Brasil do boi e do couro [1]

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COLEÇÃO ENSAIOS BRASILEIROS — Homens e Fatos —

JOSÉ ALÍPIO GOULART

BRASIL :5r*',-SíjV ••

DO BOI E DO COURO JOSÉ ALIPIO GOULART, com seus estudos sôbre temas brasileiros, vem conferindo amplitude e relêvo a certos assuntos que, apesar da enorme importância de que se revestem, permaneciam no esquecimento, num plano penumbroso nos escritos da História pátria, do quai ninguém se interessava em tirá-los. Assim foi com Meios e Instrumentos de Transporte no Interior do Brasil, com Tropos e Tropeiros na Formação do Brasil, com O Cavalo na Formação do 'Brasil, livros que revelaram aspectos, ligados aos respectivos temas, até então desconhecidos ou pouco sabidos. O que se verifica, a rigór, é que até certa época, escreveu-se mais sôbre a história de Portugal no Brasil, do que pròpriamente a respeito dos fatos que, por suas caracterfsticas, são, indubitavelmente, da história do nosso país. B se desde algum tempo vêm surgindo estudos verdadeiramente reveladores dos elementos, dos fatos e das épocas históricos nacionais, forçoso é reco­ nhecer que JOSÉ ALIPIO GOULART leva a palma, ao que se ajunta, do mesmo passo, o robusto conteúdo sociológico encontrado na sua já segura e impor­ tante obra. Se assim foi nos seus trabalhos acima citados, a tônica repete-se em Pesquisa de Padrão de Vida no Brasil, Favelas do Distrito Federal, e

Transportes nos Engenhos de Açúcar.

É obra de' íôlego, alicerçada em farta e irrefutável documentação, enriquecida com interpretações se­ guras que espelham o amadurecimento intelectual do autor. Brasil do Boi e do Couro é trabalho que vem dar novas dimensões à obra de JOSÉ ALIPIO GOULART, por se tratar de estudo riquíssimo de tôdas aquelas qualidades e necessidades que indicam, como também firmam, ou reafirmam, um grande autor, como é o caso de JOSÉ ALIPIO GOULART. Isso, o leitor sen­ tirá ao dar-se â leitura dêste livro, quando aquila­ tará da pesquisa demorada e séria, da interpretação Justa e clara, do trabalho enxuto e consciencioso daquele que já mereceu e com- justiça, a classifi­ cação de “ sociólogo dos transportes” . S com imensa razão, portanto, que GRD orgulha-se era oferecer aos leitores, iniciados ou não, esta obra fundamental sôbre assunto tão atraente quão pouco estudado nos seus aspectos históricos e sociológicos. B não titubeia mas até se ufana em dizer que, com éste livro de JOSÉ ALIPIO GOULART, foi erguido o esperado mas já tardio monumento a um dos ele­ mentos mais preponderantes no processo de formação dêste país: — o Boi.

UMA EDIÇÃO

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JOSÉ ALIPIO GOULART

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JOSÉ

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GOULART

Já publicadas: PESQUISAS DE PADRÃO DE VIDA NO BRASIL — edição do Serviço de Informação Agrícola, do Ministério da Agricultura. FAVELAS DO DISTRITO FEDERAL — edição do Serviço Informação Agrícola, do Ministério da Agricultura.

de

MEIOS E INSTRUMENTOS DE TRANSPORTE NO INTERIOR DO BRASIL — edição do Serviço de Documentação do Minis­ tério da Educação e Cultura. TRANSPORTES NOS ENGENHOS DE AÇÚCAR — edição do Ins­ tituto do Açúcar e do Álccol.

BRASIL DO BOI E DO COURO ☆

TROPAS E TROPEIROS NA FORMAÇÃO DO BRASIL — edição da Editora Conquista. O CAVALO NA FORMAÇÃO Detrás e Artes.

DO BRASIL — edição da

Editora

No prelo:

l.°

V olum e

O

BOI

A ÉPOCA DO COURO — Subsídios para o 2’ volume do presente trabalho — Brasil do Boi e do Couro — edição do Serviço de Informação Agrícola, do Ministério da Agricultura. Em preparo: MASCATE, REGATÃO E COMÊTA, Três Tipos Humanos na For­ mação do Brasil.

Desenho de capa: P ercy Dau (extraído de publicação do IBGE)

E dições

GRD

KIO DE JANEIRO — GB

19 65

COLEÇÃO

ENSAIOS

BRASILEIROS

— HOM ENS E FATOS —

V OLUM ES PUBLICADO S I FEIJÓ, Um paulista velho — de Novelli Júnior

“O que escreve primeiro o livro é discípulo daquele que o melhora e aperfeiçoa.” BACON

II O CONSELHO DE ESTADO — João Camillo de Oliveira Torres

PRÓXIM OS VOLUM ES

“A história é uma ressurreição ou não é história é cadastro.” BATISTA PEREIRA

IV BRASIL DO BOI E DO COURO (II) — de José Alípio Goulart V M A R IN H A E SER TÃO



de Heitor Marçal

Três são os elementos essenciais à subsis­ tência humana: o alimento, o vestuário e a habitação. O boi deu tudo isso ao hom em . o

VI

AUTOR

H ISTÓRIA DE U M A F O R T A L E Z A — de Alberto Silva

Ofertando A meu neto EDUARDO

A U G U ST O

Hom enagem aos amigos: CA R L O S R IB E IR O A D O N IA S F IL H O JOSÉ A . V IE IR A Reservados os direitos de tradução, reprodução e adaptação. Copyright by José Alipio Goulart Direitos de publicação do presente volume para o Brasil, Portugal e Colónias, reservados por A .G .R . DóREA, rua Alcindo Guanabara, 26, conj. 404 — Rio de Janeiro, GB.

SÚMULA

A P R E SE N T A Ç Ã O

....................................................................................

I — SURGIM ENTO DO BOI NO B R A S IL ............... II — E X P A N SÃ O ^

DO BOI

NO

B R A S IL

11 13

...........................

17

III — IM PO RTÂNCIA DO BOI NO B R ASIL COLONIAL

64

IV — O VELH O MERCADO DAS CARN ES .......................

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V — USOS E COSTUMES N A S A N TIG A S FAZEN D AS DE GADO

..................................................................................

VI

— TIPOS

HU M ANOS

V II

— O BOI

NO

V III

NA S

FOLCLORE

ZONAS

DE PE CU ÁR IA

144

.................

192

— O GADO VACU M DO B R A S IL .....................................

236

I X — A IN D A SÔBRE X — B IB LIO G R A FIA

GADO

BR ASILEIRO

117

............................................

........................................................................

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APRESENTAÇÃO

Caro leitor.-

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A qui está um livro sôbre o boi. É um livro simples, que apenas “ conta ”, sem nenhum sabor científico, sem qual­ quer veleidade de perfeição. Como tal, poderá ser compa­ nheiro durante algumas de suas horas de lazer. O boi sempre foi um amigão do Brasil. Justo é, por­ tanto, que se relembre, embora de modo não muito perfeito, e, sobretudo, suscinto, algumas das razões pelas quais assim o classifico. Se em nenhum dos meus estudos es­ gotei o tema que porventura abordei, muito menos neste. Sôbre o boi, há, ainda, uma enormidade de coisas que m e­ recem ser ditas. Êsse livro levou anos para ser escrito. Desde 1960 que venho, pacientemente, coletando elementos para elaborá-lo. Realizando trabalho de intensa pesquisa, quer de campo, quer de gabinete, obediente ao meu método de fa­ zê-lo : que é não ter método . Anim ou-m e, sempre e apenas, o desejo de render ao boi a homenagem de que êle me parecia merecendente. A í, está, o resultado. Se êste trabalho for considerado bom, ou ruim, permito-me confessar que não m e interessa. Não. Não é orgulho. É apenas aquela tranquilidade inteterior que sente quem conclui uma obra que desejava rea­ lizar. Se ela ainda não está de todo completa, por faltar a parte relativa ao couro, sinto-me, porém, desde já, re­ compensado. Uma coisa posso lhe garantir, caro leitor. Êsse livro, que conta, também “ canta” aos meus ouvidos. Sôa gostoso e bonito, como aquela melodia, contagiante e bárbara, que sobe aos ares, nos fins de tarde, nos campos de criatório, quando as cabeças de gado tornam dos pastos aos currais. Sôa como um “ aboio” .

J. A. G.

0 SURGIMENTO DO BOI NO BRASIL

A inexistência de animais domésticos em terras do Brasil, ao tempo em que as náus de Pedrálvares fundearam na baía de Pôrto Seguro, é fato estampado por quase todos aquêles que se têm reportado às condições da colónia portuguêsa ao alvorecer dos mil e quinhentos. Já Pero Vaz Caminha a êle fazia refe­ rência na carta que endereçou a D. Manoel; pois enquanto aqui permaneceram os da frota, por mais que apurassem os ouvidos não conseguiram distinguir um mugido, um relincho, sequer um cacarejo, um balido. E o Piloto Anónimo anotara não ter passado sob seus olhos qualquer espécie de quadrúpede. Daí, concluir-se o quanto é velha a assinalação do fato. Por essa razão, não deve parecer destituída de alguma curio­ sidade qualquer ligeira referência que aqui se faça, sôbre o surgimento do boi no Brasil, inda mais tendo presente as dúvidas que persistem em tôrno do assunto. Pois do ponto-de-vista histó­ rico, ignora-se ainda a existência de fonte insuspeita que informe, com indiscutível precisão, o dia, mês e ano em que as primeiras sementes de gado vacum patearam solo brasileiro. Quem as trouxe ou as importou, é outra incógnita. H á vaga suposição, essa partida de Aurélio Pôrto, de que cabeças de gado tenham aqui surgido, nos primórdios do sécuio X V I, antes da fundação de S. Vicente, quando gálicos e lusos estabeleceram feitorias ao Norte em pontos comercialmente estra­ tégicos. Mas adverte o autor: “ em número tão resumido que não se destinasse exclusivamente para o consumo” (1). Não se diga, de plano, ser descabida a suspeita; pois naquêles depósitos de mercadorias costumavam permanecer, às vêzes por longo tempo, prepostos dos que se entregavam ao escambo com a gente da terra. Não seria de admirar, portanto, que nas embarcações vindas d’Europa, bovinos destinados a serem aqui desembarcados fizessem parte de seus carregamentos. O Cónego João Pedro Gay, no registrar a atuação dos padres jesuítas em terras do Paraguai, chegou a ponto de asseverar, num rápido lance comparativo, que no Brasil já havia muitos bois e vacas em 1530 (2). É uma afirmativa surpreendente. Pois a data mais recuada que se conhece do ingresso de tais quadrúpedes neste país, é a de 1534, quando chegadas a S. Vicente por obra de dona Ana Pimentel, esposa e procuradora de Martim Afonso de Souza. E a entrada de bovinos na capitania de Pôrto Seguro, segundo um estudioso da formação económica brasileira, ocorrera também naquêle ano, quando os bois deixaram os moldes de suas patas nas fôfas areias de praias baianas (3). y

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Gilberto Freyre, que tanto pesquisou a antiguidade pernam­ bucana, confessa não estar muito seguro de quando entrara o boi no feudo de Duarte Coelho. Inclina-se, porém, o autor de Casa-Grande & Senzala, a aceitar que o referido donatário o tivesse trazido com êle pelos idos de 1535 (4). Não é uma afirmativa, está claro, mas suposição que se nos afigura cabível, pois Duarte Coelho, agricultor em seu país, profundo conhecedor da utilidade do boi nas atividades que implantaria, com caráter de perma­ nência, na sua capitania, era de estar informado que dito animal aqui não existia. Aliás, seu comportamento como administrador, leva a crer que se tivesse precavido; e então, juntamente com a mulher e a parentela, com sementes e talvez com negros escravos que com êle trouxe, tivesse ajuntado alguns bois como parte dos seus pertences. No que respeita a Bahia, está documentado que lá havia bois em 1549. Do contrário, onde a razão da ordem dadh ao tesoureiro Gonçalo Ferreira para adquirir três juntas dêles desti­ nadas aos trabalhos de construção da cidade? É de crer-se, ainda, que Tomé de Souza, ao sair de Portugal, com aquêle cabedal enorme de poderes que lhe outorgara El-Rei, já soubesse da existência de bovinos na colónia, ou então os trouxesse em sua companhia; pois só assim explica-se a presença dos carreiros João Dias de Souza e Martim Gonçalves, como seus compa­ nheiros de viagem (5).

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que as vacas procedentes de Pernambuco tenham chegado à Bahia muito antes daquêle ano, pois o cronista registra o fato como coisa do passado. A dedução que ocorre, portanto, é a de que no derradeiro quartél do século X V I havia tanto gado em Pernambuco, a pònto de se o poder exportar para a capital da colónia. Seria o gado pernambucano originário daquêle supostamente introduzido por Duarte Coelho, em 1535, como chega a admitir o sociólogo de Sobrados e M ucam bos? O que permanece, até o presente momento, é a impossibilidade de se precisar onde e quando as primeiras matrizes de gado bovino surgiram no Brasil, bem como quem as trouxe ou as importou. Restam apenas suposições, como as aqui arquivadas, podendo acontecer que alguma delas contenha a realidade do fato. Mas, até prova em contrário, prevalece a opinião de Aurélio Pôrto sôbre a possível existência de algum documento revelador do segrêdo, dormitando há séculos nos recônditos dêsse ou daquêle arquivo português (10).

N O TAS

E

B IB L IO G R A F IA

(1) Aurélio Pôrto, “ Introdução do Gado na América” , in Anais do Terceiro Congresso de História Nacional, R io de Janeiro, 1942.

O padre Manoel da Nóbrega, na sua Informação de 1549 assinala, exultante, que na Bahia bois, vacas e outros animais progridem magnificamente (6 ). E Pedro Calmon chega ao deta­ lhe de assinalar que o vaqueiro Pedro Gonçalves d’Alpedrinha, em agosto de 1549, ganhava 333 réis de salário, para cuidar de algumas cabeças de gado chegadas das ilhas. “ Podia por isso valer no mesmo agosto de 1549, — acrescenta o autor — um touro velho 13 mil réis, um novilho 1 5 . . . ” (7)

(2) “Naquele país há muitos bois, vacas, poucas ovelhas, as cabras dão melhor que e sta s...” E logo adiante: — “ Tal era o estado do Brasil em 1530, quando o Rio da Prata estava apenas descoberto” . (João Pedro Gay, História da República Jesuítica no Paraguai, Rio de Janeiro, 1942).

É bastante conhecido o episódio da caravela Galga chegando à Bahia, em 1550, com muitas cabeças de bois e vacas trazidas de Cabo Verde; não seriam estas, como vim os anteriormente, as primeiras que alegrariam o povo da recém fundada capital da colónia. Retornando às Ilhas, por ordem de Tom é de Souza, para nôvo carregamento de animais, a histórica náu desapareceu, o que muito lamenta o primeiro governador em carta dirigida a El-Rei.

(4) “ De onde veio para o Nordeste o gado de várias espécies, cuja presença contribuiu para alterar a fisionomia da paisagem em tantos dos seus aspectos essenciais, não é fato estabelecido com in­ teira segurança (grifo nosso). Afirma-se que de Cabo Verde. Ou­ tros supõem que já da capitania de São Vicente” . ( . . . ) “ Ao chegar a o ' Brasil com a mulher, com a parentela, talvez com escravos negros, com bois, com ca v a lo s...” (Gilberto Freyre, Nordeste, pgs. 143 e 175, R io de Janeiro, 1951).

Gandavo — Pero de Magalhães Gandavo — afiançou, em 1573, a muita abundância de bois e de vacas em tôdas as capita­ nias do Brasil. Nesse caso, é de admitir-se tenham tais animais ingressado neste país muito antes daquelas datas que os docu­ mentos conhecidos informam (8).

(5) cional.

Diz Gabriel Soares de Souza, por sua vez, que “ as primeiràs vacas que foram à Bahia levaram-nas de Cabo Verde e de Per­ nambuco. . . ” (9) Não sabemos se se referia às que lá estavam em 1549 ou se às conduzidas pela desafortunada Galga. Mas como Soares de Souza escreveu o seu Tratado em 1587, é de presumir-se

(3) Eduardo Tourinho, Breve História da Formação Económica do Brasil, pg. 35, Rio de Janeiro, 1962.

(6)

IAvro I das Provisões desde 1549, Ms. da Biblioteca Na­ Cartas Jesuíticas, I, pgs. 71, 74 e 98.

(7) Pedro Calmon, História da Casa da Torre, pg. 15, R io de Janeiro, 1939. (8) "O mais gado que há nesta costa são bois e vacas, dêste há muita abundância em tôdas as Capitanias, porque são as ervas muitas, e sempre a terra está coberta de verdura, ainda que em Pôrto Seguro não se queiram dar nenhumas vacas senão o primeiro

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ano, no qual engordam muito que de tanto viço dizem que morrem lôdas” . (Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da Terra do Brasil, pg. 39, Ed. do Anuário do Brasil, Rio de Janeiro, 1924). (9) Gabriel Soares de Souza, Tratado Descritivo do Brasil, Z, pg. 301, São Paulo. (10) “ Não se pode, ainda, de sã consciência, determinar uma data precisa para a introdução do gado no Brasil. Ê possível que, nos arquivos portugueses, se encontrem indicações não reveladas até hoje” . (Aurélio Pôrto, op. cit.)

A EXPANSÃO DO BOI NO BRASIL

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No Brasil o boi instalou-se inicialmente à beira-mar, nos três principais núcleos povoadores da colónia, ao pé dos engenhos, das casas de farinha, comendo ôlho de cana e pisoteando mandiocais, gerando conflitos, às vêzes até sangrentos, entre planta­ dores e criadores. Só anos depois, partindo da Bahia, de Pernam­ buco e de S. Vicente, é que aquêle animal se expandiu por todo o Brasil, levando nesse movimento, até acomodar-se, pelo menos dois séculos: o X V II e o X V III. )— f Da Bahia, tomou o boi os caminhos da hinterlândia; de Pernambuco, rumou pelo litoral; de S. Vicente, seguiu pela mari­ nha e pelo sertão, abrindo em leque para o Norte, para o Sul, para o Centro. Como que indiferentes ao correr do tempo, íam as boiadas trilhando ásperos e intermináveis caminhos, vencendo dezenas, centenas de léguas, repontando em áreas aqui mal devas­ sadas, alí de todo virgens da presença do homem branco, acolá infestadas de bugres. Chegava o dia em que seus condutores cansados do estirão vencido, exaustos dos combates travados, enamorados das regiões ferazes, resolviam parar: fincavam os moirões dos currais; erguiam os esteios e as paredes dos ranchos; alçavam suas rêdes aos ganchos; engatilhavam suas armas e, soltando aos ares seus aboios dolentes — fixavam-se.

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À medida que se multiplicava o gado e progredia a lavoura, tornava-se difícil a convivência de ambos, devido os estragos que a gadaria ocasionava às plantações. Por outro lado, com o desenvolvimento da indústria açucareira, consubstanciada na proliferação de engenhos, acentuava-se a necessidade de vastas glebas para o espraiamento da cana (1). Amiudaram-se as desavenças a ponto de tornar-se inadiável uma intervenção da Corôa; e esta assim o fêz, determinando, por carta régia datada de 1701, o afastamento do gado num mínimo de dez léguas das imediações dos plantios. Os canaviais e os mandiocais não se podiam afastar da beira-mar, onde deitaram raízes e onde estavam as fábricas de beneficiamento e os portos de embarque; mas o gado, locomovendo-se sôbre as próprias patas, teve os ásperos caminhos do interior: iniciava-se, com isso, o desbravamento das incultas regiões sertanejas. Aquêle repelão dado por El-Rei nos criadores de gado, per­ m itiu a êstes apossarem-se de grandes extensões de terras até então de posse do silvícola; e para tanto bastava apenas algum papel e tinta no dizer satírico de Capistrano de Abreu. A Casa da Tôrre, erguida em Tatuapara, na Bahia, pelo velho Garcia

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d’Avila, almoxarife de Tom é de Souza, foi um dos baluartes da expansão do gado, principalmente em direção do Nordeste, salien­ tando-se na história dos seus domínios territoriais as figuras de Francisco Dias de Á vila e a de seu cunhado Antonio Pereira, curiosa mescla de bandeirante e padre (2 ). Em 1590, Cristóvão de Barros consolida a conquista de Sergipe, abrindo nôvo e vasto campo de expansão para o gado baiano. Movimentam-se as boiadas na direção das terras recém conquis­ tadas, até alcançarem a margem direita do rio São Francisco. Alí se espraiam. Apossam-se das ribeiras. Invadem os campos. E tantos são os sítios que por lá se instalam, que o portentoso curso dágua passa a ser alcunhado de Rio dos Currais. Mais ou menos na mesma época opera-se idêntico movimento em Pernam­ buco, embora sem aquela aceleração observada no baiano. Então, subindo uma coluna pela margem direita, a baiana, e descendo outra pela esquerda, a pernambucana, vão as duas vanguardas colonizadoras defrontarem-se no São Francisco. Espalha-se a gadaria pelo Sertão de Rodelas, pateando terras baianas, sergi­ panas e pernambucanas, concluindo-se aí o primeiro impulsd do movimento expansionista que mais tarde atingiria todo o Nor­ deste. Ao longo do São Francisco queda-se o gado por anos. Inverna. Refaz-se das canseiras do arranco inicial. Procria e multiplica-se abundantemente. Descem rêses até a foz daquêle rio e viajando por mar, fugindo à demorada e penosíssima travessia terrestre, vão saciar a fome das gentes da Bahia. De tal forma crescem os rebanhos espalhados nas ribeiras sanfranciscanas, fazendo dali o abastecedouro de todo o Norte, que a cobiça holandesa, ao implantar-se em Pernambuco, viu nisso razão de sobra para justificar o elastério que desejava alcançar no Brasil a Companhia das índias Ocidentais. Então Sergipe e Alagoas são incorporados; e no morro que domina a povoação de Penedo, erguem os bátavos o “Forte Maurício” , assinalando a extrema do domínio holandês para o Sul. A

EXPANSÃO

PARA

O

NORTE

No decorrer do século X V I I I é quando vai iniciar-se a grande penetração, aquela que realmente levará bois e vaqueiros às áreas sertanejas do Nordeste. O gado baiano do São Francisco toma duas direções: uma para o centro da colónia, no sentido das minas, sôbre o qual falaremos oportunamente; a outra desvia-se procurando o norte. A s boiadas que seguem esta última, depois de vararem o sertão da Bahia, na direção da grande curva daquêle rio, avançam pela extrema ocidental de Pernambuco, derivam pelas cabeceiras do Parnaíba, até às margens dêste e invadem o Piauí. Prosseguindo para o norte, pois “ nem o Parnaíba teve poder para conter a onda invasora”, o gado baiano atravessa-o penetrando no Maranhão, onde vai confluir com as levas pernam­ bucanas que, subindo o litoral, montam o rio Itapicurú e infletem sertão adentro. Juntas, tomam as duas correntes a direção

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suleste; e a chifralhada irrompe no Ceará, onde vai encontrar nôvo gado de Pernambuco, que subiu em sentido contrário con­ tornando o traçado irregular do litoral. “ O gado, — diz Pedro Calmon ao escrever a história da Casa da Tôrre — era uma invasão. U m Atila perseverante, tardo e inevitável, por isso invencível. Não havia pará-lo. O tupinambá da costa, o caeté ribeirinho, o carirí da caatinga recuavam. Os bois, remoendo, sonolentos, progrediam. Conquistavam tudo.” Tão logo expulsos os franceses pelos portuguêses da ilha do Maranhão, em 1616, alastra-se o povoamento nas costas do Norte. E desde o rio Jaguaribe até ao Parnaíba, sitiam-se ao longo da marinha numerosas e importantes fazendas de gado, obedecido o estirão da única estrada existente. O sertão ainda é uma incógnita. Aquela veia terrestre saía dos últimos estabelecimen­ tos agrícolas do Rio Grande do Norte, tomava o litoral, atingindo o pôrto de Jericoacoára, no Ceará, ponto final da travessia por terra; dali, então, ganhava-se por m ar a ilha de São Luiz do Maranhão. Essa a razão pela qual Jericoacoára tornou-se impoi'tante núcleo de colonização, e de comunicações com o extremo-norte, vindo ter ao mar a ribeira do Acaracú, cujas pastagens eram famosas para a criação de gados. Não chega a ser demasiado o cômputo de um século para o desenvolvimento dessa irradiação, como disse Basílio de Maga­ lhães, finda a qual encontrava-se o nordeste sertanejo povoado de gados. Criada estava a primeira zona pecuária do Brasil: a do Nordeste. A Casa da Tôrre foi a mais poderosa fôrça de expansão do gado baiano na direção nordestina. Aumentando progressiva­ mente seu latifúndio, a clã dos Á vilas chegou a possuir duzentas e sessenta léguas de testadas na m argem pernambucana do São Francisco, acrescidas de mais oitenta entre êsse rio e o Parnaíba. M esmo com o gado numerosíssimo de sua propriedade, não lhe era possível ocupar tanta terra; então a Casa, no princípio do século X V III, arrendava sítios medindo uma légua em quadra, à razão de 10$000 por ano. Foi partindo de um sítio aforado à Casa da Tôrre, a que dera o nome de Sobrado, instalado à margem esquerda do rio São Francisco e a quarenta léguas de Juàzeiro, que o português Domingos Afonso Mafrense, por ser de Mafra e alcunhado o Sertão, pelo seu amor e pegadiò a essas regiões inhóspitas, rumou com seus bois na direção do Piauí. L á chegando, fundou a sua primeira fazenda, à margem do rio Canindé, batizando-a com o nome de “ Poções de Baixo” . E m seguida, impulsionado pela sêde de devassamento que o devorava, conquista terras do Ma­ ranhão e tôda a parte ocidental do Ceará, do Rio Grande do Norte e da Paraíba sitiando de seu, nas lonjuras de u m Brasil semi-virgem, trinta e uma ’ fazendas. Era um potentado do criatório nos sertões nordestinos, bafejado pela Casa da Tôrre de cujo chefe, na época, fizera-se companheiro. Na volta enorme que deu, circunscrevendo as bacias dos rios Canindé e Piauí, Domingos Afonso saiu de Cabrobó e subiu o São Francisco até

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O m eu boi morreu, Que será de m i m ... V ou mandar vir outro L á do Piauí!

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Êsses versos, na sua singeleza, bem definem a importância do Piauí como área de criatório. Só de lá —* sugere a quadra — poderia vir substituto para o boi m o rto .. . De fato, houve época em que os campos piauienses foram os grandes fornecedores de bois pode-se dizer que do Brasil. A colonização do Piauí começou pela Serra dos Dois Irmãos, prolongamento da Ibiapaba e pela Serra do Douro. Transpu­ seram-nas pastores do vale sanfranciscano, semeadores de cria­ tório, conquistadores de pastagens, o que levou alguém a dizer: — “ O Piauí é descoberta de vaqueiros.” (5) Salientaram-se no povoamento dos sertões nordestinos, notadamente no Piauí, as figuras de Domingos Afonso Mafrense, Francisco Dias de Á vila e Domingos Jorge Velho, todos criadores de bois. O último, bandeirante paulista vizinho de Taubaté, acabara sitiando fazendas em terras piauienses e fazendo guerra ao tapuio juntamente com Domingos Afonso (6). Enquanto o Parnaíba barrava a imigração maranhense, que tentava vencer suas águas de subida, e as serras, ao sul, amorteciam o ímpeto da penetração cearense, vaqueiros baianos desciam ao sabor da corrente no sentido do litoral. Daí, ter sido o Piauí o único Estado do Brasil criado de dentro para fora. Há notícia de que os dois Domingos — o Mafrense e o Jorge Velho — andaram a princípio às turras; mas depois, “como o mesmo ideal os atraía à vida venturosa do sertão, — comenta o padre Heliodoro Filho — reconciliaram-se.” (7) São desconhe­ cidas até hoje as causas de tal desavença que, segundo o referido sacerdote, teria ocorrido entre 1670 e 1672. Mas, que poderia provocar desaguizado entre aquêles homens? Nada mais do que terras, gados, peças de cativos, causas que na época mais contri­ buíam para rixas entre criadores. Não foram poucas as contendas que o Mafrense confessa ter sustentado, por questões de terras. Pereira da Costa estampou um documento inédito, esclare­ cendo ter sido o sertanista e preiador paulista Domingos Jorge Velho o primeiro a invadir o Piauí; e, com isso, diz ter Rocha Pitta cometido êrro ao mencionar Domingos Afonso como tendo sido um dos primeiros que penetraram aquêle território, em 1671, e de se ter encontrado com Jorge Velho por ocasião dessa en­ trada (8). Não vemos é como acusar Rocha Pitta; pois êste declara, textualmente, que Domingos Jorge Velho “chegára àquela parte, pouco tempo antes, que o Capitão Domingos Afonso a entrasse.” Dá, portanto, a prioridade do feito ao brasileiro. E o fato de ter usado a expressão “ um dos primeiros”, é perfei­ tamente cabível, dado o ínfimo número de colonos que alí então existiam. Quanto ao encontro dos dois Domingos, assevera Pedro Calmon ter-se dado em 1679 ou 1680, no que diverge de Pereira dá Costa (9). O documento em que se baseia o historiador pernambucano, é uma carta de sesmaria assinada por Francisco de Castro Morais, governador de Pernambuco, datada de 3 de janeiro de 1705: concede terras situadas às margens dos rios Potí e Parnaíba, no Piauí, a Jerônima Cardim Fróis, viúva do mestre-de-campo Domingos Jorge Velho, e a alguns dos oficiais do Têrço por



a barra do Rio Grande; montou por êste e passou ao rio Prêto; atravessou o divisor de águas e encontrou o Paraim, afluente do Gurguéia, descendo-o e vindo ter ao Parnaíba. Por morte de Domingos Afonso, ocorrida em junho de 1711, suas fazendas foram ter às mãos dos padres da Companhia de Jesus, segundo dispunha seu testamento. Naquêle mesmo ano os jesuítas apossaram-se de todo o espólio, entregando-o à admi­ nistração do padre Manoel da Costa, que, para tanto, fôra nomeado a 20 de agosto pelo padre João Antônio Andreoni, reitor do Colégio da Bahia e primeiro testamenteiro do Mafrense (3). Quando da supressão da Ordem, passaram as fazendas à posse da Corôa que, mais tarde, as vendeu a particulares. Muitos aventureiros e fidalgos, atraídos pela propaganda que das riquezas do Brasil se fazia na Metrópole, transferiram-se ávidos de encontrar aqui os meios de consertar suas esquálidas finanças; mas não dispondo de como estabelecerem-se com pro­ priedade de engenho, preferiram fazerem-se criadores de gado, no interior, a incorporarem-se à plebe que vegetava em derredor da aristocracia do açúcar. Com a alegação de possuírem “muitas fábricas de gaudo de tôda a sorte”, requeriam sesmarias; e estas lhes eram concedidas de terras borradas de sangue indígena. Instalavam-se com fazendas de gado. Então, a posse da terra, e dos semoventes que aumentavam por si mesmos, ensejava-lhes a categoria de hom ens de cálidade satisfazendo, assim, o orgulho e a vaidade que os dominavam. E dava-lhes, do mesmo passo, a riqueza desejada segundo a concepção da época. No derradeiro quartél dos mil e seiscentos, chegando Fran­ cisco Garcia de Á vila ao Piauí, em companhia do Mafrense, teve sua curiosidade aguçada pelo além Parnaíba. Impaciente, transpôs o rio e intemerato avançou por terras do Maranhão até alcançar o Mearím. Isto, todavia, não significou o devassamento completo dos sertões maranhenses, o que só se veio a concretizar no início da centúria seguinte, quando vaqueiros do São Francisco e da Serra da Ibiapaba, em Pernambuco, aboiaram naquelas paragens. Vinham êles das caatingas sáfaras do nordeste sêco, cobertos do pó das estradas crestadas coleando sertão adentro, e extasiaram-se ao alongar a vista pela imensidade dos campos gerais, que avan­ çavam da zona ribeirinha do Parnaíba desdobrando-se na direção do ocidente. Encantados com a região, nela se fixaram, logo batizando-a com o sugestivo topônimo de “Pastos-Bons”. Desa­ lojaram^ os donos das terras, os amanajás, índios louros segundo a tradição. Mesmo assim, sobrava ainda muito chão desconhecido, inclusive aquêle por onde corria o Itapicurú, só desvendado em 1730 com a chegada de colonos do Piauí. Foi quando Aldeias-Altas, hoje Caxias, tornou-se o ponto de encontro das civili­ zações do litoral e do sertão, que se espraiaram por todo o Maranhao (4).





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êle comandado e alí estacionado. É que êsses agraciados, no requerimento que dirigem ao mencionado Governador, solicitando as terras que por fim lhes foram concedidas, declaram que Jorge Velho ‘‘marchou do Piauí para a guerra dos Palmares em 1687, com a sua gente, deixando tôdas as fazendas e lavouras situadas’ nas margens dos rios Potí e Parnaíba, onde tivera seus domínios cêrca de vinte e quatro ou vinte e cinco anos.” Isso levou Pereira da Costa a concluir que o paulista chegara ao Piauí por volta de 1662, doze anos, portanto, antes do Mafrense. Ao mandar lavrar seu testamento a 12 de maio de 1711 na Bahia, Domingos Afonso ditou o seguinte: — “Declaro q u e ’ sou senhor e possuidor da metade das terras que pedi no Piauí com o Coronel Francisco Dias D ’Ávila e seus irmãos, as quais terras descobri e povoei com grande risco de minha p e s s o a ...” Daí possivelmente, o engano que vinha sendo cultivado por alguns historiadores, quanto a prioridade da descoberta do Piauí em que pese a velha e clara informação de Rocha Pitta. Mas 'face o documento revelado por Pereira da Costa, sem dúvida'm ais incisivo, deduziu Anísio Brito que o desbravador português referia-se apenas as terras de suas fazendas (10). tor

® omÍ nS °s Afonso dizendo, no seu papel de legado, despesa, com adjutório dos sócios, e*sem êles, defendi também muitos pleitos, que se moveram sôbre as terras, ou parte delas.” Não estaria aí, de forma algo velada, ligeira referencia aos seus desentendimentos com Dominl o L i l 0rg^r Velí?°' Que ° , Sertão disputou terras com Leonor Pereira Marinho, Viuva de Francisco Dias de Ávila, não há duvidar, ele mesmo informa. E de suas declarações testamenMafrense°(iei ) e ^

1(*eia dos enormes cabedais que possuía o

A presença de Domingos Afonso e de Francisco Dias de Avúa no Piauí, em 1674, está documentadamente confirmada: naquele ano foi determinada uma entrada às aldeias dos Gurguaes Gurguas ou Guruguéa, lioje Gurguéia, tendo sido o segundo nomeado capitão-mór dessa emprêsa. Domingos Afonso ocupava o lugar de simples capitão, subordinado não só ao capitão-mór como ao sargento-mór Domingos Rodrigues de Carvalho. Com a morte do Mafrense, tornaram-se grandes criadores de no Piaui> os Padres jesuítas. Quando a 10 de março de * 0 1 ° governador daquela Capitania os prendeu e os mandou a Salvador, cumprindo os Alvarás de 19 de janeiro e 3 de feve­ reiro de 1759, eram êles proprietários de numerosas fazendas em que haviam muitos currais arrendados a particulares. Além das herdadas do Mafrense, obtiveram outras por compra; porém extinta a Ordem, a Corôa dividiu aquelas propriedades em três departamentos ou inspeções com os nomes de Piauí, Canindé e Nazareth, entregando-os a administradores de sua confianca. Pereira da Costa não só relacionou o número de propriedades e suas extensões, existentes em cada inspeção, como aduz que do inventário feito em 1811, pelo ouvidor-geral D. Luiz de Oliveira 1}essas fazendas 498 escravos, 1.010 cavalos, 1.860 bêstas e 50.760 cabeças de gado vacum, no valor de 179:987$000. Algumas

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fazendas já haviam sido vendidas a particulares. Decorrera um século da morte de Domingos Afonso” (12). A s antigas notícias sôbre as terras do Ceará, para _o criatório, eram as mais animadoras. Já na sua preciosa Relaçao do Siara informava Martins Soares Moreno, na segunda década do século X V I I que: __ “ . . . para pastos de todo o gado são estas terras as melhores que hei v is to .. . ” E o mesmo Soares Moreno, escrevendo a José Martiniano de Alencar, informa que umas vacas que trouxe se dão notadamente, cavalgaduras e gado miúdo, pela mesma maneira.” Frei Vicente do Salvador, na sua H istóna do Brasil, referindo-se ao Ceará atesta: — “ Cria-se na terra muito gado vacum e de tôdas as sortes, por serem para isso as terras melhores que para engenhos de açúcar.” Portanto, nao era sem propósito que o sargento-mor e também naturalista Joao da Silva Feijó recomendava o criatório nos sertões do Ceará; pois ali de nada servia a terra para o plantio, sendo excelente para animais (13). A s primeiras manadas de bovinos que patearam chãos cea­ renses vieram diretamente de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte; e as fazendas de criar, sitiadas inicialmente naquêle Estado, foram instaladas à margem do rio Jaguanbe em belas e ricas várzeas de aluvião. Até pelo menos metade do século X V II, era reduzido o número de rêses que mugiam aos ares cearenses; mas, ao fim daquela centúria já havia muito gado naquela região. ^ Se foi à cata de gado que o holandês se botou para o Ceara, do qual se apoderou em 1637, sua desilusão deve ter sido grande, alí, encontrara apenas 221 cabeças. Pouco depois, informava o tenente van Ham que já se contavam 250 (14). Esse gado detinha-se nas proximidades do litoral e descendia da cnaçao iniciada por Soares Moreno. N o interior, porém, já havia abun­ dância; pois André Vidal de Negreiros ao vir do Ceará, em 1647, em companhia de Barbosa Pinto, reuniu 700 rêses levando-as ao campo dos brasileiros que combatiam o invasor bátavo. Se o Forte de Nossa Senhora de Assunção, sede do govêrno, não tinha meios para impulsionar a colonização do interior, essa vai dar-se com o auxílio do Jaguaribe, ponto de junção de duas correntes penetradoras: a pernambucana, que vem pelo sertão de fora e a baiana, que viaja pelo sertão de dentro. E quando entrando por aquêle rio, virgem da presença de homem branco até 1681, Manoel de Abreu, Teodósio de Gracismao e outros, oriundos do Rio Grande do Norte, vão iniciar o definitivo povoa­ mento do interior cearense. Nesse movimento foi decisiva . | £ P • . ' > ) £ * v ) ) I

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zação de certas áreas em caráter definitivo.” Nos campos de pastoreio do extremo-norte, o boi sempre foi livre: nunca o humilharam, como aconteceu nas regiões da cana de açúcar mesmo porque na Am azônia a civilização tomou por diferentes rumos. Francisco Rodrigues Pereira, alcunhado o Vilão, carpinteiro de oficio, foi o primeiro a sitiar fazenda naquelas paragens Assentou-a no Amamgetuba (Amanintuba-algodoal), à margem esquerda e logo acima da bôca do mais importante rio da região o Ararí. Dentro em pouco, levado pelas suas incli­ nações'pastor icias, vai Rodrigues Pereira sitiar, mais acima da primeira,_ as fazendas Cachoeira, Páu Grande, Santa Rita de Meias, Sao Joaquim e mais uma na Lagoa do Patá. Baena — Antomo Ladisláu Monteiro Baena — fo i de opinião que aos mercedários (religiosos da Ordem das Mercês) coube a implan­ tação do criatório na Ilha; porém Ferreira Pena o refuta mos­ trando que o Vilão foi o iniciador da emprêsa. (25) plan.tada em terra feraz, frutificou o exemplo '° dado, carpinteiro; e não tardaram a seguir-lhe os rebgl°.sos de várias Ordens: foram os da Companhia de OS da nrrWnJeHU av ° S- da 0rdem do Carmo — os carmelitas; os da Ordem das Merces — os mercedários. Entre os partiAÍÍdí^rn116- ° ™ ltaFam> Pode-se mencionar Manoel Alves Rocho MnntAirCr. Hin°NTPereÍra’ Antonio Furtado de Mendonça, Domingos Monteiro de Noronha, Manoel Barbosa Martins, Antônio Fran­ cisco Portfehz, Lourenço Ferreira de Moraes, André Fernandes Eavj nha- Florentmo da Silva Frade, cujas fazendas se localiM S l c ú ^ í w f p 1 da Ilha- tÔdas às margens dos rios Ararí, Marajo-Açu, Camará, Paracauan ou Igarapé-Grande, Anajás, bem d ™ l T l S ? m,d e f SeUS afluentes. Na costa oceânica, só “ ! p°ífolde 1757 é Ç(ue foram situadas fazendas de criação, entre as quais estavam a S. Jose, a S. Catarina e a do Carmo. TrAT-.ís!? /í 702; imPressionado com as possibilidades da região terra naCd T lh-m m f0rm a ^ E1-Rei “ser tanta a fertilidade dá „ „ ria ” ,a os maiores incentivadores da criação bovina e cavalar no Marajó. Estabelecendo-se. inicialmente, na Ilha de S antA na, na íoz ao rio Ararí, expandiram-se depois pelos lavrados da região co engenhos e currais. Consumada a expulsão dos Jesuítas, por ordem do Marquês de Pombal, livraram-se os Mercedários dos seus ™ ais acérrimns concurrentes- foi quando aumentaram seus já abundantes ha v e r e r f S o n a n d o novos rebanhos e propriedades, dominando Jssfm a mm?s sólida fortuna da Província. Nem o arremedo de democratização da propriedade íâtifundiaria da llha co^su s ciado na distribuição das terras dos macmnos, os abaiaram, continuaram mantendo a tradiçao do latifúndio feudal. Mas a sorte dos mercedários não seria muito diferente ^ dos jesuítas; pois absorvendo-se na faina de criar e enriqi _ » descuraram-se êles completamente das obngaçoes de B dão ritual O bispado paraense, na pessoa de D. Caetano Branaao, resolveu pôr um paradeiro na situação, o que fez encammhand

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ao Papa um pedido de extinção da Ordem, no Pará, e sugerindo que os enormes cabedais dos mercedários fôssem aplicados em obras de caridade e de amparo social. Pio V I promulgou uma bula transferindo ditos religiosos para Portugal e confiscandolhes os bens então calculados aproximadamente em tresentos contos de réis. (30) Mas o Estado não deixou que se levasse a efeito os propósitos do bispado: locupletando-se das fazendas dos mercedárioSj transformou-as em próprios nacionais, acabando por vendê-las a particulares, em 1895. Do têrmo do inventário daquêles religiosos, consta que os gados então existentes em suas fazendas, calculados pelas ferras dos anos anteriores ao de 1794, somavam 30.000 bois e 40.000 vacas, que regulavam a 1$000 por cabeça; sendo que o gado cavalar m ontava a 8.000 unidades, avaliado a $600 cada. Pos­ suíam os mercedários as fazendas de N. S. das Mercês, S. Pedro Nolasco, no rio Ararí, e a de S. Lourenço; sendo que a primeira com sete retiros (currais) a saber: São José, S. Jerônimo, S. João, S. Miguel, Guajaraí, Jenipapucú e Fortaleza; e a terceira com dois retiros: Santo André e Sant’Ana, no rio Paracauarí. Os Jesuítas foram outros grandes criadores no Marajó. Che­ garam ao Pará, em 1635, na pessoa do padre Luiz Figueira. Industriosos e ativos, acabaram donos de 134.465 cabeças de vacuns e 1.409 cavalares, só na Ilha. A o serem expulsos, seus bens foram rateados entre oficiais militares e pessoas casadas vindas do Reino e estabelecidas no Pará, seguindo-se os oficiais brasileiros casados e, por último, pessoas distintas, casadas e residentes no Estado desde que não possuíssem bens de raiz competentes. Excluiram-se os donos de terras sem benfeitorias e os que mostrassem incapacidade de progredir. Os beneficiados com terras ao longo do rio Ararí, passaram a ser chamados de contemplados; seus lotes mediam meia légua de frente por três de fundo, não podiam sair da família dos contemplados sem licença especial da Tesouraria da Fazenda, e seriam restituídos ao Estado, se êste os exigisse, com o mesmo número de cabeças de gado, ou o seu equivalente, com que foram doados, sob pena de cadeia. (31) Foram plados” :

as

seguintes

as chamadas “ Fazendas

dos Contem­

São Carlos — doada a Joaquina Ana da Costa. São Francisco — mingos Pessoa Lim a.

doada ao Sargento de

Sta. Helena de Nazaré — doada Rebelo de Barros e Vasconcelos. Rosário —

ao

Granadeiros

Do­

Tenente Diogo Luiz

doada ao Alféres Francisco da Costa d’Almeida.

Santa R osa — doada a Gaspar da Conceição. Boa Vista — doada a José Bernardo da Costa. São João de D eu s — doada ao Capitão de Infantaria José Antônio Salgado.

Menino Jesus — Oliveira. Rem édio — Costa.

doada

doada ao ao

Sargento-mor José

Batista de

Capitão-mor José Miguel

Aires da

Santos Reis — doada ao Tenente de Infantaria José Garcia Galvão. Santa Bárbara — doada ao Capitão de Infantaria Luiz Gon­ çalves. Nossa Senhora do L oreto — doada a Diogo Pires. Ananatuba — doada a Manuel Pais Pereira Feio. B o m Jardim — doada a Manuel Machado. Santo Inácio — doada a Manuel J. de Lima. Santo Elias — doada a Manuel Caetano de Azevêdo. Santa (ilegível) do Lago — doada a Plácido José Pamplona. Nossa Senhora do M onte — doada a Vitorino da Silva. Conceição — doada a Manuel de Azevêdo. São Luiz — doada a José Pedro da Costa Souto Maior. São Francisco — doada a Domingos de Moraes. São M iguel — ignora-se a quem foi doada. Qs Carmelitas calçados surgiram no Pará em princípios de 1626; e chegaram a acumular 18.000 cabeças de bovinos. Nunca foram considerados grandes criadores, embora se tivessem dedi­ cado à pecuária. E m 1783, segundo Manoel Barata, havia na Ilha de Marajó 153 fazendas de gados vacum e cavalar, sendo que em 1803 somavam 226 e só de bovinos agasalhavam 500.000 cabeças. (32) E segundo estampa J. R. da Costa Aguiar de Andrade, no triénio 1816-1818, ferram-se alí nada menos de 57.905 bois, 51.459 vacas, 16.980 cavalos e 20.163 éguas. (33) Mas no ano de 1881, conforme se vê de um mapa constante do Relatório apresen­ tado pelo Barão de Marajó, na época presidente da Província do Pará, embora as fazendas da Ilha tivessem aumentado para 229, era de 193.672 o número de cabeças de gado vacum e de 7.748 de cavalar. Visível, portanto, a decadência. A Ilha de Marajó é o maior celeiro de búfalos do Brasil. Êsse animal adaptou-se admiràvelmente ao clima local e é hoje um dos maiores recursos económicos daquela região, por sobres­ sair-se aos demais tipos de gado marajoára não só em pêso, que supera o do boi comum, como pela excelência da carne. Atualmente, nas quase 900 fazendas situadas na Ilha, perto de 700.000 rêses pastam nos seus campos.

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Voltemo-nos, agora, para outra área pastorícia do extremonorte. É de aproximadamente 35.000 quilómetros quadrados a extensão dos campos do rio Branco, afluente do rio Negro, que toma a direção da Guiana Inglêsa cortando o território brasi­ leiro também chamado de Rio Branco. Sua planura, revestida pelas campinas, é tipicamente uma peneplanície gnaíssica. A vegetação caracteriza-se por plantas xerófilas e silícolas, sendo na sua quase totalidade herbácea, donde os “campos” separados entre si por manchas de “serrados” ralos, cujos “caimbés” e “merixís”, monimiáceas taníferas, representam as plantas expres­ sivas, de 3 a 4 metros de porte, ramos e caules tortuosos, folhas silicosas. (34) Aqui, acolá, elevações de 150 a 160 metros, che­ gando a 250 na parte norte da planície. São os hoje conhecidos “Campos de São Marcos”, nome da grande fazenda governa­ mental que se situa na confluência dos rios Branco e Urariquera, única das três antigas fazendas nacionais existentes naquela área, que sobrou. Por serem naturais, francos, contínuos e limpos, os campos do Rio Branco são uma oferta da natureza para a criação de gado vacum, cavalar e lanígero, sem exigir trabalho algum de preparo especial. Suas pastagens são como as do Rio Grande do Sul, dividindo-se em pastos sêcos e pastos úmidos, njío faltando também lá os banhados e alagadiços nas baixadas marginais dos rios e igarapés. Os campos sêcos estendem-se pelos terrenos altos que os níveis das enchentes não atingem; os campos úmidos espalham-se pelas depressões transitoriamente alagadas. Lindos igarapés serpenteam por êles, em tôdas as direções, suas margens enfeitadas de renques de palmeiras “miritís”, tal qual os magestosos buritizais que embelezam o interior do Planalto Central do país, refúgio predileto do gado nos dias de calor abrazante. Quem vai introduzir boi nos campos do Rio Branco é Manoel Gama Lobo d’Almada, homem chegado do setôr de Mazagão, baluarte levantado por D. Manoel I, em África, onde se distin­ guira e merecera louvores oficiais. Começa, no Brasil, por nomeação régia de 5 de setembro de 1769, comandando a fortaleza de Gurupá e governando a região da mesma; além disso, por ordem do capitão-generál Nuno da Cunha de Ataíde Teive, inspe­ ciona as obras de fortificação daquela praça de guerra, que estavam por concluir. Mas a idéia de meter gados no Rio Branco partiu originàriamente do general João Pereira Caídas, chefe da Partida Lusitana da comissão encarregada de demarcar os limites de Portugal e Espanha no Novo Mundo. Lobo d’Almada a concretiza. (35) Gados vão chegar aos campos do Rio Branco em fins do século X V I I I ; pois ainda em 1777, o ouvidor-geral Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, na sua Relação Geográfica-Histórica do Rio Branco da América Portuguêsa, chama a atenção para a ausência de gados em campinas tão férteis e boas para o criatório. Várias outras vozes, como as de Antonio Pires da Silva Fortes, Alexandre Rodrigues Ferreira e Agostinho José do Cabo, juntaram-se à de Ribeiro de Sampaio, proclamando a excelência da região para a pecuária. (36)

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Pretendendo tornar realidade o projeto de Pereira Caídas, em maio de 1787 Lobo d’Alm ada determina a aquisição de touros, novilhas e vacas de produção, às suas custas, em Moura e Carvoeira, encarregando o alféres Nicoláu de Sá Sarmento de realizar a compra. Vendo na emprêsa futuro compensador, João Bernardes Borralho, comandante do fortim de São Joaquim, "fronteiro” ilustre, não titubeou em imitar o gesto, mandando vir para si doze novilhas. Atento ao progresso de Lobo d’Almada na concretização do plano que lhe recomendára, Pereira Caídas não lhe regatea auxílio, ao mesmo tempo que faz ouvidos môcos aos resmungos dos derrotistas; e, com seu entusiasmo, contagia o capitão-general Martinho de Souza e Alburquerque, governador do Estado, a ponto dêle mandar fornecesse Alemquer as cabeças necessárias a tão “útil estabelecimento.” E vieram novilhas, igualmente, das povoações e vilas do Solimões e do Rio Negro. Ainda não de todo criadas as fazendas de São Bento, São José e São Marcos, nelas já dava entrada gado vacum do patri­ mónio das igrejas da Capitania, juntamente com gado cavalar e algumas rêses chegados de vários pontos do interior, de Içá e Maranõn, possessões espanholas do Alto Rio Negro, Vêm , na esteira, os criadores particulares: é Nicoláu de Sá Sarmento, é Bernardes Borralho, é um José Antônio Freire Évora associan­ do-se à fundação do núcleo gerador dos atuais rebanhos do Rio Branco, é Bento José do Rêgo, que em 1797 vende ao Estado, por 492$000, as 186 cabeças de sua fazenda. Foram êstes, com o Govêrno, os criadores da pecuária nos campos do Rio Branco. A lém dos estabelecimentos riobranquenses, Lobo d’Almada, apai­ xonado pela emprêsa, funda outros nos campos de Acajutuba, nas proximidades da barra. E m 1806, segundo estatística oficial, já se podia somar nas campinas do Rio Branco, 68 cabeças de gado cavalar e 2.126 de vacum. Doze anos depois, novos dados oficiais informavam a existência de 4.347 cabeças do segundo e 118 do primeiro. Pro­ gredia, assim, o criatório riobranquense. Havia, ainda, o gado alçado, não consignado pelos números oficiais, mas que deveria ser ponderável, pelo fato da íntima quantidade de vaqueiros no controle das manadas soltas nos campos gerais, campos êsses que se alongavam até às fronteiras do Surinan e das colónias espanholas. A 5 de setembro de 1852, o governador da Província do A m a­ zonas, D. Manoel Gomes C o rreia ' de Miranda, comunicava à Assembléia Provincial que nas duas Fazendas Nacionais exis­ tentes no Rio Branco, pastavam 2.111 cabeças de gado vacum e cavalar; e nas propriedades particulares havia 675 animais entre bovinos e equinos. Outro documento^ — aliás bastante prejudicado pela traça — registra que em 1857, na fazenda nacio­ nal de São Bento, existiam 2 .4 5 5 bovinos e 280 equinos, aos cuidados de 14 vaqueiros. O m esm o documento informa que alguns anos depois aquêle gado havia proliferado substancial­ mente, pois já algarismava respectivamente 6.140 e 778 cabeças, pelo que o autor da inspeção reclamava não só maior número de vaqueiros, como a remessa de farinha para a alimentação

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dos mesmos, a fim de evitar que “a vão comprar nas malocas donde algumas vêzes voltam com menos do que levam.” (37) O Barão de Maracajá, na “fala” que recitou perante a Assembléia da Província do Amazonas, em 1878, disse o seguinte: — “ Não é preciso encarecer-vos as vantagens que êstes campos (do Rio Branco) podem trazer à tôda a Província e especialmente à esta Capital, desde que haja para êles uma comunicação franca.” A idéia não era nova; porque, como informava o mesmo presidente, “Algumas das passadas admi­ nistrações ocuparam-se de tão vantajoso e importante assunto, porém não deu-se um só passo afim de facilitar a comunicação com aquela rica região.” E acrescentava o Barão: — “Para chegar a êsse fim é necessário saber-se o que mais convém: se abrir uma estrada dos referidos campos à esta capital, ou se ao Rio Negro abaixo ou acima da fóz do Rio Branco, ou se até abaixo das cachoeiras deste rio. E m todo caso é indispensável uma explo­ ração regular que demonstre qual das direções é mais vantajosa, conforme a extensão das matas a atravessar e outros embaraços a vencer. Até o presente não se conhece a extensão desses afamados campos.” Por fim, revela o presidente Maracajá a providência que determinara, embora não muito seguro de sua realização e sucesso: — “A o atual comandante do Forte de São Joaquim incumbi de ver se alguns índios conhecedores dos campos, e que nêles moram, querem tentar vir por terra à esta capital ou ao Rio Negro abaixo ou'acim a da fóz do Rio Branco, assina­ lando o caminho que tiverem percorrido: mas não se lhes ofere­ cendo vantagens pecuniárias difícil será a realização dessa incum­ bência.” Venceu, porém, o pastoreio do Rio Branco. Hoje, e desde muito tempo, na época das cheias, descem rio abaixo as boiadeiras, que são conjuntos de lancha e batelão, pejadas de gado daquelas ricas campinas, para abastecer o mercado de carne da cidade de Manáus. A

EXPANSÃO

PARA

O CENTRO-OESTE

Já estava o gado senhor de imensa área ao longo do Rio São Francisco quando ouviu-se, partido do coração do Brasil, um estertorado grito de vitória, que reboou por tôda a colónia e foi repercutir estrondosamente na Europa: — Ouro! Ia ter início o ciclo do metal precioso, e por igual dos diamantes, que ampliaria consideràvelmente a geografia do boi no Brasil. Partindo, inicialmente, das ribeiras sanfranciscanas, — é o outro braço da expansão baiana — e depois de Pernambuco, do Rio Grande do Norte e do Piauí, manadas de bovinos vão penetrar nas regiões das minas, espraiando-se, posteriormente, pelas áreas matogrossenses e goianas. Invadindo o centro-oeste, iria o boi transformar tôda essa extensa região na hoje mais importante zona pastoril do Brasil substituindo, como riqueza económica, o ouro e os diamantes após o esgotamento das minas. Tôda a zona pecuária do centro-oeste, assim considerados os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, decorre da mineração.

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Confirmada a descoberta dos mananciais , auríferos, deu-se inusitada corrida na direção das minas. De tôdas as partes da colónia, até então povoadas, contingentes humanos puseram-se a caminho rumo ao Eldorado. Dominados pela febre do ouro, empreendiam longas e perigosas caminhadas, vencendo centenas de léguas, nas mais precárias condições, talvez atraídos pela mulher dourada que surgia nas entradas das minas, transformando-se depois em tocha para em seguida desaparecer, como reza a lenda. E não foram poucos os que morreram no trajeto, ponti­ lhando de cruzes as beiras das estradas. Em vão, porém, a advertência: as colunas avançavam sempre, umas empós outras, seus componentes como autómatos da cobiça, incapazes de resistir ao chamado do ouro. Despovoaram-se as plantações. A agroindástria açucareira sofreu tremendo abalo, rareando braços para os seus afazeres. Desorganizou-se por completo a produção no Brasil. Para as m in as vendiam os agricultores, por prêços altíssimos, suas escravarias: e a negralhada ía penar nos postos de garimpagem. Enfraqueceram-se as fôrças armadas, pelas deserções e pela falta de quem quizesse meter farda ao lombo, a ponto Del-Rei mandar alistar compulsòriamente todos que do Reino aqui chegassem sem passaporte oficial. Periclitaram os ofícios religiosos, pela carên­ cia de párocos, enquanto uma padraria desmesurada fervilhava nas minas, cometendo tôda sorte de atentados a Deus. De Portugal, do continente e das ilhas, transferiram-se aos milhares os habitantes, levando a Corôa a decretar severas medi­ das restritivas, a fim de contêr o ímpeto dos que desejavam imigrar para a colónia. Usava-se, porém, de todos os ardis para alcançar tal fim. Se no Brasil governadores lamentavam-se, entre si, pelo esvasiamento populacional de suas jurisdições, de que é testemunho a carta de D. Álvaro da Silveira Albuquerque, datàda de 5 de maio de 1704, na Metrópole era o Conselho Ultra­ marino, pela voz do conselheiro Antônio Rodrigues da Costa, que alertava a Corôa para o perigo da imigração em massa. E ao padre Antonil, ao descrever as opulências do Brasil, não escapou o fato (38). De 1705 a 1750, aproximadamente 800.000 pessoas se passaram de Portugal ao Brasil. Êsse fato levou alguém a dizer que: — . "V iu-se em breve tempo transportado meio Portugal a êsse empório.” A essa altura, nos meios políticos da Metrópole, notava-se o receio, mais ou menos velado, de que a colónia tentasse obter sua independência. No caso das minas, um só pensamento a todos empolgava: o enriquecimento rápido. E a Corôa, por sua vez, organizada a exploração, não tinha outro objetivo senão o carreio de arrobas de ouro para as suas arcas. Durante essa alucinação coletiva, todavia, magno problema se não fôra de todo esquecido, foi pelo menos relegado a plano secundário: o do abastecimento. E o resultado é que muita gente, possuindo verdadeiras fortunas em pepitas, acabou morrendo exclusivamente de fome. E m 1618, muito antes de descobertos os grandes mananciais auríferos, embora já se esquadrinhasse o Brasil à cata do fulvo

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metal, Ambrósio Fernandes Brandão, no seu Diálogos da Grandeza do Brasil, proclamava a certeza da existência de riquezas mine­ rais nestas plagas, por ser “ o Oriente mais nobre que o Ocidente e portanto o Brasil mais opulento aue o Perú.” Advertia porém— “O primeiro que se devia fazer antes de se bulir nelas, depois de estarem certos de que eram de proveito, houvera de planta rem-se muitos mantimentos ao redor do sítio onde elas estão e como os houvesse em abundância tratar-se-ía da lavoura das minas.” Mas, conservados inéditos os Diálogos, não poderiam lograr eco os conselhos nêles contidos. De mais a mais, já nessa epoca, era o Brasil o paraíso da imprevidência. . . Encontrando terreno propício, a fom e instalou-se entre as populações das mmas. Desesperado com a falta de alimentos' o povo devorava ratos, cobras, cães e gatos; devastados êsses ‘ imundos animais”, íam as levas aos matos, senhores e escravos a sustentarem-se com frutos silvestres que nêles achavam.’’ For,f.™ varios os Pfnodos de fome que martirizaram tôda aquela multidão empregada na “caça” do ouro (39). E mister é reco­ nhecer-se que grande parcela de responsabilidade recaía sôbre a Coroa, pois esta nao só proibiu qualquer outra atividade naquelas áreas, que nao a garimpagem, como ainda mandara fechar os caminhos que ligavam o centro minerador a outras regiões, numa tentativa de sustar os descaminhos do ouro. Por outro lado se tal medida prejudicou o abastecimento das populações mineradoras e incentivou o contrabando, forçoso é reconhecer que incrementou o desenvolvimento do criatório naquelas áreas e suas imediações. lHá -u“ doc,um.?nt° ? ouco Posterior a 1705, citado por Orville Derby.intitulado Os Primeiros Descobrim entos de Ouro' dos Dis­ tritos de Sabara e Caeté, que nos informa assim : — “Pelo dito rio (de S. Francisco) ou pelo seu caminho, lhe entregam o gado de que se sustenta o grande povo que está nas minas, de tal sorte que de nenhuma outra parte lhe vão nem lhe podem ir os ditos gados, porque os não há nos sertões de São Paulo nem nos do Rio de Janeiro. Da mesma sorte se provêm no rio S S afo“ ^ e í arin.^as e °«tra s coisas, tôdas precisas para o trato e sustento da vida. O n o S. Francisco desde a sua barra que faz n o mar junto à vila de Penedo, em igual distância de oitenta léguas da Bahia e Pernambuco, de uma e outra parte assim do que pertence à jurisdição de Pernambuco como à dá Balna (para os quais serve de divisão o dito rio) tem às suas poy ° açoes> umas niais chegadas, outras mais disê?P f 10’ 6 5 a me.sma forma se vão continuando por ele acima, por espaço de mais de seiscentas léguas, até se junta­ rem nas barras que nêle faz o Rio das V elh aí? Im cuja ahura do í d e S ef t 3n í r aS fazendas de gado de uma e outra banda nnr+pCrfOc ™ ™ ^ r anC1SC0’> sem ter da dita barra até esta altura ou S b S a r ir , deserta. emL a Qual seja necessário dormir ou albergarem no campo os viandantes, querendo recolher-se na casa dos vaqueiros, como ordinàriamente fazem, pelò bom acolhi­ mento que nelas recebem.” (40) -

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Êsse documento é um atestado de como se encontrava povoada de bois, de uma e outra banda, a região sanfranciscana, até se íuntarem nas barras que nêle faz o Rio das Velhas,^ em cuja altura se acham hoje as últimas fazendas de g a d o .. . Repeti­ mos êsse tópico, porque Miguel Costa Filho, em recente estudo sôbre a cana de açúcar em Minas Gerais, diz que nao e de crer que no alto São Francisco e nas beiras do maior de seus afluentes, o Rio das Velhas (o Guaicuí e Guaibn dos indígenas), já houvesse, desde muito antes, fazendas de criaçao, como se tem dito.” (41) Para assim deduzir, reporta-se ° _ ilustrf blst ° n ad ° ’: mineiro a uma carta de João de Góis e Araújo, datada de 6 d março de 1701, dizendo, entre outras coisas, que um genro e dois cunhados de Manuel de Borba Gato tinham precisado ir ao Arraial do Mestre-de-Campo Matias Cardoso para adquirir gados. Isso não implica, porém, a nosso ver, que ao âlvorecer dos^m u e setecentos já não houvesse currais às beiras do Rio das Velhas, pois o documento citado por Derby, que afirma a existência de tais currais, é pouco posterior a 1705 e, naquela época e naquelas lonjuras, não seria em tão poucos anos que se instalariam a referidas “últimas fazendas de gado.” O Rio Grande do Sul também fornecia gado para as minas, gado êsse que, em 1734, já pagava direito de passagem em Curi­ tiba e vinha até Sorocaba, onde era adquirido por boiadeiros oriundos do centro do país. Antes da primeira metade do século X V I I I , inúmeros estabe­ lecimentos de criação situavam-se ao longo dos caminhos que, do sertão da Bahia, levavam à Minas Gerais e Goiás. A s fazendas de Manuel Nunes Viana, o comandante dos emboabas, chamadas uma “Pau-a-pique” e outra “Palma” , ficavam nas proximidades da vila de João Amaro. Antônio Gonçalves Figueira, que com Domingos Jorge Velho andara no combate a indígenas pelos sertões nordestinos, era dono da “ Montes Claros” e havia insta­ lado a “ 01hos-d’água” e a “ Jahyba” , vendendo-as a Estevão Pinheiro; e desse mesmo proprietário eram as convizmhas Boa-Vista” e “ Irity” . Aos órfãos de Januário Cardoso pertenciam a “Angico” e a “ Joàzeiro”. Afora aquêles cujos nomes perderam-se na bruma do tempo, tinham ainda fazendas naquelas paragens sanfranciscanas o capitão-mór Tomás Correia Pimentel, os dou ores José Correia do Amaral e João Calmon; o padre Miguel de Lim a; o sargento-mór José de Magalhães; o tenente-coronel Ber­ nardo Cardoso; o padre Antônio Dourado do Monte: o mestre-de-campo Pedro Leolino Mariz; e mais Francisco Vieira de Lim a, Antônio Velho Maciel, Antônio Teixeira Marinho, Joao Velho de Melo, Antônio de Souza, André Pacheco Pimenta, e m dOTia Joana, por sinal grande proprietária, naquelas vastidões serta­ nejas (42). _ Mas o rush para as regiões mineiras nao se verificou só nas Gerais. Divulgada a notícia dos descobertos de Goiás, correram das outras capitanias homens em tropel e em menos de um biénio era imenso o povo que se reunia em terras goianas. ( ) Embora revezando-se as tropas de víveres e fazendas, como acentua o ilustre historiador das Bandeiras Paulistas, suas cargas

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não bastavam, tal a população que se aglomerou nos chamados sertões dos Guayazes. E a fome também os atormentou. Os gados dos currais da Bahia, de Pernambuco, do Piauí e do Mara­ nhão é que, mais uma vez, solucionariam o problema. Com as minas goianas repetiu-se aquela mesma segregação que a Corôa impusera às Gerais. A preocupação de evitar o desvio do ouro era uma constante. José Afonso Mendonça de Azevedo registra apreensões de mercadorias destinadas às Minas Gerais, feitas a mando de Manuel de Borba Gato ou por êle pessoalmente, pelo fato de terem vindo “pela estrada proibida da Bahia” (44). N o que refere a Goiás, o Conde de Sarzedas, depois de proibir o plantio de canaviais e a instalação de enge­ nhocas de aguardente, expediu Bando estabelecendo uma via única para a região aurífera, caminho êsse que, saindo de São Paulo, cortava Jundiaí e Mogi das Cruzes, rumando até às ditas minas. E sabendo que dos currais da Bahia, do São Francisco e de Minas Gerais chegavam boiadas, escravos e carregações de fazendas, a Goiás, ordenou ainda Sarzedas o sequestro e confisco de tudo que, vindo de fora, alí penetrasse (45). Só boiadas tinham jivre o caminho para as Gerais. De nada adiantavam, porém, as repetidas ordens e medidas de obstrução dos caminhos; pois assim como por êles penetravam as manadas, pelas mesmas vias escorregava o ouro tão cobiçado pela Metrópole, escondido até nos cabos das facas dos vaqueiros, camaradas e tropeiros. A febre aurífera goiana não foi além de um quarto de século. Esgotados os mananciais, dispersas as populações aventureiras, coube ao gado apossar-se das terras sáfaras, transformando-se a pecuária na maior riqueza daquêle Estado central. Referindo-se à pecuária em Goiás, registrou Saint-Hilaire o seguinte: — " A comarca do norte, que possui pastagens imensas, e é mais próxima do litoral que a do sul, envia todos os anos consideráveis manadas de bois à Bahia. A do sul, se bem que menos vantajosamente situada, manda também gado para fora da província, e poderia, provàvelmente, enviar mais ainda se aproveitasse melhor suas ricas campinas. N a verdade, quando estive no norte da comarca do sul, na paróquia de Santa Luzia, onde existem várias pastagens naturais, os habitantes se queixa­ vam de não se poderem desfazer das boiadas senão enviando-as a Bambuí ou a Formiga, afastadas de cêrca de 130 a 146 léguas e, por conseguinte, de só retirarem lucros insignificantes. Mas. como já o disse noutro lugar, os mercadores de São João del-Rei vão, todos os anos, a Araxá comprar os gados dos colonos; por outro lado, enquanto viajava entre B om F im e Santa Cruz, as povoações mais meridionais da província de Goiás, encontrei homens de Araxá que percorriam a região, permutando diversas mercadorias por cabeças de gado que carregavam para engordar nos seus pastos, até que os vizinhos as viessem buscar.” (46) Essas declarações do fiél cronista, são prova do desenvolvi­ mento da pecuária nas regiões goianas, depois da mineração.

Descoberto o ouro em Mato Grosso, na segunda década dos mil e setecentos, vai ampliar-se, mais uma vez e desmesurada­ mente, a geografia do boi no Brasil. É no pantanal que a gadaria se acomoda, pululando por tôda a sua vastidão os principais estabelecimentos de pastoreio, encravados nos campos periòdicamente fertilizados pelo banho das águas dos afluentes do Pa­ raguai (47). Relatando o que foram os primeiros anos de Cuiabá e Mato Grosso, disse Taunay que “ apenas conhecida a riqueza do terreno, começaram a fluir por terra com infinitas dificuldades e maravi­ lhosa perseverança gado e mantimentos.” (48) Espalhada a notícia do nôvo Eldorado, teve início a desabalada corrida dos eternos caçadores de riquezas fáceis, dos aventu­ reiros que pretendem obter num átimo o que só se consegue após tôda uma vida de perseverante labor. Repetem-se, então, ao longo das vias de acesso a tão inhóspitas regiões, aquelas mesmas tragédias que emolduraram o caminhar das levas humanas para as outras áreas em que o ouro se oferecera (49). Não sei de outra riqueza que, em todo, o mundo, tenha custado tão cara ao homem obtê-la! A princípio, os indígenas guaicurús e paiaguás ofereceram tenaz resistência aos invasores de suas terras, os segundos impe­ dindo a ocupação do pantanal. Tingiram-se de sangue as praias dos rios e o acamado dos campos, porque a mortandade foi enorme. Porém, com a ocupação do Forte Coimbra, ameaçando as canoas paiaguases que se resguardavam em Assunção, onde mercadejavam as mercadorias saqueadas, e com o solene pacto de paz, assinado com os guaicurús a l . ° de agosto de 1791, paci­ ficou-se a região por tantos anos conturbada. Foi quando uma legião de fazendeiros encorajou-se a sitiar fazendas nas paragens mais próximas à faixa ocupada expandindo-se, posteriormente, parà as mais afastadas. De Cuiabá e da estrada que levava à Vila Bela, irradiou-se a onda povoadora no sentido dos cursos d’água. Generaliza-se, como unidade territorial, a sesmaria de uma légua de frente por três de fundo, equivalendo a 13.068 hectares. O ingresso do gado nas áreas matogrossenses foi quase conco­ mitante com a do garimpeiro e a do faiscador. Visando povoar de bois as novas minas, o governador Rodrigo César de Menezes expede “regimento” datado de novembro de 1725, incentivando os criadores a'estabelecer currais naquelas paragens, “ sem se lhe pôr impedimento algum” , pois tal iniciativa seria “conveniente ao real serviço de S. Majestade” e ao mesmo tempo viria em “ aumento das novas minas de Cuiabá” (50). Cavalcante Proença informa que o primeiro gado entrado em Mato Grosso procedia daquelas poucas rêses — sete vacas e um touro — que os irmãos Gaeta, vaqueiros de S. Vicente, aventu­ raram-se a levar para Assunção em troca de uma simples novilha como pagamento. Já para o gado que inicialmente entrou em Cuiabá pròpriamente dita, Luis D ’Alincourt dá como procedência a fazenda Camapoã (51).

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E m 1729, Antônio Pinto de Azevêdo, depois de abrir uma picada entre Vila Boa e Cuiabá, penetrou por Mato Grosso tra­ zendo em sua companhia, de Goiás, um touro, duas vacas e três novilhas. Deve ser dêsse lote que Cabral Camelo, na sua História Prática de Cuiabá, diz terem ficado paridas, já em 1730, algumas novilhas. Êsse gado vai misturar-se, nos campos da Vacaria, com os rebanhos tangidos de colónias espanholas e com animais tra­ zidos de Piratininga. Aberto o ca m in h o . entre Goiás e Mato Grosso, a êste chega quantidade de bois e de cavalos, em setembro de 1737, segundo estampa Barbosa de Sá.

em Jacobina, chegando a possuir mais de 60.000 rêses. Ê o que revela Hércules Florence ao descrever sua Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas. Segundo informa o engenheiro militar F. A . Pimenta Bueno, nas suas Memórias Justificativas, aí por volta de 1880, “ dentre os criadores da província, os mais importantes são: — l .° o Sr. João Carlos Pereira Leite, dono de uma área de 240 léguas em quadra com 600.000 cabeças de gado, na maior parte alçado por falta de cavalos; 2.° o Sr. Major Metelo, cuja fazenda se estendia das margens do S. Lourenço até o Piquirí e possui tàmbém alguns milhares de cabeças de gado.” O primeiro citado era filho de João Pereira Leite, genro do velho Leonardo Soares de Souza com cuja filha Ana Maria se casara. E a fazenda agora de sua propriedade, era a antiga “Jacobina”. Dela foi que saíram os ocupantes dos pantanais entre o Taquari o Paraguai e o Negro, onde se afazendaram Joaquim José Gomes da Silva, genro de João Pereira Leite, José Alves Ribeiro, neto de André Alves, os descendentes de Estevão Alves Correia, lavrador em Quitanda nas imediações de Rosário-Oeste, e o já citado Major Metelo.

De Cuiabá e de Vila Bela, à medida que amortecia a ambição do ouro, partiu o fluxo povoador que iria alastrar-se pelos panta­ nais. Foi no âmago dos sertões, entre os afluentes do Taquarí e do Rio Pardo, que floresceu a célebre fazenda “ Camapoã”, de propriedade de Luís Rodrigues Vilares. A êste desbravador con­ cedera Rodrigo César de Menezes a sesmaria palmilhada pelos irmãos Leme, cujas terras eram cortadas pelo varadouro de 6230 braças, ligando, pelo único trecho de caminho terrestre, os portos de ancoradouro das canoas. E então, sendo dita fazenda passagem forçada de todos os viajantes tornou-se, segundo relata Lacerda e Almeida no Diário de Uma Viagem de Vila Bela a São Paulo, o centro de abastecimento de mantimentos, de açúcar e de aguar­ dente, de tabaco em rôlo, de carnes e mais gêneros aos que por ela transitavam. Escudados nesse núcleo, que fizera cessar as arremetidas dos indomáveis paiaguás e guaicurús, animaram-se os cuiabanos e instalaram-se rio abaixo. Para as bandas do Coxipó-mirim, a montante do Véu-da-Noiva, estabeleceu-se com fazenda de gado Francisco Correia da Costa, português, casado com a paulista Maria Tereza de Jesus, possui­ dora de criatório no Aricá-mirim. E seu filho Antônio Correia da Costa é quem vai devassar e ocupar grande parte da mesopotâmia entre o Cuiabá e o S. Lourenço. A s fazendas de Antônio Correia da Costa — Aricá-mirim, Mutum, Sertãozinho, Água-Bran­ ca, Cuiabá-mirim, Baía dos Pássaros e outras — que ocupavam terras do Aricá até baías do Felix, das Pombas, etc., íam confinar com as de Antônio José da Silva, dono da restante porção de gleba até o pontal. .Pela esquerda do S. Lourenço, possuía sesmaria o brigadeiro Jerônimo Joaquim Nunes, natural de Por­ tugal, proprietário das fazendas “Pindavaí” e “ Piquirí” . A infiltração de criadores alcança a área situada entre Cuiabá e Vila Maria — atual Cáceres — salientando-se entre os devassadores os portuguêses José Gomes da Silva, Leonardo Soares de Souza, João Pereira Leite, e André A lves da Cunha que antes de falecer a 2 de agosto de 1793, casou duas filhas com os patrícios Manoel Antônio Nunes da Cunha e Francisco da Costa Ribeiro, cujos descendentes se afazendaram nos pantanais, entre os rios Paraguai e Cuiabá. Filho de Alves da Cunha era o padre Manoel Alves da Cunha, proprietário rural no caminho de Cuiabá e Cáceres e que chegou a ser presidente da Província, eleito pelo Govêrno Provisório por ocasião da Independência. Leonardo Soares de Souza fixou-se

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Quando o padre Simão Toledo Rodovalho pretendeu trans­ ferir a aldeia de Santana-da-Chapada, acêrca de dez léguas de Cuiabá, para o local chamado Fecho-dos-Morros, a fim de livrar-se da fustigação dos paiaguás, A. Rolim de Moura, comandante do reduto militar, escreveu-lhe de Vila Bela, então capital da provín­ cia, opondo-se à pretensão; e frisando a expansão dos rebanhos, disse-lhe: — “ . . . n o Cuiabá é já o gado vacum tanto que não chega a matar todos os anos metade do número das rêses que nascem naquêle d is t r it o ...” Tanto mais cresceu a pecuária matogrossense quanto, já em meio o século X V I I I , esmoreceram as minas pelo esgotamento dos aluviões, transferindo-se para aquela os esforços até então aplicados na mineração. Era, porém, muito escasso o mercado consumidor. Estampa D ’Alincourt, nas suas Indagações Estatís­ ticas, que em 1826 o total de cabeças de gado em Cuiabá era de 161.416; em Diamantino, 1.817 e em Mato Grosso (Vila Bela) 9.120, totalizando 172.353 cabeças; e a produção anual era respectivamente, de 40.300, 354 e 1.900, somando ao todo 42.554 unidades. A falta de compradores levava a que os fazendeiros matogrossenses organizassem grandes boiadas — de mil-a quatro nn cabeças — que tangiam, em lotes espaçados, para o leste, a f p 1 de negociá-las em Minas Gerais. A s levas tomavam o caminho de Uberaba, através de Santana-do-Parnaíba, ou, mata ao norte cortando por Jataí, de Goiás, “ nao só levando a marca dos criadores estabelecidos no vale do Miranda e Taquari, c°m o ainda procedia dos campos mais distantes, beneficiados pelas alagações do Cuiabá.” . São de mestre Virgílio Corrêa Filho estas palavras: — A condução das boiadas a procura de consumo ao longe, em vasta escala, só poderia ser empreendida pelos fazendeiros de maiore i___ ____ foi+oceom hmnHpirns idoneos. Que lhes adquirib

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sem no curral os lotes e tomassem a si o risco de transportá-los aos mercados citadinos mais próximos, que lhes consumiam parte da produção. Classificavam-se destarte expontaneamente os fazendeiros em duas categorias. Abrangia a primeira os mais abastados, que se consideravam donos de dez a cem mil cabeças bovinas. Quando as computasse em menos de dez mil, já o criador se incluía no segundo grupo, que mal daria conta dos que não possuissem o primeiro milhar.” E acrescenta o autor de Fazendas de Gado no Pantanal Matogrossense: — “Como fôsse menor a procura que a oferta, o prêço unitário mantinha-se baixo, permitindo a poupança do gado de ventre, que iria contribuir para a multiplicação natural dos rebanhos dos pantanais extensos. Os criadores não se preocupavam em cercar as suas propriedades, nem dispunham de rendimentos com que pudessem custear as despesas respectivas. Em tais condições, permaneciam, ufanos com a citação das dezenas de milhares de rêses, que lhes pasta­ vam nos campos indivisos, das quais não aferiam proventos em proporção, quando dois sucessos, pràticamente simultâneos, encer­ raram por assim dizer a fase pioneira da pecuária matogrossense, em cuja solução logo se espelharam consequências benéficas.” Refere-se o historiador à construção da Estrada de Ferro ltapura-Corumbá e à eclosão da Guerra Mundial de 1914.

A

E X P A N SÃ O

PARA

O SUL

Antes que se definisse a posse das terras que ' de Laguna até à margem esquerda do Rio da Prata, mo-sul se constituiria num imensurável curral de maior da secular disputa, entre Portugal e Espanha, daquela imensa região.

se estendiam todo o extre­ gados, razão pelo domínio

E m 1525, a mando de Carlos V, de Espanha, Sebastião Caboto inicia a fundação de Buenos Aires, obra que vai ser continuada e ampliada com a fundação de outras vilas, no interior do mesmo território, em 1535, pelo Adelantado D. Pedro de Mendoza. Ao dirigir-se para aquelas plagas, com o firme propósito de coloni­ zá-las trouxe Mendoza, autorizado pela Cédula Real de 22 de agosto de 1534, várias cabeças de gado. Mas pressionado pelos índios, possivelmente os Maracotas, em cujas terras .Caboto insta­ lara a vila, retira-se o Adelantado em companhia dos demais habitantes, abandonando ao próprio destino os animais que alí botara. Êsse gado, criado à gandaia, à lei da natureza, multipli­ cou-se abundantemente por tôda aquela área da margem direita do Rio da Prata, e na outra margem, nas povoações plantadas por Mendoza, muitos castelhanos se instalaram com criatório, suas manadas crescendo excepcionalmente, espalhando-se pelas campinas ferazes até encontrar o atual Rio Grande do Sul (52). Abrim os aqui um parêntesis para informar que Prudêncio de Mendoza, na sua História de la Ganaderia Argentina, afirma o desdobramento, nos rebanhos do pampa, do gado vacum tan­ gido pela expedição de Salazar Espinoza, criando assim a riqueza

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pecuária do Prata e do Paraguai. E conclui que nossos gados Pertenciam à raça andaluza ou ibérica de Sanson.” Diz Aurélio Pôrto que “ sua pelagem é muito variada: vermelho,, claro, tostado e escuro, pouco leiteiro, mas bom para a produção de carne. Desta raça se deriva o vacum crioulo ou raça primitiva indígena que adquiriu condições superiores em seus caracteres zootécnicos, conformação e aptidões à andaluza.” Considerando-se donos absolutos das terras situadas à mar­ gem esquerda do Rio da Prata, os espanhóis nelas se estabele­ ceram durante todo o decorrer do século X V II. Entre êles estão padres da Companhia de Jesus, que trazendo do Paraguai indígenas do tronco guarani, submetidos e catequisados, adicio­ nam grandes número de tapes, minuános e alguns charruas. A lí fundam os Sete Povos das Missões, estabelecendo-se à margem esquerda do rio Uruguai e nas áreas situadas entre os rios Piratmm e Itú Grande, a saber: São Nicoláu, em 1627; São Luiz de Gonzaga e São Miguél, em 1632; São Francisco de Borja, em 1690; São Lourenço, em 1691; São João Batista, em 1698; e Santo Ângelo em 1707. A o se transportarem para seus novos domínios, trouxeram os jesuítas, em sua companhia, muitas cabeças de gado originárias daquelas sementes que os irmãos Gaeta levaram, em 1555, de S. Vicente para o Paraguai. Nesse passo queremos registrar que dizem alguns ter sido Juan Salazar, quando presidente daquela província espanhola, o introdutor das celebradas sete vacas e um touro. E Aurélio Pôrto demonstra não ser verdadeiro aquêle número de rêses, porém maior a quantidade, pois quatorze anos mais tarde, em 1569, quando os espanhóis chegam ao Perú com pequena tropa, deparam-se com grande cópia de gado originário de S. Vicente. Apercebendo-se do perigo que corria de perder qualquer direito de posse daquela região, a êsse tempo já frequentada pelos bandeirantes paulistas, resolve a Corôa lusa firmar alí um ponto de apoio: é quando o Príncipe Regente D. Pedro II determina que D. Manoel Lobo da Costa, governador do Rio de Janeiro e Capitanias do Sul, à frente de alguma tropa vinda de Lisboa, funde a Colónia do Sacramento, o que foi realizado em 1680, nas proximidades da Ilha de S. Gabriel à margem esquerda do Rio da Prata. Começam, aí, as lutas entre portuguêses e castelhanos pelo domínio das terras e dos gados nelas soltos, passando a Colónia ora às mãos de uns, ora às mãos de outros. São Paulo, ainda no século do descobrimento, constituiu-se em zona de criatório. Aureliano Leite, quando escreveu a História da Civilização Paulista, estampou que o padre José de Anchieta proclamava que do parapeito das cercas do Colégio, via-se para o norte campos extensos e “fertilíssimos de muitos pastos e gados, de bois, porcos, cavalos, etc.”. E o padre Jacome Monteiro, na sua “ Redação da Província do Brasil”, que se encontra anexa ao vol. III da História da Companhia de Jesus 710 Brasil, de Serafim Leite, escrevendo em 1610 e referindo-se a Sao Paulo, diz: — “O sitio da povoação é sôbre o teto de um pequeno monte, às raízes do qual se principiam grandes campos mui povoados de gado v a c u m . . . ” 4

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Na direção dos campos do Paraná e de Santa Catarina foi que os paulistas infletiram, inicialmente, com suas manadas de bovinos, instalando fazendas e currais pelos caminhos. De estabelecimentos de criação enchem êles todo o trajéto de Soro­ caba à Lages, no platô catarinense, passando por Itapetininga Itapeva, Jaguariava, Castro, Ponta Grossa, Curitiba, Campo Largo e Lapa. Estavam, assim, os paulistas às margens das terras do Rio Grande do Sul, onde em breve iriam penetrar, agora como povoadores, sitiando estâncias e plantando currais! E m 1715, Francisco Tavora, governador do Rio de Janeiro, ordena a Francisco de Brito Peixoto, fundador e governador de Laguna, que proceda ao reconhecimento das campanhas do sul, até a Colónia do Sacramento, a ver se por aquelas plagas fixara-se algum espanhol. E m atenção à ordem, manda Brito Peixoto duas expedições: a primeira é aprisionada pelos índios; mas a segunda, após a inspeção, regressa com muitos gados arrebanhados em Maldonado e alguns silvícolas aprisionados junto às margens do Rio Grande. Interpelados pelo velho sertanista, informam os nativos que procuravam locais aprazíveis onde os padres espanhóis fundas­ sem novas aldeias. Brito Peixoto os devolve com uma carta na qual comunica aos clérigos serem aquelas terras de Portugal, não admitindo, pois, que nelas se instalasse gente de Castela. Vingava-se o governador de Laguna, sem o saber, de uma pro­ visão do Vice-Rei de Lima, datada de 30 de julho de 1643, man­ dando sair do distrito e governação de Buenos Aires todos os sacerdotes portuguêses. E para maior segurança, ordena que seu genro João^ de Magalhães e mais trinta homens brancos vão fundar estâncias, naquêle território, aliando-se aos minuanPs\ . Foi quando surgiram os primeiros estabelecimentos de criatório, na região brasileira do extremo-sul, fincados por por­ tuguêses. Corria o ano de 1752. (53) A s faladas Vacarias do Mar tiveram início muito antes da penetração, propriamente dita, de colonizadores portuguêses no Rio Grande do Sul, muito embora tivessem elas redundado das razzias de bandeirantes paulistas contra as reduções jesuí­ ticas no extremo-sul. Documento datado de 15 de julho de 1716, intitulado Informação Jurídica Sôbre o Direito que os Índios Guarani e Tape têm às Vacarias do Mar, assinado pelo Padre Joseph Pablo de Castaneda, da Companhia de Jesus, informa o seguinte: — “ . . . â los religiosos de la Compania de Jesus quienes transpusieron â los indios tapes de sus primeras reduciones, a las que oy habitan, oyo decir varias veces que en una de las Reduciones antiguas en el tape llamada Sta. Ana, tenian los indios Tapes de sinco a seis mil vacas. Y en otro Pueblo situado en las mismas sierras del tape llamada Los Apostolos tenian quatro mil vacas. Y en otro llamado Santa Tereza, tenian quatrocientas cavezas de ganado vacum. Las quales cantidades dexaron en dhas reduciones por no poder traerlas quando perseguidos de los Mamelucos, y huyendo de sus continuas inhaciones, robos, y hostilidades, se vieron obligados a; desamparar sus naturales sitios, para salvar sus pró­ prias vidas, Las de sus Mugeres, ê hijos y vivir seguros en

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los Lugares, que oy habitan. Y q de estas vacas, que en sus Reduciones ô Estancias dexaron los indios Tapes, con el trans­ curso de los anos y su multiplico y âver se esparcido por aquellas sierras tubo principio, y se fundo dha Vaqueria del Mar.” (54) Para. o planalto sul-riograndense, os jesuítas vão levar gados no princípio do século X V III, fundando alí as Vacarias dos Pinheiros, assim chamadas devido aos grandes pinheirais exis­ tentes na região. Diz o padre Hernandes: — “ Registrado el território de las Reduciones, se hallaron en la parte oriental, a distancia de más de 70 léguas de los pueblos del Uruguay, unos dilatados campos aptos para el ganado, y rodeados de espeso bosque que los circundaba formando una faja de tres a sinco léguas de anchura. Alia se introdujeron, abriendo camino con gran trabajo, unas ochenta m il cabezas de ganado recogidas de la antigua vaqueria y amansada, resolviendo que no se tocasen en ocho anos, con lo qual, segundo la experiencia habida en otras ocasiones, se calculaba que habian de llegar _a quatro­ cientas o quinhentas m i l . . . ” (55) A s antigas “vaquerias”, eram ag. do Mar. Quanto à época da entrada do primeiro gado no extremo-sul brasileiro, variam as opiniões, e por isso vamos passar algumas em revista. E sôbre a origem daquêle, diz Spalding: Ha, entretanto, dúvida a respeito da entrada do primeiro gado no Rio Grande do Sul, do Paraguai, ou do Prata?” (56). Buenaventura Caviglia Hijo (57) e Emílio A. Coni (58), opinam que o primeiro gado deu entrada no Prata ern 1611 e 1617; e acham que no Uruguai só apareceu a partir de 1620, pelas mãos dos jesuítas nas suas Missiones del Alto Uruguay. Êsse gado descendia do touro e das sete vacas que os Gaeta levaram de S. Vicente para o Paraguai. Mas ao Uruguai foi ter, também, Hernandárias de Saavedra, tangendo gado do Prata. Daí a dúvida se o que veio para o Rio Grande do Sul era gaclo do Prata, levado por Saavedra, ou se do Paraguai, transposto para o Uruguai, pelos jesuítas. O padre Jaeger — Luiz Gonzaga Jaeger S.J. — com sua indiscutível autoridade, diz que os jesuítas chegaram ao Uruguai, com seus gados, meio século antes de Hernandárias de Saave­ dra- portanto, os animais que possuíam só poderiam provir dos oriundos de S. Vicente, e foram êstes que êles trouxeram para o Rio Grande do Sul. (59) A essa altura, Spalding firm a um ponto, a nosso ver conciliador, quando diz: -— “Por isso, cremos, que em 1620, conforme Coni, e anos seguintes, é que tenha o gado do Paraguai dado entrada no Uruguai, espalhando-se logo, auxiliado pelos descendentes das vacas de Hernandárias, por tôda a Banda Oriental, tornando-se chimarrao, isto é: bravio, alçado, sendo “caçado” pelos lagunenses e abigeatarios_ espa­ nhóis e portuguêses espalhados pelas planícies e rincões da inhóspita zona.” (60) Florêncio de Abreu, baseado na Anua dirigida ao Padre Diego de Boroa, em 1634 e nas Letras Anuas, de relativas ao ano anterior, é de opinião que só depois de lboU

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que o primeiro gado deu entrada na região missioneira. Aliás já dissera o Padre Jaeger, ao estudar a introdução do gado no Rio Grande do Sul, que a primeira manada surgida na abando­ nada Capitania Del Rei, levou-a para lá o jesuíta Cristovão de Mendoza, em 1634, quando fundou a primeira estância sul-riograndense-missioneira. Aurélio Pôrto também menciona 1634 como o ano do acontecimento. (61) Temos, então, que o gado gaúcho descende do vicentino, mesclado com o hernandariano; e êste, por sua vez, misturado com o paraguaio-vicentino. Aliás, como registra Manoelito Ornellas, a identidade de caracteres do gado crioulo do Rio Grande com os do gado do Uruguai, tem sido informada por zootécnicos nacionais, caracteres êsses que são: “grande corpu­ lência, boa alçada, sistema ósseo grandemente desenvolvido, cabeça volumosa, aspas bastante grandes, singularizando-se pela grande sobriedade na alimentação.” E aduz o autor de Gaúchos e. Beduínos: — “Temos assim ligado à mesma origem espa­ nhola do cavalo crioulo a do nosso gado vacum. Daí, sem dúvida, a nomenclatura de certas pelagens a que se referiu A ry Simões Pires, em carta ao autor, de uso antiquíssimo no Rio Grande do Sul, como mouro, africano, nilo, e t c . . . ” (62) JÉ o gado, sem dúvida, a maior fôrça impulsora da coloni­ zação do Rio Grande do Sul. É êle que, fugindo das estâncias jesuíticas, ou abandonado pelos seus donos, vai espalhar-se e proliferar abundantemente, atraindo o povoamento para a Capi­ tania Del-Rei. E vão-lhe aos cascos abigeatários charrua, portu­ gueses e espanhóis, arrebanhando-o e vendendo-o aos incursionistas. Fato importante para a proliferação do gado no Rio Grande do Sul, que já havíamos referido por alto, foi a proibição esta­ belecida pelos padres da Companhia, de se matar vácas e o estabelecimento de vacarias de onde não permitiam se tirasse uma rês. Também para tanto muito concorreu o abandono da região pelos índios e pelos padres, pressionados, e preiados os primeiros pelos paulistas de Antônio Raposo e outros, que os vendiam como escravos no norte segundo documento inconteste. (63) E como os bandeirantes, logo em seguida ao desba­ ratamento das Missões, desviassem suas atenções para Mato Grosso, o gado, abandonado por cinquenta anos, multiplicou-se assombrosamente. Só em 1687, certos de que não mais seriam incomodados pelos preiadores, é que os padres da Companhia de Jesus trans­ puseram novamente o rio Uruguai e estabeleceram os famosos sete povos a que já nos referimos. Criado à solta, o gado espalha-se nas direções leste e sul daquela região, levando Manoel Lobo, ao fundar a Colónia do Sacramento, a admirar-se da quantidade, porte e côr uniforme das rêses que encontrou na costa de Maldonado. (64) O negócio é fácil e lucrativo. Mera indústria extrativa com abundância de matéria prima e pingues lucros. Começa, então, o sitiamento. E m 1737, José da Silva Pais já fundara o Pre­ sídio Jesus, Maria, José, na barra do Rio Grande, onde no futuro surgiria a cidade do m esm o nome. Portugal assenhoria-se,

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oficialmente, de tôda aquela região, embora muita luta o aguarde e muito sangue ainda venha a correr, para a fixação definitiva do marco da soberania lusa. É contra os espanhóis a longa contenda; mas os portuguêses não mais recuam. O Rio Grande do Sul é nosso. Pululam as estâncias. Criva-se de estabelecimentos de pastoreio todo o deserto que separava São Vicente, a Ilha de Santa Catarina e Laguna, da Colónia do Sacramento. (65) Já a 25 de outubro de 1723, doava El-Rei a Manoel Gonçalves Ribeira a primeira sesmaria, localizada na parada de Conchas, nos campos do Tremandy (Tramandaí). (66) Começa a legali­ zação das terras ocupadas tendo por título de posse o denodo, a fidelidade, a bravura. E não pára mais. E m 1732, arrancha-se em Pôrto Alegre, com estâncias, Jerônimo de Anellas Menezes e Vasconcelos, madeirense, casado com a paulista de Guaratinguetá, Lucrécia Leme Barbosa, rece­ bendo em 1740 o título definitivo de posse da gleba portalegrense. Jerônimo de Ornellas torna-se o maior dos patriarcas portalegrenses, com descendência numerosa, ilustre, nobre, valo­ rosa e prestante. Sebastião Francisco Chaves localiza-se ao sul do arroio da Azenha, antigo Jacareí, em Pôrto Alegre; e a 12 de março de 1757 é nomeado, por Silva Pais, tenente de ordenanças do dis­ trito do Viamão, por ser aí morador e “ pessoa de conhecido préstimo e procedimento.” A o sul de Pôrto Alegre, em Belém Velho, fixa-se Dionísio Rodrigues Mendes com uma estância que se estende até o Guaíba. É português, casado com a pau­ lista de Guaratinguetá, Beatriz Barbosa Rangel. Clemente Francisco Manoel vai localizar-se também ao sul de Pôrto Alegre, em frente à ilha que no Guaíba lhe perpetua o nome. Nos campos do Viamão sitiam-se Sebastião Francisco Peixoto, Agostinho Guterres e Manoel Abreu dos Santos, tendo êste seu nome perpetuado na Ponta do Abreu, na lagoa dos Patos. Francisco Xavier de Azambuja planta-se, a princípio, na margem esquerda do Gravataí; mais tarde, em 1754, obtém sesmaria entre o Taquari e o Jacuí, onde se fixa definitiva­ mente. Outro é Sebastião Pinto Bandeira, com estância entre o Gravataí e o Itapuí, atual Rio dos Sinos, e que foi por Silva Pais nomeado alféres do Regimento de Dragões, em 1737. Pelas estradas abertas, desde Laguna, por Brito Peixoto, João de Magalhães e Cristovão Pereira de Abreu, transitam preadores em demanda do Rio Grande à cata de gado; e por lá muitos vão ficando, atraídos pelos campos férteis, pelas ondu­ lantes coxilhas e pela beleza do gado bravio, abundante e nédio, que muge e escarva nos banhados, matos e canhadas. Não fôssem aquêles homens, por índole, criadores! (67) 1752. Chegam os açorianos. Unem-se aos paulistas e lagunistas. Radicam-se na gleba. Adotam o criatório. Nasce, então, o “riograndense, o gaúcho em todo seu esplendor e fôrça, liberto já dos preconceitos de malandragem e inferioridade, dando à Pátria o melhor de sua vida em luta constante contra o invasor.” Ê W alter Spalding cantando loas aos seus ancestrais. . .

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Bois e_ cavalos passam a ser a razão-de-viver — quase diría­ mos a razão-de-ser — do gaúcho. Isso porque, além do interêsse económico, une o riograndense ao gado um interêsse maior: a afetividade e, por que não dizer, o amor. Sim. O gaúcho ama o seu gado.

NOTAS E

BIBLIOGRAFIA

(1) “A cultura da cana (escreve Caio Prado Júnior) não per­ mitiu que (a pecuária) se desenvolvesse nos férteis e favoráveis terrenos da beira-mar. Relegou-a para o interior mesmo quando êste apresentava os maiores inconvenientes à vida humana e suas atividades, como se dá em particular no sertão do Nordeste” . (Caio Prado Júnior, História Económica do Brasil, 3» ed„ pg. 44, São Paulo, 1953). Veja-se a Provisão de El-Rei D. Pedro, datada de 30 de janeiro de 1698, sôbre o despejo dos gados no interior. (Do­ cumentos Históricos, XL, pg. 307, R io de Janeiro). (2) Documentos Históricos, XIII, pg. 390; XXXVII, pg. 124; XXXVIII, pg. 55. — “ O padre Pereira foi um bandeirante de so­ taina. O pai legara-lhe a fome de terras, que o devorou tôda a Vida. Na sua misantropia de capelão sertanejo, sonhava a ocupa­ ção de todo o nordeste, para além dos chapadões, onde as águas do S. Francisco aproximam os gentios de cinco raças” . ( . . . ) “ Tra­ tou de desvendar os segrêdos das minas de prata de Belchior Dias Moreira, promoveu o povoamento dos altiplanos da Jacobina, tan­ geu as pontas de gado do Itapicurú para o médio S. Francisco. Fez do boi o seu soldado. Os outros sertanistas se apossavam do pais com tropas de guerrilhas; êle o empalmou, com as suas boiadas. O rebanho arrastava o homem; atrás dêste, a civilização. A terra ficava à mercê da colonização: êle a inundou de gados, em marcha incessante para o interior” . (Pedro Calmon, História da Casa da Torre, pgs. 18 e 39, Rio de Janeiro, 1939). (3) “ Os jesuítas entraram logo no mesmo ano na posse das fazendas legadas, sendo seu primeiro administrador o padre Manoel da Costa, nomeado em 20 de agosto pelo reitor do Colégio da Bahia, o padre João Antônio Andreôni, primeiro testamenteiro do Mafrense. (F .A . Pereira da Costa, Cronologia Histórica do Estado do Piauí, pg. 25, Pernambuco, 1909). (4) São de Cândido Mendes as seguintes palavras: — "O rio Itapicuru, que hoje é tão importante pela sua riqueza e navegação, e tem um curso de mais de duzentas e cinquenta léguas, era então bem pouco conhecido. E se acaso os sertões dessa província não recebessem colonos do Piauí, desde 1730, que ocuparam sucessiva­ mente todo o território de Caxias até o Tocantins, talvez ainda hoje não fossem conhecidos. Tanto a colonização do litoral como a dos sertões, vieram encontrar-se em Caxias, a antiga Aldeias-Altas, de 1750 em diante, segundo o que podemos coligir de algumas memó­ rias e documentos antigos” . (Cândido Mendes, A Carolina, pg. 41). (5) "O vale do S. Francisco, (registra o autor de A Química das Raças), inflado de currais, sugeria novas jornadas aos conquis-

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tadores de pastagens. Para o norte, no sertão plano a perder de vista, demoravam âs chapadas verdes e extensas. O Piaui, convi­ dava os vaqueiros. E os criadores dos Campos Gerais, passando do S. Francisco para as nascentes do Piauí e do Gurguéia, alcan­ çaram o Parnaíba e por êle se estenderam através de todo o Es­ tado, inflando de gados as suas pastagens e semeando currais e fazendas ao longo do vasto território” . (R .P . Castelo Branco, A Civilização do Couro, pg. 64, Parnaíba, 1942). (6) Referindo-se à ação dos dois Domingos, o Jorge Velho e o Afonso Sertão, o historiador Rocha Pita estampou o seguinte: — “Viram-se ambos, e dando-se um a outro notícia do que tinham obrado, e descoberto, se ajustaram no que haviam de prosseguir; e dividindo-se para diferentes partes, foi cada um pela sua con­ quistando todo aquêle País, cuja circunferência dilatadíssima com­ preende grande número de léguas. Com esta notícia muitas pessoas poderosas, que tinham terras confinantes àquelas, foram pedindo delas Sesmaria ao Governador da Província de Pernambuco, que lhas concedeu, e logo introduzindo gado nas que poderam povoar. Venderam ou arrendaram a outras pessoas muitos sítios na porção, em que incluía em cada uma das datas, que alcançaram, e em breve tempo se foram enchendo de gados, e ocupando de moradores em tanto excesso, que hoje se contam naquêle grandíssimo terreno quase quatrocentas fazendas de gado, e cada uma de longa extensão” . (Rocha Pita, História da América portuguêsa, 3*, ed. pg. 243, Sal­ vador, Bahia, 1950). (7) Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Piaui, I, PS- 49. (8) Veja-se F .A . Pereira da Costa, op. cit. pg. 6. E também Rocha Pita, op. cit. pg. 243. (9) “ O que parece fora de dúvida é a data daquêle encontro. Afirmamos ter sido pelos anos de 1679 ou 1680” . (Pedro Calmon, op. cit. pg. 90). — Rocha Pita, op. cit. pg. 243. (10) Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Piauí, I, pg. 54. (11) Do testamento do Mafrense, Pereira da Costa publica o seguinte trecho: — "Declaro que sou senhor e possuidor da metade das terras que pedi no Piauí, com o coronel Francisco Dias D’Ávila e seus irmãos, as quais terras descobri e povoei com grande risco de minha pessoa, e considerável despesa, com adjutório dos sócios, e sem êles, defendi também muitos pleitos, que se moveram sôbre as ditas terras, ou parte delas: e havendo dúvidas entre mim, e Leonor Pereira Marinho, viuva do dito Coronel, sôbre a divisão das ditas terras, fizemos uma escritura de transação no cartono de Henrique Valansuela da Silva, na qual declaramos os sítios com que cada um haviamos de ficar, assim dos que tínhamos ocupados com gados, como arrendados a várias pessoas, acordando e assen­ tando juntamente a forma com que haviamos de ir ocupando as mais terras por nós, ou pelos rendeiros que metessemos, como mais largamente se verá da dita escritura. Declaro que nas ditas terras conteúdas nas ditas sesmarias tenho ocupado muitos sítios com gados meus, assim vacum como cavalar, e todos fornecidos^ com escravos e cavalos, e o mais necessário; o que tudo constará dos

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meus papéis, fábricas, com a quantidade dos gados pelas entregas de cada uma das Fazendas, e assim mai3 muitos sítios dados de arrendamento a várias pessoas; e outros muitos estão ainda por povoar e desocupados, que também se poderão ir dando de arren­ damento, ou ocupando com gados meus, com o melhor parecer a meu sucessor” . (Pereira da Costa, op. cit. pg. 8). (12) Eram as seguintes as fazendas dos jesuítas, no Piauí, di­ vididas por Departamento ou inspeção: Inspeção do Piauí Tabicas ...................... 6 Brejinho .................. .. 4 1 /2 Fazenda Grande . . . 3 Boqueirão ................ 7 Gameleira ................ 3 C atolé......................... 1 Serra ...................... 3 Cajazeiras ............. 3 Mocambo .............. 3 Cachoeiras ............. . . ' 4 Espinhos ................ .. 4 1/2 Julião ...................... 5

léguas ll II II II IV II II II II II II

X X X X X X X X X X X X

1 légua II 1 II 1 II 1 II 2 II 1/2 II 1 II 1 II 1 ll 1/2 II 1 II 1/4

Inspeção do Canindé Gleba ...................... 2 léguas X 2 léguas li II Joabe ...................... 3 X 2 — — Baixa dos Veados . X II ” Sitio ....................... X 2 2 II II Tranqueira ........... .. 3 1/2 X 3 II II Poções .................... 4 X 2 II II Saco ....................... X 4 4 — — Saquinho .............. X Castelo .................... 2 léguas 2 léguas X II II Buriti ...................... X 2 1/2 Campo Grande ......... 4 léguas de extensão ii II ll Campo Largo ........... 5 Inspeção de Nazareth Gameleira ............... Guariba .................... Matos ........................ Lagoa de S. João .. Olho d’Âgua ............. Cocambira ............... Serrinha .................. Genipapo ................ Algodões .................. Catarina .................. Tranqueira ...............

3 4 3 4 2/2 3 2 3 4 3 3

léguas II II II II II ll II II II II

X X X X X X X X X X X

3 léguas II 4 II 2 II 2 II 1/2 II 3 II 3 II 2 II 4 II 3 II 2

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As medidas acima representam: as primeiras de N.S. e as segun­ das de L.O . (F .A . Pereira da Costa, op. cit. pg. 61-62) (13) “A grande extensão de terreno inculto do sertão, e de que mais tarde ou nunca se poderá tirar partido pela agricultura, e no qual pela abundância de seus excelentes campos se criam e prosperam fàcilmente imenso gado e outros animais domésticos, parece persuadir o particular cuidado da criação destas duas sortes de gado vacum e muar, assim como do cavalar, cuja raça pela robustez e. valentia, com que são alí dotados, se faz recomendável. O cuidado desse artigo é tanto mais sério quanto é nêle que está c maior interêsse atual das rendas reais pelo anual embolso do produto dos dízimos” . (João da Silva Feijó, “ Memória” , Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Ceará, m, pg. 23-24). (14) Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Ceará, X, pg. 80. (15) Thomaz Pompeu Sobrinho, estudando a indústria pastoril no Ceará, ensina que: — “ Duas correntes imigratórias invadiram o território do Estado, independentemente uma da outra; uma vinha pela costa e pelas depressões da serra do Adopy, de Pernambuco, Paraiba e Rio Grande do Norte, e se difundiu pelo litoral e pelo vale dos rios, internando-se; a outra, oriunda da Bahia, São Paulo e Sergipe, através dos sertões áridos, das caatingas do S. Francisco, alcançou, o sul e pelo riacho dos Porcos, principalmente ganhou o vale do Jaguaribe, disseminando-se pela parte superior de sua bacia. Um ramo demandou o litoral, descendo, lentamente, pelo curso do rio Salgado. Enquanto no Jaguaribe ocorria o povoamento em dois sentidos, nos outros rios fazia-se apenas do litoral para o interior, com uma certa precipitação” . (Thomaz Pompeu Sobrinho, A Indús­ tria Pastoril no Ceará, pg. 9, Ceará, 1917). (16) Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Ceará, V, pg. 8. — Joaquim Alves, talvez o maior estudioso do fenômeno das sêcas no Nordeste, informa que: — “ Não se pode avaliar a destrui­ ção causada pelas sêcas na primeira metade do século XVIII, ante a falta de dados estatísticos que esclareçam a extensão do flagelo. Calculam-se, porém, êsses prejuizos desde que se tenha em conta que era grande o número de fazendas existentes e que o dízimo i r . delas retirado era avultado. Basta salientar que, no triénio 17811783, o dízimo foi administrado pela Fazenda Real, porque não houve quem chagasse ao preço (refere-se ao contrato do triénio anterior que foi de 1:733$333) por causa da grande mortandade de gado que houve, precedida de extraordinárias sêcas que se experi­ mentaram nos anos anteriores^ como registrou o Governador Geral João Cezar de Menezes” . (Joaquim Alves, História das Sêcas, pg. 34, Fortaleza, 1953). — Pedimos, ainda, atenção para o pronuncia­ mento do Conselho Ultramarino, sôbre cartas datadas de 16 de abril e 1» de julho de 1735, respectivamente dos Condes de Sabugosa e das Galvêas, sôbre as sêcas no Nordeste, estampado nos Documen­ tos Históricos, XCI, pgs. 45-46. (17) Luís da Câmara Cascudo, História do Rio Norte, pg. 52, ed. MEC, Rio de Janeiro, 1955.

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(18) Do Mapa dos Preços Correntes da Paróquia da Vila do Príncipe, relativo ao mês de janeiro de 1802, organizado pelo Capitão-mor de Ordenanças Cipriano Lopes Galvão, fundador de Cur­ rais Novos, verifica-se o seguinte: Gêneros de Exportação

Algodão em lã . . . . Sola ......................... Couros miúdos ....... Bois ....................... Cavalos ..................

Máximo

Médio

Mínimo

5500” 800” 320” 8000” 16000”

4500” 720” 240” 6000” 12000”

4000” 640” 160” 4500” 10000”

Por a

R I I I I

A uma sua filha que se casara, um fazendeiro seridoense incluiu no dote: — Vinte vacas, vinte novilhos e vinte garrotes a dois mil e duzentos .............. — Treze vacas, treze novilhos e quatorze garrotes a dois mil e quinhentos .......................................... '........ — A metade do sítio do Suza demarcado e extremado . . . — Um potro selado e enfreiado ............................................ — Duas potras .............................................................................

132.000 100.000 200.000 15.000 10.000

Como o dote total, com peças de ouro, prata, cobre e uma escrava crioula montava a 692.000, verifica-se que a parte relacionada com o gado montou a mais de 70%. (José Augusto, Seridó, pg. 25, Rio de Janeiro, 1954). (19) Trecho da carta de João de Lencastro: — “ Sei eu (e vos haveis de confessar) que dos gados do Rio Grande se sustentam os povos dessa capitania e das duas outras (Itamaracá e Paraíba); que da sua carne resulta o imposto que se paga para a infantaria; e de seu serviço a permanência de todos os Engenhos -e Canaviais de Pernam buco...” (José Augusto, op. cit. pg. 23). (20) Apolonio Peres, “ Indústria Pastoril em Pernambuco” , Congresso Nacional de Pecuária, pg. 19, Recife, 1917. (21)

Luís da Câmara Cascudo, op. cit., pg. 107.

(22) Joanes vem a ser corruptela de Iuioana, nome de uma nação indígena que com os Aroans, os Moco-ons e os Ingaibas, os Mariponas e os Cariponas, povoaram a Ilha, segundo ensina Ale­ xandre Rodrigues Ferreira na sua Memória sôbre a Nação Sacaca. (23) Veja-se o que diz sôbre a pecuária extensiva no extremonorte Catarina Vergolino Dias, “ Pecuária Extensiva” , Grande R e­ gião Norte, IBGE, pg. 288, R io de Janeiro, 1959). (24) Leandro Tocantins, O Rio Comanda a Vida, 2*, pg. 106, Rio de Janeiro, 1961.

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(25) Diz Ferreira Pena: — “ A informação dada em 1691 pelo governador Antônio Coelho de Carvalho ao rei de Portugal, do­ cumento em que o informante, sem dizer uma palavra ao menos sôbre os mercedários, louva e apoia muito a emprêsa de criação de gado vacum na Ilha, já realizada pelo colono Francisco Rodrigues Pereira, a êste e não aos mercedários se deve a introdução de tão útil indústria no Marajó” . (Leandro Tocantins, op. cit. pg. 105). (26) “ Livro Grosso do Maranhão” , 1* Parte, pg. 221, Anais da Biblioteca Nacional. (27) Em ofício datado de 6-11-1767, dizia Mendonça Furtado: — "Em quanto ao cálculo do gado da Ilha Grande de Joanes ou Marajó, há muitos anos (1757) que a S. Magestade foram apresen­ tados outros muito mais diversos destes, e feitos com grandíssima exação, e conhecimento de causa, pelos quais se mostrava que su­ biam muito de 400.000 cabeças de gado vacum, que pastava naquela Ilha; porque só os frades das Mercês, pelo mesmo cálculo, se esti­ maram sempre as suas vacadas em 80.000 cabeças; os Jesuítas, 60.000, como ultimamente constou aos Ministros que as foram in­ corporar na Fazenda Real, cujos termos se acham nesta Secretaria de Estado, e hão de estar na Provedoria da Fazenda dêste Estado; o gado das fazendas dos padres do Carmo, o qual era muito mais diminuto, do que tinha sido antecedente, porque lhes o tinham arruinado; os currais de José Alvares Roxo, e de todos os mais moradores, que tem fazendas naquela Ilha, e tôdas essas adições vinham a importar a soma que acima disse” . Mais adiante insiste Mendonça Furtado: — “ A todos êsses gados acrescem os gados alfários (sem dono, embrenhados nos matos), os quais pertencem inteiramente a S. Magestade e que o mesmo Senhor permitiu a todos os fazendeiros da Ilha de Joanes, que os quisessem vaquejar, que lhe pagassem, além do Dizimo, quatro por cento pela licença, como há de constar na Provedoria, pelos termos que nela assinaram, assim os seculares, como os regulares no ano de 1756, no qual se calcularam exatissimamente estas Fazendas, remetendo-se então os cálculos à Real Presença de S. Magestade” . (28) Ms. do Instituto n* 282, doc. n" 14.778.

Histórico

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Geográfico Brasileiro, Lata

(29) Artur Cézar Ferreira Reis, “ A Formação Espiritual da Amazônia” , in revista Leitura, I, pg. 101, MEC, Rio de Janeiro, 1948. __ Veja-se, ainda, Leandro Tocantins, Santa Maria de Belém do Grão Pará, Rio de Janeiro, 1963. (30) A tal ponto chegou a desmoralização entre os Mercedários, que deles conta-se o seguinte passo anedótico, posto que bastante ilustrativo: em 1710, exercia o cargo de administrador da fazenda de gado do Ararí, um frade pouco escrupuloso. A vista das de­ núncias recebidas sôbre desvios de rendimentos da Ordem, deter­ minou o Geral da mesma que dito frade prestasse contas de suas despesas, em curto praso, remetendo-lhe para tanto um livro para •os assentamentos. Qual não foi, porém, a surpresa do Geral ao receber de volta o livro, com apenas uma folha usada, onde cons­ tava o seguinte sonêto:

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O tempo de si mesmo pede conta, Porque chega da conta o breve tempo. Mas quem gastou sem conta tanto tempo, Como dará, sem tempo, tanta conta t Não quer levar o tempo em conta, Pois conta se não faz de dar-se a tempo; Quando só para a conta houvera tempo, Se na conta de tempo houvesse conta. Que conta pode dar quem não tem tempo T Em que tempo a dará quem não tem conta f Que a quem a conta falta, falta tempo. Agora, sem ter tempo e sem ter conta, Sabendo que hei de dar conta ao tempo, Vejo chegar o tempo de dar conta. (31) Ms. Do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata n" 358, doc. n9 6. — Outro interessante documento sôbre as fa­ zendas dos jesuítas, é uma carta do Governador do Pará, da qual extraímos o seguinte trecho: — “ Foi S. Magestade servida ordenarme. pelo ofício que V.Exa. me dirigiu datado de 18 de dezembro do ano p.passado, que eu informasse do estado, em que se acham as Fazendas de Gado da Ilha de Marajó, que foram dos Jesuítas, declarando as pessoas que as desfrutam, e as condições, que lhes foram concedidas, como também a quantidade de gado, que nelas há, e se os atuais possuidores tem aumentado, ou diminuído o número de cabeças, com que as ditas Fazendas lhes foram entre­ gues” . “ Para eu poder informar com todo o conhecimento de causa, reservei esta averiguação para a visita, que pessoalmente tinha determinado fazer á Ilha Grande de Joanes, porque vendo, e examinando a maior parte das Fazendas, ficava inteirado do es­ tado delas, e do Gado, que nas mesmas existia; e como, há pouco tempo, acabei esta diligência, vou sem perda de tempo informar a V .E xa. de tudo o que achei” . "E m execução das duas Cartas Régias incertas debaixo dos n9 1 e 2 é que meu predecessor Manoel Bernardo de Melo e Castro fez repartir todos os bens e fazendas dos regulares da Companhia chamada de Jesus e como os Sitios e Fazendas maiores fora de Marajó se erigiram em Vilas e Povoa­ ções de índios tão somente se virão a vender além dos móveis as fazendas de Burajuva, que rematou Balthazar do Rêgo Barbosa, e a de Taquararí, que rematou Hilário de Moraes Bittencourt, vindo a não surtir efeito algum o que se assentou em Junta de 9 do Setembro de 1760, como se mostra do Têrmo, que vai por cópia debaixo no n9 3” . “ As Fazendas porém que sobreditos Regulares proscritos possuíam no Marajó, foram repartidas entre vinte e duas pessoas, que o mencionado meu Antecessor achou estarem nas cir­ cunstâncias recomendadas pelas Reais Ordens de S. Magestade e a cada um deram quatrocentas e dezoito cabeças de gado vacum, a exceção de João Falcato da Silva que recebeu quinhentas e vinte e uma Cabeças, o Sargento-mor Domingos Pereira de Almeida e

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Silva quinhentas e seis; e a cada um deles foi concedida meia légua de frente por três de fundos, levando alguns maiores pro­ porções em razão das situações, em que ficaram, e todos obtiveram Carta de Data de S. Magestade confirmando-lhes a mercê das so­ breditas terras com as cláusulas de as conservarem com o mesmo Gado, que lhes foi entregue, debaixo da pena de lhes serem tiradas, a pagarem da Cadeia o prejuízo, e não poderem sair das famílias sem expressa licença. Alguns dos contemplados disto mesmo tinham assinado têrmo, como se manifesta da cópia, que junto debaixo do n9 4. Das sobreditas fazendas se acham umas bastante adiantadas, e outras em grande deterioração, por êsse motivo farei menção de cada uma delas em particular” . .(Afs do Instituto Histórico e Geo­ gráfico Brasileiro, Lata n9 281, doc. n9 14.772). Dêsse mesmo do­ cumento, consta a seguinte relação: Remédios — no rio Ararí, margem direita. Santo Elias — na margem direita do rio Ararí. São José — na margem direita do rio Ararí. N.S. do Loreto — na margem direita do rio Ararí. Menino Jesus — na margem direita do rio Ararí. São Carlos — no rio Ararí. Santo Inácio — no rio Ararí. Boa Vista — no Lago Ararí. Santa Cruz — no Lago Ararí. Ananatuba — no rio dêsse nome perto do Lago Ararí. Santa Bárbara — acima do Lago Ararí. Santa Helena ou Nazareth — pelo Lago Ararí acima. São Luiz — nas cabeceiras do rio Anajás. Santa Rosa — no igarapé das Cuieiras. São José de Deus — no rio Anajás. Santo Reis — no rio Anajás. N.S. do Monte de Camutins — no rio Anajás. São Miguel — no rio Maratacá. Bom Jardim — nas cabeceiras do igarapé Cajuípe. ' São Braz — no rio Marajó-assú. São Francisco Xavier — no rio Marajó-assú. Rosário — no rio Marajó-assú. (32) Manoel Barata, A Antiga Produção e Exportação do Pará, pg. 38, Belém, 1915. (33) Anais da Província do Pará, Ms. autog. s.l.n.d., Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1926. (34) José Veríssimo da Costa Pereira, "Campos do Rio Branco” , in Tipos e Aspectos do Brasil, 6*, pg. 12, IBGE, Rio de Janeiro, 1956. (35) "Pereira Caídas, — escreve mestre Ferreira Reis — nos desvêlos que lhe assinalaram a passagem pelo território amazonense, tinha projetado a introdução de gado no vale prodigioso, fazendo reservar vacas, novilhos e touros de Alemquer, nas visinhanças de Óbidos, além de cavalos e Éguas. Mas, impossibilitado de levar avante seus propósitos, em decorrência de outras obrigações, Lobo d’Almada foi quem deu o passo económico fundando a fazenda de •São Bento, à margem esquerda do rio Branco” . Ferreira Reis ar-

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quiva a carta datada de 30 de dezembro de 1786, em a qual Pereira Caídas diz a Lobo d’Almada o seguinte: — “ Ainda que pelo último tempo do meu governo deste Estado, pretendia eu introduzir aos extremos, e férteis campos daquêle Distrito uma porção de gado vacum, que vindo a fazer a melhor subsistência desta Capitania, principalmente na parte mais faminta deste rio, podem também fornecer a do Pará com carnes-sêcas, e Couros de não menos interêsse para o maior produzimento e comércio da dita Capital Capi­ tania; e tendo a êsse fim destinado, e reservado as Vacas e Novilhos e alguns touros, que se acham na vila de Alemquer junto à fortaleza de Óbidos, assim como determinado de se introduzir juntamente al­ guma porção de Éguas e de Cavalos que melhor houvessem de fa­ cilitar as Vaquejadas". (Artur César Ferreira Reis, História do Amazonas, pg. 135, Manáus, 1931). — Explica a presença de Lobo d’Almada junto a Pereira Caídas, uma ordem da Metrópole mandando que o segundo confiasse ao primeiro o comando e govêrno militar do Alto Rio Negro, "afim de dirigir com o seu zêlo e atividade, a exploração dos Rios e Cachoeiras que medeão entre o Forte de São José de Marabitanos, e as cachoeiras que ficam para baixo do dito Forte, como também as mais comunicações que poderá haver para baixo das ditas cachoeiras” . (Ofício de 29-8-1783, da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos ao Sr. João Pereira Caídas). Lobo d’Almada deixa o comando de Macapá e, cumprindo ordens do Governador Martinho de Souza Alburquerque, apresenta-se ao Comissário-Chefe português, que o manda seguir para o desempenho de sua nova missão oficial. (36) O astrónomo Antônio Pires da Silva Fortes, em proclama­ ção datada de 19-7-1781, dirigida ao governador da Capitania do Rio Negro, batia na mesma tecla. Acompanhou-o o naturalista Alexan­ dre Rodrigues Ferreira, que de um seu comunicado datado de 27 de julho de 1786, extraímos a seguinte advertência: — “ Quanto ao gado que sem dúvida alguma se deveria introduzir nestas campinas. . . ” (Alexandre Rodrigues Ferreira, “ Viagem Filosófica” in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro). É o mesmo Alexandre Rodrigues Ferreira quem, de outra feita, escreve: — “ As vastas cam­ pinas daquêle rio estão chamando pelo gado, que se lhes deve in­ troduzir, e S.Exa. trate de lançar mão à obra” . Agostinho José do Cabo, comandante da fôrça que garantia o citado naturalista, refe­ rindo às mesmas campinas, assim se expressou: — “ O que para elas são mais próprias, é para o arroz milho e legumes e por êste modo tanto mais fértil seria a Capitania do Rio Negro, com as provisões e carnes frescas e salgadas, que deste rio se poderiam transportar” . (Primeira Memória do Brasil na Questão de Limites com a Guiana Inglêsa, I, anexos). (37) Ms. do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata n9 338, doe. n9 39.

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(38) Em carta de 5-5-1704, D. Álvaro da Silveira Alburquerque, governador da Repartição Sul do Brasil, lamentava-se com o seu colega da Bahia nos seguintes termos: — “ Em cada dia me acho mais só, assim de soldados como de moradores, porque o excesso com que fogem para as minas nos dá a entender que brevemente ficaremos sem ninguém. Também suponho que V.Sa. assim o ex­

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perimenta porque das minas me escreve o cónego Gaspar Ribeiro que é tanto o excesso de gente que entra pelo sertão da Bahia que brevemente entende se despovoará essa te r r a ...” (.Ms. do Arquivo Nacional, Coleção Governadores do R io de Janeiro, LXIII, f. 273v.). _ Sôbre o rush para as minas veja-se André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil, pg. 225, Bahia, 1950. — Em parecer submetido a S. Magestade, em 1732, dizia o conselheiro Antônio Rodrigues da Costa, do Conselho Ultramarino: — “ A fama destas mesmas riquezas convida os vassalos do Reino a se passarem para o Brasil a pro­ curá-las; e ainda que por uma lei se quiz dar providência a esta deserção, por mil modos se vê frustrado o efeito dela, e passam para aquêle Estado muitas pessoas, assim do Reino como das ilhas, fa­ zendo esta passagem, ou ocultamente negociando êste trânsito com os mandantes dos navios e seus oficiais, assim nos de guerra como nos mercantes, além das fraudes que se fazem à lei, procurando passaporte com pretestos e carregações falsas: por êste modo se despovoará o Reino, e em poucos anos virá a ter o Brasil tanto vassalos brancos como tem o mesmo Reino; e bem se deixa ver que, posto em uma balança o Brasil e na outra o Reino, há de pesar com grande excesso mais aquela que esta, e assim a maior parte e a mais rica não sofrerá ser dominada pela menor e mais pobre; nem a este inconveniente se lhe poderá achar fácil remédio” . (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, VII, pg. 475). A essa altura, já havia receio, mais ou menos velado, de que o Brasil viesse a tentar a sua independência. (39) Em 1697-1698, portanto ao alvorecer da mineração, a fome já deitava suas negras asas sôbre as populações ocupadas naquêle mister; tanto assim que, naquêle espaço de tempo nem poderam produzir, “ o que lhe não foi possível pela grande fome que experi­ mentaram que chegou a necessidade a tal extremo que se aprovei­ taram dos mais imundos dos animais, e faltando-lhes estes para poderem alimentar a vida, largaram as minas e fugiram para os matos com os seus escravos a sustentarem-se com as frutas silvestres que neles achavam” . É o que o governador Artur de Sá e Menezes informava a El-Rei em carta de 20-5-1698. (Ms. do Arquivo Nacio­ nal, Coleção Governadores do R io de Janeiro, VI, f. 117). • — O fato se reproduz em 1700-1701, registrado por D. João de Lencastro em carta a El-Rei: — “ . . . e por falta de mantimentos se haviam retirado muitos mineiros para a montaria, para terem com que susten­ tar a sua gente, e outros para as suas casas para voltar em março assim pelos mantimentos que já deixavam plantados, como pelo gado, que haviam mandado buscar aos currais da Bahia e Pernam­ buco__" (Documentos Históricos, XI, pg. 283). — Em •carta de 2-4-1719, dirigida ao Conde de Assumar, governador das Minas Ge­ rais, o Conde de Vineiros, governador geral, informava que: — “ . . . e pelo que respeita a falta de gados que V . Exa. diz rareia nas minas por indicação do mesmo Manoel Nunes mando lançar Bando em todo o rio de S. Francisco para que tôdas aquelas pessoas que costumavam conduzir gados a essas Minas Gerais, dos distritos donde estava em uso o irem a elas acudissem com êles, não só com a mesma frequência, mas ainda com a maior eficácia e fervor” . (Do­ cumentos Históricos, LXXI, pg. 59).

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(40) Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1899-1900, pg. 282. (41) Miguél Costa Filho, A Cana de Açúcar em, Minas Gerais, pg. 59, ed. IAA, R io de Janeiro, 1963. (42) Index de Várias Noticias Pertencentes ao Estado do Brasil e o que nele Obrou o Conde de Sabugosa, no Tempo do seu Governo. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Arq. Cód. 376. (43) Alfredo Escragnolle Taunay, Os Primeiros Anos de Cuiabá, pg. 95, São Paulo, 1950. (44) José Afonso Mendonça de Azevêdo, "Documentos do Ar­ quivo da Casa dos Contos”, in Anais da Biblioteca Nacional, LXV pg. 92. . (45) Documentos Interessantes, XII, pgs. 4 e 15, São Paulo. (46) Augusto de Saint-Hilaire, Viagem às Nascentes do 8. Fran­ cisco e d Província de Goiás, I, pg. 329, São Paulo, 1944. (47) Convém lembrar com Virgílio Corrêa Filho que: — “ Enganar-se-á quem procurar, em Mato Grosso, identificar pantanal com pântano, brejo, paul, consoante ensinam os dicionários. O têrmo aplicado à vasta e inconfundível região antropogeográfica, de fisio­ nomia peculiar,. revela a justeza do vocabulário sertanejo, que a ciência homologou” . Explica o mencionado historiador tratar-se da baixa que as águas dos tributários do Paraguay amantam periodi­ camente com o séu nateiro fertilizante, à semelhança do que sucede no baixo Nilo, de fama lendária, e a todos os rios em análogas circunstâncias. "Considerado de per sí — continua Virgílio Corrêa Fi­ lho — cada um dos galhos fluviais revelará traços individualizadores, que pesquisa minuciosa, todavia assinalará sem dificuldades. Des­ tarte, o pantanal de Cuiabá não é inteiramente igual ao do Taquari, com o êste, por sua vez, se distingue do Miranda e dos demais. Cada qual exibirá feições próprias, sem, contudo, perderem o mesmo ar de família, comúm a todos, mercê do relêvo, do clima diferenciador e, mais acentuadamente, do regime dos rios, que sobremaneira con dicionou o povoamento daquelas paragens, desde a era inquieta dos bandeirantes” . (Virgílio Corrêa Filho, Fazendas de Gado no Pan­ tanal de Mato Grosso, pg. 18, Rio de Janeiro, 1955). (48) Alfredo Escragnolle Taunay, "Os Primeiros Anos de Cuiabá e Mato Grosso” , in Anais do IV Congresso Nacional de História, I, pg. 18, IHGB, Rio de Janeiro. (49) “ Divulgada a notícia (dos descobertos em Cuiabá) pelos povoados foi tal o movimento que causou nos ânimos dos que das Minas Gerais, Rio de Janeiro e de tôda a Capitania de São Paulo se abalaram muitas gentes deixando casas, fazendas, mulheres e filhos, botando-se para esses sertões como se fôra a terra da promissão ou o Paraíso descoberto em que Deus pôs nossos primeiros pais” . "Ano de mil setecentos e vinte partiram dos povoados bastantes gentes para estas conquistas divididas em diversos comboios de ca n o a s.... padeceram grandes destroços perdições de canoas nas cachoeiras por falta de pilotos práticos que ainda os não havia mortandade de gente por falta de sustento doenças comido das onças e outras muitas misérias . ( . . . ) “ Ouve comboios em que morreram todos sem ficar um vivo achando os que vinham atrás as canoas com as fazendas podres e os corpos mortos pelos barrancos dos rios e redutos; e

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rêdes armadas com os donos dentro mortos sem que chegasse este ano pessoa alguma ao Cuiabá nem outra novidade alguma” . (José Barbosa de Sá, “ Relação das Povoações do Cuiabá e Mato Grosso de seus Príncipios até os Presentes Tempos” , in Anais da Biblioteca Nacional, XXH I, pg. 9). — O mesmo Barbosa de Sá, referindo-se à criação da vila de Cuiabá por Rodrigo César, diz: — “ A terra de permanentes minas de ouro e de tal idonia para a produção de todos os frutos que se lhe plantam e criações de gado de tôda a qualidade o clima bastante cálido e depois que se foi cultivando o mais salutífero que em todo o mundo pode haver tão favorável que de algumas poucas vacas que se trouxeram no ano de mil e sete­ centos e trinta e nove em menos de dez anos se viu tanta multipli­ cação de gado vacum que cobriu os campos e serrados chegando as novilhas a parir de ano e meio e a êste respeito tôdas as mais criações” . (Op. cit. pgs. 17-18). (50) Documentos Interessantes, XIII, pg. 74, 1895. (51) "O pequeno rebanho prosperou, multiplicou-se e logo se dividiu, pantanal afora; galgou a encosta fácil dos chapadões e, já em 1697, dava nome aos altiplanos do sul de Mato Grosso: Campo da Vacaria. Esse foi o gado que chegou de torna-viagem, tresmalhado nas reduções jesuítas” . A seguir diz Proença: — "Começou, desde logo, a tentativa de repontar para currais improvisados os rebanhos diversos, pois os que paravam em Camapoã, no varadouro de canoas, precisavam de carne e leite. Por isso, já em 1730, havia garrotes e novilhas em Cuiabá, logo aumentados pela boiada, que vinda por Goiás, chegou aquela vila seis anos depois. Descendo o Cuiabá, o boi chegou ao pantanal do Paraguai; despontando cabe­ ceiras, foi, pelo firme, até S. Luiz de Cáceres e, assim, já em 1834, numa jornada de século, retornava ao sul a ponta de gado recebido. Pouco depois, chegavam os geralistas de Minas, tropeando rebanhos em busca de novos pastos; deste ciclo ficaram os nomes dos Garcia Leal, primeiro, dos Lopes e Barbosa, mais tarde” . (M. Cavalcante Proença, No Têrmo de Cuiabá, pg. 69, INL, Rio de Janeiro, 1958). — Luiz D’Alincourt, sem fixar a data do fato, informa que: — “ Foi desta fazenda (de Camapoã) que entrou em quantidade para Cuiabá, o primeiro gado vacum, conduzido por um dos possuidores da mesma, de nome André A lv e s ...” (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, X X, pg. 336). (52) “ Da fundação das novas povoações castelhanas resultou grande número de indivíduos daquela nacionalidade se estabelecerem na margem oposta do referido Rio da Prata com grandes criações de gado, especialmente vacum e cavalar, que se multiplicou a ponto de 202 anos depois cobrirem não só aquelas campinas, como as do Rio Grande, que reputadas pelos Hespanhois como pertencentes ao mesmo território, eram consideradas também incluídas nos seus domínios” . (João Cesimbra Jacques, Ensaio sôbre os Costumes do Rio Grande do Sul, pg. 17, Pôrto Alegre, 1883. (53) Jaime Cortesão, Jesuítas e Bandeirantes no Itatim, Manus­ critos da Coleção de Angelis, II, pg. 63, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1952. — Veja-se, ainda, Souza Docca quando diz: — “ Foi então com auxílio dos Minuanos, dêsses selvagens dotados natural­ mente de elevados sentimentos, que continuaram a introduzir-se aqui

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habitantes dessa povoação; sendo assim que tiveram origem as primeiras estâncias que aqui se fundaram” . "Consta que nessa epoca se estabelecera no lugar onde existe a Capela de Viamão um homem de nome Cosme da Silveira, e nos campòs de Capivari um certo Fernando e seu genro Dutra; e em diversossitios muitos outros. Entretanto refere um historiador que em 1680 já exisUam aqui alguns indivíduos de origem portuguêsa, habitando a costa da Serra do Mar” . (João Cezimbra Jacques, op. cif. pg. 32). _ "De tôdas as incursões feitas no território riograndense por portuguêses e brasileiros, foi esta, de 1725, a única que teve o objetivo de povoá-lo e deu início, realmente, a êsse objetivo” . "Trinta foram os companheiros de João de Magalhães. Dêstes alguns voltaram para Santa Catarina, outros se radicaram no território riograndense entre êstes o chefe da expedição, que depois de fundar uma estância nos campos do Tramandaí, foi se fixar em Viamão” . (Souza Docca, Gente Sul-riograndense” in Anais do III Congresso Sul-Riograndense de História e Geografia, II, pgs. 654-655). (54) Jaime Cortesão, Tratado de Madri, Manuscritos da Coleção de Angelis, V, pg. 165, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1954. (55) Buenaventura Caviglia Hijo, El Origen e Difusión del Bovino en Nuestro Uruguay. — Veja-se, também, Pedro Teschauer História do Rio Grande do Sul, II, cap. III. (56) Walter Spalding, Génese do Brasil-Sul, pg. 23, Pôrto Alegre, 1953. •

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na mesma fonte, pgs. 106, 111 e 296, solicitações para que os índios possam usar armas de fogo, a fim de se defenderem dos portugueses de São Paulo. — Consulte-se, igualmente, Jesuítas e Bandeirantes no Guaíra, Manuscritos da Coleção De Angelis, I, pg. 272, nota de rodapé. — Solicitamos atenção para a carta do Padre Antonio Ruiz ao governador do Paraguai, D. Luiz de Céspedes Xeria, de 15-4-1629, narrando os estragos causados pela bandeira de Antônio Raposo Tavares. (Jesuítas e Bandeirantes no Guaíra, I, pg. 305). (64) Jonathas Rêgo Monteiro, A Colónia do Sacramento, I, pg. 45. (65) Walter Spalding, op. d t. pg. 31. (6) Carta de Sesmaria arquivada nos Anais do III Congresso Sul-Rio-grandense de História e Geografia, II, pg- 174. (67) É Oliveira Viana quem diz que os paulistas não se preocuparam muito com o ouro das minas, por serem mais impulsio­ nados pelo objetivo da fundação de currais; e os classifica como sendo “ antes de tudo uma raça de homens dominada por indissimulável predileção pastoril” . (Oliveira Viana, Evolução do povo BrasileirOj 2a., pg". 91, São Paulo. 1953).

(57) Buenaventura Caviglia Hijo, op. cif. pg. 120-121. (58) Emílio A. Coni, História de las Vaquerias en el Rio de la Plata, Buenos Aires, 1945. Veja-se, ainda, do mesmo autor, El Guacho. (59) P. Luiz Gonzaga Jaeger S. J„ História da Introdução do Gado no Rio Grande do Sul. (60) Walter Spalding, op. çit. pg. 29. (61) Florêncio de Abreu, “ O Gado Bovino e sua Influência sôbre a Antropogeografia do Rio Grande do Sul” , in Anais do III Con­ gresso Sul-Riograndense de História e Geografia, TV, pg. 21 41. (62) Manoelito Orneias, Gaúchos e Beduínos, 2a„ pg. 240 Rio de Janeiro, 1956. (63) Nesse particular, é muito significativa a Representação do Governador de Buenos Aires, D. Pedro Estevão Dávila, a Felipe IV ■em que denuncia os graves danos causados pelos Paulistas à Pro­ vinda do Paraguai e propõe os meios para remediá-los, datada de 12-10-1637, quando diz: — “ ... fui advertido de las Reduciones o missiones que los Padres de la Compania de Jesus tenian en el destrito de este gobierno en el Uruay y Provinzia del Tape, y los danos que recivian de los vezinos de la villa de San Pablo en la costa del Brasil. E llegado que fui al Rio Jenero vi y reconoci ser cierta la relacion que se me avia hecho pues a mis ojos se vendian los índios en aquella Ciudad Traydos por los vezinos de la villa de San Pablo, como se fueran esclavos y dados por tales por V. Mag. e ynformado vine averiguar verbalmente como desde el ano de 28 hasta al de 30 avian traydo los vezinos de San Pablo mas de setenta mil almas de las reduciones del os Padres de la compania del destrito de este govierno y del el Paragu ay...” (Jaime Corte­ são, Jesuítas e Bandeirantes no Itatim, cit. pg. 61). Veja-se, ainda, 0

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IM PORTÂNCIA DO BOI NO BRASIL COLONIAL

Preocupados com seus interêsses momentâneos, talvez ávidos daquelas riquezas que dizia-se na Europa serem facílimas aqui, por certo ^os introdutores do boi no Brasil não aquilataram a importância que dito animal teria ao longo do desenvolvimento da colónia. Forçoso é reconhecer, posto que sem exagerar, a sua acentuada projeção na dinâmica daquêles fatores que influí­ ram, decisivamente, para a concretização de certos passos, da mais alta relevância, no quadro geral da história pátria. É de mister destacar-se a ponderabilidade de sua atuação na fixação das primeiras levas de colonizadores; no desenvolvi­ mento da agro-indústria do açúcar; na conquista e ocupação de areas desérticas; no sucesso da exploração aurífera e conse­ quente povoamento do centro-oeste; na abertura de vias de trân­ sito, interligando núcleos povoadores estanques e consolidando a estrutura económica, social e política do país; na produção, e_ nos transportes, quer económicos quer sociais; na alimentação das populações e, porque não dizer, na contribuição para os cofres do real erário. Para tudo isso, que não representa a totalidade da contri­ buição do boi para a formação dêste país, forçoso é reconhecer que dito animal contribuiu até com seu soturno m u g id o ... Posto que reconhecido por todos o imenso volume e não menor valôr dos serviços prestados pelo boi, a êsses brasis, verdade é que não chegou êle a merecer, ainda, aquela justiça que de há muito lhe é devida, notadamente quando da análise e julgamento dos fatôres que acudiram o Brasil naquêle período mais importante de sua existência: o da infância. E o boi continuou assisrindo-o na adolescência, só se retraindo ao ter início o surto industrialista, prenúncio inegável de maturidade. A pecuária, tida quase sempre como “ atividade subsidiária” ou de plano secundário”, como a costumam julgar pelo fato oe nao ter concorrido, para o erário real, tão substancialmente como o açúcar e o ouro, a pecuária, dizíamos, jamais distingui-se, no documentário oficial atinente à colónia, carente êste ae maiores referências elucidativas, da sua magnitude como fatôr economico. (1) Entretanto, agindo silencioso e humildemente inter frontei­ ras, ía o boi, sem provocar rushs, nem desequilíbrios demo­ gráficos, nem migrações e imigrações em massa, criando con­ dições estáveis para o fortalecimento da vida e da segurança coloniais.

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A importância que os portuguêses atribuíam à presença de anímais domésticos em suas conquistas está bem caracterizada, no que refére ao Brasil, naquêle trecho da carta de Pero Vaz de Caminha, em que o Mestre de Balança do Pôrto salienta não haver aqui nem boi, nem vaca, nem ovelha, nem galinha, etc. Apesar de todo o alvoroço do descobrimento, da inusitada exube­ rância da terra e da surpresa causada pelo primitivismo de sua gente, não olvidou o escriba a referência que, no cômputo das emoções, poderia passar despercebida; mas que êle sabia inte­ ressar a seu Rei. A informação evidencia que, em determinado momento, pre­ ocupou-se Caminha em perscrutar se na “ilha” havia animais domésticos, o mesmo ocorrendo com o Pilôto Anónimo e até com o almirante Pedralvares, levando êste a apresentar aos nativos espécimens animais para observar-lhes as reações. A inexistência verificada, ganharia importância, do momento em que se tratasse de ocupar e de colonizar território sobremodo selvagem, como soia ser o da nova colónia anexada ao reino de Portugal. Durante os primeiros trinfanos dos mil e quinhentos, em que a Metrópole não emprestou maior significação à sua nova conquista — se por achá-la sem importância ou se por esper­ teza política, não interessa — nada se conhece, documentadamente, da introdução de gado nestas plagas,^ a não ser vagas suposições como já ficou dito. É que naquêles três primeiros decénios não houve qualquer manifestação mais contundente, objetivando o povoamento e a colonização do Brasil; tanto assim que êste, ao longo daquêles anos, permaneceu arrendado, visi­ tado apenas por comerciantes, acolhendo degredados, agasa­ lhando náufragos, acobertando desertores das frotas de escambo e recebendo prepostos de mercadores. Gente, portanto, a quem a Corôa não tinha o mais mínimo interêsse de assistir e segurar, gente que, por seu turno, não pretendia radicar-se na terra, meros aventureiros à cata de riqueza fácil, uns para resgatar seus crimes e outros para viver na abastança em sua terra. Tão logo, porém, resolveu Portugal efetivar medidas de ocupação da colónia, com o intuito de preservá-la da cobiça de exploradores estrangeiros, aí se começa a falar na introdução não só do boi como de outros animais domésticos, no Brasil. Assim é que Martin Afonso de Souza, que se pode classificar como o iniciador da colonização oficial dirigida, ao fundar, no litoral de São Paulo, em 1532, a vila de S. Vicente, logo se apercebeu da necessidade de suprir de gado a gente que alí encontrou e a que êle deixaria, inclusive antevendo o desen­ volvimento que a pecuária teria nos ferazes campos de serra acima. E, muito embora designado para exercer importante missão em África, não descurou em recomendar se enviasse bois e vacas para a sua capitania, do que se ocupou sua esposa. Decorridos apenas dois anos de sua estada no Brasil, curto lapso de tempo nas condições da época, estava sua ordem cumprida demonstrando a urgência de que se revestira.

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cativo, pois o cavalo era reconhecidamente fraco para tais ser­ viços e o muar só veio a espalhar-se pelo Brasil no decorrer dos mil e setecentos. Historiadores e cronistas antigos preocuparam-se em regis­ trar o número de bois necessários ao funcionamento de um da tôí?a . a costa- Acompanharam-no, ainda vários engenho de açúcar, alguns igualando-o ao de negros precisos 1 r n ím f l •de ° flC1° ’ pedreiros> carpinteiros, oleiros, carregos naquelas fábricas. (3) E Gilberto Freyre sintetiza a importância e outros, assim como padres, soldados, criadores comerciantpo de tal animal, para a indústria açucareira do Brasil-colônia, com p e S a ^ 1 Pois’ anU e^ rSdmand° Uma popula5ao de milhar de estas significativas palavras: — “Por outro lado, sem o boi, só ™ i5aL , ! ° ! S apesaJ do &ado que se supõe tenha levado consieo com o cavalo, o engenho não teria se firmado como se firmou.” cheglda à B^hia’ L ? 15| ° ’ decorrido apenas um ano de sua E esclarecendo a extensão que se dava à utilização do bovino, cnegaaa â Bahia mau grado os percalcos e inúmeros afazere* acrescentou: — “Até as vêzes de água o boi fêz nas almanjarras. que dele dependiam, providenciava Tomé de Souza a imnnr A té as vêzes de bêsta. Até as vêzes de mulher a vaca fêz para os meninos de engenho.” (4) ™ Nas antigas fábricas de açúcar, era boi para movimentar Z b S i - c S T r i , raT‘ es■(2 > Ao fa“ r ta m â n L etoSE o engenho; para carregar cana; transportar lenha; recolher ba­ gaço; conduzir açúcar; levar materiais de construção e, ainda, proporcionar alegres passeios ao povo da casa-grande, facilitan­ do-lhe a presença em batizados, casamentos, aniversários e festas S “ bre> a instalação de engenhos de açúcar e de cons de igreja. A í não está tudo: era ainda boi para fornecer carne truçao da cidade, sem a colaboração de tão prestimoso a m m a f para o sustento e couro para vários misteres, era a vaca, além do couro e da carne, também dando o leite para a feitura de de S. V i c e n t ^ I^rnam buco ÍSe ^ B aW ^dróf r‘ as flnan' as a“ S a a ™ o s fado assalariando Ohanden-ante de agora é o elemento contra, assalariado por assim dizer de governadores eerais dp reis, para dizimar aqueles que, n l defesa das terras de E ram ahompnaiS’ obstaculavam o avanço das manadas bovinas lo n e ir ís sioneiros.

P, S d °? dÍn¥ ro’ COm terras’criadores. com ín d iol E m muitos deles acabaram também (7) prt

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cnrnT a m,°p €ram diferentes ês£>es dos primitivos caçadores de ™ r° ’ , que’ 30 serem recrutados faziam exigências às vêzes absurdas, como aquelas apresentadas por Manoel de Camargo e por Matias Cardoso, contra o absurdo das quais se revolta o Governador Geral na carta de 1 ° de setembro de 168? que dirige ao Capitao-mor da capitania de S. Vicente. (8) Vários documen tos sobre a remessa de dinheiros para o pagamento de salários e d e s p m s dos terços paulistas, que combatiam indígenas nos ríppo6Sri “ ordestin° s> estã ° estampados nos Documentos Histón.™*, dados a PubIlco PeIa Biblioteca Nacional. Bartolomeu Bueno, Manuel Preto, Borba Gato, Raposo Tavares, Brito Pei ° \ Le“ e e outros> êsses não recebiam paga de El-Rei fanfo ®.mbrenhar.em-se pelo desconhecido conforme fizeram com tanto despreendimento e denodo. Se paga houve a alguns dêles de Abreu

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diferente> como be™ esclareceu Capistranó

xtrem o'n.°rte, criando o curral e a maromba, o boi não pp } pai,sage,m como incute um nôvo sistema de vida Rran0m em da -I lba de Maraid> do baixo Amazonas e do Rio pír m ^ ’ - pr0p° í C1.onando'lhes 03 “ elementos essenciais para o seu X íb™ f gamC° +e bem:e?tar social.” (9) Abriu, assim, o ®.-peI Spectlvas’ dlferentes horizontes para o elemento S m ri c, ° naquelas lonjuras, onde as águas e as selvas pareciam condicionar o homem à atividade que a elas se suborm ^ r n V ™ lramente' Mas ? gado> exigente de amplitudes, mostrou um novo rumo economico que dia a dia se expande nos confins nortistas. y

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No extremo-sul, foi o gado que levou o homem a fixar-se naquelas paragens. De currais encheram os paulistas todo o trajeto que vai de Sorocaba à Lages, no platô catarinense, abrindo assim o caminho que permitiu aos tropeiros sorocabários irromperem pelos campos da Vacaria e do Viamão, alcan­ çando o vale do Guaíba, a Lagoa dos Patos, a Lagoa Mirim e os pampas platinos. Ultrapassando os campos do Viamão, tomam os colonizadores paulistas o rumo do oeste, para a região das Missões, fixando estâncias em Passo Fundo, Cruz Alta, Palmeiras, Santo Angelo, Nonoai e São Borja, já beirando o rio Uruguai. Na região da campanha, ajudados pelos colonos açorianos, difundem a colonização pastoril desde o Guaíba, o rio Pardo e o Jacuí, até às linhas divisórias do Guaraím, do Jaguarão e do Chui. É o gado alçado, criado à lei da natureza que, nos campos sulinos, vai despertar a atenção e decorrente cobiça de espanhóis e portuguêses por aquelas extensões, até então selváticas, entre­ gues ao domínio absoluto dos tape, dos minuano e de outras nações. A atração inicial é a preia; mas o preiador termina por estabelecer-se com estância, dedicando-se de todo ao pastoreio, passando de dizimador a criador. O cavalo e o boi são então os companheiros dilétos do homem da extrema sulina. Não foram poucas, por todos êsses brasis, as estâncias, fazendas e currais que, ao longo do tempo, transformaram-se em vilas e depois em cidades assedimentando, dêsse modo, a epopéia desbravadora iniciada pelo boi e pelo vaqueiro. “ O pastoreio — disse com muita propriedade Oliveira Viana — é o meio principal do povoamento.” (10)

Quando se iniciou o desmedido ncsh para as regiões mineiras das Gerais, povoando em poucos decénios perto de dois milhões de quilómetros quadrados, até então desabitados, a massa hu­ mana que para aquêles confins se deslocou, presa da aure sacra fames, só tinha um único e indisfarçável objetivo: enriquecer. E, para alcançá-lo, uma só e única atividade: minerar. A própria Corôa, na ânsia de reabastecer suas arcas esgotadas com as aventuras na África, a isso incentivava, proibindo qualquer outra atividade naquela região, que não a de recolher pepitas e folhetos. E m decorrência de tão desmedida ambição, deixou aauêle mundo de gente de ocupar-se e até mesmo preocupar-se com fator indispensável a uma permanência tranquila nas proximi­ dades dos mananciais: a alimentação. (11) Então, para sanar a insustentável lacuna, quando surgiram suas consequências, tornou-se preciso recorrer ao gado sitiado em várias outras regiões, principalmente aquêle que sossegadamente pastava nas ribeiras do São Francisco. E as manadas foram tocadas às pressas para matar a fome das populações ilhadas nas Alterosas. Tanta a gente esfomeada, que o gado sanfranciscano era insu­ ficiente; então veio boi do Piauí, do Rio Grande do Norte e do Rio Grande do Sul via São Paulo. (12)

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Bastou que a Corôa determinasse o fechamento dos caminhos que demandavam o centro, com o fito de coibir os descaminhos do ouro, para que a fome se transformasse em calamidade naquela região, levando os mineiros a abandonar os garimpos] muitos recorrendo a animais imundos e a raízes, em pleno mato’ para saciarem-se. (13) O jesuíta Antonil, no seu Cultura e Opulência do Brasil, registrou a tragicidade da situação com estas palavras: — “Sendo a terra que dá ouro esterilíssima de tudo que se há mister para a vida humana, e não menos estéril a maior parte dos caminhos das minas, não se pode crêr o que padeceram ao princípio os mineiros por falta de mantimentos, achando-se não poucos mortos com uma espiga de milho na mão, sem terem outro sustento” . Taunay, mais trágico, reduziu a espiga à pipoca. Devido a êsses períodos de fome, com gravíssimas reper­ cussões na produtividade das minas e na economia dos mineradores, houve por bem a Corôa liberar as vias de tráfego, nelas estabelecendo registros de fiscalização, com resultados bastante duvidosos. Voltaram, então, as boiadas a percorrer as estradas, sem o que não se sabe qual teria sido o destino damineração no Brasil. Na verdade salvaram-na o boi e o muar, sendo que do último já nos ocupamos em livro intitulado Tropas e Tro­ peiros na Formação do Brasil. Mesmo com as estradas francas, o abastecimento da região das minas deixava muito a desejar, dada a interferência de outros fatores que, para isso, muito concorriam. No tempo das chuvas, por exemplo, os caminhos tornavam-se intransitáveis; cessadas as águas, permaneciam os atoleiros e sumidouros pro­ tegidos pela sombra das matas, que sôbre êles se debruçavam, criando dificuldades quase intransponíveis ao trânsito de animal pesado como o boi. Por outro lado, não eram poucos os roubos e assassínios praticados nos êrmos dos caminhos, bem assim o ataque de animais ferozes dizimando o gado, matando vaqueiro. Daí a permissão régia, constante da carta de 14 de junho de 1728, para que os viandantes se armassem com pistolas, clavinas, espingardas “ e tôdas as m p s armas que lhe p a r e c e sse m ...” (14) Mas não havia obstáculo que detivesse o boi. A s manadas avançavam pelos estirões das estradas, acompanhadas e guiadas pelos corajosos vaqueiros, passando fome, curtindo sêde, masti­ gando a grama rala nascida depois da passagem da última boiada, perdendo pêso, enfraquecendo as carnes para, nas minas, entregar o pescoço ao cutelo, a fim de que o Brasil continuasse mandando arroubas de ouro para Portugal, melhor diríamos para a Inglaterra, a grande usufrutuária da mineração no Brasil. Entrementes, muita gente morria de fome com os bolsos entupidos de fulvo metal. Esgotadas as lavras, o povaréu reunido nas minas viu des­ vanecer-se o grande sonho de continuidade daquela éra de esplen­ dor e riqueza. Perigoso hiato sobreveio na produção brasileira, então quase que reduzida aos produtos da mineração. As populações de Minas Gerais, de Mato Grosso e de Goiás, como que despertaram para uma realidade confrangedora antes jamais admitida. Foi quando o pastoreio preencheu o vasio naquelas

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regiões centrais, apresentando-se como riqueza perene em cuhstituicão ao ouro e aos diamantes. Começaram a pulular ." P S . uma população desarvorada que, nao fora o gado, teria renuia Cm H 3 p ? o p o 5 S a o sucesso da mineração. pass?va àko?à a “ S c e ? im a nova função naquelas lomuras: a de fatôr de fixação e de colonização.

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çado em punho no cipoal intrincado das florestas. Foi o boi, ao retirar-se das proximidades das lavouras; ao desocupar as terras de massapé para a e q w f f l o * c a n j a acompanhar os sesmeiros das vastidões dos sertões, ao retimr Dara alimentar os citadinos da beira-mar, ao ocupar perados das minas; ao espalhar-se na direçao sulina, ao ocupa

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ditas extensas vias de trânsito de dezenas, centenas de legu , as até românticas estradas das boiadas, rasgadas em ™ el regiões inhóspitas, percorridas depois por tropeiros e t ^ por contrabandistas e viandantes de vanada especie ^ estradas acabaram por ligar o nordeste ao »m o centro e ao extremo-oeste; por comunicar o centro extremo-sul e êste com o centro e extremo-oeste . Essas vias de comunicações, abertas pe^ artérif s por submissa e fecunda, J v iv fflM d o r "3 a S ô E ?

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língua asfáltica não alcançaram; a fumaça das locomotivas não lhes cobre o sol, o caminhão ainda não lhes revolve a poeira. Não será demais lembrar aquelas que, há longos anos abando^ nadas, voltaram a se cobrir de folhas e a enfeitarem-se de flores silvestres, coroadas pela Natureza em reconhecimento aos ser­ viços que prestaram ao Brasil. Não são “estradas mortas” : são estradas que dormem, que repousam depois de terem cumprido precioso dever. São estradas que ainda vivem, porque vivem na recordação da gente. Foram muitas as vias abertas nos chãos virgens dêsses brasis imensos, seus leitos pisados e repisados pela gadaria transitante. A s estradas boiadeiras, enlameadas no inverno, poeirentas no verão, vencidas de ponta a ponta por vaqueiros, tropeiros e peões que, escanchados nos seus cavalos de fábrica tangiam à frente^ as manadas soltas, mas obedientes aos seus laços, gritos e ecôos reboantes pelas matas e quebradas; e tam­ bém serenadas pelos seus cantares nostálgicos, ditados pela ingénua saudade de seus amores distantes: D e lá de donde eu saí, A rgu ém ficou m e esperando. E u vou, m as vorto, m eu bem ! Pra nós acabá casando. . . Ecô, boi! E c ô o o o !.. . Os troncos das boiadeiras esgalhavam-se em caminhos, trilhas e verêdas, como fenomenais arbustos no chão derribados; por eles passam as boiadas, chocalhos sonando, animais mugindo, chifres estralando, corpos esbatendo-se. O conjunto ora afinando, ora alargando, tomando as formas, medidas e contornos dos rasgões abertos na mataria expêssa ou nos campos livres a perder de vista. Elas iam para o norte, voltavam do norte, íam para o sul, vinham do sul, infletiam para o centro e do centro retornavam, traçando, sôbre a base física, poderosa malha de força, de civilização e progresso. A o pé e aos flancos das mana­ das os homens encarregados de guiá-las, de cuidá-las, de levá-las aos seus destinos na melhor sorte que Deus lhes reservasse. Nas longas caminhadas empreendidas, multiplicavam-se os perigos a enfrentar, os obstáculos a vencer: a fome e a sêde rondando-lhes os passos; a poeira cegando-os, os atoleiros engulindo-os; roladores perdendo-se em grotões nos fundos dos abis­ mos. Galhos em espéques e ponteagudos espinhos rasgando-lhes o couro, penetrando-lhes nas carnes. Numa touceira ou nalgum monte de pedras, do alto de um a árvore ou do lombo de um morrete, o réptil venenoso, a onça traiçoeira espreitam-nos prontos para o bote infalível e mortal. O bugre os segue de há muito, silencioso e solerte, pelo intrincado da mata, pelo emaranhado cipoal, a seta em riste prestes a silvar. Agora é o rio, caudaloso e profundo, barrando-lhes a caminhada, escon­ dendo no bojo de suas águas turvas a piranha voraz, o jacaré ardiloso. Mas nada os detém. Bois e vaqueiros avançam, con­ sumindo estradas, tudo vencendo, inconscientes do serviço que prestam à moldagem económica e social do país, completamente alheios ao sentido histórico da obra que realizam. (15)

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Não raro baqueam pelos caminhos. Cruzes fincadas às margens das estradas, são mudas testemunhas do instante der­ radeiro de muitos daquêles heróis que, no cumprimento do dever, não mediam perigos, não conheciam obstáculos, não viam difi­ culdades que não pudessem superar. Nos animais, a mortandade era enorme. Carcaças de bois serviam de repasto às féras, aos urubus, em pouco as ossadas brancas expostas, assustando os da espécie que lhes vinham empós; e estes passavam por elas desviando-se, evitando-as, mugindo tristemente os que sentiam esvairem-se-lhes as forças, o instinto a segredar-lhes idêntico fim . Os que venciam as jornadas chegavam esquálidos, exaustos, famintos e sedentos; e quase sempre nada mais os esperavam do que um curral de areia, sem vegetação e sem água e o afiado cutelo do carniceiro implacável. Mas, aí, não mais importava; êles já haviam cumprido um grandioso destino: já haviam entrado para a História. No que tange ao extremo-norte, a estrada de gado mais importante que alí se abriu foi aquela que se alongava do Ma­ ranhão ao Pará. Por ela, pateou muita boiada em demanda de Belém, pobre de carne bovina na época. (16) No sertão, o povoamento tomou impulso no segundo século da nossa história, graças às vias de trânsito abertas pelo gado. Antes deram-se apenas esparsas penetrações sem objetivo de fixação; e enquanto vilas e povoações surgiam no litoral, o sertão permanecia insulado, pois não só estava infenso aos ataques estrangeiros como distanciado dos centros de escoa­ mento. N a marinha desenvolvia-se a lavoura canavieira, ali­ mentando a indústria do açúcar, e também o algodão, o tabaco, o extrativismo das madeiras, enquanto que só a esperança de reservas minerais é que fazia voltarem-se para os sertões os olhos dos exploradores e dos aventureiros. A falta de informes seguros, quanto a localisação das minas, foi o que os levou a percorrerem grandes extensões, enriquecendo, assim, a geografia interior do Brasil. E m 1697 é descoberto o caminho por terra, entre a Bahia e o Maranhão, cortando território piauiense, que passa a ser percorrido não só pelas manadas a caminho das minas, como pela população que do interior busca a marinha e pelas tropas de muares que, das minas, trazem ouro para o Piauí. Muito agradou à Côrte a descoberta dêsse caminho, tanto assim que a 23 de janeiro de 1690 o Conselho Ultramarino assim se expres­ sava sôbre o fato: — “ . . . o que se há obrado nesse particular está bem feito, e como se deve agradecer a D. João de Lencastro a diligência em que se tem havido em estabelecer êste caminho daquêle Estado para o Maranhão, em que se reconhece que havia de custar trabalho esta introdução, assim em romper as estradas como em facilitar as mais dificuldades, que se podiam oferecer, em negócio de tanta im p o rtâ n cia ...” (17) Outra via, das mais importantes, que do litoral demandava o interior, era aquela que sala de Olinda; e depois de passar por Goiana e atingir o território paraibano, em Espírito Santo, chegava â Mamanguape e fornecia de gado a região mais agri­ cultora dos brejos. E um dos ramais de maior valôr na pene-

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tração, era aquêle que partia de Espinhares, ribeira de Santa Rosa, Milagres, alcançando a lagoa do Batalhão (Taperoá) seguindo o rio, descendo a Borborema até Pinhares e daí a Patos, Piranhas, Souza, São João do Rio do Peixe (um ramal que recebia a contribuição de Cajazeiras) chegando ao Ceará pelos Carirís Novos, Icó, Tauá, atingindo Crateus, percorrido por centenas de vaqueiros que buscavam o Piauí. (18) Para o sul, a grande boiadeira antiga foi a de ligação Sorocaba-Curitiba que, a rigôr, não se pode dizer tenha sido oficial­ mente aberta. É que, como disse Aluízio de Almeida, “fundadas quase contemporâneamente as duas vilas, insensivelmente os moradores de seus distritos foram comunicando-se entre si abrindo novas fazendas e currais de gados, obtendo sesmarias’ e, logo, tangendo boiadas.” (19) E m relação à proximidade da vila, o primeiro possuidor de terras de criar, em Sorocaba, foi Baltazar Fernandes, seguido de Jacinto Moreira Cabral, locali­ zado entre o Araçoiaba e o Rio. . À esquerda do morro, afazendou-se D. Diogo do Rêgo e Mendonça. A princípio, os sorocabanos trilhavam pela costa, pelo cami­ nho do Peabirú, até que o coronél Cristovão Pereira de Abreu, em 1730, abriu por cima o alcunhado Caminho dos Conventos, ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul. Caminho de taí importância que, a êle referindo-se, diz Alfredo Ellis Júnior: — “Talvez a estrada do Rio Grande a São Paulo tenha sido a rota de maior importância na História do Brasil, pois sem ela não teria havido o ciclo do ouro, não teria havido o do café e nem a unidade nacional teria sido levada a cabo.” (20) Para o centro, via muito frequentada pelas boiadas era o caminho do Rio Prêto, ligando Minas ao Rio de Janeiro. Par­ tindo desta última cidade e tomando o caminho de terra, ía-se até Páu Grande, onde havia uma bifurcação; um dos braços era o prolongamento do caminho de terra, que ía terminar na Encruzilhada, na grande estrada de Vila Rica; o outro, era o começo do caminho do Rio Prêto, que passava perto da habi­ tação de Ubá. Embora que pouco frequentado por tropas de muares, o caminho do Rio Prêto era muito procurado pelas boiadas, como assinalou Saint-Hilaire. (21) Do norte, pelo caminho do São Francisco, era por onde escorria o movimento boiadeiro para as minas: da Bahia, das ribeiras sanfranciscanas, do Piauí, saíam constantes e numerosas boiadas com destino ao centro aurífero. Pelo Espigão Mestre e pelo antigo Arraial dos Couros, hoje Formosa, a Bahia por muito tempo abasteceu as minas com o gado criado nas suas pastagens. De São Paulo para Mato Grosso, a grande boiadeira era a Estrada do Taboado, que até inspirou ao poeta João de Melo Macedo uma “ Sinfonia”. (22) Alastrando-se qual mancha de óleo por sôbre o território brasílico, o gado foi tecendo uma teia de ligações que, depois, como rêde portentosa, unindo os quatro cantos dêsse país, per­ mitiu a moldagem uniforme do seu todo económico, político e social. Bem salientou mestre Capistrano de Abreu: — “é a geografia do gado que realiza a unidade nacional.” Foi êsse,

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talvez, o maior e mais importante serviço prestado ao Brasil, pelo boi. Se a união do litoral muito deveu ao interêsse comercial da Côrte no páu-brasil e no açúcar, monopolizando-os e defen­ dendo tôda a extensão da costa, onde florestava o primeiro _e produzia-se o segundo, a dívida pelo povoamento e pela união das áreas interiorizadas é com o boi; pois graças a êle desven­ dou-se a hinterlandia, abriram-se estradas, fundaram-se povoa­ ções, vadearam-se rios, disvirginaram-se imensas e desoladas regiões, puseram-se em comunicação brasileiros do norte com brasileiros do centro e do sul. No desenrolar de um vai-vém constante, ora pelo interior ora pelo litoral, as boiadas, partindo de Pernambuco, da Bahia, de S. Vicente, para o norte chegaram até ao Pará; para o centro, até os confins de Mato Grosso; para o sul, até o Rio Grande. Dêsses pontos extremos refluíam pràticamente aos pontos de partida, espraiavam-se em novas direções, ganhavam outras latitudes, fortificando assim a teia de nacionalidade que tanto faz a colónia lusa diferir do domínio espanhol na Sul América: enquanto êste se esfacelou em pequenas Repúblicas, o Brasil unificou-se e fortaleceu-se. (23) Se penetrássemos, aqui, pela história da criação das cidades do Brasil, por certo nos surpreendiríamos com o elevado número delas surgidas de um velho curral, de uma fazenda ou de uma estância, de uma casa-grande de criador de bois^ Sitiado o estabelecimento na sesmaria, tinha início a formação do nódulo populacional. Um dia, o proprietário das terras cedia alguns alqueires ao órago de sua predileção e erguia-se capela. Vinha o comerciante e instalava uma venda. Era o vilarejo, depois vila e logo mais cidade.

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Desde os primeiros tempos da colonização^ o boi classifi­ cou-se como elemento de suma valia na produção e nos trans­ portes em nosso país. Ainda hoje, por êsses brasis de dentro, apesar das maquinarias modernas, dos veículos auto-móveis, aquêle animal ainda presta inestimáveis serviços, notadamente na segunda daquelas províncias. Faz pouco tempo disse alguém ter-se admirado quando, descendo de um avião num aeroporto do interior, viu um carro-de-bois aproximar-se da aeronave para recolher a c a rg a ... Na produção, onde mais intensamente colaborou o boi foi no movimentar as rústicas engrenagens das toscas engenhocas, que trituravam as hastes das canas, delas extraindo o precioso suco para a feitura do açúcar. Tam bém vamos encontrar o boi na aragem das terras, arrastando sôbre as mesmas os apa­ relhos que lhes rasgavam o dôrso, abrindo-lhes sulcos onde as sementes iriam germinar, revoívendo-as para enriquecer-lhes a fertilidade. Os mais antigos cronistas e historiadores do Brasil já regis­ travam essas atividades do boi, nestas plagas, ainda no século do descobrimento. Gandavo — Pero de Magalhães Gandavo —

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no seu Tratado que se presume escrito antes de 1573, no capí­ tulo 2.°, ao tratar da capitania de Pernambuco informava o seguinte: — “ Tem vinte e três engenhos de assucar posto que dêstes três ou quatro não são ainda acabados. Alguns movem com bois, e estes chamam tr a p ic h e s ...” (24) N a avaliação dos elementos vivos — homens e animais — necessários à sustentação de uma fábrica de açúcar, como as primitivas, igualava-se o número de bois ao de escravos, 60 de cada, no mínimo, como queria o frade Dom Domingos de Loreto Couto. (25) E Vilhena, atendo-se ao trabalho dos animais — bois a cavalos — nas moendas dos engenhos, depôs: — “ Neces­ sita o Senhor de. Engenho não só de muitos escravos, como de muitos bois e cavalos, tanto para a lavragem das terras e plan­ tações das canas, como para o penosíssimo laboratório do En­ genho, de forma que o que não tem para mais de oitenta de cada um dêstes gêneros, se reputa fraco Senhor de Enge­ nho.” (26) É, pois, com carradas de razão, que Gilberto Freyre asse­ vera: — “O aliado fiél do escravo africano no trabalho agrícola, na rotina da lavoura de cana, na própria indústria do açúcar, foi o boi; e esses dois — o negro e o boi — é que formaram o alicerce vivo da civilização do açúcar.” (27) Pelo menos na últim a década do século X V I I I fazendeiros havia que, do alpendre solarengo de suas moradas, podiam divisar o boi no trabalho de aragem de suas terras de plantio. É que em ofício datado de 1798, o governador Fernando José de Portugal informava a El-Rei que o emprêgo do arado já era conhecido em quase todos os engenhos da capitania da Bahia; e acrescentava que em tais aparelhos costumavam atrelar dez, doze ou mais bois. (28) Um que soube definir, com precisão e acerto, as qualidades do boi, foi José Sylvestre Rebelo, em 1833, na sua Memória sôbre a Cultura da Cana e a Elaboração do Assucar. Diz êle: — “ O boi nutre-se de capim, e não é delicado na escolha; não pre­ cisa de ração; agradece ao homem o cuidado que com êle tem, com passo vagaroso mas certo; trabalha dando prova do seu brutal agradecimento; quando os anos o inutilisam vai servir de nutrição, qualidade que os outros não tem.” Aliado a tanto préstimo, o boi sempre foi animal dócil, humilde, amigo, quase sem exigências, com “uma capacidade quase mística para o sofrimento, para a rotina, para o serviço do homem”, como bem salientou Gilberto Freyre. No que tange aos transportes, quer de caráter económico quer de cunho social, a atuação do boi além de preciosa foi vastíssima. Já vimos, em ligeira referência, que no extremo-norte, na Ilha de Marajó, quando as chuvas torrenciais do inverno e o transbordo das águas dos rios alagam os campos, o boi faz de lancha, arrastando filas de canoas repletas de víveres, de pro­ dutos locais, quiçá de passageiros, percorrendo assim enormes distâncias. Exquisita composição talvez pouco ou nada conhe­ cida em outras partes do mundo. E lá mesmo, no Marajó,

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como aliás em outras partes do Brasil, o boi servia de animal de carga e de montaria, de cangalha ou de sela ao lombo, uma argola de couro traspassando-lhe a cartilagem das ventas, donde partia uma corda a guisa de rédea. (29) O carro-de-bois, dada a importância de sua atuação, já foi merecedor de vários estudos não só de cunho etnográfico como igualmente visando-o no panorama económico e social da nossa evolução. Dos veículos de tração animal — hipomóveis — foi, sem dúvida, o de maior utilidade no transporte terrestre de um Brasil sem trem-de-ferro e sem caminhões. Nas mesas do referido veículo, entre os fueiros que as cercavam, tanto eram arrumadas matérias primas, produtos e mercadorias, como se ageitavam as famílias rurais, das mais ricas às mais pobres, para seus passeios e viagens. Bernardino José de Souza, no seu magistral estudo sôbre o meio de trans­ porte em tela, estampou o seguinte: — “Dos documentos e das crónicas do século X V I, o que ressalta em matéria de trans­ portes por terra é que o carro-de-bois era o único veículo de que se serviam os colonizadores para a condução de materiais de construção e de mercadorias, de toros de páu brasil e de outras essencias florestais, dos produtos da lavoura e até de pessoas, incorporado, porém, e, principalmente, no serviço dos engenhos de açúcar como elemento indispensável ao seu arranjo e prosperidade.” (30) Duas, três, quatro juntas de bois apropriados, especialmente treinados para o mistér — os chamados bois-de-carro — consti­ tuíam a fôrça motriz que movimentava o pesado e lerdo veícuio pelos caminhos mais escabrosos, pelas estradas mais inadequa­ das, pelas estreitas e tortuosas ruas das antigas vilas e cidades, sulcando-lhes o chão batido ou estragando-lhes o calçamento precário, para desespero dos oficiais das Câmaras ciosos da pre­ servação urbana. Não foram poucas as posturas baixadas, proibindo o trânsito de tal veículo pelos centros citadinos. Saint-Hilaire teve ocasião de registrar a atuação social do carro-de-bois, quando disse: — “No sertão, onde as fazendas são frequentemente bastante afastadas da paroquia, só os homens aí vão no decorrer do ano, mas nas duas grandes festas, Natal e Pascoa, a família inteira empreende a viagem; empilham-se as mulheres e as crianças nos carros de bois; passam alguns dias na casa que se possui na vila, e, em seguida, volta-se à habitação.” E aduz ainda: — “ Cobrem-se esses carros com couros de boi.” (31) Nas guerras do Brasil de ontem, o carro-de-bois teve ação destacada. Era o veículo utilisado pelas tropas para sua con­ dução; servia de ambulância para os feridos, transportava cadaveres. No seu livro Retirada da Laguna, fala Taunay de um mascate que chegava até às linhas de fôgo, com seus carrosde-bois repletos de mercadorias, fazendo bons negócios com os soldados. Foi em tais veículos que Garibaldi fez transportar seus lanchões, do Capivarí ao Tramandaí, jornada que se iniciou a 4 de julho de 1839 no decorrer da Guerra Farroupilha no Rio Grande do Sul. 6

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Dão-lhe o nome de carrêta, no extremo-sul, diferençando-se do tipo ordinário, encontrado em outras regiões, pelas paredes e cobertura em forma de telhado, feitas de palha e sustentadas por ripas. Quando de sua permanência no Rio Grande do Sul, Lallemant fez êste registro: — “Passou um grupo de carros! Como os filhos de Israel, viajam as famílias em seus enormes carros de duas rodas, quase da altura de uma casa, atrelados, cada um, a quatro ou seis juntas de bois, pelo onduloso terreno. Já de longe se ouve o rangido das rodas girando em eixo de madeira e os gritos dos candeeiros montados. Muitas vêzes se vê todo um lar passando nos carros. Na frente, de cima do carro, pendem as panelas e utensílios de cozinha. De passagem, um relance de olhos para dentro da viatura, podem ver-se as condições da família.” (32)

(3) Brandônio já registrava, no século XVII, a necessidade que tinham os engenhos de possuir de 15 a 20 juntas de bois com seus carros aparelhados. (Ambrósio Fernandes Brandão, Diálogos das Grandezas do Brasil, pg. 152, Rio de Janeiro). — Lorêto Couto igualava ao de negros o número de bois exigidos pelas fábricas de açúcar. (Domingos de Lorêto Couto, “ Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco” , in Anais da Biblioteca Nacional, XXTV, R io de Janeiro). — Fernão Cardim explicava que: — "Os trapiches reque­ rem sessenta bois, os quais moem de doze em doze horas revesados” . (Fernão Cardim, Narrativas Epistolares, pg. 230, São Paulo) — Dizia André João Antonil, que um engenho real necessitava de muitos carros e muitas juntas de bois para transportar lenha das matas, e que os canaviais requeriam “ suas barças e carros com dobradas equipações de bois” . (André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil, pgs. 9 e 18, Bahia, 1950). (4) Gilberto Freyre, Nordeste, 2a., pg. 138, Rio de Janeiro, 1951. (5) A propósito do aspecto, Oliveira Viana assim se expressa: — "Na obra da colonização no nosso interior sertanejo não há agente mais poderoso e eficiente do que o pastoreio. O curral pre­ cede a fazenda e o engenho. Depois do vaqueiro é que vem o la­ vrador: o gado preludia o canavial e a plantação cerealífica. No periodo colonial é êle o agente precípuo do desbravamento da nossa terra. Nas zonas setentrionais, a conquista dos altos sertões no nordeste é exclusivamente obra dos primitivos criadores” . (Oliveira Viana, Evolução do Povo Brasileiro, 4a., pg. 70, Rio de Janeiro, 1956). — Ao agrupar os fundamentos da expansão territorial bra­ sileira em quatro espécies, Roberto Simonsen menciona, em primeiro lugar: “ Criação de gado, que ocupou grande faixa do sertão, for­ mando a princípio a economia das zonas de engenho e, mais tarde, um decidido apoio à mineração, o fixador do povoamento no interior e o objeto de grandes correntes de comércio que se estabeleceram dentro do país. Com a expansão para o Norte, formaram-se Estados como o Piauí e o Maranhão, cujas lindes foram evidentemente su­ bordinadas à ocupação das planícies e dos vales dos rios, pelas fa­ zendas de criar e pelas concessões de sesmarias decorrentes dessa ocupação” . (Roberto Simonsen, História Económica do Brasil, I, pg. 227, São Paulo, 1937). (6) Basílio de Magalhães escreveu, sem vacilações, que: — “ Fo­ ram os criador js de gado — auxiliados eficazmente pelos bandei­ rantes paulistas, alguns dos quais se transmudaram em estancieiros, os fatores de uma larga expansão geográfica, operada quase tôda no século XVII, sem violação das balisas do pacto de Tordesilhas” . (Basílio de Magalhães, Expansão Geográfica do Brasil Colonial, 3», pg. 223, Rio de Janeiro, 1944). (7) Sôbre êsses paulistas, que foram para o Nordeste dizimar indígenas, muitos dêles depois se afazendando no Piauí, nos sertões da Bahia, etc., disse Capistrario de Abreu com muita propriedade: — “ Cançados da vida aleatória de bandeirantes, tinham-se transfor­ mado no correr do século X V U em conquistadores, isto é, organiza­ vam-se em partidas obedientes a um chefe, o qual contratava com o governo pacificar uma região determinada, recebendo em paga parte dos prisioneiros feitos ou terrenos que ficavam devolutos, ou

Não convém insistir nesse particular, pois é abundante a bibliografia demonstrativa e analítica da atuação do boi nos transportes em uso no Brasil colonial.

Fácil é ao leitor deduzir que não houve de parte do autor deste trabalho a preocupação de uma análise profunda das condições e dos fatores que evidenciam a importância do boi, nas suas múltiplas facêtas, ao tempo em que a fisionomia deste país moldava-se na sua essencialidade rural, nas suas características provincianas. Mesmo assim, embora incompleto, o regis­ tro foi feito como se pretendia.

NOTAS E

BIBLIOGRAFIA

(1) São do historiador João Ribeiro as seguintes palavras: — “ A criação não produzia o imposto e por isso deixa de interessar à Corôa, nem sequer é mencionada na3 histórias da administração (caráter geral das histórias escritas), nem o foi sequer, em seus lineamentos, estudada pelos investigadores do nosso passado; é todavia importante, pacífica e é, ao contrário da turbulência do litoral ou das aventuras das minas, o quase único aspecto tranquilo da nossa cultura; por ela abriram-se as comunicações terrestres iniciadas pela conquista e conservou-se, como ainda hoje se conserva, nas estâncias sertanejas, o verdadeiro ou o único tradicionalismo da vida colonial” . (João Ribeiro, História do Brasilj 14a., pg. 179, Rio de Janeiro, 1953). (2) O trecho da carta de Tomé de Souza, que nos interessa, é o seguinte: — “ Este ano passado veio a esta cidade a caravela Galga de Vossa Alteza com gado vacum, que é a maior nobreza e fartura que pode haver nestas partes, e eu a mandei tornar a carregar no Cabo Verde do mesmo gado para tornar a q u i... “ (His­ tória da Colonização Portuguêsa no Brasil, m , pg. 361-362, Pôrto, 1924).

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postos, pensões e comendas” . , (Capistrano de Abreu, “ Sôbre uma História do Ceará”, in Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Ceará, XIII, pg. 28). (8) Este o trecho da carta datada de 1* de setembro de 1689, dirigida pelo governador geral ao capitão-mor de S. Vicente, sôbre as exigências feitas por Manoel de Camargo e por Matias Cardoso: — "Também vi as proposições do papel que Manoel de Camargo remeteu ao Secretário de Estado capitulando as condições com que se oferecia para vir à guerra. Pouco menos excessivas são as do outro papel, que me enviou Matias Cardoso. E ponderando am­ bos com a atenção que merecia o fim de um, e outro intento, se deixa claramente vêr que nenhum desses sujeitos, nem os que acom­ panharam a Matias Cardoso, e oferecia trazer consigo Manoel de Camargo, trataram do serviço del-Rei meu Sr.; nem respeitaram o empenho em que se achavam suas armas, nem o aperto em que se viam seus vassalos naquela Capitania, senão que considerando-se uns, e outros, o único, e total remédio da defesa daqueles povos, só puzeram os olhos da sua conveniência com o pretexto do serviço de Sua Magestade. Verdadeiramente é indigno de se ler, quanto mais de se propôr a este governo tudo que Manoel de Camargo pedia. E . sendo mais moderado o de Matias Cardoso, quanto a Fazenda Real tem de renda neste Estado seria insuficiente, para a pontualidade efetiva de semelhante despesa” . (Documentos His­ tóricos, XI, pg. 155, R io de Janeiro). (9) Quem depõe com relação ao extremo-norte é um das seus mais conceituados historiadores. Diz êle: — “ O boi desempenhou na colonização amazônica um outro papel, aproximando-se mais ou menos daquêle atribuído por Capistrano de Abreu na sua termino­ logia cia civilização do couro. A gadaria criou o curral e a ma­ romba, com suas estacas de páu-a-pique, abrindo nas paisagens dos campos da Ilha de Marajó, do baixo Amazonas, do Rio Branco, uma nova página da história do homem, à procura de elementos essenciais para o seu equilíbrio orgânico e bem-estar social” . (Lean­ dro Tocantins, Amazônia-Natureza, Homem e Terra, pg. 116, Rio de Janeiro, 1960). (10) Oliveira Viana, Populações Meridionais do Brasil, II, pg. 16, Rio de Janeiro, 1952. — Uma carta de sesmaria datada de 1730, relacionada com terras entre as nascentes do Sabaúma e do Itapicurú, informa como continuava deserto e desconhecido o sertão por onde não passavam os caminhos de gado. (Anais do Arquivo Público da Baia, X II, pg. 8). (11) "O cultivo das terras, porém, diz Saint-Hilaire referindose ao povo das minas, não convém a essa gente, tão imprevidente como os próprios índios; vivem do que ganham diariamente, gozam a vida e descançam quando o rio lhes deu um pouco de ouro; pedem-lho outra vez quando não possuem mais nada, nunca econo­ mizam, e, no meio de tesouros, ficam sempre miseráveis” . (Augusto de Saint-Hilaire, Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e à Provincia de Goiás, n, pg. 146, S. Paulo, 1944). — Veja-se Augusto de Lima Júnior, A Capitania das Minas Gerais, 2’ , pg. 75-76, Rio de Janeiro, s/d .

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(12) "É tão abundante de pastos para todo o género de gados, e os cria tão grandes, e em tanto número, que além de vir muito para a Bahia, sustentam todos os povos das Minas do Sul, que sem ' esta abundância não floresciam na sua opulência, sendo do Piauí à maior parte do gado, que se gasta entre aquêles inumerá­ veis habitadores, e mineiros, posto que de outras partes lhes vão também muito, porque todos lhes é necessário; por não criarem os campos, e terrenos das Minas Gerais êste gênero.” (Rocha Pita, História da América Portuguêsa, 3*, pg. 244, Salvador, 1950). (13) Em carta datada de 20 de maio de 1698, dirigida a El-Rei, o governador Artur de Sá e Menezes informava que os mineiros haviam deixado de minerar, “ o que lhes não foi possível pela grande fome que experimentaram...” E diz mais: — “ a necessi­ dade chegou a tal ponto que se aproveitaram dos mais imundos dos animais, e faltando-lhes estes para poderem alimentar a vida, lar­ garam as minas e fugiram para os matos com os seus escravos a sustentarem-se com as frutas silvestres que neles achavam” . (Ar­ quivo Municipal, Col. Governadores do Rio de Janeiro, VI, f. 117). — Em 1700-1701, segundo relato de João de Leneastro em missiva de 14 de maio de 1701, "por falta de mantimentos se haviam retirado muitos mineiros para a montaria, para terem com que sustentar a sua gente, e outros para as suas casas para voltar em março assim pelos mantimentos que já deixavam plantados, como pelo gado, que haviam mandado buscar aos currais da Bahia e Pernam buco...” (.Documentos Históricos, XI, pg. 283). —’- Vide, ainda, Mafalda P. Zamella, "O Abastecimento da Capitania das Minas Gerais no sé­ culo XVIH ” , in Boletim n” 18 — História da Civilização, n9 12, Universidade de São Paulo, S. Paulo, 1951. (14) "...representando-me o governador vosso antecessor R o­ drigo César de Menezes os riscos e perigos que tem os viandantes pelas estradas dessa capitania e a respeito de que nos grandes matos não só há feras muito ferozes, mas facínoras escondidos e negros fugidos que uns e outros vivem de roubos, mortes e insultos e para defensa e guarda dos passageiros seria mui conveniente per­ mitir-se que-, pudessem levar pistolas, clavinas e espingardas e to­ das as mais armas que lhes parecessem ...” (Documentos Histó­ ricos, I, pg. 157). (15) “A medida que o gado se afastava da costa — é Florêncio de Abreu quem pinta o sugestivo quadro — caminhos de penetração íam se abrindo e consolidando no sertão e para o sertão. Um dos mais antigos passava por Pombal, Itapicurú e Geremoabo. Começa a trilhar-se o de Jacobina e transpõe-se a passagem de Joazeiro. Os riachos Terra Nova e Brígida facilitam a marcha para o Ceará e pelo do Pontal e pela Serra dos Dois Irmãos passam os caminhos do Piauí. Já em fins do século XVH acham-se abertos ao trânsito, pelas freguesias do Mocho e Cabrobó, as comunicações interiores ligando Maranhão, Pernambuco e Bahia. Pelo rio São Francisco, "ou pelo seu caminho, lhe entra o gado de que se sustentam o grande povo que está nas minas” . Da vila de São Paulo e da cidade do Rio de Janeiro, partem outras estradas para as regiões mineiras: a de São Paulo que vai até a serra de Itatiáia, donde se divide em duas, uma para as minas do Ribeirão de Nossa Senhora

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do Carmo e do Ouro Prêto, e outra para as do Rio das Velhasa do Rio de Janeiro que se estende às do Rio das Velhas e dè Cataguases” . Prossegue Florêncio de Abreu: — "Achadas as minas de Cuiabá, a população se concentra a princípio em suas cercaniasmas, em 1736, descobre-se o caminho por terra de Cuiabá ao Para­ guai, encontrando-se em terras de Mato Grosso o gado procedente do litoral brasileiro com o das Missões Jesuíticas do Paraguai Descobertas, por fim, as de Goiás e dada a situação geográfica da região, permitindo comunicar-se fàcilmente com os chapadões do Parnaíba, do São Francisco e do Paraná, abrem-se logo picadas de penetração por onde aflue o gado não só das Minas, Bahia e Pernambuco, mas ainda do Piauí e Maranhão. Até dos campos de São Pedro do Sul vem êle em quantidade para as zonas de mineração, estimulando os tropeiros pelos preços extraordinários que o gado alí fàcilmente alcançava” . (Florêncio de Abreu, O Gado Bovino e a sua Influência na Antropogeografia do Rio Grande do Sul, pg. 21, R io de Janeiro, 1942). (16) “ Relativamente ao Pará — escreveu Capistrano de Abreu — a situação do Maranhão era mais favorável. Entre as duas ca­ pitanias chanfram-se numerosas baías, trinta e duas segundo a conta do tempo, conquista, devido à impossibilidade do local se a navega­ ção por fora era impraticável, a navegação interna por canoas era sempre mais ou menos possível. Além disso, mais de uma vez se recorreu a caminhos terrestres para anular o segregamento. Men­ cionam certos cronistas que os colonos abriram um de Belém a S. Luiz. Assegura Paula Ribeiro ter distinguido ainda vestígios de antiga estrada, em 1811, na visinhança da vila do Viana, que passava da ilha à terra firme pela Estiva, Anajatuba, e depois de atravessar o Mearim, o Pindaré e o Turi, entrava na cidade do Pará. Entre­ tanto, esta parece antes a que por volta de 1770 abriu com êxito nao muito satisfatório Evaristo Rodrigues, natural de Pernambuco, para introduzir no Pará gado do Maranhão e Piauí” . (Capistrano de Abreu, Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil, pgs. 119120, Rio de Janeiro, 1960). (17) Documentos Históricos, XC, pg. 30. (18) Veja-se Aroldo de Azevêdo, "Vilas e Cidades do Brasil” , pg. 35, in Boletim n° £08, Geografia n* 11, Universidade de São Paulo, 1956. — Também Luís Raul de Sena Caídas, “ As Velhas Estradas do Nordeste Sêco”, in Rev. do Arquivo Municipal de São Paulo, CXXXV, pg. 57-65. (19) Aluizio de Almeida, “ A Abertura da Estrada São PauloCuritiba” , in Rev. do Arquivo Municipal de São Paulo, LXXXV, pg. •1®^Não pararam, em Curitiba, os sorocabanos. “ De seus currais, diz o Dr. Afonso de Freitas Júnior — manadas de gado são levadas para as campinas do sul pelas expansões paulistas da colonização. Curitiba, Guarapuava, Lages, Palmas, Iguassú, Vacaria foram sertões e planuras cruzados pelos paulistas que tangeram gados dos currais sorocabanos para os pampas sulinos” . ( . . . ) “ Gran­ des senhores de latifúndios em Sorocaba formaram currais forne­ cedores de gado para outras regiões do Brasil” . ( . . . ) “ Com o gado dos currais também seguiam sorocabanos que se fixavam nas regiões do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, povoando-as

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com suas famílias” . (Affonso de Freitas Júnior, “ A Legenda de Sorocaba” , in rev. do Ins. Hist. Geog. de São Paulo, XXHI, pg. 347). (20) Alfredo Ellis Júnior, "O Ciclo do Muar” , in rev. História, rí> 1, janeiro-março, São Paulo, 1950. (21) “ No caminho do Rio Prêto — diz Saint-Hilaire — encon­ trei muitas poucas tropas carregadas de mercadorias; mas, em com­ pensação, grande número de porcos e bois. Ê por êste caminho que se fazem transitar quase todos os rebanhos de bovinos enviados da parte ocidental da província de Minas, onde se cria muito gado, para o Rio de Janeiro. Esse caminho não oferecia as mesmas co­ modidades da estrada de Vila Rica, embora encurtasse as viagens em alguns dias; aquela, ladeada por grande número de habitações, de vendas, de ranchos, enquanto este, além da topografia mais difícil, não oferecia recursos, pois nem milho para os cargueiros não 'encon­ travam nele os tropeiros. Para incentivar o tráfego pelo mesmo, concedeu-se uma diminuição na peagem dos homens e dos animais que atravessavam o Paraóba no registro do caminho do R io Prêto, passando os bois a pagar ao invés de duas, meia pataca; os burros carregados 80rs. e não 460rs. cobrados no registro do Paraibuna; os homens, também 80rs.” (Augusto de Saint-Hilaire, Viagem às Nas­ centes do Rio São Francisco e pela Província de Goiás, I, pg. 20-30, São Paulo, 1944). (22) Rev. do Arquivo Municipal de São Paulo, XXXI, pgs. 69 a 72. ^ . . . . (23) “ A passagem do gado, — escreveu um analista da história económica do Brasil — representa abertura de caminhos e estes permitem um intercâmbio entre as regiões económicas ilhadas da colónia. E hoje uma constatação dramática verificar que o roteiro dos bois, subindo para o Piauí, Maranhão e Pará, e descendo para Minas, São Paulo, Goiás e Rio Grande do Sul, é o roteiro da integração nacional. Sem essa caminhada das boiadas e possível que o enquistamento económico, o semifeudalismo político fosse ainda mais acentuado do que é. O caminho do mar é o caminho das classes ricas, dos senhores fidalgos e funcionários da Coroa — o chão áspero das trilhas é porém a passagem da plebe, do artesao, do mascate, do escravo — é a via do tropeiro, da “ fábrica , do vaqueiro — é a rota do povo” . Não fica aí o autor de Fronteiras Agrestes; diz mais: — “ O formigar de gente por essas trilhas e que deu espinha dorsal a um organismo feito de núcleos isolados. A zona canavieira do Recife e arredores, a do Recôncavo, a de S. Vicente e a do Rio eram quase Estados à parte. O duplo vicereinado, que existiu durante algum tempo, era reflexo apenas do profundo isolamento, económico e político, existente entre as prin­ cipais zonas do país. O intercâmbio se fazia de cada zona com a metrópole e as zonas não comerciavam entre si. O monopólio da Corôa vedava êsse intercâmbio” . “ O gado é que as uniu e atras do gado foram os mascates, pois cada núcleo fazendeiro criado havia de suprir do necessário que vinha das cidades, e, por outro lado, dali ía a carne e o couro para a cidade. Nisso reside a tremenda importância da pecuária nacional. Foi arrastando grupos humanos para a ocupação da terra e criando assim a necessidade de sortí-los. Essa necessidade unia cada centro provincial à extensa

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zona rural — a ela enviava as manufaturas e dela recebia manti­ mentos. Considerando a extensão gigantesca do território brasileiro e a contribuição esparsa das fazendas, é miraculoso o trabalho de soldagem social que elas realizaram na obscura marcha silenciosa de seus bois e seus vaqueiros” . (Ivan Pedro de Martins, Introduç&o à Economia Brasileira, pg. 247, Rio de Janeiro, 1961). (24) Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da Terra do Brasil, pg. 27, Ed. Anuário do Brasil, Rio de Janeiro, 1924. (25) Dom Domingos de Loreto Couto, "Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco” , in Anais da Biblioteca Nacional. (26) Luís dos Santos Vilhena, Cartas, I, pg. 72, Bahia, 1922. — Antonil, no seu Cultura e Opulência do Brasil, também faz referên­ cias nesse sentido. (27) Gilberto Freyre, Nordeste, 2*, pg. 137, Rio de Janeiro, 1951. (28) Sérgio Buarque de Holanda, Caminhos e Fronteiras, pg. 245, Rio de Janeiro, 1957. (29) "Dadas as condições especiais de Mato Grosso, diz João Dornas Filho, com as grandes planícies e as excelentes pastagens naturais que as cobrem, a pecuária encontra um habitat sem con­ traste no Brasil, e o boi é empregado geralmente como substituto dos muares, recebendo para o transporte o mesmo arreiamento que os burros e cavalos em nosso meio. Superior aos muares pela re­ sistência ao trabalho, a fôrça física e a docilidade, acresce ainda para Mato Grosso a vantagem do seu pequeno custo em terras excelentemente dotadas para a sua criação. Não só o transporte de cargas, mas também para a condução humana, o boi é tido naquelas paragens como ideal para o meio, com a vantagem não pequena de ser uma montaria de primeira ordem” . (João Dornas Filho, Aspectos da Economia Colonial, pg. 48, Rio de Janeiro, 1958). Mestre Cavalcante Proença, ao falar dos bois de carga em Mato Grosso, diz que êles “ ainda hoje entram em Cuiabá pelos bairros do Mundéo e do Despraiado: uma bruaca de cada lado, anél de couro pendente do sépto nasal.” (M. Cavalcante Proença, No Têrmo de Cuiabá, pg. 71, R io de Janeiro, 1958). O boi de carga e de montaria é ainda muito usual em Goiás e no Rio Grande do Norte. (30) Bernardino José de Souza, O Ciclo do Carro de Bois no Brasil, pg. 113, São Paulo, 1958. (31) Augusto de Saint-Hilaire, op. dt. pg. 165. (32) Roberto Avé-Lallemant, Viagem pelo Sul do Brasil, I, pg. 179, Rio de Janeiro, 1953.

O VELHO MERCADO DAS CARNES

Aqui está um aspecto que mereceria ser estudado, anali­ sado e exposto com maiores riquezas de detalhes, inclusive no que concerne aos preços de compra e venda, bem assim quanto aos impostos e taxas que sôbre êle recaíam. Não era tão fácil aos habitantes do Brasil colonial, como possa parecer aos menos avisados, suprir convenientemente sua mesa de tão importante gênero de subsistência como a carne bovina. A escassez observada, que tanto tormento ocasionava ao povo, decorria aqui do esgotamento das fazendas de criatório, alí da desenfreada especulação dos dominadores do comércio. Por outro lado, muito concorria não só para a carência como também para a má qualidade da carne, o fato do gado situar-se em áreas distantes, servidas de péssimas vias de escoamento por onde o gado se transportava, sôbre as próprias patas, em viagens alongadas no tempo e no espaço. Documentos e depoimentos coevos nos informam da preca­ riedade do velho mercado das carnes, inclusive em regiões onde deveria sobrar o mencionado gênero, pela abundância de rêses nas proximidades. Mas assim não acontecia, como se terá opor­ tunidade de concluir após a leitura do que se segue.

A população da cidade de Santa Maria de Belém do GrãoPará era uma das que mais sofriam a escassez de carnes, embora próxima àquela cidade se localizasse a zona de pecuária da Ilha de Marajó. A 13 de maio de 1767, Fernando da Costa de Ataíde Teive, governador do Pará, comunicava a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário dos Negócios da Marinha e Ultra­ mar que, em virtude da decadência das fazendas daquela Ilha, fazia-se necessária “uma eficaz e pronta providência para atalhar, assim a atual ruína das ditas fazendas como que pelq tempo futuro venha êsse povo a perecer; porque fechando-se os açou­ gues muitos dos moradores do Pará, e ainda alguns Rios que são faltos de peixe, certamente experimentarão v e x a ç ã o ...” Para amenizar a situação, Ataíde Teive deliberou realizar um novo contrato “ de peixe salgado e sêco que, vendendo-se nos dias que a Igreja recomenda abstinência de carne, ( . . . ) facilita-se a extração de três mil rêses, com pouca diferença, que tanto se cortavam nos dias de peixe.” (1) Aliás, dos cál­ culos por certo mandados levantar pelo referido governador, verifica-se que o déficit anual das fazendas do Marajó montava a 10.400 rêses, sendo coberto com o “próprio da fazenda”, isto

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é, ao que entendemos, com animais de seus plantéis de oroduçao e não com gados novos destinados ao talho. Na segunda metade do século X V I I I , o consumo de carnes em Belém e adjacências era bastante elevado; pois apesar da rigorosidade no atendimento dos preceitos da Igreja como se observava na época, mesmo nos dias de abstinência de carne cortavam-se alguns milhares de rêses para abastecimento dos incréus. Por isso, Ataíde Teive atribuía o esgotamento das fazendas do Marajó à enorme quantidade de carne que de lá saía, superando a capacidade de produção dos rebanhos da Ilha para suprir cidades e estabelecimentos do Pará. A falta de carne em Belém e suas circunvisinhanças não deveria ser pequena, pois levou o Governador à realização de uma obra que, dadas as condições da época, revestia-se de grande vulto. Vejam os: em carta datada de 6 de abril de 1769, comu­ nicava Ataíde Teive à Câmara da cidade de São Luiz do Maranhao que, em virtude de decréscimo da produção de gado no Marajó, “sentindo já a população do Pará a falta de carne e farinha , ía Evaristo Rodrigues de Albuquerque, por ordem sua abrir uma estrada de comunicação, principiando na vila dé Ourem e entrando pela mata de Maracú até as campinas do Mearim da capitania do Maranhão” , a fim de dar fácil e cômoda passagem as boiadas vindas do Piauí e do Maranhão, para matar a fome dos paraenses. (2) Em Pernambuco, o quadro não se apresentava mais pro­ missor. Alí, segundo exposição da Junta da Fazenda Real, era a exploração que motivava “ a falta que experimentam os habi­ tantes daquela capitania de carnes frescas e a diminuição do rendimento do contrato do subsídio militar das mesmas carnes com graves prejuízos dos reais interêsses e do p ú b lic o ...” Isso acontecia, conforme expunha o contratador José de Souza Rangel, devido “os monopólios que se faziam dos gados e talhos, por pessoas da primeira classe daquêle país, com escândalo e flagelo dos p o v o s ...”. Essa, em síntese, a situação do velho comércio das carnes, em Pernambuco, nos fins do X V I I I e princípios do X I X séculos. Em 1802, manifestando-se sôbre o assunto, o Conselho Ultramarino sugeria a El-Rei que o contrato das carnes ficasse com as Camaras “ a quem está incumbido pelas leis o cuidado de prover sôbre semelhante objeto, e evitar os monopólios e subornos que possam intervir nele. . . ” Achava o mencionado Con­ selho que nenhuma razão havia para que se alterasse tal dispo­ sição, retirando-se das Camaras “o cuidado de fazer provêr o povo de carnes frescas.” Agindo-se ao contrário, é que seria prejudicial à população e serviria apenas de utilidade a alguns particulares, que a título de um pequeno interêsse da Real Fazenda, “farão a desgraça de tantos milhares de homens que nao podem passar sem um alimento tão necessário à vida.” Como se vê^ as razões que ditavam a escassez de carnes em Pernambuco, não eram as mesmas que angustiavam povo e governo paraenses. Na _capitania nordestina, a causa m aior era a desenfreada especulação por parte dos atravessadores saídos dos componentes da “primeira classe” social do país, vale dizer,

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local. Daí, acreditar o Conselho Ultramarino que, entregando-se às Câmaras a distribuição das carnes, cessaria por certo a danosa influência dos açambarcadores particulares. Convém salientar que não era só o povo o único prejudicado com o que acontecia no mercado das carnes em Pernambuco. Também os criadores sofriam nas mãos dos marchantes, estes adquirindo os gados, incumbindo-se dos cortes e da distribuição, não dando possibilidades àquêles de assim fazerem; então, se­ nhores da mercadoria, impunham ao consumidor o prêço que lhes parecesse. Mas não deixou o Conselho Ultramarino^ de considerar êsse aspecto, sugerindo o que lhe parecia remédio para o m al: — “E ccmo porém devem os criadores de gado ser socorridos, para que os marchantes não abusem da _ sua neces­ sidade e do mesmo modo os contratadores e administradores do subsídio, devem ter um m eio de fazer cessar o seu prejuízo, no caso de se não fazer cortar a abundância das carnes é con­ veniente que cada uma das Câmaras em particular quando arrematarem os talhos, reservem um certo número de açougues para os criadores e contratadores e na falta dêstes para os administradores do contrato do subsídio, poderem cortar neles as carnes que lhes parecer conveniente.” Era outra vantagem que adviria do fornecimento por parte das Câmaras e bem assim um golpe mortal nos açambarcadores, provocadores da escassez com o objetivo de valorizar o govêrno. Como medida subsidiária à regularização do abastecimento das carnes, em Pernambuco, foi ainda proposto que os contra­ tadores ou administradores do subsídio não tivessem preferencia alguma nas feiras ou em quaisquer outras partes onde fossem adquiridos gados, “ visto que sempre se praticou assim em toda a capitania com muita satisfação dos povos nos tempos ante­ riores ao ano de 1784 para 85, em que uma fatal seca devastou aquêles sertões e fez nascer a travessia e monopolio de que tanto se queixam as Câmaras, e lamenta o ex-governador da Capitania de Pernambuco, José César de Menezes, na sua infor­ mação.” A venda clandestina de carne, que se praticava em larga escala, acarretava a diminuição do subsídio real, em prejuízo dos cofres de S. Magestade. Recomendava o Conselho, pois, a proibição absoluta da “venda de carnes frescas fora dos açou­ gues públicos, debaixo da pena estabelecida na lei, cuja exata observância se deve recomendar às Câmaras^ e aos ministros respectivos assim como o que regula a eleição dos almotac s, de quem depende em grande parte o bom regime dos açou­ gues.” A presença de atravessadores e a prática de vender carnes fora dos açougues oficiais, não constituíam aspectos adstritos a Pernambuco; repetiam-se em várias outras capitanias, como tere­ m os oportunidade de verificar, e, a bem dizer, sao visíveis at nossos dias. Eram ainda sugestões do Conselho Ultramarino na recomen­ dação que vimos analisando, as seguintes: — conveniente a mudança da feira para o sítio das Tabatm g ,



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Por outro lado, os soldados criavam sérios embaraços à mercância de carnes na Bahia; pois nas ocasiões em que dito gênero escasseava, invadiam os açougues, apoderando-se do que neles houvesse, quando não despojavam os escravos da que iam adquirir para seus senhores. Isso, porém, decorria do exemplo que davam seus superiores, os oficiais, estes comparecendo aos próprios currais do Conselho e arrebatando a carne antes que esta chegasse aos açougues. Nessas ocasiões, os de farda desres-



Na Bahia era comum a venda de carne fora dos açougues, mandandó-se para estes o que restava de pior e sobretaxando-se, ou melhor, majorando-se o prêço nas vendas clandestinas; sôbre isso, fazia o Conselho Ultramarino uma comunicação a El-Rei, datada de 17 de julho de 1706. (5)



Feita a crítica, o Discurso aponta as seguintes providências para a solução da crise: — “Tudo isso se repararia de três modos: * primeiro, havendo no recôncavo certas fazendas em alguma distância, que servissem como de estalagem do gado, aonde êle se refizesse; segundo, sendo êle acabado de conduzir por embarcações por mar, o que alí se não pratica, encurtan­ do-se o caminho do gado, poupando-se-lhe tantas léguas, podendo muito bem já vir morto, quando o gado seja bravio; terceiro, havendo em aquêle recôncavo algumas fazendas de piores terras, que os senhores delas tomem a resolução de fazerem alí criação de gado, vindo-lhe a ser indiferente no fim do ano receber, por exemplo, l:000$000rs. de produto de gado, que se criara, ou essa mesma quantia do produto de qualquer dos gêneros que nelas se plantaram e se colheram.” (4)



Continua o desconhecido autor da peça em tela dizendo: — “Parece até inacreditável que, havendo tantas e tantas terras incultas, e dilatadíssimas campinas em todos aquêles contornos e recôncavos da Comarca da Bahia, que venha, à vista desta boa comodidade da criação, a sentir-se a falta de um gênero que, sendo da primeira necessidade e de fácil produção, do que podia haver a maior abundância; e havendo carestia dêste gênero no trato sucessivo do natural sustento, com infalibilidade há de essa mesma falta vir a ser insurportável, e prejudicial à Agri­ cultura, e muito principalmente ao fabrico do açúcar, aonde os esforços, e o trabalho dêste gado vem a ser tanto mais neces­ sário, e de todos os modos indispensável.”



mesmos fundamentos é extensiva à falta dos gados, e consequen­ temente das carnes precisas para o sustento nos lugares de maior povoação; porém além de concorrerem para isso e para tanto as precedentes circunstâncias, a falta muito mais acresce, porque resistindo-se à sêca, metem-se a caminho, e à jornada inutilmente as boiadas, que fatigando-se, e morrendo, pouco ou nenhúm gado chega salvo, e quando algúm resistindo escapa, mais escapam os ossos, do que a carne que procura conduzir; do que resulta que essa pouca, que de longe vem, é indigna e magríssima, reduzindo-se este artigo tão sòmente à que se cria no recôncavo, a qual, sendo diminuta, diminuto também vem a ser o suprimento, e o socorro, que daí provém por um alto prêço.” .



atenta a lembrança de algumas das Câmaras que foram ouvidas^ a proposta da Junta da Fazenda e a aprovação do dito ex-governador, mas não convém as razões que êste mesmo ex-governador aponta para se proibir aos criadores a venda dos seus gados fora da dita feira, e para as salgas e para as carnes sêcas porque a liberdade do comércio e o favor que merecem os criadores, devem prevalecer a quantas ponderações se fazem para persuadir a inculcada proibição e para que seja mais pron­ tamente sabida a real resolução que franqueia a liberdade do comércio.” É de salientar, nessa parte, que a liberdade absoluta do criador negociar diretamente seu gado, incorreria, inclusive, em prejuizo para o Erário Real, de vez que tais vendas não se subordinavam, por certo, ao contrato do subsídio real. Talvez daí tenha decorrido a sugestão do ex-governador, repudiada pelo Conselho que, de modo admirável, defende a liberdade do comércio, numa época em que o interêsse real suplantava qual­ quer outro. “A abolição da taxa das carnes — diz por fim o Conselho — é outro objeto digno de paternal e soberana atenção de Vossa Alteza Real, e parece indispensável que expressamente assim se ordene para entrar em dúvida quando se houverem de arrematar os talhos. Também parece que se deve determinar que cada uma das Câmaras nomeie anualmente agentes, que se incumbam das vendas dos gados dos criadores, debaixo de fianças e abonações proporcionadas ao consumo das carnes nas respectivas vilas e seus têrmos e por um certo emolumento igualmente proporcionado às suas receitas, sem que êsse estabelecimento se entenda que se constrange aos criadores a servirem-se de tais agentes, quando por si ou por outras pessoas queiram fazer as suas vendas e cobranças, recomendando-se às Câmaras o cuidado de vigiarem sôbre êstes agentes, para que por meios sinistros não façam estorvos às vendas dos criadores, que se não servirem dos seus préstimos.” (3) O documento de que nos valemos, dá-nos clara idéia de como funcionava o abastecimento de carnes verdes em Per­ nambuco. Na Bahia, a desorganização e consequente desmoralização do mesmo comércio decorria da conjugação dos dois fatores já mencionados: da escassez de gados e da exploração dos atravessadores. O suprimento de carne da primeira capital do Brasil dependia, em grande parte, de animais importados de regiões longínquas como do Piauí, por exemplo, o que por razões diversas Qcasionava sérios transtornos no mercado. O autor do Discurso Preliminar, Histórico, Introdutivo, com Natureza áe Descrição Económ ica da Comarca e Cidade da Bahia, referindo-se à carestia dos mantimentos e víveres que alí ocorria no século X V III, atribuía o fato à monocultura, “com descuido, negligência e preterição de outros muitas vêzes de primeira necessidade”, bem como, “as muitas sêcas que vem sendo fre­ quentes em aquêle continente, em alguns anos chega a ser excessiva, e extraordinária.” Agora, no que refere ao gado, e às carnes pròpriamente ditas, explicava: — “Esta carestia pelos

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peitavam as mais altas autoridades locais, como os Ministros e até o General, arrombando os açougues que aquêles mandavam fechar para evitar desordens, e obrigando a que o último para ter carne no sábado da Alelúia de 1797, tivesse que mandar matar um boi no páteo do seu palácio. (6) Agravava ainda mais a situação, segundo relato de um con­ temporâneo de tais acontecimentos, o fato de que grande parte da carne assim surrupiada, era após entregue pelos soldados às suas amasias, para que estas a negociassem pelas ruas, de porta em porta e ao prêço que bem lhes aprouvesse. Enquanto isso, agiam os atravessadores abertamente, for­ çando a majoração do prêço contando, para tanto, com a colabo­ ração de inescrupulosos senhores de engenho que, alegando necessidade de gado para os trabalhos de suas fábricas, o adqui­ riam em quantidade para vendê-lo depois aos “fulminas” como relata Vilhena. (7) O Rio de Janeiro, quer na época colonial quer na da mo­ narquia, sofreu igualmente o problema da escassez de carnes. Em 1698, após longa permanência em São Paulo, em correição administrativa, A rtur de Sá e Menezes retorna ao Rio e alarma-se com o problema da falta do referido gênero, agravada com a exploração dos atravessadores. É quando ocorre ao Governador H f que Pantaleão da Silva conseguira transportar até Lisboa, con­ servando-a em bom estado, uma partida de carnes embarcada na Colónia do Sacramento. Não titubeia Artur de Sá em designar Antônio Moreira da Cruz para ir a Castilhos, na Colónia, a fim de estudar a possibilidade de suprir o Rio de Janeiro com carnes de gado alçado que, em grande quantidade nas campinas do sul, poderia ser caçado sem maiores esforços. Desconhece-se, todavia, o resultado da emprêsa. Há que levar em conta o quanto concorria para êsse estado de coisas a corrupção das próprias autoridades. E disso nos dá notícia pronunciamento do Conselho Ultramarino, datado de 8 de junho de 1706, sôbre uma denúncia que ihe fôra encami­ nhada pelo Sargento-mor Felix Corrêa de Castro contra o juiz de fora do Rio de Janeiro. Êste forçara a arrematação do contrato das carnes, em benefício de um seu apaniguado, man­ dando, inclusive, prender o concorrente que fizera melhor oferta. Tanto assim que, posto novamente em pregão o mencionado contrato, fôra o m esm o arrematado por quatro mil e quinhentos cruzados, “acrescendo ao lanço do afilhado do juiz de fora mais de três m il c r u z a d o s ...”* (8) A o tempo da monarquia, é muito esclarecedor sôbre o que acontecia no mercado de carnes da Côrte, o ofício do Dr. Olegário Herculano Castro, Secretário de Polícia, datado de 5 de dezembro de 1865 e dirigido ao Conselheiro Thomaz Nabuco de Araújo. Dizia assim: — “Ainda em data recente se me comunicou a chegada de três boiadas com tresentas e dezessete rêses, sendo vendidas mais duas, que se achavam em Itaipú, a prêço de cinco mil reis a arroba. A lém disso, eram ainda esperadas outras, já comunicadas de igual número de rêses e constava-se que continuaria a ser feito o fornecimento com mais ou menos regu­ laridade.” Nessa altura, Herculano Castro passa a referir-se aos

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especuladores: — “ Sòmente portanto por especulação e insa­ ciável cobiça, podem ter alguns monopolistas procurado cercar as boiadas em caminho, dando azo a excessiva alça do prêço pela concorrência e facilidade da oferta.” E prossegue: — “A polícia de perto acompanha os criminosos manejos dos espe­ culadores e colhidos os necessários esclarecimentos, procederá com tôda a severidade da lei contra aquêles que tão fatalmente concorrem para o sofrimento de uma população inteira.” Também concorria para a falta de carnes, no Rio de Janeiro, a lonjura de onde vinham os gados, pois Herculano Castro diz ainda: — “ Na província do Rio, como V .E x a . sabe, não há criadores e invernistas, que mandem gado ao matadouro. Os fazendeiros de Mato Grosso e Goiás vendem o gado aos nego­ ciantes, que por baixo prêço o procuram, para, depois, invernado e gordo, ser trazido com o de Minas para o mercado da Côrte. Ê especialmente nesta última província onde se estabelece o grande celeiro dêste gênero de comércio.” (9) Outro documento muito interessante sôbre o comércio de carne da Côrte, é um manuscrito datado de 1865, assinado por Lázaro José F.o, fazendo minucioso estudo do mecanismo do fornecimento do gênero em tela. Êsse documento, não só mostra às claras o comportamento dos atravessadores, como analisa a questão dos custos, prêços, e ainda sugere medidas de correção para deter os exploradores. É digno de ser conhecido e acre­ ditamos ser essa a primeira vez que se o divulga na íntegra. (10) A vila de São Paulo sofreu, por longo tempo, o mesmo padecimento, sendo preocupação constante de sua Câmara solu­ cionar o problema. São inúmeras, ao longo do tempo, suas manifestações nesse particular. Grande parte do abastecimento de carne da mencionada vila, era atendido com gados vindos de Curitiba; mas a população repudiava a carne dêsse gado, tachando-a de danosa para a saúde. É do que nos dá conta em carta Joaquim José de Almeida, datada de 8 de janeiro de 1803 e dirigida aos oficiais da Câmara de São Paulo. (11) Desde longo tempo batia-se a edilidade contra aquêles que, solapando os direitos dos contratadores do fornecimento de carnes, os chamados obrigados, matavam rêses em suas casas, vendendo o produto clandestinamente. A 4 de novembro de 1721, era dado a público um Edital proibindo tal prática, sob pena de trinta dias de cadeia e seis m il reis de condenação. (12) A negralhada fôrra e mesmo escrava, tomava parte ativa no comércio clandestino das carnes, roubando gado pelos currais, abatendo-o e vendendo-o às escondidas; para coibir tal abuso, o governador Rodrigo César de Menezes expediu um bando, pro­ metendo cadeia e açoites aos que o desobedecessem. (13) Em 1725, era a Câmara local que tentava, mais uma vez, deter os furtos e as vendas ilegais feitas pelos negros. E ram tantos os abatedores clandestinos de gado, que já ninguém queria obrigar-se a fornecer tal gênero ao povo, sob contrato com a Câmara. A té o célebre bandeirante Bartolomeu Paes de Abreu, foi condenado a pagar quinze cruzados de multa, a l . ° de dezembro de 1733, pelo fato de andar matando bois às escondidas em sua chácara Samambaia. (14) Até os clérigos

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dos conventos e os soldados dos destacamentos não se furtavam a essa ilegalidade. A respeito dos últimos, o procurador da Câmara requeria, a 7 de novembro de 1733, que se escrevesse ao Sr. Conde “um a carta sôbre a conservação que deve ter o açougue desta cidade e que S .E x a . devia mandar proibir que os soldados do destacamento desta cidade não cortassem carnes, por ser em prejuízo dos contratadores que se obrigavam como também aos moradores porquanto lhes furtam dos seus currais algumas rêses para venderem ao povo e sôbre êste particular se ficou considerando o melhor para assim se escrever ao dito Sr.” Pela leitura das A tas da Câmara de São Paulo, infere-se que o contrato de fornecimento de carnes, ao povo daquela vila, tinha a vigência de um ano. E m muitos casos o obrigado não levava a bom têrm o o seu intento; em outros, vencia-o a duras penas. Raros os que satisfaziam plenamente o compromisso. Esgotado o prazo, a Câmara providenciava nova concor­ rência. (15) ■ O que mais preocupava aos oficiais da Câmara paulista, era o desvio de gado ora para Santos, ora para Minas Gerais, onde era vendido por prêços mais vantajosos do que os ofere­ cidos na praça de São Paulo. Essa evasão, não só prejudicava o fornecimento, com o irritava o povo que, às carnes dos gados de Curitiba preferia as dos criados nos arredores da Vila. (16) Em São Paulo, no primeiro quartel do século X V III, costu­ mava-se abater apenas três rêses por semana, no máximo quatro por ocasião de festa; e a matança era procedida apenas às terças e sábados, exceto na quaresma. À s terças, abatia-se apenas uma rês. Isso pode ser tomado como índice de avaliação da precariedade da vila, na mencionada época, em que possa pesar a venda clandestina de carne. Outra acusação que chegava à Câmara, era a de que se vendia carne pesteada; tanto assim, que a 6 de fevereiro de 1734 um vereador proclamava que “ tinha notícia por pessoas zelosas do bem com um que muitos moradores do têrmo desta cidade com m uito m á consciência mandavam cortar ao povo dela, as rêses que morriam de peste e outros males contagiosos, em grande dano do bem com um .” Logo resolveram os edis que seria preso e levaria açoites ao pé do pelourinho, para servir de exemplo, quem praticasse semelhante crime. (17) Em determinado momento, resolveu a Câmara liberar a matança de gado, permitindo aos criadores abater rêses e vender a carne na cidade. (18) Também o prêço baixo de venda, determinado pela Câmara local, concorria para a escassez de carne na vila de São Paulo, ao mesmo tempo em que incentivava o comércio clandestino. Atendendo às reclamações dos abatedores, a 16 de janeiro de 1818 resolveu a edilidade conceder um aumento de 80rs. em arrôba, esperando com tal providência normalizar o abasteci­ mento. (19) Mais para o sul, não nos consta que o problema existisse; sendo que no R io Grande era êle de todo inexistente.

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AS C A R N E S SÊCAS . A indústria saladeiril foi uma grande consumidora de bois em todo o Brasil. Com maior intensidade, porém, em certa parte do Nordeste e no Rio Grande do Sul. Quando, no extre­ mo-sul, a produção e o comércio do charque se desenvolveram, a ponto de superar o comércio de couros, a Corôa despertou para a sua importância; e passou a incrementar tal indústria, ordenando que não se descurasse nas tentativas a respeito da salga de carnes e da manufatura dêsse “precioso gênero”. Myriam Ellis, no seu magnífico estudo intitulado O Mono­ pólio do Sal no Estado do Brasil, afirma que as atividades saladeirís concorreram de muito para a extinção do estanque do sal na colónia. E vai descobrir no Arquivo do Estado de São Paulo, Livro 106, Tempo Colonial, fl. 32, que “A Metrópole procurou até alimentar as experiências de fabricação de “tableias” destinadas ao preparo de caldos, para o que foram enviadas ao Brasil receitas impressas. Essas tabletas preparadas com carne de vaca e de carneiro duravam anos e teriam grande utilidade no aprovisionamento das esquadras e dos navios mer­ cantes, evitando que a bordo das náus fôsse levado gado vivo. E m Buenos Aires, a invenção fôra posta a prova com tal exito, por um francês que lá se estabelecera, que Portugal passou a ter interêsse em se apoderar do segrêdo de fabricação.” A indústria das carnes sêcas surgiu no Ceará, no século X V III. Daí denominar-se o produto de carne do Ceará. Como a desidratação das mantas era obtida pela incidência de raios solares sôbre as mesmas, chamavam-na, ainda, carne de sol e carne sêca. Durante longo período daquela centúria, o comércio de tais carnes fo i'u m sustentáculo da economia de grande parte da região nordestina, consequência da atividade pastoril desen­ volvida no interior, das salinas naturais do litoral, e das condi­ ções climáticas alí imperantes: vento constante e baixo teor de umidade. Com a salga das carnes, evitava-se o onus do subsídio de sangue, taxa de 400rs. por boi e 320rs. por vaca, cobrados dos que eram abatidos para venda nos açougues. Salgando as carnes, não só evitava-se o prejuízo resultante das longas tra­ vessias. com o gado em pé, como dava-se durabilidade ao pro­ duto. Tôdas essas vantagens incrementaram, de muito, a indús­ tria saladeiril no Nordeste. Aos estabelecimentos de produção dêsse tipo de carnes, davase, naquela região, o nome de oficina. Conheciam-nos também como fábricas, feitorias ou salgadeiras. No Açú, no Rio Grande do Norte, havia uma povoação denominada Oficinas, antigo pôrto de embarque comunicando-se com todo o sertão do sul e do oeste do Estado, cujo topônimo provinha-lhe do fato de ter sido alí um dos lugares onde se tentou, em grande escala, a indus­ trialização da carne sêca. (20) E foi José Pinto Martins, cea­ rense do Aracati, proprietário de uma oficina quem, devido a

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escassez de gados no Ceará, provocada pelas sêcas, resolveu transferir-se para o Rio Grande do Sul, introduzindo alí, em 1780, a referida indústria que tomou o nome de charque (Char­ que ou charqui, de proveniência quichua, palavra originária dos Andes, introduzindo-se pelo Prata no vocabulário nacional). Instalou-se Pinto Martins à margem direita do arroio Pelotas. O consumo de carne sêca, no Brasil colonial, era grande e dilatado, visto consumirem-na não só os menos favorecidos como por igual os mais abastados. Essa espécie de carne constituiu-se no alimento primordial da dieta de milhões de escravos, sendo permanente sua presença na mesa do sertanejo. De carne sêca supria-se a numerosa soldadesca e as tripulações dos navios que aportavam ao Brasil. Nas casas-grandes, não havendo visita de cerimónia obrigando ao perú e à galinha, dificilmente faltava carne sêca com pirão de farinha. r > Basta dizer que só Recife, em 1788, consumiu o carrega­ mento de carne sêca de quatorze barcos, embora muito bem suprida de carne verde, graças as providências de D. Tomás. Calcule-se o que não consumia a Bahia, muito mais povoada, e o Maranhão, e o Rio de Janeiro! E m média, cada sumaca transportava a produção de cerca de 2.000 bois, ao redor de 72.000 quilos de carne sêca, dando-se à rês um peso médio de 12 arrobas e um rendimento de 20 por cento. Isso permite formular idéia da importância dêsse comércio para a economia pastoril do Nordeste. Ressaltava o valôr de tal produto, sua resistência à dete­ rioração, o que era de grande valia numa época em que não se conheciam os processos de refrigeração. Por outro lado, atri­ buíam-lhe alto poder nutritivo, por certo advindo do sal utilizado no seu preparo, que vinha contrabalançar a carência dêsse gênero, no consumo, e cuja falta ou deficiência no organismo humano não só reduz sua vitalidade, como diminui sua capaci­ dade de trabalho. A fabricação de carnes sêcas teve sua época na Ilha de Marajó. Documento datado de 1767 informa que sacrificava-se alí, anualmente, cêrca de 800 rêses para tal fim. (21) Dos têrmos daquêle ofício de Martinho de Souza Albuquerque, da­ tado de l .° de dezembro de 1782, inserido no capítulo que trata dos velhos usos e costumes nas fazendas de gado, verifica-se que a produção daquelas carnes, no Marajó, era controlada pelo governo da Capitania, através o Inspetor Geral da Ilha, isso não só quanto à excelência do produto, como ainda em relação à quantidade de rêses destinadas à sua feitura. Houve época em que o Pará supria-se de carnes sêcas impor­ tadas do Ceará e do Piauí. Isso nos afiança uma carta de D. Francisco de Souza Coutinho, datada de 24 de junho de 1797, dirigida a D. Rodrigo de Souza, na qual dizia o missivista: — “Antes que na Ilha do Marajó houvesse criação de gados, e ainda depois por não terem produzido tanto que bastasse a suprir o consumo destes Habitantes, e aos das muitas disposições do

Sumacas dos Portos de barlavento...” (22) No Piauí, o iniciador da indústria^ 5 ^ y ^ f d e Por carnes em aprêço foi Dommgos e do Sul onde chegou a tugal diretamente para o Rio G transferiu-se para o amealhar considerável riqueza. Em 17W ^ a n s ^ tom£ndo.se Nordeste, onde aumentou de mu de fazendas de criaproprietário de muitas oficinas assim élebre Qasa Grande ção e de plantação. Foi o fu n d a d o r^ g eg ^ daria lustre da Parnaíba a que seu filho, Simplí e navi0s próprios, incomparável. Possuía escravaria numeros dutos. (23) em número de cinco, para o transporte de seus p No Piauí, o preparo das carnes stos to lidades: de oe lh tresa p s ^ asgag mUsculares mantas em número de duas formad P a segunda, proque cobrem o pescoço, a|oC0Snt]f pasd! vam seis postas, duas por vinha dos quartos da ^ a secar em tabotrazeiro e uma por dianteiro. arrnazens. Por ocasião da leiros, após o que eraJ® pol^ d mantal™os porões dos navios, exportação, empilhavam-se a de bois eram abatidos, indo algumas em ^ ^ ^ í e s . exportadas para a anualmente, para a J ^ n b ã o Pará e Rio de Janeiro. Bahia, Pernambuco, Maranhao, Pa a „ . Foi das mais prósperasa i^ p S osrtão afe £ ir por° Bernardo de lherme Studart arqmvaum g ^ aÇCoutinho, no decorrer do Vasconcelos a D. Rodrigo ae __ «r>as vdas e povoaséculo XVIII, daqualconstaose^inte D ^ ^ descenções da Capitania estabdecito P ™ éPa vila de Sta. Cruz dentes a que tem a ? ™ eira p d® rio j agUaribe aonde a opordo Aracati, situada nas margens feitoria das carnes tunidade da barra estabelece nara dma de 50.000 rêses.” E sêcas e morrem todos os ,anos pa, 1na a f0Z do rio Camocim, aduz: - “A vila da Granja, quedorama a que Ber. tem em si grande comércio de carn ^ ã verifica-se que nardo de Vasconcelos junta a sua p * salgas que, como

f5 5 5 2

e de suas Anexas, E x t e n s a o d e contratos, RendiNotáveis, A g r i c f t u Xa, Num ero de Engenhos, ^ ^ m sd e q m entos Reais, Aumentos qu Governo das M esm as A no de 1774, em que Tom ou .P osse José César de Capitanias o Governador e C m t a o ^ M r ^ ú ; — “ Nesta M enezes, consta o seguinte anbeuraci o a ^ pQr outros

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JOSÉ

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BRASIL DO BOI E DO COURO nas embocaduras do Jaguaribe, do Coreaú, e fora do Ceará nas do Açú, Mossoró e, ao longo do Parnaíba, ergueiram-se muitas oficinas. Foram grandes comercialistas de carnes sêcas, no Aracati, o capitão-mor João Pinto Martins, e seu irmão Bernardo Pinto Martins, que tinham muitos escravos nas suas fábricas. Situada a quinze quilómetros da barra do Jaguaribe, Aracati tornou-se o principal centro saladeiril cearense, seguida de Granja, Camocim e Acaraú. Instalaram-se lá as primeiras fábricas no início do século X V I I I . E antes de sua elevação à vila, o que se deu em 1784, já se abatia no Aracati 18.000 bois por ano e mais de 25 sumacas íam ao seu pôrto recolher o produto. Não de­ morou a superar económica e socialmente o Ceará, já agora abatendo de vinte a cinquenta mil bois anualmente. No Maranhão, por volta de 1770, o grande produtor do gênero em tela era João Paulo Diniz, com muitas oficinas esta­ belecidas às margens do rio Parnaíba. A s sêcas prejudicaram consideràvelmente a indústria das carnes salgadas, no Nordeste. Em 1793-1794, devido a estiagem, o gado cearense morreu todo, passando a ser adquirido no Piauí, último reduto das salgadeiras naquela região. Morto, porém, Domingos Dias da Silva, em 1793, sobreveio a debacle total da indústria. O Aracati, que exportava, antes de 1790, para a Europa, trinta mil couros de boi por ano, depois de 1794 não podia embarcar nem um. A Bahia, que era grande importadora de carnes do Piauí e do Ceará, passou a comprar charque no Rio Grande do Sul. (25) No primeiro quartél do século X I X , um articulista escrevia o seguinte: — “Esta Província não tem em si como possa sustentar por três mêses seus habitantes sem o socorro e auxílio de Portugal, dos países estrangeiros e das outras províncias longínquas do Brasil. O Rio Grande (do Sul) nos fornece anual­ mente de 600.000 arrobas de carne sêca, produto de 120.000 bois que mata por ano com destino para a Bahia.” (26) No último quarto do século X V I I , — 1680 — carnes sêcas e salgadas eram remetidas do norte para a Colónia do Sacramento, consoante uma carta de Roque da Costa Barreto mandando vender, na vila de Camamú, um carregamento de 200 arrôbas do gênero, que não mais seria enviado àquela Colónia por ter a mesma caído em poder dos Castelhanos. (27) Depois da terrível sêca de 1790-1794, que liquidou pràticamente com o criatório no Nordeste, a indústria das carnes sêcas perdeu todo seu vigôr, naquela região, por falta de matéria prima. (28) Foi quando o Rio Grande do Sul passou a liderar o mercado do referido produto, como acontece até hoje. To- , davia, antes da chegada de José Pinto Martins, as populações da extrema sulina salgavam couros e carnes; e os portuguêses da Colónia do Sacramento, desde fins do século X V I I , já prati­ cavam o comércio de exportação de tais gêneros. E m 1777, porém, com a entrega da Colónia do Sacramento à Espanha,

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por fôrça do Tratado de Santo Ildefonso, refluiu para terras brasileiras do Rio Grande do Sul grande parte da indústria de derivados do gado, couros e carnes salgadas. Aí, então, o comércio dêsses últimos tomou grande impulso, embora pade­ cendo da falta de sal, que importava dos armazéns do Rio de Janeiro, do Recife e da Bahia, no fim do século X V III, regres­ sando as embarcações que o levavam pejadas de charque. O desenvolvimento da indústria do charque, no extremo-sul, foi de tal forma brusco e rendoso que, começando o comércio em 1788 com uma sumaca, em 1793 o Rio Grande já exportava 13.000 arrôbas daquêle produto; e nos primeiros anos dos mil e óitocentos chegavam à casa das 600.000. Daí, Caio Prado Júnior ter dito: — “ Excluído o rush do ouro, não se assistira ainda na colónia a tamanho desdobramento de atividade.” (30) Muito concorreu para essa aceleração a falta de competidores; pois as lutas e discórdias surgidas em Buenos Aires e Montevidéo, fez aquela região platina perder a hegemonia do comércio de couros e de carnes sêcas, passando o Rio Grande do Sul a liderá-lo. A observação de Saint-Hilaire é esta: — “Aproveitei minha estada em São Paulo para ir ver na encantadora vila de São Francisco de Paula, as grandes fábricas de carne sêca (xarqueadas) que canalizam, anualmente, elevados capitais para a capi­ tania do Rio Grande, principalmente depois que os rebanhos de gado vacum foram quase aniquilados nas estâncias de criação das margens do Rio da Prata.” (31) Nas suas andanças pelo Rio Grande do Sul, a caminho de Cuiabá, o naturalista Herbert H. Smith teve oportunidade de visitar algumas charqueadas — estabelecimento de produção de charques — registrando algumas observações interessantíssi­ mas. (32) "• A indústria saladeiril, no Rio Grande do Sul, enriqueceu, muita gente, chegando mesmo a criar uma classe social: a dos charqueadores. Eram êles os compradores das boiadas vindas dos ferazes campos do sul do Jacuí, levadas depois para as charqueadas do arroio Pelotas ou do rio S. Gonçalo. No primeiro quartel do século X I X , entre os mais ricos charqueadores desta­ cava-se Antônio José Gonçalves Chaves, português de Trás-osMontes, chegado ao Rio Grande em 1805 à cata de fortuna. Chegou a possuir bens calculados em seiscentos mil francos, consoante assertiva de Saint-Hilaire. A carne sêca produzida no Brasil era também mandada para o exterior. No tempo da colónia, sabe-se que grandes carregamentos de tal gênero eram enviados à Metrópole; no da Monarquia, chegou-se a baixar Lei sôbre o dízimo e outros direitos a serem cobrados sôbre a exportação do mencionado produto. (33) Conta Henrique Pinheiro de Vasconcelos que: — “ No tempo da guerra napoleônica os navios inglêses se abas­ teciam em grande quantidade de carne sêca riograndense, pa­ gando nove pence por cada libra.” (34)

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E m Mato Grosso, a abundância de gados incentivou a fabri­ cação de carnes sêcas. “ Os campos do pantanal — informam dois observadores daquela região — multiplicavam o gado que alí se acumulava, pois, de há muito ultrapassavam de longe as necessidades regionais e, inicialmente, seu comércio era feito entre criadores do planalto do sul do Estado com os boiadeiros do Triângulo Mineiro. Nesse particular, as charqueadas — "saladeros” — respondem a uma necessidade de aproveitamento dessa riqueza, com os recursos locais, como forma mais avan­ çada de esforço industrial. Porém, só com o desenvolvimento posterior do comércio poderia alcançar êsse objetivo.” (35)

NOTAS E

BIBLIOGRAFIA

(1) A carta do governador Ataíde Teive e os documentos com os cálculos referidos no texto, estão arquivados no I.H .G .B . Extração e Consumo de Gado Vacum Produzido na Ilha Grande de Joanes —. 1767 Vem para o açougue desta cidade no ano ....................... O Convento dos Religiosos gasta cada ano ......................... O Convento do Carmo da mesma forma ........................... Macapá gasta ............................................................................ A Fábrica de Madeira de João G. Campos ..................... A Fábrica de Sola .................................................................. A Vila de Cametá ........................................................... A Vila de Ourem ...................................................................... A Vila de Vigia ........................................................................ Os Engenhos e Fazendas das Vertentes do Rio da Cidade.

8.703 1.200 500 3.000 160 80 80 50 30 832 14.635

Gastase em tôda a Ilha Grande de Joanes Nas Fazendas de Gado, Currais, Vilas Lugares e Engenhos. Mortes de Gado pequeno, e grande de bicheiras, cobras e onças ........................................................................................ Rêses que se matam em tôda a Ilha no decurso do ano para as carnes sêcas .................................................................

10.950 1.825 800 13.575

Total geral ___

28.270

Número de rêses que se consome por ano ....................... Ferram as Fazendas no ano ............................................... Sai do próprio da Fazenda cada ano ..................................

28.210 17.810 10.400

a)

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Marcos José Monteiro de Carvalho

Cálculo da Produção e Consumo de Gado Vacum Existente na Ilha Grande de Joanes, assim Manso como por Domesticar, R e­ gulando Favorável, e Prudentemente, pelas Informações Toma­ das de Pessoas Experientes: que possa Haver nos Pastos das Fazendas, Cincoenta Mil Reses, e o Dobro Bravo, e Amontoado, Fazendo por Todo Cento e Cincoenta Mil R êses; para Mostrar que Retardando-se a Providência do Estabelecimento do Contrato do Peixe, e do Bando, que Defende Matarem-se as Vacas, Ficará Extinto e Sobredito Gado em Catorze ou Quinze Anos, Achando-se com Efeito as Cento e Cincoenta mil Rêses que por estimativa se calcula. — 1767. 17.810 .— Rêses que ferram os criadores ou fazendeiros cada ano. 28.210 — Saem no ano das Fazendas por consumo ........................... 10.400 — Gasto por ano do próprio ou principal das Fazendas . . . — Multiplicadas por 15 anos estas 10.400 rêses dispendidas do próprio, •importarão ............................................................ 156.000 E aqui temos que em menos de 15 anos, se achará o Marajó sem uma só rês; porque a produção do gado amontoado, é para compensar o que perecer de bicheira, e os golpes das onças, e cobras, que são férteis nos Perizais e onde se entranham. Deixa-se de falar no aumento das famílias, que é certo; e do maior consumo, que precisamente nesse caso deve haver porque está palpável. Não se trata também das consequências, que prognostica a dificuldade de tirar o Gado dos referidos Perizais, e da consternação que experimentaria o Povo, se a sua subsistência fôsse absolutamente dependente deste mencionado meio por serem visíveis e constantes. a) Marcos José Monteiro de Carvalho (Ms. do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata n5 282, documento n* 14.778). (2) F. A. Pereira da Costa, Cronologia Histórica do Estado do Piauí, pg. 85, Pernambuco, 1909. (3) Documentos Históricos, vol. XCU, pg. 170. (4) Anais da Biblioteca Nacional, vol. LTV, pgs. 288-289. Vejase, ainda, Joaquim José da Silva Mata, "A Agricultura na Bahia” , in Semanário Cívico tí> 26 de 23-8-1821. “ O Piauí nos envia todos os anos 20.000 bois que se cortam nos a çou gu es...” . •— À essas lonjuras de onde vinham as rêses para Salvador, fizeram referências Spix & Martius: — “ As grandes distâncias de onde são trazidas as rêses para o consumo, e principalmente as dificuldades causadas pelo transporte por ocasião de grandes sêcas tornam desejáveis que agricultores instruídos aumentem os gados nos campos e caa­ tingas das comarcas visinhas” . ‘ ‘Atualmente a Bah:a recebe o seu gado vacum dos campos do R io Pardo, Ressaca e Valo, entre o R io Pardo e o R io de Contas e principalmente da Província do Piauí donde vem pela estrada do Juazeiro. Durante uma longa falta de chuvas os donos dessas boiadas comumente perdem a me­ tade do gado e a cidade sente a falta de carnes fre s ca s ...” (Spix & Martius, Através da Bahia, pg. 84). — Da Bahia, gado vindo do Piauí era comerciado com Minas • Gerais e São Paulo. Ainda na última década dos mil e oitocentos, dizia Nogueira Paranaguá. •

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“ Alguns boiadeiros, seguindo a mesma estrada, dirigem-se da Bahia para Minas e S. Paulo, conduzindo grande número de bois, compra­ dos no Piauí e invernados na Bahia” . (Nogueira Paranaguá, Do Rio de Janeiro ao Piauíj pg. 54, Rio de Janeiro, 1905). Sôbre o assunto, diz Vilhena: — “ Igual ou maior tem sido a desordem mo­ tivada pelos mesmos fulminas e descarados protegidos, pelo que pertence à carne, sem que possa deixar de atribuir-se o descuido e permitir que estejam servindo de covis a onças e tigres terras admiráveis e próprias para a criação de Gados, que com a obrigação de povoá-las se deram em outro tempo por sesmarias nesta mesma Capitania a famílias poderosas que nada cuidam nelas, podendo estar cheias de criações, abastecendo de carne a cidade, e aumentando o comércio da courama; motivo êste por que êle se tem visto e vê na maior consternação com a penúria da carne, esperando lhe chegue dos longínquos sertões do Piauí, distante perto de tresentas léguas, quando a poderia ter, como disse, em muita abundância, não só dentro da sua Capitania, como ainda na comarca” . “ Parece seria acertado houvesse fora da cidade algum com pasto onde aquêles bois estropiados podessem descançar e refazer-se por alguns dias, antes de os matarem; não é porém a ssim ...” Em certo passo, Vilhena atribui a má saúde do povo da Bahia à péssima qualidade da carne que se lhe oferecem; é quando diz: “ Já na minha 3’ carta falei dos diferentes sertões, donde saem os bois que se comem nesta cidade e que nenhum fica em distância menor de 70 ou 80 léguas, muitos na de 100 a 150 léguas, não poucos na de du­ zentas e mais léguas; julgue pois qualquer o estado em que che­ garão aquêles animais, que se tiram das fazendas em que nasceram, bravíssimos como féras, que nunca viram gente, depois que em bezerros foram marcados” . "Vem estes por tôda mencionada dis­ tância agitados por vaqueiros, montados em cavalos e armados com ferrões de uma polegada de comprimento com que os atravessam até as entranhas, comendo por tôda a viagem o que é mais fácil supôr, até que finalmente chegam à Feira, distante doze léguas da cidade e alí são recolhidos em currais em que só há areia e estrumes; destes são conduzidos para a cidade, sem comerem mais do que o que andando, podem apanhar com a língua, por uma só e única estrada, frequentada de boiadas, inumeráveis, desde o princípio da cidade, fundada há 250 anos; chegam finalmente e aí são recolhidos no curral do Conselho, donde só saem em quartos para os açou­ gues, desde a sexta-feira de uma semana até a quinta-feira da outra; e se neste meio tempo saem, é só para beber e nunca para pastarem, por não haver nesta cidade um palmo de baldios, como deixo ponderado” . “ À vista pois do referido, quem há que não conheça estar a carne daquêles animais tão longe de ser bom ali­ mento que antes é mortífero a quem a come” . "Quem não vê que aquêles bois, posto que estão em pé, estão corruptas as suas carnes?" “ Quem não alcança ser aquêle alimento a origem de milhares de enfermidades endémicas que na Bahia se padecem? Por esta carne, pois, é que os monopolistas e atravessadores embandeirados em Marchantes, se puzeram em campo para levantar-lhe o prêço até onde querem, obrigando o miserável povo a comprar a sua ruína pesada a dinheiro” . (Luís dos Santos Vilhena, Cartas, 1", pgs. 128 e 161).

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(5) “ O chanceler da Relação da Bahia, João de Souza, em carta de 8 de dezembro do ano passado (1705) dá conta a V. Ma­ gestade que vendo tão mal executadas as repetidas ordens, com que V. Magestade tem proibido não se vender carne fora do açou­ gue, mas também com quatro vinténs mais do que pela Câmara sai taxado o prêço dela cada semana, e indo só para o açougue a pior para se vender pela taxa’’. (Documentos Históricos, vol XCV, pg. 203). (6) “ S muito para notar — diz Vilhena — e ainda mais para recear, a ascendência que os soldados se tem arrogado, sôbre o Povo, cometendo absurdos bem dignes de reprimir-se; é um destes o apoderarem-se dos açougues públicos nas ocasiões de faltas de carnes, entrando violentamente nos talhos, tirando por fôrça os quartos de carne, arrancando-a das mãos dos escravos de cada um, e muito principalmente dos Ministros, pretextando não serem mais privilegiados do que êles, vendo-se muitas vêzes precisado o Presi­ dente do Senado ir pessoalmente acudir as desordens que fazem, sendo por alguns tratado com menor decoro e respeito; tem suce­ dido arrombarem as portas dos açougues que êle manda fechar para evitar as mesmas desordens; chegando a tanto a audácia e insubordinação que para o seu próprio general ter carne em sábado da Alelúia de 1797 houve precisão de mandar matar um boi, de que esta se havia de tirar, dentro no páteo do seu próprio palácio; menos escandalosos seriam esses procedimentos, se tomassem só a carne que lhes bastasse, e não para entregar a negras, com quem tem tratos ou contratos, conhecidas por cacheteiras que, moqueando-a,' segundo a frase do país, a vendem a bocadinhos, roubando os miseráveis pobres que por outro meio a não podem conseguir” . “ S este procedimento análogo ao de muitos Oficiais inferiores que tem ido juntar-se nos currais do Conselho na deliberação de arre­ batar a carne destinada para os açougues; o que tem obviado a prudência e presciência dos Administradores dos mesmos currais, já dissuadindo-os, já contentando-os pelo melhor modo, por evitar e ficarem despedaçados pelas mãos de mais de oitenta ou cem negros que armados de facas, cutelos, machados e mais instru­ mentos semelhantes, trabalham todo o ano, naquela oficina, e tendo tanta dúvida em matar um homem quanta se lhes oferece em derribar um boi, não os excedendo em ligeireza o alão mais veloz e mais matreiro". (Luís dos Santos Vilhena, op. cit. pgs. 130-131). (7) Sôbre êsse particular, o depoimento de Vilhena é o seguinte: — “ Já eu disse que em 1789 e alguns anos depois, era o seu preço (da carne) taxado em 600rs. cada uma arroba, de manhã se en­ tende, porque depois das onze horas do dia, saíam as pretas pelas ruas apregoando a 360rs. e mais barata à proporção que o dia ía caindo; naquêle tempo, porém, tinham os atravessadores, e fulmi­ nas, o preciso respeito a Angola e Índia; e os poderosos e ricos não tinham porta franca para introduzirem nos seus Engenhos, à título de Fábricas, multidões de Gados a refazer-se, e virem em quartos a vender por fulminas na cidade” . “ Não contentes os mo­ nopolistas com as taxas das carnes a 600rs. cada uma arroba; prêço porque correm até o ano de 1793 ou 1794, trabalharam até que se

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lhes poz a taxa de 800 rs. por arroba” . "Como porém não enchesse êsse prêço ainda as suas vistas, embandeiraram um orador anóni­ mo, e muito de supôr interessado, o qual lhes formalizou um elo­ quente requerimento, ou proposta em que arrota erudição com tudo o que achou em alguns dos que modernamente escreveram de po­ lícia, e economia, admiràvelmente para os países em que se acha­ vam, e seus contíguos, sem que nunca se lembrassem de que hou­ vessem homens a quem faltasse o critério para conhecer que a doutrina que em uma parte é profícua, pode em outra ser nociva, e inaplicável, e isto por muitas circunstâncias” . "Com aquela ora­ ção, pois, mais comprida do que os anais de Aragão, se põem em campo, aliciam partidistas, conseguem quatrocentas e tantas assi­ naturas de homens todos abonados, e fazendo jogar as molas do seu artifício, conseguem a franqueza nos preços das carnes, que apesar de ser um gênero de primeira necessidade em tôdas as partes do mundo policiado, se vendem sempre por taxa a rematar a quem mais barato o podesse dar ao Povo, ficando desta forma o pobre da Bahia numa vexação de comprar a carne mais vil que podesse haver, por preços de que não vale a metade” . “ Na semana em que se conseguiu este decantado triunfo, contra o parecer do Presidente do Senado que por um ano inteiro se opôs, em fins de setembro de 1797, um dos assinados, reputado entre os mais ricos da cidade, mandou registrar um quarto de boi que o seu comprador o trouxe do açougue a 1920rs. cada arroba, e isto por cara” . “ Nas semanas antecedentes ao levantamento do prêço, só entravam 50, 60 e 30 rêses etc.; e em algumas nenhum boi; na semana porém que se seguiu foram os marchantes à Jacobina, distante cem léguas da Bahia e do Piauí que dista 250 léguas, além de outros sertões e nessa mesma semana entraram na cidade com quatrocentas e tan­ tas cabeças” . "Naqueles princípios ganharam, se isto é ganhar, bastante cabedal nos gados que subrepticiamente introduziram com prejuízo das rendas do Senado, das Terças de S. Magestade e do Subsídio Literário; hoje porém ganham menos, e às vêzes perdem; em primeiro lugar porque logo que nos sertões chegou a notíelã da soltura do prêço, raro ou nenhum criador desce com gados por­ que nas porteiras de suas fazendas os reputam como querem; e em segundo porque os pobres que não tem com que comprar a carne, passam sem ela, ou a vão comprar de tarde, quando quebra, que assim chamam ao abaixar o prêço; o que se faz quando está já meio corrupto, e só boa para dar a cães, ou lançar no mar: estas e semelhantes desordens provém dos fulminas e atravessado­ res monopolistas: como pois os soldados não deixam de entrar nessa irmandade, eu te vou referir algumas das funções da sua reparti­ ção, lembrando-te que para uma unha se julga do tamanho de um leão”. Informa ainda Vilhena que D. Rodrigo José de Menezes no seu govêrno (1784-1788) tomou providências contra a escassez de carne e contra seus exploradores. “ Igual era a penúria que havia de carne motivada tôda pelos atravessadores e fulminas, por mãos de quem o Povo comia aquêle gênero de que só havia falta por desvios e retenções causando indizível prejuízo às rendas do Se­ nado, as Terças de S. Magestade e a coleta Literária. Para obviar

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brasil do boi e do couro

JOSÉ ALIPIO GOULART

, o ■Rva. uni administrador tine em parte a estas desordens c • . , :aj.ra(jor e seu Escripôs nos Currais do Conselho, um °u tropa de linha com uma vão, para a coleta, destacou um Qg gados que descem dos escolta para _ a feira, onde s ■[ avançados nas estradas e diversos sertões, havendo posto g f „im inas pertinazes; e com degredou para Angola e lndia alguns fulminas P e ™ ^ , & ^ estas acertadas disposições ho^ve êrno” (Luís dos Santos prêço por todo o mais tempo do seu govêrno . Vilhena, Carias, 1*. pgs- 128, 162, 437, Bahia> 1922)‘ (8) "Felix Corrêa de Castro P ^ a d o r ^ o ^ dá do Rio de Janeiro, em carta de 26 de j daquela a V. Magestade do procedimento q u e ^ ° Í l l s porSeiscentos querendo de seu ^ o o Prop i mil reis a um Manoel Ferreira, que interêsse particular, mandando Prender

aceitando para seu B nto da Costa por reSultou que tornan-

cidade,

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sobe às reais maos de V. Magestade, eic .

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s ,

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V° \ Í C M s.PdSo instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 388, documento n* 51. (10) Apontamentos Relativos ao Negómo Centros Criadores até o Consumo na Côrte. "D ivide-se

o

negócio do

de

gado em ^ c la s s e s

Gado

n.,,, Desde

os

de

para ^as feiras^ d e CIfoeraba^ParaM .tú, Dôres de A ndaija

e Araxá,

2- Os que vão a estes pontos comprá-lo p a r a j ^ J f ^ T i n v e r ' tros invernistas. 3» Os que compram aos Marchantes



-

M atadouro Público. Os Centros Criadores são:

- • a Motn Prosso o baixo Paraguai, Miranda e “ Na Província de Mato Grosso, o 250 ^guas. Na Poconé, distante dos centros invernistas ^ ganta Luzia vila Província de Goiás, Catalao, a*V ’ centi*0s invernistas de Formosa, Corumbá, Jaraguá, d t a t ^ ^ T jã b o t ic a b a l distante 60 a 150 léguas. Na Província de Sao P a u l^ o J Comarcag de Pa. de 50 a 100 léguas. N a Província de ’ m daiá, abranraná, Parnaíba, Paracatú, R .o de Sa° e gendo estas cinco Comarcas um a area de nove mil leguaB q e distantes dos centros invernistas de 50 a 150 legu

dradas

Os Centros invernistas são: "N a Província de São P a u l o , j ^ r í ^ R io ^ r a ^ £ víncia de Minas, as Comarcas • Mortes, abrangendo Rio Verde e em pequena escala a do “ drkdas. As inostas cinco Comarcas uma área de 2.450 léguas quadra

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vernadas são campos naturais ou artificiais e roças colhidas para êsse fim e estão em um círculo cujo centro é a Côrte tendo um raio de 60 a 100 léguas. “ Feita esta exposição, trataremos em primeiro lugar dos boiadeiros de 1* classe. Estes boiadeiros seguem para os centros cria­ dores (aqui lhe chamam sértão) no mês de Abril, levando camara­ das para a condução do gado e tôda a mais comitiva precisa para quem viaja em lugares inteiramente faltos de recursos, que a hão ser gado nada mais se encontra. Compram boiadas de 500 a 1000 cabeças pelos preços seguintes: Vacaria (isto é gado de 10 a 12 arrôbas) de 6$ a 8$000; Novilhado (gado de 12 a 14 arrôbas) de 8$ a ÍOÇOOO; Bois carreiros (gado de mais de 14 arrôbas) de 10$ a 12$ 000 .

“ Estas boiadas são conduzidas para Uberaba, Paracatú, Araxá, Dores de Indaya, Desemboque, Abadia e outros lugares além do Rio Grande, aonde vendem aos invernistas. Neste tráfego sofrem grandes prejuízos de mortandade e extravio pela falta de pontes nos grandes rios em que tem-se de atravessar o gado a nado, che­ gando portanto magro, depois de penoso trabalho às feiras. Os Boiadeiros de 2» Classe. “ Estes compram as boiadas segundo a fôrça das invernadas de que dispõem, e as conduzem de sua conta entrando o gado nas invernadas de roça de Maio em diante, e nas de campo de Setembro em diante. As compras regulam: Vacaria de 10$ a 12$000; Novi­ lhos de 16$ a 18$000; Bois carreiros de 20$ a 22$000. “ Dispendendo na condução até as invernadas um médio de 3$000 por cabeça. Muitas vêzes os boiadeiros da 1* classe não podendo dispôr de suas boiadas nas feiras indicadas procuram os centros invernistas para dispôr delas, e então regulam os prêços mais 4$ c 5$000. O gado leva de 6 a 8 meses para engordar, fazendo despesa de sal, costeio, aluguel de invernada ou juro equivalente ao capital nela empregado de 6$ a 8$000 por cabeça. Essa despesa varia para mais segundo o custo do sal, que é importado dos mercados de Santos e desta Côrte. Uma rês precisa de meia carga de sal cujo custo é de 5$ a 6$ a carga. A mortandade nas inver­ nadas regula de 5 a 6%. Os Boiadeiros de 3* Classe Os boiadeiros que compram gado aos invernistas e alguns destes que mandam de sua conta para o mercado da Côrte, principiam a tirar o gado das invernadas de Novembro em diante, e a fazer conduzir em pontas de 80 a 100 rêses, gastando em viagem, segundo as procedências de 20 a 30 dias, fazendo uma despesa média de 6$000 por cabeça incluindo 2$040 de direitos e barreira. Estas des­ pesas avultam porque de certa altura de Minas até o Picú e outros pontos da Serra da Mantiqueira, fazem as boiadas pasto na razão de 20rs. diários, e deste ponto até Machambomba e Brejo pagam na razão de 40rs. Desta form a se vê que os gados comprados aos boiadeiros da 1* classe chegam ao mercado da Côrte com uma despesa de 17$000 como demonstra a tabela n9 1, que junto ao custo

nos dá os preços da tabela n9 2, Em Machambomba e no Brejo o boiadeiro vende diretamente ao Marchante ou entrega ao Comis­ sário, que leva de comissão de venda do gado em pé 3 a 4%, ou corta de sua conta pagando ao Comissário lOrs. em 18. A mortan­ dade e extravio das boiadas na condução regula a 3%. Desde que o gado desce a Serra da Mantiqueira principia a desmerecer, aumentando sua deficiência muito mais depois da des­ cida da Serra do Mar. Em Machambomba e no Brejo depois de 8 dias de estada as boiadas desandam consideràvelmente, e só re­ siste o gado Cuiabano e curraleiro que servem para invernar na Fazenda de Santa Cruz todo o mais gado mineiro estranha os pastos e aguada e morre afinal. Os Marchantes Boiadeiros da 4* Classe. Os Marchantes com exceção de um ou dois são Senhores do Matadouro Público dão a Lei ao boiadeiro empregando tôdas as forças de que dispõem para conseguirem seus fins. Tem êles açou­ gue de sua conta em que vendem a carne a retalho; fazem baixar o prêço quando querem expelir do Matadouro a qualquer Comissá­ rio ou boiadeiro que tem a ousadia de querer cortar gado quando o prêço das ofertas não lhes convém, neste caso ligam-se mais aparentemente mostram-se inimigos. Fazem uma matança superior ao consumo, baixam os prêços de 100 a 40. Os Comissários e mesmo os marchantes que não estão ligados a grande seita, não obtendo maior prêço o recurso que tem é vender para não ir ver a carne servir de pasto aos urubús. Parece à primeira vista que êles sofrem com esse plano engano manifestado, porque se perdem em 10. ou 20 rêses, divididas por todos, ganham nas que vendem em seus açougues, porque para êles o prêço não é do Matadouro mas sim o dos açougues de que dispõem. O mesmo plano põem em prática nas épocas próprias de invernar o gado na Fazenda de Santa Cruz afim de que o infeliz boiadeiro, vendo-se enrolado nas feiras do Brejo e Machambomba, seja forçado a vender o seu gado por prêços inferiores a 15$ e 25$000 e então é escolhida a boiada. A que serve para Santa Cruz para aí vai, e o restante vem para o Matadouro fazer concorrência e portanto baixar o preço em quando lhes convém. Para disporem do gado invernado, em Santa Cruz, quando é tempo de retirá-lo, ligam-se, fazem uma tabela para matança, ftxam os prêços no Matadouro fazem seguir emissários para as estradas a comprar as boiadas que encontram por altos prêços por conta de todos e repartem-nas entre si; no entretanto que retiram o gado de Santa Cruz e apuram de 150 a 200% relati­ vamente ao custo. Assim um boi de 400 quilos que custou 18$000 com 2$000 de invernada, vendida a carne a 160.rs. produz 64$000. Fazem estas faltas artificiais de gado quando lhes convém. Muitas vêzes se ligam dois ou três marchantes vão para as feiras e quando chegam as boiadas um oferece um prêço, outro já menos e o terceiro menos então o primeiro diz ao mineiro "se quer decidir é já, porque não sustenta o prêço” . O mineiro ou comissário pro­ cura os outros compradores que respondem não lhe convir por maia do que a oferta feita e logo que o vendedor declara a oferta que tem do primeiro, fazem-se brigados; há descompusturas e até vias

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de fato entre êles (porém tudo fantàsticamente). Ó vendedor nes­ tas circunstâncias vendo-se com a boiada encalhada, sem recursos vende ao primeiro que faz conduzir incontinenti para Vicente de Carvalho; e aí vem êles depois dividir a boiada entre si. Estes e outros ardis são diariamente empregados com tanto mais facili­ dade e resultado, se há abundância de gado e se o Mineiro é am­ bicioso entende poder dispensar comissário, então inexperiente so­ fre as diferenças. Os Marchantes têm invernada de sua conta em Vicente de Carvalho, Pavuna, Machambomba, Brejo e Taipú, e no Matadouro Repartições com o que dispendem 1:030$000 mensalmente sendo:

Aluguel de casa .................. Sustento ............................... Luz, limpesa e água .........

Imposto, licença e carne encalhada que lhe fica muitas vêzes tomarei o médio de 20% .....................

40$000 60$000 12$000

30$400

182$400 equivalente a 6.080rs. diários. Pelo que fica demonstrado o açou­ gueiro não pode vender a carne por menos de 40rs. acima do preço do Matadouro por ter uma receita de 10$000 diários. Apontarei agora quais as medidas que entendo devem ser tomadas para neutralizar os Senhores do Matadouro em vantagem dos con­ sumidores e fornecedores. 1» — Por qualquer meio que mais convenha devem as feiras de gado para o consumo ser mudadas para os Campos do Bom Jardim, no que há as seguintes vantagens: 1) Menor distância das invernadas, não menos de 30 léguas, e portanto menos despesa de condução; boas pastagens e aguadas, o que fará que o gado não extranhando o clima e as pastagens sofrerá menos. 2*) Excelentes invernadas onde o gado pode demorar o tempo e nas proximidades da Barra do Pirai, quando seja possível levar um ramo da Estrada de Ferro D. Pedro II pela entrada de Manuel Pereira. 39) Abundância de mantimentos, aumento de valor daquelas campinas imensas, que hoje pouco valem e que tão útil aplicação podem ter servindo de ponto de parada para descanço do gado preciso para o consumo. 4') Conseguindo este fim a Estrada de Ferro D. Pedro II deve instalar o serviço especial de condução, em carros próprios para animais, recebendo na Barra e desembarcando no Matadouro, baixando a tarifa de 1$500 por boi, e 800rs. por porco, no que terá uma renda anual de 122:000$000 sendo:

705$000 100$000 60$000 60$000 5$090

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152$000

Repartidor com vencimento de 150 a 300$000 tomando o têrmo médio ........................... 225$000 Balança .............................................................. 20$000 Escrevente, caixa, 60$ a 100$ .......................... 80$000 Magarefes a 60$ .............................................. 180$000 Serventes a 40$ .............................................. 120$000 Capataz ............................................................ 60$000 Curral em São Cristovão ................................. 20$000

Aluguel dainvernada ............ Capataz ................................ 2 Camaradas a 30$ .............. Alcatrão para marcar o Sado ........................................

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225$000 1:030$000

Além disso tem mais o importe de 2$000 de consumo, 1$000 a Câ­ mara Municipal pela ' matança para esta despesa, porém temos a venda de couros e miúdos que regulam de 8 a 10$000 mais ou menos que não só cobre a despesa como deixa um lucro de 10% mais ou menos segundo a quantidade da matança. Resumindo direi que como se vê da exposição que apresento, o gado chega às feiras de Machambomba e Brejo no custo provável de 35$376; devemos aumentar mais 20% para lucro e juro do campital empregado: 7$750. O prêço médio do gado é de 43$126. As boiadas boas são assim classificadas: 2 partes gordas, 2 enxutas e 1 magra; e conquanto o pêso médio seja 416 arrobas de­ vemos descontar a tara de 16 arrobas que se abate ao açougueiro ficando líquido 400 arrobas sendo o prêço médio 106rs. a arroba ou de 1* qualidade 120, 2* 100 e 3» 90. Tendo provado qual o justo valôr porque é preciso ser vendida a carne verde no Matadouro para que o boiadeiro e o marchante tenham vantagens razoáveis, demonstrei também qual o procedi­ mento dos Marchantes para conseguirem seus fins em prejuizo do boiadeiro que nos traz o gado para o consumo desta Cidade. Por quanto deverá vender o açougueiro? A maior parte não vende mais que 250 arrobas por dia e tem uma despesa mensal de Rs. 182$400 sendo: -

60.000 bois a 1$500 ........................ 40.000 porcos a 800rs ....................

90:000$000 32:000$000 122:000$000

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Com êste meio de condução o boiadeiro tem uma economia de 1 a 2$000 por rês além da diferença no pêso na gordura que o gado faz desde a Serra da Mantiqueira até o Matadouro. 5Ç) Nos Campos do Bom Jardim deve haver um registro de boiadas com pessoas habilitadas, que saibam conhecer a qualidade do gado em pé afim de o examinar, e registrar o que estiver magro, e dar guia do que estiver nas condições de ser morto para o consumo, marcando-se o gado nestas condições, afim de que só êsse possa ser recebido na Estrada de Ferro com destino ao Matadouro. Por essa forma poder-se-á estabelecer o direito de precedência no Matadouro porque o gado registrado no registro do Bom Jardim deixa de fazer pressão ai porque é êsse gado Cazeiro, que vem

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servir para o jogo dos Marchantes, e os Mineiros não tendo con­ sumo para os seus gados magros tratarão de engordá-los ou ven­ derão a outros invernistas. 2® — Estabelecer a incompatibilidade da profissão de Marchante com a de Açougueiro, e grandes multas para aqueles que tiverem açougues em nomes de outros, assim como que o açougueiro não possa ter repartição no Matadouro, sendo só facultado aos Mar­ chantes e Comissários que devem estar sujeitos às disposições do Código Comercial, cap. I, arts., 4, 5, 6, cap. n , arts. 37 § 1 e 2, 2* parte do art. 38 e § 1, 2 do art. 39, e os boiadeiros, invernistas de conta própria (parte riscada e ilegível). 3® — Favorecer por qualquer meio a introdução de gado de outras Províncias ou Províncias Marítimas, em auxílio do gado que vem dos pontos que vemos indicado e preencher a diferença que deve haver do que atualmente se consome no mercado mas que pela sua má qualidade tivesse de ser regeitado no Bom Jardim. 4® — Estabelecer as condições sob as quais podem obter licença os açougueiros para vender carne a retalho incluindo as disposi­ ções dos artigos 4, 5 e 6 do Código Comercial com o que se evitará que analfabetos, e sem pundonor se empreguem neste ramo de negócios obrigando-os a prestar fiança na Câmara Municipal afim de que não possam vender carne ao consumidor por mais de 40rs. em libra acima do prêço do Matadouro. São estes apontamentos o resultado prático e experiência adqui­ rida nas viagens que tenho feito às Províncias de São Paulo e Minas que me habilitam a indicar estas medidas que me parece poder conseguir os fins que o governo tem em vista. Rio de Janeiro 14 de Dezembro de 1865 a) Lasaro José F® Tabela 1 Condução das feiras até as invernadas . . . ; ......... Engordar o gado nas invernadas ..............................

3$000 8?000

Condução até a Côrte

6$000

..................................................

17$000 Tabela 2 Vacaria-custo. Despesa até as feiras de Machambomba e Brejo. 5% de 11$000 de mortandade até as invernadas . . . 3% de 28$000 de extravio e mortandade da invernada até as feiras de Machambomba e Brejo ................

11$000 $550 $840 29$390

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Novilhos. Custo ............................................................................... Despesa .................. 5% de 17$000 3% de 34$000 ................................................................

17$000 17$000 $850 1$700 (?)

Custo do novilho de 13 arrobas ..............................

36$550

Bois carreiros. Custo ........................................ Despesa ...................................................... 5% de 21$000 ................................................................... 3% de 38$000 ...................................................................

21$000 17$000 1$050 1$140

Custo do boi carreiro de 12 arrobas ......................

40$190

(.Ms. do Inst. Hist. Geog. Bros. Lata n» 388, doc. 51). (11) “ Igualmentè vou ponderar a V.Sas. serem muitas as re­ presentações dos habitantes desta Cidade das péssimas carnes, que sc toleram à venda no açougue público da mesma; as quais devido ao péssimo estado das rêses, por mal sangradas, ou finalmente, mortas cançadas, tanto que chegam ao curral, é o resultado vender-se o gênero em qualidade tão perniciosa, quando da obrigação de V.Sas. darem as providências precisas para que de uma vez cesse um mal tão prejudicial e danoso ao público. Das providências que espero sem perda de tempo hajam de dar para que no açougue unicamente se venda bois, e sã, e que esta não seja só distribuída às autoridades, e pessoas qualificadas, mas sem escolha, e distinção a todos os concorrentes, espero mais participem para as fazer obser­ var, e ter muito mais que louvar a atividade, e zelo com que se empregam no bem público; insinuando-se também se há arrema­ tante e se os Almotacés residem no Açougue, e lhes tem dado parte, ou de alguma maneira precavido o ponderado” . (Rev. do Arquivo Público de São Paulo, vol. VI, pg. 93). (12) “ Os Oficiais do Senado da Câmara desta cidade de São Paulo, e seu termo o presente ano pela ordenação etc. Mandamos e ordenamos a tôda pessoa de qualquer qualidade gráu ou condição que seja qpe desde o dia da publicação deste em diante não possa nesta cidade cortar, nem . vender carne de vaca nem de porco fresca por suas casas nem fora delas em outra parte alguma mas só o poderão fazer no açougue e casas que para isso sejam determi­ nadas na rua do Sargento Mor Roque Soares Medalha pertencentes à capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso o que farão somente nos dias de terça feira, e sabado da semana e com licença por escrito do Almotacél que residir o qual terá particular cuidado de assistir a repartição das ditas carnes como é obrigado informando-se cabal­ mente de quem as ditas carnes são, se possuem gado, ou de que sorte as houveram para. as poder vender por se atalharem muitos furtos os quais se poderão evitar, apresentando os servos ou negros ao dito Almotacél escritos de seus Senhores e não o fazendo assim se lhes não entregue o dinheiro que importar da carne que sem escrito trouxerem como também ordenamos outrossim que nenhuma 8

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das pessoas acima nomeadas possam comprar as ditas carnes mas que somente no dito açougue em dias declarados por nos constar que alguns dos furtos que se fazem vendem de noite os ladrões a quem lhos compra, e por atendermos ao bem comum deste povo queremos se cumpra e guarde todo o referido com pena de trinta dias de cadeia e seis mil reis de condenação a tôda a pessoa que o contrário fizer a saber a terça parte para quem os denunciar e as duas partes para as despesas do Conselho. “ Aos quatro dias do mês de novembro de mil e setecentos e vinte e um anos” . (Rev. do Arquivo Público de São Paulo, XII, pg. 87). (13) “ Rodrigo César de Menezes, do Conselho de Sua Magestade que Deus guarde e Capitão General da Capitania de São Paulo etc. Por me representarem que nesta capitania se estão continuamente furtando gado vacum e que pela maior parte fazem esses furtos negros forros e escravos de que se segue grande prejuízo dos lavra­ dores e pessoas que costumam comprar ditos gados. Ordeno e man­ do que todo negro que furtar, ou matar boi ou vaca tenha um mês de prisão na cadeia desta cidade, e o escravo levará duzentos açoites e sendo forro além da prisão pagará a rês e levará três tratos de posse. Nesta cidade de São Paulo, aos quinze dias do mês de julho de mil e setecentos e vinte e dois” . (.Rev. do Arquivo Público de São Paulo, XIII, pg. 80). (14) A título de ilustração damos a seguir os têrmos do con­ trato de fornecimento de carnes ao povo de São Paulo, assinado por João Esteves Corrêa, em 1741, com a Câmara local. Ao candidato foram apresentadas pela Câmara as seguintes condições: l 9. Com a condição que será êle contratador obrigado a dar carne boa gorda ao povo e trazendo para o açougue alguma magra incapaz lhe serão tomadas pelo almotacél que presidir no açougue para os presos da cadeia. 2». Com condição que será obrigado a dar carne ao povo por todo êsse ano cortando todos os dias da semana de sorte que todos fiquem inteirados a dar carne da terra para os doentes havendo-os e de tôda a vez que faltar pagar seis mil reis de condenação para as obras do açougue e despesa do Conselho. 39. Com condição que será obrigado a ter o açougue sempre varrido e cada sabado lavado e esfregado com casca de côco e água tanto em cima como em baixo pois recebe as meias patacas dos criadores e de cada vez que faltar ser condenado em dez tostões para as sobreditas ordens. 49. Com condição que não poderá alterar o prêço da carne em mais de duas patacas por arroba e poderá dar a quem quizer comprar até o preço de uma libra pena que de cada vez que faltar ser condenado em seis mil reis para as despesas da Câmara. Por sua vez o contratador apresentou as seguintes condições: l 9. Condição que requer a Vossas Mercês sejam servidas mandar fazer vistoria no gado que êle tem em pé, capaz para dar ao povo por pessoas que entendam de gados,, e tal gado está descançado algum de ano algum de sete ou oito mêses e está gordo capaz de se dar ao povo já habituado aos pastos. 29. Condição que êle contra­ tador se obriga a dar carne ao povo de Curitiba gordo e descansado a preço de seiscentos e quarenta réis a arroba e se obriga a dá-la da terra para os doentes havendo-os e se obriga a dar carne todos os dias de carne ao povo havendo quem a compre e não havendo

aos sabados e terças^feiras como Jí “ ^ ^ d i ç ã o ^ u e ficarão os criaaonde êle mandar corta . vender ao açougue as reses dores livres para mandarem criação e estas serão examinadas que forem de seu curral rêses esfolação, tira-se limpamente a dois trabalhadores hábeis que" são lançados em estacas horizontais dois traoa^^ ^ fica cortam-na e retalham-na então de^^rna ^ miiímetros. Para reduzido a espessura uniforme _ ecial — charquear — e dele esta operação empregam-se um charaueaâa, charqueador. Esfrederivam os substantivos char^ ’ m_naq em camadas, primeiro sal, gado bem o sal na carne, P , , assim por diante; as segundo carne, depois nova cama a g CQm Q dupi0 efeito de impilhas chegam a altura de muitos ’ correr os líquidos contidos pregnar a carne de m oeria ^ e ” efeito aumenta reempilhando-se no nela, pela própria pressão. este ® das de cima, tiradas primeiro, dia seguinte, de modo que as comprimidas por sua vez. De formam a base da nova ruma, e sa p cada animal> conforme 8 a 10 quilos de sal usam-se Para tempo está suficientemente o tamanho. Passa um dia ou Pem Páus ao ar livre, limpo, desempilham a carne e P ^ puxá-la para uma ponta para secar, tomando o cuidado de & Pgca preferem tempo um da vara e cobrí-la com uma 10 • , , empilha-se de novo ,a „ ,o .nevoado . ^ " ‘“ d. ^ são • a carne e para o fim aa saíra, vi

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frequentes, conservam-na empilhada até chegar o tempo eêco de se­ tembro e outubro; dessa maneira conserva-se muito tempo sem estra­ gar-se. Os couros, bem limpos, são metidos na salmora que escorre das pilhas de carne; depois de vinte e quatro horas tiram-nos, co­ brem-nos de sal, dobram-nos e estão prontos a embarcar para os mercados da Europa, onde estimam muito os que são preparados desse modo. A gordura e o sebo são esprimidos por aparelhos es­ peciais e dispendiosos, em que se emprega o vapôr de alta pressão. Os ossos encineram-se nas fornalhas que produzem este vapor, e a cinza deles resultante vai para a França, onde a empregam como fertilizante. As línguas vendem-se aos estabelecimentos especiais que aa preparam; os chifres são exportados para vários usos, e em algu­ mas charqueadas servem-se do sangue para fazer gelatina. Em Pe­ lotas não se aproveitam os intestinos, figados e bofes, que nos saladeros platinos convertem em estrume ou dão aos porcos. Há um não sei que de revoltante e ao mesmo tempo cativador nestes grandes matadouros; os trabalhadores negros, semi-nús, escorrendo sangue, os feitores estolidos, vigiando imóveis sessenta mortes por hora, os mon­ tes de carne fresca dissorando, o vapor assobiando nas caldeiras, a confusão, que entretanto é ordem : tudo isso combina-se para formar uma pintura tão peregrina e hórrida quanto pode caber na imagi­ nação. De tôda essa carnificina dimanou a riqueza de Pelotas, uma das mais prósperas entre as cidades menores do Brasil. Cêrca de 400.000 cabeças de gado são mortas aqui anualmente, com pequenas variações, conforme os anos. Estes animais, comprados na Tablada, representam o vaiôr de cerca de 22 mil contos de reis, que vão para os bolsos dos estancieiros. Estes homens pousam alguns dias na cidade e compram fornecimentos para o ano seguinte, antes de volta­ rem para as suas remotas habitações. Os tropeiros que receberam seus salários, aglomeram-se nas lojas e tabernas; e assim, no fim das contas, grande parte do dinheiro que pagaram pelo gado volta nas compras aos negociantes” . (Herbert H. Smith, Do Rio de Janeiro a Cuiabá, pgs. 134 e seg., São Paulo, 1922). (33) Veja-se a Lei de 4 de dezembro de 1830, estampada em Legislação Agrícola do Brasil, II, pg. 48, ed. da Sociedade Nacional de Agricultura, Rio de Janeiro, 1962. (34) Henrique Pinheiro de Vasconcelos, “ O Comércio Interno e Externo” , in Anais do Segundo Congresso de Bistória Nacional, II, pg. 20, IHBG, Rio de Janeiro, 1942. (35) Fernando F. M. de Almeida e Miguel Alves de Lima, Pla­ nalto Centro Ocidental e Pantanal Mato Orossense, pg. 156, ed. do IBGE, Rio de Janeiro, 1959.

USOS E COSTUMES N AS ANTIGAS FAZEN D AS DE GADO

Já não são os mesmos d’antanho os usos e costumes obser­ vados nos modernos estabelecimentos de criatório. A diminuição das áreas territoriais das fazendas e estâncias; a crescente valo­ rização da carne e do couro; a disseminação de novas técnicas de manejo do gado; a introdução de diferentes métodos e pro­ cessos objetivando exclusivamente a valorização comercial do produto, enfim, tôda essa gama de fatôres hodiernos, modifi caram radicalmente o modus vivendi e o moãus faciendi nas propriedades destinadas à pecuária. A s imposições de ordem económica aliadas ao progresso técnico-científico, relegaram a plano secundário aquela aura de romantismo que dantes caracterizava a ambiência rural. O registro que aqui se faz, —- é bom salientar — tende apenas a relembrar, sem qualquer sentido de ordenação, alguns aspectos antigamente observados nas fazendas de criação de gado, segundo depoimentos arrebanhados aqui, acolá, ao longo de leituras feitas e de informes colhidos. No princípio, limitavam-se os criadores a fundar meros currais, nos locais onde lhes pareciam mais propícios, perdidos na vastidão imensa daquêles mundões de terras desocupadas. Só mais tarde, depois de requeridas e concedidas as glebas, por carta de sesmaria, é que êles se animavam a estabelecerem-se de forma institucional, quando então o criatório passava a ter um real objetivo económico. Não será demais repetir-se, todavia, que a pecuária, embora considerada como atividade nobre, conferindo posição social aos proprietários de “ fábricas de gado de tôda a sorte’ , jamais conseguiu alçar-se ao elevado plano económico desfrutado, diga­ mos, pelo açúcar ou pelo ouro. São variados os aspectos que diferem uma fazenda de gado de uma fazenda agrícola. Em geral, a primeira supera a segun­ da em extensão territorial; a mobilidade dos animais, impres­ cindível à sua existência, requer espaço para sua movimentação e dilatadas áreas de pasto para sua alimentação. É bem verdade que hoje, com o sistema de engorda em confinamento, segundo novos processos e modernas fórmulas de rações, tende a redu­ zir-se a área das fazendas de criação. Outro fatôr de diferenciação está na quantidade necessária de empregados, no criatório bem inferior que na lavoura. Com alguns poucos vaqueiros é possível atender, satisfatoriamente,

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