria José Carneiro e Monte Môr (1981) analisam essa postura do DNOCS, também conhecida por “tutela”, e afirmam que esta expressão explica, por um lado, o comportamento assistencialista e, por outro, as atitudes autoritárias e ditatoriais assumidas pelo órgão. O regime de tutela era justificado em razão das dificuldades enfrentadas pelas famílias, no início do Projeto, as quais, para serem superadas, exigiriam que as pessoas adquirissem um sentimento de autoconfiança, confiança no trabalho dos técnicos executores da política e no próprio discurso do Estado, por meio de uma relação que consistia na substituição da figura do patrão-protetor, que, nesse caso, não era mais o proprietário da terra, mas o próprio DNOCS. Essa realidade frustrava as expectativas dos colonos em relação ao fato de se tornarem autônomos, de não viver sob a tutela de um patrão. Para as famílias colonas de São Gonçalo a vida de sujeição assumiu outra configuração no PISG. O DNOCS passou a ser o patrão, em vez do dono da propriedade, a quem as famílias passaram a obedecer, respeitar e agradecer. Após os treinamentos, muitas pessoas rejeitaram a idéia de trabalhar e viver num perímetro irrigado, alegando que o regime de trabalho proposto pelo DNOCS guardava semelhanças com o “cativeiro”.10 Em algumas narrativas, os colonos mencionaram o termo “cativeiro” para definir o que se comentava na época da colonização, como revela a narrativa: Aí eu vim direto me inscrever. Muita gente num queria vim, diziam “lá é um cativeiro”, aquela história toda de pé de serra. Cativeiro, quer dizer, é trabalhar de escravo, trabalhar sujeito, mas eu digo “rapaz de qualquer maneira nós somos escravos, a liberdade da escravidão existiu, a princesa deu, vamos dizer assim, aos negros, ao escravo... Mas a escravidão não acabou, nós continua sendo escravo, mesmo que num queira, a gente somos escravo do trabalho”. De fato, muitos caboclinhos geniosos no estágio deixaram. Os estágios eram dano explicação sobre o trabalho e a convivência que ia ter aqui, como era, aí meu pai disse: “Meu filho, você acha ruim aqui, pior é lá”, eu digo: “Meu pai, pior é a gente passar fome esperar por um inverno, porque lá tem água”, porque minha vantagem era na água, lá tem água 10

A categoria “cativeiro”, utilizada pelos camponeses, foi encontrada nos textos de Sigaud (1979) para traduzir o sentimento dos trabalhadores das fazendas de cana, da zona da mata pernambucana, em relação ao regime de trabalho a que eram submetidos, caracterizado pela ausência de direitos e de uma legislação que os amparasse. Encontramos também a expressão “cativeiro” nos trabalhos de Martins (1979), quando este analisa as condições de trabalho pré-capitalistas vivenciadas pelos colonos das fazendas de café no Estado de São Paulo. No trabalho realizado por Carneiro (1981, p.49) no PISG, a autora conclui que “o cativeiro é uma situação em que o trabalhador só recebe alguma roupa e comida como pagamento pelo seu trabalho”. Woortmann (1990, p.43), ao analisar o tipo de organização social a que eram submetidos os sitiantes, conclui que “o sujeito que trabalha alugado é um cativo, porque não controla o processo de trabalho e porque este é organizado sob as ordens de um patrão e não pelos princípios do parentesco e sob o ‘governo’ do pai”.

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todo tempo, a gente tendo água, fogo e sal num morre de fome e pode até pegar um meio, graças a Deus, de dá o estudo aos meus filhos. (Sr. L. D., 67 anos, colono.)

Além do aprendizado das técnicas, o processo de conversão das famílias em irrigantes incluía a crença numa outra racionalidade, por meio do acesso a bens, serviços e relações sociais, até então desconhecidas ou não experimentadas. Por exemplo, acesso aos bens de consumo duráveis, aos meios de comunicação (televisão, rádio, telefone), à oportunidade de adentrar os espaços urbanos, freqüentar escolas na cidade, ter contato com outros agentes (gerentes de banco, compradores em geral e representantes das agroindústrias). Esse fluxo de informações ampliou o ciclo de relações das famílias, contribuiu para modificar o estilo de vida e a visão de mundo, com a cultura adquirida. Estas mudanças refletiram-se nas condições de vida, mas também num novo jeito de produzir, que é parte de uma cadeia de transformações compreendidas pela gestão e organização do trabalho, pelo uso intensivo da terra, de capital e, sobretudo, pela introdução de tecnologias que vão modificando as relações sociais no interior da família e se constituem em aspectos que legitimam a identidade do irrigante. A exemplo das relações entre os casais, encontramos alguns casos de esposas e mães de família que trabalham e são provedoras, ao passo que os homens, pais de família, ficam desobrigados da provisão do grupo doméstico. A trajetória do Projeto revela que, aos poucos, o DNOCS abandonou o papel de “tutor” e assumiu uma postura mais próxima da de um gerente. Essa transferência de papéis começou quando os colonos assinaram o contrato de compra do lote, financiado a longo prazo (vinte anos), pelo DNOCS. Em seguida, fez-se a transferência da gestão da cooperativa para os associados e a transferência da gestão dos recursos hídricos aos usuários. Podemos dizer que o afastamento do DNOCS deveria consolidar-se com a emancipação11 do Projeto, embora, na prática, tal processo se tenha concretizado na forma de abandono, como analisa um informante: No começo, o DNOCS ajudava, especialmente, no trabalho. O DNOCS tinha técnicos, tinha trator, logo no início, pra começar tinha lote desses que dava até a banana já plantada, né? A nossa mesmo ele deu plantada, ninguém pagava nada, até dois anos eles num cobrava nada, aí quando colocou a cooperativa, aí foi o atraso nosso. Olhe, a cooperativa, o DNOCS sustentou ela, assim, dois anos, num sabe, de dois a três anos, o DNOCS deu gado, deu tudo prontinho, aí quando a cooperativa pegou a desandar um pouco, aí, quando o DNOCS percebeu que a cooperativa tava desandando, ele aí passou pro associado administrar... (Sr. J. G., 66 anos, colono.)

O trabalho do DNOCS, no Projeto de Irrigação, embora voltado para o desenvolvimento e organização da comunidade, não procurou estimular as 11

O processo de emancipação dos Perímetros Irrigados, para o DNOCS, significa o reconhecimento da autonomia dos irrigantes.

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práticas de solidariedade já experimentadas pelas famílias, como as práticas de ajuda mútua, de coletivismo dos grupos de parentesco. O paradoxo dessa situação consiste no fato de que, mais adiante, o próprio DNOCS praticamente obriga as famílias a ficarem sócias da cooperativa, sem que antes pudessem ter convivido e adquirido confiança umas nas outras. Como já afirmamos, o trabalho associativo e cooperado limitava-se à compra e venda dos produtos, assim como a realização de empréstimos foi a alternativa encontrada pelo DNOCS para organizar os colonos e captar os recursos necessários para a produção. Todavia, a concepção do órgão sobre esse processo era meramente burocrática, não respeitando o tempo necessário para que as famílias se conhecessem e adquirissem confiança umas nas outras. O DNOCS, no entanto, mais interessado nos resultados do trabalho com a irrigação do que nas condições de bem-estar e na qualidade de vida das famílias, propriamente, acreditava que a eficiência dessas famílias dependia da disposição para incorporar novas técnicas de produção. Dessa forma, o DNOCS exigia o envolvimento dos membros das famílias em todas as etapas do processo. Ser irrigante, para o DNOCS, significava dominar as técnicas empregadas na agricultura irrigada. Já para as famílias, tornar-se irrigante era uma estratégia para a realização de um projeto de vida. As intenções do DNOCS divergiam das expectativas das famílias. As ações desenvolvidas pelas assistentes sociais que trabalhavam na área tiveram como objetivo orientar as famílias para a divisão de tarefas, diluindo a idéia do trabalho familiar e da interdependência do grupo, separando o espaço da casa do espaço da roça, não permitindo que os pais fizessem casas para os filhos no mesmo lote. Mas, para as famílias tornarem-se irrigantes, era uma escolha que não deveria significar necessariamente uma ruptura com uma tradição de trabalho e costumes em comum, Por exemplo, o pai administrava e os filhos trabalhavam na produção e comercialização, e o apurado seria utilizado para atender às necessidades de todos. As famílias pretendiam dar continuidade a um estilo de vida internalizado na vivência nos sítios e pés de serra, marcado pela proximidade dos grupos de parentesco e pela indissociabilidade dos espaços e papéis. Portanto, é este primeiro momento de negociação das famílias sitiantes com o DNOCS que marca a transformação do sitiante em irrigante, que estamos chamando de conversão. Nazaré Wanderley (2003, p.47) lembra Marcel Jollivet quando este diz que “no agricultor familiar há um camponês adormecido”. A autora complementa a análise afirmando que há em todo agricultor um camponês bastante acordado. Portanto, estes colonos, na condição de atores e sujeitos, não são simplesmente reprodutores dos projetos do Estado, mas articuladores de uma lógica que combina duas dimensões: uma cultural, relacionada à tradição de um modo de vida, e outra, conjuntural, determinada pela necessidade de se adaptar às condições modernas de produzir e viver. 317

De sitiantes a irrigantes: construção identitária, conversão e projetos de vida

Esse processo de construção identitária e conversão revela-se na maneira como as famílias colonas, vivendo como irrigantes, pensam o mundo e agem sobre ele. As atitudes de resistência, evidentes entre as famílias colonas, não permitiam que as regras impostas pelo DNOCS afetassem princípios como o significado da família como uma unidade básica de produção e consumo, adaptando-o às novas lógicas econômicas e institucionais para realizar o projeto de vida do grupo familiar. Entender este quadro implica analisar a própria trajetória de vida das famílias e o processo de incorporação de novas práticas que traduzem o estilo de vida do irrigante.

UM NOVO MODO DE VIDA E A VIDA SOCIAL NO PISG: RESISTÊNCIA E RECONVERSÃO O espaço do PISG vai ser responsável, ao mesmo tempo, pela construção de uma identidade que não se dissocia do modo de vida, nem da lógica do trabalho, tampouco da família e do lugar, mas articula dimensões indissociáveis de um éthos internalizado na continuidade da história particular das famílias, antes sitiantes, que se tornaram irrigantes. Aqui, é importante destacar que garantir a continuidade desse modo de vida foi um processo custoso, dado que se confirma na própria descrição das famílias sobre a organização do espaço. A área conhecida como Perímetro Irrigado de São Gonçalo (PISG) adquiriu uma identidade das relações objetivas, afetivas e simbólicas estabelecidas entre o lugar e as pessoas que o fazem, que possibilita analisar quem somos nós e quem são os outros, substituindo o espaço comum pelo lugar incomum dotado de significados. O DNOCS, seguindo um projeto-padrão de construção para os Perímetros Irrigados, distinguiu o espaço do trabalho do espaço da casa, ou seja, as agrovilas ou núcleos habitacionais e os lotes agrícolas ou a roça. O modo como o PISG foi ocupado, sobretudo a ocupação residencial, desde o início, denotava certa estratificação legitimadora de uma determinada hierarquia. Na parte alta do Projeto, ficam as espaçosas e confortáveis casas dos técnicos de nível superior e dos administradores do Perímetro; no acampamento federal, localizado em nível intermediário, entre a parte alta e os núcleos habitacionais, residem os técnicos de nível médio, a grande maioria já aposentada, com filhos e netos que também moram nas instalações do Projeto. E na parte mais baixa estão os núcleos habitacionais,12 onde residem as famílias colonas. 12

Em São Gonçalo há três agrovilas (I, II e III), onde residem as famílias dos colonos e que, portanto, ficam separadas do lugar do trabalho, a roça ou lotes agrícolas, que é dividido em setores e fica relativamente distante das casas.

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A idéia do DNOCS para organizar a comunidade impunha-se desde as construções. Ao ingressarem no PISG, as famílias passaram a residir nos núcleos habitacionais. Segundo o DNOCS, deveriam ser instaladas nos núcleos apenas as moradias dos colonos e os equipamentos coletivos necessários: escolas, postos de saúde e postos telefônicos. Atualmente, os núcleos disponibilizam para a população local serviços do tipo: atendimento médico-odontológico, em domicílio, ambulância (com exceção do núcleo 3), ônibus escolar, espaços de lazer e estabelecimentos comerciais. Em todos os núcleos existem igrejas, católicas e evangélicas, das diversas doutrinas, e cada núcleo dispõe de um espaço de lazer, denominado “quadra”,13 e de “estabelecimentos comerciais”.14 Para Wolf (1970), as construções materiais e/ou simbólicas fazem parte de um “novo estilo de vida”, na medida em que modificam as relações sociais. Nesse sentido, os prédios e as construções servem para explicá-las, regulá-las e justificá-las. No PISG, o tamanho-padrão das casas ocupadas pelas famílias colonas era de apenas cinco cômodos: dois quartos, uma sala, uma cozinha e um banheiro. 13

14

A quadra é, na verdade, um espaço cercado de palha de coco, descoberto e com piso de cimento, com uma construção nos fundos que serve para guardar freezer, fogão etc. e funciona como bar quando acontecem os bailes, serestas e forrós. Embora no início tenha sido proibida a instalação de bares e casas de comércio, existe hoje nos núcleos, sobretudo na área da “favela”, uma série de estabelecimentos que suprem as necessidades do consumo local: mercearias, farmácia, salão de beleza, panificadoras, lanchonetes e postos de venda de gás de cozinha.

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Tendo em vista que as famílias colonas do PISG são numerosas, o tamanho-padrão das casas, para a maioria, era insuficiente. A casa é, por sua vez, um espaço simbólico que representa o templo sagrado onde são produzidas disposições que permitem aos indivíduos julgar e atribuir significados aos bens e signos culturais. Portanto, ela não pode ser pensada, apenas, na dimensão da moradia, mas “como dimensão central de um domínio cultural e um mapa simbólico de representações ideológicas” (Woortmann, 1982, p.110-50). Por isso, havia a necessidade de se reformarem as casas. O tipo de reforma e o material utilizado são elementos que vão confirmar a diferença entre os colonos, segundo o DNOCS, como os “bem-sucedidos” e os que “não prosperaram”15 e, ainda, entre os colonos e os “favelados”.16 Esse novo jeito de morar modificou a vida privada das famílias, e a rotina do sitiante cedeu espaço à rotina do irrigante. Esta se manifestava na regulação do tempo, ou seja, na definição dos horários de trabalho, de dormir, de comer, de realizar reuniões, assim como dos hábitos e costumes das famílias, por exemplo, conversar com vizinhos e jogar baralho à “boca da noite”, sempre visando, exclusivamente, atingir as metas de produção. E, assim, a percepção do saber, do tempo e dos espaços, tal como fora internalizado pelo sitiante, é reorientada na vivência do trabalho. O conhecimento sobre os fenômenos naturais é apreendido na interpretação das suas manifestações, por exemplo, na variação entre frio e calor, na composição de nuvens nos céus de setembro e outubro e numa infinidade de referenciais herdados dos antepassados. Este acervo valioso é substituído por conhecimentos inovadores, como tipos de solos, enxertia de culturas, uso e percentuais de adubos e fertilizantes (agrotóxicos). A trajetória de vida das famílias é importante para entender o processo de construção identitária, de conversão e de reconversão. Na época do sítio, diariamente, os homens e as mulheres trabalhavam em casa e na roça. No fim da tarde, ao retornarem da lida, as mulheres iam para a cozinha cuidar do jantar, ao passo que as crianças brincavam umas com as outras na frente das casas, jogando bola, contando estórias. Após o jantar, homens e mulheres, parentes e vizinhos, sentavam-se para “aquela” conversa costumeira, contar causos, piadas, estórias de “trancoso” e jogar cartas, enquanto observavam as crianças brincarem. Nos primeiros anos como irrigantes, ninguém possuía televisão, mas os informantes avaliam que, naquele tempo, era tudo mais divertido e as pessoas eram mais felizes, como afirma uma informante: 15

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Analisando as diferenças entre os colonos quanto ao poder aquisitivo, capacidade de consumir, acumular, origem e posse dos lotes, identificamos os seguintes tipos: “os bemsucedidos”, “os colonos que não prosperaram” e “os favelados”. O termo “favelado” é utilizado pelas famílias colonas do PISG para identificar aqueles que não descendem das famílias colonas e que residem na periferia dos núcleos.

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Figura 12.1. Acima, casa de colono que não prosperou com puxadas e, abaixo, casa reformada de colono bem-sucedido.

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Ah! Era uma alegria muito grande aqui, muito divertido, porque no início mesmo, todo mundo se conhecendo, os vizinhos... assim, a convivência das pessoas num é, porque saía, sentavam no terreiro à noite pra conversar, depois que chegavam da roça até oito horas, ficavam conversando, jogavam baralho, no fim de semana. Hoje a gente num vê, se eu disser que vejo isso mais é uma coisa muito difícil num tem mais essa... são todos nas suas casas, assistindo televisão, mas antes não, é tanto que antes também nem havia televisão aqui, quando construíram o núcleo. Depois foi que uns dois colonos compraram. A gente ia assistir era uma novidade, mas era muito boa a convivência da gente, era melhor nessa época. (F. S. S., 37 anos, filha de colono.)

A moradia é um espaço marcado por especificidades econômicas e culturais. O lugar onde moramos traduz elementos da nossa identidade, assim como as preferências, os sonhos, os ideais e as necessidades. Foi desse modo que as famílias irrigantes revelaram como a experiência coletiva, vivida por elas na construção do PISG, transformou-se num lugar “legal”, onde as famílias podem, ao mesmo tempo, trabalhar e viver. Michael de Certeau (1994, p.201) analisa a relação entre espaço e lugar, partindo da seguinte distinção: “Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. O espaço é um cruzamento de móveis”. O lugar é, em si, impessoal, frio, moradia de ninguém e, ao mesmo tempo, de todo mundo. Nesse estudo, o PISG é um espaço onde as pessoas, em movimento, realizam, criam e transformam. Um espaço que se transforma na morada de alguém, José, Maria, Pedro ou Antônia. É algo qualitativamente estilizado pela experiência de cada um deles com o mundo que os cerca. No início, ter a família numerosa era importante para estruturar a vida no PISG porque havia muito trabalho. Limpar o terreno até deixá-lo totalmente “situado” era uma empreitada que exigia esforço, dedicação e cooperação de todos. Com o passar dos anos, essa família, que já era numerosa, multiplicou-se, dificultando ainda mais a satisfação das necessidades de todos. Hoje, no PISG, embora não exista um tronco familiar único, de origem e pertencimento, a sociabilidade das famílias guarda semelhanças com a parentela do “Véio Vitorino”, analisada por Emília Pietrafesa de Godói (1999) e com a “Família Pereira”, estudada por Maria Helena Antuniassi (1998). Essas semelhanças adquirem visibilidade nos laços de proximidade e consideração entre os parentes consangüíneos e vizinhos e na existência de um domicílio central, geralmente de propriedade da família ancestral que lidera a parentela e em torno do qual vivem os demais grupos familiares (as famílias dos filhos e netos dos colonos). Estas permanecem ligadas entre si afetiva e moralmente, mas com relativa independência econômica (Segalen, 1996, p.41). Observamos que há entre essas famílias traços de uma economia moral, nos termos analisados por Thompson (1991, p.222), que se materializam no costume de realizar trocas, favorecendo a melhoria das condições de vida da parentela como um todo. Como narra a filha de um colono: 322

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Olhe sempre é qui nem eu, aqui é a casa de meu sogro, é aqui pegada a minha, sempre mora assim, um mora dum lado, tem casa de colono que tem três filho morando pegado, um morando dum lado outro mora do outro, outro mora dentro do muro é tudo perto, porque nem tem lote mais prá fazer casa e já aproveita o espaço, né. A parede de um já diminui aqueles tijolo prá fazer, já faz pegado prá diminuir a despesa sempre é assim e um já fica com o filho do outro, minha sogra mermo fica com o meu. Isso já é uma forma de ajuda. (Sra. G. G., filha de colono.)

Essa é uma das situações que evidenciam a permanência dos valores camponeses, ainda que articulados à lógica do irrigante e presentes num mesmo ator social – a família irrigante. Portanto, um sujeito cuja identidade foi reflexivamente convertida, isto é, ao passo que o DNOCS estimulava a individualidade das famílias, orientando para que cada um se dedicasse ao seu lote, cada uma trabalhando por si, as famílias reproduziam os costumes da tradição como sitiantes por meio da sociabilidade do grupo. A proximidade do grupo e a interação entre os indivíduos em torno de projetos comuns é um aspecto importante para se compreender a sua sociabilidade e a reconversão destes em sitiantes, representada no habitus camponês. A valorização dos costumes, calcados na tradição do sitiante, evidencia-se no desejo de alguns jovens. Ao expressarem o sentimento de pertencimento ao lugar e ao grupo familiar, reafirmam a necessidade, não apenas de espaços de lazer, mas de espaços que sejam adequados ao estilo de vida da comunidade e que reforcem a cultura local, aproximando cada vez mais as pessoas. Entretanto, como a vida em comunidade impõe limites aos seus membros, esses espaços não agregam os indivíduos na sua totalidade. Como analisa Douglas e Isherwood (2004, p.40), se lembrarmos como uma comunidade funciona, perceberemos que ela também possui mecanismos de censura, de exclusão, mas nem por isso deixa de ter interesses comuns. Essas questões reforçam a vitalidade dos núcleos, de fato, conformando-os numa comunidade, da vivência de velhas e novas práticas.

SOCIABILIDADE E RECONVERSÃO: OS ARRANJOS EM TORNO DO TRABALHO A diminuição da força de trabalho humano na agricultura mundial é uma realidade. No Brasil, esse movimento atinge especialmente os agricultores familiares, assentados e pequenos irrigantes. A falta de incentivos e de apoio governamental para os programas de desenvolvimento rural desestimula os grupos que vivem no campo. No PISG, as pretensões dos indivíduos, sobretudo dos mais jovens, em seguir carreiras alheias à agricultura são evidentes, seja como estratégia familiar, seja como objetivo pessoal (Mota, 2003, p.47). Mas essa diminuição da ocupação humana na agricultura não 323

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significa, necessariamente, que o trabalho em geral, ou que o trabalho na agricultura em particular, tenha deixado de ser uma dimensão central na vida das pessoas; contrariamente, o trabalho é fundamental para entender esse processo de conversão/reconversão identitária. Como as condições naturais no sítio eram adversas, o trabalho no perímetro irrigado foi mais um elemento a confirmar a viabilidade da aposta feita pelas famílias, ao deixarem o sítio para viver no PISG. O acesso dessas famílias a políticas públicas e serviços sociais possibilitou a melhoria de suas condições de vida, especialmente no que se refere à saúde e à educação. Entre outros aspectos, essas melhorias são simbolicamente representadas no fato de terem-se tornado uma coletividade, numericamente visível, importante e representativa. Tornar-se irrigante representa claramente uma estratégia de resistência, porque fez desabrochar nessas famílias a esperança de realizar os sonhos e os projetos do grupo familiar. Diversas vezes ouvimos declarações do tipo: “no início foi difícil, pensamos até em desistir, mas não havia mais um lugar pra voltar, não havia mais patrão, nós tinha que continuar e acreditar, graças a Deus deu tudo certo”. Essas declarações revelam que, apesar das dificuldades enfrentadas, ainda assim valeu a pena ter ido para o PISG. Em outras palavras, é como se as famílias considerassem o fato de que, antes, a maioria não tinha nada e hoje tem onde morar, trabalhar e viver. A identidade de irrigante que se constrói neste processo guarda semelhanças com certos ritos de passagem, marcados por testes de resistência, sofrimento e dor. O modo coercitivo com que o DNOCS impôs normas e regras de convivência e conduta às famílias caracterizou a ação do Estado na transformação do sitiante em irrigante. Um dos informantes narrou, com detalhes, este processo que, ao mesmo tempo que é coercitivo para eles, tem o sentido de uma formação profissional e, portanto, dignifica-os e envaidece-os: Pra você ser um colono cê tinha que ter um ensinamento, tinha um treinamento, ninguém entrava assim como tava pensando porque era terra do governo... eles pegavam assim, juntava aquela ruma de gente e fazia muitos tipos de coisa que a gente nem pensava que aquilo ali fosse cair ali..., na realidade da situação que você fosse ficar. Vamos supor, como era que eu me dava com os outros entendeu. Às vezes combinava assim, pegava o cara e fechava ele assim, né? Muitas vezes, fazia com que aquela pessoa entrasse numa roda e perguntava: “Você foi inscrito, se por acaso você num passasse o que era que você faria pra entrar aqui?” Ali eles viam, né? Mas aí uma pessoa depois perguntava: “E se o doutor disse que você num plantasse isso e você plantou consorciado feijão, macaxeira, batata doce...”, realmente num era pra ser o que era que você faria? Porque se você foi por sua cabeça, porque você achava que esse agrônomo num tava certo, oxênte, se uma pessoa colocasse na cabeça, eu vou plantar batata-teto, ou outra cultura que num fosse a realidade do que o técnico tava mandando ele podia ficar, mas ele era mais exigido e, por muitas vezes, muitos bonito desse num ficou não, porque ele foi aquela pessoa que num

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aceitou aquela norma, aí muitos foram embora porque num aceitaram, né? Aquela norma. (Sr. A. A. de S., 56 anos, colono.)

Saber lidar com a terra e dela tirar o sustento da família faz parte das disposições internalizadas pelos sitiantes e que, mesmo associando à técnica, permanece no éthos do irrigante. Tedesco (1998, p.58) assinala que “o éthos do colono se projeta nos vínculos entre a identidade e as perspectivas a realizar, entre razão e moral”; ou seja, este éthos funciona como elemento de mediação, que tanto limita quanto auxilia no discernimento das ações e condições sociais dos indivíduos. A organização do trabalho no lote, a experiência com irrigação e a relação com as políticas públicas mediada pela ação do DNOCS negavam o saber fazer das famílias. O desrespeito ao saber acumulado expressa-se na escolha das culturas, no sistema de irrigação implantado, na organização do sistema de produção, entre outros. Pelo trabalho na terra ficam asseguradas a sobrevivência da família e a reprodução do patrimônio, que possibilita a continuidade das gerações futuras, a honra e a formação do caráter dos filhos. O saber fazer do camponês é um aprendizado para toda a vida, é o bem que garante a certeza de uma vida sem privações. O trabalho na terra, como disposição, implica ter domínio de certos conhecimentos, mediante o senso prático, tais como: conhecer as condições meteorológicas favoráveis às chuvas, saber plantar, adequar a cultura ao solo, ter o domínio de todas as etapas do processo produtivo, limpar, brocar, preparar a terra, adubar, pulverizar, irrigar, colher, armazenar e comercializar. Tudo isso constitui a herança, o bem maior aprendido por todos e que deve ser repassado de geração a geração. Assim, o costume de ir para a roça desde criança é comum a todos. Entretanto, este aprendizado não elimina a necessidade e a importância da educação formal. Na maioria das famílias, os filhos são orientados a conciliar o trabalho na roça com o estudo, dividindo o horário e as funções entre todos os membros do grupo familiar, homens e mulheres. Ao passo que uns vão para a escola pela manhã, outros vão para a roça e, no período da tarde, trocam as atribuições. Para as famílias irrigantes, a comparação das condições de trabalho no tempo do sítio e as condições atuais no PISG é um aspecto importante para se compreender a sua realização pelo trabalho. Ser administrador, empreendedor na sua própria terra significava, para as famílias, produzir a cultura que consideravam adequada, utilizando o saber que já dominavam e a experiência como sitiante. Para o DNOCS, ser gerente e administrador de um lote implicava, grosso modo, não contratar mão-de-obra e envolver cada vez mais os membros do grupo familiar. Um irrigante não deveria, segundo o DNOCS, intervir no lote do outro; cada um cuidava do que era seu. 325

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Assegurar o alimento da família é um dos requisitos da lógica camponesa. Por isso a preocupação das famílias irrigantes com o que deveria ser cultivado primeiro. Para elas, a prioridade era a obtenção dos alimentos que constituíam a dieta básica do grupo. Já o DNOCS determinava que fossem plantadas culturas de irrigação, em especial frutíferas, como caju, coco, goiaba, melão, melancia, banana e tomate. Priorizar essas culturas, que não faziam parte da dieta do sertanejo, era algo incomum para os irrigantes, que nunca esconderam as insatisfações em relação ao tipo de produto que se elegia como prioritário. A capacidade de se inserir num projeto de irrigação e articular essas duas lógicas, assumindo um novo estilo de vida do colono irrigante, sem romper com os costumes do sitiante, revela que os momentos de conversão e reconversão não foram definidos apenas pela ampliação da capacidade de consumo de bens e serviços, mas, sobretudo, pela firmeza e obstinação, que se revelam na fidelidade ao projeto de vida do grupo familiar, bem como nas estratégias para manter o patrimônio e as condições para viver com dignidade. Dizemos que a reconversão das famílias irrigantes em sitiantes-camponesas corresponde não ao tipo ideal do camponês tradicional, aquele do modelo original proposto por Lamarche (1993), marcado pelo alto nível de engajamento familiar e pelo grau de dependência do estabelecimento com o mercado local, mas o camponês do modelo final, aquele que evoluiu num contexto sociopolítico específico e que, ao se tornar um agricultor, preserva no seu modo de vida uma ordem moral e simbólica herdada dos seus antepassados, a qual se expressa na solidariedade dos vizinhos, numa certa economia moral que beneficia ao grupo familiar etc. (Wanderley, 2000). É essa herança que vai legitimar um éthos pautado na indissociabilidade dos elementos terra, trabalho e família, redefinidos, simbolicamente, por meio de uma racionalidade adaptada que reconhece o mercado e o Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como dissemos no início deste artigo, a identidade do irrigante, como uma construção mediada pelas políticas de Estado, é um processo complexo que se materializou em sujeitos sociais com interesses diversos. As idéias subjacentes à política de desenvolvimento rural e regional que deu origem aos irrigantes não foram capazes de incorporar nas bases do planejamento o acervo e o passado camponês dessas famílias, representados pelos valores implícitos nos projetos de vida e nas expectativas em relação ao futuro, ou seja, libertar-se da sujeição do patrão, reproduzir o patrimônio e assegurar o futuro dos filhos. 326

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Desse modo, a permanência das famílias irrigantes nos Projetos de Irrigação, gerenciados pelo DNOCS, caracterizou-se, desde o início, por um processo de negociação contraditório. De um lado, o DNOCS, comprometido com os objetivos da política de irrigação, de dinamizar a economia das áreas “fragilizadas”, criando uma classe média rural; do outro lado, as famílias–sitiantes–irrigantes, lutando pela continuidade de um modo de vida endógeno que, sem desconsiderar o mercado, privilegiam as estratégias que asseguram a qualidade de vida do grupo familiar. O trabalho empírico revelou que a construção da identidade do irrigante se inicia no ato de fazer a terra produzir. Esta é uma dimensão básica, porque, simbolicamente, o acesso à terra confere a condição de liberto e a possibilidade de exercitar o saber fazer acumulado. Portanto, tornar-se irrigante implicou a aquisição de certo status representado, não apenas pelo fato de deixar de ser sujeito, mas, sobretudo, de poder administrar o patrimônio da família e com a própria família. Para a maioria das famílias do PISG, a continuidade de um éthos camponês dentro de um projeto de irrigação inclui a possibilidade de acumular recursos e multiplicar os bens, como aconteceu com os irrigantes “bem-sucedidos” do PISG. Muitos desses colonos fizeram outros investimentos, como imóveis, comércio, fábricas etc. Assim, passaram a dispor de outras fontes de captação de rendas e recursos, o que confirma a existência de um incipiente processo de diferenciação entre as famílias irrigantes. Percebemos, então, que, apesar das tensões vivenciadas e da postura reguladora do DNOCS, o trabalho na agricultura irrigada propiciou a melhoria das condições de vida para a maioria. A experiência do PISG revela que irrigante é o sujeito articulador de uma ordem moral e ética, cuja racionalidade legitima a identidade do sitiantecamponês que se revela na vida social dos núcleos e na sociabilidade dos vizinhos e parentes. A relação entre essas ordens constitui o corpus de análise que explica a maneira como vêem o mercado (espaço do lucro) e a multiplicidade de atitudes e narrativas que expressam a visão de mundo e os juízos formulados acerca da realidade que os rodeia e da própria vida. A combinação dessas ordens é perceptível quando analisadas na dinâmica do trabalho no PISG. O trabalho na agricultura e a terra são, para essas famílias, bens que incorporam, em si, valores econômicos, culturais e simbólicos. Os juízos conferidos pelas famílias sobre sua própria realidade reforçam os argumentos de que a identidade do irrigante, para ser compreendida, precisa ser contextualizada em face da cultura e da sociabilidade local endógenas. Por isso é importante conhecer, sem julgar e/ou interpretar, como as pessoas se organizam e de que maneira valores como o trabalho, a origem dos indivíduos e o saber acumulado podem comunicar os valores e a ordem moral do grupo. 327

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SOBRE OS AUTORES

Afrânio Raúl Garcia Júnior. Antropólogo, mestre e doutor em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional/UFRJ, mestre de conferências da Escolade Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS em Paris), co-diretor do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo (CRBC/EHESS) Alfredo Wagner Berno de Almeida. Antropólogo, professor visitante PPGSCA-UFAM e pesquisador CNPq-FAPEAM. Beatriz M. A. de Heredia. Doutora em Antropologia, UFRJ; Professora de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ellen Fensterseifer Woortmann. Doutora em Antropologia pela UnB. Professora associada do PPGAS/UnB. Emília Pietrafesa de Godoi. Professora do Departamento de Antropologia da UNICAMP. Diretora-Associada do Centro de Estudos Rurais (CERES/ IFCH/UNICAMP). Doutora em Antropologia pela Universidade de Paris X-Nanterre, França. Eric Sabourin. Sociólogo e antropólogo, CIRAD, Departamento de Meio Ambiente e Sociedade, Unidade Arena, Ação coletiva, mercados e políticas públicas. Pesquisador visitante na UnB, Departamento de Sociologia e Centro de Desenvolvimento Sustentável. José Antônio Magalhães Marinho. Geógrafo, mestre em Planejamento do Desenvolvimento pelo NAEA/UFPA. Maria Dione Carvalho de Moraes. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e Professora Titular de Sociologia da Universidade Federal do Piauí. Marilda Aparecida de Menezes. Unidade Acadêmica de Ciências Sociais, Universidade Federal de Campina Grande. Doutora em Sociologia pela Universidade de Manchester, Inglaterra. 331

Sobre os autores

Patrick Caron. Veterinário e geógrafo, CIRAD, Diretor do Departamento de Meio Aminete e Sociedade, Montpellier, França. Ramonildes Alves Gomes. Professora da UFCG, Unidade Acadêmica de Sociologia e Antropologia/UACS; Doutora em Sociologia pelo PPGS/ UFPE; pesquisadora do Grupo de Agricultura Familiar-GPAF, da Universidade Federal de Campina Grande. Ricardo Scoles. Doutorando em Ecologia Tropical, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. R. Parry Scott. Antropólogo, Departamento de Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco. Coordenador do Núcleo de Pesquisa FAGES –Família, Gênero e Sexualidade, Pesquisador CNPQ. Sueli Pereira Castro. Doutora em Antropologia Social pela FFLCH/USP; professora adjunta do Departamento de Sociologia e Ciência Política/ UFMT; pesquisadora do Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos (NERU).

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SOBRE O LIVRO Formato: 16 x 23 Mancha: 26 x 48,6 paicas Tipologia: StempelSchneidler 10,5/12,6 Papel: Off-set 75 g/m2 (miolo) Supremo 250 g/m2 (capa) 1ª edição: 2009 EQUIPE DE REALIZAÇÃO Edição de Texto Carla Montagner (Copidesque) Renata Gonçalves (Preparação de original) Paula B. P. Mendes (Revisão) Editoração Eletrônica Eduardo Seiji Seki

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Herman Voorwald Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Assessor Editorial Antonio Celso Ferreira Conselho Editorial Acadêmico Cláudio Antonio Rabello Coelho José Roberto Ernandes Luiz Gonzaga Marchezan Maria do Rosário Longo Mortatti Maria Encarnação Beltrão Sposito Mario Fernando Bolognesi Paulo César Corrêa Borges Roberto André Kraenkel Sérgio Vicente Motta Editores-Assistentes Anderson Nobara Arlete Zebber Christiane Gradvohl Colas

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Presidente da República GUILHERME CASSEL Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário DANIEL MAIA Secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento Agrário ROLF HACKBART Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ADONIRAM SANCHES PERACI Secretário de Agricultura Familiar ADHEMAR LOPES DE ALMEIDA Secretário de Reordenamento Agrário JOSÉ HUMBERTO OLIVEIRA Secretário de Desenvolvimento Territorial JOAQUIM CALHEIROS SORIANO Coordenador-geral do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural VINICIUS MACÁRIO Coordenador-executivo do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO (MDA) www.mda.gov.br NÚCLEO DE ESTUDOS AGRÁRIOS E DESENVOLVIMENTO RURAL (NEAD) SBN, Quadra 2, Edifício Sarkis – Bloco D – loja 10 – sala S2 – CEP: 70.040-910 Brasília/DF Telefone: (61) 2020-0189 www.nead.org.br PCT MDA/IICA – Apoio às Políticas e à Participação Social no Desenvolvimento Rural Sustentável

BERNARDO MANÇANO FERNANDES LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS MARIA IGNEZ PAULILO (Orgs.)

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas O campesinato como sujeito político nas décadas de 1950 a 1980 volume 1

© 2009 Editora UNESP Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ F82 v.1 Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas, v.1: o campesinato como sujeito político nas décadas de 1950 a 1980 / Bernardo Mançano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros, Maria Ignez Paulilo (orgs.). – São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. 327p. – (História social do campesinato brasileiro) ISBN 978-85-7139-948-8 (Editora UNESP) ISBN 978-85-60548-49-1 (NEAD) 1. Camponeses – Brasil – História. 2. Camponeses – Brasil – Condições sociais. 3. Camponeses – Brasil – Atividades políticas. 4. Brasil – Condições rurais. 5. Posse da terra – Brasil. 6. Movimentos sociais rurais – Brasil – História. I. Fernandes, Bernardo Mançano. II. Medeiros, Leonilde Servolo de. III. Paulilo, Maria Ignez Silveira. IV. Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural. V. Série. 09-3678.

Editora afiliada:

CDD: 305.5633 CDU: 316.343

História Social do Campesinato no Brasil Conselho Editorial Nacional Membros Membros efetivos Ariovaldo Umbelino de Oliveira (Universidade de São Paulo) Bernardo Mançano Fernandes (UNESP, campus de Presidente Prudente) Clifford Andrew Welch (GVSU & UNESP, campus de Presidente Prudente) Delma Pessanha Neves (Universidade Federal Fluminense) Edgard Malagodi (Universidade Federal de Campina Grande) Emília Pietrafesa de Godói (Universidade Estadual de Campinas) Jean Hebette (Universidade Federal do Pará) Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (Universidade Federal de Pernambuco) Leonilde Servolo de Medeiros (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, CPDA) Márcia Maria Menendes Motta (Universidade Federal Fluminense) Maria de Nazareth Baudel Wanderley (Universidade Federal de Pernambuco) Maria Aparecida de Moraes Silva (UNESP, câmpus de Araraquara) Maria Ignez Paulilo (Universidade Federal de Santa Catarina) Marilda Menezes (Universidade Federal de Campina Grande) Miguel Carter (American University, Washington – DC) Paulo Zarth (Unijuí) Rosa Elizabeth Acevedo Marin (Universidade Federal do Pará) Sueli Pereira Castro (Universidade Federal de Mato Grosso) Wendy Wolford (Yale University) Coordenação Horácio Martins de Carvalho Márcia Motta Paulo Zarth

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO À COLEÇÃO 9 PREFÁCIO 19 INTRODUÇÃO 23 Bernardo Mançano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros e Maria Ignez Paulilo

1 Ação política e atores sociais: posseiros, grileiros e a luta pela terra na Baixada Fluminense 35 Mario Grynszpan

2 Trombas: um ensaio revolucionário 57 Paulo Ribeiro da Cunha

3 O Master e as ocupações de terra no Rio Grande do Sul 71 Cordula Eckert

4 A gênese do sindicalismo rural no Paraná: reflexões sobre as carreiras de dirigentes 93 Osvaldo Heller da Silva

5 Organizações rurais e camponesas no estado do Pará 117 Gutemberg Armando Diniz Guerra

6 Os com-terra e os sem-terra de São Paulo: retratos de uma relação em transição (1946-1996) 139 Clifford Andrew Welch

7 Desmobilização e conflito: relações entre trabalhadores e patrões na agroindústria pernambucana 171 Moacir Palmeira

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Sumário

8 No limiar da resistência: luta pela terra e ambientalismo no Acre 201 Elder Andrade de Paula e Silvio Simione da Silva

9 Campesinato e Igreja na fronteira – o sentido da lei e a força da aliança 223 Neide Esterci

10 Um movimento que marcou época: a Corrente Sindical Lavradores Unidos de Santarém 245 Jean-Pierre Leroy

11 O movimento dos atingidos por barragens: atores, estratégias de luta e conquistas 265 Maria José Reis

12 A luta de classes em dois atos: notas sobre um ciclo de greves 287 Lygia Sigaud

13 “Como uma família”: sindicatos de trabalhadores rurais na Zona da Mata de Minas Gerais, 1984-2000 307 John Comerford

Sobre os autores 325

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APRESENTAÇÃO À COLEÇÃO

Por uma recorrente visão linear e evolutiva dos processos históricos, as formas de vida social tendem a ser pensadas se sucedendo no tempo. Em cada etapa consecutiva, apenas são exaltados seus principais protagonistas, isto é, os protagonistas diretos de suas contradições principais. Os demais atores sociais seriam, em conclusão, os que, por alguma razão, se atrasaram para sair de cena. O campesinato foi freqüentemente visto dessa forma, como um resíduo. No caso particular do Brasil, a esta concepção se acrescenta outra que, tendo como modelo as formas camponesas européias medievais, aqui não reconhece a presença histórica do campesinato. A sociedade brasileira seria então configurada pela polarizada relação senhor–escravo e, posteriormente, capital–trabalho. Ora, nos atuais embates no campo de construção de projetos concorrentes de reordenação social, a condição camponesa vem sendo socialmente reconhecida como uma forma eficaz e legítima de se apropriar de recursos produtivos. O que entendemos por campesinato? São diversas as possibilidades de definição conceitual do termo. Cada disciplina tende a acentuar perspectivas específicas e a destacar um ou outro de seus aspectos constitutivos. Da mesma forma, são diversos os contextos históricos nos quais o campesinato está presente nas sociedades. Todavia, há reconhecimento de princípios mínimos que permitem aos que investem, tanto no campo acadêmico quanto no político, dialogar em torno de reflexões capazes de demonstrar a presença da forma ou condição camponesa, sob a variedade de possibilidades de objetivação ou de situações sociais. Em termos gerais, podemos afirmar que o campesinato, como categoria analítica e histórica, é constituído por poliprodutores, integrados ao jogo de forças sociais do mundo contemporâneo. Para a construção da história social do campesinato no Brasil, a categoria será reconhecida pela produção, em modo e grau variáveis, para o mercado, termo que abrange, guardadas as singularidades inerentes a cada forma, os mercados locais, os mercados 9

Apresentação à coleção

em rede, os nacionais e os internacionais. Se a relação com o mercado é característica distintiva desses produtores (cultivadores, agricultores, extrativistas), as condições dessa produção guardam especificidades que se fundamentam na alocação ou no recrutamento de mão-de-obra familiar. Trata-se do investimento organizativo da condição de existência desses trabalhadores e de seu patrimônio material, produtivo e sociocultural, variável segundo sua capacidade produtiva (composição e tamanho da família, ciclo de vida do grupo doméstico, relação entre composição de unidade de produção e unidade de consumo). Por esses termos, a forma de alocação dos trabalhadores também incorpora referências de gestão produtiva, segundo valores sociais reconhecidos como orientadores das alternativas de reprodução familiar, condição da qual decorrem modos de gerir a herança, a sucessão, a socialização dos filhos, a construção de diferenciados projetos de inserção das gerações. O campesinato emerge associadamente ao processo de seu reconhecimento político, ora negativo, ora positivo. Por tais circunstâncias, a questão política, constituída para o reconhecimento social, enquadrou tal segmento de produtores sob a perspectiva de sua capacidade adaptativa a diferentes formas econômicas dominantes, ora pensadas pela permanência, ora por seu imediato ou gradual desaparecimento. Como em muitos outros casos de enquadramento social e político, uma categoria de auto-identificação, portanto contextual, produto de investimentos de grupos específicos, desloca-se, sob empréstimo e (re)semantização, para os campos político e acadêmico e, nesses universos sociais, sob o caráter de signo de comportamentos especialmente hétero-atribuídos ou sob o caráter de conceito, apresenta-se como generalizável. Vários autores, retratando a coexistência do campesinato em formações socioeconômicas diversas, já destacaram que o reconhecimento dessa nominação, atribuída para efeitos de investimentos políticos ou para reconhecimento de características comuns, só pode ser compreendido como conceito, cujos significados definem princípios gerais abstratos, motivo pelo qual podem iluminar a compreensão de tantos casos particulares. Para que a forma camponesa seja reconhecida, não basta considerar a especificidade da organização interna à unidade de produção e à família trabalhadora e gestora dos meios de produção alocados. Todavia, essa distinção é analiticamente fundamental para diferenciar os modos de existência dos camponeses dos de outros trabalhadores (urbanos e rurais), que não operam produtivamente sob tais princípios. Percebendo-se por essa distinção de modos de existência, muitos deles se encontram mobilizados politicamente para lutar pela objetivação daquela condição de vida e produção (camponesa). Em quaisquer das alternativas, impõe-se a compreensão mais ampla do mundo cultural, político, econômico e social em que o camponês produz e se reproduz. Da coexistência com outros agentes sociais, o camponês se 10

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

constitui como categoria política, reconhecendo-se pela possibilidade de referência identitária e de organização social, isto é, em luta por objetivos comuns ou, mediante a luta, tornados comuns e projetivos. A esse respeito, a construção da história social do campesinato, como de outras categorias socioeconômicas, deve romper com a primazia do econômico e privilegiar os aspectos ligados à cultura. Ao incorporar as múltiplas dimensões da prática dos agentes, destacamos o papel da experiência na compreensão e explicitação política das contradições do processo histórico. Essas contradições revelam conflitos entre normas e regras que referenciam modos distintos de viver, em plano local ou ocupacional, colocando em questão os meios que institucionalizam formas de dominação da sociedade inclusiva. Tais postulados serão demonstrados nos diversos artigos desta coletânea, voltada para registros da história social do campesinato brasileiro. A prática faz aparecer uma infinidade de possibilidades e arranjos, vividos até mesmo por um mesmo grupo. Quanto mais se avança na pesquisa e no reconhecimento da organização política dos que objetivam a condição camponesa, mais se consolidam a importância e a amplitude do número de agricultores, coletores, extrativistas, ribeirinhos e tantos outros, nessa posição social ou que investem para essa conquista. A diversidade da condição camponesa por nós considerada inclui os proprietários e os posseiros de terras públicas e privadas; os extrativistas que usufruem os recursos naturais como povos das florestas, agroextrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais e catadores de caranguejos que agregam atividade agrícola, castanheiros, quebradeiras de coco-babaçu, açaizeiros; os que usufruem os fundos de pasto até os pequenos arrendatários nãocapitalistas, os parceiros, os foreiros e os que usufruem a terra por cessão; quilombolas e parcelas dos povos indígenas que se integram a mercados; os serranos, os caboclos e os colonos assim como os povos das fronteiras no sul do país; os agricultores familiares mais especializados, integrados aos modernos mercados, e os novos poliprodutores resultantes dos assentamentos de reforma agrária. No caso da formação da sociedade brasileira, formas camponesas coexistem com outros modos de produzir, que mantêm relações de interdependência, fundamentais à reprodução social nas condições hierárquicas dominantes. Assim, a título de exemplo, ao lado ou no interior das grandes fazendas de produção de cana-de-açúcar, algodão e café, havia a incorporação de formas de imobilização de força de trabalho ou de atração de trabalho livre e relativamente autônomo, fundamentadas na imposição técnica do uso de trabalho basicamente manual e de trabalhadores familiares, isto é, membros da família do trabalhador alocado como responsável pela equipe. Esses fundamentais agentes camponeses agricultores apareciam sob designação de colonos, arrendatários, parceiros, agregados, moradores e até sitiantes, termos que não podem ser compreendidos sem a articulação 11

Apresentação à coleção

com a grande produção agroindustrial e pastoril. Se recuarmos um pouco no tempo, veremos que, ao lado de donatários e sesmeiros, apareciam os foreiros, os posseiros ou – designando a condição de coadjuvante menos valorizada nesse sistema de posições hierárquicas – os intrusos ou invasores, os posseiros criminosos etc. Os textos da história geral do Brasil, nos capítulos que exaltam os feitos dos agentes envolvidos nos reconhecidos movimentos de entradas e bandeiras, trazem à tona a formação de pequenos povoados de agricultores relativamente autárquicos. Posteriormente, tais agentes produtivos serão celebrados pelo papel no abastecimento dos tropeiros que deslocavam metais e pedras preciosas, mas também outros produtos passíveis de exportação e de abastecimento da população das cidades ou das vilas portuárias. Desse modo, o campesinato, forma política e acadêmica de reconhecimento conceitual de produtores familiares, sempre se constituiu, sob modalidades e intensidades distintas, um ator social da história do Brasil. Em todas as expressões de suas lutas sociais, seja de conquista de espaço e reconhecimento, seja de resistência às ameaças de destruição, ao longo do tempo e em espaços diferenciados, prevalece um traço comum que as define como lutas pela condição de protagonistas dos processos sociais. Para escrever sobre essa história é preciso, portanto, antes de tudo, refletir sobre a impositiva produção dessa “amnésia social” ou dessa perspectiva unidimensional e essencializada, que apaga a presença do campesinato e oculta ou minimiza os movimentos sociais dos camponeses brasileiros, consagrando – com tradição inventada – a noção do caráter cordato e pacífico do homem do campo. Ou fazendo emergir a construção de uma caricatura esgarçada do pobre coitado, isolado em grande solidão e distanciamento da cultura oficial, analfabeto, mal-alimentado. Ora, tais traços aviltantes, para olhares que os tomassem como expressivos da condição de vida e não do sujeito social, revelavam as bases da exploração e da submissão em que viviam, seja como agentes fundamentais ou complementares do processo produtivo da atividade agroindustrial e exportadora. Estimulados a coexistirem internamente, ao lado ou ao largo da grande produção, os agentes constituídos na condição camponesa não tinham reconhecidas suas formas de apropriação dos recursos produtivos. Assim sendo, são recorrentemente questionados e obrigados a se deslocar para se reconstituir, sob as mesmas condições, em áreas novamente periféricas. Da mesma forma, em outras circunstâncias, são submetidos a regras de coexistência consentidas e por vezes imediatamente questionadas, dada a exacerbação das posições hierarquizadas ou das desigualdades inerentes às condições de coexistência. A presença dos camponeses é, pois, postulada pela ambigüidade e desqualificação, quando os recursos por eles apropriados se tornavam objeto de cobiça. Entendemos, no entanto, que, sob processos relativamente 12

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

equivalentes, esses agentes elaboraram, como traço comum de sua presença social, projetos de existência fundamentados em regras legítimas e legais, princípios fundamentais para a construção de um éthos e de regras éticas, orientadores de seu modo de existência e coexistência. Sob tais circunstâncias, a constituição da condição camponesa torna o agente que lhe corresponde o portador de uma percepção de justiça, entendida aqui não como uma abstração teórica sobre o direito aos recursos produtivos, e sim como uma experiência baseada em modos de coexistência: sob formas de comunidade camponesa; na labuta diária pela sobrevivência; na relação com a natureza; e nas práticas costumeiras para a manutenção e a reprodução de um modo de vida compatível com a ordem social, institucionalizada por aqueles que se colocam socialmente como seus opressores. Levando em consideração o conjunto de fatores que vimos destacando, podemos caracterizar alguns elementos constitutivos de certa tradição do campesinato brasileiro, isto é, como expressão da existência permitida sob determinadas constrições e provisoriedades e sob certos modos de negociação política. Essa negociação não exclui resistências, imposições contratuais, legais ou consuetudinárias, ou questionamentos jurídicos, que revelam e reafirmam a capacidade de adaptação às condições da produção econômica dominante. Menos do que um campesinato de constituição tradicional, no sentido da profundidade temporal da construção de um patrimônio material e familiar, vemos se institucionalizar, como elemento distintivo, um patrimônio cultural inscrito nas estratégias do aprendizado da mobilidade social e espacial. Estratégias que visam, entre outros objetivos, à busca do acesso aos recursos produtivos para a reprodução familiar e a exploração de alternativas, oferecidas pelas experiências particulares ou oficiais de incorporação de áreas improdutivas ou fracamente integradas aos mercados. Os camponeses instauraram, na formação social brasileira, em situações diversas e singulares e mediante resistências de intensidades variadas, uma forma de acesso livre e autônomo aos recursos da terra, da floresta e das águas, cuja legitimidade é por eles reafirmada no tempo. Eles investiram na legitimidade desses mecanismos de acesso e apropriação, pela demonstração do valor de modos de vida decorrentes da forma de existência em vida familiar, vicinal e comunitária. A produção estrito senso se encontra, assim, articulada aos valores da sociabilidade e da reprodução da família, do parentesco, da vizinhança e da construção política de um “nós” que se contrapõe ou se reafirma por projetos comuns de existência e coexistência sociais. O modo de vida, assim estilizado para valorizar formas de apropriação, redistribuição e consumo de bens materiais e sociais, se apresenta, de fato, como um valor de referência, moralidade que se contrapõe aos modos de exploração e de desqualificação, que também foram sendo reproduzidos no decorrer da existência da posição camponesa na sociedade brasileira. 13

Apresentação à coleção

As formas exacerbadas de existência sob desigualdades socioeconômicas se expressam, sobretudo, na exploração da força de trabalho coletiva dos membros da família e na submissão aos intermediários da comercialização, que se associam a outros agentes dominantes para produzir um endividamento antecipado e expropriador. Essas formas de subordinação, que põem em questão as possibilidades de reprodução da condição camponesa, contrapõem-se à avaliação de perenizadas experiências positivas de construção da condição camponesa. Um exemplo de experiências positivas é a institucionalizada pelos sitiantes, dotados de autonomia para se agregarem por vida coletiva em bairros rurais. No contexto de lutas sociais, os trabalhadores foram construindo um sistema de crenças partilhadas e inscritas em seu cotidiano de lutas pela sobrevivência e reprodução social. Essas lutas são orientadas pela definição do acesso aos recursos produtivos, de forma legal e autônoma, como fator fundamental para sua constituição como agente produtivo imediato, isto é, contraposto ao cativo ou subjugado no interior das fazendas e, por tal razão, dispondo de relativa autonomia. Nos termos dessa tradição, a liberdade é um valor para expandir uma potencialidade, ou seja, capacidade para projetar o futuro para os filhos e para socialmente se valorizar como portador de dignidade social. Na construção da formação social brasileira, o modo de existir reconhecido pela forma camponesa, menos que um peso da tradição da estabilidade e de longas genealogias, como ocorre, por exemplo, em formações sociais européias, é uma idéia-valor, orientadora de condutas e de modos de agregação familiar ou grupal. Na qualidade de valor, é um legado transmitido entre gerações, reatualizado e contextualizado a cada nova geração que investe nessa adesão política. O peso desse legado, quando não compreendido, leva aos estranhamentos muito comuns em relação à persistência da luta pelo acesso aos recursos produtivos e mesmo em relação ao deslocamento de trabalhadores definidos como urbanos, que engrossam movimentos de sua conquista. As possibilidades de existência que a condição camponesa permite vão se contrapor, em parte por equivalência comparativa, às condições de exploração de trabalhadores da indústria, do comércio e de serviços. Esses traços, sempre presentes porque realimentados como um legado de memórias familiares e coletivas, vão atribuir sentido às constantes mobilidades de trabalhadores. Os deslocamentos justificam-se pela busca de espaços onde haja oportunidade de pôr em prática modos de produzir e de existência, desde que fundamentados pela gestão autônoma dos fatores produtivos, das condições e produtos do trabalho e da orientação produtiva. Levando em conta tais elementos, definidos como constitutivos de uma tradição e alargando a compreensão da diversidade de situações, reafirmamos a presença do campesinato como constitutiva de toda a história do Brasil. Tais produtores estiveram vinculados à exploração colonial, 14

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

integrando-se a mercados locais ou a distância; reafirmaram-se como posição desejada no decorrer da transição do trabalho escravo para o trabalho livre; abasteceram os processos de agroindustrialização de produtos destinados à exportação; e, entre outras tantas situações, por mais de um século, vêm ocupando a Amazônia. Atualmente, apresentam-se como um dos principais atores da cena política, constituída para tornar possível a construção de sociedade erguida sobre bases mais igualitárias, capazes, então, de fundamentar os princípios democráticos de coexistência social e política. Portanto, as negociações em torno das alternativas de ocupação do espaço físico e social marcaram e impregnaram a proposição de modos de vida orientados por valores cuja elaboração tornou possível a legitimidade da coexistência política e cultural. Modos de vida que também reafirmam o direito à luta pela autonomia, emblematizada pela célebre referência à vida na fartura. Ora, tudo isso, relembramos, fora construído no contexto de imposição de formas de dominação objetivadas com base na grande produção. Por esse motivo, a vida segundo a lógica expropriatória objetivada na grande propriedade foi concebida como destruidora da dignidade social. A honra estava (assim e inclusive) pautada pela defesa do acesso à alimentação, todavia em condições socialmente concebidas como adequadas à reprodução saudável do trabalhador e dos membros de sua família. Dessa forma, no Brasil, os produtores agregados pela forma de organização camponesa estão presentes como atores sociais que participaram e participam da construção da sociedade nacional. Esse reconhecimento não se funda tão-somente em uma dimensão politizada de defesa dessa visibilidade social. Ele também se explica pelos princípios de constituição das formas hegemônicas de organização da produção social. Destacaremos três dimensões desse protagonismo. Em primeiro lugar, o campesinato representa um pólo de uma das mais importantes contradições do capital no Brasil, que consiste em sua incapacidade de se “libertar” da propriedade fundiária. O significado que a propriedade da terra tem até hoje, como um elemento que ao mesmo tempo torna viável e fragiliza a reprodução do capital, gera uma polarização (de classe) entre o proprietário concentrador de terras (terras improdutivas) e aquele que não tem terras suficientes. Desse fato decorrem duas conseqüências principais. Por um lado, essa contradição não é residual na sociedade brasileira, constituindo-se um dos pilares de sua estrutura social; por outro, a principal luta dos camponeses é pela construção de seu patrimônio, condição sine qua non de sua existência. Essa luta foi e continua sendo muito forte em diversos momentos e sob as mais variadas formas. Ela tem um caráter eminentemente político e corresponde ao que se costuma chamar o “movimento camponês”. Assim, a luta pela terra e pelo acesso a outros recursos produtivos não assume apenas a dimensão mais visível das lutas camponesas. Ela se processa igualmente em um nível menos perceptível, por outras formas de resistência 15

Apresentação à coleção

que dizem respeito às estratégias implementadas pelos camponeses para trabalhar, mesmo em condições tão adversas, e assegurar a reprodução da família. Essa dimensão tem, de fato, menor reconhecimento pela sociedade e mesmo na academia. Ao se afirmar historicamente essa dimensão, é importante ressaltar a capacidade dos camponeses de formular um projeto de vida, de resistir às circunstâncias nas quais estão inseridos e de construir uma forma de integração à sociedade. Essas são práticas que têm um caráter inovador ou que revelam grande capacidade de adaptação e de conquistas de espaços sociais que lhes são historicamente inacessíveis. Consideramos necessário registrar e reconhecer as vitórias, por mais invisíveis que sejam. Por último, há uma terceira dimensão, também pouco reconhecida, até mesmo entre os acadêmicos, que consiste na valorização da forma de produzir do camponês. Esta se traduz pela adoção de práticas produtivas (diversificação, intensificação etc.), formas de uso da terra, relações com os recursos naturais etc. Formam-se, assim, os contornos de um saber específico que se produz e se reproduz contextualmente. É claro que o campesinato não se esgota na dimensão de um métier profissional, nem a ela corresponde um modelo imutável, incapaz de assimilar mudanças, mas é imprescindível para que se possa compreender seu lugar nas sociedades modernas. Sua competência, na melhor das hipóteses, é um trunfo para o desenvolvimento “de uma outra agricultura” ou para a perseguição da sustentabilidade ambiental e social como valor. E, na pior das hipóteses (para não idealizar a realidade), um potencial que poderia ser estimulado na mesma direção. Não é sem conseqüência que sua existência seja hoje tão exaltada como um dos pilares da luta pela reconstituição dos inerentes princípios de reprodução da natureza, tão subsumidos que estiveram e continuam estando a uma racionalidade técnica, em certos casos exagerada pela crença em uma artificialização dos recursos naturais reproduzidos em laboratórios e empresas industriais. Ora, os princípios de constituição e expansão do capitalismo desconhecem e desqualificam essa competência. Do ponto de vista político, a negação dessa dimensão, tanto à direita (que defende a grande propriedade como a única forma moderna ou modernizável) quanto à esquerda (que terminou enfatizando apenas a dimensão política da luta pela terra), tem como conseqüência a negação do camponês como agricultor. As políticas agrícolas chamadas “compensatórias” só reforçam a visão discriminadora. Em conclusão, reiteramos, por um lado, a universalidade da presença do campesinato, que abarca os diversos espaços e os diferenciados tempos. E também, por outro, a variedade de existências contextuais, visto que essa variedade só indica a valorizada adaptabilidade dos agentes e dos princípios abrangentes de constituição da forma camponesa. Portanto, mesmo que corresponda à revalorização de uma tradição (patrimônio de valores institucionalizados nas memórias e na projeção social), a reprodução do campesinato nas sociedades contemporâneas é um fato social do mundo 16

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

moderno, e não resquício do passado. Por essa perspectiva, ultrapassa-se a velha e surrada concepção unilinear da inexorável decomposição do campesinato. Como os processos históricos têm demonstrado, ela não é tendência geral ou lei inevitável. Em vez dessa concepção, que, reafirmando a substituição das classes fundamentais, augura (e até vaticina) o fim do campesinato, escolhemos pensar e registrar as múltiplas alternativas, resultado de conquistas e resistências de atores sociais que se referenciam a um modo de produzir e viver coexistente com um mundo moderno. Entrementes, é nesse mesmo mundo, cujos analistas vêm acenando (e, por que não, também vaticinando) com o desemprego em massa como princípio de constituição econômica, em que a diversidade cultural é reafirmada para fazer frente a uma vangloriada homogeneização política e cultural, que os camponeses se reorganizam em luta. Por essa conduta clamam exatamente pela manutenção da autonomia relativa, condição que o controle dos fatores de produção e da gestão do trabalho pode oferecer. Conselho Editorial

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PREFÁCIO

Apresentamos aos leitores – especialmente aos militantes camponeses, aos interessados e aos estudiosos da questão camponesa no Brasil – uma obra que é o resultado de um fantástico esforço intelectual e coletivo. A elaboração da História Social do Campesinato no Brasil envolveu grande número de estudiosos e pesquisadores dos mais variados pontos do país, num esforço conjunto, planejado e articulado, que resulta agora na publicação de dez volumes retratando parte da história, resistências, lutas, expressões, diversidades, utopias, teorias explicativas, enfim, as várias faces e a trajetória histórica do campesinato brasileiro. A idéia de organizar uma História Social do Campesinato no Brasil aflorou no fim de 2003, durante os estudos e os debates para a elaboração de estratégias de desenvolvimento do campesinato no Brasil que vinham sendo realizados desde meados desse ano por iniciativa do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), com envolvimento, em seguida, da Via Campesina Brasil, composta, além de pelo próprio MPA, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), pela Pastoral da Juventude Rural (PJR), pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab). Essa idéia foi ganhando corpo quando se envolveram, primeiro, o pesquisador Horácio Martins de Carvalho e os pesquisadores Delma Pessanha Neves, Márcia Maria Menendes Motta e Carlos Walter Porto-Gonçalvez, que decidiram, em reunião nas dependências da Universidade Federal Fluminense (UFF), no início de 2004, com dirigentes da Via Campesina, lançar o desafio a outros tantos que se dedicam ao tema no Brasil. O resultado foi o engajamento de grande número de pesquisadores, todos contribuindo de maneira voluntária. Foram consultadas cerca de duas centenas de pesquisadores, professores e técnicos para verificar se a pretensão de elaborar uma História Social do 19

Prefácio

Campesinato no Brasil tinha sentido e pertinência. A idéia foi generosamente aceita, um Conselho Editorial foi constituído, muitas reuniões foram realizadas, os textos foram redigidos e o resultado é a publicação destes dez volumes da Coleção História Social do Campesinato no Brasil. Nesta Coleção apresentamos diversas leituras sobre a história social do campesinato no Brasil. Nossa preocupação com os estudos sobre o campesinato se explica pelo fato de, na última década, ter havido um avanço dos trabalhos que promoveram os métodos do ajuste estrutural do campo às políticas neoliberais. Nessa perspectiva, a realidade do campo foi parcializada de acordo com os interesses das políticas das agências multilaterais que passaram a financiar fortemente a pesquisa para o desenvolvimento da agricultura. Esses interesses pautaram, em grande medida, as pesquisas das universidades e determinaram os métodos e as metodologias de pesquisa com base em um referencial teórico de consenso para o desenvolvimento da agricultura capitalista. Desse ponto de vista, o campesinato tornou-se um objeto que necessita se adequar ao ajuste estrutural para que uma pequena parte possa sobreviver ao intenso processo de exploração e expropriação do capitalismo. Poucos foram os grupos de pesquisa que mantiveram uma conduta autônoma e crítica a essa visão de mundo em que o capitalismo é compreendido como totalidade e fim de todas as coisas. Nesse princípio de século, o conhecimento é ainda mais relevante como condição de resistência, interpretação e explicação dos processos socioterritoriais. Portanto, controlá-lo, determiná-lo, limitá-lo, ajustá-lo e regulá-lo são condições de dominação. Para criar um espaço em que se possa pensar o campesinato na história a partir de sua diversidade de experiências e lutas, a Via Campesina estendeu o convite a pesquisadores de várias áreas do conhecimento. Quase uma centena de cientistas responderam positivamente à nossa proposta de criar uma coleção sobre a história do campesinato brasileiro. Igualmente importante foi a resposta positiva da maior parte dos estudiosos convidada para publicar seus artigos, contribuindo com uma leitura do campesinato como sujeito histórico. O campesinato é um dos principais protagonistas da história da humanidade. Todavia, por numerosas vezes, em diversas situações, foram empreendidos esforços para apagá-lo da história. Esses apagamentos ocorrem de tempos em tempos e de duas maneiras: pela execução de políticas para expropriá-lo de seus territórios e pela formulação de teorias para excluí-lo da história, atribuindo-lhe outros nomes a fim de regular sua rebeldia. Por tudo isso, ao publicar esta importante obra, em nosso entender, de fôlego e profundidade, queremos fazer quatro singelos convites. 20

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Convite à Leitura Esta obra merece ser lida pela riqueza de informações, pela abrangência com que aborda o tema e pela importância da história social do campesinato para compreender o Brasil. Convite ao Estudo Além da mera leitura, é uma obra que deve ser estudada. É preciso que sobre ela nos debrucemos e reflitamos para conhecer esse tema em profundidade, quer em escolas, seminários, grupos de estudo, quer individualmente. Esta Coleção é um desafio, pois retrata uma realidade que, aqueles que estiverem comprometidos em entender o Brasil para transformá-lo, precisam conhecer profundamente. Convite à Pesquisa Esta obra, composta de dez volumes, é fruto e resultado de muita disciplinada e dedicada pesquisa. É, portanto, desafio a mais investigações e a que outros mais se dediquem a esses temas. Embora uma obra vasta, com certeza mais abre do que encerra perspectivas de novos estudos, sob novos ângulos, sobre aspectos insuficientemente abordados, sobre realidades e histórias não visibilizadas, com enfoques diferenciados. Há muito que desentranhar da rica e variada história social do campesinato brasileiro, e os autores desta obra sentir-se-ão imensamente realizados se muitas, rigorosas, profundas e novas pesquisas surgirem estimuladas por essa sua importante iniciativa. Convite ao Debate Esta não é uma obra de doutrina. E mesmo as doutrinas devem ser expostas ao debate e ao contraditório. Quanto mais uma obra sobre a história. Convidamos ao debate dos textos, mas, além disso, ao debate sobre o sujeito social do qual a Coleção se ocupa: o campesinato e sua trajetória ao longo da história do Brasil. E que esse não seja um debate estéril ou esterilizante que se perde nos meandros da polêmica pela polêmica, mas que gere ações na sociedade, nas academias, nos centros de pesquisas e nas políticas de Estado em relação aos camponeses e ao mundo que os circunda e no qual se fazem sujeitos históricos. A Via Campesina do Brasil reconhece e agradece profundamente o trabalho árduo e voluntário dos membros do Conselho Editorial e de todos os envolvidos no projeto. Sem o desprendimento e o zelo desses professores, sem essa esperança renovada a cada dia pelas mais distintas formas e motivos, sem a acuidade acadêmica, o cuidado político e a generosidade 21

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de todos os envolvidos não teríamos alcançado os resultados previstos. De modo especial nosso reconhecimento ao professor Horácio Martins de Carvalho. Agradecemos também ao Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead), do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Ao promover estudos e pesquisas sobre o universo rural brasileiro o Nead viabilizou, com a Editora da UNESP, a publicação desta Coleção. A Via Campesina experimenta a satisfação do dever cumprido por ter participado desta importante iniciativa, desejando que se reproduza, se multiplique e gere frutos de consciência, organização e lutas nas bases camponesas em todo o território nacional. Via Campesina do Brasil agosto de 2008.

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INTRODUÇÃO

O tomo da coleção História Social do Campesinato no Brasil, intitulado Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas, trata das manifestações políticas do campesinato brasileiro, tomando como ponto de partida o período que se inicia com a redemocratização do país em 1945, após oito anos de regime ditatorial, configurados no chamado Estado Novo. No presente volume, o primeiro, apresentamos alguns artigos que permitem dar um panorama, ainda que parcial, do que foram as lutas camponesas desde o final da década de 1940 até meados dos anos 80. No volume seguinte, trataremos de eventos mais recentes. Toda periodização traz consigo sérios riscos de apagar o passado e inaugurar um novo tempo, no qual são ressaltadas as rupturas, e pouca importância acaba sendo dada às continuidades. Esse risco foi enfaticamente apontado pelo historiador inglês Edward Thompson, quando, na sua análise sobre a formação da classe operária inglesa na passagem do século XVIII para o XIX, afirma que “é muito freqüente, visto que toda narrativa tem que começar em algum ponto, que vejamos apenas as coisas novas” (Thompson, 1987, p.23). Por essa razão, iniciamos explicitando alguns critérios que marcaram o recorte temporal adotado, de forma a tentar minimizar os efeitos que ele possa ter na compreensão da história das lutas camponesas em nosso país. Seguindo as pistas que aquele historiador levanta, referindo-se às opções analíticas que fez, também é possível constatar, em nossa história, um forte elemento de continuidade em relação ao passado. Como ele afirma em seu estudo, perpetuam-se aspirações, temores, tensões, mas que se revelam “num novo contexto, com nova linguagem e argumentos e num equilíbrio de forças modificado” (Thompson, 1987 p.23). O período de nossa história que se inicia em 1945 tem como uma de suas marcas o esforço de articulação das lutas no campo com outras forças políticas nacionais. É a partir dele que começa a ser produzida uma nova linguagem, na qual o campesinato passa a figurar como sujeito político importante e suas demandas passam a ser articuladas a um debate sobre 23

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os destinos da nação. É também o momento em que novas formas de organização e mediação se constituem ou em que, já constituídas de há muito, passam a voltar-se para uma ação mais intensa junto aos trabalhadores do campo. Grande parte dos artigos apresentados neste volume analisa justamente esse processo, a partir de estudos sobre conflitos singulares, que ocorrem em diferentes pontos do país. Como os demais volumes da presente coleção mostram sobejamente, foram diversas as formas que o trabalho no campo assumiu ao longo de nossa história (como foreiro, morador, colono, parceiro nas grandes fazendas; como produtores autônomos, com vínculos frouxos com o mercado e diferentes níveis de formalização do acesso à terra, por meio de posse, arrendamento ou propriedade; como produtores extrativistas; e mais uma imensa gama de variações, impossível de ser aqui enumerada). Ao longo do tempo, também foram diversos os seus modos de aparecer no espaço público e diversos os antagonistas e demandas apresentados. No entanto, uma característica recorrente desse longo percurso é o fato de serem grupos e lutas localizadas, no sentido de que não desenvolveram articulações capazes de produzir algo que se aproximasse da construção de uma linguagem de classe. Esse padrão começou a sofrer mudanças e a ser lentamente rompido no pós-guerra, em decorrência de inúmeros fatores que se interpenetram e se complementam. Um deles foi o fato de que, na segunda metade do século XX, diferentes formas de conflito existentes no meio rural brasileiro passaram a unificar-se, por meio da produção e da difusão de concepções que buscavam aglutinar essas lutas ao redor de projetos de mudança e bandeiras comuns. Para tanto, foi central, num primeiro momento, a mediação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que procurava estar presente nas regiões de conflito, dando apoio político e jurídico aos trabalhadores; editando um jornal, que socializava as notícias das lutas; realizando encontros e congressos, que produziam auto-reconhecimento e delimitação de adversários (Medeiros, 1995). Ao mesmo tempo, esses eventos consolidavam demandas provenientes das situações particulares e as articulavam com bandeiras de luta mais amplas, que se sintetizaram nas reivindicações por transformações fundiárias, que lhes garantissem acesso à terra, e por direitos trabalhistas. Foi por meio dessa mediação política que os pontuais e dispersos, porém recorrentes, conflitos no campo ganharam visibilidade, e foram dados os primeiros passos na direção da constituição de uma identidade política (camponês) em contraposição às linguagens locais que identificavam os trabalhadores do campo, como colonos, moradores, parceiros, meeiros etc. (Martins, 1981). Foi ainda por meio dela que fazendeiros, senhores de engenho, usineiros etc. começaram também a ser unificados por intermédio das categorias latifúndio e latifundiários que, como apontam Palmeira (1971) e Novaes (1997), designavam mais do que controle sobre uma grande extensão 24

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

de terra e passavam a conotar relações de poder e autoridade, exploração e violência. É nesse âmbito também que a demanda por “reforma agrária” se torna a bandeira política que sintetiza o desejo de ter acesso à terra, de eliminar do “latifúndio” e de ver esse desejo reconhecido legalmente e incorporado quer nas políticas públicas, quer no corpo legal do país. Ao trabalho de organização do Partido Comunista em diversas regiões brasileiras se acrescentou o da Igreja Católica que, desde os anos 50, mas em especial no início da década de 1960, desenvolveu uma intensa atividade de evangelização dos trabalhadores do campo. Ao mesmo tempo, reconhecia-os como portadores de direitos e buscava afastá-los do “perigo comunista”. Aproximando-se de uma nova forma dos trabalhadores, formando lideranças ao mesmo tempo religiosas e políticas, criando escolas radiofônicas, a Igreja Católica teve um papel central na consolidação de alguns valores (em especial os relacionados à crítica ao comunismo) e na difusão de outros, como o de que os trabalhadores deveriam se organizar e buscar seus direitos.1 Um outro elemento que caracteriza o novo contexto é o fato de que ele trouxe consigo um debate em torno do “desenvolvimento”, palavra polissêmica, que ganhava significados tão diversos e contrapostos como, entre outros, crescimento econômico; melhoria das condições de vida da população; necessidade de conter o êxodo rural; transformações estruturais profundas, que permitissem a superação do modo de produção capitalista. Em todas as diferentes matrizes de projetos de “desenvolvimento”, que então se constituíram, havia também um debate sobre o significado da agricultura e seu lugar nesse processo (e, note-se, o que estava em discussão era a agricultura e não o rural, ou seja, tratava-se de uma ênfase nas dimensões produtivas). Assim, falava-se não só em atraso estrutural, em necessidade de modernização tecnológica e difusão de assistência técnica, em crédito para apoio à produção, na importância da ampliação da educação no meio rural, mas, também, na necessidade de transformações na estrutura fundiária, por meio de uma reforma agrária. Este último termo ganhava vários sentidos, relacionados às concepções de “desenvolvimento” que estavam em disputa: para alguns era condição para a expansão do capitalismo no campo, com a destruição do “latifúndio” e sua transformação em unidades camponesas de produção, capazes de dinamizar o mercado interno para as indústrias nascentes; para outros, era o primeiro passo para uma revolução socialista, por meio da quebra do poder das forças mais atrasadas, consideradas como “restos feudais”. Poderia ainda significar um instrumento capaz de refrear os conflitos no campo, por meio de intervenções localizadas, ou um caminho 1

Uma análise cuidadosa desse processo de mudança no padrão da ação da Igreja Católica, tendo com referência empírica o estado da Paraíba, é apresentada por Regina Novaes (NOVAES, 1997).

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para a criação de uma classe média rural, que pudesse servir como fator de estabilização política e amortecimento para eventuais crises. Não é nosso objetivo aqui discutir as concepções que orientavam as diferentes percepções do que deveria ser o “desenvolvimento” (ou a “revolução”, como preferiam alguns), mas tão somente apontar que o debate potencializava as lutas no campo e, por sua vez, também era pautado por elas. No nosso modo de entender, esse não era um debate apenas teórico, e as várias possibilidades, vinculadas aos projetos políticos diferenciados, só ganhavam sua razão de ser e expressão política porque os conflitos no campo se articulavam e conquistavam visibilidade, explicitando demandas coletivas e uma espécie de “economia moral” das populações rurais (Thompson, 1997). Essas noções se amalgamavam com a legislação existente, na qual buscavam suporte, e com a atualização política de concepções religiosas, legitimando reivindicações. No início dos anos 60, Francisco Julião, principal porta-voz das Ligas Camponesas do Nordeste, por exemplo, afirmava que seus instrumentos de trabalho eram a Bíblia e o Código Civil (Julião, 1962). Tanto ele como os militantes do Partido Comunista faziam dos advogados que aderiam à causa dos camponeses mediadores essenciais dos conflitos em curso. Da mesma forma, ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980, como vários artigos que integram a presente coletânea demonstram, foi comum a presença de segmentos da Igreja Católica (em alguns casos também da Luterana) apoiando as lutas, não só materialmente, mas também fornecendo justificativas religiosas para as demandas que se desenvolviam e se expressavam na esfera política. Vários dos artigos incluídos no presente volume apontam para a dimensão nacional que as lutas camponesas assumiram já a partir dos anos 50/60, e mostram sua diversidade, não só no que se refere aos segmentos sociais que as impulsionavam, mas também no que diz respeito às mediações que as tornavam visíveis e as situavam no campo de disputa extralocal. Cada um dos trabalhos aqui apresentados recobre uma situação particular e é no seu entrecruzar que se vislumbra a dinâmica de uma história que ainda está por ser resgatada nas suas múltiplas facetas, que ainda necessita ser indagada e aprofundada. Por meio deles, também fica evidente a presença de diferentes formas de violência, da grilagem de terras, da ação do Estado, ora apoiando as lutas, ora criando instrumentos para contê-las, ou mesmo reprimindo-as e criminalizando-as. Do ponto de vista metodológico e das questões eleitas pelos que contribuíram para a presente coletânea, como centrais para constituir o fio condutor das diferentes narrativas que aqui se apresentam, verifica-se também um amplo espectro de abordagens. Alguns autores enfatizam o campo de disputa em que as lutas se desenvolveram e ganharam sentido, outros a presença das mediações partidárias, sindicais ou religiosas, dando destaque 26

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

mais ao papel delas do que às formas assumidas pelos conflitos; outros ainda destacam a prática dos trabalhadores como elementos centrais desse processo de constituição do campesinato como ator político. Efetivamente, procurou-se, para além de recuperar uma memória das lutas, mostrar as diferentes possibilidades analíticas de reconstruir e explicitar essa memória. Ao longo deste livro é possível constatar também diferentes formas pelas quais se manifestou a questão agrária, e obter instrumentos relevantes para a sua compreensão tanto no período que ele abrange como das heranças que se fazem presentes no debate atual. Os três primeiros artigos aqui incluídos voltam-se especificamente para o período que antecede o golpe militar e tratam de conflitos menos conhecidos, pois que menos abordados pela literatura corrente.2 O primeiro deles, de autoria de Mario Grynszpan, embora referido ao estado do Rio de Janeiro, é uma referência para o entendimento das lutas camponesas de resistência, que aconteciam em todas as regiões do país. Partindo do pressuposto de que a ação política é central para a conformação dos grupos sociais, o autor mostra como, no estado do Rio de Janeiro, os despejos de lavradores ganharam expressão, na Baixada da Guanabara, não exatamente pela quantidade de famílias que estavam sendo despejadas, mas porque foi a partir daquela região que começaram a se organizar, resistindo às expulsões. O artigo mostra que as denúncias de ameaças de despejo, que vinham à luz pelos jornais, em especial pelos que, por sua posição política, davam algum tipo de suporte às lutas, eram um dos meios utilizados pelas lideranças camponesas na luta pela permanência na terra. Ou seja, eram a própria resistência e as denúncias feitas que transformavam uma tentativa de retirar um grupo de lavradores de uma área num despejo, entendido como categoria política. Da mesma forma, nesse processo tenso, configurava-se a categoria posseiro, que, embora já existente no corpo legal brasileiro, ganhava, nesse contexto, uma conotação política. Em contraposição a ela, os que se diziam proprietários passaram a ser considerados grileiros, ou seja, sem direito legal à terra de que haviam se apropriado, muitas vezes, de forma fraudulenta. Ao longo do texto, Grynszpan explora como a afirmação dessas categorias estava relacionada a um trabalho das lideranças e mediadores, muitas delas vinculadas ao Partido Comunista, na busca de construir uma representação legítima e uma determinada forma de percepção dos conflitos. Mostra ainda como os posseiros, organizados em associações, passaram, em algumas situações, a fazer ocupações que atraíam lavradores de diversas partes do 2

Tendo em vista que o volume II do tomo Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da História, organizado por Márcia Motta e Paulo Zarth, da presente coleção contém um artigo que trata das Ligas Camponesas, optamos por não incluir neste tomo um artigo a respeito. No entanto, convidamos o leitor tanto a se apropriar dele como da já importante literatura a esse respeito. Ver, entre outros, Andrade (1964; 1986); Aued (1986); Azevedo (1982); Bastos (1984); Camargo (1973), Furtado (1964).

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estado, inclusive de áreas urbanas, possibilitando a espacialização da luta pela terra. Esse processo também estimulou os debates que contribuíram para a reforma agrária como pauta política das organizações camponesas. Na seqüência, o texto de Paulo Cunha apresenta as lutas de Trombas e Formoso, em Goiás, que, como no caso anterior, estavam intimamente relacionadas à intensificação da grilagem de terras na região. Trombas e Formoso, assim como a Baixada Fluminense e Porecatu, no Paraná, foram resistências camponesas expressivas da história das ações do PCB no campo. No artigo em pauta, privilegiando o olhar para a dimensão organizativa, o autor chama a atenção para a importância da inspiração buscada pelos comunistas na Revolução Chinesa e dá especial ênfase à ação dos dirigentes na definição dos caminhos seguidos e à sua importância no processo de visibilização da luta, permitindo que ela ultrapassasse sua dimensão local. Analisa ainda as ações dos comunistas em apoio aos posseiros, a partir dos limites e possibilidades, proximidades e distanciamentos da compreensão e das relações políticas entre o PCB e os camponeses. Enfatizando uma leitura que privilegia a localização das lutas de Trombas e Formoso no interior da conjuntura política nacional e mundial, Cunha destaca os seus momentos mais significativos, de modo a fornecer elementos para a compreensão das complexas articulações que as marcaram e as tornaram uma referência histórica da formação do campesinato brasileiro enquanto sujeito político e para os movimentos camponeses que se formaram no processo de resistência no final da ditadura e na redemocratização do país. O terceiro artigo da coletânea, de autoria de Córdula Eckert, apresenta a formação dos primeiros acampamentos de sem-terra no Rio Grande do Sul, ainda no início dos anos 60, e a constituição do Movimento dos Agricultores Sem-Terra (Master). Ao longo do texto, aponta a grande quantidade de acampamentos formados no estado, o público que os alimentava e as estratégias adotadas (algumas delas mais tarde retomadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), surgido na mesma região, quase vinte anos depois. Entre as estratégias, destacam-se os acampamentos nas estradas próximas às áreas pretendidas, de forma a evitar que a ação pudesse ser caracterizada como invasão de propriedade. Os demandantes de terra buscavam, assim, criar condições para dificultar a repressão policial. O artigo oferece também indicações das relações que se estabeleceram entre o nascente movimento e o PCB, bem como a ação da Igreja Católica, que passou a impulsionar outras formas de organização dos agricultores, que se contrapusessem às organizações de sem-terra. Como parte desse cenário, são discutidas as reações que o Master provocou por parte dos proprietários, organizados por meio da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul). Finalmente, são apresentadas as relações com os poderes públicos, em especial com o governo estadual, nas gestões de Leonel Brizola e Ildo Meneghetti, detalhando os apoios e também a violência que 28

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

se abateu sobre os trabalhadores ainda antes do golpe militar. A análise das lutas camponesas se desdobra, por outro viés analítico, na contribuição de Osvaldo Heller da Silva sobre o Paraná. O autor inicia seu artigo com o conflito de Porecatu, uma luta de posseiros contra a expropriação, e, na seqüência, enfoca a organização dos trabalhadores no norte paranaense, centrando sua abordagem num componente muitas vezes esquecido nas análises da constituição das organizações voltadas à representação política de segmentos subalternos: o papel dos militantes originários do próprio grupo. Ao longo do texto, abarcando dois períodos distintos (antes e após o golpe militar), reflete sobre a tensão existente entre devoção e interesse, modéstia e ambição, para tentar explicar a complexidade envolvida na análise do papel dos dirigentes. Para tanto, considera não só a ação dos comunistas como também dos quadros da Igreja Católica na formação dos sindicatos e nos desdobramentos do sindicalismo pós-golpe militar, e destaca os mecanismos sutis por meio dos quais alguém se torna porta-voz de um grupo, dando especial ênfase à importância do capital político acumulado nesse processo e aos dilemas que ele impõe à representação política. O artigo também aborda as possibilidades de relações de dependência e clientelismo no interior dos movimentos sociais. Alguns dos autores que contribuem para este volume dedicaram-se a analisar, com especial cuidado, as tensões que se constituiriam nas relações entre entidades de representação patronais e de trabalhadores, como é o caso do artigo de Guttemberg Guerra Diniz; ou ainda as marcas que uma cultura pontuada pela hierarquia e pelo favor deixam nas organizações de camponesas, como abordado por Clifford Andrew Welch. Guttemberg Guerra Diniz traça um panorama das organizações no campo, no Pará dos anos 50 ao final da década de 1980, enfatizando, em dois momentos (antes e durante a ditadura militar), o processo de disputa entre as organizações porta-vozes dos trabalhadores e as entidades ligadas aos proprietários de terra pela representação política, em especial visando ao acesso a créditos oficiais. Nesse movimento analítico, joga luzes sobre segmentos pouco estudados – os pequenos e médios proprietários – que também passaram a ser objeto da concorrência política. Para atraí-los, o setor patronal procurou caracterizar suas organizações próprias de representação como de produtores, o que lhes dava um caráter mais abrangente e colocava a disputa em novos parâmetros. O artifício de mudança de denominação significou também uma disputa territorial, visando a consolidar a base política da federação patronal, que reúne predominantemente os produtores capitalistas. Todavia, também promoveu a polarização, o que deu destaque para o importante papel do campesinato e de suas formas próprias de organização. Clifford Welch recupera, de modo peculiar, uma parte pouco conhecida da história da questão agrária do Pontal do Paranapanema, discutindo ações dos sem-terra e utilizando o termo com-terra para se referir aos grandes 29

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proprietários e grileiros do Pontal. É interessante ressaltar que esse termo contrasta com a expressão com-terra, freqüentemente utilizada por órgãos estatais para se referir à população assentada em projetos de assentamentos rurais. Revisitando a idéia de “homem cordial” de Sérgio Buarque de Hollanda, polemiza em torno dessa construção de brasilidade, para entender o que permanece e o que muda na relação dos sem-terra e os grandes proprietários rurais. Segundo ele, a noção de “cordialidade” mascara as condições de dominação e violência que perpassam o mundo rural. A partir de um histórico dos conflitos na região do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, conclui que mesmo os integrantes do Movimento de Trabalhadores Rurais SemTerra (MST), ao mesmo tempo em que desafiam os poderes estabelecidos, conservam elementos da cultura patriarcal, na qual a cordialidade tem seu papel. Por isso, para o autor, só é possível entender os conflitos do meio rural brasileiro e, especialmente, o comportamento de seus líderes, se os pesquisadores tiverem presente que a ligação dos sem-terra com a formação social tradicional que lhes deu origem não desapareceu completamente. No geral, a literatura sobre os conflitos sociais no Brasil tem enfatizado a importância do golpe militar de 1964 como divisor de águas na compreensão das lutas no campo: as lideranças foram perseguidas, muitas delas assassinadas, outras se tornaram clandestinas e exiladas em seu próprio meio. Outras ainda conseguiram exílio no exterior. Muitas das organizações sindicais emergentes, bem como as Ligas Camponesas, foram desestruturadas, e as entidades que davam apoio às lutas, como o Partido Comunista e a Ação Popular, foram desbaratadas e suas lideranças perseguidas ou assassinadas. No entanto, é um erro acreditar que esse processo repressivo eliminou os conflitos ou que a memória deles desapareceu para os que vivenciaram as lutas. Esse tema é cuidadosamente tratado por Moacir Palmeira, que chama a atenção para um viés metodológico recorrente nos estudos sobre conflitos sociais, quando se voltam para os momentos mais espetaculares das lutas e excluem experiências menos visíveis, mas nem por isso menos importantes. Partindo de um vasto material de pesquisa sobre a Zona da Mata pernambucana, o autor mostra como o período pós-golpe foi marcado por estratégias patronais de expulsão de moradores e foreiros, de forma a evitar que eles, com base na legislação trabalhista aprovada em 1963 (o Estatuto do Trabalhador Rural), “criassem” direitos e fizessem jus a indenizações. Palmeira analisa as novas formas de resistência que então surgiram na região, caracterizadas pelo enfrentamento cotidiano no interior de engenhos e usinas, tendo por base a legislação existente. Para tanto, foi central o apoio dos sindicatos, que, pela sua história anterior, faziam parte do universo de referência dos trabalhadores. Foram essas organizações que, num contexto de relativa desmobilização e repressão, passaram a tornar a lei um instrumento de luta e a acionar coletivamente os patrões na Justiça. 30

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Os quatro artigos seguintes enfatizam diferentes formas de resistência, que passaram a ocorrer sob as novas condições criadas pelo golpe militar para a transformação do campo: maciços investimentos em modernização; estímulos creditícios, fiscais e de infraestrutura, em especial a construção de estradas ligando locais antes isolados, para que empresas se voltassem para novas regiões, em especial a amazônica; ou ainda construção de grandes barragens tendo em vista produção de energia. São sucessivamente abordados conflitos no Acre, Mato Grosso, Pará e sul do país, diretamente relacionados a esses processos. Elder Andrade de Paula e Silvio Simione, em artigo sobre as lutas dos seringueiros do Acre ao longo da expansão e do refluxo das empresas seringalistas, abordam a importância da resistência cotidiana e o peso que nela adquire a noção de direito à terra. Na mesma linha de artigos anteriores, também no Acre, o papel dos sindicatos, criados na região somente nos anos 70, por ação direta da Contag, foi fundamental para o apoio à luta dos seringueiros, à medida que produziu a negação de uma relação jurídica (o arrendamento) e afirmou outra, enquadrando os extratores de borracha como posseiros e, assim, apresentando-os como legítimos portadores do direito à terra. É nesse contexto que surgiram, já em meados da década de 1970, novos experimentos de mobilização coletiva, os empates, cujo objetivo era impedir o desmatamento de áreas para implantar pecuária bovina. Essas ações de resistência, como os autores demonstram, estão nas raízes de várias inovações: das formas de organização, com a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros em meados dos anos 80; da apropriação da terra, com a criação das reservas extrativistas; e das demandas em torno da manutenção da floresta, que acabam por se articular com as bandeiras preservacionistas e ganhar repercussão internacional. O artigo seguinte, de autoria de Neide Esterci, analisa os efeitos da chegada de uma grande empresa em Santa Teresinha, Mato Grosso, e a resistência dos posseiros e seus aliados, em particular a Igreja Católica, num momento em que, sob influência da Teologia da Libertação, se davam os primeiro passos para a constituição da CPT. Apelando, na defesa da terra onde viviam, simultaneamente para as leis e para os costumes, contra os novos interesses que aportavam na região, os camponeses buscavam garantir seu território. Nele, várias formas de uso e domínio particulares se acomodavam a partir de critérios de pertinência e de direitos constituídos em razão do trabalho investido, das relações sociais e lugares construídos, dos afetos e das memórias. Nesse processo, a ação de agentes da Igreja Católica foi fundamental para o fortalecimento da resistência dos posseiros, o que, por sua vez, alimentava o trabalho pastoral no enfrentamento à expansão das empresas capitalistas na região. A resistência aos efeitos dos novos processos que se desencadearam a partir dos anos 70 também é discutida por Jean Pierre Leroy, que analisa 31

Introdução

as lutas dos camponeses de Santarém, no Pará, e a criatividade nelas contida. Os personagens centrais foram os colonos do Sul, que chegaram à Transamazônica em meados da década de 1970, e os trabalhadores que vinham do Nordeste, em especial do Maranhão, em busca de terras livres para produzir. Atrás de alternativas de sobrevivência, uns e outros construíram uma sólida rede organizativa local, com apoio da Igreja Católica, em torno dos grupos de revenda, e estabeleceram as bases para enfrentar a política de compra de arroz, considerada espoliativa, feita pela Companhia Brasileira de Alimentos. Esse processo culminou num enfrentamento com a direção do Sindicato de Trabalhadores Rurais local e com a formação de uma oposição sindical que, mesmo derrotada nas eleições, tinha um enorme poder de mobilização, por meio de um movimento que se celebrizou como “Corrente Sindical Lavradores Unidos”. Esse movimento participava ativamente das ações e lutas locais (resistências a expulsões da terra, formação de grupos de revenda, reivindicações de atendimento médico, de postos de saúde, de transporte coletivo) e marcava presença ativa na direção de delegacias sindicais e nas assembléias. O autor mostra, assim, outra faceta das lutas camponesas: a da disputa pelo controle das organizações que buscam falar em seu nome. Também chama a atenção para o fato de que havia uma sólida articulação entre a “Corrente Sindical” e o movimento sindical em escala nacional, participando de reuniões na luta pela autonomia das organizações dos trabalhadores e gerando lideranças que, ao longo dos anos 80, se destacariam na organização do Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da CUT. O artigo seguinte, de autoria de Maria José Reis, trata do processo pelo qual os agricultores da região conhecida como Alto Uruguai (Rio Grande do Sul e Santa Catarina), selecionada para ser local de construção de uma usina hidrelétrica, passaram da situação de vítimas desinformadas e passivas a interlocutores combativos. Ao longo de seu texto, a autora procura mostrar o descaso do Estado em fornecer informações aos que seriam atingidos pelas águas do lago a ser formado, em discutir as formas de indenização, dialogar com não proprietários e buscar negociações coletivas e não individuais. Voltado mais para questões técnico-econômicas, o Estado pouco cuidou dos problemas suscitados pela necessidade de reordenação territorial, migração compulsória, rompimento de laços comunitários e risco de empobrecimento das populações que viviam na região. Com isso, desencadeou-se um processo de organização que culminou na criação, em 1985, do Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), que envolveu também outros grupos que vivenciavam situações semelhantes. Mais uma vez, mostrou-se vital nesse processo o apoio das Igrejas (no caso, Católica e Luterana), bem como dos Sindicados de Trabalhadores Rurais da região, ligados ao chamado “sindicalismo combativo”, originário das oposições sindicais que ali se constituíram no final dos anos 70 e início dos anos 80. 32

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Os conflitos no campo nas décadas de 1970 e 1980 não se limitaram às lutas de resistência na terra. Elas também ocorreram nas áreas onde predominavam as relações assalariadas, como é o caso da Zona da Mata nordestina, cujos conflitos são abordados no presente volume por Moacir Palmeira, referindo-se aos anos 70. Para tratar das lutas desses segmentos nos anos 80, no artigo de Lygia Sigaud são analisados dois momentos, com dinâmicas próprias, mas profundamente articulados entre si, de forma que um não se explica sem o outro: o momento das greves, marcado por expressivas mobilizações, e aquele das lutas menos visíveis e espetaculares pelo cumprimento dos acordos conseguidos. Seguindo um fio de argumentação próximo ao apresentado por Palmeira, e dando continuidade a ele à medida que ressalta a importância das lutas cotidianas, a autora alerta para o fato de que elas contribuíram decisivamente para que as antigas obrigações relacionadas à tradição dos engenhos fossem transmutadas em obrigações garantidas juridicamente. Entre elas a casa para morar, a terra para plantar, o auxílio na doença, a garantia de trabalho para os filhos etc. Esses aspectos levaram Sigaud a relativizar as distinções absolutas entre “luta pela terra” e “luta pelos direitos”, uma vez que a dinâmica do mundo social as superpõe. Como a autora assinala para reforçar seu argumento, da mesma forma como o acesso à terra e à moradia fazia parte dos acordos das greves, foram esses mesmos os personagens que conduziram as ocupações de terra na década de 1990. Fechando o volume, o artigo de John Comerford, com base em uma pesquisa na Zona da Mata mineira, introduz uma abordagem dos sindicatos que valoriza a importância de uma análise do plano das redes de relações localmente constituídas. Ao longo do texto, o autor aponta a forte relação entre o sindicalismo e as comunidades eclesiais de base, bem como o papel do sindicato nos realinhamentos e nas disputas entre facções políticas dos municípios estudados. Sua análise se volta para os rearranjos das tramas de relações entre famílias e vizinhos, bem como no interior das famílias, a partir da atuação dos sindicatos, mostrando como a política também perpassa e é perpassada pelo cotidiano das relações sociais. Longe de esgotar a riqueza de situações do período que recobrem, os artigos apresentados neste volume, bastante representativos para a compreensão da dimensão política da história social do campesinato, são apenas uma amostra da complexidade e variedade de questões a serem abordadas quando nos voltamos ao estudo das mobilizações no campo. Com ele, acreditamos poder contribuir para trazer à luz uma parcela ainda pouco conhecida dessa história. Numa análise de conjunto, os leitores verificarão que os textos fornecem um rico panorama das lutas no campo e suas nuances, fazendo desfilar um conjunto heterogêneo de personagens, que mostram quão diverso é o leque de configurações, variáveis no tempo e no espaço, que a categoria 33

Introdução

campesinato abrange. Da sua leitura, emerge também uma variedade de formas organizativas (associações, sindicatos, confederações sindicais, ligas, grupos que se organizam para vender a produção, conselhos etc.) que, antes de mais nada, indicam a diversidade de experimentos sociais que precisam ser mais conhecidos. Lutando contra grileiros, contra empresas agropecuárias, fazendeiros e senhores de engenho; contra as políticas públicas que os expropriam, quer das suas terras, quer do produto de seu trabalho, vai se delineando um campesinato ativo, rebelde, capaz de se organizar e de expressar suas demandas, ora se apoiando na legislação, ora afirmando o direito costumeiro contra ela; constituindo organizações próprias, lutando por recuperá-las, quando apropriadas por interesses distintos do seu; sendo reprimido, mas renascendo de suas heranças enraizadas. Articulados com a Igreja, com organizações partidárias, com políticos, os camponeses se relacionam com uma infinidade de mediações, num jogo tenso, mas fundamental para a estruturação e consolidação de suas organizações e lutas. Bernardo Mançano Fernandes Leonilde Servolo de Medeiros Maria Ignez Paulilo

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1 AÇÃO POLÍTICA E ATORES SOCIAIS: POSSEIROS, GRILEIROS E A LUTA PELA TERRA NA

BAIXADA FLUMINENSE* Mario Grynszpan

A ação política do campesinato, bem como sua participação em grandes processos de transformação social, tem sido tema de diversos estudos. Autores como Barrington Moore Jr. (1975), Theda Skocpol (1979), Eric Wolf (1973 e 1979), Hamza Alavi (1969), Eric Hobsbawm (1978) e Teodor Shanin (1979), apenas para citar algumas das contribuições mais significativas, debruçaram-se de forma sistemática sobre a questão. Em que pesem suas diferentes abordagens e ênfases distintas, uma preocupação central permeia todos os trabalhos, qual seja, a de detectar os fatores que levam à mobilização dos camponeses ou a permitem. A forma como a questão é colocada indica que, via de regra, o ponto de partida das análises é o campesinato já constituído enquanto grupo, previamente à ação política. Essa ação marcaria, portanto, a sua emergência, sua chegada ao proscênio saindo das sombras em que se encontrava. Mesmo quando existe uma preocupação com o processo de formação do grupo em si, o que se observa é que a reflexão é conduzida de modo tal como se ele já existisse em latência, objetivando-se com a agregação de indivíduos para a realização de seus interesses. Ao tomar os grupos sociais como dados, as análises, em geral, perdem a perspectiva de que eles podem ser formados na e para a ação política, ou ainda de que essa ação pode conferir novos contornos a grupos preexistentes. Deixam, assim, de atentar para o fato de que a forma objetivada como os grupos se apresentam, com nomes próprios, organizações, porta-vozes * Este artigo foi publicado, pela primeira vez, na revista Dados, v.33, n.2, de 1990. Agradeço ao editor de Dados, Charles Pessanha, pela autorização para a reprodução do texto neste livro.

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Ação política e atores sociais

e reivindicações, é fruto de um conjunto de ações e de lutas, de todo um trabalho de definição, de agrupamento, de representação e de mobilização.1 Tais questões constituirão o fio condutor deste artigo. Nele, procurarei mostrar como a ação política pode ser, ela mesma, conformadora de grupos e atores sociais. Buscarei, porém, analisar o processo não como fruto da ação isolada de um único agente, mas, sim, como resultante da inter-relação e da concorrência entre diversos agentes pelo controle e pela representação do novo ator. O estudo estará centrado no caso das lutas pela terra no estado do Rio de Janeiro, no período que vai de 1950 a 1964. Particularmente rico e revelador para as questões que serão enfocadas, o estado do Rio não tem sido, até aqui, objeto de forte atenção por parte dos cientistas sociais estudiosos da mobilização camponesa que marcou o Brasil nos anos anteriores ao golpe de 1964. Os trabalhos existentes têm se voltado, em particular, para a região Nordeste, principalmente o estado de Pernambuco, e para a atuação das Ligas Camponesas. Abrindo espaço na imprensa, as ações do campesinato fluminense assumiram uma feição radical incluindo, não raro, choques armados com a polícia. Elas eram, comumente, caracterizadas pelos grandes periódicos como rebeliões, levantes e guerrilhas rurais.2 Jornais como O Estado de S. Paulo e Correio da Manhã, tecendo analogias com a recém-ocorrida Revolução Cubana, denunciavam que estaria em curso, no estado do Rio, um plano de “agitação” do meio rural.3 Os principais contendores nesses conflitos, tal como se pode observar no noticiário, eram, de um lado, lavradores estabelecidos na terra havia alguns anos, referidos, em geral, como posseiros, e de outro, grileiros, falsos proprietários interessados em despejá-los. Era, assim, em particular contra os despejos que se dava a mobilização dos lavradores fluminenses. Os despejos parecem ter se constituído, então, num dos mais sérios problemas sociais existentes na área rural do estado. Eles ocorreram numa extensa região, abrangendo desde municípios localizados mais ao norte, como São João da Barra, Miracema e Macaé, até outros como Vassouras, Paracambi e Barra Mansa, passando por Cabo Frio, Casimiro de Abreu, Silva Jardim e Trajano de Moraes. Atingindo um grande número de lavradores, eles assumiram um caráter dramático e violento, com tiros, queima de casas e destruição de plantações. 1

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Valho-me aqui, em larga medida, da reflexão de Luc Boltansky (1982) sobre a formação dos executivos, na França, enquanto grupo social. Ver, por exemplo, os jornais Luta Democrática, Rio de Janeiro, 8 e 9/10/1961, p.1 e 3; Última Hora, edição do estado do Rio de Janeiro, Niterói, 9/5/1963, p.2; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30/6/1963, 1o caderno, p.25. Ver Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28/9/1962, 1o caderno, p.3, e 6/4/1963, 1o caderno, p.6. Ver também O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17/12/1963, p.13, e 14/1/1964, p.5.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Ainda que disseminados por boa parte do estado, os despejos, de acordo com os jornais e com os depoimentos de pessoas que os vivenciaram, foram mais recorrentes, mais intensos, na região a que se referem como Baixada.4 A região chegou mesmo a ser comparada pelo jornalista Maurício Hill, do diário Última Hora, ao Nordeste brasileiro que, assolado pela seca, se caracterizava por uma gritante situação de miséria e pelo êxodo periódico de camponeses que abandonavam as terras. Para Hill, os despejos faziam da Baixada um “Nordeste sem seca”.5 Esse quadro, contudo, não parece ser corroborado pelos dados estatísticos referentes à área rural da Baixada. Pelo contrário, eles indicam que a situação, no que diz respeito à saída de lavradores das terras, não era mais crítica na região do que no restante do estado. É certo que ocorreu ali, entre 1950 e 1960, uma queda de 19,4% e de 37% no número de trabalhadores temporários e no de parceiros nos estabelecimentos rurais, respectivamente. Entretanto, para o Rio de Janeiro como um todo, o decréscimo foi mais acentuado, tendo alcançado 20,8% no caso dos trabalhadores temporários e 56,1% no dos parceiros. Já o número de trabalhadores permanentes que, no estado, no mesmo período, sofreu uma redução de 21,4%, aumentou em 9,4% no conjunto da Baixada (Grynszpan, 1987, p.61-2). Ao lado disso, o número de estabelecimentos rurais controlados por arrendatários na região, que em 1950 somava 522, subiu para 1.554 em 1960. Tal aumento se deu, particularmente, entre pequenos e médios arrendatários (Grynszpan, 1987, p.37). É, no entanto, no caso dos posseiros, que a defasagem entre a Baixada dos jornais e da memória dos atores, por um lado, e a dos censos, por outro, se mostra de maneira mais evidente. Os dados estatísticos não nos indicam que eles tivessem sido, de fato, a categoria de lavradores mais atingida 4

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A expressão Baixada era bastante utilizada pelos jornais, nos anos 50 e 60, para designar um conjunto de municípios fluminenses localizados nas cercanias da cidade do Rio de Janeiro e que foi palco não apenas de despejos, mas também de reações por parte dos lavradores. Ela abarcava áreas como Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Magé, Itaguaí, Itaboraí e Cachoeiras de Macacu, diferindo, portanto, do termo Baixada Fluminense, tanto em sua acepção usual quanto naquela dos geógrafos de então. Tal como usualmente empregado, Baixada Fluminense tem um referencial eminentemente urbano e, por isso mesmo, reúne municípios como São João do Meriti e Nilópolis, que, já naquele momento, não tinham maior importância agrícola. Quanto aos geógrafos, que até aquele período desenvolveram intensas pesquisas nas áreas rurais do estado, o seu critério definidor de Baixada Fluminense era o fisiográfico. Dessa maneira, a região abrangia toda a extensa faixa de terras localizada entre a Serra do Mar e o Oceano Atlântico, vindo desde o município de Campos até o de Itaguaí. Bastante ampla, essa concepção inclui áreas por demais diversas e que não têm significação para os processos que estou analisando. Assim, trabalharei, simplesmente, com a categoria Baixada, mantendo o sentido em que era empregada, tanto por jornais quanto por atores de época, quando se referiam à mobilização camponesa no Rio de Janeiro. Eventualmente, sempre que necessário reportar-me à Baixada Fluminense, fá-lo-ei no sentido fisiográfico. Maurício Hill, “Baixada, Nordeste sem seca”, Última Hora, edição do estado do Rio de Janeiro, Niterói, 30/8/1962, p.5.

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Ação política e atores sociais

pelos despejos. Pelo contrário, sua presença aumentou de forma bastante acentuada no momento mesmo em que os despejos se intensificaram, isto é, na década de 1950. Praticamente não figurando nos quadros do censo relativos aos municípios da Baixada em 1940, já em 1950 os posseiros passam a controlar 253 estabelecimentos rurais, saltando, em 1960, para 1.596. De 0,03% do total de estabelecimentos recenseados na região em 1940, eles passam, em 1960, a ocupar 24,2% (Grynszpan, 1987, p.37). Na verdade, essa defasagem é apenas aparente. Os despejos tiveram sua maior concentração na Baixada não porque ali os deslocamentos de lavradores das terras tivessem sido mais intensos, mas, sim, porque foi a partir daquela região, justamente, que eles começaram a se organizar, resistindo contra as expulsões. As denúncias de ameaças de despejo nos jornais eram um dos meios utilizados pelas lideranças camponesas na luta pela permanência na terra. Era a própria luta, a resistência, a denúncia, que transformava uma tentativa de retirar um grupo de lavradores de uma área num despejo. Através da luta, portanto, conformava-se o despejo como categoria política. É somente a partir da ligação entre luta e despejo que o aumento concomitante das tentativas de expulsão e da presença dos lavradores na Baixada, principalmente como posseiros, pode ganhar sentido. No processo de luta contra os despejos, lavradores estabelecidos como parceiros, moradores ou arrendatários, além dos próprios ocupantes de áreas aparentemente abandonadas, mas que passaram, posteriormente, a ser reivindicadas, começaram a reconhecer-se como posseiros, negando a autoridade daquele que se dizia proprietário e que, por seu turno, passou a ser alcunhado de grileiro. Além disso, as áreas onde as resistências contra os despejos foram bem-sucedidas, ainda que temporariamente, acabaram por se transformar em pólos de atração para outros lavradores que para lá rumaram em busca de terras. E mais, novas áreas passaram a ser ocupadas por posseiros, num movimento organizado, em larga medida, por entidades camponesas. Já no início dos anos 60, as ocupações de terras na Baixada se intensificaram bastante e, com elas, também a presença de posseiros. Os jornais noticiavam que numerosas famílias de lavradores movimentavam-se pela região à procura de fazendas onde pudessem se estabelecer. Firmava-se, portanto, uma imagem da Baixada como área de terras disponíveis para ocupação, atraindo posseiros de outras regiões do estado e mesmo de fora dele.6 As dimensões e as características desse processo, como mostrarei ao longo do presente artigo, estão diretamente associadas à ação política que, na Baixada, não apenas as lideranças camponesas mas também outros 6

Ver, por exemplo, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28/6/1962, 1o caderno, p.5, e 30/6/1963, 1o caderno, p.25; Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28/6/1962, 1o caderno, p.3; Última Hora, edição do estado do Rio de Janeiro, Niterói, 13/5/1963, p.3, e 15/5/1963, p.2.

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agentes que com elas competiam, e mesmo o Estado, exerceram sobre os lavradores. Foi através da ação e da disputa políticas que se conformaram e que foram nomeados, os grupos que se mobilizaram na região, assim como também os próprios inimigos contra os quais se mobilizaram. Essa ação, entretanto, como buscarei ressaltar, fez mais do que atribuir novos contornos e identidade aos grupos existentes. Através de um intenso trabalho de arregimentação, de agrupamento e de mobilização de lavradores para a ocupação de terras, constituíram-se grupos de posseiros, o que terminou, igualmente, por imprimir a uma região antiga como a Baixada características de área de fronteira. Tal fato, sem dúvida, confere especificidade e relevância ao caso fluminense, diferindo-o do pernambucano no qual a ação das Ligas Camponesas incidiu sobre foreiros já localizados nos engenhos, e no qual as invasões de terras foram bastante reduzidas.7 Se a intervenção política foi fundamental para a definição dos atores e do espaço privilegiado das lutas pela terra no estado do Rio, cabe antes perquirir, contudo, as condições que, na Baixada, tornaram os lavradores propensos à ação.

DECADÊNCIA, OCUPAÇÃO E EXPULSÃO A Baixada é uma área cuja ocupação, bastante antiga, data ainda do século XVI. Dedicando-se, a princípio, ao cultivo da cana e à produção de açúcar, ela foi, aos poucos, perdendo terreno para a região de Campos, ao norte do estado. Igualmente o café teve por ali uma passagem, ainda que reduzida e localizada, antes de se fixar no vale do Paraíba. Observava-se, assim, um gradativo desinteresse e um abandono daquelas terras pelos grandes proprietários (Santos, 1984, p.24). A situação da Baixada, já no final do século XIX, era de decadência, ruína e abandono. Seus rios e canais de drenagem deixaram de ser limpos e desobstruídos, o que levou ao alagamento de grandes trechos de terrenos e favoreceu a disseminação de doenças (Mendes, 1950, p.75-8). Foi na década de 1930 que o Governo Federal iniciou a implementação de medidas sistemáticas de recuperação, não apenas da Baixada, apesar de ter sido ela o alvo das maiores atenções e investimentos, mas da Baixada Fluminense de maneira geral.8 Criou-se para tanto, em 1933, uma Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Essa comissão elaborou um plano geral coordenado para a região, abrangendo desde a realização de obras hi-

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Entre os estudos sobre as Ligas Camponesas e a mobilização do campesinato nordestino ver, particularmente, Camargo (1973). Das obras realizadas, até o ano de 1944, em toda a extensão da Baixada Fluminense, a metade, aproximadamente, incidiu sobre as áreas mais próximas à cidade do Rio de Janeiro. Cf.: Mendes (1950, p.113) e Lamego (1964, p.297).

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dráulicas, que visavam a melhorar a salubridade e recuperar as áreas férteis, até o fomento da colonização das terras públicas e do desenvolvimento de culturas intensivas, passando pelo estabelecimento de uma rede viária e de transportes para o escoamento da produção (Góes, 1939, p.19-20). Tratavase de reforçar o que se dizia ser a vocação agrícola da região, tornando-a um celeiro do Distrito Federal e do estado como um todo. Embutida no plano estava já uma representação da Baixada como região de fronteira. É como se ela tivesse retornado, com o abandono e o alagamento, a um estado anterior à chegada do colonizador. Sua recuperação, assim, assumia o caráter de desbravamento. Com a recuperação, as terras poderiam receber pequenos lavradores, colonos, que, instalados em núcleos por um projeto dirigido e controlado pelo Estado, as tornariam produtivas. Deve-se ressaltar, contudo, que a política de criação de núcleos coloniais bem como a idéia de formação de um cinturão verde ao redor do Rio de Janeiro não ficaram restritas aos anos 30. A partir da década de 1940, elas foram incentivadas, também, por crises de abastecimento vividas durante, e logo após, a Segunda Guerra Mundial (Arezzo, 1984, p.1). Foram sete os núcleos coloniais criados no estado do Rio até o ano de 1955. Todos eles se localizavam na Baixada Fluminense e é interessante observar que apenas um, o de Macaé, estava fora da Baixada. Os outros eram os de Santa Cruz, situado parte no antigo Distrito Federal e parte no município de Itaguaí; o de São Bento, em Duque de Caxias; o de Tinguá, em Nova Iguaçu; o de Duque de Caxias, em Duque de Caxias e Magé; o de Papucaia, em Cachoeiras de Macacu; e o de Santa Alice, em Itaguaí (Arezzo, Barros, 1984, p.19-22). Na verdade, a criação de núcleos e as grandes obras públicas realizadas na Baixada não parecem ter estimulado a produção agrícola na região. No início dos anos 50, grandes extensões de terra permaneciam incultas e o quadro de abandono persistia ali (Geiger, Mesquita, 1956, p.1). É preciso ver, no entanto, que a recorrente caracterização da Baixada enquanto área abandonada e decadente representa apenas uma das faces da moeda. Ela se refere ao desinteresse dos grandes proprietários e à inexistência, na região, de uma intensa atividade agrícola, com alta produtividade e baseada em métodos modernos. Com efeito, suas terras, além de nunca se terem tornado totalmente despovoadas, passaram a receber, já a partir das primeiras décadas do nosso século, um número crescente de lavradores que, em condições diversas, ali passaram a produzir juntamente com suas famílias. A ação do Estado no sentido de recuperar a Baixada, associada à proposta de promover a sua colonização, ao reforçar a idéia de que a região dispunha de terras disponíveis para serem trabalhadas, parece ter funcionado como fator de atração de lavradores. Não são poucas, dessa forma, as indicações de famílias que se fixaram na área no momento em que se processava o seu saneamento. Algumas delas teriam, inclusive, chegado a trabalhar nas obras antes de ali se estabelecerem como lavradores. 40

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Anteriormente mesmo a isso, porém, já era possível perceber um aumento no fluxo de lavradores e uma divisão de grandes propriedades da região. Relacionavam-se ambos os processos, em larga medida, à expansão da citricultura ali observada a partir do ano de 1910. Um grande número de pessoas para lá se dirigiu em busca de terras e trabalho, incentivadas, também, por um esquema publicitário que propalava as possibilidades de rápido enriquecimento proporcionadas por aquele cultivo. Dessa forma, municípios da região, como foi o caso de Nova Iguaçu, experimentaram, no período, taxas de crescimento demográfico que eram das maiores do país (Mendes, 1950, p.100-2). O impulso da citricultura se manteve forte até o início da década de 1940, quando dificuldades de exportação geradas pela Segunda Guerra Mundial fizeram-no declinar. Entretanto, outro fator que contribuiu para esse declínio foi a própria intensificação do mercado de terras na Baixada, impulsionado pelo aumento da demanda. A grande valorização dos terrenos fez com que sua utilização para fins especulativos se tornasse mais interessante do que a produção. Assim, os pomares começaram a ser desativados em vastas áreas de municípios como Itaguaí, Nova Iguaçu, Magé e Itaboraí (Geiger, Mesquita, 1956, p.36). Um dos desdobramentos desse processo foi, justamente, a liberação de lavradores envolvidos de formas diversas na produção. A especulação, da mesma forma que o fluxo de lavradores para a Baixada, foi alimentada, ainda que de maneira indireta, pela ação do Estado, que, através das obras e investimentos, provocou a valorização das terras. Tal possibilidade já era, aliás, prevista pelos idealizadores do plano coordenado de recuperação da região elaborado na década de 1930. Pensava-se, então, na criação de uma taxa de saneamento para as áreas particulares. Incidindo sobre a valorização dos terrenos, essa taxa seria inversamente proporcional à extensão cultivada, o que, supunha-se, obrigaria ao aproveitamento (Góes, 1939, p.61). Em 1939, o engenheiro Hildebrando Araújo de Góes, que esteve à frente do plano de recuperação da Baixada, chamava a atenção para o fato de que várias companhias vinham sendo criadas com o objetivo de promover a colonização particular na região. Elas adquiriam grandes propriedades abandonadas, retalhavam-nas e vendiam os lotes a prazo (Góes, 1939, p.58). De fato, o loteamento foi uma das atividades que, a partir de então, mais se expandiram na Baixada.9 Todavia, se, a princípio, ele contribuiu 9

Geiger, Mesquita (1956, p.179) caracterizam a atividade loteadora, no início da década de 1950, como uma “verdadeira febre” existente na Baixada. Mais da metade dos loteamentos existentes em Duque de Caxias, por exemplo, segundo Beloch (1986, p.206), foi aprovada até o ano de 1960. Desse total, 41,6% haviam sido aprovados entre 1950 e 1960. Em termos de área loteada, os números são ainda mais expressivos. Do total dessa área, 80% haviam sido aprovados pela prefeitura até 1960. No caso de Nova Iguaçu, dos 1.835 loteamentos aprovados até o ano de 1976, cerca de 64,9%, isto é, 1.191, referem-se ao período 1940-9.

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para alimentar a perspectiva de acesso à terra, aliando-se às propostas governamentais de colonização da região, já a partir de meados dos anos 40 se constituiu no principal móvel das tentativas de expulsão de lavradores que ali se estabeleceram. A Baixada experimentou, particularmente no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, um acentuado processo de transformação de seu espaço rural em urbano. Esse processo se deu, de forma mais intensa, em áreas próximas à antiga Capital Federal, como Duque de Caxias e Nova Iguaçu, que passaram a abrigar um grande contingente de trabalhadores urbanos e de antigos camponeses que migravam para as cidades do Sudeste (Araújo, 1982, p.206). Aqui, portanto, os loteamentos passaram a ter características urbanas, não se voltando para a produção agrícola.10 Se, de início, esse processo atingia apenas as áreas vizinhas aos centros urbanos, onde novos bairros seriam construídos, no seu desenrolar, ele passaria a invadir, igualmente, os terrenos mais distantes, onde edificações não seriam realizadas de imediato, ou mesmo nunca (Geiger, Mesquita, 1956, p.179). Na verdade, assistia-se na Baixada, juntamente com a transformação do espaço rural em urbano, à valorização da terra nua em detrimento da produtiva, à imposição de uma visão da terra enquanto ativo financeiro e não enquanto meio de produção.11 Nesse contexto, as expulsões passaram a representar, naquela região, a possibilidade de um corte definitivo com a terra. Incidindo não sobre um ou outro lavrador, mas sobre um grande número e sobre várias fazendas, as expulsões indicavam que aquele que se retirasse de uma área teria dificuldades para ser reabsorvido em outra. Conformava-se, assim, um quadro propício à luta.12

NOMINAÇÃO E LEGITIMIDADE Um elemento importante para entender a eclosão das lutas, na Baixada, é o fato de que a subordinação que se impôs aos lavradores ali não se re-

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Anteriormente a isso, ou seja, até 1939, apenas dez loteamentos haviam sido aprovados. Cf.: Bernardes (1983, p.46). O próprio Ministério da Agricultura relatava, no começo da década de 1950, que boa parte das terras próximas aos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro, mantinha-se inculta, visando apenas à especulação. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3/5/1952, 1° caderno, p.3. Ignácio Rangel (1978, p.67-8) observava que, no início dos anos 60, a terra vinha se tornando um ativo de grande procura pelas camadas de mais alta renda, como forma de fazer frente à erosão da moeda. Como observa Barrington Moore Jr. (1975, p.544-5), novas e súbitas modificações na vida dos camponeses, incidindo ao mesmo tempo sobre um grande número de pessoas, podem representar uma quebra nas regras e costumes aceitos, sendo, portanto, decisivo para leválos à revolta.

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vestiu das mesmas características de outras regiões do estado, como, por exemplo, o norte, onde também ocorreram expulsões, mas onde as lutas foram escassas. No caso da Baixada, a entrada de lavradores nas terras era relativamente recente e, de maneira geral, seus proprietários não exerceram com continuidade o papel de organizadores da produção. Os vínculos entre eles e os lavradores não eram, dessa forma, tão consistentes quanto no norte fluminense, zona de propriedade consolidada, onde os donos de terras gozavam de grande poder e prestígio. A presença de grileiros contribuiu para esgarçar ainda mais os laços de subordinação que prendiam os lavradores na Baixada. Isso se deu porque, em larga medida, quem promovia as expulsões, o grileiro, era não aquele que exercia a dominação direta sobre o lavrador, mas, sim, um elemento externo, alguém vindo de fora da área. Assim, quando surgia o grileiro, e muitas vezes eram vários deles reivindicando um mesmo terreno, era para ele, e não para aquele que dominava diretamente, que, a princípio, se dirigia a hostilidade do lavrador. A continuada pressão e as constantes tentativas de expulsão, no entanto, fariam reverter a situação. A concorrência pela terra, a disputa para se impor como proprietário terminaria por contribuir para a ilegitimação mesmo daquele que, de início, ocupava a posição de proprietário.13 Em decorrência dela, os lavradores, que não se sentiam donos das terras, iriam aos poucos relativizando sua situação, desconfiando que aqueles que se diziam donos também não o eram e tornando-se propensos à luta.14 Se o “efeito involuntário” da presença dos grileiros na Baixada foi o de ser um dos principais elementos responsáveis pela eclosão das lutas, ele foi também, a par disso, o de permitir aos lavradores a construção de uma identidade própria.15 Essa identidade, forjada na luta contra aqueles mesmos grileiros, expressou-se através da categoria posseiro.16 13

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Ver o caso da Fazenda Penha-Caixão, em Duque de Caxias, relatado por José Pureza (1982, p.18-21), antigo líder camponês fluminense. O antropólogo Eric Wolf (1973, p.394-96; 1979, p.267) já havia chamado a atenção para o fato de que o esgarçamento dos vínculos de dependência e subordinação pode conferir mobilidade tática a um grupo camponês, tornando possível o seu ingresso numa rebelião. Em seu conhecido estudo sobre a participação do campesinato em alguns dos grandes processos de transformação política ocorridos no século XX, o autor observa que, num contexto de difusão do sistema capitalista, a emergência de novas elites, que passariam a competir com as antigas pelo controle dos recursos sociais, poderia comprometer a própria base da dominação tradicional. Devo a Moacir Palmeira a sugestão de pensar as lutas, em parte, como um “efeito involuntário” da presença dos grileiros na Baixada. Em sua reflexão sobre as condições sociais que determinam a obediência e a revolta, Moore Jr. (1978, p.87-8) desenvolve o argumento de que a quebra da autoridade, que se constitui numa relação vertical, possibilita a redefinição das redes horizontais de solidariedade e lealdade, bem como a construção de uma nova identidade ou de uma identidade politicamente efetiva para os antigos dominados.

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Relativamente comum na Baixada, um dos fatores que certamente ali favoreceram a grilagem, a apropriação indébita de terras, dando margem a diversos litígios, foi a indefinição quanto aos limites e à titulação dos terrenos. Boa parte das terras não apenas da Baixada, mas da Baixada Fluminense de maneira geral, não havia. Quando existiam, indicavam, na maioria das vezes, limites imprecisos (Geiger, Mesquita, 1956, p.64-5). Tal confusão se dava, sobretudo, no que tocava às terras públicas, para as quais não se dispunha de um cadastro. Assim, em áreas como a Fazenda Nacional de Santa Cruz, sujeitas a sucessivas apropriações, nem mesmo o Ministério da Agricultura tinha exata noção das terras que ainda eram patrimônio da União e das que se constituíam em propriedade privada por título legítimo (Silva, 1961, p.2). Se isso ocorria, entretanto, é preciso ver que nem todos aqueles que promoviam despejos eram, realmente, grileiros ou falsos proprietários, apesar de serem assim referidos. Da mesma forma, por detrás do termo posseiro, empregado para identificar os lavradores, que vinham sendo alvo dos despejos, encontramos, em larga medida, parceiros, moradores ou arrendatários. Na verdade, a afirmação da categoria posseiro e também a de seu termo oposto, grileiro, estava relacionada a um trabalho das lideranças dos lavradores, de seus advogados e também de outros agentes que atuavam no campo fluminense, no sentido da construção de uma representação legítima das lutas. Buscava-se, através da dominação dos atores, impor uma forma de percepção dos conflitos que favorecesse os atos e as pretensões dos lavradores e, ao mesmo tempo, inviabilizasse os de seus inimigos.17 A representação que se procurava afirmar constituía-se, de alguma forma, em uma reapropriação daquela que viria nos anos 30, e que havia embasado os projetos e a ação do Estado na Baixada, qual seja, a de que a região se constituía em uma área de fronteira, agreste, e que deveria ser conquistada. Nesse sentido, é interessante observar que, nas versões sobre as lutas, o momento de chegada dos lavradores é recorrentemente apontado como a década de 1930 e o início da de 1940. A Baixada seria, então, uma área abandonada, inculta, com terras aparentemente sem dono, tomada por matas e pântanos. Os próprios posseiros a teriam desbravado, saneado, valorizado, enfim, com o trabalho nela investido. Somente após isso é que os grileiros começariam a aparecer, dizendo-se donos, pleiteando a terra, promovendo os despejos.18 Tal era a versão apresentada, mesmo quando as coisas não se haviam passado dessa forma. Tinha-se em vista com isso, além de neutralizar as pre17

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Sobre a ação de nominação como imposição de uma visão legítima do mundo social, bem como seu lugar nas lutas políticas, ver Bordieu (1984). Ver, por exemplo, Imprensa Popular, Rio de Janeiro, 15/3/1952, p.5, 8/3/1953, p.4, 22/1/1954, p.2, e 29/6/1957, p.6.

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tensões dos grileiros apresentando os despejos como algo injusto e ilegítimo, favorecer a própria luta jurídica dos lavradores para permanecerem na terra. Era com base no instituto do usucapião que as organizações camponesas buscavam, durante os anos 50, garantir o acesso à terra pela via legal, resistindo contra os despejos. Para tanto, o que se exigia era que a posse fosse mansa, pacífica e ininterrupta, por um intervalo de tempo que poderia variar de dez a vinte anos, de acordo com o caso. Além disso, não poderia ser considerado possuidor aquele que, em relação de dependência para com outro, conservasse a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas (Código civil brasileiro, 1970, p.189). Dessa forma, a reivindicação da posse da terra passava, necessariamente, pela negação da dependência e dos direitos daqueles que se diziam donos, assim como também pelo seu estranhamento, pelo convencimento de que se tratava de grileiros e pessoas desconhecidas. Constituía-se o Poder Judiciário, por isso mesmo, numa das arenas privilegiadas das disputas pela nominação, desempenhando os advogados um papel decisivo. Ao lado da luta jurídica, outras formas de ação eram conjugadas pelas organizações camponesas nas resistências contra os despejos. Os lavradores eram orientados no sentido de permanecerem na terra o máximo que pudessem, procurando neutralizar as violências e as investidas dos grileiros. Ao mesmo tempo, eram promovidas manifestações nas cidades, dirigidos apelos às autoridades para que tomassem providências e denunciadas as ocorrências nos jornais. As manifestações patrocinadas pelas organizações camponesas ocorriam, geralmente, na capital do estado, Niterói. Os lavradores promoviam passeatas buscando o apoio da população e procuravam, também, sensibilizar os deputados estaduais e os juízes em idas à Assembléia Legislativa e ao Tribunal de Justiça. Tentavam, ainda, no Palácio do Ingá, sede do governo, obter o concurso do governador. O que se tinha em vista com a produção desses eventos era trazer para a cidade, tornando-a visível, a situação vivida pelos lavradores. Dessa maneira, buscava-se transformar aquilo que, normalmente, seria uma tentativa localizada de expulsão, resolvida através de jagunços ou da própria polícia, num despejo, numa questão social. Gerava-se assim um debate em torno da questão, atraía-se a solidariedade dos setores urbanos, ao mesmo tempo em que se tentava ilegitimar a ação dos grileiros, dificultando eventuais decisões em favor destes por parte da polícia ou da Justiça.19 Da mesma forma, ao incluírem a Assembléia Legislativa e o Palácio do Ingá nos trajetos das passeatas de lavradores, as organizações camponesas procuravam tornar os despejos um problema político. Assim, as manifesta19

Para uma reflexão sobre as manifestações como eventos políticos voltados para a produção de uma imagem pública dos grupos que se manifestam, ver Champagne (1984).

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ções contribuíam para o reconhecimento dos posseiros no campo político, produzindo, no interior deste, um processo de tomadas de posição a respeito deles e de suas reivindicações.20 As denúncias através dos jornais, assim como as manifestações, também conferiam visibilidade aos problemas locais, trazendo-os ao conhecimento nacional. Além de buscarem a formação de uma opinião pública favorável aos lavradores, as denúncias contribuíam, igualmente, para o seu reconhecimento político. Desse modo, o que estava em jogo no noticiário, mais do que o simples registro, era a própria disputa pela afirmação de uma visão legítima dos lavradores e de suas lutas. A representação que se procurava produzir dos lavradores, através das manifestações e dos jornais, era articulada com a luta jurídica. O que importava era caracterizar os lavradores como posseiros, a fim de obter o controle da terra com base, a princípio, no usucapião. Em sua argumentação, as organizações camponesas procuravam, igualmente, mascarar as ocupações recentes de terras que, incentivadas por elas mesmas, vinham se tornando recorrentes na Baixada. Lavradores de diversas procedências eram reunidos por aquelas organizações e dirigidos para áreas onde vinham ocorrendo resistências, ou mesmo para novas terras sem dono ou que vinham sendo griladas. Quando se tentava despejar os novos posseiros, o argumento de defesa que as entidades camponesas utilizavam era o mesmo das resistências, procurando mostrar que não eram posses recentes. Para justificá-lo, os lavradores eram orientados no sentido de que, logo que entrassem nas terras, construíssem casas e preparassem o terreno. Até o final dos anos 50, as ocupações apareciam como resistências de antigos posseiros contra o assédio dos grileiros. Já no início dos 60, contudo, elas passariam a ser feitas de forma aberta. É preciso ver que aquele era um momento de crescente politização da questão agrária em nível nacional. O movimento camponês se projetava de forma evidente na cena política, alimentando o debate em torno da reforma agrária e dos instrumentos necessários à sua implementação, entre esses o mecanismo da desapropriação de terras, previsto pela Constituição vigente.21 As organizações camponesas com sua estrutura mais consolidada conseguiam uma integração maior, movendo quadros de fazendas e mesmo de municípios próximos para as áreas onde se verificavam conflitos. A solidariedade e o apoio de setores urbanos e de parlamentares, fundamentais para o sucesso das lutas dos lavradores, tornavam-se igualmente mais consistentes. Os novos governadores do estado passavam a reconhecer os posseiros, atentando e mostrando-se receptivos às suas reivindicações. 20 21

Sobre a noção de campo político ver Bordieu (1981). Para uma reconstituição da questão agrária no Brasil, de 1930 a 1964, ver Camargo (1981).

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Nesse contexto, o que passavam a buscar as lideranças era não mais o usucapião, mas sim, expondo a violência e a radicalidade das lutas, caracterizar os locais onde vinham ocorrendo despejos como áreas de conflito, de tensão social. Seu objetivo era forçar a desapropriação daquelas áreas e sua entrega aos lavradores. Tendo em vista caracterizar o litígio, de forma a obter a desapropriação, as organizações camponesas deslocavam quadros e advogados para diferentes pontos do estado a fim de, através de pesquisas em cartórios, inclusive, identificar terras passíveis de ocupação. Em suas pesquisas e consultas buscavam delimitar áreas cuja ocupação teria boa acolhida do governo, facilitando uma solução favorável aos posseiros.22 Da mesma forma que os grileiros, portanto, as organizações camponesas procuravam, em suas ações, beneficiar-se da situação de indefinição quanto à propriedade das terras da Baixada. Mais ainda, elas precisavam dispor de recursos semelhantes aos dos próprios grileiros que, para se apoderar de uma área, necessitavam, igualmente, do acesso a cartórios, dos serviços de advogados e, inclusive, do controle de armas. Os contingentes de ocupantes eram compostos, na maioria dos casos, de lavradores sem terra, vindos de diversas partes do estado, e mesmo do país, e que eram agrupados para a ação. Ou seja, os grupos de posseiros eram formados pelas organizações camponesas para as ocupações. E, à medida que essas ações eram bem-sucedidas, logrando os posseiros permanecer na terra, as áreas ocupadas, da mesma forma que nos casos de resistência, se transformavam em pólos de atração para novos lavradores. Era comum, portanto, naquelas áreas, o aumento constante do número de posseiros. Para isso contribuíam, mais uma vez, as organizações camponesas, que se incumbiam de difundir as notícias, chamando outros lavradores para engrossar as ocupações (Grynszpan, 1987, p.170-6). Foi a partir da lutas, por conseguinte, que se afirmou a presença de posseiros na Baixada. Isso se deu tanto porque moradores, parceiros e arrendatários, em luta contra os despejos, passaram a ser identificados e a se identificar como posseiros – identificando os seus opositores, em contrapartida, como grileiros – quanto porque a Baixada passou a ser vista como área de terras disponíveis para ocupação, atraindo lavradores de outras regiões do estado e mesmo de fora dele.23 Tal fato, entretanto, deve

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Entrevista com Oay Fonseca, antigo advogado da Federação das Associações de Lavradores do Estado do Rio de Janeiro (Falerj), realizada em 1986. Um levantamento cadastral realizado na Fazenda Piranema, em Duque de Caxias, no começo de 1964, revelou que, dos 222 posseiros ali instalados, apenas 97 eram fluminenses, provindo o restante de outros estados. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4/3/1964, 1o caderno, p.4. Ver também, por exemplo, o caso da Fazenda Cachoeira Grande, em Magé, em Lindoso (1984, p.37).

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ser visto como um efeito da ação política, não podendo ser pensado isoladamente da atividade das organizações camponesas, dos advogados e de outros agentes que atuavam no campo fluminense. Cabe, por isso mesmo, deter-me na caracterização desses agentes.

CONCORRÊNCIA E MOBILIZAÇÃO A ação política que se desenvolveu sobre os lavradores na Baixada se deve, em larga medida, aos dirigentes das Associações de Lavradores e da Federação das Associações de Lavradores do Estado do Rio de Janeiro (Falerj). De âmbito estadual, a Falerj coordenava as ações de suas associadas, que se voltavam para o nível municipal. Vale ressaltar aqui o importante papel desempenhado pelos comunistas na Falerj. Eles orientaram sua formação e acompanharam seu trabalho. Havia, entre os dirigentes da federação, camponeses que eram membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ou que eram “área de influência” dele. Alguns dos dirigentes vinculados ao PCB eram mesmo oriundos da cidade, com passagem pelo movimento operário ou por organizações de favelados, e que se deslocaram para o trabalho no campo.24 A criação de uma entidade estadual de representação dos lavradores precedeu a formação de associações locais e teve na Baixada, justamente, seu ponto de partida. De forma mais específica, foi na região de Xerém, em Duque de Caxias, que a entidade foi criada, no início dos anos 50. Sua base era composta de lavradores que vinham sendo alvo de tentativas de expulsão. Irradiando-se de Duque de Caxias, o trabalho de organização era feito a partir de áreas que enfrentavam problemas de despejo. Era na própria luta, nas resistências contra os despejos, e também nas ocupações, que eram criadas as associações. Dessa forma, apesar de se dirigirem para os lavradores em geral, era sobre os posseiros que, na prática, as associações concentravam suas atenções. Ao mesmo tempo, embora seu âmbito fosse municipal, eram os posseiros das áreas mais mobilizadas, dentro de cada município, que controlavam as associações. Da mesma maneira que suas associadas, a Falerj centrava suas ações sobre os posseiros, fazendo convergir suas atividades particularmente para a Baixada, apesar de sua pretensão de abarcar todo o estado do Rio. Seus quadros mais atuantes eram posseiros vindos, em grande parte, de Duque de Caxias e de Nova Iguaçu, e que se revezavam nos principais cargos de direção (Grynszpan, 1987, p.137-42).

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Para uma análise mais detida das relações entre o PCB e a Falerj, ver Grynszpan (1987, particularmente o capítulo 2).

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Contribuindo para a afirmação da presença de posseiros na Baixada, essas organizações, é fundamental destacar, conformavam seus próprios representados. Ao mesmo tempo, ao projetarem o posseiro como um novo ator político, apresentando-se como suas legítimas representantes e porta-vozes, elas impunham a si mesmas no campo político. Assim, à medida que era através da luta que se afirmava a presença do posseiro, era também, basicamente, através dela, da mobilização, que o grupo ligado à Falerj afirmava sua presença e sua força políticas. É preciso ver, contudo, que, se a ação política foi central na conformação dos próprios grupos de posseiros, isso não pode ser creditado tão-somente às relações que uma das forças presentes no campo fluminense, no caso a Falerj, influenciada pelo PCB, entreteve com os lavradores. Na verdade, uma vez que se afirmava como um novo ator na cena política, o posseiro passava a ser objeto de disputas entre diversos agentes que buscavam estender sobre ele o seu controle e que, em assim fazendo, contribuíam para legitimar e consolidar sua presença na região. Alguns líderes tradicionais e novos políticos em ascensão passaram a desenvolver uma estratégia de atração dos posseiros, incluindo-os em seus discursos e programas. Esse foi o caso do governador petebista Roberto Silveira. Ele, que já durante a sua campanha havia prometido proteção aos posseiros e uma reforma da estrutura agrária do estado, criou, logo no início de seu governo, em 1959, o Plano de Colonização e de Aproveitamento de Terras Devolutas e Próprias do Estado. O plano teria um executor e atuaria como um órgão do governo, voltando-se para os problemas e os conflitos de terra. Na verdade, o Plano de Colonização funcionou como um instrumento para a criação de bases do governo e para o fortalecimento da liderança individual de Roberto Silveira no campo. Suas realizações eram apresentadas pelo jornal Última Hora, ligado ao PTB, como frutos da ação pessoal do governador, ao mesmo tempo em que eram promovidas manifestações de lavradores, em Niterói, como o objetivo de agradecer a ele pelo que vinha sendo feito.25 É certo que diversas áreas tiveram sua desapropriação decretada pelo plano. Igualmente através dele, contudo, foram formadas associações e mesmo uma outra federação de lavradores paralela àquelas controladas pelos comunistas. Foi principalmente nas áreas em que o Plano desenvolveu alguma atuação que o governo Roberto Silveira criou suas associações, congregando-as, a partir de 1960, numa Federação dos Lavradores do Estado do Rio de Janeiro (FLERJ). A cooptação parece ter representado um mecanismo importante para a formação dessas associações de lavradores e, da mesma forma, para a competição com a já existente Falerj. Foi através da criação do Plano, 25

Última Hora, edição do estado do Rio de Janeiro, Niterói, 16/1/1960, p.2, e 22/3/1960, p.3.

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em larga medida, que a FLERJ pôde penetrar e disputar algumas das áreas controladas por aquela outra federação (Grynszpan, 1987, p.308-11). Com a morte de Roberto Silveira, em fevereiro de 1961, a FLERJ perdeu o apoio do Plano. O vice-governador Celso Peçanha, eleito pelo Partido Social Democrático (PSD), que havia, ainda nos anos 50, rompido com o PTB após um longo período de aliança na política estadual, mostrou-se sensível às pressões da Falerj e de entidades de trabalhadores urbanos ligadas a grupos de esquerda, nomeando para o Plano um diretor por elas aprovado. A FLERJ, entretanto, passou a contar com o apoio da Federação dos Círculos Operários Fluminenses (FCOC), que, através dela, procurou ampliar sua influência no campo. Entidade leiga criada nos anos 30 a partir do Rio Grande do Sul, os Círculos Operários inseriam-se, então, num movimento geral da Igreja Católica no sentido de promover sua doutrina e de reforçar seus vínculos com os trabalhadores. Atuando diretamente junto aos sindicatos, eles tinham em vista, ainda, como um de seus principais objetivos, conter a ascendência da esquerda entre os operários (Wiarda, 1969; Schneider, 1965; Bruneau, 1974). Apesar de, inicialmente, ter uma atuação voltada para os trabalhadores urbanos, os Círculos Operários buscaram também estabelecer bases junto aos camponeses. Eles lograram alcançar força considerável nas áreas rurais de estados como São Paulo e o próprio Rio de Janeiro.26 Em sua atuação no estado do Rio, juntamente com a FLERJ, os Círculos Operários desenvolveram uma intensa disputa com a Falerj e com o PCB, contando com o apoio, inclusive financeiro, do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) (Dreyfuss, 1981, p.310). Nessa disputa, que teve nos posseiros um de seus principais móveis, seu discurso se baseava em categorias como formação, promoção, conscientização e família.27 Suas linhas básicas de ação eram a criação de organizações e a assistência moral, material e, principalmente, jurídica, aos posseiros.28 Ações como as ocupações eram condenadas enfatizando-se que, se o objetivo era obter terras, isso deveria ser feito através de meios estritamente legais.29 Em sua disputa pelos lavradores, FLERJ e FCOF, por um lado, e Falerj e PCB, por outro, buscavam neutralizar-se mutuamente, ao mesmo tem26

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Para um estudo detalhado da formação da estrutura dos Círculos Operários, ver Wiarda (1969). Para uma análise de sua atuação específica no campo fluminense, ver Grynszpan (1987, particularmente os capítulos 4 e 5). Cf. Conclusões do VIII Congresso Nacional dos Círculos Operários, 1962, e Centro de Treinamento de Trabalhadores Rurais do Estado do Rio de Janeiro – CETTRERJ, s/d. Documentos cedidos por Eduardo Príncipe, que trabalhou junto à FCOF na formação de organizações camponesas. Relatório da Diretoria da Federação dos Círculos Operários Fluminenses, 1963. Documento cedido por Eduardo Príncipe. Entrevista com Laécio de Figueiredo Pereira, antigo presidente da FCOF, realizada em 1986. Ver também declarações do padre Antônio da Costa Carvalho, assistente eclesiástico da FCOF nos anos 60, em Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4/3/1964, 1o caderno, p.4.

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po em que tentavam ampliar as próprias áreas de atuação. Para tanto, procuravam deslegitimar as pretensões de seu opositor, apontando sua inconsistência, denunciando sua inautenticidade, negando que houvesse uma correspondência entre suas propostas e os “verdadeiros” interesses aos quais se dirigiam. Ainda que criticando o radicalismo e o açodamento da Falerj e das esquerdas, ainda que investindo no refreamento da mobilização, é preciso ver que a FLERJ e a FCOF se dirigiam, também elas, aos posseiros, reconhecendo-os e contribuindo, assim, para consolidar a sua presença. Ao mesmo tempo, isso levava a que, ao combaterem a moderação e o legalismo extremados das lideranças sob a influência da FCOF, os dirigentes da Falerj, por seu turno, terminassem por enfatizar, ainda mais, a combatividade, a mobilização e a luta. É claro, contudo, que a configuração de forças presentes no campo fluminense, particularmente na Baixada, atuando entre os posseiros, teve outros elementos além dos já referidos. Um deles, bastante importante, foi o grupo do então deputado federal Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque. Tenório construiu sua liderança política justamente na Baixada, a partir de Duque de Caxias, utilizando-se da violência e do clientelismo.30 Foi mais claramente na disputa pelo governo fluminense, em 1962, que Tenório, candidato pelo Partido Social Trabalhista (PST), começou a se aproximar dos posseiros. A cobertura que o seu jornal, Luta Democrática, fazia dos conflitos no campo do estado do Rio, antes lacunar, passou então a tornar-se sistemática. O periódico assumiu, de forma explícita, uma postura favorável às associações de lavradores e à Falerj, defendendo suas ações e seus interesses. Mais ainda, o próprio Tenório começou a intervir diretamente em algumas lutas, prestando seus serviços de advogado, providenciando a soltura de lavradores presos, pressionando autoridades por soluções favoráveis aos lavradores e denunciando violências na tribuna da Câmara. O que garantia espaço no Luta Democrática era, principalmente, a mobilização e a luta pela terra. Era, portanto, para os posseiros que o grupo de Tenório voltava suas atenções, e que o candidato destinava uma grande parte das medidas agrárias propostas em seu programa de governo.31 Deve-se ressaltar, entretanto, que os interesses de Tenório com relação aos posseiros extrapolaram o momento do pleito de 1962. Se a aproximação mais efetiva se iniciou a partir daqui, ela, todavia, não findou com a sua derrota para o petebista Badger Silveira, irmão de Roberto Silveira. Pelo contrário, o Luta Democrática manteve sua posição favorável aos lavradores e, mais ainda, um grupo ligado ao jornal e a Tenório iniciou um tipo de ação que ia bem além da mediação com as autoridades, do apoio e da 30 31

Para um estudo da trajetória de Tenório Cavalcanti, ver Beloch (1986). Cf. Luta Democrática, Rio de Janeiro, 12 e 13/8/1962.

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cobertura das lutas. Esse grupo passou a promover, ele mesmo, resistência e, principalmente, ocupações de terras.32 O que estava em jogo era a tentativa de formar uma máquina tenorista no campo com base em esquemas clientelísticos. Não se buscava o fortalecimento das organizações camponesas, mas, sim, a afirmação da liderança pessoal de Tenório e também de seu grupo, que passavam a se mostrar, eles mesmos, como distribuidores de terras aos posseiros. A execução desse projeto, contudo, acabaria gerando tensões entre o grupo e a sua antiga aliada, a Falerj (Grynszpan, 1987, p.325-29). Sem procurar percorrer todo o leque de forças que atuavam no campo fluminense, concentrando-se na Baixada, o que importa marcar, enfim, é que a entrada dos posseiros na cena política provocou deslocamentos e rearranjos. Reivindicações e palavras de ordem até então veiculadas apenas pelas esquerdas foram adotadas também por outros setores. As desapropriações, feitas a princípio pelo Governo estadual e depois pelo Federal, passaram a ser disputadas por políticos que procuravam mostrá-las como fruto de sua intervenção.33 Igualmente pequenos políticos, buscando ascender a afirmar sua liderança, bem como obter ganhos eleitorais mais imediatos, tentaram promover ações como resistências e ocupações. A própria ação do governo João Goulart, através da Superintendência de Política Agrária (Supra), criada ao final de 1962 com a incumbência de planejar e executar medidas de reforma agrária, contando, para tanto, com poderes especiais de desapropriação, contribuiu para que se formasse no estado do Rio um contexto favorável à mobilização através de resistências e ocupações.34 E foi na Baixada, justamente, que a intervenção do Governo Federal se fez sentir de maneira mais evidente. Foram quinze as áreas que tiveram a sua desapropriação decretada pela Supra, em todo o Brasil, até o final de 1963. Delas, cerca de 50%, isto é, sete, localizavam-se no estado do Rio, sendo praticamente todas, com exceção de apenas duas, situadas na Baixada.35 Além dessas, duas outras áreas seriam desapropriadas pela Supra ainda antes do golpe de 1964, ambas na Baixada. Tratava-se das fazendas Agro-Brasil, em Cachoeiras de Macacu, e Tocaia, em Magé. 32

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Para uma análise detida da atuação do grupo de Tenório no campo fluminense, ver Grynszpan (1987, particularmente os capítulos 4 e 5). Ver, por exemplo, o caso da desapropriação da Fazenda São Lourenço, em Duque de Caxias, em agosto de 1961, que era disputada por Badger Silveira e Bocayúva Cunha, do PTB e por Tenório Cavalcanti. Última Hora, edição do estado do Rio de Janeiro, Niterói, 21/8/1961, 2o caderno, p.1; Luta Democrática, Rio de Janeiro, 22/8/1961, p.2. Foi a partir de 1963, com o início das atividades da Supra, que as ações desapropriatórias, até então encaminhadas pelo governo estadual, passaram a ser de iniciativa federal. Relação das áreas desapropriadas no Brasil, Serviço de Planejamento Territorial da Supra. Documento cedido por Eduardo Martins, antigo técnico do Plano de Colonização de Terras Devolutas e Próprios do Estado.

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É certo que o caminho que levava do decreto de desapropriação à colonização das terras pelos lavradores era longo e tortuoso. Para que pudesse ser imitido na posse de um terreno, consumando a desapropriação, o governo deveria efetuar o pagamento da indenização que, segundo o parágrafo 16 do artigo 141 da Constituição de 1946, seria justa e em dinheiro. Como a justeza da indenização era passível de julgamento, isso significava que o pagamento não levava, necessariamente, à efetivação da desapropriação. Na verdade, muitas vezes a indenização nem mesmo chegava a ser paga, limitando-se o governo, que alegava não dispor de recursos suficientes, a publicar sucessivos decretos de desapropriação, que caducavam após algum tempo, possibilitando assim a reprodução das condições de conflito. Apesar disso, é igualmente certo que os decretos de desapropriação, sempre divulgados amplamente pelos jornais, por si sós, já representavam um tento a favor dos posseiros, legitimando suas aspirações. O próprio fato de serem avidamente disputados por diversos agentes é indicativo de sua importância política naquele momento. O Governo Federal também procurava extrair ganhos políticos das desapropriações e, igualmente, da mobilização. Através delas, ele tanto poderia aumentar sua credibilidade junto aos camponeses e outros setores quanto pressionar o Congresso para que aprovasse medidas mais efetivas que possibilitassem a realização da reforma agrária.36 Nessa investida, a Baixada, o maior colégio eleitoral do estado e vizinha à cidade do Rio de Janeiro, um dos mais importantes centros políticos do país, ocupou um lugar estratégico. Percebe-se, portanto, que a entrada dos posseiros no espaço político provocou deslocamentos e gerou ainda ao seu redor um processo de disputas. Desse processo, um dos resultados foi o reconhecimento de sua existência e de seus problemas. Mais do que isso, porém, foi a própria presença numérica dos posseiros que se ampliou em meio às disputas. Ainda que fossem distintas as representações que cada agente buscava impor dos posseiros, ainda que não fossem coincidentes suas propostas de ação, um efeito claro da competição foi o reforço da mobilização e da luta, das resistências e, principalmente, das ocupações.

CONCLUSÃO As questões desenvolvidas neste artigo têm um âmbito mais amplo do que o caso fluminense, ou mesmo o campesinato. De fato, elas dizem respeito ao 36

O governo João Goulart vinha se empenhando para que a Constituição fosse reformada, permitindo que as desapropriações fossem feitas não em dinheiro, mas em títulos da dívida pública. As fortes resistências por parte dos setores conservadores, no entanto, dificultariam a aprovação da medida, levando os grupos de esquerda a iniciar uma série de mobilizações, visando a pressionar o Congresso. Sobre esta questão, ver Camargo (1981).

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problema geral da formação, da inserção e da participação política de grupos e atores sociais, e seria mesmo interessante que também fossem aplicadas a outros atores, em outros cenários. O que busquei, com o estudo das lutas pela terra na Baixada, foi demonstrar que esses grupos e atores podem ser conformados pela ação política, que tanto pode conferir novos contornos a grupos preexistentes quanto pode, propriamente, constituir grupos em si. Essa ação se desenvolve por via de um trabalho de arregimentação, de agrupamento, de organização e de mobilização. Através dele o grupo se objetiva, apresentando-se com organizações, porta-vozes e lutando por seus interesses. Igualmente importante é o trabalho de nomear e tornar público o novo ator. O que se joga através dele, mais do que a simples atribuição de rótulos, é a imposição de uma forma de percepção do espaço social que, de um só golpe, legitime as pretensões do novo ator e deslegitime as de seus inimigos. Não basta, por isso mesmo, nomear apenas o novo ator. É preciso nomear também, ao mesmo tempo, seus inimigos e os problemas de que se afirma ser ele vítima. É dessa forma que se pode entender de que modo um fato cotidiano, corriqueiro, como a saída de lavradores das terras da Baixada, pode se transformar num despejo, numa questão social, num problema político. Viu-se como, no caso analisado, a Justiça e a imprensa se constituíram em arenas privilegiadas das lutas pela nominação. Na primeira, os embates se faziam por intermédio de advogados, que, esgrimindo seus argumentos, procuravam associar não apenas a legitimidade, mas igual, e principalmente, a legalidade aos lavradores. Já na segunda, o que se tratava era de conformar uma imagem pública para os posseiros e seus problemas. Para tanto, foram também importantes, além da imprensa, os eventos políticos, como as manifestações produzidos nas cidades. A inserção de um novo ator no espaço político transforma seus princípios de divisão, provocando deslocamentos e rearranjos, gerando disputas que, por sua vez, se refletem sobre o próprio ator e sua representação. Assim, pôde-se ver como a afirmação do posseiro, na Baixada, produziu em torno dele uma competição. Esta, por seu turno, além de contribuir para o seu reconhecimento no campo político, terminou por reforçar a mobilização e, por conseguinte, a própria presença de posseiros através de ocupações de terras. Dessa forma, a análise do caso das lutas pela terra, na Baixada, permite-me acrescentar que, se a ação política é conformadora de atores, ela não se dá de forma isolada, solitária. A competição e a diversidade políticas são, do mesmo modo, constituidoras das características sociais do novo ator. E mais, o próprio locus geográfico onde a ação se concentra pode passar, em função dela, a ser percebido de forma distinta, como ocorreu na Baixada, que assumiu feições de área de fronteira. 54

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2 TROMBAS: UM ENSAIO REVOLUCIONÁRIO* Paulo Ribeiro da Cunha

INTRODUÇÃO

No Brasil pós-Segunda Guerra Mundial, o campo emergiu com força na agenda política, o que foi particularmente ressaltado na Constituinte de 1946, quando várias propostas de reforma agrária foram apresentadas. Em que pese muitas delas fossem tímidas quanto à real possibilidade de equacionamento do problema fundiário no Brasil, sinalizavam que, nessa agenda, a questão fundiária passaria a ter centralidade nos anos subseqüentes. Ainda assim, pouco se avançou, já que a reação conservadora no parlamento se fez presente e, mesmo com os avanços sociais conquistados na carta constitucional, nesse quesito central, praticamente não se fizeram notar alterações substanciais. Mesmo as emendas parlamentares do Partido Comunista (que já ensaiava políticas de intervenção no campo), que tinha por objetivo a distribuição de terras no país e sustentar a tese da função social da propriedade, encontraram resistências de várias ordens no Congresso. A rigor, salvo políticas de colonização que tiveram por resultado a efetiva implementação de Colônias Agrícolas em áreas distantes do país (mas que, paradoxalmente, vieram a ser potenciais focos de tensão originando movimentos sociais tempos depois), reforma agrária era um tabu. Esse período democrático, no entanto, foi extremamente curto para os comunistas e os sinais da Guerra Fria já se faziam sentir no Brasil. Não demoraria muito e a burguesia, utilizando-se de uma sutil interpretação semântica da Constituição, cassou o registro do PCB e, pouco tempo depois, igualmente seriam cassados os mandatos dos parlamentares comu* Este ensaio recupera alguns apontamentos desenvolvidos em Cunha (2007).

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Trombas: um ensaio revolucionário

nistas. A resposta em contrário, como bem pontua Leôncio Basbaum, foi romper: com uma linha de direita, de franca colaboração com o governo e as classes dominantes, descobre o PCB o caráter de classe do governo e da nova Constituição, passando com um passo gigante para a esquerda. (Basbaum, 1976)

Em 1948, foi lançado o Manifesto de Janeiro, delineando a linha política revolucionária de confronto, que seria reafirmada pelos comunistas com o Manifesto de Agosto de 1950. Nesse meio-tempo, ocorreu um fato notável em nível mundial, com significativo impacto sobre a reflexão dos comunistas brasileiros, especialmente quanto às possibilidades de intervenção no campo: a Revolução Chinesa. Afinal, a China era o maior país do mundo e delineava com sucesso uma estratégia a ser seguida em países como o Brasil, fundamentalmente agrário e, de acordo com as teses partidárias, ainda com restos feudais a serem extirpados. O entendimento do PCB, na ocasião, era que as condições revolucionárias estavam maduras e que bastaria uma fagulha e o campo pegaria fogo. A estratégia vitoriosa na China indicava a possibilidade de sua transplantação ao nosso cenário. Não deixa de ser sintomático que a política a ser seguida era correlata àquele cenário, já que igualmente indicava a criação de áreas liberadas, remetendo a uma estratégia do campo cercando as cidades. Nessa linha de intervenção, neste ensaio procuro delinear uma compreensão do processo de intervenção em Trombas. Desenvolvo uma leitura a partir de um diálogo com Eric Wolf (1984) sobre sua análise das revoluções camponesas e a factilibilidade dessa abordagem para a compreensão de nosso cenário, até porque, nesse período e ao longo dos anos seguintes, eclodiram vários movimentos camponeses armados no Brasil, muitos deles ainda carentes de estudos específicos, mas que sinalizam o esforço dos comunistas em viabilizar uma estratégia correlata. Alguns deles foram bem-sucedidos; outros não passaram de estágios embrionários de organização e poucos tiveram um desenvolvimento localizado alcançando vitórias parciais e ou totais, embora, ao final, fossem equacionados regionalmente. Entre eles, nessa fase, dois se destacam: Porecatu, no Paraná,1 Formoso e Trombas, em Goiás, o objeto deste ensaio. Ao mesmo tempo, vale mencionar que nesses anos ocorreram outras lutas camponesas pelo país e dezenas de greves de arrendatários, meeiros, colonos, lutas e também o surgimento de organizações camponesas locais, regionais e a primeira entidade nacional, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas no Brasil (ULTAB), bem como foram fundados vários jornais que tratavam da temática, destacando-se o Terra Livre.2 1 2

Sobre Porecatu, remeto a Priori (2000). Entre os vários trabalhos sobre a temática, sugiro a leitura de Medeiros (1995 e 1989).

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ORIGENS DE UM PROCESSO Uma das várias colônias agrícolas implantadas a partir dos anos 40 com objetivo de distensionar o problema fundiário em outras áreas foi a Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG), no Município de Ceres. O projeto teve um impacto significativo, atraindo milhares de camponeses sem terras à região. No entanto, diante do afluxo crescente de posseiros e à impossibilidade de a colônia receber mais famílias, muitas delas começaram a afluir para Formoso e Trombas, uma área de terras férteis e devolutas ao norte. Os posseiros puderam se instalar com relativa tranqüilidade, por ali havia bem poucas fazendas e, mesmo assim, bem distantes. Não demoraria muito e, nos anos 50, com o avanço do capitalismo no campo e um cenário de forte valorização daquelas terras, grandemente facilitada pelo embrião da construção da Belém-Brasília e mesmo a projetada mudança da capital federal para o meio-oeste goiano (relativamente próxima da área de Trombas), o quadro político começou a se alterar. Os fazendeiros iniciaram a cobrança de arrendo e, paralelamente, teve início a grilagem das terras, processo grandemente facilitado pelo conluio do juiz da comarca de Uruaçu, entre outros personagens, com o proprietário do cartório local. Há também indícios de que outros atores estavam interessados naquelas terras, como militares (alguns deles golpistas em 1964) e empresas internacionais de mineração (Cunha, 2007, p.168). Mas, diante das muitas dificuldades, os posseiros resolveram não pagar nada e teve início a fase da repressão. Nas palavras de um antigo posseiro: virou campo de tortura, toda sorte de humilhação e desgosto a gente passava. O grupo de grileiros aumentava cada vez mais e de apenas fazendeiros de Uruaçu, agora também tinha fazendeiro e juiz de Porangatu. Eles tinham uma bolsa onde todos pagava uma contribuição pra poder contratar jagunço e a polícia. Olha, na região o camponês ganhava por dia 5,00 e os jagunços 100,00. Então, com a miséria que a região estava, apareceu o jagunço, mesmo até entre os posseiros, pois trabalhar na terra não dá nada, não dá dinheiro, a gente pode ter fartura, mas fica rico, isso nunca. A grilagem é sempre feita na cidade e com aprovação do governo, posseiros nunca tem direito e nem lei que nos socorre. (Depoimento do camponês D. in FERNANDES, 1988, p.130)

O processo de resistência teve início na área de Formoso, com a destacada atuação do camponês Firmino, que, segundo algumas fontes, tivera algum contato com o PCB em um período anterior, e, em Trombas, com a figura de José Porfírio. O primeiro procurou mobilizar os posseiros, enfrentando os grileiros e teve sobre seus ombros as conseqüências maiores de sua postura, sendo barbaramente torturado. Depois disso, ele não ficaria mais tempo na região. Em Trombas, José Porfírio também procurou equacionar a pendência com grileiros por vias legais e diálogo, tentando fazer acordos, inclusive 59

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de compra das terras. Tempos depois, ele esteve em Goiânia e consta que, posteriormente, foi ao Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, procurando a mediação do Governo Federal com objetivo de legalizar as terras.3 Paralelamente, na CANG, os comunistas já estavam bem estruturados, e, naquela ocasião, desenvolviam intensa campanha de mobilização, sem muito sucesso. Nessa fase exploratória de intervenção, já respaldada na Linha de seu IV Congresso de 1954, se fazia presente na região Gregório Bezerra, que, conjuntamente à tarefa de coleta de assinaturas em favor da Paz Mundial, organizava o PCB por Goiás e, clandestinamente, avaliava o potencial de aquela região vir a ser o foco combustor da Revolução Brasileira (Bezerra, 1980, p.86-7 e 96). Bezerra não ficaria muito tempo na área, mas o núcleo do PCB, na Colônia Agrícola, por ele rearticulado percebeu o potencial do conflito não muito distante dali e, de acordo com as novas diretrizes à esquerda, enviou para avaliar a situação Geraldo Tibúrcio, futuro presidente da ULTAB. Tibúrcio se encontrou com Firmino e, na volta, os comunistas decidiram enviar à região quatro escolados militantes para se fixarem no local, todos eles camponeses de origem e comunistas há algum tempo. Eles viriam a se constituir no Núcleo Hegemônico do PCB (NH), que permanecerá praticamente inalterado ao longo do conflito até 1964. Geraldo Marques era o militante mais ativo, aquele que expressava, por sua forte personalidade, um posicionamento firme nos momentos mais necessários; José Ribeiro foi apontado por muitos posseiros como o articulador político de todo o processo, sendo, entre eles, o mais ideologicamente preparado, tanto é que veio a ser o primeiro camponês a entrar no Comitê Central nos 60; João Soares, o mais idoso à época e tido, igualmente, como uma liderança carismática e que seria, inclusive, enviado à URSS pouco tempo depois; e, finalmente, Dirce Machado, militante comunista de longa data e que desenvolvia uma intervenção política e de mobilização que foi determinante junto às mulheres. A essa composição do Núcleo Hegemônico se somaria depois José Porfírio, a liderança mais carismática e face externa do movimento. Posteriormente, outros quadros seriam enviados para intervir no processo da luta e incorporados; a mobilização decorrente extrapolaria e muito a esfera partidária. Nessa fase inicial, após a saída de Firmino, teve início para os militantes um penoso e difícil processo de organização e conscientização na área de Formoso. As dificuldades de serem aceitos pelos posseiros eram muitas, particularmente pela condição de comunistas, um tabu enorme entre eles. Não demorou muito, ouviram falar de José Porfírio em Trombas. Várias pistas sugerem que foi a partir desse momento que a organização teve um 3

A recente dissertação de Esteves bem recupera essa fase, valorizando inclusive essa forma de resistência e resgatando em sua leitura preciosos documentos comprobatórios dessa atuação (ESTEVES, 2007).

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salto quantitativo e qualitativo. Algumas fontes indicam que Porfírio teve algum contato com quadros comunistas em anos anteriores à sua ida a Trombas, mas, concretamente, há muitos relatos que apontam sua enorme dificuldade de apreender o programa partidário. Num depoimento revelador, Geraldo Marques pontua que: Nós ficamos um ano andando de casa em casa, explicando tudo, a gente logo conseguiu muito nego macho, mas não era a maioria. E o coletivo tava acima de tudo. Fomos procurar o líder dos posseiros, José Porfírio. [...] Passei três dias lá com ele, discutindo tudo, lendo a Voz Operária. Falando que a luta dele era ilusão, e que grota existia muita. Mas o Zé Porfírio era um home que acreditava na bondade dos outros. Ele não agradecia nem o bem que os outros lhe fazia e nem não revidava o mal, porque ele achava que o bem a gente tem que fazer mesmo e o mal era feito porque não sabia se fazer o bem. Ele demorou muito a entender o que é o latifúndio capitalista. Mas logo achou o programa do Partido justo. Não queria terra só pré ele, mas prá todos os camponeses do Brasil inteiro. Isso é que era justo. Logo começou também a ir de casa em casa. Ele era respeitado pelos camponeses. E durante um ano nós trabalhamo muito tempo, mostrando os direitos de todos de lutar pelo necessário à sua sobrevivência. (Fernandes, 1988, p.130)

Mesmo assim, esse encontro ainda não possibilitou que a organização se viabilizasse imediatamente, embora, naquela ocasião, não restasse aos posseiros de Trombas outra alternativa que não fosse a resistência. Pouco tempo depois, seria fundada a Associação dos Lavradores do Formoso, que teve inclusive a presença de um advogado do PCB, vindo de Goiânia, e o apoio entusiasmado dos posseiros, sendo eleito, na ocasião, como presidente, José Porfírio e como secretário José Ribeiro. Não demorou muito, explodiu o conflito. Ainda que o processo de organização dos posseiros fosse frágil e estivesse em curso a preparação da resistência, já acontecendo o envio de assistentes políticos do Comitê Central à área, tendo inclusive referências do envio de algumas armas, a precipitação do conflito se deu justamente com a tentativa de um dos grileiros de expulsar um dos posseiros, Nego Carrero. Ele era famoso pela valentia e resistiu a tiros, baleando de morte um sargento e ferindo outro policial. A partir desse momento, a região tornou-se um palco de luta. O processo decorrente remeteu a luta a uma nova fase de intervenção, sendo constantes as escaramuças. Houve um período de tensão enorme. A liderança dos posseiros – leia-se o NH – caiu na clandestinidade para melhor dirigir a resistência. Entendo que, nesse momento, a revolução esteve na ordem do dia. A partir desse processo de resistência e com o conflito em curso, mais armas foram enviadas à região, como também teve início, pouco tempo depois, uma articulação política maior junto aos demais setores da sociedade civil goiana e também nacional no sentido de galvanizar apoio à causa. 61

Trombas: um ensaio revolucionário

Essa fase, contudo, foi essencialmente armada. A estratégia ali desenvolvida, de autodefesa armada, sugestivamente incorporava táticas de guerrilhas (Moraes, 1991 e 2005. p.72) ao processo de resistência, algumas delas próximas às utilizadas na Revolução Chinesa. Segundo Sebastião Abreu, também eram populares os escritos de Mao Tsé Tung, que circulavam com desenvoltura entre os posseiros (Abreu, 1985, p.76). Paralelamente, não foram poucos os cursos de formação política ministrados por assistentes do PCB aos militantes de Trombas, alguns deles em Goiânia, bem como foi intenso o processo de politização. Mas a tensão e o conflito eram igualmente constantes e, nessa ocasião, ocorreu o confronto mais conhecido, a Batalha de Tataíra, quando os posseiros forçaram o recuo dos policiais, estes últimos em maior número. A partir desse momento e do impasse militar, o quadro político também sofreu uma alteração significativa. Tendo o governo do estado de Goiás decidido pôr fim à luta, vários fatores intervieram para o equacionamento político e a trégua decorrente. A rigor, várias mediações foram decisivas para que não ocorresse a invasão da área de Trombas e seu aniquilamento armado, inclusive porque tropas policiais chegaram a ficar aquarteladas no vizinho município de Porangatu, esperando somente uma ordem de invasão (Cunha, 2007, p.184 e ss). Uma das mediações mais importantes foi a firme decisão dos posseiros em resistir, seguida pelo posicionamento do Núcleo Hegemônico em dar visibilidade a José Porfírio, escudando para o público externo qualquer vínculo dos comunistas estarem atuando na área. Como decorrência, o PCB viabilizou, em seguida, por meio de seus militantes e entidades como a ULTAB, uma campanha regional e nacional de denúncias das atrocidades na região, o que trouxe enorme impacto à causa dos posseiros. Decorreu uma significativa mobilização da sociedade civil goiana em apoio aos camponeses, particularmente dos estudantes. Quase ao mesmo tempo viabilizou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito que, mesmo não trazendo resultados concretos quanto ao equacionamento do problema fundiário, possibilitou, pela enorme pressão sobre os deputados e o governo, que as tropas policiais fossem retiradas. Um dos fatores correlatos que igualmente podemos inferir como determinante nesse processo decorreu de uma postura crítica da Igreja Católica e do apoio de alguns prelados à causa dos posseiros, o que diferenciava da tradicional postura de omissão e mesmo de apoio à intervenção. Sugestivamente, podemos contabilizar, como mais um fator de pressão, a postura crítica do Governo Federal em relação ao governo de Goiás. Afinal, Brasília já saía das fundações, mas a pressão contra a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para o planalto goiano ainda encontrava resistências enormes, particularmente no quesito segurança. Por fim, o Partido Comu62

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

nista, desarticulado como estava diante das denúncias do stalinismo e o virtual afastamento da militância e de sua organização, especialmente em Goiás, reestruturou-se na tarefa de bem equacionar o conflito de Trombas, legitimando-se como um canal de intervenção e possibilitando afiançar um acordo que retirasse as tropas da região. Com relação a essa última mediação, vale ponderar o seguinte: com a crise provocada pelo XX Congresso do Partido Comunista da URSS, o PCB praticamente se desestruturou e, mesmo na região, os posseiros ficaram algum tempo isolados. Todavia, diante das características desse partido em Goiás, eminente urbano e intelectualizado, o impacto foi bem mais significativo. Nesse sentido, vale registrar que a rearticulação dos comunistas em Goiás, mas também as orientações políticas decorrentes ao equacionamento da problemática de Formoso – nada isolado das mediações anteriormente postas – teve a decisiva atuação de Antonio Granja,4 dirigente comunista histórico e camponês de origem, que, ao voltar da URSS, juntamente com uma safra de quadros políticos e militantes, se reintegrou ao processo de reorganização partidária. Ele, especialmente, assim que chegou ao Rio de Janeiro, foi enviado diretamente a Formoso e a Trombas, onde teve destacada atuação na condição de assistente do Comitê Central. Ao final desse conflituoso processo, as tropas estaduais foram retiradas e teve início uma nova fase do movimento, em que a região foi relegada ao abandono, tendo os posseiros, através da Associação, assumido o controle da área e o virtual governo do território. Concretamente, como sugere Wolf em casos correlatos em sua análise sobre as revoluções camponesas, diante da impossibilidade de uma articulação – por vários motivos – a um projeto nacional, as revoluções camponesas tendem invariavelmente ao isolamento e, por conseqüência, ao equacionamento no plano local ou regional do conflito (Wolf, 1984). Igualmente emerge, nessa fase, o mito da República de Formoso e Trombas, que seria apreendido ao longo dos anos seguintes por autores e atores de tendências políticas e ideológicas diametralmente opostas. É um momento que possibilita aos posseiros uma certa tranqüilidade. Nas palavras de um deles: Foi a primeira vez que nós comemorou uma vitória. Cada qual podia agora cuidá da sua terra, plantá e colhê. O sistema de mutirão foi muito incentivado. E a traição também. A traição era uma brincadeira que a gente tirava com os companheiros chegante ou em dificuldade, que por qualquer motivo não tava dando conta de tirar a produção para a família. A traição era uma forma alegre e solidária de união dos posseiros. (depoimento do camponês N. in: Fernandes, 1988, p.150)

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Além das entrevistas ao autor, vale conferir a recente biografia de Granja feita por Dino de Oliveira Gomes (GOMES, 2006).

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Trombas: um ensaio revolucionário

Essa fase – a partir de 1957 – é também caracterizada pela formação de uma das expressões democráticas mais conhecidas do processo de organização desse movimento, ou seja, os Conselhos de Córregos. Sugestivamente, pontuo, nesta reflexão sobre a temática, que há uma aproximação conceitual em Gramsci sobre a relação do Partido e os Conselhos,5 até porque a Associação sempre fora a instância e a face política legal do PCB ilegal em Trombas, quando seus militantes estimularam a formação dos Conselhos, organismos que nucleavam os moradores de vários locais. Neles, os posseiros equacionavam pendências, como também viabilizavam o controle da área, possibilitando uma comunicação eficiente e, numa emergência, deslocamentos de doentes. Até 1964, a região teve 25 conselhos atuando com graus diferenciados de organização em três Associações. Essa fase, no entanto, igualmente possibilitou – apesar de certa tensão ainda presente e eventuais atritos com jagunços – uma relativa prosperidade, à medida que houve possibilidade de plantio e, particularmente, de colheita. Na linha de consolidar as conquistas e viabilizar uma estratégia de salvaguarda em futuros conflitos, a Associação (leia-se NH) teve a iniciativa de articular uma aliança com lideranças de municípios vizinhos, no sentido de propiciar apoio político, tendo em retorno a presença da máquina pública municipal às demandas mais sentidas dos posseiros, como escolas e melhoria das estradas. O cenário de isolamento, no entanto, começa a ser alterado pouco tempo depois e por várias razões. Uma delas é bem descrita por Abreu: em 1958, o governo do estado se convenceu de que não podia mais continuar ignorando a existência de Formoso e Trombas, estas duas vilas eram, em todo o estado, as que apresentavam os mais baixos índices de criminalidade. Em quatro anos, não ocorrera em nenhuma das duas qualquer homicídio ou mesmo lesão corporal de caráter doloso. Apenas alguns furtos foram registrados e as poucas brigas aconteciam entre rapazes e eram motivadas por disputas amorosas. Afinal, Formoso e Trombas era o Brasil. (Abreu, 1985, p.97)

Contudo, esse período de impasses e tensões perduraria até o início de 1960, quando emergiu na cena política goiana Mauro Borges e novos tempos se anunciaram no horizonte brasileiro.

UM NOVO CENÁRIO E NOVOS DESAFIOS O Brasil entre 1960 e 1964 sugeria um novo momento. Na esquerda também havia outros atores como a AP (Ação Popular) e as Ligas Camponesas a 5

Sobre a especificidade desta reflexão, ver Cunha, 2007, Introdução.

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influenciarem no processo ou se fazerem presentes nele. Em Goiás não foi diferente, e o estado foi palco e reflexo dessa influência nacional e internacional com desdobramentos locais. No plano internacional, ocorreu a Revolução Cubana, com forte impacto sobre a militância, mas, especialmente, sobre as Ligas Camponesas que, sob a influência direta de Francisco Julião, procuravam capitalizar setores do campesinato à sua causa (Gorender, 1987, p.47-8). Enquanto movimento e proposta de intervenção, as Ligas tentaram, inclusive, formar dispositivos militares e cooptar militantes comunistas, bem como vários participantes das lutas de Trombas, sem muito sucesso e com conseqüências danosas, já que o campo de Dianapólis, o mais conhecido, naufragou sob as mais elementares normas de segurança, tendo por epílogo a invasão militar da área.6 Quanto aos comunistas, já ensaiavam uma nova linha de intervenção a partir de Declaração de Março de 1958, em que a democracia tinha centralidade e valorizavam muito a luta dentro da perspectiva das reformas de base, entre elas a reforma agrária. Seguramente, para a maioria de seus quadros, já havia passado a política de Terras Libertas. A explosiva questão fundiária ensaiava, para os comunistas, outras formas de intervenção, especialmente após o Congresso Camponês de Belo Horizonte de 1962, prelúdio da formação da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) pouco tempo depois.7 No entanto, vale ressaltar que muitos militantes ainda intervinham em muitos conflitos – diante do cenário combustor e violento do meio rural brasileiro e as reações em contrário – em uma atuação quase osmótica na linha anterior. Um exemplo foi a Guerrilha de Porangatu, em que os comunistas atuaram quase que com os mesmos pressupostos. Todavia, em Formoso e Trombas, o quadro político era de equacionamento do problema fundiário. O Núcleo Hegemônico apoiou Mauro Borges entusiasticamente, já que ele prometera, se eleito, legalizar as terras da região. Sua política sugeria um processo de modernização e nele os comunistas estavam atuantes em várias instâncias, especialmente em alguns órgãos e secretarias, particularmente a do Trabalho. Nesse sentido, a região de Trombas começou gradualmente a se inserir no processo institucional de Goiás, bem como a sentir os efeitos do avanço do capitalismo no campo. Por um lado, politicamente, o PCB continuava a ser a força hegemônica, tendo, inclusive, adquirido feições de um partido de massas em Formoso e Trombas; por outro, passou a sentir conjuntamente esse avanço sobre os posseiros e os efeitos desse processo. Mesmo assim, os posseiros não deixaram de intervir e participar dos vários acontecimentos nacionais, tendo,

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Sobre essa questão, há vasta literatura. Ver especialmente: Rollemberg (2001). Sobre esse debate, ver: Costa (1996) e Cunha (2004).

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inclusive, se mobilizado para uma eventual resistência armada, tendo em vista garantir a posse de João Goulart, quando da crise ocasionada pela renúncia de Jânio Quadros. Paralelamente, os posseiros participaram ativamente das eleições legislativas, elegendo José Porfírio o primeiro deputado camponês da história. Pouco tempo depois, José Ribeiro veio a ser o primeiro camponês no Comitê Central, quando da realização do V Congresso em 1961. Isso, por si só, demonstra como Formoso e Trombas adquiriram uma importância ímpar quando comparados a outros movimentos, bem como o lugar desse campesinato na história do Brasil naqueles dias, aspecto igualmente reafirmado pela participação dos seus quadros na formulação das teses do I Encontro Camponês de Goiânia em 1963. Essa fase última, no entanto, é de singular desafio e reflexo de um difícil equacionamento. Um deles, curiosamente, adveio da relativa tranqüilidade na região, bem na linha que resultou naquilo que Wolf intitula “crise do exercício do poder diante dos desafios” (Wolf, 1985). Muitos dirigentes começaram a se dedicar mais às suas propriedades e, ao mesmo tempo, teve início a ocupação por posseiros – diante do processo de legalização em curso – advindos de outras áreas, sem nenhuma relação com a atividade revolucionária existente, modificando, gradualmente, o quadro fundiário. A política nacional igualmente refletia no local, à medida que os pressupostos da Revolução Brasileira estavam sendo gestados em um explosivo e conturbado processo que seria abortado pelo golpe militar de 1964. Isso significava estabelecer um novo referencial para a política futura na região, algo que caracterizo como o Nó Górdio de Formoso e Trombas. Um outro aspecto concernente a essa crise remete ao conflito com o PCB em Goiás, algo que não era recente. De certa forma, numa atitude política pouco avaliada, o Diretório Regional propôs inclusive a destituição de um dos líderes históricos em Trombas, Geraldo Marques, algo prontamente recusado pelo Núcleo Hegemônico. Curiosamente, entendo que essa aventada possibilidade de intervenção possibilitou uma rearticulação política local e a elaboração de tímidas políticas para a fase subseqüente. De qualquer forma, essa crise política permitiu, de fato, uma rearticulação e um entendimento para a política maior no momento, que seria a emancipação do município de Formoso e a nomeação de um dos seus históricos dirigentes, Bartolomeu Alves da Silva, para prefeito. Um segundo desafio recolocava o papel da Associação, à medida que já havia uma diferenciação social crescente, com razoável número de trabalhadores assalariados, portanto, já se avaliava a formação de um sindicato. Por fim, a formação de uma cooperativa, que possibilitasse a aglutinação das conquistas e que sinalizasse para a possibilidade de avanços no processo de trabalho comunitário diante do quadro capitalista em curso. 66

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

1964: O TEMPO FECHOU Com o golpe de 1o de abril de 1964 e seus desdobramentos, houve certa expectativa de resistência em Goiânia e posteriormente em Trombas. Na capital, a direção do PCB aguardava um posicionamento favorável de Mauro Borges, na mesma linha de compromisso com a legalidade quando da renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart. Alguns militantes, inclusive, planejaram transferir a sede do governo para Trombas, diante das dificuldades de resistência efetiva, por Goiânia estar próxima a Brasília, e, de lá, desencadear um movimento de retorno à constitucionalidade. Contudo, essas esperanças rapidamente se esvaeceram quando Mauro Borges tomou posição ao lado dos golpistas, os mesmos que iriam cassá-lo pouco tempo depois. Paralelamente, em Brasília, o deputado comunista Marco Antonio Coelho igualmente ensaiou um plano de resistência que incorporaria a região de Trombas como cenário maior. Articulado com o ex-tenente Walter Ribeiro e com Valter Waladares, que, como estudante, fora um ativo participante da luta de Trombas, planejaram se reunir na região e, dali, iniciar uma resistência efetiva ao golpe em curso. Marco Antonio Coelho adverte em suas memórias que essa possibilidade somente se efetivaria com o firme posicionamento de João Goulart em defesa de seu mandato e com ele à frente do processo de resistência, intenção que logo se frustraria com a ida de Goulart para o exílio, sem esboçar a mínima reação (Coelho, 2000, p.267). Em Trombas, ocorreu o reencontro do Núcleo Hegemônico bem como o de outros militantes advindos da capital, Goiânia. Debateu-se intensamente sobre a possibilidade de resistir ao golpe, tendo se chegado a duas posições ao final: uma de José Porfírio, defendendo a resistência aos golpistas, e outra, que aglutinava os demais membros do PCB, que argumentavam em contrário. Com as notícias indicando que não havia reação nacional em curso e diante da impossibilidade de atuar isoladamente, acabou prevalecendo a posição de recuo. As armas existentes foram escondidas em uma grota isolada e, em seguida, as principais lideranças caíram na clandestinidade. Não demoraria muito, a região seria invadida por tropas policiais e um interventor nomeado para a prefeitura de Formoso. A Associação e os conselhos deixaram de existir. Ainda assim, um núcleo comunista se rearticularia em Trombas pouco tempo depois do golpe, atuando muito timidamente. Mas o mito da República de Formoso se fazia presente e militantes do PCdoB, com o objetivo de viabilizar a Guerrilha do Araguaia, começaram a sondar as possibilidades de cooptar os posseiros de Trombas para aquele projeto. Mais tarde, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (uma dissidência da Ação Popular) começou a desenvolver intensa atividade na área com o mesmo objetivo, com um pouco mais de sucesso. Este último conseguiu inclusive a adesão 67

Trombas: um ensaio revolucionário

do José Porfírio. Em meados dos anos 70, com a detecção da Guerrilha do Araguaia, a região foi invadida de forma extremamente violenta, desta feita por tropas do Exército e também da polícia militar. Dezenas de posseiros foram presos e muitos deles violentamente torturados. Algumas das armas escondidas em 1964, bem como algumas munições, foram encontradas, todas em péssimo estado de conservação. Desta feita, muitos dos antigos dirigentes comunistas, bem como muitos posseiros, foram confrontados com uma cópia da Constituição de Trombas, documento forjado ainda no pré-64, que objetivava criar uma situação de tensão e proporcionar condições para a intervenção do exército na área. O documento8 sustentava em seu preâmbulo que: O povo das Trombas e Formoso, por seus representantes, em Assembléia Constituinte, para organizar juridicamente o Estado das “Trombas” sob o regime Comunista, decreta e promulga a seguinte:

CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DAS “TROMBAS” Art. 1o – O Estado das Trombas está situado no Brasil Central, paralelo 14 norte de Goiás, 250 quilômetros de Brasília, parte integrante e autônoma sob Regime RUSSO, exerce em seu território todos os poderes que explicita ou explicitamente, lhe são vedados à Constituição de Moscou. Art. 2o –São poderes do Estado, o executivo e judiciário, combinado com executivo regido pelo Sr. Ditador JOSÉ PORFÍRIO DE SOUZA. Art. 3o – è vedada a publicação e a liberdade de pensamento. Art. 4o – O Estado das Trombas, fica compreendido dentro dos seguintes limites: ao norte com Parangatu e Peixe; ao leste, com Niquelândia; ao sul, com Pirenopólis; ao oeste, com Itapeci. Art. 5o – O Estado das Trombas é administrado sob o regime de comissão executiva, com poderes especiais, assim compreendidos: Comissão da Cana Brava, Comissão do Rodovalho, Comissão do Vai e Vem, Comissão do Formoso, Comissão de Estrela do Norte (vargem do coelho), Comissão do Morro de Campos, Comissão da Chapada, Comissão da Fazenda de São Sebastião, Comissão da Fazenda de Santa Maria, Comissão de Camponorte e Comissão de Trombas, Capital do Estado. Art. 6o – São autoridades do Estado das Trombas: José Porfírio de Souza, Ditador. E são os seguintes chefes de Comissão: José Márquez Vianna, Joaquim Correia, Tiago Custódio Batista, Burandanga, João Soares, José Ribeiro, Rodolfo Fernandes. São orientadores de Comissão: Deputados Mendonça Neto, Chico de Brito, Dr. Everardo de Souza, Dr. Domingos Velasco, Dr. José Ludovico de Almeida (governador de

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Há uma cópia muito apagada dessa Constituição no arquivo do DOPS localizado na Universidade Federal de Goiás. O documento também é citado em vários jornais entre 1971 e 1972, coincidentemente, o período mais agudo da repressão na área. Sugestivamente, consta nele como data de sua elaboração 2 de março de 1957; mas vários entrevistados do autor sustentam que fora elaborado e passara a circular em fins 1963. Sobre este aspecto ver Cunha (2007) e Esteves (2007, p.132-3).

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Goiás) Ubiratan de Lemos e José Medeiros (repórteres de O CRUZEIRO), Dr. José Gomes e Dr. Teles (Secretários de Segurança Pública e Interior do Estado de Goiás). Art. 7o – É vedado o intercâmbio comercial com qualquer estado do Brasil. Art. 8o – São imunes e impunes os que praticam o assassínio a bem de nosso regime e livre o direito de matar. Art. 9o – Os Chefes de Comissão são invioláveis no exercício de seu mandato. Art. 10o – É vedada a penetração de policiais, de qualquer estado dentro do perímetro do Estado das Trombas. Art. 11o – Serão impunes e invioláveis cidadãos de qualquer parte do mundo que praticarem crime e auxiliar no Estado das Trombas. Art. 12o – As terras de propriedade privada serão divididas aos intrusos e invasores, pelas comissões executivas. Art. 13o – O Estado das Trombas elegerá reforços de Comissões para manter a ordem do regime. Art. 14o – O Estado das Trombas *********** qualquer povos circunvizinhos de auxiliar o crescimento de nosso regime e criar novos estados sob regime russo. Art. 15o – Compete privativamente o Ditador: I – Ser jurado, promulgar e fazer publicar leis ****** decretos e regulamentos para fiel execução. II – Nomear e demitir os chefes de Comissão e reforçar os postos militares de excepcional importância, com trincheiras necessárias, para a defesa das **** aqui constituídos e das terras que compõem do Estado das Trombas. Art. 16o – Esta lei foi constituída em 02 de março de 1957 e agora publicada e distribuída ao presidente da República do Brasil e a todos os estados do Brasil pra que dela tomem conhecimento e faça respeitar em todos esta constituição. Art. 17o – Revoga-se as disposições em contrário. José Porfírio – Ditador João Soares – Secretário

Os artigos eram de tal ordem estapafúrdios que nem foram anexados aos IPMs sobre Trombas. Mas, a partir da segunda invasão, desapareceu qualquer atividade de esquerda em Formoso e Trombas. Aos poucos, os antigos posseiros foram se mudando e desapareceu o grupo originário dos anos 50, sendo essa uma virtual política de estado. O quadro fundiário e político resultante na região é revelador por este depoimento: Apesar de 64 e tudo que veio depois a nossa luta, nós entendemos assim que nós nunca vamos esquecê a união. Que nós estamos calado, porque ainda não pode fazê nada, só uma coisa, não ajuda eles (o governo). Mas nós aprendemos a lição, o coletivo, e vimos que não é terra que importa, é o sistema de ter terra. Porque depois que acabou a Associação a maioria dos camponeses teve que ir embora, porque acabou o mato, a terra só servia para gado e nós tivemos que ir por falta de recurso de recuperá a terra e pela repressão. (Camponês W. in: Fernandes, 1988. p.130)

Desata-se o Nó Górdio de Formoso e Trombas, lamentavelmente, pelos militares. Fecha-se um ciclo histórico, inicia-se outro, ainda a ser resgatado. 69

Trombas: um ensaio revolucionário

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3 O MASTER E AS OCUPAÇÕES DE TERRA NO RIO GRANDE DO SUL* Cordula Eckert

O Movimento dos Agricultores Sem-Terra (Master), que se desenvolveu no Rio Grande do Sul de 1960 a 1964, mobilizou mais de cem mil agricultores organizados em Associações de Agricultores Sem-Terra, destacando-se pela formação de acampamentos junto às áreas que pretendiam fossem desapropriadas pelo governo estadual. Essa mobilização forçou, na prática, uma campanha pela reforma agrária. O surgimento do Master ocorreu durante o governo Brizola (1959-63), que apoiou e estimulou o Movimento. Manteve-se ativo ainda durante o governo de Ildo Meneghetti (1963-67) e, apesar da grande repressão a que foi submetido, demonstrou capacidade de sobrevivência. Com o golpe de 1964 desarticulou-se, à semelhança de outros movimentos populares urbanos e rurais nacionais. INÍCIO DA ORGANIZAÇÃO CAMPONESA NO RIO GRANDE DO SUL O campesinato surge como uma força social organizada em nível nacional a partir da década de 1950, colocando no cenário político a discussão sobre a questão agrária. No Nordeste, em Goiás, em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Paraná e no Rio Grande do Sul surgiram vários movimentos, com destaque às Ligas Camponesas e à União dos Lavradores e Trabalhadores do Brasil (ULTAB), que estimularam a organização de camponeses de outros * Este artigo tem por base a dissertação de mestrado (Eckert, 1984) submetida ao curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, sob orientação da professora Leonilde Servolo de Medeiros.

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O Master e as ocupações de terra no Rio Grande do Sul

estados, somando-se à luta nacional pela reforma agrária. Esse processo de organização e agregação nacional passou a ser um dos aspectos principais das reformas de base defendidas no período. Conforme Carvalho (1979, p.172), “pode-se dizer que a reforma agrária vai constituir o ponto de convergência de outras questões fundamentais: o problema propriamente agrário, o problema regional, da redefinição das forças sociais e do bloco no poder”. As primeiras propostas de organização de agricultores no Rio Grande do Sul ocorreram por iniciativa do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que tinha em vista formar sindicatos de assalariados rurais. Os primeiros sindicatos desse tipo foram criados em Pelotas, em Jaguarão e em São Gabriel, tendo sido fundados por volta de 1954, mas sem reconhecimento legal. Os comunistas também foram responsáveis pela organização de embriões de sindicatos em outros municípios, onde, em geral, predominava o assalariamento rural.1 A criação das Ligas Camponesas do Nordeste, no final da década de 1950, havia feito com que esses núcleos organizados pelo PCB passassem a ser denominados de Ligas, com a intenção “de fazer um movimento homogêneo” (Entrevista com Ari Saldanha, agosto/1982).2 No início dos anos 50 registrou-se a realização das duas primeiras Conferências Regionais de Trabalhadores Rurais no Rio Grande do Sul, com a participação de representantes dos municípios nos quais o PCB vinha desenvolvendo um trabalho organizativo com camponeses (Jornal Terra Livre, julho de 1954 e n.50 e 74). Essas Conferências regionais faziam parte das atividades preparatórias para as Conferências Nacionais organizadas pela ULTAB, em São Paulo, em 1953 e em 1954. Por outro lado, em termos de confronto direto, três acontecimentos envolvendo posseiros merecem ser mencionados: um em 1952, em São Francisco de Paula, e outros dois em Taquara, em 1952 e 1953. Os conflitos em questão envolveram ações da Brigada Militar com o objetivo de expulsar posseiros dessas áreas, que eram devolutas. Outra mobilização pela terra, na década de 1950, da qual se tem notícia, ocorreu em Erechim, onde eram reivindicadas as terras de um latifúndio. Tem-se conhecimento, também, da realização de um acampamento promovido por trabalhadores temporários do frigorífico Swift & Armour (Entrevista com Ari Saldanha, agosto/1982 e novembro/1983), os quais, durante o governo de Walter Jobim (1947-50), haviam reivindicado, com o apoio do PCB, a estância da Armour em Uruguaiana. Esse movimento foi liderado por Aladin Rosalo, um operário da Swift que, em 24 de setembro 1

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São os municípios de Santana do Livramento, Rosário do Sul, Cacequi, Santiago, Itaqui, Arroio Grande, com predomínio da pecuária extensiva; Cachoeira do Sul e Camaquã, onde, além da pecuária, se desenvolvia a cultura do arroz irrigado; Santo Ângelo, com predomínio das culturas de soja e trigo; e ainda Jaguari e Erechim, municípios com presença relativa da pecuária de corte, mas com uma estrutura fundiária mais equilibrada. Ari Saldanha foi importante liderança do PCB gaúcho, mais voltado às ações no meio rural.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

de 1950, foi assassinado pela polícia junto com outras três pessoas, caso que foi identificado pela imprensa local como a “chacina de Uruguaiana”. Cabe ainda mencionar as manifestações de triticultores, no ano de 1956, em favor de melhores preços e outras medidas em prol da triticultura nacional, quando chegaram a realizar uma passeata de protesto na cidade de Bagé (Jornal Terra Livre, n.69). Essa mobilização foi retomada posteriormente, em 1960, culminando com greves e diversas manifestações, principalmente, nas cidades do Alto Uruguai (Novos Rumos, 22 a 28/04/60). Esses registros indicam a existência de um trabalho de mobilização que, mesmo incipiente, aponta para a acumulação de experiências vividas pelos trabalhadores no campo e que colaborou para a emergência do Master.

O AGRICULTOR SEM-TERRA E A ORIGEM DO MASTER Dois aspectos do processo de desenvolvimento da agricultura gaúcha apresentam importância para o entendimento do surgimento dos semterra no Rio Grande do Sul. O primeiro é o alto índice de concentração da propriedade da terra e o segundo é o esgotamento da fronteira agrícola do estado. Essas causas, inter-relacionadas, provocaram a emergência de uma parcela da população rural, para a qual se reduziram as possibilidades de acesso à terra com baixo custo e em dimensão suficiente para manter parcelas de reserva que considerassem as futuras necessidades de reprodução dos filhos como agricultores. Pelas informações obtidas em jornais da época, pode-se estimar que os sem-terra que o Master buscou aglutinar englobavam: os assalariados permanentes e temporários que, pela pouca geração de empregos no campo e pelas más condições de trabalho oferecidas, ansiavam pela posse da terra como forma de garantir a sua sobrevivência e da família; os posseiros, parceiros, arrendatários e agregados que, apesar de terem acesso à terra, o faziam de forma instável; os pequenos proprietários que, por terem parcelas de terras muito reduzidas, pretendiam ampliar sua propriedade; e os filhos desses pequenos proprietários que, ao casar, pretendiam permanecer como agricultores e para os quais nem sempre a terra do pai era suficiente para atender às suas necessidades. O Master surgiu, em 1960, com a tentativa de um proprietário de terras de retomar uma área de 1.800 hectares, situada no município de Encruzilhada do Sul, que, por cinqüenta anos, esteve em poder de 300 famílias de posseiros. Com o apoio do prefeito, Milton Serres Rodrigues, os posseiros dispuseram-se a lutar pelo direito de permanência.3 No dia 24 de junho 3

Milton Serres Rodrigues era delegado de polícia e foi eleito para a prefeitura pelo PTB. Ver Novos Rumos, 2 a 8/12/60; Terra Livre n.96 e Última Hora, 31/10/60.

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de 1960, por iniciativa daquele prefeito, foi fundado o primeiro núcleo do Master na cidade de Encruzilhada do Sul, contando com a participação de Paulo Schilling (na ocasião, superintendente da fronteira do sudoeste) e Ruy Ramos (na época deputado federal pelo PTB). Foi ainda lançado um manifesto no qual eram destacados o entrave causado pelo monopólio da terra e a necessidade de que ela pertencesse a quem a tratava e nela trabalhava.4

A PRIMEIRA FASE DO MASTER: A ESTRUTURAÇÃO DO MOVIMENTO A primeira fase do Master transcorreu entre junho de 1960, data de sua criação, e janeiro de 1962, momento do início dos acampamentos. Essa fase caracterizou-se pela organização de associações de sem-terra nos municípios e de uma associação estadual. Essas iniciativas, possivelmente, foram estimuladas pela perspectiva de realização do Congresso Camponês de Belo Horizonte, organizado pela ULTAB e programado para outubro de 1961. Em junho daquele ano, ocorreu um encontro de Agricultores Sem-Terra do Rio Grande do Sul, em que estavam presentes representantes de vários municípios. Na pauta, estava a criação da Associação dos Agricultores SemTerra do Estado do Rio Grande do Sul, a realização de um encontro estadual de agricultores em setembro daquele mesmo ano e, ainda, a questão da distribuição de terras aos agricultores. (Última Hora, 24/06/61 e 26/06/61). Em agosto de 1961, a Comissão Organizadora do I Congresso dos Agricultores Sem-Terra do Rio Grande do Sul decidiu priorizar a estruturação das associações de camponeses no interior, as quais elegeriam seus delegados ao Congresso gaúcho e ao Congresso de Belo Horizonte. Para isso, foram organizadas seis caravanas, que percorreriam 48 municípios do estado (Última Hora, 05/08/61 e 17/08/61). Todavia, devido ao Movimento da Legalidade,5 o congresso estadual foi adiado, bem como o Congresso de Belo Horizonte, que ficou para os dias 15 e 16 de novembro de 1961. Nesse evento, o Master fez-se presente, com 31 delegados, representando 33 associações de sem-terra. Entre eles estavam Milton Serres Rodrigues e Paulo Schilling, simpatizantes das Ligas Camponesas e simpatizantes do PCB (Última Hora de 11/11/61, 14/11/61). Segundo Ari Saldanha, liderança do Master vinculada ao PCB, os comunistas teriam passado a integrar o Master antes do Congresso de Belo 4

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Manifesto lançado pelos promotores do Movimento dos Agricultores Sem-Terra de Encruzilhada do Sul, em junho de 1960. Denomina-se Movimento da Legalidade a articulação de diversos setores da Nação em prol da posse do vice-presidente João Goulart quando da renúncia do Presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. Sobre esse Movimento, ver Schilling (1979).

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Horizonte, momento em que, junto com lideranças do PTB, decidiram organizar a Associação Estadual, elegendo para tal uma Comissão Provisória Pró-Master. Até então, segundo ele, o PCB vinha organizando Ligas Camponesas6 no Rio Grande do Sul, a exemplo do Nordeste. Após o Congresso de Belo Horizonte, os comunistas, reunidos com lideranças do Master, entre as quais Milton Serres Rodrigues e Euzébio França,7 concluíram que “tinha que haver uma organização estadual que fizesse a coesão dos movimentos heterogêneos” existentes no campo e que “seria errôneo querer imprimir um nome específico: as Ligas”. Assim, em prol da tentativa de unificação do movimento camponês gaúcho, os comunistas aderiram ao nome Master, passando a integrar esse movimento (Entrevista com Ari Saldanha, 1982). Até fins de 1961, a organização do Master junto aos sem-terra era incipiente. Foi a partir de janeiro de 1962 que o Movimento começou a adquirir grande impulso, resultado do apoio que o Governo Brizola passou a emprestar-lhe. Alguns autores colocam até mesmo a criação do Master como iniciativa do governador Brizola (Moraes, 1976; Zanfeliz, 1980). Entretanto, pelas informações levantadas, o governador Brizola passou a apoiar o movimento apenas a partir do segundo semestre de 1961, e a esse apoio podem e devem estar associados o impulso e a expansão que o Master passou a ter a partir de 1962. Ao iniciar seu governo, o objetivo principal da política agrária desenvolvida por Brizola era a legitimação de terras devolutas.8 Foi somente a partir de agosto de 1961 que passou a ser privilegiada a luta pela reforma agrária. Naquela ocasião, o governador, para dar o exemplo de apoio à causa, propôs-se a dividir parte das terras da Fazenda Pangaré (ou Bacopari), de sua propriedade, localizada no município de Osório (Última Hora, 14/08/61). Ao mesmo tempo, constituiu um grupo de trabalho para estudar a introdução da reforma agrária no estado e declarou como de utilidade pública, reconhecidas pelo governo, as mais de dez Associações de Agricultores Sem-Terra então existentes. Em apoio à reforma agrária criou, em abril de 1962, o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária (IGRA), idealizado por Paulo Schilling. Em janeiro desse mesmo ano, havia sido instituído, por iniciativa de Brizola, o Programa de Projetos Especiais de Reforma Agrária 6

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Não confundir a criação de Ligas Camponesas do PCB (trabalho desenvolvido até 1961), no Rio Grande do Sul, com as Ligas criadas por dissidentes do PCB (após 1962), em geral, estudantes que, mesmo com a existência do Master, incentivavam a organização das Ligas, mas sem um resultado expressivo. Euzébio França era técnico agrícola, vereador de Viamão, onde iniciara a criação de uma Associação de Sem-Terra. O governador Brizola foi eleito por uma aliança formada pelo PTB, PSP e PRP, sendo entregue a Secretaria da Agricultura ao PRP. Em 1961, foi rompida essa aliança e o PTB passou a assumir a Secretaria da Agricultura.

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e Desenvolvimento Econômico-Social, com o objetivo de democratização da propriedade e organização de granjas cooperativas e comunidades de pequenos e médios agricultores e criadores.

UMA NOVA ETAPA DO MASTER: OS ACAMPAMENTOS A partir de janeiro de 1962, passaram a ser realizados acampamentos junto a áreas que os integrantes do Master pretendiam que fossem desapropriadas pelo governo estadual, baseados nos artigos 173 e 174 da Constituição estadual.9 Segundo Schilling (1967), a proposta de formação de acampamentos: contou não somente com o beneplácito e o apoio, senão com a participação direta e notória de Brizola, então governador do estado. O plano consistia na formação de acampamentos de camponeses no perímetro de grandes latifúndios, previamente eleitos entre aqueles de mais baixo índice de aproveitamento, em regiões onde o número de camponeses sem-terra fosse elevado.

Essa opção justificava-se tendo em vista o parágrafo 1o do artigo 173 da Constituição do estado que determinava: “o Estado combaterá a propriedade improdutiva, por meio de tributação especial ou mediante desapropriação”. De acordo com Schilling (1967, p.97-8), feita a escolha da área, “pacífica e ordenadamente, os camponeses acampavam em tendas de campanha e ranchos improvisados, na estrada que servia de limite à propriedade eleita, estabelecendo o acampamento”. A seguir, baseados nos artigos da Constituição, os agricultores reivindicavam sua desapropriação e posterior divisão. Estabelecido o acampamento, “Brizola mandava acampar um destacamento da Brigada Militar nas imediações do mesmo, pondo os camponeses a salvo de qualquer violência dos latifundiários e de seus capangas”. A desapropriação “previamente combinada com o governador” não era executada imediatamente, mas era “às vezes, atrasada ex professo”, ou seja, atrasada deliberadamente, como forma, inclusive, de despistar os acordos prévios feitos com o governo do estado. Segundo entrevista realizada com Ari Saldanha em novembro de 1983, foi sua a idéia de realização de acampamentos. De acordo com o entrevistado, a delegação gaúcha, ao retornar do Congresso de Belo Horizonte, foi 9

O artigo 174 autorizava o Estado a prover, mediante desapropriação, a justa distribuição da propriedade, de maneira que o maior número possível de famílias tivesse acesso a terras e meios de produção, a promover planos especiais de colonização (sempre que a medida fosse pleiteada por um mínimo de cem agricultores sem-terra, de determinada região), podendo também organizar fazendas coletivas destinadas à formação de elementos aptos às atividades agrícolas.

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até o governador Brizola para agradecer sua colaboração (que consistiu na cessão de ônibus para o transporte da delegação). Naquele momento, o governador teria despertado para o problema agrário, passando a encaminhar discussões com Milton Serres Rodrigues sobre possibilidades de realizar “um movimento rural de envergadura estadual, que tivesse influência positiva para atrair o trabalhador para o processo político”. Conforme Saldanha (1982/1983), foi então que sugeriu que “o negócio era acampar. Fazer grandes acampamentos com enxadas, com ferramentas, se possível até com arado, de carreta num grande terreno baldio, nas margens de cidades reivindicando a Reforma Agrária”. A partir de então, segundo o entrevistado, Milton S. Rodrigues “voltou ao Palácio, conversou com Brizola. Depois não retornou a nós, não se reuniu conosco, e instauraram o acampamento do Banhado do Colégio e de Sarandi”. O primeiro acampamento formado na época foi o do município de Sarandi, montado em 8 de janeiro de 1962. A área visada ocupava 25 mil hectares de propriedade de três sócios de uma firma uruguaia que a haviam adquirido havia quarenta anos. De acordo com matéria do jornal O Nacional, de Passo Fundo (15/01/1962), diversas famílias pertencentes às Ligas Camponesas e oriundas de Nonoai fixaram-se em Ronda Alta, no município de Sarandi. Organizadas, essas famílias utilizaram uma tática para impedir que a repressão fizesse uso da argumentação de “invasão à propriedade” para retirá-las do local: montaram seu acampamento no corredor de acesso à fazenda, sob o comando do prefeito de Nonoai, Jair Calixto, em vez de invadirem diretamente a área. Os acampados receberam o apoio de setores da população local através do fornecimento de gêneros alimentícios. A matéria do O Nacional chegou a divulgar informações contraditórias e não confirmadas sobre a existência de armas no acampamento. A concentração de agricultores aumentou significativamente, pois após cinco dias de acampamento, no dia 13, já eram cerca de 1.300 pessoas. Esse crescimento certamente estava vinculado à propaganda que anunciava a doação de terra a quantos não a tivessem (O Nacional, 13/01/62). Enquanto isso, a Brigada Militar, de sobreaviso desde antes do início da concentração, mantinha-se em prontidão, apesar de não intervir, já que o movimento era pacífico. No dia 15, perante cinco mil agricultores, Brizola, acompanhado de uma comitiva de Porto Alegre composta de parlamentares, prefeitos e jornalistas, comunicou a desapropriação dos 25 mil hectares da Fazenda Sarandi. As terras desapropriadas foram divididas na forma de 62 lotes rurais do tipo familiar (cerca de 25 hectares) e 16 propriedades de 250 hectares para triticultores mecanizados (Rio Grande do Sul, 1963). Além do estímulo fornecido pela experiência desse primeiro acampamento, o governador, no dia 11 de janeiro, declarou de utilidade pública para fins de desapropriação uma área de 596 hectares em Canguçu, e outra 77

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de 211 hectares no município de São Jerônimo (O Nacional, 16/01/62). A partir daí foram surgindo, ao longo do mês de janeiro, inúmeros acampamentos, concentrações de agricultores e pressões sobre o governo estadual em outros municípios, entre eles Taquari. No dia 21, em Camaquã, surgiu o acampamento do Banhado do Colégio. Cerca de dois mil agricultores sem-terra, liderados pelo presidente da Associação dos Agricultores Sem-Terra e pelo padre da localidade, reivindicaram as terras do Banhado do Colégio, com cerca de 20 mil hectares, que haviam sido drenadas pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento, e incorporadas pelos proprietários lindeiros (O Camaquã, 27/01/62, e Última Hora, 24/01/62). O decreto desapropriatório foi assinado no dia 30 de janeiro, sendo o depósito regulamentar meramente simbólico por não existirem, segundo o governo estadual, razões para maiores discussões sobre a avaliação. Nesse mesmo mês de janeiro surgiram, ainda, os acampamentos de Santa Maria e de Caçapava do Sul (este último dissolvido em 29 de janeiro, atendendo à solicitação do governador). Ao longo do mês de fevereiro surgiram também vários acampamentos e sucederam-se mobilizações em vários municípios como Pelotas, Alegrete (na barragem do Ibirapuitã), Sapucaia,10 em São Leopoldo, São Jerônimo e Itapoã. As ações em prol da reforma agrária por parte do governo de Leonel Brizola tiveram continuidade com a efetivação de outras desapropriações de terras, como em Sarandi, no Banhado do Colégio, em Canguçu e em Quitéria, no município de São Jerônimo. É importante destacar que o governador solicitou que os proprietários cedessem 10% de suas terras aos camponeses pobres, anunciando que o próprio presidente João Goulart tomaria essa iniciativa e que ele próprio, governador, já havia cedido a fazenda do Bacopari, de sua propriedade. Brizola justificava o apelo alegando a injustiça da má distribuição da terra no estado: enquanto as grandes propriedades pertenciam a apenas nove mil pessoas, 267 mil detinham pequenas propriedades; ademais, 70% das terras ocupadas pela lavoura capitalista do arroz eram exploradas sobre terras arrendadas. A partir daquele apelo do governador para que proprietários cedessem suas terras, foram realizadas negociações entre o governo do estado e a Federação das Associações Rurais do Rio Grande do Sul (Farsul), para acertar um programa de atividades tendo em vista o encaminhamento da questão agrária no estado e no país. Esse acordo pressupunha que o governo estadual tivesse força para suspender a realização de novos acampamentos. No entanto, eles continuaram a ocorrer. 10

Os sem-terra reivindicavam as terras da Fazenda Itapuí, propriedade de Ildo Meneghetti (de 1.500 hectares), ex-governador do Rio Grande do Sul (1955/59-1963/67).

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A nota assinada pelo governador Brizola, recomendando a todos os agricultores que reivindicavam terras que se abstivessem de movimentos reivindicatórios ostensivos, foi publicada na imprensa (Última Hora, 12/02/62). Mas manifestações de agricultores sem-terra foram ainda organizadas em 11 de fevereiro e nos dias seguintes. Esse acordo, aparentemente, reforça a tese que enquadra o Master como um movimento oficialista, organizado por Brizola. Indicando, portanto, que o governador pudesse, também, suspender suas ações quando bem entendesse. Entretanto, as evidências do momento demonstraram ser relativa a capacidade de Brizola de determinar o andamento das manifestações, uma vez que muitas continuaram a ocorrer apesar dos apelos do governador. A primeira concentração ocorreu em Gravataí, onde mais de mil agricultores se reuniram para fundar a Liga Camponesa de Vista Alegre.11 Outra concentração ocorreu em São Lourenço do Sul, reunindo igual quantidade de agricultores. Em Itapoã, os acampados, inconformados com a trégua acertada entre o governo do estado e a Farsul, ameaçaram invadir a fazenda Lagoa Negra se, até o dia 14, o governo não atendesse a suas reivindicações. Em fevereiro, ainda, ocorreram novas mobilizações em Pelotas, além do surgimento de outros acampamentos: em São Francisco de Paula, mobilizando mais de três mil agricultores; em Taquari,12 reunindo cerca de 300 camponeses. No dia 21, ocorreu um acampamento com 800 agricultores em São Francisco de Assis, que logo foi dissolvido atendendo à solicitação feita pelo governador. Assim, durante o mês de fevereiro, mesmo com a existência do acordo entre o governo do estado e a Farsul, os agricultores continuaram pressionando por terra, apesar de muitos acatarem a solicitação do governo de não realizar acampamentos. Foi o caso da desistência de montagem de acampamentos em Gravataí, em São Lourenço do Sul e em São Francisco de Assis. Em Itapoã e em Taquari, os agricultores mostraram-se inconformados com o acordo entre o governo e a Farsul e não acataram o pedido de suspensão dos acampamentos. Em Itapoã, o acampamento somente foi dissolvido depois que o governo aceitou as reivindicações dos agricultores. Isso mostra que o governo estadual não tinha força nem controle sobre o movimento, que esse se alastrava à sua revelia. Em março, os acampamentos e as manifestações de inconformidade com a trégua tiveram continuidade no Banhado do Colégio, Tenente Portela, Cachoeira do Sul, São Luiz Gonzaga, Itaqui e Giruá. Neste último, existiam dois acampamentos, um dos 11

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Essa Liga Camponesa fazia parte das Ligas Camponesas criadas segundo a orientação das Ligas do Nordeste. Conforme já mencionamos, nessa área ocorreram mobilizações anteriores, em 1961, quando reagiram a tentativas de expulsão e, em janeiro de 1962, quando realizaram manifestações reclamando a posse dessa terra.

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sem-terra e outro dos proprietários e dos grandes produtores mecanizados, cada um localizado em um lado da estrada. Para separá-los, foi colocado um batalhão da Brigada Militar. Os sem-terra reivindicavam a desapropriação dos 11.250 hectares do Rincão dos Vieira. O último acampamento durante o governo Brizola foi o de Cruz Alta, em maio de 1962, quando cerca de 500 agricultores sem-terra reivindicaram uma propriedade particular considerada improdutiva. Enquanto uma comissão representando os sem-terra reivindicava junto ao governo Brizola a desapropriação da área, a Farsul enviava uma mensagem ao comandante do 3o Exército com o pedido de proteção para a propriedade privada que estava ameaçada. De acordo com Ari Saldanha, o governador Brizola não apoiou essa ação porque o PTB local também não o queria e porque havia a ameaça de o Exército atacar o acampamento. Apoiando a posição do governador, Milton S. Rodrigues teria se dirigido a Ari Saldanha reafirmando a posição de não acampar. O acampamento saiu, mas não sem que o Exército, por solicitação da Farsul, parasse na estrada os manifestantes quando se dirigiam ao local em dois caminhões. No dia seguinte, quando o governador Brizola soube que o acampamento tinha sido instalado, pediu que o dissolvessem. Entretanto, os agricultores somente o fizeram após o governador comprometer-se a desapropriar a área (Entrevista com Ari Saldanha, novembro de 1983). Conforme exposto acima, nem todos os acampamentos obtiveram o mesmo grau de apoio do governador Brizola, apesar de Schilling afirmar que eram programados com o apoio do governo estadual. Enquanto alguns acampamentos resultaram em desapropriação das áreas visadas ou, pelo menos, em tentativas de desapropriação e, também, em apoio com alimento, dinheiro e cobertura da Brigada Militar, em outros isso não ocorreu. Por exemplo, pelas informações levantadas, os agricultores sem-terra de Sapucaia, que visavam a fazenda Itapuí, de propriedade de Ildo Meneghetti, não receberam nenhum estímulo por parte do Executivo. Também em Taquari, os agricultores, apesar de pressionarem por medidas efetivas em favor da desapropriação da área visada, não obtiveram resultados. Tendese a considerar que, em alguns locais, os acampamentos realizados, ou as tentativas de acampamentos, não foram resultado de planejamento prévio com a participação do governo do estado, mas resultado de iniciativas das próprias associações. A Brigada Militar, não em todos, mas em vários acampamentos fez-se presente com o objetivo de assegurar a calma e a tranqüilidade: é o caso de Sarandi, Banhado do Colégio, Fazenda Rincão dos Vieira em Giruá. Mesmo com esse apoio, a violência fez-se presente em alguns acontecimentos a partir da ação dos ruralistas. Represálias de fazendeiros contra seus agregados que participavam de acampamentos ocorreram em Giruá e no Banhado do Colégio. Além disso, desde janeiro de 1962, quando se iniciou a prática 80

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dos acampamentos no estado, Milton S. Rodrigues, presidente do Master, denunciava pressões (inclusive armada) contra agricultores sem-terra em Encruzilhada do Sul. Também há episódios de violência envolvendo posseiros, em Taquari e em São Francisco de Paula, tanto na Fazenda Velha de propriedade do Estado como na Fazenda Mato das Flores, onde, durante os anos de 1963 e 1964, a perseguição do proprietário contra os agricultores foi uma constante, inclusive armada.

A VIDA ORGANIZATIVA DO MASTER DURANTE O GOVERNO BRIZOLA O Master, a partir de 1962, se fortaleceu enquanto organização dirigente, estreitando os laços das associações em nível estadual e mantendo uma liderança na defesa da reforma agrária. Nesse mesmo período, foi iniciado um contato maior com outras entidades, com a realização de atividades conjuntas entre o Master, os sindicatos urbanos e as entidades de estudantes. Esses laços foram fortalecidos a partir da posse do governador Meneghetti quando, com a intensificação da repressão, a solidariedade emprestada por esses setores passou a ser fundamental à luta dos sem-terra. O I Encontro Camponês Estadual, convocado pelo Master, após várias tentativas frustradas, foi em 31 de março e 1o de abril de 1962, sendo convidadas as 150 Associações de Sem-Terra e Uniões de Agricultores Sem-Terra.13 Em 5 de agosto de 1962, o Master instalou uma assembléia permanente e lançou um documento às autoridades do Governo Federal e estadual, no qual reivindicava a aprovação de uma Reforma Agrária Radical e posicionavase contra a violência enfrentada pelos agricultores sem-terra. Ao mesmo tempo, aderiu ao Pacto de Unidade e Ação com os operários e estudantes – a Aliança Operário-Estudantil-Camponesa. Também exigiu do IGRA a entrega imediata de terras prometidas pelo governo estadual. Ressalta-se que a entrega dos primeiros lotes pelo Governo Brizola aos sem-terra havia ocorrido em junho de 1962 (131 lotes em Camaquã), e a maior parte deles só foi distribuída em dezembro de 1962, um mês antes de deixar o governo do estado, pressionado pelo Master. Após várias tentativas, o I Congresso do Master realizou-se de 15 a 17 de dezembro de 1962. A tese central dos debates foi a “necessidade de uma reforma agrária que acabe com a propriedade latifundiária e entregue 13

Pelos dados coletados, existiam associações de agricultores sem-terra em 75 municípios; a vida dessas associações era bastante instável, girando principalmente em função dos acampamentos.

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terra aos camponeses”. A pauta incluía o tema do associativismo rural e a discussão e aprovação dos estatutos do órgão estadual, resoluções e moções. Conforme Ari Saldanha (Entrevista, novembro/1983), a realização do Congresso não obteve, de início, o apoio do governador Brizola, pois ele preferia que o mesmo ocorresse mais tarde. Mas a direção do Master insistiu, entendendo que o Congresso deveria se realizar antes da posse de Ildo Meneghetti (dia 31 de janeiro de 1963). Segundo Saldanha, foi apenas depois de tudo estar decidido que o governador Brizola apoiou a sua realização. O Congresso foi precedido de alguns encontros regionais preparatórios em Santo Ângelo, Passo Fundo, Pelotas e Uruguaiana e contou com a presença de mais de cem pessoas – 72 delegados e 28 representantes do governo estadual, Câmara Municipal, sindicatos urbanos, estudantes, representações de outros estados e Lindolpho Silva, pela ULTAB. No Congresso, foram aprovados uma carta de reivindicações e os Estatutos e eleitos a diretoria e o conselho deliberativo do Master. A Carta Reivindicatória aprovada pelo I Congresso (1962) levantava, como fundamental, a luta pela Reforma Agrária Radical, objetivando dar terra aos camponeses e acabar com a propriedade latifundiária, com os seguintes pré-requisitos: estabelecer um limite máximo para a área da propriedade territorial; regulamentar a venda, doação ou concessão em usufruto das terras desapropriadas dos latifúndios; eliminação do parágrafo 16 do Artigo 141 da Constituição Federal para que as desapropriações pudessem ser feitas com títulos resgatáveis a longo prazo; desapropriação, preliminarmente, das áreas marginais das principais vias de transporte e próximas aos centros urbanos. Também foram aprovadas moções exigindo a entrega imediata das terras já desapropriadas pelo governo estadual e a regularização da situação dos camponeses. (Terra Livre, jan/1963)

Como se vê, eram posições semelhantes às defendidas pelo Congresso de Belo Horizonte, realizado em novembro de 1961, e mais radicais, se comparadas com as propostas do Estatuto do Primeiro Núcleo do Master, elaborado em junho de 1960. Mesmo reafirmando a proposta de criação de associações de agricultores sem-terra, pequenos e médios agricultores, a Carta levantava a importância do “apoio e ajuda à criação de sindicatos rurais e incentivo à sindicalização dos trabalhadores rurais”. Também constava o apoio do Master à luta do povo brasileiro pela emancipação nacional, à Declaração de Goiânia e à Declaração de Princípios do I Encontro de Libertação Nacional, assim como à Carta de Princípios do I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte (Terra Livre, n.118 de janeiro de 1963). Por ocasião do Congresso, o coordenador do IGRA, Paulo Schmidt, prometeu que o governo do estado distribuiria, até fins de janeiro de 1963, 82

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as glebas desapropriadas aos sem-terra habilitados e garantiu a participação ativa do IGRA na campanha de sindicalização rural promovida pelo Master. Ainda em relação ao Congresso destacam-se a escolha da diretoria definitiva da Federação dos Agricultores Sem-Terra, Pequenos e Médios Proprietários, e a tentativa dos “brizolistas” de escolher uma diretoria composta apenas de elementos de sua corrente, indicando, para presidente, Milton Serres Rodrigues, e, para secretário-geral, Romeu Barlese. Isso quando o plenário já tinha uma chapa formada propondo Milton Serres Rodrigues para presidente; Euzébio França para secretário-geral e Ari Saldanha para primeiro-secretário. Diante dessa divisão, foi elaborada uma chapa conciliatória incluindo Barlese como um dos vice-presidentes da Federação. Contudo, Barlese não abriu mão de sua chapa e as duas foram para votação, ganhando a do plenário, por 55 votos contra 16. Depois do Congresso, segundo dados coletados no Última Hora, Milton Serres absteve-se de uma participação ativa no Master, assumindo o exercício da presidência Romeu Barlese. Logo depois este foi substituído14 por Rosauro Charlat de Souza e, meses mais tarde, por Euzébio França e por Ari Saldanha, quando, já com Ildo Meneghetti no governo do estado, a repressão intensificou-se, ficando a partir de então os comunistas com a hegemonia na direção do Master. Quanto à disputa entre brizolistas e comunistas, segundo entrevista realizada com Ari Saldanha, o governador Brizola realmente tinha interesse em impedir a participação dos comunistas no Master (entrevista com Ari Saldanha, em agosto de 1982 e em novembro de 1983). Segundo conta Saldanha, o governador chegou, através de Milton Serres Rodrigues, a solicitar sua saída da diretoria do Master, senão a entidade perderia sua sede social, paga pelo governador.

A TERCEIRA FASE DO MASTER: O INÍCIO DA REPRESSÃO Entre 1963 e 1964, apesar da perda do apoio do governo estadual, o Master continuou bastante ativo, com a organização de novos acampamentos e melhorias no aspecto organizativo, dando ênfase à criação de sindicatos de assalariados rurais e sindicatos de pequenos produtores. As principais mudanças no contexto político referem-se à violência que, nesse período, foi extrema e ao apoio governamental, que passou a ser dado pela Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA), órgão vinculado diretamente ao presidente da República, cujo delegado regional no Rio Grande do Sul era Eliseu Torres, advogado e liderança do PTB. 14

Romeu Barlese passa a integrar os quadros da SUPRA em Brasília, no governo João Goulart.

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Também se observa, nesse período, um entrelaçamento maior com entidades urbanas e estudantis, talvez resultado do fato de o PCB deter a hegemonia da diretoria da entidade em nível estadual após o I Congresso dos Agricultores do Rio Grande do Sul, e da violência enfrentada pelo movimento no governo Meneghetti. O governador Meneghetti assumiu o governo no dia 31 de janeiro de 1963 e, já no dia 4 de fevereiro, surgiu mais um acampamento de agricultores sem-terra no Rio Grande do Sul. Eram 935 colonos que não haviam recebido terras na Fazenda Sarandi e que acamparam na Reserva Florestal do Estado, de 20 mil hectares, no lugar denominado Passo Feio, município de Iraí e divisa com o município de Nonoai.15 No dia 14 de fevereiro, a Brigada Militar sitiou o acampamento de Passo Feio, onde ainda se encontravam cerca de 60 famílias, e as estradas foram bloqueadas. A repressão também atingiu líderes sindicais urbanos e a diretoria do Master que se dirigiam para o acampamento, sendo presos no dia 17 e liberados no dia seguinte. Também os agricultores acampados sofreram novas violências, pois o acampamento de Passo Feio foi arrasado e incendiado, e a cidade de Nonoai virtualmente ocupada pelas forças da Brigada Militar. Jair Calixto, prefeito de Nonoai, e o pretor de Nonoai, representante do Poder Judiciário naquele município, foram barrados ao se aproximar do acampamento. Dirigindo a operação de repressão em Passo Feio estavam o cel. Gonçalino de Carvalho e o chefe de polícia do governo Meneghetti, Armando Prates Dias. Enquanto isso, o governador dizia que nada sabia sobre esses acontecimentos. O secretário de Segurança do estado também declarava desconhecer a repressão. Em conseqüência, foi instaurada na Assembléia Legislativa uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as responsabilidades. A política repressiva do governo Meneghetti atingiu outras localidades, onde havia intenções de realização de acampamentos. Em Sapucaia, foi instalado um grande dispositivo policial defronte à sede da Associação para impedir um acampamento de mais de três mil agricultores sem-terra na Fazenda Itapuí e em outras fazendas do município. A repressão atingiu o próprio IGRA com a exoneração de Euzébio França do cargo que exercia no órgão e de outros funcionários: dos 32 empregados, apenas dois foram mantidos, um motorista e um engenheiro agrônomo. Também o padre Alípio, líder do movimento camponês no Nordeste, foi preso em sua visita ao Rio Grande do Sul por elementos do Exército, que tinham em vista impedir a realização de um comício sobre a reforma agrária, em Santo Ângelo. As dificuldades estenderam-se também 15

As terras visadas pertenciam à Reserva Florestal do Estado (16 mil hectares) e ao Toldo Indígena de Nonoai (20 mil hectares). Ver Última Hora, 20/02/63.

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às atividades organizativas, qual seja, de fundação de sindicatos como em Giruá e São Luiz Gonzaga. Apesar do clima de repressão, os acampamentos continuaram a surgir, mas todos foram de alguma forma reprimidos, recebendo o apoio da direção estadual do Master, da SUPRA, de estudantes e de sindicalistas urbanos. É importante salientar que a SUPRA, apesar de ser um órgão federal ligado diretamente à Presidência da República, era sistematicamente impedida pela polícia de ter acesso aos acampamentos. O próximo acampamento que surgiu foi em agosto de 1963, envolvendo sem-terra selecionados para receber lotes na Fazenda Sarandi e que, preteridos, formaram novo acampamento na Reserva Florestal de Nonoai. Também essa mobilização foi objeto da ação policial no dia 23 de agosto. Um dos líderes camponeses, José Lagranha, foi preso em Nonoai por policiais a serviço do cel. Gonçalino e levado para o 2o Batalhão de Polícia. O Master, na ocasião, lançou um manifesto em que denunciou o “recrudescimento em nosso estado das arbitrariedades policiais contra os sem-terra”. Por outro lado, o secretário da Agricultura do governo Meneghetti declarava que “o Estado nada tem a ver com o problema”. No dia 28 de agosto, mais um acampamento foi formado naquela região, quando mais de 200 famílias de sem-terra invadiram uma fazenda em Ronda Alta, no município de Sarandi. Em setembro, segundo a direção estadual do Master, a Brigada Militar iniciou a retirada das tropas que cercavam os acampamentos. No entanto, as arbitrariedades continuaram e os agricultores e suas famílias foram vítimas de brutais espancamentos, perseguições, prisões e violações de propriedade. A ordem do governo estadual era expulsar os camponeses brancos da área indígena denominada Toldo de Nonoai. Por isso, os soldados da Brigada Militar passaram a provocar rivalidades entre os índios e os brancos sem-terra, apresentando-os como grileiros ávidos, criando, dessa forma, condições para o conflito (Última Hora, 12/10/63). Outro problema enfrentado pelos acampados era a falta de alimento. Segundo um líder do Master, a “fome nos acampamentos de Nonoai é uma triste realidade (...) e até mesmo um prego que seja enviado ao Master para ser entregue aos camponeses é preso”. (Última Hora, 27/09/63) No mês de setembro, destacaram-se outros dois acampamentos: o de Torres e o de Osório. Em outubro, surgiu um acampamento em Bagé, envolvendo um grupo de oito famílias de camponeses sem-terra, que também recebeu a visita do cel. Gonçalino, da Casa Militar do governo do estado. Um contingente de brigadianos dissolveu o acampamento, obrigando os camponeses a instalarem-se junto a uma estrada próxima. Em dezembro, foi formado um acampamento em Guaíba com 80 famílias acampadas na Fazenda dos Pires. Um pelotão, formado por 32 praças da Brigada Militar, estava postado nas proximidades do acampamento, impe85

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dindo o acesso de alimentos e de material para a cobertura das choupanas. Os acampados contavam com o apoio de sindicatos e dos estudantes, que forneciam a alimentação Em janeiro de 1964, em Bagé, surgiu a ameaça de formação de mais um acampamento com 40 famílias, que se concretizou em fevereiro. As famílias foram expulsas em março pelo comandante da 3a Divisão de Cavalaria, à frente de um pelotão do Exército e acompanhado do presidente da Associação Rural de Bagé.16 Em fevereiro de 1964, surgiu um novo acampamento em Tapes, que tinha por objetivo a Fazenda Santo Antônio, uma área de 50 mil hectares. O acampamento sofreu um cerco total por soldados da Brigada Militar, sob o comando do cel. Gonçalino Cúrio de Carvalho. Repetindo a tática da opressão pela fome, já aplicada no Banhado do Colégio e em Passo Feio, a Brigada impediu a passagem de alimentos e de líderes sindicais, estudantis e representantes do Master e da SUPRA, que chegavam para apoiar o movimento. A orientação dada pelo cel. Gonçalino era de que “ninguém entra na Fazenda Santo Antônio. Nem jornalistas, nem deputado, nem ninguém” (Última Hora, 25/02/64). A partir do dia 25, o “cerco de fome”, que passou a ser comandado pessoalmente pelo chefe de polícia, Armando Prates Dias, ao lado do cel. Gonçalino, foi ampliado para a “tortura da sede”, pois o curso de uma valeta que fornecia água para os acampados foi desviado. O clima de terrorismo era ainda alimentado pelo matraquear das metralhadoras durante a noite. Em Canoas, no dia 19 de fevereiro, cerca de 400 famílias de agricultores sem-terra dirigiram-se para Encruzilhada do Sul, onde receberam uma propriedade, inclusive com os devidos títulos, mas foram impedidos de seguir viagem pelo Departamento de Ordem Política e Social. Os veículos foram apreendidos e os líderes presos. Tratava-se da fazenda Dom Feliciano, doada aos sem-terra. Em protesto contra a violência policial, os agricultores decidiram acampar em frente à sede das entidades a que pertenciam – sitiadas pelos policiais – até que lhes fossem devolvidos seus veículos e permitida a viagem (Última Hora, 20/02/64). No dia 24, o IGRA admitiu que, apesar de os sem-terra terem ganhado de seis herdeiros um pedaço de terra – de 24 hectares, e não 15 mil hectares como havia sido anunciado –, não iria permitir que tomassem posse daquela gleba porque a fazenda era disputada por 140 herdeiros e já estava dividida em glebas individuais. Quanto à repressão, o IGRA disse, inicialmente, que nada sabia da intervenção policial, mas, posteriormente, admitiu que a ordem havia partido do próprio governador do estado (Última Hora, 21/02/64). Como conseqüência desse fato, surgiu o acampamento em Canoas, em março, com cerca de 200 agricultores sem-terra, mas logo foi demolido pelos 16

O presidente da Associação Rural de Bagé, entidade que reunia médios e grandes produtores, era o coronel e comandante da 3a RA Cav 75. Conforme Última Hora, 29/02/64.

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policiais. Foi o último acampamento do Master, praticamente apenas um mês antes do golpe de 1964. Segundo a Última Hora (07/03/64): Mulheres e crianças foram postas a correr de suas barracas, abaixo de empurrões e pancadas dos policiais ... A selvageria não poupou nem a Bandeira Nacional que foi arrancada do mastro em que a haviam colocado os camponeses, pisoteada, rasgada e atirada sobre uma das viaturas da Polícia.

Além dos acampamentos que mobilizaram os agricultores sem-terra ocorreram, também, vários despejos de arrendatários, agregados, parceiros e assalariados permanentes, que plantavam às margens da Barragem Bárbara em Uruguaiana, Tapes e Barra do Ribeiro, Santa Bárbara (onde as ameaças de despejo chegaram, inclusive, a resultar no assassinato do líder camponês Lucídio Antunes). Em São José do Ouro, 93 famílias foram despejadas em Espigão Alto. Outro processo de expulsão, que se destacou pela violência, ocorreu em São Francisco de Paula, atingindo 26 famílias que ocupavam a fazenda particular Mato das Flores. Comandados pelo chefe de nome Negré, jagunços armados incendiaram casas, dinamitaram uma escola em construção e passaram a agredir as mulheres que trabalhavam na roça. Além dos novos acampamentos surgidos no Governo Meneghetti e das várias ações de despejo que mobilizaram agricultores, também ocorreram problemas em áreas desapropriadas no Governo Brizola, referentes a questões como a não entrega dos títulos das áreas distribuídas aos sem-terra, e ameaças quanto à participação política desses agricultores nas Associações de Sem-Terra.

A VIDA ORGANIZATIVA DO MASTER NO PERÍODO MENEGHETTI Durante o governo Meneghetti, o Master manteve seu apoio às mobilizações dos agricultores sem-terra por novas desapropriações e pela distribuição das terras já desapropriadas pelo governo anterior. Quanto às terras pretendidas nesse período, elas correspondiam tanto a propriedades do Estado quanto a áreas privadas, conforme plano de ação elaborado pelo Master. Essa proposta, entregue ao governador em julho de 1963, solicitava as seguintes desapropriações: Tapes (50 mil hectares); Camaquã (16 mil hectares, fora 34 lotes já demarcados); Osório e Torres (25 mil hectares); Rolante (20 mil hectares); São Francisco de Paula (800 hectares); Taquara (700 hectares); Santo Antônio da Patrulha (50 mil hectares); Guaíba (300 quadras)17 e Pelotas (450 quadras). Na ocasião, o governador 17

Uma quadra equivale a 1,74 hectares.

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Meneghetti garantiu que seu “primeiro ato concreto sobre reforma agrária seria a desapropriação e distribuição de 50 mil hectares de terra que reivindicam os camponeses da Fazenda Santo Antônio em Tapes” (Última Hora, 29/10/63). Porém, como já foi visto, essa promessa não foi cumprida, como também não foi cumprida a promessa eleitoral de que faria a “reforma agrária já”. Pelo contrário, transformou a questão da luta pela terra em caso de polícia, reprimindo os acampamentos e também as lideranças. Exemplo é o seqüestro do líder camponês conhecido como João Sem-Terra pelo DOPS, no dia 21 de outubro de 1963, no município de Nonoai, quando participava, representando o Master, de uma reunião de camponeses. Essa reunião foi dissolvida pela Brigada Militar. Depois de passar amarrado uma noite no mato, foi transportado para o DOPS de Porto Alegre. Apesar da mobilização do serviço jurídico da SUPRA, que chegou a impetrar um mandado de segurança, o líder camponês foi libertado apenas no dia 26, em Erechim. Ao ser solto, João Sem-Terra afirmou que “pelo que vi e ouvi a Polícia, principalmente o DOPS, queria que eu me confessasse guerrilheiro agindo na distribuição de armas aos sem-terra”. Apesar das fortes reações contra mais essa arbitrariedade, o pedido de prisão preventiva contra João Sem-Terra, acusado de comunista, foi formulado pelo delegado de polícia de Erechim. As pressões também aconteceram contra o presidente do Master, Milton Serres Rodrigues, prefeito de Encruzilhada do Sul – onde foi estimulada uma campanha contra o pagamento dos impostos municipais –, e Jair Calixto, prefeito de Nonoai, uma das principais lideranças dos agricultores sem-terra de Sarandi e Nonoai, que chegou a ser preso. Portanto, se durante o Governo Brizola, fundamentalmente a partir de meados do ano de 1961, houve um apoio explícito do governo estadual ao Master, durante o Governo Meneghetti verificou-se uma série de arbitrariedades com o intuito de dificultar a mobilização, intimidando as lideranças e os próprios camponeses. Essas arbitrariedades eram executadas tanto pelo governo estadual diretamente como também pelos grandes produtores. Outro aspecto a ser destacado, além das adesões à luta pela reforma agrária, refere-se à ampliação das propostas de luta identificadas pelas “palavras de ordem”. Nessa terceira fase, que corresponde ao período Meneghetti, observa-se que o Master, juntamente com as entidades estudantis e sindicais, passa a apoiar de forma mais enfática a luta pelas reformas de base, que incluíam mudanças do próprio modelo de desenvolvimento nacional. Nesse período, além da realização de acampamentos e apoio aos mesmos, o Master acompanhou a luta de camponeses ameaçados de expulsão das terras que ocupavam; iniciou um acompanhamento junto aos assalariados rurais na luta pela efetivação dos seus direitos trabalhistas (Última Hora, 88

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

16/11/63 e 22/11/63) e desenvolveu um trabalho de criação de sindicatos de trabalhadores rurais e de produtores autônomos. Outra frente de luta assumida foi a parlamentar. Segundo afirmações de sua direção, coletadas no Última Hora, os camponeses que integravam as diferentes associações de sem-terra elegeram quatro prefeitos e 32 vereadores. Ainda no que se refere às mobilizações feitas em prol da aprovação das reformas de base, o Master participou, no dia 10 de março de 1964, junto com lideranças sindicais e estudantis, de uma concentração popular (Última Hora, 02/04/64) de apoio ao comício do dia 13 de março na Guanabara. Devido ao golpe de 1o de abril, o Master e as entidades sindicais urbanas e estudantis articularam-se tendo em vista a defesa da legalidade, organizando um comício pelas forças populares em frente a uma multidão convocada pela Rede Nacional da Legalidade. O ex-governador Brizola conclamou o povo a organizar-se em corpos provisórios “para participar da luta ao lado das gloriosas forças legalistas do 3o Exército e da Brigada Militar”. Porém, nem essas propostas nem a proposta do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), de formar batalhões na defesa da legalidade, chegaram a ser efetivadas. Pelo contrário, o presidente João Goulart foi deposto, as entidades populares, entre elas o Master, foram reprimidas, encerrando-se um capítulo da História brasileira que pode ser identificado com o surgimento de um setor social, o campesinato, que se impôs politicamente diante do Estado e dos demais segmentos da sociedade brasileira. O Master foi reprimido assim como outros movimentos camponeses, mas o espaço político conquistado, apesar de retrocessos, de alguma forma se manteve.

REAÇÃO DA FARSUL Se o Master obteve a adesão de milhares de agricultores sem-terra e o apoio de diversas entidades, também se defrontou com reações que partiram tanto da esquerda – caso das Ligas Camponesas, que o viam como uma entidade oficialista a mando do governador Brizola – como da direita – caso da Frente Agrária Gaúcha, da Farsul e do próprio governo Meneghetti, que viam o Master como um movimento subversivo, agitador, fruto de grupos aliciadores que queriam a derrocada do capitalismo e da propriedade privada. A Farsul, nos anos de 1961-62, manifestava-se publicamente favorável à reforma agrária, todavia não admitia de forma alguma ameaças à propriedade privada, ou seja, não admitia a desapropriação dos latifúndios conforme o desejo dos camponeses. Em 1963, com a radicalização da luta de classes em nível estadual e nacional, continuaram a colocar a necessidade de uma reforma agrária, mas sem nenhuma contemporização com as ações do movimento camponês, condenado publicamente e identificado por eles como “onda de agitação e subversão pública, promovida por elementos 89

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negativistas ou simplesmente anarquistas” (Última Hora, 11/03/64). Nesse período, seguindo o exemplo das ações em nível nacional, passaram a defender o armamento dos ruralistas e a necessidade de reagir, mesmo com violência, contra quaisquer tentativas de mudanças na ordem estabelecida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os acampamentos, característica principal do Master, aconteceram tanto durante o Governo Brizola quanto durante o Governo Meneghetti, e alguns de seus aspectos são dignos de destaque: • o número de acampamentos efetivado foi significativo. Além disso, mesmo que muitas Associações de Sem-Terra não tivessem conseguido realizar acampamentos, pressionavam pela desapropriação de terras. • quanto à sua origem, as áreas podem ser classificadas da seguinte maneira: as que pertenciam ao estado, ao município ou à União; as que eram privadas, em geral de situação jurídica confusa, ou privadas consideradas mal aproveitadas; as que eram áreas indígenas; e as que tinham as informações levantadas sem referências a respeito da sua origem. O Master imprimiu profundas mudanças nas relações políticas entre os diversos segmentos sociais, pois, de forma contínua, pelo menos de 1962 a 1964, impulsionou a participação política do campesinato e as reivindicações em favor de mudanças na estrutura fundiária do estado e do país, o que ameaçava os interesses das classes dominantes. Quanto às posições defendidas pelo Master, observa-se uma evolução das propostas políticas, se comparadas às propostas iniciais contidas no Estatuto da Associação dos Agricultores Sem-Terra de Encruzilhada do Sul, lançado em 1960, com os resultados do congresso realizado em dezembro de 1962, ou mesmo com as declarações da diretoria nos anos de 1963 e 1964. De uma proposta de reforma agrária ainda bastante indefinida, passaram a apoiar uma proposta de reforma agrária radical, contudo, contrária ao “na lei ou na marra”, conforme era defendido pelas Ligas Camponesas do Nordeste, ou seja, aparentemente baseada apenas na legislação vigente. Todavia, os acampamentos, mesmo que baseados na legislação estadual e federal, rompiam com a legitimidade admitida pelos segmentos de classe no poder, sendo considerados uma ameaça. Apesar de serem formados nas estradas próximas às áreas pretendidas – ou seja, não se caracterizando como invasão de propriedade –, e apesar de as Constituições federal e estadual garantirem os processos de desapropriação, os acampamentos eram vistos, por entidades como a Farsul, como um atentado à propriedade privada e à ordem constituída, e por isso eram combatidos. Também essa era a posição da Igreja em relação ao Master e à luta pela reforma agrária. 90

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Quanto à existência do Master, apesar de alguns autores o perceberem como um movimento oficialista, articulado pelo governador Brizola, observa-se uma forte presença do PCB,18 que optou por se integrar ao mesmo, deixando de organizar, no estado, a ULTAB ou as Ligas. Com essa adesão do PCB, verificou-se um processo de disputa pela hegemonia na condução do Master entre o PTB e o PCB, com o paulatino fortalecimento do último durante o Governo Meneghetti. A trajetória do Master indica uma forte capacidade de mobilização e, em várias ocasiões, uma autonomia e um não-alinhamento do movimento em relação às diretrizes de Brizola, contrariando leituras que o colocam como um movimento oficialista. O Master, a exemplo de outros movimentos que privilegiavam a luta pela terra, foi duramente reprimido a partir de 1964, sendo suas lideranças combatidas e presas, implicando profundo retrocesso para o movimento dos agricultores sem-terra no Rio Grande do Sul. Esse processo de repressão ao movimento sem-terra no estado teve seu início com a posse do governador Meneghetti, que passou a reprimir as ações dos agricultores sem-terra, transformando a luta pela terra, mais uma vez, em caso de polícia. Finalizando, pode-se dizer que a importância do Master não está no conteúdo da reforma agrária defendida por ele ou na maior ou menor influência do governador Brizola sobre o mesmo. A importância do Master está, sim, no fato de que, apoiando as aspirações e a organização dos agricultores sem-terra e a luta pela reforma agrária, significou para a classe dominante uma ameaça real e concreta à continuidade de sua dominação e, para os setores excluídos do campo, um instrumento de luta e de organização. Quanto ao destino das áreas desapropriadas durante o Governo Brizola, cabe um estudo específico a respeito, mas destaca-se que, pelo menos uma dessas áreas foi palco de luta na década de 1980, quando os acampamentos de agricultores sem-terra ressurgiram no cenário estadual como forma de pressão pela reforma agrária. Trata-se das fazendas Macali e Brilhante, que integravam a Fazenda Sarandi – onde foi formado o primeiro acampamento do Master – e que foi desapropriada por Brizola em 1962. Em 1979, ela foi novamente ocupada, sendo reivindicada a sua distribuição aos agricultores sem-terra. Assim, após vinte anos, retoma-se a mesma estratégia de luta pela reforma agrária através da formação de acampamentos, ressurgindo a disputa por áreas que já haviam sido reivindicadas anteriormente. Alguns dos agricultores sem-terra envolvidos na luta pela terra de vinte anos antes reaparecem na década de 1980, agora aglutinados em torno do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) – entidade que, no cenário gaúcho e nacional, passa a representar os interesses desse segmento social. 18

Ainda é pouco estudada a presença do PCB na história política gaúcha e, especificamente, no campo, com vistas a compreender quanto dessa capacidade de articulação e organização apresentada pelo Master, a partir de 1961, nos mais diversos municípios gaúchos, se deve a essa presença mobilizadora do PCB, pelo menos, desde os anos de 1940-50.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARVALHO, A. V. Reforma agrária: união e cisão no bloco agrário-industrial. In: ARAUJO, B. J. (Coord.) Reflexões sobre a agricultura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ECKERT, C. Movimento dos Agricultores Sem-Terra – Master. 1960-1964. Rio de Janeiro, 1984. 353 p. Dissertação. (Mestrado em) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. MORAES, Clodomir Santos de. Las ligas Campesinas de Brasil. In: PROGRAMA DE CAPACITACION CAMPESINA PARA LA REFORMA AGRARIA (PROCCARA). Organizaciones en América Latina. Honduras, 1976. (Série Didáctica, 12). SCHILLING, P. Como se coloca a direita no poder: os protagonistas. São Paulo: Global, 1979. v. 1. . Brasil de los latifundistas. Montevidéo: Diálogo SRL, 1967. ZANFELIZ, M. A. As relações sociopolíticas no Rio Grande do Sul: governo, partidos e sindicatos na conjuntura de 1958 a 1964. Porto Alegre: IFCH/UFRGS, 1980.

Documentos: CONGRESSO DOS AGRICULTORES DO RIO GRANDE DO SUL, I, 1962. Porto Alegre. CONGRESSO DO MASTER, I, 1962, Porto Alegre. Carta reivindicatória. ENCONTRO CAMPONÊS ESTADUAL, I, 1962. Porto Alegre. Movimento dos Agricultores Sem-Terra. Manifesto lançado pelos promotores. Encruzilhada do Sul em junho de 1960. RIO GRANDE DO SUL. Comissão Especial de Reforma Agrária do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Bases e diretrizes para um programa estadual de reforma agrária. Porto Alegre, 1963. p.IV-28

Entrevistas: Ari Saldanha: entrevista, 1983/1983. Entrevistador: Córdula Eckert. Porto Alegre, 1982/1983.

Jornais consultados: Novos Rumos O Camaquã O Nacional Panfleto Terra Livre Última Hora

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4 A GÊNESE DO SINDICALISMO RURAL NO PARANÁ: REFLEXÕES SOBRE AS CARREIRAS DE DIRIGENTES* Osvaldo Heller da Silva

INTRODUÇÃO

A história dos movimentos sociais rurais do Paraná é extremamente rica. Seja pela quantidade e diversidade de episódios ao longo do tempo, seja pela complexidade das tramas, atores sociais e objetos de disputa envolvidos, seja pelas repercussões provocadas até nossos dias e que se espalharam para outras regiões do país. A constituição do sindicalismo dos camponeses e assalariados do campo aparece como o fio condutor desse processo histórico. Três momentos maiores marcaram a trajetória de lutas sociais e organização. Começa, no final dos anos 40, com a guerrilha de Porecatu, desdobra-se no nascimento do movimento sindical rural, fruto do embate entre militantes comunistas e católicos, e, por fim, desemboca no sindicalismo conservador e prestador de serviços durante o regime militar. Neste texto, queremos destacar o papel daqueles indivíduos que despontaram como lideranças desse processo de constituição dos organismos sindicais, que pretendiam representar a população trabalhadora do campo. Buscamos demonstrar como se constituiu a carreira do dirigente sindical, enfocando seus atributos pessoais, sociais e políticos; as relações com a “base” e com os pares, os ganhos e as perdas; os caminhos percorridos, as passagens de um degrau ao outro, a ascensão – e também o declínio.

* Texto elaborado com base em trechos do livro A foice e a cruz. Comunistas e católicos na história do sindicalismo dos trabalhadores rurais do Paraná, do mesmo autor.

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A gênese do sindicalismo rural no Paraná

DE PORECATU À SINDICALIZAÇÃO: EM CENA OS MILITANTES COMUNISTAS Do final dos anos 40 ao início dos anos 50, o até então pacato município de Porecatu e seus arredores foram sacudidos por violentos conflitos sociais. Enfrentavam-se, de um lado, as forças policiais dos estados do Paraná e de São Paulo, que apoiavam jagunços, fazendeiros e grileiros; e, de outro, posseiros, secundados por militantes comunistas. As hostilidades começaram quando o governo paranaense doou a grandes proprietários terras que já estavam ocupadas por posseiros. Camponeses, encorajados pelo então Partido Comunista do Brasil, resistiram a essa decisão governamental. Dos enfrentamentos resultaram mortos e feridos. Mediante palavras de ordem de enfrentamento direto ao aparelho de Estado e aos grupos dominantes, os comunistas lançaram um balão de ensaio de luta de guerrilha rural. Provavelmente, inspirado nas táticas revolucionárias, utilizadas por Mao Tsé-Tung na China, o “Partidão”, como era conhecido o PCB, pela primeira vez no Brasil preparou e empurrou os camponeses ao combate aberto contra seus “inimigos de classe”. Ao protagonizar o movimento armado de Porecatu, o Partido ensaiou, ao mesmo tempo, a constituição de organizações rurais com características sindicais: as ligas camponesas.1 De uma forma inédita, um ator político tentava enquadrar o campesinato desse estado. Essas organizações présindicais, criadas pelos comunistas em diferentes pontos do território nacional, mais tarde transmitiriam a sua herança às famosas Ligas Camponesas do Nordeste. E, em que pese a forte oposição das oligarquias rurais e dos governos, as sementes da organização partidária comunista e da organização sindical germinaram nesse solo fértil. Com o fim da guerrilha, os militantes comunistas, sem tardar, retomaram – nessa região essencialmente rural – seu trabalho entre as camadas sociais menos favorecidas. Após os acontecimentos de Porecatu, o PCB transformou sua política e suas táticas. O extremismo da luta armada pertencia ao passado. Agora, sua atuação evidenciava um claro espírito conciliador e legalista. Os comunistas trabalhavam para construir organismos mais bem adaptados à legislação existente, suscetíveis de serem institucionalmente assimilados e socialmente legitimados pelo campesinato. O fraco desenvolvimento urbano da região não tinha permitido aos grupos sociais citadinos disporem de organismos de representação em nível sindical e profissional. Esse fator, somado à ausência de órgãos similares para as populações rurais, provavelmente conduziu o Partido Comunista a oferecer uma modalidade de organização mista a todos os “trabalhadores”,

1

A pesquisa localizou a existência de 12 ligas camponesas nesse período no norte do Paraná.

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seja da cidade, seja da lavoura. Assim, desde os primeiros anos da década de 1950, as “uniões gerais de trabalhadores” (UGTs) apareceram para, em seguida, se propagarem por todo o setentrião do Paraná. Aos poucos, as UGTs tornavam-se pequenas demais e pouco flexíveis para responder ao leque de crescentes demandas. Sem tardar, os militantes comunistas viram-se obrigados a desmembrar as “uniões”. Assim nasceram os primeiros sindicatos de lavradores e de trabalhadores agrícolas do estado, que certamente figuravam entre os primeiros sindicatos camponeses criados no Brasil nos anos 50. Eles estiveram na origem de uma formidável onda de sindicalização, que invadiu o meio rural brasileiro. Em 29 de janeiro de 1956, nascia o primeiro sindicato camponês do Paraná, o Sindicato dos Colonos e dos Assalariados Agrícolas de Londrina. A onda de sindicalização se espalhou por vários municípios, culminando com a fundação da Federação dos Trabalhadores na Lavoura do Estado do Paraná (mais tarde chamada FETAEP) no primeiro semestre de 1963 e, depois, com a criação da Confederação Nacional (Contag). Os comunistas fundaram no Paraná, ao todo, 86 sindicatos no campo. De forma geral, esses sindicatos – apesar das diferentes denominações – apresentavam-se como representantes de todos que pertenciam à ampla categoria dos “trabalhadores rurais”. Resultado: a sua base, extremamente heterogênea, compreendia ao mesmo tempo vários tipos de assalariados agrícolas, posseiros, parceiros, arrendatários e pequenos proprietários. E a sua diretoria era mais ou menos homogênea, formada por pequenos proprietários de terra. Ou seja, uma organização com uma base diversificada, dirigida ou dominada por um grupo de pequenos proprietários. A justificativa principal apresentada pelos dirigentes foi que, de um lado, a propriedade agrícola – ainda que pequena – funcionava como uma retaguarda segura, tornando o indivíduo mais móvel, mais disponível para as tarefas sindicais; por outro lado, esses pequenos proprietários seriam os mais interessados e dedicados ao sindicalismo, graças às suas melhores condições econômicas e culturais (Entrevistas 16 e 21).2 Essa distância entre a condição social da base e da direção levava a outras diferenças significativas: em termos da apropriação do capital econômico, capital cultural-formal ou de capital social; em termos de interesses imediatos, das estratégias políticas e dos projetos ideológicos. Entretanto, essas diferenças sociais no seio do sindicato comunista não chegaram a ter o tempo necessário para transformarem-se em obstáculo para esse movimento sindical nascente. O golpe de 1964 não permitiria o seu desenvolvimento.

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As entrevistas utilizadas neste texto fazem parte de um conjunto de 66 entrevistas realizadas em 1991 e que serviram de base para a elaboração da tese de doutorado do autor.

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O NAMORO COM AS ELITES Durante os acontecimentos da guerrilha de Porecatu, o Partido Comunista do Brasil soube manter sua influência em algumas esferas do poder local, especialmente em Londrina. É verdade que as limitações impostas pela clandestinidade dificultavam sua atividade pública, mas isso não impediu que os comunistas mantivessem uma iniciativa política no município ao longo de todo o processo de sindicalização rural. O PCB passou a intervir com mais confiança ao lado e no interior de alguns setores das elites, consideradas “progressistas”, como o Partido Trabalhista Brasileiro. No entanto, em termos de poder local, em todos os municípios do Paraná, eles permaneceram minoritários, o que não quer dizer que estivessem totalmente excluídos. Durante os anos da corrida pela sindicalização, para além do crescimento do Partido, os comunistas aumentaram o número e asseguraram a fidelidade dos seus pontos de contato com certas camadas das elites (Bandeira, 1978, p.30). Além disso, ao longo do governo do presidente João Goulart, os comunistas desfrutaram seu apoio, uma grande liberdade de ação e, mesmo, uma proteção jamais vista. Especialmente os militantes do “Partidão” paranaense cultivaram uma ligação privilegiada com o presidente. Por um lado, graças às suas relações com o Partido Trabalhista local e, por outro, talvez em razão da eficiência de seu recrutamento sindical – um dos pontos do programa de Jango. Chamando o presidente da República de “companheiro”, Antônio Conde – presidente da Federação dos Sindicatos do Paraná – circulava com muita desenvoltura nos corredores e nos gabinetes palacianos (Entrevistas 16, 20 e 25). A partir de julho de 1963, quando foi nomeado como ministro do Trabalho, o senador petebista paranaense Amaury de Oliveira e Silva, a situação revelou-se excepcionalmente vantajosa para os comunistas e, em particular, para aqueles do meio rural do Paraná. “Não se passava uma semana” sem que José Rodrigues dos Santos, dirigente comunista do Paraná, não fizesse uma visita ao ministro. Segundo depoimento dos entrevistados, eles eram “amigos íntimos”. (Entrevistas 15, 16, 20, 21, 23, 24 e 25).

OS GANHOS DA MILITÂNCIA Todos os militantes comunistas entrevistados revelaram uma forte convicção em sua “boa causa”. Apesar das divergências aqui e acolá com a direção do Partido, eles compartilhavam uma espécie de compromisso ético, acreditavam firmemente no seu papel “progressista”. Eles “gostavam da luta”. Ela era o seu objetivo, e por ela não mediam sacrifícios. Enfrentando as dificuldades do ofício, esses sindicalistas valorizavam suas qualidades de abnegação, de disponibilidade ilimitada e de devoção. Ajudar a todos os sindicatos recém96

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fundados era difícil para eles: “Eu ia lá, dava assistência e ficava a noite inteira fazendo os troços prá eles... às vezes amanhecia o dia trabalhando, botando tudo em ordem, senão, cê sabe, eles denunciam, né? O inimigo tava ali... (era) duro, viu!” (Entrevistas 20 e 21). Segundo Antonio Conde, todas essas viagens feitas como dirigente sindical não eram financiadas pelo sindicato, ao contrário, “tudo vinha do seu sítio”. Na Federação dos Trabalhadores da Lavoura do Paraná, era ele quem pagava o salário da secretária. Nessa época, não havia ainda o imposto sindical, “não havia nada, nenhuma renda”. Então, em vez de tirar proveito econômico, os militantes assumiam até mesmo as despesas financeiras da entidade. José dos Santos, como membro do Comitê Estadual do Paraná, recebia “uma pequena ajuda” do PCB. Ele sempre teve direito a “um pouco do sindicato”, mas jamais o suficiente. Ele vivia “por sua própria conta”. Quanto a Moacyr Ferraz, não recebia nada de seu sindicato. Segundo Dirceu Galli, “todas as pessoas do Partido” tinham “dificuldades financeiras”, “o Partido era muito pobre”. Em suma, o Partidão não oferecia possibilidade de enriquecimento pessoal. Evidentemente, para os comunistas de situação financeira melhor – sobretudo os profissionais liberais – pertencer ao Partido não lhes rendia nada do ponto de vista econômico. No entanto, no Brasil ter “dificuldades financeiras” não era privilégio dos comunistas. Assim, para os indivíduos oriundos das camadas populares, portadores de um capital econômico e cultural-formal modestos, o Partido Comunista e o sindicalismo poderiam significar uma possibilidade de sobrevivência. José dos Santos recebia suas roupas do próprio Partido. Para ele, “a vida não era tão ruim” assim (Entrevistas 19, 20, 21 e 25). De fato, ser militante, ou melhor, quadro do Partido Comunista, dava acesso a vantagens outras que ganhos econômicos. Para os mais carentes, a militância permitia – e eles tinham necessidade disso – a obtenção de certo capital cultural-formal, por meio de cursos de formação. Os mais bem situados na hierarquia partidária poderiam se beneficiar de alguns favores reservados ao apparatchik. Nesse aspecto, os quadros do Paraná se sentiam excluídos. Eles tinham recebido “vários convites” para visitar a União Soviética e outros países, mas o Comitê Central escolhia sempre “seus amigos” em detrimento deles (Entrevistas 20 e 21). O capital social, por sua vez, era o mais fácil de ser acumulado. As relações interpessoais se desenvolviam através da rede de contatos estabelecidos com políticos, autoridades e personalidades locais; ou pelas relações de intimidade costuradas em âmbito federal, freqüentemente através do Partido Trabalhista; ou ainda pela notoriedade obtida a partir dessa mesma rede de conhecidos. Na verdade, essas ligações com o poder eram politicamente interessantes, e mesmo necessárias, para o PCB e para seus militantes. Elas permitiam um acesso considerável ao seio das elites, entre os tomadores de decisões políticas. Além disso, estar no meio dessa “grandalhada” era “demais”, uma fonte de 97

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prazer para os sindicalistas do Partidão. Essa situação favorecia até a resolução de certos problemas pessoais (Entrevistas 20 e 21; Coelho, 10/12/1961; Barros, 08/02/1964). Não se trata de fazer um julgamento moral sobre a conduta desses sindicalistas, nem de colocar em dúvida a sua boa-fé. Trata-se simplesmente de identificar a tensão existente, em caráter permanente, entre devoção e interesse, entre modéstia e ambição. A oscilação entre esses dois pólos é menos ligada a características pessoais do dirigente sindical que à sua condição de porta-voz de uma coletividade. Essa tensão entre o sacerdócio e o acesso a vantagens está ligada à ambivalência do representante, que deve ser “representativo dos representados” e, ao mesmo tempo, ter “mais qualidades”, ser “superior”, ser o “melhor” dos representados (Maresca, 1983, p.83 e 97).

A CONTRA-OFENSIVA CATÓLICA Não há a mínima dúvida de que os comunistas foram os principais atores no processo de enquadramento sindical no meio rural do Paraná. Mas eles não foram os únicos a atuar nesse terreno. Rapidamente, tiveram que conviver com a concorrência – incômoda ou estimulante – e, sobretudo, com a oposição dos católicos. Assim, não se pode compreender a intervenção do PCB no campo, no início dos anos 60, sem falar da ação – ou melhor, da reação – orquestrada pela Igreja Católica. Mais que um fenômeno restrito ao Paraná, o episcopado em todo país, por meio de seus diferentes matizes políticos, tomou o seu lugar na corrida pela sindicalização rural e passou a combater o “perigo vermelho” (Sigaud, 1981. p.7; Entrevista 24). O movimento de recrutamento dos lavradores e de colonos do café, levado a cabo pelos comunistas no norte do estado, passou a preocupar a liderança católica conservadora. Mas também a sindicalização poderia permitir ao clero reforçar seus laços com o campesinato, propondo-se como o seu protetor, ou talvez mesmo como o seu porta-voz. Assim, a direção da Igreja Católica do setentrião do Paraná, em particular a ala jesuíta, tomou a iniciativa de construir um movimento em oposição à ofensiva comunista na região. Simbolizando essa oposição, em 13 de agosto de 1961, no mesmo dia em que os comunistas realizavam em Maringá o II Congresso de Trabalhadores Rurais, os católicos organizaram uma grande manifestação, a “festa da lavoura”. Desse modo, nasceu a Frente Agrária do Paraná (FAP), com a incumbência de enquadrar o campesinato em sindicatos católicos, longe do alcance dos partidários do PCB. De fato, até o final dos anos 50, a esquerda – sem contar a oposição “natural” dos grupos dominantes – encontrava-se mais ou menos livre para conquistar “os esquecidos do campo”. No entanto, a partir da entrada em campo da Igreja – com suas múltiplas tendências –, a esquerda, inclusive os 98

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comunistas do Paraná, sentiu o seu território invadido, disputado e, logo, ameaçado. Isso teve um efeito duplamente positivo na edificação do campo sindical rural.3 De um lado, o assédio católico estimulou mais ainda a militância da esquerda, especialmente do PCB. A concorrência exacerbada deu início a uma verdadeira corrida no campo, obrigando os comunistas a acelerar de forma excepcional o seu ritmo e, com isso, o próprio ritmo da corrida. Mais sindicatos, mais federações e a confederação nacional seriam fundados. Por outro lado, a Igreja igualmente empurrou milhares de “humildes” lavradores e religiosos para a arena de disputas – pessoas até então totalmente marginalizadas da atividade sindical e da vida política. Assim, grupos cristãos fundaram no Paraná 46 sindicatos, vindo a somar-se a todos aqueles animados pelos marxistas. A tensão entre os dois pólos, indubitavelmente, contribuiu para a constituição do campo sindical rural.

A CUMPLICIDADE ENTRE OS DIRIGENTES A luta, a disputa e a concorrência entre os antagonistas eram a regra do campo sindical rural em formação no norte do Paraná. Os enfrentamentos, opondo os militantes comunistas aos religiosos, aos leigos católicos e aos fazendeiros eram cotidianos, quase permanentes. Contudo, para além dos conflitos, nossa investigação permitiu perceber a existência de certas relações de empatia, de simpatia, de intimidade mesmo, ou de amizade entre alguns atores pertencentes a correntes políticas claramente opostas. Essas relações foram mais visíveis entre aqueles que se enfrentavam todos os dias, entre aqueles que tinham o hábito de se sentar à mesma mesa para discutir, negociar ou brigar; quer dizer, entre aqueles que ocupavam posições homólogas nas hierarquias de cada corrente. Relações de interconhecimento, de aproximação e de troca de experiências foram estabelecidas, mas sendo mais ou menos veladas e dissimuladas, principalmente aos olhos dos nãoiniciados, do “público”, de onde vem a suspeita da existência de uma cumplicidade entre eles. Essas relações eram necessariamente encobertas, sob pena de destruir a imagem que se buscava produzir de si e do outro. Por exemplo, o padre Osvaldo Rambo, líder da FAP, revelou certa intimidade em relação ao militante comunista José Santos, declarando que se “dava bem com ele” (Entrevista 23; Rambo, 20/03/1962). As ligações amigáveis entre oponentes decorriam de acordos tácitos e implícitos – subjacentes aos antagonismos – sobre o que merecia ser objeto de luta. Esses laços são o resultado de interesses fundamentais comuns que se 3 “

Campo” é aqui entendido como espaço de relações sociais no sentido dado por Bourdieu (1981).

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referem à existência mesma do campo sindical em formação. Em particular, é provável que a cumplicidade objetiva entre os agentes de nível análogo tenham relação com suas origens, trajetórias e experiências sociais similares.

O PERFIL DO MILITANTE CATÓLICO No interior da Frente católica existiam dois níveis de militância. De uma parte, havia aqueles que se consagravam às tarefas de direção, planificação, elaboração e de difusão do discurso. Eram quase que exclusivamente religiosos – alguns bispos e padres. De outra parte, havia aqueles destacados para tarefas menos complexas, para a execução das ordens, para as quais o efeito de volume era o mais importante. Eram os leigos – a “massa” dos militantes congregados marianos. Para os religiosos, o que estava em jogo era o interesse institucional, a preocupação da Igreja enquanto instituição: seus dogmas, sua audiência e sua fonte de recrutamento. Ainda se deve agregar a isso o interesse sacerdotal fazendo-se representante e constituindo um grupo de representados. Mas esse interesse não era apresentado como um interesse em si mesmo. Dissimulando, os dirigentes cristãos apenas mostravam o objetivo de se tornarem porta-vozes como “um interesse desinteressado” (Bourdieu, 1984, p.53). Os religiosos se diziam simples soldados devotados em luta pela boa causa. É verdade que a condição de porta-vozes de um grupo camponês não acrescentava muita coisa ao currículo dos bispos, já dotados de prestigiosa posição. Entretanto, para os católicos do baixo clero, os padres, por exemplo, essa condição poderia tornar-se um elemento de distinção, uma via para ter acesso a ganhos simbólicos (Rambo, 20/03/1962). O segundo grupo de militantes da FAP era composto, talvez sem exceção, dos “filhos de Maria”, ou seja, dos militantes marianos, no masculino, evidentemente. A Congregação Mariana era um movimento da Igreja, reunindo os leigos para que eles recebessem “uma instrução mais profunda da religião” (Congregações Marianas, mar. 1963 e s/d.; Congregações Marianas, 29/06/1961; Entrevista 11). Não obstante, desde sua fundação, a Congregação não se distinguia por um papel político particular. Os devotos de Maria se consagravam à liturgia e aos afazeres paroquiais. Como a definiu um ex-adepto, a Congregação Mariana era “o braço-direito do padre”. Braço-direito para ajudar o padre, mas, em breve, também para empreender a luta contra a esquerda. Para combater o perigo comunista, o clero se serviu dos instrumentos de que dispunha. Ora, no norte do Paraná, não havia paróquia no campo sem Congregação Mariana. Nada mais lógico, para os bispos, que incorporar à FAP esse contingente já devidamente enquadrado (Entrevistas 3 e 23). A maioria desses filhos de Maria era de jovens lavradores, colonos e, mais particularmente, sitiantes. 100

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Muito crente, obediente às ordens do clero e permeáveis à propaganda anticomunista, esse grupo social oprimido foi uma presa fácil. Os fiéis faziam número e volume. Eles compunham a “massa” de atores anônimos, a tropa de choque da FAP, antes de tudo para os enfrentamentos físicos. À margem do campo político, esses camponeses não possuíam experiência sindical. No que se refere à criação e à organização do sindicato, os padres, notadamente Osvaldo Rambo, ocupavam-se disso. Eles diziam aos seus discípulos: “o sindicato, o documento, os papéis, eu faço! Eu só quero saber quem é competente prá ser presidente...” (Entrevista 23). Um membro do Partidão estimou que o clero “animou esta gente humilde”, que ficou “sob suas ordens”. Mas também não é menos verdade que esses militantes da legião de Maria ofereceram voluntariamente seus serviços à causa cristã. Aliás, segundo um religioso, eles se sentiam estimulados pelo “clima de luta contra o comunismo: essa rapaziada gostava daquilo... que desse brigas assim... se vinha alguém na frente que orientasse, que organizasse... É o que eles queriam!”. De fato, um dos ativistas marianos entrevistado admitiu ter gostado de jogar pedras numa reunião dos comunistas (Entrevistas 16, 23 e 26; Coelho, 10/12/1961). Os mais brilhantes na arte da oratória, os mais hábeis politicamente, freqüentemente os mais escolarizados e, provavelmente, os mais crentes na maneira católica de ver e fazer ver ocuparam, primeiro, um lugar no comando da Congregação e, em seguida, na direção sindical. Eles se tornaram, ao mesmo tempo, joguetes e beneficiários da Igreja. Sob as ordens do clero, eles eram, certamente, manipulados pelos eclesiásticos, mas, em contrapartida, eles usufruíam os benefícios derivados da condição de manipulados. Para vários deles, a militância na FAP favorecia o acesso a outras camadas sociais e lhes permitia tecer novas redes de relações interpessoais. O resultado foi o crescimento de seu capital social. O fato de ser dirigente sindical favoreceu esses jovens ativistas católicos graças à sua condição mesma de agente social. Afirmando-se como “agente que age”, participantes ativos nas disputas desse campo particular em formação, esses “homens do campo” tiveram a oportunidade de sair do anonimato e de se distinguir de seu meio (Accardo, Corcuff, 1986, p.97).

O SINDICALISMO SOB A DITADURA Mas o golpe militar de 1964 introduziu uma ruptura decisiva no campo sindical rural que havia se constituído ao longo dos anos precedentes. Se a intervenção militar alcançou todos os níveis da sociedade brasileira, ela atingiu o sindicalismo de esquerda com uma brutalidade excepcional, varrendo os sindicalistas do Partido Comunista da cena política para impor os seus testas-de-ferro. Para o coroamento dessa tarefa, a Igreja Católica 101

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conservadora colocou os seus quadros à disposição dos militares nos organismos sindicais agrícolas e, particularmente, naqueles do Paraná. Temperados no combate anticomunista, os sindicalistas católicos assumiriam de bom grado o papel de interventores na Federação estadual e nos sindicatos comunistas. Depois, pouco a pouco, eles se tornariam dirigentes sindicais de corpo e alma de uma estrutura sindical herdada, ou melhor, usurpada dos sindicalistas do Partidão. Os marxistas que, até aquele momento, haviam dominado o campo sindical viram seus postos serem ocupados pelos militantes cristãos. Do dia para a noite estes últimos passaram, graças ao golpe militar, da condição de dominados à de dominantes. Sob a direção do grupo católico, a Federação dos Trabalhadores na Lavoura do Estado do Paraná, antes fundada pelos comunistas, agora passará a chamar-se Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Paraná (FETAEP).

OS PROFISSIONAIS DA REPRESENTAÇÃO Em razão de sua juventude, o sindicalismo rural comunista anterior a 1964 foi marcado por um acentuado grau de amadorismo e mesmo primarismo. O golpe de estado tinha forçado efetivamente o aborto do processo de consolidação de toda uma geração de ativistas de esquerda. Os militantes católicos que lhes sucederam tiveram, contudo, a ocasião e o tempo necessários à constituição de uma verdadeira corporação de dirigentes sindicais. Se até esse momento a regra era a improvisação, a precariedade dos meios e a coesão ideológica, a partir de agora a edificação de um impressionante aparelho sindical se colocaria em marcha e a prática do movimento sindical passaria a depender cada vez mais de um conhecimento específico de especialistas, mesmo que os sindicalistas continuassem a se recusar a considerar sua ocupação como profissão (Paraná Rural, s/d). No entanto, eles acreditariam – talvez porque fizessem crer – que a escolha que fizeram era uma questão de fé, fé em um ideal de “direitos dos trabalhadores rurais” e crença na sua missão filantrópica. Aquele que “não tem interesse pelo próximo não entra [no sindicalismo]”, declararia um presidente de sindicato (Entrevistas 8, 18 e 22). A ligação aos ideais e aos valores oriundos de uma ética cristã parece fundar a inclinação pela militância sindical. Ser sindicalista, nesse caso, significava aderir, por motivos éticos, aos princípios assimilados ao longo da educação cristã, reforçada pela militância no seio da Igreja. A carreira sindical aparece, desse ponto de vista, como a conseqüência e o prolongamento de uma atividade pública anterior – principalmente religiosa. Lembremos que a quase totalidade dos dirigentes do sindicalismo-FETAEP era composta de antigos membros do quadro de leigos da Igreja Católica. E a 102

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vida dos servidores de Deus impunha “muita oração, muito sacrifício e muita penitência”. Portanto, é compreensível que os princípios éticos adquiridos ao longo da experiência religiosa sejam em seguida retomados na forma de atividade sindical: “eu acho que o trabalho que a gente faz, no dia-a-dia, como dirigente sindical... se você o faz honestamente, é uma religião fantástica!” (Entrevistas 8, 9, 10, 11, 12, 18 e 22). A retidão de caráter, a honestidade e a probidade eram qualidades apresentadas como sinais distintivos de sacerdócio sindical. Imbuídos desse espírito, vários dirigentes sindicais destacariam como ponto de honra nas suas entrevistas o “trabalho sério e honesto” no sindicalismo (Entrevistas 22, 8 e 4). Outra característica intrínseca dessa prática sindical seriam a abnegação, a devoção e o trabalho incansável. Acentuavam-se freqüentemente o “amor ao trabalho e a vontade de vencer”, as noites em claro, a renúncia às férias e ao repouso dominical, as “24 horas a serviço do movimento sindical”, os esforços inumeráveis, o suor pródigo e as estradas percorridas. Ao término de um “ano do trabalho”, era comum fazer o balanço das adversidades da luta “incessante e infatigável”, dos “sacrifícios” consentidos e do “máximo de esforço” despendido para diminuir o sofrimento dos camponeses. Se nos concentrarmos nas agendas de trabalho de alguns dirigentes sindicais, notamos que normalmente o ritmo de atividade era frenético. Ao mesmo tempo, esses sindicalistas evidenciavam uma preocupação excessiva em querer justificar sua situação de dirigente e em colocar, sem cessar e antes de tudo, sua devoção em prol do sindicalismo (FETAEP, 1967, 1974 e 1978; Entrevistas 14 e 3; Paranavaí, 25/11/1975; FETAEP, 22/10/1967; Boletim Informativo, maio-jun. 1972; Rotta, 23/08/1966; Paraná Rural, dez. 1973). De fato, a devoção do militante não decorre somente de uma imposição ética. Ela serve também de fundamento legítimo para a sua ascensão profissional. Como escreveu Maresca (1983, p.53), referindo-se aos sindicalistas franceses, “a devoção é a justificação oficial da ambição”. Desde então, o desejo de galgar os degraus da carreira sindical, mesmo que a maioria dos ativistas se recuse em admitir, aparecerá tanto mais legítimo quanto maior será a “produtividade” sindical, ou, dito de outra maneira, quanto mais serviços render o dirigente em um mínimo de tempo. Em nome de sua “missão sindical”, esses ativistas aceitariam fazer uma série de renúncias pessoais. Por um lado, abriram mão do sucesso profissional e financeiro como agricultores: “financeiramente, a gente só perde”; “saí ainda mais pobre [do sindicalismo]”; “economicamente o sindicato não significou nada”; “nada tenho porque sou honesto!” Pior ainda, o movimento sindical lhes teria imposto despesas extras: na FETAEP, os membros da direção nomeada em 1964 teriam gasto, durante os primeiros anos de existência da entidade, suas próprias economias para mantê-la funcionando (FETAEP, 1982; Entrevistas 2, 5, 8, 9 e 22). De outro lado os vemos abandonar seus próximos para melhor se consagrar a “fazer o bem para o próximo”. A maioria 103

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dos presidentes consultados declarou que a sua família teria sido a grande vítima da militância: “A minha esposa às vezes tem reclamado... Já aconteceu em cinco domingos do mês d’eu não ficar em casa. Às vezes meu tempo de almoço é de 10 minutos, 15 minutos, às vezes nem almoçar não vou [em casa]” (Entrevistas 12 e 22). Nunca peguei minha família e levei pra praia ... quando resolvi deixar a Federação ... eu voltei para minha [casa] e eu [era] o estranho na casa... não vi minhas filhas crescer, eu nunca levei uma filha na escola... minhas filhas nunca freqüentaram um clube ... quando eu voltei, eu não tinha diálogo com minha mulher!, com minhas filhas ... foi terrível. (Entrevista 5)

Esses militantes se diziam, assim, prontos a renunciar a toda individualidade ou interesse pessoal. E quando esse interesse era, apesar de tudo, levado a mostrar-se, aparecia como idêntico – e jamais contraditório – ao interesse coletivo, da “base”. Uma carreira sindical de sucesso deveria ser o resultado natural do fervor, da abnegação e de virtudes pessoais, e não o fruto de um desejo subjetivo ou um projeto pessoal. O indivíduo somente poderia pretender um posto mais elevado com o objetivo de melhor servir à “classe”. Toda demonstração pública de ambição pessoal era proibida e passível de condenação moral. Todas as ambições deveriam se fundir em um único objetivo: ser útil à boa causa. Essa desindividualização deriva de um processo de metamorfose do sujeito em porta-voz do grupo. Despido de sua individualidade, cessa de ser ele mesmo para se tornar a personificação do grupo. Como em uma sessão de encantamento social, o “possuído” se contenta em repetir a voz da coletividade; por meio de tal processo de transmutação, ele adota também uma nova maneira de falar: o “eu” se transforma em “nós”, em “nós todos”. Por extensão, o sindicato passa a exprimir-se em nome da “categoria” como se fosse ele próprio a “categoria”. É assim que se lerá na imprensa sindical: “Os trabalhadores do Paraná querem ...”, “os trabalhadores estão satisfeitos com ...” (Entrevista 26; Paraná Rural, abr 1974). Mesmo que inconscientemente, a ingenuidade, o interesse desinteressado e a modéstia estampada servem muitas vezes para camuflar a ambição que pode ser percebida nessa abnegação. Dois discursos, reiterados várias vezes, entrecruzam-se para justificar a progressão no sindicalismo. Um a atribui ao acaso. Sobretudo o ingresso na carreira foi, muitas vezes, apresentado como uma mera eventualidade: Tinha uma festa de São Cristóvão ... O pessoal foi prá dita reunião de fundação do sindicato ... Mas eu nunca na minha vida tinha ouvido falar de sindicalismo ... Eu fiquei fazendo a fogueira na churrasqueira... O meu pai: “o padre Tadeu quer que você vá

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pra reunião do sindicato!” ... Cheguei, dei uma parada na porta assim, e o padre falou: “pessoal, vamos receber o secretário do sindicato aí, com uma salva de palmas”. E eu peguei e saí da porta, né? Pensando que tinha mais gente atrás de mim. Aí o padre falou: “não, mas é você mesmo!... Não assusta, que a coisa não é complicada... Já tamos fazendo a ata, tudo.” Sentei ali... observando aquilo tudo... [Então] me botaram como secretário do sindicato. (Entrevista 6)

O outro discurso considera a chegada e a ascensão no movimento sindical como resultante de uma escolha, ou mesmo de uma imposição, da “base”: Sabe, quando a pessoa começa a colaborar com a comunidade sempre existem aquelas pessoas: “oh, fulano lá na Água, naquele bairro tem a pessoa, assim, assim”. Os vizinhos sempre procuram a pessoa de acordo com a disponibilidade, de acordo com a vontade de servir. Daí eu fui indicado pra ser delegado sindical. (Entrevista 2)

Como servo da “classe”, o dirigente deve se submeter à sua vontade. Se ele aceitou a indicação não é porque esta corresponda aos seus desejos íntimos, mas porque a vontade dos mandantes tornou-se uma ordem. O escolhido tem todo o direito de considerar-se o melhor, pois essa apreciação não é fruto de um autojulgamento, mas da decisão da “categoria”, que é a depositária legítima da razão e da verdade.

A ACUMULAÇÃO DE CAPITAIS SIMBÓLICOS Até aqui, não se teve notícias de nenhum caso de enriquecimento de membros do sindicalismo rural, apesar da importante massa de recursos financeiros movimentada pelas organizações (Paraná Rural, maio 1977; Entrevista 7). Mas é evidente que, num país onde o agricultor familiar e o assalariado sempre conviveram com condições precárias de vida, para muitos a remuneração de um dirigente sindical era significativa. Entretanto, para compreender melhor o apego desses dirigentes ao seu ofício, faz-se necessário analisar mais de perto a estrutura de seus capitais, não apenas no seu aspecto financeiro, mas, sobretudo, nas suas dimensões não materiais. Antes de tudo, impõe-se atentar para o ganho cultural. Em relação à escolaridade, é recorrente a fala, principalmente entre os ativistas da década de 1970, de que “não se teve a oportunidade” de estudar. E a razão mais apontada é o fato de ter sido obrigado a trabalhar na agricultura desde tenra idade (Entrevistas 9, 17, 22 e 3). Para esses dirigentes, a atividade sindical, com a formação e o acesso às informações, significou uma maneira de preencher lacunas deixadas pela fraca escolarização. Especialmente a FETAEP, mas também os sindicatos locais realizavam com freqüência cursos de formação sindical (Scalco e outros, 13/07/1967; Miqueletti, 12/01/1968; Dumont, 17/04/1968; Boddy, 23/12/1969). 105

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As viagens são um componente indispensável da militância sindical, possibilitadas – e muitas vezes exigidas – pelas reuniões, cursos, congressos e visitas a outras entidades. Os deslocamentos eram tanto mais freqüentes, longos e longínquos quanto mais alto era o posto na escala sindical. Esse “bônus de viagem” franqueado aos sindicalistas proporcionava uma abertura nos horizontes culturais e um cosmopolitanismo, totalmente inacessíveis e impensáveis a seus pares, que continuavam na labuta da terra (Entrevista 6). O militante de “base” mostrava-se entusiasmado, sentia-se “importante”, com a participação em um curso de formação, na capital do estado. Para o presidente do sindicato, as reuniões do Conselho de Representantes da FETAEP, também em Curitiba, eram um fato banal; porém os congressos da Contag, em Brasília, revestiam-se de grande importância. Por fim, as viagens internacionais é que têm maior destaque nos currículos dos manda-chuvas da Federação. Aliás, esses deslocamentos geográficos eram carregados de simbolismo, à medida que produziam um efeito de demarcação social entre aqueles que conheceram e visitaram tal lugar e tais personalidades e os demais. (Entrevistas 5 e 6; Branco, Anastácio, 1970, p.12; FETAEP, 1970). No entanto, semelhante ao que ocorria no período anterior ao golpe, o capital social era o bem mais precioso acumulado pelos sindicalistas. Esse capital se traduzia na extensão e na qualidade da rede de relações, na notoriedade adquirida dentro da categoria e no status social. Para muitos dos dirigentes pós1964, a militância católica serviu como uma espécie de “acumulação primitiva” de capital social (Entrevista 2). No início da carreira pública, galgar postos de representação no interior da Igreja era uma forma de sair do anonimato, de se distinguir dos demais lavradores e assalariados rurais. A prática religiosa propiciava, portanto, o interconhecimento e o reconhecimento, permitindo tecer as primeiras malhas da rede de relações. No segundo momento, a atividade sindical lhes permitia uma maior abertura para o exterior (Entrevistas 2, 5 e 6). Enquanto representantes autorizados, os dirigentes eram o invólucro da categoria, a camada exterior que estabelecia o contato com o meio ambiente, político notadamente. Eles asseguravam as ligações com a sociedade civil e com as “autoridades” – um papel desempenhado com eficácia pelos sindicalistas da Federação. Tornaram-se agentes de relações públicas, o que levou alguns chefes a serem vistos – e a considerarem-se – “pessoas importantes” (Entrevistas 2, 5 e 6). A participação dos dirigentes sindicais na política partidária é um dos resultados da rede de relações, ao mesmo tempo em que vai realimentá-la (FETAEP, dez. 1968). O reconhecimento, seja de seus pares, seja da “base”, seja da sociedade, era um outro elemento essencial para a conquista de novos capitais sociais. Nesse sentido, a obtenção de títulos, tanto dentro como fora da categoria, simbolizava a confirmação do crédito social disponível ao dirigente sindical. Como um presente recebido, o título encerrava o valor simbólico da estima, 106

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da confiança, bem como da retribuição aos serviços prestados. Não por acaso, no sindicalismo rural do Paraná, José Dumont bateu todos os recordes de distinções recebidas. Nos seus 18 anos à frente da Federação acumulou inúmeros títulos de “cidadão honorário”, de “Amigo do Povo”, de “patrono”, de “sócio honorário e benemérito” e foi agraciado ainda com “vários troféus e medalhas de honra ao mérito” (Entrevista 5; Ribeirão Claro, s/d.; São Jorge, 27/09/1972; Branco, Anastácio, 1970; FETAEP, dez. 1968; Boletim Informativo, jan. 1969). Não era apenas a condecoração recebida, mas o rito de instituição, enquanto ato mágico, que assumia a função de uma promoção social, tanto aos olhos dos iniciados (os sindicalistas) quanto dos profanos (o “público”). A progressão nessa escala de notoriedade e de status social era tanto mais importante quanto maior fosse a legitimidade da instituição que conferisse a distinção. E a correspondência entre o título e o indivíduo que o recebia estava em função da amplitude da crença coletiva produzida pelo rito de consagração.

A EVOLUÇÃO DE UMA CARREIRA E A CONSTITUIÇÃO DA CORPORAÇÃO As diferenças entre os ativistas apareceram não tanto na trajetória social, mas na posição relativa que ocupavam num dado momento. Assim aqueles, por exemplo, recém-ingressados no campo sindical necessitavam ganhar o apoio e a confiança dos companheiros – que eram também seus concorrentes. Para isso, precisavam provar o seu devotamento e reafirmar a sua crença nas representações produzidas e assimiladas pelo movimento sindical. Não dispondo de economias próprias, eles eram obrigados a acumular capital social (e sindical). Os aprendizes de sindicalistas necessitavam mostrar-se confiantes no futuro e sempre disponíveis: “Eu botei o sindicalismo dentro do sangue... na veia e vesti a camisa e venho lutando... Já fui ameaçado de morte. Mas nunca me intimidou, nunca me desestimulou” (Entrevista 9). Assinalemos que somente alguns poucos privilegiados conseguiam atingir o cume da carreira, chegando à direção da Federação ou mesmo da Confederação Nacional. O que os distingue dos demais é a velocidade com que percorreram o caminho sindical. Um elemento fundamental de diferenciação do sindicalismo rural anterior e posterior ao golpe militar é o desenvolvimento, no segundo período, de uma verdadeira corporação dos sindicalistas. Se, na época dos comunistas, a atividade sindical era apenas uma decorrência da militância política nos quadros do PCB, os dirigentes sindicais dos anos da ditadura, embora saídos do campesinato, foram se constituindo enquanto um grupo à parte, numa categoria especializada na representação dos “trabalhadores rurais”. Reconhecer a existência de uma corporação de especialistas da representação significa 107

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tanto evitar a armadilha de reproduzir de maneira acrítica o discurso ingênuo do mandatário devotado, desinteressado, cheio de abnegação, quanto fugir de uma visão maniqueísta do mandatário cínico e usurpador consciente (Bourdieu, 1984, p.53). Isso também não quer dizer que o dirigente sindical não tenha nada em comum com a base dos representados. De modo geral, eles tinham a mesma origem social e alguns ainda cultivavam um vínculo com a terra, possuindo um sítio ou uma chácara. Entretanto, o fato de exercerem uma atividade específica, diferente do trabalho agrícola, fazia com que fossem levados a defender também, paralelamente aos “interesses da categoria”, interesses particulares dos mandatários. Ao defenderem as “aspirações dos trabalhadores rurais”, esses especialistas da representação estavam lutando também pelos interesses do grupo diferenciado do qual faziam parte. Tais sindicalistas serviam aos interesses dos seus representados “à medida que eles serviam também aos seus interesses, em lhes servindo” (Accardo, Corcuff, 1986, p.131). Nesse jogo, o dirigente protegia a sua condição de porta-voz e, por extensão, os interesses da corporação dos representantes: promoção social do grupo, manutenção de eventuais privilégios, sua sobrevivência e reprodução. A existência dos mandatários significa assim, de um lado, a manutenção da representação do campesinato e a perenidade de sua expressão enquanto grupo político e, de outro, a preservação do próprio espaço de intervenção, isto é, do campo sindical. Assim sendo, eles eram os primeiros interessados, o grupo seleto dos representantes tinha tudo a ganhar em continuar sendo o “guardião do campo”. A perpetuação da condição de mandatário está em função direta com a manutenção da corporação e do campo sindical. Mas, como era de esperar, a representação oficial negava esse fato e escudava-se na ideologia do desinteresse, alegando a transitoriedade da condição de dirigente sindical. Ora, como não existia nenhuma norma nem tradição de renovação das direções, na prática, eles se mantinham à frente das entidades durante quatro, cinco, vários mandatos sucessivos (Entrevista 2). Muitas vezes os interesses eram complementares: ao servir à corporação, servia-se à “classe”. No entanto, era quando os interesses se mostravam contraditórios que os problemas começavam a aparecer. Quanto mais a corporação se especializava, quer dizer, quanto mais ela se capacitava profissionalmente para exercer a sua função, mais ela se diferenciava e se distanciava dos mandantes e, então, maiores eram os riscos de incompatibilidade de interesses. No intuito de evitar tais distanciamentos, era de esperar que os representantes tivessem a preocupação de aparecer como a vitrine da “classe”, posando como representativos do campesinato ou, pelo menos, de um campesinato idealizado. No entanto, não se percebeu nenhum esforço nesse sentido, e os vínculos com o território e com a atividade produtiva rural eram muito débeis, mesmo que muitos dirigentes fizessem questão de frisar que “foram buscá-los 108

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na roça” para o sindicato. Da mesma forma, alguns procuravam manter uma pequena propriedade rural, mais como símbolo – ou para fazer valer como tal – de pertencimento à categoria (FETAEP, 09/07/1966; Entrevistas 5 e 26). Seja como for, nesse período, todo aquele que chegou à condição de presidente de sindicato abandonou as lidas agrícolas em troca da militância em tempo integral. O agricultor se tornou sindicalista “liberado” e passou a receber uma gratificação pelo exercício da função. Mas, daí em diante, ele não aspirava mais a continuar sendo um “trabalhador rural”, independentemente do que dizia. É como se o afastamento da atividade braçal significasse comodidade e ascensão social, um símbolo de prestígio. Operou-se um verdadeiro desenraizamento do mundo rural, em que o ativista passou por um processo de “urbanização”, no qual a transferência do local de moradia para o centro urbano era o indicativo mais evidente. Pior ainda, acompanhando o êxodo rural, esses dirigentes não tomaram a iniciativa, ou não conseguiram manter seus descendentes no meio rural. A maioria esmagadora dos filhos dos sindicalistas pesquisados tornou-se citadina (Entrevista 22). No momento em que esses sindicalistas ingressaram na carreira sindical, eram, do ponto de vista econômico e produtivo, representativos da “categoria”, à medida que compartilhavam uma série de características dos agricultores familiares. Mas mesmo os aprendizes de dirigentes já apresentavam algumas propriedades sociais que os distinguiam dos demais, como a capacidade de liderança e uma certa rede de relações que os diferenciava (Entrevistas 18 e 26). Portanto, eles foram escolhidos como mandatários muito mais por aquilo que os distinguia do que por aquilo que os assemelhava aos demais. À medida que o tempo passava e os dirigentes progrediam na hierarquia sindical, distanciando-se de sua condição de “trabalhador rural” e acumulando capital social e cultural, deixavam de ser socialmente representativos da “base” camponesa, para se tornar representativos da corporação dos chefes sindicais. Então, conforme se afastavam socialmente dos mandantes, mais adquiriam competência específica para exercer a função de mandatários, mais eles se tornavam profissionais da representação. Podemos ir além nesse raciocínio dizendo que quanto maior é o distanciamento em relação às “bases”, maior a autonomia da corporação, e o espírito de corpo se reforça. A legitimidade de representante depende mais do reconhecimento de seus pares, dos quais ele se aproxima nas altas esferas da corporação, do que do respaldo da “categoria”. Em outros termos, a legitimidade que o dirigente poderá usufruir junto aos “trabalhadores rurais” passa a ser decorrência direta do apoio recebido dos sindicalistas. Assim, para ser dirigente estadual ou nacional, mais valia ser portador de um excelente histórico dentro do movimento sindical do que ser exemplar junto à “base”. Os serviços prestados dentro do campo sindical é que contavam para o progresso na carreira (Entrevistas 5, 14 e 22). 109

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Outro aspecto que contribuiu para reforçar esse espírito de corpo do sindicalismo rural pós-1964 foi o nepotismo. Além da permanência na direção da entidade por sucessivos mandatos, a agregação de membros da família (especialmente do presidente) foi também facilmente observável nessas organizações (Entrevistas 4 e 5). Acrescenta-se o papel centralizador e monopolizador da figura do presidente não só para consolidar a corporação, mas para feudalizar o órgão sindical. Toda a vida sindical girava em torno da figura do presidente. Isso era ainda mais verdadeiro no sindicato local, onde a entidade e o seu presidente eram praticamente sinônimos. Os demais membros da diretoria – salvo o tesoureiro, que assinava os cheques da entidade – eram peças quase decorativas. Com raras exceções, não existia trabalho de equipe nos sindicatos (Entrevista 2). A própria FETAEP incentivou o que se convencionou chamar de “presidencialismo”; ela só recebia os presidentes de sindicatos. Embora houvesse outros membros liberados, o presidente era normalmente a única figura pública da entidade, além de concentrar, em suas mãos, todo o poder (Entrevistas 3, 5 e 6). O fechamento do sindicalismo-FETAEP sobre si mesmo era tão forte que raramente ocorriam disputas eleitorais. A existência de chapas de oposição era tida como um “problema”; enquanto a chapa única era tida como atestado de desempenho sindical: “nunca tive... durante o período que eu fui aqui presidente... oposição de chapa na Federação. Nunca tive!” (Entrevistas 5 e 10). Somente a partir dos anos 80, com o ressurgimento da esquerda no campo, é que o monopólio sindical começou a ser contestado, multiplicando-se os grupos de oposição sindical. A linguagem era um outro elemento indicador da constituição da corporação dos sindicalistas e do desenvolvimento do campo sindical enquanto espaço social relativamente autônomo. Ser sindicalista significava dominar um saber-fazer particular, que implicava no conhecimento de um linguajar técnico específico. Era preciso saber manejar um conjunto de conceitos e expressões – notadamente jurídicos – completamente estranhos aos ouvidos dos leigos. Ao mesmo tempo em que ajudava a definir os contornos da corporação, o uso de uma linguagem “esotérica” funcionava como um sinal de distinção. O emprego adequado de um conjunto de conceitos e jargões próprios é que definia o pertencimento ou não ao grupo dos iniciados, funcionando como uma espécie de certificação (de qualidade) social.

UM CAMINHO SEM VOLTA Esse sindicalismo não representou uma via de enriquecimento econômico para os dirigentes. Porém, sem sombra de dúvida, ele significou uma opção profissional para alguns “homens da terra”. 110

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Se é verdade que a gratificação recebida enquanto “liberado” nos órgãos sindicais era modesta, também é verdadeiro que muitos dirigentes tiveram nesse recurso a única fonte de sustento de suas famílias (Entrevista 2. FETAEP, 05/01/1965). E, quanto mais alto o nível de responsabilidade, tanto mais intensos eram os efeitos da desruralização e, em conseqüência, mais difícil se tornava o retorno ao campo. Isso se passou com alguns diretores de sindicatos municipais. Pelo fato de terem se desfeito da propriedade rural, ficaram impossibilitados de retornar à atividade agrícola. E assim, em decorrência de sua desqualificação para atividades urbanas e de não ser mais jovens, tais ativistas experimentavam com freqüência uma segunda derrota no mercado de trabalho (Entrevistas 3, 9 e 13). Mas foi nos órgãos de cúpula, como a FETAEP, que os problemas mais sérios apareceram. Para assumir um cargo na direção da entidade, os dirigentes tiveram – por imposição legal e por praticidade – de se transferir para a capital. Para isso, foi necessário vender a propriedade agrícola daqueles que a possuíam. O que antes era seu meio de vida, a partir desse momento não seria nada além de efêmeras e nostálgicas recordações. Tal situação tornou os diretores da Federação totalmente dependentes economicamente do “ordenadozinho” de liberado. Então, via de regra, eles não conseguiam vislumbrar outra perspectiva de vida que não fosse a permanência ou a progressão (que muitas vezes é a condição da permanência) como “liberados” do sindicalismo (Entrevistas 1 e 22 ). Quanto mais os dirigentes se aprofundavam, mais se envolviam no movimento e menos tinham a possibilidade de retorno à condição de agricultores. A vontade de permanência desses “permanentes” tendeu a provocar distorções políticas no processo de escolha da diretoria sindical. Muitas vezes, por motivos “humanitários” mantinha-se na direção um militante que não dispunha de outra fonte de renda, que “não tinha onde cair morto”, em vez de substituí-lo por outro sindicalmente mais capaz e produtivo (Entrevistas 1 e 7). Evidentemente, essa situação bloqueava o processo de renovação das direções. Assim, o caminho de mão única que levava do trabalho na enxada até os gabinetes das cúpulas sindicais, cercados de secretárias, só tendeu a reforçar ainda mais o espírito de corpo.

CONCLUSÕES Porecatu seria somente mais um entre os conflitos pela posse fundiária não fosse a entrada em cena dos comunistas, tornando-se a primeira de uma cadeia de lutas agrárias que iriam eclodir sucessivamente até o golpe militar de 1964. Esse conflito também permitiu a aparição dos primeiros organismos de tipo sindical destinados a enquadrar o campesinato: as Ligas Camponesas. 111

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No rastilho de Porecatu, os sindicatos comunistas logo se alastraram pelo norte do estado. Essas entidades constituirão uma parte da base da enorme pirâmide sindical que será edificada, não somente no Paraná mas também, em todo o território nacional. Mas as reações à atividade do PCB não tardaram a se manifestar. O contra-ataque que resultou em mais conseqüencias ficaria por conta da Igreja Católica, ameaçada em sua credibilidade junto aos fiéis do campo. Os católicos se lançam no mesmo terreno, jogando o mesmo jogo, e passam a criar os próprios sindicatos. Assim um novo espaço de luta social foi tomando forma. Em torno da ação do Partido Comunista e da reação por ele suscitada, o campo sindical foi constituído. O golpe militar vai roubar a iniciativa política dos comunistas e entregá-la aos sindicalistas cristãos, agora empenhados em transformar a Federação e os sindicatos do Paraná numa impressionante máquina de “assistência” ao “trabalhador rural”. Todavia, para além dos antagonismos, a pesquisa revelou a existência de ligações entre agentes de campos opostos. Uma certa cumplicidade entre alguns sindicalistas do PCB e militantes da FAP ficou evidenciada, denotando a presença de interesses comuns, ligados à manutenção desse campo de representação sindical. Aliás, o Partidão provou contar com uma não desprezível penetração entre as elites e o poder local. Depois, apesar de o Partido permanecer formalmente na ilegalidade, ainda desfrutou uma invejável desenvoltura durante o governo João Goulart. As distâncias entre “bases” e direções também se traduziam em capacidades diferenciadas de acumulação de capitais. Entretanto, se é verdadeiro que, de modo geral, os pequenos proprietários dispunham de uma situação financeira menos instável que aquela dos demais “trabalhadores rurais”, esse capital não se constituía no fator determinante desse distanciamento. Da mesma maneira, a carreira sindical não se mostrou como uma via de enriquecimento. Porém, o que é certo é que o sindicalismo permitia – e isso já valia para os militantes comunistas – uma acumulação de capitais de outra natureza. A constituição de redes de relações sociais, que ultrapassam de longe o círculo restrito de amizades do “homem do campo”, possibilitou o fácil acesso aos centros de poder, significando um capital social considerável adquirido por esses ativistas. O capital cultural, igualmente, era a segunda vantagem dos mandatários sindicais, traduzido no acesso a uma vida cultural entremeada de cursos e viagens, fora do alcance da maioria dos sindicalizados de base. O movimento sindical posterior a 1964 só fez institucionalizar essas distâncias sociais. Os dirigentes continuaram acumulando capitais simbólicos inacessíveis ao “trabalhador rural”. À medida que a sua atividade se profissionalizava, os sindicalistas formaram uma corporação cada vez mais à parte e diferenciada nos seus componentes e seus interesses em relação à “base”. 112

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Para muitos deles, o abandono da atividade agrícola foi condição sine qua non para o exercício do mandato de representante. Surgiu um outro “nós”, em meio ao “nós” que incluía todo o campesinato, que iria se traduzir por um ganho de autonomia dos mandatários em relação aos mandantes. Graças a isso os primeiros passam a depender muito mais de si mesmos que dos segundos. O espírito de corpo aí gerado conduzirá a freqüentes manifestações de nepotismo e de “presidencialismo”. O final dos anos 70 encerrou esse primeiro ciclo do sindicalismo. Agora, no lugar do velho Partidão e da Igreja conservadora, novos atores vão a campo disputar a representação dos mesmos segmentos sociais, os camponeses ou os agricultores familiares. É interessante perceber que, apesar de todas as rupturas e mudanças graduais ocorridas nesse campo sindical, boa parte das práticas da militância gestadas desde os anos 50 não desapareceu no período seguinte. A força da inércia parece ser maior que a da transformação. O modo de ser dirigente e de conduzir o movimento se incrustou de tal maneira nos sujeitos e nos aparelhos burocráticos, reproduzindo um habitus sindical não só nos herdeiros do “velho” sindicalismo, mas também naqueles que se queriam inovadores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACCARDO, A., CORCUFF, P. La sociologie de Bourdieu. 2ª ed. Bordeaux: Le Mascaret,. 1986. 247 p. BANDEIRA, M. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 187 p. BOURDIEU, P. La délégation et le fétichisme politique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, 52-3, p.49-55, jun, 1984. . La représentation politique. Eléments pour une théorie du champ politique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. 36-7, p.3-24, fev.-mar., 1981. BRANCO, G., ANASTÁCIO, A. Construtores do progresso Norte do Paraná. Londrina: s/ed,. 1970. 130 p MARESCA, S. Les dirigeants paysans. Paris: Minuit. 1983. 295 p. SIGAUD, L. Congressos Camponeses (1953-1964). In: Reforma Agrária. 11(6), p.3-8. nov.-dez., 1981. SILVA, O. H. A foice e a cruz. Comunistas e católicos na história do sindicalismo dos trabalhadores rurais do Paraná. Curitiba: Rosa de Bassi, 2006. 424 p.

Documentos citados BARROS, W. S. Carta ao deputado Renato Celidonio. Maringá. 08/02/1964. BODDY, T. G. Relatório do curso e conscientização sindical. Curitiba. 23/12/1969. Boletim Informativo, Curitiba: FETAEP, jan 1969 e maio-jun., 1972. COELHO, Carta a Dom Jaime Luis. Maringá (assinatura ilegível) 10/12/1961.

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A gênese do sindicalismo rural no Paraná

Congregações Marianas de Maringá, Federação Diocesana das. Carta circular. Maringá. 29/06/1961. Congregações Marianas do Brasil, Confederação Nacional das. Mar., 1963. Congregações Marianas, Confederação Nacional das. s/d. DUMONT, J. L. Carta a José Gomes da Silva. Londrina. 17/04/1968. FETAEP. Ata da reunião da diretoria da Federação dos Trabalhadores na Lavoura do Estado do Paraná. Curitiba. 05/01/1965. FETAEP. Breve histórico da FETAEP (rascunho). Curitiba. 1982. FETAEP. Discurso pronunciado pelo presidente da FETAEP. Londrina (folheto) 22/10/1967. FETAEP. Estatuto. Londrina. 09/07/1966. FETAEP. Hora sindical. Curitiba (programa de rádio). Dez., 1968. FETAEP. Relatório da diretoria. s/l. 1967, 1970, 1974 e 1978. MIQUELETTI, G. F. Carta aos sindicatos do Paraná. Londrina. 12/01/1968. Paraná Rural. Curitiba: FETAEP. s/d, dez., 1973, abr., 1974, maio–jun., 1977. PARANAVAÍ, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de. Carta a José Dumont. 25/11/1975. RAMBO, padre Osvaldo. Recibo. Maringá. 20/03/1962. RIBEIRÃO CLARO, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de. Certificado. s/d. ROTTA, J. e outros. Carta circular . Rio de Janeiro. 23/08/1966. SÃO JORGE, Câmara Municipal de. Carta a José Dumont. São Jorge do Ivaí. 27/09/1972. SCALCO, Euclides e outros. Carta a José Dumont. Francisco Beltrão. 13/07/1967.

Entrevistas 1. Anibal Bianchini – presidente do sindicato rural de Maringá 2. Antônio Zarantonello – presidente da FETAEP 3. Antenor Beni – diretor da FETAEP 4. Borsato – funcionário da FETAEP 5. José Lázaro Dumont – ex-presidente da FETAEP 6. Mário Plefk – tesoureiro da FETAEP 7. Agostinho Bukowski – ex-diretor da FETAEP 8. José Florentino Mendes – presidente do sindicato de Arapongas 9. “Y” – presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Astorga 10. Luiz Carlos Garioli – diretor do sindicato de Cianorte 11. Orlando Craco – presidente do sindicato de Jandaia do Sul 12. Salvador Caetano Silva – presidente do sindicato de Iporã 13. Paulino de Carlos – presidente do sindicato de Maringá 14. Carlos Vieira – presidente do sindicato de Mandaguaçu 15. Gregório Parandiuc – ex-diretor do sindicato de Maringá 16. Salim Haddad – médico e ex-militante comunista de Maringá 17. Antenor Fávora – ex-presidente do sindicato de Mandaguari 18. Pedro – presidente do sindicato de São Carlos do Ivaí 19. Dirceu Galli – médico e ex-militante comunista de Maringá 20. Antônio Mendonça Conde – ex-presidente da FETAEP

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

21. José Rodrigues dos Santos – ex-presidente do sindicato de Maringá 22. Antônio Alves da Silva – ex-presidente do sindicato de Londrina 23. Osvaldo Rambo – padre e ex-dirigente da FAP 24. Amaury Silva – ex-ministro do Trabalho 25. Moacyr Ferraz – ex-presidente da UGT de Campo Mourão (entrevistado por Salvador Ferraz) 26. Lauro Vilas-Boas – ex-diretor da FETAEP

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5 ORGANIZAÇÕES RURAIS E CAMPONESAS NO ESTADO DO

PARÁ

Gutemberg Armando Diniz Guerra

As organizações camponesas no estado do Pará são resultado de um longo processo de construção, em que inicialmente se confundem e disputam fazendeiros, agricultores e operários agrícolas. A definição de identidades demarcadas pelas diferenças de interesses de classe começa a ocorrer depois da década de 1950, por condições políticas e contradições que vão se definindo ao longo da história que remonta ao início do século XX e, no caso do Pará, continua inacabada. Neste artigo relatam-se as definições ocorridas pela oposição entre organizações filiadas à Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI) e Federação da Agricultura do Estado do Pará (FAEPA). Utilizam-se, como base empírica, publicações dessas entidades, além de livros, artigos e noticiários de jornais. Evidencia-se a dificuldade de afirmação de uma identidade que se expresse em organizações rurais, em que pese a evidência de seu caráter empreendedor e político.

ANTECEDENTES DE ORGANIZAÇÃO DAS CATEGORIAS PROFISSIONAIS RURAIS DO ESTADO DO PARÁ A história das organizações rurais paraenses vem do início do século XX e deve ser considerada uma pista importante para compreender o vigor das disputas políticas entre entidades do patronato e de camponeses autônomos ou assalariados. 117

Organizações rurais e camponesas no estado do Pará

A primeira legislação brasileira que contempla os profissionais da agricultura e da indústria agrícola data de 1903, com o Decreto n.979 (Fuchtner, 1980). O começo da legislação trabalhista pelo campo se deve ao fato de termos, naquele momento histórico, uma sociedade eminentemente agrícola (Moraes Filho, 1978). Como a legislação não estabelecia a distinção entre operários e patrões, os 13 sindicatos fundados sob sua inspiração acabaram sob a hegemonia patronal, mas não tiveram longa duração. Em 1944, o Decreto n.7.038 estabeleceu o direito de organização dos trabalhadores rurais em sindicatos, mas apenas oito deles foram efetivamente reconhecidos (nos estados de Pernambuco, Bahia e Santa Catarina). No Governo João Goulart, através das portarias 209-A e 355-A/20/11/62, estabeleceu-se a possibilidade de serem reconhecidos oficialmente os sindicatos, ocorrendo um surto de fundações de entidades até o golpe militar de março de 1964. A historiografia dá conta de entidades representativas de categorias dominantes, embora nelas estivessem diluídas as categorias dominadas. A definição de categorias distintas e com interesses conflitantes vai se firmar ao longo dos anos 50, quando vão ficando claras as manipulações e incompatibilidades entre elas. No Pará, o surgimento das organizações do mundo rural é ilustrativo desse fenômeno.

IDENTIDADES DIFUSAS ENTRE PATRÕES E TRABALHADORES NAS ORGANIZAÇÕES No Pará, a hegemonia das primeiras organizações identificadas neste trabalho historiográfico era dos mais abastados, tanto antes quanto após a Segunda Guerra Mundial (Guerra, 2001). O patronato comandava o quadro institucional fundando sindicatos nas cidades ribeirinhas e nas povoações ao longo da ferrovia Belém-Bragança. As organizações camponesas, ainda que existentes desde a década de 1930, apareceram marcando posição na historiografia nacional no período imediato da Segunda Guerra Mundial (Medeiros, 1989), quando o Partido Comunista viveu curto período de legalidade (1945-47) e em que organizações profissionais se assumiram com o caráter de representação de classe (Guerra, Marin, 1990). Entidades com o nome de “associações de lavradores” marcaram a mobilização e a organização da categoria no Pará na década de 1950, quando o país recebeu os primeiros sopros da democratização. Registra-se impulso na criação dessas entidades nas regiões onde era maior a concentração de agricultores, articulados em uma estrutura de produção camponesa estável e tradicional. A pressão sobre a terra e o preço desvantajoso dos gêneros agrícolas provocaram uma movimentação de caráter reivindicatório, que 118

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

coincidiu com propostas políticas para o campo, como reforma agrária, financiamento da produção e assistência técnica. O nordeste paraense é o locus onde se encontram registros do surgimento das primeiras Associações de Lavradores Autônomos. Foram os seus presidentes que assinaram a ata de formação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Pará (ULTAP), versão estadual da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), criada em 1954, ilustrando o engajamento dos paraenses na discussão e momento nacional (Guerra, Marin, 1990). Demonstra igualmente a extensão da influência do Partido Comunista na disputa pela democratização da sociedade brasileira, uma vez que essa rede era praticamente expressão dessa organização política no país. Sobre as primeiras associações de lavradores do Pará estabeleceu-se uma disputa: o Estado passou a atuar com vistas ao enquadramento dos sindicatos, a Igreja a organizar discussões sobre a produção e alfabetização e os partidos a imprimir orientação política nos debates em torno da terra e da justiça social no campo. A Região Bragantina experimentou os impactos do movimento dos trabalhadores urbanos. Suas ligações com a capital, pela estrada de ferro Belém–Bragança, permitiram uma circulação das mensagens políticas difundidas pelos ferroviários e estivadores. A mobilização dos camponeses e os rumos dentro do sindicalismo sob controle do Estado corresponderam ao período de fins de 1960, quando se fundaram os sindicatos à beira da estrada Belém–Brasília. A primeira fase de encaminhamento, com relativa autonomia de gestão e práticas das suas associações, teve como ponto importante a distinção das categorias que formaram seus quadros. Na ata de constituição da ULTAP, essa linha de discussão veio à tona: “A União dos Trabalhadores Agrícolas do Pará, ULTAP por abreviatura, já com existência de fato, pelos signatários destes Estatutos, é agora constituída de direitos, adquirindo personalidade jurídica”, rezava o artigo primeiro dos Estatutos publicados no Diário Oficial do Estado do Pará, número 18.187, de 28 de abril de 1956, assinado pelo Presidente Benedito Pereira Serra e datado de 12 de fevereiro do mesmo ano. Inspirada na Carta dos Direitos e das Reivindicações dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil e subordinada à ULTAB, a organização paraense constituía-se de: “1– assalariado agrícola que não esteja filiado a sindicato rural; 2 – o lavrador pobre (pequeno proprietário agrícola); 3 – o lavrador médio (médio proprietário agrícola)”; e excluía os latifundiários: “4 – não será admitido como associado o latifundiário e seus herdeiros”. A incorporação de entidades como sindicatos e associações rurais à ULTAP, por sua vez, estava condicionada ao desejo explícito de “à base da luta, conquistar os direitos e reivindicações dentro dos pontos de vista difundidos pela ULTAB, mediante acordos especiais e por resolução de Assembléia Geral”. É um dos momentos, no caso das categorias rurais, da explicitação da demarcação do caráter conflituoso que assumirão, marca registrada da influência do Partido Comunista. 119

Organizações rurais e camponesas no estado do Pará

A Federação das Associações Rurais do Pará era presidida pelo Deputado Reis Ferreira. Fundada em 8 de setembro de 1951, deu origem à Federação da Agricultura do Estado do Pará (FAEPA), agregando os sindicatos patronais rurais a partir de 1965. Embora tentasse se identificar como liderança de proprietários e assalariados e pleiteasse benefícios em seu nome,1 o deputado foi rechaçado pela liderança camponesa porque não teve o menor escrúpulo de negar ao trabalhador rural da Amazônia todos os direitos e garantias consubstanciados no anteprojeto de lei elaborado pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, de conformidade com o parecer que apresentou, em 20 de maio de 1955, a pedido da Confederação Rural Brasileira, e que foi denunciado pela imprensa popular de Belém, de acordo com o recorte anexo aos memoriais de cada município (Folha do Norte, Belém, 14/02/1956, última página).

A Federação das Associações Rurais do Pará, comandada pelo patronato rural, pretendia preencher um espaço vazio de representação, embora a movimentação dos lavradores e trabalhadores agrícolas demonstrasse um crescente vigor político. Pode-se ler esse momento como o de emancipação de um sindicalismo trabalhista, que passou a se definir por divergência e ruptura entre lideranças camponesas e patronais. O sindicalismo de trabalhadores rurais se expandiu com a proliferação de entidades associativas em todo o estado, com uma concentração acentuada na Região Bragantina. Em sua orientação básica, a ULTAB procurava dar um caráter legal à luta dos camponeses. As comissões de luta pela reforma agrária, surgidas no bojo da campanha nacional deflagrada em 1954, procuravam canalizar a ação sindical reunindo as conquistas parciais e propondo um comportamento estratégico que levasse a um governo nacionalista e democrático (Almeida, 1981). Aí estava a explicação para os limites criados para os assalariados e entidades que pretendessem se aliar à ULTAP. Estes não deveriam estar filiados a sindicatos rurais, e a incorporação desse tipo de entidade deveria se dar pelo desejo explicito de “à base da luta, conquistar os direitos e reivindicações dentro dos pontos de vista difundidos pela ULTAB, mediante acordos especiais e por resolução da Assembléia Geral”, rezava o estatuto. As forças políticas hegemônicas nessas entidades estavam convencidas de que, com esse modelo de condução política no campo, um governo popular e democrático poderia emergir com o apoio e influência majoritária dos assalariados e pequenos produtores agrícolas, deslocando o poder dos proprietários e da burguesia nacional. No momento em que surgiu a ULTAP, a reforma agrária ocupava espaço importante no debate nacional. A I Conferência dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Estado do Pará foi realizada por convocação da Comissão Paraense pela Reforma Agrária, em 13 de maio de 1955. Ocorreu 1

Folha do Norte, Belém, 08/01/1956, última página.

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em clima de ampla mobilização, dentro da legalidade e com apoio oficial. A Prefeitura de Belém forneceu transporte no trem que percorria o trecho de Bragança até a capital e alimentação no Serviço de Assistência e Previdência Social (SAPS). Nessa I Conferência, realizada no centro de Belém, na sede do Sindicato dos Estivadores, estruturou-se a Comissão para a Fundação da ULTAP, composta de delegados de Castanhal, Santa Isabel, Igarapé-Açu, Bujaru, Bragança, Capanema e Soure.2 Ali se podia identificar praticamente a representação de sindicatos localizados no nordeste paraense, com exceção daquele de Soure, localizado na Ilha de Marajó. Alguns desses representantes cumpririam papel importante nos rumos das organizações e na memória do movimento. Benedito Pereira Serra, representante de Castanhal, foi o primeiro presidente da entidade e morreu em decorrência dos maus-tratos recebidos na prisão após o golpe de 64. Outras conferências aconteceram, demonstrando uma atividade política que se articulava com outros estados da região e do país. Representantes da ULTAP estiveram presentes na II Conferência Agrária do Maranhão, em agosto de 1958. Até aquele momento, os paraenses tinham realizado “três conferências de nível estadual. Na primeira Conferência Estadual participaram 72 delegados. Na segunda, 85 e, na terceira, 522 representantes das 62 associações de lavradores existentes na zona bragantina” (Almeida, 1981). Os números são indicativos da atividade no setor. Braço da Campanha Nacional pela Reforma Agrária, a Comissão Paraense publicou notas nos jornais, rádios e revistas, além de visitar os municípios para realizar debates e promover conferências. A Igreja se fez presente por intermédio de religiosos, associados a militantes políticos, em encontros de agricultores como a Segunda Semana Ruralista de Ourém, realizada de 22 a 25 de janeiro de 1956. Os registros dão conta da participação do padre Miguel Giambelli ao lado do professor Bruno de Menezes, ligado ao Departamento de Cooperativismo e de Assistência Social Rural do estado, e de Humberto Fernandes dos Santos, para falar da Liga Agrária Católica e da Associação Rural.3 Além de técnico, Bruno de Menezes se notabilizou por sua obra literária de vanguarda e pela militância no Partido Comunista Brasileiro. A Região Bragantina ou, de maneira mais abrangente, o nordeste do Pará possui uma história particular em relação ao movimento sindical. De ocupação considerada antiga em relação ao sul e sudeste paraense, e por se constituir em via de acesso para outras regiões do Pará, sofreu influências de um campesinato consolidado e dos migrantes que por lá tiveram passagem ao longo de sua história. Organizações de produtores lá existiam desde a década de 1950, assim como foi nessa região que se deu a produção 2 3

Folha do Norte, Belém, 14/02/1956, última página. Folha do Norte, Belém, 21/01/1956, 3a página.

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massiva de entidades oficiais na década de 1970. Os dados sugerem uma preocupação forte do Estado em estabelecer um controle imediato e efetivo sobre as representações trabalhistas na área. O I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte, em 1961, fortaleceu a orientação da ULTAB no sentido de uma sindicalização que transformasse as Associações de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas em Sindicatos de Produtores Autônomos e Assalariados (Almeida, 1981). Os paraenses fizeram-se presentes no I Congresso Nacional, deslocando-se em caminhão cedido pelo secretário de Obras e Terras do Estado do Pará, o que mostra a efetiva participação dos camponeses do norte nos eventos e discussões nacionais sobre a questão agrária. Demonstra também a confluência de interesse entre Estado e sociedade civil. Esse interesse era expressão do controle de setores trabalhistas no aparelho de Estado, influência marcada pelo período varguista. Reconhecendo a necessidade de fortalecer essa ação e divergindo da orientação dos comunistas, a Igreja propôs e instalou o Movimento de Educação de Base (MEB), no início da década de 1960, voltado para a educação radiofônica da população no nordeste paraense. Transmitia mensagens de caráter religioso e político, objetivando despertar o interesse dos trabalhadores do campo para os valores doutrinários e contrapor-se à ação das outras forças políticas. Segundo Raymundo Heraldo Maués, a diferença estaria na dosagem e coloração da formação política que pretendiam Igreja e partidos de esquerda engajados na atividade.4 Entidades políticas expressivas, como o PCB e a Igreja, ao se lançarem no campo e tentarem exercer uma orientação, reconheciam o potencial existente no meio, como elemento destacado nos processos de transformações das sociedades. O Estado, por sua vez, ainda que manifestando preocupações no discurso oficial desde muito antes, somente a partir de 1964 conseguiu estabelecer os parâmetros de controle para moldar o sindicalismo rural à imagem do que lhe convinha.

ESTADO, IGREJA, PARTIDOS E SINDICATOS DE TRABALHADORES RURAIS NO PARÁ As condições para que se efetivasse o controle do Estado sobre os sindicatos de trabalhadores rurais estavam maduras em 1964. Setores reformistas propunham uma aliança em que estava embutida essa proposta. Igreja e PCB fundaram entidades que buscavam o reconhecimento legal e o aval do Estado desde meados da década de 1950. O discurso de Getúlio Vargas prometendo o enquadramento do trabalhador rural e sua legalização foi 4

Entrevista a Gutemberg Guerra em 30/09/1988.

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absorvido por amplas camadas. Forças políticas comandadas por ele propunham reforma agrária sob o comando do Estado, regulamentação das relações de trabalho e modernização da agricultura sem comprometimento da hegemonia do capital. De 1962 a 1964, o Governo João Goulart procurou obter o apoio do campesinato e reconheceu as suas organizações. O golpe militar interrompeu esse processo e retomou com mão-de-ferro a política de sindicalização. Elaborou-se e discutiu-se o Estatuto da Terra. Sindicatos patronais e de trabalhadores foram reconhecidos oficialmente após o enquadramento em rigorosos regimentos exarados pelo Ministério do Trabalho. A principal característica desses regimentos foi a padronização e obrigatoriedade de adoção de todos os artigos propostos. Modificavam-se apenas o nome do município que identificava a área de abrangência do sindicato e os valores da contribuição que deveriam ser votados na assembléia de fundação. Os anteriores a esses ditames eram construídos conforme a perspectiva e o interesse de cada grupo, guardando, porém, a base municipal como área de abrangência. A Federação das Associações Rurais do Pará, entidade patronal, transformou-se, em 1965, na Federação da Agricultura do Estado do Pará (FAEPA), enquanto as associações de colonos, lavradores e trabalhadores rurais passaram a ser Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Fundou-se, com sete sindicatos reconhecidos pelo Ministério do Trabalho (Castanhal, Alenquer, Capanema, Curuçá, Igarapé-Mirim, Santa Isabel do Pará e São Domingos do Capim), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI) em 1968. A Carta de Reconhecimento foi emitida três dias após, demonstrando a força e o controle de Jarbas Passarinho,5 então ministro do Trabalho, sobre sua base estadual. O sindicalismo foi apropriado oficialmente e as organizações passaram a ter ações de apoio à política previdenciária do governo. As diretorias vacantes foram complementadas. Formou-se a cultura do sindicalismo previdenciário, assistencialista, preocupado com ações legais junto à Delegacia Regional do Trabalho, distante das questões discutidas nos 10 ou 15 anos que antecederam o golpe de 1964. A bandeira da reforma agrária foi banida pelo regime militar, vindo a ressurgir com a ênfase do controle dos camponeses na abertura política dos finais da década de 1970 e início da de 1980. Os governos militares apregoavam estar fazendo a maior reforma agrária do mundo, sob o pretexto de fazer ocupar 10 quilômetros de cada margem das novas estradas abertas na Amazônia. 5

Jarbas Gonçalves Passarinho nasceu em Xapuri, no Acre, e tem sua base política ancorada fortemente no estado do Pará, tendo sido governador do estado depois do golpe militar (1964-66) e senador em três mandatos (1967-83 e 1987-95). Foi ministro do Trabalho e Previdência no governo Costa e Silva, da Educação no governo de Emilio Garrastazu Médici, da Previdência no governo de João Figueiredo e da Justiça no governo de Fernando Collor de Melo.

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A transformação das associações anteriores a 1964 e seu enquadramento não se deram imediatamente após o golpe. Desestruturadas as associações e enfraquecida a ULTAP, apenas 13 sindicatos foram criados em todo o estado do Pará até 1970. Entre 1971 e 1975, período do Governo Médici, identificado como o mais repressivo do regime militar, foram criados e reconhecidos 40% do total dessas entidades. Um novo surto dessa natureza só ocorreu em 1978 e 1979, sob o governo do general Figueiredo, tendo por ministro do Trabalho Murilo Macedo, em uma época marcada pela pressão popular por democratização. Nos anos 70, as organizações nasceram, consolidaram-se e cresceram com o apoio aberto dos órgãos públicos. Intervenções foram feitas para suprir as diretorias acéfalas e entidades esvaziadas, onde o quorum, por ocasião das eleições, não era suficiente para dar curso às atividades das organizações. Muitas lideranças sindicais – atemorizadas, intimidadas, presas – deixaram o exercício de seus mandatos. O Ministério do Trabalho, através de sua Delegacia Regional, supria os cargos vagos com interventores indicados do quadro social do sindicato, quando não de um funcionário do próprio ministério, designado para estabelecer o controle sobre a organização. O estímulo à criação de sindicados nos moldes propostos pela legislação era evidente. Um acordo entre o Projeto Rondon e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura foi realizado, em 1972, para criar ou consolidar nada menos que 29 sindicatos, conforme listagem existente na FETAGRI. Segundo o presidente da época, a FETAGRI não teria firmado um documento formal caracterizando o acordo.6 O apoio dispensado pelo Projeto Rondon foi assumido por ele como uma contribuição valiosa ao movimento sindical. Verbas do Fundo de Apoio ao Trabalhador Rural (Funrural) e do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps) eram destinadas a fortalecer a estrutura de assistência aos associados, forjando a prática sindical no malho de funções atribuídas ao Estado. Nesse sentido, os sindicatos assumiram a postura de repartições públicas. Essa prática foi tão difundida e arraigada que permanece presente e resiste ao debate sobre a manutenção ou não desses serviços, principalmente em se tratando do campo. A formação de lideranças foi trabalhada estrategicamente pelo regime militar. Cursos sobre sindicalismo faziam parte da agenda da FETAGRI e do Ministério do Trabalho, que, junto com o American Institute for Free Development, ligado de modo indireto ao governo dos EUA, organizou cursos de formação sindical, atingindo em torno de 32.600 ativistas no país até 1974 (Oliveira, 1981). O conteúdo da maioria desses cursos apresentava um modelo de sindicalismo afinado com a pregação oficial. A Igreja – ou as Igrejas, para não nos restringirmos aos católicos – têm sido lembradas em todo o processo de montagem dessa estrutura. Muitos 6

Alberone Lobato, entrevista a Gutemberg Guerra em 01/09/1988 (gravação).

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sindicatos surgiram por inspiração de reflexões ocorridas com envolvimento de religiosos. Os entrevistados, assim como a literatura consultada, referem-se à ação dos Círculos Católicos (Fuchtner, 1980 e Almeida, 1981) e do Movimento de Educação de Base no processo da organização dos trabalhadores rurais. As interferências revelam posicionamentos políticos ora afinados com os interesses do Estado, ora com os da conquista de melhoria de vida pelos trabalhadores. Lentamente, as discussões fundamentais dos camponeses voltaram a se inserir nos sindicatos. A posse da terra e a contradição entre patrões e assalariados retornaram à pauta das reuniões e recompuseram o sindicato como instrumento de luta. Os partidos políticos de esquerda e a Igreja tiveram papel destacado na reconquista do espaço de atuação política dos sindicatos, contra a visão do sindicato-apoio do Estado. Pouco a pouco, foram se formando grupos de oposição sindical e se promovendo encontros sobre a posse e o uso da terra, até assumir a direção da FETAGRI, em 1987, com uma perspectiva do novo sindicalismo apregoado por forças políticas diversas das que ocuparam por vários anos o aparelho organizativo. Em 1978, o I Encontro reuniu apenas 38 lavradores de dois municípios, tendo sido tiradas algumas linhas de ação para a unificação das lutas: tomada dos sindicatos e luta para fixar o agricultor na terra. Em 1979, o II Encontro reuniu 88 trabalhadores de nove municípios. Os pontos de unidade foram mais consistentes: comemoração do 25 de Julho, luta pela tomada dos sindicatos, articulação com trabalhadores de outras regiões e estados, tarefa de discutir com os trabalhadores do campo as lutas da cidade. Foi ainda tirado um Manifesto à População, divulgado no Brasil inteiro (Cunha, 1980). Esse é um relato dos Encontros de Trabalhadores Rurais da Região Tocantina, realizado em Cametá, no Pará. O III Encontro, de 19 a 21 de abril de 1980, reunindo 120 trabalhadores de 18 municípios, é fruto desse trabalho anterior e mostra o grau de consciência do movimento. Houve outros esforços, em outras áreas, para dar início, nos sindicatos, a uma direção política diferenciada daquela imposta após 1964. Em Santarém, formou-se, a partir de 1976, um grupo de trabalhadores identificados como Corrente Sindical Lavradores Unidos. Concorreu às eleições de 1977, perdendo, e às de 1980, saindo vitorioso. Mantinha um jornal, lançado em 1o de maio de 1979, o Lamparina, que divulgava a linha de ação da Corrente Sindical (Vital, 1980). Apoiados pela FASE e pelo MEB, encaminharam discussões teóricas sobre o movimento sindical e sobre mudanças na sociedade brasileira. Inicialmente envolvendo questões dos assalariados e posteriormente a luta dos posseiros e pequenos proprietários, o STR de Santarém transformou-se em instrumento do movimento sindical dos trabalhadores rurais do Pará (Marin, 1984). Em Conceição do Araguaia, em 1980, foi criada a Oposição Sindical com o intuito de “retomar seu sindicato, desde 1974 entregue às mãos de 125

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um interventor nomeado pelo Exército”.7 Mesmo enfrentando situações de conflitos graves, com vítimas de morte, a concepção que o movimento sindical apresentava era legalista, como se pode concluir de trecho de documento elaborado pela Contag em 1974: A CONTAG, através das Federações e dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, na sua função de estudo e defesa da classe e como colaboradora do Poder Público, tem procurado alternativas viáveis de solução que fixem o trabalhador à terra e lhe dê as necessárias garantias de produção e elevação de sua condição humana (Contag apud Ianni, 1979, p.150).

Enquanto os trabalhadores rurais cresciam em organização, a violência era exercida inúmeras vezes, tentando intimidá-los. O Grupo Executivo de Terras do Araguaia e Tocantins (GETAT) e o Grupo Executivo do Baixo Amazonas (GEBAM) foram criados, em 1980, para atuar na região, constituindo-se numa intervenção política do Estado, desfavorável aos trabalhadores rurais e às organizações que lhes davam apoio (Monteiro, 1980). A contestação às ações de expulsão e grilagem obteve apoio de outros segmentos da sociedade. Em 1975, a Comissão Pastoral da Terra foi criada e se constituiu em aliado fundamental dos camponeses nas denúncias contra ações de empresas e fazendeiros. Nela, militavam advogados, religiosos e universitários em confronto aberto contra a ditadura militar e os latifundiários. Em 1978, a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, fundada a partir do apoio aos posseiros envolvidos na morte do fazendeiro americano John Davis,8 passou a editar o jornal Resistência. Nele, eram efetuadas denúncias de violência no campo e debates sobre questões políticas vividas no país, constituindo-se em fonte de registro das organizações políticas de esquerda e da ação da Comissão Pastoral da Terra no Estado do Pará. Em abril de 1980, em Belém, dos dias 4 a 6, realizou-se o I Encontro Estadual de Trabalhadores em Oposição à Estrutura Sindical. Ocorreria, pouco depois, um encontro nacional de mesmo teor (Cunha, 1980). Nele, ficou evidente a diferença de posições entre a Unidade Sindical e a Oposição Sindical, que estava baseada na proposta de tática adotada para a tomada dos sindicatos. Os partidários da Unidade Sindical propunham que seus militantes estivessem no movimento, trabalhassem sistematicamente e compusessem as diretorias juntamente com os pelegos, fazendo-os avançar em propostas tiradas em assembléias. A Oposição Sindical pregava a formação de grupos que se opusessem aos colaboracionistas, disputassem as eleições e tomassem os sindicatos, sem aliança de tipo algum. 7

8

A Oposição Sindical conclama o apoio de todos os democratas, in Resistência, ano III, maio de 1980, p. 15. Como nasceu a sociedade, in: Resistência. Ano I, março 1978, p.3.

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A truculência dos setores dominantes em contraposição aos trabalhadores rurais, em particular aos posseiros, tinha em vista desestimular as organizações. Lideranças sindicais eram assassinadas e ameaçadas de morte. Padres eram perseguidos9 (O objetivo, 1980). A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, reunindo 250 bispos, entre os dias 5 e 14 de fevereiro de 1980, em Itaici, São Paulo, lançou o documento “A Igreja e a posse da terra”, que se constituiu em baliza da luta dos trabalhadores rurais e da atuação dos padres.10 A tomada dos sindicatos por militantes de esquerda e o fortalecimento das bases foram condições para chegar à Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará, a FETAGRI. Essa inflexão ocorreu na eleição de 17 de fevereiro de 1987, com uma diferença de apenas três votos. Quase 10 anos depois de criada, a oposição sindical chegou à FETAGRI para implantar uma política coerente com o que vinham propondo os sindicatos em suas bases. Muitos problemas herdados da prática e do modelo de sindicalismo que vinha sendo executado foram enfrentados pelas novas diretorias. O assistencialismo foi combatido, embora a carência em relação aos serviços de saúde e educação fosse tão acentuada que o esforço para vencer a visão torcida se redobrou. O estado do Pará contava, em 2006, com sindicatos de trabalhadores rurais em quase todos os seus 143 municípios (exceção para Belém, Marituba e Quatipuru). Os novos municípios criados se mobilizaram para o desmembramento e instalação de suas estruturas. Alguns fundaram os seus sindicatos e aguardaram implantação das prefeituras para entrar no Ministério do Trabalho com a petição de reconhecimento. A Nova República, surgida de movimentação popular intensa, sob bandeiras clamando por eleições diretas, Constituinte, anistia política e reforma agrária, envolveu os sindicatos em suas teias burocráticas, em que pese a postura diferente daquela dos governos militares. A Constituinte deu, em 1988, ao país uma Carta pouco promissora em relação ao campo. A prática dos ministros e órgãos herdados dos governos anteriores tem sido tão ou mais emperrada e imobilista no que se refere ao encaminhamento de uma verdadeira reforma agrária. Os sindicatos de trabalhadores rurais, para garantir o pouco que a pressão dos camponeses fez avançar, acamparam e ocuparam instituições públicas, denunciaram manobras, assumiram tarefas de caráter técnico e de apoio à demarcação dos lotes, organização de parte burocrática e de legalização. O Estado desapropriou áreas mediante indenizações compensadoras, sob acusações de vultosas negociatas, a ponto de se levantarem propostas para convocar uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que não se realizou. Um dado é incontestável: a formatação 9 10

O objetivo da repressão era prender o padre Aristides, in: Resistência, ano III, julho de 1980, p.2. A injustiça institucionalizada, in: Resistência, ano III, 7 de março de 1980, p.16.

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das disputas no campo se deu em dois pólos: o de empresas agrícolas e latifundiários em contraposição a trabalhadores rurais identificados como posseiros, pequenos proprietários de terra e assalariados.

E OS MÉDIOS PROPRIETÁRIOS, ONDE E POR QUEM SE FAZEM REPRESENTAR? Existe uma faixa de produtores cuja disputa por representação só se definiu a partir dos anos 90. Os pequenos proprietários, historicamente, se organizaram em associações, uniões, ligas ou sindicatos de trabalhadores rurais, misturando assalariados, posseiros, arrendatários e outras categorias comuns ao meio rural. As diferenças de interesse entre essas categorias sempre criaram dificuldades nos momentos mais agudos e que implicassem em decisões políticas. A característica de contar ou não com empregados é geralmente associada ao tamanho da propriedade e volume de capital gerenciado, assim como a fatores culturais que findam por constituir categorias distintas. O tamanho da propriedade, porém, nem sempre define o volume de capital nela empregado, nem o comportamento do proprietário, o que deixa flexível o limite entre o patrão e o não-patrão. De fato, o maior problema é o do peso da representação política, que pressupõe um corpo de associados ou de representados que emprestam à entidade uma legitimidade em nome da qual ela age e se comporta. Embora minoritários, politicamente desorganizados e geograficamente dispersos, os empresários rurais e fazendeiros faziam parte de uma categoria de peso específico pouco aparente e reduzida numericamente. A demonstração de sua força se expressou em momentos críticos, como foi o caso da União Democrática Ruralista, entre 1985 e 1991, como demonstrou Fernandes (1999). Pela necessidade de reforçar sua representatividade, uma larga faixa de agricultores e pecuaristas, que se situam entre a pequena produção familiar e a empresa agropecuária capitalista, foi disputada pelos sindicatos de trabalhadores rurais e sindicatos patronais, por meio de estratégias as mais variadas. A criação massiva de Sindicatos de Produtores Rurais no Pará, substituindo os Sindicatos Rurais, nominação vaga e usual das entidades patronais, permite levantar a hipótese de uma nova estratégia de recrutamento e de fortalecimento do quadro social: disputar os pequenos e médios proprietários rurais em crise de identidade de classe, associando-os à categoria de “produtores rurais”, sedimentando uma cultura de fazendeiros-empresários modernos, ativos, organizados e legitimados por um quadro social definido e mobilizável. Para demonstrar isso, servimos-nos de dados colhidos no Pará, tanto entre as entidades patronais como entre os pequenos proprietários e associados dos sindicatos dos trabalhadores rurais. 128

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A partir de 1990, quase todas as organizações patronais criadas no Pará adotaram o nome de Sindicatos de Produtores Rurais. De listagem obtida junto à FAEPA, verifica-se como exceção apenas o sindicato de produtores rurais de Paragominas, fundado em 20 de março de 1976. O novo nome se explica pela fusão do antigo Sindicato Rural com a Associação Rural, ocorrida em 16 de março de 1997.11 O sindicato de Óbidos, ao contrário, tendo sido fundado em 23 de junho de 1991, porta o nome de Sindicato Rural, embora o de Medicilândia – o primeiro que aparece com o novo modelo de nominação – tenha sido fundado no ano anterior. Segundo a FAEPA, deve-se atribuir a esse fato uma característica dos momentos de transição, em que pesou a denominação mais usada na época.12 Entre os associados da FAEPA encontramos ainda o Sindicato Paraense de Pecuária de Corte (SINDICORTE), fundado em 14 de janeiro de 1994, contando com 54 sócios. Como indica a sua denominação, propõe-se a uma jurisdição em todo o estado, delimitando uma especialização dos seus representados. Seus associados são fazendeiros, criadores de gado de corte. No mesmo ramo, o Sindicato da Indústria da Carne e Derivados do Estado do Pará agrega frigoríficos, indicando que uma linha de organização por atividade se estrutura no setor. A participação dos pecuaristas nas organizações patronais do Pará é notável desde a década de 1940. O estudo de Fernandes (1999) sobre a União Democrática Ruralista (UDR) revela os níveis de sua influência durante todo o processo de ocupação da Amazônia e de constituição das classes patronais do Pará. Essa característica fica diluída nos termos que intitulam os sindicatos, mascarando qualquer tipo de especialização. Existe uma relação entre a mudança dos nomes das entidades e as estratégias da categoria ou de quem a comanda. O advento dos governos militares marcou o ordenamento jurídico e o controle das organizações representativas, estivessem elas no campo dos fazendeiros-patrões ou dos trabalhadores rurais não-patrões, a partir de então denominadas de sindicatos em vez de associações. A mudança de denominação de Associações Rurais para Sindicatos indicava a intenção governamental de estabelecer diretrizes profissionalizantes segundo um modelo de organização do trabalho. Essa mudança ocorreu no regime militar. Já a mudança de Sindicatos Rurais para Sindicatos de Produtores Rurais ocorreu em momento de distensão política, após a Constituição de 1988, com os civis no poder. A mudança de nome é identificada por alguns autores como o prolongamento das táticas da UDR, que incluiu na sua proposta o termo reforma agrária como um capítulo da política agrícola e mudou a denominação de “proprietários de terras” para 11 12

Ofício FAEPA n.144/98, de 25 de junho de 1998. Ofício FAEPA n.144/98, de 25 de junho de 1998.

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a de “produtor rural” (Silva, 1988). Essa estratégia pode ser objetivada não apenas pela observação das mudanças de nomes das organizações, mas pela intensificação de sua proliferação e cobertura geográfica no estado. Indica a mudança na natureza da representação patronal, composta anteriormente de poucos membros filiados para diretorias constituídas regionalmente, representadas por personalidades notáveis. O novo paradigma de entidades constituídas por uma base participativa, por um quadro social amplo e por uma categoria mais concreta, define os novos parâmetros do investimento das classes patronais. Contrariando a tese de que as categorias dominadas tendem a assumir padrões das classes dominantes, nesse caso são os patrões que assumem formas de militância política e de representações forjadas na democracia e pelo novo sindicalismo.13 A eficiência política da sociedade civil no processo de democratização do país e, no caso dos STRs, a legitimidade que conseguiram expressar através de mobilizações freqüentes impõem aos seus concorrentes um paradigma de legitimação. Ter ou não ter base social é o ponto determinante dessa legitimidade, ou, pelo menos, é um ponto importante no jogo político. A lógica e o ritmo de criação dos sindicatos patronais não obedeceram, no início, ao mesmo diapasão dos sindicatos de trabalhadores rurais. O Pará passou, de 1970 a 2000, por um processo de ordenamento territorial intenso, que interferiu diretamente no comportamento das organizações representativas. Contando com 143 municípios, incluindo-se Belém, a capital, onde tradicionalmente os trabalhadores rurais não estão representados, os processos de criação, emancipação e desmembramentos continuam em andamento. O público visado na nova estratégia dos Sindicatos Patronais são os pequenos e médios produtores, proprietários de 150 a 300 hectares, geralmente em crise de identidade com os sindicatos de trabalhadores rurais, onde as questões trabalhistas tendem a proteger os posseiros, os semterra, os assalariados e os pequenos produtores, estes também suscetíveis ao assalariamento temporário. Com o argumento de que proprietários, pequenos, médios ou grandes, pertencem à mesma categoria profissional, o investimento das organizações patronais tem obtido sucesso. De 17 sindicatos filiados à Federação da Agricultura em 1981, eles passaram a 27 em 1988, a 107 em 1997 e a 129 em 2006, notando-se uma intensificação de fundações de sindicatos de pequenos e médios proprietários que se sentiam excluídos das organizações sindicais sob forte influência do Partido dos Trabalhadores. A conseqüência desse fortalecimento da representação dos sindicatos patronais no Pará tendeu a fazer voltar no tempo uma organiza13

O novo sindicalismo ou sindicalismo autêntico se caracteriza por seu caráter reivindicativo e por propostas discutidas e alimentadas por um quadro social amplo. “A particularidade que marcou a corrente dos autênticos foi a sua capacidade de absorver as pressões das bases e conduzi-las pelo interior do aparelho sindical” (SADER, 1988, p.182).

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ção que tinha conseguido expandir suas bandeiras de lutas no conjunto da sociedade, estreitando o campo das reivindicações ao campo econômico. A FAEPA adotou, a partir de 1990, a mesma política da FETAGRI de criar uma unidade sindical por município, segundo orientação da legislação em vigor, conforme pudemos deduzir pelos dados levantados. A novidade da criação dessas entidades não se encontra somente na sua intensidade e na nova conformação do quadro social – basicamente de produtores médios. Fato notável é que esse processo de mobilização tem ocorrido em um quadro diferente daquele em que se deu a movimentação da UDR. Não existem declarações na imprensa sobre esse processo que vem ocorrendo de maneira sistemática, silenciosa e longa. Quadro 1. Evolução dos números de municípios, Sindicatos patronais e Sindicatos de Trabalhadores Rurais no Estado do Pará, 1950-2006. ANO

No de Municípios

SR e SPR

1960

60

8



1970

83

10

13

1980

83

17

72

1990

105

32

100

1998

143

107

129

2006

143

125

140

STR

Fontes: IBGE. Censos Gerais de 1950 a 1990 e contagem 1998, Arquivos da FAEPA, FETAGRI, CUT e DRT Pará. Dados organizados por Gutemberg Guerra.

Presente em 112 municípios por meio de sindicatos legalmente constituídos e com oito comissões provisórias, a FAEPA cobre 120 municípios com sedes de entidades patronais. Por enquanto, algumas entidades servem a mais de um município, o que é perfeitamente compreensível, dadas as dimensões do estado e a rarefação dos produtores dessa categoria no espaço geográfico. Com uma base constituída de 10.693 associados em 1997, computados pelos sindicatos já criados e com um contingente considerável sendo mobilizado pelas entidades em via de efetivação, a FAEPA pretendia a curto e médio prazo dobrar este número.14 Verifica-se uma tendência a buscar legitimidade na efetivação do quadro social, diferentemente do que ocorreu no período de manifestações da UDR, quando a tática era declarar números superestimados dos associados para impressionar e intimidar os seus opositores (Fernandes, 1993, p.38). Os surtos de criações de entidades patronais, superando a dinâmica das entidades de trabalhadores, pelo que 14

Ofício FAEPA n.109/98, de 27 de março de 1998. Naquele momento existiam 12 Comissões Provisórias pró-fundação dos Sindicatos de Produtores Rurais, 95 Sindicatos fundados, sendo trinta com o nome de Sindicatos Rurais, 64 com o nome de Sindicato de Produtores Rurais e um Sindicato Paraense de Pecuária de Corte.

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Organizações rurais e camponesas no estado do Pará

se conseguiu levantar, dão indicações históricas significativas. Nota-se um pico entre 1986 e 1989, quando as disputas pela Constituinte projetaram no cenário político nacional a questão agrária. Outro surto ainda mais vigoroso é identificado entre 1992 e 1997, quando a tônica é a disputa pelo crédito rural oferecido pelo Fundo Constitucional do Norte (FNO). A FAEPA reúne outras organizações especializadas de nível estadual como o Sindicato Paraense de Pecuária de Corte, o Sindicato dos Aquicultores do Estado do Pará (SINAQUIC), o Sindicato de Criadores de Caprinos e Ovinos do Pará (SINDCCOPA), o Sindicato dos Produtores de Palmáceas Econômicas do Estado do Pará (SINDPALMA) e o Sindicato dos Criadores de Peixes Ornamentais e de Consumo, de animais terráreos, de animais silvestres para ornamento, aves, répteis, batráquios e anfíbios para ornamento e consumo, de plantas ornamentais, medicinais, extratos e ervas do Estado do Pará (SINDFAUNA). Quanto aos STRs, em 2006, eles são em número de 140, sendo a maioria historicamente filiados à FETAGRI, filiação que não define uma posição ideológica, posto que é tradição que todos a ela estejam associados. Desses sindicatos, 119 estão filiados à Central Única dos Trabalhadores (CUT), demonstrando uma opção dos STRs por uma filiação à esquerda, assim como uma influência efetiva no corpo desta central que conta, no seu total, 186 entidades filiadas no estado do Pará. Ou seja, os STRs representam 64% do total das entidades que compõem a CUT no Pará. A importância deste dado é que, por exclusão, pode-se ter uma idéia dos STRs que estariam sujeitos ou vulneráveis às investidas das organizações patronais ou de partidos de direita. A vinculação à CUT é um indicador de proximidade do Partido dos Trabalhadores. A não-adesão à CUT indica uma resistência ou, uma oposição à prática sindical do então chamado novo sindicalismo, sindicalismo autêntico, ou, mais definidamente do ponto de vista ideológico, do sindicalismo contestador do Estado. O termo rural, embutido tanto nas denominações das entidades patronais quanto nas de trabalhadores, abriga categorias difusas, misturando proprietários e posseiros, empresas e unidades familiares, arrendatários e parceiros, oleiros, carpinteiros, professores rurais e assalariados desempenhando diversos níveis de atividades que possuam algum nível de fricção com a atividade agrícola. A negação do caráter de classe começa desde a criação das primeiras organizações profissionais no Brasil, quando se tentava evitar a explicitação da diferença de interesses entre as categorias profissionais. Para as entidades patronais, a inclusão do termo “produtores” requalifica a relação dos proprietários com o campo e agrega um conteúdo simbólico à disputa pela representação dos médios proprietários, como demonstrado anteriormente. Para os camponeses e agricultores familiares, a categoria trabalhador rural com a amplitude que lhe foi dada dificulta a construção de um grau de coesão e exibe uma complexidade acentuada na 132

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Gráfico 1. Número de Municípios, de Sindicatos Patronais e de Trabalhadores Rurais fundados entre 1951 e 2005

Fontes: IBGE. Censos gerais de 1950 a 1990 e contagem 1998, Arquivos da FAEPA, FETAGRI, CUT e DRT Pará. Dados organizados por Gutemberg Guerra.

gestão dos interesses dos seus representados. A denominação identitária é um elemento importante no processo de consolidação das organizações e as lideranças de ambos os lados estão atentas a esse aspecto.

A IDENTIDADE REVELADA PELA DISPUTA POR TERRA E CRÉDITO RURAL Sindicatos de Trabalhadores Rurais opunham-se aos sindicatos patronais, imobilizados durante a maior parte do período mais recente (1951-86) pelos baixos contingentes de associados e por um individualismo histórico presente no setor. Mobilizavam-se nos momentos de pico das ameaças de redistribuição fundiária, quando os interesses se chocavam explicitamente no ataque e na defesa da propriedade e na manutenção da estrutura fundiária concentrada e desigual. O quadro mudou na década compreendida entre 1994 e 2004. Para atender a demandas de caráter mais imediato, sindicatos patronais surgem a partir da concessão do crédito oriundo do FNO. Em áreas em que o assalariamento agrícola é mais acentuado como no Nordeste, Sul e Sudeste do país, ou mesmo no nordeste paraense, onde a ocupação é mais antiga e as empresas agrícolas estão presentes, existe uma tendência à formação de sindicatos de assalariados por cultura (das empresas plantadoras de café, de citrus, de dendê, de cacau etc.). Nesses casos, o sindicalismo passa por uma 133

Organizações rurais e camponesas no estado do Pará

fase de organização intensa para, em seguida, chegar a articulações com outras entidades de assalariados, em centrais sindicais, no estado e no país. A pressão feita sobre os bancos oficiais por crédito originou a possibilidade concreta de financiamentos coletivos, exigindo para isso a organização de associações. Multiplicaram-se os grupos de produtores formalizados conforme os requisitos bancários. As associações de médios e pequenos produtores, formadas por comunidades ou grupos de interesse, tiveram ampla e ativa participação dos sindicalistas na sua orientação. Em Altamira, em 1997, muitas das associações de produtores rurais estavam credenciadas no Banco da Amazônia, BASA, por um aval do sindicato ou do Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica (MPST). As que se encontravam fora desse guarda-chuva sentiram dificuldades de negociar o crédito de recursos do FNO, segundo informações dos dirigentes da União Ruralista das Associações de Produtores Rurais da Região de Altamira (URAPRA). Isso teria sido a justificativa para que essa entidade fosse criada em oposição ao MPST. Os dados colhidos junto ao BASA, MPST e à URAPRA, em 1997, analisados em conjunto, põem essa afirmação em xeque. Listadas 29 entidades associadas ao MPST, contando 6.971 associados, vinte (30% do total) eram associações de produtores ou cooperativas, somando 3.043 membros. As outras nove agregavam artistas, comerciantes, professores. A URAPRA tinha 26 associações filiadas (correspondendo a 40% do total do universo), contando 3.187 membros, todas elas cooperativas ou associações de produtores. Essa clara polarização entre sindicatos e associações ligadas ao MPST e outros à URAPRA, em Altamira, permitiu a visualização de estratégias dos sindicatos de trabalhadores rurais e patronais nas disputas por um público intermediário, indeciso ou não alinhado em uma ou outra agremiação. Em Marabá não se encontrava a mesma condição para tal visualização, embora houvesse indícios de que o mesmo estivesse ocorrendo. Realizando entrevistas sobre a percepção dos sindicalistas em relação ao campo dessa disputa, as respostas eram de desaprovação e desagrado à criação de sindicatos de produtores rurais, envolvendo esse público intermediário dos sindicatos de trabalhadores e patronais. No STR de Marabá, a direção nos apresentou uma listagem com 52 associações de produtores existentes no município. Indagando sobre a filiação dessas entidades, verificou-se que existiam alianças circunstanciais, diferentemente do que ocorria em Altamira. Ou seja, associações identificadas pelo STR como afinadas politicamente com as classes patronais solicitaram e obtiveram o aval do Sindicato de Trabalhadores Rurais para os empréstimos bancários. No BASA de Marabá obtivemos uma lista das entidades beneficiárias do crédito rural, porém a filiação dessas não pode ser revelada pelo banco. Como não existem entidades federando organizações de produtores como em Altamira, esse quadro é mais difuso em Marabá, exigindo outro tipo de tratamento metodológico, 134

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

que permita delimitar os campos de influência de uma e outra categoria. No BASA de Altamira verificamos, em 1997, a existência de vinte outras associações credenciadas, independentemente do MPST ou da URAPRA, somando um total de 66 entidades constituídas exclusivamente de produtores rurais na região, ou seja, 30% a mais do total que a soma das declaradas filiadas àquelas federações. Das que se habilitaram ao crédito, entretanto, 41 entidades o obtiveram junto ao Banco da Amazônia, sendo 13 ligadas ao MPST, 10 à URAPRA e 18 sem nenhuma ligação declarada a uma ou outra federação, o que indica aproximadamente um espaço de pelo menos um terço das entidades a ser disputadas politicamente por essas federações. O que se pode verificar é que o domínio político das organizações ligadas ao MPST e a seus opositores acastelados na URAPRA ainda não estava definido a favor de nenhum dos dois campos, uma vez que, pelo menos um terço das organizações de pequenos e médios produtores não declara filiação a nenhuma das duas correntes. Esses campos de influência se apresentam muito bem delimitados. Não se encontrou nenhum caso de dupla filiação ao MPST e à URAPRA simultaneamente, demonstrando a exigência de exclusividade do alinhamento. Outro mito que fica desfeito com esses dados é o de que apenas as entidades ligadas ao MPST teriam acesso ao crédito fornecido pelo FNO, conforme pressões e compromissos feitos pelo BASA quando das manifestações nos Gritos do Campo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A identidade dos camponesas no Estado do Pará vem se delineando desde o início da década de 1950 por oposição às categorias patronais materializadas em suas entidades. Se pequenos e grandes definiram suas diferenças na década de 1950, estabeleceu-se uma configuração diferenciada da disputa entre entidades patronais e de trabalhadores pelo público intermediário entre elas. Trata-se da representação dos médios proprietários rurais até então passíveis de ser associados em uma ou outra categoria ou entidade. Nessa disputa, ganham terreno os sindicatos de produtores rurais, denominação atualizada dos sindicatos patronais. Essa apelação coloca em relevo o caráter econômico da categoria e de suas reivindicações, escondendo, de outro lado, o caráter especulativo e estigmatizado de grandes proprietários de terras e latifundiários. O antagonismo com os pequenos proprietários e outras categorias profissionais dominadas se estabelece por uma qualificação positiva, delimitando uma fronteira entre produtores e não-produtores. O resultado dessa estratégia é a constituição de uma base social sólida, legitimando quantitativamente os sindicatos patronais, estabelecendo uma imagem positiva da categoria e enfraquecendo a representação campone135

Organizações rurais e camponesas no estado do Pará

sa pela adesão de uma faixa de camponeses, anteriormente indecisa nos campos político e sindical. Continua polarizada e bem definida a posição de fazendeiros e de posseiros, principalmente no que se refere ao discurso das lideranças mais expressivas das entidades patronais e trabalhistas. Algumas indefinições persistem, uma vez que são pleitos de diferenciação de ambas as representações. Ser proprietário de terras não é excludente para que alguém seja sindicalizado em sindicatos de trabalhadores rurais. O reconhecimento desse estatuto, no estado do Pará, passa pela posse da terra em condições históricas de disputas com o latifúndio. Posseiros e proprietários de estabelecimentos produtivos pela mão-de-obra familiar, com tecnologia rudimentar e simples, são pleiteados por organizações patronais e de trabalhadores rurais. É esse público que continua sendo disputado por ambas as categorias e que se constitui, ele mesmo, em um campesinato em processo de construção. Minoritários, mas efetivos e eficazes na disputa por espaço político, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), surgiu no Pará em 1991 e se faz representar com um percentual de menos de 10% dos assentamentos e acampamentos existentes no estado. Possui estratégia diferenciada de condução dos seus comandados, mas pode ser considerado no bojo das forças que compõem o histórico das disputas por terra e tecnologia, características fundamentais do sindicalismo paraense. A Constituição de 1988 foi um marco no ressurgimento e recrudescimento da disputa pela terra, refletindo-se nas organizações profissionais, conforme mostram os gráficos. O seu anúncio detona a busca por formalizações de sindicatos, reforçando os mecanismos de mediação e da necessidade de delimitação de interesses diferenciados e contraditórios entre os próprios camponeses. Esse é um indicador de que as organizações sindicais no campo ainda têm muito a aprimorar nos seus mecanismos de representação.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

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6 OS COM-TERRA E OS SEM-TERRA DE SÃO PAULO: RETRATOS DE UMA RELAÇÃO EM TRANSIÇÃO

(1946-1996)* Clifford Andrew Welch

INTRODUÇÃO É a segunda vez que o Sr. José Rainha Júnior e o Sr. Roosevelt Roque dos Santos compareceram para debater no Canal Rural e estamos muito gratos por sua presença e por seu comportamento tão civilizado aqui. Fábio Pannuncio, Canal Rural (3 de dezembro de 1996)

Num dado momento do debate televisivo, o militante sem-terra José Rainha Júnior tirou seu olhar da vista da câmera e olhou diretamente para o ativista “com-terra” Roosevelt Roque dos Santos. Naquele instante, eles estavam falando sobre armas e desobediência civil no contexto dos múltiplos conflitos que ocorriam na região do estado de São Paulo conhecida como Pontal do Paranapanema. Os dois homens passaram a discutir pela primeira e única vez durante duas horas de debate. Roosevelt alegava que os proprietários usavam armas para se proteger, enquanto Rainha rebatia dizendo que a violência não se justifica nunca. Roosevelt, um pecuarista, argumentou que o uso de armas em autodefesa é uma maneira de empregar a força da mesma forma que a demonstração de força promovida pela organização de José Rainha, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), quando mobiliza pessoas para ocupações. “É violência para nos defender contra a violência do MST”, diz Roosevelt. Ele chamava ambas de “atitudes medievais”. Rainha, um trabalhador rural que se tornou militante, parecia não acreditar no que estava ouvindo. Fitava Roosevelt, o então presidente da * Traduzido do inglês por Venceslau Alves de Souza e Clifford Andrew Welch. Revisada por Leonilde Servolo de Medeiros.

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Os com-terra e os sem-terra de São Paulo

União Democrática Ruralista (UDR), criada por proprietários rurais que se posicionaram firmemente contra a reforma agrária, mas segurava sua língua. Depois de um momento prolongado, Rainha olhou de volta para a câmera e, falando calmamente, disse: “Não concordo com nenhuma violência que poderia acabar com uma vida; a vida é a mais sagrada coisa que temos”. E continuou, “também não estou de acordo com violência defensiva”. Era dezembro de 1996, o MST já era um nome conhecido, e pesquisas indicavam haver uma simpatia popular pela reforma agrária e uma antipatia por pessoas como Roosevelt e organizações como a UDR. Algo havia mudado na sociedade brasileira (Notícias – Canal Rural, 1996; Coletti, 2002). A mudança que procuro examinar neste capitulo é a que se dá na relação entre os sem-terra e os com-terra no Brasil, entre um Rainha e um Roosevelt, e como essa relação interage com as políticas de desenvolvimento rural. Assim, o papel do Estado em relação a esses grupos é também objeto de estudo aqui, um conjunto de dimensões da realidade também estudado pelo historiador inglês Edward P. Thompson (1998). Essas relações têm atraído a atenção de estudiosos em anos recentes, suponho, em razão da mobilização dos camponeses. Eles ou os seus representantes foram capazes de convencer a maioria da população de que a reforma agrária poderia reverter o processo de pauperização sofrido por grande parte do povo brasileiro no contexto da expansão capitalista. Uma relação que outrora era considerada algo natural, caracterizada por uma nítida cordialidade familiar brasileira – reforçada por um Estado autoritário –, começava a ser definida como conflito e ter uma presença crítica no palco mundial, onde o sem-terra se tornava um dos principais inimigos do processo de globalização (Desmarais, 2007). O fato de se apresentarem, Rainha e Roosevelt, como iguais no debate nacional televisivo indicava uma significativa mudança nas relações tradicionalmente caracterizadas pela deferência e dominação. Os dois homens, apaixonados representantes de suas classes, apresentaram seus pontos de vista numa discussão quase desapaixonada. Para os telespectadores, eles eram a imagem dos homens modernos da era televisiva, capazes de controlar o temperamento à medida que buscavam persuadir a audiência a apoiar suas posições. Eles seguiram o protocolo, tomando o devido cuidado para não desacatar os telespectadores. Eram o próprio modelo de civismo, conforme comentou o moderador posteriormente. O contraste entre comportamento cordial e comportamento civilizado na representação do caráter nacional brasileiro oferece uma chave importante para a compreensão da mudança das relações sociais no país. O renomado historiador Sérgio Buarque de Holanda desenvolveu a idéia do “homem cordial” em seu breve, mas denso, livro Raízes do Brasil, de 1937, relacionando o caráter nacional brasileiro aos antecedentes portugueses. Em resposta aos críticos, numa edição revisada de 1947, Holanda define o “homem cordial” com maior precisão: 140

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

... daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade,... representam ... um traço definido do caráter brasileiro, à medida ... que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante (Holanda, 1995, p.146-7).

Holanda descreve cordialidade como um comportamento nascido das tradições rurais, a partir do modelo familiar patriarcal que predominou em Portugal e no Brasil ainda na primeira metade do século XX. Cordialidade vem “do coração[…] da esfera do íntimo, do familiar, do privado”, escreve ele. Por essa razão, alguém pode ser cordial diante de um inimigo, no ódio e no amor. Para Holanda, esse traço cultural continua a influenciar a vida moderna brasileira em muitos aspectos, por exemplo, quando o nepotismo é socialmente aceito. Mas o principal do autor está em explicar a dialética entre o crescimento urbano e a persistência da herança rural. A civilização tenderia a diluir a cordialidade, ele acreditava. Boas maneiras eram parte da civilização e a cordialidade era “justamente o contrário da polidez” (Holanda, 1995, p.146-51, 204-5). O que estimulou o homem cordial a socializar-se facilmente foi exatamente a sua tendência a ver nas pessoas uma extensão de sua família. O homem civilizado, por outro lado, estudou “as boas maneiras”, de forma a “tolerar” a sociedade à medida que defendia objetivos pessoais. Raízes do Brasil, depois de dezenas de republicações, atraiu novos admiradores nos anos 90, quando diversos intelectuais usaram a idéia da cordialidade para auxiliar a pensar o Brasil no processo de redemocratização (Avelino Filho, 1990; Wegner, 2000). Em 2003, o famoso diretor do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos, reafirmou a relevância do termo em seu filme sobre Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. No debate na TV, em 1996, o sem-terra Rainha e o com-terra Roosevelt mostraram boas maneiras, mas pouca afeição um pelo outro. Cordialidade mascara as relações patriarcais, um termo que disfarça a luta de classes no âmbito das relações de pais e filhos, esposas e filhas. Ditaduras que busquem se perpetuar no poder sempre incluem elementos de relações familiares, nas quais é predominante a figura do pai. O regime militar brasileiro (1964-85) incorporou alguns dos elementos da cordialidade, mas, no meio rural, o modelo do autoritarismo burocrático do capitalismo agravou a luta de classes e gerou bastante confusão, na melhor das hipóteses, e barbárie, na pior delas. Milhões são os filhos e filhas da pátria cujas raízes foram cortadas pela “modernização conservadora” do regime militar. O êxodo rural inundou as cidades à medida que os preços das commodities despencavam. O desemprego aumentou, máquinas substituíram trabalhadores nas velhas fazendas e as novas propriedades despejaram os camponeses conforme se expandiam as fronteiras agrícolas (D’incao, 1975; 141

Os com-terra e os sem-terra de São Paulo

Silva, 1982; Martine, 1987). A resistência à mudança redundou em confronto perante a violência do Estado e do setor privado. O processo intensificou uma tendência em andamento que data dos anos 30, fazendo com que a população rural de São Paulo encolhesse de 44% em 1940 para menos de 7% em 2000 (Kageyama, 2003). Vagando de cidade em cidade, o trabalhador rural encontrou conforto nas igrejas, nos sindicatos e nas agências de serviço social. Essas instituições garantiram alívio temporário para os camponeses, mas não o tipo de ajuda prometida pela cordialidade patriarcal. Nesse espaço, eu argumento, cresceram os movimentos sociais tais como o MST, combinando, ecleticamente, idéias e táticas de um rico passado de mobilização do trabalho rural, palavras de ordem e organizações, tais quais as Ligas Camponesas, que mais tarde inspiraram a formação do MST; a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), do qual o MST derivaria a necessidade de unir os trabalhadores e pequenos lavradores em uma organização nacional; dos sindicatos de trabalhadores rurais, de onde derivou a ênfase na negociação e nos serviços aos sócios; e da Igreja Católica, fonte da ênfase na escolarização e uma paixão por justiça moral (Martins, 1989; Medeiros, 1989; Bogo, 1999; Stédile, Fernandes, 1999; Branford, Rocha, 2002). Para contar essa história de transformação e permanência nas relações entre os com-terra e os sem-terra durante a última metade do século XX, este ensaio descreve três momentos na história social do campesinato do Brasil na disputada região noroeste de São Paulo, o Pontal do Paranapanema: a República Populista de 1945 a 1964; a Ditadura de 1964 a 1985, e 1985 a 1996, o início da Nova República.

A REPÚBLICA POPULISTA O povo brasileiro precisa é de chicote e não de democracia. Delegado Roque Calabrese (Santo Anastácio, junho de 1946)

Com essas palavras, registradas na imprensa comunista, o delegado Roque Calabrese indicava quão difícil iria ser para construir uma sociedade civil no Pontal do Paranapanema. O delegado fez esse comentário num momento de repressão à Liga Camponesa de Santo Anastácio, uma das centenas de ligas camponesas estabelecidas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), de forma a mobilizar pequenos agricultores e trabalhadores rurais depois do fim da Segunda Guerra Mundial. A formação das ligas foi, em parte, uma resposta ao novo pacote de direitos políticos estabelecidos por lei pelo regime getulista. As ligas ajudaram muitos camponeses a se cadastrar como eleitores e o próprio PCB a se destacar e crescer. Elas atuaram ainda como organizações de representação de classe, procurando ajudar seus quadros a endereçar 142

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

petições ao governo em questões relacionadas aos custos da terra, à produção agrícola e à renda. O PCB enxergou nas ligas um meio de se fazer forte enquanto fortalecia trabalhadores rurais e pequenos agricultores, um segmento socioeconômico pouco representado e geralmente esquecido pelo Estado brasileiro. As ligas também serviram como um grupo de pressão para ajudar o PCB e sua delegação a argumentar em favor da reforma agrária na Assembléia Constituinte de 1946. Elas podem nos ajudar a compreender a relação entre o sem-terra, os com-terra e o Estado antes do Regime Militar de 1964. Para o delegado Calabrese, defensor dos interesses dos proprietários de terras, os com-terra, a liga obviamente representava uma ameaça à própria ordem (Barriguelli, 1981, p.211-12; Welch, 1999, p. 98-118). O Pontal era ainda uma região de fronteira em São Paulo nos anos 40. Localizado a oeste do estado, forma um triângulo natural, bordeado pelos rios Paraná e Paranapanema, que marcam as divisas entre São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná. Em meados do século XIX, coronéis rivais requeriam para si o título das terras da região e usavam sua influência sobre os burocratas e sobre o clero para assegurar a sua posse no processo chamado de “grilagem”. Iniciaram a colonização das terras e criaram companhias para atrair imigrantes, desenvolveram povoados e venderam títulos de terras que pareciam legítimos, quando na verdade eram falsos. Os questionamentos sobre a veracidade da propriedade dessas terras se multiplicaram tão rapidamente quanto se multiplicaram as falsificações no decorrer do tempo. Em 1932, por exemplo, a Secretaria Estadual de Agricultura emitiu uma nota pública que dizia “ser perigosa a aquisição de terras na Alta Sorocabana”. Dez anos antes, a estrada de ferro da Alta Sorocabana já tinha alcançado a beira do Rio Paraná no porto de Presidente Epitácio, facilitando a ocupação e o desenvolvimento econômico. O censo de 1940 mostrou que mais de 275 mil pessoas viviam na região, 81% em áreas rurais. Isso significou que as companhias colonizadoras tiveram sucesso em atrair imigrantes e que muitos outros, ao saber dos questionamentos sobre a propriedade das terras, tinham se aventurado pela região na esperança de obter um pedaço de chão para eles próprios. Embora as florestas virgens da Mata Atlântica ainda cobrissem boa parte da área na década de 1950, os pioneiros recém-chegados foram encorajados a derrubar as árvores para que fossem vendidas às serrarias da região e para que, no descampado, se pudessem erguer fazendas e criar pastos. Eles o fizeram numa velocidade fantástica. Por volta de 1975, usando ferramentas manuais, deixaram apenas uma pequena porção da floresta de pé, numa região conhecida como Morro do Diabo. Hoje, o pedaço da Mata Atlântica original sobrevive somente por ter se tornado uma reserva ecológica protegida pela Polícia Especial (Leite, 1998; Callado, 2003). Santo Anastácio tinha sido um importante povoado no Pontal. Um ribeirão no lugar ganhou o nome do santo em maio de 1769, quando uma tropa 143

Os com-terra e os sem-terra de São Paulo

portuguesa, morrendo de sede, encontrou-o e a vila gradualmente fincou raízes ali. Em 1925, ela tornou-se a segunda municipalidade incorporada da região. À medida que os trilhos eram construídos até o rio Paraná, Santo Anastácio tornava-se a base da construção da estrada de ferro, levando espanhóis e italianos a mudarem-se para lá. Isso deu ao município um “ar” cosmopolita e criou um campo fértil para a organização do PCB (Leite, 1998; Guerra, 2004). Enquanto as Ligas Camponesas também se estabeleciam no Pontal, nos municípios de Presidente Prudente e Presidente Bernardes, as relações entre os sem-terra e os com-terra em Santo Anastácio recebiam maior atenção da imprensa. Em uma reportagem de 1945, o camponês migrante João Rayo Crespo apelava à Secretaria de Trabalho do estado e à Justiça local para reivindicar o cumprimento dos termos contratuais pelo proprietário de terras Manoel Ortega, aparentemente sem sucesso (Barriguelli, 1981, p.137, 147, 207-8). José Alves Portela, que migrou para Santo Anastácio, vindo de Sergipe, para trabalhar como parceiro de algodão, também reclamara sobre a exploração quando o mercado de commodities entrou em colapso depois da Segunda Guerra Mundial, e o fazendeiro o forçou, ainda assim, a pagar pelo arrendamento da terra (Portela, 1988). Histórias de brutalidades perpetradas contra os sem-terra pelos agentes dos fazendeiros, tais como os jagunços Juventino Nunes e Zé Mineiro, ganharam fama na região (Leite, 1998, p.101-12). Essas e outras histórias nos levam a suspeitar da existência do mundo agrário de cordialidade que Sérgio Buarque de Holanda defendeu nesse exato momento, como um aspecto fundamental da cultura paulista. A Liga Camponesa estabeleceu-se em Santo Anastácio em abril de 1946, em resposta ao crescimento expressivo das reclamações de trabalhadores rurais do lugar. Com a liga, o PCB pretendia agrupar todos os pobres e médios “trabalhadores da terra”, uma diversidade de relações de trabalho, em uma categoria só. Mais de 200 “camponeses, em sua maioria arrendatários, sitiantes, meeiros e terceiros”, participaram no encontro de fundação, de acordo com o diário do PCB, Notícias de Hoje. A liga serviria para “orientar a luta dos trabalhadores em busca de melhoria das condições de vida dos trabalhadores da terra”. Antônio Valero Valdeviesso, cuja biografia permanece obscura, fez uma “clara exposição” sobre o tema e leu os estatutos. Os participantes “elegeram democraticamente” a comissão diretora da liga, tendo Nestor Veras na presidência e outros 11 representantes e substitutos nomeados na oportunidade. Diversos assuntos foram abordados nos discursos que se seguiram: a questão do preço do arrendamento das terras, a manutenção da estrada, a criação de escolas e clínicas médicas. Em outras palavras, os sem-terra entenderam que era dos com-terra grande parte da responsabilidade pelo mau estado de coisas que ali havia e apelaram para o Estado em busca de ajuda. Aluguéis e arrendamentos eram muito caros, 144

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

as estradas estavam abandonadas, a saúde e a educação de suas crianças deixadas ao acaso (Barriguelli, 1981, p.155-6). Em outra reunião ocorrida naquele mês, os diretores prepararam uma petição para enviar ao Secretário de Agricultura, Francisco Malta Cardoso, um fazendeiro e advogado com um histórico de esforços no sentido de fazer progredir as questões sócio-rurais. Cardoso e seu colega proprietário de terras João Carlos Fairbancks – um advogado da cidade de Presidente Prudente, considerado por Leite como o “defensor permanente de possuidores de títulos de posse ou de domínio” – tinham contribuído com a preparação da legislação social rural no Congresso dos Direitos Sociais, realizado sob as orientações de Getúlio Vargas, em 1941. Ali, eles representaram a sociedade rural no que concerne à idéia do “homem cordial” de Holanda. Para Fairbancks, as fazendas “formavam-se sob a maior solidariedade de interesses econômicos e mais íntimos contacto entre ‘patrão’ e ‘operário’”. Cardoso descreveu os sem-terra e os com-terra como “companheiros de trabalho”. Para Cardoso e Fairbancks, os sem-terra muitas vezes tinham mais dinheiro na bolsa que os com-terra, que investiram tudo nas suas terras. Para Fairbancks, a condição dos sem-terra assalariados era apenas uma situação temporária até que eles se tornassem proprietários. “Há de ser compreendido como situação provisória” – comentou Fairbancks –, um estado potencial e preparatório a proprietário.” Sem-terra e com-terra tinham interesses “CONVERGENTES e COMPLEMENTARES” e formavam, nas palavras de um terceiro colega, “o clã fazendeiro”, similar àquela família agrária que Holanda enxergou como fundação da sociedade brasileira (Barriguelli, 1981, p.178; Welch,1999, p.75-99; Leite, 1998, p.47). Pelo menos 150 camponeses sem-terra discordaram e desconfiaram daquele trio. Muitos deles acreditaram na nova democracia lançada com a queda da ditadura do Estado Novo e assinaram a petição da Liga Camponesa de Santo Anastácio. “Os latifúndios devem ser divididos gratuitamente aos que querem plantar”, a petição começa. “Os nossos produtos não valem nada, mas o que consumimos custa-nos os olhos da cara”, continua. “Sem terra, sem direitos, nossos filhos sofrem de maleita, amarelão, tuberculose, raquitismo, frio e fome”, segue a carta. “Por este pequeno relatório vimos à presença de V. Exa. para relatar-lhe a atual situação precária que há anos vamos passando”, o documento dizia. Além da exigência pela reforma agrária radical, a petição sinalizava a necessidade de políticas novas, que ajudassem aqueles camponeses a obter maiores lucros de sua produção a fim de cuidar bem de suas famílias. A carta também criticava os com-terra por alugar terras ruins e cobrar arrendamentos maiores que o preço de mercado das terras. O resultado não foi somente uma superexploração dos sem-terra, como também uma tendência a que os camponeses abandonassem o campo na busca de “melhores condições de existência” nas cidades, o que muitos não queriam fazer. 145

Os com-terra e os sem-terra de São Paulo

Uma última cláusula lembrava que os camponeses, bem como os trabalhadores rurais assalariados, necessitavam possuir as próprias organizações representativas (Barriguelli, 1981, p.178-9). Em maio, a imprensa comunista documentou ainda mais insatisfação dos camponeses de Santo Anastácio, quando o diretor da Cooperativa Agrícola Mista de Santo Anastácio denunciou as precárias condições dos sócios, um grupo de mais de 800 famílias camponesas. Ele sustentava a necessidade da liga pelo fato da “miserável [...] vida que os meeiros e arrendatários levam […] porque o rendimento do seu trabalho vai todo parar nas mãos do latifundiário” (Barriguelli, 1981, p.189-90). Se a relação entre os com-terra e os sem-terra pode ser comparada a uma família ou a um clã, isso não se verificou em 1946. Essa família agrária era bastante disfuncional. O Estado respondeu aos apelos dos camponeses de Santo Anastácio mandando repreender severamente a liga em junho de 1946. O tamanho e a “ousadia” da organização devem ter incomodado profundamente os com-terra. Até o mais influente proprietário da região, o coronel Alfredo Marcondes Cabral – que teve a fama de ser citado dizendo “terra empapada de sangue é terra boa” –, não conseguiu uma força de jagunços suficientemente forte para intimidar o movimento camponês (Leite, 1998, p. 53). De fato, o fechamento da liga, em junho de 1946, relaciona as ações do delegado Calabrese mais com os interesses dos coronéis locais que com o contexto histórico maior. A decisão de colocar o PCB na ilegalidade e destruir organizações tais quais as Ligas Camponesas, influenciadas pelas políticas da Guerra Fria, ainda levaria um ano para tomar lugar. O presidente da liga, Nestor Veras, protestou contra a ação em telegramas ao presidente Eurico Gaspar Dutra e aos chefes dos partidos políticos que participavam da Assembléia Constituinte. “A polícia local fechou a Liga Camponesa”, Veras escreveu, “apreendendo seus arquivos e impedindo o direito de organização aos pacíficos trabalhadores do campo” (Barriguelli, 1981, p.208-10). Veras atribuiu ao delegado Calabrese, uma autoridade sustentada pelas estruturas do poder local, um papel central. Calabrese tinha advertido os camponeses sobre formalizar a fundação da liga, e Veras havia publicado o estatuto da fundação no Diário Oficial da União, e a papelada foi legalizada em cartório. Mas as ações tomadas por Veras para fortalecer a liga somente pareciam mais ameaçadoras para os com-terra. “As justas reivindicações em torno dos problemas mais sentidos do nosso camponês fortaleciam a estrutura da liga”, Veras disse à reportagem do Notícias de Hoje, “devendo ser este o motivo principal que levou a polícia e demais autoridades a determinar o seu fechamento” (Barriguelli 1981, p.211-12). O que aconteceu no Pontal revela verdades sobre as relações entre os sem-terra e os com-terra e a incapacidade tanto dos proprietários quanto do Estado de tratar os sem-terra com respeito. Como Calabrese disse, era de chicotadas que os camponeses precisavam e não de democracia. A 146

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

violência implícita em sua fala reflete a frieza no coração para com aqueles que negaram aos com-terra a deferência de que eles tanto precisavam para alimentar sua dominação, os que tiveram a coragem de confrontar essa figura paterna maligna. Esse foi o lado feio da cordialidade. Embora o governo tenha colocado o PCB e suas ligas camponesas na ilegalidade, o partido manteve atividades clandestinas entre os sem-terra durante os anos 50. Em muitas regiões do país, comunistas e católicos confrontaramse na clássica batalha da Guerra Fria para ganhar os corações e mentes da população rural, à medida que mudanças na economia política mundial agravavam as relações sociais no campo. A Igreja fincara raízes profundas no meio rural e o “perigo vermelho” estimulava um maior engajamento nas relações cotidianas dos com-terra e sem-terra. Em outubro de 1961, na preparação de uma conferência nacional sobre o trabalho rural, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) constituiu um novo braço para sua missão de amparo aos camponeses, chamada Frente Agrária (Welch, 1999). No Pontal, o ativista José Rotta, um pequeno fazendeiro e comerciante, fundou uma associação de trabalhadores rurais naquele mesmo mês. No início de 1962, o militante pecebista Jôfre Correa Netto mudou-se para Presidente Prudente para juntar-se a Veras, Portela e a um médico comunista da região, José da Silva Guerra, na fundação de uma associação rival, ligada à ULTAB. Essas atividades concorrentes, juntamente com a colaboração do ministro do Trabalho, o democrata-cristão Franco Montoro, levaram os seguidores da Igreja Católica, incluindo o camponês João Altino Cremonezi e sua família, a juntar-se a Rotta na formação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Presidente Prudente, em outubro de 1962. Rotta tornar-se-ia o primeiro presidente do sindicato, posição assumida por Cremonezi uma década mais tarde (Cremonezi, 2004; Maybury-Lewis, 1994, p.85-8). Apesar da prerrogativa da Igreja, nenhum setor do movimento dos trabalhadores rurais tinha estabelecido uma ligação consistente com os sem-terra quando os militares tomaram o poder em abril de 1964. Os conspiradores depuseram o presidente João Goulart com a intenção de livrar a nação do “perigo comunista” com táticas de aliciamento. Em colaboração com os grandes com-terra, os militares agiram logo para desfazer a aliança dos camponeses com o PCB. Em São Paulo, a repressão fez Portella deixar seu posto como presidente da Federação Estadual dos Trabalhadores na Agricultura (FETAESP) e fugir. Delegados dos demais sindicatos, quase todos organizados pela Frente Agrária, elegeram Rotta para presidente da FETAESP, agora uma entidade incorporada no regime militar. O mesmo cenário se repetia em nível nacional, quando os sindicatos sobreviventes – a maioria conectada à Igreja – apoiaram Rotta para presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), uma organização corporativa do mais alto nível, autorizada pelo Estatuto de Trabalhador Rural de 1963. Fundada em dezembro de 1963, antes do golpe, sua diretoria 147

Os com-terra e os sem-terra de São Paulo

foi composta por militantes pragmáticos do PCB, como Lyndolpho Silva e Nestor Veras, e da Ação Popular, uma organização de jovens progressistas da Igreja Católica (esse movimento, em 1967, muda seu nome para Ação Popular Marxista – Leninista e se radicaliza discutindo a luta armada). Com o poder nas mãos depois do golpe, as lideranças dos “sem-terra” que se juntaram às forças conservadoras, agora pequenos agricultores aliados à ala conservadora da Igreja, desenhariam a política agrária da nova administração federal, levando o país a uma “revolução branca”, em prejuízo de uma reforma de fato (Welch, 1999, p.322-28, 347-48; Cunha, 2004).

O REGIME MILITAR Capangas do fazendeiro percorrem a área, intimidando os posseiros e ameaçando suas famílias, acompanhados de policiais que, segundo os posseiros, estariam sendo pagos por [o grileiro] Justino para “legalizarem” as ameaças. Sem-terras Nélson de Almeida Alves e Silvério da Silva (Santa Rita do Pontal, 1 de outubro, 1977).

O primeiro presidente militar, general Humberto de Alencar Castelo Branco, manteve as estruturas dos sindicatos rurais e apoiou a aprovação do Estatuto da Terra, uma lei de reforma fundiária que estava, havia muito, em debate. Ele se orgulhava de ver seu “governo revolucionário” apresentar reformas dramáticas no campo sem que estas fossem objeto de agitação e instabilidade, como foram aquelas cogitadas por João Goulart. Para a surpresa dos grupos de fazendeiros conservadores, como a Sociedade Rural Brasileira, o discurso do regime apoiou a reforma agrária via modernização das relações de trabalho, o uso de tecnologias e a oposição aos modelos de ocupação tradicionais como os latifúndios improdutivos (Silva, 1982; Gonçalves Neto, 1997). O regime alterou o Artigo 10 da Constituição de 1946 para permitir mais flexibilidade nos mecanismos de pagamento através de títulos do governo em vez de dinheiro, facilitando a desapropriação de terras (Callado, 2003, p.57-9; Campanhole & Campanhole, 1980; Medeiros, 2003; Houtzager, 2004). Em outras palavras, a chegada dos militares ao poder representou uma mensagem mista. Por um lado, muitos sindicatos de trabalhadores rurais foram fechados e seus líderes presos: comunistas, católicos progressistas e socialistas, como Francisco Julião, das Ligas Camponesas do Nordeste. Por outro, o regime retomou políticas que prometiam o direito de representação aos sem-terra, assim como a distribuição de terras. O desaparecimento de comunistas, a acomodação de católicos pragmáticos e a promessa de reformas controladas significavam a esperança de que esse novo patriarcado trataria os sem-terra com cordialidade. Os menos exigentes, os desengajados, poderiam contar com os favores governamentais. 148

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Inúmeros estudos, ao contrário, têm mostrado que o regime militar possuía uma política de desenvolvimento agrário descrita como “dolorosa”, especialmente sob a perspectiva dos sem-terra (Silva, 1982; Gonçalves Neto, 1997; Silva, 1998; Linhares, Silva, 1999, p.182-95; Silva, 2004). A nova classe dirigente apoiou mudanças dramáticas que beneficiaram um processo incipiente de agroindustrialização, o que acabaria implicando na substituição dos trabalhadores rurais por máquinas, além de patrocinar a perda das habilidades de produção agrícola por parte dos camponeses, reduzindo a necessidade por trabalhadores fixos e gerando instabilidade e insegurança na sociedade rural. Isso resultaria num novo processo de concentração de terras que atiraria milhões de camponeses em um já inundado mercado de trabalho (Silva, 1981, p.82-100; Martine, 1987; Goodman, 1989). Essa interpretação se confirma pelo exame das disputas por terras no Pontal, e o caso da Gleba Santa Rita, localizada ao norte do rio Paranapanema, no município de Teodoro Sampaio, fundado em fevereiro de 1964, é ilustrativo. A história da Gleba Santa Rita começa em 1954, com um esquema de terras orquestrado pelo poderoso político de São Paulo Adhemar de Barros. Em conluio com a Estrada de Ferro Sorocabana e com a Construtora Camargo Correia, ele usou informantes infiltrados na região do Pontal para ajudar seus parceiros a comprar as terras, que prometiam se valorizar com a construção de uma nova linha chamada Dourados. Um dos beneficiários foi Justino de Andrade, à época prefeito de Presidente Bernardes, que criou uma companhia colonizadora e antecipou a construção de uma vila chamada Santa Rita do Pontal, subdividindo os 10 mil hectares entre os migrantes, o que lhe permitiu lucrar muito com o transporte dessa gente, com a produção de entulho e com a produção agrícola (Leite, 1998, p.100). Embora Barros tenha ganhado as eleições para governador em 1947, e novamente em 1963, o sonho de Andrade não se realizou. A linha de trem jamais foi construída e a vila cresceu e morreu sem que se construíssem nem sequer duas dúzias de casas no local. Na verdade, a terra jamais deveria ter sido vendida a ele pela companhia de terras Sulamericana. A terra vendida, como a vasta maioria do Pontal, pertencia ao Estado, e não aos grileiros que reivindicavam seu título. Apesar dos repetidos avisos sobre a ilegalidade dos títulos de terras na região, Andrade agiu como se a terra fosse sua e se utilizou de um clássico esquema para ratificar sua propriedade. Em 1967, arrendou cerca de mil hectares da floresta de Santa Rita para um empresário do setor automotivo e produtor de algodão chamado Francisco Pereira Telles, de Martinópolis. Em 1968, Telles sublocou a terra a 400 famílias. Mais tarde, Andrade alegou que Telles deveria devolver a terra convertida em pasto dentro de três anos. O lucro de Telles estaria na venda da madeira, e alegou que não foi para Andrade pegar a terra de volta que ele havia conseguido permissão para limpar a floresta, atrair famílias e organizar a produção de algodão, seguindo o Estatuto da Terra. Num artigo 149

Os com-terra e os sem-terra de São Paulo

de O Estado de S. Paulo, de 1978, Andrade corroboraria a versão de Telles, reclamando que, enquanto ele recebia quase nada, Telles tinha recebido parte da produção de algodão e encorajado os arrendatários a afrontá-lo, dizendo a eles que a terra pertencia ao Estado (Leite, 1998; Correia, 1977; Folha de S.Paulo, 1977; O Estado de S. Paulo, 1978b). Na Gleba Santa Rita, procedeu à acumulação primitiva da riqueza, uma afronta que se refletiu na relação entre os com-terra e os sem-terra. Embora Telles, tecnicamente, fosse, ele próprio, um especulador, seu status de proprietário era inquestionável. Tais intermediários representavam uma parte essencial da expansão capitalista da fronteira agrícola no país. Eles investiram seu capital e técnicas organizacionais nos primeiros estágios de conversão de terras virgens em área de produção de commodities. Não há, entrementes, dados que registrem o grosso do processo. Telles alegou à imprensa que gastara muito dinheiro em melhoria da terra alugada de Andrade. Este, de seu lado, disse que ele nada lucrara; na verdade, segundo ele, foram as famílias de sem-terra que lucraram e estavam ficando ricas, já que eles não estavam pagando aluguel depois que Telles as havia abandonado, em 1972. Ele alegava ainda estar processando Telles pelos prejuízos, mas nunca ganharia a causa, muito em razão da duvidosa legalidade de seus títulos de terras (Correia, 1977; Folha de S.Paulo, 1977; Santos, 1980). Telles se defendeu na imprensa, cercando-se da lei e culpando Andrade por seu próprio infortúnio. O Estado de S. Paulo resumiu seus argumentos num artigo de 1977. Telles diz que fez tudo conforme o Estatuto da Terra e que, além de sementes e defensivos, fornecia (aos camponeses) até assistência médica e hospitalar. Mas, quando acabaram com o desmatamento, ele falou, “deixei de dar emprego às 400 famílias no Pontal por uma questão social e aquele pessoal começou a passar fome. Embora que seja, não me sinto responsável porque as famílias que eu coloquei, mais da metade daqueles que me consideravam, saíram da gleba, com o término do contrato. Mas Justino deveria manter melhor vigilância em sua propriedade, para impedir a invasão de outras famílias” (Correia, 1977). Apesar de utilizar o processo de trabalho mais tradicional – desbravando o mato com ferramentas manuais, um trabalho penoso, para falar o mínimo –, a relação entre os com e os sem-terra também foi controlada por critérios modernos. Entre eles, o Estatuto da Terra, que a ditadura orgulhosamente celebrou como uma grande conquista. Houve a provisão de sementes e um sistema de saúde. Havia um contrato de desmatar e criar pastos. Obra completada, relação terminada. Os sem-terra precisavam ir embora, mas alguns resolveram não sair e outros, talvez, transgrediram depois de iniciar o conflito. Os dois grupos, os com e os sem-terra, sofreram por motivos próprios. Em outras palavras, os com-terra se caracterizaram como vítimas, explicaram como se entregaram sem egoísmo para ajudar 150

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

os sem-terra a tirar proveito da situação e fingiram inocência diante do processo primitivo de acumulação, que eles mesmos definiram. Havia uma transformação das relações sociais, passando de cordiais para civilizadas, na terminologia de Holanda. Telles não estava mais obrigado a mostrar “hospitalidade” ou ser “generoso”. Explorados, os camponeses insistiam em ficar na terra depois de formar os pastos. A história documentada das 400 famílias da Gleba Santa Rita começa, em todos os casos menos em um, com sua resistência contra um capitalismo selvagem. Sua resistência dá testemunho à perspectiva contrária da suposta cordialidade de sua relação com os proprietários e com o Estado. Entraram na cena em silêncio, topando, evidentemente sem questão, a procura de mão-de-obra para desbravar a floresta e cultivar algodão num sistema de parceria. Apenas quando o arranjo terminou, e foram despedidos da terra e mandados voltar para a insegura e itinerante vida do mercado de trabalho agrícola, suas vozes foram noticiadas pela grande imprensa. A única exceção foi um camponês chamado Jenival, que foi entrevistado pelo escritor carioca Antônio Callado em novembro de 1984. Callado foi contratado pela Companhia Energética de São Paulo (CESP) para revelar os benefícios dos projetos estaduais de reforma agrária no Pontal. Pouco feliz devia ter ficado a empresa estatal quando viu o subtítulo do livro. Callado escreveu: “Um ensaio sobre a reforma agrária brasileira, a qual nunca foi feita”. No encontro com Jenival na Gleba Santa Rita, Callado descobriu o fato quase inédito: por 17 anos, a família morava na mesma casa. “Para um lavrador brasileiro”, Callado comentou, “ele é uma pessoa de uma vida extraordinariamente estável” (Callado, 2003, p.39). Este único caso levanta questões profundas sobre a representação da relação entre com e sem-terra. Se nem Jenival, nem Andrade, nem Telles eram portadores da escritura, nenhum deles podia ser considerado proprietário (com-terra) no contexto do sistema capitalista. De fato, a tradição legal no Brasil, como em outros paises do mundo ocidental, teria reconhecido o direito de escritura a Jenival antes de mais ninguém, devido à sua posse efetiva e duradoura. Contudo, na prática, a relativa pobreza de Jenival e sua evidente falta de vínculos maiores o deixaram em uma posição de desvantagem, em contraste com a riqueza e contatos de Andrade. A diferença fez de Jenival um sem-terra e de Andrade um com-terra (Holston, 1991; Wright, Wolford, 2003, p.19-27). Em 1975, 33 famílias de sem-terras caminharam 65 quilômetros, da Gleba Santa Rita até Teodoro Sampaio, onde a expressão de suas reivindicações rompeu com a tranqüilidade da comunidade e ajudou a desmascarar Andrade e Telles como homens cordiais. “Com o solo preparado, mas sem sementes, que não podem comprar diante da impossibilidade de obter financiamentos bancários, os posseiros dirigiram-se à prefeitura. Diante das recusas em atendê-los, eles se revoltaram, tentando conseguir à força, ao menos, alimentos.” Pelo menos uma proporção dessas, supostamente 151

Os com-terra e os sem-terra de São Paulo

bem tratadas, famílias reclamou de estar passando fome. Para restaurar a paz, o prefeito organizou uma refeição para eles no Hotel Comercial. No entanto, a Polícia Militar buscou reforço na região para defender a “ordem pública” (O Estado de S. Paulo, 1975a e 1975b). A Polícia Militar acabou conhecendo bem os sem-terra de Santa Rita, talvez melhor que qualquer outra instituição, dada a freqüência de sua presença na gleba durante os anos 70. Entre 1973 e 1980, ela se juntou quatro vezes com os jagunços de Andrade e autoridades municipais para cumprir ordens judiciais de expulsão. Os casos piores ocorreram em 1973 e 1974, quando desapossaram, à força, 63 famílias. Para fazer valer a invasão, a polícia queimou todos os pertences dos camponeses, arrancou suas plantações e matou seus animais (Folha de S.Paulo, 1977; O Estado de S. Paulo, 1978b). Em 1977, jogaram veneno nas nascentes que forneciam água aos camponeses, um ato covarde que matou mais animais. Na época, dois sem-terras comentaram que “Capangas do fazendeiro percorrem a área, intimidando os posseiros e ameaçando suas famílias, acompanhados de policiais que, segundo os posseiros, estariam sendo pagos por Justino para ‘legalizarem’ as ameaças” (Folha de S.Paulo, 1977). Em 1982, os jagunços atiraram nos camponeses e, em 1984, soltaram gado nas suas plantações. Por 13 anos, as famílias moraram na terra sob pressão intensa. Novas ameaças de expulsão chegavam regularmente e suas esperanças de permanecer na terra foram pulverizadas repetidamente. Aos poucos, a maioria das famílias originais desistiu, mas novas famílias tomaram seu lugar, novos recrutas do exército de reserva de trabalhadores rurais subempregados, cada um buscando um pedaço de chão para criar a estabilidade necessária para melhorar as condições da família naquela terra de batalha. Num rodízio meio espontâneo, os sem-terra resistiram a atos violentos de despejo, ordens judiciais, intervenções estatais e ataques de jagunços. Em 1979, Andrade estava com 70 anos, cego de um olho, lento na conversa mas, mesmo assim, “não está disposto a ceder. E seus advogados também não, pois segundo eles, os lavradores são intrusos” (FETAESP, 1979). A resiliência dos sem-terra diante dessa pressão intensa e prolongada parece contraditar a lógica do regime militar. Foi o mesmo período que viu a ditadura mandar três missões militares à bacia do rio Araguaia para extinguir um pequeno reduto guerrilheiro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e, assim, facilitar a expansão da agricultura capitalista na região. Já que essa história de invasão e repressão predomina nas representações da relação entre a ditadura e camponeses no período, é difícil compreender por que o governo não eliminou “o problema” da Gleba Santa Rita em alguns dias. Uma resposta é que a ditadura não teria como ficar no poder se tivesse administrado o país apenas com violência. Machiavel, Gramsci, Arendt, Skocpol e outros teóricos do poder e do Estado nos ajudam a entender a necessidade de consentimento para a duração até mesmo do regime mais brutal. 152

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

O início dos anos 70 foi bom para a economia brasileira. O “milagre econômico” do “bolo crescente” criou uma base de popularidade para o presidente Emilio Garrastazu Médici (1969-74), apesar do repressivo “combate nas trevas”. Em uma entrevista em 1997, o líder do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, comentou sobre o período Médici: Hoje a gente pode dizer que foi por conta da dívida externa, milagre brasileiro e tal, mas o dado concreto é que, naquela época, se tivesse eleições diretas, o Médici ganhava. E foi no auge da repressão política mesmo, o que a gente chama de período mais duro do governo militar. A popularidade do Médici no meio da classe trabalhadora era muito grande. Ora, por que? Porque era uma época de pleno emprego (Couto, 1999, p.117).

A prosperidade relativa do período trouxe apoio para o regime e sua popularidade se estendeu até o campo. Em seu estudo sobre a cidadania brasileira, o historiador José Murilo de Carvalho observou que “[o] eleitorado rural … apoiou [a Ditadura] em todas as eleições”. A tendência não pode ser vista apenas como produto da mentalidade tradicional, conservadora da sociedade rural ou de manobras entre o eleitorado dos supostos coronéis. Ao contrário, o consentimento dos sem-terra tem que ser visto como uma resposta racional quando se considera o conteúdo da política rural da administração Médici. Quando decretou o Prorural, em maio de 1971, o governo introduziu uma das mais profundas transformações das relações sociais do campo na história do Brasil. Pela primeira vez, a previdência social foi colocada ao alcance dos camponeses, criando o que passaria a ser um dos maiores programas sociais do campo no mundo. Através do Fundo de Assistência Rural (Funrural), a lei ajudou municípios rurais a construir suas primeiras clínicas de saúde e outros serviços sociais. A ditadura encarregou os sindicatos dos trabalhadores rurais de manter os programas novos, estimulando uma explosão de formação de STRs no país (Carvalho, 2004, p.172; Gaspari, 2002, p.210; Houtzager, 2004). A lei e os sindicatos foram vistos como instrumentos da modernização do meio rural. No século XXI, medidas baseadas nessas políticas acabaram sendo fontes de apoio financeiro fundamentais para centenas de municípios. O crescimento do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais (MSTR), com ligações entre a Igreja Católica e os serviços de assistência do Estado, foi fonte da “lhaneza no trato” rural da ditadura. Para Holanda, isso foi uma essência de cordialidade, e o conceito ajuda-nos a examinar como a hegemonia foi construída no campo brasileiro (Holanda, 1995, p.146). É notável que os problemas na Gleba Santa Rita viessem à luz no mesmo ano, 1973, em que foi fundado o STR de Teodoro Sampaio. Segundo Divanil José Cruz, que administrou o sindicato desde sua fundação até os anos 90, com seu pai, José Ferreira Cruz, o prefeito José Natalício dos Santos começou o processo de formação do sindicato em Teodoro. O município tinha menos 153

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de 10 anos de vida quando o STR foi fundado e só então conseguiu obter uma clínica de saúde com um médico e um dentista, utilizando o Funrural, segundo Cruz. Os Cruz atraíram a atenção do prefeito como líderes por seu comportamento a favor de sindicalismo, algo que aprenderam com um padre no Paraná antes de se deslocarem para o Pontal. Como pequenos agricultores, a família Cruz foi atrás da burocracia, com o apoio da prefeitura, e não demorou muito para mobilizar 1.500 sócios. Com a Igreja Católica, o STR logo se tornou uma das instituições mais importantes em Teodoro Sampaio. Para afirmar a impressão sobre o comportamento político da classe trabalhadora da época, Cruz entrou na ARENA, o partido da ditadura, e expressou, em entrevista recente, saudade pelos anos do regime militar, principalmente por causa de seu apoio aos STRs (Cruz, 2004). Como outros críticos do Funrural, Carvalho alega que ele funcionou para cooptar o movimento camponês: “As tarefas de assistência agora a eles atribuída, contribuiu [sic] muito para reduzir sua combatividade política e gerou [sic] dividendos políticos para os governos militares” (CARVALHO, 2004, p. 172). O sociólogo Claudinei Coletti foi ainda mais duro em sua crítica a dirigentes sindicais como os Cruz: “O assistencialismo transformase, assim, em poderoso instrumento de controle político-social nas mãos dos governantes, permitindo a expansão do peleguismo no movimento sindical” (Coletti, 1998, p.85). Contudo, ambos notaram que resultados positivos também foram possíveis. O caso de Teodoro Sampaio confirma que alguns municípios conseguiram ter serviço médico por causa dos vínculos entre STRs e Funrural. Coletti comenta que líderes sindicais mais militantes tiveram a capacidade de utilizar os benefícios de assistencialismo rural para fortalecer o processo de mobilização e o poder de negociação dos sindicatos. Analistas como Regina Novaes, Biorn Maybury-Lewis e Peter Houtzager enfatizaram esses aspetos mais positivos do assistencialismo, procurando entender a “política do possível” permitida pelos mecanismos de controle do regime. Acredito que seja essa a melhor forma de entender o conflito da Gleba Santa Rita. Sem considerar o possível papel positivo do sindicato de Teodoro, é difícil compreender a resiliência dos sem-terra (Maybury-Lewis, 1994; Novaes, 1997; Houtzager, 2004). Em agosto de 1973, 80 Policiais Militares cumpriram a primeira ordem judicial de despejo sem interferência. Em janeiro do próximo ano, mais 16 famílias foram arrancadas da gleba pela força, mas expulsões adicionais foram evitadas pela intervenção de Zelmo Denari, subprocurador estadual recentemente instalado em Presidente Prudente. Nascido em 1935, Denari era filho de um grande proprietário de Presidente Bernardes, no Pontal. Mas, segundo seu depoimento, sua consciência foi formada por Guerra, o médico comunista que ajudou a fundar a liga camponesa de Santo Anastácio e que cuidava de sua família, discutindo as questões fundamentais com seu pai. Denari brincava com as crianças da família Guerra. No final dos anos 50, 154

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Denari saiu da região para estudar e fazer carreira em São Paulo. Quando regressou, descobriu que seu emprego como procurador em defesa dos interesses do Estado necessariamente o colocava em conflito com os comterra de sua classe social. Fazer bem seu papel significou fazer ressurgir as reclamações em disputa sobre a posse das terras no Pontal; o despejo dos camponeses da Santa Rita o desafiou como procurador e homem. Com a participação ativa do bispo José Gonçalves da Costa, conseguiu virar a onda de expulsões e ajudar os sem-terra. O bispo chamou a invasão da polícia de inumana, atraindo atenção para a difícil situação dos camponeses. Denari se inseriu no conflito com a alegação de que a terra não pertencia a Andrade e que os sem-terra deveriam ter permissão para permanecer até que o domínio da gleba fosse resolvido. Isso e a luta de Denari para provar que o Estado era dono da terra foram cruciais para os camponeses. Ainda sob o regime do general Ernesto Geisel, a abertura começou, mas Denari relatou que recebeu ameaças de morte tão sólidas que perdeu o controle da bexiga durante seu sono (Folha de S.Paulo, 1977; O Estado de S. Paulo, 1978b; Denari, 2004; Guerra, 2004). Em 1975, a imprensa começou a dar cobertura regular à disputa em Santa Rita e, até 1985, o STR de Teodoro Sampaio parece ter sido o maior apoiador dos sem-terra. Apareceu como ator no conflito pela primeira vez como provedor de assistência social e uma agência de apoio que as autoridades chamaram para ajudar os sem-terra a sobreviver após sua expulsão da terra. Da perspectiva do regime e dos críticos do assistencialismo, esse deveria ter sido o início e o fim da participação do sindicato. Os jornais citaram a reclamação de Divanil, que manifestou preocupações com a falta de recursos para lidar com todas as famílias. Ele explicou que o sindicato sempre sofria uma queda do número de associados quando acabava a colheita, uma vez que muitos sócios não tinham condições para pagar. Isso já se constituiu em uma crítica dura ao regime. O sindicato convidou os repórteres para relatar as condições do trabalho agrícola. Em 1975, O Estado de S. Paulo citou as observações do Antônio Albano dos Santos, um cortador de cana: Enquanto estão na terra, mesmo a falta de crédito junto aos fornecedores, a impossibilidade de obterem financiamentos bancários e a desnutrição e até as mortes por falta de remédios não são motivos para queixas por parte dos lavradores. Eles aceitam tudo normalmente porque qualquer protesto pode significar a dispensa (O Estado de S. Paulo, 1975c).

Dez anos mais tarde, tais imagens seriam regulares, mas a reportagem de 1975 foi rara em revelar a fraqueza do “milagre econômico”. Os Cruz usaram a atenção atraída pelo conflito de Santa Rita para enfatizar a situação precária dos camponeses e documentar seu esforço em resolver os problemas. O sindicato trabalhou com o prefeito e a Igreja para construir 155

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moradias temporárias e arrecadar dinheiro para alimentar e vestir os semterra da região. Esses dois papéis do sindicato – como assistente de primeiros socorros e propagandista – foram contínuos durante o período. Mais dois papéis também foram típicos: o de interlocutor e o de defensor, que colocaram o sindicato na imprensa como representante dos sem-terra antes das autoridades administrativas e judiciais. Essas formas de atuar foram as mais tradicionais de uma organização de classe e, obviamente, o regime aceitou a idéia. Como interlocutor, José Ferreira Cruz, em especial, se apresentou como alguém disposto a fazer lobby em nome dos pobres da terra. Durante os anos 70, ajudou a organizar vários comícios e falou particularmente com dois governadores, dando mais tempo de resistência para os sem-terra. Em 1977, Cruz falou com o governador Paulo Egydio Martins, indiretamente eleito pelo Colégio Eleitoral, estabelecido pelo regime militar para mostrar um movimento em direção à democracia, quando ele veio visitar Andradina, no noroeste do Pontal. “Uma coisa posso garantir”, comentou Egydio depois do encontro, “tocar em vocês, ninguém vai tocar. Isso eu garanto” (Folha de S.Paulo, 1977). Em abril de 1979, Cruz falou com Paulo Maluf, o novo governador indiretamente eleito, e a publicidade em volta do apelo evidentemente forçou Maluf a comandar o fim de outro processo de despejo no fim do mês. Ele foi citado pedindo a permanência dos posseiros ‘“a fim de impedir injustiças e o caos social’ através de desapropriação” (FETAESP, 1979; Santos, 1979). No mundo do homem cordial, foi como se Cruz fosse um irmão mais velho, tentando convencer o pai a não tirar a herança de um irmão problemático. Em um esforço final, o irmão pede benevolência do patriarca; o patriarca muda de idéia, mostrando para o mundo sua consideração para com os mais fracos. Assim, o sistema funciona de forma a confirmar as relações de poder, preservando a ordem social. Enquanto Cruz foi atrás do governador, os advogados foram aos tribunais. O sindicato de Teodoro Sampaio não teve seu advogado próprio até 1980 (Cruz, 2004). Em 1977, os advogados da Contag e da FETAESP avisaram Cruz sobre os direitos legais dos sem-terra. Em 1979, ele revelou sua frustração com a estratégia legal, sugerindo que “já estavam quase esgotados os meios legais capazes de beneficiá-los” (FETAESP, 1979). Mas, no ano seguinte, o advogado Emídio Severino da Silva começou a trabalhar para o sindicato e colaborou com o subprocurador Denari e seu assistente Gilberto Lima em seus apelos judiciais. Ao contrário das crenças de Cruz, os tribunais se mostraram um campo de batalha fundamental na luta pela terra, já que uma questão central nas disputas foi a situação legal das escrituras no Pontal. Enquanto tudo o mais foi acontecendo, os juízes de vários distritos e níveis do sistema judiciário trabalharam para resolver as dúvidas sobre quem estava com a posse legal. 156

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Os advogados de Justino de Andrade defenderam o título de seu cliente até a última gota de sangue, enquanto o subprocurador lutou para provar que a Gleba Santa Rita pertencia ao Estado. O MSTR juntou forças com o Estado e também utilizou os tribunais para defender os direitos dos sem-terra com base no Estatuto da Terra, regras do Prorural e outras leis que poderiam ajudar a proteger sua propriedade. Sob o Estatuto da Terra, por exemplo, os arrendatários contratados para trabalhar na gleba tinham direito de ficar na terra até o fim da colheita. Também tinham direito de receber indenização pelas estruturas que construíram para viver e trabalhar, o que criou uma oportunidade para acusar a polícia de violar a lei quando as benfeitorias dos camponeses foram destruídas. A complexidade do sistema judicial do Brasil ajudou os advogados a procurar juízes simpáticos para emitir ordens contra os despejos na última hora (Taylor, 2004). Esses processos romperam com a aplicação fácil do poder a favor dos com-terra e seus aliados na ditadura e ajudaram a prolongar a permanência dos sem-terra até o final do regime. Na avaliação da relação dos sem e dos com-terra durante esse período, o caso Santa Rita revela uma falta de ordem que pode surpreender os que prestaram atenção na propaganda do regime. Apenas a primeira expulsão dos camponeses caiu na expectativa do que seriam as características de uma ditadura. No despejo de agosto de 1973, a Polícia Militar, violentamente, expulsou 47 famílias e destruiu todas as suas benfeitorias. De lá até o fim do regime, as autoridades estaduais e federais pareciam ter muitos mestres, um não mais poderoso que o outro. Qualquer que fosse o peso político de Andrade nos anos 50, seria inexpressivo já em meados dos anos 70. Com alguma justificativa, ele se viu como vítima já que outros grileiros no Pontal, como a família de seu antigo patrão Adhemar de Barros, não estavam sendo perturbados (Santos, 1980). De fato, durante o período, outros suspeitos com-terras no Pontal – para não falar de outras regiões do país – estavam sendo incomodados e de forma muito similar. Cada caso precisa ser pesquisado para revelar as razões. A partir do caso Andrade, daria para entender que a militância dos sem-terra, as políticas de modernização agrícola, o estado duvidoso das escrituras, o ativismo do subprocurador, a diligência do sindicato e da imprensa e o discurso de abertura conspiraram contra os com-terra, que se colocaram, por um momento histórico, em uma situação complicada. Contudo, outros fatores têm que fazer parte da análise. A ambivalência da natureza do desenvolvimento capitalista da região poderia ter contribuído para confundir as autoridades. Nos anos 70, planos se realizaram para levar vantagens do sistema hídrico da região, com sua proximidade aos centros populacionais, para construir barragens e usinas de geração de energia. A empresa estatal de energia (CESP) aumentou seus investimentos no Pontal e necessitava atrair trabalhadores até o local para construir as barragens e usinas. Um modelo de desenvolvimento territorial baseado em agricultura 157

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e não em pecuária era mais compatível. A população dos novos municípios da região estava dividida sobre as mudanças – alguns gostaram da idéia da tranqüilidade e riqueza concentrada que acompanharia o gado; outros imaginavam como gozariam de vários benefícios com a crescente população vinculada a famílias de pequenos agricultores. O prefeito Natalício dos Santos estava a favor de uma maior distribuição das terras e crescimento demográfico, enquanto seu rival, Walter Ventura Ferreira, alegava que os “trabalhadores rurais nada sabem fazer, além de lavrar manualmente a terra” (O Estado de S. Paulo, 1975c). As estatísticas da distribuição das terras na região mostram que os com-terra ganharam no período. Entre 1970 e 1978, Teodoro Sampaio perdeu 78% de suas propriedades rurais. O número de minifúndios, sítios com menos de vinte hectares, caiu 1.659 unidades (de 1.862 para 203). Por outro lado, apenas duas megapropriedades com mais que 10 mil hectares foram criadas durante o período, e o número de fazendas entre vinte e cem hectares aumentou 20%. O geógrafo Leite ligou o declínio dramático do minifúndio ao fim do ciclo de madeira, já que quase todas as madeireiras fecharam, nos anos 70, com o fim da reserva florestal. Os desbravadores, muitos dos quais moravam em lotes de subsistência, sem escrituras, foram deixados sem emprego e migraram para outros lugares. O resultado foi um declínio da área cultivada em quase 10 mil hectares no período. Em 1979, a Secretaria de Planejamento do estado publicou um plano de desenvolvimento regional que confirmou a visão da CESP e adicionou uma usina de álcool, indicando um futuro de concentração de terras não para pecuária, mas para cana-de-açúcar com a expansão de 15 mil hectares do “capim” valioso (Leite 1998, p.184-89). De fato, o período militar acabou mal para os sem-terra do Pontal. O sindicato de Teodoro Sampaio, reconhecido pelo Estado para defender os interesses dos camponeses, tinha feito muito por eles, dentro e fora da “política do possível”. Em aliança com outros indivíduos e instituições, ajudou a realizar seus sonhos de possuir terras. Em 1983, Cruz organizou uma caravana dos sem-terra, para ir de Santa Rita até a capital, para colocar suas demandas ao primeiro governador eleito diretamente pelo povo desde o golpe, Franco Montoro, antigo ministro de Trabalho, que ajudou a formalizar a formação de dezenas de sindicatos de trabalhadores rurais em 1962. Em 1984, Montoro mandou desapropriar a Gleba Santa Rita para poder distribuir as terras entre os sem-terra, uma obra a ser administrada por Denari (FETAESP 1983; Folha de S.Paulo, 1984a; Folha de S.Paulo, 1984b). Mas a oposição à ordem de Montoro foi feroz, e ela não foi cumprida em razão de interferência judicial. Para os sem-terra, a experiência de insegurança da época da ditadura foi constante. Além da advocacia dos Cruz e Denari, é muito difícil achar nas ações do governo provas da contribuição do Brasil à civilização, à cordialidade. Certamente, Andrade, o com-terra do 158

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caso Santa Rita, não mostrou nada disso. Líderes do estado, perseguidos pela mobilização e pela pressão do sindicato, concederam abrigo e, nas palavras de Holanda, demonstraram “hospitalidade … generosidade”, um pouco da “influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”. Mas seria muito complicado encontrar nos motivos de suas ações “um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Dúvidas sobre a existência de cordialidade na relação dos sem e dos comterra durante a ditadura foram definitivamente resolvidas pela realidade documentada pelas estatísticas citadas acima. A concentração da terra e, assim, do poder, foi a onda do futuro.

A NOVA REPÚBLICA Uma das saídas para a crise econômica é fazer a REFORMA AGRÁRIA, pois criará milhões de empregos... por isso, reivindicamos...UMA POLÍTICA AGRÁRIA QUE FAVOREÇA O PEQUENO PRODUTOR, OU ENTÃO SEREMOS OBRIGADOS A OCUPAR ESSAS TERRAS PARA PODERMOS SUSTENTAR NOSSOS FILHOS E CONTINUARMOS SOBREVIVENDO. (ênfase no original) Movimento dos Sem-Terras do Oeste de São Paulo, (Andradina, 04 de junho de 1983). Os acampados vão ocupar o que é deles, plantar, construir casas. As ocupações vão continuar até que os 350 mil hectares grilados no Pontal estejam nas mãos dos trabalhadores. José Rainha Júnior (Teodoro Sampaio – Jornal dos Sem-Terra, julho de 1991).

Antes do fim do regime militar, mais duas organizações começaram a participar do conflito na Gleba Santa Rita: a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Sem-Terras do Oeste de São Paulo (MST do Oeste). A primeira foi a CPT, uma entidade ecumênica criada em 1975 e legitimada pela CNBB. Como descrito acima, a arquidiocese regional se envolveu na luta pela terra da Santa Rita através dos protestos do bispo José. Contudo, em 1974, a hierarquia da Igreja transferiu o bispo para o Rio de Janeiro e o bispo Antônio Agostinho Marochi, mandado para ocupar seu lugar, era conservador e hostil à teologia da libertação. Os padres sob seu controle tiveram permissão para oferecer nada mais que assistência tradicional de misericórdia, fosse aos com ou aos sem-terra. Por exemplo, quando a pressão cresceu para despejar de novo os camponeses de Santa Rita, em 1977, a imprensa relatou que o padre de Teodoro Sampaio foi prontamente “oferecer ajuda aos posseiros se o despejo for executado” (O Estado de S. Paulo, 1978a). Essa situação mudou por um período breve no início dos anos 80, quando o CPT fundou um escritório estadual em São Paulo. Padre José Domingo Bragheto, da diocese de Jardinópolis, em São Paulo, foi indicado para servir 159

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como coordenador, mas raramente conseguiu penetrar no território do bispo Agostinho (Bragheto, 2004). Em 1982, a Realidade Rural, revista da FETAESP, relatou a “solidariedade aos posseiros” do padre Bragheto e revelou que ele tinha visitado os semterra de Teodoro Sampaio recentemente. Um padre da diocese, que não foi identificado, comentou que “a Igreja, consciente de que sua vocação e seu papel se realizam em favor dos pobres, não pode deixar tão grave problema, como é o da terra na região do Pontal do Paranapanema”. Em nome da CPT, padre Bragheto mandou cartas às autoridades, protestando contra a situação dos sem-terra e reivindicando reforma agrária (FETAESP, 1982). Em 1983, o novo padre de Teodoro Sampaio, José Antônio de Lima, informou à imprensa que a CPT não era ativa em sua área (FETAESP, 1983). Em 1986, Bragheto foi despedido como coordenador e, em 1989, o bispo Agostinho ajudou a influenciar a CNBB para criar novas regras para proibir a CPT de militar em qualquer diocese sem assegurar primeiro a licença do bispo. Os com-terra gostaram de Dom Agostinho, como me relatou, em entrevista em 2004, o presidente da UDR, Roosevelt Roque dos Santos (Pereira, 2004; Junandir, 2004; Lima, 2004; Bragheto, 2004; Santos, 2004). A história do movimento dos sem-terra no Pontal reflete diretamente as limitações sofridas pela CPT e pelo STR durante suas experiências na região. Enquanto parâmetros culturais e estruturais, como as regras da diocese e o corporativismo que restringiram a militância das já mencionadas instituições, o incipiente MST sofreu menos obstáculos. Poderia argumentar que Dom Agostinho, ao proibir a militância de seus padres, simplesmente refletiu a cultura conservadora tradicional da Igreja rural. Alguns padres, como José Antônio e João Pereira, procuraram agir sem atrair a atenção do bispo, mas a CPT em si somente veio ter uma existência institucional no Pontal depois que Dom Agostinho se aposentou, em 2003. A natureza estrutural da CPT, como entidade da CNBB – até o final da ditadura, sua capacidade de agir dependeu naturalmente de elementos básicos como escritório e privilégios telefônicos –, teve sua capacidade de operar dependente na hierarquia da diocese. O que quero anotar aqui é que os sem-terra do Pontal não encontraram na Igreja o rosto cordial do patriarca, do irmão mais velho que eles precisaram para ajudá-los a enfrentar os com-terra e o Estado. A primeira base de apoio para o movimento dos sem-terra no oeste do estado veio do padre Renê Parren, um holandês que chegou em 1974 a Andradina, uma cidade ao nordeste do Pontal, para trabalhar como padre entre a crescente população de trabalhadores que chegava à região, atraída pela construção das barragens e usinas hidrelétricas. Em 1978, contudo, casou-se e terminou sua carreira como padre, ao mesmo tempo em que sua obra entre os pobres continuou, bem como sua identidade como “padre” René. Formado na teologia da libertação, Parren se engajou com entusiasmo na luta pela terra, ajudando a mobilizar e fazer pressão, em 160

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1979, para que a Fazenda Primavera fosse desapropriada e fosse criado o primeiro assentamento na região, depois de que o presidente Figueiredo, o último dos presidentes militares, assinou o decreto de desapropriação em julho de 1980 (Fernandes, 1996, p.88-95; Parren, 2005). O sucesso da luta, que contou com alianças com muitas organizações, como a CPT e STRs, inspirou a expansão da campanha pela reforma agrária no território fértil da região adjacente do Pontal. Ironicamente, as proibições do bispo de atuação da CPT provocaram a criação de uma nova organização, estimulando o estabelecimento do MST do Oeste em 1980. Inicialmente, Parren e outros militantes de Andradina procuraram construir uma aliança com o STR de Teodoro para atender à demanda dos sem-terra de Santa Rita. Em abril de 1983, o movimento e o sindicato apresentaram um abaixo-assinado ao governador Montoro, com quatro mil assinaturas de sem-terra do noroeste, que manifestava o desejo de obter terra no estado. Em junho, o movimento mandou uma outra carta ameaçando ocupar terras na região se o governador não agisse rapidamente na desapropriação e redistribuição da terra entre os sem-terra. “Uma das saídas para a crise econômica”, a carta declarava, é fazer a REFORMA AGRÁRIA, pois criará milhões de empregos... por isso, reivindicamos UMA POLÍTICA AGRÁRIA QUE FAVOREÇA O PEQUENO PRODUTOR, OU ENTÃO SEREMOS OBRIGADOS A OCUPAR ESSAS TERRAS PARA PODERMOS SUSTENTAR NOSSOS FILHOS E CONTINUARMOS SOBREVIVENDO.

Uma nota encontrada nas margens da carta, escrita à mão e assinada por Parren, explica que ele aproveitou uma visita do governador ao Pontal para mobilizar uma caravana de trabalhadores rurais para entregar a carta pessoalmente a ele e a seu secretário de Agricultura, José Gomes da Silva, em Presidente Epitácio (Fernandes, 1996, p.95-114; Bragheto, 2004; Parren, 2005; MST do Oeste, 1983). A estratégia de pleitear ao governador e organizar caravanas de semterras para pressionar e personalizar o seu apelo foi tática que já tinha sido utilizada por José Ferreira Cruz e pelo sindicato de Teodoro Sampaio. Alguns analistas criticam o sindicalismo dos trabalhadores rurais como um velho movimento social por usar tais métodos, bem como depender de cartas de reclamação, tornando-se “sindicatos de correspondência” (Coletti, 1998). Mas a carta do movimento comemorou o então recente congresso nacional da Contag que, em 1979, fez da reforma agrária sua reivindicação maior. De fato, por mais de duas décadas a palavra de ordem da Contag foi “Reforma agrária: terra para quem nela trabalha”. Como já vimos, a linguagem dos apelos do sindicato utilizou também a situação desesperada dos trabalhadores rurais e sem-terras para moralmente desafiar o Estado, reclamou da transferência dos custos da crise econômica para as costas dos trabalhadores e apoiou a divisão das terras como uma solução-chave para 161

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os desafios políticos e econômicos do Brasil. As distinções maiores entre os novos e os velhos movimentos estavam centradas na relação das organizações com o Estado e a lei e as responsabilidades que cada uma cobrava de seus membros. Tecnicamente, para ser sócio do sindicato, o trabalhador se qualificava como assalariado agrícola ou dono de uma pequena propriedade de exploração familiar. Os sindicatos fariam parte da estrutura corporativista do Estado e dependiam muito da capacidade de seu presidente em aproveitar processos e procedimentos burocráticos, tudo dentro da lei, com poucas oportunidades para interpretá-la de maneira radical. Como o nome indica, o MST do Oeste de São Paulo se definiu como representante dos sem-terra e o “pequeno produtor”, protagonista na carta, foi entendido como a família (pai, mãe e filhos) e não apenas o patriarca familiar. Alem disso, a carta para Montoro expressou um ultimato, baseado na agilidade do movimento como uma entidade informal, livre das limitações do corporativismo. Se o governador fosse demorar em implementar políticas favorecendo os camponeses, escreveram em letras garrafais, que estariam obrigados a ocupar as terras em questão para alimentar suas crianças e assim preservar sua vida. A ameaça representou uma tática relativamente nova que já vinha sendo uma característica definitiva da organização regional que contribuirá para a fundação do próprio MST em janeiro de 1984 (Fernandes, 1996; Branford, Rocha, 2002; Wright, Wolford, 2003). A primeira ocupação de terras no Pontal começou no dia 15 de novembro de 1983, quando centenas de sem-terra cortaram a cerca para entrar em uma propriedade da família Sebastião Camargo, dono da empresa Camargo Correia, e lá montar um acampamento. Nem o movimento, nem o sindicato, nem a Igreja assumiram responsabilidade pela ação. O político municipal Gerson Caminhoto me relatou que ele e seus assessores no PMDB local ajudaram a instigar a ocupação (Caminhoto, 2004). Mas a fonte mais provável foi Moisés Simeão de Oliveira e seus aliados. Moisés foi um camponês que mudou para a região para trabalhar, como centenas de outros trabalhadores migrantes, na construção de barragens e que ficaram sem emprego nem moradia quando os projetos foram encerrados. Enquanto um assentamento foi estabelecido na beira do rio para os ribeirinhos e camponeses deslocados pelo projeto, os peões em volta de Moisés pleitearam uma solução e, vendo a experiência dos camponeses da Gleba Santa Rita e as histórias dos sem-terra mobilizados no Rio Grande do Sul, resolveram ocupar as terras improdutivas da Camargo Correia (Callado, 2003; Oliveira, 2004). Qualquer que seja a história verdadeira, o movimento e a CPT comemoraram a ocupação e a usaram para reclamar contra as falhas do sindicato e da Igreja em resolver os problemas e procurar a reforma agrária com mais força. O sindicato trabalhou com a Igreja local para ajudar as famílias a negociar com o Estado. A ocupação, que cresceu com a chegada de dezenas de sem-terra do Paraná e de outros estados, ajudou a pressionar o governo 162

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estadual para desapropriar, finalmente, terras no município. Em março de 1984, a imprensa relatou que Montoro chorou quando assinou o ato desapropriando 15 mil hectares de terras nas glebas Santa Rita e Ribeirão Bonito (Folha de S.Paulo, 1984a; O Estado de S. Paulo, 1984). Cruz comentou que agora, oito mil sem-terras virariam com-terras: “O contingente de lavradores à espera de terra em Teodoro Sampaio atinge, hoje, cinco mil pessoas. Somando-se aos outros três mil trabalhadores volantes, temos hoje oito mil pessoas felizes” (Folha de S.Paulo, 1984b). A Nova República, que começou oficialmente com a posse do presidente José Sarney em janeiro de 1985, trouxe pouca mudança da longa saga de relações conflituosas entre os com-terra e os sem-terra no Pontal. Os comterra organizaram manifestações e processaram o Estado no Judiciário e, em maio, a implementação do decreto de Montoro foi interrompida (Folha de S.Paulo, 1984b; O Estado de S. Paulo, 1985a). Em resposta, o MST do Oeste de São Paulo colocou a lei nas próprias mãos dos sem-terra. Organizou a ocupação da Santa Rita em solidariedade com os camponeses ainda resistindo em seus próprios lotes (O Estado de S. Paulo, 1985b). Apesar de sua falta de ligação com a ocupação, Cruz relatou que sofreu ameaças de morte de pessoas vinculadas à recém-formada UDR. Talvez fosse por medo, então, que ele condenou a ocupação e falou, em nome do Incra, que o Pontal não estaria aceitando mais candidaturas para terra de paranaenses e outros migrantes de outros estados (Jornal do Brasil, 1985; O Estado de S. Paulo, 1985c). Cruz resolveu responder à mão repressora dos com-terra de maneira a reafirmar o papel legitimador do sindicato, inclusive sua relação funcional, como ferramenta de controle social de uma entidade executiva do governo, para dizer que as pessoas têm que existir dentro de certas divisas, bem como o território do sindicato foi limitado ao município por estatuto. Dessa forma, o sindicato cumpriu as expectativas de cordialidade, mostrando deferência às estruturas de poder estabelecidas. Em oposição, o MST do Oeste respondeu tomando uma posição ofensiva de enfrentamento diante das intimidações dos com-terra. Em agosto de 1986, Sarney aplicou o Estatuto de Terra de 1964 para apoiar um decreto federal de desapropriação que terminou, finalmente, a longa e trágica história da luta pela terra dos camponeses da Gleba Santa Rita. Foi só nessa ocasião que os sem-terra de Santa Rita do Pontal começaram se tornar com-terra, desafiando, senão invertendo, a ordem social (O Estado de S. Paulo, 1986a). Como tem notado eloqüentemente o sociólogo José de Souza Martins, décadas de transformações econômicas, sociais e políticas levaram o campesinato a seguir “o caminho da ruptura das relações de dependência pessoal”. E ainda: “O rompimento dos vínculos de dependência [deu inicio à] nova cultura dos pobres do campo” (Martins, 1989, p.14-21). Em sua forma mais avançada, a cultura nova emancipa o camponês e possibilita que se torne um com-terra bem-sucedido e consciente 163

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de sua responsabilidade social na luta em favor da ampliação da reforma agrária. Isso foi resultado da transformação de condições estruturais e, como já vimos, a luta prolongada de individuais excepcionais com o apoio de movimentos organizados. Com a diminuição da cultura de dominação e deferência no fundo de cordialidade, novos tipos de homens cordiais começaram a aparecer. Nisso também o MST foi inovador. O MST chegou ao Pontal na pessoa de José Rainha Júnior. Filho mais velho de um camponês do estado do Espírito Santo, Rainha teve pouco tempo para estudar. As terras da família foram perdidas, e ele, como seu pai, precisava ganhar o pão trabalhando para outros agricultores. Sua educação veio através da Igreja Católica. Participando com grupos de jovens em aulas de conscientização da Igreja em Linhares, aprendeu a ler e entender Marx, Lênin e os teóricos da teoria da libertação, entre eles Frei Betto. Como trabalhador rural que se destacou entre os jovens nos cursos de formação, ele foi cultivado para integrar a luta pelo controle do STR de Linhares. Seu papel no sindicato e na criação como camponês fez com que Rainha participasse do primeiro congresso nacional do MST e fosse eleito membro da direção nacional do movimento em 1985. Depois disso, trabalhou em tempo integral na organização de ocupações no Nordeste. Seu sucesso lá atraiu a atenção de adversários, que ameaçaram sua vida. Assim, a direção do movimento o mandou para coordenar o MST no Pontal a partir de 1991 (Barbeiro, Nascimento, 1996; Salgado, Peres, 2003; Rainha, 2004). A presença de Rainha no Pontal foi noticiada pela primeira vez em março de 1991, identificando-o como organizador das 234 famílias que ocuparam a Fazenda São Bento (IMP, 1991). Em julho, o Jornal dos Sem Terra o citou, afirmando: “Os acampados vão ocupar o que é deles, plantar, construir casas. As ocupações vão continuar até que os 350 mil hectares grilados no Pontal estejam nas mãos dos trabalhadores” (JMST, 1991). A experiência de Rainha, a situação duvidosa dos títulos de propriedade da região, bem como sua proximidade da grande imprensa, ajudaram a projetá-lo – e sua esposa. Diolinda Alves de Souza – como militantes camponeses nacionais e a consolidar a imagem do MST como movimento singular dos sem-terra (Novaes, 1997). A grande imprensa é arma da ofensiva hegemônica burguesa, como notam dezenas de estudiosos dos meios de comunicação. Já que a propriedade privada é a base de toda argumentação a favor do sistema capitalista deles, é explicado o foco intenso que deu a mídia às atividades de Rainha e, ao mesmo tempo, a utilidade para o MST em colocar dentro do estado de São Paulo uma liderança com as qualidades dele. A imprensa se posicionou contra a realização de uma reforma agrária de verdade – uma real fragmentação da estrutura fundiária –, e Rainha usou sua oposição para mobilizar a massa para ocupação depois da ocupação. Distinguiu-se por sua agressividade e capacidade de “forçar a barra”. Anotem como a mídia impressa o representou logo depois de sua chegada ao Pontal: 164

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Em 1992 – [Quando] as invasões passaram a ser lideradas pelo Sr. Rainha ... o movimento passou a ser mais agressivo, na forma das invasões as quais passaram a serem realizadas com danos à propriedade invadida. Nessas invasões passaram a derrubar, furtar e ou queimar as cercas e madeiras, queimar e destruir máquinas agrícolas, subtrair e ou matar a criação (Moreira, 1998). Em 1994 – Os invasores já chegaram ateando fogo na invernada, queimando aproximadamente 180 alqueires. Os invasores cortaram aproximadamente seis mil metros de cerca, levaram um botijão de gás, um rádio, caixa de ferramentas, foice, e cinco garrafas térmicas. Nesse dia os invasores mataram oito bois, levando-os em carroças.... (Osvaldo, 1998)

Em 1995, Rainha foi citado em letras garrafais por “ameaçar ressuscitar Canudos”. “Vamos aumentar [a pressão] mais ainda”, falou Rainha. Segundo o Oeste Notícias, um dos dois diários de Presidente Prudente, Rainha se explicou assim: “Poderá acontecer o que aconteceu em Canudos. Porém, desta vez o resultado será diferente: a vitoria será dos trabalhadores. Não sairemos…” (Oeste Notícias, 1995). Segundo outro jornal da região, O Imparcial, os sem-terra não iam desistir. “Não haverá recuo”, falou Rainha, “e se as tropas da Polícia Militar entrarem será a repetição de um Canudos, cem anos depois, só que com a vitória dos sem-terra” (IMP, 1995). Isso foi a voz forte do homem cordial do povo.

CONCLUSÃO Até o final de 1996, quando ocorreu o debate no Canal Rural citado no início deste artigo, Rainha e o MST, mais que nomes familiares, foram astros internacionais. Constantemente perseguido pelas autoridades, Rainha teve na questão da liberdade uma causa que fez dele celebridade mundial. Como instituição popular, o MST ficou com um ranking nacional quase equivalente ao das Forças Armadas e ao da Igreja Católica. Os sem-terra e a imprensa procuraram Rainha como um patriarca capaz e empático, um símbolo do poder do MST. Enquanto o final do século XX quase eliminou o homem cordial de Holanda – o poderoso patrão tradicional do meio rural –, também criou um novo tipo que reproduziu algumas de suas características para poder defender os interesses dos operários e camponeses. O êxito de Rainha foi fundado não só na civilidade que demonstrou na televisão, mas em sua capacidade como um novo tipo de patrão, para quem os semterra – revoltados com as relações tradicionais, mas ainda colados nas teias da cultura brasileira patriarcal – poderiam transferir suas esperanças e fidelidade. Não no sentido de “consciência falsa” criticado por sociólogos como Benno Galjart (1964) e Martins (2000, p.38, n.21), mas precisamente porque reconheceram a pessoa de Rainha e entenderam que seus interesses seriam mais bem servidos pelo MST que pela UDR ou por qualquer outra 165

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personagem ou entidade da classe dominante. Era supremamente irônico que, no debate televisionado, Rainha e não Roosevelt soubesse que não era o momento apropriado para defender a violência. Um homem cordial do século XXI, ele conhecia bem a necessidade de empregar a violência na luta de classes e também a importância de negar esse conhecimento na televisão. Cordialidade foi o conceito utilizado por Holanda e analisado por tantos outros estudiosos para compreender a natureza personalista da vida pública no Brasil durante a transição à democracia depois de períodos de ditadura e dominação militar. As mobilizações de Nestor Veras e a Liga Camponesa de Santo Anastácio refletiram os primeiros passos desse processo dual de transformação das relações sociais. Enquanto a classe dominante rural abandonou a “lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade”, os sem-terra responderam com organização, uma seleção de seus próprios líderes e reivindicações morais. Em outro momento, atacado pela exploração e pelo abandono dos com-terra, o sindicalista Cruz utilizou o personalismo para fazer apelos aos governadores e presidentes pela defesa dos sem-terra e pela proteção de seus direitos. A linguagem de direitos, constrangida como se fosse pela vontade burocrática, legislativa e jurídica, não se provou adequada como substituto para a força, o mecanismo fundamental da cordialidade. Os com-terra sempre ficaram por cima do processo judicial; os sem-terra quase sempre perderam, durando por pouco tempo suas vitórias ocasionais, o que nos lembra de outro truísmo brasileiro, embutido numa frase atribuída a Getúlio Vargas, “Aos amigos tudo; aos inimigos, a lei” (Damatta 1991, p.137-197). O MST, um movimento definido pelos sem-terra em si, viu a lei como opressiva e decidiu desafiá-la com ação direta e um discurso moral. Era moral – era cordial – aceitar uma ordem social que permitiu milhões de pessoas sobrevivendo na miséria, subempregadas, buscando sua subsistência toda hora, gozando de nenhum ganho, conforto ou seguridade? O movimento também apelou à lei suprema do país – a Constituição – para desafiar as decisões dos poderes Judiciário e Executivo. Oportunidades de divulgação nacional, como o debate entre Zé Rainha Júnior e Roosevelt Roque dos Santos, mostraram para o mundo moderno, o mundo de regras e leis, a capacidade do movimento de se comportar de uma maneira civil. No campo, Rainha também mostrou a capacidade cordial do movimento: mobilizar força, articular com os poderosos e jogar pesado com uma equipe de assessores tipo jagunços. Aderindo a essas estratégias, misturando o cordial com o civil, o MST provou durante décadas sua resistência e acumulou ainda mais peso e autoridade com sua persistente autonomia. Líderes como Rainha ficaram, penso eu, como a realização do homem cordial para muitos sem-terra e sem-terra transformados em com-terra através dos êxitos da reforma agrária. A evolução do movimento consolidou uma etapa nova em sua relação com os com-terra e necessitou que o Estado procurasse tratálos de maneira diferente, mais respeitosa. O MST tem se tornado uma das 166

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maiores organizações camponesas no mundo e, apesar de suas novidades, suas ligações com formações sociais tradicionais como a patriarcal merecem maior atenção pelos pesquisadores.

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Os com-terra e os sem-terra de São Paulo

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7 DESMOBILIZAÇÃO E CONFLITO: RELAÇÕES ENTRE TRABALHADORES E PATRÕES NA AGROINDÚSTRIA PERNAMBUCANA* Moacir Palmeira

Neste artigo, pretendemos tão-somente documentar a ocorrência de conflitos num momento de desmobilização política e levantar algumas questões em torno do seu significado. O que apresentamos ao leitor não é o resultado de uma pesquisa sistemática de conflitos entre proprietários de terras e trabalhadores rurais. Quando não, porque uma tal pesquisa seria inviável no período que cobrimos, 1964-74, e particularmente no período em que desenvolvemos nosso trabalho de campo em Pernambuco, voltado para um outro tipo de objeto, que se estendeu do final de 1969 a meados de 1974.1 Os conflitos a que nos referimos se impuseram ao pesquisador que esperava encontrar na Zona da Mata de Pernambuco, quase seis anos depois * O presente texto foi originalmente publicado na Revista de Cultura Política, Cedec, ano 1, n.1, p.41-55. Foi escrito em 1974 para integrar um livro organizado pela dra. Neuma Aguiar para uma editora norte-americana e que, por motivos que fogem ao nosso conhecimento, não foi até hoje publicado. A presente versão com poucas modificações aduziu ao conteúdo do trabalho original, com exceção da sua parte introdutória. A questão da data parece-nos importante, porque de 1974 para cá ocorreram mudanças na região. Como a informação que dispomos sobre esses últimos quatro anos não é suficiente para uma “atualização” do trabalho, preferimos não tentá-la. Pareceu-nos, apesar disso, que, existindo pouca informação sobre o período 64-74 e não tendo havido nenhuma alteração de fundo nas condições de funcionamento da estrutura social, valeria a pena divulgar o texto. 1 Tratava-se, então, de realizar um estudo sobre as mudanças operadas nos sistemas de distribuição tradicionais e suas implicações, dentro dos marcos de um projeto mais amplo intitulado “Estudo Comparativo do Desenvolvimento Regional”, dirigido pelos drs. Roberto Cardoso de Oliveira e David Maybury-Lewis, junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional.

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do desmantelamento das organizações camponesas e em plena reação aos movimentos urbanos dos anos 68-69, um clima bem diverso do que foi efetivamente encontrado. Se os conflitos se impuseram ao pesquisador, foi porque eles estavam de tal modo imbricados no cotidiano dos trabalhadores da região que, qualquer conversa mais livre, que não se fechasse nos artificialismos dos instrumentos de coleta pré-fabricados, teria que passar necessariamente por eles. Até 1971-72, sobretudo quando a onda repressiva chegou ao campo, com a intervenção em vários sindicatos, era difícil, em algumas partes de Pernambuco, encontrar um trabalhador que não estivesse ou que não houvesse estado recentemente às voltas com uma questão na Justiça. Se não era ele diretamente, eram seus familiares, eram seus companheiros de trabalho. Mas as coisas não se limitavam aos casos efetivos, palpáveis, de desrespeito aos direitos dos trabalhadores. O processo de expropriação dos antigos moradores de engenho, cuja expressão mais acabada era a expulsão em massa das propriedades, tinha ido tão longe que a saída do engenho representava uma probabilidade objetiva sobre a qual nenhum trabalhador podia excusar-se de refletir. A impossibilidade da exclusão da mediação representada pelo duplo fato da existência de um processo objetivo, com implicações para o próprio estudo que nos dispúnhamos a fazer, e da existência de uma consciência desse processo entre os trabalhadores rurais foi a primeira razão que nos levou a tentar organizar as informações espontâneas que nos eram dadas. Mas há uma segunda razão para o nosso interesse. Via de regra, só nos lembramos de refletir sobre as lutas sociais em seus momentos mais críticos. Os momentos menos espetaculares daquelas lutas tendem a ser esquecidos. A própria existência da luta costuma ser vinculada aos seus momentos de maior intensidade. Fora dali, ela é considerada inexistente. Ora, os inconvenientes dessa abordagem são patentes. Em primeiro lugar, aceitamos um recorte dos fatos que não é outro que não o dos interessados em esconder a existência de conflitos. A conseqüência disso é a exclusão da hierarquia dos objetos de conhecimento de toda uma larga faixa de experiências vividas pelas classes trabalhadoras. O estudo dos momentos de “desmobilização”, além de recuperar essas experiências, pode nos ajudar a entender o aparecimento ou o desaparecimento de conflitos mais abertos. E, em situações como a que descrevemos, pode nos dizer alguma coisa sobre as mudanças efetivamente operadas no padrão de atuação de uma classe social pela própria movimentação dessa classe numa conjuntura de mobilização política, como foi a do início dos anos 60 em Pernambuco. As tentativas de mobilização de camponeses e trabalhadores rurais de Pernambuco parecem ter começado com a Revolução de 1930. Conta-se que nos primeiros dias da revolução houve saques em alguns engenhos, os saqueadores se proclamando revolucionários (Bello, 1938). A presença maior 172

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ou menor nesses acontecimentos dos próprios trabalhadores não está estabelecida. O que fica claro, todavia, é que essa ação não teve continuidade. Com a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), promulgada em 1943, criam-se os sindicatos de trabalhadores industriais em sua forma atual e, entre eles, os sindicatos dos trabalhadores na indústria do açúcar. Esses sindicatos reuniam aqueles trabalhadores que, nos engenhos e usinas de açúcar, participavam do processo de fabricação de açúcar e das oficinas de manutenção. Apesar de formalmente representarem também os trabalhadores agrícolas das usinas, a eficácia desses sindicatos, se houve alguma para os operários do açúcar, parece ter sido nula para aqueles trabalhadores. Se alguns velhos moradores de engenho2 ainda exibem sua carteira de trabalho obtida na época, seja por uma passagem rápida na indústria, seja por outro qualquer expediente, e falam do tempo de Vargas como o início do “fim do cativeiro”, não há notícia, nem na documentação escrita, nem na própria história oral, de movimentos maiores que tenham contado com sua participação.3 Quando da redemocratização do país, a partir de 1945, surgem formas mais sólidas de organizar os trabalhadores rurais e camponeses ameaçados pelos proprietários de engenhos de açúcar, que se dispõem a retomar suas atividades de organizadores da produção agrícola, após um período de recesso em que existiram com simples rentiers. São dessa época as primeiras experiências de criação de “ligas camponesas” em Pernambuco (Camargo, 1973, p.154; Forman, 1968) a partir de cidades e, aparentemente, por iniciativa de grupos políticos de esquerda. Esse esforço teria sido cortado pela repressão desencadeada contra a esquerda brasileira a partir de 1948, com a ilegalização do Partido Comunista Brasileiro (idem). O que não foi conseguido nas tentativas mencionadas o foi pelo movimento desencadeado a partir de meados dos anos 50, sobretudo depois do conhecido incidente do engenho Galiléia (Callado, 1960 e 1964). As ligas camponesas surgem (ou ressurgem, pois há quem sustente haver continuidade entre elas e as ligas do pós-guerra) na área canavieira de Pernambuco 2

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Moradores são trabalhadores rurais que residem dentro dos engenhos e que estão ligados ao trabalho na cana, dispondo muitas vezes de um lote de terra – sítio – onde plantam por conta própria. O termo engenho designava no passado o conjunto plantação-fábrica e, mais especificamente, a fábrica onde era produzido o açúcar. Hoje o termo é utilizado em Pernambuco, onde os últimos engenhos propriamente ditos deixaram de moer na década de 1950, para designar qualquer grande propriedade que plante cana para fornecer a uma usina. Senhor de engenho: o proprietário de engenho, oficialmente designado como fornecedor de cana. A história do Sindicato de Trabalhadores na Indústria do Açúcar e de sua participação política ainda permanece por ser feita. Até o momento, o que há de mais sistemático sobre o assunto são os depoimentos colhidos por José Sérgio Leite Lopes de líderes sindicais da época e incluídos parcialmente em seu excelente trabalho: O vapor do diabo. O trabalho dos operários de açúcar (LEITE LOPES, 1976).

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entre os chamados foreiros,4 que tinham sua autonomia ameaçada pela “volta ao campo” dos proprietários rurais (Idem). Nessa primeira fase, as ligas recrutam também moradores ameaçados de ser reduzidos à condição de simples assalariados. Sob a liderança de Francisco Julião, as ligas espalham-se, ganham o chamado Agreste (zona de arrendatários e pequenos proprietários), para refluírem depois sobre a zona canavieira. Encontram então a concorrência dos sindicatos rurais, organizados, sobretudo, pela Igreja Católica e por suas associações confessionais e semiconfessionais. Se, no princípio dos anos 60, as ligas disputam com os sindicatos os trabalhadores assalariados ou semi-assalariados da cana, a partir de 1962 a tendência é no sentido de uma especialização: arrendatários e pequenos proprietários congregam-se nas ligas; trabalhadores assalariados vão ao sindicato. O próprio Julião faz recomendações nesse sentido, a corrente política que se estrutura junto com as ligas deve procurar também se impor nos sindicatos (Julião, 1962). Os sindicatos de trabalhadores rurais, de inspiração católica no início, cindidos entre várias correntes político-ideológicas num segundo momento, desenvolvem-se com uma velocidade espantosa. Sua força aumenta com a subida de Miguel Arraes ao governo do estado em 1963. Em julho de 1963 já são muito mais importantes numericamente do que as ligas. Enquanto estas últimas agrupam quarenta mil membros, os sindicatos têm duzentos mil afiliados em Pernambuco (Wilkie, 1964). O Estatuto do Trabalhador Rural, instrumento legal inocente em outras áreas do país, transformou-se na Zona da Mata de Pernambuco, tais eram as condições sociais aí prevalecentes, em uma poderosíssima arma de luta dos trabalhadores. Uma atividade política quase diária da massa rural obrigava os proprietários a se curvarem às disposições do Estatuto, a cumprirem a “tabela de campo”5 estabelecida pelo Governo Arraes.6 4

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Foreiros são pequenos agricultores que dispõem de casa e terra dentro dos engenhos, onde plantam por conta própria, devendo pagar um foro (renda) anual, tendo ainda algumas obrigações definidas para com o proprietário, como aquela de trabalhar alguns dias por ano para a fazenda (cambão). Como a maior parte dos serviços na cana é executada por tarefa, surgiu, para a implantação do Estatuto do Trabalhador Rural (1963), a necessidade de “estabelecer uma relação entre o trabalho efetivamente executado no campo e o salário mínimo regional”. Isso foi feito a partir de uma discussão entre o governo estadual e os representantes de usineiros, fornecedores de cana e de trabalhadores rurais e camponeses (ligas camponesas e sindicatos). Cf. Callado, 1964, p.88 e I-V. Uma idéia do que era essa atividade política no “tempo de Arraes” nos é dada por um trabalhador rural, cujo tom está entre o crítico e o entusiástico, em 1972: “Era mulher, era homem, era menino, tudo agitado, tudo agitado, assim, com aquela danação. Só era aqui no sindicato, aquele fuzuê, aquele fuzuê e os homens (proprietários) tendo raiva ... Vinha um bocado de gente da Flor de Maria. Quando chegou em Potosi, tinha 1.600 homens, entre homem, mulher e tudo. Vinha juntando de grota em grota. Tinha gente trabalhando nos matos, tinha gente trabalhando nos matos cortando madeira que o administrador mandava

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Um estudioso da área chamou atenção para o fato de que os direitos trabalhistas que, na cidade, levaram decênios para ser aplicados, e com imperfeição, no campo em Pernambuco foram efetivados quase que simultaneamente à sua promulgação (Furtado, 1964, p.155). É claro que isso não ocorreu por acaso e que se prendeu a uma conjuntura política específica: avanço das chamadas “forças populares” em termos nacionais; eleição de um governo estadual de propósitos reformistas bem definidos. No entanto, o reconhecimento dessa conjuntura não pode eliminar o peso que seguramente teve a movimentação da massa camponesa na implantação da lei e muito menos a repercussão da incorporação da lei sobre a estrutura social da área e, em particular, sobre as relações de poder entre proprietário e trabalhador. Se, ao contrário dos grandes lances da história regional da época, permanece por ser feita a história da participação camponesa nesse processo em que estava em jogo sua própria redefinição política, a profundidade dessas transformações pode ser apreendida hoje na área através do estudo e eles diziam: “Ah, onde está Fulano de Tal? Tá trabalhando?”. O do engenho dizia: “Ele saiu com o machado pro lado da mata”. “Onde é a mata?” “É por ali, pro lado daquele fogo ali”. Ele dizia: “Vamos buscá-lo!” Não ia somente um não. Aquela turma que tava lá, aquele borbotão de gente emburacava pra lá, trazia o camarada. Se o camaradinha não vinha, ele entrava no cacete mesmo. Ele entrava no cacete e vinha nas costas, morto, assim nas costas. Era. O pessoal que não queria assim, vinha. Chegava aqui, se juntava. Em outro canto de novo. O pessoal tava trabalhando, um pouco mais lá vai de novo aquele fuzuê. “Pára! Eu parava também. Quem é que vai entrar num abismo medonho desses? Aí, só sei que foi se juntando gente. Quando chegou em Potosi até o administrador vinha no meio, vinha. E não era montado no burro. Era de pé. Era com aqueles bofenos, puf, puf, puf. Tinha gente que fazia até vir descalços, sem as botas ... O sindicato tinha delegado do sindicato, tinha delegado do sindicato dos engenhos. Tinha delegado aqui na cidade, no sindicato, e tinha o delegado dos engenhos. Todo engenho tinha um delegado para agir com o pessoal quando tivesse uma braçagem de serviço alterada. Aí, o delegado ia reparar. (...) o administrador dizia: “É cem braços, é cem braços para fazer o serviço”. Um serviço até bom: Tinha vez que as mulheres quando começavam no serviço, pegavam de sete horas, quando era nove horas a mulher tava com a enxada nas costas. “Vamos, Fulana!. “Vamos, Maria”. “Vamos, Amara!. “Vamos, Francisca”. “Vamos, Quitéria”. “Vamos embora. Tou já rapando aqui a beirada do caminho”. Aquela cocadinha deste tamanho era conta. Com braças de serviço num cantinho bom, num instante a pessoa tira. Aí, a que pegava uma beiradinha de caminho ou de brejo mais ruim ou ia conversar demais mais as outras amigas se enrascava mais. Aí, pronto, “vamos fazer greve”. Dizia que o cabo tinha roubado ou botado muita braça pra ela. Corriam as mulheres mesmo, corriam. Chegavam aqui no sindicato, davam parte. Davam parte. Pouco mais, lá vai o carro pra lá. Tinha vez que tinha que quando eram nove horas, 10 horas do dia, o mais mais tardar, já tinham acabado, mas vinham dar parte. (...) As mulheres chegavam no trabalho, um pouco mais diziam: “Vamos fazer uma greve?” Se ajuntavam, se ajuntavam as mulheres. Um pouco mais mais ia chegando uma outra, diziam: “A cem braças nós não pegamos, nós só pegamos setenta braças”. “... Tá certo, nós só pegamos setenta. Quando o administrador mandar o cabo dar cem braças, nós só pegamos setenta. Senão nós paramos”. A outra dizia: “É mesmo, é mesmo”. Quando chegava o cabo, elas perguntavam logo: “Quanto é a braça que vai dar hoje aqui”? Aí, o cabo dizia: Eu vou dar cem braças que é a ordem do administrador”. Aí, elas diziam: “Ah, nós não vamos pegar cem braças não. Nós vamos pegar setenta. Senão nós paramos”.

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do próprio “mapa cognitivo” do trabalhador rural (Sigaud, 1971). Arraes, o sindicato e as “leis” marcam para os trabalhadores rurais e camponeses, não apenas da Zona da Mata, mas de todo o estado, o ponto de ruptura entre duas épocas, delimitando eles próprios um período de subversão completa das relações tradicionalmente estabelecidas e sendo elementos de referência obrigatórios das representações e práticas dos trabalhadores nos dias que ocorrem (Sigaud, 1972).7 A Zona da Mata de Pernambuco, com seus 11.583 km² e seus 1.076.263 habitantes (11% da superfície do estado, concentrando 20% da população), é uma das áreas de colonização mais antigas do país. Voltada sempre para a produção da cana-de-açúcar, conheceu seus dias de apogeu nos fins do século XVI, início do século XVII. A partir daí, tendo que enfrentar a concorrência internacional (os capitais holandeses, franceses e ingleses investidos nas Antilhas), só em raras circunstâncias conseguiu aproximar-se do que fora nos primeiros anos de colonização. Reassumindo uma posição de força no mercado internacional com a revolução haitiana na passagem do século XVIII ao século XIX, conhece altos e baixos ao longo desse último século. Nos primeiros anos do século XX, quando sofria um processo de modernização técnica que lhe poderia assegurar melhores condições de competição no mercado internacional, é atingida pela crise geral que então abala toda a agricultura de exportação do Brasil (Prado Jr., 1962, p.231-61). No caso do açúcar, a crise ligava-se especificamente à ausência de mercados exteriores. Graças, todavia, ao desenvolvimento da agricultura cafeeira, consegue sobreviver, orientando-se cada vez mais para o mercado interno. Depois da Primeira Grande Guerra praticamente cessam suas vendas para o exterior, ao mesmo tempo em que em São Paulo se expande a produção de açúcar a lhe disputar o mercado interno. Nos primeiros anos da década de 1930 a luta entre a produção açucareira paulista e a nordestina já começava a se definir: técnicas mais avançadas e um solo mais rico, maiores disponibilidades de capital asseguravam um custo de produção muito menor ao produto paulista. Essa distância aumentou com o correr dos anos e se a débâcle não veio foi graças à intervenção estatal, com a criação do IAA, que garantiu o preço do produto nordestino. Segundo os técnicos, São Paulo tem condições hoje de abastecer todo o Brasil, inclusive o Nordeste, com açúcar mais barato do que o pernambucano. 7

Para os proprietários rurais estes também são marcos decisivos para sua percepção da história brasileira e tema obrigatório de qualquer conversa. Entrevistamos, em diferentes momentos, um bom número de proprietários. Apesar de o tema das entrevistas não ter nada a ver com aquelas ocorrências políticas, eles faziam questão de desviar a conversa para uma evocação daqueles acontecimentos. Ao lado das esperadas condenações, procuravam sempre acrescentar considerações “muito pessoais” (do tipo “Foi o tempo em que ganhei dinheiro” ou “Não sou contra os sindicatos, mas eles estavam mal encaminhados”, ou ainda “Arraes era bem-intencionado, mas foi envolvido pelos comunistas”) que, curiosamente, são compartilhadas por todos.

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Finalmente, nos últimos anos, Pernambuco está enfrentando um concorrente dentro da própria região: com o aproveitamento das “terras de tabuleiro” para a cana (antes só cultivada nas várzeas), conquista técnica dos anos 50 generalizada na década de 1960, tem crescido a produção do estado de Alagoas. Esse estado, com uma extensão de tabuleiros muito maior que a de Pernambuco, além de apresentar melhores condições de mecanização (canalizando assim uma maior soma de investimentos, uma vez que a mecanização é meta prioritária dos programas regionais de racionalização da agroindústria), tem menores custos com mão-de-obra, já que, sendo aí praticamente inexistente o movimento sindical, os proprietários não têm que arcar com o peso das obrigações trabalhistas. Um dos resultados disso, aliás, tem sido a transferência de capitais da agroindústria açucareira de Pernambuco e, muitas vezes, dos próprios usineiros, para o estado vizinho. A situação da economia canavieira de Pernambuco é, para utilizar um termo muito do agrado dos proprietários rurais da área, dramática. Sem condições de sobreviver sozinha, quer no mercado nacional, quer no mercado internacional, ela tem, graças ao amparo do Estado, se aproveitado de conjunturas favoráveis ao produto em ambos os mercados. Os canaviais têm se estendido, a população dependente da agroindústria açucareira vem crescendo. A conseqüência é que também tem aumentado a escala de seus problemas. Mas a situação é dramática ainda por uma outra razão. Apesar de todos os inconvenientes, o açúcar parece continuar a ser o produto de maior viabilidade econômica na região (Du Genestoux, 1967, p.131-37). Os projetos “técnicos” da reforma agrária localizada que têm sido concebidos não vêm conseguindo superar esse problema. A liberação de terras das grandes propriedades para o desenvolvimento da agricultura de produtos de subsistência, como contrapartida de um apoio maciço do governo à modernização das usinas, “solução” que tem encantado os técnicos,8 parece ser pouco rentável, menos provavelmente pelos investimentos que seriam necessários para a correção de solos, irrigação etc., do que pela presença de uma economia camponesa “marginal” aos grandes domínios, que tem atendido razoavelmente à demanda de alimentos na região e que tem uma flexibilidade que não é dada a uma agricultura “racional” possuir (Palmeira, 1971; Garcia, Heredia, 1972). Mesmo a criação de gado, “solução” que teve boa acolhida entre os grandes proprietários de terra, sobretudo entre 1961 e 1968, parece não ter condições de rentabilidade que a transformou numa 8

Essa tentativa de conciliar os interesses de usineiros e fornecedores, de um lado, e de trabalhadores sem terra ou com pouca terra, de outro, está inscrita nas formulações da SUDENE e de seus dirigentes de antes e depois de 64 (Furtado, 1959: 62; Gomes da Silva, 1971:155) bem como nas metas do Grupo Executivo para a Racionalização da Agroindústria Nordestina (Geran), criado no Governo Castello Branco e extinto em 1971, e do Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Nordeste (Proterra), criado em 1971.

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alternativa à cana (Du Genestoux, 1967, p.134-37). Apesar de a Sudene continuar financiando o plantio de pastos e de as pastagens terem efetivamente aumentado sua área em algumas partes da Zona da Mata pernambucana,9 os usineiros e fornecedores de cana declaram-se desiludidos com a “solução”. Hoje, como ontem, a Zona da Mata de Pernambuco é uma das “áreas prioritárias de reforma agrária”. Um sem-número de tentativas têm sido feitas no sentido de assegurar à agroindústria açucareira de Pernambuco condições de competição no mercado nacional. A agroindústria canavieira paulista, embora não constituindo nenhum exemplo em termos internacionais, conseguiu, através da mecanização e contando com a inexistência de um sindicalismo rural forte, diminuir seus custos de produção, comprimindo suas despesas com mão-de-obra. A agroindústria pernambucana, ao contrário, tem um perfil de custos agrícolas em que a mão-de-obra representa cerca de 70% dos custos totais.10 Mas, sobretudo, ela trabalha com uma mão-de-obra relativamente mais cara do que a empregada pela agroindústria paulista, os sindicatos rurais de Pernambuco impondo o cumprimento, mesmo parcial, das obrigações trabalhistas. Diante disso, só resta aos usineiros e fornecedores de cana de Pernambuco tentarem reduzir de qualquer modo seus custos, a política de crédito do governo e os aumentos de preço do açúcar no mercado interno não sendo suficientes para os proprietários.11 Além de uma luta constante por novos aumentos do 9

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Isso tem motivado pronunciamentos oficiais da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco, através de jornais e de memoriais às autoridades governamentais. Um de seus últimos presidentes declarou-nos, referindo-se à SUDENE: “A SUDENE está para resolver o problema do Nordeste tem 10 anos. Mas, até hoje, nada. Só fazem é financiar plantio de capim pangola. (...) Estão substituindo o homem pelo gado”. “Puisque presque toutes les façons culturelles sont manuelles, et que la coupe l’est entièrement, il n’est pas étonnant que les dépenses em main d’oeuvre représent 50 à 90% das charges reelles dans les exploitations que nous avons visitées. M. Bento Dantas cite le pourcentage moyent de 78,6% contre 49,4% dans les plantations de canne paulistes.” (Du Genestoux, 1967, p.123). “La plupart des exploitations actualles ne peuvent se maintenir à flot qu’en payant des salaires très bas. (...) Le système de production et le régime économique, celui de la plantation, ne pourraient survivre à une augmentation durable du niveau de vie” (Idem, p.127). Ainda recentemente o presidente da Associação dos Fornecedores de Cana de Pernambuco (órgão representativo dos “senhores de engenho”) declarou à imprensa que “o preço da cana continua sendo inferior ao seu valor real”, acrescentando: “Estamos perdendo Cr$ 28,00 em cada tonelada fornecida. Os plantadores do estado se sentem marginalizados, pois o IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) destinou Cr$ 3 bilhões e 5 milhões do fundo de exportação aos industriais (usineiros) e aos fornecedores foram dirigidos recursos na ordem de 450 milhões. Isto representa um confisco puro e simples contra nossos benefícios. O problema maior, no entanto, é o preço imposto para a cana, que é inferior ao seu custo de produção. ... Estão no preço da tonelada de cana 90% dos nossos problemas.” (Jornal do Brasil, segunda-feira, 28/10/74, 1o caderno, p.14). Significativa é a própria apresentação da matéria que contém as declarações acima. Diz o Jornal do Brasil: “Apesar da espetacular valorização dos preços do açúcar no mercado internacional, a agroindústria continua se queixando de dificuldades financeiras”. Um levantamento

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preço do açúcar, os proprietários de usinas e engenhos vão tentar comprimir ao máximo as despesas com a força de trabalho, liberando contingentes considerados supérfluos, aumentando a taxa de exploração da mão-de-obra empregada e tentando burlar de qualquer forma a legislação trabalhista rural12 e a legislação agrária. Finalmente, vão tentar lutar no nível propriamente político pela reformulação da legislação ou por fórmulas que impliquem em sua neutralização.13 Naturalmente, quanto menor o seu poder de barganha junto aos meios governamentais (e a sua importância política tende a diminuir não apenas em termos nacionais (Palmeira, 1966), mas também em termos locais com a entrada de novos atores na cena política),14 maior será a superexploração de trabalhadores rurais e camponeses. Essa situação crítica da agroindústria canavieira já havia alguns anos vinha levando os grandes proprietários, querendo diminuir seus custos de mão-de-obra, a expulsarem os seus moradores (Correa de Andrade, 1964; Furtado, 1964) ou, pelo menos, rompendo as regras do jogo, a redefinirem a posição daqueles trabalhadores.15 Já fazia algum tempo que as relações de salário propriamente ditas vinham se impondo na área e que os proprietários procuravam livrar-se das suas “obrigações sociais” para com os trabalhadores. A promulgação e a implementação na área do Estatuto do Trabalhador Rural acentuaram essa tendência. O movimento político-militar de 1964 foi o sinal verde dado aos proprietários interessados na expulsão de trabalhadores e assustados com as conquistas trabalhistas que assinalaram o

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realizado pelo Jornal do Brasil nos principais estados produtores mostra que aparentemente as razões das queixas se situam no excessivo controle exercido pelo Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) sobre a agricultura e a comercialização da cana-de-açúcar, além do monopólio que dispõe o Instituto sobre as exportações. O presidente do Sindicato da Indústria do Álcool e do Açúcar de Pernambuco (órgão dos usineiros), General Sílvio Cahu, acusa o IAA de absorver 90% dos lucros obtidos na exportação, cabendo à agroindústria apenas 10%. O Estatuto do Trabalhador Rural foi recentemente revogado, sendo estendida ao campo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que até então regia as relações de trabalho apenas nas áreas urbanas. São, por exemplo, as tentativas repetidas da Sociedade Rural Brasileira de mudar o enquadramento sindical, fazendo com que pequenos proprietários se filiem ao sindicato patronal. Uma das mais recentes foi a emenda elaborada por aquela sociedade e apresentada ao Congresso por dois senadores do partido governamental em 1973 (Cf. Jornal do Brasil, 21/5/73). Camargo chama a atenção para a ascensão dos coronéis do Sertão a partir do Estado Novo e para a mobilização das populações urbanas pobres, segundo o modelo populista, que a acompanha (Camargo, 1973, p.143-53). A expulsão de moradores que ocorre na área difere radicalmente da expulsão de mão-deobra conhecida pela plantation nordestina em períodos anteriores. Trata-se de uma expulsão em massa, em que deixa de se colocar para os expulsos a possibilidade de sua absorção por outras unidades produtivas. A eliminação dos sítios e a fixação nas cidades próximas aos engenhos de um grande contingente de mão-de-obra disponível alteram o próprio conteúdo das relações que definem o morador, termo que passa a designar poucos mais que um trabalhador assalariado residindo numa propriedade rural.

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período precedente. No dizer de um trabalhador rural, a expulsão começou “depois que tiraram Miguel Arraia. Ficaram com raiva do trabalhador”. O Estatuto da Terra, a “lei das duas horas”,16 a extensão da aposentadoria ao campo atuaram no mesmo sentido.17 Assim, um dos principais focos de conflito na área continua sendo a tendência dos proprietários a se “desobrigarem” com seus trabalhadores. Os proprietários da Zona da Mata não estão mais aceitando novos moradores em suas terras, preferindo trabalhar por empreitadas. Aqueles que ainda aceitam moradores ou que têm que enfrentar o peso de seus moradores mais antigos não dão terras aos moradores para que estes possam desenvolver alguma “agricultura de subsistência” nas horas livres, como foi prática até determinada época. E, quando o fazem, dão lotes em terras de baixa qualidade, ou, então, situadas a uma grande distância da casa do trabalhador, de forma que se torna impossível para este explorar o pedaço de terra que lhe foi atribuído. Mais ainda: além da clássica proibição do cultivo de plantas permanentes, no mais das vezes os sítios são móveis. O proprietário entrega o lote de terra ao trabalhador coberto de mato. O trabalhador “limpa o mato”, muitas vezes é obrigado a destocar o terreno (serviço considerado dos mais duros na região), planta seu roçado. Uma vez colhidos os produtos do roçado, o proprietário diz precisar da área para plantar cana e desloca o trabalhador para outra parte da propriedade. Note-se que os procedimentos acima não se excluem. O mesmo proprietário se vale de todos eles. E o mesmo trabalhador é sujeito àquelas várias manipulações. Uma grande usina da área que, em 1970, enfrentando dificuldades financeiras, não tinha condições de manter todos os seus trabalhadores permanentes ocupados durante toda a semana, dando apenas “três dias de serviço”, resolveu, e disso fez publicidade, ceder terra aos seus trabalhadores em cumprimento à “lei dos dois hectares”. E o fez 16

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Trata-se de um decreto do presidente Castello Branco, de 1965, que retoma determinação do Estatuto da Lavoura Canavieira, de 1943, no sentido da “concessão ao trabalhador, a título gratuito, de área de terra suficiente para plantação e criação necessários à subsistência do lavrador e de sua família”. O decreto, que imediatamente mobilizou os sindicatos de trabalhadores rurais da área, foi regulamentado em 1968, sendo dado um prazo de 90 dias para que as empresas apresentassem plano de doação de terras. Isso nunca chegou a ser feito e o decreto virou letra mortal (CRESPO, 1972). Todavia, entre 1965 e os dias que correm, os proprietários acautelaram-se contra a efetivação daquela medida jurídica, livrando-se de seus moradores, uma vez que o decreto se aplicaria, segundo Gomes da Silva, “aos trabalhadores com mais de um ano de serviço contínuo” a quem os plantadores de cana teriam que conceder “até dois hectares de terra, próximos à sua moradia, destinados à produção de gêneros de subsistência”. (GOMES DA SILVA, 1971, p.210). A extensão da aposentadoria aos trabalhadores rurais provocou reação imediata dos proprietários, a julgar pelas sucessivas denúncias apresentadas por sindicatos e federações. O simples anúncio da lei, segundo o presidente da Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco, já provocou ameaças de expulsão (Cf. “Sindicato sugere ajuda a aposentado”, Jornal do Brasil, 22/06/72).

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efetivamente. Simplesmente, os lotes ficavam em média a uma distância de seis quilômetros da casa dos trabalhadores, as terras eram esgotadas ou cobertas de capoeiras, eram proibidas as culturas permanentes e os lotes eram móveis. Poucos trabalhadores se interessaram por receber o lote em tais condições, o que foi interpretado pela usina como uma prova do desinteresse dos trabalhadores por terra e de sua falta de disposição para o trabalho.18 Mas esse é apenas um lado de um processo mais vasto. Sempre que pode, o que o proprietário faz é simplesmente expulsar os seus moradores, dando-lhes uma indenização irrisória (em termos do que eles teriam direito pela lei), ou, o que talvez seja mais freqüente, nenhuma indenização. Mas essa expulsão pura e simples nem sempre pode ser tão simples e nem sempre se faz da mesma maneira. Muitas vezes o proprietário começa opor “cortar o sítio”, isto é, pedir de volta ao morador parte da terra que lhe havia sido concedida para “cobri-la com cana”.19 A tentativa aí é de, tornando inviável a pequena agricultura do morador, forçá-lo a procurar outro “engenho”. Outras vezes o proprietário pede de volta toda a terra, deixando que o morador lhe fique apenas vinculado pelo salário. Nos casos mais extremos (pouco freqüentes nessa região), o proprietário passa a exigir um aluguel pela casa ocupada ou simplesmente manda que procure outra casa em algum lugarejo próximo, embora continue a manter o contrato de trabalho ou, este não existindo, o emprego. Ou então, não conserva a casa do morador, deixando-a cair. Essas práticas constituem, muitas vezes, fases de um mesmo processo de expulsão. Mas isso não se dá necessariamente, o mesmo proprietário se valendo apenas de um mecanismo ou, ao contrário, de vários mecanismos para trabalhadores de diferentes tipos. Mas não são apenas a casa e o sítio que servem de pretexto à expulsão. Em algumas áreas da Zona da Mata (mais precisamente na chamada “mata sul”, onde a propriedade é mais concentrada, onde a cana tem um caráter maior de exclusividade) (Correa de Andrade, 1964, p.98-126), alguns daqueles mecanismos deixaram mesmo de ter sentido, uma vez que os “sítios” já não mais existiam ou não tinham grande significação quando nos últimos 18

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Toda outra era a visão de um trabalhador dessa usina a quem tinha sido oferecido um sítio: “O administrador do engenho ofereceu sítio, mas em terra ruim que não dá nem fava que é a planta mais braba que tem. A terra é dura que nem a parede. É uma terra que só dá cana que é planta de muita raiz. ... Dão a terra pro trabalhador limpar para os usineiros virem depois e plantarem”. Além disso, o sítio ficaria muito longe. Por isso, não quis terra. E acrescentou: “A usina dá os sítios pra quando o Governo passar ver que tem sítio para os trabalhadores”. Achava esse mesmo trabalhador que os proprietários “dão a terra ruim para forçarem o trabalhador a tirar qualquer tipo de conta. Porque, se o trabalhador tivesse terra boa e roça boa, podia se recusar a tirar conta em que fosse explorado”. Mas se a terra é ruim “o homem não tem a que se apegar”. Essa imagem de um avanço físico dos canaviais sobre os quintais dos moradores talvez seja a modalidade mais freqüente pela qual é pensado o processo de expropriação dos moradores.

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anos se acentuou o processo de expulsão dos moradores. Aqui, o mecanismo vai ser a “expulsão por faltas”. O proprietário oferece ao trabalhador apenas dois ou três dias por semana ou, o que é mais comum, atribui ao trabalhador tarefas cujo cumprimento exigem mais de um dia de trabalho. Como a remuneração é por produção, havendo uma correspondência entre a produção e o salário mínimo correspondente a um dia de trabalho, o trabalhador, apesar de trabalhar seis dias, é “apontado em folha” como tendo trabalhado três. Além de ganhar menos, o trabalhador, no fim de um certo tempo, é despedido, “dentro da lei”, por ter faltado ao trabalho mais de trinta dias. Ou então, pagando um preço mais alto pelo trabalho executado através do empreiteiro, o proprietário estimula a saída do morador do engenho. Há também a “marcação no trabalho”, isto é, as queixas constantes do trabalho que estaria sendo malfeito pelo morador e a “mudança de serviço”. Este talvez seja o mecanismo mais usado ultimamente e consiste em, fundado num caráter supostamente desqualificado do trabalho agrícola, o proprietário exigir de seu morador que cada dia faça um serviço diferente, inclusive aqueles para os quais não tem o mínimo preparo ou que envolvem risco de saúde. No momento em que o trabalhador se recusa a fazê-lo, manda-o embora, alegando estar ele recusando-se a trabalhar. A aceleração do processo de expulsão nos últimos 10 anos, proclamada por proprietários e trabalhadores, não significa que essa expulsão esteja se fazendo sem luta. Os sindicatos têm procurado, jogando com a legislação existente, descobrir meios de fixar o trabalhador à terra ou de aumentar sua capacidade de resistência, criando, através de programas cooperativistas, formas de acumulação que os tornem presas menos fáceis dos grandes proprietários. Os moradores, por sua parte, reagem à expulsão ao longo de todos os seus momentos. O mais comum como reação do trabalhador à intimação do proprietário para que desocupe o sítio ou a casa talvez seja ignorá-la e esperar que o proprietário e seus “vigias” (espécie de polícia privada) destruam seu roçado ou destelhem sua casa para ir procurar o sindicato ou a Justiça. Outros, diante da simples ameaça, já comparecem ao sindicato, que os instrui sobre como comportar-se e preparar muitas vezes o “flagrante” (peça importante no desdobramento posterior da questão na Justiça). Há, todavia, aqueles que, ameaçados, saem para, num segundo momento, reivindicar indenização pelas benfeitorias que abandonaram.20 Paradoxalmente, Justiça e sindicato estão presentes aqui desde o primeiro ato. Não apenas os moradores têm sido expulsos. Os foreiros também vêm sendo atingidos. Trata-se de pequenos arrendatários que exploram um lote de terra, maior que o concedido a moradores, dentro de terras de engenho ou fazenda onde moram, pagando por isso uma renda anual (foro). No passado 20

Para um tratamento sistemático dos diferentes momentos em que se desdobram esses conflitos, ver Echenique, 1974.

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eles tinham outras obrigações para com o patrão, de que o exemplo mais conhecido é o cambão (trabalho gratuito durante alguns dias do ano nas terras exploradas diretamente pelo proprietário). Mas tais obrigações, questionadas desde o início da mobilização camponesa, praticamente desapareceram a partir de 1963. Nas palavras dos trabalhadores rurais: “Depois de Miguel Arraia ninguém paga condição, ninguém para foro, ninguém paga cambão”. “Quando começou o sindicato, fomos tirando o cambão, fomos tirando a condição do espinhaço da gente”. Muitos desses forasteiros cultivavam plantas permanentes. No norte da Zona da Mata eles ocupavam principalmente as chãs (espécie de tabuleiros), que eram consideradas imprestáveis para a cana, onde produziam frutas, legumes e farinha de mandioca para o consumo dos centros urbanos da região. A valorização dessas terras – determinada não apenas pelo aparecimento de aproveitamento de chãs para o plantio de cana, mas também pelo “granjismo”, isto é, estabelecimento de propriedades de citadinos para “fins de semana”, onde se desenvolvem a fruticultura e a criação de aves – levou os proprietários a promover a expulsão dos foreiros. Num primeiro momento, o procedimento mais comum parece ter sido o aumento do foro. Impossibilitado de pagá-lo, o foreiro se via obrigado a buscar terra em outra parte. Com o surgimento das ligas e dos sindicatos, a coisa tornou-se mais complicada para os proprietários. Foram buscados mecanismos mais sutis, como a “recusa do foro”. Querendo eliminar o foreiro, o proprietário recusa-se a receber o foro. Algum tempo depois, armado de algumas testemunhas, vai à Justiça e pede a expulsão do “invasor” ou de quem rompeu o contrato deixando de pagar o que havia sido estipulado. Mas os foreiros têm a sua resposta. Se o proprietário se recusa a receber o foro, vão ao sindicato individualmente ou em grupo, e, através do sindicato, passam a depositar o foro na Justiça. É relativamente comum entre as lideranças sindicais na área haver queixas quanto ao “individualismo” dos foreiros e pequenos proprietários. Esse individualismo seria manipulado pelos patrões quando da ocorrência de conflitos, através de propostas de soluções em separado que enfraquecem a própria posição de barganha dos foreiros envolvidos num conflito determinado quando diminuem a possibilidade de atuação do sindicato em tais circunstâncias. Essa imagem, sem dúvida, transcende os limites das representações desses líderes sindicais e poderíamos mesmo dizer que corresponde a uma imagem do camponês, dominante não apenas no nível da sociedade nacional, mas que encontra acolhida nos meios acadêmicos internacionais, onde tem dado lugar a debates intermináveis. Talvez por isso seja conveniente relativizá-la em termos do caso concreto que estamos analisando. Francisco Julião (Julião, 1962, p.50-68) chamou a atenção para o fato de que, sendo esses foreiros e pequenos proprietários menos dependentes dos grandes proprietários e menos pobres que os simples assalariados, podem apresentar maiores condições de resistência à ação daqueles grandes 183

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proprietários. Uma comparação da duração dos conflitos entre foreiros e grandes proprietários com aqueles entre estes, o que poderíamos chamar, com as devidas reservas, de trabalhadores assalariados, mostra-nos serem os primeiros muito mais longos, arrastando-se durante anos, sem que o foreiro tenha que aceitar as pretensões do proprietário. Por outro lado, é difícil encontrarmos um foreiro ou pequeno proprietário que não trabalhe ou que não tenha trabalhado na época da safra da cana nos engenhos e usinas como assalariados.21 Os conflitos prolongados, em que os foreiros têm que enfrentar a tentativa constante dos proprietários de dividi-los, implicam em defecções, mas também parecem gerar mecanismos de controle social que diminuem essas defecções e um certo espírito associativo, muitas vezes tão ou mais acentuado que aquele existente entre trabalhadores assalariados,22 o que dá sentido à afirmação aparentemente contraditória daqueles mesmos líderes sindicais de que, uma vez convencidos a associar-se ao sindicato, o foreiro e o pequeno proprietário convertem-se nos associados mais compenetrados com que podem contar os sindicatos. A expulsão dos moradores cria, nas cidades vizinhas, um grande contingente de mão-de-obra, sem vinculações em termos de emprego, que vai concorrer com os moradores que permanecem dentro dos engenhos, instaurando também entre esses últimos um regime de semi-emprego, pressionando-os a aceitar as condições de trabalho impostas pelo patrão. Essas condições implicam, como veremos, desde a aceitação de salários mais baixos até a aceitação do pagamento fora de folha, o que lhes retira todas as garantias da lei. O trabalho por empreitada, já utilizado em larga escala em outras áreas do país, como São Paulo e Paraná, não era desconhecido na Zona da Mata antes dos “direitos”. No entanto, não constituía até 63/64 um procedimento muito generalizado e dele se valiam os proprietários apenas em épocas de safra. Os empreiteiros então não constituíam nem mesmo uma mediação necessária entre os trabalhadores safristas (na época, sobretudo do Agreste) e os proprietários. Tendo, quase sempre, que utilizar mão-de-obra adicional no período de colheita, os proprietários “trabalhavam” tanto com 21

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Um dos suportes desse trabalho sazonal é a própria complementaridade dos calendários agrícolas da cana-de-açúcar e dos “cultivos de subsistência” dos camponeses do Agreste e da própria Zona da Mata, os períodos de maior intensidade de trabalho na cana coincidindo com os de menor intensidade na economia camponesa, e vice-versa (Cf. CORREA DE ANDRADE, 1964, p154-71). Ainda mais que os moradores não estão isentos de manipulações para dividi-los. Imersos em relações de “patronagem” com o proprietário, o caráter coletivo do seu trabalho pode ser compensado pela natureza particularizante dessa relação. Isto, aliás, não é nenhuma característica particular dessa área (Cf. WOLF, 1964). Uma das atitudes do morador que mais dificultam sua adesão ao sindicato ou, uma vez membro do sindicato, a utilização do sindicato contra o patrão, é ver como uma covardia muitos enfrentando um só. Dentro dessa lógica, opta muitas vezes por um afrontamento individual, com o patrão, onde a violência física, ou a sua possibilidade, pode ter o seu lugar.

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empreiteiros como com trabalhadores que se apresentavam diretamente nos engenhos ou que eram recrutados por seus empregados, membros da hierarquia das usinas. Após o aparecimento dos “direitos”, o “trabalho com empreiteiro” tornou-se praticamente a regra, e não apenas nos períodos de safra. Mesmo os trabalhos de plantio e limpa têm sido entregues aos empreiteiros. O “trabalhador de fora” que se apresenta diretamente aos proprietários é mandado procurar o empreiteiro. Nos últimos anos, com a generalização do trabalho por empreitada, os trabalhadores que permanecem morando dentro dos engenhos estão sendo atingidos pelos efeitos da expulsão através de uma outra modalidade que não a da presença de um “exército de reserva”: muitos proprietários condicionam a permanência daqueles trabalhadores em suas casas à sua vinculação a um empreiteiro. Essa atitude é mais freqüente ainda com relação aos filhos dos moradores, quando eles atingem a idade adulta são postos diante da alternativa: sair do engenho, sem condições de requerer indenização alguma, ou permanecer na casa dos pais, mas trabalhando com um empreiteiro. O empreiteiro pode ser um free-lancer ou um ex-trabalhador de engenho que o proprietário ou um membro da hierarquia da usina encarrega de conseguir “trabalhadores clandestinos” que lhes possam assegurar menores despesas, livrando-os das obrigações legais. O “clandestino” é o trabalhador não fichado, sem carteira de trabalho (ou com a carteira fora de uso), sem vinculação de nenhuma espécie (legal ou pessoal) ao proprietário, empregado pelo empreiteiro. O “clandestino” é “desconhecido” pela usina ou pelo engenho. A usina paga ao empreiteiro, que tem sua carteira assinada e que sofre os descontos legais.23 O empreiteiro, depois de tirar sua parte, paga aos trabalhadores de acordo com as tarefas executadas a um preço previamente combinado. Esse preço, sempre inferior ao salário mínimo legal, dá, entretanto, a alguns trabalhadores a possibilidade de ganhar mais do que conseguiriam “dentro da lei”, uma vez que não são descontados e que o empreiteiro não limita o trabalho (prática comum nos engenhos, onde o proprietário nunca deixa que o morador faça mais do que um salário mínimo). Ainda que o empreiteiro seja objeto de ódio da parte de muitos trabalhadores, sobretudo dos trabalhadores “fichados” para quem representa uma dupla ameaça, ameaça da concorrência e ameaça de um futuro próximo possível sem direitos, essa sua “liberalidade” com relação aos limites do trabalho e da remuneração do trabalhador assegura-lhes certo prestígio entre determinados grupos de trabalhadores. O trabalho com empreiteiro não teve apenas conseqüências econômicas. Generalizando-se num momento em que os sindicatos rurais se encontra23

Atualmente, o empreiteiro, como os trabalhadores, só desconta a “contribuição sindical”. Durante o ano de 1970 deveria descontar também a contribuição para o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).

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vam desarticulados pela repressão imediatamente posterior a 1964 e num momento em que o desemprego na área atingia grandes proporções, com a falência e o fechamento de várias usinas, ele contribuiu para afastar o trabalhador do sindicato. Se, em 1962-63, ter a carteira de trabalho regulamentada era quase uma condição para obter trabalho, em 1964-65 era o inverso. Só tinha praticamente condições de acesso ao trabalho o trabalhador sem vinculações ao sindicato e disposto a abrir mão de prerrogativas legais. Assim, além de ser suspeito ao proprietário o trabalhador que freqüentava o sindicato, havia uma pressão muito grande no sentido de os trabalhadores abdicarem de seus direitos. Uma vez rearticulados, os sindicatos passaram a combater o trabalho com empreiteiros, utilizando como arma o Estatuto do Trabalhador Rural, que proíbe aos proprietários rurais utilizarem trabalhadores que não estejam “fichados”. O combate, que foi particularmente intenso em 1970, ano em que os trabalhadores rurais foram incluídos no sistema INPS, teve algum êxito. O Estado, que também era burlado com as empreitadas (os trabalhadores deixando de pagar taxas em seu benefício), foi atingido pela campanha. O Ministério do Trabalho concentrou, por algum tempo, suas atenções sobre a área, levando algumas usinas a pagarem multa de alguma monta.24 O relativo sucesso da campanha reforçou o prestígio dos sindicatos. Mas os proprietários naturalmente encontraram uma fórmula para contornar esse obstáculo. Dificultado o emprego da empreitada em algumas áreas, começaram a “trabalhar” com contratos de curta duração, “por contrato”, para usar a expressão dos trabalhadores. Seguindo o exemplo dos empresários urbanos, contratam trabalhadores por um prazo de, no máximo, seis meses. Ao fim dos seis meses, “demitem” o trabalhador e o “readmitem” por mais seis meses, e assim por diante. Ficam, pois, desobrigados de pagar 13o (o décimo), repouso remunerado, indenização quando da despedida dos trabalhadores etc. Mas as empreitadas não desapareceram e foram mesmo revitalizadas com a substituição do sistema INPS pelo Prorural, fórmula encontrada pelo governo para conciliar seus interesses fiscais com a resistência dos grandes proprietários, deixando subsistirem algumas vantagens para a massa rural.25 24

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Queixava-se nessa época um usineiro: “Todas as usinas trabalham com empreiteiro, mas foi aqui que a Polícia Federal resolveu bater, exatamente na única vez que usamos empreiteiro”. O presidente do sindicato que teria feito a denúncia por sua vez dizia que “tinha ordem da Delegacia do Trabalho de não discutir com o proprietário e encaminhar tudo ao Ministério do Trabalho. (...) Quando um proprietário é apanhado usando empreiteiro, ele é obrigado a pagar uma multa ao INPS e fichar os clandestinos”. “Continuavam, porém, as reivindicações dos obreiros e as constatações dos poderes competentes do que mais havia e se deveria fazer. (...) Por isso, partiu-se, depois de estudos e debates, de críticas e de aplausos, à esquematização do Decreto-lei n.564, de 1 de maio de 1969, no qual se constituiu o Plano Básico de Previdência Social. (...). No entanto, o Decretolei n.564 começou a ter os seus tropeços, de início. Sendo de aplicação regional, limitado à

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A expulsão de moradores não é a única fonte de conflitos. Ela coexiste com conflitos que se ligam às novas formas de exploração da força de trabalho nas condições concretas de funcionamento da economia açucareira. Muitas vezes, os mesmos mecanismos usados para forçar o trabalhador a abandonar o engenho são também acionados com o sentido de comprimir seu salário e de fazê-lo “perder os direitos”, isto é, perder direito às vantagens trabalhistas que lhe são asseguradas pela lei. Assim, os “três dias de serviço” que já mencionamos são utilizados com grande freqüência para evitar que o trabalhador – uma vez tendo tido um certo número de “faltas” – receba o “remunerado”.26 Mas o enfrentamento entre proprietários e trabalhadores dá-se, antes de mais nada, no nível mesmo do processo produtivo. É aí que se coloca para os proprietários a possibilidade de continuarem a ser proprietários, dadas as condições mesmas da área a que já fizemos referência. Não está em jogo para eles apenas extrair a mais-valia de seus trabalhadores. É uma questão de sobrevivência para eles enquanto tais, e o é cada vez mais, diminuir a parcela correspondente ao “trabalho necessário” no valor produzido pelos trabalhadores, assegurando-se de uma mais-valia “extra” (em termos do sistema como um todo). Sem essa superexploração da força de trabalho, que se vai manifestar num esforço constante de burlar as leis referentes ao trabalho no campo, os usineiros e fornecedores de cana não teriam condições de se manter na cena econômica, pois a proteção governamental é cada dia relativamente menor. É esse caráter de superexploração que acompanha a extração da maisvalia nas condições específicas dessa região que vai definir as relações de oposição entre trabalhadores e proprietários. Os trabalhadores de cana definem sua luta diária como uma luta contra “o roubo dos patrões”, for-

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área da agroindústria canavieira (uma vez que seus próprios autores queriam testar a sua viabilidade), de imediato evidenciou-se a justeza da crítica que se vinha fazendo. Os empregadores, devendo recolher para o Plano, assim como descontar dos seus empregados (sistema urbano), simplesmente faziam desaparecer de folhas de pagamento, de livros de registro, os assalariados, restringindo seu número oficial a limites praticamente absurdos. Fraudavase o sistema. (...) De resto, sabemos todos que um país com as dimensões, as distâncias brasileiras, é um país praticamente impossível de ser fiscalizado. Sabendo ademais, que, para tais funções, são pequenas as verbas com que conta o Ministério do Trabalho, sendo, por isso, restritos seus recursos materiais e humanos, vimos quão rara seria a fiscalização no meio rural, se ela já não é das mais eficientes no coração da cidade. Assim, o Decreto-lei n.564 foi torpedeado pela prática de sua aplicação. (...)” (...) “Finalmente, no entanto, editou-se a Lei Complementar no 11 de maio de 1971... dando uma fórmula nova em tudo quanto se fizera e instituindo o Prorural (Programa de Assistência ao Trabalhador Rural). Buscava-se cobrir o custeio com dois por cento que se deduzia da primeira operação do produto agropastorial acrescido de 2,4%... mensalmente recolhidos pelas empresas urbanas e calculado sobre a folha de pagamento delas. (...)” (Chiarelli, 1972, p.44-7). Remunerado é como os trabalhadores da área designam o “repouso semanal remunerado” que lhes é assegurado pela lei brasileira.

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mulação essa que tem sua contrapartida entre os proprietários no que eles chamam o “roubo do trabalhador” e o “roubo do governo”, para designar os artifícios que seriam usados pelos trabalhadores com o intuito de não cumprir as tarefas que lhes são atribuídas e o “confisco” pelo governo, através do preço diferencial do açúcar no mercado interno e no mercado externo, de parte da mais-valia extraída aos trabalhadores. É muito comum ouvir-se um trabalhador dizer que “as leis (trabalhistas) são boas. O que falta é aplicá-las”. Só que a aplicação dessas leis parece incompatível com os padrões de operação da agroindústria açucareira de Pernambuco. Das três fases do ciclo agrícola da cana-de-açúcar (plantio, limpa e corte), as duas últimas são decisivas para o trabalhador. É com a limpa dos canaviais que ele permanece ocupado durante a maior parte do ano. É no corte, trabalhando por produção, que ele tem a possibilidade de fazer o seu “pé-de-meia”. Desde que, a partir dos anos 40, se generalizou o sistema de remuneração do trabalhador por produção, inicialmente sob a forma da tarefa (área quadrada com 25 braças27 de lado, onde um homem trabalhava de dois a quatro dias) na limpa e do cento (remuneração pelo número de centos de feixes de vinte a trinta canas cortados e amarrados por um trabalhador) no corte, posteriormente sob a forma de conta (área de 10 por 10 braças, coberta por um homem em um dia ou menos) na limpa, e da tonelada (remuneração pela quantidade de toneladas cortadas por um indivíduo) surgiram problemas com relação a essas medidas, uma vez que, dadas determinadas condições do terreno, do mato, da qualidade da cana etc., o dispêndio de trabalho é maior ou menor para cumprir as tarefas estabelecidas. As “tabelas de campo” elaboradas em 1963, durante o Governo Arraes, e em 1964, depois do movimento militar, refletem bem a dificuldade de conciliar os interesses de proprietários e trabalhadores, sobretudo a partir do momento em que o salário mínimo passava a ter valor para o campo. Essas “tabelas”, que estabelecem a equivalência entre as tarefas pensadas em termos daquelas medidas (conta e tonelada) e o salário mínimo regional, nunca chegaram a ter o valor de “contratos coletivos de trabalho”, apesar de assinadas pelos representantes legais dos trabalhadores e dos proprietários, permanecendo apenas como ponto de referência na arbitragem de conflitos locais. A tabela de 1964 procura detalhar ao máximo as condições em que uma determinada medida tenha vigência. Todavia, essas especificações, antes de evitarem controvérsias, fornecem um elemento a mais para que elas se dêem – e possivelmente não poderia ser de outra forma – ao abrirem todo um leque de possibilidades de manipulações diferenciais da letra do acordo.28 27 28

A braça corresponde a 2,20 metros. A transcrição dos termos da tabela de 1964 referentes à limpa pode dar-nos uma idéia dessas possibilidades de manipulação: “Art. 23:

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Uma fonte permanente de conflitos na área é a “tarefa exagerada”, expressão dos trabalhadores valendo-se do termo tarefa que designa uma área muito maior do que a conta, para nomear as contas dadas pelos proprietários que ultrapassam as medidas estabelecidas pelo uso e/ou pela tabela. As divergências a respeito do tamanho da conta são diárias, uma vez que as contas são dadas cada dia. Quando o trabalhador chega pela manhã ao trabalho e já encontra sua conta medida pelo cabo (medidores responsáveis por “turmas” de trabalhadores, representando um escalão imediatamente acima do simples trabalhador na hierarquia do engenho), pode recusar-se a aceitá-la. A conta tem que ser medida na sua frente. Mas este é apenas o primeiro ato. O segundo diz respeito ao tamanho da conta propriamente. Os proprietários (ou os seus representantes) costumam recomendar aos cabos que dêem aos trabalhadores contas em terrenos acidentados ou cobertos de mato, medidas em termos de terrenos planos ou limpos. Além disso, o cabo usa, quase sempre, uma vara de medir (pedaço de madeira longo e fino que deveria corresponder a uma braça) cujo comprimento não corresponde à metragem legal e/ou usual. Em tais circunstâncias, trabalhadores, que freqüentemente têm suas próprias varas, recusam-se a “pegar a conta” e ameaçam voltar para casa ou ir ao sindicato. O acordo que se estabeleça aí, entretanto, não põe fim às disputas. Se o trabalho não é feito ao gosto do patrão, o trabalhador pode sofrer o corte da conta. Isso quer dizer que, se a cana não foi limpa com perfeição (e os critérios de “perfeição” naturalmente oscilam) no todo ou em parte, o cabo não aponta (isto é, não lança sobre sua caderneta de controle do trabalho) o serviço do trabalhador, que não terá então o seu dia computado quando da elaboração da folha de pagamento e não poderá comprar adiantado no barracão do engenho, como de praxe. Finalmente, há um permanente cuidado do proprietário em “apertar o serviço”. Se, num determinado dia, um trabalhador com melhores condições LIMPA DE CANAS DE PLANTA: Em terra gradeada ....................................................................................................1,00 conta Em terra não gradeada, com o mato duro em terra dura .......................................0,50 conta Em terra não gradeada, com mato duro em terra mole .........................................0,60 conta Em terra não gradeada, com mato mole em terra dura..........................................0,70 conta Em terra não gradeada, com mato mole em terra mole .........................................0,80 conta Em terra não gradeada, em terra de barro solto ou areia .......................................1,00 conta Limpa sapateada com muito mato ..........................................................................0,80 conta Limpa sapateada com pouco mato .........................................................................1,00 conta Limpa correndo a enxada ........................................................................................2,00 contas Art. 24: LIMPA EM CANA DE SOCA: Mexendo a palha......................................................................................................1,50 conta Cobrindo tocos estrovengados ................................................................................1,00 conta Chegando a terra ao toco ........................................................................................1,00 conta (SINDICATO DA INDÚSTRIA DO AÇÚCAR NO ESTADO DE PERNAMBUCO/ FEDERAÇÃO DOS TRABALHADORES RURAIS DE PERNAMBUCO, 1964, p.4-5) Os números correspondem à quantidade de contas equivalentes ao salário mínimo regional.

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físicas ou que tenha conseguido uma conta em terreno melhor ou com menos mato termina o serviço muito antes dos demais, no dia seguinte as contas passam a ser fixadas em função da capacidade do trabalho daquele trabalhador privilegiado, do super-homem, como dizem os trabalhadores. Se o corte da conta resulta muitas vezes em violência física ou na saída do engenho, contra o aperto do serviço, os trabalhadores, não dispondo mais, como na conjuntura anterior do recurso da greve, passam a “remanchar no serviço”, de forma que todos terminem mais ou menos ao mesmo tempo, esvaziando o pretexto utilizado pelo patrão. No corte da cana, o principal mecanismo de burla é o chamado “roubo da balança”. A cana cortada pelo trabalhador é amarrada em feixes de vinte ou trinta canas, conforme a usina, que devem ser pesadas pelo cabo. Este, naturalmente, não pode pesar todos os feixes. Seleciona então 10 deles, pesa-os, tira a média e calcula o total da produção individual do trabalhador, multiplicando esse peso médio da amostra pelo número de feixes cortados. O cabo tende a selecionar os feixes de cana menor ou mais fina para fazer o seu cálculo. O trabalhador sempre protesta e, para evitar, de antemão, que o “roubo” seja muito grande, procura sempre pôr no mesmo feixe cana de diferentes pesos. Tal defesa, no entanto, implica um esforço extra do trabalhador. Além disso, segundo os trabalhadores e os próprios cabos, o cabo usa sempre uma balança viciada. Geralmente são pequenas balanças em que o mostrador circular é cortado ao meio, o que faz com que qualquer peso acima de determinado valor seja igual ao peso máximo da balança. Uns poucos trabalhadores defendem-se com a utilização de balanças próprias. Em algumas áreas, a cana cortada pelos trabalhadores ainda é contada pelo sistema tradicional de “centos”. Em vez do peso, o cálculo da remuneração do trabalhador é feito pelo número de centos de feixes de vinte canas amarradas pelos cortadores. Os proprietários costumam dizer que tal sistema facilita o “roubo do trabalhador”: este cortaria a cana em mais de dois pedaços, como era exigido, pondo, pois, menos cana nos feixes, ou então poria as canas maiores e mais grossas sempre na parte externa do feixe, escondendo as mais finas (de corte mais fácil) no interior. No entanto, a prática que estabeleceram, nos últimos anos, de que as canas sejam amarradas inteiras liquidou quaisquer eventuais vantagens que o sistema apresentasse para os trabalhadores e conseguiu contornar os protestos quanto à adoção do sistema do corte por tonelada.29 29

Uma moradora da “Mata Sul”, onde a cana é cortada por tonelada: “Sabe quando é que os pobres brasileiros comeram um bocado? Quando cortavam cana por cento, que não tinha furto”. Um morador da “Mata Norte”, onde predomina o corte por tonelada: “Agora, muitos, gente do Engenho Novo, achavam muito ruim por causa disso, porque o homem de lá fazia assim: pegava uma faixa de cana boa, botava os empreiteiros para cortar por cento. E a gente saía

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O “roubo da balança”, complementado por outros expedientes tais como atribuir áreas de “cana suja” (isto é, com muita palha e/ou com muito mato) aos trabalhadores que tendem a produzir mais do que o limite desejado pela empresa, é habilmente manipulado pelos usineiros. Para comprometer seus fornecedores, administradores e cabos com aquela modalidade de exploração, eles estabelecem que a cana no tombo (local do corte) deve ter o mesmo peso que no ponto (local para onde é transportada em burros para ser apanhada pelos caminhões ou locomotivas da usina) e na balança da usina (onde a cana é pesada antes de ter início seu processo de transformação). Ora, isso é absolutamente impossível: a partir do momento em que é cortada, a cana começa a perder seu teor de sacarose e, portanto, o seu peso, e a regra geral é a cana passar horas e mesmo dias à espera de transporte. Por outro lado, há perdas inevitáveis nesse transporte. Para tornar possível o impossível, usineiros e fornecedores transferem a administradores e cabos a responsabilidade de “perdas”, pagando aos últimos também por produção (e por produção calculada na balança da usina) e ameaçando os primeiros de demissão caso tenham cabos complacentes que permitam que a folha de pagamento seja onerada com maiores dispêndios salariais.30 As “tabelas de campo”, acompanhando o Estatuto do Trabalhador Rural, deixam aos proprietários e trabalhadores a possibilidade de escolha, em cada caso específico, da modalidade mais conveniente de remuneração do trabalhador. Como já vimos, o trabalho por produção tem tendido a prevalecer, a remuneração por “diária” cingindo-se, no caso que estamos analisando, apenas aos serviços não diretamente ligados à cana, como o transporte, a abertura e a conservação de estradas, a abertura e a conservação de valetas. Os proprietários, entretanto, querem associar as duas modalidades de remuneração. Querem que o trabalhador trabalhe por produção, mas dando uma jornada de trabalho mínima de oito horas diárias. O trabalhador vê então ser-lhe imposta uma cadência de trabalho de que se livrara com o trabalho por produção, além de ter, como no “tempo do cativeiro”, de suportar o cabo todo tempo “ao seu pé”. “Basta levantar da enxada para ser repreendido”. Essa interpretação da lei, acionada pelos proprietários cada

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cortando por tonelada. Agora, o cortador delas ia cortando, cortando, cortando e, quando dava na área fraca, ele retirava aquele povo de fora e botava o povo da fazenda para cortar por tonelada. Aí, a gente não achava bom”. O reconhecimento desse mecanismo conduz os trabalhadores a demonstrarem uma certa compreensão para com o “roubo do cabo”. “O cabo mede roubando... E o administrador não dá uma braça pra o trabalhador. Quer dizer: o administrador não fica na estrada não. Ele vai tomar conta dele [do cabo]. O pobre do cabo, já com medo para não perder a bolacha, aí mede roubando ... Já mede roubando, com medo dos empregados, do administrador ... Porque, ele diz [o cabo], eles [os empregados] dão cinco mil por tonelada. Por tonelada não, de gorjeta. Sempre que dê aquela cota, no fim de semana, ele ganha (o cabo). E se ele não fizer, não dá não. Ele, pra ganhar mais aqueles cinco mil, aí avança no trabalho do trabalhador, do companheiro...”

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vez que enfrentam um período de expansão de seus negócios, motiva conflitos mas, graças à situação dos sindicatos, não se tem conseguido impor. A luta cotidiana entre trabalhadores e proprietários no nível da produção não se esgota aí. Ter feito o serviço “ao gosto do patrão” ainda não é condição suficiente para que o trabalhador receba seu salário no final de semana. O não pagamento e o atraso de pagamento são bastante freqüentes, sobretudo na entressafra, muitos proprietários não tendo acesso ao chamado “financiamento de entressafra” ou utilizando o financiamento para o pagamento de outras dívidas, e nos períodos, não pouco freqüentes na economia canavieira, de crise. O não pagamento de salários é utilizado, por vezes, por uma usina como um pretexto para provocar uma intervenção do Instituto do Açúcar e do Álcool que venha a saldar suas dívidas e reequipá-la. Foi o que aconteceu em 1968 com duas usinas de um município do sul de Pernambuco que passaram nada menos do que um ano sem pagar salários, os trabalhadores que não abandonaram o trabalho sendo mantidos graças à distribuição de alimentos levada a cabo pelo sindicato local e às facilidades de crédito abertas pelo comércio, sem alternativas, das cidades próximas. Mais freqüente do que o não pagamento do salário é o não pagamento do repouso remunerado, das férias, do 13o salário. O atraso no pagamento deste último é a regra. Em vez de recebê-lo até dezembro, como manda a lei, o trabalhador tem o seu décimo em maio ou junho do ano seguinte. E, algumas vezes, as usinas ainda querem parcelá-lo. Talvez porque, com o aparecimento do décimo, os proprietários tenham suspendido a prática de distribuição de presentes aos seus moradores por ocasião das festas (Natal, Ano-Novo, Reis), os trabalhadores identificam o décimo com essas festas e fazem uma questão absoluta quanto ao seu pagamento, com que vão comprar roupas e calçados novos. O não recebimento do décimo parece atingir a fundo a honra do trabalhador. O fato é que essa é uma das áreas de conflito em que menos transigem. Isso pode ser ilustrado pela recusa dos trabalhadores de uma usina, apesar da dificuldade em que se encontravam, de receber o décimo atrasado parcelado, apesar de o pagamento nessas condições lhes estar sendo proposto diretamente pelo usineiro que se dispunha a “adiantar” a primeira parcela na hora. Apesar de receberem seu salário semanalmente, os trabalhadores, via de regra, abastecem-se diariamente. O relativo isolamento dos engenhos faz com que suas compras se façam, muitas vezes exclusivamente, no barracão, armazém do engenho. Nesse barracão, o trabalhador vai retirando cada dia a quantidade de mercadorias de que tem necessidade, sobretudo para a alimentação da família, em razão de seu quantum de trabalho daquele dia e da dívida acumulada que tenha por abater. No limite, esse tipo de vinculação ao barracão deixa o trabalhador num estado de dívida permanente que faz com que, não raras vezes, “não veja o dinheiro”, e não receba seu salário, uma vez que a dívida é descontada automaticamente do que recebe, como 192

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o barraqueiro (responsável pelo barracão), via de regra, encarregado de executar o pagamento, bem como de elaborar a própria folha de pagamento do engenho. Embora hoje em dia já haja sinais evidentes do declínio do “sistema de barracão” (Palmeira, 1971), ele ainda possui vigor suficiente para assegurar às usinas e aos engenhos a capacidade de manipular o consumo de seus trabalhadores. Ainda uma vez, é nas épocas de crise que mecanismos “tradicionais” como esses são acionados com toda a força e sem os atenuantes ou as compensações que fizesse, como no passado, com que apresentassem eventuais vantagens para os trabalhadores. Assim, uma outra usina em crise preferiu resolver suas dificuldades de capital de giro, após 1964, racionando os valores do barracão, conhecidos na época como gabão, a provocar a intervenção do IAA. No passado os vales funcionavam como uma espécie de moeda de circulação restrita aos domínios da usina ou engenho que garantiriam, numa espécie de escravidão por dívidas, a permanência dos trabalhadores no local. Nos casos extremos, as usinas ou os engenhos só pagavam em vale, os barracões monopolizando, em termos absolutos, o abastecimento dos trabalhadores. Mas esses vales tinham sempre a sua liquidez, isto é, cobertura em mercadorias. O gabão de hoje, todavia, é um vale branco. Ele não implica mais apenas a impossibilidade de o trabalhador rural abastecer-se em outra fonte que não os barracões dos engenhos da usina. Além dos preços mais altos do barracão, seu vale só é aceito mediante uma redução de cerca de 30% do valor nominal. E nem sempre o trabalhador tem garantia de controlar as mercadorias de que precisa, uma vez que a crise fez com que os barracões daquela usina se esvaziassem. Muitas vezes a única possibilidade que lhe resta é vender o seu vale por metade do valor ou menos a um negociante ligado aos proprietários da usina e, de posse de algum dinheiro, procurar as vendas ou a feira de algum arruado próximo. Até 1970, a usina ainda pagava uma parte do salário em dinheiro. Entre 1970 e 1972, a situação tornou-se mais complicada, sendo ele pago inteiramente em vales. Segundo informações da área, só depois que o Exército fez uma “intervenção branca” nos negócios da usina, a partir de gestões realizadas pelos sindicatos de trabalhadores rurais e pelo sindicato dos trabalhadores da indústria de açúcar, é que as coisas começaram a ser regularizadas.31 A separação que operamos entre conflitos ligados ao movimento de expropriação de moradores e conflitos ligados às novas modalidades de exploração da força de trabalho nas condições específicas de uma “economia” colocada numa posição marginal em termos da economia nacional só tem sentido de um ponto de vista analítico. Do ponto de vista dos agentes sociais envolvidos não cabem essas sutilezas teóricas, tanto mais quanto 31

Cabe lembrar que boa parte das lutas que descrevemos tem seu desdobramento natural na esfera sindical propriamente dita. Foge, todavia, ao âmbito deste trabalho uma análise dos sindicatos e de sua atuação.

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empiricamente não há diferença alguma entre um mecanismo de expropriação e um mecanismo de extração da mais-valia extra. Como vimos, pouco importa para um trabalhador se ele está expropriado ou superexplorado quando ele toma consciência de que o proprietário está avançando sobre aquilo que é socialmente reconhecido como seu. Mas, se a diferenciação teórica não tem conseqüências práticas, a indiferenciação prática tem implicações decisivas na compreensão das formas e conteúdos que a luta de classe assume no caso que estamos analisando. Essa indiferenciação é responsável pela unidade de uma luta que poderia não ser a mesma, uma vez que a proletarização, isto é, o envolvimento pleno do trabalhador nas novas relações econômicas, não é a única via para os que são atingidos pela expropriação. Ela é responsável também pelos limites dentro dos quais se desdobram essas lutas, que não são outros que aqueles dados pela legislação nacional. As leis, todavia, como nos lembra um dirigente sindical, “são uma faca de dois gumes”. Ainda mais quando, ao lado daquela representação prática, está a prática dos sindicatos. Assim, se a legislação foi e continua a ser um estímulo e um instrumento para que os proprietários se livrem de seus moradores e/ou submetam seus trabalhadores a mecanismos de exploração capazes de contrabalançar as perdas que a presença da legislação lhes pudesse ocasionar, não é menos verdade que ela tem sido, por motivos simétricos opostos, um instrumento de luta da maior importância para os trabalhadores. Os sindicatos de trabalhadores rurais na área, se foram fortemente reprimidos quando do golpe de 1964 e se continuam a mover-se em um terreno difícil, não foram liquidados.32 Lideranças novas ou mesmo lideranças “direitistas” de antes de 1964 foram chamadas a desempenhar o papel que antes cabia a lideranças com um projeto político mais definido, sem que isso significasse um arrefecimento de uma luta de classes que existia sem elas e poderia existir, eventualmente, contra elas, tais eram as condições objetivas dadas. Dentro desse quadro, a simples luta pelo cumprimento da legislação assume muitas vezes uma feição radical insuspeitada, podendo pôr em xeque a própria continuidade das relações sociais na agroindústria. Nesse sentido, não parece haver descontinuidade entre essas lutas pelo cumprimento da legislação e as lutas (que foram em boa parte também pelo cumprimento da legislação) que antecederam ao movimento militar, apesar da mudança da conjuntura política. Talvez pudéssemos dizer que, 32

O “Relatório Geral da Fetape no Triênio 1966-69” é eloqüente: “A situação sindical naquele momento (1966) era um tanto crítica, com um certo enfraquecimento da estrutura e movimento de sindicalismo rural, uma vez que a maioria dos sindicatos ainda se encontrava em regime de intervenção. A baixa do número de associados em todos os sindicatos era assustadora. Toda esta situação financeira da Federação não satisfatória, o que não deixava de ser um grande obstáculo à realização dos programas previstos pela nova diretoria.” (FETAPE, 1969, p.1)

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se a conjuntura não implica em homogeneidade e se toda conjuntura é conjuntura para alguma força social, a conjuntura não mudou para os trabalhadores rurais e camponeses da área do mesmo modo como mudou para outras forças política nacionais. Uma vez mantido o tempo da estrutura econômica,33 mas, sobretudo, mantido o tempo da luta de classes – já que não apenas persistiu a oposição tornada irreversível entre proprietários e trabalhadores rurais, como não se encerrou o ciclo de transformações que poderia mudar o conteúdo dessas oposições e foram mantidos os instrumentos de formulação de interesses daqueles grupos, isto é, os sindicatos e suas formas de vinculação ao aparelho do Estado –, a partir do momento em que foram identificados pelo movimento sindical os condutos reais da política da nova conjuntura nacional, abriu-se a possibilidade de voltarem a colocar-se para aqueles grupos conjunturas do mesmo gênero daquelas vividas no período cronológico anterior, isto é, conjunturas capazes de atualizar as contradições que opõem trabalhadores a proprietários rurais. A dificuldade maior que se coloca à análise desses conflitos é que eles rompem com os enquadramentos “normais” dentro dos quais são geralmente pensados os conflitos. Não são conflitos propriamente sindicais, sem ser conflitos puramente locais. Não são conflitos propriamente políticos, sem ser conflitos simplesmente econômicos. Não são conflitos “espontâneos”, sem ser conflitos maquinados por alguma entidade mágica dessas que costumam povoar certas cabeças conservadoras. A quebra da legitimidade do poder “tradicional”, fundado sobre relações pessoais, que acompanhou a implantação dos sindicatos rompeu com a possibilidade de conflitos “locais”, isto é, limitados a uma única unidade geográfica ou social e passíveis de resolução no nível dessa própria unidade. O simples questionamento da autoridade e/ou do poder do proprietário dentro de seus domínios já invoca necessariamente uma outra instância de legitimação, estranha, isto é, mais ampla, existindo dentro de marcos nacionais e, portanto, políticos no sentido forte, à denominação tradicional. Isso é verdade mesmo para aquelas situações em que a presença do sindicato não se faça necessária na resolução daquele conflito específico. Ou melhor, poderíamos dizer que a presença do sindicato não se dá apenas segundo a modalidade da presença física. Se, como dizia R. Luxemburg, o socialismo está presente no sindicalismo menos político, poderíamos dizer que o sindicato, no caso concreto que estamos analisando, está presente mesmo nas lutas mais “espontâneas” da massa rural. Não é por acaso, como já chamamos atenção, que o sindicato se tornou um marco temporal decisivo 33

Ainda que se tenha iniciado na área um verdadeiro processo de transição, com a ruptura das relações sociais que apoiavam a velha plantation, assegurando sua reprodução, esse processo não se completou, apesar das mudanças políticas conhecidas pelo país e pela região entre o aparecimento das ligas camponesas e os dias de hoje.

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para a visão de mundo de trabalhadores rurais e camponeses (Sigaud, 1971). Não é também por acaso que se desenvolveu na consciência camponesa, ao lado de outras místicas, toda uma mística de sindicato, que consiste basicamente em atribuir ao sindicato em geral uma força inusitada e um poder sobre as coisas muito acima daquele que os próprios trabalhadores e camponeses reconhecem aos sindicatos reais que conhecem no dia-a-dia. Paradoxalmente, é entre aqueles que estão mais afastados de sindicato que essa mística parece ter mais força; é o trabalhador que se recusa a entrar para o sindicato porque é uma covardia enfrentar o patrão via sindicato; é o trabalhador sindicalizado que faz oposição à direção atual de seu sindicato que lembra que aquele sindicato foi construído diretamente, pedra sobre pedra, pelos trabalhadores que hoje estariam sendo traídos por alguma coisa que “não é sindicato”, quando ele próprio sabe, como seus companheiros, que as coisas não se passaram exatamente assim e que o prédio do sindicato foi construído por um mestre-de-obras com a sua turma; é o trabalhador que em 1972 avalia com olhos críticos a mobilização de antes de 1964, vendo-a como um excesso de força do sindicato que, com a autoridade do patrão, teria suprimido toda autoridade, e propõe, em seguida, como caminho para os trabalhadores resolverem os seus problemas todos pararem de trabalhar ao mesmo tempo, “sem necessidade de greve e de agitação”. Mas, ao contrário de outras situações históricas, não se trata de conflitos puramente ou mesmo primordialmente sindicais. As regras do jogo impostas pelo regime autoritário34 e às quais os sindicatos têm que se cingir, com mais ou menos rigor, segundo as conjunturas, impedem que eles próprios possam atuar como um agente de conflito sem esperar pelas demandas “de baixo” ou que possam apropriar-se de qualquer conflito como seu ou ainda que possam transformar qualquer conflito na direção que interesse sua política num momento dado ou tentar transmitir sua dinâmica a outros conflitos do mesmo gênero. Nesse sentido, tende a desenvolver-se um “legalismo de sobrevivência” da parte dos sindicatos, interiorizado por lideranças e massas, o que se traduz não apenas nas formulações mais explícitas, como aquelas do tipo “as leis são boas, o que falta é aplicá-las”, mas na própria maneira como as lideranças sindicais recortam os fatos sindicais. Assim, quando um dirigente sindical é inquirido sobre conflitos existentes na sua área, menciona apenas aqueles possíveis de terem seus motivos enquadrados na legislação trabalhista e agrária. De outra natureza não é a prática dos trabalhadores em geral de, antes de abrirem uma questão com um proprietário, ir ao sindicato “caçar seus direitos” (Echenique, 1974). 34

Talvez pudéssemos dizer, utilizando o termo e as indicações de Otávio Guilherme Velho (1976), que tais regras, antes de serem impostas pelo regime autoritário, seriam uma decorrência do próprio capitalismo autoritário, uma vez que, sem maiores problemas, coexistiram com a fase cosmopolita do capitalismo brasileiro.

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É difícil estabelecer uma linha divisória entre lutas econômicas e lutas políticas nos Estados modernos, dada a extensão mesma da presença do Estado (Jelin, 1973). Mais difícil ainda é tentar traçar essa linha no caso dos Estados latino-americanos, onde o Estado tendeu a substituir-se em larga medida à iniciativa privada no campo econômico e a cobrir o vazio deixado pela sociedade civil ao plano político (Jelin, 1973; Velho, 1974; Cardoso, 1973). Ora, isso se torna praticamente impossível quando se trata de um setor de uma sociedade governada por um regime autoritário e caracterizado ele próprio por uma economia extremamente frágil, estruturada sobre mecanismos de superexploração da força de trabalho e dependente do amparo do Estado para subsistir. Nessas condições, qualquer conflito é quase por definição um caso político, que põe em xeque a reprodução da própria classe dominante regional enquanto classe dominante, passível, portanto, do tratamento que se costuma dar a casos políticos em regimes autoritários, isto é, aquele do caso de polícia. Como esse tratamento é definidor da natureza do seu objeto, este é “politizado” uma segunda vez, desaparecendo completamente qualquer resquício “não político” da natureza que lhe é socialmente reconhecida. Não tem sido outro o tratamento dispensado aos conflitos de maior dimensão, mas não apenas a estes, que têm eclodido na zona rural nordestina. Nessas circunstâncias históricas específicas, há lugar para uma certa mística, não do Estado, mas de sua encarnação, a figura do presidente, pouco importando quem seja, como uma espécie de árbitro supremo, o único capaz de intervir e dar solução a conflitos como esses. Em compensação, a máquina governamental está submetida a uma permanente guerra de desgaste, resultante da permanente identificação de seus organismos aos interesses regionalmente dominantes, aos quais estão umbilicalmente ligados, mesmo naquelas circunstâncias em que estariam cumprindo objetivos opostos e que é tanto mais intensa quanto maior é a intervenção estatal na área que faz das entidades governamentais, aos olhos dos trabalhadores, mas também a qualquer análise das práticas objetivas feita por um especialista, meros exemplares das entidades econômicas e paraeconômicas das classes dominantes locais. É o Incra, por exemplo, que se transforma “naquela empresa, a INCRA”, e que, como qualquer “empresa”35 da área, se vale do empreiteiro e do trabalho de “clandestinos”, bem como de todos aqueles mecanismos que vimos são acionados para a obtenção de um sobretrabalho extra, e que se envolve num conflito de repercussão nacional, como foi o de Barreiros e está se tornando o do cabo, envolvendo expulsão de trabalhadores de engenhos adquiridos para fins de “reforma agrária”.36 35 36

Empresa é o termo que os trabalhadores usam para referir-se às usinas. Nos últimos meses, a imprensa das grandes capitais brasileiras divulgou, com grande destaque, fatos relativos à implantação do Proterra em Pernambuco. No município de Barreiros e em municípios vizinhos, alguns engenhos de uma das maiores usinas do estado foram adquiridos pelo Incra para, de acordo com as determinações da lei que criou o Proterra,

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Mas entre esses conflitos e conflitos propriamente políticos vai uma grande distância. O bloqueio da atividade política propriamente dita imposto pelo regime e o isolamento relativo da luta que opõe trabalhadores a proprietários da zona canavieira de Pernambuco dão a essas lutas objetivamente um caráter puramente defensivo, mesmo quando elas vão além da simples exigência do cumprimento da legislação e os trabalhadores partem, como parece estar acontecendo na conjuntura atual, para uma posição de maior agressividade em termos de reivindicações econômicas. Se a política governamental para a cana-de-açúcar, esboçada a partir de 1971,37 como uma política de salvação de classe dominante, jogando com o momento favorável no mercado internacional, provocou, a partir do início de 1974, uma reação sindical de partir para os dissídios coletivos, uma vez que o aumento do salário médio real e a escassez relativa de mão-de-obra provocados pela expansão canavieira em certas áreas novas, como o sul de Alagoas, teriam esvaziado a luta pelo simples cumprimento do salário mínimo, nas áreas tradicionalmente canavieiras de Pernambuco, essa atitude, mesmo se considerando o seu ineditismo em termos de sindicalismo rural e o fato de ser possivelmente uma resposta adequada ao estímulo, continua a ser uma atitude defensiva. Se há uma certa contradição nos termos em falar-se de “lutas espontâneas”, nas condições históricas específicas que nos concernem, mais dificilmente ainda poderíamos falar de lutas espontâneas para designar lutas que guardam continuidade com lutas que envolveram um processo de mobilização política extremamente complexo como foi o dos anos 1955-64. O mais correto seria, talvez, acompanhando a sugestão de Rosa Luxemburg ao analisar uma situação histórica diversa, falar de uma interiorização da luta (política) de classes que teria perdido sua feição mais explicitamente política para inscrever-se no interior mesmo do processo produtivo, a produção cotidiana dos “engenhos” e usinas passando a estar suspensa à decisão dos enfrentamentos diários de trabalhadores e patrões. A contrapartida da perda de “espontaneidade” das lutas das massas rurais vai ser não a atividade intensiva de organismos políticos mais ou menos encapuzados a dirigirem de uma distância maior ou menor as lutas em curso, e muito menos a presença – por outra parte, real – dos acólitos do regime a manipularem, como em outros exemplos históricos brasileiros,

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vendê-las a pequenos agricultores, sendo compradores prioritários os trabalhadores rurais do próprio engenho. Ora, apenas dois trabalhadores foram beneficiados pela redistribuição de terras que favoreceu sobretudo comerciantes, rendeiros (fornecedores que arrendam terras de usinas ou de outros fornecedores) etc. Ainda que o Fundo de Exportação, constituído pela diferença entre o preço do açúcar no mercado interno e no mercado externo, tenha sido criado em 1965, é em 1971, com o plano de fusões de usinas, que parte desse fundo passa a ser dirigida para o reequipamento da agroindústria.

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a vontade das massas rurais, mas uma “espontaneização” da atividade das lideranças sindicais que, ultrapassando os limites puramente sindicais de sua ação, são levadas, dentro de certos limites, naturalmente, a substituir os partidos políticos esvaziados38 sem com eles se confundirem, defendendo diretamente junto aos órgãos de poder – os efetivos, não os “clássicos” – os interesses da classe ou frações de classe que representam legal e – paradoxo – politicamente.

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Jelin (1973) nos mostra como isso se deu na Argentina, com outras dimensões e com outras implicações, obviamente, durante o período em que o peronismo esteve banido da vida política daquele país.

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8 NO LIMIAR DA RESISTÊNCIA: LUTA PELA TERRA E AMBIENTALISMO NO

ACRE

Elder Andrade de Paula Silvio Simione da Silva

POR ESPAÇO DE FRONTEIRA: A PRODUÇÃO DO ESPAÇO NO ACRE

A realidade social da formação do campesinato no Acre foi a de um processo de materialização de amplas formas de criação e recriação dos sujeitos sociais, ao longo da sua consolidação territorial como unidade federada brasileira. Nela se revelou a face aguerrida da mobilidade do capital, impondo padrões de produção e organização do espaço com o alavancamento da mobilidade de força de trabalho nordestina. Assim, num dos mais distantes rincões oeste das terras centrais da América do Sul, na segunda metade do século XIX, até então habitadas por povos nativos, a fronteira econômica brasileira sobrepunha a linha da divisa política de nossas terras. Daí se deu o processo de incorporação de áreas de florestas aos sistemas produtivos de seringais, sob base de trabalho em condições de semi-escravidão, imposta aos migrantes nordestinos – os brabos – depois aos seringueiros. Nisso reside uma dinâmica de ocupação e produção do espaço da floresta, por seringais-empresas (Gonçalves, 2001). Nessas unidades produtivas, localiza-se, então, a base fundamental para a formação social dos sujeitos que fizeram a produção do seringal, locus da territorialização do capital, mas também da floresta (território produzido em sua amplitude natural socializada). A floresta se consuma como espaço produzido, materializando a base para sua formação de território usado tal qual o campo e a cidade, que vagarosamente principiava na região. Nesse processo de mobilidade de capital e trabalho sobre a natureza, deslancham-se fluxos migratórios. O capital para a exploração provinha de corporações estrangeiras, intermediadas espacialmente em pontos es201

No limiar da resistência

tratégicos para o comando do processo de produção, situados em Belém e Manaus. Daí, agentes desses sistemas são acionados para iniciar a formação de áreas de exploração nessa parte da Amazônia, que era uma das áreas de maiores potenciais de produção da borracha pela ocorrência endêmica da seringueira (sobretudo, da Hevea brasiliensis). No entanto, a grande massa populacional viria em razão da necessidade de mão-de-obra. Para isso, foram criados mecanismos de arregimentação de trabalhadores, em especial, no Nordeste brasileiro. Portanto, é por força do processo de acumulação capitalista em escala internacional que se impulsiona a produção de matéria-prima para abastecer as indústrias situadas na Europa e nos Estados Unidos. Para satisfazer essas demandas externas, contingentes de trabalhadores, em geral, de origem camponesa, foram atraídos para essas regiões dos altos e médios cursos dos rios afluentes da margem direita do Amazonas-Solimões. Aqui, esses sujeitos, além de terem que se adaptar aos trabalhos extrativistas, precisavam se acostumar a uma realidade diversa daquela de sua origem e criar condições para viver sob bases produtivas de um espaço que emanava da floresta para a formação da realidade local. Assim, ao longo do tempo vão se recriando, adquirindo, no contato com os povos nativos, hábitos de viver na floresta, trazendo, contudo, legados de seu convívio com a realidade do sertão, da caatinga que ficara para trás. Inicialmente, o capital mercantil impõe-lhes regras rígidas de trabalho sob duras amarras da escravidão por dívidas (Martins, 1997). Contudo, com isso firmam condições de se instituir como sujeitos capazes de produzir territórios para viver na floresta, dela retirando seu produto, formando seu ambiente para o trabalho cotidiano e também com ela instituindo novas condições de vida junto a um ambiente em que a natureza, diferentemente, se apresentava como preponderante, inclusive, sendo a base de produção das mercadorias que iriam ser exploradas. A formação humana dessa fronteira se dá a partir de uma realidade: a empresa extrativista como promotora e definidora de um espaço produzido na floresta. Contudo, a força que vai realmente dinamizar essa realidade socioespacial estaria no grande contingente de mão-de-obra que se territorializa nas “colocações”,1 subordinada às “relações de trabalhos compulsórios” (Silva, 1982). A “colocação” era o núcleo compartimental, socialmente falando, da formação do território do trabalhador no âmbito da floresta, na qual já se territorializava o seringal-empresa. Nessas unidades produtivas só era permitida a extração do látex e absolutamente proibidas práticas agrícolas. 1

Denominação dada regionalmente às unidades produtivas cujas dimensões variam de 300 a 500 hectares, no interior dos seringais nativos. A localização da morada do seringueiro, situada numa clareira aberta na mata, é definida de acordo com a distribuição espacial das árvores de seringa (Hevea brasiliensis)

202

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Essa rigidez começa a ser quebrada no período compreendido entre as década de 1920 e início dos anos 40.2 Com a falência da empresa extrativista e o abandono de muitos seringais, a população seringueira é obrigada a agir, (re)arranjando seu espaço de vivência e trabalho. No âmbito do espaço produzido, firma as bases para viver na floresta de forma mais autônoma em relação ao domínio das relações mercantis de produção. Assim, parte desse contingente desloca-se para áreas mais próximas de vias trafegáveis, planta pequenas lavouras para garantir sua sobrevivência, perante a escassez de alimentos, caça, comercializa peles e outros produtos florestais com os comerciantes dos rios, os chamados “regatões” (Paula, 1991). Produzem as raízes de seu pertencimento à terra florestal, numa relação recíproca, na formação dos territórios de vivências (Silva, 2005) que aí e daí se projetaram. Sob o recuo das forças oligárquicas que tinham o domínio latifundiário das terras (a territorialidade seringalista), abrem-se na floresta bases para o avanço das forças campesinas na firmação de seus territórios. Com a territorialização que se principia, vemos o ressurgir dos legados trazidos do Nordeste brasileiro, incorporando parte da cultura dos povos nativos. Resulta daí, na realidade agrária regional, uma territorialidade que tende a tornar-se preponderante sobre a decadente territorialidade seringalista. É certamente sob essas condições que se firmam as bases do espaço produzido da floresta. Esse já aparece como território em que se institui o locus de uma classe camponesa, perante o enfraquecimento da empresa extrativista. Nota-se, então, que a formação desse campesinato tem suas raízes na dinâmica de fronteira em que, na fase extrativista, os embates entre esses e os agentes do capital eram amenizados pelas condições estruturais herdadas dos seringais. A territorialização das colocações, na prática cotidiana, não colocava dúvidas sobre os domínios fundiários postos e sobrepostos. Essa situação foi por décadas uma amortização contra as pressões de maiores conflitos da luta pela terra que poderiam acontecer. Isso, dado que também amenizava os embates entre as classes sociais aí postas: seringalistas, arrendatários ou marreteiros versus seringueiros. Parece-nos que aí o motor dos conflitos eram as relações sociais de domínio interno, e não a disputa territorial que se instituíra no princípio da ocupação com os combates aos povos indígenas, nas chamadas “correrias”.3 2

3

Com a entrada no mercado mundial da borracha produzida nos seringais de cultivo implantados no sudeste asiático, a empresa extrativista entrou em profunda crise. Só se recuperaria temporariamente no decorrer da Segunda Guerra Mundial em razão da ocupação daquele território pelos japoneses. Após o final da guerra, em 1945, a empresa extrativista entraria novamente em crise, chegando ao colapso no final dos anos 60. Denominação dada às diligências comandadas pela empresa extrativista contra as populações indígenas. Através delas, promoveram-se expulsões da terra, assassinatos e escravização dos povos indígenas que ocupavam as florestas da região.

203

No limiar da resistência

Na verdade, é apenas quando o capital se coloca retomando uma rearticulação de sua territorialização nacional que os conflitos novamente se acirram. Já estamos tratando do período pós-1960, com os avanços da frente pioneira agropecuária, em que podemos falar de grandes alterações na produção desse espaço agrário com reflexo na vida campesina local. A pecuária, como atividade predominante, institui novas formas e uso do solo, negando a possibilidade de aproveitamento da floresta em pé, enquanto espaço produtivo. Assim, o espaço produzido na floresta pelos seringueiros, herdeiros da organização do seringal, perante sua transformação em fazenda pela venda de terra aos agentes do capital vindo do centro-sul, criava condições para o despertar de conflitos pela terra e pela a formação da identidade camponesa. Sob esse contexto, do território da floresta, brotam fortes movimentos de resistência. Temos de considerar que a realidade posta com o avanço da frente agropecuária quebrava a já referida “lógica de convivência” dos conflitos da territorialidade seringueira com a seringalista. Perante a reterritorialização do capital via fazendeiros, sobre o seringal, a tentativa era de reedificar a territorialidade patronal (decadente) e anular a territorialidade seringueira, que estava agora ascendente. Isso significava que a realidade campesina da floresta estava sendo sobreposta por forças da fronteiras agropecuária, e seus domínios, que antes não eram questionados, agora passavam a ser. De modo geral, no que se refere ao âmbito da produção do espaço agrário, a realidade posta mostrava que, no caso das oligarquias, a mudança na base produtiva implicava, por um lado, na perda do monopólio da terra e do acesso aos recursos públicos,4 e, por outro, na redução ou eliminação de sua fonte de lucro no território: a exploração dos produtores diretos. No que diz respeito às populações indígenas e camponesas, a nova modalidade de posse e uso da terra implicava necessariamente na expropriação das áreas por elas ocupadas, gerando, desse modo, um quadro de intensa instabilidade. É bom lembrar que no momento inicial da expansão de fronteira, mais de 70% da população do estado vivia no campo e aproximadamente 85% desse contingente não possuía propriedade formal das terras que ocupava (Silva, 1982). Contudo, o avanço das forças produtivas da frente agropecuária, com a transferência das terras para compradores centro-sulistas, era uma sobreposição de projetos de desenvolvimento. O novo modelo colocava na reprodução do espaço regional uma forma de uso do solo e de regularização fundiária que ameaçava por demais a base territorial das condições de existência dos seringueiros – a “colocação” –, locus no qual se edificava a 4

Os financiamentos e incentivos estatais alocados através da Sudam, até 1986 revelam a prioridade dada à pecuária extensiva de corte, que abocanhou 77% do total (Sant’anna, 1988).

204

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

unidade de produção familiar na floresta. Há uma sobreposição das forças da frente pioneira agropecuária a esses remanescentes da frente extrativista. Sua permanência apresentava a territorialização de formas da vivência da classe camponesa na floresta (Silva, 2005). Perante essas transformações no espaço produzido, a partir da década de 1970 a luta pela terra passa a ocupar um lugar central nos conflitos agrários. Ela se caracteriza primeiro como expressão da resistência desses sujeitos que a defendem integralmente no processo em que produziram na floresta seu território de vivência. Por isso, nas lutas, as manifestações eram pela floresta como espaço em sua totalidade, não porque isso era ecologicamente correto, mas porque aí estava seu lugar de viver. Para o seringueiro, a floresta estava inscrita no âmbito dessa luta como condição de um direito moral de pertencimento (Thompson, 2002; Bourdieu, 1974). Considerando esses pontos, contribuir para a compreensão do campesinato brasileiro, numa leitura regionalizada dessa situação, é, sobretudo, uma exposição do processo de como esses sujeitos sociais construíram seu espaço e, usando-o, deram configuração ao território que se materializou na/da floresta. Partindo desses pressupostos, aqui iremos abordar essa situação, na formação desses sujeitos sociais e coletivos em torno das manifestações dos processos de apropriação da natureza e dos resultados do trabalho efetuado. Há situações de embates mais amplos no âmbito da formação regional e de todos os processos de resistência que emergiram, em especial, nas três últimas décadas do século XX.

LIMITES DA TOLERÂNCIA: SINDICALISMO RURAL E MOBILIZAÇÕES COLETIVAS O movimento de expansão da fronteira agrícola para o Acre, desencadeado pela ditadura militar no pós-64, produziu, de imediato, fortes impactos na sociedade regional. Esses impactos resultaram das súbitas mudanças operadas na base produtiva, marcada, sobretudo, pela substituição do extrativismo da borracha natural pela pecuária extensiva de corte e exploração madeireira como atividades principais. Esse processo implicou na desarticulação de um ordenamento societário fundado nas relações mercantis de produção com sérias repercussões sobre as territorialidades dos sujeitos sociais que produziam esses espaços. Desse modo, gerou um quadro de instabilidade tanto no topo – as oligarquias vinculadas à economia mercantil – quanto na base daquele sistema de exploração, formado basicamente pelas populações camponesas e por uma parcela dos povos indígenas “assimilados” pela empresa extrativista. Nesse cenário, os conflitos sociais em torno da propriedade da terra passaram a se constituir na disputa central entre capital e trabalho. Dito de 205

No limiar da resistência

outro modo, os fundamentos das disputas resultam do que Quijano (2005) sintetiza como processo de apropriação da natureza e dos resultados do trabalho. Como vimos tratando, no período anterior, os conflitos se expressavam de modo predominante em torno da apropriação dos resultados do trabalho, fundado na extração do látex e fabricação da borracha natural. Por algumas vezes, manifestavam-se individualmente por mecanismos diversos de resistência que marcaram a internalização da luta de classes no interior da empresa extrativista (Paula, 1991). Embora houvesse registro de iniciativas na formação de organizações camponesas entre o final dos anos 50 e 60, nos moldes das ligas camponesas (Costa Sobrinho, 1992), elas não chegaram a se consolidar e foram logo desmanteladas após o golpe militar de 1964. Assim, a instalação no estado, em 1975, de uma Delegacia Regional da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) foi decisiva nos desdobramentos da luta de resistência pela terra. Em primeiro lugar, possibilitou a passagem daquelas formas de resistência individual para outras referenciadas em estruturas de mobilização e representação coletiva: o sindicato na “luta pela terra”. Em segundo lugar, inseriu, num momento crucial da reterritorialização promovida pelo capital, as demandas de um campesinato, até então, sem voz, excluído dos espaços decisórios do poder político. Tais procedimentos lograram a interposição de grandes obstáculos a uma conciliação “por cima” entre as classes dominantes naquele período (Paula, 2005). A Delegacia Regional da Contag fundou em dois anos (1975-77) sindicatos nos sete municípios existentes no Acre naquele período. Nesse processo, contou com forte apoio da Prelazia do Acre e Purus via Comissão Pastoral da Terra (CPT), organizada no estado em 1975, bem como do governador do estado, Geraldo Mesquita (1975-78). Esse último estava interessado em redefinir o estilo de desenvolvimento em curso na região, de modo que incorporasse o extrativismo e, naturalmente, os interesses das oligarquias a ele vinculados (Paula, 2005). A Contag definiu como bandeiras de lutas principais o fim do pagamento da renda ao patrão seringalista,5 a defesa dos direitos dos “posseiros” em relação à propriedade legal da terra e o cumprimento da legislação trabalhista para os assalariados rurais. A resistência na terra estava indissociavelmente vinculada ao não pagamento da renda. Isto é, a negação de uma relação jurídica (arrendamento) era essencial para afirmação de outra: o enquadramento dos seringueiros na condição de “posseiros”. Nessa categoria, transformavam-se em portadores legítimos do direito à propriedade legal de um lote de terra (Paula, 1991). 5

Além da brutal exploração a que estavam submetidos sob domínio das relações mercantis, os seringueiros eram obrigados ainda a pagar aos patrões seringalistas o equivalente a 10% da sua produção anual de borracha.

206

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Uma vez que a permanência na terra se constituiu como condição fundamental de resistência, os desmatamentos precisavam ser contidos. É nessa perspectiva que deve ser compreendida a emergência de mobilizações coletivas destinadas a impedi-los, denominadas regionalmente como “empates”. Deve-se ressalvar também que, em nível nacional, a Contag passa a perceber que a reforma agrária não dependia apenas da decisão política do Governo e passaria a apostar mais na organização dos trabalhadores rurais como forma de reivindicar a aplicação do Estatuto da Terra (Pinto, 1978; Medeiros, 1989). O primeiro “empate” foi realizado em março de 1976, no Seringal Carmem, em Brasiléia. A iniciativa de “empatar” o desmatamento partiu dos “posseiros” dessa área e contou com o apoio da direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) daquele município. Armados com suas espingardas de caça, aproximadamente 60 homens cercaram o acampamento dos “peões” contratados pelo fazendeiro para realizar a derrubada da mata. A estratégia da Delegacia da Contag, nesse e nos demais “empates” que lhe sucederam, foi extremamente astuciosa. Por um lado, ela orientou a direção do STR de Brasiléia para que não assumisse a autoria do movimento: devia-se sustentar que a decisão havia sido tomada autonomamente pelos “posseiros” da área. Por outro, tomou a iniciativa de encaminhar relatórios às diversas instituições do Estado diretamente relacionadas com os conflitos fundiários. Após uma reunião entre as partes envolvidas (seringueiros, direção do STR, Delegacia da Contag, fazendeiro e Incra), chegou-se a um acordo no qual os seringueiros aceitaram trocar suas “colocações” por lotes de 25 hectares. Essa estratégia de mobilização coletiva, combinada com intensa articulação institucional, acabou conferindo um caráter singular à luta de resistência pela terra protagonizada pelo Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais no Acre. Como bem demonstra Medeiros (1989), nesse período, a organização e as práticas do sindicalismo rural no Brasil pautaram-se, via de regra, em políticas assistencialistas, como aquelas instituídas com a implementação do Funrural. Apesar do agravamento dos conflitos sociais pela posse da terra e do crescimento da organização sindical, a política fundiária do governo permaneceu inalterada. A intenção era continuar privilegiando a grande propriedade e dar prosseguimento à transferência de demandantes de terra do CentroSul para a Amazônia. Desse modo, o acesso dos “posseiros” à propriedade da terra permaneceu extremamente restrito a uma inclusão de parte deles nos projetos de colonização oficial criados no estado a partir de 1977, ou mediante negociações diretas com os fazendeiros. Os dados cadastrais do Incra, apresentados na Tabela 1, revelam que, apesar do acréscimo na quantidade de imóveis e área na faixa de um a cem hectares, a concentração da propriedade fundiária manteve-se inalterada. 207

No limiar da resistência

Tabela 1: Terras cadastradas no Acre (1970 -80) Área (ha) 1 a 100

1970 No de imóveis Quant.

(%)

1980

Área Cadastrada Quant.

(%)

No de imóveis Área Cadastrada Quant.

(%)

Quant

(%)

2.807

72

71.946,4

1,77

7.591

68,89

325.667,4

2,74

101 a 1000

526

13,67

187.767,2

4,63

2.229

20,23

630.372,2

5,32

1.001 a 9.999

396

10,29

971.348,6 23,97

990

8,98 1.717.723,3 14,50

Acima de 10.000

118

3,06 2.820.608,9 69,61

208

1,88 9.169.134,9 77,42

Total

3.847

4.051.671,1

11.018

11.842.898,2

Fonte: Cadastro do Incra (SR 14)

Com o assassinato, em julho de 1980, do presidente do STR de Brasileia, Wilson Pinheiro, principal liderança do sindicalismo rural acriano, os latifundiários da região esperavam conter a luta de resistência. Ocorreu exatamente o oposto. Além de responder imediatamente com o “justiçamento” do mandante do crime, os embates da luta pela terra criaram situações para que as aberturas de novas áreas de produção camponesas fossem concretizadas, sobretudo, com o início da implantação de projetos de colonização no estado. Diferentemente do que ocorreu em outros estados da Amazônia, no Acre esses projetos receberam migrantes do Centro-Sul, mas também uma parcela do campesinato expropriada no movimento de expansão da fronteira. Agindo sobre áreas de maiores tensões sociais, o Governo Federal, por intermédio do Incra, ampliou as desapropriações para implantar mais projetos de assentamento dirigido, voltados para a produção agrícola. Foram criados cinco PADs (Projeto de Assentamento Dirigido), com capacidade para receber aproximadammente nove mil famílias. Isso, de certa forma, consistia em mudança radical no uso da terra e também na regularização fundiária para a produção familiar, em modos de usos diferentes daqueles feitos pelos seringueiros. Abre-se, desse modo, uma reterritorialização em que vão se configurar novas territorialidades, que passam a ser constituídas por migrantes oriundos majoritariamende do Centro-Sul. A produção e a organização espacial dos PADs produzem uma ruptura com as bases territoriais constituídas pelos seringueiros na floresta. Os lotes retangulares quebravam com a estrutura das colocações, inviabilizando a produção extrativa e, por conseguinte, a reprodução social desse segmento do campesinato. Essa constatação, como se verá mais adiante, foi um divisor de águas nas estratégias de luta pela terra comandada pelo MSTR no Acre. Outro aspecto que ainda temos a ressaltar é que, com essa ampliação de áreas voltadas para o assentamento familiar durante a década de 1980, muitos desses assentados ficaram em situações de semi-abandono. Há uma recolocação das possibilidades de se verem diante de novos processos 208

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

de expropriação. Nisso há um despertar para a necessidade de lutar também contra esses processos que os atingem integralmente. Na verdade, o desenvolvimento das organizações de resistência coletiva já estava posto pelos movimentos de luta pela terra dos seringueiros. De qualquer forma, perante essa realidade, além do sindicalismo rural, surgem outras formas de organização comunitária, especialmente as associações e cooperativas, a maioria incentivada por instituições governamentais (Paula, 1991). A formação desse assossiativismo marca uma fase em que os movimentos sociais ganharam outra dimensão, a que chamamos de “luta na terra” (Silva, 2005). Isso significa que a resistência no campo e na floresta passou a desenvolver e a incorporar estratégias direcionadas a assegurar as condições mais gerais de permanência desse campesinato na terra conquistada. De modo geral, vemos que é nesse processo que melhor se constrói uma interação identitária, naquilo que entendemos como a complexidade de um campesinato regional. Isso, seja nas suas ações integrais de classe social, seja em suas trocas de experiências na labuta cotidiana de trabalho com a terra em situações diversas das regiões de origem, ou, até mesmo, para os seringueiros que se viam obrigados a se readaptar à atividade nas lavouras. A luta na terra, conjuntamente ou paralela à luta pela terra, forma portanto as articulações que criam condições para que, na década de 1980 e princípios dos anos 90, tivéssemos bases para assegurar a reprodução social desse campesinato. Com isso, desenvolvem-se organizações que vinculam o processo de produção/circulação desses sujeitos sociais com mercados em escalas diferentes, fortalecendo a resistência na terra.

DA ORGANIZAÇÃO À PROPOSTA DE NOVO TIPO: CNS E RESEX No limiar da década de 1980, começavam a aparecer com maior freqüência as imagens que denunciavam os efeitos destrutivos da expansão da fronteira agropecuária nessa parte da Amazônia. Na vizinha unidade federativa, Rondônia, configurava-se o quadro mais desolador: em apenas uma década praticou-se um desmatamento em larga escala, acompanhado do extermínio sistemático dos povos indígenas do território. Esse fato passou a ser largamente denunciado por organizações e movimentos ambientalistas internacionais. Dado que o Banco Mundial teve um papel ativo nesse processo, via financiamento de obras de infra-estrutura (como a pavimentação da BR-364 no trecho Cuiabá–Porto Velho), passou a constituir-se num dos principais focos de pressão desses movimentos. O caso de Rondônia anunciava o futuro reservado às terras acrianas nesse processo intenso de expansão da fronteira. Além do mais, tanto o agravamento dos conflitos sociais e a luta pela terra quanto a forma de aces209

No limiar da resistência

so a ela, seja via negociações diretas com latifundiários ou nos projetos de colonização, criados pelo Incra,6 geravam mais problemas do que soluções. Deve-se lembrar ainda que a crise do regime ditatorial e a emergência de movimentos sociais diversos como novos protagonistas da luta pela democratização no Brasil acabavam repercutindo regionalmente. As diferentes leituras dessa nova conjuntura iriam repercutir na condução política do sindicalismo rural no Acre. Enquanto o grupo majoritário de lideranças ligadas à direção da Contag centralizava a atuação na esfera institucional, ocupando espaços abertos no âmbito do governo estadual7 a fim de viabilizar a “reforma agrária possível”, os dirigentes do STR, de Xapuri e de outros sindicatos, ligados à CPT, decidiam manter-se numa posição de independência e apostar na intensificação das mobilizações coletivas como principal forma de luta pela terra. Nessa conjuntura, lideranças expressivas, como Chico Mendes, passaram a questionar as estratégias adotadas até então pela Contag. Não havia, contudo, consenso nessa dissidência do MSTR no Acre em termos do “modelo” de reforma agrária a ser seguido. Os sindicalistas ligados à CPT não rompem com o modelo “distributivista” e “produtivista” contido no Estatuto da Terra, mantendo-o, a exemplo da Contag, como referência de atuação no enfrentamento dos conflitos fundiários. Para as lideranças do STR de Xapuri, preocupadas em atender às demandas de sua principal base social, os seringueiros, a resolução efetiva dos conflitos passava necessariamente pelo reconhecimento de seus direitos sobre a área total de suas “colocações”. Tratava-se, portanto, de reafirmar a territorialização seringueira em contraposição àquela instituída no processo de expansão da fronteira. A avaliação do ex-presidente do STR de Xapuri (1982-88), Chico Mendes, é muito precisa nesse sentido. De acordo com ele, além de legitimar a usurpação da terra ao reconhecer os latifundiários como proprietários – seja na forma de desapropriação pelo Incra para criar projetos de colonização, seja nas negociações diretas –, a saída dos seringueiros para os loteamentos havia resultado em fracasso absoluto (Linhares, 1992). Daí os processos de desterritorialização desses trabalhadores de suas terras serem constantes. A importância da liderança de Chico Mendes nesse movimento nucleado em Xapuri deve-se, sobretudo, à sua formidável capacidade de fazer as conexões entre o particular e o geral. Isto é, de ressignificar a luta pela terra incorporando a ela o componente da conservação ambiental. Nesse processo, tão importante quanto o seu resultado imediato – a crítica ao modelo de 6

7

Entre 1977 e 1983, o Incra criou, no estado do Acre, cinco projetos de colonização com capacidade para assentar aproximadamente 10 mil famílias, a maioria formada por migrantes do Centro-Sul do país. A exemplo do que ocorreu na maioria das unidades federativas, a oposição liderada pelo PMDB venceu no Acre as eleições para o governo estadual em 1982, acenando com a promessa de atender a diversas demandas sociais reprimidas.

210

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

modernização pautado na destruição da floresta e a elaboração da proposta de Reservas Extrativistas como alternativa a ele – foi a difícil construção de diálogos entre atores diversos. Ao contrário do que se afirma correntemente, o encontro entre a luta de resistência dos seringueiros com organizações e movimentos ambientalistas não se deu de forma “harmônica”. Apesar da concordância entre esses diversos atores em torno de um objetivo comum – impedir a devastação da floresta amazônica –, existiam e ainda existem enormes polêmicas quanto ao destino que deveria ser dado à região. Para aquelas organizações e movimentos ambientalistas inspirados no antropocentrismo, dever-se-ia pensar formas de uso compatíveis com a conservação do meio ambiente; para as de inspiração ortodoxa,8 o fundamental era preservar o ambiente natural. Logo, não há uma aproximação automática com os “ambientalistas”, quando se tratava de pensar as alternativas. Imaginemos, portanto, Chico Mendes buscando aliados nesse “ambiente político”! Do mesmo modo, transitar no interior do sindicalismo e de organizações partidárias de esquerda, como o fazia Chico Mendes, com idéias consideradas “ambientalistas”, também não era fácil. A formação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) ocorre nesse contexto. Abordada por diversos autores, como Grzybowsky (1987; 1989); Almeida (1989); Paula (1991, 1999, 2006); Aymone (1996); Gonçalves (1998); Silva (2001); Silva (2005) é interpretada em linhas gerais como fenômeno social mais amplo que marca a emergência de outros movimentos sociais no campo, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Assim, percebem a origem do CNS como uma organização de novo tipo. Valendo-se da experiência de Xapuri,9 teria como objetivo constituir no território amazônico vínculos identitários políticos entre os seringueiros e outras categorias de trabalhadores extrativistas e alargar suas alianças políticas com outros segmentos emergentes da sociedade civil em nível nacional e internacional. A rigor, as intenções iniciais que nortearam sua formação pareciam bem modestas. Chico Mendes deixa bem claro, em um de seus depoimentos, que a criação do CNS foi inspirada no Conselho Nacional da Borracha, instância responsável pela deliberação das políticas setoriais para a produção e comercialização da borracha natural. Somente o patronato e a burocracia governamental tinham assento nesse Conselho. A idéia de fundar o CNS era, portanto, uma forma de dar voz aos seringueiros e reivindicar o direito 8

9

Para o antropocentrismo a relação com a natureza é percebida a partir de critérios utilitaristas, definidos com base nas necessidades humanas, entre os ortodoxos a percepção é inversa, isto é, a humanidade deve submeter-se aos imperativos da ordem cósmica (VINCENT, 1995). Os inúmeros “empates” realizados na década de 1980 em Xapuri produziram como um de seus resultados a formação de uma identidade política dos seringueiros. Em síntese, ela expressa a oposição aos fazendeiros e afirmação de direitos e valoração do seringueiro como “protetor” da floresta. Maiores informações, ver Paula, 1991

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No limiar da resistência

de participar nas instâncias decisórias do poder (Grzybowsky, 1989). No mesmo depoimento, Chico Mendes afirma que o surgimento do CNS resultava também das limitações do sindicalismo rural em incorporar bandeiras de lutas de categorias minoritárias. Ao analisar as relações dessas “unidades de mobilização” com o sindicalismo rural, Almeida (1989, p.13) afirma que elas “apresentam-se, pelo menos, sob dois aspectos: suplantaram-nas na sua condução e orientação das lutas, quando elas se mostraram frágeis e subordinaram-se, ou têm sido conduzidos por elas, quando se mostraram eficazes nas mobilizações”. Afinal, continua o referido autor, “também nas estruturas sindicais são detectados níveis de contradição que podem inibir ou não a capacidade mobilizatória”. As estratégias adotadas pelo CNS para legitimar-se como representação política na região amazônica confirmam as observações acima. Tanto no Acre quanto no sudeste do Pará e Maranhão, ele apoiou-se no sindicalismo mais mobilizado. Em alguns municípios, articulou-se com as oposições sindicais e estabeleceu como meta conquistar as direções dos respectivos sindicatos. Onde não havia organização sindical, como Rondônia, ou onde sua presença era pouco expressiva, procurou estruturar outras formas organizativas, como associações de seringueiros e comissões municipais e regionais do CNS. Ao olharmos a trajetória do CNS nessas duas décadas de existência, pode-se ter uma idéia das ambigüidades e indefinições que a caracterizam. Num primeiro momento, compreendido entre o I e o II Encontro de Seringueiros, os esforços da direção provisória concentraram-se na ampliação de sua base de apoio interna e externa. Enquanto no âmbito interno a estrutura sindical representou o principal ponto de apoio, externamente diversas ONGs e movimentos ambientalistas cuidaram de fazer a “ponte” com a sociedade civil nacional e internacional, divulgando a luta dos seringueiros. A idéia de alternativas àquele modelo de produção destrutiva na Amazônia contida no escopo da proposta de Reserva Extrativista (RESEX)10 cumpriu papel decisivo, atraindo simpatias em segmentos diversos. Em linhas gerais, propunha-se com as RESEX uma transformação radical na lógica de apropriação dos recursos naturais e dos resultados do trabalho. Isto é, em vez de ser apropriada para fins de acumulação por parte dos capitais privados, a terra passaria a ser incorporada ao patrimônio nacional como um bem público, assegurando-se os direitos das populações nela residentes de definirem coletivamente as formas de gestão e uso social, mediante estabelecimento de contratos de concessão real de uso. Aí residiram formas de conquista de territórios por populações que há anos já estavam 10

Apesar de ter sido elaborada formalmente em meados de 1985, com contribuições de intelectuais diversos, as RESEX foram gestadas no processo de resistência secular dos seringueiros. A esse respeito ver, entre outros, Paula (1991) e Gonçalves (1998).

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

produzindo nesses espaços. Em linhas gerais, esses são os pressupostos que deram suporte teórico à proposta que levou à territorialização das Reservas Extrativistas.11 Para viabilizar as RESEX, atribuía-se ao Estado um papel decisivo na dotação de meios necessários para o uso sustentável dos recursos naturais. Tal sustentabilidade requeria, necessariamente, a valorização das práticas e saberes acumulados por essas populações na sua interação com a natureza, na formação de uma territorialidade seringueira. Ou seja, dado que a biodiversidade era – e continua sendo – largamente desconhecida na Amazônia, dever-se-iam, a médio e longo prazo, desenvolver pesquisas com o intuito de apropriar-se da ciência para gerar novas tecnologias voltadas para a utilização dos diversos recursos naturais. A curto prazo, priorizar-se-ia a adoção de incentivos (na forma de subsídios) àqueles produtos, como borracha e castanha, habitualmente explorados pelas populações extrativistas. Cabe ressalvar que a exploração de madeira para fins comerciais é absolutamente descartada nesse esboço inicial da proposta de Reserva Extrativista (Paula, 2005; Silva, 2005). Compõe ainda esse conjunto de proposições iniciais, o incentivo às populações dessas áreas para criar ou fortalecer organizações destinadas a assegurar a autonomia e autogestão. Tais objetivos traduzem-se em iniciativas do tipo cooperativista, voltadas para eliminar as práticas de exploração do trabalho engendradas no contexto das relações mercantis, bem como naquelas de cunho mais político direcionadas para coordenar a gestão nas RESEX, tendo em vista assegurar-se o máximo possível de autonomia. Ou seja, pretendia-se construir “por baixo” a sustentabilidade econômica sociocultural e política da RESEX. Deve-se lembrar que não se trata de um fenômeno isolado. Iniciativas similares ocorrem em diversos países da América Latina, conferindo novos significados para “as lutas dos grupos indígenas e camponeses pela socialização da natureza, pela reapropriação democrática de seu patrimônio de recursos naturais e culturais e pela autogestão de suas potencialidades ambientais” (Leff, 2000, p.345).

ROMPENDO AS FRONTEIRAS: DE XAPURI PARA O MUNDO O assassinato, em 22 de dezembro de 1988, da principal liderança do CNS, Chico Mendes, e as repercussões dele decorrentes alteraram completamente a trajetória da ainda incipiente organização. Repentinamente o CNS pas11

As RESEX foram instituídas através do Decreto-Lei Presidencial n. 98.987/90. No essencial, elas foram pensadas inicialmente como alternativa para a regularização jurídica das áreas ocupadas tradicionalmente pelos seringueiros e outros trabalhadores extrativistas

213

No limiar da resistência

sou a ocupar um lugar de destaque no cenário político regional e a obter grande visibilidade nacional e internacional, particularmente na Europa ocidental e nos Estados Unidos. O CNS converte-se em objeto de interesse de uma gama maior de ONGs ambientalistas, agências governamentais e não-governamentais, organismos multilaterais. O sentido socioambiental da luta pela terra iria então impregnar os movimentos ambientalistas mundializados. Estes sentem que podem ter ressonância nas lutas em defesa dos territórios dos seringueiros, isto é, a terra coberta pela floresta e todo seu significado histórico social. Ao analisar a aproximação de organizações ambientalistas com movimentos indígenas na América Latina, Leff (2000) afirma que elas teriam contribuído para difundir uma cultura democrática no continente. Na situação aqui referida, não percebemos esse “comprometimento” com valores democráticos por parte da maioria dessas organizações. Ao contrário, elas estiveram – e estão – mais empenhadas em impor uma visão sobre a questão ambiental mais conveniente ao neocolonialismo. As encenações que marcaram o II Encontro Nacional dos Seringueiros e o I Encontro dos Povos da Floresta, em Rio Banco (1989) parecem bastante reveladoras nesse sentido. Além de uma exploração exaustiva de imagens do exotismo dos “povos da floresta”, diversas ONGs e movimentos ambientalistas procuraram dar a “direção” para o evento. As mudanças operadas no Estatuto do CNS nesse Encontro, atribuindo maior ênfase à sua face ambientalista, bem como à formalização da Aliança dos Povos da Florestsa, que pretendia unificar os movimentos de seringueiros e índios, resultaram em grande medida da interferência dessas organizações. Entre o II e o III Encontros, um grupo de lideranças sindicais e assessores diretos do CNS, ligados à CUT pela Base,12 procurou imprimir uma reorientação política ao CNS. Ela apoiava-se em três eixos fundamentais: 1) afirmação da autonomia do CNS; 2) priorização de uma política de alianças com organizações e movimentos envolvidos na luta pela reforma agrária; 3) fortalecimento da organização sindical de base. No III Encontro (1992) houve a consagração dessa estratégia política. Diferentemente dos Encontros anteriores, em que a participação nos debates era livre, com a palavra franqueada a todos os participantes, nesse, só o faziam os delegados eleitos, e sua condução foi centralizada pelas principais lideranças do movimento, a exemplo do que ocorre nos congressos da CUT e da Contag. Foi uma espécie de recado dirigido aos representantes de diversas ONGs e outros observadores presentes, isto é, a partir daquele momento a direção do CNS pretendia assumir o controle do processo de mediação, seja com instituições governamentais, seja com as não-governamentais, diretamente, sem intermediações. 12

Trata-se de uma corrente sindical formada por sindicalistas ligados a organizações de esquerda marxista e de extração católica.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Essa atitude, somada ao perfil da “nova aliança” entre seringueiros e trabalhadores agroextrativistas da Amazônia oriental, teve repercussões profundas nas relações externas do CNS. Muitas ONGs se afastaram e algumas agências começaram a fazer restrições a seus projetos de financiamento. Enfim, houve uma reconfiguração das relações instituídas até então. Procurou-se estabelecer uma aproximação maior com movimentos ambientalistas como o Greenpeace, que participou ativamente da mobilização coletiva mais expressiva da história do CNS: o “Empate Amazônico Contra a Fome e a Devastação da Floresta Amazônica”, realizado em meados de 1993.13 Diante do aumento das pressões internacionais sobre o governo brasileiro e da criação das primeiras RESEX, em 1990, o CNS passou a defrontarse com a necessidade de apresentar propostas de desenvolvimento “mais concretas”. No caso especifico do Acre, “terra de Chico Mendes”, o CNS transformou-se em um dos principais catalisadores dos debates sobre desenvolvimento na região. Sua presença tornou-se obrigatória em todos os eventos dessa natureza e possibilitou a participação das mais variadas correntes de pensamento, que passaram a opinar sobre as “alternativas de desenvolvimento”. A reivindicação de políticas públicas específicas para seus representados, articuladas com incentivos à adoção de “alternativas de desenvolvimento” apoiadas em financiamentos externos provenientes de diversas agências não-governamentais,14 constitui-se na marca fundamental das estratégias adotadas nessa fase pelo CNS. No plano institucional, as “Diretrizes para um Programa de Reservas Extrativistas na Amazônia” (1993) sintetizam em quatro eixos as demandas de sua base social: 1) resolução dos conflitos fundiários e criação de novas RESEX; 2) dotação de infra-estrutura social e produtiva nas áreas reformadas; 3) desenvolvimento de pesquisas e tecnologias apropriadas para as RESEX; 4) subsídios e garantia de mercado para borracha natural oriunda dos seringais nativos. No caso do incentivo aos “projetos alternativos” de desenvolvimento, essa política acabou transformando Xapuri em uma de suas principais “vitrines”. A primeira metade dos anos 90 é caracterizada, sobretudo, pela tentativa do CNS, em conjunto com outras organizações dos trabalhadores, de implementar algumas dessas “alternativas de desenvolvimento”. 13

14

O seu objetivo era pressionar o Governo Federal para elevar os preços da borracha natural e criar subsídios. As manifestações ocorreram em diversas capitais. Em Brasília, a caravana de extrativistas bloqueou a entrada do Ministério da Fazenda, que acabou atendendo parcialmente às reivindicações. As agências não-governamentais (ANGs) repassam esses financiamentos (via de regra, a fundo perdido) através de complexos circuitos transnacionais de intermediações que envolvem as ONGs, os movimentos sociais e/ou “comunidades locais”. Para maiores informações sobre a atuação delas no Acre, ver Paula (2005).

215

No limiar da resistência

A partir do IV Encontro Nacional do CNS, realizado em Brasília no ano de 1995, o movimento de aproximação da direção do CNS se intensifica. Havia chegado a hora, diziam as principais lideranças do CNS, de mudar as estratégias e apostar nos grandes projetos, como o Projeto Reservas Extrativistas, instituído no âmbito do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PP G7), financiado pelo “Grupo dos oito países ricos”, por intermédio do BIRD. A partir de 1995, o CNS passou a ser mantido financeiramente de forma majoritária pelo Governo Federal, Banco Mundial e governo do Acre.15 Essa adesão foi justificada por motivos políticos e econômicos. No primeiro caso, acreditava-se que no Governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) haveria maiores espaços de participação, e a questão agrária e ambiental na Amazônia receberia um tratamento diferenciado dos governos anteriores. No segundo, sentiam-se tanto os efeitos da retração dos financiamentos das ANGs “a fundo perdido” quanto a insuficiência dos “pequenos projetos” para responder às crescentes demandas de sua base social. Isso ajuda a explicar a aceitação, por parte dos dirigentes do CNS, dos retrocessos na gestão das RESEX – as modificações introduzidas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) implicaram, entre outros, no aumento do poder das ONGs e na perda de autonomia dos moradores dessas áreas – e das políticas privatistas e predatórias engendradas nesse novo ciclo de acumulação, denominado por Harvey (2004) como “acumulação via espoliação”.16 No caso do Brasil, a aprovação pelo Congresso Nacional, em fevereiro de 2006, da Lei n.11.284/2006, de autoria do Ministério do Meio Ambiente (MMA), expressa com nitidez o modo como se institucionaliza e legitima essa “acumulação via espoliação”. Essa lei institui a concessão de florestas públicas para a exploração madeireira por grandes grupos empresariais. A previsão é que, num primeiro momento, 13 milhões de hectares sejam entregues à “guarda” dos madeireiros. Nos próximos dez anos, pode chegar a cinqüenta milhões de hectares. A exemplo do que tem ocorrido com as demais privatizações, procura-se construir um consenso em torno das supostas virtudes de uma ordem regida pelas “leis do mercado”. Essa malfadada lei contou com o apoio ativo do CNS e de inúmeras ANGs e ONGs que transitam pela Amazônia, muitas delas financiadas pelo cartel madeireiro mundial. 15

16

Com a eleição para o governo do Acre em 1998, de uma frente liderada pelo Partido dos Trabalhadores, o processo de cooptação do CNS foi concluído. O “apoio financeiro” às atividades do CNS somado ao controle exercido pela direção burocrática do PT assegura a obediência às determinações governamentais. Para Harvey (2004), uma das características atuais do capitalismo seria a combinação entre “acumulação expandida e acumulação via espoliação”. Comandada pelo imperialismo, a “acumulação via espoliação” é caracterizada de maneira geral como uma forma de recrudescimento da “acumulação primitiva”.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

DE VOLTA PARA CASA Depois de “ganhar o mundo”, entre o final dos anos 80 e o iníco dos 90, o CNS começa a “voltar para casa”, acompanhado do conjunto do MSTR no Acre. Esse movimento de “retorno” pode ser explicado a partir da conjugação de dois fenômenos: 1) o crescimento da presença e influência das ONGs nesse movimento, difundindo a crença nas virtudes de um “desenvolvimmento sustentável”17 de base local. Desse modo, os esforços passam a orientar-se na busca de projetos de financiamento18 para “viabilizar” alternativas de produção localizadas em experimentos de determinadas comunidades; 2) ascensão ao Executivo estadual de uma frente partidária liderada pelo PT − partido comprometido histricamente com o MSTR, com o CNS e com a luta de resistência pela terra −, ancorada nas promessas de redirecionar as políticas no sentido da promoção de “desenvolvimento sustentável” no Acre. A imagem construída do processo em curso no Acre, desde então, é a de uma experiência exitosa, um exemplo a ser seguido na Amazônia. Os conflitos sociais motivados na luta pela terra haviam sido contornados através de um reordenamento inovador da estrutura fundiária (Tabela 2), uma vez que foi reconhecido juridicamente o domínio territorial por parte das populações camponesas e indígenas que nele habitam. Além do mais, estaria em marcha um estilo de “desenvolvimento sustentável”, que asseguraria não só a conservação da floresta e do meio ambiente como também a participação dos movimentos sociais nos processos decisórios. Vejamos então o que revela e o que esconde a reconfiguração da estrutura fundiária. A primeira observação sobre a tabela 2 diz respeito à sobreposição de dados efetuada, o que acaba ampliando a área territorial do estado em aproximadamente 1,4 milhão de hectares. O problema é que boa parte dos lotes dos assentamentos está cadastrada no SNCR, portanto suas respectivas áreas aparecem computadas duas vezes: na modalidade de Projetos de Assentamentos e como áreas sob domínio particular – SNCR. A segunda refere-se ao montante das terras de propriedade estatal, um pouco mais de 50% da área total do Acre, regulamentadas nas formas diversas de unidades de conservação e Terras Indígenas. O problema é que boa parte dessas terras está sendo destinada à exploração privada por parte de grandes empresas madeireiras sob o amparo da Lei n.11.284/2006, que instituiu e regulamen17

18

Ao analisar esse processo, Paula (2005) demonstra que a ideologia do “desenvolvimento sustentável” foi extremamente eficaz para viabilizar uma conciliação de classes. Tal conciliação teria assegurado a satisfação dos interesses das oligarquias que comandam o poder político estadual e os grupos de capitais a ela associados. Ao analisar as suas dimensões socioeconômicas, políticas e ambientais, conclui-se que as bases da insustentabilidade não foram alteradas, tratando-se portanto de um estilo de “desenvolvimento insustentável”. Entre as diversas fontes desses financiamentos, destacam-se: BIRD, BID, BNDES, e diversas agências não-governamentais como: WWF, NOVIB, Fundação Ford, entre outras.

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No limiar da resistência

Tabela 2: Situação das terras do estado do Acre (2006) Denominação

Quant.

Área (ha)

107

1.955.870,66

11

4.056.395,36

Unidades de Conservação Estadual

5

1.797.780,00

Unidades de Conservação Municipal

5

1.026,34

32

2.234.265,89

Áreas arrecadadas e destinadas

107

3.271.827,02

Terras públicas não destinadas

5

Projetos de Assentamentos Unidades de Conservação Federal

Terras Indígenas

28.949,00

Terras dominicais

4.086

209.270,37

Áreas sob domínio particular – SNCR

21.157

5.783.399,20

Área total do Estado

16.422.136,04

Fonte: Governo do Acre, 2006

tou o regime de concessão de florestas públicas nas unidades de conservação de uso direto. Trata-se, sem dúvida alguma, do maior golpe já praticado contra as conquistas do movimento dos seringueiros na Amazônia. Outro detalhe, que não fica aparente no modo como foi construída a Tabela 2, está relacionado à persistência da concentração da propriedade fundiária nas áreas de domínio privado, como mostra a Tabela 3 a seguir. Tabela 3: Terras cadastradas no Acre (1970 -2006) Área (ha) 1 a 100

1970 No de imóveis Quant.

(%)

2.807

72

2006

Área Cadastrada Quant. 71.946,4

(%)

No de imóveis Área Cadastrada Quant.

(%)

Quant

(%)

1,77

16.980

84,98

859.298,1

20,5

101 a 1000

526

13,67

187.767,2

4,63

2331

11,66

406.010

9,7

1001 a 9.999

396

10,29

971.348,6

23,97

484

2,42

1.645.449

39,4

Acima de 10.000

118

3,06 2.820.608,9

69,61

165

0,82

1.265.696

30,3

Total

3.847

4.051.671,1

19.980

4.176.064,6

Fonte: Cadastro do Incra, 2006

Ao compararmos os dados relativos às terras cadastradas em 1970 e 2006, percebemos, em primeiro lugar, que a área cadastrada total permaneceu praticamente inalterada. Em segundo, fica evidente a ampliação da participação dos imóveis situados na faixa de 1 a 100 hectares. Contudo, a propriedade da terra permanece extremamente concentrada, uma vez que 69,7% das terras de domínio privado estão sob o domínio de apenas 3,24% dos imóveis. A exploração madeireira e a pecuária extensiva de corte têm determinado o ritmo da produção no agro acriano. Os dados mais recentes sobre 218

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

desmatamentos, conflitos sociais e a pauta de exportações estaduais não deixam margem de dúvidas a esse respeito. No período de 1989-98, a média anual de áreas desmatadas foi de 536,6 Km2, enquanto no intervalo de 1999-2005 foi de 618,8 Km2. Após uma auditoria sobre os dados desse último período, encomendada pelo governo do Acre, o Imazon mostrou que o desmatamento teria atingido a média de 816 Km2. De acordo com as informações contidas num documento elaborado pelo Incra, “Conflitos socioambientais em pequenas, médias e grande propriedades” (Incra, 2006) estariam em curso conflitos em 60 áreas diferentes, envolvendo de um lado posseiros e, de outro, fazendeiros, madeireiros e o Estado (nas áreas destinadas à exploração florestal). Sobre as exportações, dos 195 milhões exportados em 2005, 150 milhões foram de carne bovina e derivados (couro, farinha de osso e sebo), 32 milhões com venda de madeira. Borracha e castanha, juntas, participaram apenas com nove milhões. Enfim, a exemplo do que ocorre em outras unidades da Federação, a situação do campesinato no Acre parece cada vez mais dramática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A luta de resistência pela terra, protagonizada pelo campesinato obteve, até o momento (2006), conquistas relevantes na reconfiguração da estrutura fundiária no Acre. O acesso ao domínio jurídico legal da terra (na forma de propriedade ou direito de uso) e o reconhecimento de uma parcela desse segmento social em ações e políticas do Estado (no sentido ampliado) constituem traços marcantes de sua reterritorialização, resultante dos embates entre capital e trabalho nessa região. Portanto, considerando as condições básicas vividas nessas três décadas finais do século XX, a questão do campesinato esteve na raiz das luta de classes e também dos embates das diversas forças políticas regionais. Isso reflete a longa trajetória de construção coletiva e ampliação do sentido da luta territorial que se travou nessas décadas finais do século XX, com a formação do MSTR, do CNS e construção da proposta de RESEX. Deve-se ressalvar, contudo, que esse fato não repercutiu de forma significativa na apropriação, por parte desse campesinato, dos resultados do seu trabalho e saberes sobre a natureza. Permanece submetido a uma brutal exploração, uma vez que aprofundou sua subordinação à lógica que preside a acumulação incessante do capital e os efeitos socioambientais devastadores dela resultantes. Sob essa perspectiva, longe de expressar um desfecho “bemsucedido” da luta de resistência do campesinato, a reconfiguração fundiária tende a definir, em curto e médio prazos, uma nova reterritorialização do capital. Nas áreas de assentamentos regidos pelo regime de propriedade privada, a inexistência de políticas voltadas para o fortalecimento efetivo 219

No limiar da resistência

da produção camponesa tem resultado num processo de reconcentração da propriedade fundiária, formando ou ampliando as fazendas voltadas para exploração da pecuária de corte extensiva. Nas unidades de conservação de uso direto, a expansão da exploração madeireira por parte de grandes empresas e dos laboratórios da indústria farmoquímica poderá transformar esses grupos de capitais em detentores de fato desses espaços, até então tidos como territórios de produção camponesa. Enfim, trata-se, conforme mencionamos anteriormente, de um contexto marcado pela ofensiva do imperialismo no sentido de apropriar-se das últimas reservas de recursos naturais do planeta, submetendo os povos que as habitam a um regime de exploração regido pela lógica da “acumulação via espoliação”. A floresta, como espaço produzido, tem sido otimizada para o capital, que se apropria do saber, da força de trabalho e dos recursos naturais dos camponeses locais e, sob o discurso da ideologia do “desenvolvimento sustentável”, domina seus territórios. Nessas circunstâncias, os desafios postos para a luta de resistência do campesinato no Acre são incomensuráveis. A má notícia é que, aparentemente, não contam com instrumentos capazes de responder a esse desafio, dado que suas representações estão em franca degeneração. A boa notícia é que esse campesinato está bem próximo da Bolívia, que, juntamente com Equador e Venezuela, forma um dos núcleos mais avançados da América Latina na luta de resistência contra a expropriação das gente e de seu patrimônio natural. Que essa brisa fresca dos altiplanos contagie o campo e a floresta, não só do Acre, mas de toda a Amazônia continental, no sentido de estimular a busca de novos rumos nas próximas jornadas da resistência camponesa.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

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9 CAMPESINATO E IGREJA NA FRONTEIRA – O SENTIDO DA LEI E A FORÇA DA ALIANÇA* Neide Esterci

É verdade que, na história, pode-se ver a lei a mediar e legitimar as relações de classe existentes. Suas formas e procedimentos podem cristalizar essas relações e mascarar injustiças inconfessas. Mas, essa mediação, através das formas da lei, é totalmente diferente do exercício da força sem mediações. As formas e a retórica da lei adquirem uma identidade distinta que, às vezes, inibe o poder e oferece alguma proteção aos destituídos de poder (Thompson, 1987).

Este artigo se refere a uma disputa entre camponeses estabelecidos na fronteira amazônica e os representantes de um dos grupos econômicos que adquiriram terras na região, com o interesse de se beneficiar das políticas dos governos militares no final dos anos 60. Ao retomar o caso, pretendo trazer para discussão noções relativas à aplicação da lei como instrumento de resolução de conflitos fundiários, numa conjuntura de repressão e baixa capacidade de mobilização da sociedade civil e numa situação de frágil institucionalização da organização camponesa. Quero mostrar que os pequenos produtores reivindicavam direitos de acordo com as formas costumeiras de apropriação por eles firmadas ao longo de anos, mas apelavam também para a lei na defesa de outros direitos que lhes eram facultados. Em um caso estava em jogo o controle coletivo sobre o espaço * Este artigo é fruto de uma pesquisa de campo e consulta aos arquivos da Igreja nos atuais municípios de Santa Terezinha, Porto Alegre e São Felix do Araguaia, no estado de Mato Grosso, nos anos de 1967, 1974, 1975 e 1981. Desde a primeira etapa da pesquisa, pude contar com o apoio e, naqueles tempos mais difíceis, com a proteção das equipes da Prelazia de São Felix. Em 2006, por um breve período, voltei a Santa Terezinha e São Felix, tendo a oportunidade de rever essas pessoas e revisitar antigos líderes do movimento de resistência. Algumas de suas falas serão citadas oportunamente.

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Campesinato e Igreja na fronteira

pensado como um território; no outro, a apropriação de espaços particulares, de trabalho e moradia dos grupos domésticos. É também importante, neste caso, considerar o papel que tiveram os agentes religiosos que se aliaram aos camponeses na formulação e na insistente defesa de suas reivindicações, inclusive e principalmente, daquelas cuja lógica escapava ou era preterida pela lei e pelos representantes dos órgãos governamentais. Finalmente, vou argumentar que o engajamento nos conflitos de terra na Amazônia, entre os quais o aqui referido, foi pivô de uma articulação entre agentes da Igreja Católica da região, que repercutiu nos órgãos superiores da própria Igreja Católica no Brasil e ultrapassou as fronteiras regionais, levando a desdobramentos políticos importantes com a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 1975.

INTRODUÇÃO Em meados do século XX, a fronteira amazônica sofreu uma grande transformação. As condições para essa transformação começaram a ser criadas ainda nos anos 50, quando governos estaduais da região passaram a alienar vastas extensões de terras públicas dos próprios estados e da União, e se aprofundaram e se ampliaram quando, nos anos 60, os governos militares começaram a implantar medidas visando a integrar a Amazônia à economia nacional (Shelton Davis, 1977; Ianni, 1978; Cardoso, Muller, 1977; Bunker, 1988). A primeira grande área alcançada por tais iniciativas governamentais foi o nordeste do atual estado de Mato Grosso, à margem esquerda do Rio Araguaia, fazendo divisa, ao norte, com o estado do Pará. Além dos pequenos produtores familiares e dos povos indígenas, havia nessa área pequenos criadores de gado e comerciantes, alguns dos quais tinham mais recursos e eram detentores do poder local. A presença de agências do Estado era frágil, de modo que, com raríssimas exceções, todos ocupavam as terras a título de posse, não tendo documentos reconhecidos em cartório. Sendo farta, a terra não era valorizada, e tanto o mercado de terras quanto o de trabalho estavam ainda por se constituir plenamente. Com as terras públicas adquiridas a preços simbólicos e com os financiamentos e incentivos fiscais generosos concedidos pelos governos militares, grupos econômicos dos setores imobiliário, financeiro e industrial deram início à implantação dos grandes empreendimentos agropecuários na área (Bandeira, 1975). Assim começou o processo de aniquilação ou subordinação dos modos de vida até então existentes nas aldeias indígenas e nos povoados camponeses, abrindo caminho para institucionalização dos mercados de terra e trabalho (Bandeira, 1975; Cardoso, Muller; 1977; Ianni, 1978). A introdução e/ou incorporação sistemática do conceito de propriedade privada da terra tal como definida no código oficial, substituindo as formas 224

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de relação até então praticadas pelos moradores, foi, sem dúvida, um elemento central nesse processo. Repensá-lo remete a algumas das questões propostas por Thompson (1987) acerca das disputas travadas entre os “habitantes da floresta” e as autoridades administrativas inglesas que, no início do século XVIII, tratavam de impor novas regras de acesso aos recursos, tendo em vista a privatização e substituição dos direitos costumeiros por regras mais uniformes e adequadas à ordem capitalista que, naquele momento, se implantava no campo. É que na floresta recortada por domínios reais e áreas de propriedade privada havia também espaços em que os moradores pobres, de acordo com regras fundadas nos costumes, podiam exercer direitos de uso e coleta de frutos, caça e extração da madeira. A chamada Lei Negra, de 1723, foi um dos instrumentos de implantação da nova ordem. Era uma lei draconiana, que reduzia esses usos e instituía plenamente a privatização dos recursos de tal modo que eles pudessem ser explorados com vistas ao mercado. Thompson (1987) dedicou especial atenção às disputas em torno do sentido da lei e mostrou que ora ela, ora os costumes, eram usados na argumentação das partes em disputa. Se a Lei Negra era severa ao extremo, punindo com a pena capital cinquenta atos definidos como crimes, Thompson se atreveu, mesmo assim, a questionar a noção, forte na época, de que as leis servem apenas aos interesses dos poderosos e argumentou que a existência de alguma lei é melhor do que a de nenhuma lei, pois evita que os mais frágeis fiquem expostos ao arbítrio absoluto dos dominantes já que, havendo leis, eles também têm que em alguma medida se subordinar a elas. Argumentou, ainda, que as leis são sempre um campo de disputas e que as vantagens auferidas pelas partes dependem da correlação de forças.1 Na fronteira amazônica dos anos 60, apesar da existência de leis que teoricamente conferiam direitos a camponeses e povos indígenas, muitos moradores desses locais não tiveram como se contrapor aos novos pretendentes às terras que ocupavam e foram expulsos sem que seus direitos fossem sequer considerados. Foi o que aconteceu nas proximidades de São Felix do Araguaia, com a chegada da Agropecuária Suiá-Missu, a primeira a se implantar na região. Dos 695.843 hectares de terras dos quais ela se apropriou foram expulsas muitas famílias de pequenos produtores e todos os integrantes de uma aldeia da nação Xavante, transportados à sua revelia para outro local, distante de suas terras tradicionais. Shelton Davis (1978) relatou os efeitos devastadores da política dos militares sobre as nações indígenas. Houve aqueles que puderam contar com o apoio de aliados e tiveram tempo de reagir. 1

Este ponto é também desenvolvido por Barrington Moore (1987), que, na análise de outras situações históricas, chama atenção para o fato de os contendores estarem sempre testando a flexibilidade das normas estabelecidas no sentido de ampliar suas vantagens.

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Através de um caso que podemos provisoriamente pensar como de vitória dos pequenos produtores, é possível perceber as possibilidades abertas e as perdas que lhes foram impostas, naquela conjuntura, apesar da racionalidade de suas reivindicações. Levar em conta a complexidade da natureza das leis e considerar a interferência da correlação de forças na sua aplicação podem ajudar a compreender os processos que se passaram nessa área da fronteira amazônica e a pensar, por oposição, situações em que eles mesmos e outros segmentos de pequenos produtores brasileiros lograram ultrapassar os limites das leis existentes, nas conjunturas políticas mais favoráveis do final dos anos 80 e nas décadas seguintes. Para compreender a lógica e as reivindicações dos pequenos produtores, passemos ao caso de Santa Terezinha, considerando as categorias e os conceitos pelos quais eles expressavam, por ocasião das disputas, as suas relações com a terra e com os recursos naturais e distinguindo-as das relações fundadas na racionalidade dos códigos oficiais, pelos quais se orientavam, tanto as argumentações dos seus opositores quanto a racionalidade dos representantes dos órgãos governamentais presentes na cena da disputa.

OS PRIMEIROS CONFLITOS Entre 1966 e 1970, foram aprovados pelos órgãos governamentais 66 projetos agropecuários para ser implantados no nordeste do estado de Mato Grosso, onde se encontravam os municípios de Barra do Garças, São Felix e Luciara (Casaldáliga, 1971; Davis, 1977). Nessa área, ocorreram os primeiros de uma série de conflitos que, nos anos seguintes ou simultaneamente, envolveram outras empresas e outros povoados na região. Entre esses teve grande repercussão o que envolveu os habitantes do povoado de Santa Terezinha, hoje sede do município do mesmo nome, e os representantes da Companhia de Desenvolvimento do Araguaia (Codeara), de propriedade de empresários paulistas ligados ao Banco Nacional de Crédito (Deutertre, Casaldáliga e Balduíno, 1986). Eles haviam adquirido, em 1965, das mãos de uma empresa imobiliária, a extensão de 169.497 hectares, dentro da qual estavam localizadas não só as plantações dos pequenos produtores e muitas de suas residências rurais mas também a sede do povoado, com escolas, igrejas,2 casas comerciais e residências urbanas, além dos campos naturais que ficavam na faixa contígua à sua área urbana. 2

Além da Igreja Católica havia, em Santa Terezinha, na época em que começou o conflito, seguidores de uma Igreja Protestante. O chefe da família mais importante dessa filiação religiosa chegou ao povoado como empregado da primeira empresa que entrou em conflito com os posseiros. Leal aos seus empregadores, a família ficou um tanto isolada, já que as lealdades religiosas e políticas, naquele contexto, passavam, sobretudo, pela disputa em torno da terra.

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As disputas começaram em 1965 e tiveram seu momento mais dramático em março de 1972, quando um grupo de moradores enfrentou policiais e empregados da empresa no lugar onde o vigário de Santa Terezinha mandara construir um ambulatório, obra contestada pela empresa que alegava não estar a mesma localizada de acordo com o plano da futura cidade que a própria empresa iria construir. Em conseqüência do confronto, que feriu alguns deles, tropas do Exército ocuparam o povoado e praticamente todos os homens adultos do lugar tiveram que se refugiar na mata, por mais de cem dias, para escapar à perseguição movida pelas forças militares. As agências governamentais procuraram acelerar o processo de demarcação de lotes familiares, de acordo com o módulo previsto para a região, o que cobria cerca de 10% do total das terras, ficando garantido à empresa o domínio sobre toda a área restante. O padre, de nacionalidade francesa, foi processado por subversão, levado a julgamento e condenado por um tribunal militar a 10 anos de prisão, sendo posteriormente expulso do país, por meio de acordo feito entre a cúpula da Igreja e representantes do governo militar, à revelia do próprio e dos superiores de sua prelazia. Um dos principais líderes dos posseiros também foi preso, levado para a cadeia da capital do estado e espancado, mas, sem ser submetido a nenhum processo ou julgamento, foi posto em liberdade e mandado de volta ao povoado. Cerca de um ano mais tarde, foi a vez de a repressão se abater sobre outros membros da equipe religiosa, muitos dos quais foram também presos e submetidos a interrogatório e tortura.

UM MODELO SUI GENERIS DE RELAÇÃO COM A TERRA: O SENTIDO DA ALIANÇA A Teologia da Libertação, que inspirou os membros mais progressistas da Igreja Católica no Brasil desde o final dos anos 60, marcou profundamente o discurso e a prática das equipes religiosas que se articularam em torno das lutas camponesas nas Prelazias de São Felix, em Mato Grosso, de Conceição do Araguaia, no Pará, e de Goiás Velho, em Goiás. Aquelas famílias de pequenos produtores, autoclassificados posseiros e ameaçados por empregados armados dos novos latifundiários, pareciam a personificação do “povo de Deus”, em busca da “terra prometida”. Suas práticas com relação à terra pareciam atualizar conceitos alternativos ao modelo de que eram portadores o governo e os empresários. Vivendo na área desde as primeiras décadas do século XX, sem que, por um longo tempo, nenhum outro segmento social ou agência do Estado lhes viesse questionar a ocupação, os pequenos produtores haviam construído suas próprias regras de acesso, controle e uso da terra e demais recursos naturais. A divisão do espaço em lotes de área contígua, atribuídos a cada 227

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família como propriedade, era, de certo modo, estranha e incompatível com suas práticas de exploração agrícola, pastoril e extrativista. Na área rural, cada família se apropriava em termos permanentes apenas do espaço em que construía a casa, o quintal e o pomar. Era o que designavam como a propriedade de um chefe de família. A cada ano, pequenas roças eram feitas em outras áreas, mas ficavam sob o domínio de uma família apenas o tempo suficiente para que todos os frutos do plantio fossem recolhidos. Eram as áreas de serviço, que podiam vir a ser apropriadas por outros, depois de colhidas as últimas raízes de mandioca, a planta de ciclo mais longo nelas cultivada. Havia ainda as matas e as pastagens naturais, das quais ninguém se apropriava porque eram comuns. Por isso, a concessão dos lotes familiares, se, por um lado, representava uma vitória diante da ameaça de expulsão, por outro, impunha uma grande derrota aos posseiros, pois destruía toda a organização da atividade econômica e da vida social sobre o espaço, sufocando a dinâmica da ocupação e dificultando sua reprodução. De fato, os posseiros de Santa Terezinha eram pequenos produtores do tipo camponês. A denominação de posseiros foi introduzida, primeiro, como designadora de uma figura jurídica, sujeita a uma forma especial de direitos sobre a terra, definida no Código Civil Brasileiro como distinta desta outra forma de domínio que é a propriedade. De acordo com a legislação oficial vigente, a terra, neste caso, seria objeto de apropriação de fato – a posse –, podendo transformar-se em propriedade, desde que, por algum tempo, ninguém viesse, legitimamente, a contestar a apropriação. No decorrer das disputas, entretanto, o significado do termo foi sendo reelaborado até se tornar uma categoria política e autoclassificatória referida à luta: eram posseiros aqueles que se comprometiam com o grupo na medida do esperado; eram proprietários aqueles cujo trabalho investido já havia se materializado na casa, no sítio, nas plantações já crescidas. Nós nem conhecíamos esta palavra (posseiro)... Nós só costumávamos dizer assim: ele é um proprietário antigo, ou, quando era novo, dizia que estava começando a propriedade. Quando era uma propriedade antiga, diziam que era proprietário. (D. Alzira, posseira)

Além de distinguir as duas noções, como uma categoria nativa se distingue de uma categoria estrangeira, os pequenos produtores indicavam outros elementos que compunham suas noções de propriedade e de proprietário, como relações e status construídos ao longo do tempo e por meio do trabalho realizado que se objetivava nas construções e nas plantações: “Proprietário é isto: eu moro aqui, ... tenho o sítio já formado, o bananal, a casa que eu moro – então é minha propriedade” (Sr. Antônio, posseiro). Se proprietário era aquele que construía seu status no tempo e por meio do trabalho, por oposição, aqueles que chegavam de fora reivindicando direitos à terra por terem títulos de aquisição por compra eram chamados 228

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“donos de terra”, “capitalistas”. Eram os que tinham recursos e “cercavam tudo”. Os atributos de proprietário estavam, pois, conforme anteriormente indicado, associados ao tempo que leva para ser construídos a casa, o pomar, o bananal. Ele era também um morador e, neste sentido, seu status estava associado ao tempo de desenvolvimento do ciclo familiar e de maturação das relações sociais, que se manifestam nas alianças de casamento, nos laços de compadrio e vizinhança. A noção de propriedade, no código dos pequenos produtores, era portadora de particularidades também no que se refere à forma de demarcar limites. Aparentemente mais vaga e imprecisa do que a noção de limites de propriedade fundiária, pensada segundo critérios do código oficial, a noção de limites entre os pequenos produtores de Santa Terezinha era, todavia, suficiente para delimitação dos direitos de cada um sobre o espaço disponível. A propriedade, além da casa, da roça, do sítio, da capoeira, incluía também espaços ainda não trabalhados e deixados como reserva para plantios e extração da madeira necessária ao reparo da casa e construção de cercas. Mas ninguém deveria apropriar-se de não importa que extensão de terra e de mata. Mesmo esses espaços não trabalhados e deixados como reserva eram passíveis de cálculo, por parte dos demais moradores, e seu uso avaliado de acordo com a quantidade de pessoas a alimentar e a quantidade de braços aptos para o trabalho na unidade doméstica. Assim, se algum chefe de família pretendesse guardar mais que o avaliado como necessário, os outros costumavam dizer que ele estava “devorando” ou “estragando” a mata. Esse modelo foi, por certo, socialmente elaborado e explicitado pelos pequenos produtores e seus porta-vozes em meio ao movimento de resistência. Ele se traduzia em categorias lingüísticas, tais como as acima expostas, mas também se manifestava nas ações através das quais os pequenos produtores e seus aliados se opunham às investidas da empresa sobre cada segmento do espaço disputado, fazendo-nos pensar a terra – objeto do conflito – como um espaço diferenciado. De fato, o conflito se desdobrou em várias disputas, cada uma referida a um segmento do espaço e manifestando formas de apropriação diversas e refletindo sua importância econômica e política particular.

ENTRE A VILA E O SERTÃO: CAMINHOS E PASTAGENS Por causa do tipo de agricultura que praticavam, os posseiros de Santa Terezinha localizaram-se a princípio nas matas próximas à margem do rio, aí fazendo suas casas e os primeiros cultivos. À medida que as terras perdiam a fertilidade inicial e as matas escasseavam, eles se deslocavam para o interior. No terreno já desbravado, ia crescendo a vila, enquanto, afastadas das margens, no sertão, iam sendo construídas outras propriedades. 229

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Alguns passavam a plantar no sertão, mas mantinham suas antigas casas no espaço onde se formava a vila para garantir acesso mais fácil à escola e ao comércio. Outros, porém, se mudavam inteiramente para o sertão, onde se organizavam sob a forma de núcleos compostos por unidades domésticas ligadas entre si por vínculos de compadrio, afinidade e parentesco. Constituíam-se, assim, redes de relações que serviam de base às trocas, a prestações de ajuda mútua, à reciprocidade e cooperação no trabalho. No contexto do conflito, esses núcleos, cada qual designado pelo nome do chefe da unidade doméstica em torno da qual se concentravam as demais unidades, foram estratégicos para a organização da resistência. A importância atribuída a cada um variava de acordo com as condições objetivas e as disposições subjetivas de resistir às ameaças da empresa. Todos os núcleos convergiam do sertão para a vila através de estradas e caminhos que iam sendo construídos no ir e vir dos moradores. O primeiro enfrentamento entre os pequenos produtores e a empresa se deu por causa de uma cerca que a empresa mandou construir em torno da área deixada livre entre a vila e o sertão, obstruindo o tráfego e obrigando os moradores a fazer percursos muito maiores entre suas plantações, no sertão, e o centro comercial e suas casas, na vila. Eles se indignaram, mas se puseram a contornar a cerca até o dia em que um mais ousado resolveu cortar a cerca no ponto de passagem. A empresa mobilizou a polícia, que, inutilmente, pressionou a todos para que revelassem o autor da façanha. O autor, afinal, veio a ser a liderança militar do grupo. Os posseiros sempre estranharam as cercas construídas pela empresa e muitas foram cortadas. Várias, porém, ficaram e, em torno delas, houve disputas que duraram anos. De fato, 10 anos depois de terminado o conflito, as cercas da fazenda ainda eram percebidas como símbolos da dominação da empresa: Você vê... São cancelas e mais cancelas... É a dominação da fazenda, está dominando tudo, tem guarita pra todo lado”. (José Carlos, ex-presidente da cooperativa dos posseiros, 1983)

Mas a disputa em torno da área entre a vila e o sertão foi acirrada devido a outras razões. De fato, os posseiros a haviam deixado livre, porque nela se encontravam a principal fonte de água, as pastagens naturais e a “mata dos coqueiros”. Este era considerado “o terreno mais rico” e definido como área comum – aquela onde todos colocavam seu gado na época da seca, de onde tiravam a palha para cobrir suas casas, onde colhiam frutos silvestres e plantas medicinais. A empresa cercou essa área para nela construir a sede da fazenda, mas os posseiros (e o padre) estavam dispostos a lutar por ela. Com a ajuda de uma pequena entidade francesa, criada por sua irmã para recolher recursos, o padre adquiriu alguns equipamentos, os posseiros se juntaram e, coleti230

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vamente, fizeram uma grande plantação na mata próxima, como forma de legitimar sua reivindicação sobre a área tão desejada.3 De fato, muitos dos representantes de agências estatais que vieram à Santa Terezinha perceberam a racionalidade e a justeza da reivindicação dos posseiros. Eram cerca de 140 famílias com aproximadamente 400 cabeças de gado cadastradas. Entregar as pastagens e a fonte d’água à propriedade particular da empresa era inviabilizar a produção daqueles pequenos criadores. Mas a correlação de forças favorecia a empresa, e nada havia na lei que respaldasse qualquer pleito dos posseiros sobre uma área de uso comum. O Estatuto da Terra lhes garantia apenas o direito a lotes familiares, e eles acabaram perdendo para a empresa o acesso à principal fonte de água, às pastagens naturais, à mata de coqueiros, frutos e plantas medicinais. A única área de uso comum que ficou garantida foi a correspondente à vila, mesmo assim um espaço muito exíguo, dado o interesse da empresa em controlar o acesso ao rio. Como dizia, ao fim das lutas, D. Rita, esposa de Joaquim da Mata e mãe de uma extensa família: “Santa Terezinha ficou em cima de um toco”.

NO TEMPO DAS DERRUBADAS: A AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS O ciclo de atividades agrícolas dos pequenos produtores de Santa Terezinha começava no mês de maio, quando, terminadas as colheitas da safra anterior, era tempo de iniciar a preparação das roças novas. Logo no primeiro ano de atividades da Codeara, em 1967, ao aproximar-se o mês junho, a tensão começou a crescer, porque a empresa queria derrubar grande extensão de mata para a formação de pastagens e os posseiros queriam dar início às atividades do novo ciclo agrícola que lhes garantiria a sobrevivência para o ano seguinte, o que implicava em derrubadas de pequenas áreas para cultivo de cada família. Mas, tanto para a empresa quanto para os posseiros, essas atividades tinham também, naquele momento, o valor de afirmação dos direitos sobre a terra que pleiteavam. Foi a época, portanto, de cada um procurar barrar o caminho do outro, ao mesmo tempo em que avançava o mais que pudesse com suas benfeitorias. Nesse momento, exatamente, é que a empresa trouxe, para a tarefa de derrubada, centenas de trabalhadores recrutados fora da região – os peões –, homens jovens e adultos, solteiros ou casados, mas de qualquer 3

Os membros da equipe religiosa sempre se referiam a essa plantação como “roça comunitária”. Os posseiros, porém, dela se lembravam também como a “roça da confusão”. O primeiro nome correspondia à expectativa dos religiosos e dos financiadores de que os posseiros trabalhassem coletivamente; o segundo se referia à indecisão das autoridades que, chamadas inúmeras vezes para arbitrar a disputa, ora davam aos posseiros, ora à empresa a prerrogativa de direitos sobre a área.

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forma separados de suas famílias e desconhecidos para os posseiros. A empresa se valeu da presença desses trabalhadores e da impressão que eles produziam sobre os moradores do povoado para ameaçar os posseiros e, ao mesmo tempo, pressionar as autoridades a intervir em seu favor. Os trabalhos de derrubada da empresa começaram, então, exatamente, no lugar onde se concentrava o maior número de posseiros.4 Esses se reuniram e, semelhantemente ao que fariam os seringueiros do Acre alguns anos depois, foram se encontrar com os peões no interior da mata utilizando, ao mesmo tempo, a ameaça velada de uso da força e o argumento de que ali havia roças de mandioca, capoeiras (terra outrora cultivada e deixada em pousio). Apelavam, nesse sentido, para o fato de os peões serem, no seu entendimento, também membros de famílias de pequenos produtores vindos de outras regiões. Assim lograram impedi-los de prosseguir no serviço. Mas a tensão crescia à medida que os meses se passavam e, segundo os posseiros, muitas vezes, no tempo das derrubadas, eles se dispuseram a um enfrentamento direto com a empresa, o que, de acordo com eles mesmos, o padre não permitira porque pretendia sempre tentar solucionar as disputas pela via legal, recorrendo às autoridades. O padre também sabia que, na violência contida dos posseiros, estava um dos seus trunfos nas negociações com o Estado. Portanto, ele também se dirigia às autoridades e ameaçava: que os posseiros esperavam “desesperadamente” a intervenção do governo e que poderiam interpretar o silêncio das autoridades como uma permissão “para resolverem o caso por conta própria” (Relatório do padre Francisco Jentel, junho de 1967, arquivo da Paróquia de Santa Terezinha). Em junho, o prefeito do município de Luciara, ao qual pertencia o povoado de Santa Terezinha naquela época, publicou um edital pelo qual eram “suspensas as derrubadas de mata, ... não só por parte da Codeara, como também por parte dos posseiros” (Edital da Prefeitura de Luciara, 1o de junho de 1967, arquivo da Paróquia de Santa Terezinha). As denúncias de ação subversiva que os proprietários da empresa faziam contra o padre fizeram com que, nesse mesmo ano, representantes dos órgãos de segurança máxima se deslocassem para a região. O padre Jentel escreveu a seus amigos na França: De repente, a tranqüilidade do céu da aldeia Tapirapé foi quebrada pela passagem de um vôo rasante de dois caças-bombardeiros. Era o dia 13 de julho de 1967. Metralhadora em punho, um sargento foi encarregado de tomar conta dos aviões estacionados. Os índios aterrorizados fugiram. E começou imediatamente um interrogatório ... dirigido por um oficial das Forças Armadas enviado pela Polícia Política e pelo Serviço de Segurança Nacional (Arquivo da paróquia de Santa Terezinha) 4

O padre, denunciando a empresa às autoridades, argumentava que a área da Codeara tinha 180 km de extensão a partir da margem do rio e que os mais importantes núcleos de posseiros ficavam no máximo até 6 km distante do rio e que, exatamente aí, a empresa escolhera iniciar o desmatamento.

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Os donos da empresa não se conformavam com os atrasos porque, além do que já foi dito, se tratava, também, para eles, de cumprir o calendário de atividades que lhes daria direito a novas parcelas de recursos para investimento, como parte do contrato que haviam firmado com a agência estatal de crédito, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Por isso, dirigiam-se às autoridades e, em especial, ao Serviço Nacional de Informação (SNI), um órgão militar muito caro aos governantes naqueles anos de ditadura em que um foco guerrilheiro tentava se instalar não muito longe dali.5 Os tempos eram de anticomunismo e repressão, e os representantes da empresa alegavam que os posseiros estavam sendo incentivados com intuitos subversivos; que com a chegada dos quatrocentos trabalhadores contratados para iniciar os serviços de derrubada, havia a possibilidade de ser desencadeada a violência (Relatório dos diretores da empresa ao SNI, em 14 de julho de 1967. Arquivo da Paróquia de Santa Terezinha). O uso da força na implantação das fazendas na região foi regra geral naqueles anos. Gerentes, fiscais, empreiteiros eram nomes de funções ligadas à organização e controle do trabalho que, no entanto, escondiam também funções de milícia armada. As mesmas pessoas circulavam de um cargo a outro, de uma fazenda a outra. O gerente da Codeara, por exemplo, já era um homem experiente na tarefa de expulsar pequenos produtores para implantação de grandes fazendas. Ele mesmo se vangloriava, junto aos posseiros, de já haver feito isso em São Paulo e era sabido que também já o fizera na mesma Prelazia de São Felix, rio acima, onde estivera a serviço da empresa Suiá-missú, anteriormente mencionada. Em 1967, o tempo da derrubada passava sem que os impasses fossem solucionados. No mês de agosto, de acordo com o calendário climático e religioso dos posseiros, já não era permitido fazer derrubada, de modo que, chegado o mês de setembro, que precede as chuvas, não puderam fazer a queimada que prepara a terra para o plantio da roça nova. Foi então que começou a disputa em torno da propriedade de Joaquim da Mata.

DEFENDENDO A PROPRIEDADE SEGUNDO O DIREITO COSTUMEIRO: O EMPATE DOS POSSEIROS Os pequenos produtores que moravam no sertão costumavam referir-se à sua condição como distinta da condição dos moradores da rua – lugar do comércio. Mata e rua, nesse contexto, adquiriam conteúdo especial: a

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Na fronteira, o que havia naqueles anos eram militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), no sul do estado do Pará. Em 1974, foram dizimados pelos militares, mas a presença do PC do B, atuando através da luta político partidária, continuou forte ao longo dos anos 80.

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mata era o lugar do trabalho duro, da falta de recursos que amenizassem a existência, da proximidade com a natureza, com os animais, das doenças, e, no passado, da convivência como a ameaça de ataques dos índios que habitavam as redondezas. A tudo isso estava associada a idéia dos moradores do sertão e de que eles eram mais dispostos que os moradores da vila para a luta contra a empresa. No sertão, os posseiros se organizavam em “núcleos”, entre os quais o de Joaquim da Mata, que ocupava uma posição especial em termos espaciais e políticos. O termo “núcleo” era seguido de uma designação que era sempre o nome de um chefe de família e assim aparecia nos relatórios dos agentes da Igreja. Joaquim “da Mata” era um nome descritivo, atribuído a um antigo morador, chefe de uma família numerosa e muito respeitada, em função da localização de sua propriedade: bem no começo da mata, na porta do sertão, logo em seguida à área comum, deixada livre para a abertura dos caminhos e para a exploração comum das pastagens naturais, da fonte de água perene e da mata de coqueiros ali existentes. Mas havia também o fato de que Joaquim era o chefe de uma família extensa, tendo vários filhos e filhas, adultos e casados, o que representava alianças construídas e força de trabalho e de luta. Ultrapassar a barreira imposta pela propriedade de Joaquim significava, para a empresa, dar continuidade à área da qual já se apropriara de fato, com a construção de casas e formação de pastagens. Para os posseiros, além da negação da propriedade, tal qual definida pelas regras costumeiras, seria como deixar minar-lhes a resistência e a garantia de permanecer no lugar, pois, se lhes fosse retirada aquela área de mata, só lhes restaria deixar-se transladar para outro ponto, como, aliás, vinha, insistentemente, propondo a empresa desde o início.6 Por tudo isso, a investida contra a propriedade de Joaquim da Mata acabou produzindo a mais forte disposição coletiva de luta dos posseiros na área rural. Para pressionar a família de Joaquim, a empresa mandou extrair madeira a poucos metros de sua casa, a pretexto de que precisava de madeira para fazer cercas. Como a família de Joaquim reagiu, o gerente da empresa os denunciou à polícia, que os levou presos para a sede do município de Luciara, a 150 km do povoado. Foi a primeira vez que alguém foi preso, diretamente, em decorrência do conflito, e a indignação dos posseiros foi grande. Muitos começaram a se afastar da luta, por medo diante dessas ações da empresa e da polícia. Entretanto, o medo também fez com que os mais decididos e perseguidos tomassem uma decisão. Juntaram-se, então, dois 6

Os representantes da Codeara estavam interessados no espaço onde ficava a vila que era nas margens do rio, com dois portos sobre o Araguaia. Propunham que os posseiros se mudassem para um ponto localizado mais para o interior, onde a empresa se comprometia a dar espaço para uma nova sede urbana, no que seria o “Núcleo de Colonização Jatobá”. Essa proposta os posseiros recusavam terminantemente.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

líderes dos posseiros – Joaquim, o mais velho e o mais antigo no lugar, respeitado por sua ascendência sobre uma família extensa, com muitos homens adultos, e Zé Piauí, mais jovem, com filhos pequenos ainda, tendo construído seu prestígio com base na sua disposição de luta. Convocaram os demais posseiros e organizaram a defesa da propriedade de Joaquim da Mata. Chegaram a estar reunidos na propriedade de Joaquim até 60 homens. O clima que se criou foi de guerra, com ameaças e recados cruzando o povoado nos dois sentidos: que os posseiros iam atacar a vila, que a polícia ia invadir a propriedade de Joaquim e prender todo mundo. Foi então que chegou a Santa Terezinha um destacamento da Polícia Federal chefiado por um coronel para resolver o impasse. Como o padre estivesse fora, ninguém se apresentou às autoridades. Só o fizeram Joaquim e outros companheiros quando o padre retornou e eles dialogaram com o coronel, logrando convencê-lo da legitimidade de sua reivindicação. Assim, o ano de 1968 terminou bem para os pequenos produtores, pois, por ordem do coronel, eles tiveram garantido, naquele ano, o direito de preparar suas roças, e a mata ficou preservada da primeira grande investida da empresa.

A LUTA PELO ESPAÇO URBANO: OS CAMPONESES INVADEM A RUA Nas disputas e argumentações acerca do espaço urbano transpareciam o valor político e simbólico que, para além do seu valor material, eram atribuídos a cada segmento: a oposição entre as duas concepções de organização do espaço urbano de que eram portadores, por um lado, a empresa e as autoridades governamentais e, por outro lado, os posseiros. Logo que a Codeara se apresentou para tomar posse das terras adquiridas, sua proposta era que os moradores todos, da vila e do sertão, se transferissem para uma área mais para o interior, deixando a proximidade do rio. Nessa área, a empresa lhes ofereceria um espaço preparado sob o nome de Núcleo de Colonização Jatobá, incluindo área urbana e lotes rurais. Os posseiros e seus aliados recusaram definitivamente a proposta, e as razões são fáceis de compreender. Além das perdas materiais, a distância com relação à única via de entrada e saída de mercadorias do povoado, o rio, a renúncia ao lugar que levava o nome da padroeira, do qual se apropriaria a empresa denominando Fazenda Santa Terezinha seu próprio empreendimento; por outro lado, os moradores passariam a ser “colonos” em vez de posseiros, termo que rapidamente eles haviam convertido em categoria de luta. Em 1968, logo depois dos primeiros embates na área rural a Codeara fez registrar na prefeitura a planta da “futura cidade de Santa Terezinha” e com ela firmou um convênio para a realização das obras de urbanização. 235

Campesinato e Igreja na fronteira

As pressões sobre os moradores começaram pelas duas ruas que davam acesso aos portos sobre o rio. Numa dessas ruas, quase todos os moradores deixaram suas casas. Numa outra, porém, onde se encontravam algumas casas comerciais, moradores mais antigos, possuidores de mais recursos e tendo mais forte enraizamento no lugar, as pressões não surtiram o efeito visado. Aí morava um dos líderes dos posseiros, um tipo urbano que, tendo vindo para a região com a primeira empresa, ainda nos anos 50, acabou ficando e se tornou o braço direito do padre, sendo depois desse, a pessoa mais respeitada pelos posseiros e identificada como líder pela Codeara. Sua propriedade foi invadida e o padre reagiu na medida do esperado e da importância do proprietário: pegou um táxi aéreo, desses que costumavam servir aos próprios fazendeiros, e foi buscar em São Felix, para sustar a invasão, um juiz de direito vindo de Barra do Garça, sede da comarca da região. A disputa começou a se dar diretamente entre a empresa e o padre quando este decidiu transferir para um lote que adquirira de um morador, localizado numa das ruas centrais da sede do povoado, os serviços de ambulatório e escola que funcionavam no alto do morro, onde estavam antigas construções da Igreja. A empresa se opôs à construção da obra alegando que a mesma estava em desalinho com relação ao traçado da “futura cidade” que iria organizar. Logo que os alicerces foram colocados e o material de construção depositado no lote, o gerente da fazenda invadiu o local com um grupo de empregados da empresa e destruiu o alicerce e todo o material de construção ali depositado. Isso aconteceu em 10 de fevereiro de 1972. O padre sempre fizera manifesta sua posição de usar somente as vias legais e a negociação para resolver as disputas e parece que era, por isso, alvo de algumas críticas, mesmo dentro da Igreja. Nesse momento, porém, depois de se dirigir aos seus superiores, voltou a Santa Terezinha e reuniuse com os posseiros e “aceitou o oferecimento do povo” para defender a obra. Ao mesmo tempo, enviou ao juiz de direito um abaixo-assinado para justificar a medida, sob alegação de que a obra atenderia aos interesses dos moradores. Imediatamente, as mensagens começaram a cruzar o povoado nos dois sentidos: os posseiros iam defender “a construção do padre”, e a Codeara destruiria a obra tantas vezes quantas fossem necessárias. Pela primeira vez, os posseiros se deslocaram da mata para resistir à empresa no espaço urbano. Portando suas armas de caça, animados pelos membros da equipe pastoral e assistidos pela Cooperativa e pelos moradores próximos à “construção do padre”, eles se preparam para passar os longos e tensos cinco ou seis dias à espera da invasão anunciada pelos empregados da empresa. Esconderam-se, alguns atrás de um bananal, outros atrás de dois tambores de querosene vazios e, para outros, foi cavada uma trincheira que os protegesse. No dia 3 de março, chegaram ao local da construção dois 236

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capitães da Polícia Militar, cinco soldados, o gerente da Codeara e mais 10 ou 12 empregados armados. A polícia deu ordem de prisão aos pedreiros e se dispunha a amarrá-los com cordas quando começou o tiroteio. De qual dos lados partiu a iniciativa, quem entre os invasores estava armado, quantos homens estavam entrincheirados na construção, são pontos controversos. O fato é que a organização dos posseiros pegou de surpresa os invasores. Os homens que guardavam a construção não foram atingidos, mas entre os que compunham as forças invasoras houve alguns feridos. (Histórico de Santa Terezinha, padre Antônio Canuto, p.33). O enfrentamento foi algo tão marcante na experiência dos posseiros que muitos diziam ter sido a coisa mais importante da vida deles. Daí que cada posseiro, ao relatar os episódios, fazia-o na primeira pessoa, colocando-se como o centro de uma pequena cena, ampliada em seu discurso, a partir de sua própria experiência do ocorrido. Desse episódio, pelo menos, eles saíram vitoriosos. Mas a vitória não se traduziu em ganhos absolutos: a área destinada à vila ficou reduzida a apenas 250 hectares, e os posseiros ficaram privados dos campos naturais, da aguada e da mata de coqueiros.

UMA IGREJA NA FRONTEIRA Até 1960, o nordeste de Mato Grosso formava junto com o sul do Pará o imenso território da Prelazia de Conceição do Araguaia, que, no final dos anos 60, se desmembrou para dar origem à nova Prelazia de São Felix do Araguaia. Instalados na região, desde o início do século, missionários da Ordem dos Dominicanos haviam construído, em 1931, nas terras onde foi se formando o povoado de Santa Terezinha, no alto de um morro na margem do rio, as instalações necessárias para a realização do seu projeto missionário de evangelização dos índios da região. Desde 1954, quando chegou a primeira empresa, essas construções se tornaram objeto de disputas com a Igreja, devido à sua localização estratégica com relação ao porto fluvial. Somente 10 anos mais tarde, através de processo judicial, é que a Igreja conseguiu fazer reconhecer seu direito de proprietária das construções. Logo a Igreja se envolveria, porém, noutra disputa, dessa vez em torno das terras da aldeia dos índios Tapirapé, junto aos quais atuava, desde muitos anos, uma equipe de missionárias da ordem de Foucault, e aos quais viera juntar-se, em 1954, o padre François Jentel. Os Tapirapé estavam, naquela época, muito debilitados física e socialmente. Muitos deles haviam morrido e outros haviam se dispersado na mata, em conseqüência do ataque por parte de outra nação indígena. Os sobreviventes foram, afinal, reunidos perto de um posto do antigo Serviço de Proteção aos Índios, às 237

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margens do rio Tapirapé. A população estava reduzida a menos de trinta pessoas.7 O padre Francisco (tradução portuguesa de François), ou padre Chico, como passou a ser chamado pelos índios, nasceu na pequena cidade de Meriel, nas proximidades de Paris, e era de origem social simples. Tinha um modo particular de exercer seu ofício. Mecânico habilidoso, montava e desmontava motores e máquinas com satisfação e logo começou a tomar iniciativas no sentido de melhorar as condições materiais dos Tapirapé, índios agricultores que estavam em dificuldades para produzir para sua sobrevivência. Se o estilo empreendedor de Jentel correspondia a uma característica pessoal, a proposta de intervenção na economia era mais difundida dentro da Igreja. Essa era a orientação do movimento “Economia e Humanismo”, criado pelo padre Lebret, por volta dos anos 40, que se colocava numa posição de crítica tanto ao capitalismo e à lógica do lucro quanto ao estatismo da proposta comunista, reivindicando uma terceira via para a relação entre economia e sociedade. Chegou a ser elogiado na imprensa brasileira, por suas iniciativas e seu senso empreendedor, dedicado à promoção do “progresso econômico” e à melhoria do padrão de vida dos moradores (O Estado de S. Paulo, 29 de agosto de 1964). No Brasil, médicos, engenheiros e outros profissionais liberais ligados ao movimento “Economia e Humanismo” organizaram em São Paulo a Associação para o Desenvolvimento do Vale do Araguaia (Adeva) com o mesmo fim. O padre adquiriu para os índios um pequeno rebanho e um trator, abriu um poço de água potável, contratou uma professora e um técnico agrícola e abriu, próximo à aldeia, uma pequena pista de aviação, onde naquele tempo aterrissava o velho avião da Força Aérea Brasileira (FAB), que costumava dar carona a doentes, funcionários públicos e pesquisadores, já não havia estradas e ele era o único transporte aéreo que fazia aquela rota, duas vezes por mês. As terras da aldeia Tapirapé ficavam todas dentro da área de 1,3 milhão de hectares que a Companhia Imobiliária do Vale do Araguaia (CIVA), com sede no Rio de Janeiro, havia adquirido ao estado de Mato Grosso, e foi preciso travar uma batalha sem tréguas junto aos diretores da empresa, no Rio de Janeiro, e às autoridades, em Brasília, para regularizar as terras dos índios, demarcando suas fronteiras. Conhecendo os planos da empresa e, de comum acordo com seu superior, o administrador apostólico de Conceição do Araguaia, D. Tomás Balduíno, padre Francisco mudou-se, então, para Santa Terezinha. Em 1965, criou 7

No ano 2000, já eram 438 pessoas da nação Tapirapé. Apoiados pelas Irmãzinhas de Jesus, que vivem entre eles desde os anos de 1950 e, com a ajuda de lingüistas, conseguiram preservar seu idioma e reconstruir suas tradições culturais. Por fim, recuperaram parte de suas terras tradicionais e criaram uma nova aldeia para acolher parte da população que já não cabia numa só aldeia à margem do lago Tapirapé.

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a Cooperativa Mista de Produtores do Araguaia, que, no ano seguinte, já reunia 128 associados. Reunidos em torno da Cooperativa, eles tinham mais força para se contrapor aos planos da Codeara, que havia comprado as terras da Civa, onde estava o povoado. A Cooperativa teve de fato um papel importante. Com a ajuda de seus amigos franceses, o padre construiu um galpão para armazenar produtos, comprou tratores e uma máquina para beneficiar o arroz, abriu uma estrada de terra ligando o povoado de Santa Terezinha à aldeia Tapirapé, contratou um técnico agrícola, começou a fazer experimentos agrícolas e a sondar mercados para os produtos que podiam ser cultivados na região. D. Tomás, que logo foi nomeado bispo e deslocado para a Diocese de Goiás, no estado vizinho de Goiás, continuou a trabalhar em conjunto com os religiosos e leigos das equipes pastorais da região, desempenhando papel central na articulação entre os bispos da Igreja Católica na Amazônia. Tendo recebido como doação para seus deslocamentos um pequeno avião para quatro pessoas, ia com facilidade de um ponto a outro do imenso território que compreendia as três unidades administrativas eclesiásticas vizinhas: São Felix do Araguaia (Mato Grosso), Conceição do Araguaia (Pará) e Goiás Velho (Goiás). Para a Prelazia de São Felix do Araguaia, foi nomeado o espanhol Pedro Casaldáliga. Chegado em 1968, sem nenhuma intenção de meter-se em assuntos que não fossem estritamente religiosos, Casaldáliga foi logo convertido à causa dos índios e pequenos produtores, tornando-se, junto com D. Tomás e outros bispos, o grupo que, daí em diante, iria se posicionar contra as políticas dos militares e denunciar as práticas dos novos latifundiários da região.

DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS DENTRO DA IGREJA CATÓLICA Sua atuação logo se projetou nacional e internacionalmente. O carisma de Casaldáliga, o dinamismo do padre Jentel, o senso político e o poder de negociação de Tomás Balduíno, assim como a atração que exercia à resistência dos pequenos produtores, logo atraíram militantes de esquerda que foram acolhidos pelas equipes locais – uma prática que se tornou comum naquela época de repressão e que foi responsável pela expressão “guardachuva da Igreja”, referência ao fato de sob seu manto protetor se abrigarem militantes de diversas orientações políticas. O modo como atuava o padre Francisco, empenhando-se em criar alternativas econômicas para índios e pequenos produtores, agindo, muitas vezes por iniciativa própria e antecipando-se à iniciativa dos diretamente interessados, foi questionado por aqueles que reclamavam um trabalho mais político e pedagógico na relação com o povo. 239

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Mas, independentemente da perspectiva mais pragmática e pouco politizada do padre, a Cooperativa teve nas disputas uma importância política e simbólica muito maior que a função estritamente econômica a que pudesse estar destinada. Os pequenos produtores tinham-na como um espaço de organização e lá se reuniam para tomar em conjunto as decisões sobre suas ações coletivas no decorrer do conflito. Na ausência de sindicatos ou outro tipo de organização, funcionava também como instância de representação coletiva, quando os pequenos produtores tinham que se dirigir às autoridades e aos seus opositores. O fato de ela existir, com seus 128 membros, num povoado de duzentas casas, constituía um fator de legitimação das reivindicações dos posseiros, à medida que aparecia como a concretização do seu esforço de produção, prova do trabalho investido na terra que pleiteavam como sua. Contribuía, assim, para fortalecer a auto-estima do grupo, além de prestar socorro àqueles que, por seu envolvimento na luta com a empresa, ficavam momentaneamente impossibilitados de plantar e colher para atender às necessidades de alimentação da família. Os líderes dos pequenos produtores estavam bem conscientes dessas funções e, embora a Cooperativa passasse sempre por crises financeiras, muitos resistiram à idéia de fechá-la, de modo que ela foi mantida ainda durante muitos anos após o término do conflito. Havia certo desencontro entre a proposta do padre e o entendimento que os pequenos produtores tinham da Cooperativa: o padre insistia que ela deveria ser assumida pelos pequenos produtores, estes a ela sempre se referiam como sendo “a Cooperativa do padre”. Eles agiam com relação à Cooperativa em termos de uma lógica de prestação e contraprestação de favores pessoais, afirmação ou negação de lealdade e confiança entre eles e o padre ou os funcionários da Cooperativa.8 Durante as disputas pela terra a articulação entre os membros da Igreja na região ia se fortalecendo e buscando apoio entre os membros da hierarquia. Ao ser sagrado bispo da Prelazia de São Felix do Araguaia, em 1970, D. Pedro escreveu uma carta pastoral na qual denunciava a violência das empresas e da polícia contra os índios, os pequenos produtores e os trabalhadores contratados para a instalação das fazendas na região. O documento “expressava a reflexão e a fundamentação política e teológica de uma prática pastoral já em andamento” (Poletto, 1997, p.31) e provocou a resistência da hierarquia da Igreja, tanto que o texto só foi publicado no ano seguinte, como parte de um documento maior e sob o título Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social (Casaldáliga, 1971).

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Em outras oportunidades analisei essas e outras questões relativas às práticas da Igreja junto a pequenos produtores em várias partes do país. Ver Esterci, 1981, 1984 e 1987.

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A carta de D. Pedro não foi um fato isolado, pois “processos pastorais semelhantes estavam sendo vivenciados por outras igrejas locais ...” (Poletto, 1997, p.31). Logo, bispos progressistas de outras regiões tomaram iniciativas semelhantes. Divulgaram-se assim, em 1972, a carta do regional Sul (Testemunho de Paz) e, em 1973, as cartas do regional Nordeste (Eu ouvi os clamores do meu povo) e do Centro-Oeste (Marginalização de um povo, Grito das Igrejas) (Casaldáliga, 1997, p.79-80). Os bispos mais progressistas, entre os quais estavam os líderes da Igreja da Amazônia aos quais estamos nos referindo, se constituíram, afinal, em uma minoria ativa e convincente dentro da CNBB. Isso se devia não só ao fato de eles terem acumulado reflexão teórica (teológica e ética) muito superior, mas também por estarem legitimados pela experiência da repressão (do martírio) que então atingia também religiosos de outras regiões (alguns acusados de comprometimento com os movimentos de guerrilha urbana), o que fazia crescer o sentimento de unidade de uma Igreja, internamente diferenciada, que se unia diante da força dos governos militares. Entre os religiosos presos nessa época, alguns eram ligados à ordem dos dominicanos, à qual também pertenciam alguns dos bispos mais ativos das igrejas da Amazônia (Conceição do Araguaia, Marabá) e dioceses vizinhas (Goiás e Porto Nacional). A minoria ativa e progressista, então, começou a ser reconhecida e sua palavra passou a ter peso e a se destacar entre as vozes dos cerca de 250 bispos que compunham a CNBB, entre os quais eles eram pouco mais que 10%. Em 1972, ainda por iniciativa dos bispos e padres da Amazônia, foi criado o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), com o objetivo de conduzir a ação pastoral junto aos povos indígenas e defender seus territórios contra o avanço das empresas que compravam terras na Amazônia. Entre os bispos fundadores da nova entidade estavam D. Tomás Balduíno e D. Pedro Casaldáliga. Mas os líderes dos bispos da Amazônia fariam ainda outras gestões no sentido de obter apoio da cúpula dos órgãos eclesiásticos para suas propostas de ação pastoral. D. Pedro e sua Igreja estavam inegavelmente marcados pela repressão que se abatera, primeiro sobre o padre Francisco Jentel e, nos anos seguintes, sobre religiosos e leigos de todas as equipes locais da Prelazia de São Felix, muitos deles presos e torturados pelas forças da repressão. Foi nesse contexto que os bispos reunidos em Itaici, em 1974, ouviram o questionamento de D. Pedro Casaldáliga às atitudes da Igreja diante da violência do governo na região (Poletto, 1997, p.34). Segundo Poletto, foi então aceita a proposta de fazer um encontro para analisar o que estava acontecendo na região e, em 1975, em Goiânia, aconteceu o encontro sobre a pastoral da Amazônia. Com o aval da CNBB, formou-se uma “comissão”, reconhecida como um “organismo pastoral autônomo”, ligado à CNBB, mas autônoma com relação à sua organização e à sua atuação. Nascia, assim, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) (Poletto, 1997, p.35). 241

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E A GUERRA CONTINUA, POR OUTROS MEIOS Passaram-se os anos e, assim como não se conformavam com as cercas, os pequenos produtores também nunca se conformaram com a perda da área comum mais significativa que acabou ficando para a empresa: o Varjão. Cercas e guaritas a protegiam e foram postos guardas para vigiar as entrada, mas, aqui e ali, os posseiros continuaram a, sorrateiramente, introduzir seu gado para usufruir a aguada e os pastos naturais. Assim foi, até que, na conjuntura muito mais favorável de final dos anos 90, os remanescentes e descendentes dos antigos posseiros organizaram-se em torno de uma associação, apelaram para a mediação do bispo, que continuava sendo D. Pedro Casaldáliga, e reivindicaram ao governador, um antigo aliado dos tempos da ditadura, a posse do Varjão. Passados 29 anos desde que as autoridades o haviam atribuído à empresa, ele retornou ao controle dos pequenos produtores. Segundo o antigo presidente da Cooperativa: o Varjão era mais para os posseiros. Era o lugar dos primeiros moradores ... E está liberado agora, por causa desse trabalho que a gente fez. A gente se reuniu e chamou atenção do governo do estado, dos políticos, dos deputados, foi por aí. (Palavras de José Carlos, Santa Terezinha, fevereiro de 2006).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Para compreender a lógica da organização dos pequenos produtores de Santa Terezinha sobre o espaço e captar os conceitos que definiam as relações dos moradores com a terra e os recursos, foi preciso deixar inteiramente de lado as noções jurídicas de domínio e propriedade constantes da legislação brasileira. Apesar de as designações de posse e propriedade constarem dos dois vocabulários, foi preciso fazer como Bohannan (1963 e 1967), ao estudar os sistemas fundiários africanos e esvaziar completamente de conteúdo as relações entre a terra como objeto e os homens como sujeitos, de modo a deixar abertas todas as possibilidades que pudessem estar indicadas no discurso e nas práticas dos moradores. Foi possível ver muito claramente que estavam em disputa duas racionalidades contraditórias, e que as autoridades presentes não poderiam ceder aos pleitos dos posseiros, pois elas faziam parte de outra ordem de organização do espaço e das relações com a terra. Dada a repercussão que – devido em parte à intervenção da Igreja – as lutas tiveram, não foi possível negar-lhes, como os novos latifundiários tentaram fazer anteriormente, o direito ao mínimo que lhes garantia a lei: o lote familiar. Manifestou-se assim, no ato de sua aplicação, o senso de justiça que, como argumenta Thompson, toda lei deve conter para legitimar-se. 242

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Ao apelar simultaneamente para a lei e para os costumes, os posseiros e seus aliados testavam as margens de barganha para ampliar seu espaço e garantir o território – espaço coletivo, no qual várias outras formas de uso e domínio particulares se acomodavam e que se fundava em critérios de pertinência e direitos em razão de trabalho investido, relações sociais e lugares construídos, afetos e memórias, nos moldes daquilo a que se refere Pacheco de Oliveira (1998) e conforme descrito neste artigo. Mas isso fazia parte das normas costumeiras locais. Ganharam e perderam. Os conceitos por eles construídos não tinham respaldo legal, mas a projeção pelas lutas que travaram entre 1965, quando começou o conflito, e 1973, quando se deu o confronto na área urbana, garantiu a todos os posseiros, mesmo aqueles que vieram juntar-se à luta mais tardiamente, o acesso ao lote familiar. Tendo pelo menos o lote familiar, muitos permaneceram na área e ali se mantêm até hoje. Junto com seus descendentes, cultivaram a memória positiva dos enfrentamentos e foram se organizando paulatinamente em outras bases. Em 1975, já haviam formado um sindicato de trabalhadores rurais e depois vieram a eleger vereadores e prefeitos escolhidos entre seus líderes aliados. E, em todo mês de março, reúnem-se para a celebração da vitória que alcançaram.

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10 UM MOVIMENTO QUE MARCOU ÉPOCA: A CORRENTE SINDICAL LAVRADORES UNIDOS DE SANTARÉM* Jean-Pierre Leroy

INTRODUÇÃO

Na madrugada de 12 de abril de 1985, um incêndio criminoso destruiu a sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, Pará. A responsabilidade sobre o fato nunca foi esclarecida, mas não faltavam inimigos aos trabalhadores rurais do município, incomodados com uma luta iniciada em 1975. Na fachada em ruínas, estenderam uma faixa: “O sindicato somos nós”. “Nós” significava os lavradores do Tapajós, colonos da Transamazônica, produtores do planalto, varzeiros do Amazonas, pescadores; mulheres, homens, jovens; paraenses, maranhenses, cearenses, gaúchos; caboclos, brancos, negros e mulatos reunidos num ente coletivo em que se reconheciam. Afirmavam seu pertencimento: todos e todas trabalhadores rurais, membros do campesinato. Embora essa palavra não fizesse parte do seu vocabulário, usei-a para significar que eles e seu movimento se inscreviam dentro de uma tradição de lutas formadoras de uma classe, do Norte ao Sul, cuja unidade esse nome simboliza, como tão bem o descreveu José da Souza Martins: Camponês e latifundiário são palavras políticas que procuram expressar a unidade das respectivas situações de classe e, sobretudo, que procuram dar unidade às lutas dos camponeses... Estão enraizadas numa concepção da história, das lutas * Este artigo é uma síntese de Leroy (1991), livro produto de uma dissertação de mestrado em educação defendida no Instituto de Estudos Avançados em Educação/FGV, orientada pelo Dr. Cândido Grzybowski. A pesquisa de campo, que incluiu 48 entrevistas/histórias de vida, foi realizada em 1985.

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Um movimento que marcou época

políticas e dos confrontos entre classes sociais. Nesse plano, a palavra “camponês” não designa apenas o seu novo nome, mas também o seu lugar social, não apenas no espaço geográfico (campo/cidade), mas na estrutura da sociedade; por isso, não é apenas um novo nome, mas pretende ser também a designação de um destino histórico (Martins, 1983, p.22).

O termo “trabalhador rural”, com o Estatuto do Trabalhador Rural (1963), a criação da Contag (janeiro de 1964), a regulamentação da organização sindical, instituindo o sindicato de trabalhadores rurais (1965), a criação do Funrural e do Prorural (1971), se sobrepõe ao termo “campesinato”, evocador das lutas das Ligas no Nordeste no pré-64, evidentemente carregado de conotações “subversivas”. A qualificação “trabalhador rural”, apesar de marcada por um forte componente institucional e autoritário, acabou se legitimando. O seu uso aqui sinaliza, ao mesmo tempo, continuidade institucional e ruptura, pois é portador de novas lutas. Este texto aborda uma década, 1975-85, mas essas “novas lutas” do campesinato santareno não surgiram do nada. A unidade do movimento nasceu de uma rica diversidade, constituída espacialmente, conforme a proveniência de determinado grupo e a sua inserção no ecossistema, e historicamente, conforme a sua origem e a época em que chegou. Começarei assim apontando alguns elementos da formação desse campesinato, antes de mostrar a sua emergência como ator social, a sua afirmação coletiva, os seus dilemas. Deixarei a história inconclusa.

A FORMAÇÃO DO CAMPESINATO SANTARENO Aqui é a terra da promessa (um colono)

A história da ocupação do município e a grande diferenciação do espaço físico condicionaram a constituição de um campesinato diversificado e heterogêneo. Numa evidente simplificação, distinguiu o da várzea e o de beira-rio, o do planalto e o das estradas. O município de Santarém, situado na foz do rio Tapajós, no Baixo Amazonas, até o primeiro desmembramento, em 1987, abrangia 26.058 km2, superfície maior que a do estado de Sergipe. A geografia física e humana, na época, era marcada, de um lado, pelos rios Amazonas, com suas grandes e ricas extensões de várzea, Tapajós, Arapiuns e Curuá-Una e, mais recentemente, pelas estradas Santarém–Cuiabá e Transamazônica. De um lado, a Várzea, com os seus lagos, paranás, ilhas, restingas, campos, florestas de igapó. De outro, a Terra Firme, com a floresta onipresente, fora uma pequena mancha de cerrado. Ambas se opõem e se completam. 246

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

As várzeas e a beira dos rios e igarapés formam o mundo de águas e matas dos “caboclos”. Povos indígenas, antes da colonização portuguesa, ocupavam a região, não só os rios, mas a mata, como testemunham as numerosas ocorrências de “terra preta” ou “terra de índio” e os abundantes achados arqueológicos que manifestam a rica arte tapajós. Se, nos anos 70 do século precedente, os moradores do Tapajós não se reconheciam como índios, laudos antropológicos confirmaram o auto-reconhecimento da identidade indígena das comunidades locais que entraram nesse movimento. Mesmo redescobrindo a sua identidade, eles são, em boa parte, fruto do processo de ocupação da região promovido pelos colonizadores. A chegada de Pedro Teixeira, chefiando uma tropa de resgate, às praias do Tapajós, em 1637 ou 1638, marca a entrada da região na economia mercantil colonial, impulsionada por Portugal nos séculos XVI a XVIII. Para a colheita das “drogas do sertão”, a pesca e a navegação, recorria-se à escravidão indígena. Os jesuítas, presentes desde 1661 na aldeia dos Tapajós, opuseram-se a ela e, em contrapartida, aprovaram a africana. No decorrer do século XVIII, sob o impulso da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, fazendas produtoras de gado, cana-de-açúcar e cacau instalaram-se na várzea e na sua proximidade. Com elas chegaram escravos negros. Esse sistema entrou em decadência no começo do século XIX. Negros começaram a fugir. Mais tarde, constituíram quilombos no rio Trombetas e na várzea. Amadurecia a Cabanagem, que espocou em 1835. Os cabanos juntaram, contra os conservadores e os “reinóis”, o que chamaríamos hoje de “classe média”, o povo oprimido e desesperado e alguns fazendeiros. Em Santarém, eram, sobretudo, sertanejos. O governo cabano ocupou a vila de Santarém em março de 1836. Meses depois, os cabanos foram expulsos pelas tropas legalistas, prolongando por um ano a sua resistência na várzea. É interessante observar como o preconceito e mesmo o ódio de classe permaneciam mais de um século depois, na visão de um “historiador” santareno sobre a cabanagem. Para ele, os cabanos eram “um magote de amotinados, atiçados por más cabeças e pelo álcool”, “malta de refinados malandros e índios viciosos vadios” (Santos, 1974). Na metade do século XIX, foram descobertos os seringais do Tapajós, que passaria a ser identificados como “o rio da borracha” (Reis, 1979, p.168). Boa parte da rarefeita população rural lançou-se à exploração dos seringais. Passado o primeiro surto da borracha, os varzeiros, habitantes das várzeas do Amazonas, e os moradores de beira-rio, ocupando a “terra firme”, passaram a cumprir a importante função de abastecer a população voltada para o extrativismo exportador. Na virada do século XX, começava a se configurar a ocupação dos rios e da várzea como conhecemos até os anos 70. Produziam-se mandioca, feijão, melancia, jerimum, pescado, gado e, a partir dos anos 30, juta, iniciada com a imigração japonesa. 247

Um movimento que marcou época

O segundo processo de ocupação deu-se com os nordestinos na área de floresta de terra firme chamada de planalto, formada por um platô que se levanta a partir dos rios Tapajós e Amazonas. A região Norte precisava muito de mão-de-obra, pois a Cabanagem, além de ter acelerado o desmoronamento do latifúndio baseado sobre o trabalho escravo, causou, junto com grandes epidemias, a redução da população e da produção agrícola. Segundo o historiador Antônio Raiol, “a população livre do Pará em 1833 era de 119.877 habitantes, inclusive 32.751 índios”. Ele estimava “em trinta mil o número de mortos na Cabanagem” (citado por Rocque, 1984, p.53 e 528). É assim que chegaram, para iniciar a colonização do planalto santareno, 160 norte-americanos (Santos, 1974, p.365). Foi um fracasso. Na grande seca de 1877/78, apelou-se para os nordestinos. Foi instalada a colônia Bom Gosto, onde tinham chegado, até 1879, seiscentos nordestinos. A colônia, submetida à concorrência com os seringais, não prosperou. No final do século XIX, o Médio Amazonas e o Acre ultrapassaram a produção de borracha do Tapajós e, em 1915, as plantações asiáticas de seringais suplantaram definitivamente a produção brasileira. Só nos anos 40, com o bloqueio do acesso à borracha asiática, devido à Segunda Guerra Mundial, os seringais nativos brasileiros voltariam a ter importância internacional e os nordestinos, a serem exigidos, convocados a se tornar “soldados da borracha”. No entretempo, Santarém havia conhecido a aventura da Companhia Ford Industrial do Brasil, a criação e o fracasso de duas grandes plantações de seringas na margem direita do Tapajós, no lugar que ficou conhecido como Fordlândia, e em Belterra. Após 1910, as primeiras famílias de cearenses começam a desbravar o que viria a ser a Vila de Mojuí dos Campos e a cultivar algodão. Além dos ex-seringueiros, migrantes chegaram diretamente do Nordeste para a colonização, como foi o caso depois da seca de 1930 e nos anos 50, em que se deu um grande movimento migratório. A cultura do algodão não prosperou, mas o planalto tornou-se o grande fornecedor de arroz, feijão, milho, frutas, malva e, mais recentemente, de pimenta-do-reino. O mais recente ciclo de migração e de ocupação do município ocorreu entre 1970 e 1980, com a abertura da Transamazônica (BR-230) e da Cuiabá–Santarém (BR-163). Pela primeira vez, a ocupação da região dava-se não a partir dos rios, mas a partir dos “fundos”, pelas estradas. Formou-se aí um grupo social histórica, cultural e economicamente diferente dos produtores, lavradores e varzeiros das outras regiões do município, diferença que procurei qualificar sob a denominação de “campesinato das estradas”. Os militares no poder, imbuídos da doutrina de segurança nacional e do ideário desenvolvimentista, não podiam deixar a Amazônia fora dos seus planos. Percebida como “vazio demográfico” e “vazio econômico”, ela demandava sua intervenção, o que começou a se concretizar com a criação, em 1966, da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia 248

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(Sudam) e do Banco da Amazônia (Basa). Em 1970, o general Médici criou o Programa de Integração Nacional (PIN), destinado a financiar obras de infra-estrutura na Amazônia, em particular a construção das duas grandes rodovias. Se, oficialmente, o PIN solucionaria dois problemas (o do “homem sem terras do Nordeste e o da terra sem homens na Amazônia”, segundo discursou, em Manaus, o próprio Médici por ocasião da criação do PIN), as estradas cumpririam várias funções: permitiriam o assentamento de semterra, nordestinos e outros, evitando possíveis explosões sociais e freando um pouco a migração em direção aos grandes centros urbanos; abririam o interior da Amazônia aos empresários e fazendeiros, colocando à sua disposição mão-de-obra barata; assegurariam o acesso às jazidas minerais que estavam sendo descobertas; e facilitariam o seu escoamento. Como antídoto à censura e à repressão, elas prolongariam o ufanismo promovido pela Copa Mundial de Futebol de 1970, com o tema do “Brasil Grande”. A Transamazônica representava “uma arrancada histórica para a conquista e colonização do gigantesco mundo verde”, segundo os dizeres da placa inaugurada por Médici em 1970, fincada num tronco de castanheira na entrada de Altamira, e conhecida até hoje como “o pau do presidente”. Enfim, elas facilitariam o controle militar da região, o que era de suma importância num momento em que havia notícias, ainda secretas, da implantação de um foco guerrilheiro no Araguaia. Em 1972, chegavam ao Projeto Integrado de Colonização (PIC) de Itaituba, que abrangia Santarém, os primeiros colonos. No final de 1976, o PIC contaria 1.554 famílias assentadas, sendo previsto o assentamento de mais 2.457 famílias para 1977-79. Além de nordestinos, havia famílias de pequenos produtores, oriundas de regiões em via de minifundização, vindas do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Um número razoável desses “gaúchos” foi assentado na área de influência de Rurópolis, no município de Santarém. Junto com esses colonos oficiais, chegavam milhares de migrantes vindos, principalmente, do Maranhão, no fim do itinerário clássico do posseiro: do Ceará, passando pelos vales do Itapecuru, do Mearim, do Pindaré (MA), pelo Bico do Papagaio (no então Goiás) e pelo sul do Pará. Expulsos sucessivamente após deixar a “terra amansada” para a pecuária e a especulação, chegavam, atraídos pela propaganda oficial, à procura de terras livres e passaram a ocupar com teimosia lotes de estradas desocupados e, sobretudo, travessões inóspitos. Gaúchos e maranhenses, colonos e posseiros, todos sonhavam. O jornalista Lúcio Flávio Pinto, num artigo escrito em 1975, citava o coronel Jarbas Passarinho falando do “êxito” da fixação dos colonos e dos “resultados em produtos agrícolas extremamente favoráveis”. Se existiam problemas com a colonização, era porque “não se contou foi com a migração espontânea” (Pinto, 1977, p.267). Ao que o Lúcio Flávio Pinto respondia que, “sem essa migração espontânea, o fracasso seria ainda maior” (idem, ibidem). 249

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Na realidade, como o mostraram Jean Hebette e Rosa Acevedo (Hebette, Acevedo, 1979, p.114), a distância entre as duas formas de colonização não é tão relevante, pois a colonização “espontânea” é um processo também induzido/dirigido e porque, em ambos os tipos, o enfoque social, mal se instalavam os colonos, já estava ultrapassado. É assim que o então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Veloso, declarava em 1973: Até aqui a Transamazônica deu ênfase à colonização, mas a necessidade de evitarmos uma ocupação predatória com conseqüente processo de desmatamento e a de promover manutenção do equilíbrio ecológico nos levam a convidar as grandes empresas a assumir a tarefa de desenvolver essa região” (Cardoso, 1977, p. 158).

O Programa Polamazônia, de 1974, e o Plano de Desenvolvimento da Amazônia, elaborado em 1975 pela Sudam, retomariam essa orientação. Os colonos, que nunca chegaram a receber muito apoio, veriam minguar ainda mais os recursos que lhes eram destinados. Produtores de arroz e de outras culturas anuais nos primeiros anos, eles passaram a cultivar pimentado-reino e cacau e a criar gado. Começavam a construir sua história. Talvez o amplo horizonte das suas andanças e a necessidade imperiosa de criar raízes, pois chegavam ao “fim da linha”, fizessem com que passassem a se destacar no nascente movimento sindical. Em poucas centenas de estradas, formavam a síntese do campesinato brasileiro. Com eles, completava-se a fisionomia da população e do espaço rural/florestal santareno. A população rural de Santarém passou de 41.016 pessoas em 1950, para 60.536 em 1960, 73.499 em 1970 e 80.293 em 1980. A população urbana passou sucessivamente de 19.213 para 32.615, 61.616 e 111.657 em 1980, quando ultrapassou a população rural. Vale notar que parte da população classificada como urbana está voltada na realidade para as atividades rurais. Essa população é então concentrada no Planalto, no Lago Grande (várzea), na direção do Tapajós, na vizinhança de Santarém, e relativamente densa ao longo dos rios e da Transamazônica.

A EMERGÊNCIA DE NOVOS ATORES SOCIAIS (1974-1977) Quem somos nós? Um gigante adormecido porque não descobre seu valor. (um lavrador, I Encontro da CPT, dezembro 1976)

Em 1974, o general Geisel assume a Presidência da República em condições políticas e econômicas favoráveis a seu projeto de distensão. A oposição política oficial – o MDB – era moderada e a clandestina tinha sido esmagada. Apesar da crise de petróleo de 1973, o PIB tinha crescido 13% em 1973. Porém, o seu projeto sofreu os impactos da vitória do MDB nas eleições 250

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majoritárias de 1974, da reação da extrema-direita militar e da campanha de desestatização oriunda de parte da burguesia industrial e financeira (Cruz, 1984). Apesar disso, o Governo Geisel deu continuidade à política econômica da ditadura. Prosseguiu a entrada maciça de empréstimos externos, promoveram-se grandes investimentos nos setores de energia, petroquímica, siderurgia, transporte. A Amazônia foi integrada a esse processo, aparelhada com a Sudam, o Basa, a abertura de estradas e a federalização das terras ao longo das estradas federais. Inicia-se o Projeto Carajás. Politicamente, Santarém acompanhou o que aconteceu no plano nacional. A burguesia local abriu mão do governo municipal para não perder seu poder econômico-político, como fizera a burguesia nacional em 1964. Santarém, assim como a cidade de Santos, foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional e perdeu a sua autonomia. As “tradicionais famílias” não estavam muito interessadas pela distensão. Continuavam a dominar a economia local, sobretudo através do comércio, a principal atividade econômica da cidade. Apesar de não parecer muito afetada pelos planos de desenvolvimento, Santarém estava mudando. A modernidade chegava. A presença do Governo Federal cresceu consideravelmente. Instalou-se o 8o Batalhão de Engenharia e Construção (BEC), construtor de parte da Cuiabá–Santarém. A federalização da terra ao longo das estradas federais fez do Incra, para além da colonização, o executor de um ambicioso plano de regularização fundiária; a Sudam e o IBDF, com a criação da Floresta Nacional do Tapajós, reforçaram a sua presença. Foram construídos nesses anos a barragem hidrelétrica de Curuá–Una, o porto, o cais e o aeroporto. A Sudam incentivava empreendimentos: pimenta-do-reino, barcos pesqueiros, empreendimentos agropecuários, tais como a Agropastoril Boiúna-Soboi, e florestais, como a Santa Izabel Agroflorestal. Se somarmos a isso o crescimento urbano (a cidade passa de 51 mil habitantes em 1970 para 102 mil em 1980) e o crescimento populacional ao longo da BR-163 e da Transamazônica, vemos que, definitivamente, o município, na confluência do tradicional e do moderno, estava mudando. O tecido social se distendia e se fragilizava. A auto-organização tradicional, bem como o sistema de representação através de comerciantes e de vereadores e cabos eleitorais, não respondia bem à nova situação. Havia, portanto, uma possibilidade de vazio político nesse momento de reordenação do espaço e das relações sociais (Martins, 1984). Quem iria ocupar politicamente o terreno? O único setor da sociedade civil capaz de preencher em Santarém o vazio político era a Igreja Católica. Apesar de a hierarquia ter dado seu apoio ao golpe de 64, ela tornou-se progressivamente uma força de oposição ao regime. Em 1968, reunida em Medellin, a Conferência Episcopal Latino-americana (Celam), com participação destacada de bispos brasileiros, afirmou a sua “opção preferencial pelos pobres”. Em 1972, os bispos da Amazônia, 251

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reunidos em Santarém, definiram as suas “linhas prioritárias” e chamaram a atenção sobre o “desenvolvimento feito sem ou contra o próprio homem; violação de direitos básicos, como a posse da terra, injusta distribuição dos recursos materiais e dos incentivos públicos” (Prelazia, 1972: 2). Dom Tiago Ryan, bispo de origem norte-americana de Santarém, declarava que a Igreja do município seguiria essas orientações. Os franciscanos que dirigiam a prelazia local sempre manifestaram preocupações sociais. Nesse plano, cabe destacar algumas paróquias, a catequese urbana e a catequese rural. Esta última, sob a responsabilidade do frei Rainerio, se fazia presente em todos os recantos do município, organizava todo ano “semanas catequéticas” e cursos de aprofundamento, em que procurava ligar “o tempo da Bíblia ao tempo de hoje”, “a fé à vida”. O Movimento de Educação de Base (MEB), nos anos 70, depois da perseguição que tinha sofrido, passou “da ênfase sobre a conscientização para a ênfase sobre a ajuda mútua” (Paiva, 1973, p.282). No mesmo campo, colocava-se a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), ONG de origem católica fundada em 1961, com sede no Rio de Janeiro, voltada para a promoção da educação e do desenvolvimento comunitário, presente em várias regiões do Pará. A Fase e a Igreja oscilavam entre a ideologia do desenvolvimento e uma pedagogia crítica e libertadora no espírito de Paulo Freire e da Teologia da Libertação. No que diz respeito ao interior santareno, a balança penderia, nos anos 1974/75, para a segunda alternativa. Nessa linha, teriam, por ajudar a criar condições para a emergência do movimento, um papel importante a catequese rural e dois agentes de pastoral, Ranulfo Peloso da Silva e Geraldo Pastana, que haviam feito a opção de morar no interior como o povo, à procura da “integração da fé na vida”, bem como a Fase, que definiu seu programa como voltado para o homem rural no que tem de essencial: a sua condição de produtor, o que a fez optar pela assistência à produção e à organização sindical. No primeiro semestre de 1977, realizaram-se as eleições para a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Santarém. O STR tinha sido criado em 1972 por colonos do planalto, com sede em Mojuí dos Campos. Como aconteceu com a quase totalidade dos STRs do estado e com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará (Fetap), sua criação foi incentivada pelos políticos ligados à ditadura, notadamente o grupo do coronel Jarbas Passarinho. Estando na mão de homens de confiança, constituiriam-se em instrumentos de controle do campesinato e dos currais políticos. Apresentou-se então uma chapa de oposição, constituída a partir da ação das instituições e pessoas acima mencionadas. Como se chegou lá? Quais eram as ações mobilizadoras e conscientizadoras dos trabalhadores rurais que lhes ajudaram a se tornar movimento? Os dois agentes de pastoral moravam na colônia do Prata, no planalto. No começo de 1975, foi formado o primeiro grupo de revenda (GR), 252

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para viabilizar a compra em conjunto dos produtos não produzidos pelos membros do grupo. Rapidamente, os GR se espalharam pelo município, não só em razão das semanas catequéticas, mas porque tentavam dar uma resposta a um problema fundamental para o lavrador: a sua dependência do comerciante local. Outras iniciativas, como a compra de uma “usina” de beneficiamento de arroz e a de um caminhão comunitário, tinham o mesmo sentido. Enquanto isso, na Terra Firme do Ituqui, na margem da várzea de mesmo nome, no rio Amazonas, as 200 famílias distribuídas em sete povoados e 12 mil hectares, instaladas lá desde 1884, descobriram que os herdeiros do dono das terras, que tinha recebido uma “carta régia de doação” no começo do século XIX, as havia vendido à S.A. Agropastoril Boiúna Soboi. A firma começou a abrir “picos”, a mandar fiscais do IBDF perseguir, destacamento policial intimidar, Polícia Civil prender, Polícia Federal intimar lavradores. A Fase tinha firmado um convênio com o STR (considerado como pelego, pois dava garantia à ditadura que o STR não seria transformado em instrumento de organização da categoria), em que este a encarregava da formação sindical nas e para as delegacias sindicais do interior. Hortas comunitárias e cursos de formação sindical e sobre posse da terra, promovidos pela Fase, facilitaram a organização das “comunidades” e sua união. Que o diga o delegado da Polícia Federal quando 62 lavradores atenderam à intimação feita a três deles. Os moradores conseguiram que o sindicato contratasse um advogado para defendê-los. Apesar de uma liminar concedida, ainda em 1975, pela juíza local em favor dos posseiros, a Soboi voltou a investir contra eles em 1977. Nessa data, a causa não era mais dos sete povoados, mas de todo o movimento. A Soboi se aquietou, mas somente na década de 90 os moradores do Ituqui foram oficialmente “assentados”. Os moradores do Ituqui, que hoje poderiam ser reconhecidos como “povo tradicional”, começavam a descobrir o processo de entrada do capital monopolista na região pela mão armada do Estado. Por meio dos colonos da Transamazônica, começaram a descobrir que não estavam sós nessa luta, que ela se travava no Maranhão, no Bico de Papagaio e no sul do Pará. O que poderia ter se limitado a uma revolta espontânea por dignidade e liberdade, bonita e corajosa, certo, mas sem conseqüência para além do seu território, tornava-se parte da tomada de consciência de um sujeito coletivo em formação. Transamazônica! Os colonos pensavam atingir a “Terra prometida” e chegavam “a uns dois quilômetros do inferno”. Fome, maus-tratos por parte dos funcionários, poeira ou chuvas torrenciais, acidentes no corte da mata, malária, desorientação diante de um solo e um clima desconhecidos, casa para construir... A esperança era tão grande e o caminho tão sem volta que foram em frente. Sentiam-se abandonados, mas, paradoxalmente, muito controlados pelo Incra. 253

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Entre maranhenses e outros nordestinos, os “gaúchos” eram destinados a formar a futura classe média rural, economicamente realizada e esteio político do regime militar. Seu aprendizado começaria com a sua primeira missão: serem “pilchados”, os churrasqueiros oficiais do banquete de inauguração pelo general Médici da “rurópolis” Presidente Médici, na encruzilhada da Transamazônica e da Cuiabá–Santarém, no dia 12 de fevereiro de 1974. A inauguração foi precedida pela queima, sem aviso prévio, da Vila da Palha, erguida pelos operários, colonos e pequenos comerciantes ao lado da rurópolis. Precisava limpar e embelezar o terreno, semeado com o arroz que faltava aos colonos, para plantar e para comer. A maturação da consciência social dos colonos, no entanto, viria da política agrícola implementada localmente. O preço alcançado pelo arroz mal deu para pagar o banco; o crédito para a pimenta-do-reino chegou fora de época e “tem gente que ficou só com a dívida”. Mas a sua primeira luta coletiva se deu contra a Companhia Brasileira de Armazenamento (Cibrazem). Esta comportava-se como o comerciante usurário, sugador do seu trabalho. De desconto em desconto (impurezas, classificação, transporte), quando o colono entregava 150 sacas de arroz, ficava com 22. Além disso, o gerente detinha o monopólio do transporte e havia roubo na balança. “Foi um grito em toda a estrada.” Depois de ocupar a sede do Incra, os colonos conseguiram melhorar o preço do seu arroz e “desmanchar aquela corruptela”. O movimento nascente se expressava não só por essas lutas setoriais, mas pelo começo da busca de organização. Por ocasião do conflito do Ituqui, a Fase e agentes de pastoral elaboraram duas cartilhas: O posseiro e a terra e O lavrador e seu sindicato, que começava afirmando: “Água não se mistura com óleo”. Graças ao convênio da Fase, lá onde atuavam os agentes do Prata e a Fase, no Eixo Forte, na região do Prata/Chaves, e, um pouco mais tarde, na Transamazônica e na Cuiabá–Santarém, começaram a ser organizados encontros de formação sindical. Parecia ter chegado a hora de pensar na conquista do STR. Esses lugares formariam os núcleos, a partir dos quais uma nova proposta sindical poderia se difundir. Mas como fazer esses grupos se encontrarem, num contexto de recrudescimento da repressão no plano nacional e, localmente, de ameaças aos técnicos da Fase? A solução seria promover um encontro sob os auspícios da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A CPT foi fundada em junho de 1975 por bispos, padres e leigos de toda a Amazônia Legal reunidos em Goiânia “para que, como instrumento ágil, ligasse, assessorasse e dinamizasse pessoas e organismos que trabalham a favor dos homens sem terra e dos trabalhadores rurais” (Franciscano, 1975). Ranulfo Peloso da Silva participou do Encontro de Goiânia e tornou-se o primeiro secretário da CPT do Pará. Com o firme apoio de Dom Tiago Ryan, foi criada imediatamente a CPT de Santarém e sua primeira ativida254

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de foi a realização do I Encontro de Agricultores, em dezembro de 1976, com a participação de oitenta trabalhadores. Decidiu-se lançar uma chapa de oposição ao sindicato e se formou um grupo de trinta pessoas para dar seqüência a essa decisão. Adotaram três frentes de ação: levar propostas às assembléias, formar delegacias combativas, fortalecer a organização comunitária. Na sua primeira reunião, os trinta receberam a visita da Polícia Federal. Mais tarde se tornaria claro que havia um traidor no grupo. Seu ambicioso programa não impediu a derrota nas eleições, a chapa de oposição tendo obtido duzentos votos contra 800 da situação. Em agosto 1977, os 54 lavradores e os agentes presentes no II Encontro de Lavradores decidiram dar continuidade ao grupo, mas ele não vingou. Faltava trabalho de base em algumas regiões; o comprometimento de muitos ainda era insuficiente, tanto que o presidente do STR era informado de todos os passos dados. A proposta era aceita por muitos pelo argumento de autoridade usado: o cristão age em solidariedade com seus irmãos. Para avançar, teria que passar a colocar no centro da ação as solidariedades de classe do campesinato.

A AFIRMAÇÃO COLETIVA: “O SINDICATO, SOMOS NÓS” (1978-82) “Assim como anoitece amanhece, que nunca é tarde pra nascer a luz” (um lavrador de Santarém, ao falar da luta)

O general Geisel consagrou o último ano do seu governo à viabilização da “abertura lenta, gradual e segura”. Nasceram associações de moradores combativas e o Movimento contra a Carestia; reorganizou-se a UNE; 245 mil operários fizeram a greve dos “braços cruzados, máquinas paradas”. A luta pela anistia colheu frutos. Começou a se projetar o nome de Luiz Inácio da Silva, o Lula. Restaurou-se o habeas corpus e eliminou-se o Ato Institucional no 5. Mas criaram-se salvaguardas como o “estado de emergência”, e se elegeu indiretamente o general Figueiredo. Em maio de 1979, realizou-se o III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, convocado pela Contag, marcando “a visibilidade do sindicalismo rural para o conjunto da sociedade” (Medeiros, 1989, p.119). Em 1979 e 1980, novas greves operárias estouraram no ABC em São Paulo, e em outros estados. Nesses dois anos, 240 mil canavieiros realizaram uma greve legal, enquanto posseiros e padres eram presos no Pará. Criou-se o Partido dos Trabalhadores (1980). No entanto, esses anos ainda se caracterizaram pela separação do “movimento das instituições políticas da movimentação social” (Cardoso, 1981). A economia se descontrolava e se desenhava um quadro recessivo. No Norte, começava o Projeto Jari, de produção de 255

Um movimento que marcou época

celulose, construíam-se a ferrovia Carajás–São Luís para exportação de minério de ferro, as fábricas de alumínio da Albrás (São Luis) e da Alunorte (Barcarena), a barragem hidrelétrica de Tucuruí. Os garimpos de Serra Pelada e do Tapajós serviam de “válvula de escapa”, ao receber milhares de lavradores maranhenses sem terra. No começo de 1978, a nova equipe da Fase, liderada por Antônio Vieira, os agentes de pastoral e um pequeno grupo de lavradores formaram um “núcleo”, embrião da Corrente Sindical Lavradores Unidos, que seria criada em 1979, e decidiram retomar, em outras bases, o processo organizativo. Tinham um conjunto de propostas que colocaram efetivamente em prática: o reforço à organização sindical, através das delegacias sindicais; o preenchimento dos ”históricos de posse”, fichas de coleta de dados sobre a situação fundiária dos lavradores e colonos, que ajudariam a legitimar, de um lado, as posses diante da grilagem e, do outro, a Corrente. A Corrente Sindical “Lavradores Unidos” era a expressão pública do movimento, animada por um pequeno coletivo que atuava segundo regras copiadas dos partidos clandestinos. Ela expressava essa visibilidade através de um boletim, Lamparina, que projetou o movimento e as lideranças; pela incorporação de uma “mística”, cujo símbolo era a lamparina, o slogan, Nossa força é a nossa união, e o hino “Lavradores Unidos”. A Corrente mostrava sua força através da participação ativa em todas as pequenas ações e lutas locais dos seus membros, tais como resistências a expulsões da terra, grupos de revenda, reivindicações de atendimento médico, de postos de saúde, de transporte coletivo; marcava presença ativa nas assembléias sindicais; assumia a direção de delegacias sindicais. Organizava encontros sob a bandeira da Corrente, num crescendo irresistível. Encontros municipais, encontros regionais, encontros da “Ala feminina”, da “Ala jovem” se sucederam em ritmo acelerado entre julho de 1979 e 2 de julho de 1980, data da segunda votação para a eleição da diretoria do STR, reunindo centenas de pessoas. A chapa da Corrente, encabeçada por Geraldo Pastana, obteve 2.505 votos contra 272 à situação. Por que esse sucesso? Alguns fatores são bastante claros: a ponte feita entre o cotidiano dos trabalhadores rurais e o seu projeto de classe; a reinterpretação dos temas das semanas catequéticas (Moisés, os profetas, a libertação do Egito), criadores de “uma identidade político-religiosa” (Novaes, 1985, p.210 e ss.); a discrição e a prudência para não chamar a atenção dos “inimigos” e não atrair a repressão; o incentivo à participação dos jovens e das mulheres, a formação e a projeção de lideranças (aqueles que são “expressão do conjunto” e que “aparecem de público”), em particular do candidato a presidente, sem permitir, no entanto, que se sobrepusessem à direção coletiva. Se o sindicato eram eles, como dizia o slogan, precisava torná-lo realidade. Para isso e para que se mantivesse a sinergia dinâmica entre movimento e 256

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

organização, a Corrente atuaria tanto na organização quanto nas lutas dos trabalhadores rurais. Empreendeu-se um grande esforço de organização e racionalização da sede, das finanças e da burocracia, tanto por respeito para com os associados quanto para prevenir a repressão, que não demorou em realizar uma auditoria. Se a Corrente havia se apoiado sobre as Delegacias para ganhar a eleição, é por meio delas que desenvolveria um sindicato de massa. Havia entre 110 e 150 delegacias em 1980. Em 1985, seriam 265, com um pouco mais de 300 lugarejos ou povoados recenseados no município. Foram também criadas oito Delegacias Regionais, mas só conseguiram se firmar as que, de fato, enfrentaram problemas concretos, que diziam respeito à sua região. Foram criadas “equipes de educação sindical” encarregadas do esclarecimento dos associados e da organização de base. Seguiam treinamentos e viajavam pelo interior. Formaram-se assim mais de cem militantes. A classe dominante local não aceitava esse novo sindicato. Em 1981, o delegado de polícia regional pediu a prisão preventiva do presidente do STR e o promotor público ofereceu denúncia contra ele, por ter orientado pessoas a incendiar o bem alheio, transformando um caso insignificante e sem conexão com o presidente em peça de acusação. Para além de Santarém, o STR participava da reorganização no plano nacional do movimento sindical. O filme Braços cruzados, máquinas paradas, sobre a greve dos metalúrgicos de São Paulo, em 1978, era usado nas reuniões que a Corrente promovia antes das eleições e ajudava a criar laços de solidariedade. A Corrente mantinha laços com a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo. Participou do I Encontro Nacional das Oposições Sindicais (Enos), dos encontros, em João Monlevade e São Bernardo, da Articulação Nacional dos Movimentos Sindicais e Populares (Anampos), do I Encontro dos Trabalhadores em Oposição à Estrutura Sindical (Entoes), no Rio de Janeiro. Enviou 22 delegados à 1a Conferência das Classes Trabalhadoras (Conclat), realizada em agosto de 1981 na Praia Grande (SP). Avelino Ganzer, diretor do STR, integrou a Comissão Pró-CUT, então criada. Nos congressos, sentiram que os trabalhadores rurais eram considerados por muitos como massa de manobra e eram até menosprezados, mas isso só os encorajava a se impor, a partir da sua prática, como ator/interlocutor no movimento sindical nacional.

LUTAS, A OUTRA FACE DO MOVIMENTO Luta que é ação e engajamento, criação e transformação, conflito e antagonismo, coletivo, de classe, ato de esperança e sonho de liberdade e de fraternidade. Mencionamos algumas delas. 1979: o “travessão das Placas”, no km 240 da Transamazônica, era ocupado por quarenta famílias de posseiros 257

Um movimento que marcou época

e três “fazendeiros”. Estes, seguindo o costume dos grileiros, começaram a pressionar os posseiros para ocupar seu lugar e os denunciaram à Polícia Militar de Altamira, que levou três deles presos. Esta farejava a subversão. Meses depois, em junho de 1980, é o 51o Batalhão de Infantaria da Selva (BIS), sediado em Altamira, que empreende uma operação militar prende alguns colonos, mas não consegue prender o “terrorista”, “fujão” e “safado” Avelino Ganzer, delegado sindical da região. Mal o destacamento volta a Altamira, 90 trabalhadores rurais chegam de caminhão de Santarém, após ter percorrido mais de 300 km, para dar seu apoio. A negociação entre a delegacia sindical, o Incra e o 51o BIS foi se esticando. O caso somente seria resolvido em 1983. Antes disso, lavradores de todo o município participariam de mutirões e de vigílias nas roças com o intuito de conter o avanço dos grileiros e assegurar o direito dos posseiros. Na margem direita do Tapajós, moravam, numa dúzia de povoados, 330 famílias, segundo levantamento do STR; na margem esquerda, só na beira do Tapajós, havia 16 povoados. Os moradores da margem direita encostavam na Floresta Nacional (Flona-Tapajós) e os da esquerda em duas firmas madeireiras. Tanto o IBDF quanto as empresas queriam reduzir as terras dos moradores, deixando-lhes só os terrenos arenosos da margem. Vale notar que essas populações tradicionais fazem seus roçados no “centro”, longe da margem do rio, e que usam essa área para as atividades extrativistas. Depois de muito vaivém entre o Tapajós e Santarém, conseguiram que o limite das suas terras fosse colocado a 10 km, no caso da margem direita, e a 13.400, no caso do limite com a firma Amazonex. Esses conflitos se resolveram pacificamente, mas não faltou a “morte anunciada”. Avelino Ribeiro, posseiro vindo de Goiás, delegado sindical de Igarapé Preto, estava instalado no km 173 da Cuiabá–Santarém, numa terra cobiçada pelo comerciante de Santarém Otacílio Alves Feitosa, o Ota. Funcionários do Incra, polícia, pistoleiros, cada um por seu turno ou juntos, pressionaram de todo jeito Avelino para que saísse da sua terra. Ota o assassinou no dia 24 de março de 1982. O assassino nunca foi incomodado pela Polícia e pelo Judiciário. O campesinato brasileiro historicamente travou uma guerra insidiosa e traiçoeira com o capital comercial-usurário, que provocava muitas expulsões “brancas” da terra. O de Santarém não escapava a isso, como já foi mencionado. Reforçaram-se os Grupos de Revenda, completos, alguns com caminhões ou barcos. Em 1981, eram mais de cem. Mas entraram rapidamente em estagnação, sendo em parte compensados por campanhas sindicais por políticas agrícolas que trouxessem melhores condições de financiamento e de preço para os juteiros da várzea, sem muito sucesso, e para os produtores de arroz da Transamazônica, que acabaram conseguindo acesso ao sistema de Empréstimos do Governo Federal (EGF). Esses colonos enfrentavam outro grande problema, que perdura até hoje, o das vicinais 258

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

intransitáveis, o que faz com que safras inteiras se percam, doentes acabem morrendo e crianças não estudem. Incontáveis foram os abaixo-assinados, os atos públicos, as comissões indo às repartições públicas, até a Brasília. A conquista da Colônia de Pesca Z 20 pelos pescadores artesanais tem seu lugar aqui. Muitos deles eram associados ao STR e à Corrente e, após a conquista do STR, tinham previsto se voltar para a da Z 20. A Superintendência das Pescas (Sudepe) e a Sudam favoreciam no Norte a implantação da pesca industrial e geleiras, barcos que armazenavam gelo, o que lhe permitia pescar mais e comprar o pescado para o levar para fora da região. Ameaçavam, assim, os pescadores artesanais e o abastecimento local. Os atravessadores dominavam o mercado. A presidência da Z 20 era ocupada por um pecuarista. Para impedir aos pescadores de assumir a direção, colocaram um interventor e, a seguir, uma junta governativa. Essa cometeu o erro fatal de não realizar a tradicional assembléia geral e a procissão no dia de São Pedro de 1982, demonstrando que não tinha muito em comum com os pescadores. Esses, na marra, tiraram São Pedro da sede e saíram em procissão. Em novembro, elegiam a sua legítima diretoria. Tentei mostrar aqui não os atores individuais, com suas baixezas e suas grandezas, mas a consciência coletiva sendo trabalhada, modelada, burilada na oficina da vida e da luta. O campesinato santareno não vira classe revolucionária, mas torna-se gente, trabalhador rural, campesinato, no “máximo de consciência possível” (Goldmann, 1979, p.99).

ENTRE O CAMPO E A CIDADE, SE PERDER OU SE ENCONTRAR (1983-1985) “Melhor virar de frente para o bicho.” (um lavrador, depois do incêndio do STR)

A recessão continuava e a inflação disparava. Saques, depredações, manifestações e greves se sucediam. A democracia, no sentido de encontro entre as aspirações e as manifestações populares e a política parecia, então, possível, pois estava sendo ensaiada nas ruas e nos palcos pelas diretas. Em novembro 1983, realiza-se a primeira grande manifestação pelas eleições diretas para presidente da República. As elites cuidavam para que a política saísse da praça e voltasse aos recintos fechados dos palácios. Se a economia voltava a crescer, no campo os preços agrícolas, à exceção de 1984, conheciam uma queda constante. No Norte, a paz social, necessária para garantir os investimentos na mineração e a manutenção do domínio das oligarquias locais, era garantida pela “militarização da questão agrária”. O Grupo Executivo das Terras do Araguaia e do Tocantins (Getat), subordinado ao Conselho de Segurança Nacional, expressava a filosofia do 259

Um movimento que marcou época

governo: trata-se de impedir “a transformação da luta pela terra numa luta política, e menos ainda numa luta político-partidária” (Martins, 1984, p.56). Se o campo é terreno de luta para o camponês, como vimos, é também o lugar da exclusão. “Ser camponês não significa simplesmente viver fora do aglomerado urbano, mas, antes de mais nada, viver fora da civitas, da cidade política” (Moacir Palmeira, apud Novaes, 1985, p.223). No caso das lutas travadas pelos trabalhadores rurais em Santarém nesse período, há um nítido deslocamento do espaço das lutas, do campo para a cidade. Ir à cidade é ir à “cidade política”, esse espaço econômico-político que concentra poder, saber, riqueza, coerção e ideologia dominante, que exclui o campesinato. O terreno que é seu lhes é imposto pelas classes dominantes, que querem relegá-los ao silêncio e à invisibilidade. Em 1983, chegam ao Tapajós barcos de pesca motorizados e geleiras, que esticam centenas de metros de rede (malhadeiras), com quatro a seis metros de profundidade, acabando com os cardumes e com o abastecimento das comunidades locais. Cansado de protestar junto aos invasores e à Sudepe, em agosto de 1984, um grupo de 136 pescadores sobe no barco Comunitário, aborda um barco invasor, toma oito malhadeiras e duas canoas. Decidem que entregarão o material na presença das sete comunidades envolvidas e da diretoria do STR e “mediante documento assinado pelos donos das geleiras e pela Sudepe”. A Sudepe e a Capitania dos Portos, depois de apreender o barco Comunitário e de meses de tentativa de resolver o conflito em favor dos empresários da pesca, acabaram ordenando a invasão por um pelotão da polícia da sede do STR, onde encontraram as canoas. Elas não tinham sido escondidas na mata. O STR e o movimento sentiam-se suficientemente fortes para fixar as modalidades e o lugar da luta. Outras ações marcaram esse momento: reivindicações por postos de saúde no interior e nos bairros de Santarém, em conjunto com movimentos urbanos, reivindicações pela construção e recuperação de ramais e vicinais, em especial na Transamazônica, volta à formação de Grupos de Revenda e transportes comunitários. Mas as questões produtivas não estavam no centro das preocupações da Corrente. Ela deixou a Emater criar a Feira do Produtor sem se manifestar e só posteriormente percebeu a sua importância. A sua preocupação central e sua estratégia de ação continuavam sendo a organização dos trabalhadores Se em 1980 a vitória da Corrente Sindical apanhou de surpresa as classes dominantes e suas burocracias, a eleição para a diretoria dos STR de 1983 não seria tão tranqüila. Avelino Ganzer foi eleito por 4.317 votos contra 236 à chapa concorrente. Em agosto, a nova diretoria foi empossada na presença do presidente do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio da Silva, o Lula. Corria em segredo, movido pela Delegacia Regional do Trabalho do Pará, um processo de intervenção no STR, oficiado em janeiro de 1984. Mais de 1.500 pessoas participaram de vigílias e passeatas, impedindo durante 10 260

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

dias os interventores de ocupar a sede do STR, até uma liminar suspender a intervenção. A repressão voltaria a atuar de modo covarde em abril de 1985, quando um incêndio criminoso destruiu a sede do STR, reerguida em tempo recorde graças a uma mobilização intensa de milhares de sócios. O STR em tudo isso não estava isolado. Contava com apoios nacionais e até internacionais. Participaram de fato ativamente da criação da CUT, formando uma importante delegação para o 1o Congresso das Classes de Trabalhadores (Conclat) em agosto de 1983, em São Bernardo, congresso convocado pela Anampos, em que se decide a criação da Central Única dos Trabalhadores. A Contag não participou do Congresso, mas havia 1.658 trabalhadores rurais presentes, 26% do total de delegados (Zanetti, 1995, p.74). Avelino Ganzer foi eleito membro da coordenação de sete membros. Todo o processo de criação da CUT socializou politicamente o campesinato santareno. Ele passou a conhecer o operariado fabril do ABC, cortiços e favelas de São Paulo, acampados e pequenos produtores integrados do Sul, o cafeicultor do Espírito Santo e o canavieiro de Pernambuco, o parceiro goiano e o seringueiro acriano. Em retorno, a CUT o transformou em ator nacional e referência organizativa para muitos sindicatos e grupos de educação popular. Significativo é o sucesso nacional do filme Lamparina, produzido e dirigido pela equipe local da Fase e pela Corrente, que recriou e dramatizou a trajetória da Corrente Sindical até a conquista do STR. No I Congresso da CUT, em 1984, os camponeses obtiveram a criação de uma secretaria rural. Avelino Ganzer foi eleito vice-presidente e liberado pelo STR para cumprir seu mandato na CUT. Mas os trabalhadores rurais não queriam ser simplesmente massa de manobra na Central e, em novembro de 1984, pela primeira vez, realizaram um encontro de lideranças de trabalhadores rurais ligados à CUT, em Goiânia. Estiveram em 1985 no I Congresso do MST, mas, embora dessem todo apoio ao MST, não aderiram, por estimar que, no Norte, as lutas dos sem-terra eram encaminhadas através da luta sindical e que um novo movimento não era necessário. Nesse período, vemos uma Corrente tensionada entre a sua responsabilidade imediata para com os lavradores, colonos, pescadores e outros grupos de trabalhadores rurais de Santarém e a sua vontade transformada em estratégia de intervenção na cidade política. Avaliaram que, para que os trabalhadores rurais pudessem se afirmar, eles teriam antes que ser reconhecidos politicamente. Assim, mais do que investir em ações que pudessem reforçar a produção agrícola local, mais do que prosseguir na interiorização do movimento, eles priorizaram, conjuntamente com a sua socialização sindical no plano nacional, mas além dela, a ação política. A Corrente optou em 1980 pelo PT, pois, segundo um militante, “esse é o partido dos trabalhadores. Nós podemos dirigir esse partido e esses outros não temos condição de dirigir mais porque eles já são velhos”. Em 1981, o presidente do STR, Geraldo Pastana, passou a integrar a direção 261

Um movimento que marcou época

nacional do PT. Em 1983, a pré-convenção partidária, com a presença de Lula, reunia mais de 2000 filiados. Waldyr Ganzer, colono da Transamazônica, foi eleito presidente do PT local, com o apoio urbano. Vale notar que outro grupo político, também oriundo em boa parte da ação pastoral da Igreja Católica, desenvolvia um importante trabalho partidário na cidade. Os dois dirigentes sindicais citados aqui foram posteriormente eleitos para vários mandatos políticos. Com um ciclo de organização completado, na sua avaliação, a Corrente sentia o movimento campesino forte o suficiente para “exportar” quadros, sindicais e políticos, não só na Amazônia, mas também em São Paulo e em Brasília. Conclusão. Continua a resistência A influência da Corrente Sindical e do STR de Santarém no Pará será sentida em particular em Gurupá, na foz do Amazonas, onde os lavradores e extrativistas conquistaram seu sindicato em 1986, no nordeste paraense e na Transamazônica, com a criação do Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica, em Altamira, em 1988 (Hebette, 2002, p.228). Outras forças políticas, religiosas e sindicais, por sua vez, construíram um forte movimento sindical e político no sul do Pará e no Tocantins, fazendo com que a Federação dos Trabalhadores Rurais do Pará se tornasse, junto com o PT, a ferramenta principal de ação desse “novo campesinato” (Hebette, 2002, p.229). Em 1988, eu concluía o capítulo do meu livro sobre o último período dessa luta histórica com estas considerações: Paradoxalmente, o mesmo processo de penetração do capitalismo monopolista, que fez os trabalhadores rurais santarenos estrearem no seu papel de atores políticos, ameaça acabar com eles como atores econômicos. Consumando-se essa ameaça, rapidamente, lavradores e pescadores voltariam à sua marginalização social e política. A meu ver, a questão econômica tornou-se o principal problema político-estratégico do campesinato santareno e brasileiro em geral. Porém, esse capitalismo tão predador e selvagem monta na Amazônia um cenário de destruição tão desolador que convida sua população a resistir e impor-se como protagonista do drama em jogo. Aqui estão novas lutas a perder ou vencer para que o campesinato do Norte avance na sua afirmação coletiva e ocupe o espaço que é seu, ao lado de outras forças sociais empenhadas em construir a sociedade democrática de que precisamos (Leroy, 1991, p.181). Nesta primeira metade da década de 2000, o rolo compressor da soja passou por cima do planalto santareno e os produtores e produtoras do planalto, suas roça, seus quintais, suas casas, seus povoados, na sua quase totalidade, sumiram do mapa. Muitos colonos da Transamazônica e da Cuiabá–Santarém ainda resistem. Parte da população do Tapajós redescobriu e afirmou a sua identidade indígena. Comunidades negras reivindicam 262

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

sua identidade de quilombolas. Junto com outras populações do Tapajós, do Arapiuns, do Ituqui, das várzeas do Amazonas, buscam seu futuro no agro-extrativismo ou na pesca artesanal. O campesinato santareno encontra hoje condições de resistência local na afirmação da sua diversidade e na busca de projetos de futuro construídos sobre essa diversidade. Mas seu destino coletivo continua atrelado à luta do campesinato mundial e dos seus aliados por “um outro mundo”.

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11 O MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS: ATORES, ESTRATÉGIAS DE LUTA E CONQUISTAS Maria José Reis

INTRODUÇÃO

A ocorrência de lutas sociais de pequenos produtores rurais1 ao longo de toda a história brasileira é um dado inquestionável, ainda que essas lutas tenham sido escamoteadas e mal contadas pela “história oficial”.2 Faz parte também dessa história, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, a instalação de megaprojetos de infra-estrutura, entre os quais a de barragens destinadas à produção de energia elétrica. A reação das populações rurais atingidas por esses projetos permitiu, entre outros aspectos, o reconhecimento de que a instalação de hidrelétricas resulta em uma problemática extremamente complexa, que longe está de se esgotar em sua face técnico-econômica. Assim sendo, é indispensável salientar que essa instalação provoca uma verdadeira reordenação territorial, exigindo a migração compulsória das populações que historicamente vinham ocupando os espaços requeridos para essa finalidade. Migração que implica deixar para trás não apenas as terras ocupadas, mas também os laços e vínculos comunitários e seu patrimônio sociocultural resultando, inclusive, na maioria dos casos, em dificuldades no reinício das atividades produtivas nos novos espaços a ocupar e o risco de empobrecimento. Estas e 1

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Utilizo indistintamente neste texto esta categoria ou a de “agricultores familiares” para designar os produtores rurais que são proprietárias dos meios de produção – ou a eles têm acesso, sobretudo à terra, através da ocupação ou de diferentes contratos de arrendamento – e que ao mesmo tempo asssumem o trabalho no estabelecimento produtivo (WANDERLEY, 1999). Para uma retrospectiva histórica dos movimentos sociais no campo, no Brasil, veja-se, entre outros, Medeiros (1989).

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O movimento dos atingidos por barragens

outras implicações socioambientais e culturais, além de mal dimensionadas, foram tratadas pelo Estado brasileiro com negligência e irresponsabilidade, na maioria dos casos estudados, entre outros, por Germani (1982), Magalhães (1996), Martins-Costa (1989) e Sigaud (1992). Por outro lado, tais processos envolvem a presença de um número significativo de atores sociais com interesses e perspectivas diferentes sobre os referidos empreendimentos. Dentre esses atores destacam-se as financiadoras nacionais e internacionais, os setores da administração pública federal responsáveis por obras dessa natureza, a corporação específica que assume a execução do empreendimento e as populações regionais e locais ocupantes das áreas a serem requeridas para a instalação dessas obras (Reis, Bloemer, 2001). O objetivo deste texto3 é tratar de uma das referidas lutas, o “Movimento dos Atingidos por Barragens”, que teve início no final da década de 1970, na região do Alto Uruguai (RS/SC), e continua até os dias atuais, assumindo dimensão nacional e internacional. No caso específico da instalação de hidrelétricas (UHEs) no vale do rio Uruguai (SC/RS), cuja proposta ficou popularmente conhecida como “Projeto Uruguai”, a forte reação de uma parcela significativa dos futuros “atingidos”4 pelo projeto, antes mesmo do início das obras, através de sua organização e mobilização, inaugurou, como nos diferentes casos já estudados, um verdadeiro “campo social de conflitos” (Sigaud, 1989, p.168) entre os diferentes atores envolvidos. Nesse campo destacaram-se as iniciativas políticas dos agricultores familiares e de seus mediadores contra a atuação das Centrais Elétricas do Sul do Brasil (Eletrosul), subsidiária da Eletrobras, a empresa estatal responsável pela proposta e pelo início da instalação de 25 hidrelétricas naquele vale.5 Em conseqüência da atuação do Movimento dos Atingidos, várias foram as conquistas dos agricultores familiares em relação ao seu deslocamento da região em virtude da inundação de suas terras, necessárias ao funcionamento das duas primeiras UHEs a serem instaladas – UHE Itá e UHE Machadinho. Paralelamente às suas atividades no vale do Uruguai, a atuação desse movimento ampliou-se, a partir de 1989, tanto em termos nacionais quanto internacionais. 3

4

5

Trata-se de uma versão sintetizada e atualizada de um dos capítulos de minha tese de doutorado (REIS, 1998). Essa é uma autodesignação assumida pelos pequenos produtores rurais através da constituição da própria Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB), como veremos adiante, embora tenha sido inicialmente atribuída pela Eletrosul à população a ser deslocada das áreas reivindicadas para a instalação de hidrelétricas (REIS, 1998 e 2005). A partir de 1997, com a privatização de parte do setor elétrico brasileiro, a Eletrosul ficou responsável apenas pela transmissão de energia elétrica, sendo a produção realizada por consórcios privados, os quais assumiram a instalação de parte das hidrelétricas projetadas para o vale do rio Uruguai.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Desse modo, na reconstituição da trajetória histórica do referido campo de conflitos serão destacados alguns aspectos da atuação do setor elétrico e, sobretudo, dos futuros atingidos e de seus mediadores, conjugados no Movimento dos Atingidos por Barragens, que será focalizado em relação a sua organização e suas estratégias de luta e conquistas.

A ATUAÇÃO DO SETOR ELÉTRICO O planejamento e as iniciativas da Eletrosul em relação ao aproveitamento hidroenergético da Bacia do Uruguai foram marcados pelas características básicas que nortearam o setor elétrico brasileiro desde a criação da Eletrobras, no início da década de 1960. Ou seja, a existência, desde então, de um portentoso aparelho de planejamento, controle e gestão dos sistemas de produção e distribuição de energia elétrica no conjunto do território nacional (Vainer e Araújo, 1990, p.19) e a opção preferencial por grandes usinas de aproveitamento hídrico para o atendimento à demanda de eletricidade. De acordo com Vainer e Araújo (1990, p.20), em relação às providências relativas à desapropriação e ao deslocamento das populações ocupantes das áreas destinadas à implantação das hidrelétricas, as subsidiárias da Eletrobras atuavam de modo semelhante, através de três estratégias básicas: a desinformação, a perspectiva territorial patrimonialista e a negociação individual. A desinformação, uma das principais “armas” das empresas do setor elétrico em seu relacionamento com as referidas populações, assumia, nos momentos iniciais de sua atuação em uma determinada região, como lembram os referidos autores (1990, p.20), a forma pura e simples da sonegação de informações. Essa sonegação tinha em vista, em primeiro lugar, possibilitar o ingresso e a circulação de pessoal da empresa na região. Facilitaria, também, a conquista de algumas posições no espaço regional, antes que a população se desse conta do que estava para acontecer. Por outro lado, a desinformação continuava, por vezes, também após o início das obras, através de uma espécie de “propaganda enganosa”, veiculada pelo próprio setor que, por meio de uma intensa atividade de “comunicação social”, divulgava o empreendimento e seus supostos “benefícios”, calando-se quanto aos aspectos socioambientais negativos. Ou, ainda, por divulgação de informações contraditórias ou desencontradas sobre vários aspectos do andamento das obras, entre os quais as soluções relativas ao deslocamento das populações locais, o que facilitaria por parte dos responsáveis pelo empreendimento, ao gerar insegurança e dúvidas, a imposição de determinadas soluções à revelia dos segmentos sociais afetados pelas iniciativas em pauta. A estratégia territorial patrimonialista, por sua vez, de acordo com Vainer e Araújo (1990, p.21), foi freqüentemente implementada pelas empresas do 267

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setor elétrico quando se tratava de “criar o vazio demográfico necessário à instalação das barragens... Seus levantamentos e estudos de campo fornecem uma vasta e detalhada informação sobre o espaço a conquistar, os cadastramentos socioeconômicos dando elementos sobre cada propriedade e proprietário”. A partir desses dados, efetivava-se, através da compra, a “desocupação” da área e sua reapropriação por parte do setor elétrico, desconsiderando-se os direitos dos demais ocupantes da área. Desse modo, os trabalhos de aquisição e “limpeza do terreno” destinados à implantação da obra e da infra-estrutura básica para sua construção e funcionamento eram preferencialmente realizados através de negociações individuais, entre o proprietário da área requisitada e a empresa responsável pela tarefa. Conforme, ainda, os autores anteriormente referidos (1990, p.21), embora pareça irracional do ponto de vista organizativo, tal opção tinha objetivos claros: impedir, ou dificultar, a discussão e organização coletivas. Em linhas mais gerais, vale destacar que, além das práticas até aqui apontadas e de múltiplas implicações político-ideológicas, cujo detalhamento foge ao escopo deste trabalho,6 no planejamento do setor elétrico e na tomada de decisões para a instalação de hidrelétricas o que tem sido registrado é a ausência de preocupação com os efeitos sobre as populações locais, genericamente denominados de questões “sociais” destes projetos. Como afirma Sigaud (1988, p. 104) À medida que o social não interfere na tomada de decisões, ele só pode vir a se constituir em problema, para o qual deverá ser buscada uma solução qualquer a qualquer preço, dentro do cronograma apertado das obras civis. E é exatamente porque o social ocupa essa posição subordinada que as soluções encontradas são sempre desfavoráveis à população local.

A Eletrosul tentou, no vale do rio Uruguai, reproduzir essas mesmas práticas “tradicionais”, esquivando-se, inclusive, até onde foi possível, ao diálogo com os agricultores, além de invadir propriedades rurais, provocando danos em cercas e plantações, derrubando árvores e “plantando” marcos, ou seja, os piquetes destinados a demarcar as áreas a serem alagadas. Mas a reação negativa das populações locais ao Projeto Uruguai, especialmente em relação às duas primeiras usinas a serem implantadas – UHE Machadinho e UHE Ita –, antecipou-se ao início da implantação das obras em pauta, o que acabou por interferir no modo tradicional de atuação da própria empresa. Essa reação tornou-se possível graças, de modo especial, a três fatores. Em primeiro lugar, como já salientamos em outro texto (Scherer-Warren, Reis, 1986), ao relaxamento da repressão política comandada pelos governos militares e o início do processo de democratização, para o qual, sem dúvida, 6

Sobre esse aspecto, veja-se, entre outros, Reis (1991) Santos, Reis (1993) e Radovich (2005).

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muito concorreram os próprios movimentos sociais. Em segundo lugar, como salienta Navarro (1996, p.131), às mudanças estruturais na economia agrária com aceleração do processo de modernização agrícola e às conseqüentes alterações nos padrões produtivos, nas possibilidades de acesso à terra e nas políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. Por último, à presença e atuação na arena política de setores da chamada “Igreja Progressista”, ou “Igreja Popular”,7 além dos sindicatos de trabalhadores rurais. Assim, no caso específico do Alto Uruguai – noroeste do Rio Grande do Sul e oeste de Santa Catarina –, ao entrar em cena a problemática da implantação das barragens, os pequenos produtores rurais já contavam com a presença desses “mediadores” (Novaes, 1994), envolvidos na mobilização popular, entre outros aspectos, para a conquista da terra aos que dela tinham sido expropriados e pelo estabelecimento de uma adequada política agrícola diante dos efeitos da citada modernização.

A CRIAÇÃO DA COMISSÃO REGIONAL DE ATINGIDOS POR BARRAGENS (CRAB) A Eletrosul teve que enfrentar, na Bacia do Uruguai, logo de início, uma forte reação das populações locais, constituídas em cerca de 90% por agricultores familiares, diferentemente, portanto, de processos anteriores de instalação de hidrelétricas no país, Mal foram publicados os resultados da revisão dos estudos específicos ao aproveitamento hidroenergético dos rios dessa bacia (outubro de 1979) e o estudo sobre a viabilidade das UHEs Itá e Machadinho (novembro do mesmo ano) ocorreu, por iniciativa da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma primeira reunião para discutir a problemática em questão.8 Realizada na sede do município de Chapecó (oeste catarinense), em dezembro do mesmo ano em que houve o “vazamento” da notícia sobre as hidrelétricas do vale do Uruguai, contou com a presença de pequenos produtores do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, representantes da CPT de SC e RS, agentes pastorais, vigários das Igrejas Católicas e pastores da Igreja Evangélica de Confissão Luterana, sociólogos e agrônomos da Fundação do Alto Uruguai para a Pesquisa e Ensino Superior (FAPES, 1979). Entre outros encaminhamentos, nessa primeira reunião, o mais importante foi a criação de uma “Comissão de Barragens”, destinada a “ir pensando” o 7

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Segmento da Igreja Católica orientado pela Teologia da Libertação. Sobre suas características e atuação no espaço rural brasileiro, veja-se, entre outros, Paiva (1985). Foi igualmente a CPT que contribuiu para a mobilização dos pequenos produtores rurais do Paraná em relação à instalação da hidrelétrica de Itaipu, dando origem ao “Movimento Justiça e Terra” (GERMANI, 1982), o qual, sem dúvida, inspirou a atuação desses mediadores no vale do Uruguai.

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que desde então foi definido como “um problema social a ser enfrentado” (FAPES, 1979). Outro aspecto que merece ser registrado foi a possibilidade oferecida aos pequenos produtores do Alto Uruguai, a partir desse primeiro evento, de entrar em contato com as experiências vivenciadas por outros produtores rurais, em relação à atuação de concessionárias da Eletrobras, inclusive da própria Eletrosul. Depoimentos sobre essas experiências foram prestados por produtores rurais expropriados devido à implantação das usinas hidrelétricas de Salto Santiago e Salto Osório, ambas instaladas pela Eletrosul no estado do Paraná, cujas negociações com a empresa ocorreram, de acordo com Ferreira (1987), por volta de 1978. Esses depoimentos relatavam a atuação da concessionária em relação às soluções sobre as desapropriações dos territórios destinados à implantação dos referidos projetos. De fato, tratava-se da utilização das estratégias tradicionais do setor elétrico, além de as soluções terem sido impostas, uma vez que apresentadas sob a ameaça, caso não fossem aceitas, de serem encaminhadas judicialmente (FAPES, 1979). Relatos similares de experiências vivenciadas em virtude da implantação de outros projetos de hidrelétricas repetiram-se em encontros e reuniões posteriores, nas quais foi mostrado um vídeo apresentando situações avaliadas dramáticas, vivenciadas pelos agricultores expropriados em virtude da instalação da UHE de Itaipu (PR). A Comissão de Barragens sofreu sucessivas reestruturações, já no início de sua atuação, em primeiro lugar em virtude da criação de comissões municipais e locais, passando a ser denominada de “Comissão Regional de Atingidos por Barragens” (CRAB, 1980). Em termos operacionais, a CRAB era constituída, até final de 1983, por uma secretaria localizada em Erexim (RS), “responsável pelos trabalhos burocráticos e pela coordenação-geral do movimento” (CRAB, 1985). No início de 1984, lideranças da CRAB decidiram pela criação de uma “executiva”, composta de representantes dos atingidos de várias regiões da Bacia do Uruguai, por sindicalistas, assessores e pessoal da secretaria. Foi o início dessa mobilização e a constatação da necessidade de ampliá-la que acabaram por resultar em uma reestruturação da CRAB, sendo criadas, em março de 1985, quatro comissões regionais (Itá/Machadinho; Itapiranga/Irai; Lages/Vacaria; Chapecó/Chapecozinho), cada uma com a função de coordenar nas respectivas regiões, o que passou a ser denominado de “Movimento dos Atingidos por Barragens”. Em 1986, além das comissões regionais, da secretaria e da executiva, foi instituída como “espaço de discussão e deliberação do Movimento” a “assembléia” (CRAB, 1990), de início anual e posteriormente bienal. Nesse mesmo ano, foi criada uma quinta região (Roncador/Garabi), com a finalidade de estimular a organização dos agricultores familiares que seriam afetados por três usinas hidrelétricas binacionais (nos limites do Brasil com a Argentina) a serem implantadas igualmente no vale do Uruguai. 270

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A configuração e a dinâmica da reação dos pequenos produtores ao Projeto Uruguai, sem sombra de dúvida, tiveram a ver diretamente com a atuação da CRAB e, posteriormente, do Movimento dos Atingidos. Foram eles que divulgaram a notícia da implantação das hidrelétricas e que desnaturalizaram suas implicações socioambientais, contrapondo ao discurso do “progresso” e dos “benefícios” para a região, veiculando pela Eletrosul, uma identificação de “danos e perdas”, especialmente para os pequenos produtores ocupantes das áreas requeridas para os empreendimentos. Foi, sobretudo, pela sua ação que as “vítimas”, assim identificadas, passaram a ser reconhecidas e politicamente autonomeadas de “atingidos”, constituindo-se em novos sujeitos políticos. Por sua atuação, foram buscadas e veiculadas informações sobre as conseqüências e a magnitude do Projeto Uruguai; foram encaminhadas demandas e reivindicações; definidos inimigos e conquistados aliados, pressionando prefeitos e vereadores a se posicionarem, batendo às portas das Assembléias Legislativas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, recorrendo a Brasília, sempre que necessário, e encaminhando às “autoridades federais” um abaixo-assinado de mais de um milhão e meio de assinaturas. Foi também através do Movimento dos Atingidos que foram organizadas grandes romarias e outras manifestações públicas, publicado um jornal – Enchente do Uruguai; foram assumido programas de rádio, criados fatos políticos, como a retenção de técnicos da Eletrosul, a invasão de acampamentos nos territórios ocupados por essa empresa ou a arrancada de marcos colocados pelos técnicos. Por último, foi através da atuação do Movimento que se estabeleceram os termos do “Acordo”, a ser tratado mais adiante, firmado entre as partes interessadas, em relação às soluções para a retirada dos atingidos da área, incluindo entre elas o reassentamento de atingidos não proprietários de terras. Essas e outras iniciativas do Movimento dos Atingidos ocorreram através da presença e da influência dos diferentes mediadores já mencionados, especialmente da Igreja Progressista (Católica e Luterana), e dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, cujas marcas são perceptíveis ao longo de toda sua trajetória.

A INTERMEDIAÇÃO DA “IGREJA PROGRESSISTA” E DO SINDICALISMO RURAL O Movimento dos Atingidos na referida região contou, desde seu início, além do envolvimento de agentes pastorais da Igreja Católica e da Igreja Protestante de Confissão Luterana, com a presença e a adesão de bispos de várias dioceses do noroeste do Rio Grande do Sul e oeste catarinense. Além da participação direta ou indireta de sua hierarquia e da atuação politicamente engajada dos demais agentes pastorais, alertando nos púlpitos e em 271

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outros espaços religiosos como as “Comunidades Eclesiais de Base” (CEBs),9 sobre as conseqüências da instalação de hidrelétricas na Bacia do Uruguai, a presença da Igreja foi decisiva, também, para mobilizar e organizar os pequenos produtores rurais para a problemática em questão de diversas outras maneiras: colocando à disposição sua infra-estrutura física para a realização de eventos, como cursos, assembléias etc., e intermediando a obtenção de recursos financeiros na própria região e até internacionalmente (Rothman, 1993). Mas, sobretudo, indispensável por sua atuação político-pedagógica voltada para a formação de lideranças que foram, no início da reação contra as barragens, os principais agentes mobilizadores. Foram eles, a rigor, responsáveis em primeira mão pela efervescência e pela “recuperação da capacidade ativa do povo” (Doimo, 1995, p.149) em todo o Alto Uruguai, em torno de outras questões socioeconômicas relativas aos pequenos produtores da região, já apontadas. Como afirma Navarro (apud Moraes, 1994, p.130), pelo menos 90% dos quadros dirigentes e intermediários de todos os movimentos sociais, no primeiro período (1979 a 1986), “começaram a entender pelas mãos da Igreja”. Isto é, a conscientização política desses quadros, através das iniciativas de formação, foi levada a cabo pela Escola Diocesana de Servidores de Erexim (ESC), pela Pastoral da Juventude (PJ), e pela Comissão Pastoral da terra (CPT). A ESC, segundo Moraes (1994, p.134-5), foi fundada em 1973, funcionando nas dependências do Seminário Diocesano de Nossa Senhora de Fátima, de Erexim, cidade que sedia a CRAB desde seu início. Especialmente a partir de 1978, a ESC passou a fornecer cursos para a formação de lideranças, em várias etapas, voltados para o que era denominado a “desalienação da fé”. Através deles, foi desencadeado um processo de “renovação” nas comunidades coloniais tradicionais. Por sua vez, a atuação da “Pastoral da Juventude” tinha em vista, do mesmo modo, uma “formação libertadora”, através da realização de cursos como o Teologia e Ação Pastoral (Tapa), tendo como principal objetivo mobilizar politicamente os jovens para analisar “as questões que aconteciam não só nas comunidades, mas na realidade social, preparando-os para atuar na comunidade, desenvolvendo um trabalho seu, seja popular, seja sindical” (Moraes, 1994, p.151). Em termos de preparação político-pedagógica é indispensável lembrar também a atuação da CPT, realizando seus “mutirões de formação”, ou seja, de preparação para a luta política. Como em outros movimentos populares, nos quais se fez presente o trabalho mobilizador dessas lideranças preparadas pela Igreja Progressista (Doimo, 1995, p.143), signos de linguagem como “a caminhada”, o “povo 9

Como afirmou uma das lideranças da CRAB em entrevista realizada por Ilse Scherer-Warren e pela autora (1988), “as CEBs coincidem com os limites das comunidades rurais tradicionais”, constituindo-se em um conjunto de “Círculos Bíblicos” ou “Grupos de Reflexão”.

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oprimido” e a “libertação” foram presenças constantes no discurso referente à problemática em pauta, especialmente através da fala de seus agentes em grandes manifestações públicas. Proliferaram, nesse discurso, imagens bíblicas que metaforicamente foram apropriadas através do exercício realizado nas CEBs de aproximação entre “fé e vida”,10 para pensar a questão das barragens. Assim, a formação dos lagos, mais que uma enchente, seria um “dilúvio” que viria trazendo “as águas da morte, cobrindo os campos e as serras” (CRAB, 1985). Entrando pela mesma porta no universo cristão, a problemática das barragens passou pelo julgamento e condenação divinos, através da evocação de várias passagens bíblicas que argumentam, entre outros aspectos que “quando se usa a terra ou a água, sempre é preciso ver se elas trazem benefício ou prejuízo ao homem. O juízo de Deus acerca das barragens é bastante claro... Deus não quer a enchente do Uruguai e dos outros rios; o projeto é anticristão e diabólico” (CRAB, 1984). A politização da problemática das barragens através da mediação de agentes religiosos manifestou-se, por outro lado, na apropriação e ressemantização de símbolos cristãos, como é o caso da utilização de cruzes para substituir os marcos colocados pela Eletrosul para definir as áreas a serem alagadas, retirados através de rituais realizados em diferentes localidades da Bacia do Uruguai, ou, ainda, através de sua presença no logotipo do próprio movimento, sendo tematizada, também, em cânticos entoados nas celebrações religiosas. Em síntese, é possível afirmar que, até meados da década de 1980, as atividades de formação de lideranças rurais no Alto Uruguai estiveram a cargo de órgãos vinculados à Igreja Progressista. A partir daí, essa tarefa foi prioritariamente assumida pelas Escolas Sindicais. Em decorrência das várias articulações realizadas nos estados do Sul e do crescimento de suas atividades, foi mantida, entre 1985 e 1987, a Escola Sindical Margarida Alves (ESMA) localizada em Erechim, por onde passaram muitos dirigentes dos movimentos sociais do Alto Uruguai. Os conteúdos da formação de lideranças rurais repassados pela ESMA estavam voltados para a perspectiva da transformação social, na direção da construção de uma nova sociedade. Conforme Moraes, ela orientava na perspectiva da conscientização para um “projeto externo” e muito mais amplo para a transformação da sociedade capitalista em socialista. Sua atuação, desse modo, aproximava-se muito mais do perfil de um partido político, perfil que, na verdade, deveria orientar

10

Esse exercício constituiu, de acordo com Macedo (1986, p.68-9), uma “nova hermenêutica bíblica” que introduziu “na questão propriamente evangélica um elemento que permite equacionar a injustiça e o sofrimento como problemas religiosos”.

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a concepção de “movimento social” (Moraes, 1994, p.172),11 inclusive o da CRAB, como veremos adiante. No início de 1987 foi criada a Escola Sindical Alto Uruguai (ESAU), com a finalidade de implementar a formação dos movimentos populares, urbanos e rurais da região em questão, além de três outras do Rio Grande do Sul. A ESAU destinava-se às lideranças intermediárias que já tinham atuação no sindicalismo e em outros movimentos populares, com modelo organizativo e projeto político similares ao da ESMA (Moraes, 1994, p.183). Desde 1989, no entanto, o tipo de formação político-ideológica oferecida pela ESAU e seu gradativo distanciamento dos desdobramentos do movimento sindical começavam a colocá-la em questionamento, sendo incorporada posteriormente à “secretaria de formação” do Departamento Rural da CUT estadual. Como informa Moraes (1994, p.206), no início dos anos 90, uma vez que as escolas sindicais estavam distanciadas da realidade imediata e das demandas específicas dos movimentos sociais, o trabalho de formação foi deixado para as “instâncias”, ou seja, para cada movimento social específico, o que já vinha sendo realizado pelo Movimento dos Sem-Terra e iniciado, inclusive, no Alto Uruguai, pelo próprio Movimento dos Atingidos. Essa reorientação no modo de conduzir as tarefas de formação também alterou a relação com outros mediadores, as entidades de apoio como o Centro de Educação Popular (CEPO) fundado em 1986, e o Centro Vianei de Educação Popular, criado pela Diocese de Lages (SC). O CEPO, que foi destinado a exercer tarefas tais como a formação de lideranças, a preparação de material para comunicação – inclusive o jornal A Enchente do Uruguai – e a intermediação para a obtenção de recursos financeiros no exterior (SchererWarren, Reis, 1989), concentrou-se, então, na prestação dos demais serviços e menos nas tarefas de formação. Por outro lado, no mesmo ano da criação do CEPO foi instalado no Alto Uruguai o Centro de Tecnologia Alternativa (CETAP), em um encontro organizado pela FASE. O Centro foi criado com o objetivo de “levantar, pesquisar e difundir técnicas que se adaptassem à pequena propriedade; prestar um serviço de assessoria na área tecnológica às organizações e movimentos ligados à pequena propriedade e treinar e capacitar técnicos e produtores” (CRAB, 1986, p.8). O papel das assessorias técnicas, entre as quais se incluía a presença de especialistas de diferentes áreas de conhecimento (agrônomos, sociólogos, geógrafos, advogados etc.), foi fundamental para capacitar o Movimento dos Atingidos a lidar com um amplo conjunto de demandas e questões, que o desafiavam a transitar pelo universo da política energética, pelos 11

Como afirma Navarro (1996), havia antes mesmo da criação da ESMA uma forte identificação entre as lideranças do “novo sindicalismo”, no Alto Uruguai, e a formação dos diretórios municipais do Partido dos Trabalhadores (PT).

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aspectos técnicos relativos à construção de usinas hidrelétricas e suas conseqüências socioambientais, ou pelo planejamento e instalação de projetos de assentamentos rurais.

A REESTRUTURAÇÃO DA CRAB: DE “SERVIÇO” A MOVIMENTO SOCIAL As mudanças que marcaram a passagem do Movimento dos Atingidos da maior presença da mediação da Igreja Progressista para a do sindicalismo não ocorreram, contudo, em bloco e ao mesmo tempo, nem ao menos no mesmo ritmo em toda a região. Como observa Palmeira (1985), referindose a outros contextos nos quais foi registrada, igualmente, a mediação da Igreja e dos sindicatos, a ocorrência simultânea de diferentes tipos de mediação revela-se a cada passo. No caso da região do Alto Uruguai gaúcho e catarinense, essa simultaneidade é tanto mais verdadeira levando-se em conta, por um lado, que foram os mesmos agentes que freqüentaram a ESC que, em sua grande maioria, constituíram o público privilegiado das escolas sindicais. Por outro lado, foram eles mesmos que organizaram as oposições sindicais, iniciaram o Movimento dos Sem-Terra, criaram as Comissões de Barragens e o Movimento das Mulheres Agricultoras (Sherer-Warren, Reis, 1989), e neles atuaram, tornando-se, ainda, representantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT), membros e até candidatos do Partido dos Trabalhadores. Atuaram, portanto, ao longo de suas histórias particulares em vários desses movimentos e instituições, carregando consigo as marcas de sua formação e diferentes experiências vivenciadas por onde passaram atuando politicamente. De fato, ainda que as mudanças não tenham ocorrido totalmente sincronizadas, há evidentes nexos entre elas, de modo particular entre a atuação dos diferentes mediadores e a organização da CRAB – com reflexos no discurso e nas práticas do Movimento dos Atingidos – e, como não poderia deixar de ser, em sua própria identidade. Começando por este último aspecto, observa-se que, em um documento produzido em agosto de 1981, a CRAB se autodefine como uma “comissão” que reunia pessoas ligadas a diferentes instituições e setores (sindicatos, igrejas, universidades), constituindo, como sugere Moraes (1994 a), uma “síntese de mediações”. Suas funções, conforme o mesmo documento (CRAB, 1981, p.1), seriam informar, organizar, assessorar e ser “um ponto de apoio e de serviço” aos pequenos produtores rurais e demais atingidos. A rigor, a afirmação de ser um “ponto de serviço” era a que melhor sintetiza a auto-imagem que a CRAB havia construído, imagem condizente com sua atuação político-pedagógica, nos moldes inspirados pela orientação da Igreja Progressista. Na prática, era sua secretaria que exercia uma função 275

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de coordenação da mobilização e organização dos futuros atingidos. Sua menor mas mais atuante instância organizativa eram as “comissões locais”, aproveitando-se da estrutura comunitária já existente nas localidades rurais da região. A elas caberia mobilizar e organizar os atingidos, com material fornecido pela secretaria, representar a localidade nas reuniões promovidas pela CRAB e, sobretudo, teriam, juntamente com sua comunidade, todo o poder de decisão, nos moldes da “democracia de base” (Sherer-Warren, Reis, 1989), um dos pilares da orientação da Igreja Progressista para o seu trabalho com o “povo”, que deveria imperar nas CEBs. A passagem de “serviço” a “movimento” teria sido, portanto, de acordo com uma das lideranças do Movimento dos Atingidos,12 o saldo das transformações encaminhadas na CRAB, em sua esfera organizacional. Essas se concretizaram, entre outros aspectos, com a entrada na comissão, em 1985, de quatro jovens ligados à Pastoral da Juventude, que iriam desempenhar papel decisivo na referida reestruturação, ocupando diferentes posições e desempenhando funções de secretaria e coordenação. De fato, o que as mudanças organizativas acabaram por implementar foi a ampliação e o reforço do grupo dirigente com a criação da Executiva e, posteriormente, com a formação e instituição de lideranças intermediárias, entre esse grupo e as bases, nos moldes sugeridos pela ESMA. Como afirmou a mesma liderança, “não devíamos mais cair tanto no ativismo; ...Decidiuse, então, por formar lideranças de base para aprender a metodologia de fazer reunião, para traduzir para a comunidade também entender as questões concretas, como reassentamento, por exemplo”. Ou seja, à Executiva ficava reservada a direção política do movimento, enquanto às lideranças intermediárias caberiam as atividades de mobilização, informação, ou seja, o contato direto com os próprios atingidos que constituíam sua base. Além desse “grupo dirigente” e das “lideranças intermediárias”, foi criada, como já foi dito, a assembléia geral. Conforme a mesma liderança do Movimento dos Atingidos, a assembléia teria um caráter deliberativo, integrando todos os atingidos, estabelecendo prioridades e fazendo análises de conjuntura. Assim, segundo ela, “Se alguém pergunta, ‘quem é o Movimento das Barragens?’ ...É um grupo grande aí, de lideranças, que tem o caráter de decidir as questões”. Parece evidente, portanto, através do discurso dessa liderança e da leitura de determinadas passagens de “Nossa História em Debate” (CRAB, 1990, p.7) que ser o “Movimento” era ser a CRAB, e vice-versa. Conforme esse 12

Em entrevista realizada pela autora em 1992, a noção de “movimento” assume, ao que parece, na perspectiva desta e de duas outras lideranças entrevistadas, o significado de uma organização autogerida, responsável por ações diretas autônomas em relação a seus mediadores – neste caso e momento específico sobretudo da própria Igreja Progressista – cuja atuação, de acordo com Doimo (1995), era institucionalmente auto-rotulada de “serviço”.

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documento, “A CRAB é um movimento popular autônomo que visa reunir, esclarecer e organizar os atingidos direta ou indiretamente pelas barragens ...O Movimento representa os interesses dos atingidos perante as empresas, autoridades e outras entidades”. Em síntese, os reflexos da transformação da CRAB de “serviço” em “movimento”, na opinião da referida liderança, teria ocorrido, na prática, a partir de 1985, intimamente associados à predominância de princípios organizativos propostos pelo “sindicalismo combativo”. Eles se tornam evidentes, como já foi dito, em uma maior concentração do poder de decisão nas mãos de um grupo dirigente. Como parte dessa postura vanguardista, ocorreram modificações na perspectiva da CRAB quanto aos objetivos de sua atuação e da própria luta política levada pelo Movimento dos Atingidos. No primeiro aspecto, tratava-se, conforme o discurso do mesmo informante acima citado, de promover a “consciência política” nos pequenos produtores rurais. No segundo, de promovê-la no sentido de reconhecer sua condição de “trabalhadores rurais”, ameaçados de perder a terra. Significou, ainda, um progressivo afastamento das práticas e representações simbólicas inspiradas no universo religioso praticamente hegemônico no período anterior, marcado pela intermediação da Igreja Progressista. Na interpretação de uma das principais lideranças do Movimento dos Atingidos, no Alto Uruguai, à época,13 essa última mudança foi “necessária”, tendo em vista os desafios de uma conjuntura socioeconômica desfavorável à sobrevivência da pequena produção agrícola e ao “amadurecimento político” do próprio movimento. Apesar de longo, considerando sua expressividade e por se tratar de tal liderança, cujo discurso era performativo (Bourdieu, 1981), vale a pena transcrever parte do seu depoimento, no qual são tratados alguns dos aspectos acima referidos. Todo o Movimento popular passou por uma fase de grande mobilização, de romarias; apelou para os sentimentos e ao místico, ao simbólico. Hoje não se consegue reunir o pessoal desse jeito (...) tem que pensar no prático, no concreto. Corre o perigo de esvaziamento... O concreto hoje é a questão econômica; é que eles estão perdendo a terra... No sentido assim, se tem que ocupar a terra, não vai brigar com a cruz na mão; tu tens que botar a foice na frente para não levar baionetada da polícia. Tem que ter essa visão, senão acaba sendo mártir, sempre.

A maior ênfase em “razões práticas”, ou seja, em questões políticas e econômicas em detrimento de “razões simbólicas” (Sahlins,1979), que coincide com o início da reestruturação organizativa da CRAB, nos termos já aludidos, refletiu-se, sobretudo, na própria construção da identidade de “atingido”. Essas alterações também tiveram eco na definição de demandas e encaminhamento de reivindicações, aspecto que trato a seguir. 13

Em entrevista realizada pela autora em 1992.

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INFORMAR PARA MOBILIZAR E CONSTITUIR AS “BANDEIRAS DE LUTA” Uma das primeiras tarefas assumidas pela CRAB foi a obtenção e a veiculação de informações sobre o deslocamento da população ocupante das áreas a ser requeridas para a instalação da infra-estrutura necessária ao funcionamento das duas hidrelétricas a ser construídas – UHE Itá e UHE Machadinho. Desde as primeiras reuniões entre lideranças e pequenos produtores rurais tornou-se evidente a desinformação das populações locais sobre as referidas obras. Assim, “informar para mobilizar” a partir desses primeiros encontros, ainda que não explicitamente, transformou-se em uma das prioridades do trabalho dos mediadores. As informações a serem veiculadas diziam respeito tanto a aspectos técnicos que adquiriam importância social, tal qual a definição das cotas dos lagos das barragens que permitiriam dimensionar as áreas que seriam alagadas, quanto ao conhecimento sobre a atuação da Eletrosul e de outras subsidiárias da Eletrobras em relação às “questões sociais” (Sigaud, 1988), podendo incluir – o que freqüentemente ocorreu – considerações sobre a questão das barragens e a produção de energia e sua inserção no contexto nacional e internacional. Quanto aos dados técnicos sobre o Projeto Uruguai, foram feitos sucessivos apelos à Eletrosul para que fossem definidas as áreas a ser alagadas, o número da população a ser atingida etc. Conforme o relato de uma liderança do Movimento dos Atingidos,14 entretanto, pouco ou quase nada foi acrescentado ao que já se sabia, isto é, ao conteúdo proveniente de estudos realizados por consultorias e pela própria empresa. O acesso a esses documentos ocorreu graças à articulação com setores ligados à Igreja, que, por sua vez, de acordo com um dos entrevistados, os conseguiram através de “outros contatos”.15 A despeito do silêncio do setor elétrico, as informações foram chegando, provenientes de várias fontes que não a própria empresa estatal, e com elas a certeza da inundação de milhares de pequenas propriedades rurais, vários povoados, algumas sedes municipais, entre as quais a cidade de Itá, cuja nova sede a Eletrosul apressou-se em construir garantindo, desse modo, o apoio de seus habitantes para a construção da barragem do mesmo nome (Peixer, 1993). Se poucas informações eram fornecidas diretamente pela Eletrosul, menos ainda se sabia sobre o destino das populações ocupantes dessas áreas. De concreto, no início, por parte da empresa, apenas a afirmação de que procederia a indenização das terras do Posto Indígena de Ligeiro (RS), diante da implantação da UHE Machadinho (Eletrosul, 1980). 14 15

Entrevista realizada pela autora em 1992. Em entrevista realizada pela autora em 1992.

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Porém, em resposta a um pedido de definição por parte dos prefeitos do Alto Uruguai, a Eletrosul (1981) encaminhou o documento “Política Geral de Desapropriações”, no qual foram explicitadas as condições em que deveria ocorrer o deslocamento das populações das áreas a ser requeridas pela empresa. Entretanto, embora fossem apontadas, nesse documento, como soluções para a liberação das áreas requeridas, tanto a possibilidade de reassentamento quanto a indenização financeira, ambas as soluções seriam oferecidas aos proprietários, cujas terras fossem compradas pela empresa, desde que existissem documentos comprobatórios de propriedade. A situação dos “posseiros” – incluindo-se aí também arrendatários de terras – seria resolvida pelos governos estaduais envolvidos e o Incra (Eletrosul, 1981). O documento acrescentava outras informações sobre as indenizações e nenhum outro esclarecimento sobre a possibilidade de reassentamento. Além da sua indefinição em relação a essa possível opção e a absoluta ausência de algum tipo de cronograma ou definição cronológica, ficava patente que qualquer solução a ser encaminhada ocorreria dentro dos limites da visão patrimonialista, excluindo os não proprietários a serem desalojados, sem o direito a soluções por parte da empresa. À visão patrimonialista da Eletrosul, entretanto, o Movimento dos Atingidos reagiu, desde muito cedo, com a inclusão, em seus questionamentos, dos segmentos dos pequenos produtores não proprietários de terras, atribuindo à empresa a responsabilidade de reassentá-los (CRAB, 1980a, p.9). A rigor, o destino de todos os pequenos produtores rurais, proprietários ou não, diante da possibilidade de desapropriação tornou-se o objeto central da preocupação dos dirigentes do movimento e motivo da mobilização e organização dos futuros atingidos. Preocupação que foi traduzida em “bandeiras de luta” (FAPES, 1979), tendo como horizonte garantir, de um modo ou de outro, diante da ameaça de migração compulsória a que seriam submetidos, o acesso à terra e, através dele, condições de continuar garantindo sua reprodução social como produtores rurais. A primeira reivindicação ou bandeira de luta assumida pelo movimento desde o primeiro Encontro, de 1979, foi a “indenização justa” pelas terras e benfeitorias. A adjetivação “justa” foi acrescentada à solução tradicional de desapropriação proposta pelo setor elétrico em situações similares, tendo em vista os depoimentos, já aludidos, dos pequenos produtores do Paraná. Conforme seus depoimentos, as indenizações pagas pelas empresas responsáveis pelas desapropriações ficaram muito aquém dos valores das terras nas respectivas regiões onde foram instaladas aquelas obras. Se “justa”, nesse caso significava de conformidade com os valores do mercado de terras nas regiões em questão, em um documento – “Manifesto dos pequenos produtores do Alto Uruguai Gaúcho e Catarinense sobre as Barragens” –, elaborado alguns meses depois da reunião em Chapecó, essa qualificação foi ressemantizada ou teve seu conteúdo ampliado, atribuindo à 279

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terra um valor simbólico, estimativo, quando foi afirmado que “Em cima de nossas terras colocamos tudo. Para nós elas têm um valor que a técnica não percebe” (Comissão de Barragens, 1980). Esse “tudo”, cujo valor os técnicos não consideravam, dizia respeito a outros valores agregados à terra, além de sua condição de meio de produção, tais como o trabalho nela investido, suas tradições e sua vinculação a espaços comunitários. Por essas e outras razões apontadas no manifesto em questão, afirmase, mais adiante, que “terra se troca por terra e não por dinheiro”. Ou seja, à “indenização justa” agregou-se uma nova reivindicação, já insinuada na reunião de Chapecó: “terra por terra na região”. A rigor, as principais razões para colocar em questionamento a desapropriação através de compensação financeira eram, em primeiro lugar, o temor de perder o acesso à terra devido à provável desvalorização das quantias recebidas diante das altas taxas de inflação e, em segundo lugar, a possibilidade de serem deslocados para outras regiões. Este último temor foi confirmado quando a Eletrosul acenou com a possibilidade de realizar reassentamentos através de projetos de colonização (Zero Hora, 1981, apud CRAB, 1981), localizadas em Mato Grosso. Como lembra Moraes (1994a, p.161), a tensão entre as duas propostas, “indenização justa” e “terra por terra na região”, perdurou por alguns anos ao longo da trajetória do Movimento dos Atingidos, no Alto Uruguai. Se havia, contudo, tensão entre as duas propostas e mesmo ambigüidade e indefinição, não havia dúvida sobre o modo como deveriam ser encaminhadas as negociações com a Eletrosul. À sua imposição de que as negociações fossem realizadas sem nenhuma intermediação, o movimento respondeu, desde os primeiros encontros, com veemente apelo aos pequenos produtores de que não negociassem suas terras individualmente. Por outro lado, a reivindicação por reassentamento na região, ainda que de maneira indireta e mal delineada, apareceu já no manifesto de Concórdia (CRAB, 1980, p.2). Entretanto, é no comunicado resultante de uma reunião da Comissão Regional, realizada em agosto de 1980 em Marcelino Ramos (RS), que se encontra a explicitação da proposta de reassentamento, incluindo nela os que “não possuem terra, posseiros, arrendatários, peões, parceiros, índios etc.” (CRAB, 1980a, p.2). Essas reivindicações foram encaminhadas à Eletrosul, que foi também pressionada por representantes políticos da região (prefeitos, associações de municípios do Alto Uruguai pelo governador do Rio Grande do Sul e por cooperativas). Como resposta, a empresa divulgou o documento “Política Geral de Desapropriação” (Eletrosul, 1981), apontando “princípios” que iriam nortear a liberação de áreas. Nesse documento chamam a atenção alguns pontos que reafirmam algumas das práticas do setor elétrico já enfatizadas. Entre elas, sua perspectiva patrimonialista, ao indicar indenização exclusivamente aos proprietários e seu autoritarismo ao afirmar que as indenizações seriam pagas de acordo com as conveniências da empresa que, “em caso de divergências e esgotados as possibilidades de indenização... 280

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recorrerá à Justiça para desapropriação do imóvel” (Eletrosul, 1981). Quanto à possibilidade de reassentamento, os planos, segundo o documento, ainda estavam por serem elaborados, em convênio com o Incra e com os governos estaduais, não sendo possível afirmar se para serem efetivados no mesmo município, no estado ou em outros estados, embora admitissem ouvir a população e “atender a seus anseios”. Por parte do Movimento dos Atingidos, pelo menos até 1983, considerando que as providências prometidas pela Eletrosul em relação às questões sociais não foram cumpridas, além do aprofundamento das discussões sobre as reivindicações como as condições para o encaminhamento das indenizações e reassentamentos, cresciam qualitativamente as discussões sobre “barragens porque e para quem”, incluindo, cada vez mais, argumentos macroeconômicos (Scherer-Warren, Reis, 1986). Contudo, movidos pela incerteza, pelo medo e pela indignação diante do que, em síntese, classificavam como “descaso do governo”, não surpreende a radicalização do Movimento dos Atingidos ao lançar, paralelamente às demais bandeiras de luta, um “Não às Barragens”. Esse posicionamento foi assumido também a partir de um grande evento realizado na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, congregando diferentes segmentos sociais e políticos, além dos agricultores do vale do Uruguai. Nesse evento, além do repúdio ao Projeto Uruguai, foi aprovada a proposta de elaboração de um abaixo-assinado contra as barragens a ser encaminhado ao então presidente da Eletrobrás e ao titular do Ministério Extraordinário de Assuntos Fundiários (CRAB, 1984 a). Todavia, contraditoriamente, o ano de 1985 se caracterizou, para o movimento, além da manutenção do “Não às Barragens”, pela luta para participar nas decisões sobre o destino da proposta da Eletrosul de implantação das referidas hidrelétricas. Assim que se instalou a Nova República, um grupo de parlamentares gaúchos foi a Brasília e obteve do então ministro das Minas e Energia, Aureliano Chaves, a promessa de suspensão temporária dessa proposta, para que fossem reestudadas as suas condições.16 Ao mesmo tempo, em audiência posterior mantida com representantes do movimento, o referido ministro prometeu a constituição de uma comissão para estudar o Projeto Uruguai e reafirmou a paralisação temporária do Projeto Uruguai, ambas as conquistas saudadas com entusiasmo no Alto Uruguai (CRAB, 1985c, p.4). Apesar do entusiasmo inicial, as promessas do ministro das Minas e Energia só foram parcialmente cumpridas quase um ano após, sob muita pressão do Movimento dos Atingidos sobre os técnicos da Eletrosul sediados no Alto Uruguai, através da constituição de dois grupos de estudos – um para a UHE Itá e outro para a UHE Machadinho –, do qual passaram 16

Conforme a Gazeta Mercantil de 13/04/1985, (apud CRAB, 1985 a, p. 1), esta promessa teria provocado a renúncia do então presidente da Eletrosul, Thompson Flores.

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a fazer parte representantes da empresa e do movimento, estes últimos, de acordo com uma das lideranças entrevistadas, passadas as primeiras reuniões,17 reduzidos a dois representantes, em contraste com a presença de 10 representantes da Eletrosul. Ao longo de 1986, entre marchas e contramarchas, o Movimento se rearticulou deixando de enfatizar as bandeiras políticas mais amplas contra o capitalismo, inclusive o “Não às barragens”, e dedicou-se a implementar uma longa rodada de reuniões nas localidades a serem alagadas pela UHE Itá e UHE Machadinho, discutindo propostas concretas em relação ao deslocamento dos agricultores dessas localidades. As discussões foram, por fim, sintetizadas em um importante documento – o Documento de Getúlio – elaborado em um grande encontro realizado no município de Getúlio Vargas (RS) (CRAB, 1986), contendo 39 pontos a serem contemplados pela Eletrosul. Esse documento foi, à época, sem sombra de dúvida, o mais completo e sistemático conjunto de reivindicações elaborado pelo Movimento dos Atingidos, contemplando alguns detalhamentos em relação às indenizações, à troca de terra por terra e aos reassentamentos. Depois de muitas tentativas frustradas de negociar os referidos pontos com a Eletrosul, o diálogo foi iniciado através de uma correspondência endereçada à CRAB (Eletrosul, 1986), sinalizando positivamente para vários deles e argumentando contra outros. Mas, sobretudo, assumindo compromissos, como a busca de soluções para os atingidos sem terra, a negociação coletiva em relação às indenizações e a apresentação de áreas nos três estados do Sul para os atingidos que optassem por “terra por terra”. O consenso em torno do Documento de Getúlio ocorreu, finalmente, em uma Assembléia Regional dos atingidos da Região I, que contou com a participação de diretores da Eletrosul. O documento, que passou a ser referido genericamente de “Acordo” – “Documento de Acordo entre a Eletrosul e a CRAB, em relação às Usinas Hidrelétricas de Itá e Machadinho” –, foi assinado pelo presidente da empresa, em 29 de outubro de 1987, e pelo ministro das Minas e Energia, em 6 de novembro do mesmo ano. Mais uma vez, a demora na implementação das medidas aprovadas no acordo levou o movimento a lançar, em meados de 1988, uma nova campanha, “Machadinho Nunca Mais” (CRAB, 1988). Com essa nova bandeira de luta, a Região I teve o curso de sua história segmentado: de um lado, os pequenos produtores ocupantes das áreas que seriam atingidos pela UHE Machadinho perseguiam o objetivo de seu cancelamento definitivo. De outro, os de Itá, juntamente com o apoio do movimento, continuaram batalhando pelo cumprimento do acordo e enfrentando novos desafios, resultantes de suas próprias escolhas, como ter que tomar decisões e assumir tarefas específicas em relação aos reassentamentos que começaram a ser instalados a partir de meados de 1989 (Reis, 2001). 17

Entrevista realizada pela autora em 1992.

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NOVO DESAFIOS E A EXPANSÃO DO LOCAL AO GLOBAL Com efeito, o Movimento dos Atingidos voltou-se, de modo especial a partir de 1988, para questões relativas aos futuros reassentamentos decorrentes da instalação da UHE Itá, como a escolha, juntamente com a Eletrosul, das glebas a ser adquiridas; a participação em uma comissão para definir critérios e montar os projetos para a instalação desses reassentamentos; a tarefa de mobilizar, informar e tentar convencer os colonos não proprietários a optarem por essa alternativa; a realização de reuniões com os optantes para discutir o modelo de organização da produção e o perfil tecnológico a ser implantados na retomada do processo produtivo e a coordenação de parte do processo de instalação da infra-estrutura desses empreendimentos. Assumiu, também, um conjunto de tarefas tendo em vista o cumprimento do referido acordo, fazendo levantamentos semestrais do preço das terras na região para orientar as negociações das indenizações e participando em uma “Comissão Paritária”, juntamente com a Eletrosul, destinada a discutir situações especiais (como doença, velhice etc.) de determinadas famílias que não poderiam ser removidas da região do Alto Uruguai. Ao mesmo tempo, o movimento teve que enfrentar e continua enfrentando novos desafios na Bacia do Uruguai, em virtude da privatização de parte do setor elétrico brasileiro. A partir dessa privatização, tem sido registrado significativo retrocesso (Bornholdt, 2003; Baggio, 2003) em relação às soluções relativas ao deslocamento compulsório das populações locais a ser removidas para a instalação de hidrelétricas. Mais que isso: o Movimento dos Atingidos por Barragens e os agricultores familiares a ele vinculados têm enfrentado repressão policial, indiciamento judicial e prisões de parte daqueles a serem removidos de seus territórios tradicionais, como no caso da UHE de Campos Novos (SC) (Kroeger, 2005), em instalação no vale do Uruguai, berço da organização desse movimento social. Além de todas essas incumbências, o Movimento dos Atingidos abriu novas frentes de luta, articulando-se com inúmeras organizações não-governamentais (ONGs) voltadas, sobretudo, para questões ambientais, e contribuiu decisivamente para a mobilização de outros futuros atingidos em reação à instalação de hidrelétricas em outras regiões e outros estados brasileiros. Foi, de modo especial, um dos principais organizadores do I Encontro Nacional sobre Barragens (Goiânia, 1989), que deu origem a uma nova articulação nacional de outros movimentos em torno do mesmo problema. Nele foi criado, em âmbito nacional, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e estabelecido o dia 14 de março como o “Dia Nacional de Luta contra as Barragens”. A esse encontro sucederam-se outros nos anos posteriores, dois deles (1997, 2003) de caráter internacional, resultantes da articulação do MAB com uma rede de organizações voltadas para a problemática em questão. 283

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Os projetos governamentais desenvolvimentistas levados a cabo pelo Estado brasileiro, em especial a partir de meados do século passado, priorizando a instalação de infra-estrutura voltada para a produção industrial, na qual a instalação de usinas hidrelétricas tem ocupado papel de destaque, tiveram e continuam tendo múltiplas implicações negativas sobre as populações locais, dentre as quais sobretudo a dos pequenos produtores rurais. O Projeto Uruguai, pelo menos no que se conhece até o momento, tem se constituído em mais um caso que ilustra o descaso e o autoritarismo governamentais para com as questões que vêm sendo genericamente denominadas de questões sociais desses projetos, reproduzidos nos dias atuais pelos consórcios privados. Contudo, no caso específico da Bacia do Uruguai, como em outros casos registrados, a reação dos pequenos produtores familiares, organizados no Movimento dos Atingidos por Barragens, os deslocou do desconfortável lugar de “vítimas passivas” do Projeto Uruguai para o de combativos interlocutores, dispostos a desafiar o setor elétrico a repensar e a redirecionar suas decisões e ações, no sentido de promover soluções mais justas e adequadas para garantir a retomada de suas vidas nos novos locais para onde tiveram que migrar. Assim é que, a despeito dos inúmeros desafios e frustrações enfrentados e a enfrentar na continuidade do movimento em pauta, é indispensável ressaltar, entre suas inúmeras conquistas, além das soluções acima referidas, a constituição desses produtores rurais – como o fizeram tantas outras lutas historicamente registradas – como sujeitos coletivos, capazes de influir em sua própria história e de dar visibilidade nacional a uma problemática de tão amplas implicações socioambientais e culturais como a da produção de hidreletricidade.

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12 A LUTA DE CLASSES EM DOIS ATOS: NOTAS SOBRE UM CICLO DE GREVES* Lygia Sigaud

Entre 1979 e 1985, ocorreram greves sucessivas, envolvendo a quase totalidade dos 240 mil trabalhadores das grandes plantações canavieiras da Zona da Mata de Pernambuco. Dessas greves, de duração média de cinco dias e sempre realizadas no início da safra da cana (setembro/ outubro), resultaram contratos coletivos contendo normas reguladoras das condições de vida e de trabalho no interior das fazendas, como salário, moradia e acesso à terra para a lavoura de subsistência. Essa seqüência de greves chama a atenção do observador, em primeiro lugar, por sua regularidade. Trata-se de greves que se reproduzem ano a ano, acompanhando a periodicidade sazonal da cana-de-açúcar, o que permite que sejam pensadas como constituindo um ciclo, no sentido de eventos que se repetem sistematicamente. A primeira delas (Sigaud, 1980) coincidiu com a retomada das greves operárias no Sudeste do país. Já as seguintes ocorreram numa conjuntura marcada pela redução do número de paralisações no mundo urbano, o que indica uma relativa autonomia dessas greves em relação à dinâmica do movimento operário, e este constitui o segundo aspecto a destacar. Por último, cabe assinalar que, ao término de cada greve e de cada obtenção de um contrato coletivo, intensificaram-se os conflitos entre trabalhadores e patrões, o que permite colocar em relevo que a greve cria também as condições de possibilidade de novos enfrentamentos. Meu objetivo neste texto é examinar esse ciclo de greves e entender a sua dinâmica. Meu ponto de partida é a distinção analítica entre os dois * Este texto é uma versão modificada de artigo publicado em Dados. Revista de Ciências Sociais (Sigaud, 1986). A versão original resultou de uma pesquisa sobre Lutas Políticas e Mudança Social no Nordeste, apoiada pela Finep, pela Fundação Ford e pelo CNPq.

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A luta de classes em dois atos

momentos constitutivos do ciclo: o momento da greve e o interregno. Ao contrário dos estudiosos das greves, que tendem a focalizar sua atenção apenas nelas (Perrot, 1974; Shorter, Tilly, 1978), examinarei também o que se passa depois, no intervalo. Tal opção traz a marca da singularidade do caso que examino. Como estou confrontada a um ciclo, não posso ignorar o que ocorre para além do momento espetacular da greve. A inclusão desse tempo no campo da análise poderá ter a virtude de fornecer novos elementos para melhor entender outras greves, em outras localidades e conjunturas históricas. O texto está dividido em três partes. Na primeira focalizo o momento da greve, suas características, os atores envolvidos e o que esteve em jogo para eles. Na segunda analiso o interregno, os conflitos que são a sua tônica e o modo como são percebidos. Na última parte, coloco em relevo os efeitos do ciclo em diferentes escalas e o significado das greves para aqueles que foram os seus principais protagonistas: os trabalhadores das grandes plantações da Zona da Mata pernambucana. Para constituir o corpus da análise utilizei materiais recolhidos por meio de observação, entrevistas e conversas informais durante as greves e no interregno.

O MOMENTO DA GREVE Na linha de frente das greves, estiveram os trabalhadores residentes nos engenhos,1 identificados localmente como fichados, por possuírem um contrato de trabalho: eles foram a principal base de sustentação das paralisações. Delas também participaram os clandestinos, nome dado aos que não possuem um contrato de trato de trabalho e que residem, em sua grande maioria, nas pontas de rua (periferia das cidades da região).2 Mesmo não sendo suporte de muitas das reivindicações da greve, que contemplavam, sobretudo, os interesses dos fichados, os clandestinos aderiram ao movimento, para espanto dos líderes sindicais, uma vez que a maioria desses trabalhadores não era associada aos sindicatos. As greves contaram ainda com a participação dos corumbas ou curaus, como são identificados os pequenos produtores do Agreste (região fisiográfica vizinha) que se deslocam para a Zona da Mata no período da safra da cana.3 Todas as greves foram organizadas e lideradas por entidades sindicais, a saber: os sindicatos de trabalhadores rurais, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (FETAPE) e a Confederação 1

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Engenho é o termo utilizado no Nordeste para designar as unidades produtoras de canade-açúcar. No final dos anos 70 os fichados constituíam aproximadamente 40% da força de trabalho utilizada nos engenhos. A respeito da segmentação da força de trabalho entre fichados e clandestinos, ver Sigaud (1979). Sobre os corumbas, vejam-se Andrade (1964) e Ringuelet (1977).

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Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).4 Todas foram legais, não apenas por ter sido esse o entendimento da Justiça do Trabalho, instituição à qual cabe julgar a legalidade dos movimentos grevistas, mas também por ter sido realizada levando em conta a legislação sobre greves (Lei n.4.330/64). A realização da greve nos marcos da legislação em vigor naquele momento, quando outras greves eram feitas no restante do país sem considerá-la, só pode ser compreendida à luz da história recente de Pernambuco. Muitos dos que se encontravam à frente das mobilizações tinham vivido a experiência da forte repressão ao movimento sindical por ocasião do golpe militar de 1964 (prisão, tortura e morte de dirigentes e intervenções nos sindicatos). Ajustar-se à lei foi o modo que encontraram para evitar retaliações contra as entidades sindicais e seus líderes. Foi também um meio para opor um obstáculo legal à ação da Polícia Militar que, à exceção do curto período do primeiro Governo Miguel Arraes (Callado, 1964), tendia a atuar na defesa dos proprietários e contra os trabalhadores rurais. As greves sempre eclodiram após a recusa patronal em aceitar a proposta de contrato coletivo feita pelas entidades sindicais. Todas foram suspensas no momento em que o contrato foi estabelecido, quer por meio de uma convenção assinada pelos representantes dos trabalhadores e pelos dos patrões, quer por meio de um dissídio coletivo votado pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT). Assim, a greve de 1979, eclodiu após a recusa dos patrões à proposta e terminou com a assinatura da convenção, obtida após sucessivas reuniões entre as partes, mediadas pelo delegado regional do Trabalho. Dessa greve de sete dias de duração participaram vinte mil trabalhadores de São Lourenço da Mata e Paudalho, municípios da região metropolitana do Recife. Outros cem mil também se encontravam mobilizados para aderir à paralisação, o que acabou não ocorrendo porque a convenção foi estendida a toda a zona canavieira. A greve de 1980 foi também desencadeada após o não dos patrões e envolveu os 240 mil trabalhadores da zona. Durou dois dias e foi suspensa com a votação do dissídio. Em 1981, não houve greve. O TRT julgou o dissídio antes de findo o prazo fixado por lei para as negociações, inviabilizando assim legalmente o movimento. Para efeito do que está sendo analisado aqui, o fato de a greve não ter ocorrido não importa, já que havia organização e disposição dos trabalhadores para fazê-la. A greve de 1982 durou dois dias e envolveu o mesmo número de trabalhadores. Teve início pela mesma razão que as de 1979 e 1980 e foi suspensa, como a de 1980, após pronunciamento da Justiça. A greve de 1983 se estendeu 4

Os sindicatos de trabalhadores da Zona da Mata foram criados no início dos anos 1960. A FETAPE, que congrega o conjunto dos sindicatos do estado, foi fundada em 1962. A Contag, que reúne as federações do país, constituiu-se em 1963. No período do ciclo, a confederação era presidida por José Francisco da Silva, que havia sido delegado sindical e presidente do sindicato de Vicência (zona canavieira) e diretor da FETAPE.

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por três dias, sendo igualmente suspensa após decisão judicial. Em 1984, ocorreu a greve mais longa, com doze dias de duração. Cerca de 30 mil trabalhadores, liderados por cinco sindicatos, saíram à frente dos demais, como parte de uma estratégia para assegurar uma pressão mais forte sobre os patrões. Nos seus últimos nove dias, a greve foi deflagrada no restante da Zona da Mata e suspensa com a obtenção, na Justiça, das normas desejadas. Em 1985, a greve não chegou a eclodir porque, a apenas 24 horas do seu início, se chegou a um acordo em relação às normas. Como em 1981, os trabalhadores naquele ano também se encontravam mobilizados e organizados para a greve e se sentiram frustrados por não ter podido “grevar”, neologismo para designar o ato de fazer greve. Apesar das discrepâncias quanto ao número de trabalhadores e de sindicatos envolvidos, números de dias de greve, paralisação ou não do trabalho e instâncias de resolução dos conflitos, existem denominadores comuns no interior desse ciclo. Nesse sentido, para fins de análise, busquei isolar o momento da greve como um período com limites bem definidos, que se singulariza por sua liminaridade, em termos de afastamento da normalidade da vida social, e no qual se podem distinguir dois planos em que as ações se desenrolam. Tal procedimento permitirá identificar os diferentes personagens, as relações sociais e o que estava em jogo no contexto da greve. Num plano, recorrendo aqui à analogia do teatro, o cenário foram os engenhos, explorados pelos senhores de engenho, termo utilizado pelos trabalhadores para designar os proprietários e os arrendatários, e pelos usineiros, termo reservado aos industriais do açúcar.5 Nesse cenário, enfrentaram-se os trabalhadores de cada engenho, que suspenderam a produção e buscaram impedir, por meio de piquetes, que ela fosse retomada, e o patrão e/ou seus prepostos (cabos, administradores e vigias), que se empenharam em evitar a paralisação, buscando convencer os trabalhadores a não aderirem ao movimento, mobilizando substitutos para tocarem a produção e recorrendo, em alguns casos, às milícias privadas para coagir os grevistas. 5

Desde o início da colonização, no século XVI, quando os portugueses implantaram a agricultura da cana e o fabrico do açúcar em Pernambuco, até o final do século XIX, a cana e o açúcar foram produzidos nos engenhos. Os senhores de engenho, como eram denominados aqueles que exploravam as terras, se constituíram em uma aristocracia regional detentora do poder econômico e político. Com a centralização da produção do açúcar em unidades industriais – as usinas – surgiu a figura dos usineiros, que passaram a disputar com os senhores de engenho o controle das terras e da produção. Ao longo do período, os engenhos sempre empregaram mão-de-obra numerosa, constituída primeiramente de escravos e já no século XIX por homens livres, denominados moradores. Até os anos 1950 a força de trabalho utilizada na produção da cana residia nos engenhos. A segmentação da força de trabalho assinalada na nota 3 data dos anos 1960. A primeira greve ocorreu em um momento de expansão da produção da cana-de-açúcar, graças a incentivos governamentais, como o Proálcool. Para a história das relações sociais nas grandes plantações, ver sobretudo Andrade (1964) e, para período mais recente, também Sigaud (1979).

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Quando houve unificação dos comandos de greve, esses enfrentamentos opuseram trabalhadores e prepostos de mais de um engenho. O papel dos dirigentes sindicais nesse plano consistiu, fundamentalmente, no desencadeamento do processo, isto é, “na ordem” de mandar parar e na resolução de algum caso mais grave, como agressões e morte de trabalhadores.6 A paralisação da produção e a continuidade da paralisação dependiam apenas dos trabalhadores e dos comandos de greve, os principais atores desse drama, valiam-se dos mais diferentes meios para manter os engenhos parados: obstrução de estradas, tombamento de caminhões, pressões sobre os companheiros, piquetes gigantes, bloqueio dos acessos às fazendas etc. Era nesse plano que a greve se configurava mais claramente como uma substantivação de um fato social dotado de “poder imperativo e coercitivo”, no sentido de Durkheim (1965, p.2). Era imperativo paralisar todas as atividades do engenho, mesmo aquelas cuja continuidade não poderia tecnicamente ser considerada como uma ruptura da greve, como a ordenha das vacas e a alimentação dos animais. Se, tecnicamente, o que importava era o prejuízo decorrente da suspensão do corte de cana, que provoca a paralisação das usinas, do ponto de vista dos trabalhadores era imperioso “parar tudo”, não trabalhar para os patrões. A esse imperativo fichados, clandestinos e corumbas deveriam se curvar, a tal ponto que a ordenha de uma vaca era muitas vezes invocada pelos trabalhadores como uma evidência de que a greve é parcial no engenho, como tive a oportunidade de verificar em reuniões de avaliação do movimento. Num outro plano, o palco era a cidade, e o cenário, a mesa de negociações, onde se defrontavam dirigentes sindicais representando os trabalhadores e os patrões,7 assim como seus respectivos assessores. A mediação entre as partes foi exercida pelo delegado regional do Trabalho e pelo procurador da Justiça do Trabalho, na fase administrativa, e pelo presidente do TRT e pelo procurador na fase judicial.8 Nesse plano, a disputa era travada em torno de palavras, que iriam definir as obrigações dos patrões, e de números referentes a salários e valores de produção, e as principais armas eram a retórica e o poder dos argumentos. Para os representantes patronais tratava-se de reduzir quanto possível o número de normas reguladoras. Para os representantes dos trabalhadores, a questão decisiva era a aceitação, por parte dos patrões ou dos juízes, das normas propostas. Tal aceitação significava o atendimento a uma reivindicação e o reconhecimento da justeza 6 7

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Ver a respeito as denúncias feitas pela FETAPE (1984). Os trabalhadores eram representados pela FETAPE e pela Contag e os patrões pelo Sindicatos dos Cultivadores de cana-de-açúcar do Estado de Pernambuco (os fornecedores) e pelo Sindicato da Indústria do Açúcar do Estado de Pernambuco (usineiros). De acordo com a Lei n.4.330/64, expirado o prazo de cinco dias para negociações entre as partes e não se chegando a um acordo nesta fase “administrativa”, qualquer uma das partes ou os representantes do Estado podem solicitar ao Tribunal a instauração do dissídio.

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de suas propostas relativas ao dever-ser das relações sociais nos engenhos. Nessa disputa por palavras estavam em jogo tanto a aceitação de situações de fato que, caso reconhecidas, se tornariam situações de direito (como o tamanho das tarefas a serem executadas), quanto a aceitação de direitos inexistentes, cujo reconhecimento precipitava sua própria existência, como foi o caso dos delegados sindicais.9 O desfecho da batalha retórica dependia, por um lado, da eficácia das ações que se desenrolavam no plano dos engenhos, pois, quanto mais significativa fosse a paralisação, mais os patrões se sentiam pressionados e maior o interesse dos mediadores em apressar uma solução, tendo em vista os enormes prejuízos econômicos e financeiros que atingiam tanto os fornecedores de cana e usineiros quanto os próprios cofres do Estado. Por outro lado, o desfecho do duelo verbal dependia da habilidade e competência dos negociadores, assim como da conjuntura política e da avaliação que as duas partes faziam de suas possibilidades de ganhar a guerra por palavras, e, ainda, da avaliação que os dois outros atores – os representantes dos poderes Executivo e Judiciário –, faziam de seu papel de intermediação. Em 1979, os patrões avaliaram mal a situação – do seu ponto de vista – e cederam em relação a um acordo, apostando na ineficácia do instrumento que estavam aprovando. Naquele momento, pesaram tanto o fator surpresa quanto a pressão por uma solução rápida e negociada por parte dos representantes do Estado, cuja imagem estava desgastada em virtude do uso de forças policiais contra trabalhadores grevistas em outros pontos do país e de recentes intervenções sindicais (Sigaud, 1980). De 1980 a 1984, fracassadas as negociações, coube ao TRT pôr fim ao conflito. A aceitação/ rejeição das normas e, portanto, o ato de reconhecimento ficou, assim, a cargo dos juízes, cuja tendência, ao longo dos cinco anos em que foram chamados a se pronunciar, foi favorecer mais os trabalhadores do que os patrões, o que se inscreve na filosofia do direito do trabalho, que visa a proteger os mais fracos. Pesava também, a favor dos trabalhadores, o fato de muitas das normas propostas significarem tão-somente a inclusão no contrato coletivo de itens da legislação em vigor. Em 1985, a batalha não chegou ao Tribunal, pois houve acordo entre as partes. Durante o período estudado, o momento da greve envolveu esses dois planos aqui analisados. Entre eles há diferenças em relação aos atores envolvidos e às ações em jogo e continuidades e descontinuidades de outra ordem, que merecem ser examinadas. Em primeiro lugar, observa-se que já no terceiro ano do ciclo descrito as ações se passaram, sobretudo, no 9

No que se refere ao tamanho das tarefas, em muitas greves os trabalhadores buscavam consagrar, quer no dissídio, quer no acordo, um determinado quantum de produção que de fato já vigorava, embora não de direito. Quanto aos delegados sindicais, observa-se que, após o reconhecimento do direito do sindicato de criar delegacias sindicais, já na primeira greve, é que houve, de fato, a generalização da figura do delegado.

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plano da cidade, ou seja, não houve greve, o mesmo ocorrendo no sexto ano. O inverso, isto é, as ações se desenrolando no plano dos engenhos e nada ocorrendo no plano da cidade, seria impensável. O que está em jogo no momento da greve é a definição das normas. A greve é um meio para obtê-las. Em segundo lugar, verifica-se que o peso da conjuntura só se faz sentir no plano da cidade. É no cenário das negociações que os fatores da conjuntura provocam efeitos no desenrolar dos acontecimentos, informando as ações dos diferentes atores e mediadores. No plano dos engenhos, o peso é da estrutura, das posições em que os atores estão inseridos e que se reduzem a duas: trabalhadores e patrões, vendedores e compradores de força de trabalho. Nesse plano, o espaço para a variação era mínimo, ficando por conta apenas da criatividade dos trabalhadores, em seus piquetes, mais elaborados, ou dos patrões, na sofisticação de seus armamentos, no reforço de suas milícias privadas e no raio de sua atuação. Aqui estava sempre em jogo a mesma coisa: parar o engenho/impedir que o engenho pare. O teor das normas que estavam sendo disputadas na cidade não alterava a dinâmica da greve, as ações desenvolvidas pelas duas partes. Quaisquer que fossem suas reivindicações, os trabalhadores sabiam que deveriam proceder do mesmo modo: parar os engenhos para forçar patrões a cederem e os juízes a penderem para o seu lado. Da mesma forma, os patrões sabiam que para gerir seus engenhos conforme seus interesses deveriam evitar a greve, ou pelo menos tudo fazer para enfraquecê-la. Os fatores de conjuntura que, no plano da cidade, se refletiam numa maior ou menor predisposição para negociar, para reprimir ou se manter afastado do conflito, para facilitar ou não um acordo, para reconhecer ou negar reivindicações, no plano dos engenhos não produziam efeitos. Tanto num plano como no outro, a oposição se dava entre duas totalidades, duas classes: a classe dos trabalhadores e a classe dos patrões. No momento da greve as diferenças internas a cada grupo – por exemplo, aquelas que separam os fichados dos clandestinos e os usineiros dos senhores de engenhos – se anulavam, e patrões, de um lado, e trabalhadores, de outro, passavam a atuar cada qual por interesses comuns, corporificando-se em duas classes distintas. No plano da cidade as classes se personificavam na figura dos representantes; no plano dos engenhos, esse “tomar corpo” se expressava na ação concertada e orquestrada dos trabalhadores como uma totalidade, e dos patrões enquanto outra totalidade. As divergências internas no patronato e entre os trabalhadores, verificadas em todos esses anos, não invalidam o argumento de que se trata de um enfrentamento entre duas totalidades, pois os interesses do todo tenderam a prevalecer sobre os interesses das partes. Entre os trabalhadores, essa corporificação de classe antecedia a greve e se expressava no marco inaugural do momento da greve, que eram as assembléias nas quais era aprovada a pauta de reivindicações. Realizadas 293

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simultaneamente em todos os municípios da Zona da Mata, de modo a cumprir o estabelecido na Lei de Greve (que determina sua convocação por edital, impõe um quorum rígido e determina a aprovação das reivindicações e decretação da greve por escrutínio secreto), essas assembléias se constituíam, desde o primeiro ano do ciclo, em grandes eventos coletivos de afirmação dos interesses e da unidade coletiva em torno de objetivos comuns. Elas foram um espaço privilegiado para a consagração do consenso a que se refere Durkheim (1968, p.610). Tendo em vista as imposições da Lei de Greve, que exigia a presença de um terço dos associados do sindicato nas assembléias, as direções sindicais se empenhavam em mobilizar grande número de trabalhadores, por meio de reuniões nos engenhos e nas pontas de rua; da distribuição de panfletos distribuídos nos engenhos, nos pontos de caminhão que transportam os clandestinos para o trabalho e nas feiras; e de programas nas emissoras de rádio. Graças, provavelmente, a esses investimentos, houve no período estudado um comparecimento expressivo às assembléias. No dia marcado, quase sempre um domingo, centenas de trabalhadores afluíam às pequenas cidades – sede de municípios da Zona da Mata. Em alguns anos calculou-se que cerca de cem mil pessoas haviam estado nas assembléias realizadas em toda a área canavieira. Para participar do que certamente era a sua assembléia mais expressiva daquele ano, esses milhares de trabalhadores se dirigiam à cidade em transporte fretado pelo sindicato ou por eles próprios, a pé ou de bicicleta, trazendo a família inteira e vestindo suas melhores roupas, o que denota a significação que atribuíam ao evento. As assembléias eram realizadas nas sedes dos sindicatos ou em outros prédios da cidade, muitos deles por demais exíguos para abrigar o grande número de participantes que tomavam então as ruas defronte aos prédios. Músicas da moda e as cantigas da greve10 animavam os participantes e uma espécie de euforia coletiva parecia imperar no ambiente, como pude observar em reuniões das quais participei em São Lourenço da Mata, na área metropolitana do Recife, e em Rio Formoso, no litoral sul. A assembléia, dirigida pelo presidente do sindicato, era aberta com a leitura solene das reivindicações que integravam a proposta a ser encaminhada aos patrões. A apresentação era freqüentemente interrompida por comentários dos dirigentes ou da própria platéia, que cobrava explicações e manifestava seu acordo ou desacordo. Ao término da leitura, a proposta era colocada em votação e aprovada por aclamação. O clímax da reunião ocorria quando os trabalhadores, de braços erguidos, aprovavam a decretação da 10

Para cada campanha salarial, alguns dirigentes sindicais compuseram canções referentes ao que consideram as questões mais importantes daquele momento. Ao cabo de seis anos os trabalhadores já dispunham de um repertório musical específico da greve, repertório este freqüentemente enriquecido por outras canções “sindicais” ou “de Igreja”. A reforma agrária era um dos temas privilegiados.

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greve caso os patrões não aceitassem a proposta. Para os dirigentes sindicais, essa era a parte mais importante da assembléia. Seguia-se a votação, por escrutínio secreto, do que fora aprovado coletivamente, momento por eles considerado como o menos nobre. Para os trabalhadores, no entanto, a julgar pelo empenho que manifestavam em votar, o momento do voto era repleto de significação. Após a segunda greve, a fiscalização do Estado sobre as assembléias, para efeitos de cumprimento da Lei de Greve, foi débil, implicando, portanto, um relaxamento dos dirigentes sindicais em relação à votação secreta. Os trabalhadores, no entanto, faziam questão de votar: enfrentavam filas e tumultos e aguardavam horas para chegar à mesa de votação; os doentes mandavam esposas ou filhos para votar por eles. Pouco parecia lhes importar se tratar de uma eleição cujo resultado todos conheciam de antemão – a vitória da cédula verde, sim às reivindicações e à greve, sobre a cédula amarela, não à greve e sim aos patrões. A votação individual assinalava, para cada trabalhador, sua adesão ao que fora consagrado coletivamente. Aquele gesto ritual de eleger a greve por meio da colocação da cédula verde na urna simbolizava a individualização da oposição coletiva aos patrões e o compromisso de cada um com ela. Jamais suspeitaram os legisladores que aprovaram a Lei n.4.330, com o objetivo claro de inviabilizar as greves (tamanhas suas exigências burocráticas), que as limitações impostas pudessem vir a favorecer uma tamanha mobilização dos trabalhadores, graças aos investimentos dos dirigentes sindicais e à própria dinâmica do evento.11 Antes mesmo das assembléias, a corporificação enquanto classe já começava a ser constituída no processo de elaboração da pauta de reivindicações. Aproximadamente um mês antes da inauguração do momento da greve, eram realizadas reuniões nos sindicatos, envolvendo trabalhadores, delegados sindicais ou comissões por engenho, para discutir a proposta a ser encaminhada aos patrões. A participação dos associados na elaboração da proposta era desigual no conjunto dos municípios e tendia a ser mais elevada onde os dirigentes sindicais se empenhavam mais na campanha salarial, termo que designa o conjunto de atividades destinadas à aprovação do contrato coletivo. Após essa discussão inicial e a gestação de propos11

Vejam-se os dados da FETAPE a respeito do escrutínio nas assembléias durante o período. Número de Votantes nas Assembléias da Zona Canavieira: 1979 a 1985 Ano

No de votantes

1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985

61.706 52.479 44.646 59.061 59.586 62.680 68.678

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tas no interior dos sindicatos, os dirigentes dos sindicatos e da FETAPE procediam à consolidação uma proposta única e traçavam a estratégia da campanha salarial. Essa consolidação era objeto de conflito entre dirigentes sindicais, pois para se chegar a um denominador comum, era necessário ajustar demandas diferenciadas e contraditórias. O que era importante para um município não o era necessariamente em outros, e todos queriam ter suas demandas contempladas. Os dirigentes da FETAPE e da Contag, assim como os assessores (advogados e economistas), exerciam sua liderança para conciliar os interesses. Habituados ao enfrentamento com os patrões na mesa de negociações, sabiam avaliar as possibilidades e impossibilidades de vitória: eles haviam adquirido o “bom senso” indispensável para compor uma proposta com chances de vir a ser aceita. Verifica-se, assim, que as demandas do trabalhador percorriam um longo caminho antes de integrar uma pauta de reivindicações. Muitas delas se perdiam no trajeto ou eram adequadas aos parâmetros da legislação ou aos parâmetros do que seria aceitável no quadro das negociações. Desse processo de construção da pauta resultava um conjunto de reivindicações que, a rigor, não iria contemplar a demanda de nenhum trabalhador em particular, nem a de grupos localizados de trabalhadores, embora, eventualmente, isso até pudesse ocorrer, mas representaria um ajuste entre as diferentes demandas, um equilíbrio no interior da diversidade. Nesse sentido, a proposta acabava por contemplar todos os trabalhadores naquilo que lhes era mais comum e nenhum individualmente. Ela era uma vontade geral construída. Durante todos esses anos, os trabalhadores nunca lograram um reconhecimento de todas as normas propostas, como costuma ocorrer em movimentos grevistas, camponeses ou não. Em contrapartida, sempre conseguiram ter atendidas uma parte significativa de suas demandas. A base sobre a qual foram se sedimentando as novas demandas foi o acordo de 1979, aquele que marcou o início do ciclo. A cada ano, eles consolidavam o que haviam obtido no ano anterior e encaminhavam novas normas; às vezes, as mesmas normas recusadas num ano eram aprovadas no seguinte. Essas normas, apresentadas sob a forma de reivindicações, uma vez reconhecidas, passavam a integrar o contrato de trabalho que regula as relações de trabalho pelo prazo de um ano, ao término do qual, caducavam, caso não fossem renovadas. O momento de greve aqui descrito era encerrado por uma assembléia, nunca tão expressiva quanto as iniciais, mas que cumpria a função de decretar a suspensão da greve e de assinalar o fim do período liminar. Em São Lourenço da Mata, a partir de 1980, foram realizadas, após a assembléia, grandes manifestações pelas ruas da cidade, nas quais não faltaram pedaços de cana carregados como estandartes da vitória, muito frevo, muita música e muita bebida, uma mistura de passeata e carnaval. O “carnaval da vitória”, 296

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como eram denominadas essas manifestações, mereceria uma reflexão à parte, que não cabe no escopo desse trabalho. Trata-se, como diria Da Matta (1979, p.38), de um evento dominado “pela brincadeira, diversão e/ ou licença”, no qual o comportamento é regido “pela liberdade decorrente de suspensão temporária das regras de uma hierarquia-repressão”, e também um evento que opera a separação entre o “extraordinário” (a greve) e o “mundo cotidiano” (a volta à produção), no qual a vitória é celebrada cívica (passeata) e carnavalescamente. Seria possível identificar também nessa manifestação a “vontade agressiva de apropriação do espaço urbano” e um tipo de ação simbólica tendo em vista a auto-satisfação dos próprios manifestantes, à qual se refere Champagne (1984, p.19-41), em suas análises sobre as manifestações camponesas na França. Caberia ainda uma última reflexão a respeito do que parece ser a marca distintiva do momento da greve, aquilo que articula e confere unidade às ações que se passam nos dois planos: a subversão da ordem estabelecida. No plano dos engenhos, como foi visto, os trabalhadores assumiam o controle das fazendas, subvertendo a dominação a que cotidianamente estão submetidos e forçando os patrões a uma atitude defensiva. No plano da cidade, a inversão da ordem se evidenciava no fato de os patrões serem obrigados a desempenhar o papel dos parceiros no jogo das negociações, submetendo-se, assim, às regras da simetria que, embora formais e episódicas, os humilhavam porque os tornavam iguais àqueles que desprezavam, por considerá-los socialmente inferiores.

O INTERREGNO A intensificação dos enfrentamentos entre trabalhadores e patrões constitui a marca do interregno, conforme já assinalado. O estabelecimento de contratos coletivos com inúmeras cláusulas e as disposições dos patrões, dos sindicalistas e dos trabalhadores em relação ao seu cumprimento favoreceram os enfrentamentos. O estabelecimento do contrato coletivo não implicou, ao longo do período, que os patrões passassem automaticamente a cumprir tudo o que lhes havia sido prescrito. Muitos patrões não concordavam com o que havia sido acordado na mesa de negociações ou votado pelo TRT e se recusavam a se ajustar às normas. Em alguns anos, os sindicatos patronais recorreram ao Tribunal Superior do Trabalho para arguir a legalidade das cláusulas estabelecidas pela instância regional e orientaram seus associados a não respeitar certos itens do contrato. Do outro lado, a FETAPE estimulava os dirigentes da Zona da Mata a se empenhar pelo cumprimento dos contratos. Entre os trabalhadores, as cláusulas dos contratos eram percebidas como direitos que vinham a se somar aqueles que haviam adquirido com o Esta297

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tuto do Trabalhador Rural (ETR), a lei votada pelo Congresso Nacional em 1963, estendendo os direitos trabalhistas ao campo. Eles eram particularmente sensíveis a alguns dos itens, como a tabela de tarefas, que estabelecia equivalências entre quantum de produção e remuneração.12 A primeira tabela de tarefas havia sido elaborada em 1963, no âmbito do primeiro contrato coletivo de trabalho estabelecido por meio de um acordo entre sindicatos dos trabalhadores e sindicatos patronais mediado pelo então governador Miguel Arraes (Callado, 1964, p.87-92). Em 1964, o contrato foi renovado, com a inclusão de novos itens na tabela de tarefas. Nos anos subseqüentes, não houve mais renovações. A correlação de forças no regime militar era desfavorável aos trabalhadores e aos sindicatos, colocados sob severa vigilância do Ministério do Trabalho. A tabela seguia sendo uma referência para os trabalhadores, mas para ela não havia garantia jurídica. Com a greve de 1979, a tabela e o contrato foram restabelecidos. Os direitos adquiridos com a greve diziam respeito a várias dimensões das condições de trabalho e de vida no interior dos engenhos. O valor do salário, aumentado a cada greve, e a tabela eram apenas algumas delas. Das greves resultaram definições como aquelas relativas ao fornecimento de instrumentos de trabalho; ao transporte para o trabalho; ao tempo de deslocamento para o trabalho, ao fornecimento de comprovante de pagamento; ao local, horário e dia de pagamento; e, a partir de 1985, ao direito do trabalhador de optar pelo sistema de pagamento pela diária e não pela produção, em caso de desrespeito à tabela. Resultaram também das greves definições relativas ao acesso à terra para cultivo de lavoura de subsistência, ao estado das casas em que residiam os trabalhadores, a sua remuneração em caso de doença e à estabilidade da trabalhadora gestante. E ainda definições relativas ao desconto para o sindicato, ao seu poder fiscalizador e à presença de delegados sindicais no interior dos engenhos. Os enfrentamentos no interregno disseram respeito ao cumprimento dessas cláusulas e se deram de diferentes formas. Assim, para exigir o respeito ao contrato houve tanto ações na Justiça do Trabalho como negociações entre as partes e paralisações do trabalho nos engenhos. Os enfrentamentos foram tanto individuais, opondo um trabalhador a seu patrão, quanto coletivos, implicando grupos de trabalhadores e, em certas ocasiões, trabalhadores de vários engenhos contra um mesmo patrão. A forma de exigir o cumprimento estava relacionada à natureza da questão em jogo. O desrespeito à tabela tendeu a ser prioritariamente enfrentado por meio dos paradeiros, termo que os trabalhadores utilizam para desig12

A maioria das tarefas executadas na agricultura da cana é remunerada com base na produção feita pelo trabalhador. A extensão da tarefa, para o plantio e os tratos culturais, e o volume, para o corte e transporte da cana, foram tradicionalmente objetos de conflitos entre trabalhadores e patrões ou seus prepostos.

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nar as paralisações do interregno, reservando o termo greve para as que ocorrem anualmente, por ocasião da campanha salarial. Os paradeiros são ações concertadas por um grupo de trabalhadores que se recusam a executar uma tarefa para pressionar o patrão ou seu preposto a atender a uma reivindicação. Já o cumprimento de cláusulas como o conserto da casa e o pagamento do auxílio doença tendia a ser objeto de reclamações na Justiça. Os enfrentamentos do interregno não se deram com a mesma intensidade em toda a Zona da Mata. Assim, houve municípios nos quais os enfrentamentos foram quase que cotidianos, enquanto em outros foram eventuais. Tal descompasso contrasta com as ações concertadas do momento da greve. Ocorre que no interregno não estão mais se enfrentando trabalhadores e patrões como duas totalidades. Nesse momento, o que está em jogo é a oposição entre um trabalhador singular ou grupo de trabalhadores contra um patrão, entre um dirigente sindical e os patrões do seu município. As orientações das entidades sindicais, de trabalhadores e de patrões, constituíam apenas uma referência para os atores sem ser necessariamente seguidas. Para entender o que se passa no interregno é necessário assim levar em conta as disposições dos sindicalistas, dos patrões e dos trabalhadores de carne e osso na escala local. Nem todos os sindicalistas manifestavam a mesma disposição em relação ao cumprimento. Se no momento da greve os líderes mais empenhados no enfrentamento com os patrões tinham a hegemonia para falar e conduzir o processo em nome de todos, no interregno não estava mais em jogo a totalidade de sindicatos, mas cada sindicato em particular, ou grupos de sindicatos vizinhos, com problemáticas comuns ou não. A unidade do momento da greve se desfazia no interregno: enquanto alguns dirigentes se destacavam na luta pelo cumprimento, incentivando os trabalhadores a dela participar, outros tendiam a evitar o confronto com os patrões que tais lutas implicavam. Nesse momento, o que prevalecia era a orientação que cada dirigente dava à sua atuação. Do lado dos patrões, havia os que preferiam contrariar a orientação de seu órgão de classe e pagar aos seus trabalhadores respeitando a tabela. Importava-lhes mais manter a produção em ritmo acelerado e, assim, realizar seu lucro num tempo menor do que o de outros fornecedores ou usineiros, os quais, se aliados no momento da greve, retomam a condição de concorrentes no interregno.13 Já outros preferiam jogar duro com os trabalhadores e os sindicalistas, para reforçar a sua posição de poder na escala local. No intervalo entre as greves, os patrões se conduziam levando em conta seus interesses individuais, o jogo de forças local e suas relações com seus trabalhadores e com os sindicalistas. 13

Vale lembrar que as relações entre fornecedores e usineiros historicamente têm sido marcadas pela concorrência e pelo conflito. Ver a respeito Melo (1975).

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Por fim, os trabalhadores não estavam igualmente dispostos a enfrentar seus patrões para fazer cumprir o contrato. Havia nos contratos cláusulas que eram importantes para os trabalhadores de um município, mas não o eram para os de outros. Estes, portanto, pouco se importavam que elas não fossem respeitadas. Muitas vezes os trabalhadores consideravam que mais valia manter as boas relações com o patrão do que enfrentá-lo por causa dos direitos da greve. A tabela parecia ser a cláusula do contrato que mais os sensibilizava. Para que suas equivalências fossem respeitadas, eles se dispunham mais a enfrentar o patrão do que o fariam em relação a qualquer outra cláusula. Os enfrentamentos nunca disseram respeito à totalidade das cláusulas do contrato coletivo, mas sim a determinadas cláusulas, e isso variou de município para município, no interior de um mesmo município, de engenho para engenho, de usina para usina e até mesmo de trabalhador para trabalhador. Assim, por exemplo, o transporte dos trabalhadores em veículos adaptados e não mais nos caminhões que transportam a cana, questão contemplada desde o primeiro contrato coletivo, foi objeto de luta no interregno da primeira greve em municípios onde o problema do transporte era mais sentido pelos trabalhadores e onde houve maior empenho dos sindicalistas. O mesmo se poderia dizer das ferramentas a serem fornecidas pelos patrões, questão que, logo após a greve de 1979, foi enfrentada por um conjunto de sindicatos e finalmente resolvida. Já o acesso à terra para lavoura de subsistência foi objeto de enfrentamentos em alguns municípios (Sigaud,1983), onde os trabalhadores se ressentiam da recusa patronal em lhes ceder terra. Se, por um lado, o que explica essa diversidade é a importância relativa de cada item do contrato para os trabalhadores de um engenho, uma usina ou uma região, o que favoreceu os enfrentamentos foi a atuação dos dirigentes sindicais no sentido de estimular os trabalhadores a agirem na defesa dos direitos adquiridos com a greve. Eram eles que informavam os trabalhadores a respeito dos direitos da greve e que os estimulavam a enfrentar os patrões. Questões importantes para os trabalhadores não se tornaram objeto de luta ali onde faltou o apoio da direção sindical. Por outro lado, questões aparentemente periféricas, como, por exemplo, o pagamento em dia da segunda parcela do 13o salário, tornaram-se objetos de luta graças à ação dos dirigentes. Foi graças a esse empenho que houve paradeiros espetaculares e ações trabalhistas envolvendo centenas de trabalhadores em municípios como São Lourenço da Mata e Rio Formoso. Muitos dos enfrentamentos que se travam no interregno são invisíveis para a massa dos trabalhadores e para o conjunto dos dirigentes sindicais. Os trabalhadores conhecem aqueles dos quais foram protagonistas ou que ocorreram em áreas adjacentes ao local onde residem. Os dirigentes sindicais contabilizam os enfrentamentos que patrocinaram e aqueles nos quais se implicaram negociando com os patrões. Não existem registros 300

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

a respeito desses enfrentamentos. Rastros dos que se transformaram em ações trabalhistas podem ser identificados nos arquivos dos sindicatos e das Juntas de Conciliação e Julgamento. Os demais, que envolvem os paradeiros, as decisões de não pagar, os acordos na palha da cana, só podem ser reconstituídos pelo observador que se desloca pelos engenhos e pelos municípios e ouve os relatos dos trabalhadores, dos dirigentes e dos patrões. Essa invisibilidade dos enfrentamentos do interregno contrasta fortemente com a visibilidade das greves. Estas foram, durante todo o ciclo, objeto da atenção da imprensa.14 Por um lado, tal se deve a seu caráter espetacular, pelo número de trabalhadores envolvidos, pela paralisação de três dezenas de usinas e destilarias de álcool e pelos prejuízos calculados em milhões de dólares. Por outro, o destaque está relacionado à posição preeminente ocupada por alguns dos atores, como ministros de Estado, governador, delegado do Trabalho, juízes do Tribunal Regional do Trabalho e, eventualmente, deputados e senadores que apoiavam trabalhadores ou patrões, e ao fato de que parte da contenda tinha como palco a cidade, sede do poder. Os enfrentamentos do interregno geralmente não provocavam a cessação das atividades das usinas, e as paralisações, quando ocorreram, envolveram um número bem inferior de trabalhadores, como os três mil implicados em um paradeiro de 1980 por ferramentas, no litoral sul. Eles eram regulados localmente entre trabalhadores, delegados sindicais e patrões, em nível local, e no máximo levados às Juntas de Conciliação e Julgamento, a primeira instância da Justiça do Trabalho, sediada nas pequenas cidades do interior. Nunca chegavam à capital, nem à imprensa, a não ser esporadicamente. Portanto, é como se não existissem. Os enfrentamentos do interregno constituíam o elo entre uma greve e a próxima. Era a partir da dinâmica dos embates que surgiam novas questões a ser reguladas em novo contrato de trabalho. À medida que os trabalhadores obtinham a regulação de uma dimensão da relação com o patrão e se empenhavam pelo seu cumprimento, os patrões respondiam procurando brechas do contrato coletivo, aquilo que se encontrava a descoberto, o que analogicamente poderia ser comparado a uma corrida na qual os trabalhadores perseguem a regra e os patrões, a ausência de regras. À medida que os patrões, por exemplo, começaram a generalizar um tipo de tarefa para a qual não existia definição na tabela, como forma de escapar à pressão dos trabalhadores pelo cumprimento das que estavam reguladas, surgiu a demanda de uma norma para regular a nova tarefa. Esse foi o caso do corte 14

Durante o ciclo em exame, pelo menos um jornal nacional, o Jornal do Brasil, contemplou as greves de Pernambuco, no momento da greve, com chamadas quase que diárias de primeira página, às vezes uma página inteira e pelo menos um editorial no período. Na televisão, a greve mereceu destaque nas edições dos noticiários nacionais e em horário nobre, um maior espaço nas edições locais e, invariavelmente, a cobertura do “Carnaval da Vitória”, no caso da Rede Globo.

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de cana solta, cuja regulação era pedida desde 1979. Regulada para uma modalidade apenas em 1982, essa foi sendo paulatinamente substituída pelos patrões por outras ainda não reguladas, até que em 1985 houve a regulação de mais uma modalidade. Esse jogo de lutas, extremamente dinâmico, é o que sustenta a mobilização dos trabalhadores no interregno e o que permite que se relativize a própria noção de ciclo de greves usada neste trabalho, pois, embora estruturalmente haja uma repetição ritual de um evento anual, no qual estão sempre em jogo definições de regras, a cada ano surgem novas demandas postas pela dinâmica do que se passa entre as greves, o que sugere um movimento cumulativo.

CONCLUSÃO Vários foram os efeitos do ciclo de greves aqui descrito. No que diz respeito aos trabalhadores, houve, desde a primeira greve, melhoria de suas condições de vida, sobretudo graças à elevação do salário para um patamar superior ao salário mínimo, à tabela e às garantias relativas à vida dentro dos engenhos (como a reparação das casas e acesso à terra). O processo de produção da cana-de-açúcar foi alterado, em parte como uma resposta patronal aos limites impostos pela tabela e à elevação do custo da força de trabalho. O caso da cana solta, acima mencionado, é um bom exemplo. A carregadeira mecânica, inovação tecnológica que permite que a cana seja cortada solta, dispensando, dessa forma, o cortador de cana de amarrar as canas cortadas em feixes, assim como o trabalho dos carregadores e enchedores de caminhão, existia desde a década de 1950 e era amplamente utilizada na agroindústria açucareira do Sudeste. Foram necessários trinta anos para que ela fosse introduzida em Pernambuco e utilizada até mesmo onde tecnicamente seria desaconselhável, como nas encostas das colinas que dominam a paisagem da região. Os patrões se interessaram em adotá-la e em generalizar seu uso após a primeira greve, quando o contrato coletivo ainda não previa nenhuma regra a respeito daquela modalidade de corte de cana. O ciclo de greves desencadeou mudanças nos sindicatos de ambas as partes. No lado patronal houve o fortalecimento de seus sindicatos e a estruturação de um quadro de assessores. No lado dos trabalhadores, houve o aumento da participação dos associados na vida sindical, a ampliação do quadro de associados e a consolidação da estrutura intermediária de delegados sindicais. Entre 1979 e 1985, nove diretorias sindicais que não haviam se envolvido nas greves foram substituídas. Em termos nacionais, o ciclo de Pernambuco teve um efeito multiplicador. Com a primeira greve, Pernambuco consolidou a posição de van302

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

guarda que já ocupava no interior do movimento sindical de trabalhadores rurais. Graças à ação da Contag e, sobretudo, dos Encontros Nacionais de Assalariados Rurais por ela promovidos, entre 1980 e 1983, nos quais estiveram reunidos dirigentes de diversas regiões do país onde predominam os assalariados, notadamente os da cana, a experiência de Pernambuco foi apresentada como uma demonstração de que a greve era possível e um modelo a ser seguido. Em 1980, eclodiram greves na Bahia, com os catadores de café, e em Minas, na região açucareira. Em 1982, o Rio Grande do Norte realizou sua primeira greve nos moldes da de Pernambuco, repetindo o fato em 1983. 1984 seria o ano da generalização das greves de assalariados rurais, com greves em São Paulo, Goiás, Minas, Rio, Rio Grande do Norte e Paraíba. Não se trata, evidentemente, de derivar do ciclo de Pernambuco as greves nos outros estados, que certamente se inscrevem na dinâmica própria do movimento sindical em cada uma dessas regiões. Desejo apenas ressaltar que os fatos ocorridos em Pernambuco repercutiram no movimento sindical de trabalhadores e influíram no rumo das mobilizações dos assalariados. No que diz respeito às relações entre trabalhadores e patrões na mata pernambucana, as greves contribuíram para estabelecer um conjunto de regras para regular essas relações. Entre essas regras houve aquelas que transformaram as antigas obrigações da tradição dos engenhos, das quais os patrões se desincumbiam como se fosse uma manifestação de sua generosidade, em obrigações garantidas juridicamente, como a casa para morar, a terra para plantar, o auxílio na doença, a garantia de trabalho para os filhos etc. Os trabalhadores lograram preservar o que lhes interessava na tradição, conferindo-lhe um novo significado, como já se tem observado em outras situações históricas.15 Para os patrões da Zona da Mata, a regulação das relações resultante das greves representou uma perda de poder relativo. Para os trabalhadores, o sentido das greves residia exatamente em assegurar a continuidade dessas regras. Mesmo não sendo integralmente respeitadas, elas funcionavam como um parâmetro para pensar as relações com os proprietários e podiam, a qualquer momento, vir a ser invocadas quando houvesse interesse e condições para fazê-lo. O sentido da greve, portanto, estava primeiro nas regras e depois no cumprimento. Os trabalhadores não costumavam distinguir as cláusulas dos contratos. Eles as incorporaram, como assinalado, aos direitos trabalhistas. Ao final do interregno, a alternativa que se colocava para o trabalhador não era um cálculo para avaliar se ele se beneficiou das conquistas da greve. Sua escolha era entre fazer a greve e manter as regras que, se cumpridas, o beneficiariam, ou não fazer a greve e perder os direitos, “a lei da gente”, e voltar para “a lei do patrão”. Por essa razão é que, a cada ano, colocados diante da alternativa de “cair 15

Cf. Venturi, F. (1972); Hobsbawn, E. (1974) e Moore Jr. (1975).

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na lei do patrão” e no “salário do governo” (o salário mínimo), os trabalhadores atenderam ao chamado do sindicato e começaram tudo novamente. Nos vinte anos que se seguiram ao ciclo estudado, o contrato coletivo de trabalho foi renovado anualmente, quer por meio de um dissídio votado pelo TRT (1986, 1988, 1989, 1990 e 1991), quer por meio de uma convenção entre as partes (1987 e de 1992 a 2006). Houve greves durante o período, entre elas uma longa em 2005, de mais de dez dias de paralisação, na qual os embates se travaram em torno da tabela de tarefas. No início dos anos 90, os patrões da zona canavieira enfrentaram uma grave crise, decorrente de uma prolongada seca e, sobretudo, da perda da proteção que o Estado brasileiro lhe assegurara até então. Foram privados dos subsídios e das garantias da exportação estatal de seus produtos. Muitos patrões faliram e outros lograram se reestruturar, promovendo, entre outras medidas, a redução da folha de pagamento. Houve demissões em massa e hoje a produção da cana-de-açúcar emprega pouco mais de cem mil trabalhadores. Foi nessa conjuntura que ocorreram as ocupações de terra na mata pernambucana, que são o objeto de outro capítulo neste livro. Trabalhadores, dirigentes sindicais e mesmo alguns estudiosos da questão agrária distinguem a “luta pela terra”, associada às ocupações de terra e à reforma agrária, da “luta pelos direitos”, associada aos conflitos trabalhistas. Tal distinção, se útil para ordenar o pensamento, deve ser relativizada quando se trata de entender a dinâmica do mundo social. Ao focalizarmos os indivíduos de carne e osso que participaram desses dois tipos de “lutas” desde os anos 80, encontramos, em muitos casos, os mesmos personagens. Muitos dos líderes das greves do ciclo analisado lideraram as ocupações, como os dirigentes de São Lourenço da Mata e Rio Formoso, e muitos dos grevistas, que foram a vanguarda dos movimentos dos anos 80, encontram-se hoje assentados em projetos da reforma agrária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. A liderança e a disposição para os enfrentamentos com os patrões, adquiridas ou reforçadas nas greves, constituem um elemento decisivo para entender como as ocupações dos engenhos se tornaram possíveis nos anos 90.

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FETAPE. Açúcar com gosto de sangue: violência na zona canavieira de Pernambuco. Recife, 1984, mimeo. HOBSBAWN, E. Peasant Land Occupations, In: Past and Present, 62, fevereiro de 1974, p.120- 52. MELO, M. L. O açúcar e o homem, Recife: MEC/ Fundação Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1975 MOORE Jr., B. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. Lisboa: Cosmos, 1975. PERROT, M. Les ouvriers en grève: France 1871-1890. Paris: Mouton, 1974. RINGUELET, R. Migrantes estacionales de la región de agreste del estado de Pernambuco. Rio de Janeiro, 1977. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional, 1977. 110p. SIGAUD, L. Os clandestinos e os direitos, São Paulo: Duas Cidades, 1979. . Greves nos engenhos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. . Luta política e luta pela terra no Nordeste. In: Dados, Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v.26, n.1, 1983, p.77-95. . A luta de classes em dois atos: notas sobre um ciclo de greves camponesas. In: Dados, Revista Brasileira de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v.29, n.3 1986, p. 319-34. SHORTER, E., TILLY, C. Strikes in France: 1830-1968. Cambridge: Cambridge University Press, 1978. VENTURI, F. Les Intellectuels, le peuple et la révolution, Paris: Gallimard, 1972.

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13 “COMO UMA FAMÍLIA”: SINDICATOS DE TRABALHADORES RURAIS NA

ZONA DA MATA DE MINAS GERAIS, 1984-2000* John Comerford

INTRODUÇÃO

Entre meados dos anos 80 e fins dos anos 90, vários sindicatos de trabalhadores rurais foram fundados em municípios da Zona da Mata de Minas Gerais.1 Nos anos 90, eles se constituíram em um pólo sindical regional da Federação Estadual (FETAEMG). Pouco depois da fundação dos primeiros sindicatos, foi também criada uma associação regional ligada a eles. Mais tarde, outras associações, regionais e municipais, fruto de desdobramentos e divisões dessa associação inicial, também foram fundadas. Na maioria dos municípios em que foram fundados esses sindicatos, não havia experiência prévia de organização sindical de trabalhadores rurais.2 * Este texto baseia-se fundamentalmente na pesquisa realizada para minha tese de doutorado, já publicada (COMERFORD, 2003), e em investigações adicionais realizadas no âmbito do projeto “Conflito, família e território: estudos sobre sociabilidade e poder”, apoiado pelo CNPq. Agradeço à leitura atenta e aos comentários de Rosângela Pezza Cintrão. 1 Tenho em vista, neste trabalho, os sindicatos de trabalhadores rurais sediados nos municípios de Tombos, Muriaé, Miradouro, Visconde de Rio Branco, Araponga, Ervália, Paula Cândido, Vieiras, Guidoval, Carangola, Espera Feliz, Divino, e, mais distante dessa articulação, Manhumirim. 2 A região em foco possui uma agricultura diversificada, em parte reflexo de condições ecológicas bastante variáveis em virtude da topografia acidentada. Nas partes mais baixas, as “terras quentes”, há hoje sobretudo fazendas voltadas para a pecuária leiteira e de corte. Em algumas micro-regiões há pequenos sitiantes e meeiros que plantam arroz, e alguns municípios já foram importantes produtores em décadas passadas. Outros municípios que já contaram com expressivo contingente de pequenos, médios e grande produtores de milho e fumo (como os da região de Ubá) hoje são predominantemente voltados, no que se refere à agricultura, para a pecuária leiteira, além de abrigarem serviços e indústrias (como as indústrias moveleiras em Ubá). Nas partes mais altas e mais acidentadas, as “terras frias”,

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Havia, em vários deles, sindicatos rurais dirigidos por grandes proprietários rurais, aos quais se filiava uma parcela dos pequenos sitiantes. Ao longo dos últimos vinte anos, os sindicatos de trabalhadores rurais se tornaram uma instituição reconhecida nesses municípios. Sua presença viabilizou o encaminhamento de ações trabalhistas na Justiça e de acordos entre patrões e empregados, a negociação de dívidas de pequenos agricultores com os bancos, o encaminhamento rotineiro de processos de aposentadorias e outros benefícios previdenciários, e facilitou a obtenção de documentos de identidade e a formalização de contratos de parceria. Os sindicatos, juntamente com as associações a eles vinculadas, viabilizaram também a obtenção de projetos junto a ONGs e a agências governamentais, voltados para questões tais como bancos de sementes, técnicas de produção agroecológicas, comercialização conjunta, produção de insumos, beneficiamento da produção, orientação para obter recursos de políticas como Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familar (PRONAF), e mesmo, em um caso, compra conjunta de terras. Mais recentemente, alguns sindicatos e associações se envolveram com o beneficiamento e a venda de produtos dos agricultores, inclusive para a merenda escolar de alguns municípios. Os sindicatos também promoveram inúmeros cursos de formação de alcance local, municipal ou regional, bem como mobilizações, manifestações e debates em torno de temas como eleições, meio ambiente, gênero, uso de agrotóxicos, agricultura familiar, educação, saúde. Vários dos municípios dessa região estão no entorno de uma área de preservação (o parque estadual da Serra do Brigadeiro) e os sindicatos se envolveram com a discussão sobre a criação e regulamentação do parque, bem como, mais recentemente, com a discussão das políticas de “desenvolvimento territorial” voltadas para os municípios próximos ao parque (o “território da Serra do Brigadeiro”). onde há grande contingente de pequenos estabelecimentos rurais, os sitiantes e meeiros plantam café bem como “lavouras brancas” (milho, feijão), e também se dedicam à pecuária leiteira. Muitas das fazendas maiores (tanto nas terras “frias” como “quentes”) eram voltadas, até os anos 60/70, para a produção de café, cana, milho, feijão, conjugada à pecuária, tendo havido uma grande dispensa de colonos e meeiros nesse período de progressivo predomínio da pecuária. Em uma micro-região (Visconde de Rio Branco), havia um importante pólo canavieiro, que desapareceu com a falência da usina nos anos 90. Apenas aqui havia um contingente mais expressivo de assalariados rurais, ainda que por toda a região haja um uso importante de trabalho assalariado temporário na colheita do café. Há por todos os municípios (mesmo os antigos municípios canavieiros) um expressivo contingente de pequenos sitiantes, entremeados com médias e grandes propriedades, e sitiantes, meeiros (que trabalham, sobretudo, em propriedades médias e mesmo nas pequenas), médios proprietários e até mesmo alguns fazendeiros, são ligados por relações de parentesco e compadrio. Freqüentemente, também os assalariados temporários são parentes de pequenos sitiantes, geralmente seus filhos solteiros ou outros parentes empobrecidos. Cabe lembrar também que os trabalhadores rurais dessa região têm laços de parentesco espalhados também pelas cidades médias da região e por bairros específicos situados nos grandes e médios centros do Sudeste (Belo Horizonte, Rio, São Paulo, Campinas, Juiz de Fora, Volta Redonda, Ipatinga).

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Alguns projetos vinculados a esses sindicatos se tornaram reconhecidos por várias agências governamentais e não-governamentais, e alguns deles ganharam prêmios e divulgação por parte de agências oficiais. Em vários municípios, os dirigentes desses sindicatos, inicialmente trabalhadores com pouca escolaridade formal e poucos contatos para além de sua rede de vizinhos, amigos, parentes e membros da igreja, se tornaram lideranças políticas reconhecidas, com maior ou menor alcance. Alguns se elegeram vereadores, outros se tornaram secretários de Agricultura, um se tornou vice-prefeito, outra passou a ser chefe de gabinete de um prefeito; alguns ocuparam ou ocupam cargos na direção da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Minas Gerais (FETAEMG) e chegaram a se candidatar a cargos na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Vários participam dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, bem como de conselho de direção da ONG Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM). Alguns desses dirigentes vêm se desdobrando para completar sua escolarização e outros deles estão cursando ou completaram cursos superiores. Independentemente de sua escolarização formal, esses dirigentes se tornaram conhecedores (e em alguns casos verdadeiros especialistas) de temas como legislação trabalhista e previdenciária, elaboração de projetos para agências não-governamentais ou para agências do governo, bem como das técnicas de organização sindical e dos meandros da política sindical e também da política partidária. Além disso, ampliaram consideravelmente a abrangência de seus contatos sociais: por um lado, ao tornarem-se dirigentes de organizações sindicais de cunho municipal ou regional, passaram a dominar um “mapa” social mais amplo, um “quem é quem” que permite compreender o que está em jogo nas várias comunidades e distritos abrangidos pelo sindicato; por outro lado, ampliaram seus contatos com técnicos, dirigentes sindicais, assessores, políticos e militantes residentes seja na região, seja na capital do estado ou outros centros. Neste artigo, vou procurar refletir sobre as condições sociais que possibilitaram o surgimento desse movimento e a implantação dos sindicatos, bem como os efeitos da atividade desses sindicatos sobre a configuração das relações sociais nessa região.

A CONSTRUÇÃO DA RESPEITABILIDADE DOS SINDICALISTAS A implantação efetiva dos sindicatos na Zona da Mata de Minas só foi possível por haver agentes interessados e em condições de assumir sua implementação nos municípios, agentes para os quais fundar e manter sindicatos e associações passou a fazer sentido. A legislação prevendo a 309

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existência de sindicatos de trabalhadores rurais, a consolidação de organizações sindicais nos planos nacional e estadual e as dificuldades econômicas enfrentadas pelos trabalhadores rurais da região (pequenos sitiantes, meeiros e assalariados) ao longo das últimas décadas não foram e não são, por si mesmas, condições suficientes para levar à criação de sindicatos e associações. Concretamente, a criação dos sindicatos teve de ser assumida, com grande empenho, por algumas famílias de sitiantes e meeiros. Essas famílias eram algumas entre as que vinham participando, fazia vários anos, das Comunidades Eclesiais de Base e de um movimento católico importante na região, o Movimento da Boa Nova (MOBON).3 É preciso enfatizar que os sindicatos não foram assumidos por indivíduos, mas por famílias ou segmentos de famílias; e não mobilizaram uma “classe” ou “categoria” abstrata, mas redes bastante complexas de trabalhadores conectados por laços previamente existentes de parentesco, vizinhança, amizade, compadrio, pertencimento religioso, laços estes que vieram a ser modificados, desdobrados e parcialmente ressignificados pela própria experiência de implantação e funcionamento dos sindicatos. É preciso notar, no entanto, que esses laços não foram mobilizados apenas em termos da moralidade cotidiana, tal como poderiam ser acionados, por exemplo, em um conflito entre famílias ou em um momento de necessidade de assistência mútua, mas em termos de uma peculiar combinação entre os termos constitutivos dessa moralidade cotidiana e termos relativamente novos e distintos, com destaque para noções como transformação da sociedade, luta dos trabalhadores, direitos, justiça social, oposição entre pequenos e grandes e entre trabalhadores e não trabalhadores, classe trabalhadora, trabalhadores rurais, exploração, cidadania. Desse modo, a mobilização e, em certo sentido, a criação da classe ou da categoria trabalhadores rurais como entidade socialmente significativa na região, passaram pela mediação de vínculos concebidos em termos morais, ao mesmo tempo em que colocavam em circulação e faziam valer socialmente uma linguagem de termos classistas e referentes a concepções de cidadania, que por sua vez não poderia senão incidir sobre os laços sociais preexistentes. Para que fosse possível a essas famílias de sitiantes e meeiros assumir a criação dos sindicatos, em um ambiente que, como veremos, era bastante 3

A presença de formas de organização similares às CEBs e os primórdios do que veio a ser conhecido como Movimento da Boa Nova remontam, na região, aos anos 40, quando tem início o Movimento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho, na paróquia de Manhumirim. Nos anos 60, trabalhos desenvolvidos com as comunidades rurais pelos padres assuncionistas acabam por se conjugar aos cursos realizados pelo Movimento da Boa Nova em Dom Cavati. Num contexto de expansão nacional das CEBs, os dois cursos anuais promovidos em Dom Cavati e encontros promovidos em Eugenópolis, junto com a eficaz estrutura de eventos e discussões centrados em comunidades locais e plenárias paroquiais, acabam por gerar uma ampla e ativa rede de militantes católicos camponeses em constante circulação pela região. Sobre o Mobon, ver Araújo, 1998.

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hostil e desconfiado em relação a essa iniciativa, foi necessário, por um lado, ter acesso às informações, ao conhecimento de instrumentos legais e administrativos, bem como a recursos materiais. Por outro lado, foi necessária a disposição, por parte de algumas famílias locais, de “apostar” na criação dos sindicatos correndo riscos consideráveis com relação à sua reputação, de modo a construir a credibilidade dessa iniciativa aos olhos dos moradores da região, disposição esta indissociável do processo de construção do sentido que essas ações assumiam para os militantes, dirigentes e suas famílias. Ao se organizar como classe, enfrentando juntos o desafio de construir a credibilidade do sindicato, esses militantes e dirigentes (bem como seus aliados “externos”) necessariamente se constituíam também, sem descontinuidade, em uma unidade social relativamente fluida, que em algumas ocasiões era metaforicamente considerada “como uma família”, apontando para sua dimensão de comunidade moral.

INFORMAÇÕES SOBRE SINDICATOS E DIREITOS E OS LIMITES À MOBILIZAÇÃO Até início dos anos 80, a informação a respeito dos sindicatos de trabalhadores rurais era muito limitada. Pessoas da região, parentes de sitiantes e meeiros, que já haviam trabalhado ou estavam trabalhando em grandes centros como São Paulo e Rio, tinham aí tido contato com sindicatos e trouxeram noções da existência de direitos trabalhistas. Nos anos 80, a conjuntura política mais ampla de democratização favorecia a circulação de informações e de agentes dispostos a apoiar organizações como os sindicatos. O envolvimento de muitos camponeses da região com as atividades do MOBON e das CEBs facilitou o acesso a tais agentes – agentes pastorais da CPT, padres e educadores populares – dispostos a se dedicar à disseminação de conhecimentos sobre formas de organização, legislação trabalhista etc., e que por sua vez facilitaram o acesso a ainda outros agentes do campo sindical e estudantil, bem como a ONGs em estado nascente nessa mesma época (como o CTA-ZM, criado em meados dos anos 80 por estudantes de agronomia da Universidade Federal de Viçosa, e que viria a ter um papel fundamental na consolidação dos sindicatos, e vice-versa).4 Nessa época, as discussões nos cursos patrocinadas pelo MOBON no centro de formação desse movimento, em Dom Cavati, levantavam temas relacionados com a organização e os direitos dos trabalhadores. Essas discussões eram retomadas localmente através das CEBs e reafirmadas por alguns padres atuantes na região. O fato de tais temas circularem no âmbito de organizações ligadas à Igreja não é sem importância: nos anos 4

Sobre a relação entre o CTA-ZM e os sindicatos da região, ver Cintrão, 1996.

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70 e no início dos anos 80, os que participavam das atividades das CEBs e do Mobon o faziam com grande entusiasmo e emoção e se sentiam muito comprometidos, além de legitimados pelo apoio de padres e bispos. Tais espaços haviam se tornado não apenas foco de intensa sociabilidade e de construção de sentidos de vida para uma parte dos camponeses da região, como também geraram um compromisso militante, seja pela postura geral desse movimento, seja pelo caráter de desafio moral que a adesão assumiu localmente, pois os que se empenhavam nas CEBs e no MOBON eram provocados cotidianamente por aqueles parentes, vizinhos e notáveis locais que criticavam a “Igreja renovada”. Mas as informações sobre a existência de direitos e de organizações sindicais e os incentivos recebidos no âmbito do movimento religioso não se transformaram, até meados dos anos 80, em uma real disposição para criar sindicatos, mover ações na Justiça, buscar acordos trabalhistas ou realizar mobilizações coletivas baseadas na noção de interesses comuns ou “de classe”. Existiam certamente tensões de diversas ordens entre meeiros ou assalariados e seus patrões e, de maneira geral, havia consideráveis dificuldades de reprodução social das comunidades de sitiantes e meeiros, experimentadas como dramas pessoais e familiares e como carências de diversas ordens.5 Mas a possibilidade de organização coletiva formal não era almejada nem realizada. Não estava efetivamente colocada no horizonte, não era vista ainda como algo a que se pudesse dar crédito e que fizesse sentido. Os casos eventuais de trabalhadores entrando com ações trabalhistas contra seus patrões eram vistos com certo espanto, desconfiança e alguma hostilidade. Ocasionavam não só a “perseguição” dos patrões – ou seja, a dificuldade de conseguir trabalho ou arranjos de parceria nas fazendas da região – como também avaliações negativas nas comunidades, mesmo por parte dos mais próximos daqueles que entravam com a demanda. Trata-se de um universo social em que as iniciativas de cada agente são meticulosamente avaliadas, antes de mais nada, em termos morais – generosidade, gratidão, ingratidão, coragem, valentia, respeito, falta de respeito, esperteza, falsidade, honestidade, ambição, e assim por diante. E, em que as iniciativas de cada agente não são vistas como puramente individuais, mas como partindo de pessoas que são situadas em termos de seu pertencimento familiar, da 5

Sobretudo tensões relacionadas à dispensa de colonos das fazendas que iam se convertendo exclusivamente à pecuária, bem como a crescente dificuldade de conseguir terras para trabalhar “à meia” nessas fazendas e ainda as dificuldades relacionadas à obtenção de terras adicionais para os filhos dos pequenos sitiantes. Tudo isso em um contexto de desemprego urbano (no início dos anos 80), e dificuldades para localizar novas fronteiras de terra consideradas viáveis (nos anos 50/60, muitos dali foram para o norte do Paraná, mas, nos anos 80, não parece ter havido fluxos dessa região em direção a outras áreas como a Amazônia ou o Centro-Oeste).

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sua localidade de origem, e da reputação moral (tanto da pessoa como da família e do lugar). Nessa dinâmica, ainda que desafiar o patrão recorrendo à Justiça pudesse ser comentado como ato “corajoso”, era também visto como insensato ou ainda como gesto de ingratidão e de esperteza (no mau sentido). Nesse universo social, é comum ver com desconfiança o recurso “à autoridade” para resolver tensões que a princípio deveriam ser resolvidas ou contornadas de modo pessoal, seja através do entendimento, da generosidade e da paciência, muito valorizados, seja por meio do conflito direto e da valentia, também muito valorizados. Assim, como no caso de qualquer tensão entre pessoas e famílias vizinhas, as tensões cotidianamente surgidas nas relações entre patrões e meeiros, ou entre pequenos sitiantes e fazendeiros, ou ainda entre os trabalhadores e funcionários públicos, eram (e em grande medida continuam a ser) enquadradas e experimentadas em termos morais. Desse modo, o recurso “à autoridade” (a polícia, a Justiça, o sindicato) pode sempre ser interpretado como sinal de insuficiência moral, de falta de capacidade da pessoa (e, por extensão, de sua família) de resolver tais tensões com base em seus próprios recursos morais. Por outro lado, iniciativas no sentido de obter benefícios previdenciários ou de saúde, ou ainda, no sentido de buscar recursos para obras ou serviços para benefício comum ou para caridade em relação aos necessitados, eram vistas como algo naturalmente da alçada da generosidade dos notáveis locais – fazendeiros, padres, políticos, sitiantes em melhor situação. Os sindicatos rurais, criados na região desde os anos 30 e 40, eram iniciativas de alguns desses notáveis e aparentemente eram vistos, nas suas ações dirigidas para pequenos sitiantes, meeiros e todo o conjunto de famílias relativamente dependentes, como extensões da generosidade desses “grandes”. Mesmo iniciativas “da comunidade”, ou seja, das CEBs, parecem por vezes ter sido percebidas como decorrentes da bondade do padre ou da generosidade de algum sitiante, que, por exemplo, doava terras e convocava mobilizações para construir uma capela, promover a vinda do padre, arrumar uma estrada ou ajudar uma família necessitada e com isso passava a ser visto como líder “da comunidade”. Outras iniciativas relacionadas a espaços “comunitários” eram vistas como “ajudas” oferecidas por políticos do município e controladas por aqueles pessoalmente ligados ao “lado” desses políticos. Alguém que quisesse demonstrar generosidade e “ajudar os pequenos”, ou “ajudar a comunidade” sem que fosse visto como tendo “condição” para tal, ou seja, sem que estivesse em uma posição que lhe permitisse, e mesmo o obrigasse moralmente, a ter tal tipo de iniciativa, corria risco de ser ridicularizado em vista de sua excessiva pretensão e falta de senso. Nessas condições, as primeiras tentativas de criar sindicatos foram recebidas com estranheza, desconfiança, hostilidade e ridicularização, por vezes se somando às críticas feitas às CEBs e ao MOBON, mas também atravessando essas linhas e incluindo críticas também dos que se viam 313

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como comprometidos com o movimento religioso (críticas principalmente no sentido de estarem misturando religião, vista como atividade pura e harmoniosa, e política, vista como moralmente ambígua). E isso atingia não apenas aqueles que efetivamente assumiam cargos na direção dos sindicatos, mas também suas famílias e as comunidades que mais se destacavam na mobilização para fundar sindicatos. As narrativas dos que fundaram os sindicatos são ricas em ilustrações dessa atitude de desconfiança e das ações de ridicularização.

DA DISPOSIÇÃO DE DESAFIAR AS CRÍTICAS Para entender como essas iniciativas conseguiram contornar e/ou desafiar esse controle informal, porém muito eficaz, exercido pela própria comunidade através de rumores, fofocas, brincadeiras e ofensas, ou seja, através de ataques à reputação, é preciso estar atento à lógica e à dinâmica das tramas de avaliações morais em que estão enredados os camponeses da região e ao modo pelo qual se tornou possível incorporar ações de militância sindical a essas tramas. Nos anos 70 e 80, a participação nas CEBs e nas atividades promovidas pelo MOBON não apenas proporcionava informações sobre direitos trabalhistas e organização sindical como promovia o encontro de pessoas de diferentes localidades e famílias tornando-se foco de uma intensa sociabilidade bastante permeada por manifestações de emoção, além de ensinar e legitimar formas organizativas como reuniões, encontros, cursos, celebrações, cargos, relatórios, concursos musicais, circulação de pessoas entre comunidades, participação das mulheres, formas de debate (que puderam depois ser replicadas na organização dos sindicatos). Além disso, a adesão ao movimento religioso legitimava e incentivava iniciativas de “ajuda” ou “caridade” empreendidas por pequenos sitiantes em suas próprias comunidades, sem que isso fosse visto como excessiva pretensão. Na dinâmica criada pela participação nas CEBs, diante das dificuldades que pessoas vivendo nas proximidades passavam – por exemplo dificuldades dos colonos dispensados de fazendas e dos que se viam em dificuldade de obter lugar para plantar por causa da redução das terras de fazendas disponibilizadas para arranjos com pequenos sitiantes da região –, algumas lideranças comunitárias promoveram a expectativa de ajudar coletivamente essas pessoas. A disposição de ajudar é certamente uma virtude cultivada no cotidiano dessas comunidades, mas, conforme já apontado, há expectativas definidas quanto à forma e ao momento da ajuda, bem como quanto a quem se deve ajudar, e quem tem condições e obrigação moral de ajudar. Os atos de ajuda ou de caridade são comentados e avaliados, portanto controlados, pela comunidade, e o trabalho das CEBs e do MOBON parece ter favorecido uma certa ampliação 314

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do âmbito da ajuda e certas modulações da sua etiqueta. Nas narrativas dos dirigentes dos primeiros sindicatos fundados na região, a organização sindical foi buscada inicialmente como uma forma coletiva de “ajuda”.6 Mas não foi uma opinião unânime que essa forma de “ajuda” fosse moralmente adequada. Ao contrário, a criação dos sindicatos logo se tornou objeto de “crítica” não só dos “grandes” como também dos pares daqueles que se propunham a criá-los – seus vizinhos, parentes, compadres. Nessa situação, afirmar que organizar sindicatos era um direito dos pequenos e que fazia parte da luta dos trabalhadores rurais é indissociável de justificar ações concebidas moralmente como formas de ajuda, porém consideradas estranhas, ambíguas e criticáveis por outros moradores e notáveis dessas comunidades. De onde surgiu a disposição de enfrentar essas (e muitas outras) críticas e como foram construídas as condições para resistir com eficácia aos ataques à reputação individual e familiar dos que se empenharam na criação dos sindicatos? A maioria das figuras-chave na criação desses sindicatos não foi de meeiros dispensados de fazendas ou trabalhadores passando por condições particularmente difíceis, mas sitiantes e meeiros membros de famílias com considerável reconhecimento social em suas localidades de origem. Vários dos primeiros dirigentes eram membros de famílias que, mesmo modestas, tinham certo destaque aos olhos locais. Mas que sempre estiveram, ou estavam já durante um período relativamente prolongado, “por baixo” em termos da política municipal, pertencendo ao “lado” que foi sendo derrotado, em municípios dominados por um mesmo “lado” durante longos períodos – o que no contexto desses pequenos municípios constitui uma situação potencialmente humilhante ou no mínimo bastante incômoda. Isso não se refere, é claro, a todos os dirigentes e militantes sindicais, pois entre estes havia também meeiros ou sitiantes de “pequenas famílias”, ou seja, famílias que não tinham grande reconhecimento social ou político nas localidades em que vivem. Mas creio ser possível afirmar que as principais figuras desse processo eram membros de famílias com certo prestígio sócio-moral, ainda que considerados “pequenos” (mas há “pequenos” e “pequenos”), em geral

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Em municípios da região, onde a presença das CEBs foi menos marcante, houve casos em que os sindicatos foram fundados no âmbito da tentativa de uma determinada pessoa de fazer-se reconhecer socialmente como um doador generoso e tutelar (alguém que, nas suas palavras, “tem motivação religiosa”, “pratica caridade” e “olha por aqueles que não têm quem olhe por eles”) e, incidentalmente, criar condições de inserção na política municipal. Num desses casos, o sindicato integrava um esquema de distribuição personalizada de recursos centrada na rede de contatos do presidente, que alcançava órgãos de assistência social na capital do estado. É interessante considerar que essa forma de organização sindical, assumidamente personalista, não encontrou condições de proliferação na região, naquele momento, inclusive pelos questionamentos interpostos pela Federação estadual, na qual esse presidente de sindicato não tinha nenhum contato.

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numericamente expressivas, e que tinham motivos para buscar maneiras de escapar de uma situação relativamente incômoda nas tramas sociais da comunidade, relacionada a uma certa perda de prestígio e de poder ao longo do tempo. O fato de terem sido segmentos dessas famílias os que assumiram discurso e mobilização centrados em noções como direitos dos trabalhadores, luta de classes e cidadania, deu um respaldo moral que não teria sido alcançado nessas localidades, fossem outros os agentes. Assim, a mobilização dessas famílias – ou mais precisamente segmentos de famílias – foi crucial para garantir a viabilidade dos sindicatos. Os primeiros dirigentes, como já foi dito, sofreram ataques contínuos à sua reputação, a partir mesmo de suas comunidades locais e inclusive (às vezes fortemente) de partes de suas famílias (que estão longe de ser coletividades harmoniosas, apesar de ser pensadas de acordo com os ideais da união). Diante do risco – tanto das constantes ameaças diretas ou veladas por parte de fazendeiros e políticos aos primeiros dirigentes quanto, mais cotidianamente, do risco à reputação – e da fragilidade material dos primeiros sindicatos, o apoio da família em termos materiais e morais, bem como o apoio de parte dos membros dessa “quase família” que eram os participantes das CEBs e do MOBON, foi crucial para manter abertas as portas dos sindicatos e cultivar uma certa disposição “desafiadora”.7 Essa disposição era tanto maior quanto maior o empenho público pela viabilidade do sindicato diante dos que eram “contra” (e que incluíam também membros da família, vizinhos e outros membros das CEBs). Além disso, foram laços de parentesco, de amizade e de pertencimento ao MOBON que tornaram possível ampliar o alcance dos sindicatos, estabelecendo vínculos em outras comunidades locais para além daquelas inicialmente mobilizadas e, desse modo, ampliar tanto o nível da “aposta” quanto a possibilidade de sustentá-la.8 Tanto a viabilização dos sindicatos passou pela mobilização de laços de parentesco, vizinhança e amizade, quanto os ataques à ideia de criar sindicatos e à credibilidade dessa ação também foram agenciados por re-

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Esse apoio consistiu tanto em apoio “moral”, no sentido de justificar nas conversas na comunidade a criação do sindicato e criticar seus críticos, atacando-lhes também a reputação, como também viabilizar materialmente os sindicatos, cedendo o tempo dos filhos e filhas, mobilizando meios de transporte, alimentação para os que estavam se dedicando ao trabalho sindical, dinheiro para viagens e às vezes até para aluguel, móveis para a sede etc. Em alguns casos, aqueles que se comprometeram com o sindicato se endividaram, venderam carros, ou mesmo áreas de terra, bem como descuidaram-se dos seus sítios, para não deixar que o sindicato fechasse as portas. Mesmo que eventualmente os valores envolvidos não fossem grandes (mas, às vezes, eram, do ponto de vista dos trabalhadores), o que pesa é o sentido público assumido por tais ações, que sempre acabavam sendo do conhecimento de todos. Geralmente, não era possível simplesmente chegar a uma comunidade qualquer e começar a falar de sindicato – o resultado desse tipo de esforço foi quase sempre desastroso. Era necessário ter algum “contato”, acionando laços de parentesco, amizade ou pertencimento religioso, para fazer-se ouvir minimamente.

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des de parentes e vizinhos e por tramas sociais que tinham seu centro em notáveis locais. Os que eram “contra” a idéia de criar sindicatos (inclusive os parentes dos dirigentes) também acionavam suas redes e laços de confiança de modo a produzir rumores, divulgar suas interpretações morais sobre os sindicatos e “fechar porteiras” aos sindicalistas em localidades em que tivessem penetração. Mais do que mobilizar um “capital social”, concebido abstratamente como uma rede de relações de solidariedade e mutualidade com um sentido previamente determinado (tal como proposto por Putnam), ou mobilizar uma classe abstratamente definida a partir de suas condições econômicas, o que esse processo ocasionou foi a reconfiguração de um emaranhado de conflitos e tensões preexistentes, moralmente concebidos, entre e dentro de parentelas, entre e dentro de comunidades locais e entre e dentro de facções políticas (e, nesse caso, para além das considerações morais, é importante também a avaliação e interpretação das ações em termos de seu sentido propriamente político), através de algo como uma “aposta” pública nos sindicatos, bastante arriscada naquele contexto, por parte de uma certa coletividade com limites emergentes nesse processo – ou seja, uma coletividade produzida “em ato”, o próprio ato de “apostar” no sindicato. Essa aposta era feita e avaliada numa linguagem mais “moral” do que “econômica” ou “política”, ou mesmo “religiosa” (no sentido que costuma ser atribuído a esses termos pela militância e pela academia). Mais do que agregar todos os “pequenos” em oposição aos “grandes”, ou agregar esta ou aquela classe ou fração de classe em busca de seus “interesses comuns”, ou os católicos “da libertação” em oposição aos católicos que se opunham a esse viés, os atos que levaram à fundação dos sindicatos e as polêmicas em torno da interpretação adequada desses atos no âmbito das comunidades rurais ocasionaram uma reconfiguração de clivagens, que delimitavam agrupamentos preexistentes, relativamente fluidos, vinculados por parentesco, vizinhança, amizade, facção política, adesão religiosa.

OS MÚLTIPLOS EFEITOS DA CRIAÇÃO DOS SINDICATOS Mas isso não quer dizer que a criação dos sindicatos na região tenha se limitado a ter como efeito um rearranjo de redes ou agrupamentos mais ou menos preestabelecidos, sem nenhuma incidência sobre o modo de produção dessas redes ou agrupamentos e as relações entre eles. Ao contrário, a chegada dos sindicatos teve alguns efeitos importantes sobre a dinâmica de tais configurações. Por um lado, é preciso considerar os efeitos ligados propriamente à introdução de uma instituição formalmente representativa dos trabalhadores rurais e com atribuições delegadas pelo Estado, conju317

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gada no caso desses sindicatos com a adoção de uma linguagem militante centrada em noções de classe, direitos e cidadania, e com a criação de sentidos de vida e de compromissos permeados por tais noções. Por outro lado, há efeitos, indissociáveis da criação do espaço formal do sindicato, sobre a própria dinâmica de construção das tramas envolvendo reputações de famílias, pessoas e localidades. O sucesso em constituir os sindicatos como agências reconhecidas e atuantes no cotidiano desses municípios, contando com pessoas que, tendo se apropriado de novos instrumentos, são capazes de gerenciar, formular, organizar e administrar a relação da população com algumas políticas públicas, diretrizes legais e formas de mobilização, incluiu no cotidiano dessas populações novos espaços institucionais. O recurso à mediação da legislação trabalhista e dos agentes da Justiça, o acesso facilitado e regular a políticas previdenciárias, de assistência social, e aquelas voltadas para a agricultura familiar, o acesso a novas formas de subvenção por meio de projetos (de ONGs) se tornaram rotina, foram incorporados ao horizonte de possibilidades. E incidiram sobre outras relações, alterando-as em alguma medida, como aquelas entre trabalhadores rurais e patrões, entre trabalhadores e políticos, entre sitiantes e compradores de seus produtos, entre trabalhadores rurais e funcionários de agências do Estado (INSS e Emater, por exemplo). O alcance desse novo espaço institucional não é homogêneo. Há municípios em que o sindicato é mais atuante e eficaz, outros em que o é menos. E, mesmo nos municípios em que o sindicato é muito presente e ativo, há uma grande diferenciação do peso da mediação sindical com relação a diferentes localidades e redes sociais. Para algumas comunidades locais e redes altamente empenhadas no processo de construção dos sindicatos, essa mediação passou a ser algo muito presente, muito definidor inclusive da própria identidade dessas comunidades e redes como “organizadas” e “da luta”, de modo que recorrer ao sindicato é visto como natural nas mais variadas circunstâncias. Para outras, nem tanto, limitando-se a um contato mais esporádico e eventual. Mas a credibilidade dos sindicatos tornou-os uma força social reconhecida e a possibilidade de recurso ao sindicato passou a ser algo que está dentro do horizonte dessas populações, bem como algo levado em conta por patrões, políticos e funcionários do governo. À medida que alguns sindicatos conseguem realizar serviços de maneira mais universalizada, isolando a sua prestação de serviços seja das contendas da política partidária, seja das inimizades produzidas e reproduzidas no cotidiano das localidades rurais, conseguem se impor como uma instituição “de classe”, uma “casa do trabalhador” e dar maior credibilidade à percepção de “direitos”, tais como os direitos previdenciários ou trabalhistas. A presença institucional do sindicato também permitiu o surgimento de certa sintonia entre mobilizações e bandeiras nacionais e mobilizações 318

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locais, mesmo que de maneira limitada e transformada. Debates como aqueles relacionadas à ecologia e ao meio ambiente, por exemplo, podem acabar se tornando vivas discussões sobre o uso ou não de determinado agrotóxico, produzindo novos debates entre vizinhos ou adicionando novos termos a querelas por vezes antigas. Mas a atividade propriamente institucional dos sindicatos não pode ser dissociada de reconfigurações na “topografia moral” dessas localidades e municípios. Um primeiro aspecto a ser ressaltado foi a formação de uma “comunidade moral militante” dispersa pelos municípios da região, constituída por aqueles que mais diretamente se empenharam publicamente na construção dos sindicatos e que mais se dedicam à defesa cotidiana de sua credibilidade, tão duramente conquistada. Nesse sentido, abrange (ainda que em posições distintas) não só os dirigentes como também alguns de seus parentes, vizinhos, compadres e outras pessoas que “apostaram” nos sindicatos, mesmo sem ter assumido diretamente cargos, bem como os funcionários que geralmente também são parentes ou vizinhos, e ainda técnicos e assessores “externos” que se tornaram também amigos desses trabalhadores, formando uma espécie de coalizão multilocalizada de famílias e indivíduos. Como qualquer comunidade moral, nos termos propostos por Bailey,9 ela se alimenta das interações entre seus membros, em termos de certos códigos e valores relativamente compartilhados que permitem uma contínua avaliação mútua, redundando na produção e destruição de reputações. As inúmeras atividades necessárias para a organização e mobilização desse conjunto de sindicatos e de suas articulações regionais envolvem necessariamente uma convivência ou interação bastante intensa, acumulando ao longo dos anos situações, lembradas por todos, de alinhamento, ruptura, tensão, afeições e desafeições, compromissos e expectativas. Há momentos e circunstâncias de agregação quase catártica (como vários encontros e mobilizações ao longo do processo de criação dos sindicatos) e momentos que tendem a espiralar tensões e “testar” compromissos e alinhamentos (como eleições sindicais, eleições municipais etc.). A dinâmica própria dessa comunidade moral envolve fortes vínculos, mas também fortes tensões e, como sugere Bailey com relação a “comunidades morais” em geral, pode levar de situações de relativa solidariedade e igualitarismo a outras de considerável hierarquia e concentração de poder (ou vice-versa), além de envolver uma considerável tendência de segmentação ou fissão. Essa dinâmica moral é indissociável do modo pelo qual os sindicatos efetivamente se organizam e funcionam como agências institucionais. Rupturas “pessoais” profundas 9

Bailey, F. G. (1969) propõe uma análise formal relativa às “comunidades morais”, análise esta centrada na dinâmica das relações de reputação, e pensando tais comunidades como arranjos sociais de pequena escala numérica e grande densidade de interação, sem que haja implicações quanto à proximidade geográfica ou características substantivas (caráter rural, peso do parentesco, etc.).

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pautadas em termos morais são indissociáveis de divergências ideológicas ou administrativas, de rearranjos na organização regional dos sindicatos, de alterações mais ou menos radicais nas suas relações com agências de mediação (como as ONGs) e com as facções políticas municipais e do afastamento de lideranças. Forma-se, portanto, em torno dos sindicatos, uma coletividade de fronteiras e alinhamentos internos relativamente móveis, que transforma a cada momento as questões sindicais em questões morais (e vice-versa), a avaliação do trabalho de organização de classe e de prestação de serviços aos trabalhadores em avaliação moral dos vínculos com a comunidade militante que se define como portadora da “luta” (e vice-versa). Defende-se ou ataca-se a reputação de pessoas vistas como “da luta”, a partir da observação e cuidadosa avaliação (e contra-avaliação) dos comportamentos e atitudes em termos dos valores próprios dessa comunidade. Tais valores, ainda que guardem especificidade com relação aos valores acionados no cotidiano das comunidades rurais, por incorporarem o próprio compromisso militante como valor, continuam a trazer categorias morais cotidianas, em termos das quais foram socializados os dirigentes, para o cerne da vida “institucional” dos sindicatos. Por outro lado, a atuação sindical não apenas forma uma certa “comunidade moral militante” como também produz continuamente vínculos de outra natureza entre os dirigentes e funcionários e os trabalhadores que estão “na base” do sindicato, mas não pertencem à “comunidade militante”. Esses vínculos são, em muitas circunstâncias, concebidos pelos trabalhadores em termos morais mais do que em termos de “representação de classe”. Os dirigentes sindicais, ao exercerem da melhor maneira sua função de representantes formais dos trabalhadores, não podem senão realizar ações que serão possivelmente interpretadas como atos generosos. Isso, junto com a relativa estabilidade de posição que o controle do aparato sindical (mesmo que modesto) lhes assegura, acaba contribuindo bastante para que eles se tornem relativamente “notáveis” nos municípios e nas localidades e que concorram com notáveis já estabelecidos – em certos casos, recuperando em novas bases o prestígio social e político que havia sido perdido por suas famílias, em outros, numa verdadeira ascensão social, ainda que em escala modesta. Isso abre, entre outras coisas, possibilidades no jogo político municipal, que vêm sendo aproveitadas de diferentes maneiras, em diferentes municípios, com diferentes resultados.10 Ao conseguir aposentar-se, ou ao obter um acordo favorável com o expatrão com a mediação do sindicato, trabalhadores sentem-se agradecidos e em dívida com sindicalistas e funcionários, e é bem possível que passem a conceber o sindicato como um lugar de confiança e passem a freqüentá10

Para um estudo sobre os percursos de dirigentes sindicais de trabalhadores rurais na política, realizado em Pernambuco, ver Palmeira, 1998.

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lo até mesmo para expressar sua gratidão. Mesmo que não se empenhem muito ativamente na defesa pública da imagem do sindicato diante dos que não o apreciam, acabam até certo ponto identificados ao sindicato. Este acaba por tornar-se lugar de produção de vínculos sociais e espaço de sociabilidade. O bom funcionamento – incluindo aí o modo de atendimento atencioso e pessoalmente envolvente que alguns dirigentes e funcionários (que em geral são também militantes e freqüentemente parentes) realizam com destreza – pode redundar em credibilidade para a instituição, mas certamente também redunda em prestígio pessoal, por vezes bastante grande, para lideranças e funcionários. Os sindicatos se tornam não só focos de mobilização e organização de classe, mas também, indissociavelmente, lugares identificados a pessoas cujos atos são interpretados pela população como doações generosas às vezes bastante extraordinárias – não só de recursos materiais, mas também de tempo, atenções e gentilezas. Às vezes, em momentos críticos para os que estão sendo atendidos ou em relação a temas de considerável importância aos olhos daquelas famílias de trabalhadores (como as aposentadorias, os auxílios previdenciários e outras fontes de renda). Nesse sentido, os sindicatos, apesar de suas intenções e retórica militantes e, mesmo quando se limitam a operações desvalorizadas do ponto de vista dessa retórica (como encaminhar processos de aposentadoria), se tornaram lugar de produção de vínculos de gratidão, de dívidas morais, potencialmente concorrentes com outros focos como a prefeitura, o hospital, a igreja, ou os políticos. Todavia, cabe observar que a percepção do funcionamento do sindicato é sempre algo melindroso. Se o sindicato pode angariar vínculos, gratidão e simpatia para seus dirigentes e funcionários, pode também não corresponder a expectativas ou acabar envolvido em mal-entendidos e conflitos concebidos em termos morais, podendo produzir inimigos e desafetos às vezes inesperadamente e, aos olhos de funcionários e dirigentes, injustificadamente. Por vezes, o fato de o dirigente ou funcionário estar preso a procedimentos formais, ou ainda por não ter senão como enquadrar o atendimento aos trabalhadores em termos militantes (em virtude mesmo de seu pertencimento à “comunidade moral militante” a que nos referimos), ou simplesmente não ter como atender de maneira mais personalizada e mais adequada à etiqueta das relações cotidianas a todos os que procuram o sindicato, criam-se situações interpretadas como falta de consideração ou provocação, vistas como situações humilhantes ou desafiadoras. Há casos, por exemplo, em que o funcionário ou dirigente não considera possível atender a um dado pedido em virtude das regras burocráticas, e o trabalhador interpreta aquela recusa como humilhação ou desconsideração. Ou casos em que o dirigente interpreta a busca de uma “ajuda para aposentar” como sinalização de abertura para adesão militante e insiste em exigir interesse e participação do trabalhador em atividades “políticas” e “de formação” do 321

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sindicato, julgando o trabalhador como membro, ao menos potencial, da “comunidade militante”. Essas situações podem levar a mal-entendidos e tensões maiores ou menores. De todo modo, a credibilidade obtida pelos sindicatos ao longo dos anos resultou em certo prestígio não só para aqueles mais diretamente envolvidos, mas também para aqueles que, como parte da “comunidade militante”, sempre os defenderam publicamente. O reconhecimento dos sindicatos por agentes “de fora”, pela prefeitura, a capacidade de conseguir projetos, a eficácia na obtenção de aposentadorias são uma resposta àqueles que os ridicularizavam. Ao mesmo tempo, alguns dos dirigentes ampliaram visivelmente seu espectro de conhecimentos, tanto no sentido de saber especializado como de leque de lugares e pessoas conhecidas. Esse relativo sucesso dos dirigentes sindicais e daqueles membros de suas famílias que se associaram a eles nessa “aposta” no sindicato acabou repercutindo nas tramas sociais que vinculam vizinhos, parentes, compadres, amigos e notáveis nas localidades de origem dos dirigentes. Relações entre famílias e entre vizinhos, com uma longa história de amizades e inimizades, de conflitos, solidariedades, disputas políticas, incorporaram o tema sindical desde o início, reforçando velhas oposições, criando novas, ressuscitando tensões submersas, e também criando novas possibilidades de aliança, pacificação e distensão. De qualquer maneira, para as famílias dos dirigentes, se durante o processo de construção da credibilidade dos sindicatos houve muitos momentos em que foi necessária firmeza em uma aposta bastante incerta, eventualmente o caminho do sindicato abriu perspectivas de ascensão relativa na localidade, em termos de prestígio e reputação diante de outras famílias, o que não significa – longe disso – maior harmonia na comunidade local ou ausência de ataques à reputação. Às vezes, o fato de o sindicato ter permitido a afirmação de uma nova (ou renovada) força social e política acirrou disputas “entre pares”, inclusive entre famílias de certo destaque nas comunidades de origem dos dirigentes. Com isso, o sindicato pode produzir novos inimigos, tanto como novos amigos, entre os que, de um ponto de vista externo, poderiam ser percebidos como membros de uma mesma “classe”. Outro aspecto a ser levado em conta é a inserção propriamente política dos dirigentes sindicais. Muitos deles não tiveram sucesso em suas tentativas eleitorais, porém em certos municípios alguns se elegeram vereadores e, em outros, foram nomeados secretários da Agricultura ou para outros cargos. Na posição de vereadores, é notável o preparo que esses dirigentes têm em relação aos procedimentos e mecanismos burocrático-legais, em relação à grande maioria dos vereadores e mesmo prefeitos, que dependem em grande medida de funcionários que dominem esses aspectos para suas gestões. O aprendizado desses procedimentos e mecanismos ao longo da experiência sindical, juntamente com o apoio militante que dispõem, 322

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permite-lhes em algumas circunstâncias estratégias de atuação política singulares no âmbito desses municípios. A combinação de conhecimento e agilidade no plano legal e administrativo com mobilização militante e bons contatos externos tornou-os, em vários momentos, uma força de oposição significativa diante do poder de facções políticas mais estabelecidas nesses municípios. Ao mesmo tempo, o sucesso político dos dirigentes ou dos partidos e facções aos quais se alinharam nas disputas políticas municipais alçaram-nos a posições em que é difícil não se envolver em processos de construção de laços pessoais de fidelidade política que são característicos desse universo, ou, ao menos, em que é difícil evitar que suas ações não sejam, independentemente de suas intenções, compreendidas em termos dessas formas de ação política. Esses diferentes efeitos da presença sindical na região não podem ser pensados isoladamente. A presença do sindicato como agência portadora de modalidades de organização de classe e como agência mediadora de políticas e bandeiras de luta nacionais é indissociável da formação de uma comunidade moral militante com certa tendência à hierarquização e segmentação. Isso por sua vez não pode ser separado da dimensão do sindicato como núcleo de generosidade e tutela (para além mesmo das intenções dos militantes), o que por sua vez não deixa de estar relacionado aos rearranjos das tramas de relações entre famílias e vizinhos, bem como dentro de famílias, a partir da atuação dos sindicatos, e aos realinhamentos e disputas entre facções políticas dos municípios (especialmente os pequenos municípios, onde sindicatos de trabalhadores rurais podem ter um peso e visibilidade consideráveis).

CONCLUSÃO Procurei mostrar que há vários planos em que podem ser analisados os efeitos da presença dos sindicatos na Zona da Mata de Minas Gerais. Os sindicatos produziram um novo espaço institucional – uma instituição de classe, voltada para uma categoria social específica, que passou a fazer parte do horizonte desses municípios e se tornou uma instituição reconhecida e legitimada. Esses sindicatos produzem continuamente uma “comunidade moral militante” e nela se sustentam. Essa comunidade é multilocalizada, de contornos e alinhamentos internos mutáveis, e abrange dirigentes, funcionários, assessores, técnicos, parentes, empenhados moralmente na consolidação dos sindicatos e tragados para uma dinâmica ao mesmo tempo tensa e solidária. Por outro lado, os sindicatos se tornam – mesmo sem que essa seja a intenção – focos do exercício da generosidade e da tutela, concorrentes com outros focos tradicionalmente constitutivos dessas localidades: a prefeitura, a igreja, o hospital, os políticos. E se tornam também novos 323

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elementos em velhas brigas: nas comunidades locais e nos municípios, os dirigentes dos sindicatos estão marcados pela sua identificação em termos de parentesco, localidade e reputação, e fazem parte de tramas que vêm de longe e que sugerem aos moradores do lugar uma chave de interpretação possível e bastante verossímil para as suas ações, mesmo as mais militantes. O sucesso em produzir e legitimar uma instituição de classe é, ao mesmo tempo, a criação de um novo espaço de surgimento de lideranças políticas, que passam a atuar nos enfrentamentos políticos municipais. Nesses enfrentamentos, essas lideranças se posicionam de maneira peculiar, por terem uma facilidade singular (especialmente em relação aos vereadores) em lidar com procedimentos e mecanismos administrativos e legais, e uma experiência mais ampla com a mobilização de redes militantes. Creio que para entender os efeitos da formação desses sindicatos nas relações sociais é preciso levar em conta todas essas dimensões – a instituição de classe, a comunidade militante, o novo centro de generosidade e tutela, o novo elemento em velhas tramas morais, e a singularidade das habilidades políticas desses sitiantes e trabalhadores –, e levar em conta também que a dinâmica própria de cada dimensão interfere na de outra. Essas dimensões conjugadas certamente tornaram mais complexa a configuração total de relações, mais variadas e disputadas as posições a partir das quais é possível exercer poderes e reagir a esses exercícios.

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SOBRE OS AUTORES

Bernardo Mançano Fernandes. Geógrafo, professor do Departamento de Geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente. Pesquisador do CNPq. Clifford Andrew Welch. Professor-doutor do Departamento de História da Grand Valley State University, Michigan, Estados Unidos. Pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (NERA). Professor-colaborador do Departamento de Geografia, ambos da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Presidente Prudente. Cordula Eckert. Engenheira agrônoma. Mestre em Desenvolvimento Agrícola (CPDA/UFRRJ), atualmente trabalha na Emater/RS-Ascar, Porto Alegre. Elder Andrade de Paula. Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ. Professor da Universidade Federal do Acre. Gutemberg Armando Diniz Guerra. Doutor em Socioeconomia pela École des Hautes Etudes em Siences Sociales, Paris, França. Professor do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural e do Programa de Pós-Graduação Agriculturas Amazônicas (PPGAA) da Universidade Federal do Pará. Jean Pierre Leroy. Mestre em educação pelo IESAE/FGV. Assessor da Fase – Solidariedade e Educação. John Cunha Comerford. Mestre e doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Leonilde Servolo de Medeiros. Socióloga, professora associada do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura 325

Sobre os autores

e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Bolsista do CNPq e da FAPERJ. Lygia Maria Sigaud. Antropóloga, professora associada do Departamento de Antropologia do Museu Nacional (UFRJ). Bolsista do CNPq e da FAPERJ. Maria Ignez S. Paulilo. Professora aposentada, atualmente voluntária da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista do CNPq. Maria José Reis. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina e da UNIVALI. Mario Grynszpan. Professor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/ FGV) e do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq. Moacir Palmeira. Antropólogo, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador do CNPq. Neide Esterci. Antropóloga do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Pesquisadora do CNPq. Osvaldo Heller da Silva. Sociólogo, professor-adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná Paulo Ribeiro da Cunha. Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, professor de Teoria Política da FFC/UNESP e, também nesta instituição, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Sílvio Simione da Silva. Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciência e Tecnologia da UNESP, campus de Presidente Prudente. Professor da Universidade Federal do Acre.

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SOBRE O LIVRO Formato: 16 x 23 Mancha: 26 x 48,6 paicas Tipologia: StempelSchneidler 10,5/12,6 Papel: Off-set 75 g/m2 (miolo) Supremo 250 g/m2 (capa) 1ª edição: 2009 EQUIPE DE REALIZAÇÃO Edição de Texto Lucimara Carvalho (Preparação de original) Valquíria Della Pozza e Adriana Moreira Pedro (Revisão) Editoração Eletrônica Eduardo Seiji Seki

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

Presidente do Conselho Curador Herman Voorwald Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Assessor Editorial Antonio Celso Ferreira Conselho Editorial Acadêmico Alberto Tsuyoshi Ikeda Célia Aparecida Ferreira Tolentino Eda Maria Góes Elisabeth Criscuolo Urbinati Ildeberto Muniz de Almeida Luiz Gonzaga Marchezan Nilson Ghirardello Paulo César Corrêa Borges Sérgio Vicente Motta Vicente Pleitez Editores-Assistentes Anderson Nobara Arlete Zebber Ligia Cosmo Cantarelli

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Presidente da República GUILHERME CASSEL Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário DANIEL MAIA Secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento Agrário ROLF HACKBART Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ADONIRAM SANCHES PERACI Secretário de Agricultura Familiar ADHEMAR LOPES DE ALMEIDA Secretário de Reordenamento Agrário JOSÉ HUMBERTO OLIVEIRA Secretário de Desenvolvimento Territorial JOAQUIM CALHEIROS SORIANO Coordenador-geral do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural VINICIUS MACÁRIO Coordenador-executivo do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO (MDA) www.mda.gov.br NÚCLEO DE ESTUDOS AGRÁRIOS E DESENVOLVIMENTO RURAL (NEAD) SBN, Quadra 2, Edifício Sarkis – Bloco D – loja 10 – sala S2 – CEP: 70.040-910 Brasília/DF Tel: (61) 2020-0189 www.nead.org.br PCT MDA/IICA – Apoio às Políticas e à Participação Social no Desenvolvimento Rural Sustentável

BERNARDO MANÇANO FERNANDES LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS MARIA IGNEZ PAULILO (Orgs.)

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas A diversidade das formas das lutas no campo volume 2

© 2009 Editora UNESP Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L991 v.2 Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas, v.2: a diversidade das formas das lutas no campo/Bernardo Mançano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros, Maria Ignez Paulilo (orgs.). – São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009. 369p. – (História social do campesinato brasileiro) ISBN 978-85-7139-969-3 (Editora UNESP) ISBN 978-85-60548-54-5 (NEAD) 1. Camponeses – Brasil – História. 2. Camponeses – Brasil – Condições sociais. 3. Trabalhadores rurais – Sindicatos – Brasil – História. 4. Camponeses – Brasil – Atividades políticas. 5. Brasil – Condições rurais. 6. Posse da terra – Brasil. 7. Movimentos sociais rurais – Brasil – História. I. Fernandes, Bernardo Mançano. II. Medeiros, Leonilde Servolo de. III. Paulilo, Maria Ignez Silveira. IV. Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural. V. Série. 09-4543.

Editora afiliada:

CDD: 305.5633 CDU: 316.343

História Social do Campesinato no Brasil Conselho Editorial Nacional Membros Membros efetivos Ariovaldo Umbelino de Oliveira (Universidade de São Paulo) Bernardo Mançano Fernandes (UNESP, campus de Presidente Prudente) Clifford Andrew Welch (GVSU & UNESP, campus de Presidente Prudente) Delma Pessanha Neves (Universidade Federal Fluminense) Edgard Malagodi (Universidade Federal de Campina Grande) Emilia Pietrafesa de Godoi (Universidade Estadual de Campinas) Jean Hebette (Universidade Federal do Pará) Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (Universidade Federal de Pernambuco) Leonilde Servolo de Medeiros (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, CPDA) Márcia Maria Menendes Motta (Universidade Federal Fluminense) Maria de Nazareth Baudel Wanderley (Universidade Federal de Pernambuco) Maria Aparecida de Moraes Silva (UNESP, campus de Araraquara) Maria Ignez Paulilo (Universidade Federal de Santa Catarina) Marilda Menezes (Universidade Federal de Campina Grande) Miguel Carter (American University, Washington – DC) Paulo Zarth (Unijuí) Rosa Elizabeth Acevedo Marin (Universidade Federal do Pará) Sueli Pereira Castro (Universidade Federal de Mato Grosso) Wendy Wolford (Yale University) Coordenação Horácio Martins de Carvalho Márcia Motta Paulo Zarth

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO À COLEÇÃO 9 PREFÁCIO 19 INTRODUÇÃO 23 Bernardo Mançano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros e Maria Ignez Paulilo

1 Considerações sobre uma década de lutas sociais no campo no extremo sul do Brasil (1978-88) 33 Anita Brumer

2 A engrenagem das ocupações de terra 53 Lygia Sigaud

3 Para além da barraca de lona preta: redes sociais e trocas em acampamentos e assentamentos do MST 73 Nashieli C. Rangel Loera

4 A “forma movimento” como modelo contemporâneo de ação coletiva rural no Brasil 95 Marcelo Rosa

5 Mobilização camponesa no sudeste paraense e luta pela reforma agrária 113 William Santos de Assis

6 A fresta: ex-moradores de rua como camponeses 139 Marcelo Gomes Justo

7 As faces ocultas de um conflito: a luta pela terra em Eldorado dos Carajás 159 Luciana Miranda Costa

Sumário

8 Movimentos das mulheres agricultoras e os muitos sentidos da “igualdade de gênero” 179 Maria Ignez S. Paulilo

9 A participação da mulher na luta pela terra: dilemas e conquistas 203 Sônia Fátima Schwendler

10 Hoje, a mulher é a estrela – divisão sexual do trabalho guerreiro nas lutas camponesas no Maranhão 223 Maristela de Paula Andrade

11 De pobre e sem-terra a pobre com-terra e sem sossego: territorialização e territorialidades da reforma agrária de mercado (1998-2006) 247 Eraldo da Silva Ramos Filho

12 Neoliberalismo e lutas camponesas no Brasil: contestação e resistência à reforma agrária de mercado do Banco Mundial durante o governo FHC 279 João Márcio Mendes Pereira

13 A Articulação do Semi-Árido brasileiro: camponeses unidos em rede para defender a convivência no Semi-Árido 303 Ghislaine Duque

14 A maior estrutura sindical do Brasil: papel do sindicalismo de trabalhadores rurais no pós-64 321 Rudá Ricci

15 Geografia da conflitualidade no campo brasileiro 339 Eduardo Paulon Girardi e Bernardo Mançano Fernandes

Sobre os autores

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APRESENTAÇÃO À COLEÇÃO

Por uma recorrente visão linear e evolutiva dos processos históricos, as formas de vida social tendem a ser pensadas se sucedendo no tempo. Em cada etapa consecutiva, apenas são exaltados seus principais protagonistas, isto é, os protagonistas diretos de suas contradições principais. Os demais atores sociais seriam, em conclusão, os que, por alguma razão, se atrasaram para sair de cena. O campesinato foi freqüentemente visto dessa forma, como um resíduo. No caso particular do Brasil, a esta concepção se acrescenta outra que, tendo como modelo as formas camponesas européias medievais, aqui não reconhece a presença histórica do campesinato. A sociedade brasileira seria então configurada pela polarizada relação senhor–escravo e, posteriormente, capital–trabalho. Ora, nos atuais embates no campo de construção de projetos concorrentes de reordenação social, a condição camponesa vem sendo socialmente reconhecida como uma forma eficaz e legítima de se apropriar de recursos produtivos. O que entendemos por campesinato? São diversas as possibilidades de definição conceitual do termo. Cada disciplina tende a acentuar perspectivas específicas e a destacar um ou outro de seus aspectos constitutivos. Da mesma forma, são diversos os contextos históricos nos quais o campesinato está presente nas sociedades. Todavia, há reconhecimento de princípios mínimos que permitem aos que investem, tanto no campo acadêmico quanto no político, dialogar em torno de reflexões capazes de demonstrar a presença da forma ou condição camponesa, sob a variedade de possibilidades de objetivação ou de situações sociais. Em termos gerais, podemos afirmar que o campesinato, como categoria analítica e histórica, é constituído por poliprodutores, integrados ao jogo de forças sociais do mundo contemporâneo. Para a construção da história social do campesinato no Brasil, a categoria será reconhecida pela produção, em modo e grau variáveis, para o mercado, termo que abrange, guardadas as singularidades inerentes a cada forma, os mercados locais, os mercados 9

Apresentação à coleção

em rede, os nacionais e os internacionais. Se a relação com o mercado é característica distintiva desses produtores (cultivadores, agricultores, extrativistas), as condições dessa produção guardam especificidades que se fundamentam na alocação ou no recrutamento de mão-de-obra familiar. Trata-se do investimento organizativo da condição de existência desses trabalhadores e de seu patrimônio material, produtivo e sociocultural, variável segundo sua capacidade produtiva (composição e tamanho da família, ciclo de vida do grupo doméstico, relação entre composição de unidade de produção e unidade de consumo). Por esses termos, a forma de alocação dos trabalhadores também incorpora referências de gestão produtiva, segundo valores sociais reconhecidos como orientadores das alternativas de reprodução familiar, condição da qual decorrem modos de gerir a herança, a sucessão, a socialização dos filhos, a construção de diferenciados projetos de inserção das gerações. O campesinato emerge associadamente ao processo de seu reconhecimento político, ora negativo, ora positivo. Por tais circunstâncias, a questão política, constituída para o reconhecimento social, enquadrou tal segmento de produtores sob a perspectiva de sua capacidade adaptativa a diferentes formas econômicas dominantes, ora pensadas pela permanência, ora por seu imediato ou gradual desaparecimento. Como em muitos outros casos de enquadramento social e político, uma categoria de auto-identificação, portanto contextual, produto de investimentos de grupos específicos, desloca-se, sob empréstimo e (re)semantização, para os campos político e acadêmico e, nesses universos sociais, sob o caráter de signo de comportamentos especialmente hétero-atribuídos ou sob o caráter de conceito, apresenta-se como generalizável. Vários autores, retratando a coexistência do campesinato em formações socioeconômicas diversas, já destacaram que o reconhecimento dessa nominação, atribuída para efeitos de investimentos políticos ou para reconhecimento de características comuns, só pode ser compreendido como conceito, cujos significados definem princípios gerais abstratos, motivo pelo qual podem iluminar a compreensão de tantos casos particulares. Para que a forma camponesa seja reconhecida, não basta considerar a especificidade da organização interna à unidade de produção e à família trabalhadora e gestora dos meios de produção alocados. Todavia, essa distinção é analiticamente fundamental para diferenciar os modos de existência dos camponeses dos de outros trabalhadores (urbanos e rurais), que não operam produtivamente sob tais princípios. Percebendo-se por essa distinção de modos de existência, muitos deles se encontram mobilizados politicamente para lutar pela objetivação daquela condição de vida e produção (camponesa). Em quaisquer das alternativas, impõe-se a compreensão mais ampla do mundo cultural, político, econômico e social em que o camponês produz e se reproduz. Da coexistência com outros agentes sociais, o camponês se 10

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

constitui como categoria política, reconhecendo-se pela possibilidade de referência identitária e de organização social, isto é, em luta por objetivos comuns ou, mediante a luta, tornados comuns e projetivos. A esse respeito, a construção da história social do campesinato, como de outras categorias socioeconômicas, deve romper com a primazia do econômico e privilegiar os aspectos ligados à cultura. Ao incorporar as múltiplas dimensões da prática dos agentes, destacamos o papel da experiência na compreensão e explicitação política das contradições do processo histórico. Essas contradições revelam conflitos entre normas e regras que referenciam modos distintos de viver, em plano local ou ocupacional, colocando em questão os meios que institucionalizam formas de dominação da sociedade inclusiva. Tais postulados serão demonstrados nos diversos artigos desta coletânea, voltada para registros da história social do campesinato brasileiro. A prática faz aparecer uma infinidade de possibilidades e arranjos, vividos até mesmo por um mesmo grupo. Quanto mais se avança na pesquisa e no reconhecimento da organização política dos que objetivam a condição camponesa, mais se consolidam a importância e a amplitude do número de agricultores, coletores, extrativistas, ribeirinhos e tantos outros, nessa posição social ou que investem para essa conquista. A diversidade da condição camponesa por nós considerada inclui os proprietários e os posseiros de terras públicas e privadas; os extrativistas que usufruem os recursos naturais como povos das florestas, agroextrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais e catadores de caranguejos que agregam atividade agrícola, castanheiros, quebradeiras de coco-babaçu, açaizeiros; os que usufruem os fundos de pasto até os pequenos arrendatários nãocapitalistas, os parceiros, os foreiros e os que usufruem a terra por cessão; quilombolas e parcelas dos povos indígenas que se integram a mercados; os serranos, os caboclos e os colonos assim como os povos das fronteiras no sul do país; os agricultores familiares mais especializados, integrados aos modernos mercados, e os novos poliprodutores resultantes dos assentamentos de reforma agrária. No caso da formação da sociedade brasileira, formas camponesas coexistem com outros modos de produzir, que mantêm relações de interdependência, fundamentais à reprodução social nas condições hierárquicas dominantes. Assim, a título de exemplo, ao lado ou no interior das grandes fazendas de produção de cana-de-açúcar, algodão e café, havia a incorporação de formas de imobilização de força de trabalho ou de atração de trabalho livre e relativamente autônomo, fundamentadas na imposição técnica do uso de trabalho basicamente manual e de trabalhadores familiares, isto é, membros da família do trabalhador alocado como responsável pela equipe. Esses fundamentais agentes camponeses agricultores apareciam sob designação de colonos, arrendatários, parceiros, agregados, moradores e até sitiantes, termos que não podem ser compreendidos sem a articulação 11

Apresentação à coleção

com a grande produção agroindustrial e pastoril. Se recuarmos um pouco no tempo, veremos que, ao lado de donatários e sesmeiros, apareciam os foreiros, os posseiros ou – designando a condição de coadjuvante menos valorizada nesse sistema de posições hierárquicas – os intrusos ou invasores, os posseiros criminosos etc. Os textos da história geral do Brasil, nos capítulos que exaltam os feitos dos agentes envolvidos nos reconhecidos movimentos de entradas e bandeiras, trazem à tona a formação de pequenos povoados de agricultores relativamente autárquicos. Posteriormente, tais agentes produtivos serão celebrados pelo papel no abastecimento dos tropeiros que deslocavam metais e pedras preciosas, mas também outros produtos passíveis de exportação e de abastecimento da população das cidades ou das vilas portuárias. Desse modo, o campesinato, forma política e acadêmica de reconhecimento conceitual de produtores familiares, sempre se constituiu, sob modalidades e intensidades distintas, um ator social da história do Brasil. Em todas as expressões de suas lutas sociais, seja de conquista de espaço e reconhecimento, seja de resistência às ameaças de destruição, ao longo do tempo e em espaços diferenciados, prevalece um traço comum que as define como lutas pela condição de protagonistas dos processos sociais. Para escrever sobre essa história é preciso, portanto, antes de tudo, refletir sobre a impositiva produção dessa “amnésia social” ou dessa perspectiva unidimensional e essencializada, que apaga a presença do campesinato e oculta ou minimiza os movimentos sociais dos camponeses brasileiros, consagrando – com tradição inventada – a noção do caráter cordato e pacífico do homem do campo. Ou fazendo emergir a construção de uma caricatura esgarçada do pobre coitado, isolado em grande solidão e distanciamento da cultura oficial, analfabeto, mal-alimentado. Ora, tais traços aviltantes, para olhares que os tomassem como expressivos da condição de vida e não do sujeito social, revelavam as bases da exploração e da submissão em que viviam, seja como agentes fundamentais ou complementares do processo produtivo da atividade agroindustrial e exportadora. Estimulados a coexistirem internamente, ao lado ou ao largo da grande produção, os agentes constituídos na condição camponesa não tinham reconhecidas suas formas de apropriação dos recursos produtivos. Assim sendo, são recorrentemente questionados e obrigados a se deslocar para se reconstituir, sob as mesmas condições, em áreas novamente periféricas. Da mesma forma, em outras circunstâncias, são submetidos a regras de coexistência consentidas e por vezes imediatamente questionadas, dada a exacerbação das posições hierarquizadas ou das desigualdades inerentes às condições de coexistência. A presença dos camponeses é, pois, postulada pela ambigüidade e desqualificação, quando os recursos por eles apropriados se tornavam objeto de cobiça. Entendemos, no entanto, que, sob processos relativamente 12

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

equivalentes, esses agentes elaboraram, como traço comum de sua presença social, projetos de existência fundamentados em regras legítimas e legais, princípios fundamentais para a construção de um éthos e de regras éticas, orientadores de seu modo de existência e coexistência. Sob tais circunstâncias, a constituição da condição camponesa torna o agente que lhe corresponde o portador de uma percepção de justiça, entendida aqui não como uma abstração teórica sobre o direito aos recursos produtivos, e sim como uma experiência baseada em modos de coexistência: sob formas de comunidade camponesa; na labuta diária pela sobrevivência; na relação com a natureza; e nas práticas costumeiras para a manutenção e a reprodução de um modo de vida compatível com a ordem social, institucionalizada por aqueles que se colocam socialmente como seus opressores. Levando em consideração o conjunto de fatores que vimos destacando, podemos caracterizar alguns elementos constitutivos de certa tradição do campesinato brasileiro, isto é, como expressão da existência permitida sob determinadas constrições e provisoriedades e sob certos modos de negociação política. Essa negociação não exclui resistências, imposições contratuais, legais ou consuetudinárias, ou questionamentos jurídicos, que revelam e reafirmam a capacidade de adaptação às condições da produção econômica dominante. Menos do que um campesinato de constituição tradicional, no sentido da profundidade temporal da construção de um patrimônio material e familiar, vemos se institucionalizar, como elemento distintivo, um patrimônio cultural inscrito nas estratégias do aprendizado da mobilidade social e espacial. Estratégias que visam, entre outros objetivos, à busca do acesso aos recursos produtivos para a reprodução familiar e a exploração de alternativas, oferecidas pelas experiências particulares ou oficiais de incorporação de áreas improdutivas ou fracamente integradas aos mercados. Os camponeses instauraram, na formação social brasileira, em situações diversas e singulares e mediante resistências de intensidades variadas, uma forma de acesso livre e autônomo aos recursos da terra, da floresta e das águas, cuja legitimidade é por eles reafirmada no tempo. Eles investiram na legitimidade desses mecanismos de acesso e apropriação, pela demonstração do valor de modos de vida decorrentes da forma de existência em vida familiar, vicinal e comunitária. A produção estrito senso se encontra, assim, articulada aos valores da sociabilidade e da reprodução da família, do parentesco, da vizinhança e da construção política de um “nós” que se contrapõe ou se reafirma por projetos comuns de existência e coexistência sociais. O modo de vida, assim estilizado para valorizar formas de apropriação, redistribuição e consumo de bens materiais e sociais, se apresenta, de fato, como um valor de referência, moralidade que se contrapõe aos modos de exploração e de desqualificação, que também foram sendo reproduzidos no decorrer da existência da posição camponesa na sociedade brasileira. 13

Apresentação à coleção

As formas exacerbadas de existência sob desigualdades socioeconômicas se expressam, sobretudo, na exploração da força de trabalho coletiva dos membros da família e na submissão aos intermediários da comercialização, que se associam a outros agentes dominantes para produzir um endividamento antecipado e expropriador. Essas formas de subordinação, que põem em questão as possibilidades de reprodução da condição camponesa, contrapõem-se à avaliação de perenizadas experiências positivas de construção da condição camponesa. Um exemplo de experiências positivas é a institucionalizada pelos sitiantes, dotados de autonomia para se agregarem por vida coletiva em bairros rurais. No contexto de lutas sociais, os trabalhadores foram construindo um sistema de crenças partilhadas e inscritas em seu cotidiano de lutas pela sobrevivência e reprodução social. Essas lutas são orientadas pela definição do acesso aos recursos produtivos, de forma legal e autônoma, como fator fundamental para sua constituição como agente produtivo imediato, isto é, contraposto ao cativo ou subjugado no interior das fazendas e, por tal razão, dispondo de relativa autonomia. Nos termos dessa tradição, a liberdade é um valor para expandir uma potencialidade, ou seja, capacidade para projetar o futuro para os filhos e para socialmente se valorizar como portador de dignidade social. Na construção da formação social brasileira, o modo de existir reconhecido pela forma camponesa, menos que um peso da tradição da estabilidade e de longas genealogias, como ocorre, por exemplo, em formações sociais européias, é uma idéia-valor, orientadora de condutas e de modos de agregação familiar ou grupal. Na qualidade de valor, é um legado transmitido entre gerações, reatualizado e contextualizado a cada nova geração que investe nessa adesão política. O peso desse legado, quando não compreendido, leva aos estranhamentos muito comuns em relação à persistência da luta pelo acesso aos recursos produtivos e mesmo em relação ao deslocamento de trabalhadores definidos como urbanos, que engrossam movimentos de sua conquista. As possibilidades de existência que a condição camponesa permite vão se contrapor, em parte por equivalência comparativa, às condições de exploração de trabalhadores da indústria, do comércio e de serviços. Esses traços, sempre presentes porque realimentados como um legado de memórias familiares e coletivas, vão atribuir sentido às constantes mobilidades de trabalhadores. Os deslocamentos justificam-se pela busca de espaços onde haja oportunidade de pôr em prática modos de produzir e de existência, desde que fundamentados pela gestão autônoma dos fatores produtivos, das condições e produtos do trabalho e da orientação produtiva. Levando em conta tais elementos, definidos como constitutivos de uma tradição e alargando a compreensão da diversidade de situações, reafirmamos a presença do campesinato como constitutiva de toda a história do Brasil. Tais produtores estiveram vinculados à exploração colonial, 14

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

integrando-se a mercados locais ou a distância; reafirmaram-se como posição desejada no decorrer da transição do trabalho escravo para o trabalho livre; abasteceram os processos de agroindustrialização de produtos destinados à exportação; e, entre outras tantas situações, por mais de um século, vêm ocupando a Amazônia. Atualmente, apresentam-se como um dos principais atores da cena política, constituída para tornar possível a construção de sociedade erguida sobre bases mais igualitárias, capazes, então, de fundamentar os princípios democráticos de coexistência social e política. Portanto, as negociações em torno das alternativas de ocupação do espaço físico e social marcaram e impregnaram a proposição de modos de vida orientados por valores cuja elaboração tornou possível a legitimidade da coexistência política e cultural. Modos de vida que também reafirmam o direito à luta pela autonomia, emblematizada pela célebre referência à vida na fartura. Ora, tudo isso, relembramos, fora construído no contexto de imposição de formas de dominação objetivadas com base na grande produção. Por esse motivo, a vida segundo a lógica expropriatória objetivada na grande propriedade foi concebida como destruidora da dignidade social. A honra estava (assim e inclusive) pautada pela defesa do acesso à alimentação, todavia em condições socialmente concebidas como adequadas à reprodução saudável do trabalhador e dos membros de sua família. Dessa forma, no Brasil, os produtores agregados pela forma de organização camponesa estão presentes como atores sociais que participaram e participam da construção da sociedade nacional. Esse reconhecimento não se funda tão-somente em uma dimensão politizada de defesa dessa visibilidade social. Ele também se explica pelos princípios de constituição das formas hegemônicas de organização da produção social. Destacaremos três dimensões desse protagonismo. Em primeiro lugar, o campesinato representa um pólo de uma das mais importantes contradições do capital no Brasil, que consiste em sua incapacidade de se “libertar” da propriedade fundiária. O significado que a propriedade da terra tem até hoje, como um elemento que ao mesmo tempo torna viável e fragiliza a reprodução do capital, gera uma polarização (de classe) entre o proprietário concentrador de terras (terras improdutivas) e aquele que não tem terras suficientes. Desse fato decorrem duas conseqüências principais. Por um lado, essa contradição não é residual na sociedade brasileira, constituindo-se um dos pilares de sua estrutura social; por outro, a principal luta dos camponeses é pela construção de seu patrimônio, condição sine qua non de sua existência. Essa luta foi e continua sendo muito forte em diversos momentos e sob as mais variadas formas. Ela tem um caráter eminentemente político e corresponde ao que se costuma chamar o “movimento camponês”. Assim, a luta pela terra e pelo acesso a outros recursos produtivos não assume apenas a dimensão mais visível das lutas camponesas. Ela se processa igualmente em um nível menos perceptível, por outras formas de resistência 15

Apresentação à coleção

que dizem respeito às estratégias implementadas pelos camponeses para trabalhar, mesmo em condições tão adversas, e assegurar a reprodução da família. Essa dimensão tem, de fato, menor reconhecimento pela sociedade e mesmo na academia. Ao se afirmar historicamente essa dimensão, é importante ressaltar a capacidade dos camponeses de formular um projeto de vida, de resistir às circunstâncias nas quais estão inseridos e de construir uma forma de integração à sociedade. Essas são práticas que têm um caráter inovador ou que revelam grande capacidade de adaptação e de conquistas de espaços sociais que lhes são historicamente inacessíveis. Consideramos necessário registrar e reconhecer as vitórias, por mais invisíveis que sejam. Por último, há uma terceira dimensão, também pouco reconhecida, até mesmo entre os acadêmicos, que consiste na valorização da forma de produzir do camponês. Esta se traduz pela adoção de práticas produtivas (diversificação, intensificação etc.), formas de uso da terra, relações com os recursos naturais etc. Formam-se, assim, os contornos de um saber específico que se produz e se reproduz contextualmente. É claro que o campesinato não se esgota na dimensão de um métier profissional, nem a ela corresponde um modelo imutável, incapaz de assimilar mudanças, mas é imprescindível para que se possa compreender seu lugar nas sociedades modernas. Sua competência, na melhor das hipóteses, é um trunfo para o desenvolvimento “de uma outra agricultura” ou para a perseguição da sustentabilidade ambiental e social como valor. E, na pior das hipóteses (para não idealizar a realidade), um potencial que poderia ser estimulado na mesma direção. Não é sem conseqüência que sua existência seja hoje tão exaltada como um dos pilares da luta pela reconstituição dos inerentes princípios de reprodução da natureza, tão subsumidos que estiveram e continuam estando a uma racionalidade técnica, em certos casos exagerada pela crença em uma artificialização dos recursos naturais reproduzidos em laboratórios e empresas industriais. Ora, os princípios de constituição e expansão do capitalismo desconhecem e desqualificam essa competência. Do ponto de vista político, a negação dessa dimensão, tanto à direita (que defende a grande propriedade como a única forma moderna ou modernizável) quanto à esquerda (que terminou enfatizando apenas a dimensão política da luta pela terra), tem como conseqüência a negação do camponês como agricultor. As políticas agrícolas chamadas “compensatórias” só reforçam a visão discriminadora. Em conclusão, reiteramos, por um lado, a universalidade da presença do campesinato, que abarca os diversos espaços e os diferenciados tempos. E também, por outro, a variedade de existências contextuais, visto que essa variedade só indica a valorizada adaptabilidade dos agentes e dos princípios abrangentes de constituição da forma camponesa. Portanto, mesmo que corresponda à revalorização de uma tradição (patrimônio de valores institucionalizados nas memórias e na projeção social), a reprodução do campesinato nas sociedades contemporâneas é um fato social do mundo 16

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

moderno, e não resquício do passado. Por essa perspectiva, ultrapassa-se a velha e surrada concepção unilinear da inexorável decomposição do campesinato. Como os processos históricos têm demonstrado, ela não é tendência geral ou lei inevitável. Em vez dessa concepção, que, reafirmando a substituição das classes fundamentais, augura (e até vaticina) o fim do campesinato, escolhemos pensar e registrar as múltiplas alternativas, resultado de conquistas e resistências de atores sociais que se referenciam a um modo de produzir e viver coexistente com um mundo moderno. Entrementes, é nesse mesmo mundo, cujos analistas vêm acenando (e, por que não, também vaticinando) com o desemprego em massa como princípio de constituição econômica, em que a diversidade cultural é reafirmada para fazer frente a uma vangloriada homogeneização política e cultural, que os camponeses se reorganizam em luta. Por essa conduta clamam exatamente pela manutenção da autonomia relativa, condição que o controle dos fatores de produção e da gestão do trabalho pode oferecer. Conselho Editorial

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PREFÁCIO

Apresentamos aos leitores – especialmente aos militantes camponeses, aos interessados e aos estudiosos da questão camponesa no Brasil – uma obra que é o resultado de um fantástico esforço intelectual e coletivo. A elaboração da História Social do Campesinato no Brasil envolveu grande número de estudiosos e pesquisadores dos mais variados pontos do país, num esforço conjunto, planejado e articulado, que resulta agora na publicação de dez volumes retratando parte da história, resistências, lutas, expressões, diversidades, utopias, teorias explicativas, enfim, as várias faces e a trajetória histórica do campesinato brasileiro. A idéia de organizar uma História Social do Campesinato no Brasil aflorou no fim de 2003, durante os estudos e os debates para a elaboração de estratégias de desenvolvimento do campesinato no Brasil que vinham sendo realizados desde meados desse ano por iniciativa do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), com envolvimento, em seguida, da Via Campesina Brasil, composta, além de pelo próprio MPA, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), pela Pastoral da Juventude Rural (PJR), pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab). Essa idéia foi ganhando corpo quando se envolveram, primeiro, o pesquisador Horácio Martins de Carvalho e os pesquisadores Delma Pessanha Neves, Márcia Maria Menendes Motta e Carlos Walter Porto-Gonçalvez, que decidiram, em reunião nas dependências da Universidade Federal Fluminense (UFF), no início de 2004, com dirigentes da Via Campesina, lançar o desafio a outros tantos que se dedicam ao tema no Brasil. O resultado foi o engajamento de grande número de pesquisadores, todos contribuindo de maneira voluntária. Foram consultadas cerca de duas centenas de pesquisadores, professores e técnicos para verificar se a pretensão de elaborar uma História Social do 19

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Campesinato no Brasil tinha sentido e pertinência. A idéia foi generosamente aceita, um Conselho Editorial foi constituído, muitas reuniões foram realizadas, os textos foram redigidos e o resultado é a publicação destes dez volumes da Coleção História Social do Campesinato no Brasil. Nesta Coleção apresentamos diversas leituras sobre a história social do campesinato no Brasil. Nossa preocupação com os estudos sobre o campesinato se explica pelo fato de, na última década, ter havido um avanço dos trabalhos que promoveram os métodos do ajuste estrutural do campo às políticas neoliberais. Nessa perspectiva, a realidade do campo foi parcializada de acordo com os interesses das políticas das agências multilaterais que passaram a financiar fortemente a pesquisa para o desenvolvimento da agricultura. Esses interesses pautaram, em grande medida, as pesquisas das universidades e determinaram os métodos e as metodologias de pesquisa com base em um referencial teórico de consenso para o desenvolvimento da agricultura capitalista. Desse ponto de vista, o campesinato tornou-se um objeto que necessita se adequar ao ajuste estrutural para que uma pequena parte possa sobreviver ao intenso processo de exploração e expropriação do capitalismo. Poucos foram os grupos de pesquisa que mantiveram uma conduta autônoma e crítica a essa visão de mundo em que o capitalismo é compreendido como totalidade e fim de todas as coisas. Nesse princípio de século, o conhecimento é ainda mais relevante como condição de resistência, interpretação e explicação dos processos socioterritoriais. Portanto, controlá-lo, determiná-lo, limitá-lo, ajustá-lo e regulá-lo são condições de dominação. Para criar um espaço em que se possa pensar o campesinato na história a partir de sua diversidade de experiências e lutas, a Via Campesina estendeu o convite a pesquisadores de várias áreas do conhecimento. Quase uma centena de cientistas responderam positivamente à nossa proposta de criar uma coleção sobre a história do campesinato brasileiro. Igualmente importante foi a resposta positiva da maior parte dos estudiosos convidada para publicar seus artigos, contribuindo com uma leitura do campesinato como sujeito histórico. O campesinato é um dos principais protagonistas da história da humanidade. Todavia, por numerosas vezes, em diversas situações, foram empreendidos esforços para apagá-lo da história. Esses apagamentos ocorrem de tempos em tempos e de duas maneiras: pela execução de políticas para expropriá-lo de seus territórios e pela formulação de teorias para excluí-lo da história, atribuindo-lhe outros nomes a fim de regular sua rebeldia. Por tudo isso, ao publicar esta importante obra, em nosso entender, de fôlego e profundidade, queremos fazer quatro singelos convites. 20

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Convite à Leitura Esta obra merece ser lida pela riqueza de informações, pela abrangência com que aborda o tema e pela importância da história social do campesinato para compreender o Brasil. Convite ao Estudo Além da mera leitura, é uma obra que deve ser estudada. É preciso que sobre ela nos debrucemos e reflitamos para conhecer esse tema em profundidade, quer em escolas, seminários, grupos de estudo, quer individualmente. Esta Coleção é um desafio, pois retrata uma realidade que, aqueles que estiverem comprometidos em entender o Brasil para transformá-lo, precisam conhecer profundamente. Convite à Pesquisa Esta obra, composta de dez volumes, é fruto e resultado de muita disciplinada e dedicada pesquisa. É, portanto, desafio a mais investigações e a que outros mais se dediquem a esses temas. Embora uma obra vasta, com certeza mais abre do que encerra perspectivas de novos estudos, sob novos ângulos, sobre aspectos insuficientemente abordados, sobre realidades e histórias não visibilizadas, com enfoques diferenciados. Há muito que desentranhar da rica e variada história social do campesinato brasileiro, e os autores desta obra sentir-se-ão imensamente realizados se muitas, rigorosas, profundas e novas pesquisas surgirem estimuladas por essa sua importante iniciativa. Convite ao Debate Esta não é uma obra de doutrina. E mesmo as doutrinas devem ser expostas ao debate e ao contraditório. Quanto mais uma obra sobre a história. Convidamos ao debate dos textos, mas, além disso, ao debate sobre o sujeito social do qual a Coleção se ocupa: o campesinato e sua trajetória ao longo da história do Brasil. E que esse não seja um debate estéril ou esterilizante que se perde nos meandros da polêmica pela polêmica, mas que gere ações na sociedade, nas academias, nos centros de pesquisas e nas políticas de Estado em relação aos camponeses e ao mundo que os circunda e no qual se fazem sujeitos históricos. A Via Campesina do Brasil reconhece e agradece profundamente o trabalho árduo e voluntário dos membros do Conselho Editorial e de todos os envolvidos no projeto. Sem o desprendimento e o zelo desses professores, sem essa esperança renovada a cada dia pelas mais distintas formas e motivos, sem a acuidade acadêmica, o cuidado político e a generosidade 21

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de todos os envolvidos não teríamos alcançado os resultados previstos. De modo especial nosso reconhecimento ao professor Horácio Martins de Carvalho. Agradecemos também ao Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead), do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Ao promover estudos e pesquisas sobre o universo rural brasileiro o Nead viabilizou, com a Editora da UNESP, a publicação desta Coleção. A Via Campesina experimenta a satisfação do dever cumprido por ter participado desta importante iniciativa, desejando que se reproduza, se multiplique e gere frutos de consciência, organização e lutas nas bases camponesas em todo o território nacional. Via Campesina do Brasil agosto de 2008.

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INTRODUÇÃO A DIVERSIDADE DAS FORMAS DAS LUTAS NO CAMPO

As lutas camponesas são sinais da resistência do campesinato contra a desterritorialização. Compreendendo o território como espaço de realização da vida em suas diferentes dimensões (econômicas, sociais, culturais, políticas etc.), entende-se melhor não só a existência de diferentes formas que o campesinato assume, como também a diversidade de lutas verificadas no campo, com o sentido de garantir a existência dessa categoria social num contexto em que ocorre intenso processo de expropriação. Para resistir a esse processo, o campesinato procura se reterritorializar de diversas formas, que se modificam, avançam ou refluem conforme as conjunturas econômicas, sociais e políticas. No presente volume, o segundo do tomo Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas da História Social do Campesinato, estão reunidos quinze artigos que recuperam e atualizam leituras de algumas das formas de resistência e de recriação do campesinato, desde a década de 1980 até o começo do século XXI. Com eles, buscamos oferecer um panorama das lutas recentes. Embora muito longe de ser exaustivo (e o leitor facilmente poderá identificar ausências), trata-se de uma contribuição para a compreensão das mudanças, permanências, criação e diversidade não só das formas de lutas camponesas, mas também dos sujeitos e suas organizações. Buscamos oferecer também uma diversidade de leituras e abordagens, abrigando perspectivas sociológicas, geográficas, históricas e antropológicas, com distintas inspirações teóricas presentes no meio acadêmico contemporâneo, de forma a ampliar os horizontes possíveis para a análise das formas de luta e organização, e não nos prendermos a uma única chave interpretativa. Desde o final dos anos 70, as lutas no campo tiveram um papel central tanto no processo de redemocratização do país, quanto para colocar na pauta política temas que muitos consideravam desatualizados (caso da reforma agrária) ou questões que emergiam de forma embrionária (a preservação ambiental). Foram elas, ainda, que deram visibilidade a segmentos sociais 23

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que, embora há muito presentes, não apareciam na cena como sujeitos políticos (os chamados “pequenos agricultores”, “camponeses” ou “produtores em base familiar”), e que permitiram a emergência e o reconhecimento de demandas relacionadas à extensão de direitos de cidadania (igualdade de gênero, direito à aposentadoria, uma educação voltada para os assentamentos rurais, num primeiro momento, e, depois, para as demais populações do campo, mas que tivesse em conta as especificidades desse meio etc.). Nesses anos, como resultado dessas lutas, constituíram-se identidades múltiplas, que afirmam a diversidade de situações e demandas: seringueiros, quebradeiras de coco, ribeirinhos, sem-terra, agricultores familiares, quilombolas, assentados, atingidos por barragens; são apenas indicativos da emergência política de uma infinidade de segmentos que buscam afirmar suas particularidades e reivindicações no espaço público, e obter reconhecimento social e político. Em razão de sua força, expressa na capacidade de mobilização e organização, retoma-se o debate em torno da questão fundiária; a preservação ambiental e a sobrevivência das populações “tradicionais” entram na agenda; afirma-se o significado econômico dos que sobrevivem com base na agricultura familiar (tendo ou não propriedade da terra), ganhando visibilidade o seu papel na produção para os mercados locais, regionais e nacionais; questionam-se as relações domésticas e afirma-se a necessidade de convivência de várias culturas. Esse processo foi marcado por tensões e enfrentamentos, que estiveram presentes desde as grandes manifestações públicas (as marchas dos sem-terra, das Margaridas, os Gritos da Terra Brasil, entre outras), até as relações no interior da família. Recorrentemente, a emergência desses novos sujeitos teve como contrapartida a violência, tanto a tradicional, caracterizada pelas ações das milícias privadas, quanto a judicial e policial, por meio de despejos, repressão, prisões etc. Essas manifestações, bem como os conflitos que elas espelham, são elementos importantes para entender algumas disputas que permeiam a política brasileira, nem sempre ganhando visibilidade na mídia. Elas provocam a necessidade de explicitar propostas, tiram do silêncio os adversários, produzem polarizações de posições, desvendam poderes. É esse universo que buscamos abordar neste volume, embora, como já dito anteriormente, de forma parcial, uma vez que seria impossível recobrilo em sua totalidade. Apresentamos artigos derivados de pesquisas nas diferentes regiões do país. Nelas, as formas e os espaços das diversidades são tratados a partir de estudos sobre ocupações de terra e acampamentos, valorizando o papel das redes de relações de parentesco, solidariedade e conflitualidade, por meio das quais os sujeitos em movimento constroem suas organizações. Também incluímos artigos que revelam frestas e faces pouco abordadas, como os que esmiúçam os casos de ex-moradores de rua que, no processo de luta social, se tornaram camponeses, bem como textos sobre situações mais conhecidas, como é o caso da luta pela terra 24

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

em Eldorado dos Carajás. Ainda neste volume discute-se o protagonismo das mulheres na formação e reprodução do campesinato; as políticas de acesso à terra por meio da criação de políticas de incentivo ao mercado fundiário; as organizações criadas no processo de luta, como a Articulação do Semi-Árido (ASA) e o sindicalismo rural, por meio da Contag. Fechando o volume, a conflitualidade e a violência são abordadas numa perspectiva geográfica, mostrando que as lutas de resistência têm enfrentado diferentes formas de brutalidade, como expulsões, despejos, ameaças e assassinatos. O primeiro artigo, de autoria de Anita Brumer, aborda a retomada das lutas camponesas durante a ditadura militar, centrando-se nos principais eventos do período 1978-88 na Região Sul do país e interpretando-os como produto do contexto no qual surgem diferentes reações dos atingidos e marginalizados pela modernização tecnológica, concomitante ao desenvolvimento industrial no campo e na cidade. A luta pela terra é analisada a partir da expulsão dos posseiros da Reserva Indígena de Nonoai, no Rio Grande do Sul, em maio de 1978, deflagrando intensos conflitos na região e tornando-se um marco no processo de redemocratização do país. A partir dessa referência, a autora se volta para a discussão da questão agrária no quadro político da época, salientando a importância do sindicalismo, seja de trabalhadores ou patronal, o surgimento de novas formas de organização como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a União Democrática Ruralista (UDR), bem como os embates derivados. A autora também discute a formação da Comissão Regional dos Atingidos pelas Barragens (CRAB), as lutas dos “pequenos produtores” em defesa de melhores preços para seus produtos, com o objetivo de garantir ou aumentar suas rendas. Finalmente, são tratadas as lutas das mulheres agricultoras para serem beneficiárias diretas da Previdência Social, seminais para o processo subseqüente de organização das mulheres no campo. Ao longo do texto, Brumer procura apontar impasses e contradições que se geraram no interior desse processo, produzindo uma leitura problematizadora, que aponta as potencialidades que as lutas analisadas carregavam. Na seqüência, são apresentados artigos que analisam acampamentos e seu significado como forma de luta, tanto para obter acesso à terra, quanto pela melhoria das condições dos agricultores. As ocupações e acampamentos são abordados por Lygia Sigaud como fatos relativamente recentes, produtos de uma nova configuração social. Estudando ocupações nas terras de engenhos da Zona da Mata de Pernambuco, a autora discute o acampamento a partir de sua forma de organização, tempo de existência e as relações produzidas desde esse espaço. Sigaud analisa a “forma acampamento” como um modo de pressionar o governo a realizar desapropriações, mostrando que, do total de dezesseis áreas desapropriadas nos municípios de Formoso e Tamandaré, sua área de estudo, catorze delas haviam sido previamente ocupadas. Ela demonstra também como as ações do MST estimularam o 25

Introdução

sindicalismo de trabalhadores rurais, por meio da Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco (Fetape), a realizar ocupações, o que ampliou a luta pela terra no estado. Pela descrição de situações em que se explicita a diversidade de motivações para acampar e as relações construídas, a compreensão desse processo é enriquecida e complexificada. Segundo a autora, a crença na importância da lona preta para a melhoria das condições de vida dos sem-terra mostra que os acampamentos também se constituem em um ato fundador e legitimador da luta, uma linguagem simbólica, pela qual os sem-terra conseguem fazer avançar as negociações para a criação de assentamentos de reforma agrária. Para além da retórica belicosa, ela encontra ações de cooperação e dependência entre Estado e movimentos, marcadas, no entanto, pela tensão permanente. Na ampla e profunda análise de Sigaud explicita-se a rede de relações de compromissos e obrigações, fundamentais na formação dos acampamentos. Apresentado-as, a autora mostra os equívocos das leituras de investigadores que traduzem essas redes numa lógica linear de relações de autoritarismo entre acampados e lideranças. A tese da importância das redes de parentesco e conhecimentos prévios é reiterada no artigo de Nashieli Loera, que estuda as formas de participação das famílias nas ocupações e acampamentos em São Paulo. Relações de compromisso são construídas e incorporadas pelo MST no fazer-se em movimento das pessoas que participam dos diversos setores, comissões e núcleos dos acampamentos de luta pela terra. Loera registra diversas formas de apoio ou ajuda entre os assentados, que contribuem, coletiva ou individualmente, levando alimentos aos acampados. São parentes e amigos que criam uma relação de solidariedade fundamental para ajudar a suportar as severidades da resistência nos acampamentos. A importância das relações de consangüinidade, dos vínculos de amizade e dos valores morais é destacada, mostrando, nas comparações entre acampamentos e assentamentos, a presença de trocas de bens que levam a autora a evocar o Kula malinowskiano. Marcelo Rosa, na mesma trilha dos dois textos anteriores, analisa o que chama de “forma movimento”, valendo-se do estudo de algumas situações em Pernambuco e um caso no estado do Rio de Janeiro. O fio condutor de sua discussão é a tese de que as lutas dos movimentos sociais, ao contrário do que pretende Axel Honnet, não são por reconhecimento e tampouco são lutas que revelam, antes de qualquer coisa, sentimentos de injustiça, como pretende Barrington Moore Jr. Segundo o autor, é o reconhecimento que produz a própria existência social das lutas. Analisando o embate entre movimento e Estado, Rosa defende a existência de uma legitimação ambivalente do conflito que, ao mesmo tempo que permite a interlocução, reconstitui o poder estatal de controle e emprego da força (seja burocrática ou física). O texto também aponta os meandros da produção social desse 26

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

reconhecimento, mostrando que, entre a ocupação e a abertura do diálogo com o Estado, há várias mediações que precisam ser conhecidas nas suas particularidades para evitar interpretações apressadas e generalizantes. É nesse quadro que surgem diferentes “movimentos”, como formas de conseguir estabelecer um diálogo em situações nas quais ele aparece aos atores de maneira truncada. O artigo de William Santos de Assis, sobre os acampamentos em Marabá, no estado do Pará, mostra uma luta pouco estudada: o acampamento como forma de enfrentamento entre as organizações representativas dos camponeses da região e o governo federal; no caso, o embate que colocou de um lado a regional da Federação dos Trabalhadores da Agricultura e o MST e, do outro, a Superintendência de Marabá do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Trata-se de entender o sentido dessas mobilizações, que trouxeram à cidade, um pólo regional, milhares de agricultores para negociar uma ampla pauta de reivindicações, envolvendo os sem-terra e os já assentados: desapropriação de novas áreas, mudança de gestores do Incra, crédito, assistência técnica, recursos para capacitação e educação etc. O autor detalha a preparação dos acampamentos, as demandas, a complexidade das relações políticas no plano local, com o governo estadual e com o poder federal, ao mesmo tempo em que mostra como a ação conjunta entre MST e Fetagri Regional, apesar de divergências pontuadas ao longo do texto, foi importante para o reconhecimento das demandas. Marcelo Gomes Justo trabalha um tema pouco explorado na literatura: a transformação de ex-moradores de rua em camponeses, tomando como ponto de partida as experiências do MST e da organização pastoral católica Fraternidade Povo da Rua, no bairro do Brás, próximo ao centro da cidade de São Paulo. As ações dessas entidades levaram ao engajamento de moradores de rua na luta pela terra e a um esforço de ressocialização desses excluídos pelo modo capitalista de produção. O autor analisa as relações e os conflitos verificados em um assentamento no interior paulista, formado por esses ex-moradores de rua vindos da cidade de São Paulo, e por famílias de demandantes de terra, que vieram de municípios das regiões de Campinas e Sorocaba. O estudo se volta para a constituição de redes sociais e de conflitos internos em torno das formas de gerir a produção e utilizar os recursos, tendo sempre por referência esses dois grupos de assentados. Ao longo do texto, Justo discute o que é ser camponês, tentando entender as potencialidades da situação particular gerada naquele assentamento e a natureza dos conflitos engendrados. Na seqüência, Luciana Costa dá um panorama das lutas de posseiros em Eldorado dos Carajás, Pará, município que se tornou conhecido em razão do massacre ocorrido em abril de 1996, quando dezenove membros do MST foram assassinados pela Polícia Militar durante uma marcha que reivindicava reforma agrária. No artigo, tendo por base conflitos ocorridos 27

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em três fazendas, são analisadas a expropriação e a resistência dos posseiros para permanecer na terra. Trabalhando com as categorias utilizadas pelos entrevistados (“velhos posseiros”, “novos invasores”, “cabeça de grilo” e “fazendeiro”), a autora mostra o complexo jogo que se estabelece entre esses personagens e delineia tanto o perfil dos fazendeiros locais, o significado das ocupações de terra, o papel das madeireiras, as disputas em torno da responsabilidade sobre o desmatamento, quanto a forma como esses agentes se percebem e constroem suas relações e oposições num universo dominado pela violência. Costa chama atenção para o fato de que é pelo conflito que os posseiros reivindicam o reconhecimento de seus direitos à terra, direitos fundados no trabalho e nas marcas de sua ocupação. Os três artigos seguintes apresentam uma reflexão sobre o lugar das mulheres que, pelas suas ações, vêm superando posições subalternas nas relações sociais. No primeiro deles, Maria Ignez Paulilo analisa o protagonismo, no trabalho e na família, de mulheres organizadas no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), em especial no que se refere à peculiaridade de suas reivindicações de teor feminista. A partir de discussões sobre matrimônio, família e trabalho, a autora chama atenção para temas como dificuldade de acesso à terra pelas mulheres, repressão sexual, participação nos espaços públicos, trazendo à tona diferentes elementos para se entender as implicações e a continuidade das desigualdades de gênero. Debatendo as relações entre gênero e classe social, e utilizando-se de vasto material de entrevistas com líderes dos movimentos estudados, aponta os desafios da conciliação entre a militância, a participação na vida pública e familiar, bem como a especificidade das reivindicações feministas. No texto seguinte, Sônia Schwendler discute a recriação das identidades de gênero e o papel da mulher na luta pela terra e na constituição do MST, apresentando as condições, dilemas e conquistas da participação feminina nos movimentos sociais. No mesmo diapasão do artigo anterior, aponta o paradoxo, ao mesmo tempo em que a participação das mulheres é ampliada pelas lutas, muitos dos espaços concebidos como femininos e masculinos ainda permanecem, marcados pela divisão sexual do trabalho, sustentados por uma cultura patriarcal e pelo modo de produção social. Segundo Schwendler, mesmo no MST, em que pese a forte presença do debate em torno das questões de gênero, as mulheres ainda enfrentam enormes obstáculos para a conquista da igualdade, nos espaços da luta social, do trabalho ou da vida familiar. Maristela de Paula Andrade trata da organização econômica e política das quebradeiras de coco de babaçu, no Médio Mearim, no Maranhão. Apresentando um histórico do processo de ocupação da área, e a forma como os camponeses foram progressivamente expropriados da terra e do acesso aos babaçuais para coleta do coco, a autora mostra como se constituiu a categoria política “quebradeiras de coco”, muito embora a luta tenha 28

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

envolvido homens, mulheres e crianças em estratégias de resistência, que incorporavam o conjunto das famílias, segundo valores, regras e padrões culturais que regem localmente as relações de gênero. Mostra ainda as condições de participação nas lutas pelo acesso aos babaçuais, que não envolveram, da mesma forma e na mesma medida, os diferentes segmentos camponeses existentes. Valendo-se de depoimentos de lideranças e de trabalhadores, enfatiza como se constitui a divisão sexual do que chama de trabalho guerreiro durante as lutas pela terra e pelo acesso aos babaçuais, num esforço de garantir a sobrevivência da unidade familiar. Aponta ainda como o tema “gênero”, inicialmente ausente, acaba sendo incorporado em função das relações com agentes de mediação. Os dois artigos seguintes tratam da reforma agrária de mercado. Nos anos 90, a questão da luta pela terra e por reforma agrária ganhou novas nuances, com a introdução, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, de propostas de estímulo ao acesso à terra por meio de mecanismos de mercado. O tema é tratado neste volume a partir de um estudo de caso em Sergipe, e por análise de caráter nacional das formas de resistência à proposta governamental. Eraldo da Silva Ramos Filho discute a reforma agrária de mercado como resultado de ajustamento à lógica neoliberal que, com a globalização, determinou a internacionalização de políticas públicas para o campo. Segundo o autor, com a difusão da concepção de alívio da pobreza rural e da substituição da questão agrária pelas políticas de desenvolvimento rural, foram implementadas diferentes modalidades de políticas de crédito fundiário. Analisa os problemas enfrentados pelos camponeses mutuários dos empreendimentos rurais adquiridos por meio dessa modalidade de financiamento, demonstrando a artimanha dessas políticas. Com essa estratégia, o campesinato viu ser minado seu poder de negociação política com o governo. O autor elucida o significado das políticas públicas neoliberais de recriação do campesinato por meio do capital, discutindo os impasses atuais como os produzidos pela criminalização das ocupações de terra. Conclui que não será pelo mercado que o Estado combaterá a pobreza, até porque esta é um produto da própria reprodução do capital. João Márcio Mendes Pereira analisa as contestações e resistências à reforma agrária de mercado proposta pelo Banco Mundial durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O autor aponta que, embora o tema da reforma agrária fosse inexpressivo durante a disputa eleitoral que resultou no primeiro governo FHC, ele entrou na pauta política principalmente pelas lutas dos movimentos camponeses. O massacre de Eldorado dos Carajás resultou numa tomada de posição do governo federal e na criação do cargo de ministro Extraordinário de Política Fundiária (MEPF) que, logo depois, originou o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O aumento das ocupações de terras provocou o aumento de assentamentos rurais. A 29

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criminalização das ocupações, por meio de medida provisória, e as disputas políticas entre as entidades de representação do campesinato possibilitaram o avanço do modelo de reforma agrária de mercado. O autor analisa os embates institucionais em torno da criação de diferentes formas de crédito fundiário. Segundo Pereira, a implementação da reforma agrária de mercado expressou um novo momento da questão agrária que exige repensar o próprio conceito de reforma agrária. Conclui que esses programas não conseguiram atender à demanda da luta pela terra e as ocupações de terra continuaram, como uma forma de enfrentamento das políticas vigentes. Uma característica das formas de luta e resistência no campo é a valorização das relações de compromisso entre pessoas e organizações, que se desdobram em redes e articulações. O tema é tratado no artigo de Ghislaine Duque, que nos apresenta uma leitura da história da Articulação do Semi-Árido (ASA), tendo como referência a experiência da Paraíba. Para a autora, essa entidade constitui-se como um espaço de contestação às tradicionais formas de apoio aos agricultores, baseadas no assistencialismo e no clientelismo. Dá relevo à atuação das organizações não-governamentais, que articularam um conjunto de ações, promovendo novas relações entre as pessoas e seus territórios. Assim, fundos rotativos solidários, bancos de sementes, encontros de comunidades, onde as experiências eram intercambiadas, e, finalmente, o programa Um Milhão de Cisternas tiveram um papel importante na mudança de compreensão da relação socioterritorial: a seca, que levava à desistência e à migração, torna-se motivo de resistência, pela busca de formas de convivência com o Semi-Árido. Ao mesmo tempo, a ASA construiu um processo pedagógico baseado em princípios como a garantia da participação e o resgate da auto-estima dos camponeses, valorizando suas práticas por meio da organização e da intervenção política, e deu importância à busca de formas de desenvolvimento sustentável em oposição às formas assumidas pelo agronegócio na região. O artigo registra os avanços dessas políticas na transformação das realidades das famílias camponesas, a territorialização da ASA no Nordeste, o maior território camponês do país, e a expansão de suas ações pela criação da ASA-Brasil. O artigo seguinte, de Rudá Ricci, discute o sistema sindical da Contag numa leitura histórica de sua formação e os desdobramentos com o surgimento de novas formas de organização do campesinato. O surgimento do MST, como a mais atuante organização camponesa do país e, depois, a criação da Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Fetraf-Brasil) são resultados da diversidade de formas do campesinato, mas também representam visões distintas sobre suas necessidades de organização e projetos políticos. O autor analisa a multiplicação de pautas e identidades tomando como referência as relações dos movimentos com outras instituições. Mostra ainda como as políticas de governo influem sobre as ações das organizações e de como estas pro30

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

duzem políticas. Os embates entre as organizações desenvolvem-se em aproximações e afastamentos que não permitem a construção de pautas conjuntas. Isso não significa fechar possibilidades, mas uma indeterminação na construção de políticas. Fechando o volume, Eduardo Paulon Girardi e Bernardo Mançano Fernandes destacam a geografia da conflitualidade no campo brasileiro, tomando como referência diferentes formas de conflitos e de violência a partir dos conceitos de território, movimentos socioterritoriais e agronegócio. Os autores mapeiam dois tipos de conflitos: ocupações e acampamentos, e seis formas de violência: despejos, expulsões, ameaças de morte, tentativas de assassinatos, assassinatos e trabalho escravo. Conceituando cada uma delas, os autores apresentam, por mapas e gráficos, a distribuição espacial e temporal dos fatos, o histórico e as tendências das diferentes formas de conflitualidade, possibilitando uma leitura em escala nacional. Além dos mapas, os gráficos possibilitam diversas leituras das territorialidades e temporalidades pelas quais os conflitos se manifestam. A partir de uma discussão paradigmática, Girardi e Fernandes analisam como essa conflitualidade fundamenta a disputa territorial entre campesinato e agronegócio e, conseqüentemente, entre os diferentes modelos de desenvolvimento. O conjunto dos textos do presente volume, expressando algumas faces da diversidade de lutas no campo, possibilita uma compreensão ampla de formas, relações, espaços, gêneros, tempos, escalas e modelos, revelando a complexidade da questão agrária e do campesinato. Permite aos leitores compreender que o tema é atual, intenso e que emerge a cada dia com novas possibilidades de criação. Mesmo enfrentando os lancinantes processos expropriatórios, as políticas de criminalização e as estratégias de controle político, os camponeses seguem construindo seu futuro, rompendo com as separações entre campo e cidade e buscando o direito de viver da terra, de produzir alimentos, de constituir suas comunidades. No interior da diversidade de formas de organização e de lutas camponesas surgiu, no começo da década de 1990, a Via Campesina, uma articulação mundial de movimentos camponeses que tem defendido a existência dos diferentes modos de organização do trabalho familiar, comunitário e associativo em diversas partes do mundo. O campesinato neste começo de milênio reafirma o seu lugar histórico no mundo como forma de organização social que se liga a um território determinado, onde a vida se reproduz. Bernardo Mançano Fernandes Leonilde Servolo de Medeiros Maria Ignez Paulilo

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1 CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA DÉCADA DE LUTAS SOCIAIS NO CAMPO NO EXTREMO SUL DO

BRASIL (1978-88)*

Anita Brumer

As lutas sociais no Brasil, tanto urbanas como rurais, ocorrem num contexto de grandes transformações socioeconômicas. A década de 1950 marca um intenso processo de industrialização, o qual se estende ao meio rural, a partir dos anos 60. De um lado, a industrialização toma corpo, e o setor desenvolve-se rapidamente; do outro, o setor rural, paralelamente a sua modernização, expulsa uma parte considerável da população. Essas transformações, de modo geral, propiciam aos grupos de média e alta renda da população brasileira o acesso a bens de consumo e serviços de melhor qualidade, mas levam à marginalidade ou ao setor informal da economia uma quantidade impressionante de pessoas. As vilas de malocas proliferam em ritmo crescente, a criminalidade aumenta e a miséria em que vive uma parte não negligenciável da população se torna cada vez mais evidente. Essas transformações não são realizadas sem que uma parcela dos atingidos por elas reaja. Ao mesmo tempo que o desenvolvimento industrial é acompanhado por greves e manifestações de operários, os anos 50 registram o aumento da violência no campo e o surgimento de organizações camponesas que lutam contra a expropriação ou as ameaças de expulsão feitas pelos proprietários de terras. Essas lutas sociais se intensificam no início dos anos 60, principalmente devido à crise econômica que acompanha as transformações. Em 1964, os militares tomam o poder e conseguem, com sucesso, controlar os sindicatos, os partidos políticos e a imprensa, bem como reprimir as manifestações dos oprimidos e descontentes. O controle e a repressão * Este texto foi originalmente publicado na revista Ensaios FEE (Porto Alegre), ano 11 (1), p.124142, 1990. Uma versão anterior foi apresentada no II Encontro Regional-Sul do Programa de Intercâmbio de Pesquisa Social na Agricultura, em Florianópolis, em maio de 1989.

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Considerações sobre uma década de lutas sociais

são facilitados entre 1968 e 1974, durante o período denominado “milagre brasileiro”, em que ocorre um crescimento industrial real e aumento das taxas de emprego urbano. A partir do final dos anos 70, no entanto, o país começa a sofrer os efeitos de uma nova crise econômica que vai se agravando e, até o presente, não mostra sinais de arrefecimento. A legitimidade do poder militar deteriora-se, voltando os civis ao poder em 1985, e as greves e outras lutas sociais recomeçam. A grande maioria das lutas registradas em todo o território nacional, a partir de 1978, apresenta como causa imediata a situação socioeconômica dos trabalhadores envolvidos, resultado do agravamento de suas condições de vida e da diminuição do ritmo de crescimento do emprego industrial. Geralmente, elas se voltam contra o Estado como oponente principal, essencialmente devido à ampliação de sua intervenção em todos os níveis da produção social; e ao fato de que, no capitalismo contemporâneo, cabe a ele oferecer os equipamentos de consumo coletivo à população como um todo, embora tenha assumido, no Brasil, um caráter essencialmente centralizador e excludente. Existem estudos específicos sobre quase todas essas lutas, o que possibilita um detalhamento empírico. São raros, entretanto, os estudos que procuram abrangê-las em seu conjunto, tratando de destacar os pontos que têm em comum e examinando seu alcance no sentido de transformação da realidade. A maior parte desses estudos se refere aos movimentos urbanos (Jacobi, 1987a e 1987b; Cardoso, 1983), sendo praticamente inexistentes os estudos mais teóricos sobre os movimentos rurais (constituindo exceção o trabalho de Grzybowski, 1987). O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre as principais lutas sociais registradas no meio rural do sul do Brasil a partir de 1978, levantando algumas questões que dizem respeito tanto à sua situação no presente como às suas perspectivas futuras. A principal contribuição do trabalho deriva do exame do conjunto das lutas sociais, o que permite a obtenção de uma visão realista de seu alcance em termos políticos, e de suas fraquezas e limites. Mais especificamente, a análise feita permite observar o confronto que se dá entre os diferentes grupos de interesses e comparar os resultados das lutas que colocam dois grupos opositores diretamente em conflito (latifundiários versus trabalhadores sem terra, homens versus mulheres) com lutas em que um grupo se coloca em oposição ao Estado. As lutas sociais no campo, que servem de base para essas reflexões, são pela manutenção (o caso da construção de barragens) ou pela obtenção de terra, pela defesa de preços de produtos e pela obtenção de direitos de cidadania (inclusão das mulheres como beneficiárias da Previdência Social). As questões sobre as quais se faz alguma reflexão são a organização do movimento de luta pela terra, a natureza das lutas, a influência dos agentes externos sobre as lutas sociais e a autonomia dos grupos em ação. 34

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

A LUTA PELA TERRA No Rio Grande do Sul, o primeiro movimento a registrar-se no final da década de 1970 foi a luta dos sem-terra, após a expulsão de mil famílias de posseiros da reserva indígena de Nonoai, em maio de 1978. Esse movimento teve um impacto considerável sobre a sociedade gaúcha que, repentinamente, foi colocada diante de um problema que fora levada a desconhecer. O movimento testou também a capacidade de resistência dos colonos (ou camponeses), muitos dos quais se instalaram precariamente, durante alguns meses, em acampamentos à beira da estrada. Provou, ainda, sua coragem e determinação, as quais levaram um grupo deles a invadir terras em litígio – a granja Brilhante, de 1.500 hectares, e a fazenda Macali, de 1.600 hectares, ocupadas de forma ilegal, cujo aproveitamento para fins de reforma agrária aguardava decisão da Justiça desde o início da década de 1960, organizando um acampamento durante vários meses, em 1978 e 1979 (Gehlen, 1983). Em outubro de 1980, os sem-terra acampados na granja Brilhante, que não foram contemplados pelo Estado com terra naquela região, invadiram a fazenda Annoni. Foram expulsos pela Brigada Militar, e oito dos invasores foram presos. Dois outros acampamentos seguiram-se: o de Encruzilhada Natalino, nos anos de 1981 e 1982, e o de Erval Seco, em 1983. Deve-se destacar o fato de que a decisão de invadir terras privadas vai de encontro a uma noção profundamente arraigada na mentalidade dos colonos: o respeito à propriedade privada. Essa noção só passa a ser desmistificada quando os colonos podem contrapor a idéia do que consideram um direito natural à “terra de trabalho”, relacionado ao direito à vida e à sobrevivência, o que traz, pelo menos num primeiro momento, a manutenção do respeito à propriedade privada, desde que ela seja utilizada de modo produtivo.1 De importância fundamental para a superação dessa noção foi a contribuição dos setores progressistas da Igreja Católica que, no início de 1980, na XVIII Assembléia Geral da CNBB, realizada em Itaici, condenaram a terra de exploração, da qual “... o capital se apropria para crescer continuamente, para gerar novos lucros...” e valorizaram a terra de trabalho, aquela “possuída por quem nela trabalha” (Silva, 1985a). O Estado não ficou passivo diante da ação dos sem-terra. As invasões de terras foram reprimidas pela polícia que, quando não obteve êxito na expulsão dos invasores, montou guarda nos acampamentos, atuando de forma repressiva, com ameaças e prisões. Promoveu, ainda, campanhas de persuasão e fez tentativas de desarticular o movimento de luta pela terra. A única proposta concreta para resolver o problema, feita pelo governo federal, foi a transferência para áreas de colonização no Mato Grosso ou na Amazônia, rejeitada pela maioria dos acampados. A recusa a essa so1

Ver, a esse respeito, a análise de Martins (1980 e 1981).

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Considerações sobre uma década de lutas sociais

lução deve-se principalmente ao fato de que uma parte considerável dos que emigraram para essas áreas retornou depois de algum tempo, porque, devido às grandes dificuldades de infra-estrutura a serem enfrentadas e aos problemas específicos referentes às condições de saúde e trabalho, somente os que detêm algum capital no início de sua instalação têm a chance de ser bem-sucedidos naquela região (Santos, 1985). Compelido, no entanto, a fazer alguma redistribuição de terras, em decorrência da ação dos sem-terra, o Estado (de início, no nível estadual e, após 1983, no nível federal) passou a comprar e, em alguns casos, a desapropriar terras, a fim de promover o assentamento de alguns dos sem-terra nas áreas de conflitos. Mais recentemente, em 1985, criou o Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (Procera), destinado à compra de equipamentos, insumos e animais e à construção de benfeitorias nos novos assentamentos. Essas medidas, no entanto, são certamente insuficientes, diante da grandeza do problema. Como os sem-terra não foram bem-sucedidos em 1988, durante a elaboração da nova Constituição Federal, em sua tentativa de obter a aprovação de uma lei geral de sustentação à reforma agrária, as conquistas do movimento dos sem-terra têm sido reduzidas e pontuais: isto é, com exceção dos originários das áreas desapropriadas para a construção de barragens, só são beneficiados por algum programa de distribuição de terras aqueles que participaram diretamente das invasões e/ou dos acampamentos. Isso leva a uma espécie de norma: embora essa não seja uma condição suficiente, é preciso participar individualmente das invasões para que um sem-terra possa ter a esperança de ser um dia beneficiado em algum plano governamental de distribuição de terras. Os líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estão conscientes dessa realidade, o que levou um deles a afirmar que as ocupações deverão proliferar com maior intensidade em 1989, porque “... agora, mais do que nunca, é a única alternativa que o agricultor tem de conseguir terra, já que a Constituição fechou todas as portas” (Zero Hora, 11/12/88, p.53). O sucesso relativo dos participantes dos primeiros acampamentos na obtenção de terras no Rio Grande do Sul foi um forte fator na diminuição da resistência de muitos sem-terra às invasões. Como resultado, a experiência relativamente exitosa dos acampamentos anteriores serve de estímulo para muitos sem-terra tentarem sua sorte da mesma forma. No entanto, na ausência de um plano geral de apoio à redistribuição de terras, cada acampamento é um caso individual, cuja luta também é individual; em cada caso, os participantes das lutas procuram novos caminhos e novas estratégias, visando tanto à obtenção de terras para os diretamente envolvidos, quanto a chamar a atenção da população em geral para a necessidade de uma reforma agrária. 36

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

É preciso registrar que uma das críticas que os participantes das lutas pela terra têm enfrentado é o fato de muitos dos beneficiários da distribuição de terras, após algum tempo, venderem os direitos de uso dessa terra a outros.2 Sabe-se muito pouco sobre a proporção dos que tomam essa atitude, bem como as motivações que levam alguns indivíduos a participar das lutas pela terra, objetivando, em princípio, a terra de trabalho, e, logo após, ao transferi-la a outros, utilizam-na como terra de negócio. A trajetória desses indivíduos, antes e depois do recebimento da terra, também não é conhecida. Pode-se supor que alguns deles utilizem a terra assim obtida como forma de acumulação de algum capital que lhes permita iniciar-se em outra atividade, não agrícola; alguns talvez vendam os direitos de uso dessa terra por não terem tido condições econômicas para iniciar uma exploração agropecuária, ou por se haverem endividado; também é possível que alguns utilizem esse capital para adquirir uma terra em melhores condições. O que é evidente, entretanto, é que assim como há alguém que vende, há alguém que compra, e esse comprador é, em geral, um indivíduo que vai se instalar na terra como pequeno produtor. Após as primeiras experiências de distribuição de terras, tanto os participantes das lutas como as organizações governamentais responsáveis têm tentado evitar o processo de venda das terras assim obtidas. Um dos resultados da determinação e capacidade de luta demonstrada pelos sem-terra nas invasões e nos acampamentos realizados no sul do Brasil foi a criação do MST, uma organização de defesa dos interesses da camada dos produtores que não detêm a propriedade da terra, a qual é independente e paralela à organização sindical. O MST foi estruturado em 1981, a partir do acampamento de Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta (RS), com o objetivo principal de lutar por uma reforma agrária “radical”. Embora sua força seja mais expressiva nos três estados do sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná), o MST está organizado em dezessete estados brasileiros. Ele é parcialmente financiado por recursos de entidades ligadas ao Conselho Mundial das Igrejas e é apoiado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), por alguns sindicatos de trabalhadores rurais das regiões onde a luta pela terra é mais intensa (principalmente aqueles considerados “oposição sindical”), pelo Partido dos Trabalhadores (PT), além de outras organizações. Apesar do apoio dessas organizações, o MST é cioso de sua autonomia e de seu caráter democrático, privilegiando, no seu interior, uma ampla participação nas decisões. Segundo um analista, mais recentemente se observa uma tendência para uma estrutura mais centralizadora no interior do MST (Navarro, 1988). No início de 1985, o MST organizou, em Curitiba, seu I Congresso Nacional. Em maio do mesmo ano, durante o IV Congresso da Confederação 2

Fato semelhante ocorre nas lutas pela habitação no meio urbano.

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Considerações sobre uma década de lutas sociais

Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) realizado em Brasília, foi definida mais claramente a posição do MST no que se refere à terra: ... exige-se a desapropriação não só dos latifúndios (produtivos ou não), mas também das empresas rurais; supera-se a proposta da propriedade familiar individual em favor de novas experiências que contemplam o uso comunitário e coletivo das terras; e as invasões de terras são legitimadas como um direito dos trabalhadores sem-terra para garantirem a sua sobrevivência. (Silva, 1985a)

As principais formas de luta do MST têm sido a invasão de terras e a criação de acampamentos; peregrinações aos gabinetes das autoridades estaduais e federais responsáveis pelos programas de reforma agrária e redistribuição fundiária; a tentativa de influenciar a redação da nova Constituição; e o apoio aos assentados em programas de distribuição de terras. Como resposta ao fracasso em obter a aprovação de uma lei sobre a reforma agrária na Constituição de 1988, a estratégia dos sem-terra pode mudar. Um dos líderes do MST, por exemplo, declarou que “... até aqui entrávamos na terra, montávamos acampamentos e ficávamos esperando as autoridades para negociar. Agora a disposição é entrar e se instalar” (Zero Hora, 11/12/88, p.53). Além disso, muitos dos líderes dos sem-terra apresentaram-se como candidatos nas eleições de 15 de novembro de 1988, resultando eleitos, segundo um membro do grupo, 97 vereadores e três prefeitos, além de já terem ajudado a eleger um deputado estadual, Adão Pretto, e um deputado federal, Antonio Marangon, pelo Partido dos Trabalhadores, nas eleições de 15 de novembro de 1986. A eleição desses parlamentares e executivos indica que suas estratégias poderão tomar novos rumos em 1993, quando a atual Constituição deverá ser revista. A participação dos sem-terra no poder, em regiões onde a questão da terra representa um problema central a ser resolvido, sugere alguns aspectos para reflexão. Por um lado, coloca-se a questão da continuidade do apoio, por uma autoridade constituída, a ações consideradas ilegais; por outro, coloca-se a questão da relação entre um governo municipal potencialmente controlado pelos sem-terra e os poderes estadual e federal. Trata-se, em resumo, de examinar a eficácia política dos sem-terra pelos canais legais de poder. É importante ressaltar que a organização paralela ao movimento sindical ocorreu num contexto em que a Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag), liderada pelos produtores familiares modernizados, assumindo uma posição que pode ser denominada “legalista” – defesa dos interesses de seus associados por meio legais –, não apoiou a ocupação de terras e, de um modo geral, somente passou a dar sustentação aos acampamentos já implantados após o crescimento do apoio popular ao movimento. Embora alguns sindicatos filiados à Fetag tenham 38

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

apoiado o movimento desde o início, os sem-terra não se sentem, via de regra, representados pelo conjunto do movimento sindical. A dificuldade que o sindicalismo gaúcho apresenta para defender os interesses dos sem-terra pode ser considerada uma das principais razões para o surgimento de uma organização alternativa. Questionam-se, assim, as razões para a incapacidade de o movimento sindical liderado pela Fetag promover a defesa dos trabalhadores sem-terra. Uma dessas razões pode estar na composição dos sindicatos em que trabalhadores assalariados, pequenos parceiros, ocupantes e proprietários, bem como produtores familiares modernizados que são empregadores, mesmo que em caráter eventual, estão reunidos numa mesma associação, com o predomínio, em número e poder econômico, destes últimos. Outra razão pode estar no caráter essencialmente assistencialista assumido pela maioria dos sindicatos de trabalhadores rurais, devido ao fato de terem sido encarregados pelo Estado da intermediação no que se refere à distribuição dos benefícios da Previdência Social. Outra razão, ainda, pode residir no caráter institucional do sindicato e na sua dificuldade de justificar, por esse motivo, diante do Estado, ações consideradas ilegais, tais como a invasão de terras. De forma semelhante, os grandes proprietários de terras, mesmo contanto com associações de defesa de seus interesses de classe – tais como a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), em nível estadual, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), em nível nacional, e a Sociedade Rural Brasileira (SRB), organização constituída em 1919, em São Paulo, a partir da cafeicultura, mas que apresenta atualmente um caráter mais abrangente –, criaram, em 1985, uma nova organização. Essa organização surgiu logo após a divulgação, durante o IV Congresso da Contag, da proposta do Mirad/Incra, órgãos do governo federal, para elaboração de um plano de reforma agrária do governo Sarney.3 Trata-se da União Democrática Ruralista (UDR), uma organização paralela ao movimento sindical, sem o caráter institucional das demais associações, o que possibilitou, além da utilização de instrumentos legais (pela contratação de uma equipe de assessores jurídicos que efetuam ações visando sustar desapropriações de terras, por exemplo), a execução de ações não permitidas legalmente (financiamento das campanhas de candidatos a cargos eletivos nas câmaras municipais, estaduais e federal e a cargos executivos, principalmente em nível municipal, além de sustentação de milícias armadas para defender terras dos membros da organização, no caso de ameaças de invasões). O 3

Poucos meses após a apresentação dessa proposta, o governo federal recuou, apresentando, em outubro do mesmo ano, o Plano Nacional da Reforma Agrária (PNRA), de alcance muito mais limitado do que a proposta anterior (ver, a esse respeito, FACHIN, 1985; SILVA, 1985a). Mesmo esse plano mais restrito, elogiado pelos latifundiários por ocasião de sua divulgação, acabou depois, em 1988, graças ao lobby desses mesmos latifundiários junto aos constituintes, sendo excluído da nova Constituição.

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fato de a UDR executar ações consideradas ilegais em defesa dos interesses de seus associados, não significa que essas práticas não fossem utilizadas pelos grandes proprietários de terras anteriormente à sua organização. Martins (1981), por exemplo, relata como essas práticas eram comuns entre os grandes proprietários. O novo, aqui, é que elas sejam assumidas por uma organização e não apenas praticadas individualmente. Como inexistem estudos aprofundados sobre as bases da UDR, formulam-se hipóteses distintas. Para uns, a base de sustentação da UDR dá-se em regiões onde a grande propriedade territorial é importante para fins especulativos (o que está, no Brasil, geralmente associado à pecuária extensiva), entre as quais pode-se incluir os estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Maranhão e Pará, sendo menos significativa em outras regiões, como no Rio Grande do Sul (onde, em 1985, menos de 1% dos estabelecimentos agrícolas possuíam mais de mil hectares).4 Os que sustentam essa hipótese consideram, no entanto, que, dados os recursos financeiros disponíveis às ações de rejeição à reforma agrária, a partir de uma postura geral neoliberal e antiestatista, a UDR consegue ter influência nacional, e seu poder manifesta-se mesmo nas regiões onde o número de pecuaristas é mais reduzido. Uma outra hipótese formula que a base de sustentação da UDR está nos setores capitalistas da agricultura.5 O elemento comum a ambas as hipóteses é a relação da UDR com os interesses ligados à grande propriedade territorial. É preciso destacar que a UDR, embora represente os interesses dos grandes proprietários de terras, capitalistas ou não, tem conseguido o apoio de médios e até mesmo de pequenos proprietários rurais. Seu sucesso, nesse sentido, deve-se principalmente ao fato de ter-se dirigido à questão da defesa da propriedade e feito apelo aos “defensores da livre iniciativa”, como princípios gerais, sendo bem-sucedida na campanha contra a reforma agrária, e, mais recentemente, por ter sido vencedora no lobby feito junto aos constituintes para a obtenção do perdão das dívidas contraídas pelos produtores rurais durante o Plano Cruzado, quando tanto os juros como os preços haviam sido congelados pelo governo federal. Ela pretende, assim, assumir o papel de verdadeira defensora dos interesses dos produtores rurais, grandes e pequenos. De acordo com Plínio de Arruda Sampaio, um dos mais importantes intelectuais brasileiros ligados à questão da reforma agrária, o sucesso dos latifundiários na sua pressão contra a reforma agrária deve-se a cinco fatores: (a) contam com o apoio da grande imprensa; (b) dispõem de recursos financeiros elevados para gastar no lobby anti-reforma; (c) estão umbilical4

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Tavares (1988), por exemplo, refere que a UDR foi criada em Goiás e que sua primeira diretoria nacional foi formada, basicamente, por pecuaristas do Centro-Oeste, São Paulo e Norte do país. Como Sampaio (1985), por exemplo.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

mente ligados a setores dinâmicos do capitalismo, de modo que conseguem neutralizar pressões reformistas de setores industriais e comerciais que só se beneficiariam com uma repartição mais eqüitativa da terra e da renda rural; (d) continuam a manter estreitos laços com a cúpula política do país; (e) apesar de suas divisões e disputas, eles souberam compor suas diferenças para fazer frente unidos à ameaça comum a todos. Ao mesmo tempo, enfrentando a má vontade dos meios de divulgação, os trabalhadores rurais não conseguem obter um apoio efetivo do operariado e das classes médias urbanas para sua causa, não obstante a adesão formal das cúpulas sindicais e de algumas entidades da sociedade civil. Pior do que isso: não conseguiram sequer forjar uma sólida unidade na luta pela reforma. (Sampaio, 1985, p.3)

Embora o Estado assuma o caráter de “poder decisório supremo” no que diz respeito à luta pela terra, o surgimento da UDR e a oposição direta que essa organização passou a fazer ao MST, bem como as ações legais e ilegais que desenvolve na defesa da propriedade da terra, evidenciam que a luta pela terra se dá num verdadeiro contexto de luta de classes. A invasão da fazenda Santa Elmira, situada entre o Salto do Jacuí e Tupanciretã, no Rio Grande do Sul, em março de 1989, por cerca de 3 mil trabalhadores sem terra, tornou evidente o confronto direto entre estes (liderados pelo MST) e os grandes proprietários (organizados pela UDR). Logo após a invasão, segundo relato da imprensa estadual, a UDR acantonou mais de duzentos homens armados na fazenda (Zero Hora, 12/3/89, p.36). No desenrolar dos acontecimentos, a presteza com que os soldados da Brigada Militar entraram na área e expulsaram os invasores, brandindo justificativa legal e partindo para a luta armada, na qual vários sem-terra ficaram feridos e 22 foram presos, considerados líderes da invasão (entre os quais, um padre), demonstrou que o Estado está pronto para defender a lei, em apoio aos grandes proprietários de terras. Além disso, ficou evidenciada a polarização e iminência de um conflito mais agudo; mostrando sua determinação para a defesa de seu patrimônio, o presidente da UDR afirmou que, embora a associação procure resolver os conflitos por meio da Justiça, está pronta para o confronto “se for necessário” (Zero Hora, 14/3/89 p.50).

A LUTA CONTRA A CONSTRUÇÃO DE BARRAGENS Outra forma de luta pela terra, visando a sua conservação diante da ameaça de desapropriação para a construção de barragens, tem também agitado os estados do sul do país desde o final dos anos 70. No estado do Paraná eclodiu, entre 1978 e 1981, o movimento Justiça e Terra, dos agricultores expropriados pela barragem de Itaipu (Germani, 1982). No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, a mobilização dos agricultores seguiu-se 41

Considerações sobre uma década de lutas sociais

imediatamente ao anúncio de um projeto governamental com o objetivo de construir 22 barragens na região do Alto Uruguai, para as quais seria necessária a desapropriação de cerca de 45 mil hectares e o desalojamento de uma grande quantidade de agricultores, muitos dos quais dificilmente fariam jus a alguma indenização por não possuírem títulos de propriedade das terras que ocupavam. Os agricultores formaram a Comissão Regional dos Atingidos pelas Barragens (Crab) e, em abril de 1989, organizaram o I Encontro Nacional dos Atingidos por Barragens. Nas lutas contra a construção de barragens coloca-se, de um lado, uma população relativamente heterogênea – embora a maioria sejam agricultores –, residente na área da barragem, e, de outro, o Estado, claramente identificado como representante de interesses financeiros e industriais. De início, os participantes das lutas questionavam, principalmente, a forma de uma compensação econômica, e considerada justa por eles, que levasse em conta não apenas a indenização das benfeitorias e da “propriedade da terra”, mas também o direito de “uso da terra”; posteriormente, a partir da intervenção de agentes externos nos estudos e discussões sobre o impasse, passaram a questionar também a, possivelmente, exagerada amplitude do programa e, até mesmo, a eletrificação baseada em barragens, devido aos custos sociais que ela acarreta. A organização das lutas beneficiou-se tanto de experiências anteriores, como a que se deu por ocasião da construção da barragem do Passo Real (RS), em 1970, e da construção da barragem de Itaipu (PR), em meados da década de 1970 – nas quais muitos dos agricultores desapropriados não puderam obter terras equivalentes às que perderam –, como de mobilizações ocorridas pela obtenção de terra e das lutas pela defesa dos preços dos produtos agropecuários, ocorridas na mesma região. Desde o início da mobilização, verifica-se a ação da Igreja, por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Graças a sua articulação às CEBs, a organização dos participantes das lutas foi feita em torno de núcleos locais e municípios e de uma comissão coordenadora. Além disso, como indica Grzybowski (1987, p.28-9), os grupos “... desenvolveram formas de democracia de base e ação direta, dando grande capacidade de mobilização e respaldo às lideranças”. A mobilização conta com o apoio dos sindicatos de trabalhadores rurais, embora tenha autonomia em relação a eles. As ações efetuadas são fundamentalmente “legais”: resistência a deixar a terra, reuniões, envio de correspondência a ocupantes de postos governamentais importantes, entre outras; em resumo, trata-se, antes de mais nada, de ações cujo objetivo principal é chamar a atenção dos meios de comunicação e do público, visando pressionar as autoridades. Apesar da motivação e do esforço da população ameaçada de expulsão, não se pode dizer que sua mobilização tenha sido bem-sucedida. Se 42

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há algum atraso na construção das barragens em relação ao cronograma oficial, ele se deve mais a causas financeiras do que à mobilização da população envolvida. No entanto, algumas “conquistas” das lutas ocorridas em torno dos projetos de construção das barragens no Rio Uruguai podem ser mencionadas: o reconhecimento, pelo Estado, dos representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens do Uruguai e a sua inclusão em grupos de estudo, visando a busca de soluções para a população atingida; e a promessa, nem sempre cumprida, de atendimento de algumas de suas reivindicações, referentes, principalmente, a reassentamento em outra área e prazos para pagamento das indenizações.6 Semelhantemente, como mostrou a análise das lutas sociais ocorridas no estado do Paraná após 1978, a conquista principal foi “a recuperação do inconformismo e do espaço público para sua manifestação pelas camadas populares” (Ferreira, 1987, p.48). Tanto a luta pela conservação como a luta pela obtenção da terra têm como justificativa a resistência à expulsão provocada pela modernização e pela crescente capitalização da agricultura brasileira. Simultaneamente, cresce, entre os trabalhadores do campo, a consciência de seus direitos e a decisão de lutar por seus interesses de classe. Suas lutas consistem, também, numa recusa à proletarização, tanto no meio rural quanto no meio urbano. Contudo, tendo em vista o exemplo de países desenvolvidos – onde, de um modo geral, menos de 10% da população ativa total permaneceu na agricultura, e as migrações do campo para a cidade não foram acompanhadas de lutas dos desapropriados do meio rural para permanecer na terra – e a situação vivenciada no Brasil no início da década de 1970, em que se verificou o aumento das taxas de emprego industrial, ao mesmo tempo que as lutas no campo eram reduzidas, em grande parte, devido à repressão imposta pelo regime militar, parece evidente que, em muitos casos, essa resistência à exclusão ou recusa à proletarização não seria tão forte caso as possibilidades de inserção econômica dos imigrantes do campo, nos setores secundário e terciário, fossem maiores.

AS LUTAS PELA DEFESA DOS PREÇOS DOS PRODUTOS AGROPECUÁRIOS Registraram-se também, no Rio Grande do Sul, a partir de 1978, diversas ações de protesto de pequenos produtores rurais (às vezes, com eles, médios e grandes produtores), visando, principalmente, a obtenção de melhor remuneração para seus produtos (e, em conseqüência, para seu trabalho). 6

Ver Scherer-Warren e Reis (1989) a esse respeito.

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Destacam-se as ações de produtores de uva e de fumo, dependentes da estrutura agroindustrial, reivindicando melhor classificação e preços para esses produtos e pagamento à vista ou corrigido pelos índices de inflação; a mobilização dos produtores de soja, em 1980, pleiteando o fim do confisco cambial a que a soja exportada havia sido submetida visando a proteção da indústria nacional; o protesto dos criadores de suínos, em 1981, com o objetivo de obter melhor preço e políticas mais favoráveis ao produto; o movimento dos produtores de leite em 1982 e anos seguintes, requerendo melhores preços e colocando em xeque os interesses dos produtores, dos intermediários (principalmente transportadores), das cooperativas de produtores, das indústrias processadoras e dos consumidores (Brumer, 1985; Santos, 1982). As ações efetuadas consistem, fundamentalmente, em manifestações públicas que contam com a participação massiva dos produtores. Em algumas dessas manifestações, os produtores comparecem com suas máquinas, dando, com o impacto da ocupação das ruas das cidades provocado pelo tamanho e quantidade de seus instrumentos de trabalho, maior visibilidade a seus protestos. A maioria dessas demonstrações é feita dentro de uma relativa ordem, evitando atritos com os poderes públicos. Uma quase exceção a essa regra foi a manifestação dos criadores de porcos, os quais, desejando chamar a atenção das autoridades, soltaram leitões de um avião e promoveram a matança de alguns animais. Essas manifestações são promovidas pelos produtores de um determinado produto, e a elas não se integram os de outros produtos. Quase sempre, a coordenação das manifestações é feita pelos sindicatos de trabalhadores rurais das regiões produtoras de um produto determinado, com apoio da federação sindical (Fetag) e das cooperativas responsáveis pela comercialização daquele produto. Em alguns casos, como no de produtores de soja, os interesses dos pequenos produtores são semelhantes aos dos grandes produtores, e é difícil caracterizar a mobilização como, tipicamente, de pequenos produtores. Como o Estado assume a definição das políticas agrícolas e fixa os preços de venda dos produtos e o valor das taxas de juros, as manifestações, em essência, dirigem-se a ele. Isso ocorre mesmo quando, como no caso do fumo e da uva, definem-se claramente os dois campos em conflito: de um lado, os produtores, e de outro, os industriais. Em resumo, entre as características dessas lutas estão a segmentação e a particularidade de objetivo. Isto é, as diferentes lutas por preços de produtos são desenvolvidas apenas pelos produtores diretamente envolvidos na produção de um dado produto, e a defesa desse produto específico é seu único objetivo. Como conseqüência, esses diferentes movimentos são constituídos, de um modo geral, por categorias de trabalhadores ou produtores distintos quanto ao tipo de produtos e à importância econômica de suas 44

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

unidades de produção, os quais extinguem sua participação ou paralisam suas atividades comuns após terem obtido algum sucesso ou terem atingido seu objetivo principal. Além disso, tanto os mediadores como os aliados (grandes produtores, cooperativas e empresas agropecuárias, por exemplo, em alguns casos) podem ser distintos. Em decorrência, a experiência alcançada nessas diferentes lutas, em que pese ter contribuído para aumentar a consciência e a disposição para a participação em ações de protestos e reivindicação, não tem provocado a união dos produtores envolvidos na produção de produtos distintos em torno de interesses comuns. Os resultados dessas lutas foram, de modo geral, bastante limitados. As lutas têm servido principalmente para prevenir as autoridades de que os produtores ultrapassaram um limite suportável de insatisfação, acima do qual existe o risco do abandono da produção. As medidas tomadas, em decorrência das manifestações, são apenas tópicas, atenuando o problema sem resolvê-lo definitivamente. Os resultados das lutas, por isso mesmo, são parciais.

A LUTA PELA CONQUISTA DOS DIREITOS DE CIDADANIA Outra luta que merece destaque é a das mulheres agricultoras, em busca de seu enquadramento como beneficiárias diretas da Previdência Social. A mobilização das mulheres apresenta pelo menos dois aspectos importantes para a análise. O primeiro diz respeito à mudança e ampliação de objetivos, e o segundo refere-se às tentativas de intermediação e liderança feitas por diferentes grupos. Os objetivos, inicialmente, referiam-se apenas a melhorias no atendimento médico e hospitalar aos pequenos produtores rurais como um todo, passando, em seguida, ao destaque de reivindicações específicas da assistência previdenciária às mulheres (Brumer, 1988). A mobilização foi iniciada por homens e, logo a seguir, contou com a atuação das mulheres, que passaram a participar ativamente, reivindicando posteriormente a autonomia do movimento.7 A participação ativa das mulheres levou-as a tornar mais complexa a questão. Para serem incluídas como beneficiárias diretas da Previdência Social, deveriam deixar de ser consideradas depen-

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Embora sua visão do significado de autonomia não tenha sido ainda convenientemente estudada, acredita-se que ela contenha pelo menos três aspectos: a visão de que o movimento das mulheres constitui uma ação independente, não manipulada pelos homens; sua independência em relação aos sindicatos de trabalhadores rurais apoiadores da direção da Fetag; e sua não vinculação partidária. Esses aspectos precisariam ser mais bem definidos e examinados quanto a seus limites efetivos.

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dentes dos maridos, e passar a ser reconhecidas como “trabalhadoras” e co-responsáveis pela unidade de produção. Seu reconhecimento como trabalhadoras depende não apenas de uma redefinição jurídica da unidade de produção familiar, mas também da demonstração de que, de fato, trabalham no estabelecimento agrícola e conhecem seus principais problemas. Devido a isso, passaram a reivindicar também o atendimento das necessidades dos produtores rurais no que diz respeito às políticas agrícolas, levando a público a problemática da produção familiar na agricultura. Além disso, na medida que foram encontrando barreiras para o encaminhamento dos problemas específicos referentes às mulheres – sua inclusão como beneficiárias diretas da Previdência Social e sua consideração como trabalhadoras rurais – destacou-se a questão de sua inclusão como sócias dos sindicatos de trabalhadores rurais, a qual colocava, como o sistema de Previdência Social, o obstáculo de que, legalmente, existe apenas uma pessoa – geralmente o homem – responsável pela unidade de produção agrícola. No que diz respeito à tentativa de liderar o movimento das mulheres, as organizações e/ou grupos envolvidos são vários. No início, a mobilização foi liderada por sindicatos de trabalhadores rurais e por cooperativas, na região do Alto Uruguai. Posteriormente, as cooperativas afastaram-se, passando o movimento a ser influenciado, além dos sindicatos de trabalhadores rurais, por representantes da Igreja, por líderes dos trabalhadores ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT) e à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e, mais recentemente, pelo serviço estatal de assistência ao produtor rural, a Associação Riograndense de Empreendimentos, Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater). Os diferentes grupos envolvidos procuraram incutir no movimento sua própria visão do processo em andamento, uns pregando a união dos trabalhadores rurais com os trabalhadores urbanos, outros defendendo o contrário, bem como tentando preservar a família rural daquilo que o contato com o meio urbano poderia ter de maléfico: a “feminização” das mulheres e o aumento de suas reivindicações na relação homem/mulher, o aumento das separações dos casais e dos divórcios, e a defesa do aborto, entre outros. Como resultado da atuação de diferentes agentes externos, o movimento das mulheres encontra-se atualmente dividido em pelo menos três grupos: o movimento das “Margaridas”, o movimento das “mulheres da roça” e o movimento das “trabalhadoras rurais”, dos quais cada um tem maior força em diferentes regiões ou municípios do Rio Grande do Sul. Com objetivo comum, os três grupos tiveram a luta pelo enquadramento das mulheres do campo como beneficiárias diretas da Previdência. Entre elas estão a tentativa de integração das lutas das trabalhadoras rurais com as das trabalhadoras urbanas, feita pelo “Margaridas”; a autonomia em relação aos sindicatos e à Fetag, reivindicada pelo “mulheres da roça”; e a ênfase 46

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das “trabalhadoras rurais” em questões específicas da mulher (tais como a programação de palestras sobre a participação da mulher na sociedade, sobre seus direitos e sobre seu corpo e sexualidade) e num desvinculamento das questões políticas, enquanto os dois outros grupos colocam questões econômicas e políticas como prioritárias, vindo após as questões mais claramente “feministas” (estabelecidas principalmente em termos de novas formas de convivência nas áreas de cultura, família, educação, religião, relação social e distribuição de tarefas entre homens e mulheres). O movimento das “Margaridas” recebe apoio da CUT e do PT, mas, embora várias de suas líderes sejam membros da primeira ou de ambos, elas enfatizam que nem a central de trabalhadores e nem o partido político têm influenciado as discussões e decisões internas do grupo; contrariamente a isso, segundo elas, é o grupo de mulheres que, após as reuniões, encaminha à CUT suas conclusões e reivindicações. O movimento das “mulheres da roça” é apoiado pelas “oposições sindicais” e pela Igreja, colocando-se como independente dos sindicatos de trabalhadores rurais ligados à Fetag. O grupo defende a participação efetiva, e não apenas simbólica, das trabalhadoras rurais nos movimentos de massa, tais como sindicato e central de trabalhadores. Ao mesmo tempo, sustenta que “... as trabalhadoras rurais devem desenvolver um espaço próprio de organização e mobilização como forma de poderem avançar na conquista de seus direitos” (Documento da Organização das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Rio Grande do Sul, 1988, p.7). Já o movimento das “trabalhadoras rurais” é apoiado principalmente pela Fetag e por órgãos governamentais, como a Emater, que participou de um Congresso da Trabalhadora Rural promovido pela Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater) em Brasília, em 1986, e pela Legião Brasileira de Assistência (LBA), cuja atuação no meio rural se dá basicamente pelos clubes de mães. A principal crítica feita por integrantes das “Margaridas” a esse grupo é que ele evita a discussão de classe social e procura incorporar tanto trabalhadoras como empregadoras rurais. Pode-se considerar que o movimento das mulheres do campo foi bemsucedido, uma vez que a nova Constituição, promulgada recentemente, contemplou o atendimento da maioria de suas reivindicações relativas à Previdência Social, embora nem todas tenham sido colocadas em prática até o presente. Trata-se, agora, de saber que rumos sua mobilização tomará. O mais provável é que ela se desarticule, e deixe de existir como movimento logo que as principais demandas sejam efetivadas. Na hipótese de sua continuidade, pode-se esperar um maior avanço no que diz respeito à conscientização das mulheres quanto a sua situação de gênero, algo que, até o momento, a maioria das mulheres do campo se recusou a fazer, provavelmente devido à dependência econômica em relação aos maridos e/ou pais. 47

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UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS LUTAS SOCIAIS NO CAMPO Uma das primeiras questões colocadas para a análise sobre os movimentos sociais é saber se os diferentes grupos envolvidos nas lutas sociais têm interesses comuns. Uma primeira distinção pode ser estabelecida entre as lutas pela terra e as mobilizações visando a melhoria dos preços dos produtos agrícolas. Os atores das lutas pela terra são os sem-terra: parceiros, posseiros ou filhos de pequenos proprietários agrícolas, trabalhadores assalariados. São apoiados principalmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelas lideranças de alguns sindicatos de trabalhadores rurais nas áreas de conflito, além da CUT e do PT. As lutas por preços dos produtos são promovidas por pequenos produtores, aliados, algumas vezes, como no caso da soja, a médios e grandes produtores; são apoiadas, e geralmente incentivadas, pelas cooperativas e sindicatos de trabalhadores rurais. É preciso ressaltar que as lutas bem-sucedidas pela terra, de que resultou a conquista da terra pelos trabalhadores envolvidos, colocam uma questão adicional. Esses trabalhadores deixam de ser sem-terra e, mesmo que continuem vinculados ao MST e apoiados por ele, passam a ter que resolver problemas, tais como sua instalação numa nova área, obtenção de crédito, adoção de determinadas técnicas produtivas e busca de mercados para seus produtos, e a ter interesses pelos preços dos produtos a serem comercializados e dos insumos a serem adquiridos, entre outros. Tornam-se, então, pequenos produtores rurais, com interesses semelhantes aos daqueles, embora tenham questões específicas a serem resolvidas. A transformação dos atores – de sem-terra a colonos – revela uma atitude da Igreja, até certo ponto contraditória, que constitui um dos principais agentes externos na luta pela terra, mas que não se tem engajado de forma semelhante nas lutas promovidas por pequenos produtores. Como aponta Grzybowski (1987, p.71), a Igreja empresta um caráter bíblico-político à luta pela terra como luta contra o “negócio”, não percebendo que a tal luta, em si mesma, não é outra coisa que reintegração na estrutura e no negócio.

Uma segunda distinção pode ser estabelecida no interior dos movimentos de pequenos produtores, segmentados segundo o produto, cuja melhoria de preço ou condições de venda ou de produção está sendo reivindicada. Assim, na medida em que se especializam em um produto principal destinado à comercialização, os produtores são suscetíveis às variações nas condições de produção e nos preços desse produto, e não nos de outros. As diferentes categorias de pequenos produtores familiares têm maiores possibilidades de se unirem quando são identificados problemas comuns a 48

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todos os produtos (por exemplo, no caso do aumento dos preços dos insumos agrícolas concomitantemente ao congelamento dos preços de venda dos produtos). No entanto, o fato de existirem interesses coletivos não significa, necessariamente, que serão originados movimentos sociais, pois pode ocorrer, ao mesmo tempo, a percepção de uma “injustiça partilhada”, que pode diluir a motivação para a luta. Uma terceira distinção aparece quando se contrapõem a mobilização das mulheres, de um lado, e as lutas pela terra e as mobilizações por preços dos produtos agrícolas, de outro. Enquanto as lutas pela terra e as mobilizações por preços resultam de situações objetivas de classe, a mobilização das mulheres insere-se mais claramente dentro do que se pode denominar de direitos relativos à cidadania. Trata-se, nesse sentido, de equiparar as trabalhadoras rurais às trabalhadoras urbanas, em termos de direitos sociais. Em resumo, trata-se de obter a ampliação dos benefícios e do número de beneficiados da Previdência Social. A mobilização das mulheres, no entanto, na medida em que incorporou a problemática mais geral dos pequenos produtores rurais, referente a sua situação como produtores, mostrou um potencial integrador das lutas de uma classe social, algo que provavelmente será desativado se sua mobilização for interrompida. Da mesma forma como esses diferentes tipos de lutas sociais são apenas remotamente reunidos numa luta comum, conforme o movimento sindical apresenta reivindicações de caráter geral, raramente eles ultrapassam o meio rural e não têm conseguido nem o apoio de outros movimentos sociais importantes, como o movimento operário, nem a constituição de alianças que privilegiem um projeto mais global para as classes desfavorecidas da sociedade brasileira. No que se refere à participação de homens e mulheres, de um modo geral, os homens assumem a liderança e são os principais protagonistas dos movimentos de pequenos produtores. No entanto, do mesmo modo que são ativas na produção agropecuária, as mulheres foram co-participantes desses movimentos, embora com uma forma distinta, não facilmente visível, de participação. As mulheres estiveram presentes em quase todas as lutas registradas no Rio Grande do Sul, muitas vezes participando junto aos homens, outras vezes incentivando-os a uma contribuição mais ativa, mas, de qualquer modo, sempre possibilitando, com seu trabalho na produção de gêneros de subsistência, a maior intervenção dos homens. Apesar disso, a não ser pela mobilização em torno da ampliação dos benefícios da Previdência Social, os homens não dão às mulheres possibilidades de uma participação mais igualitária. Em algumas ocasiões, como nas invasões de terras e na criação de acampamentos, ainda que as mulheres tenham colaborado em praticamente todas as atividades, eles não abrem mão do processo de tomada de decisões e de direção das ações. Em outras ocasiões, eles empurram as mulheres à luta, mas pretendem continuar no controle. A 49

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mobilização efetuada pelas mulheres, no entanto, embora não tenha sido suficiente para modificar as relações cultural e socialmente estabelecidas entre homens e mulheres, abre caminho para um avanço nessa direção.

CONCLUSÕES Como conseqüência da mobilização e do intercâmbio de idéias, mais do que pelos resultados obtidos, as diferentes lutas sociais ocorridas no meio rural do Rio Grande do Sul representaram um importante fator de tomada de consciência dos problemas comuns que afetam os pequenos produtores agrícolas, e de uma evolução do processo de formação de uma identidade coletiva. Evidentemente, ainda está longe a constituição de um ou mais grupos de interesse de trabalhadores sem terra ou de pequenos produtores capazes de efetuar com eficiência a defesa de seus interesses de classe. Porém, a penetração de um partido político, como o Partido dos Trabalhadores, entre os trabalhadores rurais, e a ampliação de seu espaço político, conforme evidenciada pelas eleições de 1988, poderão modificar essa perspectiva. Dentre as lutas efetivadas, as que até agora mostraram maiores chances de ser bem-sucedidas são as que apresentam questões mais gerais, que dizem respeito à sociedade como um todo (como a ampliação dos direitos de cidadania, por exemplo) e que não confrontam, diretamente, interesses de grupos diversos. No entanto, as lutas que apresentaram maiores dificuldades de sucesso são as que colocam dois grupos opositores diretamente em conflito: trabalhadores sem terra versus latifundiários e mulheres versus homens. A dificuldade de sucesso nessas questões está, no caso da questão da terra, na necessidade de uma mudança estrutural que dificilmente poderá ser alcançada pelos meios utilizados; no caso da questão de gênero, na necessidade de modificações nas relações entre homens e mulheres, o que é temido tanto por eles como por elas. O exame das lutas mostrou que, em geral, elas demandam a ação de agentes externos, os quais, em alguns casos, são fundamentais para encaminhar a luta em direção a um objetivo mais amplo e de maior alcance, conforme demonstra a análise das lutas pela terra; em outros casos, os agentes externos podem ajudar a dividir o grupo, como se verificou na mobilização das mulheres. A ação dos agentes externos, contudo, leva ao questionamento da autonomia dos grupos e das lutas. Para que isso possa ser feito, torna-se necessário definir o significado da autonomia reivindicada pelos diferentes grupos em ação, e saber em relação a que e a quais grupos ela é colocada. Praticamente todas as lutas sociais sofrem a influência de agentes externos. Estes, no entanto, podem diferir na maneira como se relacionam com os 50

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grupos em ação; em alguns casos, assumindo a orientação dos objetivos e a direção das lutas, em outros, permanecendo numa postura de sustentação às decisões dos grupos. A autonomia das lutas dependerá, então, da relação que os grupos estabelecem com esses agentes externos.

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2 A ENGRENAGEM DAS OCUPAÇÕES DE TERRA* Lygia Sigaud

INTRODUÇÃO

Ocupar terras e nelas montar acampamentos tornou-se, nos últimos vinte anos, a forma apropriada para reivindicar a reforma agrária no Brasil. Dela se valem o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o movimento sindical e outras tantas organizações existentes no mundo rural. O Estado brasileiro tem conferido legitimidade à pretensão dos movimentos (como se autodenominam e são denominadas essas organizações), ao desapropriar as fazendas ocupadas e redistribuir as terras entre os que se encontram nos acampamentos. Esse é um fato novo na história brasileira. Houve ocupações com montagem de acampamentos no período anterior a 1964, como no Rio Grande do Sul, desencadeadas pela entrada na fazenda Sarandi, município de Ronda Alta (Eckert, 1984; Rosa, 2006), e no estado do Rio de Janeiro, iniciadas com o acampamento do Imbé, município de Campos (Grynzpan, 1987; Ernandez, 2007). Não se tornaram, contudo, a forma adequada de demandar desapropriação de terras. Havia outras maneiras de fazê-lo, notadamente as mobilizações pela mudança na Constituição (Camargo, 1981). Com o golpe militar de 1964, tornou-se impossível promover ocupações. Muitas das terras assim obtidas foram devolvidas aos seus proprietários e os militantes das organizações de trabalhadores rurais tornaram-se alvo da repressão policial e militar. * Este texto é uma versão modificada de artigo publicado em Tempo Social. Revista de Sociologia da USP (SIGAUD, 2005).

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A engrenagem das ocupações de terra

A partir do final dos anos 70, as ocupações com instalação de acampamento foram retomadas no Rio Grande do Sul, no mesmo município de Ronda Alta, e se alastraram pelo estado. Foram organizadas por colonos1 e, ao se expandirem, apoiadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), vinculada à Igreja Católica. Esse núcleo criou, em 1984, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST (Stedile e Fernandes, 1999; Fernandes, 2000). Em meados da década de 1980, graças a uma política de expansão da organização, há registros de ocupações em vários estados brasileiros. Em 1993, o Congresso Nacional estabeleceu que a improdutividade das terras caracterizava o não-cumprimento da função social da propriedade, caso previsto pela Constituição de 1988 para proceder à desapropriação. As ocupações generalizaram-se em todo o país, promovidas não apenas pelo MST, mas também pelos sindicatos de trabalhadores rurais e por dezenas de outras organizações criadas com o objetivo precípuo de ocupar terras. Nesse período, o Instituto Nacional da Reforma Agrária (Incra), que até então tinha uma atuação modesta, começou a desapropriar as terras ocupadas e a redistribuí-las entre os acampados, tornando-os parceleiros, isto é, titulares de uma parcela de terra. As ocupações, os acampamentos e as desapropriações a eles associadas indicam, portanto, uma inflexão no modo de proceder das diversas organizações no mundo rural e do Estado. Daí poder-se falar de um fato novo. Para analisar essa mudança, tomarei como ponto de partida o caso de Pernambuco, estado da federação com o maior número de ocupações de terras desde a segunda metade da década de 1990. A Zona da Mata é a região onde se registra uma concentração expressiva de acampamentos, instalados em engenhos, como são denominadas as grandes plantações produtoras de cana-de-açúcar.2 Procurarei inscrever as ocupações na história recente da região canavieira, mostrar as condições sociais que contribuíram para que ocupar e acampar se tornasse a forma apropriada de reivindicar a reforma agrária, e examinar as implicações dessa transformação social. Para isso, buscarei amparo em pesquisa empírica desenvolvida desde 1997 nos municípios de Rio Formoso e Tamandaré, situados no litoral sul do estado, sobre as ocupações de dezesseis engenhos (Camaçari, Amaragi,

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As palavras grifadas correspondem a categorias nativas. Colono é o termo que designa os descendentes dos imigrantes alemães, italianos e poloneses que se estabeleceram no Sul do país a partir de 1824, como pequenos produtores. A região canavieira de Pernambuco é uma das zonas de mais antiga colonização do país. No século XVI os portugueses ali implantaram a agricultura da cana e a produção do açúcar. Desde o final do século XIX a cana é explorada em grandes propriedades por fornecedores e usineiros, e emprega uma mão-de-obra numerosa. Para a história recente das relações sociais no mundo dos engenhos, ver Correa de Andrade (1964; 1989), Eisenberg (1977), Garcia Jr. (1983), Heredia (1979), Mello (1975), Palmeira (1977) e Sigaud (1979).

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Serra d’Água, Minguito, Mato Grosso, São Manuel, Cipó, São João, Brejo, Mamucaba, Jundiá de Cima, Coqueiro, Saué Grande, Sauezinho, Mascatinho e Laranjeiras), ocorridas entre 1992 e 2000.3

A FORMA ACAMPAMENTO A primeira ocupação de que se tem notícia em Rio Formoso foi organizada por militantes, como são chamados os quadros do MST, e sindicalistas do município.4 Em abril de 1992, cerca de 1.200 pessoas (homens, mulheres e crianças) entraram no Engenho Camaçari, instalaram um acampamento e reivindicaram a desapropriação das terras. Camaçari era tido como patrimônio da Rede Ferroviária Federal. Os donos da usina Cucaú conseguiram provar que o engenho lhes pertencia, e o juiz da comarca determinou o despejo dos ocupantes por uma força policial formada por centenas de homens. Muitos voltaram para suas casas. Cerca de oitocentos deles, no entanto, remontaram o acampamento em Vermelho, área de pequena propriedade em Rio Formoso, e a partir de lá iniciaram uma saga de ocupações em engenhos que, conforme critérios do Incra, poderiam ser considerados improdutivos e, portanto, passíveis de desapropriação. As ocupações foram promovidas conjuntamente por militantes do MST e pelos sindicalistas de Rio Formoso até 1996, quando estes passaram a organizá-las sozinhos. Com a reconstituição dos diversos acampamentos, foi possível perceber seus aspectos recorrentes. Todos eles haviam sido promovidos por um movimento, fosse ele o MST ou o movimento sindical. O movimento convidava as pessoas para participarem da ocupação, realizava reuniões preparatórias, escolhia a terra a ser ocupada e tomava as providências necessárias para realizar a ocupação, como transporte etc. Após a entrada no engenho, à noite ou ao amanhecer, os participantes buscavam locais altos e visíveis, próximos às matas e aos cursos d’água. Lá armavam as barracas com a madeira que retiravam da mata, cobriam-nas com folhas e, por fim, com um plástico preto grosso, que denominavam lona. As barracas eram alinhadas de modo a formar ruas. A montagem do acampamento compreendia também a instalação de um mastro elevado no qual era içada a 3

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Para este texto foram retomadas análises anteriores (Sigaud, 2000; Sigaud et al., 2006), o material reunido para a exposição Lonas e bandeiras em terras pernambucanas (www.lonasebandeiras.com.br) e estudos feitos na mata pernambucana. O corpus analisado é constituído de entrevistas e histórias de vida dos que participaram das ocupações, da observação feita nos acampamentos e de documentação do Incra. Os Sindicatos de Trabalhadores Rurais estão organizados a partir de uma base municipal. Na mata pernambucana, a grande maioria dos associados é constituída por assalariados dos engenhos.

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bandeira da organização que o estava promovendo. No começo era utilizada apenas a bandeira do MST, já que os sindicatos só viriam a ter suas próprias bandeiras quando a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (Fetape), que nucleia os sindicatos, passou a incluir em sua programação as ocupações de terra. O número de participantes era variável, podendo ir de mais de cem, como no caso do Engenho São João, ocupado em 1996, até pequenos grupos, como os nove que ocuparam o Brejo em 1997. Após a ocupação e a montagem das barracas, o número de envolvidos tanto podia crescer, com a chegada de mais pessoas – e o exemplo é novamente o Brejo, que chegou a contar com mais de sessenta acampados –, quanto reduzir, como ocorreu em São João, onde restaram apenas dezenove pessoas, e Cipó (ocupado em 1993), que passou de oitenta a 35 ocupantes. As reduções se davam pela saída espontânea ou pela exclusão daqueles cujo comportamento era considerado inaceitável pelos demais.5 Do ato da ocupação tendiam a participar preferencialmente os homens adultos, as mulheres e crianças chegavam depois. A montagem da barraca sinalizava a participação no acampamento. Os indivíduos com freqüência não permaneciam ali todo o tempo, pois a maioria não interrompia as atividades destinadas à manutenção da família, saindo para trabalhar nos canaviais, fazer biscates na construção civil, atuar como vigias ou vendedores ambulantes, catar caranguejos nos mangues etc., enquanto as famílias ficavam cuidando das barracas. Havia ainda aqueles que passavam longos períodos fora, deixando a barraca fechada, sozinha, ou com um parente ou conhecido tomando conta. Periodicamente retornavam e assim reafirmavam seus laços com os demais. Em todos os acampamentos havia uma divisão do trabalho organizada em comissões, como as encarregadas da segurança, que zelava pelo acampamento, sobretudo à noite, e da alimentação, que administrava o aprovisionamento dos participantes. Os movimentos tratavam de conseguir dos órgãos governamentais, sobretudo o Incra, mas também das prefeituras, da câmara dos vereadores e das igrejas locais, alimentos para os acampados, além de promover pedágios nas estradas para arrecadar dinheiro e coletar gêneros nos estabelecimentos comerciais. Os participantes dos acampamentos eram oriundos da própria região canavieira, ainda que alguns procedessem do Agreste, zona vizinha com pequenas propriedades. Os adultos tinham uma história de trabalho e de vida nos canaviais. Alguns haviam exercido outros ofícios, como pedreiros, serventes, condutores de caminhões e tratores, vigias, vendedores ambu5

Dentre os comportamentos alvos de forte censura figuram os abusos alcoólicos e o emprego da força física ou de armas na regulação de conflitos. Nem sempre, no entanto, culminam em expulsão, que depende da avaliação da coordenação e do conjunto dos acampados.

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lantes e domésticas. Havia famílias com filhos pequenos e adolescentes, mas também indivíduos sós, pessoas que ainda trabalhavam e aposentados. Muitos se dirigiam aos acampamentos após convite dos militantes do MST ou de sindicalistas. O trabalho de mobilização era realizado nas pontas de rua, nome dado às periferias das pequenas cidades da Zona da Mata, onde residem aqueles que se situam nas posições mais baixas da hierarquia social: os trabalhadores manuais. Eram convidados também, nos engenhos, aqueles trabalhadores que possuíam um contrato de trabalho. A duração dos acampamentos era variável, podendo ser de meses, quando eram desfeitos com a desapropriação das terras, ou anos, como no caso de Mamucaba, acampamento iniciado em 1998 e que ainda estava montado em 2004. Quase todos os acampamentos da área foram desfeitos após mandato judicial, quando os proprietários das terras solicitaram a reintegração de posse, concedida pelo juiz da comarca. Aos despejos seguia-se, via de regra, a remontagem do acampamento no mesmo local ou em suas imediações, na beira das estradas.6 Muitos estiveram sujeitos também aos ataques de milícias privadas de fazendeiros, que agiam por conta própria para desalojar os ocupantes, como ocorreu em Mascatinho, em Jundiá de Cima e em Mato Grosso. Após a primeira ocupação, o engenho se tornava objeto de reivindicação da desapropriação e os participantes transformavam-se em pretendentes à redistribuição das terras. Mesmo quando não estava localizado nas terras pretendidas, o acampamento permanecia a elas associado e era reconhecido pelo nome do engenho. Assim, o acampamento de Cipó, despejado logo após a ocupação, esteve estabelecido durante mais de um ano na localidade vizinha de Vermelho; o de Mato Grosso, esvaziado após ataque das milícias, estabeleceu-se numa parcela de Minguito, já desapropriada; e o de Jundiá, atacado no dia da ocupação por mais de cem homens reunidos pelo fazendeiro, fixou-se na beira da estrada. Havia um vocabulário próprio associado às ocupações e aos acampamentos. Dizia-se preferencialmente ocupar em vez de invadir, verbo este empregado pela mídia, pelos proprietários e pelo senso comum. Para descrever a ocupação individual, os trabalhadores utilizavam o verbo entrar. Quando chegavam com a intenção de entrar, perguntavam antes ao coordenador responsável se havia vaga, como se estivessem procurando um emprego. O objetivo da entrada era pegar terra e a vida no acampamento era freqüentemente descrita como um estar debaixo da lona preta, o que sinalizava uma situação de penúria e de sujeição às intempéries (chuva, calor excessivo durante o dia e frio à noite). 6

O mandato judicial de reintegração vale apenas para promover um despejo. Quando a terra é reocupada, o proprietário deve solicitar nova reintegração, o que muitos preferem não fazer.

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Os acampamentos eram, portanto, muito mais do que a mera reunião de pessoas para reivindicar a desapropriação de um engenho. Eram sempre organizados por um movimento, compreendiam técnicas ritualizadas de realizar a ocupação, uma organização espacial, uma etiqueta para entrar no acampamento e nele se instalar, regras para ali conviver, um vocabulário próprio e elementos dotados de forte simbolismo, como a bandeira e a lona preta, que constituíam os marcos distintivos. Essa combinação de aspectos modelares constitui uma forma, a forma acampamento (Sigaud, 2000). Tratase de um modelo engendrado no Sul do país, ao longo do processo que desembocou na constituição do MST. Seus militantes, deslocados para o Nordeste, ali o implantaram e, na mata pernambucana, o modelo foi progressivamente ajustado às condições locais. Entre 1987 e 2003, o Incra desapropriou 194 propriedades em Pernambuco, dentre as quais dezesseis engenhos,7 na área compreendida pelos municípios de Rio Formoso e Tamandaré (o antigo distrito, emancipado em 1996) e contemplou com parcelas de terra os que já residiam e trabalhavam no engenho, conforme determina a legislação, e também os que se encontravam acampados. Em catorze delas tinham ocorrido ocupação e estabelecimento de acampamentos, o que revela a estreita relação entre a forma acampamento e as desapropriações promovidas pelo Estado.

A CRENÇA NA LONA PRETA A implantação da forma acampamento na mata pernambucana nada tem de evidente. Não há elementos na história recente da região que autorizem a supor que o território dos engenhos, tradicionalmente sob o controle estrito dos patrões, viesse a ser ocupado com acampamentos; que o MST viesse a agir junto à massa de trabalhadores ali onde os sindicatos tinham uma hegemonia incontestável; que os sindicalistas passassem a ocupar terras; e que os trabalhadores se dispusessem a ocupar propriedades de outrem. Para entender como tais desdobramentos tornaram-se possíveis, é preciso examinar as ocupações e os acampamentos a partir de quadros sociais e históricos mais amplos. No final da década de 1980, o governo brasileiro alterou suas diretrizes em relação à agroindústria açucareira, no bojo de uma política mais geral de retirada do Estado da economia: suprimiu os subsídios que há décadas garantiam o preço da cana e do açúcar; privatizou as exportações que até então eram feitas pelo Instituto do Açúcar e do Álcool; e permitiu a elevação 7

Foram eles: Amaragi, Serra d’Água, Minguito e Mato Grosso, em Rio Formoso, e Cipó, São João, Saué Grande, Sauezinho, Cocal, Cocalzinho, Coqueiro, Jundiá de Cima, Laranjeiras, Mascatinho, Brejo e Ilhetas.

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da taxa de juros. Essas medidas, assim como uma grande seca ocorrida no período, desencadearam uma crise no setor. Muitos patrões, fossem eles industriais do açúcar ou fornecedores de cana, não lograram adaptar-se à falta de proteção do Estado e faliram. Outros tantos trataram de se reestruturar. Milhares de trabalhadores perderam o emprego, quer pela falência dos patrões, quer pelo downsize promovido pelas empresas em reestruturação (Correa de Andrade, 2001). No final dos anos 90, das quatro usinas que exploravam a cana na área estudada, apenas Trapiche, cuja sede está localizada em Sirinhaém (município limítrofe ao norte de Rio Formoso), estava em situação tida como sólida e equilibrada. Cucaú, sediada em Rio Formoso, saía de um pedido de concordata. Santo André, localizada em Tamandaré, não havia moído cana na safra de 1996-7 e desde 1995 não honrava regularmente o pagamento dos trabalhadores. Central Barreiros, situada em Barreiros, ao sul de Tamandaré, entregara ao Banco do Brasil treze de seus engenhos (nove dos quais localizados em Pernambuco e quatro no estado vizinho de Alagoas) para pagar dívidas e habilitar-se a novos empréstimos. Essa usina, que na safra de 1988-9 havia moído quase 650 mil toneladas de cana, chegava à de 1996-7 com uma produção de 350 mil toneladas (Sindicato das Indústrias do Açúcar de Pernambuco, 1999). Nos engenhos explorados por fornecedores, denominados particulares, a queda de produção também era acentuada. Amaragi, um dos maiores engenhos de Rio Formoso, com uma produção de 30 mil toneladas de cana nos anos 70, produzia apenas 6 mil em meados dos anos 90. Nesse engenho, como em outros, houve igualmente suspensões do pagamento dos salários e, nessa época, 3 mil trabalhadores encontravam-se desempregados, segundo estimativa dos dirigentes sindicais. As ocupações ocorreram precisamente nesses engenhos falidos, onde as terras tornaram-se improdutivas pelos critérios técnicos do Incra. Vulneráveis, muitos patrões não tiveram mais como garantir o território de seus engenhos, e os trabalhadores desempregados tornaram-se o alvo privilegiado dos convites para realizar as ocupações. Foi nessa conjuntura, e no âmbito de um processo de expansão pelo território nacional (Fernandes, 2000; Stedile e Fernandes, 1999), que o MST chegou à Zona da Mata pernambucana. No litoral sul, os militantes do MST se aliaram aos sindicalistas e começaram a ocupar os engenhos, trazendo a tecnologia apropriada para ocupar terras, montar e administrar os acampamentos. Os sindicalistas colaboraram com seus quadros, com os contatos entre os trabalhadores e com a infra-estrutura de que dispunham, sobretudo as instalações sindicais (Rosa, 2004, p.77). A ocupação de Camaçari, em 1992, foi produto dessa cooperação, e é vista até hoje como um marco inaugural: “Tudo começou em Camaçari”, costumam dizer com freqüência as lideranças e os trabalhadores que participaram desta e das ocupações subseqüentes, e é o que afirma explicitamente o MST em sua história oficial (www.mst.org.br/mstpe). A partir de então, o MST logrou 59

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recrutar jovens e em pouco tempo montou uma rede de militantes, que passou a atuar na área a serviço do movimento e de suas ocupações. A aliança de sindicalistas de Rio Formoso com o MST chama a atenção. Embora a reforma agrária fosse uma reivindicação sempre presente na agenda do movimento sindical, não se cogitava ocupar terras para obtêla.8 Como mostra Rosa (2004), as pretensões de sindicalistas mais jovens de ascenderem no campo sindical e dos mais velhos de construírem uma carreira na política municipal teriam contribuído para que tal aliança se produzisse no litoral sul naquele momento de crise da agroindústria açucareira. A partir de 1996, os sindicalistas passaram a montar sozinhos os acampamentos nos engenhos da região. No plano estadual, a Fetape foi sendo progressivamente pressionada por alguns sindicalistas, já participantes em acampamentos, a incluir as ocupações em sua programação. Naquele momento, os sindicalistas não detinham mais o monopólio da representação dos trabalhadores, adquirido progressivamente a partir do início da sindicalização rural, em 1962, e estavam ameaçados de perder a força e o prestígio de que desfrutavam em Pernambuco. Em 1997, a Fetape já ocupava tantas terras quanto o MST.9 A inflexão do movimento sindical deu um impulso espetacular às ocupações em Pernambuco, que aumentaram em progressão geométrica. Entre 1990 e 1994, o estado era o sexto em número de ocupações, com 28 de um total nacional de 421, e o quarto em famílias envolvidas, com quase 5 mil de um total de aproximadamente 75 mil. Entre 1995 e 1999, período no qual a Fetape também realizava ocupações, tornou-se o primeiro estado tanto em número de ocupações, 308 de um total de 1.855, quanto em número de famílias, 35 mil de um total de cerca de 256 mil.10 Para os trabalhadores rurais da mata pernambucana, instalar-se por meio de ocupação em um engenho, sem a autorização do dono, para obter para si uma parcela das terras desapropriadas dos patrões não fazia parte do horizonte dos possíveis. Eles só acediam a um engenho após terem sido aceitos para prestar serviços e se estabeleciam em locais designados pelo patrão e seus prepostos. Havia a utopia do engenho liberto (Sigaud, 1979, p.205-22), no qual poderiam cultivar seus sítios e roçados,11 criar tantos animais quanto desejassem e trabalhar para o patrão apenas quando necessitassem de dinheiro. Tudo isso pressupunha a presença do dono e não implicava a idéia 8

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Na história recente da mata pernambucana há registro apenas da ocupação do Engenho Pitanga, em 1986. A partir da reconstituição da história dessa ocupação, feita por Wanderley (2003), é possível perceber que ela não se inscrevia em uma política de ocupações sistemáticas da Fetape. Ver Diário de Pernambuco, 11 jun. 1997. O número de ocupações e famílias em Pernambuco foi extraído de quadros elaborados por Fernandes (2000, p.270-2) O vocábulo roçado designa uma área de terra móvel, cedida pelo patrão, na qual os trabalhadores cultivam lavouras de ciclo curto. Sítio é utilizado para designar uma área de terra fixa e com árvores frutíferas, também cedida pelo patrão a alguns de seus trabalhadores.

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da propriedade para o trabalhador. Explicar o ato de ocupar os engenhos como o produto de uma vontade prévia de possuir a terra não se sustenta, portanto, à luz dos conhecimentos disponíveis. O desemprego resultante da crise da agroindústria açucareira poderia ser uma explicação alternativa e atraente para dar conta das ocupações, e é dela que se valem os sindicalistas e os militantes para justificar o afluxo aos acampamentos: uma vez perdido o emprego, os trabalhadores teriam atendido aos convites e ido para os acampamentos. O problema é que sempre houve desemprego na entressafra da cana, no período entre março e agosto. Ainda que com a crise essa situação tenha se agravado – e as ocupações tenderam a ocorrer exatamente ao término da moagem –, estar desempregado parece não ter sido condição suficiente para estar nos acampamentos. Milhares de trabalhadores sem emprego preferiam continuar fazendo biscates a ir instalarse sob a lona preta e recusavam os convites com o argumento de que não queriam a terra. Contudo, outros trabalhadores, com um contrato de trabalho em vigor, participavam das ocupações e montavam suas barracas, tratando de conciliar a presença no acampamento com o trabalho formal para o patrão, como aqueles de Pedra de Amolar, engenho da usina Cucaú, que formaram o núcleo da ocupação do engenho Mato Grosso em Rio Formoso, em 1999. Os trabalhadores que entre 1997 e 2000 se encontravam nos acampamentos afirmavam que lá estavam para pegar terra. Tinham origens sociais e trajetórias distintas, como já foi assinalado. A análise de suas histórias revela uma diversidade de situações precedentes a sua entrada no acampamento: alguns haviam perdido o emprego; outros tinham ficado sem casa após a grande enchente ocorrida no Rio Formoso em 1997; outros ainda queriam recomeçar a vida após uma crise familiar (separação, doença ou morte); outros se sentiam atraídos pela presença de conhecidos e parentes no acampamento e pela proximidade do local de moradia; e alguns aceitaram o convite porque tinham relações estreitas com militantes e sindicalistas e neles confiavam. Edmilson foi um dos primeiros a entrar no Brejo. No dia da ocupação, estava indo para a feira quando cruzou com Dedé, militante do MST, que conhecia de vista e que o chamou para o acampamento, dizendo que era um movimento certo, e pediu-lhe que arranjasse mais gente. Embora nunca tivesse participado de uma ocupação, a idéia não lhe era estranha. Ele trabalhava em Ilhetas, engenho da Central Barreiros, que, como os demais, estava sem pagar salário. Assíduo às reuniões sindicais, já ouvira falar de várias ocupações. Amaro Santino encontrava-se no Brejo em setembro de 1997. Havia entrado no acampamento no dia 27 de maio, um mês e meio depois da ocupação. Tinha 48 anos e dezoito filhos, dos quais quinze viviam com ele. Nascido em Sirinhaém, havia morado 29 anos em um engenho da Usina Trapiche, mas desentendeu-se com o cabo do engenho e preferiu ir embora: entregou a ficha (demitiu-se) e foi para Tamandaré, onde residia um irmão. Ouviu falar do Brejo pelo rádio: 61

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Eu digo: o engenho Brejo está com problema com o Incra. Chamando bastante gente [a referência é um programa de rádio mantido pelo MST]. Aí também houve este problema comigo lá [em Trapiche]. Aí eu digo: vou-me embora lá para o Incra [Brejo] [sic].

Nazareno, acampado no Brejo, morava em Tamandaré e vivia de vender frutas, peixe e caranguejo preparados por sua mulher. Aí fiquei aí, andando, aí sempre passando aqui [Brejo]. Aí vi esse negócio desse movimento. Aí quem me falou foi Zezinho. Zezinho é um militante, não é? É um coordenador. Aí eu fui gravando, gravando [o que ele dizia]. Aí um dia eu vim aqui. Aí falei, os meninos disseram [para ficar]… Aí eu fiz esse barraquinho aqui.12 [sic]

Palhaço morava em Rio Formoso e foi acampar em Mamucaba, em 1999: Aí, meu pirralhinho adoeceu, sabe? A catinga da maré, a catinga da lama podre – é, da maresia – aí deixei, eu disse: Eu vou vender esse barraco aqui, aí eu vendi, dei em mercadoria pra mulher, e a mulher foi para a casa da mãe dela, passar quinze dias na casa da mãe dela, e eu vim aqui pr’os sem-terra.

Dalvino, originário do Agreste, também acampou em Mamucaba, em 1999: Foi quando vim pr’aqui, atrás de serviço, novamente. Fiquei aqui, bati, bati, bati, não arranjei serviço nas empresas, nas usinas, aí vinha embora de novo pro sertão. Mas foi tempo que um cara, um colega meu aí disse: “Vai pr’os sem-terra!” Aí eu vim pr’aqui [acampamento de Mamucaba].13

Em meio a tamanha diversidade compartilhavam, no entanto, uma crença: a de que uma vez debaixo da lona preta poderiam, no curto prazo, melhorar suas condições de vida, ter terra para plantar e criar animais, e crédito do governo para construir uma casa e produzir e, sobretudo, poder estabelecer-se por conta própria sem depender de um patrão. Assim, Amaro Santino (acampado no Brejo) contava que “quis pegar um terreno [pedaço de terra] para trabalhar mais meus filhos para deixar de ser obrigado a estes patrões”. Daniel Pedro, acampado no Brejo, dizia: Porque eu estou com 44 anos. É, 44 anos de sofrimento na empresa, entendeu? E não adquiri nada. Que eu trabalhei este tempo todinho para os outros e não adquiri nada. E eu trabalhando. Agora vou tentar. Porque eu trabalhando para mim não adquiri. Também não tenho nada contra a sorte. Porque perdido por perdido eu já estou, certo? ... Acho que o melhor futuro meu é isso aí [o acampamento]. Também, que se eu perder, não estou perdendo nada... Vou jogar na vida, na sorte... [sic] 12 13

Os relatos a respeito do Engenho Brejo foram coletados em setembro de 1997 pela autora. Os relatos a respeito do Engenho Mamucaba foram coletados por David Fajolles em setembro de 1999.

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E também Edmilson (acampado no Brejo): Que eu queria… eu tenho vontade de trabalhar para eu… [trabalhar] para os outros, o movimento caiu. Eu trabalhando para eu não cai. Eu estou andando para frente. Porque tenho filha, mais a mulher; [trabalhando] para os outros eu vou para baixo. Não vai dar certo mais [sic].

A crença de que um futuro melhor passava pela lona preta constitui-se assim em um elemento decisivo para explicar e compreender a disposição dos trabalhadores de se instalarem nas terras dos patrões. Como essa crença teria surgido é difícil, senão impossível, reconstituir. Pode-se apenas indicar a sua existência e formular a hipótese de que teria se constituído progressivamente, a partir de Camaçari. Alguns participantes daquela ocupação contam que no início poucos iam às reuniões preparatórias, pois desconfiavam do que lhes era dito e temiam o que lhes pudesse vir a acontecer. Progressivamente o grupo foi aumentando. A presença dos sindicalistas de Rio Formoso naquelas reuniões certamente revestiu-as de credibilidade e contribuiu para que as resistências fossem desmontadas. Quando, a partir de 1993, o Incra começou a desapropriar as terras ocupadas em Rio Formoso, a crença ganhou força e solidez, e as pessoas passaram a ter menos medo e menos dúvidas a respeito da pertinência de entrar nas terras. O fato novo nesse momento é a crença de que debaixo da lona preta poderiam almejar um futuro melhor. Na década de 1990, junto com a ida para o Sul do país ou para o Recife (a capital de Pernambuco), a mudança de emprego e de patrão e a assinatura da carteira de trabalho, a lona preta passa a fazer parte do repertório das possibilidades de “melhorar de vida”. Tratava-se de uma alternativa nova, mas ainda assim uma alternativa, como qualquer outra. Interpretando-a dessa forma, pode-se melhor explicar fatos que permaneceriam obscuros se encarássemos a ida para os acampamentos como produto de uma conversão à “luta pela terra”, como análises encantadas sobre as ocupações sugerem. Um desses fatos é a saída dos acampamentos. Quando um indivíduo passa a fazer parte de uma ocupação, crê e aposta nas possibilidades da lona preta. Os despejos, os ataques das milícias privadas, a morosidade do processo de desapropriação do engenho (“essa terra não vai sair”, costumam dizer) contribuem para produzir o desânimo, abalam a crença e a convicção de estarem fazendo uma boa aposta. Se, nessas circunstâncias, surgir outra possibilidade que para o trabalhador pareça mais atraente, ele não hesitará em ir embora. A partida não significa a perda da crença. Muitos dos trabalhadores depois de algum tempo regressavam ao mesmo acampamento ou entravam em outro.14 14

Estudos feitos em acampamentos no estado do Rio de Janeiro por Ernandez (2003) e em São Paulo por Loera (2006) indicam estar em jogo uma lógica nas saídas semelhante à que identificamos na mata pernambucana.

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A crença nas possibilidades abertas pela lona preta não é generalizada na mata pernambucana. Mas o fato de não crer nelas hoje, não implica não crer amanhã. Desde 1997 mantive contato com muitos trabalhadores que a princípio não queriam nem ouvir falar em pegar terra e que posteriormente encontrei em um acampamento. No entanto, a crença não produz efeitos automáticos. Muitas vezes aqueles que acreditam nessa possibilidade preferem aguardar uma oportunidade melhor. De um ponto de vista sociológico, o que importa é que essa crença passou a figurar no horizonte dos possíveis. A implantação da forma acampamento na mata pernambucana foi produto de uma mudança na figuração social (Elias, 1986, p.154-61), favorecida por uma conjugação de condições sociais: a crise entre os patrões, a atuação do MST, a inflexão dos sindicalistas e a gênese de uma nova crença. Para identificá-las foi necessário estranhar a existência dos acampamentos e perguntar: como eles se tornaram possíveis? Chegar a essa conclusão não teria sido possível se eu ignorasse a história das relações sociais e escolhesse enveredar na busca de uma causa que determinasse um resultado, fosse ela “econômica”, “política” ou “cultural”, quaisquer que sejam os sentidos que se atribuam a esses termos.

UM ATO FUNDADOR E LEGITIMADOR A entrada nos engenhos e a instalação dos acampamentos não ocorreram num quadro preexistente de conflitos por terra. O exame da conjuntura no período que antecedeu as ocupações revela a inexistência de sinais de descontinuidade marcantes nas relações sociais. Havia interrupção de pagamento, como em Amaragi, Sauezinho, Saué Grande e Coqueiro; morte do dono, como em Cipó; entrega dos engenhos ao Banco do Brasil para o pagamento de dívidas pela Usina Central Barreiros, como nos casos de Brejo, Serra d’Água, Minguito, Mascatinho e Jundiá de Cima. Todas essas situações poderiam ter sido enfrentadas de forma costumeira, por meio de processos na Justiça do Trabalho ou pela espera da chegada de novos donos,15 e não necessariamente evoluiriam para a desapropriação das terras. Foram os movimentos que, ao promoverem a entrada nos engenhos e os acampamentos, produziram uma inflexão no rumo dos acontecimentos: criaram um conflito de terra ali onde ele não existia e solicitaram ao Incra a desapropriação. Não cabe aqui especular o porquê da ocupação daqueles 15

Desde que a legislação trabalhista foi estendida ao campo, em 1963, os trabalhadores dos engenhos passaram a ajuizar ações na Justiça contra os patrões para cobrar direitos trabalhistas. Após o golpe militar, a prática foi privilegiada pelos sindicalistas e se tornou a forma por excelência de enfrentamento com os patrões (SIGAUD, 1999). A mudança de dono, contudo, era um fato corriqueiro. Ela se fazia com alguma tensão, mas passado o período de adaptação ao estilo do novo patrão as relações se equilibravam.

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engenhos, uma vez que se sabe que era esse o objetivo dos movimentos naquele momento e que aqueles engenhos, salvo Serra d’Água e Minguito,16 poderiam se enquadrar nos novos critérios do Incra. Trata-se tão-somente de destacar que foi por meio da forma acampamento que problemas passíveis de uma solução costumeira foram transformados em um conflito por terra. O Incra, por sua vez, aceitou a legitimidade dos procedimentos: reconheceu os movimentos como representantes autorizados a solicitar desapropriações, acatando suas demandas, e os participantes das ocupações como pretendentes legítimos à terra, dando-lhes uma parcela. Conferiu também tanto aos movimentos quanto aos participantes dos acampamentos uma existência oficial em seus registros. Assim, nas tabelas referentes às ocupações, nomeadas como “áreas de conflitos” (conflitos que, como se viu, foram criados pelos movimentos), figuram, ao lado das colunas com informações relativas à localização do conflito, ao tamanho da propriedade, ao número de famílias residentes, uma coluna com o número de famílias acampadas e outra com o nome do movimento que esteve na origem da ocupação. Nos formulários destinados a cadastrar os futuros parceleiros, figura o “acampado”, categoria sem amparo legal, ao lado de outras reconhecidas pelo direito, como trabalhador rural, posseiro etc. Como mais de 90% das desapropriações feitas pelo Incra contemplam as ditas áreas de conflito, ocupar engenhos e neles montar acampamentos, ou, melhor dizendo, valer-se da forma acampamento, tornou-se um recurso incontornável. Esse é o ato que cria o conflito por terra e desencadeia o processo que poderá desembocar na desapropriação.17 O caso do Engenho Tentúgal, de propriedade da Usina Central Barreiros, no município de São José da Coroa Grande (extremo sul do litoral), constitui nesse sentido um caso exemplar. Com a crise da usina, em situação de falência, os trabalhadores que residiam e trabalhavam no engenho tiveram seus salários suspensos. Confrontados com tal situação, vislumbraram na lona preta uma solução para seus problemas. Sabiam que sem um movimento à frente do processo não conseguiriam coisa alguma. Procuraram então os sindicalistas do município e pediram que organizassem um acampamento no engenho, que, no entanto, logo se desfez, por falta de acompanhamento dos sindicalistas (conforme versão dos trabalhadores). Ao saberem que havia militantes 16

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Esses engenhos eram produtivos, segundo os critérios do Incra, e estavam arrendados. Foram desapropriados porque a Usina Central Barreiros, a proprietária, os havia entregue ao Banco do Brasil. Após o pedido de desapropriação, o Incra envia uma equipe de técnicos ao engenho para proceder à vistoria. Se constatada a improdutividade, dará andamento ao processo. A documentação é enviada para Brasília, ao Incra nacional, que a submete ao presidente da República. Cabe a ele assinar o decreto estabelecendo que a propriedade não cumpre sua função social. Segue-se a desapropriação, na qual o proprietário recebe, pela terra, uma indenização em títulos da dívida agrária (TDA) com valor de mercado, e, pelas benfeitorias, uma indenização em dinheiro.

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do MST na área, apelaram a eles para que fizessem novo acampamento e solicitassem a desapropriação. Em 1999, o acampamento foi remontado, não com a entrada dos trabalhadores nas terras, uma vez que os acampados já residiam no engenho, mas com a montagem do acampamento com a bandeira do MST e as lonas pretas, símbolos indicadores da questão de terra. Os donos pediram a reintegração de posse e o acampamento foi desmontado, deixando que os participantes continuassem residindo ali, mas com a destruição das barracas e o confisco da bandeira. Nos anos seguintes, o acampamento foi remontado várias vezes e, em 2002, o Incra desapropriou Tentúgal. Esse caso, que não se ajusta à norma seguida na maioria das ocupações,18 tem a virtude de mostrar o quanto o recurso à forma acampamento já havia adquirido um caráter imperioso: não bastava encaminhar um pedido de desapropriação, era preciso fazê-lo de modo apropriado. A forma é o modo. As ocupações de terras com montagem de acampamentos constituem uma linguagem simbólica, um modo de fazer afirmações por meio de atos, e um ato fundador de pretensões à legitimidade. Ao promover uma ocupação e um acampamento, o movimento diz ao Incra que deseja a desapropriação das terras, ao proprietário que quer suas terras e aos outros movimentos que aquela ocupação tem um dono. Essa linguagem é bem compreendida por todos: o Incra entende que há um pedido de desapropriação e desencadeia o processo, o proprietário percebe a possibilidade de ficar sem suas terras e age na defesa de seus interesses, solicitando a reintegração de posse, e os outros movimentos respeitam a bandeira do concorrente e não ocupam aquela terra. Com o ato de ocupar, os movimentos legitimam suas pretensões à desapropriação e ao reconhecimento de que aquela ocupação é sua. Ao montar sua barraca, o trabalhador diz que quer a terra. Essa afirmação está dirigida ao Incra, que no momento de selecionar os futuros parceleiros irá contabilizar os que se encontram debaixo da lona preta; ao movimento, que o incluirá em suas listas a serem apresentadas ao Incra; e aos demais que se encontram no acampamento, que irão reconhecê-lo como alguém que quer a terra. A barraca legitima a pretensão a pegar terra; é a prova material do interesse em ser contemplado no momento da redistribuição das terras. O estar debaixo da lona preta é representado como um sofrimento que torna aqueles que a isso se submetem merecedores da recompensa terra. Em alguns casos, quando a ocupação se prolongava por muito tempo, como em Mamucaba, chega a estruturar-se uma hierarquia de legitimidade, a partir de critérios como o tempo de permanência no acampamento, a participação nas atividades, a presença constante, a coragem demonstrada 18

A maioria dos acampamentos da mata pernambucana foi constituída pelo grupo que ocupou o engenho. Há casos, no entanto, de acampamentos montados por moradores para reivindicar a desapropriação. Foi o que ocorreu em Amaragi, Sauezinho, Saué Grande e Coqueiro.

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nos momentos de despejo ou de enfrentamento com as milícias privadas enviadas pelos proprietários para atacar os acampamentos.19 Tal hierarquia não produzia efeitos para as seleções do Incra. Servia, no entanto, para classificar os indivíduos entre os mais e os menos merecedores. As desapropriações ocorridas na mata pernambucana têm sido, portanto, o resultado de um processo desencadeado pelas ocupações e acampamentos, que caracterizaram uma situação de conflito por terra assim reconhecida pelo Incra. Graças à legitimidade conferida por esse organismo, a forma acampamento tornou-se a maneira apropriada de fazer demandas. A sanção do Estado contribuiu assim para que ocupar terras e instalar-se em barracas viesse a se constituir em atos destinados a legitimar pretensões dos movimentos e dos indivíduos. Sobre aqueles que tinham interesse em fazer viver um movimento ou em pegar terra, abateu-se a coerção de passar pela forma. Como a greve, que a partir do século XIX tornou-se a forma por excelência para fazer demandas ao patronato (Schorter e Tilly, 1978), a ocupação com acampamento tornou-se a forma para fazer demandas ao Estado relativas à terra.

DEPENDÊNCIA RECÍPROCA E RELAÇÕES DE CONCORRÊNCIA Em suas manifestações nos espaços públicos, as autoridades governamentais, sobretudo as do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Incra, e os representantes dos movimentos tendem a entreter uma retórica belicosa, como se suas relações fossem de enfrentamento permanente. Assim, nos últimos dez anos, a mídia vem divulgando, com bastante freqüência, declarações de autoridades nas quais se afirma que a reforma agrária será feita nos termos da lei e que não serão aceitas violações da ordem constitucional (as invasões de propriedades privadas). Da parte dos movimentos, são habituais as acusações de que o Governo não realiza a reforma agrária e as ameaças de novas ondas de ocupações de terra. O tom das hostilidades foi elevado durante os oito anos do governo Fernando Henrique e amenizou-se bastante no governo Lula. Ora, essa retórica, ainda que remeta a tensões entre as partes, oculta as relações de estreita cooperação e dependência entre Estado e movimentos. Até o presente momento, o Estado brasileiro não colocou em marcha uma política, nem tópica, nem massiva, de desapropriação de terras improdutivas, que a Constituição e a regulamentação de 1993 autorizariam implementar. Na ausência de uma política própria para proceder às desapro19

Essa hierarquia de legitimidades foi identificada no acampamento de Mamucaba. Cf. Sigaud et al. (2006, p.61-3).

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priações, tem dependido dos movimentos, que lhe indicam, por meio das ocupações e acampamentos, as fazendas a serem objeto de sua intervenção. Nesse sentido, pode-se afirmar que os movimentos têm fornecido as diretrizes para a política do Estado brasileiro em relação à questão fundiária: as fazendas desapropriadas são aquelas que foram ocupadas. Basta cotejar as listas de desapropriações feitas nos últimos três governos (Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula), e fornecidas pelo Incra, com as das ocupações e acampamentos fornecidas pelos movimentos para constatar a relação estreita entre desapropriações e ocupações. Os funcionários do Estado justificam as desapropriações alegando tratar-se de “áreas de conflito”. Trata-se seguramente de uma linguagem que sobreviveu de um tempo no qual eram efetivamente desapropriadas áreas onde havia um conflito preexistente, como tendeu a ocorrer na Amazônia, onde foram registrados nos anos 70 e 80 enfrentamentos sangrentos entre posseiros e grileiros. Ora, como já foi visto aqui, quem cria o conflito são os movimentos. A ocupação e o acampamento caracterizam uma situação de conflito e lhe dão visibilidade. A linguagem das áreas de conflito tem efeitos eufemizadores, que ocultam o caráter arbitrário do conflito. O Estado depende ainda dos movimentos para selecionar os destinatários da redistribuição das terras desapropriadas, escolhidos entre os que participam das ocupações e que foram reunidos pelos movimentos. Contrariamente ao senso comum, não existe uma massa de sem-terra ansiando pelo acesso à terra; os movimentos criam a demanda ao convidarem os trabalhadores para ocupar as fazendas. São eles que lhes abrem a possibilidade de ter acesso a uma terra com a qual muitos nunca haviam sonhado, como foi possível constatar em larga escala na pesquisa feita entre os assentados após a desapropriação nos engenhos da mata pernambucana.20 Ao aceitarem o convite e se instalarem nos acampamentos, os indivíduos se tornam sem-terra porque passam a reivindicar a terra para si. Começam então a se identificar dessa forma, que é a modalidade apropriada de se representar no espaço dos acampamentos, e passam também a ser vistos pelos demais, do campo e da cidade, como sem-terra. Não se costuma considerar sem-terra o trabalhador que vive nas pontas de rua, sobrevivendo de trabalhos eventuais e de biscates, ou os trabalhadores contratados nos engenhos: eles não estão envolvidos em ocupações e acampamentos, condição indispensável para serem identificados dessa forma. Os movimentos criam, portanto, não apenas a demanda como as condições de possibilidade de se tornar um sem-terra e vir a ser contemplado pela reforma agrária. 20

Foi no âmbito de uma pesquisa em curso, sobre os assentamentos de Rio Formoso e em Tamandaré, que constatei que os trabalhadores que participaram dos acampamentos nunca pensaram na possibilidade de ter sua própria casa e um pedaço de terra dentro dos engenhos dos patrões.

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De sua parte, os movimentos dependem fortemente do Estado para levar adiante seu programa de ocupações de terras, pois os benefícios a serem obtidos constituem um poderoso argumento para chamar as pessoas para as ocupações. Em seus relatos a respeito do convite de que foram alvo, os trabalhadores referiam-se com freqüência ao fato de lhes ser dito que o Incra estava dando terras; que as terras para onde iriam eram improdutivas e, portanto, seriam desapropriadas; que se fossem para o acampamento receberiam cestas básicas dadas pelo mesmo Incra;21 que quando houvesse a desapropriação teriam acesso a créditos para fazer uma casa, se sustentarem por algum tempo até poderem começar a produzir e ainda teriam recursos para tocar a produção. Cada desapropriação de um engenho ocupado e cada liberação de créditos para áreas de assentamentos confirmam a justeza do que é anunciado e favorecem a aceitação de novos convites para futuras ocupações. Assim, a dinâmica das ocupações é tributária da política de Estado. Sem ela, os movimentos não teriam esperanças fundadas a oferecer a seu público-alvo e encontrariam dificuldades para reunir pessoas para as ocupações. Não teriam também se fortalecido, nem se multiplicado, como ocorreu na mata pernambucana, onde são contabilizados nove movimentos (Rosa, 2004, p.172-3). Incra e movimentos estão assim vinculados por laços de dependência recíproca e de cooperação tácita. Como essas relações se inscrevem numa figuração, nos termos de Norbert Elias, na qual há indivíduos vinculados a outros poderes da República, como o Judiciário, a outros movimentos e também a outros atores, como os proprietários, elas tendem a ser complexas e tensas. Assim, a maioria das desapropriações na mata pernambucana foi feita após uma intensificação da pressão dos movimentos sobre o Incra, por exemplo, as de Sauezinho, Saué Grande, Coqueiro, Cocal e Cocalzinho (engenhos da Usina Santo André localizados em Tamandaré), que só se efetivaram, em fins de 1999, após um acampamento de mais de 45 dias de cerca de cem trabalhadores daqueles engenhos em frente à sede do Incra, no Recife. Contra essas desapropriações se interpunham os donos da Usina Santo André, com o apoio de políticos de peso no cenário nacional. Via de regra, o que aparece, por ser objeto de atenção da mídia, é a tensão. Procurou-se aqui colocar em relevo a dimensão oculta da dependência e cooperação que têm contribuído fortemente para entreter a engrenagem da forma acampamento. Finalmente, caberia destacar que a generalização da forma acampamento tem sido tributária também das relações de dependência que vinculam cada movimento com as pessoas que mobilizou e conduziu com sucesso 21

Nos acampamentos pesquisados houve, em algum momento, distribuição de cestas básicas. Embora a distribuição fosse intermitente, a possibilidade de ter acesso a ela constituía um atrativo importante para os trabalhadores que, fora dos acampamentos, não seriam contemplados.

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à obtenção da terra, bem como das relações de concorrência entre os movimentos. Os indivíduos que obtiveram a terra e acesso aos créditos, por intermédio de ocupações, se sentem devedores ao movimento que tornou isso possível. A dívida implica obrigações, como lealdade e cooperação, as quais são descritas como um compromisso. Os movimentos contam, portanto, com os antigos acampados, e hoje detentores de uma parcela, quando há marchas e manifestações a promover e, sobretudo, quando se trata de fazer novas ocupações. Eles vão para fazer número, ensinar a técnica de ocupar, animar os neófitos e, com seu exemplo, mostrar que a esperança na lona preta tem fundamento. Em todas as ocupações havia um núcleo constituído por assentados.22 O capital simbólico (prestígio) e o poder relativo (posição na correlação de forças) dos movimentos são constituídos por aquilo que é reconhecido como seus feitos e suas vitórias: as ocupações e desapropriações. Os movimentos competem para acumular cada vez mais capitais, o que se constitui em elemento decisivo para entender a espiral de ocupações (cf. Smircic, 2000; Sigaud, 2000; Sigaud et al., 2006; Rosa, 2004).

CONCLUSÃO As ocupações de terra no Brasil são reconhecidas como um fato notável dentro e fora das fronteiras nacionais. São freqüentemente encantadas, em um registro positivo, como uma nova manifestação da “luta por terra” por parte da massa de “pobres” errantes pelo país, ou, em registro negativo, como o produto demoníaco da manipulação das massas por agitadores. Não busquei neste texto entrar em tais debates sobre o caráter das ocupações, mas tão-somente explicar e compreender como se tornaram possíveis. Para tanto, fiz determinadas opções metodológicas. Parti da etnografia dos acampamentos e da comparação entre eles, o que permitiu identificar a existência de uma forma. Em seguida, problematizei as condições de possibilidade de implantação de tal forma. Para tanto, inscrevi os acampamentos na história das relações sociais em que ocorriam e, sobretudo, procurei compreender a motivação dos que lá se encontravam. Como chamou a atenção que a reivindicação pela terra tivesse que passar por toda uma performance de barracas de lona preta e bandeiras hasteadas em mastros, perguntei-me sobre o que estava em jogo na montagem do acampamento 22

O compromisso com o movimento foi encontrado também nos acampamentos estudados por Ernandez (2003) no estado do Rio de Janeiro, por Loera (2006) em São Paulo e por Brenneisen (2003) no Paraná. A participação de assentados em ações dos movimentos tem sido interpretada equivocadamente por alguns estudiosos como resultante do mandonismo dos dirigentes das organizações (ver em especial NAVARRO, 2005). Tal interpretação resulta, por um lado, do desconhecimento da lógica na qual se inscreve o compromisso e, por outro, de uma visão normativa a respeito do dever ser das relações entre o “movimento” e sua base.

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para os movimentos e para os indivíduos: tratava-se de atos que tornavam legítimas as pretensões. Em seguida, procurei explicar a dinâmica e a institucionalização da forma. Os elementos da resposta foram encontrados nas relações de dependência recíproca e concorrência que vinculam o Estado, os movimentos e os indivíduos. Na Zona da Mata de Pernambuco, as ocupações não resultaram de uma demanda preexistente por terras. Os movimentos criaram a demanda e ela tem sido alimentada pelas práticas do Estado. Como houve indivíduos dispostos a atender aos convites dos movimentos, e a crer na possibilidade aberta de “melhorar de vida”, eles passaram a participar de ações que os estudiosos costumam classificar como expressões da “luta pela terra”. Vários são os efeitos dessa “luta”, dentre eles destacam-se a condição de possibilidade da política de desapropriação do Estado brasileiro nos últimos vinte anos, a criação e o fortalecimento de dezenas de movimentos de ocupação de terra e, sobretudo, o fato de que, graças a ela, centenas de milhares de indivíduos lograram obter a atenção do Estado brasileiro, beneficiando-se do acesso à terra e de políticas de crédito. Não fosse essa “luta”, tenderiam a permanecer ignorados, como boa parte da população, ou apenas seriam alvos de programas pontuais e emergenciais. É certo que a base da análise é o caso da mata pernambucana, mas um caso bem estudado ilumina o estudo de outros, coloca em questão idéias bem estabelecidas e fornece pistas para novas pesquisas e um modelo de análise.

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A engrenagem das ocupações de terra

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3 PARA ALÉM DA BARRACA DE LONA PRETA: REDES SOCIAIS E TROCAS EM ACAMPAMENTOS E ASSENTAMENTOS DO

MST*

Nashieli C. Rangel Loera

INTRODUÇÃO

O final dos anos 70 e começo dos anos 80 foram tempos de reconfigurações políticas, sociais e econômicas no campo brasileiro. Com o fim da ditadura militar, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) institucionalizou-se, não sem antes atravessar um processo longo e complexo, passando a ser reconhecido como um “movimento social”, que teria como objetivo principal o que tem sido chamado de “luta pela terra”. As ocupações de terra e a instalação de acampamentos tornaram-se eventos cotidianos e parte da paisagem do Brasil rural, além de serem a marca dessa organização.1 Segundo Stedile e Fernandes (1999), a ocupação de terras não é algo novo no cenário da luta pela terra no Brasil; o que é novo é a ocupação em massa. O MST aproveitou essa forma legítima e a incorporou como estratégia fundamental de mobilização para conseguir as desapropriações. A primeira ocupação vitoriosa no Brasil, na qual se conseguiu a desapropriação das terras, foi realizada na fazenda Macali, no município de Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, em 7 de setembro de 1979. Com aquela * Este trabalho tem como base dados da minha dissertação de mestrado: A busca do território: uma aproximação à diversidade do seu significado entre os sem-terra. PPGAS/Unicamp, 2004, para a qual realizei trabalho de campo no acampamento Terra Sem Males (abril de 2002; março a julho de 2003) e no assentamento Sumaré II (março a julho de 2003), localizados no estado de São Paulo. Outros dados empíricos mais recentes correspondem ao trabalho de campo realizado para minha pesquisa de doutorado em vários acampamentos e assentamentos do estado da Bahia (abril de 2006). 1 Ocupação foi incorporada como palavra de ordem – “Ocupação é a única solução”–, no I Congresso Nacional do MST, realizado em Curitiba, em janeiro de 1985.

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ocupação, como numa imagem de uma espiral, essa ação detonou outras ocupações e contribuiu para a consolidação do MST. Stedile e Fernandes (1999) comentam que um dos fatores que favoreceram essa onda de ocupações encabeçadas pelo MST foi o contexto histórico de democratização do país. E podemos argumentar que, nesse contexto, o marco da Constituição de 1988 foi um bom incentivo para que as ocupações acontecessem, uma vez que, desde então, as propriedades que não cumprem com sua função social podem ser desapropriadas.2 Atualmente, essa forma de mobilização se constitui, para o MST, a essência da organização e, para o Estado brasileiro, a ocupação e posterior instalação de acampamentos é a “forma apropriada” de “pedir” a desapropriação das terras. Para atender as demandas dos movimentos deve existir a ocupação e, sobretudo, um acampamento (Rosa, 2005; Sigaud, 2005).3 A centralidade da ocupação massiva de terras nos processos de reforma agrária não pode ser compreendida sem conhecer quais são as condições sociais que possibilitam essas ocupações. Talvez, tendo como foco o preâmbulo das ocupações de terras, possamos entender melhor o que vem depois, a própria ocupação e, posteriormente, a conformação dos assentamentos. Macedo (2005) chama a atenção a respeito da quase inexistente literatura que trate dos processos de mobilização que levam as pessoas a participarem de uma ocupação de terras. Segundo ele, essa etapa dos procedimentos de constituição dos movimentos ou não aparece ou geralmente é apresentada, na literatura, sob dois qualificativos: por um lado, afirma-se que a participação dos sujeitos nas ocupações é espontânea, como se os movimentos tivessem surgido de repente, magicamente. E, por outro, a participação é qualificada como um ato de violência, como se os que participam das ações de ocupação de terras o fizessem por algum tipo de constrangimento (p.475-6). Esse autor contesta essas afirmações e mostra-nos que o mundo das ocupações de terras é muito mais complexo. Como veremos, as ocupações só se tornam possíveis graças à existência de uma rede de conhecidos e familiares. Essas redes às quais faço referência são um conjunto de inter-relações pessoais pelas quais se vincula um conjunto de indivíduos (Barnes, 1987). Essas redes só se tornam possíveis graças às “práticas sociais que surgem como o resultado agregado do fato de que diferentes membros de um grupo social estão igualmente confrontados com contextos de ação semelhantes” (Pina Cabral, 1996, p.46). 2

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O artigo 184 da Constituição de 1988 estabelece: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”. In: . Movimento é o termo usado para fazer referência às organizações que promovem as ocupações, no nosso caso, o MST. Outros termos nativos apareceram também em itálico.

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É também graças a um conjunto de trocas – aquelas que os acampados mantêm com assentados e com seus lugares de origem e as que estabelecem entre si, que permitem o sustento econômico e social e contribuem para a permanência nos acampamentos – que o acampado se torna candidato à reforma agrária e, posteriormente, consegue ser assentado.

O PREÂMBULO DA OCUPAÇÃO: ACIONANDO AS REDES SOCIAIS O planejamento para realizar uma ocupação de terras começa meses antes de acontecer. Militantes, acampados e assentados se deslocam pelo interior do país, principalmente nas periferias das cidades e bairros rurais, fazendo trabalho de base. Esse é o termo usado para descrever o convite que é feito para que as pessoas participem das reuniões da terra4 e, posteriormente, participem da ocupação. Essas reuniões têm por objetivo explicar como funciona uma ocupação, um acampamento e o que representa aquilo que o MST tem chamado de conquista da terra, mas, principalmente, é nessas reuniões, como menciona Comerford, que é criado “um espaço de sociabilidade que contribui para a consolidação de redes de relações que atravessam a estrutura formal das organizações” (1999, p.47). Essas reuniões fazem parte de um modelo hegemônico de mobilização que vem sendo adotado pelo MST em diversos estados do país (Macedo, 2005). Num dos espaços estudados, o assentamento de Sumaré II, os agora assentados participaram, há mais de vinte anos, das reuniões da terra, convidados por parentes, amigos, vizinhos da região e, principalmente, pelos membros do assentamento Sumaré I. Dona Edith, moradora do assentamento Sumaré II, relata que ela e seu marido já haviam sido convidados para assistir à reunião que levou o grupo I (assentamento I) a realizar a primeira ocupação, mas só participaram depois, quando estava sendo planejada a ocupação do grupo II. Ela comentou: A gente ficou sabendo desse grupo I e ele [o marido] queria participar das reuniões, lá falaram que era só para quem estivesse desempregado e ele não era, mas ali depois [ele estava desempregado] surgiu essa outra [reunião] e ali ele foi... aí a comunidade da igreja, os vizinhos de Hortolândia convidaram a gente. Eles falaram que era para ir acampar, que se as crianças passavam fome, era para ir [sic].

Dona Iolanda, cunhada de Edith, também é moradora do Sumaré II. Ela e seu marido migraram há mais de 25 anos do interior do Paraná para a

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No estado de São Paulo essas reuniões também são chamadas de reuniões de preparação ou de frente de massa.

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região de Campinas em busca de uma vida melhor.5 Ela animou o marido para assistir às reuniões da terra. Para ela, os relatos da experiência de conhecidos e vizinhos de Hortolândia que haviam feito ocupação e haviam sido assentados, e o fato de o irmão e sua cunhada terem se animado para fazer ocupação foi fundamental para eles irem atrás da terra. A gente ouvia as histórias, falavam que ia dar certo. A terra dos do I tinha saído rápido, a gente viu que eles tinham conseguido as terra, e... eu tava com monte de filho pequenininho para criar... aí saiu a reunião das terras e falei [para o marido]: Você vai participar da reunião das terras porque na cidade não dá para resistir não, com monte de filho pequenininho [sic].

Wanderley (2003), que realizou um estudo de caso em um assentamento em Pernambuco, menciona que os laços de amizade e parentesco constituíram a base de circulação de informações sobre a ocupação que levou os sem-terra daquele assentamento a se constituírem como tais. Nas palavras dessa autora: A união de todos [os assentados] é uma referência unânime dos entrevistados. Ela foi particularmente favorecida pelo fato de que, a maioria dos que viveram no acampamento eram vizinhos, se não parentes ou compadres, portanto, já se conheciam há muitos anos (Wanderley, 2003, p.213). Outros autores (Sigaud, 2001; Brenneisen, 2003), que têm estudado acampamentos recentemente, chamaram a atenção para o fato de que as redes de conhecidos constituem um fator decisivo para quem resolve participar de um acampamento. Em Sumaré, as redes de familiares, amigos, vizinhos e conhecidos foram fundamentais não só para a própria formação dos grupos de acampados, mas também para acionar uma espiral de ocupações de terra na região. Mas, viajemos rapidamente por meio dessa espiral, da rede de conhecidos, para tentar ter uma visão diacrônica das ocupações nessa região do estado de São Paulo. O assentamento Sumaré II está localizado na mesma área que o Sumaré I, no Horto Florestal de Sumaré. O trabalho de base que reuniu as pessoas para fazerem a primeira ocupação foi feito por membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), ligadas à Comissão Pastoral da Terra (CPT) da região de Sumaré. Esse grupo das CEBs tinha estabelecido contatos, por intermédio de alguns membros do PT – que estavam envolvidos em mobilizações na região –, com membros do MST na região de Andradina (Rapchan, 1993).6 5

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Fernandes (1999) menciona que, na década de 1980, na região houve um importante crescimento industrial que atraiu grande número de trabalhadores para as cidades e municípios próximos à cidade de Campinas. A gênese do MST no estado de São Paulo é registrada com a ocupação da fazenda Primavera na região de Andradina – e o posterior assentamento naquela área de 264 famílias – realizado em 8 de julho de 1980 (FERNANDES, 1999).

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Segundo Fernandes, esse contato foi estabelecido também “quando algumas pessoas [de Sumaré] que haviam visitado alguns parentes e amigos [na ocupação que foi feita] na fazenda Primavera no final do ano de 1982, trouxeram alguns convites para participarem de uma reunião em Andradina” (1999, p.118). Estabelecidos esses contatos, entre a CPT, o PT, o MST e as pessoas que já moravam na região de Sumaré, realizou-se a primeira ocupação em 1983, na Usina Tamoio, no município de Araraquara, em São Paulo. Depois de vários despejos, finalmente o grupo fez uma negociação com o governo do estado e foi assentado, em janeiro de 1984, em uma área da Fepasa (Ferrovias Paulistas Sociedade Anônima), de 237 hectares (Rapchan, 1993). Foi a partir do assentamento desse primeiro grupo, em Sumaré, que surgiu a primeira ocupação do que, mais tarde, se tornaria o Sumaré II. Assim, aqueles assentados, que agora formam parte do grupo II, foram convidados pelos já assentados do grupo I, por militantes do MST, por membros do PT, e por pessoas da CPT para fazer uma ocupação. Fernandes (1999) comenta que o grupo I cedeu, para essa ocasião, um caminhão de madeira para a construção dos barracos. O grupo I de Sumaré não só participou com a logística e o material para a ocupação do grupo II, mas também fez o convite e a ocupação junto com eles. Com as experiências do grupo I, os trabalhadores organizados no Movimento dos Sem-Terra de Sumaré resolveram negociar com o recém-criado IAF – Instituto de Assuntos Fundiários – o assentamento de outro grupo que estava se formando. A formação do grupo II aconteceu durante o processo de fundação do MST. (Fernandes, 1999, p.122)

O Sumaré II demorou muito mais tempo do que o grupo I para ser assentado. A primeira ocupação foi realizada em 1985, e só em 1988 os acampados foram definitivamente assentados no terreno que atualmente ocupam, numa área também da Fepasa, que estava sendo alugada para a Usina Santa Bárbara. Os assentados do Sumaré II haviam participado desde o primeiro ano de acampamento, “quando entraram nas terras”, do trabalho de base de outras famílias que, mais tarde, conformariam o Sumaré III, grupo assentado em Porto Feliz. Segundo as informações colhidas em campo, tal como aconteceu com os grupos anteriores, os integrantes do grupo III que aceitaram ir às reuniões da terra, já conheciam alguns assentados dos grupos I e II. Afinal, também muitos deles eram vizinhos em Hortolândia, Sumaré ou Campinas e, inclusive, parentes. Hoje em dia, são alguns assentados, e principalmente seus filhos, que realizam trabalho de base e acompanham outras mobilizações. João, jovem do assentamento II, relatava-me que, graças a ele, alguns familiares haviam se animado a participar das reuniões e tinham ido “pro acampamento”. Agora, alguns deles já eram assentados, outros ainda 77

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estavam acampando. Ele parecia contar com orgulho as inúmeras vezes que havia feito trabalho de base; na última vez, havia convidado alguns conhecidos de um primo, que morava na cidade, para a reunião de uma ocupação, levada a cabo perto de Atibaia, Bragança Paulista, na qual ele também foi participante ativo. Dona Cida, considerada a líder do assentamento II, relatava que havia passado vários dias visitando alguns conhecidos na cidade de Sumaré, aproveitando os contatos que tinha no sindicato de trabalhadores rurais e com lideranças locais, para mobilizar pessoas e conseguir organizar as várias reuniões de preparação (que alguns meses depois dariam vida ao acampamento Terra Sem Males, o primeiro organizado pela Secretaria Regional de Campinas do MST). Nesse tipo de ação, como o trabalho de base – destinado a organizar uma ocupação – e até na própria ocupação, não participam apenas os que foram convidados, mas também os já assentados, como foi o caso de João e Cida. Quando eles e outros assentados do Sumaré II diziam, “Esse acampamento (o Terra Sem Males) saiu daqui”, pareciam fazer referência a várias coisas: 1) que eles, os já assentados, contribuíram no trabalho de base na cidade de Sumaré, “fazendo o convite para ir ocupar umas terras”; 2) que esse trabalho de base se sustenta em redes de parentesco, amizade e vizinhança; e 3) que também eles mesmos foram participantes ativos da ocupação. Eliane Brenneinsen (2003) mostra-nos, em trabalho sobre uma ocupação ocorrida há vários anos no oeste de Paraná, como, dentre as dezessete famílias que conformavam aquele acampamento, não havia somente pessoas “novas” na prática da ocupação, mas uma importante presença de membros de outros acampamentos (posseiros, agricultores), que tiveram outras experiências de ocupação, lideranças do MST e filhos de assentados. No sul do estado da Bahia não é diferente. Em abril de 2006, tive a oportunidade de participar de uma grande ocupação de terra organizada pelo MST no município de Teixeira de Freitas. Um contingente de aproximadamente 1.500 pessoas entrou em terras da fazenda Céu Azul, pertencente ao grupo da empresa Suzano Papel e Celulose. Mais da metade dos participantes era de militantes, assentados e acampados (de outros acampamentos) da região. Segundo versões dos próprios participantes, um mês antes, alguns deles, cumprindo uma ordem das “cabeças do movimento”, haviam saído dos seus assentamentos ou acampamentos de origem para realizar trabalho de base; a meta, segundo versões de militantes, havia sido juntar 3 mil pessoas para a ocupação.7 O acampamento, montado logo após a ocupação, foi mantido nos primeiros dias principalmente por esses assentados e “velhos” acampados da 7

Como sabemos, para o marketing das ocupações é importante ter a participação de um grande número de pessoas.

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região. Alguns deles participaram da comissão formada para fazer trabalho de base em Santo Antônio, o povoado mais próximo, onde já haviam sido estabelecidos contatos com as lideranças locais e havia sido marcada uma reunião com moradores do lugar. Afinal, muitos deles tinham parentes ou conhecidos ali. O objetivo era, segundo os acampados, “renovar” o acampamento. Isso significava levar pessoas “novas” para “substituir” os “velhos” acampados e assentados, para que eles pudessem voltar para seus acampamentos e assentamentos de origem. Macedo (2005) menciona que a estratégia de mobilização das famílias para as ocupações depende do tempo que se tem para realizar a ocupação. Por exemplo, diante da urgência em realizar uma ocupação – como no caso acima – ou da ausência de recursos para realizar um trabalho de base prolongado que consiga juntar o número desejado de famílias, a estratégia adotada é aumentar o número de pessoas que costumam apoiar a ocupação. Nesse caso, ela é realizada com um grupo formado essencialmente de militantes, assentados, simpatizantes e acampados de outros locais. ... Quando as condições sociais daqueles que residem nas imediações do acampamento favorecem a entrada de novas famílias, a estratégia obtém o resultado esperado. Aos poucos, as famílias que entram substituem o grupo que realizou a ocupação, já que aqueles que a apoiaram retornam para seus locais de origem. (Macedo, 2005, p.487-8)

Também na ocupação da fazenda Capuava (que deu origem ao Terra Sem Males), em Bragança Paulista, participaram não só aqueles que foram convidados no trabalho de base, mas também assentados e pessoas que pertenciam a outros acampamentos. Depois, a história se repetiu: os próprios acampados do Terra Sem Males acompanharam várias outras ocupações. Uma delas ocorreu no município de Cajamar (a 30 quilômetros da cidade de São Paulo). Segundo as versões dos próprios acampados, eles foram ocupar aquela terra com os participantes do acampamento Irmã Alberta, com a finalidade de “ajudá-los a pegar essa terra”. Esse tipo de ação constitui parte das obrigações do acampado. Está explicitado no Regimento Interno do acampamento: a obrigatoriedade da participação em ocupações e no trabalho de base “é um dever de todos os acampados”. Numa assembléia no Terra Sem Males, esse item foi lembrado a todos os acampados: “Voltem para suas cidades e façam trabalho de base”. Como vimos, isso significa convidar outras pessoas para ir ocupar uma terra. A ordem foi clara: “Não façam o convite para se juntar ao acampamento Irmã Alberta ou ao Terra Sem Males”, mas para se unir a um terceiro acampamento, o Dom Pedro Casaldáliga, que estava localizado a 500 metros daqueles dois acampamentos. As ocupações não aconteceriam se “velhos” acampados e assentados não participassem acionando as redes de conhecidos, mas, sobretudo, se essa 79

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participação não fosse vista como uma troca que tem que ser feita com o movimento, como um cumprimento do que eles chamam de compromissos e obrigações.8

OS COMPROMISSOS E AS OBRIGAÇÕES No Sumaré II, algumas pessoas participam “voluntariamente” das mobilizações organizadas pelo MST (como marchas, caminhadas, trabalho de base e ocupações). Dona Edith, a quem já fizemos referência, disse não ser militante do MST, mas participa das atividades por sentir uma dívida para com o Movimento, nas palavras dela, um compromisso, pois “ajudaram a gente a pegar essa terra”. Ela não participou do último trabalho de base feito em Sumaré, mas participou, ao longo de vinte anos, de várias passeatas e marchas, a última delas uma marcha para Brasília, na qual foi acompanhada da filha. Ela explica: “O MST mandou um ônibus e pediu para a gente ir dois de cada família... e assim fomos... eles [o MST] não obrigam a gente a participar, mas a gente tem esse compromisso”. Dona Malvina, também assentada do Sumaré II, explica que ela não participa mais dessas atividades fora do assentamento, mas sim seu filho: “Quando falam que tem que ir um da família para passeatas e essas coisas, é meu filho que vai, e antes era meu marido que ia”. Mas, segundo ela, sempre há alguém que cumpre com esse compromisso. Dona Iolanda conta que, apesar de ser moradora de um assentamento do MST, não é militante, mas participa das atividades, pois ela e sua família tiveram muita ajuda do Movimento para ter o que têm. Para ela, sua participação torna-se um elemento da troca com o MST, uma retribuição. Dona Cida considera-se parte do MST – no sentido de ser militante – e, como tal, sente o compromisso de ajudar. Conta que cumpria seus compromissos “levando outros para a terra”, o que significava fazer trabalho de base e participar junto com seus convidados nas ocupações de terra; ela cobrava a participação de outros assentados e os colocava numa posição de devedores para com o Movimento, dizendo: “Aqueles que já são assentados, têm um dever, têm que continuar na luta pela reforma agrária e, para isso, o trabalho de base é importantíssimo”. No trabalho de base em Sumaré, ela havia convidado seu Cena e seu Brauná, conhecidos de longa data, para fazerem parte do Terra Sem Males. Em várias de minhas estadas no assentamento os encontrei na casa de dona Cida, de visita, pois haviam passado pelos bairros onde moravam, na mesma cidade de Sumaré, para fazer trabalho de base. Eles comentavam 8

Marcel Mauss (1988) menciona que toda troca está contida em um sistema de prestações que envolve três elementos: dar, receber e retribuir.

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que faziam esse trabalho cumprindo suas obrigações, mas também por se sentirem comprometidos, não com o MST, mas sim com dona Cida, que foi quem os convidou para fazer ocupação. Essa razão era apontada também por outros acampados do Terra Sem Males que visitavam seus conhecidos no assentamento. Aliás, entre outras coisas, esse compromisso que sentiam impedia-os de mudar ou desistir do acampamento. Brenneisen (2003) relata como alguns acampados, num contexto de conflito dentro do acampamento, tomaram o partido das lideranças (militantes) por se sentirem comprometidos com uma liderança regional do MST, que os havia selecionado para participar da ocupação. Essa autora menciona que esse compromisso se traduz como lealdade. No acampamento Terra Sem Males, essa lealdade ou compromisso também é dirigida aos que fazem o convite. Zé Antonio, acampado do Terra Sem Males, se considera militante do MST e é “velho” na arte de ocupar terras, faz mais de quinze anos que “acompanha o movimento”. Ele sentia-se orgulhoso de que nenhum dos que ele tinha convidado “tinha desistido da luta”, o que significa que nenhum deles tinha deixado o acampamento. Vivaldo foi convidado por Zé Antonio para “ir pro Terra Sem Males”; eles eram vizinhos na cidade de Limeira. Ele ficou desempregado e encontrou com o Zé quando este, cumprindo com suas obrigações, fazia trabalho de base nessa cidade. Vivaldo contou que já fazia vários meses que estava debaixo da lona e que estava sendo muito difícil agüentar, uma vez que estava acampando sem a família e dormindo num barracão com vários homens, mas não queria desistir porque, além de ter poucas opções de trabalho na cidade, se sentia comprometido com Zé; ele tinha negociado a entrada de Vivaldo com os coordenadores do acampamento e, logo depois, tinha conseguido cesta básica. Assim, sua estada e participação das atividades do acampamento era uma forma de retribuir a Zé Antonio, de cumprir com os compromissos. Esse caso ilustra aquilo que o MST chama de “frente de massa”, e que Lopes (2002, p.290) define como “inúmeros militantes que se deslocam pelo interior do país e arregimentam famílias de posseiros, moradores em periferias das cidades, núcleos rurais etc.”. Essa prática, como já vimos, é traduzida pelas redes sociais das quais os acampados fazem parte e, portanto: Prevalece [e ao meu modo de ver é fundamental] o que costumamos chamar de “boca a boca”: alguém que soube do acampamento conta para outro que, por sua vez, passa adiante, até alcançar a família ou os indivíduos ou os grupos que se dispõem a arriscar alguma possibilidade junto ao Movimento. (Lopes, 2002, p.290)

Dona Maria, também acampada no Terra Sem Males, tem uma irmã assentada em Sorocaba, no assentamento Carlos Lamarca. Faz tempo que 81

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conhece o Movimento – na Bahia, tinha participado de outros acampamentos e saído por razões pessoais, uma delas, o término do seu casamento. Vendo como sua irmã estava tão bem, decidiu “voltar para o movimento”. Sua irmã a animou, mas também ela diz sentir um compromisso, não só com o MST, mas com os sem-terra.9 Ela explicou: “A gente tem uma obrigação, sim, de ajudar no acampamento. Por exemplo, fazer arrecadação, participar do almoxarifado, da farmácia, ajudar, né? Mas a gente tem esse compromisso de ajudar os outros, os sem-terra”. As obrigações para os acampados e assentados parecem ter um significado mais concreto, e se traduzem nas atividades do dia-a-dia no acampamento e no assentamento, por exemplo: arrecadar alimentos, participar das reuniões, fazer trabalho de base, fazer ocupação, marchas. No entanto, essas obrigações fazem parte dos compromissos, que adquirem um sentido mais geral e abstrato; e estão inseridos numa dinâmica de obrigatoriedade e reciprocidade, de uma troca com o MST, ou ainda com uma pessoa em particular, no caso, o compadre, vizinho, amigo ou parente que fez o convite. José de Souza Martins (2003), que foi organizador de um trabalho comparativo de cinco estudos de caso em assentamentos rurais no Brasil, menciona que: Em todos os casos estudados, as pesquisadoras observaram a importância tanto da rede de parentesco na mobilização, na luta e no modo de inserção nos assentamentos, como da rede de parentesco simbólico, de lealdades comunais e de solidariedades antigas, baseadas em deveres de reciprocidade e de troca de favores. (2003, p.19)

Essa lógica das obrigações e compromissos permite-nos entender, então, a própria lógica das ocupações. Atores, que cumprem certas obrigações e compromissos, mobilizam outros atores conectados entre si. Assim, a ocupação adquire forma de uma grande espiral. Um assentamento sempre está conectado com um acampamento e, por sua vez, um acampamento sempre terá um vínculo com outro, em formação ou já formado.

A CIRCULAÇÃO DE AJUDAS As redes sociais, acionadas pelos assentados e acampados que cumprem com seus compromissos, ultrapassam as fronteiras dos acampamentos e não se limitam ao trabalho de base, à organização das reuniões da terra, à ocupação e à montagem das barracas. Como vimos, tanto os assentados 9

A maioria dos acampados faz referência ao MST como os militantes dessa organização, e sem-terra é o termo geral para designar aqueles que participam dos acampamentos ou são moradores dos assentamentos.

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como os acampados sentem-se comprometidos com seus convidados e, na maioria dos casos, estabelece-se uma circulação do que eles chamam de ajudas, que podem ser materiais, simbólicas, ou ainda emocionais (ou “de apoio”). Como veremos, essas ajudas não só são uma forma de manter e atualizar as relações sociais, mas, também, é graças a elas que as pessoas conseguem permanecer nos acampamentos. Para alguns acampados, a sua luta é mais legítima e, portanto, mais sofrida quando comparada à daqueles que têm alguma ajuda de “fora” do acampamento; por exemplo, aqueles que, além da cesta básica, são beneficiários de políticas governamentais, como os acampados que recebem uma aposentadoria; ou em outros casos, aqueles que têm imóveis na cidade; ou aqueles que recebem apoio econômico de parentes, amigos ou conhecidos que não são acampados. Seu Alfredo, acampado do Terra Sem Males, é aposentado e recebe um salário mínimo por mês. Marcos, seu filho de 16 anos, trabalhava em Sumaré e mandava dinheiro para ele. É com essa ajuda que sobrevivem cinco pessoas: ele, sua mulher, seu filho caçula de 13 anos, o filho mais velho e a mulher dele. Dona Maria é ajudada por parentes que moram em São Paulo, de onde lhe mandam comida e, às vezes, dinheiro. E, principalmente, recebe ajuda da irmã, assentada no Carlos Lamarca. Chris, sua filha, disse ter “um padrinho rico em São Paulo”, para quem às vezes liga pedindo algum tipo de ajuda em dinheiro ou em espécie: por exemplo, quando teve seu filho, ele comprou o berço do neném e mandou para o acampamento. Jô, que está acampando junto com suas quatro crianças pequenas, recebe dinheiro do marido que ficou trabalhando na cidade. Na formação do assentamento de Sumaré II, muitos homens e mulheres foram acampar primeiro sozinhos, e recebiam ajuda da esposa ou do marido que trabalhava na cidade, ou como bóia-fria. Dona Iolanda, que já conhecemos, trabalhava como empregada doméstica na cidade; ela não levava dinheiro para seu marido que estava acampando, pois tinha que manter suas crianças, mas levava comida. Dona Edith, também do Sumaré II, trabalhava como bóia-fria; ela tinha menos filhos que Iolanda e “algumas vezes dava para ajudar o marido que estava acampando em Aparecidinha na beira da estrada”. Hoje em dia, essas assentadas, como muitos outros do Sumaré II, ajudam o Terra Sem Males doando principalmente produtos da roça, comida e roupas. Como já vimos, eles sentem-se comprometidos com o movimento. É importante destacar que as ajudas individuais, que alguns acampados recebem, dependem principalmente da solidez das redes de parentesco, amizade e afinidade que se estendem para além dos acampamentos. Barnes destacou como o conceito de rede pode ser útil para descrever grupos sociais em situações nas quais “o indivíduo está envolvido em relações 83

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interpessoais que transpassam as fronteiras da vila, subcasta e linhagem” (Barnes, 1987, p.163). No nosso caso, essas relações ultrapassam as fronteiras dos acampamentos. Essas ajudas parecem ser uma prática comum entre os acampados e, desde o surgimento dos primeiros acampamentos do MST, elas, que têm como base as redes sociais antes descritas, tornaram-se fundamentais para a própria sobrevivência e continuidade dos acampamentos. Todavia, o próprio MST parece ter incorporado como parte de sua estratégia esse tipo de circulação de ajudas, aproveitando os vínculos existentes entre acampados e assentados, logo, entre acampamentos e assentamentos. Um exemplo é a arrecadação de alimentos que os próprios acampados levam a cabo, como parte das obrigações que têm de cumprir. Essa atividade, muitas vezes, é feita nos assentamentos do MST. As ajudas entre os sem-terra do assentamento para o acampamento, ou de quem fez o convite para o convidado, também têm como base uma lógica de reciprocidade. No entanto, essa lógica insere-se, também nesse caso, em uma dinâmica da troca, contida num sistema de prestações que envolve três elementos: dar, receber e retribuir. Vejamos, então, por meio de outros exemplos etnográficos, como se dão essas ajudas. João Pires, conhecido como o líder do acampamento Patioba, no litoral norte do estado da Bahia, é ajudado pelo irmão assentado no Sete Brejos, no estado vizinho de Sergipe; foi ele que o convidou para organizar a ocupação na fazenda Marimbondo, terras do seu antigo patrão. Segundo João, seu irmão é militante do MST e, além de ajudá-lo a conseguir alguns bicos (ou seja, trabalhos temporários) para sustentar sua família, consegue alimento para as famílias acampadas e, de vez em quando, aparece com outros militantes para “dar palestras” e ajudá-los na organização do acampamento. João se sente pessoalmente comprometido com as dezoito famílias acampadas, já que foram ele e seu irmão que as convidaram para fazer parte do acampamento. Já Neia e seu Cena, acampados no Terra Sem Males, recebem ajuda de dona Cida, assentada em Sumaré II, que foi quem os convidou para fazer a ocupação. Não há entre eles uma relação de parentesco, mas sim “conexões interpessoais que surgem a partir da afiliação a um grupo” (Barnes, 1987, p.163). Alguns acampados comentavam a respeito das ajudas que Neia e Cena recebiam de Cida, como se ela estivesse cumprindo com uma obrigação por tê-los convidado para fazer ocupação. Dona Cleusa, por exemplo, disse: “Cida manda para eles um monte de coisas: roupas, comida, até legumes e frutas da roça dela, ela ajuda eles pa´caramba, mas, foi ela quem os convidou para vir [acampar], né?”. Seu Zé Antonio relatava como, além de fazer um trabalho de apoio moral entre seus convidados que estavam acampando no Terra Sem Males, 84

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ajuda-os arrumando o barraco ou mexendo na horta, já que sente que tem um compromisso para com eles. Para seu Beto, também do Terra Sem Males, a vida de um acampado que tem ajudas vindas de “fora” do acampamento torna-se mais fácil, uma vez que não precisam fazer bicos. Ele tem que “se virar fazendo esses bicos” dentro do próprio acampamento ou na cidade de Polvilho, para se sustentar e poder ficar acampado.10 Sigaud (2000) revela que essa prática de realizar trabalhos eventuais é comum também nos acampamentos da Zona da Mata pernambucana, onde os acampados realizam o que eles chamam de beliscadas. Seu Beto cuida de uma égua e um cavalo de um vizinho do acampamento, cobrando por esse serviço R$ 10 (dez reais) por dia ou trocando o trabalho por comida. Poucas vezes ele mesmo prepara seus alimentos, pois costuma dar a cesta básica que recebe todo mês para seu vizinho que, segundo ele, “têm várias crianças e precisa mais dela”. Esse mesmo vizinho geralmente convida Beto para almoçar ou a mulher dele lhe prepara uma marmita. Beto também corta o cabelo de algumas pessoas no acampamento e, segundo ele, só cobra de quem “sabe que pode pagar” e, às vezes, quem “não paga” em dinheiro lhe retribui depois convidando para almoçar ou jantar. Desse modo, esse tipo de bicos e ajudas que envolvem trocas como as estabelecidas entre Beto e seus vizinhos, ou de Zé Antonio e João Pires com seus convidados acampados, seriam, em teoria, voluntárias mas, na prática, obrigatoriamente dadas e retribuídas. Para explicar melhor qual é a dinâmica que se segue a essas trocas nos acampamentos, retomemos o clássico Malinowski (1995 e 2002). Esse autor, ao descrever a complexa prática do Kula, mostra-nos como, na própria troca dos presentes, dá-se uma infinidade de outras transações que intermedeiam o presente inicial e final. Menciona que, em geral, na própria prática da troca existem várias formas de dar e receber. Entre os trobriandeses, há o presente concreto, que tem uma significação social entre marido, mulher e filhos, e que não tem retribuição; presentes em forma de pagamentos; pagamentos obrigatórios por serviços nos quais o que é pago é fixado pelo costume; presentes que devem ser retribuídos com um equivalente; ou intercâmbio de bens materiais e não materiais, troca cerimonial, como no caso do Kula; e o comércio. O autor, ao explicitar essa amplitude, variedade e fluxo das trocas, mostra-nos como o princípio da troca muda dependendo da condição daquele que dá e daquele que recebe. No nosso caso, o princípio da troca depende se aquele que recebe é parente, amigo, compadre, vizinho ou só conhecido.

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O acampamento Terra Sem Males, em 2003, estava localizado no município de Cajamar e literalmente na periferia da cidade de Polvilho.

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No Terra Sem Males as transações de bens ou serviços também são fluidas e podem ter ou não como base laços de parentesco. Muitas vezes, a troca depende também de relacionamentos muito próximos, que são construídos com a convivência dentro dos acampamentos. E, sem dúvida, a prática da troca tem “uma função sociológica específica de construção e manutenção de laços sociais duradouros” (Peirano, 2003, p.14). Seu Ramiro, do Terra Sem Males, costuma comprar ou recolher, nas ruas da cidade próxima ao acampamento, móveis ou objetos usados que depois vende para os acampados. Seu Alfredo, vizinho de grupo e barraca de seu Ramiro, comprou dele um fogão para seu filho. Eles parecem ter uma relação de proximidade, e várias vezes eu os encontrei trabalhando juntos, ajudando a arrumar o barraco de um ou do outro; inclusive, quando seu Ramiro não está no acampamento, dona Cleusa, esposa de Alfredo, cuida da cachorra do seu Ramiro. Segundo ele, por considerar essa relação próxima, vendeu o fogão barato. Como já vimos por outros exemplos, esse tipo de troca no interior dos acampamentos é chamada pelos acampados de bico. A troca que acabamos de descrever parece ter sido uma troca estabelecida só entre seu Alfredo e seu Ramiro, mas envolve, na realidade, outras trocas e pessoas. Existe uma transação que foi feita entre os dois acampados, mas o fogão que foi o objeto da troca era destinado para Tiago, o filho de seu Alfredo. Neide, a coordenadora do Terra Sem Males, também faz alguns bicos que se inserem igualmente em uma dinâmica de troca. Ela fabrica pão. Alguns acampados dão o material e ela cobra mais barato pelo pão; ou ela compra os ingredientes e vende diretamente para quem encomenda ou para quem chega para comprar na sua barraca. Para alguns acampados, principalmente com os quais tem amizade, vende fiado, embora, muitas vezes não receba o que lhe é devido. Outras vezes, simplesmente dá o pão para eles. Bourdieu (2002) já havia chamado atenção a respeito da incerteza da troca. Para ele, a troca supõe uma criação contínua, pode ser interrompida a qualquer momento e também pode não ter resposta. A troca depende, portanto, do momento no qual está acontecendo. Há um espaço de tempo que separa aquilo que se dá daquilo que se recebe. Nas palavras do autor, “reintroduzir a incerteza [na troca] é reintroduzir o tempo, com seu ritmo, sua orientação, sua irreversibilidade...” (Bourdieu, 2002, p.170, tradução minha). Como vemos, a dinâmica da troca não se dá só entre assentados e acampados, mas também acontece dentro dos próprios acampamentos. Além dos elementos acima mencionados, no Terra Sem Males a barraca de lona preta se torna também um elemento de troca. A mudança de barraco dentro do mesmo acampamento é bastante comum e as razões da mudança podem variar, mas algumas vezes as trocas que envolvem a barraca de lona preta têm como base laços de afinidade existentes entre os acampados. Por exemplo, Gracilda e Índio estavam mudando de acampamento; seus vizinhos de barraco, dona Cleusa e seu Alfredo, conversaram com eles dias 86

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antes da mudança para poderem ficar com a barraca da família de Índio assim que eles saíssem. Dona Cleusa achava que esse lugar era melhor, pois estava perto do poço de água e, além disso, ficava no mesmo grupo de barracas e ao lado do barraco de Tiago, seu filho. Dona Cleusa explicava também como “é vantagem ficar dentro do mesmo grupo [de barracas]... a gente está acostumada já com os vizinhos”. O acordo da mudança de barraca foi aceito pelas duas partes e foi precisamente nessa transação que se fez visível a troca. Seu Alfredo passou o dia inteiro ajudando Índio a guardar as coisas e a fazer gaiolas para as galinhas que estavam levando. Dona Cleusa ajudava Gracilda a colher algumas mandiocas que tinham plantado. Júnior, o filho caçula de dona Cleusa e seu Alfredo, ajudou carregando coisas que estavam na barraca de Índio e levou-as para mais perto do caminho de terra. Esse mesmo caso se repetiu quando os próprios Alfredo e Cleusa mudaram para outro acampamento e seu Zé Antonio decidiu mudar para o barraco onde eles estavam. Dias antes da mudança, seu Zé Antonio ajudou dona Cleusa e seu Alfredo em algumas tarefas.11 Nesse tipo de acontecimento, também são visíveis outras trocas e elementos importantes envolvidos. Esse é o caso da lona preta. Estando no barraco de Neide, a coordenadora do acampamento, várias vezes acampados chegaram pedindo um “pedaço de lona”. Eles não iam mudar de acampamento, nem eram novos acampados que iriam construir pela primeira vez seu barraco. O “pedaço de lona” serviria, então, para emendar uma parte rasgada da barraca, para fazê-la maior ou, curiosamente, para guardá-la e talvez trocá-la depois. Percebi que alguns acampados, preparando-se para uma possível mudança do acampamento no futuro, preferiam ter, como seu Zé Antonio explicitava, “um pedaço de lona por perto”. Alguns acampados que acompanhavam as ocupações do Terra Sem Males há um ano e eram, portanto, experientes na prática da ocupação, comentavam que na hora de mudar de acampamento “o caminhão pega tudo e joga tudo, o de todo mundo [do acampamento] junto” e sempre o problema parecia ser conseguir de novo os paus de bambu e a lona para armar a barraca. Mas também, segundo as versões dos acampados, “quando venta muito, a lona rasga” e sempre precisam consertar a barraca e, para isso, a lona é indispensável. Por todas essas razões apontadas pelos acampados, a lona adquire um valor não só simbólico, mas também prático. Assim, a diversidade de trocas e dádivas depende da natureza do objeto que é trocado. A lona, dada a sua importância, e uma vez que consegui-la fora [do acampamento] custa caro, torna-se um elemento valioso de troca. Devo retomar Malinowski (2002) que, ao analisar as trocas entre os membros de uma comunidade de pesca11

A barraca é um elemento de extrema importância quando se está acampando, uma vez que é por meio dela que se pertence ao acampamento. Para mais detalhes sobre o significado simbólico da barraca, ver Loera (2004).

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dores e outra de artesãos na Melanésia, mostrou que o valor do objeto em troca depende do desejo que se tem por ele. Mas dentro do acampamento a troca de serviços entre vizinhos é bastante comum. Esse tipo de troca não envolve os chamados bicos. Essa troca de serviços se dá em todas as situações cotidianas, principalmente entre as mulheres. Cuidando das crianças, ajudando a lavar louça e a roupa. Existem, inclusive, trocas que são estabelecidas dentro do marco da disciplina do acampamento. É comum que os acampados troquem o dia em que têm de cuidar do almoxarifado, da farmácia ou da secretaria. E o mais comum é a demanda de “troca de dias” entre aqueles que estão no setor de segurança e que devem ficar na portaria vigiando durante várias horas. Talvez esse tipo de troca seja mais comum, porque alguns acampados consideraram esse tipo de tarefa estafante.

OS BONS CONTATOS COM O “POVO DA CIDADE” Os bicos podem ter diversos significados, uma vez que fazê-los não compreende apenas os trabalhos eventuais dentro do acampamento, mas também aqueles trabalhos intermitentes que um acampado realiza fora dos limites do acampamento, principalmente na cidade mais próxima. Ângela, junto com outros acampados, “cata papelão em Polvilho” e o vende lá mesmo, na cidade. Ela explica: “Tem dias que junto bastante e dá para vendê-lo... com isso compro alguma misturinha... é uma ajuda”. Dona Cleusa e seu Alfredo mudaram para um acampamento perto da cidade de Birigui, na região de Andradina. Eles deixaram de receber por um tempo o dinheiro da aposentadoria dele. Dona Cleusa comentou que, durante um mês, tiveram que “fazer uns bicos catando tomate” em uma plantação próxima ao acampamento e tiveram que tirar o filho [caçula] da escola para que também ajudasse. Seu Chicão parece estar em contato contínuo com indivíduos que moram na cidade de Polvilho, e estabeleceu o que chama de “bons contatos”. Ele sabe curar com ervas e, além de atender o “povo do acampamento”, sempre tem clientes da cidade que pagam por seus serviços. Segundo ele: “Cobrando para os de fora [do acampamento] R$ 5,00 (cinco reais) a consulta... dá... já é uma ajuda”. Ana, moradora da periferia de Polvilho e que encontrei várias vezes na barraca de seu Chicão, mencionou que o que ele cobrava por uma consulta era muito mais barato do que um médico na cidade e, além disso, “gostava de bater papo com ele”. Fazer esse tipo de bico não é próprio só dos acampamentos. No assentamento de Sumaré II, os moradores, principalmente quando não é época de plantar, procuram atividades alternativas fora da área do assentamento. 88

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Dona Iolanda, por exemplo, aceitou trabalhar fazendo faxina em um prédio em Campinas. Ela explicava: “Isso já é uma ajuda para mim, meus filhos todos trabalham... e como agora a roça não está dando e o das folhas já terminou [a temporada], é bom fazer esse biquinho”. Esse tipo de trabalho eventual, realizado fora das fronteiras do assentamento, é chamado pelos moradores do Sumaré II de “bico” ou “ajuda”. Garcia (1983) menciona que, entre pequenos produtores de Pernambuco, o trabalho dos filhos e das mulheres na unidade de produção familiar “aparece como gratuito, como uma ajuda que é prestada ao pai” (1983, p.102). Já no assentamento, embora também exista a categoria ajuda, não diz respeito a todo trabalho realizado por mulheres e filhos. No assentamento, algumas mulheres realizam um trabalho coletivo secando folhas de mandioca que, depois, vendem para uma comunidade de freiras em Campinas.12 As folhas são coletadas nos próprios terrenos das trabalhadoras, levadas para um barracão, que fica ao lado da casa de Edith e Iolanda, separadas e penduradas por dois ou três dias até secarem. Depois são colocadas numa peneira grande e amassadas com as mãos até virarem pó. Cada 50 gramas de pó de folha de mandioca é vendido por R$ 0,50. Essa atividade, para Edith e Iolanda, é um trabalho, já que é realizado dentro das fronteiras do assentamento. Consideram-no algo permanente, apesar de ser sazonal. Dona Malvina e dona Marina têm uma banca de frutas e legumes na entrada do assentamento, que atende às pessoas que passam pela estrada. Esse tipo de atividade não é denominado “bico”, mas “trabalho” ou “serviço” porque, apesar da venda dos produtos dar-se para clientes de fora do assentamento – geralmente pessoas dos bairros e cidades próximas – a atividade ainda é realizada dentro do assentamento e implica não uma atividade temporária, mas permanente. Esse também é o caso de Penha, para quem a atividade de “catar goiaba”, no mesmo assentamento, é um trabalho. Joan Vincent (1987) acertadamente coloca que indivíduos, no interior do que ela chama de “sociedade agrária”, estão sempre envolvidos em inúmeras ocupações, entre elas, o trabalho na roça, serviços itinerantes, trabalho artesanal não especializado e serviços domésticos. Mas não existe apenas um tipo de troca individual entre acampado e assentado com o “povo da cidade”, também há trocas do conjunto dos sem-terra, principalmente por meio dos acampamentos. Alguns dos acampamentos, pelo menos na região de Campinas e São Paulo, são instalados a pouca distância das cidades. No caso do Terra Sem Males e do Irmã Alberta, estão ao lado da cidade de Polvilho. Segundo os depoimentos de vários acampados, “foi muito o apoio do povo da cidade”. 12

Segundo versões das assentadas, as freiras mantêm uma espécie de comedor comunitário e o pó da folha de mandioca é dado para crianças, como complemento vitamínico.

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Alguns mencionavam que quando realizaram a ocupação, não só foram manifestações de apoio com gritos, mas também alguns receberam “até comida do povo da cidade”. Antes de ser feita a ocupação, existia um lixão naquele lugar. Os acampados contam que, ao chegarem lá, tiveram que limpar o lugar de todo tipo de coisas. Alguns comerciantes da periferia da cidade de Polvilho também comentavam que o terreno era “lixão de corpos”: sempre tinha briga nessa parte da cidade e, muitas vezes, assassinatos, e os cadáveres terminavam sendo jogados lá.13 Em depoimentos colhidos de maneira informal com habitantes de Polvilho, eles quase sempre demonstravam uma simpatia pelo fato de os acampamentos estarem no lugar do lixão. O dono de uma lanchonete deixava explícito esse apoio e comentava: Para a gente foi melhor... aquele lugar era um ninho de bandidos, sempre dava briga e a gente já escutava que estava tendo um negócio lá [faz sinal de arma] e não dava para passar por aquele lugar... agora esse pessoal está lá... plantando, não mexem com a gente, pelo contrário, é mais negócio para nós, o pessoal [dos acampamentos] sempre vem por aqui... [sic].

Com a instalação de um acampamento num espaço considerado pelos habitantes daquele lugar como “problemático”, os acampados possibilitam a sua revitalização, por meio do plantio de hortas e instalação de famílias. Assim, o movimento espera em troca o apoio da população do lugar. Isso faz parte das estratégias do MST. Não é à toa que “a beleza” seja um dos valores fundamentais socializados pelo MST entre os acampados. No próprio texto do MST, “A vez dos valores”, isso é explicitado: A beleza deve ser, para nós, um valor fundamental, pois desde os primórdios ela é símbolo do bem-estar. As áreas da reforma agrária são geralmente devastadas, antes de serem desapropriadas, pela ganância dos latifundiários. Se quisermos, poderemos reproduzir as florestas. (Bogo, 1998, p.9) No acampamento, por exemplo, os militantes insistem em manter sempre o barraco limpo, plantar flores e hortas, e quando sabem que chegará visita para conhecer o acampamento, geralmente é formada uma comissão para ajudar a limpar com a finalidade, como disse a coordenadora do acampamento, de “que vejam o acampamento bonito e limpo”. Alguns autores (Woortmann, 1997; Paoliello, 1998; Tedesco, 1999; Brenneisen, 2003) têm chamado a atenção sobre o significado que pode ter o fato de limpar e mexer na terra como um ato legitimador da posse pelo trabalho.

13

Uma militante do acampamento relatou-me que poucos meses após a ocupação em Cajamar, dois militantes do Terra Sem Males foram detidos pela polícia, pois encontraram, perto do acampamento, o corpo de um jovem da cidade. Horas depois foram postos em liberdade, tendo sido comprovada sua inocência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Os indivíduos que decidem participar das chamadas reuniões da terra, e depois de uma ocupação, o fazem tendo diversas motivações. Aqueles que participam pela primeira vez têm a expectativa de conseguir “um pedaço de terra” que, na maioria dos casos, significa aspirar a uma vida melhor, a ser autônomo e, sobretudo, a não ter patrão. Para muitos outros, participar de uma ocupação e depois ficar nos acampamentos é uma saída a curto prazo para a situação de desemprego e precariedade na qual se encontram, é uma alternativa de subsistência. Mas, como menciona Sigaud (2005, p.266), todos eles compartilham uma crença: “A lona preta passa a fazer parte do repertório das possibilidades de ‘melhorar de vida’... Quando um indivíduo passa a fazer parte de uma ocupação, crê e aposta nas possibilidades da lona preta”. Outros participantes das ocupações, principalmente os militantes do MST, vão por outros motivos: “para apoiar o movimento”, o que, conforme os próprios atores, significa, por um lado, “fazer a massa” e, por outro, “apoiar a própria organização do acampamento”. Os militantes, junto com aqueles que não se consideram parte da militância do movimento, mas que já fazem parte de algum assentamento ou acampamento, participam cumprindo com uma série de compromissos e obrigações que têm ou sentem para com o MST, principalmente para com o amigo, vizinho, parente ou compadre que os convidou para participar pela primeira vez da ocupação. O preâmbulo das ocupações, ou seja, o trabalho de base e as reuniões da terra se sustentam em redes sociais, de amizade, de parentesco ou de vizinhança, que, com a circulação de informações entre “velhos” e “novos” acampados sobre a experiência da ocupação, são fundamentais para que as pessoas participem e a ocupação aconteça. O conceito de redes sociais é de grande utilidade analítica, pois permite entender, abarcar e apreender o movimento dos indivíduos envolvidos. Desse modo, retomando a afirmação de Carvalho (2002), é provável que um dos “segredos íntimos” do sucesso e da capacidade organizativa e de mobilização da organização dos trabalhadores rurais sem terra seja a sua capacidade de “constituir-se como um tipo de sociedade em rede” (2002, p.44), em que as relações interpessoais, os laços de vizinhança e amizade preexistentes tornam possível a espiral das ocupações de terras. Destarte, podemos argumentar que não só os indivíduos que participam das ocupações dependem dos movimentos, nesse caso do MST, para serem candidatos à reforma agrária, mas também o movimento, para existir, depende desses indivíduos. Existem, portanto, relações de dependência recíproca. Contudo, o próprio sustento econômico e social dos acampamentos também depende das redes sociais e da circulação do que os acampados chamam de ajudas. Esses espaços – os acampamentos – configuram-se 91

Para além da barraca de lona preta

como um lugar de troca onde se fortificam os laços sociais de parentesco, vizinhança e amizade, e onde outros se criam e se recriam, formando novas redes sociais. Embora as relações sociais estabelecidas dentro desses espaços não sejam diferentes daquelas que se dão nos bairros e periferias de origem dos acampados, nos acampamentos essas relações adquirem uma especificidade, uma cor local. Algumas das trocas envolvem o que os acampados e assentados chamam de bicos e ajudas. Os bicos são, muitas vezes, trabalhos eventuais realizados dentro ou fora do acampamento e que podem ou não ter um pagamento em dinheiro. As ajudas que os acampados recebem dependem da solidez das redes sociais que se estendem para além do acampamento e, especificamente, do compromisso que os assentados sentem de ajudar os acampados que convidaram para fazer ocupação. Assim, essas ajudas entre assentados e acampados e dentro dos próprios acampamentos são diversas e fluídas dependendo do que se troca, com quem e em quais circunstâncias. As trocas e contatos dos acampados com o “povo da cidade” também ajudam sua subsistência dentro dos acampamentos e criam novas relações além de suas fronteiras.

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4 A “FORMA MOVIMENTO” COMO MODELO CONTEMPORÂNEO DE AÇÃO COLETIVA RURAL NO

BRASIL

Marcelo Rosa

INTRODUÇÃO

Este trabalho procura analisar o processo pelo qual uma forma específica de conflito, enunciado nas formas de movimento e ocupação, foi se estabelecendo em diversas áreas do país como uma maneira legítima de relação entre agentes do Estado e grupos organizados que demandam sua atenção.1 Para isso, parte-se da exposição de quatro contextos ou casos cronologicamente dispostos ao longo dos últimos quinze anos, nos quais essas duas formas de ação social foram utilizadas. O primeiro caso é o da chegada (em 1989) do MST à região da Zona da Mata de Pernambuco, lugar marcado pela hegemônica representação dos trabalhadores rurais pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (Fetape). O segundo, também na mesma região, mas já no início do ano 2000, recupera o processo pelo qual a CPT afirma-se como um movimento atuante nas ocupações de terras a partir de pressões do INCRA. O terceiro caso é de um movimento criado por um grupo dissidente do MST, em Pernambuco, que tinha como bandeira inicial a não-realização de acampamentos e ocupações de terra. O quarto e último narra a formação do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), no Rio de Janeiro, no ano de 2004. Embora se trate 1

Corroboro aqui o ponto de vista de Borges (2004), de que sociologicamente o Estado só se faz presente na vida cotidiana das pessoas como governo e não como uma abstração presente nas teorias das ciências sociais. Abstrações que, na maioria dos casos, têm servido de esteio etnocêntrico para disputas em torno de um modelo ideal (ou típico-ideal) de sociedade.

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de um caso alheio ao contexto rural, temos neste último episódio a mobilização dos elementos simbólicos que constituem o que chamo de forma movimento, a partir das reflexões de Sigaud (2000) sobre acampamentos e ocupações. A concatenação dessas experiências visa lançar luz sobre as formas e ações que têm sido utilizadas para se iniciar processos específicos de conflito de grupos rurais com o Estado. O estudo comparado dessas gêneses, a um só tempo dissonantes e complementares, é fundamental para um debate sobre o momento e as formas necessárias ao reconhecimento desse tipo de ações sociais como conflitos.

ACAMPAMENTO? MOVIMENTO? E ONDE ESTÁ O SINDICATO? O MST aportou no estado de Pernambuco pela primeira vez em 1989, quando um grupo de dirigentes e militantes vindos de Sergipe, Paraíba e Alagoas, coordenados pela direção nacional, fundou a primeira secretaria do movimento no município de Palmares, na região da Mata Sul. Naquela cidade, pessoas ligadas ao sindicato de trabalhadores rurais e à Igreja Católica deram abrigo aos membros do MST, que começaram a contactar associações de bairro, sindicatos e políticos da região.2 Após vários meses do chamado “trabalho de base”,3 encontraram no prefeito do município de Cabo de Santo Agostinho, na região metropolitana de Recife, apoio político e financeiro para realizar sua primeira ocupação de terras no estado.4 A área escolhida – um engenho, localizado na região litorânea do município – fora desapropriada pelo governo do estado para a construção de um grande complexo portuário. Arrebanhando um grupo de cerca de 1.500 pessoas que viviam nas periferias das cidades da Zona da Mata, os militantes do MST ocuparam a área, conhecida atualmente como Complexo de Suape, no final de junho de 1989.5 O acontecimento chamou imediatamente a atenção em toda a região. No dia seguinte à ocupação, o caso foi posto em destaque nos principais jornais de Recife, que estampavam em suas capas fotos das barracas de 2 3

4

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Dados de entrevista com Jaime Amorim, principal líder do MST em Pernambuco, em 2003. Os militantes do MST chamam de “trabalho de base” as visitas que fazem em periferias das cidades da região, convidando os moradores para participar das reuniões que o movimento promove. O Diário de Pernambuco, de 21 de junho de 1989, descrevia a chegada ao acampamento de uma camionete com alimentos doados pela prefeitura, pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais e por associações de bairro da cidade. Segundo Jaime Amorim, atual coordenador do MST, a ocupação contou com um grupo de dirigentes que fora escolhido pela direção nacional.

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lona preta e da bandeira do MST.6 Assim que foi noticiada a contenda, a Comissão Pastoral da Terra, a Fetape e o governo do estado, ou seja, todos os tradicionais agentes envolvidos em conflitos de terra na região enviaram representantes para a área. O objetivo da ocupação era, além de marcar a presença do MST na região, exigir do governo do estado o assentamento daquelas famílias. A resposta do governo estadual, na época chefiado por Miguel Arraes, foi imediata: ele não aceitou negociar com um grupo de pessoas de fora, isto é, sem legitimidade para representar a população rural da região, fossem trabalhadores rurais, lavradores ou sem-terra. Dois dias depois, o chefe da Casa Civil do governo Arraes declarava publicamente: “O governo sempre resolveu estas questões via sindicato ou Fetape e não com grupos isolados” (Diário de Pernambuco, 23/6/89). Outras declarações dos principais representantes do governo aos jornais da época indicam que o governo Arraes oferecia como única alternativa enquadrar os “invasores” em um programa para trabalhadores agrícolas em tempos de entressafra, desenvolvido em conjunto com os sindicatos.7 O programa, denominado “Chapéu de Palha”, empregava em frentes de trabalho grupos de trabalhadores rurais desempregados, indicados pelos sindicatos.8 A negativa do governo em negociar com um “grupo isolado” demonstrava a falta, naquela época, de formas locais de reconhecimento para a ação do MST. Concebida por um dos lados como uma demanda por desapropriação de terras, o evento do município do Cabo foi traduzido pelo governo e pela imprensa como um problema de emprego; interpretado dentro da forma cognitiva que marcara uma estreita relação histórica entre o governo e a Fetape, no estado de Pernambuco.9 Diante do impasse, os dirigentes do MST mantiveram a ocupação em Suape e montaram outro acampamento em frente ao Palácio do Governo, 6

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Cf. Diário de Pernambuco, 21 jun. 1989: “Nem a pronta intervenção de cerca de cinqüenta policiais militares conteve a disposição das quatrocentas famílias que, na noite do último domingo, invadiram a parte dos 13 mil hectares de terra de Utinga de Baixo, no Cabo, pertencentes ao complexo Industrial da Suape. A ação da PMPE ocorreu na madrugada de ontem e, embora tenha provocado conflitos, sustos e discussões não evitou a montagem do acampamento. A área é considerada improdutiva pelos invasores e reserva ecológica pela Suape. Na tarde de ontem, as entradas permaneciam bloqueadas; já que uma reunião, marcada às pressas, entre líderes do Movimento dos Sem Terras e o secretário da Casa Civil, Fernando Pessoa, em nada resultou”. [sic] Cf. Diário de Pernambuco, 2 jul. 1989. A safra da cana-de-açúcar geralmente tem início em setembro e se estende até o mês de março. Não podemos deixar de lembrar que o MST já tinha realizado ações como essa em outros estados do país e do Nordeste. Localmente, no entanto, essas primeiras investidas do MST na região foram anunciadas a partir dos termos costumeiramente empregados na interpretação de outros fenômenos. Um exemplo dessa percepção acionada pode ser visto nas matérias publicadas à época, em que se afirma que o MST repetia a “estratégia foquista” das Ligas Camponesas das décadas de 1950 e 1960. Ver Diário de Pernambuco, edições de jun. 1989.

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em Recife, com cerca de sessenta famílias. Mais uma vez, o Diário de Pernambuco publicou em sua capa as barracas dos sem-terra, agora no centro do Recife, estampando faixas nas quais se lia: “Cadê a reforma agrária, Arraes?”10 Depois do acampamento na cidade, o governo aceitou negociar uma outra alternativa, desde que o MST viesse acompanhado por um representante da Fetape.11 Dez dias depois, sem solucionar a questão, o governo ordenou que a Polícia Militar despejasse as famílias acampadas em Suape. A violenta ação da tropa de choque, descrita por todos que estiveram presentes, assustou a maioria dos acampados, que abandonaram a área rumo às suas cidades de origem em ônibus cedidos pelo governo. Apenas o pequeno grupo de famílias que se encontrava acampado em Recife permaneceu organizado, formando um novo acampamento às margens de uma rodovia na mesma cidade. Em um processo de negociação mediado pela Fetape, o governo teria oferecido a cessão de uma área no município de Cabrobó, no sertão de Pernambuco, a mais de quatrocentos quilômetros do local do acampamento. Sem alternativa, cerca de cinco meses depois da ocupação de Suape, o grupo foi levado para aquela região reconhecida pela estigmatizante alcunha de “polígono da maconha”. Sem assistência, em pouco tempo, todas as famílias abandonaram a área. Da mesma forma, os dirigentes do MST voltaram para os estados de onde haviam partido meses antes.12 A malfadada incursão do MST na zona canavieira de Pernambuco pode ser resumida na anedota contada por uma das organizadoras do acampamento de Suape: segundo ela, ao encontrar, certo dia, com os líderes do movimento no Palácio das Princesas, Arraes teria lhes dito: “Cresçam e apareçam”. Com esse tipo de narrativa, os dirigentes nos mostram que em julho de 1989 se organizar em um movimento e montar um acampamento não eram condições suficientes para ser aceito como interlocutor do Estado.

OCUPAÇÕES DE SINDICATO A volta do MST à Zona da Mata se deu em 1992, quando um novo grupo de militantes foi acolhido no sindicato de trabalhadores rurais de Rio Formoso, 10 11

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Cf. Diário de Pernambuco, 23 jun. 1989. Até aquele momento, o único apoio que o MST teria recebido de entidades locais em Recife fora da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que cedia suas dependências para reuniões. Essa aliança inicial dificultava o MST de se aproximar do sindicalismo rural local, já que aquela central sindical era uma das mais ferrenhas críticas do tipo de ação desenvolvida pela Fetape. Segundo os coordenadores da Comissão Pastoral da Terra, os militantes do MST não fizeram contatos com grupos da região, como a Comissão e a Federação, porque queriam demonstrar que tinham condições de agir sozinhos. Essa avaliação é compartilhada pelos dirigentes do MST, membros da CPT e sindicalistas.

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no extremo sul da região.13 Mobilizando antigas bases desse importante sindicato, militantes do MST e dirigentes locais realizaram nos engenhos vizinhos àquela cidade uma série de ocupações entre 1992 e 1993.14 Naquela época, o principal interlocutor das ocupações passou a ser o Incra e não mais o governo do estado. A partir de 1993, o MST passou a realizar ocupações reconhecidas pelo Incra sem a ajuda dos sindicatos, mesmo que o instituto exigisse a presença de um representante da Fetape em todas as negociações. Gradualmente, as ocupações e acampamentos passaram a ser considerados legítimos, ainda que o movimento não plenamente. Apenas em 1995, quando a Fetape começou a capitanear suas próprias ocupações de terra, o MST começou a ser recebido no Incra sem a companhia de dirigentes sindicais. Realizando a profecia de Arraes, somente quando as ocupações e acampamentos cresceram é que o movimento passou a ser visto como um oponente digno de ser aceito no universo local dos conflitos agrários. Um dos principais índices do reconhecimento dos acampamentos como uma forma legítima de conflito foi o crescente número de desapropriações das terras intrusadas. Se entre 1979 e 1989 haviam sido desapropriadas pelo Incra dezenove propriedades rurais, entre 1992 e 2000, esse número chegou a 107 em todo o estado de Pernambuco.15 Nesse mesmo período, a Fetape, aderindo à inusitada forma acampamento (Sigaud, 2000), passou a realizar suas próprias ocupações, chegando a criar uma secretaria específica para tratar dos assuntos de “política agrária”. Seus acampamentos reproduziram fidedignamente o modelo do MST a ponto de confeccionarem uma bandeira para a federação, que passou a ser hasteada em todos os seus futuros acampamentos.

O ACAMPAMENTO ESTÁ LIGADO A QUAL MOVIMENTO? A intensificação das ocupações de terra e dos assentamentos no período posterior a 1995 foi uma espécie de efeito de demonstração para os trabalhadores da lavoura canavieira que passavam por dificuldades de toda ordem. Ao longo do tempo, a idéia de montar um acampamento para se exigir a desapropriação de determinada terra começou a se configurar como uma possibilidade cada vez mais plausível diante do significativo número de assentamentos efetivamente implantados. 13

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Sobre as condições que propiciaram a associação do MST com os dirigentes desse sindicato, ver Rosa, 2004a. Ocupações descritas por Sigaud, 2000. Dados do Incra disponíveis em: .

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Ainda assim, em certas localidades, nem o MST nem a Fetape foram capazes de organizar as pessoas interessadas em montar um acampamento. A Fetape encontrava dificuldade em penetrar áreas controladas por sindicalistas avessos à idéia de se fazer ocupações. O MST tinha problemas em lugares nos quais o movimento não havia angariado militantes, ou em que as ações propostas não eram consideradas prioritárias nas suas estratégias. É importante observar ainda que, em certos casos, trabalhadores rurais e moradores de engenho vivendo os efeitos da crise da agroindústria canavieira recusavam as propostas feitas pelos militantes do MST e decidiam não se aliar às suas fileiras. Um desses casos ocorreu na área da Usina Aliança, no município de Condado, na região norte da zona canavieira. Nos engenhos daquela usina os trabalhadores negaram-se a montar um acampamento e nele colocar a bandeira do MST, ao mesmo tempo em que discordavam do modo pelo qual os sindicalistas rurais da cidade lidavam com o problema da falta de pagamento de salários e indenizações trabalhistas.16 Como me confidenciou um desses trabalhadores durante uma visita à sua casa em um dos engenhos abandonados pela usina no ano de 2002: os sindicalistas não estariam fazendo nada e o MST era muito “baderneiro”. Além do MST e dos sindicatos, havia na região um forte trabalho da Comissão Pastoral da Terra, que tentava ajudar as centenas de trabalhadores dessa usina despejados sem qualquer indenização. O trabalho que se iniciou com a distribuição de alimentos e roupas culminou em pouco tempo na ocupação de um dos engenhos. Após a formação do acampamento, os agentes da CPT procuraram aproximar os ocupantes dos militantes do MST e propuseram o hasteamento de uma bandeira do movimento no engenho. A sugestão foi veementemente rechaçada e aquele acampamento ficou sendo assistido por agentes e advogados da CPT – sem bandeira. No começo, nós juntávamos toda nossa pauta com o MST ou com a Federação. Dependendo da região, a gente fazia com o MST ou com a Federação. Fazia em parceria com os sindicatos, mas depois o sindicato nunca aparecia ou os trabalhadores brigavam com o outro pessoal e a gente acabou assumindo.17

Esse não foi o primeiro caso no qual a CPT ocupou um papel que tradicionalmente era ocupado pelo MST e pela Fetape. Anteriormente, os agentes pastorais já haviam ajudado a organizar (nas suas palavras) e a assessorar juridicamente cerca de cinco outros grupos que promoveram ocupações de terra na região norte da Zona da Mata. 16

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A proposta dos sindicalistas era cobrar judicialmente as somas devidas pela usina aos seus trabalhadores reeditando o modelo tradicionalmente bem-sucedido utilizado pela Fetape desde os anos 60. Agente da CPT, em entrevista realizada em 2002, na sede da CPT em Recife.

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Como vimos no caso de Suape, e também como aponta Sigaud (2000), montar e manter o acampamento é apenas o primeiro passo para que esse tipo de conflito se estruture. Outra etapa tão ou mais importante é garantir a legitimação do acampamento por meio do reconhecimento por parte do Estado. E foi justamente nesse processo de legitimação que a CPT enfrentou grandes adversidades: O outro problema é que nós não somos um movimento, mas a gente age como um movimento, por conta disso. A gente organizava e dizia: O acampamento é dos trabalhadores, porque eles têm nossa assessoria, nossa formação, eles têm autonomia. Mas quando vinha pro Incra e dizia acampamento tal, eles perguntam se era ligado a quem? Tem que ter uma organização que é a referência, que é a responsável. E acabou a CPT ficando na lista dos movimentos (Agente da CPT). [sic]

Como pude observar nas palavras da agente da CPT, e durante um trabalho de campo que realizei na sede do Incra em Recife, organizar os acampamentos e representá-los “diante da Justiça” e, principalmente, do Estado é uma tarefa que foi consagrada ao longo da década de 1990 a um movimento. Fica claro, a partir dessa interpretação sobre o episódio da CPT, que um acampamento sem movimento não era considerado legítimo diante do Incra – essa instância governamental que concomitantemente se constituíra como a instituição responsável pelo reconhecimento dos conflitos agrários.18 Somados, esses elementos nos sugerem que a constituição de um modelo do que seria a forma organizada de conflito não se deu apenas por vontade dos agentes do Estado, como nos esclarece a agente da CPT: Se não foi em 1999, foi em 2000. Mas, por quê [se começou a pôr bandeira nos acampamentos]? Porque bandeira não é o símbolo da CPT. A gente sempre costuma dizer, é uma coisa bastante polêmica, só aqui no Nordeste que a gente usa a bandeira. A gente costuma dizer que o nosso símbolo mais importante é a Bíblia. Nossa motivação é evangélica. Não foi a CPT que disse que ia criar uma bandeira. Foram os trabalhadores, eles queriam uma bandeira. Eles viam o MST e viam outros movimentos. A Contag tinha bandeira, o MST tinha, o MT tinha bandeira. Por que a CPT não tinha bandeira? Era uma questão deles se identificarem. Porque nós não somos um movimento, nós não queríamos ter um símbolo oficial da CPT. Mas a gente procura estar junto com outros movimentos. Tinha marcha do MST que tinha bandeira e eles [os trabalhadores]: e nós? De princípio, a nossa vontade era de que eles segurassem a bandeira do MST. Mas eles viam por conta da metodologia que então eles não se identificavam tanto e daí eles queriam um símbolo próprio. O símbolo da CPT sempre foi uma cruz, nos acampamentos ainda tem. Acampava e fincava uma cruz de madeira. Mas depois eles vieram nas caminhadas e tudo com a cruz, primeiro botaram um pano branco na cruz. Porque queriam uma bandeira

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Até mesmo em um de seus formulários, o Incra registrava e classificava os conflitos por terra em um campo de preenchimento obrigatório intitulado movimento.

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e ficaram forçando. O símbolo é este o que já existe, a logomarca da CPT. Aí botaram o verde, por quê? Verde porque era mais a questão da natureza, da reforma agrária com respeito à natureza, verde da esperança de ter terra. Depois a bandeira foi importada para a Paraíba, onde os outros movimentos são fracos. Ainda não é uma coisa assumida nacionalmente. [sic]

Ao se envolverem no mundo das ocupações, dos acampamentos e da intensa socialização nas atividades relacionadas às reivindicações por desapropriação de terras, os próprios trabalhadores dos engenhos envolvidos com a CPT passaram a incorporar os elementos da forma movimento. Ao longo das marchas de “sem-terra”, que acompanhei pela cidade de Recife entre 2001 e 2003, sempre se avistava, em meio às centenas de bandeiras, bonés e camisetas do MST, um pequeno grupo trajando as mesmas peças em cor verde, empunhando a bandeira da CPT.

O MOVIMENTO ESTÁ LIGADO A QUAL ACAMPAMENTO? Nem sempre a montagem de um acampamento por parte de um movimento é bem-sucedida. Assim se deu com várias ocupações realizadas pelo MST no município de Amaragi, na parte central da Zona da Mata. Naquela cidade, esse movimento recrutou, entre 1995 e 2000, diversos trabalhadores rurais para a ocupação de engenhos tidos como improdutivos. Ocupações que frustraram as expectativas de seus integrantes por duas razões primordiais: a) uma série de adversidades relacionadas com a impossibilidade jurídica de desapropriação das terras pretendidas; b) a impossibilidade de o MST atender a todos os acampamentos com o mesmo empenho, tendo por fim que hierarquizá-los. Em um desses acampamentos esteve José Vicente, em 1999. Foi antes de eu ir [para São Paulo]. Esse foi antes de eu ir. Aí a gente... teve um despejo pesado. Começamos a analisar a situação, um engenho pequeno, o número de morador grande, não é? Então, a gente ia trabalhar só para os moradores. Porque na matemática nossa, o engenho sendo desapropriado ia assentar só cinco sem-terra, o resto tinha que ser morador [bate na mesa]. Então, para o MST na época ia ser bom, mas para nós não”. [sic]

Frustrada essa incursão no mundo dos movimentos, já no ano de 2000, ele migrou para São Paulo, de onde voltou em menos de um ano. Sem emprego, na sua cidade, Amaragi, foi procurado novamente por dirigentes do MST. Como havia sido coordenador de turma no primeiro acampamento e, portanto, conhecia muitas das pessoas que participaram daquela mobili102

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zação, Vicente foi escolhido para ser o coordenador do MST na cidade.19 A sede do movimento passou a funcionar na casa de sua família que, além da infra-estrutura, cedeu para o trabalho de mobilização todos seus membros homens. José Vicente, seus pais e seus irmãos se tornaram a referência do MST na cidade, e organizaram um novo acampamento com os remanescentes de sua primeira e frustrada incursão. A área ocupada, indicada pela direção do MST, pertencia a uma usina da cidade de Vitória de Santo Antão. Porém, assim como da oportunidade anterior, o acampamento passou por diversas dificuldades, ao passo que a desapropriação seguia impedida. A Justiça do Trabalho decidira destinar a área do acampamento ao pagamento das indenizações dos funcionários da usina – que funcionava em outra cidade – e aos demais credores da empresa. José Vicente, que nessa época coordenava as ações do movimento na cidade, teria recorrido a todas as instâncias possíveis, desde o Sindicato dos Trabalhadores Rurais até os advogados que assessoram o MST, e ninguém conseguiu reverter a questão. José Vicente: É, 2001. Então ficamos dois anos lá, debaixo da lona. Isso não é uma coisa ruim? Ficamos dois anos lá, debaixo da lona. Quando acabou perdemos tudo. Marcelo: Vocês foram despejados ou não? José Vicente: Não, nós não chegamos à juíza mandar a polícia tirar o povo, porque quando a Justiça deu a causa ganha, o sindicato não deu apoio e o MST esqueceu, então não ia esperar... para quê?. [sic]

Mais uma vez, a possibilidade de obter uma parcela de terra foi frustrada. Porém, nesse segundo evento, o grupo de acampados estava sob o comando de José Vicente, que ostentava a insígnia de coordenador local do MST. As acusações ao MST foram estendidas à sua pessoa, e ele passou a ser responsabilizado pela frustrante aventura, já que ele próprio convidara muitos dos acampados a se engajarem. A alegada falta de empenho dos dirigentes regionais do MST em resolver o caso das famílias de Amaragi, o forçou naquele período a desempenhar funções que normalmente não estão ao alcance de militantes em sua posição: José Vicente: A gente reuniu [o pessoal] todo o tempo aqui. E nunca vinha ninguém dar apoio a nada. Nunca nos encontramos no Incra para resolver nada. Uma certidão do engenho, para tirar no cartório, era nós que desembolsávamos o dinheiro e pagávamos. Nunca recebemos um centavo. Marcelo: Nada, nada? José Vicente: É, nunca recebemos um centavo. Cestas básicas tinha que recorrer direto ao Incra, porque se esperasse pelo movimento, para aqui não vinha. Natan: É, o superintendente teve vez de mandar [as cestas] aqui no carro do Incra. 19

O antigo coordenador do MST na cidade havia trocado de movimento, passando para o Movimento dos Trabalhadores. Em Rosa (2004a) analiso o MT e uma série de outros movimentos que surgiram na Zona da Mata a partir da chegada dos anos 90.

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José Vicente: Mandar no carro do Incra, porque se esperasse pelo movimento mandar, não vinha. Marcelo: Mas por que você acha que eles não davam atenção aqui? José Vicente: Olha, eu acredito que isso depende muito de dirigente. Por conta do MST ter grande nome, número, norte a sul do país... abandonou nós aqui, em termos de dar um apoio. Porque o movimento, ele funciona de tal forma: como se organiza um grupo de pessoas, solicita – como você tem acompanhado no Incra – determinadas áreas, mas tem que ter a direção do movimento para que... [eles] é que têm o poder de chegar até o Incra e dizer assim: Olha, nós vamos dar prioridade a essa área por conta desse povo que está esperando. O município de Amaragi, por exemplo. E nós estamos solicitando essa área aqui, para um número de tantas famílias, porque só a direção do movimento tem o poder de... dar prioridade a cada município em determinadas áreas. Porque aqui em Amaragi a gente tem um pedido de vistoria de dez áreas, por exemplo. Marcelo: Dez áreas agora, é? José Vicente: Só um exemplo, dez áreas. Só que tem as áreas prioritárias. Aqueles que se encontram em situações mais graves em termos de dívidas do proprietário, mais coberto de mato aí, e a dívida é grande... Marcelo: Sim. José Vicente: No caso, na época que a gente era MST, como eu falei, nós não tínhamos o poder de chegar lá [no Incra] e dizer: A gente está dando prioridade a tal área. Porque vinha o dirigente, no caso da Mata Sul, aqui e dizia: Não, a gente precisa dar prioridade em Ribeirão, em tal área. E nós não tínhamos o poder daquilo. Marcelo: Sim. Era ele que decidia. José Vicente: Era ele que decidia. Ele como dirigente. A não ser ele, só o Jaime Amorim, que é o coordenador geral de Pernambuco, do MST. Então a gente sofreu, Marcelo, durante quatro anos e alguma coisa. Entramos para o quinto ano que era MST. Então, só nessa rotina, reunindo o povo e esperando, esperando. [sic]

Ao recorrer pessoalmente aos cartórios e ao próprio Incra, ele foi se distanciando, aos poucos, da direção do MST, e internalizando os procedimentos e códigos que regem os conflitos com o Estado na região. Aprendeu a dialogar com funcionários do Incra e conheceu a lógica para a obtenção dos meios para a sustentação de um acampamento. Ao estender cada vez mais seus tentáculos na região, o MST foi levando os novos militantes a tomar contato com a forma tornada obrigatória na realização do processo de desapropriação na região. O revelar, mesmo que parcial, dessa lógica tem se mostrado como uma condição à sua própria expansão naquela área. Sendo assim, lhes pareceu que o MST já não era mais eficaz para seus anseios: José Vicente: A gente se reúne aqui de 15 em 15 dias. Mesmo depois da reunião sentava aqui eu, ele [Natan], um outro irmão meu, meu pai, que aqui é a casa dele... Esperar cinco anos, e hoje até o momento não se encontra com nada garantido! Até que tempo nós vamos levar para se assentar? Então, a gente vai esperar até que tempo para um dia ser assentado? Não. Aí a gente chegou à conclusão: vamos fundar um movimento? Vamos. Reunimos o pessoal aqui e conversamos com o pessoal nessa situação, que a gente vai ficar sem ter condições. Aí, no dia 5 de outubro de 2002,

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nós passamos a ser um grupo independente. Reunimos o pessoal e analisamos a situação e passamos a ser um grupo independente. Marcelo: Aí vocês se desligaram do MST. José Vicente: Do MST. Marcelo: Comunicaram ao MST que estavam se desligando. José Vicente: Não. A gente não tinha que comunicar ao MST. Marcelo: Ah, sim. José Vicente: Nós tínhamos que comunicar ao Incra. Marcelo: Por quê? José Vicente: Comunicar ao Incra. Então a gente ficou, a partir de outubro de 2002, independente. Não fazia parte de nenhum movimento, ficamos [sendo] um grupo apoiado pelo Incra. Inclusive está aqui um documento assinado pelo superintendente. Marcelo: E como é que o Incra apoiou? Ele apoiou vocês a constituírem um movimento? José Vicente: Não. Primeiro o superintendente, o dr. Geraldo, a gente falou para ele que não queria fazer mais parte de um movimento do MST e se podia ficar um grupo independente. Até que analisasse a situação e visse uma forma de ou passar para outro movimento ou fundar um movimento, entende? Desde que nós continuássemos com as mesmas áreas que a gente tinha solicitado, não é? Marcelo: Claro, mas por quê? José Vicente: Por quê? Porque quando a gente pedia... na época do MST a gente fazia um ofício e dizia que o MST estava solicitando determinadas áreas. Então, a gente era quem pagava a documentação. E a partir dali nós é quem estávamos dando andamento no processo. Então ficamos, a partir dessa data, independentes. Aí foi ao conhecimento do Incra dia 24 de outubro de 2002. Quer dizer, a gente entrou no dia 5, ficamos independentes no dia 5, no dia 10 o Incra tomou conhecimento. E o superintendente assinou. Fizemos um abaixo-assinado aqui, com todo mundo assinando com número de CPF, para ficar acobertado da coisa. [sic]

A forma pela qual José Vicente revela seu desligamento do MST enfatiza as pistas de que o Incra seria, por excelência, o legitimador de um novo movimento; o que nos remete à importância que a resposta positiva do Incra para certas demandas do MST teve para o reconhecimento do próprio instituto. A formação de um grupo dissidente e, posteriormente, do Movimento dos Trabalhadores Brasileiros Sem Terras (MTBST) nos ajuda também a compreender o conteúdo pedagógico que ações do MST tiveram para os trabalhadores rurais da região: José Vicente: Certo? Então nós temos que fundar um movimento para que nós tenhamos o direito que os outros movimentos têm e que nós tenhamos o poder que o MST tem, mesmo nós sendo um movimento pequeno, que começamos agora, mas em nível de movimento temos o mesmo, não é? E registrar nosso movimento porque nós ficamos com o apoio da Justiça, de todo mundo. [sic]

Uma pedagogia que contribuiu para que, em certas circunstâncias, as idéias de direito à terra e à assistência do Estado fossem associadas à organização de um movimento. Associação que não era feita apenas pelas pessoas 105

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que tomaram contato com os movimentos, mas também pelos próprios funcionários do Incra, órgão que somente passou a considerar formalmente as demandas de José Vicente quando ele fundou seu movimento. Ao serem reconhecidos pelo Incra, os líderes do MTBST, que vinham de duas experiências mal sucedidas de acampamento, optaram por não repetir o expediente clássico do MST. José Vicente: Nesse período, a gente não fez ocupação. E até agora [a gente] não fez. Tinha feito ocupação quando estava no período no MST. Porque até eles exigiram de nós fazermos. Marcelo: E o MST exigia isso? José Vicente: Exigia de nós fazermos. A ocupação era importante na época em que as leis diziam que a terra ocupada, se vistoriar vai desapropriar. Então, essa é a história do nosso movimento. Não pretendemos fazer ocupação. Marcelo: Vocês querem fazer movimento sem ocupar? José Vicente: Enquanto não houver uma mudança na lei. Se isso é que ia acontecer, nós não vamos. Se não houver mudança, nós não vamos [bate na mesa] fazer ocupação. Porque para nós fazermos ocupação nós vamos bater de encontro com a lei. E lei tem que ser cumprida. Em momento algum nós, do MTBST, queremos trabalhar de encontro com a lei. Processo é pouca coisa. Mas a partir da hora que a gente vai trabalhar de encontro com a lei, a gente pode sofrer as conseqüências pior. Marcelo: Claro. José Vicente: Então, em momento algum, se não houver uma mudança na lei, nós não vamos ocupar área de ninguém. [sic]

Considerando que, ao contrário do MST, o MTBST era um movimento registrado em cartório e que havia angariado apoio formal da superintência do Incra no estado, seus líderes decidiram não ocupar as terras que reivindicavam.20 Eles apenas entregaram ao Incra uma lista com os nomes daqueles que estiveram acampados sob as lonas do MST, na esperança de serem chamados quando a área fosse desapropriada. Para o argumento desenvolvido no presente texto, é importante ressaltar que realizar um acampamento – além de ser um processo longo e, no caso de José Vicente, traumático – poderia ser interpretado como uma aceitação passiva de um procedimento de conflito com o Incra, instituído preponderantemente a partir de suas negociações com o MST. Essa postura distinta e especial do MTBST de não promover ocupações de terra, visava instituir uma quebra no universo de regras que conforma os conflitos contemporâneos por terra. No entanto, passado algum tempo, a lista entregue ao Incra se mostrou insuficiente não apenas para lhes garantir a terra como também para a continuidade das negociações com o instituto. Alguns meses depois de ter concluído meu trabalho de campo, acompanhei pelos jornais 20

A não-realização dos acampamentos guarda íntima relação com a edição da Medida Provisória n.2.109-50 de 2001. Medida editada no governo Fernando Henrique, e mantida no governo Lula, que suspende por dois anos a desapropriação de áreas ocupadas.

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de Recife a notícia de que o movimento de José Vicente organizara sua primeira ocupação no Engenho Bom Jesus, em julho de 2003. José Vicente, com a sua decisão inicial de não realizar ocupações, se afastava de um movimento inercial que os vincularia ao MST (do qual buscava se distanciar). Ao fazê-lo, ele desvelava um aspecto fundamental e, por vezes ocultado nesse texto, dessa relação entre sem-terra e Estado no Brasil: o diferencial de poder entre as partes garantida pelo monopólio da violência física. Ao sentar à mesa para discutir exclusivamente com movimentos que promovam ocupações, o Estado garante a persistência de uma relação assimétrica, que paulatinamente torna evidente por meio de punições infligidas aos sem-terra por suas práticas de “invasão” em todo o território nacional.

UMA LINGUAGEM EM EXPANSÃO Essa linguagem – em que se explicita a ambivalência da ocupação como forma de conflito entre sem-terra e Estado, ora de forma velada, ora de forma explícita – parece ser tão forte e eficaz nas relações com o Estado que atualmente se expande para além dos próprios espaços agrários. No ano de 2004, um grupo de moradores de Belford Roxo, na região da baixada fluminense no Rio de Janeiro, invadiu um terreno do governo do estado na cidade.21 Organizado por lideranças políticas locais, que haviam participado de outras invasões nos anos 80, o grupo reproduziu no terreno a forma de organização adotada na região pelo menos desde os anos 70 (Boschi, 1987). Cada família cercou seu terreno e passou a aguardar pela regularização da área. Poucos dias depois a polícia militar chegou ao local e desmontou toda a invasão.22 Meses depois, no feriado de primeiro de maio do mesmo ano, alguns dos líderes da primeira invasão foram a uma festa popular no centro do Rio de Janeiro. Naquele local encontraram, entre outras tantos, um stand do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD). Esse movimento formado no Rio Grande do Sul no final dos anos 90, sob a tutela do MST, já contabiliza como conquista o que seus líderes denominam de assentamento rururbano. Depois de uma breve conversa na festa de primeiro de maio, os líderes do MTD no Rio de Janeiro, escolhidos em curso promovido pelo MST, passaram a freqüentar o bairro no qual os participantes da invasão frustrada residiam. Seguindo o mesmo sistema adotado pelo MST, depois de uma 21

22

O trabalho de pesquisa sobre essa ocupação foi realizado sob minha orientação por Sérgio Muniz Mangueira. Os dados de que me utilizo são, portanto, produtos de seus relatórios de pesquisa. Invasão é o termo utilizado pelos atuais líderes para descrever o evento.

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série de reuniões, os dirigentes marcaram a data da ocupação do terreno. No dia 22 de agosto de 2004, em plena madrugada, um grupo de cinqüenta famílias organizado pelos líderes do MTD e por mais dois militantes do MST-RJ entrou no terreno e ali ergueram barracas de lona preta sob a bandeira do MTD. Após três dias, a Polícia Militar enviada ao local para desocupar a área foi demovida da idéia ao ser informada que se tratava de um movimento e que a ocupação estava sendo negociada com as autoridades do município. Segundo relatos das famílias acampadas, a reação da polícia ajudou-os a confirmar a idéia de que aquele era mesmo o modo correto de reivindicar. Desde então, o acampamento se mantém no mesmo lugar: seus líderes passaram a ser recebidos pela prefeitura local e pelo governo do estado, que tem fornecido material para a reparação das barracas de lona que sofrem com os constantes ventos da região.23

O CARÁTER COERCITIVO DOS ACAMPAMENTOS E MOVIMENTOS Sujeito do conflito

Forma de Data

Local

enunciação do conflito

Forma de representação

Conflito considerado legítimo

MST

1989

Zona da Mata/PE Acampamento

Movimento

MST/STR

1992

Zona da Mata/PE Acampamento

Sindicato

Sim

CPT

2000

Zona da Mata/PE Ocupação

Assessoria

Não

MTBST

2002

Zona da Mata/PE

Movimento

Não

MTBST

2003

Zona da Mata/PE Acampamento

Movimento

Sim

MTD

2003

Baixada Fluminense/RJ

Invasão

Comissão

Não

MTD

2004

Baixada Fluminense/RJ

Acampamento

Movimento

Sim

Lista de pretendentes

Não

Os casos anteriormente trabalhados são peças fundamentais para compreendermos a conformação e a institucionalização de uma forma específica de conflito que ultrapassa os limites da zona canavieira de Pernambuco. Como demonstrei, em 1989 organizar-se na forma de um movimento, ocupar e montar um acampamento não foram elementos suficientes para 23

No primeiro semestre de 2005, participei de uma reunião da direção do MTD na qual os líderes do acampamento exibiam uma série de ofícios que lhes foram enviados por órgão do governo do estado e da prefeitura.

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enunciar e legitimar de imediato esse tipo conflito. Apesar de terem mobilizado símbolos, cuja eficácia já havia sido comprovada em outras regiões do país, tais ações não foram reconhecidas porque mobilizaram elementos que não pertenciam à linguagem corrente dos conflitos agrários naquela região. Ao destoarem da prática consolidada pela Fetape nas décadas anteriores, os líderes da ocupação do Cabo foram veementemente ignorados pelos sujeitos do Estado.24 Esse quadro somente começou a se alterar em 1992, quando os líderes do MST se associaram a importantes lideranças sindicais e políticas da região acrescentando as ocupações e acampamentos ao cotidiano de determinados sindicatos. Assim que os STR passaram a dar apoio e a realizar ocupações conjuntamente, a prática foi logo reconhecida pelos governos estadual e federal. Porém, somente em 1995 é que o MST foi recebido sem a presença de um representante da Fetape pelo Incra. A partir de então, os acampamentos e movimentos foram se transformando em pilares indissociáveis dos conflitos agrários, modificando até mesmo as estruturas do sindicalismo local. A imbricação de tais elementos foi se tornando tão forte entre os sujeitos do Estado que, por volta do ano 2000, a própria Comissão Pastoral da Terra passou a se identificar como um movimento sob pena de não ter suas ocupações legitimadas pelo Incra.25 O caso de José Vicente e do MTBST demonstra a intensidade com que isso repercutiu sobre todos aqueles que tinham interesse em reivindicar terras ao instituto. A experiência desse movimento, por sua vez, também reforça a idéia de que essa lógica supera inclusive as regras formais que foram impostas pelo Estado no momento da proibição das ocupações em todo o país. Regras suplantadas por força de uma incontrolável dinâmica social, que foge completamente aos desejos de seus criadores que, ao cabo, mostraram não estarem aptos a reconhecer esse tipo de contenda por outras vias que não fossem as ocupações e acampamentos. Apesar de brevemente enunciado durante o texto, outro ponto a ser considerado é a capacidade de adaptação dessa linguagem para outros contextos que não o das disputas agrárias. Certamente, aqui o papel do MST é importante não somente como matriz de um modelo, mas por seguir reinventando inúmeros aspectos dessa linguagem em outras frentes, ao expandir sua presença e sentido para além do seu objeto originário – isto é, a terra.

24

25

É necessário levar em conta que se tratava de um governo liderado por Miguel Arraes e que, portanto, se constituiu em uma íntima relação com o modo sindical de organizar e reconhecer conflitos. Situação análoga, mas não trabalhada neste texto, foi vivida em 2003 pela Fetape, cuja liderança que organizava os acampamentos acabou por deixar a federação e fundar seu próprio movimento, a Organização de Luta no Campo.

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A “forma movimento” como modelo...

Tal expansão tem relação intrínseca, como vimos, com o Estado no que tange o tipo de atenção pública dado a esses conflitos nos últimos anos. Sugerimos com nosso argumento uma legitimação ambivalente do conflito que alça os demandantes e beneficiários ao patamar de interlocução, ao mesmo tempo em que se reconstitui o poder estatal de controle e emprego da força (seja burocrática ou física). O que, de início (pensando no caso dos primeiros acampamentos do sul do país), era um conjunto de signos articulados de forma pouco refletida, na medida que incorporava elementos presentes nas diversas tradições de seus fundadores, tornou-se nos últimos anos uma espécie de modelo, cultivado nos mais distintos pontos de contato entre sujeitos do Estado e grupos organizados: uma espécie de forma movimento, que sustenta os movimentos e reestrutura o Estado. Por fim, é preciso acrescentar que tais considerações analíticas permitemnos suplantar as interpretações que restringem os conflitos protagonizados pelos movimentos sociais a razões e lógicas vinculadas aos objetos que estariam no centro da contenda. Se nos concentrarmos apenas na terra, por exemplo, chegaremos a explicações como as de Martins (2000), que justifica os conflitos agrários no Brasil como um resultado espontâneo de uma distribuição desigual de poder nessas áreas. Ao apontarmos para a invenção de uma nova linguagem, evidenciamos um inusitado elemento, que passa a ocupar um espaço no mundo social outrora inexistente. Qualquer explicação sociológica que não comporte essa expansão de sentido possibilitada pelos encontros e embates contemporâneos entre movimentos e Estado, que se aferrolhe aos modelos de explanação “naturalistas”, tende inevitavelmente a ver os movimentos como algo que macula as qualidades selvagens de uma luta tradicional. Evitando esse caminho, conseguimos ainda angariar elementos de ordem compreensiva para nos opormos à proposição de Honnet (2004), para quem as lutas dos movimentos sociais são lutas por reconhecimento (de uma condição de desrespeito que está dada e que tende a ser por esse meio sanada). Assim, podemos expandir nosso argumento e concluir que lutas como as esboçadas no presente texto apenas existem socialmente quando reconhecidas, isto é, quando tornadas linguagem, quando pronunciadas e quando refutadas. Ao contrário do que propõe Honnet, e outros inspirados em Barrington Moore, as lutas não emanariam somente de uma percepção de justiça típica do humano que se instalaria na consciência dos camponeses. Nos conflitos por terra, assim como nos duelos descritos por Norbert Elias (1997), ao ascender, a burguesia exibe cicatrizes que não apenas não dizem o mesmo que aquelas que marcavam as faces aristocráticas, como reinventam o sentido dado às cicatrizes da nobreza. É nesse ponto que reside a sociologia das disputas políticas do campesinato que defendemos, ou seja, uma sociologia que transforme as fenomenologias individuais, mormente vistas em sua razão instrumental, em processos que levem em 110

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

conta as conversas (Tilly, 1998) entre as múltiplas partes que legitimam a existência do campesinato, e a capacidade desses sujeitos de criar estilos de ação transcendam sua própria existência material.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOSCHI, R. A arte da associação. Rio de Janeiro: Vértice, 1987. ELIAS, N. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. HONNET, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2004. MANGUEIRA, S. M. O MTD no Rio de Janeiro: um estudo de caso do acampamento Carlos Lamarca. Niterói, 2005. Projeto de Pesquisa. MARTINS, J. S. Reforma agrária: o impossível diálogo sobre a História possível. Reforma agrária, o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. PALMEIRA, M. Casa e trabalho: notas as relações sociais na plantation tradicional. Actes du XLII Congrès des Américanistes. Paris: Société des Américanistes/Musée de l’Homme, 1978. . Desmobilização e conflito: relações entre trabalhadores e patrões na agroindústria pernambucana. Revista de Cultura e Política, v.1, n.1, p.41-55, ago., 1979. ROSA, M. C. O engenho dos movimentos: reforma agrária e significação social na zona canavieira de Pernambuco. Rio de Janeiro, 2004a. Tese (Doutorado) em Sociologia – IUPERJ/Ucam. . Sobre os sentidos das novas formas de protesto social no Brasil. In: GRIMSON, A. (Org.). La cultura en las crisis latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2004b. SIGAUD, L. A forma acampamento: notas a partir da versão pernambucana. Novos Estudos Cebrap, n.58, 2000. TILLY, C. Contententiuos conversations. Social Research, v.65, p.491-510, 1998.

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5 MOBILIZAÇÃO CAMPONESA NO SUDESTE PARAENSE E LUTA PELA REFORMA AGRÁRIA William Santos de Assis

INTRODUÇÃO

O presente texto visa analisar o processo recente de mobilização dos camponeses do sudeste paraense na luta pela reforma agrária nos anos 90. A expressão máxima dessa mobilização foram as ações coletivas reconhecidas como os “Grandes Acampamentos”, que reuniram mais de 40 mil pessoas e tinham por objetivo pressionar o Estado (nos seus diferentes níveis) a executar um conjunto de políticas públicas para o meio rural, especialmente a de reforma agrária. Quando tratamos de reforma agrária neste texto, interessa-nos menos definir de que reforma agrária se trata e mais do que ela “significa” para os protagonistas envolvidos no debate e nas ações a ela relacionadas. Os fenômenos coletivos, qualquer que seja sua intensidade, são uma marca que atravessa a formação das sociedades no decorrer dos tempos. Como surgem, quais mudanças provocam, quem se envolve, como se envolvem, tem sido uma preocupação de pesquisadores de várias disciplinas. A ação coletiva já esteve associada, freqüentemente, a uma situação de crise do sistema em algum de seus aspectos (social, econômico, político). Por esse tipo de abordagem, convencionou-se tratá-la como uma patologia social (Melucci, 2001, p.33). No entanto, os acontecimentos dos anos 60, em nível mundial, impulsionaram uma discussão muito rica em torno das principais teorias destinadas a analisar os fenômenos coletivos. Como mostra Ledesma (1994), desde então, pesquisadores de diferentes disciplinas investiram em estudos sobre a capacidade de mobilização de diferentes grupos sociais e as manifestações geradas a partir de suas ações. 113

Mobilização camponesa no sudeste paraense

O resultado dessa rica discussão parece ter sido a abertura de um leque grande de possibilidades de análises das ações coletivas. Certamente, as abordagens que enfatizavam a presença de atores/personagens, no sentido atribuído por Melucci (2001), não mais se mostram apropriadas para responder às questões relativas aos fenômenos coletivos atuais. Hoje, existem diversas aproximações entre diferentes abordagens. Para Melucci (2001) e Touraine (1999), pelo menos três componentes são necessários para se definir um fenômeno social como uma ação coletiva: uma identidade; um adversário claramente definido no campo social onde se desenvolve a ação; e um campo comum de disputa. Esses três componentes permitem diferenciar uma ação coletiva de outras ações sociais como conduta de agressão, violência política, dentre outras. Comerford (1999), analisando a documentação da imprensa militante e dos veículos tradicionais de comunicação nas últimas décadas, identificou um conjunto de formas de ação coletiva como ocupação de propriedades rurais, públicas ou privadas; acampamentos em beira de estradas, praças e locais públicos; romarias e caminhadas; bloqueio de estradas; passeatas; ocupação de órgãos públicos; celebrações religiosas; assembléias, reuniões e festividades variadas. Essas formas de ações coletivas tornaram-se recorrentes no universo de ação dos movimentos sociais rurais nas últimas décadas, constituindo o que Tilly (1981) chama de repertório de ações coletivas. Comerford verificou ainda que essas formas de ação podem acontecer separada ou simultaneamente. A noção de repertório de ações será útil para o entendimento das mobilizações no sudeste paraense. Para a elaboração deste texto, a principal fonte das informações foi o dossiê organizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura Regional Sudeste do Pará (FRS),1 intitulado Acampamento dos trabalhadores rurais na superintendência do Incra de Marabá, e entrevistas com lideranças sindicais e assessores que participaram das ações coletivas. O dossiê reúne documentos veiculados na imprensa de circulação local, estadual e nacional; documentos produzidos pelos organizadores da ação; documentos emitidos pelos órgãos governamentais; documentos de apoio ao acampamento; pauta de negociação e documento de avaliação da ação. Além dessa fonte de informações, utilizei uma série de notas pessoais acumuladas durante o período de duração da ação.2

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Agradeço às duas instituições citadas por me fornecerem cópia completa desse dossiê. Tive a oportunidade de participar de diversas reuniões e acompanhei todo o desenrolar da ação. Minhas funções de docente-pesquisador do Núcleo de Estudo Integrados sobre Agricultura Familiar (Neaf) do Centro Agropecuário (CA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e o trabalho em parceria com o movimento sindical da região, me permitiram um acompanhamento privilegiado, inclusive, com acesso a informações de circulação restrita.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

O CONTEXTO REGIONAL A região de Marabá tornou-se, nos últimos cinqüenta anos, o centro político e econômico regional mais importante das regiões sul e sudeste do estado do Pará. A riqueza dos recursos naturais e a relativa ausência de domínio particular sobre as terras sempre funcionaram como atrativo, seja para políticas governamentais de ocupação do espaço e exploração do território e suas riquezas, quanto do capital nacional e estrangeiro. Nos primeiros anos de ocupação pelo “homem civilizado”, os índios de várias denominações tiveram que abandonar suas áreas, pressionados quase sempre pela força das armas ou dizimados por doenças trazidas pelo invasor. A economia extrativa marcou definitivamente a presença do capital comercial na região (Ianni, 1979). O alvo era a exploração do látex de caucho e, depois, da castanha e de pedras preciosas, principalmente cristal de rocha e diamantes (Höhn, 1996). A marca das iniciais do patrão nas árvores de caucho representa o quanto a posse dos recursos naturais era motivo de disputa. Por força de um conjunto de políticas governamentais, o sul e sudeste experimentaram, a partir dos anos 60, uma verdadeira transformação do ponto de vista social, econômico e ambiental. A implantação de uma infraestrutura básica regional consolidou a presença do Estado pela fixação de órgãos da administração federal e estimulou fluxos migratórios de pessoas e empresas. Camponeses de várias unidades da federação para lá se dirigiram, atraídos pela possibilidade de conseguir terra e, em geral, para escapar da dominação à qual estavam submetidos nas suas regiões de origem. A presença do Estado na região sempre foi simbolizada pela ação de algum órgão de função estratégica. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e depois o Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins (Getat) são exemplos disso, além do Exército, que combateu militantes políticos na década de 1970. Por meio dessas instituições, direta ou indiretamente, eram canalizadas iniciativas governamentais que marcariam definitivamente o espaço físico e social regional. Ao mesmo tempo em que incentivaram a migração massiva de famílias de agricultores de outras regiões, as políticas implementadas criaram as condições para a instalação das grandes empresas agropecuárias e de latifúndios de propriedade individual. Com os Programas Integrados de Colonização (PICs) e do Projeto Fundiário (PF), a partir da década de 1970, o espaço do sul e sudeste paraense foi retalhado e distribuído, em muitos casos, sem se considerar a existência da população local, recursos existentes e implicações ambientais. Na década de 1970, quando o Incra foi criado e iniciou sua atuação na região, a economia regional, baseada no extrativismo vegetal, perdia força, 115

Mobilização camponesa no sudeste paraense

em função da diminuição do preço no mercado internacional e perda de competitividade frente a outras atividades econômicas (Homma et al., 2000). Visando a integração econômica da região, o governo reforçou as políticas de incentivo à instalação de grandes empresas agropecuárias; ampliou os mecanismos de atração para o capital nacional e internacional; incentivou a mineração em grande escala e implementou projetos de colonização. O fluxo de chegada de famílias dispostas a conseguir terra aumentou. Os migrantes, principalmente os pequenos agricultores, se dirigiam tanto para as áreas de colonização oficial quanto para áreas consideradas devolutas, onde ainda não existia previsão de instalação de projetos de assentamentos. A abertura dos grandes eixos viários como a Belém–Brasília e a Transamazônica permitiu a penetração, para cada vez mais longe, de famílias de agricultores, fazendeiros e empresas em busca de terra, e expôs as áreas de floresta à ação das madeireiras, pecuaristas e agricultores. O espaço regional foi retalhado em grandes glebas e pequenos lotes, e a paisagem sofreu modificações rapidamente. A floresta foi substituída por pastagens, por áreas cultivadas com culturas anuais e permanentes, com abertura de áreas para a mineração e com reflorestamento por meio de espécies exóticas. Segundo Hébette (2004), a remodelagem do espaço regional é produto do confronto entre atores socialmente competitivos. Camponeses, fazendeiros, madeireiros, comerciantes, mineradores o disputavam, utilizando-se de diferentes instrumentos e meios, distribuídos assimetricamente entre os diferentes atores gerando pólos mais e menos favorecidos pelas ações do Estado. O conjunto de políticas do Estado favoreceu o latifúndio, que se constituiu, além dos meios legais, pela violência, força e grilagem de terras. Segundo dados do IBGE, a região sul e sudeste do Pará tinha, em 2000, uma área de 281.340 km2 e uma população de 1.097.661 habitantes (IBGE, 2000). Hébette (2004), baseado em dados do Censo Demográfico, mostra que, em 1960, a população dessa mesma região era de 41 mil habitantes. Durante essas décadas, Marabá se fortaleceu como centro político administrativo regional e as principais políticas governamentais destinadas à região passavam por órgãos sediados nesse município. As transformações políticas e econômicas dos anos 90 atingiram a dinâmica regional e a luta pela terra e contra a violência no campo tomou novo impulso. O movimento sindical se fortaleceu e novos atores se constituíram. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) começou a atuar na região, cresceu o número de Associações de Produtores e de Centrais de Associações e surgiram organizações de representação com atuação regionalizada como a Federação dos Trabalhadores Rurais da Regional Sudeste do Pará (FRS)3 e a Federação de Centrais de Associações (Fecap).4 Consórcios 3 4

A Fetagri Regional Sudeste é composta por dezessete municípios. A área de abrangência da Fecap não era claramente definida.

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municipais também foram criados como a Associação dos Municípios do Araguaia Tocantins (Amat) e organizações de representação patronal, como o Sindicato Rural que representa os pecuaristas, também se fortaleceram. Nesse contexto, cada ator social desenvolveu seus próprios mecanismos para disputar os diferentes recursos do meio social, econômico e ambiental. Os camponeses, que formavam historicamente um pólo menos favorecido no espaço social nacional e regional, foram alvo de violências, desacreditados e preteridos pelas políticas governamentais. Apesar disso, se constituíram em atores sociais de grande importância. Segundo De Reynal (1999), referindo-se a uma amostra de seis municípios, a agricultura familiar ocupava, em meados da década de 1990, 42% do território regional. Segundo Oliveira (2003), no final de 2003, a região registrava 381 projetos de assentamentos, 80 mil famílias assentadas e investimentos na ordem de R$ 96 milhões. Segundo informações da Fetagri Regional, em 2004 havia ainda uma área em torno de 160 mil hectares em situação de conflito fundiário. Esses dados mostram a força das organizações camponesas e seus afiliados no cenário sociopolítico-econômico regional. São as ações coletivas recentes desses atores que nos interessam neste texto.

DA SOLIDARIEDADE DOS GRUPOS FAMILIARES E VIZINHOS À CONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA O camponês do sudeste paraense, na sua maioria migrante, desenvolveu diferentes estratégias de lutas nas últimas três décadas. Segundo Hébette (2002), suas primeiras ações foram fortemente marcadas pelas relações primárias de parentesco e vizinhança. Para garantir a terra que acalentava o sonho que originou o processo de migração, tinha que se lutar por ela. Sem organizações formais fortes, a solidariedade interna dos grupos era a base da resistência e das estratégias.5 Muitos camponeses migraram em grupos e se juntaram a familiares já instalados; outros se dispersaram pela região e, portanto, tinham que recompor seus laços de solidariedade no novo contexto. Os espaços de socialização, como pequenos comércios, igrejas, campos de futebol e salões de festa, foram aos poucos surgindo. Até os rituais comunitários como festas civis e religiosas, batizados e casamentos tiveram que ser reconstruídos (Hé5

Estudos de vários autores revelam a variedade de formas de ações coletivas desenvolvidas pelos camponeses na Amazônia brasileira, em geral, para garantir a posse da terra. Podemos encontrar descrições dessas ações em Musumeci (1988); Leroy (1991); Hébette (1985, 1997, 2000); Guerra (2001); Tura (1996); Da Mata e Laraia (1979); Martins (1986); Esterci (1987); Ianni (1979); Emmi (1999) e Guerra e Acevedo (1990).

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bette, 2004). Agora, num ambiente mais complexo envolvendo diferentes tradições culturais, baianos, cearenses, capixabas, maranhenses, potiguares, mineiros e outros, impulsionados pela necessidade, tinham que misturar seus rituais e suas crenças, criando novas formas de coesão para enfrentar o ambiente hostil. Segundo Hébette (2004), a vida do camponês migrante que se tornou posseiro não era facilitada em nada no novo ambiente. Na prefeitura, na delegacia de polícia, o migrante pobre é ninguém; ainda mais em tempo de ditadura. No Incra, se não fosse assentado pelo órgão, passava facilmente por invasor. No próprio Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR), em tempo de repressão, o lavrador com problema de terra incomodava os dirigentes; o presidente era homem do Incra, da prefeitura, quando não de algum fazendeiro (Hébette, 2004, p.193). A reconstrução de solidariedades com o apoio da Igreja Católica, por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), foi o cimento da coesão nos tempos das primeiras ocupações de terra bem como no período da repressão do regime militar (Almeida, 2006). Apesar de eficientes no caso de ação localizada, os laços primários não ajudavam nas ações de maior envergadura. As pastorais foram incentivadoras da organização sob diversas formas. Os sindicatos não inspiravam confiança devido ao alto grau de sujeição a órgãos como o Incra e, tempos depois, ao Getat. Nesse contexto, as associações se tornaram uma opção com maior autonomia e dinamicidade. A permanência na terra dependia dessa coesão, da capacidade de liderança de alguns chefes familiares, da capacidade de mobilização e do enfrentamento direto com os opositores, como mostra Hébette (2004): Houve casos em que os posseiros tiveram que ficar em pé de guerra para enfrentar a violência dos latifúndios; entrincheiravam-se durante semanas. Só trabalhavam em regime de mutirão, homens e mulheres, jovens e adultos unidos: uns na roça, outros na vigia, outros na cozinha. Outros associados de lugares diversos levavamlhes comida, roupa, remédios e dinheiro. A solidariedade surgia como exigência da luta. (Hébette, 2004, p.194)

Foi pela capacidade de auto-organização dos camponeses e posseiros que a ocupação de latifúndios e terras devolutas ocorreu. Apoiados pelas pastorais da Igreja Católica, pelas CEBs, pelos militantes de partidos de esquerda e organizações da sociedade civil como a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH), os camponeses organizaram oposições sindicais e assumiram, aos poucos, o controle de diversos sindicatos. Apesar de suas práticas assistencialistas,6 os sindicatos possibilitavam outra dimensão à luta camponesa. Por meio do intercâmbio com sindicalis6

Entendemos por práticas assistencialistas um conjunto de práticas sindicais que se restringiam a repasses de benefícios advindos da ação governamental como assistência médica e odontológica. Essa assistência era caracterizada como uma ação dos sindicatos e não como um dever do Estado.

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tas rurais de outras regiões e com o sindicalismo urbano, que buscava uma renovação de suas práticas, o sindicalismo rural pôde dinamizar o processo de organização e mobilização. O status oficial dos sindicatos permitia ações mais ousadas dos camponeses. No entanto, os perigos continuavam os mesmos ou piores. Ser alçado à presidente de um sindicato quase sempre implicava em risco de sofrer um atentado. Na década de 1980, do total de assassinatos no campo (1.372), 35% (482) ocorreram no Pará. Muitos dos assassinatos eram de lideranças de ocupações e sindicalistas. A luta pela terra, que era fragmentada, passou a ter um ponto de convergência com os sindicatos, sendo assumidos por dirigentes vindos das CEBs e dos conflitos. Em função do dinamismo que impunham, eles passaram a ser o principal interlocutor do Estado. A garantia de permanência na terra de grande parte dos camponeses envolvidos em conflitos fundiários não significava, no entanto, o fim da luta pela terra. Dos sindicatos exigia-se a atuação em diferentes frentes: na condução da discussão dos fatores de permanência na terra; na continuidade da luta pela terra para camponeses sem terra e para milhares de chegantes; na condução de estratégias de enfrentamento dos modelos de desenvolvimento propostos para a região. Nos anos 90, o campo da representação dos camponeses se ampliou. Novas entidades representativas surgiram e buscaram se legitimar no processo de negociação na arena de disputa das políticas públicas. O MST se consolidou na região a partir do início da década. Centrais de associações e uma federação de associações foram criadas um pouco mais tarde. O movimento sindical promoveu modificações visando manter a hegemonia da representação, redefinindo sua unidade organizativa de base e criando estruturas regionais. As delegacias sindicais deram lugar às associações e os STRs se articularam numa estrutura regional denominada Fetagri Regional Sudeste (FRS).7 A disputa interna no campo da representação camponesa não impediu a definição de uma estratégia comum de ação frente à política de reforma agrária (Assis, 2007).

AS MOTIVAÇÕES PARA MONTAR OS ACAMPAMENTOS Após a criação da Superintendência do Incra8 em Marabá (SR 27/E), em 1996, a indicação do gestor local foi cercada de expectativas. Existia uma 7 8

Atualmente os 133 STRs do estado do Pará estão organizados em nove regionais. A morte de dezenove trabalhadores na curva do “S”, município de Eldorado dos Carajás, em abril de 1996, exigiu do governo federal uma tomada de posição em relação aos graves conflitos fundiários na região. A criação da superintendência do Incra (SR 27/E) de Marabá foi uma resposta do governo à forte pressão nacional e internacional motivadas pelo massacre de Eldorado dos Carajás.

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preocupação grande por parte do movimento sindical e do MST em relação ao nome indicado para esse cargo. Segundo o governo, o critério para escolha do superintendente seria o da eficiência técnica, uma vez que a situação requeria um profissional com comprovada qualificação para desempenho de funções gerenciais, que não passasse uma idéia de vinculação com a política local. O nome indicado foi o de um quadro de carreira com experiência de trabalho em outro estado da federação: Petrus Emile Abi-Abib, oficial da reserva do Exército brasileiro e funcionário do Incra do Paraná. Como era de se esperar, numa região onde os políticos e a elite econômica local determinavam historicamente a ação dos gestores públicos, o superintendente foi logo envolvido no sistema político e de poder local. O discurso da eficiência técnica passou a ser um escudo para uma forma autoritária e unilateral de o superintendente tratar a questão fundiária regional. Durante os primeiros meses de criação da SR 27/E, o movimento sindical e o MST buscaram o diálogo com o superintendente na tentativa de apresentar uma pauta de reivindicações com base nos principais entraves para a reforma agrária na região. Algumas vezes foram recebidos por ele, apresentaram reivindicações e firmaram alguns acordos. Porém, os acordos não foram cumpridos ou o foram de forma parcial. Na medida em que o movimento sindical e o MST procuravam explicação para o não-atendimento de demandas, o diálogo se fechava. Se, por um lado, o gestor local não demonstrava interesse em dialogar com as entidades de representação dos camponeses, por outro, se aproximava cada vez mais das prefeituras locais, políticos e fazendeiros, o que fazia aumentar o descontentamento dos primeiros. Essa aproximação se materializava nas freqüentes concessões de audiências com prefeitos, deputados e advogados representantes de fazendeiros. Nas audiências com políticos locais, se decidiam a destinação de recursos e as ações prioritárias. Tanto o movimento sindical quanto o MST reivindicavam o direito de serem ouvidos nessas tomadas de decisão. Outra materialização dessa colaboração estreita entre o órgão gestor e políticos locais era a permissão dada a políticos para afixar propaganda de seus mandatos (fotos, anúncio de emendas parlamentares, obras etc.) junto às placas informativas das obras realizadas pelo Incra.9 As propagandas do mandato coladas às placas das obras do Incra tinham uma intenção deliberada de ligar essas obras aos políticos. A primeira demonstração coletiva de descontentamento dos sindicatos da região articulados pela Fetagri Regional aconteceu por volta de maio de 1997. O enterro de um caixão simbolizando o Incra e a política de reforma 9

No sul do Pará, no município de Santa Maria das Barreiras, era comum encontrar placas de propaganda política do deputado federal Giovanni Queiroz (PDT) coladas às placas informativas das obras do Incra.

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agrária do governo Fernando Henrique Cardoso foi acompanhado por dezenas de dirigentes sindicais e agricultores representando diversos municípios, vereadores de partidos de esquerda da região, deputados estaduais e federais e representantes de entidades de apoio.10 ... e nós fizemos uma manifestação lá na superintendência que nós fizemos o enterro simbólico daquela política de reforma agrária pra trás. Então nós pegamos cruz, um monte de cruz...11 Então nós fizemos o enterro simbólico. Nós pegamos um caixão assim de uns três metros, cavamos dois metros de chão e enfiamos na frente do Incra. Foi em abril isso, reuniu umas 2000 pessoas (Entrevista com dirigente sindical, em 9 de setembro de 2004). [sic]

Depois, os manifestantes realizaram uma passeata pelas ruas da cidade fazendo paradas em frente a instituições como o Banco do Brasil, o Banco da Amazônia e o INSS. Se esse ato simbólico não surtiu efeito de modificar a forma de atuação da instituição, nos dirigentes sindicais despertou um sentimento de encorajamento para mudar seu modo de ação, a essa altura já influenciada pela ação do MST. Desde 1990, o MST estava atuando na região12 e fazendo contatos freqüentes com o movimento sindical. Em 1992, próximo a Marabá, 541 famílias ocuparam a fazenda Rio Branco e sete lideranças do MST foram presas acusadas de organizar e fomentar ocupações de fazendas. No ano seguinte, as famílias foram assentadas e os sem-terra passaram a fazer parte do cenário político regional. Entre 1993 e 1996, o MST realizou um forte trabalho de base em várias cidades da região, ocupou várias fazendas e participou ativamente do debate político sobre reforma agrária. As mobilizações do ano de 1996 em torno do massacre de Eldorado dos Carajás aproximaram as lideranças sindicais das lideranças do MST. Após o protesto, a resistência do superintendente em dialogar com as entidades representativas dos camponeses aumentou. Isso levou os representantes do movimento sindical da região, com apoio da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag),13 de parlamentares da bancada federal do Pará e representantes da CPT nacional, a formalizarem em audiência com o presidente do Incra Nacional um pedido de afastamento do superintendente. Essa audiência aconteceu no dia 25 de agosto de 1997 e, após uma exposição dos motivos por parte dos dirigentes sindicais, o presidente nacional do órgão se comprometeu a transferir o superintendente, em 10

11 12

13

Devido a divergências entre o MST e o Movimento sindical, essa ação foi organizada sem a participação do primeiro. O MST vai se integrar à ação posteriormente. Fazia um ano do massacre de Eldorado dos Carajás e as cruzes simbolizavam os mortos. A primeira ocupação do MST foi realizada no município de Conceição do Araguaia com apoio de militantes do Maranhão e Piauí. Na época, o vice-presidente da Contag era Avelino Ganzer, uma liderança sindical do estado do Pará.

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um prazo máximo de vinte dias. Ao ser comunicado da transferência, este solicitou uma audiência com o ministro Raul Jungmann e acionou um grupo de deputados e prefeitos da região para fazer sua defesa.14 Na audiência, em 18 de setembro de 1997, o ministro desconsiderou o compromisso do presidente do Incra Nacional e manteve Petrus Emile no cargo. O episódio serviu para que as entidades representativas entendessem que as elites locais ainda tinham força política junto ao governo. Sentindose reforçado e apoiado pela decisão ministerial, o superintendente passou a utilizar a imprensa local15 para desqualificar as reivindicações do movimento sindical e do MST e, em contrapartida, exaltar a ação da SR 27/E no processo de reforma agrária. No dia 15 de outubro de 1997, um jornal local estampou a seguinte manchete: “Incra diz que falta sem-terra para assentamentos” (CPT e Fetagri, 1997). A superintendência buscou, por meio da imprensa, fazer crer à sociedade que as atividades da instituição estavam surtindo efeito no mais grave problema regional, os conflitos pela posse da terra. Escolheu três aspectos, no mínimo polêmicos, para apresentar à sociedade os impactos do seu primeiro ano de atividade da SR 27/E: a) o número de famílias assentadas; b) a necessidade de diminuir o módulo para reforma agrária na região; e c) o anúncio do fim de sem-terras na região. Em relação ao número de famílias assentadas, o superintendente afirmava que a meta do Incra para aquele ano era de 10 mil famílias, e já havia assentado 8.400. Houve uma reação por parte do movimento sindical e MST em relação a esses números. Segundo os dirigentes da Fetagri Regional, muitas das áreas que estavam sendo contabilizadas como novos assentamentos eram, na verdade, áreas ocupadas nas décadas de 1970 e 1980, e a SR 27/E apenas fizera o cadastramento das famílias, ou seja, a maioria das áreas não foi desapropriada no exercício 1997.16 Esse fato foi registrado em todo o país, como mostra Fernandes (2005). Algumas dessas áreas estavam com mais de dez anos de ocupação e ainda não tinham recebido nenhum tipo de assistência do Incra. Segundo dados da CPT e FRS, em 1999 existiam 59.223 famílias assentadas em 250 projetos de assentamento na região. Desse total, apenas 29% havia recebido crédito alimentação, 31% fomento, 12% habitação, 12,5% Procera. Apenas 11% das áreas haviam sido demarcadas e 10% receberam algum tipo de assistência técnica (CPT e Fetagri Regional, 1999). Em relação à necessidade de diminuição do tamanho do módulo rural, a justificativa vinha ancorada num discurso sobre a necessidade de uso 14

15 16

Entre os deputados estavam Giovanni Queiroz (PDT), Asdrúbal Bentes (PMDB) e Olávio Rocha (PSDB), parlamentares considerados pelo MSTR como inimigos da reforma agrária. Marabá tem dois jornais de circulação regular, o Correio do Tocantins e o jornal Opinião. Um exemplo é o caso da fazenda Ubá, palco de uma chacina, no município de São João do Araguaia, ocupada desde 1985.

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intensivo da terra e abandono dos sistemas tradicionais. Certamente, o gestor local se baseava na experiência de agricultura do Centro-Sul do país, local de sua origem, sem se preocupar com os aspectos ambientais, culturais e sociais, característicos da Amazônia. Também estava embutida nesse raciocínio uma visão técnico-burocrática em relação à capacidade de resposta do órgão às metas propostas pelo governo. De forma autoritária, o novo módulo de 25 hectares passou a ser a referência para o cálculo da capacidade de assentamento nas áreas que se pretendia criar novos projetos de assentamentos. Com esse artifício, se duplicava a capacidade de assentamento das áreas em conflito, já que o módulo anterior era de 50 hectares. Dois casos foram ilustrativos dessa discussão. Segundo a SR 27/E, a fazenda Bradesco17 teria uma capacidade de assentamento para aproximadamente 2.500 famílias e a fazenda Bamerindus18 um pouco mais de 2 mil famílias, e isso seria suficiente para atender a demanda de sem-terra da região. Para a Fetagri e o MST, a capacidade de assentamento das duas áreas era de aproximadamente 1.700 famílias, considerando o módulo de 50 hectares. Com essas afirmações, a direção da SR 27/E procurava negar o número apresentado pela Fetagri Regional Sudeste e pelo MST e, ao mesmo tempo, convencer a população do sucesso da reforma agrária na região. Tanto o movimento sindical quanto o MST consideravam a redução do módulo uma imposição descabida e tecnicamente questionável. Com base nos números de famílias assentadas, aproximadamente 8 mil em menos de um ano, a direção do SR 27/E assegurava que não existia mais demanda por terra no sul e sudeste do Pará. A superintendência sustentava também que as famílias que estavam nas áreas ocupadas, fossem elas organizadas pelo movimento sindical ou pelo MST, não tinham perfil para serem assentadas. Em entrevista ao jornal O Liberal, afirmava que apenas 10% dos nomes apresentados pela Fetagri e MST eram clientes da reforma agrária e dizia, referindo-se à lista: “O resto era composto por donas de casa, desempregados e estudantes. A reforma agrária não é solução para o desemprego” (CPT e Fetagri, 1997). Essa afirmativa se baseava no fato de muitas famílias estarem desenvolvendo atividades nas áreas urbanas (pedreiros, açougueiros, mecânicos etc.) e até mesmo na área rural (empregados em fazendas). No entanto, estimativas feitas pelo movimento sindical e CPT, com dados levantados junto a dezesseis STRs da região, mostravam o aumento das ocupações nos anos de 1995, 1996 e 1997. Segundo dados dessas instituições, o número de ocupações nesses três anos somavam 37, envolvendo 3.399 famílias, conforme mostra quadro a seguir. 17 18

Localizada no município de Conceição do Araguaia (sul do estado), com 63 mil hectares. Localizada no município de Parauapebas (sudeste do estado), com 59 mil hectares.

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Quadro 1: Ocupações em 1995, 1996 e 1997 Ano

No de ocupações

No de famílias envolvidas

1995

08

882

1996

14

2.517

1997

15

4.497

Fonte: CPT e Fetagri.

Esses fatos contribuíram para a decisão de uma ação de massa, como forma de forçar a superintendência a receber e a reconhecer as entidades representativas. A partir desse momento, o movimento sindical, com apoio da CPT, iniciou um trabalho junto aos sindicatos e às famílias tanto das áreas de ocupação antigas (posseiros com mais de dez anos) quanto das mais recentes. O objetivo era de acumular um debate em torno da atuação da Superintendência e de suas prioridades de ação.

OS GRANDES ACAMPAMENTOS COMO FORMA DE LUTA PELA REFORMA AGRÁRIA O acampamento não era de todo uma forma de ação desconhecida das lideranças sindicais e era muito conhecida do MST. Nos anos 80, o movimento sindical da região sudeste do Pará, juntamente com entidades de apoio, havia realizado acampamentos de longa duração para reivindicar o reassentamento de famílias desalojadas pelo lago da hidrelétrica de Tucuruí. Esses acampamentos deram origem ao Movimento em Defesa da Vida (MDV), que reunia entidades representativas dos camponeses, de trabalhadores urbanos, entidades de apoio e partidos políticos. No caso do MST, o acampamento é parte da estratégia de socialização política das famílias que integram o movimento. Na primeira metade da década de 1990, o MST já havia realizado acampamento na unidade avançada do Incra em Conceição do Araguaia e em Marabá.19 No entanto, os acampamentos da segunda metade dos anos 90, além de reunir o movimento sindical e o MST, apresentavam outras características que os tornam peculiares. A montagem de um acampamento nas proporções dos realizados no sudeste paraense é uma tarefa complexa, que exige um intenso trabalho de preparação. Três dimensões se mesclam: uma primeira, material e física, envolve questões como número de pessoas que devem ser mobilizadas, a quantidade de alimento a ser coletada, a quantidade de material para construção de barracas, a definição dos meios de transporte e viabilização 19

Em 1992, após violento despejo da ocupação da fazenda Rio Branco, o MST levantou o primeiro grande acampamento massivo na região. Em 1993, o MST ocupou a Unidade Avançada do Incra em Conceição do Araguaia.

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da estrutura física no local do acampamento, dentre outras. A segunda, mais estratégica, compreende a definição dos temas e das reivindicações, das alianças, dos tipos de manifestações que serão feitas, os órgãos públicos que serão abordados etc. Uma terceira dimensão é transversal às outras duas: a construção de uma identidade e de símbolos. O processo pode levar meses até a sua realização. Do ponto de vista da sua dimensão física, segue um mesmo padrão, com pequenas variações em função do período do ano. Do ponto de vista estratégico, depende do desenrolar dos acontecimentos políticos e das negociações entre entidades de representação e executores dos órgãos públicos. Do ponto de vista simbólico, depende da reação que os outros atores do campo político esboçam durante o processo. Foram realizados quatro grandes acampamentos. O primeiro em novembro de 1997, próximo à data do aniversário de um ano de criação da SR 27/E. O segundo, entre os meses de abril e maio de 1999. O terceiro, durante o mês de julho de 2000, e o quarto, em março de 2001. As datas não necessariamente coincidiram com o calendário nacional de luta dos movimentos sociais rurais. A definição foi menos em função da agenda nacional e mais de acordo com os fatos políticos, e com o processo de negociação entre os movimentos e os órgãos públicos no espaço regional. Os acampamentos estavam voltados mais para as questões regionais sem, no entanto, estar totalmente apartados dos acontecimentos nacionais. A relação da FRS com a Contag, CUT, entidades de apoio, coordenação nacional da CPT, coordenação nacional do MST e parlamentares em nível estadual e federal, quebrava as barreiras do local e incorporava elementos da luta social em nível nacional. Em meados de outubro de 1997, já havia indicações de uma ação forte como forma de pressionar o Incra/Marabá a negociar as principais reivindicações dos camponeses da região. Em carta de circulação interna aos STRs e associações da região, a FRS já apontava para o tipo de ação que se pretendia realizar, como mostra o seguinte trecho da carta convocatória. A proposta de cada sindicato e associações tem sido de que devemos fazer uma ação de massa, montar um acampamento na sede da superintendência (do Incra) para forçarmos a negociação de toda a pauta. (Fetagri, 1997)

Nessa altura, a FRS já tinha uma sinalização dos STRs e associações quanto a uma ação de maior impacto. Nessa mesma carta, a FRS já apontava o indicativo de início do acampamento para o dia 9 de novembro. A carta alertava para a sua duração: “Pode ser de três dias ou três semanas, vai depender do andamento das negociações”. Havia também orientações sobre o processo de mobilização que os STRs deveriam fazer nos assentamentos e das áreas ocupadas. Além disso, apontava providências para o momento da montagem do acampamento: 125

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Cada sindicato montará sua própria cozinha e se responsabilizará pela manutenção de seus companheiros. Por isso, é preciso fazer um trabalho nas áreas para que os trabalhadores tragam arroz, feijão, farinha para ficar o tempo que for necessário. Durante o acampamento, as entidades (ONGs de apoio e assessoria) vão ajudar com transporte e outros gastos. (Fetagri, 1997)

De meados de outubro até a primeira semana de novembro, intensificaram-se as visitas aos municípios e os contatos por telefone, fax e cartas circulares, com conteúdos direcionados aos temas centrais da pauta de negociação e ao processo de organização da ação. Uma das cartas direcionadas aos dirigentes e sócios das associações terminava com a seguinte chamada: Vocês que estão em áreas de ocupação e querem que ela seja desapropriada e transformada num Projeto de Assentamento ou vocês que moram em um Projeto de Assentamento e precisam de estradas, créditos, escolas... não fiquem de fora, se organizem e venham lutar por seus direitos. (Fetagri, 1997)

No dia 9 de novembro de 1997 começaram a chegar os primeiros caminhões, cheios de homens, mulheres, crianças e mantimentos. A área em frente à sede da SR 27/E, chamada de Agrópolis Amapá, um espaço grande com várias árvores e sem prédios, foi “loteada” entre os sindicatos e, na medida que as delegações dos municípios chegavam, escolhia-se uma área e montavam-se as barracas. A distribuição das barracas por municípios tinha uma dupla função: permitir o controle e distribuição dos alimentos, já que cada sindicato se responsabilizaria pela alimentação de seus filiados, e facilitar as reuniões e assembléias que iriam ser feitas durante o período de negociação. Também permitia uma sensação de maior segurança, na medida que a maioria das pessoas se conhecia por ser do mesmo município e alguns, da mesma comunidade. Tal como descrito por Sigaud (2000), no caso dos acampamentos em Pernambuco, as bandeiras (da Fetagri e do MST) e as barracas davam uma “cara” para a manifestação.20 Uma das primeiras providências tomadas pelos dirigentes foi a formação de comissões, visando um bom funcionamento do acampamento. Procurou-se envolver o máximo possível de pessoas de todos os municípios presentes. Foram formadas comissões com diferentes funções, que iam desde a organização da distribuição de água e alimentos, segurança interna do acampamento, atividades de formação e cultural, atendimento de saúde, até a elaboração de documentos como a pauta de negociação e os acordos a serem firmados. 20

Além das bandeiras grandes que ficavam em destaque no acampamento, foram confeccionados milhares de bandeirolas, camisetas e bonés, utilizados nas passeatas e nos momentos de negociação. As camisetas, bonés e bandeirolas faziam parte de um kit acampado.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

As comissões, além de facilitarem a organização das atividades no acampamento envolvendo agricultores de todos os municípios, permitiam aos organizadores um forte controle dos acontecimentos. Havia uma preocupação em fazer com que as pessoas se sentissem participantes e responsáveis pela ação. Após a chegada das famílias e a montagem do acampamento, uma minicidade de lona começa a funcionar. Almeida descreve a montagem dos acampamentos da seguinte maneira: Todo acampamento é a mesma história. Uma cidade de lona é erguida às margens da Transamazônica, no pátio do Incra. Homens, mulheres e crianças chegam dos projetos de assentamento de todos os municípios do sudeste do Pará. Na cidade coberta de lona preta, a manutenção é garantida com os mantimentos trazidos da roça. Para cuidar da saúde, segurança, negociação com as instituições, alimentação, infra-estrutura, comunicação são escolhidas comissões. As barracas são montadas por assentamento ou município. Como é inviável uma reunião com 10 mil pessoas, nem todo mundo participa das negociações. (Almeida, 2006, p.118)

Nem todos participavam das reuniões de negociações, mas todos eram informados por meio de pequenas reuniões nos barracos, assembléias gerais do acampamento e da divulgação massiva na Rádio Cipó.21 Segundo o relatório do acampamento de 1997, durante os quase vinte dias de acampamento foram realizadas 38 assembléias para discussão do processo de negociação, cinco reuniões do fórum de mulheres e nove atividades, como cursos de curta duração, palestras sobre temas específicos e debates temáticos.

A PAUTA DE REIVINDICAÇÃO: ESPAÇO DE NEGOCIAÇÃO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE A pauta foi o produto de um lento e intenso processo de negociação entre os agricultores assentados, as entidades de representação e os apoiadores dos acampamentos. Durante vários meses, as lideranças sindicais regionais e entidades de apoio reuniram informações detalhadas sobre a situação dos assentamentos já constituídos, as áreas ocupadas, as fazendas com 21

A Rádio Cipó era um palco com um sistema de som improvisado onde se revezavam locutores e animadores culturais (também improvisados). Os locutores anunciavam constantemente os acontecimentos, o andamento das negociações e informações úteis aos acampados. Em frente ao palco funcionava quase permanentemente uma grande pista de dança. A Rádio Cipó foi uma criação de Amarildo Gomes Pereira e seu principal locutor, fundador da CPT de Tucumã, região de fronteira no sul do Pará. Após vários anos de atividade na CPT de Conceição do Araguaia e Tucumã, Amarildo Gomes Pereira mudou-se para Belo Horizonte onde lecionava numa universidade particular. Em 14 de janeiro de 2006, numa de suas viagens anuais para visitar o sul e sudeste do Pará, Amarildo Gomes Pereira, o criador da Rádio Cipó, faleceu vítima de acidente de ônibus em que viajava.

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Mobilização camponesa no sudeste paraense

características passíveis de inclusão no programa de reforma agrária e a infra-estrutura dessas áreas. Esse conjunto de informações alimentou a reflexão sobre os conflitos fundiários e a política de reforma agrária do governo, e foi a base para a elaboração da pauta dos acampamentos. Os seminários municipais e os encontros regionais foram espaços não só de levantamento de informações, mas também de afirmação de identidades. Os termos “posseiros” e “trabalhadores rurais” foram sendo substituídos por “sem-terra”, “agricultores familiares” e “assentados”. Em torno da pauta se constituía o campo de disputa pelos recursos governamentais dirigidos para a região. A pauta era composta de questões gerais e específicas. No item questões gerais reuniam-se um conjunto de condições que os acampados exigiam para que as negociações das questões específicas fossem iniciadas. As questões específicas formavam um conjunto de reivindicações que iam desde as diferentes modalidades de crédito até políticas sociais. A pauta era dirigida a diferentes órgãos da administração federal e estadual: Instituto de Terras do Pará (Iterpa), Banco do Brasil (BB) e Banco da Amazônia (Basa), Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), ministérios etc., exceto no caso do primeiro acampamento, momento em que se voltava especificamente ao Incra. Algumas das condições impostas pelas questões gerais das pautas davam a noção do nível de radicalidade da ação. No acampamento de 1997, por exemplo, as principais reivindicações eram: demissão do superintendente; acesso a informações sobre o orçamento do órgão e manutenção do tamanho do lote em 50 hectares. As questões específicas só foram negociadas quando essas condições gerais foram atendidas. Nos anos subseqüentes, além de novas exigências, a parte geral da pauta de reivindicação serviu também como espaço de denúncia de irregularidades nos processos de desapropriação, desvio de recursos nas obras de infraestrutura e favorecimento de empreiteiras. Em 2000, outro superintendente foi demitido em função das denúncias formuladas pelos organizadores do acampamento. As questões específicas da pauta eram compostas por reivindicações que diziam respeito à programação operacional do Incra, ou seja, a alocação de recursos para todas as atividades relacionadas à implantação e consolidação dos assentamentos. Nessa parte da pauta, apresentavam-se reivindicações como solicitação de vistorias de fazendas, arrecadações de terras, desapropriações, créditos nas diferentes modalidades e recursos para infra-estrutura. No primeiro acampamento, em 1997, as reivindicações foram direcionadas ao Incra e se concentravam nas questões das vistorias de áreas ocupadas e não ocupadas totalizando 121 áreas; desapropriações, desconstituição e criação de projetos de assentamentos; crédito para infra-estrutura, habitação, 128

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

fomento, alimentação e Procera. Nesse ano, a pauta do MST foi entregue ao Incra em separado. Nela havia questões específicas para os assentamentos sob sua coordenação, valor da desapropriação de fazendas, aquisição de lotes adicionais para complementar as áreas do Projeto de Assentamento (PA) 17 de Abril, cesta básica para alguns acampamentos, criação do PA Palmares, documentação dos assentados do PA 17 de Abril (carteira de identidade e CPF), liberação de créditos e fiscalização de obras. O acampamento de 1997 abriu um ciclo de disputa em torno das políticas governamentais em diferentes níveis. O Incra continuou sendo o principal interlocutor do movimento sindical e do MST, mas outras frentes de negociações foram se abrindo e o leque temático das pautas dos acampamentos se ampliou. O impacto do conjunto de ações realizadas durante o período do acampamento revelou novos atores e fez emergir novos temas. Além dos órgãos federais como o Incra, vários outros de abrangência regional, estadual e municipal passaram a ser demandados a partir de temáticas incluídas na pauta. Nesse sentido, o campo de negociação bem como o dos conflitos se ampliou (Scribano, 2003). Essa tendência se verificou nos acampamentos dos anos seguintes. As reivindicações direcionadas ao Incra foram organizadas de acordo com as próprias diretorias e setores do órgão. Dessa forma, a pauta apresentava um conjunto de reivindicações direcionadas ao setor fundiário como desapropriações; manutenção do tamanho do módulo para reforma agrária (o menor seria de 25 e o máximo de 100 hectares); convênio para assessoria e assistência jurídica; resposta às denúncias de superfaturamento nos casos de desapropriações e cancelamento da titulação de áreas que não tiveram acesso a todos os benefícios da reforma agrária. Ao setor fundiário apresentava-se a demanda e a situação das áreas para reforma agrária. A partir dos dados das pautas de reivindicações, as áreas poderiam ser classificadas como: áreas para vistorias (todas as fazendas que, por algum motivo, eram avaliadas pelo movimento sindical e pelo MST como passíveis de desapropriação); áreas em vistoria (todas aquelas em que o Incra já iniciara o processo de vistoria, mas que se encontravam com processos inconclusos); áreas em instrução (as que estavam em processo de negociação, por exemplo, as áreas onde a jurisdição do Incra e Iterpa se sobrepunham); áreas em processo de desapropriação (aquelas cuja desapropriação já havia sido decretada e anunciada e as áreas encaminhadas para desapropriação); áreas com decreto (em avaliação para lançamento de TDA,22 22

Título da Dívida Agrária (TDA) é um título de responsabilidade do Tesouro Nacional, emitido para a promoção da reforma agrária, exclusivamente sob a forma escritural, custodiado na Câmara de Custódia e Liquidação (CETIP). É um título de rentabilidade pós-fixada pela variação da Taxa Referencial do Banco Central (TR). .

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com decreto para lançamento de TDA e criação de assentamento); áreas em ajuizamento ou ajuizadas (com tramitação para criação do projeto de assentamento já resolvida). O quadro abaixo mostra a situação no momento de cada acampamento, considerando essa classificação. Quadro 2: Situação das áreas para reforma agrária no momento dos acampamentos Em vistoria Instrução Desapropriações

Com decreto

Em ajuizamento

sd

9

Ano

Vistorias

1997

78

sd

sd

1999

38

70

58

48

54

5

2000

15

sd

sd

37

42

sd

50

2001

80

sd

16

99

9

4

Total

211

70

74

234

105

18

Fonte: CPT e Fetagri (1997, 1999, 2000 e 2001), adaptado livremente pelo autor.

O número de solicitações de vistorias em cada acampamento revelava o passivo da reforma agrária e da situação conflituosa em que a região estava imersa. Dados do Incra (2004) mostraram que, entre 1997 e 2001, foram criados 239 projetos de assentamento na jurisdição da SR 27/E. Segundo a mesma fonte, nos dez anos anteriores (1986-1996) haviam sido criados apenas 86. Percebe-se, portanto, um incremento muito forte no número de assentamentos na região. A forte mobilização dos agricultores organizados em torno do movimento sindical e do MST foi decisiva para esse incremento. Duas questões merecem ser destacadas em relação às áreas pleiteadas para reforma agrária. A primeira é que boa parte delas já estava ocupada, portanto, em situação de conflito. A segunda é que havia uma forte pressão contrária ao avanço da reforma agrária na região. A terra era, e ainda é, um recurso em disputa por diferentes atores como fazendeiros, empresas agropecuárias, mineradoras e florestais, especuladores e os milhares de agricultores sem-terra. Cada um deles exerce uma pressão diferente sobre o governo. O movimento sindical e o MST exercem essa pressão pela mobilização de sua base social. Esse não é seu único recurso de pressão. Como vimos anteriormente, parlamentares, entidades e outros setores da sociedade se manifestaram em apoio, mas certamente sua base social e suas ações são o instrumento mais poderoso. As reivindicações direcionadas ao setor de assentamentos responsável, dentre outras coisas, pela liberação dos créditos somavam grandes volumes de recursos, distribuídos entre as diferentes modalidades de crédito, como mostra o quadro a seguir. Em geral, os recursos destinados pelo governo para a Programação Operacional de cada ano eram muito inferiores à demanda das pautas. 130

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Quadro 3: Volume de recursos solicitados nos acampamentos de 1997, 1999, 2000 e 2001 pelo movimento sindical e MST Tipo de crédito Procera Alimentação

Ano do acampamento (em R$) 1997

1999

2000*

47.265.000,00 2.633.980,00

9.645.200,00

Fomento

4.663.480,00

22.561.275,00

Habitação

12.962.000,00

64.940.000,00

Apoio Instalação Capacitação

615.500,00 4.900.000,00

21.596.400,00

19.378.800,00

58.827.500,00

600.000,00

Assistência técnica Investimentos e obras

0,00 7.144.011,74

36.012.530,54

Demarcação Total

2001

103.536.990,54

163.463.400,00

12.100.000,00

196.731.350,00

11.986.100,00

4.338.400

8.619.600,00

272.595.975,00

41.932.700,00**

292.918.861,74

Fonte: CPT e Fetagri (1997, 1999, 2000 e 2001). * Mudança na denominação dos créditos. ** O autor não encontrou, nos documentos analisados, uma explicação para o baixo montante de recursos nesse ano.

Os maiores volumes de recursos reivindicados foram para infra-estrutura e obras nos assentamentos. A pouca capacidade de investimento dos municípios associados aos problemas de ordem política foram fatores que afetaram negativamente a realização de obras de infra-estrutura nos assentamentos. São raros os municípios que realizaram grandes obras direcionadas para o meio rural. Dentre eles, pode-se citar Parauapebas (cuja maior capacidade de investimento se explica pela fatia de recursos recebidos da Companhia Vale do Rio Doce, por meio de royalties da atividade mineradora) e Itupiranga, devido à aproximação entre os prefeitos e o movimento sindical de trabalhadores rurais, mediada pela Igreja Católica: pelo menos dois prefeitos que mantinham estreita relação com o movimento sindical foram ex-militantes da pastoral. Além dos itens mencionados anteriormente direcionados ao Incra, a pauta dos acampamentos de 1999, 2000 e 2001 apresentava três novas reivindicações: a contratação de nove equipes do projeto Lumiar, que haviam sido apresentadas na Programação Operacional de 1998, e trinta novas pela Programação Operacional 1999, além da contratação de cinco supervisores externos para o programa Lumiar;23 liberação de recursos para implantação do Pronera em 21 assentamentos;24 expedição de declarações 23 24

Programa de Assistência Técnica aos Assentados. O Pronera seria implantado numa parceria entre o movimento sindical, o MST e uma equipe de professores do campus universitário do sul e sudeste do Pará da Universidade Federal do Pará.

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Mobilização camponesa no sudeste paraense

para auxílio-maternidade e aposentadoria, a partir da criação do projeto de assentamento. Dessa forma, temas como assistência técnica, educação rural e políticas sociais começaram a fazer parte da pauta de negociação. A diversificação temática da pauta introduziu novos atores no campo da negociação como a universidade, no caso do projeto Pronera e do projeto Lumiar, as prestadoras de serviço, no caso da assistência técnica, e o INSS, no caso da Previdência Social. Em todos os acampamentos, exceto o de 1997, foram realizadas negociações com o governo do estado, com o Basa e com o INSS. As reivindicações dirigidas ao governo do estado estavam relacionadas a questões como a situação jurídica dos antigos títulos de aforamento, visando disponibilizar as áreas destes para o programa de reforma agrária; criação de projetos de assentamento em áreas de jurisdição do estado pelo convênio entre o Incra e o Iterpa; incentivo para implantação de agroindústrias familiares, redução de tarifas de energia para atividades agroindustriais e estudo de viabilidade de áreas para desenvolvimento de agroindústrias (zoneamento de potencialidade). Sobre a assistência técnica: criação de um fundo de assistência técnica e revitalização da assistência técnica estatal, ou seja, apoio ao funcionamento da Emater; sobre a educação: implantação de escolas de 5ª a 8ª série na área rural, no sistema modular, sob a responsabilidade do Estado, transporte escolar, destinação de recursos por meio de convênios para as Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), criação de uma escola agrotécnica em Marabá e qualificação de professores; sobre o ecoturismo: destinação de recursos para um programa de capacitação e formação de agricultores familiares nessa atividade. Em torno de alguns desses temas desenvolveu-se uma dinâmica própria envolvendo os atores concernidos, como foi o caso da educação do campo25 e da assistência técnica. Encontros, seminários e outras atividades foram desenvolvidos, visando aprofundar e consolidar ações direcionadas para essas temáticas. Fortaleceu-se o movimento em torno da implantação de Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), ampliou-se o Pronera, inclusive no 2º grau, e diversificaram-se as atividades do MST na educação do campo. O movimento sindical priorizou a implantação de EFAs e o Pronera; o MST, a discussão em torno da formação desenvolvendo ações para consolidar a educação do campo em diferentes níveis. Além das atividades no ensino fundamental, o MST assinou convênios com a Universidade Federal do Pará para a criação de cursos de graduação adaptados metodologicamen25

Foi criado um Fórum Regional de Educação do Campo que congrega representações dos movimentos sociais, universidade, prefeituras e outras instituições. Nesse Fórum são discutidas propostas de educação, desde o ensino fundamental até a graduação. O projeto político pedagógico da Escola Agrotécnica Federal de Marabá foi discutido e elaborado no âmbito desse Fórum.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

te e filosoficamente à questão do campo, como foram os casos do curso Pedagogia da Terra (campus de Belém) e Agronomia (campus de Marabá). Apesar da reivindicação de revitalização da Emater, a ação do movimento sindical foi na direção de fortalecer o programa de assistência técnica aos assentados por meio do projeto Lumiar,26que reforçou uma assistência técnica pública não estatal. Em 2005, já havia dez prestadoras de serviços (assistência técnica não estatal) atuando na região sul e sudeste do Pará. O corpo técnico dessas prestadoras era formado por 311 profissionais de nível médio e superior com diferentes formações, cuja indicação era prerrogativa das entidades representativas dos agricultores. Segundo Oliveira et al. (2005), dentre os principais profissionais contratados pelas prestadoras de serviços encontravam-se agrônomos(as), assistentes sociais, pedagogos(as), engenheiros(as) florestais, geógrafos(as), licenciados(as) em letras, licenciados(as) em ciências agrárias, administrador(a) de empresa, sociólogos(as), zootecnistas e técnicos(as) em agropecuária. Como vimos, o processo de elaboração das pautas de reivindicação envolveu um grande número de pessoas e instituições. O conteúdo das pautas se modificou ao longo dos anos, apesar de manter um núcleo central direcionado para a política de assentamento. Esse fato não foi um mero detalhe. A política de assentamentos ou de reforma agrária, como muitos preferem chamar, transformou-se no principal elo com outras políticas governamentais. Os assentamentos surgiram no cenário político regional como o aglutinador da ação do Estado em diferentes níveis. O governador do estado, os prefeitos e vereadores, os deputados estaduais e federais, os senadores, todos se mobilizaram de alguma maneira quando se tratava da política de assentamento. Os interesses nem sempre coincidiram, mas cada um se posicionava e buscava de alguma maneira influenciar simbólica ou concretamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A ação camponesa na segunda metade dos anos 90 foi fruto da articulação entre a experiência individual e coletiva acumulada em anos na luta de resistência ao latifúndio e novas formas de ação desenvolvidas por outros atores sociais. O aprendizado na relação com o MST foi um dos mais frutíferos. Apesar das diferenças de concepções políticas e de métodos de intervenção na realidade, esses atores sociais estabeleceram alianças para o enfrentamento de questões cruciais para a implantação da reforma agrária no sudeste paraense. Apesar de desenvolverem estratégias diferentes, tanto para a ocupação dos latifúndios quanto para o desenvolvimento dos assen26

Recentemente pelo programa de Assessoria Técnica e Social aos assentados (Ates).

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Mobilização camponesa no sudeste paraense

tamentos, o movimento sindical e o MST se unificaram e desenvolveram um repertório de ações coletivas (Tilly, 1981) que visavam ampliar o leque de reivindicações frente ao Estado. O conceito de repertório de ação coletiva foi introduzido por Charles Tilly e considera que um dado grupo de atores sociais desenvolve um número limitado e específico de ações, que lhes são familiares e definidos em função de suas identidades e interesses (Tilly, 1981). Esse conceito permite pensar as ações coletivas como um processo de aprendizagem que depende também da relação que se estabelece com os aliados e os antagonistas (Tilly, 1984). Nesse sentido, nem todas as ações do repertório de uma época têm necessariamente um efeito positivo. Algumas delas podem ser abandonadas e outras reforçadas por um determinado período. Segundo Casarões (2008, p.2), citando Tilly (1986) e Traugott (1993), “os repertórios não representam necessariamente o conjunto de ações mais adequado em face de uma determinada situação, mas sim o mais factível dentre alternativas conhecidas”. A discussão conceitual de Tilly sobre repertório de ação coletiva nos impõe a reflexão sobre três importantes parâmetros: o primeiro é verificar se o repertório tem origem na interação com outros atores e se caracteriza um processo de aprendizagem; o segundo é confirmar se a ação tem uma freqüência que permita caracterizá-la como rotina; e o terceiro é verificar se as ações são específicas e atendem a particularidades do grupo em questão. No caso dos camponeses do sudeste do Pará, foi possível observar que os acampamentos foram escolhidos dentre as várias possibilidades de embate com o governo. A intensa divulgação de notas explicativas na imprensa sobre o porquê dos acampamentos e de contestação às notas oficiais do Incra visava apresentar o camponês como um importante ator social e portador de uma proposta de desenvolvimento. Havia um jogo intenso de legitimação e deslegitimação. Os acampamentos, além de terem surgido a partir de um aprendizado coletivo (do movimento sindical e do MST), serviram também como uma “vitrine” onde os camponeses se apresentavam para a sociedade regional. Havia uma preocupação de neutralizar a visão passada pelos seus antagonistas. Acampamentos em fazendas, órgãos públicos, margens de estradas e praças de cidades tornaram-se rotina a partir do início da década de 1990, tendo seu ponto máximo em 1997, com os grandes acampamentos. Os conteúdos das pautas analisados neste texto mostraram a vinculação direta das reivindicações com os problemas do campesinato regional, que vai além do problema da terra. Além disso, esta análise não faria sentido se o grupo analisado não representasse uma força coletiva relevante na região. Não se sabia, ao certo, se a ação lograria sucesso. O avanço do processo de negociação com os representantes do Estado indicava onde concentrar mais esforços e onde recuar. A radicalização em alguns momentos era uma sinalização de descontentamento com os rumos do processo de negocia134

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

ção.27 Apesar da reforma agrária estar no centro das reivindicações, as pautas de negociações iam além das questões relacionadas à terra e à produção agrícola. A análise das pautas mostra claramente uma preocupação com a infra-estrutura geral da região, educação em diferentes níveis, assistência social aos agricultores idosos e assistência técnica diferenciada para os assentados. No que se refere à assistência técnica diferenciada, os principais elementos apontavam para o rompimento com o modelo tecnicista e de transferência de tecnologia, e a inclusão das dimensões educativa, cultural, social e ambiental nos serviços de assistência técnica. Mesmo que não fosse uma proposta gestada localmente, já que uma assistência técnica com essas características começava a ser discutida em outras regiões do país e no âmbito do próprio governo, o movimento camponês regional assumiu essa assistência técnica como bandeira de suas lutas. A amplitude da pauta de negociação se explicava não só pela relação que existe entre os espaços rurais e urbanos, mas também pela grande diversidade de situações em que se encontravam os camponeses da região. Alguns camponeses ocupavam, há mais de dez anos, áreas onde o governo estava criando projetos de assentamentos; outros estavam em áreas recém-ocupadas ou se encontravam em acampamentos, portanto, fora da terra. Essa diversidade de situações gerava também uma diversidade de necessidades. Um conjunto de reivindicações dava conta do grupo que não tinha nem a terra; outro estava orientado para aquelas situações onde existia uma infra-estrutura mínima, mas não se tinha apoio para a produção; outro conjunto de reivindicação dava conta de questões sociais como a aposentadoria. Podemos dizer que a luta dos camponeses se inscreve na luta mais geral da sociedade regional. De forma voluntária ou não, se buscavam soluções para problemas maiores do que os que afetavam diretamente os camponeses. Discutia-se não só a reforma agrária, mas esta como ponto de partida para se chegar a uma sociedade regional diferente da que existia. O direito à terra era afirmado e reafirmado, mas junto com a terra uma constelação de outros direitos que impunham ao Estado demandas totalmente novas. Para atendê-las, o Estado precisava criar novos programas e políticas, e implantar regionalmente novas estruturas de administração e gestão. As pautas não apontavam apenas a necessidade de se criar e/ou ampliar programas e políticas governamentais, mas também de criar novos espaços de discussão e definição das prioridades regionais. Buscava-se assim uma forma diferente de participação nas decisões do governo. O discurso de gestão democrática dos sucessivos governos não era suficiente. O movimento camponês reivin27

A certa altura do processo de negociação, as dependências do Incra foram ocupadas por milhares de pessoas. A saída das dependências do órgão dependia das concessões que o governo se dispunha a fazer.

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dicava a possibilidade concreta de participar de espaços de decisão. Discutir a Programação Operacional na região passou a ser mais que uma mudança de instrumento de planejamento e gestão: tornou-se um espaço concreto de participação da sociedade local no planejamento das ações do Estado. O repertório de ações coletivas dos camponeses, organizado pelas entidades representativas, principalmente os sindicatos, a Federação Regional e o MST, modificaram o sentido da reforma agrária nos anos 90: a democratização da terra era o objetivo principal da luta camponesa, mas a terra sem a assistência técnica, sem o recurso para a infra-estrutura e o crédito para a produção, sem a educação do campo, não era reforma agrária. Ela teria que ser garantia de qualidade de vida para os camponeses e para a sociedade. O desenvolvimento regional também assumiu um novo sentido. Os camponeses, por meio de suas ações, colocaram como possibilidade concreta um desenvolvimento diferente do protagonizado pelo grande capital, anos a fio.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

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Mobilização camponesa no sudeste paraense

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6 A FRESTA: EX-MORADORES DE RUA COMO CAMPONESES* Marcelo Gomes Justo

INTRODUÇÃO

No presente texto procura-se analisar, com base numa pesquisa (Justo, 2005), os potenciais e as limitações de incluir moradores de rua na luta pela terra, e as formas de gestão dos conflitos entre camponeses num assentamento de reforma agrária. Aponta-se para o potencial emancipatório da economia solidária – entendida como autogestão política e econômica – num assentamento com ex-moradores de rua, que procuram se organizar coletivamente. O objetivo do trabalho é contribuir para a interpretação da atual luta camponesa (uma face da luta se expressa no jogo de definir quem é e quem não é camponês) e das formas de lidar com conflitos sociais referentes à organização da vida pública em assentamentos. É possível alargar a fresta por onde algumas dezenas de moradores de rua vão para o campo? O número de moradores de rua nas grandes metrópoles cresceu de forma significativa na última década e, na fase atual do capitalismo, eles estão definitivamente excluídos da possibilidade de emprego formal. Portanto, a situação dessa população só pode ser pensada de forma alternativa ao modo de produção capitalista. A entrada para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) constitui-se uma alternativa, que em termos numéricos ainda é pequena. Na pesquisa realizada, a organização de um assentamento de reforma agrária foi interpretada como uma fração do território camponês. As redes no assentamento (os grupos, as comissões e as reuniões), as formas de lidar com conflitos (estatal e não-estatal) e a formação de grupos de economia * O artigo consiste das questões principais da tese de doutorado “Exculhidos”: ex-moradores de rua como camponeses num assentamento do MST, defendida no Departamento de Geografia da FFLCH/USP, em agosto de 2005, sob orientação do professor-doutor Ariovaldo U. de Oliveira.

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solidária são três recortes retomados aqui. Ao formar redes, os assentados desenvolvem um aprendizado sobre como lidar publicamente com conflitos e organizar grupos de produção. Houve avanços e recuos nesse caminho entre os interesses públicos e privados. A contribuição trazida em relação ao tema do território camponês é, justamente, tratar das redes que surgem num assentamento pelo MST e que, por definição, atravessam e ultrapassam aquele território. A noção de rede é entendida como complementar à de território (Raffestin, 1993; Latour, 2000). Aprofunda-se o estudo das lutas no interior da classe camponesa pelas dinâmicas dos micropoderes conectadas ao território, como ensinou Raffestin. São demonstradas as malhas das redes de três grupos existentes no assentamento. A noção de rede permite ultrapassar o território sem negá-lo. Cabe esclarecer que o termo “camponês” é usado como um conceito, sendo uma classe social recriada dentro do modo de produção capitalista e, portanto, não se extingue. Pelo contrário, está perenemente recolocandose no cenário político contemporâneo. Então, morador de rua se tornar camponês faz parte dessa lógica. Porém, essa lógica não é suficiente para interpretar a dinâmica que ocorre num assentamento com as diferentes pessoas provenientes das cidades. Vale destacar que a noção de rede é tomada em duplo sentido, como instrumento descritivo-analítico e como princípio epistemológico (Latour, 2000). Assim, é possível descrever e analisar a formação de redes no assentamento e interpretar o conhecimento camponês pelo tecer das redes. Assume-se que um aspecto do conhecimento camponês manifesta-se em traçar redes: quando o sujeito oscila entre agir a favor da família ou formar grupos; prefere trabalhar só com os familiares ou constituir associações; e faz assembléias, reuniões e forma comissões como caminho para a gestão pública do assentamento.

A PESQUISA: UM ASSENTAMENTO PELO MST COM MORADORES DE RUA1 O assentamento estudado localiza-se na região sudoeste do estado de São Paulo e a organização para conquista da terra deve-se ao Movimento dos 1

“Vale observar que foram trocados os nomes de moradores, do assentamento e dos municípios para preservar as pessoas envolvidas e o movimento de luta pela terra, e mostrar com maior transparência os fatos. São tratados os conflitos sociais num assentamento organizado pelo MST de uma perspectiva em que eles são inerentes às relações sociais; porém, encontram-se, no local, situações conflituosas específicas. Nesse sentido, este trabalho visa contribuir para a reflexão sobre as formas de lidar com os conflitos sociais num assentamento e sobre a possibilidade de aprendizagem de novas formas. A possibilidade vislumbrada é que as associações são vitais na gestão política do assentamento. ... Essa preocupação está amparada na discussão metodológica, em que se aponta para o compromisso da ciência com a justiça social” (JUSTO, 2005, p.2).

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Trabalhadores Rurais Sem Terra. O caso insere-se num contexto em que a organização pastoral católica Fraternidade Povo da Rua aproxima-se do MST, nos anos 90, e ambos começam a levar moradores de rua da cidade de São Paulo para a luta pela terra. Essa aproximação gerou a regional Grande São Paulo do Movimento. Como o objeto empírico do trabalho constituiuse dos conflitos internos relativos à organização da vida coletiva no assentamento, tratou-se da possibilidade de formação de um espaço público no assentamento. Quando se enfatiza que o objeto de estudo é o conflito interno relativo à organização da vida coletiva, está se excluindo do tema os conflitos interpessoais, como as brigas de vizinhos, por exemplo, mesmo sabendo que, às vezes, não há limite entre esses dois tipos de conflitos. A peculiaridade desse assentamento é ter pessoas que estavam morando nas ruas da cidade de São Paulo. Inicialmente, cerca de 250 famílias compunham essa luta, e 27 indivíduos moravam nas ruas. Do grupo original, cerca de oitenta famílias ocuparam uma fazenda, e lá permaneceram 63. Com a desapropriação de 920,5 hectares, apenas 47 famílias puderam ser assentadas no local. Destas, permaneceram doze pessoas que são ex-moradores de rua. A relação entre a trajetória de vida daqueles que vieram das ruas e o MST também foi objeto de pesquisa. O recorte temporal do trabalho de campo cobriu os anos de 2001 a 2004.

HISTÓRICO DO GRUPO E DA OCUPAÇÃO Desde abril de 1996, membros do movimento Fraternidade Povo de Rua e militantes do Coletivo do Brás,2 do MST, promoviam conversas com 45 moradores de rua sobre as ações de ocupação de terras; eles conseguiram articular um grupo de 27 pessoas disposto a se unir a outros interessados em lutar por terra. Em 2 de setembro de 1996, esses 27 moradores de rua, e mais dezenas de famílias, partiram para as imediações de dois municípios da região sudoeste do estado. Ao todo, uniram-se cerca de 250 famílias, com uma grande parte proveniente da capital e da região de Campinas, de municípios como Hortolândia e Sumaré, e outras da região de Sorocaba, organizadas pelos respectivos núcleos regionais do MST. Após um ano e meio de luta e sete acampamentos distintos, em fevereiro de 1998, das cerca de cem famílias que estavam acampadas na beira da estrada, em torno de oitenta decidiram ocupar uma fazenda. O restante continuou acampada na beira da estrada aguardando por situação mais definida.3 2 3

Brás é um bairro próximo ao centro da cidade de São Paulo. Segundo Feliciano (2003, p.168), um grupo de famílias que estava acampado na beira da estrada partiu para uma ocupação no Núcleo Colonial Monções, no município de Iaras/SP, em 15 ago. 1998.

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A ocupação da fazenda deu origem ao assentamento; o governo federal desapropriou a fazenda um mês depois, em março de 1998. Restaram na fazenda 63 famílias. Utiliza-se o termo família, mas há também indivíduos sozinhos que receberam um lote. Nem todos os indivíduos sozinhos são ex-moradores de rua e nem todos os que vieram das ruas vivem sozinhos. Em 18 de dezembro de 1998, foi assinado pelo governo federal o projeto de crédito fomento.4 Os técnicos do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) verificaram, inicialmente, a capacidade de assentar 41 famílias, dadas a baixa fertilidade do solo e a localização afastada da fazenda, e o fato de o lote mínimo ter 12 hectares. Em assembléia do projeto de assentamento, de 14 de dezembro, os presentes, já sabendo da liberação da verba de fomento, decidiram pela partilha do montante entre todos os que participaram da luta, mesmo que não fossem assentados ali. Decidiram que o dinheiro, que viria para 41 famílias, seria dividido entre as 63, e que as 22 excluídas da lista do Incra devolveriam o dinheiro quando fossem beneficiadas pelo mesmo tipo de financiamento. Essa partilha do crédito de fomento gerou, três anos depois, um grande conflito no assentamento, envolvendo ação civil contra os coordenadores. Posteriormente, o Incra decidiu assentar 47 famílias e fez uma lista de homologação. Nessa época, havia 61 famílias no assentamento, e as 14 não homologadas pelo Instituto dividiam a área com outras. Alguns indivíduos sozinhos cansaram da espera pela divisão dos lotes e desistiram da luta ou foram para outros assentamentos. O clima no projeto de assentamento naquele período era muito tenso, e havia ameaças pessoais. Uma parte queria o trabalho coletivo e moradia em agrovila, e outros preferiam morar e trabalhar em lotes individuais. A espera pela demarcação dos lotes causava animosidade entre os moradores. Da desapropriação, em março de 1998, até a divisão dos lotes, em janeiro de 2000, a maioria das famílias estava morando numa espécie de agrovila e trabalhando coletivamente numa estufa de pimentões. Outros poucos estavam morando em áreas mais afastadas. Os moradores decidiram a divisão dos lotes por meio de sorteio, em assembléia geral de 9 de janeiro de 2000.

EXPLICANDO AS HIPÓTESES E A METODOLOGIA Foram comprovadas duas hipóteses. Na primeira, foi assumido que a mudança para o campo constitui-se uma alternativa para um problema vivido na cidade, a condição de morador de rua. A noção de “alternativa” é entendida em contraposição ao mundo do emprego assalariado, base do modo 4

Cada família tinha direito a R$ 1.425,00 para instalação no lote e primeiro plantio, a fundo perdido.

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de produção capitalista (Singer, 1998 e 2002). Focaram-se as possibilidades de construir uma economia solidária no assentamento, para mostrar quais são os avanços e as limitações na realização desse processo. A segunda hipótese coloca que, numa fração de território potencialmente alternativa ao modo de produção capitalista, desenvolvem-se formas de gestão pública dos conflitos sociais internos referentes à vida coletiva no assentamento. Basicamente, a diferença entre a gestão pública e a estatal consiste nos seguintes aspectos: a gestão estatal dos conflitos não é realizada pelo público envolvido, mas por técnicos operadores da lei distantes do cotidiano gerador do conflito, e, principalmente, o controle social exercido pelas leis baseia-se em distinções sociais (cf. Black, 1998). Por sua vez, a gestão pública dos conflitos diz respeito ao controle social e à apropriação do espaço feita pela população de um dado local, no caso um assentamento de reforma agrária. É esse movimento que transforma o espaço em território, como definido por Raffestin (1993). Para o estudo da dinâmica dos conflitos internos no assentamento, a posição expressa por Raffestin (1993) é fundamental. Esse autor faz a crítica da geografia política clássica de Ratzel, entre outros, para se contrapor à noção de que o poder refere-se exclusivamente ao Estado. Com base no princípio de que a verdadeira geografia só pode ser uma análise dos poderes, segue a definição foucaultiana de poder: 1) algo que não se adquire e é exercido a partir de inúmeros pontos; 2) é imanente a todas as relações; 3) vem de baixo e não há oposição entre dominante e dominado; 4) tem intencionalidade e não subjetividade; 5) onde há poder há resistência, e esta não é exterior àquele. A partir disso, o autor coloca que o poder não é influência nem autoridade e que, portanto, está ligado à manipulação dos fluxos de energia e informação, como duas variáveis inversamente proporcionais. Para Raffestin, território é um conceito que se diferencia da noção de espaço. Aquele é resultado da ação de um ator social que, quando se apropria de um espaço, o territorializa. Porém, o conceito de território não é suficiente sem o de rede, que o complementa. Junto ao território, nos lugares do poder, há nodosidade, centralidade e marginalidade. Ou seja, há lugares que apresentam densidades mais fortes ou mais fracas de relações, como aspecto das redes. Segundo Raffestin, do território surgem tessitura, nó e rede; portanto, deve-se levar em conta esse conjunto de superfícies, pontos e linhas. Podemos apoiar-nos nesse geógrafo para entender um assentamento de reforma agrária como um território (dentro de outro maior) em que os lotes são nós (pontos), e as redes são as linhas que unem os pontos, ligando fragmentos (gerando e/ou gastando energia e informação) e, assim, compondo tessituras. Quanto às redes, em que nodosidade, centralidade e marginalidade estão implicadas, interessa que, tanto na circulação quanto na comunicação (processos simultâneos), os atores sociais confrontam-se com elas. Para o 143

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autor, as redes são móveis e inacabadas e por isso têm a força de adaptar-se ao espaço e ao tempo. O geógrafo francês embasa-se na seguinte definição dada por Michel Serres: “A rede faz e desfaz as prisões do espaço, tornando território: tanto libera como aprisiona. É o porquê de ela ser o ‘instrumento’ por excelência do poder” (Serres apud Raffestin, 1993, p.204). A noção de rede é aprofundada com os textos de Latour. Assim como Raffestin, Latour (2000) retira a noção de rede dos trabalhos do filósofo francês Serres, entre outros autores. Rede, segundo Latour, é a capacidade de conectar e de separar, de produzir espaço e tempo, que, mesmo sendo ampla, continua a ser local em seus nós.

A MODERNIDADE E A CONTEMPORANEIDADE DE CAMPONÊS E DE MORADOR DE RUA Dada a discussão metodológica anterior, cabe expor o debate moderno sobre camponês e morador de rua. O pensamento moderno de autores como Comte, Ratzel, Marx e Reclus apresenta ambigüidades e ambivalências sobre camponês e morador de rua (cf. Justo, 2005, p.38-48). Oscila entre a extinção ou a não-extinção do campesinato, e entre colocar a mendicância como um fenômeno social ou natural. Com base no trabalho de Santos (2000), pode-se classificar Comte e Ratzel como representantes do “conhecimento-regulação”, e Marx e Reclus, do “conhecimento-emancipação”. São duas metades do pensamento moderno, porém o modo de produção capitalista tornou dominante o conhecimento-regulação em detrimento da emancipação. Para Santos, é preciso reinventar o projeto emancipatório. Cabe a nós encontrarmos formas potencialmente emancipatórias nos estudos de comunidades. Apropriando-se da idéia, vale mencionar que conhecimento-regulação trabalha com uma concepção espacial vertical, pois hierarquiza o mundo, e o conhecimento-emancipação, ao visar a igualdade, horizontaliza o mundo. Como já exposto, assume-se o campesinato como uma classe que é reproduzida pelo modo de produção capitalista. Assim, como produto das contradições da modernidade, o camponês traz consigo as ambigüidades e ambivalências de ser moderno e tradicional, de defender autonomia e horizontalidade, subordinação e verticalidade. Num outro registro, a posição não moderna de Latour (2000) permite um posicionamento epistemológico que coloca camponês e morador de rua como pontos centrais para explicar a sociedade e os processos de exclusão. O enfoque do autor é o estatuto do conhecimento científico na sociedade moderna. Ele mostra que esse conhecimento traça redes, assim como as demais formas de conhecimento. A diferença entre as formas de conhecimento depende do tamanho das redes que mobilizam. Para o autor, a ciência 144

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caminha por redes e não pela busca de essências. Nesse sentido, o registro epistemológico do trabalho de Latour permite a contraposição a visões que buscam a essência do campesinato. O presente trabalho dedica-se ao desafio de lidar com aqueles que vieram das ruas, sem cair na defesa de uma essência para a permanência na terra. A possibilidade dessa permanência é condicionada pelas redes. Com base no princípio de simetria universal proposto por Latour (2000), aponta-se para o percurso do conhecimento camponês expresso no assentamento estudado.

TERRITÓRIO, CONFLITOS SOCIAIS, ETHOS CAMPONÊS E GESTÃO O diálogo com a literatura específica resultou no agrupamento de quatro temas centrais: território e territorialização; conflitos sociais internos e externos ao assentamento; ethos camponês e condições para permanência como assentado; cooperativismo, gestão, organização e sociabilidade nos assentamentos. A maioria dos trabalhos sobre assentamentos resultantes da luta do MST é da área de Geografia, por isso, a centralidade do tema da territorialidade. O debate sobre esse tema volta-se para quais são os determinantes do território camponês. Alguns autores defendem que a principal característica do território camponês é a possibilidade de reconstrução das relações de parentesco (Simonetti, 1999; Marques, 2000). Essa perspectiva opõe o determinante cultural à visão que privilegiaria o econômico (Fernandes, 1999a e 1999b). Da discussão sobre território camponês, pode-se colocar que ele é moldado pelos conflitos internos, como se estes dessem “conteúdo” àquele. Acrescenta-se que o território possibilita a formação de relações não capitalistas, mas não as garante sem maiores aprendizados. Sobre os conflitos internos, há a contribuição da noção das “invalidações recíprocas” (D’Incao e Roy, 1995), que analisa como os conflitos num assentamento são frutos de uma sociabilidade autoritária e impedem os avanços coletivos. Outra importante contribuição é a dos trabalhos que realizam a crítica aos preconceitos, expressos pela cúpula do MST, contra camponês (tido como uma categoria social atrasada) e mostram a existência de uma diversidade de formas de organização política e econômica no interior dos assentamentos, que ultrapassam as antigas coletivizações “forçadas” pelo Movimento (cf. Miranda, 1998 e 2003; Simonetti, 1999; Schreiner, 2002). Esses trabalhos mostram que algumas experiências de cooperativismo em assentamento não prosperaram porque a orientação da direção do MST chocava-se com o modo de vida camponês. Para realizar a crítica às concepções dos dirigentes do Movimento, os autores baseiam-se na concepção de “campesinidade”, trabalhada por Woortmann (1990). Acrescenta-se que 145

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o ethos camponês, ou campesinidade, virou objeto de disputa no assentamento, no sentido de que diferentes grupos ou indivíduos querem definir quem merece ou não ficar no assentamento. Vale destacar que, como a revisão das pesquisas mostrou que os conflitos são comuns nos assentamentos, é possível construir algumas generalizações sobre eles: a opção pelos lotes individuais é uma forma de gerir conflitos e constata-se que há um ritmo da conflituosidade nos assentamentos, pois, entre os dois e os cinco anos de formação de um assentamento, ocorre uma intensidade maior de união e desunião: coletivos são desfeitos, cooperativas são abandonadas ou dão origem a associações, e famílias unem-se em associações. Quanto à gestão dos assentamentos, verificou-se na literatura que as associações têm papel central (Carvalho, 1998), que as cooperativas variam entre mais e menos democráticas (Christoffoli, 2000) e que elas representam ganhos políticos, mais do que econômicos (Fabrini, 2003). Cabe colocar que o ponto central da questão da gestão dos conflitos no assentamento é a possibilidade de existir uma gestão pública, ou democrática, juntamente com a consolidação de uma economia solidária. Há elementos no assentamento estudado que apontam na direção da gestão pública dos conflitos, mas de maneira incipiente. Quando coloca-se que é incipiente é uma constatação de que existe tal conhecimento no meio camponês e que ele pode desenvolver-se.

EM CAMPO UNIÃO, DESUNIÃO E REUNIÃO: A TECELAGEM DE REDES O enfoque empírico esteve no movimento de união, desunião e reunião entre os assentados, que vai do momento em que a maioria deles vota pela moradia em lotes individuais, em vez de agrovila (em 1999-2000), até a formação de grupos e associações a partir de 2002. A paisagem é moldada pelos conflitos: os lotes individuais, a formação de grupos etc. Pela interlocução com os assentados, observou-se a dinâmica de alianças e de ataques no local. A partir de 2001, houve no assentamento uma desunião entre os moradores, em que muitos deles passaram a se isolar devido aos conflitos, e não houve reuniões nem assembléias. No entanto, de 2002 para 2003, surgiram duas associações e grupos de trabalhos com estufas. Entre as associações, houve a primeira tentativa dos “Exculhidos”,5 que durou quatro meses, na qual se encontram alguns ex-moradores de rua. 5

O nome “Exculhidos” é uma composição entre as palavras “excluídos” e “escolhidos” realizada pelo pesquisador para expressar a ambivalência presente na fala do pesquisado que denominou a associação.

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Depois, com algumas variações, reúnem-se para a formação da “Compartilha”, em duas tentativas, até a formalização em 2003. Porém, em 2004, essa associação sofreu um enfraquecimento. Essa associação formou-se em contraposição aos antigos coordenadores da fase de acampamento, que foram responsabilizados pelo não-reembolso do dinheiro do fomento, de 1998. Walter,6 ex-morador de rua e um dos principais articuladores das associações Exculhidos e Compartilha, tem como prática a luta em conjunto e as alianças, mas faz muitos ataques aos seus inimigos políticos e cria cisões. Relacionada à trajetória dos Exculhidos, além de oposição aos excoordenadores do assentamento pelo não-reembolso do fomento, há um segundo caso de conflito. Um membro desse grupo fez denúncias de supostas irregularidades no assentamento e pretendia vender as benfeitorias do seu lote. Os moradores conseguiram gerir coletivamente o conflito, enquanto aguardavam o Incra. Em setembro de 2003, aquele membro dos Exculhidos enviou uma carta a um jornal local do município, que publicou uma matéria com o conteúdo da carta em que são feitas denúncias como: obtenção irregular de financiamento, arrendamento de lotes para plantio e pastagem, não-produção nos lotes, venda irregular de madeira e venda de lote. Uma parcela dos assentados reuniu-se e posicionou-se contrária à “venda” do lote e redigiu uma carta-resposta ao jornal. Cabe ao Incra fiscalizar e controlar a tentativa de comercialização de benfeitorias, porém o órgão, notificado pelos moradores, simplesmente se omitiu. Cabe esclarecer que foi constatado que há, ao menos, quatro moradores que têm o papel de agregar pessoas: Walter, Ema, Carlos e Frederico. Walter aglutina amigos, vizinhos e ex-moradores de rua em torno da idéia de união da classe, une-se também a pessoas do entorno, que costumeiramente arrendam lotes, e justifica-se dizendo que a luta pela reforma agrária é algo maior do que o assentamento. Filho de camponeses da Zona da Mata nordestina, Walter construiu sua vida em São Paulo. Foi metalúrgico por 22 anos, período em que participou ativamente da luta sindical. Portanto, sua visão política é de união da classe trabalhadora da cidade e do campo. Ema gosta da comunhão cristã, acredita que o povo cristão deveria trabalhar unido, mas a “realidade” do assentamento mostrou-lhe que só pode se unir à família extensa. Ela e Walter chegaram a trabalhar juntos, mas romperam. Carlos e sua grande família (filhos casados, genros, noras, netos e compadres) vivem a produção coletiva e moram numa miniagrovila, compartilhando ideais com as propostas do MST. Seus filhos representam, entre outros, o MST no assentamento e, potencialmente, poderão assumir maior papel de gestão pública do assentamento (se apostarem na autonomia do assentamento em relação ao controle ambíguo do Incra). Frederico tem o dom da política: toma iniciativa de convocar e coordenar reuniões, preside 6

Por razões de ética científica, os nomes expressos no texto são fictícios.

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uma associação de produção agropecuária com 12 famílias – baseado em experiência anterior em Sindicato de Trabalhador Rural –, e respeita o direito de todos, mas marca oposição a quem considera inimigo do assentamento. Enquanto os três últimos, além de serem vizinhos, trabalham na defesa da formação de grupos com interfaces, aquele primeiro exerce sua capacidade de tecer e desmanchar redes por meio de um discurso contrário aos antigos coordenadores do assentamento. Além dos quatro, outros moradores disputam espaços de liderança, porém com menor reconhecimento. Frederico, Carlos e Ema encabeçaram uma associação e grupos de produção em estufas. A associação Agro União, que iniciou em 2003 e se oficializou em 2004, começou com 12 famílias e, em 2004, entraram mais duas. Os grupos das estufas são compostos por três semicoletivos, que se formaram a partir de 2002. Os que compõe essa segunda associação e os grupos das estufas são os moradores que estão em melhores condições materiais no assentamento e unem-se compondo um grupo majoritário. Os membros da Agro União e dos grupos das estufas destacam-se como pessoas que convocam assembléias para tentativas de gestão do assentamento. Em 2004, acirrou-se a separação entre essa maioria (Agro União e grupos das estufas) e os membros da associação Compartilha. Houve naquele ano um terceiro caso de conflito. Trata-se das complicações decorrentes da venda e abandono de um lote de um morador associado à Compartilha. Uma comissão de moradores foi formada como uma instância pública de gestão dos conflitos e/ou irregularidades do assentamento. Apesar de a comissão ser aberta a todos os grupos do assentamento, havia um grupo majoritário, que estava contrário e cansado das acusações e brigas com as pessoas da associação Compartilha. É uma rede se contrapondo a outra, ou, na linguagem de Raffestin, formando densidades mais fortes ou mais fracas de relações. Até aquele momento, em 2004, as redes no assentamento apresentavam uma dinâmica que permitia interfaces. Ou seja, havia uma intensa movimentação no assentamento, as redes juntavam e separavam as pessoas com rapidez. Famílias que, num momento, preferiram isolar-se, depois se uniram; outras que estavam unidas, separaram-se. Ocorreu tanto a necessidade de fortalecer o caráter camponês de voltar-se para a família, quanto a de buscar conexões com outras famílias. Porém, com o aumento dos conflitos internos no assentamento, a tendência foi de uma polarização entre a associação Compartilha, de um lado, e a associação Agro União e os grupos das estufas, de outro. Constata-se, assim, um paralelo entre o conhecimento-regulação, criando uma configuração espacial vertical em decorrência da assimetria e divergências entre os grupos, e o conhecimento-emancipação, que permite pessoas se associarem e manterem relações horizontais. Nesse cenário, uma parte dos ex-moradores de rua estava na Compartilha. Não havia ex-moradores de rua em nenhum grupo. Com a polarização, 148

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

eles não entraram em nenhum dos dois outros grupos (estufas e associação Agro União). Restava-lhe abrir redes com pessoas e/ou entidades externas ao assentamento.

ETHOS CAMPONÊS (OU CAMPESINIDADE) É em decorrência dos conflitos internos no assentamento, que o ethos camponês vira objeto de disputa. De todo jeito, para tratar o tema de exmoradores de rua como camponeses, seria preciso lidar com a questão do ethos campesino. Foi feito um levantamento das categorias de acusação entre os assentados e verificou-se a construção e disputa pelo ethos. Eles acusamse mutuamente de “vagabundo”, de “não ser digno” (de estar assentado) e de ser “mentiroso”. Deduz-se que nas acusações recíprocas está em jogo a manipulação da definição de camponês. Com base em distintos trabalhos sobre o tema, é possível estabelecer uma síntese do que consiste a campesinidade: a ligação simbólica com a terra, o trabalho familiar e a religiosidade. São três elementos interconectados: a terra é trabalhada pela e para a família e o sentido simbólico do arar, semear e colher os frutos constitui religiosidade, e é constituído por ela. À parte a relevante discussão sobre classe social e subordinação ao capital, a ordem moral também é um elemento marcante do camponês. Portanto, vê-se nas categorias mencionadas um peso dado pelas acusações morais: a preguiça, a mentira e a honra. No uso generalizado do termo vagabundo, afirma-se uma identidade de trabalhador por oposição ao outro que é não-trabalhador. Ao se apontar a alteridade da vagabundagem, está-se afirmando uma identidade marcada pela moral do trabalho; é um “eu” camponês latente. Se um elemento da campesinidade é a família, os homens sozinhos estariam fora desse registro. Nem todos os ex-moradores de rua são homens sozinhos e nem todos os homens sozinhos vieram “da rua”. Assentar homens sozinhos foi uma fonte de tensão, que reverbera até o presente. No entanto, há homens sozinhos que, aos poucos, constroem famílias, outros que configuram seu lote com as características de um típico sítio camponês e alguns que não conseguem trabalhar o lote todo. Mas, este último caso não é exclusividade dos homens sozinhos. Portanto, o ethos camponês pode ter elementos que fortalecem e outros que enfraquecem a complexidade vivida num assentamento de reforma agrária. No exemplo do morador que critica alguns assentados, que são indivíduos sem famílias, de serem “vagabundos”, é o caso de um “tipicamente camponês” definindo, por oposição, o seu ethos. Se depender da posição dele, quase todas as pessoas ligadas à associação Compartilha ficariam de fora da definição de agricultor “honesto e trabalhador”. Evidencia-se um conhecimento, ou visão de mundo, cuja 149

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configuração espacial decorrente é vertical, pois cria assimetrias entre os “mais” e os “menos” camponeses. Na associação Agro União, ou nas famílias que trabalham juntas na produção de pimentões em estufa, encontram-se as marcas camponesas explícitas: a luta pela terra tem um sentido comunitário cristão e a unidade de produção é voltada para a família. No entanto, ficar preso a determinantes de campesinidade, sejam quais forem (econômicos ou culturais), mostra-se uma armadilha, porque eles são ruídos, ouvidos constantemente de todos os lados no assentamento, que reproduzem brigas e divisões.7 Quem resolveu ir para a terra é camponês, ao vivenciar essa condição de classe. O ethos camponês não deveria ser postulado como a essência,8 mas como uma situação. “Dar certo” no assentamento vai depender do jogo entre isolamento e redes. O que não nega que no assentamento há a oportunidade para se (re)construir o ethos campesino e as relações não capitalistas. Então, a possibilidade de se adaptar à vida na terra estaria mais ligada a estar numa rede do que à aptidão para ser agricultor. Vale observar que os assentamentos são porções do território do Estado, pois, ao desapropriar uma área privada, o Incra é imitido na posse do imóvel. Porém, nessas frações de território camponês, como denomina Oliveira (1997), encontram-se dinâmicas de poder distintas em relação ao controle estatal. Essas dinâmicas moldam a tessitura, os nós e as redes do território, conforme Raffestin (1993) afirma. Portanto, a dinâmica das redes, presente nos conflitos e na formação de grupos, além de configurar a fração de território, permite que esta não se isole, e que os grupos estejam conectados a redes mais amplas: a cidade, o estado, a região, o país, o poder do Estado, o mundo, o MST, as organizações não-governamentais (ONGs) etc. Além da descrição dos grupos e associações feita anteriormente, que resultaram de redes, essas podem ser mais explicitadas. A família de Carlos articula-se diretamente com a coordenação do MST, participa da regional do Movimento e, desde a fase de acampamento, era indicada como sua representante. Tem contato direto com os técnicos do MST e recebe apoio, inclusive financeiro, de uma pastoral católica da grande São Paulo. A associação Agro União conseguiu o apoio da agência regional de comércio agropecuário, que lhe possibilitou uma parceria com uma organização nãogovernamental italiana para a compra de máquinas e implementos agrícolas e para cursos de formação na Itália. É uma rede de escala intercontinental. A associação Compartilha, que ficou limitada internamente, busca membros 7

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Vale mencionar que problematizo a questão do ethos camponês, ou “campesinidade”, como é trabalhado por Woortmann (1990) e a forma como esse conceito é apropriado por outros autores, em Justo (2005, p.185-213). Chayanov (1974, p.34-40), por exemplo, baseia seu trabalho na compreensão da “essência” organizativa do trabalho familiar. Mas, faz a ressalva que sua teoria não tem a pretensão de aplicação universal nem de abarcar todas as formas de empreendimento camponês.

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de fora do assentamento, que possuem dinheiro para produzir e pagar os custos de formação de uma associação. Constata-se, então, as nodosidades, as centralidades e as marginalidades das redes.

EX-MORADORES DE RUA E REDES DE ECONOMIA SOLIDÁRIA É possível afirmar que o MST é uma alternativa aos moradores de rua. Porém, é preciso que essa união do Movimento com a população de rua possibilite a formação de redes para que os assentados não caiam numa situação de isolamento e na reprodução da miséria. Quando estão nas ruas, os “sem-teto” estão inseridos em redes, geralmente conectadas ao trabalho da pastoral católica. No assentamento, esse contato não perdura ou muda de caráter (voltando-se mais para financiamentos). Com as pessoas morando e produzindo em seus próprios lotes, os ex-moradores de rua sem filhos com idade para trabalhar e os homens sozinhos, em geral, carecem de braços para o roçado. Os apoios da direção do MST, da Igreja e de outros militantes podem servir para que essas pessoas cheguem ao assentamento com o potencial de formar um grupo voltado para formas de economia solidária, de acordo com a concepção de Singer (2002). É fato que não dá para se conceber o morador de rua com potencial de ser incluído no mercado formal de trabalho, resta a ele a alternativa da economia solidária. No caso analisado, há um esforço de unir aqueles que vieram das ruas, encabeçado por Walter. Mesmo assim, alguns deles ficam isolados em seus lotes, o que lhes propicia uma situação de baixa sociabilidade e renda, em comparação com os demais assentados que possuem famílias extensas e/ou estão inseridos em grupos. Portanto, estar inserido numa rede é fundamental para se pensar o assentamento de pessoas provenientes da condição de rua. Em entrevista, um ex-morador de rua disse que era melhor estar no assentamento do que nas ruas de São Paulo, mas se soubesse que iria para uma terra “ruim”, num local com tantos conflitos, ele preferiria não ter ido. Além das ambigüidades do depoimento, evidenciase que a possibilidade de independência do sujeito passa por sentir-se conectado a algo além de seu lote. Portanto, o potencial emancipatório de assentar moradores de rua está relacionado com o fato de essa população sentir-se numa rede e não isolada. Não depende somente de possuírem, ou não, o chamado “caráter” camponês. Em parte, eles sofrem acusações de não possuírem a campesinidade. A disputa pela campesinidade no assentamento manifesta-se na polarização entre as famílias versus os homens sozinhos. Se a base da campesinidade está no valor moral da família, o homem sozinho estaria destituído dela. Desde o início do assentamento, houve uma tensão entre lideranças que 151

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não queriam homens sozinhos assentados e outras que defendiam o direito de todos permanecerem, pois a conquista da terra tinha sido conseguida em conjunto. Constata-se que uma noção de campesinidade, presente entre uma parcela dos assentados, discrimina os homens sozinhos, porque não seriam capazes de trabalhar todo o lote. A negação do ethos não recai diretamente sobre o ex-morador de rua, mas sobre aqueles que vivem sós. Aqueles que vieram da rua não pertencem aos maiores grupos do assentamento. Morar num lote proporciona-lhes teto, comida, trabalho, possibilidade de (re)constituir família; mas, há uma situação de relativa pobreza material e de baixa sociabilidade. Aqueles que formaram família ou lutam para estar em grupo conseguem manter-se mais facilmente do que aqueles que se isolam. Um ex-morador de rua, que não se manteve unido à associação Compartilha, acabou deixando o assentamento em 2004. Antes do início do trabalho de campo, houve dois casos de ex-moradores de rua que viviam sozinhos e desistiram de permanecer no assentamento. Poderia ser diferente se eles fossem para a luta pela terra com uma maior correlação de forças em relação às demais famílias, se formassem um bloco mais coeso ou se tivessem representantes e apoiadores que auxiliassem na organização deles como um grupo. De certo modo, os ex-moradores de rua e os homens sozinhos são vistos no assentamento como pessoas pouco afeitas ao trabalho. As redes, para todos os assentados e, principalmente, para os ex-moradores de rua, são formas de ultrapassar o isolamento dos lotes e estar em comunicação com o mundo exterior ao assentamento para garantir aquilo que não é produzido no sítio. O assentamento propiciou conquistas aos ex-moradores de rua: ter um pedaço de terra para morar, plantar e garantir parte da alimentação, formar ou reencontrar família, estar atado a redes e manifestar habilidades paralelas ao cultivo da terra. Porém, a alternativa solidária ao modo de produção capitalista ainda é algo incipiente entre eles. Há o interesse e o conhecimento embrionários, que podem se desenvolver. Há elementos que se aproximam da conceituação de economia solidária na associação Compartilha, na Agro União e nos semicoletivos das estufas. Um tema central na geografia da luta pela terra é a questão do território camponês. Esse território possibilita que não haja o predomínio de relações de produção capitalista, mas não garante que se construa uma economia solidária no assentamento. Por definição, o modo de vida e de produção camponês, baseado na mão-de-obra familiar, não é capitalista. Porém, só o fato de haver terra para frutificar essa forma de produção não quer dizer que ela se tornará uma economia solidária (no sentido de socialista). É preciso que o assentamento esteja inserido na rede da economia solidária e que os grupos se voltem para a gestão democrática (ou autogestão) da produção e dos conflitos sociais para que o socialismo (ou formas de sociabilidade e de produção livre, igualitária nas decisões e eqüitativa na repartição dos 152

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lucros) seja algo vivido desde já, nos interstícios do modo de produção capitalista. Pode-se dizer que, potencialmente, os grupos e associações de maior densidade podem atrair aqueles que estão num grupo de menor densidade, desde que não se consolide uma polarização entre os grupos. O trabalho de campo revela que a mobilidade de união e desunião entre os assentados foi maior do que a tendência à polarização entre grupos. As redes, ao contrário das organizações, não se cristalizam, estão em permanente movimento. Então, a possibilidade de novas redes está aberta àqueles que vieram das ruas (e a todos os demais assentados). Porém, ficar fora de redes poderá significar o limite da permanência no assentamento. Há avanços e recuos no caminho de formar as redes. Em alguns momentos, as redes são mais amplas, em outros, menos. Pode-se afirmar que há um aprendizado na vida do assentamento que envolve o voltar-se para a família, a busca de ultrapassar o núcleo familiar e formar grupos e, principalmente, encontrar a possibilidade de lidar com os conflitos não só de maneira privada e sim em instâncias públicas. O paradigma da reprodução do campesinato pela expansão do modo de produção capitalista permite que camponês seja um personagem moderno. Portanto, o camponês reivindica a tradição da família e do território (como uma concepção espacial vertical da vida em sociedade), e também a modernidade, no sentido da crítica e da possibilidade de superação daquele modo de produção (numa concepção horizontal do espaço social). Ou seja, encontra-se, empiricamente, no campesinato um repertório de ethos familiar e de luta por justiça social e por um modo de vida e de produção não capitalista (quiçá socialista).

GESTÃO – JUSTIÇA ESTATAL E NÃO-ESTATAL Quanto à hipótese de que numa fração de território, potencialmente alternativa ao modo de produção capitalista, desenvolvem-se formas de gestão pública dos conflitos sociais referentes à vida coletiva, a principal constatação é que as associações e os grupos tendem a ser os mediadores da gestão pública no assentamento. No entanto, a gestão dos conflitos vive uma tensão entre depender do Estado e buscar autonomia, o que demonstra um início de aprendizado da gestão pública como algo que é de responsabilidade de toda a comunidade. O presidente da associação Agro União, por exemplo, foi um dos organizadores das reuniões no assentamento desde 2003. Paralelo ao potencial de gestão pública, há um percurso de conflitos que se manifestam em fofocas, brigas entre vizinhos etc. Esses conflitos estão presentes nos diferentes momentos da formação da associação Compartilha e na relação desta com os demais grupos. Os moradores estão presos a maneiras privadas de lidar com controvérsias, mas conhecem as formas 153

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públicas de gestão do coletivo. Mais uma vez encontra-se um movimento de avanços e recuos entre gerir os conflitos de maneira pública.

JUSTIÇA ESTATAL E NÃO-ESTATAL Foram encontradas três formas de gerir os conflitos sociais no assentamento estudado. Uma delas é a busca da arbitragem estatal (a ação civil contra os ex-coordenadores do assentamento decorrente de uma partilha de dinheiro), outra é a gestão pública restrita ao conflito específico (tentativa de venda de lote) e a gestão pública que trabalha com o apoio do Estado (venda e abandono de lote e formação de uma comissão interna para apurar irregularidades). Vale ressaltar que é relativamente comum nos conflitos pessoais entre vizinhos (briga por causa de gado que derruba cerca, por exemplo) o recurso a formas judiciais de gestão. Porém, houve somente um caso de ação judicial envolvendo o assentamento como um todo. Num momento em que não havia associações registradas (2002) e havia poucas reuniões e assembléias, a forma judicial apareceu como gestão de um conflito relativo ao coletivo. Em dois casos de conflito em que houve gestão pública, via reuniões e formação de comissão de assentados, verificou-se a presença de instâncias democráticas, como assembléias, em que cada um tem direito a voz e voto. A noção de coexistência de formas de justiça estatal (judiciária) e nãoestatal permite interpretar que o camponês avalia quando recorrer ou não à arbitragem estatal.9 É aí que há espaço para fortalecer formas de gestão pública do assentamento. Trazer a público as possibilidades de produção em comum e de gestão dos conflitos entre os moradores tem idas e vindas, mas é algo reivindicado pelos assentados. A demanda por justiça estatal é relativamente recente na história do campesinato brasileiro, aparecendo com as atividades das Ligas Camponesas (anos 50 e início dos anos 60). Encontrou-se no assentamento a demanda por essa forma de justiça. No entanto, pela teoria de Black (1998) sobre o conflito social, sabe-se que a aplicação da lei é uma forma entre outras de exercer controle social. Além disso, como a lei comporta-se no espaço social realizando discriminações,10 quando pessoas de baixo status social recorrem a ela, pouca ou nenhuma lei será aplicada. Então, a lei pode ser 9

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O caminho do uso da noção de coexistência entre justiça estatal e não estatal no universo camponês começou em Justo (2002), ao problematizar o reducionismo da violência rural e tratar do pluralismo jurídico. Em Justo e Singer (2001) foi possível analisar como a sociologia jurídica, no Brasil, tende a tratar os conflitos sociais pela perspectiva legalista. A relevância da análise sociológica de Black sobre a lei é mostrar que ela se comporta de maneira desigual e discriminatória, apesar do preceito de igualdade, porque a igualdade está no plano do “dever ser” e não do “ser”.

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uma reivindicação legítima de alguns camponeses, mas ela não lhes dará a resposta esperada enquanto não houver uma mudança no espaço social do grupo. Segundo Black, o controle social apresenta uma gama variável, conforme os contextos locais, socioculturais, históricos, que inclui e ultrapassa o controle estatal, ou seja, a lei. Isto é, pode variar de acordo com diferentes estilos, do mais formal e legal ao mais informal e casual. Para se alterar o montante de lei a recair num determinado tipo de conflito social, deve-se mudar a configuração socioespacial. Assim, não haverá maior aplicação do controle social do estilo penal sem alteração no espaço social. Além disso, o autor apresenta a noção de justiça sociológica, que consiste na retirada de leis num contexto de grandes desigualdades sociais, o que contribuiria para mudar a configuração de um dado espaço social (Black, 1989). Com base nessa teoria, aponta-se para o potencial emancipatório existente na gestão pública do assentamento, que não busque necessariamente o controle social estatal.

CONCLUSÕES: AS REDES E A ECONOMIA SOLIDÁRIA O assentamento é uma fração de território camponês plasmado pelo conflito. As alianças, as controvérsias e os ataques são redes que configuram aquele local. As redes são formadas internamente, em alguns momentos cristalizam-se em organizações, e permitem a comunicação, a troca de informações e a obtenção de recursos externos. Na fração territorial que é o assentamento, os lotes são nós; assim, a movimentação de ataques e alianças entre os moradores formando grupos e associações é a rede que o compõe e o atravessa permitindo o fluxo com o exterior: apoios, venda, compra, financiamento e informações. Uma das principais conclusões deste estudo é que há no assentamento a possibilidade de aprendizado da gestão democrática dos conflitos e da economia. Porém, ainda é algo incipiente. Ao construir um modo de produção solidário, os assentados podem desenvolver formas democráticas de gerir os conflitos. Ou seja, gerir publicamente os conflitos e não tratá-los como questões privadas. Há uma tendência nesse sentido, pois os moradores, por exemplo, fazem reuniões públicas e criam comissões para cuidar dos problemas do assentamento. Assim, é possível tornar isso uma prática regular e criar-se um ambiente de aprendizado de que é no espaço público que devem se resolver os conflitos e se discutir os rumos econômicos do assentamento. Porém, é preciso que as comissões, por exemplo, não façam discriminações entre os assentados, para que todos se sintam parte do processo e aprendam a ver as reuniões e assembléias como espaço de todos. Além disso, no caminho de avanços e recuos em relação à gestão pública do assentamento, os moradores precisam sentir que vale mais apostar no 155

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espaço público do que no privado. Nesse sentido, o enfoque nos conflitos, nos micropoderes e nas redes mostrou como é possível o aprendizado de relações horizontais de gestão dos conflitos e de produção, e quais são as limitações desse processo. O aprendizado na prática de relações democráticas e solidárias de convívio e de produção é uma maneira de viver o socialismo aqui e agora e não de esperar uma mítica revolução, que inicie uma sociabilidade livre, igualitária e eqüitativa. Assim, é possível colocar um novo significado para o território camponês. Por fim, pode-se dizer que estar inserido em redes é o potencial e a limitação para se inserir moradores de rua na luta pela terra.

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7 AS FACES OCULTAS DE UM CONFLITO: A LUTA PELA TERRA EM ELDORADO DOS CARAJÁS Luciana Miranda Costa

INTRODUÇÃO

A persistência dos conflitos agrários no Brasil nos últimos 35 anos tem chamado a atenção da sociedade brasileira e internacional para os crônicos problemas de ordem social, econômica e ambiental daí decorrentes. Trata-se de fatos amplamente divulgados pela mídia, como o caso do assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, no município paraense de Altamira, região Norte do Brasil, em fevereiro de 2005.1 Quase dez anos antes, em abril de 1996, também no Estado do Pará, dezenove integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foram mortos pela Polícia Militar durante um protesto no qual se reivindicava reforma agrária. O episódio ficou conhecido como “O massacre dos sem-terra” e marcou a luta dos movimentos sociais no país. Este artigo traz as principais conclusões de uma pesquisa (Costa, 1999) que teve como tema os conflitos agrários2 e que mostra os posseiros como protagonistas de dez anos de “luta pela terra” em Eldorado dos Carajás, 1

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Sobre o assassinato mencionado e outros fatos relacionados à luta pela terra e conflitos agrários no Brasil, consultar ; ; ; ; . O termo conflito é empregado neste texto com o mesmo sentido atribuído por Alfredo W. de Almeida, segundo o qual, o conflito seria o antagonismo não reconhecido, que acontece fora dos limites de uma configuração jurídico-formal. “As modalidades de confronto que comporta não seriam absorvidas por aqueles organismos de poder, porquanto consideradas de atributo dos aparelhos repressivos. O ‘conflito’ seria o que não se encontra sob controle” (ALMEIDA, 1989b, p.94).

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município paraense localizado na região sudeste do estado. Partiu-se do discurso dos agentes sociais, e da auto-imagem criada por eles,3 para reconstruir a rede de relações que se originou a partir do conflito nas áreas de três fazendas localizadas em Eldorado.4 O objetivo foi motivar uma reflexão sobre a dinâmica de categorias discursivas relacionadas à luta pela terra na Amazônia, que expressam a diferenciação social entre os agentes envolvidos. Dessa forma, categorias como “velhos posseiros”, “novos invasores” e “comerciantes de terra” compuseram o quadro analítico, que abordou as principais causas e conseqüências do ciclo de violência que ainda se reproduz em várias cidades paraenses.

OS INCENTIVOS FISCAIS E A MIGRAÇÃO PARA A AMAZÔNIA A causa do aumento e agravamento dos conflitos agrários na Amazônia, que remontam principalmente à década de 1970, com a construção da rodovia Transamazônica e o asfaltamento da Belém-Brasília, está ligada ao chamado “milagre brasileiro” do governo Médici e à política agrária sintetizada na consigna de “terras sem homens, para homens sem terra”. Entre l960 e l970, quando já estava em prática a política de incentivos fiscais para o desenvolvimento da Amazônia, 35,3% das chamadas “terras novas”, concentradas principalmente nessa região, originaram estabelecimentos com menos de 100 hectares e 64,7% estabelecimentos com mais de 100 hectares. Em 1975, apenas 0,2% das terras novas foram para estabelecimentos com menos de cem hectares, enquanto 99,8% foram para estabelecimentos com mais de cem hectares (75% dessa terra foi ocupada por estabelecimentos com mais de mil hectares).5 3

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O conceito de “imagem” só se revela operacional para definição das condições de produção e recepção da mensagem na medida que possibilita a explicitação do processo de correlação que se estabelece entre o locutor, como agente imediato do discurso, e o ouvinte, como objeto de interesse e, ao mesmo tempo, como influente nesse mesmo discurso. Portanto, uma análise das condições gerais de produção de um discurso contém dois tipos de informações a serem obtidas: as imagens mútuas sobre as quais o locutor constrói seu discurso e os atos visados com a realização do discurso (OSAKABE, 1979, p.81). O referencial teórico elaborado por autores da Semiologia dos Discursos Sociais (SDS) e da Escola Francesa de Análise do Discurso (AD), no qual se encontra o conceito de “imagem” formulado por Pêcheux, foi utilizado na composição do quadro analítico das categorias discursivas presentes neste artigo. Para um aprofundamento sobre este referencial teórico, consultar Costa (2006). Tendo como único objetivo resguardar a integridade física das pessoas que concederam entrevistas, os nomes de pessoas e propriedades não serão explicitados ou serão modificados. A medida ainda torna-se necessária em virtude das práticas de violência que persistem no estado. Conforme IBGE, Censo Agrícola de 1960; Fundação IBGE, Censo Agropecuário de 1970; Fundação IBGE, Censo Agropecuário de 1975 apud Martins, 1983, p.97.

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O governo federal concedeu um desconto de 50% do imposto de renda a grandes empresas nacionais e internacionais interessadas em estender seus negócios para a Amazônia. O imposto se referia aos investimentos dessas empresas, localizados, em sua maior parte, na região Sudeste do país. A condição, conforme observou José de Sousa Martins, era de que esses recursos fossem depositados no Banco da Amazônia e, após aprovação de um projeto de investimentos pelas autoridades governamentais, fosse constituir 75% do capital de uma nova empresa, agropecuária ou industrial, na região. “Tratava-se de uma doação e não de um empréstimo”, conforme concluiu o autor (Martins, 1995, p.3). Do ano de sua criação, 1980, a junho de 1984, o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat), órgão subordinado ao Conselho de Segurança Nacional, havia distribuído 41.367 títulos, no total de 5.038 milhões de hectares, atendendo a 15.447 famílias (Meaf, 1984 apud Almeida, 1986, p.273). Com a chamada Operação Amazônia, em 1966, o desenvolvimento da região foi pensado pelos militares, tendo por base a pecuária de larga escala. Não obstante o fracasso do projeto poucos anos depois, o governo realizou investimentos vultosos durante quase dez anos na região, beneficiando, principalmente, grandes empresas capitalistas (Costa, 1992a, p.13). Os custos da ocupação capitalista da Amazônia, com a política de incentivos fiscais do governo, foram divididos com toda a sociedade. Essa política direcionou-se no sentido da não-realização de uma reforma agrária de tipo distributivista, reivindicada nas pressões sociais anteriores ao Golpe Militar de 1964. O governo optou por um modelo concentracionista de propriedade, garantindo o poder político e econômico de uma importante base social de sustentação do golpe de Estado e do regime militar: os proprietários de terra e as oligarquias locais de base fundiária (Martins, 1995). A grande controvérsia quanto à reforma agrária, antes do golpe de Estado, não era quanto a fazê-la ou não. Era quanto à forma de pagamento da terra. De um lado, os capitalistas e proprietários reivindicavam pagamento em dinheiro; de outro, os interessados na reforma distributivista queriam o pagamento em títulos da dívida pública resgatáveis a longo prazo (Martins, 1983, p.168). Dessa forma, a opção pela pecuária por parte do governo federal, na fase posterior ao Golpe de 64, objetivou conjugar abundância de terras com escassez de trabalho e capital. Além disso, o movimento e a modernização do conjunto da agricultura brasileira dependeriam do desenvolvimento de sua “margem extensiva”, ou seja, quanto menor o seu peso, maior a intensificação e a tecnificação possível em terras de colonização antiga. Buscava-se a anulação do campesinato, nas áreas antigas, por meio da modernização e tecnificação do latifúndio e, nas áreas novas, com a entrada massiva de 161

As faces ocultas de um conflito

capital, representado, principalmente, por grandes empresas agropecuárias (Costa, 1993, p.38). O gado é considerado, no Brasil, uma reserva de valor de bastante liquidez, o que somado aos subsídios governamentais, estimulou a presença da grande empresa pecuária na Amazônia. Almeida, referindo-se a análises realizadas pelo economista Aloísio Biondi, observa que o interesse de grupos industriais e financeiros do Centro-Sul do país em extensos domínios territoriais na Amazônia atinha-se não apenas aos benefícios creditícios e fiscais, mas também à especulação. “Entre 1972 e 1974, os preços de terra conheceram aumentos nunca inferiores a 500% e que chegaram a 10.000% conforme a região do país” (Almeida, 1989b, p.93). A violência nos conflitos acentuou-se a partir da década de 1970. No estado do Pará, de 1964 a 1992, 397 trabalhadores rurais foram assassinados em conflitos agrários (Almeida, 1994, p.276-322). Em 1993, foram registrados mais catorze assassinatos (CPT, 1994, p.47-8) e, no ano seguinte, o número total chegou a 12.6 Em 1995, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, morreram catorze trabalhadores (CPT, 1996, p.11). A tabela a seguir traz informações referentes ao número de assassinatos no Brasil de 1996 a 2005, mostrando que o quadro de violência não estava restrito ao Pará. Costa, a partir de um estudo comparativo de microrregiões paraenses, concluiu que a maior freqüência de conflitos agrários se deu em áreas que receberam um elevado volume de incentivos fiscais por parte do governo federal (Costa, 1992b, p.14).

O CONFLITO EM ELDORADO E A UNIÃO DOS POSSEIROS A história dos homens e das mulheres que chegaram, a partir de 1982, numa área próxima a Serra Pelada, a 30 quilômetros do município de Curionópolis e a 102 quilômetros de Marabá, é uma história de “briga”7 pela terra, marcada pela violência. Eles foram ocupando uma área que hoje está localizada a 10 quilômetros do centro do município de Eldorado dos Carajás, criado em 1991, mas que, em 1982, pertencia à cidade de Marabá, no sudeste do Pará. Eldorado, ou Quilômetro 2, como também é conhecido, possui uma área de 2.931,1 km². 6

7

Jornal O Liberal (2 nov. 1994, p.8, cad.1; 26 abr. 1994, p.3, cad.1; 17 abr. 1994, p.10, cad.1; 30 mar. 1994, p.9, cad.2); jornal Diário do Pará (29 out. 1994, p.11, cad.1); jornal A Província do Pará (2 ago. 1994, p.11, cad.1); jornal Correio do Tocantins (edição de 7 a 13 out. 1994); jornal Correio Braziliense (14 jul. 1994, p.8); documento produzido pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ourilândia do Norte, assinado pelo secretário Andrelino Trindade de Jesus e reconhecido em cartório em 21 mar. 1994; CPT, 1995, p.9. Os posseiros das áreas das três fazendas pesquisadas usam o termo “briga” para designar as situações de confronto com os fazendeiros pela posse da terra.

162

398

Ocupações

3.395.657

Hectares

662.590 4.060.181

3.034.706

38

751

599

152

1998

477.105

29

658

463

195

1997

3.683.020

536.220

27

870

593

277

1999

1.864.002

439.805

20

564

390

174

2000

Disponível em: .

Fonte: Comissão Pastoral da Terra (CPT).

481.490

46

Assassinatos

Pessoas envolvidas

653

Total conf. terra

Acampamentos

255

1996

Ocorrências de conflito

Conflitos de terra*

Quadro 1: Comparativo 1996–2005

2.214.930

419.165

29

625

65

194

366

2001

3.066.436

425.780

43

743

64

184

495

2002

3.831.405

1.127.205

71

1.335

285

391

659

2003

5.069.399

965.710

37

1.398

150

496

752

2004

11.487.072

803.850

38

1.304

90

437

777

2005

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

163

As faces ocultas de um conflito

A sede do município está localizada no entroncamento das rodovias PA 150 e PA 275, esta última, estrada que dá acesso ao garimpo de Serra Pelada e de Serra Norte, sede do Projeto Grande Carajás da Companhia Vale do Rio Doce. A população do distrito de Eldorado dos Carajás vivia sob uma espécie de “regime do terror” em 1988. Segundo depoimentos dos posseiros, a polícia só aparecia quando havia despejos e os fazendeiros, cuja principal atividade era a criação de gado, tinham o controle político da localidade e da polícia. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Eldorado dos Carajás (STR) foi criado em 1991 e, até essa data, o apoio institucional que os posseiros recebiam vinha de duas entidades não-governamentais com sede em Marabá: a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica, e a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), que forneciam advogados nos casos de despejos e assassinatos.

SINDICALISTA DO STR DE ELDORADO A coisa mais horrorosa que eu já vi na minha vida foi aqui dentro desse Eldorado, que eu cheguei em 88. Eu nunca no mundo havia visto brincarem com cabeça de gente aqui, enfiada num pau, a dentadura, tudo... todo aquele negócio todinho... O que ele (fazendeiro) queria era a orelha de fulano, sicrano, beltrano. Tamanha três horas da tarde, eles (pistoleiros) atirando lá. Aquele horror de pistoleiro tudo com revólver, máquinas fortes, espingarda, atirando.8 [sic]

As áreas das três fazendas, objeto da pesquisa, foram ocupadas gradativamente pelos posseiros a partir de 1982, quando, como constataram os próprios moradores da área em uma assembléia extraordinária convocada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Eldorado dos Carajás em 1993, “se acentuou a falência de Serra Pelada e aumentou a procura de terras na região”. No contexto analisado, o termo ocupar significa instalar-se em determinado lugar, tomar posse, fazer casa e iniciar uma roça, trabalhar a terra e/ ou criar algumas cabeças de gado. Esse termo é usado pelos trabalhadores rurais quando eles entram em uma área particular ou pública e possui um sentido positivo, por se tratar, na maioria das vezes, de áreas consideradas improdutivas. Fazendeiros, policiais e empregados de fazendas usam o termo invasor com um sentido negativo, ou seja, da pessoa que se apropria de algo de outrem, sem permissão. 8

Os grifos que se encontrarão nas citações deste texto foram feitos com o objetivo de destacar palavras, categorias ou idéias que aparecem nos depoimentos. Além disso, os grifos têm a finalidade de chamar a atenção do leitor para a construção argumentativa dos próprios agentes sociais sobre os diferentes aspectos do conflito tratados neste artigo. As citações buscarão reproduzir as falas originais dos entrevistados. Isso poderá significar algumas incorreções gramaticais, mas que não prejudicarão a compreensão do texto.

164

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Essa briga ou conflito tornou-se parte do cotidiano dos posseiros que permaneceram na área e é também um forte elemento de união do grupo social, entendido aqui como coletividade de pessoas definidas por formas comuns de acesso aos recursos produtivos e por sua participação em relações sociais similares no processo vivido. O comportamento padronizado de indivíduos em um grupo particular deriva das circunstâncias materiais partilhadas e de uma posição comum na estrutura social. “É intrínseca a estas posições um senso mais ou menos comum dos problemas a serem resolvidos e dos objetivos a serem alcançados” (Schimink e Wood, 1993, p.13). Um diálogo ocorrido em 1989 entre um posseiro, morador há 12 anos na área de uma das fazendas, e o então proprietário do imóvel é ilustrativo dessa briga. O diálogo foi reproduzido pelo próprio posseiro, em maio de 1995. Ele (fazendeiro) dizia na minha cara: Ó, cara, tu não vende, mas eu vou comprar da mão da tua mulher, da viúva. Eu digo: Compra sim, tu compra. Se ela quiser te vender. Eu mesmo não vendo de jeito nenhum. Essa terra eu adquiri para criar os meus filhos. Essa terra é a terra sonhada. O meu pai dizia que o governo ia dar essas terras para acabar com a pobreza. E eu escutei isso e chegou esta terra. Se você puder você toma, ou mata, mas eu não vendo a terra para o senhor, ela prestando. Eu posso vender essa terra, companheiro, se seu preço der para mim chegar em qualquer lugar e botar um meio de vida, para criar meus filhos. Mas para mim trabalhar em serraria, trabalhar em terra dos outros, eu não vou mais. (Fazendeiro) Não, eu só tomo do meu jeito. (Posseiro) Então pronto, eu não vendo e pronto, você dê o seu jeito. [sic]

A “terra sonhada” foi realmente prometida pelo governo federal na década de 1970, quando o presidente Médici lançou a consigna de “terras sem homens para homens sem terras”, incentivando a ocupação do que era considerado o “vazio demográfico da região Amazônica”. Os imigrantes vieram principalmente do Nordeste, onde os conflitos pela posse da terra preocupavam o governo militar.9 Esse diálogo revela vários elementos importantes para a análise: os posseiros que chegaram a Eldorado no início dos anos 80 já haviam trabalhado, em sua maioria, como assalariados, geralmente em serviços mal remunerados e insalubres, como no garimpo, serrarias ou carvoarias. Eram pessoas que, de modo geral, foram criadas no campo, mas que saíram da terra natal em busca de novas terras. A maior parte dos posseiros que ocupou as áreas das três fazendas era originária do Maranhão, seguido pelo Ceará, Piauí e Bahia. O conflito foi um dos componentes de desarticulação do grupo que se instalou nas terras das fazendas pesquisadas em 1986, pois muitos posseiros abandonaram os lotes porque não agüentaram a pressão por parte dos fa9

Sobre a história dos movimentos sociais no campo, ver Medeiros, 1989.

165

As faces ocultas de um conflito

zendeiros e da polícia, além da falta de infra-estrutura nas áreas. Ao mesmo tempo, o conflito foi um elemento de união dos posseiros que decidiram lutar pela terra e dos que se juntaram a eles em diversos momentos durante o período de dez anos. Ao analisar os conflitos de terra na Amazônia, Almeida observa que eles passaram a representar, gradativamente, para os trabalhadores rurais, uma forma de organização e uma via para garantir o acesso às terras disponíveis e o domínio de posses já consolidadas (Almeida, 1992b, p.270). Em razão deles, os trabalhadores rurais tornaram-se interlocutores legítimos aos olhos dos organismos oficiais. “As ocorrências de conflito passaram a significar uma maneira de se relacionarem com os aparelhos de poder, cuja característica maior de intervenção refere-se a uma ‘administração por crise’” (Almeida, 1989a, p.3).

OS “VELHOS POSSEIROS” E OS SEUS DIREITOS Os “velhos posseiros” foram os posseiros que participaram dos dez anos de conflito nas áreas das três fazendas pesquisadas. O discurso da maioria dos velhos posseiros era marcado por referências à união do grupo, à luta comum para garantir a permanência na terra e aos problemas comuns, como a falta e a precariedade das estradas. Alguns dos velhos posseiros criaram o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Eldorado dos Carajás (STR) em 1991 e, desde então, vinham ocupando cargos na direção do sindicato. Esse fato e a estreita relação com o sindicato foram determinantes para que as categorias utilizadas no discurso desses velhos posseiros estivessem relacionadas à sua atividade no STR. Também era um discurso pela legalidade, no sentido de que suas ações estariam dentro da lei, de acordo com a Justiça. Ao contrário das ações do fazendeiro. Sindicalista do STR de Eldorado: É muita gente que olha pra gente com cara ruim, esse povo daqui, o funcionário rico, o fazendeiro. Que quando é sindicalista, fecham logo a cara. A gente não se importa, vai passando. E eu sempre passo pelos pistoleiros e também falo bom dia, boa tarde e vou me embora na minha passagem. Eles, graças a Deus, me respeitam bem, mas é o seguinte: a gente respeita pra poder ser respeitado. Mas a gente também tem que olhar para eles assim como quem tá com coragem, pode até não tá com coragem, mas tem que olhar como quem tá com coragem. [sic]

Em um estudo de 1985, José de Sousa Martins observou como uma das características do posseiro (conforme definição do autor: “ocupante de terra sem título legal”) a legalidade de suas ações. “É muito pouco provável que invadam a terra em que há sinal de trabalho, portanto, de ocupação, 166

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

ou que invadam uma terra que, com certeza, tem proprietário” (Martins, 1985, p.95). Alguns dos velhos posseiros não assumiram cargos no STR de Eldorado e raramente participaram de reuniões ou assembléias. No entanto, em virtude dos constantes conflitos com os fazendeiros, eles sempre estiveram em contato com o STR e os sindicalistas. No discurso dos velhos posseiros não ligados diretamente ao STR, também apareciam categorias usadas pelos sindicalistas. A diferença estava, principalmente, no fato de que no discurso dos sindicalistas havia sempre um forte apelo à legalidade de suas ações, sempre autodenominadas não-violentas e referentes às soluções para os conflitos intermediadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e pela Justiça. No discurso dos velhos posseiros não ligados ao sindicato diretamente, embora também se fizesse referência à Justiça como instância onde se resolveriam os conflitos, a violência aparecia como um “instrumento de luta”, que deveria ser usado pelos posseiros sempre que necessário. Quanto maior era o tempo de permanência de um posseiro em uma determinada área, mais ele a considerava um “direito seu”, que acreditava ser reconhecido pelo Incra, pela sociedade e pela Justiça. O direito aparecia como uma forma de representação e relação dos posseiros com a sociedade, o reconhecimento da condição de cidadão. Esse discurso dos posseiros de caráter legalista, sempre fazendo referência a um direito adquirido, está amparado pela Constituição, segundo a qual o posseiro que viver e trabalhar na terra durante mais de um ano e um dia deve ser indenizado pelas benfeitorias realizadas. Isso acontece se o posseiro tiver de deixar a terra, como no caso, por exemplo, de um mandado de reintegração de posse. Os “novos invasores”, por sua vez, não construíam uma auto-imagem que eles quisessem transmitir para a sociedade. Eles mantinham-se afastados de funções no STR que pudessem identificá-los perante a maioria dos interlocutores. No entanto, suas ações marcadas pelo uso da violência eram conhecidas, mas geralmente eram atribuídas pela polícia e pelos fazendeiros aos sindicalistas do STR de Eldorado.

O ANONIMATO E A AUTO-IMAGEM DOS “NOVOS INVASORES” Os “novos invasores”, assim denominados pelos velhos posseiros, não participavam de negociações com o Incra ou com fazendeiros. A intenção inicial desses posseiros foi vingar a morte de um sindicalista assassinado por pistoleiros, em 1993, e matar o fazendeiro tido como mandante do crime. Além disso, eles queriam “acabar” com os pistoleiros que estavam “perseguindo” os velhos posseiros e os demais sindicalistas de Eldorado. 167

As faces ocultas de um conflito

Novo invasor: Se nós tivéssemos, o primeiro contato era matar. Nós [novos invasores] não tivemos contato com ninguém não. Nós nunca tivemos conversa com nenhum fazendeiro. O que nós fazíamos era que eu chegava aqui (em Eldorado) e ficava por aí no escuro ou escondido. O cara mostrava: “É aquele lá”. Daqui, nós já íamos esperar o fazendeiro lá na ponte, na beira do capim ou na estrada, onde fosse e pronto. Não tinha mais conversa. Só isso. [sic]

Os novos invasores, que já haviam assumido função semelhante em outros conflitos, chegavam à cidade sozinhos, discretamente, e ficavam por pouco tempo. Eles somente ocuparam terras na área de uma das fazendas pesquisadas quando ela foi completamente destruída e o fazendeiro se afastou definitivamente. Eles eram pessoas “sem identidade”, sem uma imagem para a sociedade, pois não eram conhecidos. Pelo fato de também trabalharem na terra com a ajuda da família, eram posseiros. “Que tudo que a gente fazia ninguém sabia, pros outros, a gente não tinha nome, não tinha endereço, não tinha nada.” A imprensa raramente tem acesso aos novos invasores, porque eles atuam como uma espécie de “polícia e justiça dos demais posseiros”. Eles não dão entrevistas, não assumem cargos no STR e levam com suas famílias uma vida reservada, isto é, raramente participam de reuniões sociais (como festas e conversas em bares). Novo invasor: Porque muitas vezes é o seguinte: quando a gente entra numa terra, tem aqueles medrosinhos; é, aqueles que ganham nas costas dos outros. Ele fica na rua bebendo cachaça, negociando no meio de pote. Agora quem enfrenta no mato, enfrenta dureza, você não vê ele não. Ele não bebe cachaça, você não vê ele em festa, não vê. Agora o bobão só na rua, aí o pessoal: PÁ! Mata aquele. Ele (o fazendeiro) tenta negociar pra isso. Antes do confronto muito grande eu, principalmente, acredito que esse negócio de negociação é um ponto de organização, de amassação [sic], pra pegar a gente mais fácil. Pra conhecer quem é o mais duro, o mais experiente... [sic]

No depoimento acima, o novo invasor reproduz a imagem que ele tem dele mesmo: alguém que enfrenta dureza no mato, que não se embriaga e não é conhecido. Ao mesmo tempo, ele vai criticar a postura de alguns posseiros que mantinham relações de tipo informal com o fazendeiro ou seus representantes (“negociando no meio do pote”). Ele recrimina as atitudes dos posseiros que não encaram o conflito como uma situação em que as posições são antagônicas e, por isso, na qual a negociação não seria possível. Os novos invasores cumpriram a função de “justiceiros” durante a destruição e ocupação de uma das fazendas em 1994. Almeida explicita, recorrendo a Barrington Moore Jr., que a existência de atos de justiça por parte dos próprios camponeses está relacionada à ausência 168

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

de solução para seus problemas por parte do poder público instituído. Os significados dessas diferentes ações compreendem uma “reafirmação da dignidade e do valor humano após a injúria e o dano que lhes ameaçam a identidade e a sua própria reprodução” (Moore, p.38 apud Almeida, 1992a, p.4). Prossegue o primeiro autor: “Inexistindo autoridade judiciária para fornecer soluções, tais atos de justiça funcionam no sentido de igualar as coisas” e afirmar seus direitos (Almeida, 1992a, p.4). Novo invasor: Quando nós viemos pra cá, tinha esse conflito aqui e nós já tínhamos vencido a batalha lá no Varzão e a gente tinha sofrido muito. Eu não achei ruim aquele sofrimento, nem risco de vida pra mim, coisa e coisa, porque eu fui criado sofrendo mesmo. Até hoje eu não conheci vida boa, aquilo pra mim vida é uma só, eu não tenho melhora, eu não conheço o que é bom, nem o que é ruim, pra mim não tem desvio nenhum. Aí esse povo (fazendeiro e seus pistoleiros) encomendava mesmo, matava gente direto, aí ele [sindicalista assassinado] morreu, aí viemos enfrentar. [sic]

No depoimento acima, o novo invasor explicava a causa de sua opção em participar de conflitos agrários em diversas áreas. A argumentação dele é direcionada para uma “solidariedade” em relação aos posseiros, que ele considerava pessoas que respeitavam e ajudavam aos demais posseiros. O conflito com o fazendeiro é visto como uma “batalha”, na qual ele se coloca como uma espécie de soldado que cumpre seu dever. Um dever encarado como uma sina (“aquilo pra mim vida é uma só, não tem melhora”) e sob esse aspecto, quase “natural”. O fato de cumprir uma função social necessária ao grupo, como uma espécie de justiceiro, vai provocar, em relação a uma parte do grupo, o “reconhecimento” e o respeito que ele almejava. Tornar-se um justiceiro é uma forma de ocupar um lugar dentro do grupo social. Embora sua existência, como indivíduo portador de um nome próprio, seja desconhecida para a maioria das pessoas, suas ações e conseqüências não o são. Ele se torna dessa maneira “útil” ao grupo com o qual convive. Ao examinar os “atos de justiça sumária” praticados por camponeses e índios, Almeida conclui que não se pode afirmar que sejam próprios de uma fase pré-sindical ou mesmo pré-política. “Mesmo com a criação difusa dos STRs, essas noções de justiça e essas formas de organização mantém sua eficácia. Para além da sindicalização, os camponeses continuam vivendo situações em que as relações conflituosas são mediadas pela força” (Almeida, 1989b, p.12). Na citação abaixo, de um sindicalista do STR de Eldorado, é descrita uma tocaia armada contra um fazendeiro. A estratégia é a mesma utilizada em conflitos agrários nos quais uma solução legal não se mostra justa ou viável do ponto de vista dos posseiros. 169

As faces ocultas de um conflito

Quando nós [velhos posseiros] cuidamos que não, ele [fazendeiro] já estava adiantando a cerca dele, pra tomar isso aqui nosso. E aí a briga foi aumentando e nós fomos esquentando, e nós íamos pra Justiça e nós perdíamos, nós voltávamos pra área, nós voltávamos pra Justiça, nós tornávamos a perder, que tal? E aí nós começamos a atirar em gado pra ver se chegava a uma conclusão. Até que um dia ele foi lá ver, armado. Aí quando chegou lá, a turma [novos invasores] estava esperando. Quando eles [fazendeiro e seus três empregados] viram que estavam cercados, diz que este homem fora do carro com duas 65 na mão, atirando à toa pensando que eles corriam, não sabe? E eles atirando nele só no nível. Ele [fazendeiro] atirando sem falhar momento: Tá Tá Tá! Uma na mão e outra na outra. E a turma atirando tudo entocado, né? Até que ele foi fracassando e caiu. Os pistoleiros sumiram tudo, aquilo lá foi de um jeito que eles destruíram tudo. [sic]

A expressão “andar com a cerca” ou “adiantar a cerca” está relacionada a uma prática de apropriação indébita de terras públicas e privadas. No caso mencionado acima, tratou-se de uma área particular, mas o fato mais comum, comprovado pelo Incra e denunciado por entidades como a CPT, refere-se à apropriação de terras devolutas limítrofes a fazendas particulares, que são regularizadas em cartórios por meio de títulos fraudulentos. As cercas das fazendas são afastadas para anexar terras da União à propriedade original. Para que o título falso adquira a aparência de envelhecido, os falsificadores colocam o papel dentro de uma gaveta com um grilo. O contato com o inseto, que come as bordas do papel e altera sua coloração para o amarelo, causa o efeito desejado. Foi em virtude dessa prática que surgiu o termo “grileiro”. José de Souza Martins define grileiro como uma figura que se tornou muito comum na história rural brasileira nos últimos cem anos, como o homem que se apossa de uma terra que não é sua, sabendo que não tem direito a ela e “através de meios escusos, suborno e falsificação de documentos, obtém finalmente os papéis oficiais que o habilitam a vender a terra a fazendeiros e empresários” (Martins, 1983, p.103). Assim como os novos invasores, o fazendeiro também não acreditava em uma solução legal e ágil para os conflitos fundiários, embora por razões diferentes. Para ele, os juízes eram “petistas” (simpatizantes ou filiados ao Partido dos Trabalhadores), o que significava que sempre dariam razão para os posseiros. Fazendeira: Olha, de início, a primeira reação sempre é a revolta, entendeu? Aí de repente você toma consciência de que você não está batendo de frente só com o posseiro, você está batendo de frente com uma Justiça que não te ajuda, que é morosa, não te ampara em porcaria nenhuma. Aí já vem a terceira fase que é a da indignação. Então são três fases que culminam no abandono, entendeste? [sic]

Sindicalista do STR de Eldorado: “Os posseiros começaram a se revoltar, a Justiça não resolvia, as autoridades hoje não garantem aquilo que a lei diz que é pra fazer, né?”. 170

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Almeida já havia observado que a crítica à “morosidade” da Justiça é usada por fazendeiros, empresas do sul, madeireiros e mineradoras, como forma de justificar a ação da força (pistoleiros e métodos de coerção) contra os camponeses. “A celeridade da resolução que objetivam pressupõe, no mais das vezes, a ‘eficiência’ pela utilização da força, mesmo que violando dispositivos legais” (Almeida, 1992b). Nos dois depoimentos acima aparece a incredulidade de posseiros e fazendeiros em relação à aplicabilidade das leis; elas não estariam atendendo aos seus interesses. Esse argumento geralmente é seguido por um discurso que justifica atitudes de “caráter autônomo”, ou seja, fora do conhecimento e da interferência de órgãos públicos. Entre essas atitudes, o uso da violência é a mais comum. A violência é usada, por exemplo, por meio de pistoleiros, para retirar posseiros de uma determinada fazenda. Também é usada pelos posseiros para “afugentar” fazendeiros e pistoleiros de uma área de conflito. Não se entrará aqui em uma discussão mais ampla sobre as causas da “morosidade da Justiça”. Parte-se do princípio de que ela realmente existe e que os diversos agentes procuram determinar suas ações no conflito, tendo por base esse fato. Em se tratando dos posseiros, apesar das iniciativas de “justiça autônoma”, geralmente pelo uso da violência, eles levam uma grande desvantagem do ponto de vista econômico e técnico em relação aos fazendeiros. Estes últimos contam com a possibilidade de comprar armas e contratar pistoleiros sem que isso interfira sobremaneira no orçamento doméstico. Além disso, os fazendeiros podem contar também com o apoio da polícia, como se verá a seguir.

A IMAGEM NEGATIVA DA POLÍCIA PARA POSSEIROS E FAZENDEIROS A imagem que os sindicalistas do STR e os demais posseiros tinham da polícia era negativa. Ela sempre aparecia nos discursos como patrocinada pelos fazendeiros, uma espécie de milícia privada. Para os fazendeiros, por sua vez, a polícia era “cara” e necessária. A polícia é responsável pelo cumprimento de um mandado de reintegração de posse. No entanto, apenas a ordem judicial, segundo os fazendeiros, não é suficiente. A ação policial tinha que ser bancada pelo fazendeiro, pois a própria polícia não dispõe de recursos financeiros para garantir transporte e alimentação para os policiais durante o despejo. O fato de o fazendeiro arcar com as despesas, o tornava uma espécie de “comandante indireto” da operação, que podia instruir os policiais para que os posseiros não retornassem à área, para que suas casas fossem queimadas e seus pertences destruídos, além de serem humilhados. Algumas vezes, para garantir que isso ocorresse, empregados dos fazendeiros acompanharam os despejos nas áreas das três fazendas. 171

As faces ocultas de um conflito

Fazendeiro: Cada vez que você leva a polícia lá, você tem que dar dinheiro do soldado ao capitão, que é para poder correr tudo bem, senão eles não saem lá do quartel, então é um gasto muito grande. Eles já estão acostumados com isso. A polícia, na primeira reintegração de posse que nós tivemos nas nossas fazendas, eles foram, brigaram e tal. Quando foi com vinte dias a fazenda estava invadida de novo. Na segunda vez nós não conseguimos assim mais um soldado, um daqueles pé duro, soldado mesmo, para ir na fazenda. [sic]

O pagamento de alimentação e transporte, além de uma “gratificação” pelos serviços prestados pelos policiais, era considerado normal pelo fazendeiro (“eles estão acostumados com isso”). Esse pagamento fazia parte das ações do fazendeiro, após conseguir da Justiça um mandado de reintegração de posse. A primeira ação seria “botar pistoleiros”, tão logo chegasse a notícia de que a fazenda seria invadida. A segunda seria pagar a polícia. A imagem que o fazendeiro tinha da polícia era a de uma instituição ineficiente, que estaria ao seu dispor, mas que teria que ser sustentada para agir, por isso era considerada cara. Fazendeiro: Quando o fazendeiro consegue a reintegração de posse, a polícia chega e não tem dó, mete o pau, bate, mata... porque ela tem que tirar eles (os posseiros) lá de dentro. O fazendeiro, por exemplo, o primeiro impacto dele quando há uma invasão é o quê? É botar pistoleiro pra tentar conter a invasão. Isso aí qualquer um bota. Porque o posseiro quando entra na tua fazenda, ele não entra desarmado, entra com armamento pesado. Mas é o problema do posseiro dizer que a polícia é comprada, mas é porque eles (a polícia) chegam e tiram. Impõem a lei. Então o posseiro não gosta da policia por causa disso, mas não é que a gente paga pra bater. A gente paga pra poder ir, senão fica aquela: Ah, não sei o que, eu vou, eu não vou, vou hoje, vou amanhã, porque ele é obrigado a cumprir. Então, ali no meio da confusão se houver uma troca de tiros ou vai matar ou vai morrer. [sic]

Como o fato de “botar pistoleiros” adquiriu uma conotação negativa no discurso da imprensa, depois que entidades como a CPT denunciaram a prática de violência contra os trabalhadores rurais, o fazendeiro vai procurar justificar essa ação como uma ação de um grupo social (“o fazendeiro bota pistoleiro...”) e uma ação legítima, de quem defende o que é seu, como se verá também no depoimento a seguir. Ao mesmo tempo, passará a imagem dos posseiros como a de um grupo fortemente armado que quer ganhar a terra sem trabalho, e que, portanto, precisa ser retirado por pistoleiros e pela polícia (“entra com armamento pesado”). Fazendeiro: Mas por que o fazendeiro faz isso? Porque ele está defendendo o que é dele, o que ele suou, o que ele trabalhou, o que vem fazendo há anos e anos e anos. É dele, pô! Vai chegar um cabra e vai entrar na maior e dizer: Eu vou entrar. Não é seu,

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porra! Vai trabalhar! Que culpa eu tenho se tu é pobre, Azar teu se a vida não te deu a sorte para você enrricar, o problema é seu! Agora, porque tu é pobre e eu sou rico, que tu vai entrar na minha fazenda? É por isso que de uma maneira generalizada todo fazendeiro faz isso. [sic]

Os posseiros das três áreas da pesquisa não eram vistos como interlocutores pelos fazendeiros ou pela polícia (“o problema é seu!”). Não eram consultados e nem chamados para negociar, foram expulsos com métodos violentos das terras que ocupavam. Os posseiros passaram a ser chamados a negociar quando eles também usaram métodos violentos. O discurso refletiu e foi um elemento de construção e direcionamento dessas práticas sociais. Os antagonismos estiveram também presentes, portanto, na luta de sentidos que se travou no campo discursivo. As duas próximas categorias apontam para essas diferenças.

O “CABEÇA DE GRILO” E OS “COMERCIANTES DE TERRA” O “cabeça de grilo”, para fazendeiros, Incra e polícia, era o organizador das invasões de fazendas, responsável por formar um grupo, conduzi-lo e orientá-lo antes e durante a invasão. O cabeça de grilo também seria a pessoa que lucrava com a invasão, quer se tratasse da venda de madeira ou de gado roubado. Fazendeiro: Da mesma maneira como eles acalmam os posseiros, esses são os grileiros, eu considero chefes, chefes de sindicato de grileiros. A cúpula do sindicato tem aquela equipe que, vamos dizer, se ele quer invadir aquele terreno, aquela cúpula traz um monte de gente. É chamado de “isca”, que eles entram junto com um monte de gente pra fazer número, mas eles que são os cabeças. [sic]

O STR é colocado pelo fazendeiro como um “sindicato de grileiros” e, portanto, como uma instituição ilegítima. Sob essa ótica, o sindicato passa de um órgão de representação dos trabalhadores rurais para um órgão de organização das ações de ladrões, que seriam os grileiros. O “isca” aparece como o grupo maior de pessoas que entram na terra. Os posseiros usavam o termo cabeça de grilo também com um sentido negativo, mas sempre atribuindo a organização da invasão aos que eles chamavam “comerciantes de terra”, sem nenhuma ligação com o STR. Para os posseiros, um comerciante de terra poderia ser um cabeça de grilo, mas isso não significava que todos os comerciantes de terra fossem cabeças de grilo. Esses comerciantes eram, na maioria das vezes, ex-posseiros que passaram a revender lotes de terras em áreas de assentamentos do Incra ou onde tivesse havido uma invasão. 173

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Velho posseiro: Já tinham vendido suas terras e compraram, cada um, um pedaço no pasto, compraram baratinho e a sobra compraram boi. Botaram dentro, mas aí iam vender lá pro fazendeiro, vendia caro e aí ia pra outro lugar, comprava outra baratinho e tornava comprar outro gado, era assim que eles queriam crescer, era assim, em cima da especulação da terra. [sic]

No depoimento acima, o sindicalista reprova a atitude do comerciante de terra, igualando-a a de um latifundiário, que também não produz na terra, mas se beneficia com a especulação. Os sindicalistas e posseiros das três áreas tinham uma explicação para o fato de serem chamados de cabeça de grilo pelos fazendeiros. Essa imagem de cabeças de grilo que os fazendeiros relacionam aos sindicalistas seria, para eles, uma maneira de descaracterizar o trabalho de assistência jurídica e trabalhista que vem sendo prestado aos posseiros pelo sindicato. Velho posseiro: O trabalhador que não morria, vivia de escravo até morrer dentro dessas fazendas por aí tudo. Quando tentava fugir, eles vinham atrás e matavam. Hoje, se eles tentam matar um trabalhador, o trabalhador foge, vai para o sindicato, vai pra Belém. Então tem essa assistência. E outra assistência maior que nós já temos, de uns políticos do partido PT, que ajudam demais. De 80 pra cá, toda fazenda tem que pagar o trabalhador, é de hora em hora, tem que pagar ele tudo certinho. E se for pra pagar, a renda da fazenda não dá. Então por isso que eles têm raiva de nós, que hoje o posseiro misturou no meio. Então nós não somos um escravo mais. Eles (fazendeiros) dizem que o errado tudo somos nós, se defendendo dessa maneira. [sic]

Os posseiros “se misturaram no meio”, como aparece no depoimento acima, significa que eles passaram a ter uma representação institucional com a criação dos STRs e o apoio de ONGs e da Igreja Católica. O conhecimento de seus direitos trabalhistas se tornou mais acessível com o sindicato, além da possibilidade de fugir das fazendas e de denunciar irregularidades ou arbitrariedades. Ao explicitar essa mudança que pôde ser sentida a partir de 1980, o autor do depoimento acima contrapõe a imagem de “escravo” que ele tinha sobre o trabalhador rural, a uma nova imagem de um trabalhador com direitos que podem ser exigidos. Não se trata mais de um trabalhador marginalizado, mas de um trabalhador com respaldo institucional e político.

O ENVOLVIMENTO DAS MADEIREIRAS NAS INVASÕES As madeireiras eram vistas positivamente pela maioria dos posseiros das áreas das três fazendas, principalmente quando se tratava de entrar em uma área nova. Geralmente são as madeireiras que abrem as estradas permitindo 174

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o acesso às áreas distantes. Os caminhões das madeireiras dão carona aos posseiros com seus produtos e também carregam pessoas doentes. Logo que os posseiros se instalam em uma nova terra, via de regra, é a venda da madeira que vai garantir o sustento da família até a primeira colheita. Novo invasor: Eles levantam essa coisa, essa calúnia junto do posseiro: que ele tá destruindo as matas porque vende a madeira. Mas é o seguinte: o Incra não faz a estrada, a prefeitura não faz um palmo de estrada e o madeireiro não tira a madeira voando não, ele abre estrada. A mata virgem se o posseiro entra hoje, ele não tem dinheiro pra comprar uma caixinha de óleo, ele não tem dinheiro pra comprar uma comida, então o madeireiro serve. E o madeireiro só leva a madeira que serve pra serrar, né? Aquela outra madeira ele deixa. E o fazendeiro não, ele leva é tudo, ali vira um deserto, ele leva tudo pra fazer pastagem. [sic]

Ao falar da “calúnia” que é levantada contra os posseiros, o posseiro do depoimento acima estava negando que o desmatamento que vem ocorrendo na região seja de responsabilidade dos posseiros, em acordo com os madeireiros. O desmatamento seria causado pelos fazendeiros (“ele leva tudo pra fazer pastagem”). Esse discurso que vê nos posseiros os culpados pelo desmatamento é usado constantemente por fazendeiros, madeireiras e imprensa. É um discurso que tenta passar a imagem dos posseiros para o restante da sociedade como de “destruidores do meio ambiente”, “destruidores da floresta” ou “povo atrasado e rudimentar”.10 A principal vítima das invasões nas quais estão envolvidas madeireiras é, de acordo com os depoimentos dos fazendeiros, o “médio fazendeiro”. Eles teriam propriedades entre 3 e 10 mil hectares e possuiriam entre 10 e 15 mil cabeças de gado. Os motivos dessas invasões seriam o reduzido número de empregados, as reservas de floresta e a maior facilidade para desapropriações junto ao Incra. Além disso, após uma invasão, seria o médio fazendeiro, em oposição ao “grande fazendeiro”, o maior prejudicado em relação à morosidade das decisões judiciais e ao cumprimento dessas decisões pela polícia. A procuradoria do Incra no Pará apontava como principal causa das invasões de terra por parte de grupos de trabalhadores rurais de tamanho médio11 a localização favorável das fazendas nas proximidades de estradas e a existência de reserva florestal. 10

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Sobre a imagem dos agricultores familiares como causadores de problemas ambientais, consultar Costa (2006). Não se trata, portanto, das invasões organizadas pelo MST, que se caracterizam pela entrada de um número bem maior de trabalhadores rurais, variando entre quinhentas e 2 mil famílias. As invasões do MST são, muitas vezes, anunciadas com antecedência à imprensa e ao Incra, como forma de pressionar o órgão governamental a tomar providências no sentido de viabilizar a desapropriação da área e evitar o uso de violência por parte dos proprietários, que evitam fazê-lo sob os holofotes da imprensa.

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Fazendeiro: Nós conseguimos uma reintegração de posse numa outra fazenda que nós tínhamos. Nós brigamos, brigamos, brigamos. Aí os invasores saíram. Conseguimos mais outra. Mas vai ficando uma coisa tão desgastante, porque é gasto excessivo, você tem que colocar pistoleiro pra tomar conta da fazenda e pagar advogado. É uma briga contra posseiro. Aí a gente já não tem mais ânimo, que a polícia vai e limpa, sai e eles voltam, a polícia volta, e fica esse vai e vem. Você perde o ânimo de investir, de jogar mais dinheiro ali dentro. Pra vender ela já fica uma terra taxada, desvaloriza completamente a terra. [sic]

Os médios fazendeiros, ao contrário de grandes grupos econômicos do sul do país que possuem imensas extensões de terra na Amazônia, geralmente vivem em suas fazendas e, apesar de terem gerentes, são os responsáveis pela sua administração. Na maioria dos casos, não possuem a terra apenas como uma fonte de recursos especulativos, investem na terra porque vivem nela com sua família. Os recursos gerados, na maior parte das vezes, são reinvestidos na fazenda e se concentram no estado do Pará. No depoimento acima, o fazendeiro vai procurar enfatizar o aspecto econômico das invasões (“você perde o ânimo de investir”) como forma de reforçar seu argumento sobre a “necessidade” de o Estado garantir segurança às médias fazendas. Segundo dados da superintendência do Incra no Pará, na região sul do estado predominavam fazendas de grande porte, acima de 10 mil hectares, cuja administração, na maioria dos casos, ficava a cargo de gerentes. As invasões organizadas por madeireiras ou grupos interessados em roubar gado são direcionadas, geralmente, para onde existe a junção de dois fatores: a resistência é menor e a terra, o gado ou a madeira interessam ao grupo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo deste artigo foi analisar as relações sociais dos agentes envolvidos em uma situação de conflito agrário em Eldorado dos Carajás, durante um período de dez anos (1986-1996). Buscou-se avaliar nesta rede de relações sociais, na qual as forças no campo político iam se alterando conforme o surgimento de novos personagens ou o reposicionamento dos que já estavam em cena, as mudanças que foram representadas na heterogeneidade do discurso sobre a violência no campo. Dessa forma, o discurso foi tomado como um lugar de elaboração de experiências, que poderiam contribuir para uma reorientação das práticas sociais. Para isso, foram introduzidas e apresentadas categorias representativas da atuação desses agentes durante as diferentes etapas que marcaram o período de “luta pela terra”. Os denominados velhos posseiros, por exemplo, foram os primeiros a chegar às áreas das três fazendas pesquisadas e permaneceram em seus 176

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lotes de terra durante o conflito. Eles construíram sua imagem como a de trabalhadores que precisavam da terra para trabalhar, pessoas pacíficas que buscavam soluções para seus problemas junto à Justiça, sentindo-se vitoriosos por terem “conquistado” a terra após a disputa com o fazendeiro. O discurso dos velhos posseiros era predominantemente um discurso de caráter legalista e contra o uso da violência para a solução dos conflitos. Os novos invasores, que destruíram e ocuparam a sede de uma das fazendas a partir de 1994, eram chamados dessa forma pelos velhos posseiros porque chegaram depois dos posseiros mais antigos e pelo fato de que eles também “invadiram”, ou seja, “ocuparam” as terras. A imagem que os novos invasores construíam deles mesmos era a de homens corajosos, descrentes em relação à Justiça e às negociações com os fazendeiros, e adeptos de soluções pragmáticas para os conflitos, que passavam diretamente pelo uso da violência. Os fazendeiros, por sua vez, se colocavam como trabalhadores que tiveram que se empenhar muitos anos para construir o seu patrimônio. A imagem que os posseiros tinham dos fazendeiros era a de homens poderosos, influentes no meio político, que agiam ilegalmente porque podiam comprar a polícia e as autoridades. Esse jogo de imagens permitiu perceber a consolidação das diferenças entre os dois principais agentes do conflito: os fazendeiros e os posseiros. A apropriação que eles faziam de categorias que eram representadas pelas mesmas palavras, como invasor ou cabeça de grilo, davam a elas significados muitas vezes antagônicos. Para os posseiros, os cabeças de grilo eram pessoas que organizavam “invasões” em terras particulares para retirar a madeira ou roubar gado. O termo estava diretamente relacionado aos comerciantes de terra. Já para o fazendeiro e a polícia, os cabeças de grilo eram sindicalistas ou lideranças entre os posseiros, que estariam ligadas a madeireiros e ladrões de gado, e que teriam uma grande influência entre os posseiros. O “conflito” apareceu como um dos elementos visíveis de uma luta travada na esfera política entre os diversos agentes, e que significou, em alguns momentos, o reconhecimento dos direitos dos posseiros à sua cidadania e, em outros, a reafirmação do esquema de dominação política e econômica de fazendeiros e madeireiras.

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8 MOVIMENTOS DAS MULHERES AGRICULTORAS E OS MUITOS SENTIDOS DA “IGUALDADE DE GÊNERO”* Maria Ignez S. Paulilo

INTRODUÇÃO

A categoria “trabalho”, seja ele remunerado ou não, sempre se mostrou relevante para o pensamento feminista. Considerar trabalho as inúmeras atividades desenvolvidas pela mulher no lar e nas pequenas propriedades agrícolas foi uma forma de torná-las visíveis e mais valorizadas. Quanto ao trabalho remunerado, ele foi considerado fundamental, pois em uma sociedade em que quase tudo se compra, o acesso da mulher a alguma forma de renda própria poderia torná-la mais independente do marido e mais participante nas decisões que envolvem tanto o grupo doméstico como a sociedade mais ampla. Quatro décadas de feminismo não diminuíram a importância dessa categoria. É ela que está no cerne de uma das principais conquistas dos movimentos de mulheres agricultoras que, junto com outros movimentos sociais ligados ao campo, lutou para que as esposas envolvidas na produção agrícola familiar fossem consideradas “produtoras rurais” e não “do lar”. Na década de 1970, por influência do marxismo, houve uma preocupação acentuada em se diferenciar “trabalho produtivo” de “trabalho improdutivo”, referindo-se o primeiro às atividades que produzissem mais-valia, o que daria ao trabalho doméstico a classificação de improdutivo. Apesar das críticas à exploração capitalista do trabalho remunerado, a conquista, por * Esta é uma versão revista e ampliada do artigo publicado com o título “Movimento de mulheres agricultoras: terra e matrimônio”. In: PAULILO e SCHMIDT (Orgs.). Agricultura e espaço rural em Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003.

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meio dele, da independência feminina e da possibilidade de participar na transformação da sociedade foi uma constante do pensamento feminista, embora nem sempre tenha sido fácil analisar situações concretas sem abalar esse pressuposto. As atividades femininas remuneradas trouxeram consigo a questão da dupla jornada de trabalho. Labutando dentro e fora de casa, que tempo e energia sobrariam à mulher para refletir sobre suas condições de vida? Gonçalves (1989), em seu estudo sobre mulheres trabalhadoras em Joinville/SC, partiu da hipótese de que o trabalho teria um caráter educativo na formação da consciência feminina. Finalizada a pesquisa, concluiu que a incorporação da mulher ao mercado de trabalho, mesmo tendo sido condição necessária, não era suficiente para que seu processo de emancipação e maior consciência de suas condições de vida se desenvolvessem. Pesquisando mulheres rurais da região de Devon, no Reino Unido, Gasson, Shaw e Winter (1992) descobriram que, embora a literatura preveja grandes mudanças no papel da mulher quando ela tem emprego remunerado, as evidências empíricas não dão suporte a essa afirmação. Na região por eles estudada, quando somente o marido tem emprego fora da propriedade, a mulher é pouco consultada quanto às decisões importantes relativas à exploração familiar, embora dedique mais tempo que seu cônjuge ao trabalho agrícola. Quando é apenas a mulher que trabalha fora, ela ainda é pouco consultada. A participação da esposa nas decisões só aumenta quando os dois membros do casal trabalham fora da propriedade. O trabalho de Little (1994) é outro questionamento da relação entre trabalho feminino remunerado e independência da mulher, ao discutir o resultado da pesquisa feita em três diferentes regiões da Inglaterra. Segundo a autora, o trabalho feminino não doméstico é mais uma conseqüência da disponibilidade de trabalho e do momento do ciclo familiar do que a busca de uma carreira profissional ou de independência financeira por parte das esposas. Por isso, ele está sempre em segundo plano quando entra em choque com as atividades domésticas. Em pesquisa realizada em um município do estado de São Paulo, no ano de 1975, nós mesmas, sob a influência do feminismo da época, ficamos surpreendidas quando boa parte de nossas entrevistadas consideravam a participação em atividades produtivas, ou seja, a lida nos campos, uma sobrecarga e não uma forma de sair da clausura doméstica (Paulilo, 1976). O pressuposto, porém, da simbiose entre trabalho produtivo e independência foi “salvo”, por um curto espaço de tempo, pelo fato desse trabalho não ser remunerado e ser produzido em conjunto com outros membros do grupo familiar. Pesquisas posteriores se incumbiram de questionar esse raciocínio simplista. Anos mais tarde, ao tomarmos contato com uma pesquisa realizada pelo Comitê das Organizações Profissionais Agrícolas da CEE (Copa, 1988), 180

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

percebemos que, também na Europa, os anos 70 foram marcados por uma reação das mulheres rurais à dureza do trabalho agrícola, estando presente a aspiração de serem apenas “donas de casa”. Segundo a mesma fonte, nos anos 80, dá-se uma mudança no sentido da valorização das mulheres como “profissionais da agricultura”. O mesmo observo no Brasil, pois é nesses anos que surge no Sul o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) que, mais tarde, se expandiria para todo o país. Embora o relatório do Copa não se preocupe em explicar as causas da mudança, cremos que a disseminação de tecnologias poupadoras de mão-de-obra seja uma hipótese a ser considerada, na medida em que tornaram os afazeres agrícolas menos penosos. Outro fator que provavelmente influiu na maior valorização, por parte das mulheres, das atividades agrícolas foi a diminuição do número de filhos, fenômeno ocorrido no mundo todo. Segundo a ONU (1995), o Brasil está entre os países que apresentam uma queda de mais de 40% na taxa de fertilidade em um período de vinte anos. Essa taxa era de 4,7 nos anos 70-75 e baixou para 2,7 em 90-95. Para as áreas rurais do país, Teixeira et al. (1994) mostram que essa taxa também vem caindo. Se no período de 1980-5, o maior índice era de 6,8, na região Norte, e o menor, 3,6, na região Sul, no período seguinte, 1985-90, temos, nas mesmas regiões, 6,0 e 3,1 respectivamente. Além disso, a diferença entre a taxa de fertilidade total rural e a urbana vem diminuindo. Embora a primeira continue mais alta, segundo Siqueira (1992), a diferença caiu de 3,18 filhos/mulher, em 1970, para 2,29, em 1984. A valorização do trabalho feminino nos campos foi intensificada com o surgimento, no início da década de 1980, dos movimentos autônomos de mulheres rurais.1 Esses grupos apresentam trajetória semelhante a muitos outros movimentos sociais que emergiram nesse período no Brasil. Começam sob forte influência da ala progressista da Igreja Católica. No meio rural, essa influência foi decisiva para a participação feminina, pois a igreja é um dos poucos lugares públicos que as mulheres sempre freqüentaram e são estimuladas a fazê-lo. Com o passar do tempo, as participantes começaram a encontrar menos identidade entre suas aspirações e as possibilidades oferecidas pela Igreja Católica, a qual nunca abandonou sua postura patriarcal, nem sua visão restritiva sobre o comportamento sexual e a contracepção. Em 2004, os movimentos autônomos de mulheres abrigados sob diferentes denominações se uniram sob uma única sigla, MMC, ou seja, 1

Sob essa denominação abrigam-se todos os movimentos não ligados a sindicatos ou ao MST. Em Santa Catarina, esse tipo de organização conservou por muito tempo o nome de Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA), embora se articulasse com Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais, de âmbito nacional. No Paraná, também foi mantida uma denominação própria. Em 2004, a designação Movimento de Mulheres Camponesas foi aceita em todo o Brasil.

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Movimentos das mulheres agricultoras

Movimento de Mulheres Camponesas. Como tanto os trabalhos citados como as entrevistas realizadas referem-se a períodos anteriores, mantivemos as antigas denominações, quando imprescindível. Por isso, aparecem no texto o MMA, Movimento de Mulheres Agricultoras, como era conhecido o movimento em Santa Catarina, e o MMTR, Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais, assim chamado no Rio Grande do Sul; posteriormente, essa sigla também identificou a articulação nacional dos movimentos autônomos de mulheres rurais. Casagrande (1991) e Daboit (1996) fazem um breve histórico do surgimento do Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA) em Santa Catarina, movimento que, mais de vinte anos (de militância) depois, ajudaria a compor o MMC. Segundo esses autores, o MMA organizou-se, em princípio dos anos 80, no município de Chapecó, oeste de Santa Catarina, sob a influência das Comunidades Eclesiásticas de Base, ligadas à Igreja Católica. Teve como primeiro objetivo organizar as agricultoras para “tomar” a direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Chapecó, meta que foi alcançada em 1982. No bojo dessa movimentação, o problema da pouca sindicalização das mulheres rurais foi levantado. Em 1984, no Dia Internacional da Mulher, houve uma primeira manifestação pública do movimento em Chapecó, da qual participaram cerca de quinhentas mulheres. Nos dois anos seguintes, o fato se repetiu, congregando 2 mil mulheres, no primeiro ano, e 3 mil, no ano seguinte. A feição pública do movimento já estava clara, e sua visibilidade tornou-se ainda maior quando a única deputada eleita em 1986 em Santa Catarina, Luci Choinaski, era uma agricultora da região. Em 1991, houve a campanha “Declare sua profissão” por ocasião do recenseamento, quando as mulheres foram instadas a se identificar como “produtoras rurais” e não mais “do lar”, como era o costume. No início, o que atraía as mulheres para o MMA eram as questões trabalhistas, tais como: serem consideradas produtoras rurais, com direito a assistência em caso de acidente de trabalho; aposentadoria aos 55 anos; salário-maternidade e pensão-viuvez. A Constituição de 1988 abriu possibilidades para a reivindicação desses direitos que, aos poucos, foram sendo regulamentados. As questões trabalhistas eram mais importantes que as de gênero. Porém, nos anos 90, começaram a despontar entre as militantes questões propriamente feministas, e as mulheres passaram a insistir na autonomia do movimento frente à Igreja, ao Estado e aos partidos políticos (Casagrande; 1991 e Daboit; 1996).2 No Rio Grande do Sul, na mesma época, surge o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), com características muito próximas às do MMA. Houve uma imediata conexão entre os dois movimentos. 2

Poli (1999) discorda da afirmação de que as questões de gênero só surgiram em um segundo momento, mas afirma que não tiveram a primazia no primeiro.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Segundo Stephen (1996, p.36-7), as preocupações iniciais do MMTR eram relacionadas com a saúde da mulher, licença maternidade e à implementação de benefícios previdenciários como aposentadoria e outros já assegurados às trabalhadoras urbanas, além do reconhecimento do trabalho da mulher rural e sua integração individual nos sindicatos e cooperativas... Se os primeiros objetivos eram semelhantes, as mudanças de rumo também o foram, pois “mesmo que ainda firmemente enraizado em uma análise que ressalta o lugar da classe trabalhadora. ... na estrutura econômica capitalista, o MMTR aos poucos tem trabalhado com mais ênfase os aspectos culturais e sociais das diferenças referentes a gênero no Brasil.”

Passar do enfoque trabalhista para o de gênero implicou algumas dificuldades. O MMC traz, como herança de suas origens, o otimismo da década de 1980 com relação aos movimentos sociais; a idéia de que os direitos humanos são universais e se somam em direção a um país ao mesmo tempo mais democrático e mais livre. Contradições entre liberdade e igualdade recebem pouca atenção. Pressupõe-se que o que é bom para o conjunto dos membros da família é necessariamente bom para a mulher. Isso se reforça pelo fato de que o conceito de “agricultura familiar”, que desde o início dos anos 90 tem ampla aceitação tanto no meio acadêmico, como entre os técnicos e os próprios agricultores, implica uma visão, senão totalmente harmônica da família rural, pelo menos baseada na idéia de que os conflitos entre os cônjuges, e entre estes e seus filhos, podem ser resolvidos sem extrapolar a esfera doméstica. Porém, a nosso ver, há uma questão tão fortemente enraizada na tradição patriarcal que tocar nela significaria, sem dúvida, desvelar um conflito profundo, sem nenhuma solução fácil à vista, e essa questão tem a ver com o acesso à terra. Há, no sul do Brasil, principalmente nas antigas regiões de colonização italiana e alemã, um padrão a respeito da sucessão nas propriedades rurais. Esse padrão, é claro, comporta variações e exceções, mas são principalmente os filhos homens que herdam a terra, enquanto as mulheres se tornam agricultoras por casamento. Elas recebem herança quando o casal não tem descendência masculina ou quando uma filha casada cuida dos pais na velhice. Além disso, o padrão de herança igualitária pode surgir quando a terra não tem mais importância como meio de produção para os filhos, ou quando os pais têm propriedades grandes. O que importa reter aqui é que, se for preciso excluir alguém, as mulheres são as primeiras a serem escolhidas. Elas são sempre consideradas “filhas ou esposas de agricultor”, termo que identifica tanto as que trabalham nos campos como as que não o fazem. Também quando a terra pertence à mulher por herança, o marido é considerado o responsável. Nossa experiência de muitos anos de pesquisa de campo no meio rural catarinense nos mostrou que esse problema quase nunca é citado 183

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espontaneamente, o que dá a falsa impressão de que, para as mulheres, o alijamento da posse da terra é considerado natural e, portanto, aceitável. Porém, em momentos de descontração e não havendo homens presentes, fomos surpreendidas mais de uma vez por manifestações de profunda revolta por parte delas, mesmo de mulheres já idosas. Elas alegam que “trabalharam tanto quanto seus irmãos na terra dos pais”, alegação que só faz sentido se atentarmos para o fato de que a herança está associada ao pagamento dos serviços prestados na terra, tanto assim que os filhos que receberam apoio financeiro para estudar já se sabem de antemão excluídos da partilha dos bens. O alijamento das mulheres significa que seu trabalho não é reconhecido como tal. Devemos lembrar, também, que nem todos os filhos homens herdam terra quando a propriedade é pequena, mas há um mecanismo de compensação, no qual os filhos não-herdeiros recebem apoio para estudar até terem uma profissão, ou os pais lhes dão “um comecinho de vida”, ou seja, capital para começar algum pequeno negócio. A compensação para as mulheres é o dote por ocasião do casamento, que pode ser composto por roupas de cama e mesa para a casa, uma máquina de costura, uma vaca de leite ou uma porca, e a festa do casamento, que tanto pode ser financiada somente pelos pais da noiva, como pelos pais de ambos os cônjuges. É comum que só um ou dois desses itens sejam doados quando os pais são pobres. Também há casos de dotes maiores. Porém, o valor do dote não guarda relação com o valor da terra que as mulheres receberiam caso a partilha fosse igualitária, e as que não se casam não recebem nenhuma compensação por dispensarem o dote. Quando a compensação para os não-herdeiros é feita em dinheiro, em geral as mulheres recebem uma parcela menor que a dos homens. Os arranjos possíveis são muitos, mas ainda há um que vale a pena citar, é quando as mulheres recebem terra e a vendem para os irmãos a um preço menor que o do mercado (Papma, 1992; Woortmann, 1995; Halsema, 1991; Paulilo, 1990; Seyferth, 1985; entre outros).

AGRICULTORA OU ESPOSA DE AGRICULTOR? Se, como observaram Casagrande (1991) e Daboit (1996), as questões feministas começam a inquietar as militantes do MMA, cabe-nos perguntar até que ponto a identidade entre os interesses das mulheres e o da família rural continuará não questionada. Mesmo que a postura inicial seja participar da vida pública lado a lado com os homens, Pinto (1992) nos diz que a participação das mulheres em movimentos sociais não as torna necessariamente feministas, mas modifica sua inserção na rede de poderes de sua comunidade, provocando um efeito transformador. Diz mais: 184

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A presença da mulher, feminista ou não, é modificadora das práticas sociais, quer pela presença em si e seu explícito contraste com a presença dos homens, quer por constituir, pelo menos potencialmente, um canal de aproximação com os movimentos feministas, que tanto pode acontecer por uma mútua procura, como pelo próprio surgimento das indagações que norteiam o feminismo no interior de grupos de mulheres no sindicato, independente de qualquer contato efetivo com o feminismo organizado. (Pinto, 1992, p.143)

Essas idéias encontram apoio no trabalho de Lechat (1996), que mostra que a participação feminina na luta pela reforma agrária por meio do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) abre a possibilidade de questionamento de antigas hierarquias, embora o resultado possa não ser uma maior igualdade. A produção coletiva no MST tem um caráter político e é encarada como tal pelos assentados, mas esta forma de trabalho leva a múltiplas reuniões para que todas as questões sejam discutidas e resolvidas democraticamente. Não existindo mais a hierarquia de poder tradicionalmente presente na produção familiar nem a relação proprietários assalariados, novas relações de poder estão em formação, bem como a resistência a elas. Isto leva a uma situação continuamente conflituosa e potencialmente explosiva, na qual as diferenças tradicionais de gênero, idade e origem étnica estão também presentes e são constantemente manipuladas, o que resulta numa distribuição desigual de poder. (Lechat, 1996, p.107)

Nova confirmação encontramos em Teixeira et al. (1994) que, ao analisarem o comportamento de mulheres assentadas, dizem: Tanto o prestígio social feminino quanto o desenvolvimento de movimentos sociais estão associados a um terceiro elemento, mais englobante, que é a coesão comunitária. Estruturas comunitárias coesas, como as que se observaram no assentamento de Sarandi, apresentam aos indivíduos a possibilidade de se identificarem com unidades sociais mais amplas do que a própria família e exigem deles uma participação centrada (em alguma medida) no interesse da comunidade. Este tipo de estrutura favorece o desenvolvimento de movimentos sociais verticais, e também favorece a elevação do prestígio social das mulheres, ao afrouxar a domesticidade da família que é a base da exclusão social feminina. (Teixeira et al., 1994, p.5)

No questionamento das antigas hierarquias, mesmo quando novas relações assimétricas de poder aparecem, surge lugar para redefinições. As assentadas estão inseridas num espaço privilegiado não só para a reflexão, como também para a ação. O simples fato de não estarem mais isoladas “cada uma em sua casa”, e sim muito mais próximas geograficamente do que sempre estiveram antes, já é um elemento novo e mobilizador. Conversando com os agricultores, é fácil perceber como o MST tem influenciado a busca de alternativas no campo. Nas marchas e acampamentos em frente aos órgãos públicos, pode-se ver a convivência entre militantes do MMC 185

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e do MST. Embora haja divergências entre elas, o que se evidencia pela insistência com que cada uma esclarece a que movimento pertence, a troca de idéias é uma constante. Diante disso, seria inocência pensar que uma maior liberação feminina não entrará em choque com uma organização familiar na qual, tradicionalmente, o papel da mulher foi o da parte subordinada, pelo menos na esfera pública, espaço que foi muito importante para os movimentos feministas, tanto na sua primeira forma, as sufragistas, como na sua segunda, as lutas surgidas a partir dos anos 60. Mais que isso, essa situação é apoiada por instituições de peso como as Igrejas, a Católica entre elas, e órgãos de extensão voltados para o meio rural. Devemos lembrar que é bem recente a modificação do “pátrio poder” em nossa legislação. Somente a Constituição de 1988 considerou ambos os cônjuges igualmente responsáveis pela prole. Mas, mesmo onde a legislação não discrimina as mulheres, como é o caso do nosso código civil, que reza a partilha igual do patrimônio entre os filhos, sejam homens ou mulheres, sua eficácia é pequena na medida em que a autoridade do pai, ao fazer a partilha em vida, força a concordância dos excluídos (Seyferth, 1985). Seria otimismo, também, pensar que as soluções dependeriam apenas de “esclarecimento” e “boa vontade”. É lícito então perguntar: O que poderá acontecer quando a maioria das mulheres rurais começar a desafiar a posição pública subordinada, que permite considerá-las sempre em sintonia com seus maridos? Fala-se aqui em “posição pública” porque, nessa esfera, a exclusão é mais visível: exclusão da herança familiar, discriminação quanto ao acesso aos créditos bancários, exclusão dos sindicatos e das cooperativas, onde só recentemente o nome da esposa é computado na lista de sócios etc. Quanto à esfera doméstica, há mais divergências na literatura sobre o assunto; alguns autores enfatizam a capacidade de negociação das esposas “porta adentro”, mesmo havendo assimetria de poderes, e se dedicam a estudar os fatores que aumentam ou diminuem o poder de barganha feminino (Blanc e Mckinnon, 1990, entre outros). Pode-se perguntar ainda: Com os mesmos direitos que os homens, as mulheres começarão a se divorciar? Poderão reivindicar partilha da propriedade? Que modificações a concessão do estatuto de “produtora rural” vai provocar no direito das esposas? No Brasil, as mulheres são legalmente “sócias” da propriedade. Até dezembro de 1977, quando entrou em cena a lei do divórcio, o regime de casamento mais comum era a comunhão universal de bens, ou seja, todos os bens dos cônjuges, adquiridos antes ou depois da união, passavam a ser comuns. Para fugir a essa regra, era preciso explicitar, por escrito no pacto pré-nupcial, que o regime seria o de separação de bens. A partir de 1977, a forma mais comum passou a ser a de comunhão parcial de bens, que determina que somente o que for adquirido depois do casamento pode ser considerado bem comum. Se os cônjuges nada declararem, fica implícito 186

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que eles aceitam essa terceira. Conversando com as entrevistadas, vimos que se a modificação na lei não é totalmente ignorada por elas, também não é totalmente conhecida. A rigor, os noivos deveriam ser esclarecidos sobre a existência das três opções pelos agentes dos cartórios, mas isso nem sempre acontece. Porém, se encontramos tanto mulheres que sabiam que existem duas formas de comunhão de bens quanto as que pensavam que “casar em comunhão” significava somente comunhão universal, há algo que todas ignoram: que os bens de herança, mesmo recebidos após a união, não são comuns (Art. 269, Inciso I do Código Civil). Isso significa que, se o marido receber terra dos pais, mesmo que isso ocorra quando eles já estão casados, essa terra não é bem comum. A ignorância sobre esta peculiaridade é geral, está presente mesmo entre estudantes de Direito e empregados de cartórios, como pudemos constatar. De início, demos muita importância à existência de três formas de casamento civil e ao pouco esclarecimento sobre o assunto. Porém, percebemos que a figura jurídica da comunhão parcial de bens só adquire significância quando está colocada a perspectiva de separação, haja vista que só foi instituída quando do estabelecimento da lei do divórcio. Para a mulher rural, separar-se é uma possibilidade remota mesmo nos dias de hoje. Resta saber se continuará sendo assim. Seria a busca por independência feminina no meio rural incompatível com o casamento? Com algumas formas, seguramente a resposta é sim. Resta saber o quanto o patriarcalismo rural é responsável pela manutenção de uma taxa de uniões estáveis maior no meio rural que no urbano. Chegamos assim ao objetivo de nosso trabalho. Partimos do pressuposto de que, ao participar de movimentos coletivos feministas ou não, as mulheres tendem a questionar sua posição social subordinada. Nas entrevistas, com mulheres militantes e não militantes, procuramos perceber se esses questionamentos de gênero estavam pondo em xeque a identidade entre os interesses femininos e os dos outros membros da família. Antes de continuarmos, porém, é preciso fazer uma distinção interna fundamental entre o que chamamos de “questões de gênero” e, para isso, vamos retomar as reivindicações das trabalhadoras rurais do início da década de 1990. Em março de 1991, houve uma Caravana das Trabalhadoras Rurais a Brasília, da qual participaram cerca de mil mulheres, provenientes de dezesseis estados diferentes. Teixeira et al. (1994) classificaram as oito reivindicações apresentadas por elas em dois tipos: as de natureza classista e as de gênero. No primeiro caso estariam: pagamento de aposentadorias, retirada da correção monetária no crédito de emergência e a liberação de crédito aos assentados, e o assentamento dos acampados. A exigência de regulamentação da reforma agrária as autoras consideraram de caráter impreciso. Como reivindicações de gênero teríamos: licença-maternidade, garantia de creches e reconhecimento da profissão de trabalhadora rural. 187

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Como se vê, essas questões de gênero não têm por que não receber o apoio masculino, pois beneficiam toda a família. Mas, como já dissemos, o problema que mais nos interessa é o não acesso à terra, e essa é uma questão que afeta de maneira muito diferente homens e mulheres. Se, ao analisarmos as reivindicações do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais que, naquele momento, era também porta-voz de outros grupos de mulheres rurais militantes, encontramos dois tipos de reivindicação, as de classe e as de gênero. Para fins deste estudo, temos que considerar três tipos, pois as de gênero devem ser subdivididas em: as que não entram em confronto com a família patriarcal e as que entram. Pinto (1992, p.138) nos diz que os indivíduos ou grupos submetidos a múltiplas exclusões “escolhem” suas bandeiras de luta. No caso das mulheres rurais, essa escolha é ainda mais pertinente porque, para levar adiante as reivindicações de classe, uma imagem da família rural como um todo coeso é muito mais eficiente que uma imagem de conflito. Há, não só na cultura brasileira, mas na de muitos países, uma imagem idílica do rural, no sentido de pensá-lo como um lugar privilegiado para a guarda de valores, pelo menos idealmente, consagrados, tais como respeito à família, pouca liberdade sexual, educação severa dos filhos, sinceridade e mesmo inocência derivadas do contato com a natureza. Essa imagem traz respaldo popular para as lutas que envolvem os agricultores familiares. Em levantamento que fizemos sobre organizações de mulheres na América Latina (Paulilo et al., 1999), constatamos que, com raras exceções, esses movimentos reforçam o papel tradicional de esposa e mãe, e existe um forte atrelamento entre eles e instituições conservadoras, como a Igreja Católica e o Estado. Constatamos também a influência de órgãos oficiais e ONGs, nacionais e internacionais, com linhas de ação fortemente desenvolvimentistas, mas sempre tendo como objeto a família rural como um todo. Entre as raras exceções está a luta das mulheres rurais brasileiras. Como diz Stephen (1996), em concordância com Alvarez (1990): A razão principal pela qual uma atenção formal aos direitos das mulheres no Brasil resultou em mudanças concretas está claramente associada à presença de um forte movimento de mulheres. Uma ampla variedade de organizações de mulheres de base surgiu nos anos 70 e 80 neste País como parte do maior, mais diverso e, provavelmente, mais bem-sucedido movimento de mulheres de toda a América Latina. (Stephen, 1996, p.33-4)

Deere e Léon (1999) dizem que as garantias constitucionais que o movimento de mulheres conseguiu no Brasil constituem-se em fato único na América Latina. Citam como exemplo a inclusão das mulheres como beneficiárias da reforma agrária e a possibilidade de um título conjunto de posse da terra para marido e mulher. 188

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É essa especificidade histórica que nos levou a escolher os movimentos de mulheres rurais como objeto de estudo.3 Interessava-nos, principalmente, procurar diferenças entre o discurso das mulheres do MMC e o das líderes de outros movimentos, tendo como contraponto o discurso das não militantes. Infelizmente, não foi possível entrevistarmos mulheres rurais do Brasil todo, tendo a investigação se concentrado nos três estados do Sul, especialmente em Santa Catarina, onde nossa proximidade com os movimentos e nosso conhecimento do meio rural é maior. A freqüência, mesmo que esporádica, a encontros nacionais de agricultoras nos permite levantar a hipótese de que as conclusões a que chegamos guardam semelhança com o que ocorre no restante do país. As entrevistas realizadas para esta pesquisa4 nos confirmaram o que sempre observamos antes, ou seja, que a questão do alijamento das mulheres da terra por ocasião da partilha da propriedade por herança é uma questão delicada. Tudo o que se consegue é que as mulheres digam, com timidez, que elas deveriam ter os mesmos direitos. O próprio tom de voz é o de quem confessa uma heresia. Mesmo as mais militantes não reivindicam para seu movimento essa bandeira de luta. Uma líder do MMC, ao ser perguntada sobre isso, disse que daria apenas sua própria opinião: “Não põe o movimento aí, é particular”. Trazer à baila o assunto causa constrangimento. Tentamos então abordá-lo por aproximações sucessivas. Nessas aproximações, discutir a instituição família é fundamental. Uma forma de desigualdade da qual as mulheres falam livremente é a repressão sexual. Frases como as seguintes mostram como o controle sobre o comportamento feminino é maior que sobre o masculino. Naquele tempo, ir num baile, só com os irmãos ou com os pais, com um tio, assim uma pessoa encarregada. Sozinha não ia (Agricultora). [sic] Sempre que tinha um namorado, tinha mais um (espiando) (Agricultora). [sic] Os pais, a maioria dos pais, davam mais liberdade pros filhos porque era rapaz. A moça, porque era moça, então daí era mais, assim, mandada (Agricultora). [sic]

As mulheres não são reprimidas apenas com castigos, pois a exposição ao ridículo também é um instrumento eficaz de controle, bem como o costume de exagerar o que de fato ocorreu. Por pouco, se fica “malfalada”. Tem muito essa cultura de que o homem pode tudo e a mulher, não. A mulher é mais restrita e o homem tem mais autonomia. A partir do momento que as mu3

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Agradecemos ao CNPq que, em agosto de 1999, concedeu-nos uma bolsa de pesquisa, e uma de Iniciação Científica para a aluna Elaine Müller, o que nos permitiu continuar investigando. Participaram das entrevistas dois bolsistas de Iniciação Científica, Elaine Müller e Ivandro C. Valdameri, e uma aluna do Curso de Ciências Sociais/UFSC, Valdete Boni. Não é preciso dizer que sem sua valiosa colaboração, muito pouco poderia ter sido feito.

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lheres infringem as normas, elas são ridicularizadas e o efeito [repressor] é gerado (Presidente do sindicato). [sic] A mulher lá toma cerveja? Até desconfia mal, né? Em vez de seria o certo. Meu marido muitas vezes ele me diz: Por que tu não vai lá, não toma uma cerveja? Daí eu logo dou a resposta: Olha, tu diz, mas tem outros que fica olhando porque a mulher vai tomar cerveja... Já dizem que ela tonteou, nem que não tomou ainda... (Agricultora). [sic]

Fica claro nesta última fala que a repressão do grupo pode ser superior à do marido. Ele também fica exposto ao ridículo quando sua mulher desafia as normas. Por isso, as militantes consideram que as ações em grupo são mais eficazes, pois se muitas mulheres agirem do mesmo modo, atitudes antes transgressoras passam a ser consideradas normais. Associar a independência de uma mulher a comportamento sexual permissivo é fato comum. Uma militante do MMA nos disse que: Movimento era uma palavra que trazia malícia, porque quando a vaca está no cio, se diz que ela “está em movimento”. Ficava chato falar em movimento de mulheres. Dessa vez, porém, as mulheres não cederam e insistiram na denominação Movimento de Mulheres Agricultoras. Segundo as entrevistadas, é impossível começar a militar sem modificar o casamento, porém, embora possam provocar separações, as modificações também podem tornar o relacionamento conjugal melhor. Elas não consideram que haja algo intrinsecamente repressor nos homens, e nem que eles estejam felizes com a desigualdade; o que há são valores que “vêm do berço”, de uma “raiz de quinhentos anos”, mas que podem ser superados. Para elas, o marido acabará por perceber que se a mulher se tornou menos submissa, tornou-se muito mais companheira. Para uma das entrevistadas, a maior modificação foi com relação aos filhos que, quando ela sai, “têm que se virar sozinhos”. Mas isso não é necessariamente ruim, porque “joga mais responsabilidade para eles”. Mas nem tudo tem solução nesse sentido, pois elas admitem que é quase impossível sair de casa tendo filhos muito pequenos. Apesar da confiança que as militantes têm de que, uma vez alcançadas as conquistas, fica fácil ver que ninguém da família está perdendo com isso, chamam atenção para falsas vitórias, aquelas que, na verdade, não trazem uma independência real. [em] Essas grandes cooperativas tradicionais, é considerado homem e mulher como sócio, agora se vai para uma assembléia, mulher não tem direito a voto, só o homem tem direito a voto. Se a gente for olhar o financiamento agrícola, onde o homem contrai o financiamento, por exemplo, sem a assinatura da mulher o homem não pode contrair esse financiamento. Agora, na hora de sacar o dinheiro, tem que ser o homem que vai lá retirar (Presidente de sindicato). [sic]

Se há conquistas ilusórias, como as citadas, há as verdadeiras. Qualquer mulher rural, militante ou não, jovem ou velha, casada, solteira, separada, 190

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ou o que quer que seja, considera o acesso aos direitos trabalhistas uma conquista. O sindicalismo, juntamente com o MMA inclusive, embandeirou muitas lutas porque a mulher, até 92, 93, ela não era reconhecida como profissional na agricultura. Ela era dependente do marido. Então aí se desencadeou toda uma luta, uma organização do MMA e dos sindicatos combativos para que a mulher também conquistasse o seu espaço na questão previdenciária e na sociedade, inclusive. Então houve essa criação, inclusive do MMA, e foi uma arrancada extraordinária nesse sentido, tanto é que conquistamos a aposentadoria aos 55 anos, conquistamos o salário-maternidade, o auxílio-acidente de trabalho que para a mulher não existia, porque a mulher não era profissional na agricultura e se a gente for olhar, a mulher sempre desempenhou o papel de agricultora, lá do lado, trabalhando palmo a palmo com o homem, só que na hora de reconhecer seus direitos, não existia isso (Presidente de sindicato). [sic]

A busca dos direitos trabalhistas levou a um aumento bastante significativo do número tanto de mulheres associadas ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, como daquelas que têm todos seus documentos em ordem. Para quem pesquisa o meio rural brasileiro há muitos anos, esse é um fato surpreendente. Houve uma adesão muito grande das mulheres à idéia de que são “produtoras rurais”. Mas é preciso não confundir sindicalização com militância política. Em pesquisa que realizamos, em 1995, entre as produtoras de leite do Vale do Itajaí/SC,5 percebemos que, na imensa maioria dos casos, a sindicalização foi apenas uma maneira de as mulheres terem acesso aos direitos trabalhistas, não implicando tal fato em nenhuma outra alteração do seu comportamento tradicional. Se relermos a última citação, pode nos causar estranheza o fato de a presidente do sindicato fazer questão de ressaltar a participação do MMA, hoje MMC, nas lutas trabalhistas, deixando claro que a aliança entre mulheres sindicalistas e mulheres do MMC não pode ser tomada como um pressuposto, nem que haja uma identidade necessária entre os dois movimentos. Nas entrevistas isso fica bem claro, as militantes fazem questão de declarar a que movimento pertencem e fazem referência a pontos não comuns. O mesmo se aplica às mulheres do MST. Para as sindicalistas, o importante são as questões trabalhistas. As participantes do MST têm uma postura de classe muito nítida e lutam pela terra. É entre as militantes do MMC que as questões de gênero afloram. A insistência na demarcação das diferenças não se deve a alguma forma de competição, mas é uma demonstração clara de que não é simples cruzar questões de gênero e classe, nem na prática, nem em teoria. 5

“A ‘agrofemindustrialização’ do leite em Santa Catarina”. Relatório de pesquisa, mimeo. Essa pesquisa foi financiada pelo CNPq e contou com a participação das bolsistas Alessandra B. Di Grande e Marineide M. Silva.

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Outra dificuldade interfere na análise: o fato de que as mulheres militantes, de qualquer um dos movimentos, são, com raríssimas exceções, casadas. Mesmo quando cuidam sozinhas da propriedade ou são viúvas, ou o marido trabalha em outro lugar ou, ainda, foram abandonadas. O meio rural não é um bom lugar para as solteiras. Rodrigues (1993), na sua leitura antropológica do celibato laico, camponês e feminino mostra como essa condição é constituída por “recusas, retenções e negações”. A solteira não tem direito a uma vida sexual nem a uma casa própria. Fica com os pais até que morram, depois mora de favor com irmãs ou cunhadas, ajudando nas lidas da casa, da roça e a cuidar dos sobrinhos. Os conventos foram uma possibilidade nas gerações passadas. Agora as solteiras preferem as cidades, onde podem trabalhar por salário. Por menos que tenham estudado ou adquirido uma profissão, sempre podem ser empregadas domésticas. Quando nosso objeto de estudo são mulheres rurais adultas, podemos ter certeza que são também casadas e que dificilmente pensariam sua vida fora do casamento, pois o único treinamento profissional que recebem é o de ser agricultora, e só o serão pelo casamento. Esse fato explica, em parte, porque a exclusão das mulheres da herança em terra é pouco citado. As que casaram com proprietários ou com jovens que provavelmente herdarão terra no futuro, podem exercer as atividades de agricultora. As que casaram com homens que nada possuem vêem seus maridos como tão deserdados quanto elas. Seria importante ouvir as solteiras, porém não as jovens (que ainda podem casar ou arrumar um emprego urbano) e sim as que não têm mais perspectivas de se casar ou deixar o campo, mas essas dificilmente fazem parte dos movimentos de agricultoras.

O DIFÍCIL CRUZAMENTO ENTRE CLASSE E GÊNERO A luta das mulheres para serem consideradas “produtoras rurais” não significa necessariamente uma busca de mudança nas relações entre marido e mulher, do mesmo modo que, como mostramos no início deste texto, o trabalho fora de casa não torna as mulheres automaticamente mais independentes de seus maridos e atuantes politicamente. Mesmo uma forte consciência das desigualdades de classe não leva, por adição, a uma preocupação semelhante com a desigualdade entre os gêneros. Na difícil questão do cruzamento entre as categorias classe e gênero, o trabalho de Joan Scott (1988) é fundamental. Essa historiadora feminista diz que, se nos mantivermos em uma postura objetivista, ou seja, se tomarmos classe e gênero como “coisas”, não seremos capazes de nos aperceber das dificuldades de teorizarmos sobre o que significa ser mulher e trabalhadora. Temos de levar em conta que classe e gênero são construções, representações. 192

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Assim sendo, se, historicamente, as mulheres sempre fizeram parte da classe trabalhadora e, portanto, gênero e classe tomados como fenômenos naturais andam juntos, na história das idéias essas duas representações se excluem. Masculino/feminino não pode ser confundido com macho/fêmea, e a construção do que é o universo do trabalho e do que são os direitos trabalhistas, e mesmo os direitos universais trazem, imbricada em suas origens iluministas, uma visão masculina do mundo, na qual as mulheres aparecem como subordinadas. O conceito de “classe trabalhadora” como categoria universal carrega essa mesma marca original. A invocação dos direitos humanos universais foi realizada no bojo de uma construção masculina de propriedade e de política racional. A classe, afinal, foi apresentada como uma categoria universal embora dependa de uma construção masculina. Como resultado, foi quase inevitável que os homens representassem a classe trabalhadora. Para as mulheres, restaram duas representações possíveis. Elas poderiam ser um exemplo específico da experiência geral de classe e então não ser necessário singularizá-las para tratá-las diferentemente; assumiu-se que elas estavam incluídas em qualquer discussão sobre a classe trabalhadora como um todo. Ou poderiam ser uma exceção problemática, possuindo necessidades e interesses particulares em detrimento da classe política, opondo-se a que os homens usassem o dinheiro da casa para pagar taxas sindicais, demandando diferentes tipos de estratégias nas lutas e insistindo em manter filiações religiosas na era do socialismo secular. Ambas as representações estão evidenciadas na história dos movimentos trabalhistas e na sua história escrita e elas nos ajudam a localizar as razões da invisibilidade das mulheres na construção da classe trabalhadora. (Scott, 1988, p.63-4, tradução livre nossa)

A percepção de que há duas representações diferentes em jogo leva à hipótese de que as arestas entre os diferentes movimentos de mulheres não são questões menores, resultado de falta de diálogo, competição por espaços ou opção por estratégias não similares. Há uma diferença profunda nas representações sobre classe e gênero. Para as militantes que estão sob forte influência das lutas trabalhistas ou das idéias marxistas, como é o caso das sindicalistas e das militantes do MST, a concepção de gênero se subordina à de classe, e elas se encaixam na primeira possibilidade explicitada por Joan Scott, que é a de ver a mulher rural como um exemplo específico do fenômeno geral das classes sociais. Para as militantes do MMC, as mulheres são exceções, cujas especificidades merecem considerações à parte. Essa mesma diferença está na raiz dos embates atuais entre o “feminismo da igualdade” e “feminismo da diferença” (Scott, 2001; Oliveira, 1992; Mouffe, 1993). O que é mais visível nesse embate são as políticas de cotas. Para as defensoras do primeiro, as cotas ferem os princípios democráticos que igualam homens e mulheres. Para as que se aliam ao segundo, só uma política diferenciada entre os dois sexos permitiria cobrir o hiato histórico existente entre os direitos de um e de outro. 193

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É evidente que essas posturas não resultam de escolhas racionais e não são percebidas com nitidez pelas militantes, principalmente porque não derivam de concepções acabadas, mas de idéias que estão sendo construídas na prática do dia-a-dia, prática que se por um lado influencia, por outro também é influenciada pelas diferentes concepções de classe e gênero. Enquanto as sindicalistas e as mulheres de MST lutam no espaço público, que é considerado um espaço masculino, as do MMC politizam seu cotidiano. Outro trabalho inspirador é o livro de James Scott (1990), Domination and the Arts of Resistance. O autor, ao tentar compreender a conduta política geralmente fugidia dos grupos subordinados, cunha o conceito de hidden transcripts, que traduzimos, pelo menos provisoriamente, como “transcrições ocultas”. Essas transcrições se opõem ao que o autor denomina public transcripts, para nós “transcrições públicas”, explicando que o adjetivo “públicas” se refere a ações que são admitidas, ou confessadas, abertamente pelos subordinados frente aos seus dominadores, e que o termo “transcrições” é usado em seu sentido jurídico de “registros completos do que foi dito”. As “transcrições ocultas” são os discursos pronunciados offstage, ou seja, entre os dominados e longe da observação dos dominadores. Esses discursos não contêm só falas, mas também gestos e práticas (p.2-5). Muitas vezes, o discurso oculto é verbalizado na forma de uma “explosão”, isto é, de uma reação espontânea e inesperada. Segundo o autor, inesperada sim, mas espontânea nem tanto, na medida em que a maneira alternativa e contestatória de entender as relações de poder é elaborada e “ensaiada” em espaços próprios dos dominados. O contato com a obra de James Scott (1990) e as entrevistas que realizamos nos levaram a pensar o MMC como um lugar de elaboração de um discurso feminista, contestatório da visão masculina do mundo. É a necessidade de conversar livremente entre seus pares, sem inibições ou repressões, que reforça a existência de um movimento que, mesmo quando defende posições semelhantes às de outros movimentos de mulheres, defende-as de seu próprio jeito. As mulheres que elegeram o espaço público e masculino como o lugar privilegiado para se fazer política vêem com reservas o que consideram radicalismo. Deveria ser trabalhado a questão de gênero dentro da família e aí é complicado. Inclusive acho que até nós do movimento sindical na área rural, a gente tem falhado um pouco nisso. Eu hoje defendo, eu até estou militante do MMA, onde que o MMA tem trabalhado a questão da mulher especificamente. Hoje dentro do movimento sindical eu já vejo um pouquinho diferente a questão, eu vejo tratar a questão de gênero em família... não a mulher separada... Inclusive aqui nós temos tratado a questão de gênero por dentro do sindicato, como família.... Se a gente for tratar radicalmente a questão da mulher eu creio que vai ter bem mais separações. Então teria que arranjar fórmulas de tratar a questão de gênero, mas na família, não a mulher separado (Presidente do sindicato). [sic]

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Nessa visão de que homens e mulheres têm sempre que “lutar” juntos, há o medo de que as mulheres dividam “a” luta, numa pressuposição de que só há uma luta que vale a pena: a de classes. Há também a preocupação de que as participantes formem um “gueto” e acabem presas dentro dele. Coube a Pinto (1992, p.133) reverter a visão marcadamente negativa dessa forma de grupamento. Para ela, “o gueto não pode ser entendido simplesmente como marca de retraimento, medo de expor-se ou reafirmação da exclusão. É também, e talvez principalmente, regido pelo princípio de prazer, de pertinência, da consciência de estar entre iguais”. “Estar entre iguais” pode ser um momento privilegiado para perceber que problemas, que até então eram vividos como pessoais, são, na verdade, sociais. Por tudo o que foi dito anteriormente, torna-se difícil acreditar em uma compatibilidade tranqüila entre movimentos mais centrados nas questões de classe e os centrados em gênero. Mesmo que se possa afirmar, como o fazem autoras citadas neste trabalho, que a participação das mulheres nas esferas antes consideradas masculinas leva a um questionamento de gênero, isso não elimina a necessidade de escolha de uma ou outra bandeira de luta. O MMC, antigo MMA, é visto, com freqüência, por militantes dos outros dois movimentos como apenas uma maneira de as mulheres “começarem a sair de casa”. Como disse uma dirigente sindical “... e a partir daí, lógico que as mulheres não podem ficar específico no MMA, têm que ir ocupando outros espaços” (Boni, 2002, p.10). Para as militantes dos movimentos autônomos, não é tão “lógico” assim que tenham de ocupar outros espaços, embora muitas o façam. Não é difícil entender o porquê dessa diferença se atentarmos para o lugar da política nos dois tipos de movimento. Enquanto as mulheres do MMC politizam o cotidiano à semelhança das feministas, sindicatos e MST têm maior proximidade com os partidos políticos, especialmente com o Partido dos Trabalhadores. Pinto (1992, p.140) explicita esse dilema dizendo que, no Brasil, “os partidos políticos tendem a reivindicar o monopólio como canal de representação entre a sociedade civil e o Estado”, com isso “onde a chancela de um partido é condição necessária para uma candidatura, os partidos, os movimentos sociais e, especialmente, os movimentos de mulheres ou feministas não têm sempre uma convivência tranqüila”. Ao defender a idéia de que homens e mulheres devem discutir juntos os problemas que afligem a mulher rural, pressupõe-se uma conversa entre iguais, colocando-se o espaço do sindicato ou dos encontros do MST como um lugar democrático. Mas se atentarmos para a fala de uma das entrevistadas, vamos perceber que há uma diferença importante entre “falar”, e isso até pode, e “ser escutada”, o que é bem mais difícil. Uma coisa também que eu percebia..., talvez eu esteja falando uma coisa que esteja errada, mas o que eu sentia era isso: que a gente era menos inteligente que o

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homem. Quando tinha uma decisão pra fazer alguma coisa, pra construir alguma coisa, a opinião da gente não valia... As opiniões, as idéias dos homens, deles, do pai, do meu irmão, do Valdir... a opinião deles valia mais. Parecia que ia dar certo, se fizesse o que eles dissessem ia dar certo. Se fizesse o que a gente dissesse, não ia dar certo. Então, a inteligência da gente era podada também (Agricultora). [sic]

Séculos de silêncio não se volatilizam tão facilmente. Espaço público e vergonha andam juntos na educação feminina. As entrevistadas falam do “medo de falar bobagem”, pois sabem muito bem como o ridículo é uma arma poderosa. A poeta Adélia Prado, que canta sem pejo as mulheres comuns, diz com propriedade: Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado prá mulher, esta espécie ainda envergonhada.6

“Esta espécie ainda envergonhada” quer, agora, aprender o caminho do espaço público e muitas mulheres estão seguindo os passos dos homens, tradicionais conhecedores dessas veredas. As mulheres do MMC decidiramse por um aprendizado diferente que, ao que parece, não as levará na mesma direção. Na primeira versão deste artigo, em 2002, lançamos a hipótese de que os movimentos autônomos de mulheres possuíam um potencial, pouco aparente a princípio, de romper com o estabelecido. Possuíam uma “radicalidade própria”, como quer Céli Pinto (1992, p.132), no sentido em que “corta verticalmente todas as práticas e constitui sujeito a partir do reconhecimento e presença do corpo da mulher, a marca irredutível de sua condição”. Agora, depois da destruição de um laboratório de plantas da Aracruz Celulose no dia 8 de março de 2006 por cerca de 2 mil mulheres lideradas pelo MMC, fica mais fácil pensar sobre isso. Para o feminismo, dada a importância à cultura do fazer frente a todos os essencialismos que justificavam biologicamente a condição subalterna das mulheres, tornou-se difícil lidar com “o corpo”. Para as mulheres do MMC, não. Elas colocam, sem pejo, no corpo sua especificidade. Nesse sentido, estão muito próximas do ecofeminismo defendido por Vandana Shiva (1993), mesmo que muitas não o conheçam. Em poucas palavras, o ecofeminismo defende a idéia de que há uma ligação natural entre as mulheres e a terra, ou seja, as mulheres estariam mais próximas da natureza que os homens.7 Na separação que a cultura branca ocidental fez entre natureza e razão, em que a última deve predominar sobre a primeira, coube à 6

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Trecho do poema “Com licença poética”, publicado no livro Bagagem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. Para uma análise consistente dos riscos do ecofeminismo, ver Garcia (1999).

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natureza, da qual as mulheres estavam mais próximas, o papel de dominada, de coadjuvante da história humana. Foi o surgimento das preocupações ambientalistas que questionou essa oposição assimétrica, porém foi o ecofeminismo que aceitou e deu um novo significado às diferenças biológicas. Em todos os encontros do MMC dos quais participamos, a idéia de que cabe às mulheres “dar a vida”, as instrumentaliza para lutar pela “vida na terra”, daí a se posicionarem contra tudo o que consideram “estéril”, como as plantas cujas sementes não reproduzem, os transgênicos e os reflorestamentos que, segundo elas, secam as águas e impedem a agricultura. Uma imagem emblemática dessa postura foi a presença de agricultoras grávidas, que traziam a barriga exposta e coberta por sementes coladas, em um desses encontros. Os sindicalistas e o MST colocam nas relações de classe as causas da opressão que as mulheres sentem ainda de maneira difusa, e lhes propõem como solução mudar a sociedade lado a lado com seus companheiros. Ao perguntarmos a uma líder do MST sobre a proporção de homens e mulheres na direção nacional do movimento, recebemos como resposta uma outra pergunta: “E o que isso importa se somos (homens e mulheres) iguais?”. Diferentemente, as mulheres do MMC, ao se reunirem e conversarem entre si, não estão se comportando como alunas aplicadas que aprendem, com os homens, sobre movimentos trabalhistas e teoria marxista, mas estão dando vazão a raivas e angústias incrustadas na sua alma. Sem uma explicação já pronta, transmitida por jornais, boletins e cartilhas, e poupadas da vergonha secular que as faz se sentirem incapazes frente aos homens, elas estão mais livres para construir explicações nas quais as relações de gênero têm papel fundamental, pois essas relações são para elas mais visíveis no dia-a-dia que suas relações com o Estado ou órgãos e espaços públicos. Em outras palavras, o que distingue o MMC dos outros dois movimentos estudados, sindicalistas e mulheres do MST, é sua ênfase em questões consideradas “domésticas” pelos dois últimos. Essa ênfase se reflete tanto na forma de organização interna, menos hierárquica, menos institucionalizada e mais sexista, quanto no caráter de suas manifestações públicas, feitas menos em nome de uma “classe” e mais em função do que afeta direta e cotidianamente as mulheres rurais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Voltando à questão da terra e do matrimônio, foi uma importante conquista para as mulheres serem consideradas “produtoras rurais”, mas essa conquista as obriga ao casamento e, mais que isso, ao casamento com um proprietário, se não fizerem parte do MST. Como não se casar ou casar com quem não possui terra sempre foi visto como uma condenação, essa 197

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obrigação se torna um fardo leve e desejado. Somente quando as mulheres começarem a questionar o casamento tradicional é que questionarão o fato de ele ser a única via para a profissão de agricultora. As entrevistas que fizemos mostram que a questão da não-herança da terra é ainda um tabu entre as mulheres rurais. Apenas as ligadas ao MST “tocam no assunto”, mas somente no sentido de reivindicar terra nos assentamentos para as solteiras. Pedir igualdade de gênero nas políticas públicas parece ser mais fácil que enfrentar a questão dentro da família. Sem dúvida, a oposição a grupos que não são próximos afetivamente e que, portanto, podem ser caracterizados como “inimigos”, trazem menos desgaste emocional que opor-se a maridos, pais, sogros, irmãos e filhos homens. Ao entrevistarmos uma líder nacional do MST, ela caracterizou os diferentes movimentos de acordo com seus temas principais. Mulheres do MST: reforma agrária; sindicalistas: agricultura familiar; e movimentos autônomos de mulheres: saúde. Nossas pesquisas confirmam essa classificação, acrescentando também “educação” como uma das metas dos movimentos autônomos. As preocupações dos dois primeiros grupos são comuns a homens e mulheres, enquanto “saúde” e “educação” sempre foram considerados “assunto de mulher” e, portanto, hierarquicamente inferiores. Porém, é a preocupação com a saúde e com a alimentação da família que está levando o MMC a posturas radicais, algumas públicas (e muito “publicizadas”) contra as sementes híbridas, os transgênicos, os agrotóxicos e o reflorestamento. De que há duas tendências feministas fortes poucos duvidam: o feminismo da igualdade e o da diferença. As desavenças ou as querelles des femmes, como diz Joan Scott (2001), entre os dois já se tornaram públicas. Há, ainda, uma outra maneira de classificar as diferenças que, embora não siga o mesmo critério da anterior, guarda semelhanças no sentido de trazer impasses: feminismo voltado para a redistribuição e feminismo voltado para o reconhecimento. Para Nancy Fraser (2002), o primeiro se refere à questão de classe, e o segundo, às questões de status, de valorização do que é atribuído ao feminino. Um não é o mero reflexo do outro, porém, para a autora, há possibilidade de conciliação pela concepção de justiça “bidimensional”, que incorporaria tanto a distribuição desigual de riqueza quanto a de reconhecimento e, assim sendo, seria extensiva às questões de “raça”, etnia, sexualidade, nacionalidade e religião. Não resta dúvida de que é uma perspectiva sedutora se não levarmos em conta que ela se assenta no princípio de “paridade da participação”, que requer duas condições inexistentes historicamente que são, segundo Fraser (2002, p.67), “primeiramente, a distribuição de recursos precisa ser feita de tal forma que assegure independência e ‘voz’ aos participantes... a segunda condição é a ‘inter-subjetividade’, que requer dos modelos institucionalizados de valores culturais que expressem o mesmo respeito a todos os participan198

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tes...”. Embora a conciliação proposta nos pareça distante da realidade que vivemos, a autora acentua um ponto que para nós é muito importante, ou seja, a impossibilidade de se passar de questões de classe para questões de gênero, e vice-versa, simplesmente adicionando umas às outras: “Não é apenas uma questão de simplesmente continuar agregando, como se pudéssemos adicionar a política de redistribuição à política de reconhecimento” (p.74). Assumindo a dificuldade da conciliação, que nega o pressuposto recorrente, entre militantes e intelectuais, de que não importa por onde as mulheres comecem a questionar, se discutindo gênero ou classe, porque uma preocupação leva à outra, insistimos que é preciso explicitar diferenças, que só aparentemente são superficiais, para que haja possibilidade de um diálogo mais livre de preconceitos. Arriscamos propor que as reivindicações específicas e o comportamento das militantes dos diferentes movimentos de mulheres rurais, talvez, possam usufruir de uma convivência mais frutífera se houver uma aceitação da luta das mulheres como uma “multiplicidade”, isto é, convivência de diferentes organizações e, mais que isso, se as diferenças mais profundas não forem encobertas pelo manto de uma “igualdade de gênero”, que engloba visões diferentes e até conflitantes. As tentativas de compatibilização, por mais que sejam desejadas e tidas como meta a ser atingida, podem significar dominação e futuras dissidências.

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9 A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA LUTA PELA TERRA: DILEMAS E CONQUISTAS Sônia Fátima Schwendler

A minha esposa não era capaz de falar com pessoa estranha. Hoje, sem ter estudo, ela é uma líder, muito desenvolvida com o trabalho da luta. A luta é uma escola. (Depoimento de um assentado – Assentamento São Joaquim)

INTRODUÇÃO

A luta pela terra no Brasil, marcada ao longo da história pelas contradições de classe, tem trazido para a cena histórica sujeitos excluídos de diversos direitos, que começaram a se organizar em movimentos sociais de resistência. Dentre os diversos movimentos sociais que têm marcado a questão agrária no Brasil, destaca-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), surgido oficialmente em 1984, fruto de uma história da distribuição desigual de terras e de um modelo econômico de modernização da agricultura, que concentrou a terra, expropriou e expulsou os trabalhadores do campo, reduziu o trabalho assalariado com a introdução de máquinas e insumos modernos, agravando as condições de empobrecimento. Esse movimento se constitui também por um processo de percepção da exclusão gerada historicamente, da construção de uma identidade coletiva e de uma consciência do direito, produzidos em espaços coletivos, como os sindicatos combativos, as Comunidades Eclesiais de Base, a Comissão Pastoral da Terra, a partir da matriz do marxismo,1 da Teologia da Libertação e da Educação Popular. 1

As organizações que estiveram na gênese do MST possuem uma forte influência marxista que demarcou a luta de classes no campo.

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A participação da mulher na luta pela terra

O MST e outros movimentos sociais de campo se inserem em um movimento maior, que questiona a base de produção da sociedade capitalista, tendo como perspectiva a transformação da sociedade. Constitui-se em um movimento de cunho classista, que busca lutar contra a principal contradição do modelo gerador da exclusão e da resistência. Para Stedile e Fernandes (2005), o MST caracteriza-se como um movimento popular, em que todo mundo pode entrar, que abarca a dimensão sindical, no sentido corporativo, e agrega o elemento político à luta pela terra. Segundo os autores, “o MST só conseguiu sobreviver porque conseguiu casar os interesses particulares, corporativos, com interesses de classe. ... Desde o começo, sabíamos que não estávamos lutando contra o grileiro. Estávamos lutando contra uma classe, a dos latifundiários” (p.36). A luta pela terra, ao mesmo tempo que coloca em cena sujeitos historicamente excluídos de diversos direitos formando uma identidade coletiva – a de sem-terra,2 produzida a partir de uma consciência de classe trabalhadora –, gera também a necessidade de recriação das identidades de gênero e do papel da mulher, cuja participação na luta social, desde a constituição do MST, tem posto em movimento práticas político-organizativas que recriam os espaços e as relações de gênero. Importa-nos neste artigo discutir a condição da participação feminina no processo de luta pela terra, os dilemas que são enfrentados a partir da atuação da mulher na esfera pública, bem como as conquistas que podem ser apontadas ao se compreender a categoria gênero, articulada com a categoria classe, como um dos eixos fundamentais das relações sociais, em profunda transformação no processo da luta social.

A CONSTRUÇÃO DA LUTA PELA TERRA Desde sua origem, o MST tem se espacializado na luta, tendo como sua principal estratégia a ocupação da terra, o que vem possibilitando a conquista de frações do território, os assentamentos, e, por conseguinte, a sua territorialização. Os conceitos de espacialização e territorialização, cunhados por Fernandes (1996), são importantes para entendermos tanto o processo de construção da “identidade sem-terra”, como classe social que se põe em luta para a transformação das condições materiais e simbólicas da produção da existência, como da construção da identidade de gênero, de “mulher sem-terra”, ao questionar e reconstruir, a partir da sua inserção 2

O termo “sem-terra” significa também uma identidade de classe social construída na luta pela terra. Desse modo, toda vez que nos referirmos à identidade construída na luta social, utilizaremos a expressão sem-terra. Ver Caldart, 2000.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

em diferentes espaços, a condição histórica de participação da mulher na sociedade. A análise de Franco García e Thomaz Júnior (2002, p.23) vem corroborar essa reflexão quando os autores afirmam que “a territorialização do processo de luta se concretiza através da produção de espaços de resistência à exclusão e da construção de relações sociais que implicam relações de gênero diferenciadas”. Para discutirmos esse processo, recorremos à análise de Fernandes (1996) sobre a multidimensionalidade do espaço de socialização política construída pela práxis dos trabalhadores em luta e das instituições envolvidas no interior dos processos de espacialização e territorialização. Essa socialização política é construída na articulação dialética de múltiplos espaços, como o comunicativo, em que os sujeitos por meio da educação popular refazem sua forma de pensar e ver o mundo; o interativo, que se constrói na organicidade do movimento social, permitindo a recriação de experiências e do próprio conhecimento; e o espaço de resistência e luta, que é construído quando o movimento social traz a público sua situação, enfrentando o Estado e o latifúndio, por meio da ocupação e da constituição do acampamento. Os espaços de socialização política têm sido fundamentais para a construção da identidade de classe, bem como da própria percepção da necessidade de articular lutas e espaços específicos para modificar as relações sociais de gênero, construídas no interior da sociedade e do próprio movimento social. Para analisar esse processo, nos parece essencial compreendermos como os espaços de socialização política são construídos por dentro, em especial na relação dialética entre o acampamento e o assentamento, locais onde o MST espacializa sua luta, territorializando-se. Fruto do processo de ocupação da beira da estrada, de prédios públicos ou de uma área de terra por um grande número de famílias sem-terra como estratégia de luta do MST para pressionar a desapropriação de terras, a liberação de créditos e a implantação de escolas, o acampamento tem exigido do movimento uma organicidade, um conjunto de estratégias e ações, bem como uma pedagogia, que se dinamiza na construção da luta e recria as relações sociais, os espaços e os próprios saberes. O acampamento tem sido fundamental também para a conquista de territórios, os assentamentos, o que tem implicado significativas mudanças da velha estrutura agrária brasileira, na desterritorialização do latifúndio e na organização de novos espaços, onde muitas famílias sem-terra constroem o seu modo de vida e produzem as condições de sua existência. Para compreender o processo de participação da mulher na luta pela terra, é preciso analisar as relações sociais que são construídas e reconstruídas nos espaços e territórios produzidos pelo movimento social, sem desconsiderar, contudo, o contexto histórico, econômico, cultural e social em que a história da mulher camponesa se constituiu. 205

A participação da mulher na luta pela terra

ACAMPAMENTO: AS POSSIBILIDADES DA VIDA E DA LUTA Embora o acampamento não seja o início da luta, uma vez que está, e sempre esteve, presente na trajetória de vida de mulheres e homens bóias-frias, meeiros, posseiros, pequenos agricultores, arrendatários e desempregados do campo e da cidade como estratégia de sobrevivência, se constitui como um espaço de socialização com uma nova configuração. No acampamento, são criadas novas formas de organização, novas estratégias, regras e normas de convivência, as quais não faziam parte do cotidiano da maioria dos sem-terra acampados, constituindo-se em uma ruptura, de certo modo, com o modo de vida anterior à ocupação. Nesse processo, a luta cotidiana assume a forma coletiva. É dentro da coletividade que as relações sociais são construídas e reconstruídas. Uma das especificidades na luta pela terra conduzida pelo MST é que dela participa a família. Os trabalhadores e as trabalhadoras sem-terra acampam como família, trazendo consigo suas histórias e memórias, suas experiências, seus sonhos. Embora seja um espaço bastante heterogêneo, marcado por conflitos e divergências, as diferenças ficam diluídas diante da necessária articulação em torno de um objetivo comum, mais imediato e fundamental para garantir a sobrevivência, que é a conquista de uma fração do território. A vida no acampamento tem se constituído por espaços de socialização política, os quais têm possibilitado a construção da própria “identidade sem-terra”, como classe social, e a compreensão de que a luta passa não só pela conquista da terra, mas também pela possibilidade de construir a vida no campo, o que requer uma reforma agrária mais ampla, com políticas públicas de educação, de saúde, de crédito, bem como a transformação do modo de produção capitalista. Caldart (2000) destaca três objetivos do MST na formação do acampamento: a formação do sem-terra, no sentido da educação dos sujeitos e da mobilização de massa; a sensibilização da opinião pública para a causa da luta pela terra; e a pressão sobre as autoridades, para a realização da reforma agrária. Desse modo, além do processo de organicidade interna, os acampados participam de marchas, audiências, atos públicos, ocupação de espaços públicos nas cidades, entre outros. Para viabilizar a luta social e a formação dos sujeitos nesse processo, o MST tem buscado construir uma organicidade interna, a qual vem sendo criada e recriada ao longo da história do movimento. A esse respeito, Caldart (2000, p.15) assim se expressa: A organização interna de um acampamento começa com a formação dos chamados núcleos de base, constituídos entre dez e trinta famílias e segundo o critério inicial de proximidade, geralmente a partir do município de procedência

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

dos acampados. Através dos núcleos é organizada a divisão das tarefas necessárias para garantir a vida diária do acampamento: alimentação, higiene, saúde, religião, educação, animação, finanças... Através dos núcleos acontecem as discussões e estudos necessários para tomar as decisões sobre os próximos passos da luta. Os responsáveis pelas diversas tarefas compõem as equipes de trabalho, reunindo regularmente para planejar e avaliar suas atividades. Há uma coordenação geral do acampamento cuja responsabilidade principal é dar unidade à atuação de todas as equipes, bem como encaminhar o processo de negociação e de relacionamento com o conjunto da sociedade local e mais ampla. O fórum máximo de tomada das decisões sobre os rumos do acampamento é a assembléia geral das famílias acampadas, geralmente reunida após uma discussão preliminar das questões nos núcleos de base, canal principal de comunicação entre a coordenação e os acampados.

Essa organicidade interna tem sofrido alterações nos últimos anos, de modo que foram criadas novas instâncias para que as famílias pudessem participar mais ativamente dos encontros de reflexão e construção da luta. Um componente introduzido no processo, e que para nós interessa aprofundar mais, é a composição da coordenação de cada instância criada, que é formada por um homem e uma mulher, em uma clara tentativa de enfrentar as desigualdades de gênero. Essa mudança pode ser compreendida como parte das conquistas das próprias mulheres, bem como uma necessidade para garantir sua participação mais efetiva nas diferentes instâncias organizativas e de luta do MST, uma vez que a experiência da participação no papel de coordenação capacita os sujeitos para exercerem funções diretivas, como lideranças no processo social. Nessa reflexão, toma-se por referência uma importante contribuição de James Petras no texto “A revolução dentro da revolução”, quando ele analisa o recolhimento das mulheres no período pós-revolucionário, após uma intensa participação nas lutas sociais. Para o autor, os papéis desempenhados por mulheres e homens numa etapa da luta se constituem como educativos, experiências a serem resgatadas na etapa seguinte. Nesse sentido, adverte que se a mulher ocupar um lugar secundário na estrutura organizativa durante o processo de organização das famílias para uma ocupação de terras, ela também desempenhará papéis secundários na fase do acampamento e não haverá mulheres para formar a coordenação no assentamento, o que contribuirá para que ela volte às tradições anteriores de opressão e desigualdade. Petras (1998) destaca, portanto, a dimensão educativa da luta, afirmando a importância das experiências educativas postas em movimento na luta pela terra, fundamentais para a recriação das identidades de gênero e do papel da mulher na sociedade. A experiência é discutida aqui na perspectiva de Thompson (1981), que a contextualiza como práxis em termos culturais e de consciência de classe ao afirmar que as pessoas vivem suas experiências não 207

A participação da mulher na luta pela terra

só com idéias, mas também com sentimentos no seio da cultura, a partir de normas e obrigações familiares e de parentesco, de convicções religiosas e da cultura política das classes, que é geradora da consciência e organização dos sujeitos na história. O autor adverte que, pela experiência, as pessoas se tornam sujeitos, vivenciam situações e relações produtivas como necessidades e interesses, como antagonismos. Essa experiência não é apenas introjetada pelas pessoas, mas é recriada em sua consciência e cultura. No acampamento, pela sua organicidade interna, bem como pelas diferentes estratégias de luta, a mulher começa a pensar e a experimentar questões para além do cotidiano e do doméstico, resignificando sua presença na história. No acampamento, as tarefas consideradas femininas do “espaço privado”, como lavar, cozinhar e cuidar dos filhos, começam a ser divididas também com os homens. Assim também, as tarefas no “espaço público” geralmente assumidas pelos homens, como organizar, coordenar tarefas e grupos, negociar, cuidar da segurança, viabilizar o trabalho para garantir o sustento, enfrentar a polícia, passam a ser assumidas também pelas mulheres. Contudo, esse processo não é valorizado e assumido por todos na mesma intensidade, até em função do modo de organização da vida e do trabalho que trazem da experiência anterior. Nesse contexto, podemos perceber o quanto é importante esse avanço na organicidade do MST, quando a coordenação passa a ser assumida por mulheres e homens, pois cria-se, desde o início do processo da luta pela terra, condições mais efetivas para que mulheres também exerçam o papel de líderes no processo da luta social e na organização do trabalho. A ausência de experiências de participação em reuniões, principalmente na direção de algum grupo antes do acampamento, é apontada por Bock (1988) como um dos obstáculos à participação da mulher na luta pela terra.

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE MULHER SEM-TERRA A participação das mulheres nas diferentes instâncias na luta pela terra, assumindo uma identidade própria, como “mulheres sem-terra”, tem possibilitado a transgressão de sua invisibilidade social e política. Segundo Pinto (1992), com a inserção das mulheres nos movimentos sociais de caráter popular, elas deixam de atuar apenas nos limites do privado, provocando novas relações no interior da família e seu entorno; passam a articular, no âmbito do movimento, lutas diferenciadas em relação aos homens, como é o caso do Coletivo de Gênero, criado em 1996 dentro do MST, e, ainda, passam a questionar a própria condição de mulher. Se analisarmos o papel que a mulher vem ocupando ao longo da trajetória de luta pela terra no MST e as relações de gênero postas em movimento, 208

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

podemos perceber um conjunto de avanços, mas também de recuos, e muitos obstáculos. No processo de recriação das identidades de gênero, parece-nos importante olharmos também para o papel que os movimentos específicos, como o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais, surgido nos anos 80, têm desempenhado na luta pelo direito das mulheres a uma participação com igualdade de direitos nos diferentes espaços, na desnaturalização da condição em que a mulher foi subjugada historicamente, bem como na compreensão de gênero como uma construção social e histórica. Tomando por referência os estudos de Deere (2004), cabe destacar que, na década de 1980, o movimento de mulheres rurais desenvolveu duas reivindicações centrais – a incorporação das mulheres nos sindicatos e a extensão dos benefícios de seguridade social para as mulheres trabalhadoras rurais –, que refletiram o crescimento da participação de mulheres na força de trabalho agrícola e a discriminação que elas enfrentavam, inclusive dentro dos sindicatos. Até os anos 80, a mulher trabalhadora do campo era vista como “do lar”, não era reconhecida como trabalhadora rural, não tinha direito à aposentadoria e ao salário-maternidade, não era sindicalizada e seu nome não contava no bloco de produtor. Somente com a Constituição Federal de 1988, como resultado da pressão e organização do movimento de mulheres rurais e das lideranças femininas dos sindicatos, articulados com o Conselho Nacional de Direitos da Mulher, criado pelo Ministério da Justiça em 1985, os direitos das mulheres foram expandidos em relação à legislação do trabalho, aos benefícios de previdência social, à inclusão de mulheres na reforma agrária. O ingresso da mulher na luta pela terra colocou-a não apenas diante da luta de classes, mas também diante do enfrentamento da questão de gênero. Isso se evidencia na questão do acesso à terra. Nos primeiros acampamentos dos anos 80, os homens solteiros podiam ser cadastrados pelo Incra para receberem um lote, no momento da desapropriação de terras. Direito que não estava posto para as mulheres solteiras. Além disso, quando uma família era assentada, o lote ficava apenas no nome do homem. Em pesquisa realizada em 1993 no Rio Grande do Sul, no Assentamento da Nova Ramada, conquistado em 1989 a partir do processo de ocupação da Fazenda Anoni, que se deu em 1986, uma das mulheres assentadas, solteira na época da ocupação, relata: Quando surgiu a questão do acampamento eu tinha 18 anos na época, foi uma barra lá em casa, eu fui sozinha, conheci o Ildo depois. E daí fui para ajudar no acampamento e acabamos ficando, fizemos cadastro. Muitos jovens fizeram cadastro. Foi toda uma discussão por ser mulher. Um rapaz foi bem mais fácil que guria. Tinha umas quantas gurias que tavam no acampamento. E daí nós conseguimos, nós que éramos as únicas gurias solteiras da comunidade. Então isto para nós foi uma conquista dentro do MST. Jovens, solteiros e também por ser mulher, e na

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comunidade quando o pessoal ficou sabendo era motivo para muita discussão. Ah! Elas solteiras, fizeram o cadastro, vão conseguir terra, foi aí a discussão maior e daí nos próximos assentamentos, mais jovens começaram a participar. No acampamento da Anoni a maioria eram idosos e famílias com vários filhos e depois nos outros acampamentos a maioria eram jovens, porque os jovens tinham muito medo de não conseguir fazer o cadastro, e nós por ser mulheres. Isto foi um avanço enorme. Para nós era motivo de orgulho. [sic]

Cabe destacar que, mesmo a mulher conquistando o direito de ser beneficiária da reforma agrária, o processo de seleção dos beneficiários feito pelo Incra, na época, era discriminatório, como nos aponta a pesquisa de Deere (2004). O Incra aplicava um sistema de pontuação no qual os homens de idade entre 18 e 60 eram premiados com um ponto, e as mulheres desse grupo de idade eram premiadas com 0,75 ponto. Além disso, os critérios em relação à experiência no trabalho agrícola também discriminavam, visto que para as mulheres, em função da sua “invisibilidade” no trabalho produtivo, é sempre mais difícil a comprovação da experiência na agricultura. Essa situação revela que a luta pela terra exigiu não apenas a consciência de classe para mulheres e homens, mas também o debate, a consciência e a luta contra as desigualdades postas nas relações de gênero, naturalizadas historicamente. O enfrentamento das relações de gênero construídas e reproduzidas ao longo da história não é algo tranqüilo, uma vez que interfere na organização familiar e sindical, no movimento social e, sobretudo, na organização do modo de produção da sociedade, que tem, na sua estrutura econômica, responsabilizado a mulher camponesa pelo trabalho “invisível” de reprodução da força de trabalho, essencial para a reprodução das relações capitalistas de produção. Nesse processo, Gebara (2002) afirma que as mulheres estão mostrando que nas relações de classe, nas diferentes relações sociais presentes na cultura, existem relações de gênero que revelam o cruzamento da dominação social, política e econômica de um gênero sobre o outro.O conceito de gênero, surgido no interior da teoria feminista, se constitui como um instrumento de análise e luta para romper com uma visão que naturaliza as relações estabelecidas entre os distintos sexos a partir de explicações de natureza biológica, nas quais as diferenças são usadas para justificar atitudes desiguais e opressoras nas relações entre mulheres e homens. Para Scott (1995), gênero diz respeito à organização social da relação entre sexos, o que implica uma rejeição do determinismo biológico em relação aos papéis ou lugares que homens e mulheres assumem na sociedade. Para a autora, “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (Scott, 1995, p.86). Compreendida como uma construção social a partir das relações estabelecidas entre mulheres e homens, dos significados atribuídos ao femi210

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nino e ao masculino, a categoria gênero nos permite relativizar uma visão puramente classista, ainda fortemente presente nos movimentos sociais. Nessa direção, concordamos com Franco García e Thomaz Júnior (2002), quando afirmam que se tomarmos classe articulada a gênero como categoria de análise, poderemos compreender como se produzem e reproduzem os espaços e momentos da luta pela terra, na qual acampamentos e assentamentos concentram relações de gênero diferenciadas da classe trabalhadora forjadas nessa luta. Além disso, o processo de transformação da sociedade almejado pelo MST não passa apenas por mudanças que implicam a luta de classes, mas requerem também o enfrentamento das relações sociais, nas quais são produzidas e reproduzidas as desigualdades de gênero na sociedade. Relações estas que se manifestam em todas as classes sociais, mas que atingem de forma bastante diferenciada as mulheres da classe trabalhadora.

RECONSTRUINDO A VIDA NA TERRA CONQUISTADA Articulada à categoria de classe, a categoria de gênero se torna fundamental para compreendermos a condição, os dilemas e as conquistas do processo de emancipação da mulher decorrente de sua participação na luta pela terra. Contudo, essa emancipação não é uniforme e nem contínua. Estudos apontam que, paradoxalmente, ao mesmo tempo que a participação feminina é ampliada a partir das lutas sociais, permanecem muitos dos tradicionais espaços concebidos historicamente como femininos e masculinos. Estudos como os de Santana (1997), Franco García e Thomaz Júnior (2002), e o meu próprio realizado em cinco assentamentos da região sul do Paraná (Schwendler, 2002), apontam que, na primeira fase de luta pela terra, o acampamento, ocorre uma ampliação significativa da presença da mulher na esfera pública, o que tem contribuído significativamente para a reconstrução dos papéis de gênero. Contudo, quando a luta envolve a fase do assentamento das famílias, há um recuo ou a diminuição da participação feminina. Caldart (2000) nos adverte para a necessidade de olharmos para o assentamento como um lugar social em movimento, que vai sendo produzido a partir das relações sociais que se estabelecem ali, e a partir das decisões acerca do permanente processo de organização e reorganização, tomadas pelas famílias sem-terra do próprio assentamento e do movimento social como um todo, em função das exigências do contexto. Embora os assentamentos sejam bastante diferentes entre si, de modo geral eles mantêm uma identidade com a luta pela reforma agrária, preservam símbolos e traços, que permitem identificá-los como uma fração do território ocupado pelo MST. 211

A participação da mulher na luta pela terra

As condições históricas de constituição dos assentamentos ao longo dos 22 anos de formação do MST, bem como as diversidades culturais, geográficas e econômicas são fatores essenciais para compreender as diferenças existentes entre os assentamentos e sua estrutura interna. Em alguns, a produção e a vida são organizadas sob o princípio da coletividade. Em outros, existem práticas coletivas e uma organização familiar muito semelhante a de outras comunidades do campo. A organização do modo de vida no assentamento precisa ser compreendida tendo como referência tanto a trajetória que os trabalhadores e as trabalhadoras sem-terra construíram antes de entrarem na luta, como a experiência que construíram no período em que a luta era mais intensa. A organização do cotidiano na fase do acampamento, baseada no princípio da coletividade, em que o objetivo central das famílias era a conquista da terra, possibilitou um conjunto de aprendizados determinantes para a reconstrução do espaço e da continuidade da luta pela terra. Todavia, o assentamento, segundo Gomes (2001), significa outro tempo, outro espaço, onde se busca a recriação das condições de vida. A conquista da terra recoloca a questão de como se reconstruir como pequeno produtor. Nesse contexto de organização e construção da vida no território conquistado, as relações sociais, embora ressignificadas na fase do acampamento, são marcadas ainda fortemente por uma tradicional divisão sexual de trabalho e espaços de participação, conforme explicitado na pesquisa de relações de gênero nos Assentamentos Rurais, realizada pela Unesco em 2000 (Rua e Abromovay, 2000). Estudos como os de Salvaro (2004a) e Melo (2001) apontam a dupla jornada de trabalho da mulher assentada, no sentido de, no final de um dia de trabalho na lavoura, ela ainda ter a preocupação com os afazeres da casa e os cuidados com as crianças. Além disso, quando a mulher é também militante na luta social, ela se depara, muitas vezes, com a tripla jornada. Salvaro (2004b), ao estudar um assentamento em Santa Catarina, onde a produção é coletiva e os homens trabalham oito horas, enquanto as mulheres trabalham quatro, recebendo também a metade do valor pago ao homem, constata que as diferentes jornadas se apresentam, para as mulheres, como uma forma de conciliar os trabalhos domésticos e o cuidado com as crianças, o que sugere que a divisão sexual do trabalho na família não sofreu significativas alterações. Situação semelhante foi constatada por Silva (2004) em outro assentamento, onde a produção é coletiva, o que revela que o bem-estar da família não é assumido pelo coletivo, porque é tarefa atribuída, ainda, apenas às mulheres. A respeito do cuidar do bem-estar da família e da casa, Nobre e Silva (1998, p.29-30) afirmam: O que é chamado de cuidar da casa, esconde o trabalho na roça, a produção do artesanato, o cultivo da horta e a criação de animais, trabalho que produz mercado-

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rias cuja venda contribui para o sustento da família... O papel masculino idealizado é de responsabilidade pela subsistência econômica da família e a isso corresponde designar o trabalho do homem na produção. Para as mulheres, a atribuição do trabalho doméstico designa as mulheres para o trabalho na reprodução: ter filhos, criá-los, cuidar da sobrevivência de todos no cotidiano.

No contexto do campo, as tarefas domésticas geralmente não são reconhecidas como trabalho e mesmo a mulher participando do trabalho produtivo, isso é muitas vezes visto como uma “ajuda”, porque é considerado fora de sua atribuição. Da mesma forma, quando o homem realiza alguma atividade doméstica, ele também estaria “ajudando” a mulher, como se evidencia nas falas das mulheres assentadas entrevistadas por ocasião da pesquisa sobre gênero realizada em cinco assentamentos no estado do Paraná: “Só as mulher trabalhava em casa; os home trabalhava na roça e as mulher ajudava também na roça” (educanda assentada).3 A esse respeito, Silva e Portella (2006) afirmam que, diferentemente das mulheres que assumem cotidianamente o trabalho agrícola, os homens realizam atividades domésticas só excepcionalmente, até porque o “trabalho feminino” é menos valorizado. Mesmo “ajudando na roça”, na maioria das vezes não cabe à mulher decidir sobre como produzir, negociar, comercializar os produtos ou discutir a respeito dos créditos agrícolas. Essas tarefas são colocadas como masculinas. Ao analisar os assentamentos de reforma agrária, Ferrante (1998, p.74) aponta que “a participação das mulheres nas diferentes estratégias de formação de renda convive com a reprodução de desigualdades e exclusões no âmbito das decisões”. Entretanto, em função da experiência de luta no período do acampamento, da discussão de gênero, de uma definição política do MST e da exigência das agências externas, como o Incra, da assinatura da mulher para liberação dos recursos que vão viabilizar a produção, o planejamento da produção e a organização do assentamento já têm sido assumidos em conjunto em muitos assentamentos e em muitas famílias, o que não significa, necessariamente, que a mulher tenha efetivamente poder de decisão. O depoimento abaixo é revelador desse processo e mostra, também, como a própria mulher se exclui do processo de discussão de assuntos e espaços vistos historicamente como masculinos: Assembléia até que as mulher até que vem. Mas reunião de grupo, a maioria vai só homem. Principalmente se fala que é por causa que vai vim o Procera (Programa de 3

Os depoimentos que apresentamos, como educandas ou educadoras, são de mulheres assentadas, participantes do processo de alfabetização de jovens e adultos em assentamentos do MST na região sul do Paraná, as quais foram entrevistadas no período de 2002-3, por ocasião de uma pesquisa que realizamos sobre as relações de gênero no processo de alfabetização de jovens e adultos.

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Crédito Especial para Reforma Agrária). Agora não é mais Rocera, o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Vem só homem. Quando era da medição, que era pra medir os lote, veio eu e a que é coordenadora e mais uma mulher. ... Os homem vieram todos. (Educanda assentada) [sic]

A organização do trabalho e da vida cotidiana nos assentamentos se insere numa cultura social, e mais especificamente camponesa, marcada por uma rígida organização do modo de vida, baseado em divisões sexuais de papéis historicamente definidos, os quais são naturalizados, ainda, por muitas mulheres e não foram necessariamente rompidos no período mais intenso da luta pela terra. A divisão tradicional de papéis distintos para mulheres e homens se sustenta numa rígida divisão sexual do trabalho, compreendida por Souza-Lobo (1991) como uma construção social e histórica. A autora afirma que se o capitalismo utiliza uma estratégia de “dividir para reinar”, a configuração dessas divisões é construída socialmente pelas relações de classe, raça, gênero e nas práticas sociais. A divisão sexual de papéis, na realidade do campo, não aparece apenas na questão do trabalho, mas na totalidade do modo cotidiano de vida, nas relações sociais que se estabelecem em diferentes espaços, como do lazer, da religião, da escola, das lutas sociais. Nesse contexto, parece-nos importante analisar o espaço da militância, da participação como liderança, uma vez que representa a entrada da mulher no espaço público e, segundo alguns estudos, a tripla jornada, definida fortemente a partir dos papéis assumidos historicamente por mulheres e homens na organização do modo de vida no campo. Em alguns espaços vistos historicamente como masculinos, embora já tenham ocorrido modificações, a mulher pouco participa, como nas coordenações com caráter mais político, nos setores de produção, na frente de massas e nos espaços de negociações (Fischer e Gehlen, 2002). Os espaços ocupados por mulheres são os setores de educação e saúde, vistos historicamente como espaços femininos. Mesmo nesses espaços, muitas mulheres assentadas ainda encontram enormes dificuldades de participação. Na pesquisa sobre relações de gênero e educação de jovens e adultos nos assentamentos (anteriormente citada) encontramos vários relatos de que os homens não deixam suas companheiras participarem, ou as próprias mulheres discriminam a mulher que sai muito em função de ocupar coordenações, participar de encontros de formação fora do assentamento ou das aulas de alfabetização de adultos. Há, contudo, explicações dadas pelas próprias mulheres para a não-participação. Para a grande maioria delas, que historicamente estiveram caladas, falar em público e expor suas idéias ainda é um exercício recente, para o qual, muitas vezes, não se sentem capacitadas. Além disso, muitas assentadas, segundo Franco García e Thomaz Júnior (2002), acabam por não reconhecer as limitações de gênero e apresentam tudo como uma escolha pessoal: 214

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

O setor que a mulher geralmente ocupa na organização é o Setor de Educação, de Saúde. ... porque ela acha que não tem capacidade para estar no Setor de Produção. Porque desde criança foi criado que a mulher não é capaz de produzir alguma coisa. E daí sempre aquele sexo frágil, que tem que cuidar das crianças, cuidar da casa, essas coisas assim. Que não pode estar no cotidiano, assim, na luta, né, na Frente de Massas [Setor de Frente de Massas no MST, é o que realiza o trabalho de base, mobiliza os trabalhadores rurais e organiza as ocupações], é um setor que tem que estar só em movimento, tem que estar um dia aqui, um dia lá. E já a mulher já não participa da Frente de Massas por causa desse negócio... parece que ela é submissa... Não é que os homens não deixam. Às vezes, ela mesma criou essa barreira dentro dela, que ela não é capaz de fazer alguma coisa. (Educadora assentada) [sic] Eu não ia porque ele não deixava eu ir... porque ele diz que era, só ia homem, ia pouca mulher e era só eu de mulher lá no meio. ... Aí eu ficava cuidando da casa. Eu ia só quando tinha mais mulher. (Educanda assentada) [sic] Tem pessoas ainda que falam, né. ... Tem muitas pessoas que acha que a gente, né, a... sai muito, fica muito fora de casa – “onde que se viu!”, né, “porque a mulher tem que dar mais atenção em casa”. Na minha comunidade tem pessoas assim, que discriminam bastante a gente. (Educadora assentada) [sic]

Estar em alguns espaços públicos, onde a maioria ainda são homens, e ausentar-se da casa, espaço que é naturalizado como sendo de obrigação da mulher, têm-se constituído, muitas vezes, em empecilho para a participação da mulher na vida política e militância no movimento social. A esse respeito, Silva (2004) nos mostra que a não-participação da mulher vai além de um problema político e de uma negação de participação. Segundo a autora, o espaço da casa é muito mais que uma construção material. Ele é, sobretudo, social e cultural. Um espaço que traz um conjunto de significados relacionados ao feminino. Como fronteira entre as esferas masculinas e femininas, tem servido às mulheres como local de aprisionamento e responsabilidades. Para as mulheres assentadas, a casa foi a primeira conquista de um espaço próprio, no qual elas podem exercitar seus pequenos poderes e onde não se sentem inseguras para falar e agir. O que se evidencia é que ainda permanece muito forte, tanto entre homens como entre mulheres, o discurso de que a mulher pode até participar do espaço político, desde que o concilie com o espaço doméstico, o que também contribui para a resistência das mulheres à participação na vida política. Segundo Paulilo (2004, p.248), “as mulheres são muito cobradas se não conseguem ‘se impor’, se não ‘se desafiam’, enquanto o fato de os homens não dividirem o trabalho doméstico é um pecado menor, tão leve que risível”. A condição em que a mulher participa da luta pela terra, os dilemas que enfrenta durante o processo de ocupação da terra e de construção da vida no território conquistado precisam ser compreendidos como parte de uma longa história de opressão da mulher trabalhadora, inserida na 215

A participação da mulher na luta pela terra

cultura camponesa, numa sociedade patriarcal e capitalista que reforça a ideologia hegemônica de gênero, que oprime a mulher a partir de normas discriminatórias socialmente aceitas.

A MULHER CONSTRÓI A LUTA: A LUTA CONSTRÓI A MULHER A participação da mulher no processo de construção da luta pela terra, em acampamentos e assentamentos, tem se posto, dentro dos limites impostos pelas condições de produção e reprodução da sua vida como trabalhadora do campo, dentro de um modelo de desenvolvimento econômico que a exclui e oprime duplamente: por ser da classe trabalhadora e por ser mulher. Participando da luta pela terra, ela questiona ou até rompe com alguns limites, construindo-se como “mulher sem-terra”. Essa é, também, uma das grandes conquistas da luta. No espaço e no território da luta pela terra, as mulheres participam “não como seres assexuados, mas como mulheres, mães de família participando de tudo, mesmo estando grávidas e levando consigo os bebês de colo” (Lechat, 1996, p.123). A presença da mulher como sujeito histórico torna-se fundamental na luta pela terra e a torna possível, o que é confirmado pelos próprios assentados: “E se não fossem as mulheres junto na luta, elas organizadas, junto com o homem, eu acho que não existia o assentamento. É muito importante a mulher na luta. Ela organiza e ajuda a organizar e acompanha a luta” (Depoimento de assentado da Nova Ramada – RS, 1994). Ao mesmo tempo que a mulher participa com o homem como membro de uma classe social, que se coloca em luta pela sobrevivência para exigir o direito à terra e ao trabalho, descobre que precisa lutar também pelo direito à educação, saúde e crédito; que a luta é pela reforma agrária, por um projeto de transformação social. Nesse processo, ela se descobre, também, como sujeito que esteve historicamente excluído, sem direitos e sem lei que a proteja ou defenda. A esse respeito, uma educadora assentada declara: Sentava aquelas roda, assim, de mulher, daí ia discuti sobre direito, muitas coisas que a gente não sabia a gente aprendeu na luta. Eu vi o direito que a gente tem. Pensava que a mulher era uma pessoa que não tinha direito de nada. Depois que a gente começou a estudá, daí mudou bastante. Porque os mesmos direitos que o homem têm a mulher também têm. Se o homem pode ter a terra no nome dele eu também posso ter. (Educanda assentada) [sic]

Esse reconhecimento da negação de direitos como produção de uma cultura e de um modo de produção que explora duplamente a mulher trabalhadora do campo tem sido fundamental para que ela se coloque em 216

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

movimento junto com outras companheiras para construir lutas específicas, o que tornou possível algumas conquistas, como o reconhecimento da profissão de agricultora, que permitiu a conquista do salário-maternidade, aposentadoria, direito à assistência para a mulher e seus filhos até catorze anos em caso de acidente de trabalho. O direito formal da mulher à terra na reforma agrária foi conquistado, segundo Deere (2004), como um subproduto do esforço de acabar com a discriminação contra as mulheres em todas as suas dimensões. A autora afirma que a expansão da reforma agrária, na segunda metade dos anos 90, está associada, entre outros fatores, à consolidação nacional do MST, à radicalização dos sindicatos na questão da reforma agrária, ao aumento do número de ocupações e ao aumento na parcela de beneficiárias em alguns estados. Sugere que essa tendência pode ser atribuída parcialmente à abertura do MST às questões de gênero, o que em si reflete a participação crescente de mulheres como lideranças em todos os níveis e a necessidade da consolidação dos assentamentos. Contudo, cabe destacar que, mesmo havendo um aumento significativo da presença da mulher na luta pela terra, visando o acesso às terras de reforma agrária, apenas 12% dos lotes de terras em assentamentos no Brasil estão em nome das mulheres. Além disso, como nos aponta Campos (2006), as mulheres participam da luta pela terra, mas, na maioria dos casos, são cadastradas no Incra como dependentes dos homens e, conseqüentemente, nos assentamentos não têm acesso a créditos, não são reconhecidas como agricultoras e ficam excluídas de direitos trabalhistas e previdenciários. Diante desse contexto, o Setor de Gênero do MST destaca a importância da participação da mulher na luta por mudanças estruturais, o que passa pela construção da consciência de classe articulada à consciência de gênero. Afirma que, quando as mulheres sem-terra chamam atenção para a necessidade do MST promover a igualdade de gênero, não estão querendo que o Movimento se afaste da luta de classe, uma vez que uma luta não é contraditória à outra. De forma complementar, contribui para que as mulheres também participem da luta pela transformação social. Se analisarmos os depoimentos das educadoras assentadas, poderemos perceber que a mulher sem-terra, ao participar da luta social, avança na sua consciência de membro da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, começa a questionar papéis sociais de mulheres e homens naturalizados historicamente. Elas afirmam: Eu antes participava mais como monitora, catequista. Eu não participava da coordenação, das reuniões do Incra. Depois, eu chamava as mulheres para participar. Às vezes, a gente não enxerga e acha que é normal que o filho fica com a mãe, se os dois estão na reunião. Pra mim, esta divisão de serviço de mulher e serviço de homem era normal. [sic]

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A participação da mulher na luta pela terra

O processo de participação das mulheres na luta pela terra possibilita que elas pensem por si próprias, coloquem sua opinião, se reconheçam como sujeito capaz, revelando o processo de socialização política e de empoderamento,4 construído nos múltiplos espaços da luta social. Antes, assim, eu ficava, né, eu pensava assim comigo: “Ah, os homens têm idéia melhor!” Às vezes, né, a gente pensava assim: “Ah... o homem dá uma opinião, a mulher tinha que aceitar”. Mas hoje eu vejo quanto que a gente tava errada, né. De você pensar assim: “Ah... o homem dá opinião, você vai aceitar”. Desde um encontro, né, que a gente vai... Às vezes, um homem dava aquela opinião, a gente aceitava. É assim, né... se você tem uma idéia, você tem que colocar aquela idéia também para discutir junto no grupo, né? Ah! Eu hoje falo bastante. Antigamente não, né... Não sei se é porque a gente já trabalha mais no movimento, né, que nem... ta... trabalhando no movimento você vai pegando noção de como você trabalha, né? Você vai perdendo até mais a vergonha de falar tudo, né. Que nem, essas que participa só dos encontro de mulher, elas ficam ainda meia inseguras, né, de que você vai conversar, do que você vai colocá, trocá as idéia, né, colocá as suas idéia (Educadora assentada). [sic]

Muitas vezes, as mudanças ocorridas nas relações de gênero não são visíveis, necessariamente, na organização do trabalho e na militância. Quando ouvimos suas histórias, acompanhamos suas lutas, seu cotidiano, podemos perceber como elas se constroem como gente, como sujeito, não só como “sem-terra”, mas como “mulher sem-terra”. Além disso, as experiências organizativas das mulheres nos acampamentos e assentamentos, a luta das lideranças femininas para o surgimento do debate de gênero no MST nos diferentes níveis e a elaboração de linhas políticas para o conjunto da organização têm sido fundamentais para o processo de empoderamento das mulheres. Contudo, como adverte Cordeiro (2006), os processos de empoderamento que implicam mudanças das relações de gênero são moldados de acordo com o contexto local e com a posição específica que as mulheres ocupam na família, na comunidade ou nas relações mais amplas, e que, portanto, não ocorrem concomitantemente nos espaços privados e nas esferas públicas, e nem atingem as mulheres da mesma forma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise das condições, dilemas e conquistas decorrentes do processo de participação da mulher na luta pela terra a partir das categorias de classe e 4

Cordeiro (2006) discute alguns aspectos do processo de empoderamento, tais como: ter confiança, respeito e auto-estima; capacidade para expressar as próprias idéias; ter liberdade de ir e vir para além da casa e dos sítios; a ação coletiva e o fazer político; a luta por direitos; e o acesso a programas e recursos.

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Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

gênero nos levam a constatar que o processo de emancipação da mulher nas lutas sociais não é contínuo, nem uniforme, e precisa ser compreendido a partir da processualidade social em que a luta pela terra é construída nos acampamentos e assentamentos. Se o acampamento é um espaço onde se estrutura uma nova forma de organizar o cotidiano a partir do coletivo, permitindo avanços na consciência de classe, é também um espaço que desestrutura papéis definidos para homens e mulheres e recria identidades de gênero. Permeado por tensões, principalmente no espaço familiar, a “mulher sem-terra”, quando acampada, começa a romper com sua invisibilidade pública por meio de fatores como a socialização da vida privada, pela criação de espaços onde começa a ter voz; a divisão de tarefas do espaço público e privado entre homens e mulheres; as novas experiências organizativas que a condição da luta exige. Quando a luta assume a fase do assentamento, a vida se organiza baseada em outras necessidades, e as famílias se voltam principalmente para a produção material da existência, o que tem contribuído para a diminuição da participação de mulheres e homens no movimento. Contudo, a participação da mulher encontra outros obstáculos, postos pela divisão sexual do trabalho, pela ideologia hegemônica de gênero, presente também nos acampamentos e assentamentos, que naturaliza papéis e lugares sociais para homens e mulheres, porque o gênero é construído ideologicamente, enquanto território imaterial, por valores que se reproduzem no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo que a inserção das acampadas e assentadas no movimento social de luta pela terra e em organizações ou movimentos específicos de mulheres tem permitido que encontrem canais para repensar a sua condição e o seu papel na sociedade, e acima de tudo, para a ruptura com o isolamento da vida construída no espaço privado e sua inserção no espaço público, elas ainda encontram enormes obstáculos na prática social para a conquista da igualdade, seja nos espaços da luta social, do trabalho, da vida familiar.

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A participação da mulher na luta pela terra

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