Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo
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itos (7n Sdo Paulo, de Virgínia Leone Bicudo, é nliosacontribuição pura o eonhecimenlo de uma ise notável das ciêneias sociais no Brasil. A au)ra integrou, com Gioconda Mussolini e Oracy logueira, a primeira turma de mestres formada o País, sob a orientação de Donald Pierson, na íivisão de Estudos Pós-Graduados da Escola Lire de Sociologia e Política de São Paulo. Este livro é sua dissertação, defendida em 945. Inspirado pela pesquisa realizada por ierson na Bahia, pelas idéias formuladas por Iverett Stonequist acerca do homem marginal pelos trabalhos de Robert Park sobre as relaões raciais, o estudo examina as atitudes soiais relativas às diferenças raciais entre pretos mulatos das camadas me'dias e das camadas opulares. As diferenças raciais são entendidas omo diferenças relativas à cor da pele e a ou'os atributos da aparência. Como os indivíduos e cor concebem a si próprios, suas inter-relaões e suas relações com os indivíduos branos? Virgínia Leone Bicudo era negra e meniona discretamente a consciência dos motivos essoais que a moviam e do valor da interação o estabelecimento das condições psicoafetivas iara a situação da entrevista. Seu estudo bem etrata o momento fecundo em que o aprendiado da pesquisa e da interpretação analítica os problemas sociais começava a ganhar feião acadêmica contemporânea. Se lembrarmos ue Bicudo realizou também entrevistas com larticipantes da “Associação de Negros Brasieiros” (nome fictício da Frente Negra Brasileia, que existiu entre 1931 e 1937) e examinou locumentos e matérias publicadas no mensário lessa instituição, o valor de sua pesquisa reala-se ainda mais. É bem reconhecida a forte ligação intelectual

ATITUDES RACIAIS DE PRETOS E MULATOS EM SÃO PAULO

FundaçA» liacola de Sociologia c Política dc Sâo Paulo

Conselho Superior (P residente)

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Unidades de Ensino D iretor A cad êm ico (G rad u ação e P ós-G radu ação): C oord en ad or d o Curso d e Sociologia e P olítica:

P ro f . A ldo F ornazieri

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C oord en ad ora d o Curso d e B ibliotecon om ia e C iên cia d a In form ação: P rofa. V aléria M artins

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C oord en ad or d o Curso d a F acu ld ad e d e A dm in istração:

Diretor-presidente W altercio Z anvettor

Comissão Editorial  ngelo D el V ecchio R eginaldo C armello C orrêa

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S ueli M ara S oares P into F erreira W altercio Z anvettor

Coordenação Editorial R od rig o E stramanho

de

A lmeida

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ATITUDES RACIAIS DE PRETOS E MULATOS EM SÃO PAULO V irgínia L eone B icudo ED IÇÃO O R G A N IZA D A POR

M arcos C hor M aio

C opyright © 2010 hy Editora Sociologia c Política

Ficha catalográfica - Editora Sociologia e Política - FESPSP

A872

Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo / Virgínia Leone Bicudo, Marcos Chor Maio (org.) - São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010. 192 p.

1. Ciências Sociais 2. Atitudes Étnico-Raciais 3. Negros e Aspectos Sociais 4. São Paulo (SP) I. Bicudo, Virgínia Leone. II. Maio, Marcos Chor ISBN: 978-85-62116-03-2 CDD 305. 816 índice para catálogo sistemático: 1. Ciências Sociais: Atitudes Étnico-Raciais CDD 305.816

Im agem d a capa: Ampliação de foto de Virgínia Leone Bicudo. Década de 1930. (ver foto da página seguinte) Fonte: Acervo pessoal de Rosa Zingg

Direitos Reservados à Editora Sociologia e Política Rua General Jardim, 522 - Vila Buarque 01223-010 - São Paulo - SP - Brasil Tel. Fax 0 55 11 3123-7800 www.fespsp.org.br - [email protected]

Printed in Brazil 2010 Foi feito depósito legal

A PR ESEN TA Ç Ã O

A edição ora apresentada dá continuidade a série de publi­ cações sobre História das Ciências Sociais Brasileiras da Edi­ tora Sociologia e Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Aqui, também, “Atitudes raciais de negros e mulatos em São Paulo” é uma hom enagem à autora. Aluna e professora da Es­ cola de Sociologia e Política, socióloga e psicanalista, pesquisa­ dora e profissional da saúde e da educação, Virgínia Leone Bicudo completaria, em 2010, cem anos de vida. Nesta edição, além do tratamento crítico do organizador e dos colaboradores, está a íntegra da dissertação de Bicudo. Até agora não publicado, o texto teve ortografia e normas atu­ alizadas. Pela cessão dos direitos de publicação da obra, bem com o pelo apoio constante, muito agradecemos a Rosa Zingg, sobrinha de Virgínia. Ao fim do volume, um caderno de imagens compila fotos e documentos sobre a autora e sua trajetória. São Paulo, novembro de 2010 R odrigo E stramanho

de

A lmeida

Editora Sociologia e Política - FESPSP

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PR EFÁ CIO Acomodação ou consciência da discriminação?

...s o u d o en te e sei, p o rta n to , o n d e d ó i (en trev ista d o n s 8 )

E studo d e a titu d es r a c ia is d e p r e to s e m u latos em S ão P au lo' é importante documento de um período que mostra simulta­ neamente o processo de desenvolvimento das ciências sociais brasileiras e a situação do negro na capital paulista. Trata-se de texto apresentado em 1945 por Virgínia Leone Bicudo à divisão de estudos de Pós-Graduação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, naquele m om ento instituição com ple­ mentar da USP. No cenário da sociologia, então se consolidan­ do nos cursos de ciências sociais fundados no decênio anterior na cidade, a tese faz parte de um conjunto de pesquisas desen­ volvidas por professores e alunos daquela escola dedicado à temática “populações marginais”, referida a negros, imigrantes japoneses e alem ães.12

A concepção de marginalidade tem aqui um caráter defi­ nido estritamente se a confrontarmos às aplicações do termo em investigações desenvolvidas nos anos posteriores. Apoia-se nas formulações de Everett Stonequist, que considera marginal 0 indivíduo que age em um quadro de incerteza psicológica 1 Esse é o título original da dissertação de Virgínia Leone Bicudo. No título da presente publicação suprimimos a palavra “Estudo”. - Nota do Editor. 2 Para consultar as pesquisas sobre imigração desenvolvidas na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, ver Nucci (2010).

por estar colocado entre dois mundos sociais (STONEQUIST, 1937). Essa situação reflete-se em seu íntimo, operando através de representações opostas em relação a esses dois universos: discórdia e harmonia, atração e repulsa. Seriam problemas experimentados por pessoas em processo de transição entre duas culturas. Suas pesquisas foram realizadas junto a grupos étnicos minoritários da sociedade norte-americana. Trata-se de desdobramento de conceitos cunhados por Robert E. Park (1921, 1928, 1932 e 1937) que têm com o fundamento a ideia de conflito cultural, o qual remete diretamente à formação da identidade (PARK, 1928, 1932 e 1937; PARK; BURGUESS, 1921). Lembremos que Park foi orientador de Donald Pierson, o qual, por sua vez, orientou a tese de Virgínia Leone Bicudo. Vários pontos desenvolvidos por Park embasam a argumen­ tação deste livro, embora nem sempre sejam explicitamente discutidos. Primeiramente, a noção de r e la ç õ e s ra cia is, acom ­ panhada dos processos sociais referidos à qualidade dessas re­ lações; em segundo lugar, o conceito de a titu d e, articulado ao de interação social; em terceiro, a conotação atribuída à m u ­ d a n ç a social-, em quarto, a concepção de m a r g in a lid a d e. Ve­ jamos brevem ente o significado dessas categorias para aquele autor e verifiquemos com o são operacionalizadas por Virgínia. Em sentido amplo, Park concebe as relações raciais presentes em uma sociedade — levando em consideração a história da imigração — com o estáveis ou tensas, as últimas podendo ge­ rar conflitos de várias ordens. Considera esse desenvolvimento através de passos sucessivos, representados pelos processos sociais de contato, com petição, acom odação e assimilação. Certamente, o contato significa situação s in e q u a n o n para a existência e a evolução dos outros processos. Segue-se a com ­ petição, consequência da busca de lugares sociais e profissio-

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nais, e ainda a afirmação o/ou conquista de um espaço cultural, O terceiro passo supõe um duplo movimento, que com preende os diferentes com ponentes da sociedade envolvente e o(s) grupo(s) minoritário(s): trata-se da acom odação. Quando nao consegue a realização deste objetivo, resta ao “grupo de fora" abrir mão da maior parte de suas características diferenciado ras e assumir a assimilação. No sentido que Park lhe confere, assimilação é o processo de interpenetração e fusão pelo qual indivíduos ou grupos adquirem lembranças, sentimentos e all tudes de outras pessoas ou outros grupos e partilham de sua experiência e história, integrando-se a estes numa vida cultural comum (PARK; BURGUESS, 1921). A visão de Park sobre a sociologia com o a ciência do com portam ento coletivo permite que conceba atitude com o o modo de percepção de pessoas ou objetos, elem ento da personalidade que não se confunde com as idéias de valor ou ação. O conceito pôde ser usado por ele com o estratégia para refletir sobre as transform ações sociais, mas, ao mesmo tempo, se traduz em posição de certo modo ambígua quando referida à mudança e ao m odo com o as pessoas poderíam provocá-las. De um lado, conflito e acom odação sucediam-se, e essa alternância teria a com unicação com o instrumento, pos sibilitando o equilíbrio nas diferentes situações em que ambos aparecem. D e outro, atribuía ao indivíduo a quase impossi bilidade de conhecim ento do outro (a tese de B lin d n ess, de William Jam es), o que faz avançar a análise e também a limil;i na direção de com preender com o as pessoas foram configura das segundo as im posições dos conflitos grupais. Em outros termos, a tensão reside na dupla face apresentada pelas so­ ciedades humanas: um aspecto é explicitado através dos con flitos entre indivíduos e grupos independentes pelo domínio

econôm ico, social, territorial; o outro mostra os elem entos de sua sustentação — consenso, solidariedade e objetivos sim­ bolicam ente com partilhados.3 Dessa posição decorre a conotação conferida à mudança social. Chamo a atenção do leitor para a noção operada por Virgínia Leone Bicudo, que lembra: “Consoante as observações de Robert E. Park, as mudanças sociais com eçam com as mu­ danças nas atitudes condicionadas pelos indivíduos, operandose posteriormente mudanças nas instituições e nos mores” (B I­ CUDO, 1945, p. 2; ver, neste volume, p. 64). Fisher e Strauss, em seu estudo sobre o interacionismo, m os­ tram com o essa concepção de passagem automática entre in­ divíduo e instituições configura a visão de Robert Park da so­ ciedade com o autorreguladora. Park podia ver o influxo de sulistas, de negros rurais para as cidades do Norte com o causa inevitável de conflito racial, sem tratar esses choques com o oportunidades de pressionar pelos programas de integração racial. Os processos básicos de mudança social estavam além da legislação. As pessoas resolveríam os problemas básicos de conflito e acom odação muito melhor do que a legislação pouco realista (FISHER; STRAUSS, 1980, p. 609). Retomando o que foi dito antes, marginalidade, para Park, é um traço da personalidade. Apresenta-se com o um fenôm eno psicológico individual resultante de tensões e conflitos decor­ rentes de elem entos antagônicos provenientes de culturas diver­ sas incorporados pelo indivíduo em uma situação de mudança social (PARK, 1928). As críticas que têm sido feitas a essa con­ cepção são conhecidas, o que me poupa da retomada de seu exame. Lembro apenas um aspecto importante presente nessas críticas: o enfoque no indivíduo ressalta apenas as consequên3 Ver a análise sobre Park de Coser (1971).

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cias de uma situação social que condiciona a marginalidade. Em outros termos, as condições sociais que geram a marginalidade ficam intocadas numa reflexão que toma a direção psicológicocultural. Além disso, sem o estudo da situação social que gera a marginalidade, fica comprometida a análise sobre as possibi­ lidades da com petição em uma situação de igualdade. Volto agora ao trabalho de Virgínia Leone Bicudo. Seguindo a reflexão das ciências sociais da época, que associam mu­ dança social ao processo de integração dos grupos na socie­ dade envolvente, conform e procurei apontar anteriormente, as discussões sobre a igualdade de condições para o exercício da com petição estão ausentes dos objetivos de sua tese. No entanto, apesar desse problema não constar do protocolo da pesquisa, sua profunda intuição sobre a situação social do ne­ gro permite a emergência, através das histórias de vida e tam­ bém do estudo da “Associação de Negros”, do ponto central da questão, a qual só mais tarde entrará no debate da sociologia brasileira sobre a questão racial. A autora opera com a questão da identidade, mostrando como esta se expressa em atitudes e mesmo na organização da ação individual. Para o desenvolvimento dessa temática, es­ tuda dois grupos — negros e mulatos — , subdivididos segundo sua classe social, utilizando para essa classificação a condição econôm ica, a profissão e o nível de instrução dos entrevistados. Nos relatos, atitudes e expressões sobre a ação individual se entrelaçam. As histórias de vida mostram os contatos primários. A descrição da “Associação de Negros Brasileiros” e passagens do mensário “Os Descendentes de Palmares” dão a dimensão das possibilidades da ação coletiva, tanto em direção da as­ similação “dos grupos de cor à população branca”, quanto da denúncia da discriminação.

Aspecto crucial da form ulação dessa identidade — o pro­ cesso de socialização — é reconstruído através das históri­ as de vida, estas mais aprofundadas nos casos dos negros pertencentes às classes sociais intermediárias. A situação de contato ou não com brancos durante a infância é lembrada, sem a análise direta da construção do s e lf decorrente dessas relações. Mas, novam ente, a sensibilidade da autora, via en ­ trevistas, abre uma brecha para a visualização de novas pers­ pectivas abertas à análise: a) a percepção tardia, por grande parte dos negros da existência da discrim inação; b) os claros limites no desenvolvim ento dos papéis sociais, econôm icoprohssionais e culturais, que não alcançam correspondência entre si; c) o isolam ento autoim posto por negros e mulatos que alcançaram ascensão social; d) o conflito existente entre a ação na direção da integração-assim ilação e a aceitação da situação racial. Um entrevistado, criado por brancos na casa de quem sua mãe trabalhava com o doméstica, aponta para o fato de que essas relações mascaram a situação de discriminação racial presente na sociedade. Sentia-se tratado “com o igual” no seio da família; contudo, lembra: “Mas o vigário me advertia sem­ pre: ‘Lembre-se que você não é igual a eles.’ Eu, porém, não com preendia o sentido daquelas palavras. Somente muito mais tarde as entendi” (ver, neste volume, p. 74). Outro, profissional liberal, recorda a infância pobre, cerca­ da de restrições e de sua descoberta da existência do precon­ ceito racial, primeiramente por m eio de um quadro na igreja, que representava um santo branco pisando na cabeça de um satanás negro. Depois, aos 7 anos de idade, lendo um livro, “onde uma figura representava os anjos bons e os maus. Havia me despertado a atenção o fato de os anjos escurecerem à me-



dida que se tornavam maus. Com tristeza, eu identifiquei a cor preta ao m al.” (ver, neste volume, p. 80). A consciência da separação entre os papéis profissionais e os sociais aparece em inúmeros relatos. A do ch efe’negro, que recebe um convite de formatura de seu subordinado branco e ouve o com entário deste no dia seguinte: “Ontem minha irma ficou preocupada vendo-me convidá-lo para a festa de forma tura e me censurou. Tranquilizei-a imediatamente, dizendo- IIu* que o havia convidado porque sabia que o senhor não iria." (ver, neste volume, p. 73). Ou ainda: “Há tempos, fui homc nageado com um alm oço pelos meus amigos brancos, listes procuraram o Hotel d’Oeste para a homenagem, mas, quando o gerente soube que o alm oço seria oferecido a um preto, em bora me conhecesse, recusou aceitar a encom enda” (ver, neste volume, p. 76). O isolamento social autoimposto por negros e mulatos surge em várias narrativas. Como na do entrevistado que conta sei sempre convidado por um amigo íntimo branco às festas em sua casa, “às quais não com pareço. No dia seguinte, sempre me telefona, indagando por que não compareci. Houve uma festa de formatura no Esplanada, convidou-me e não fui, mas noto que, não sendo em sua casa, ele até hoje não reclamou por eu não ter ido” (ver, neste volume, p. 7). Ou na do dentista que diz: “Quanto mais minha consciência se foi esclarecendo, tanto mais fui me afastando dos meios de recreação. Nesses ambi entes não me sinto bem ” (ver, neste volume, p. 92). O conflito entre a “necessidade de assimilação” e a consciên­ cia de existência da discriminação aparece em várias falas. São expressivas desse conflito as palavras da funcionária pública mulata que, de um lado, sente a dor da discriminação e, de outro, evita o enfrentamento do problema, buscando “integrar

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se”. No início da entrevista, diz: “A cor motiva grande com plexo de inferioridade: a gente se sente inferior ao branco, feia, di­ ferente, e muitas vezes tem vergonha de si m esm a” (ver, neste volume, p. 110). Mais adiante, afirma: “Não seria capaz de amar um preto ou um mulato, mas, desde que não se percebam traços de ascendência preta, eu me casaria com uma tal pessoa. O que importa é a aparência” (ver, neste volume, p. 111). Ou ainda as afirmações da mulata — casada com um branco — que reconhece a existência do preconceito de cor manifesto de várias maneiras: “Uns demonstram o preconceito com b e ­ nevolência exagerada e outros com muito desprezo. Naturali­ dade ou igualdade no trato do branco para as pessoas de cor não h á” (ver, neste volume, p. 111). E, no decorrer da conversa, mostra ambiguidade de sentimentos: “Não tenho experiências pessoais desagradáveis, porque fugi muito do negro, e, com o mulata, procurei me assemelhar ao branco” (ver, neste volume, p. 112). Logo a seguir, afirma constatar o aborrecimento do marido “por eu ser de cor [...] demonstra pena ou vergonha quando observa algum traço físico nos filhos. Estes ressenti­ mentos dele me ofendem, e nos põem em conflito” (ver, neste volume, p. 112). Embora quase sempre velada, a denúncia de uma socie­ dade cruel — que, ao m esm o tem po, através dos com por­ tam entos e ações, afirma a inferioridade racial e nega essa afirmação — coloca, para alguns entrevistados, a necessidade de interiorizar, de algum m odo, a dignidade que lhes é tantas vezes negada. Por exem plo, um dos entrevistados lem bra, de passagem , a longa história das sofisticadas civilizações afri­ canas, em bora não as articulasse à sua difusão entre os bran­ cos europeus. Outro inveja a situação dos negros nos Estados Unidos, por viverem uma clara situação de desigualdade que

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/ lhes permite forte coesão social, a qual abre espaço a reivin­ dicações de direitos. Às vezes, o silêncio diz muito mais do que as palavras. É interessante notar que Virgínia não se refere a movimentos so­ ciais que denunciem ou lutem contra a situação de exclusão tantas vezes apontada nas entrevistas existentes no momento de sua pesquisa.4 Ela se refere a uma “Associação de Negros Brasileiros” e ao jornal por esta publicado,5 e indica seu iní­ cio e seu fim: 1931 e 1937, respectivamente. Portanto, ambos desapareceram no início do Estado Novo, e a pesquisa feita pela autora encerrou-se antes do término deste período. A re­ pressão exercida sobre os movimentos sociais na época pode ser considerada com o uma das explicações que levam a que vários entrevistados afastem a possibilidade de m obilizações direcionadas contra a discriminação racial. O quadro de limitação das liberdades característico daquele momento é de grande importância quando relacionado ao comportamento individual (veja-se o isolamento que alguns entrevistados se impõem). Nesse nível, a recusa ao enfrentamento de várias situações sociais que “exporiam ” sua condição racial caracteriza-se com o estratégia de evitar o conflito, mas creio que as razões são mais amplas: pode representar, tam­ bém, a fuga à dor com que a discriminação, expressa por vários comportamentos em relação aos negros, os atingiría. A não admissão clara da discriminação talvez os protegesse naquele dado momento, mas os afasta da análise do quadro em que estão inseridos. Afasta-os de perceber o conflito com o cons4 Os dados foram coletados entre 1941 e 1945. 5 Ela diz: “Por razões óbvias, o nome da associação e, a seguir, o titulo do seu mensário são fictícios” (ver, neste volume, nota à p. 122). Graças a uma consulta que fiz a Mário Augusto Medeiros da Silva, a quem não escapa nem mesmo o mais obscuro boletim da imprensa negra, pude identificar tanto a associação quanto o jornal. Agradeço muito a ele, mas respeitarei o desejo da autora, não os divulgando.

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titutivo da sociedade; e, no caso da discriminação racial, da reflexão sobre as razões que fundam esse conflito. Embora a tese da existência de uma democracia racial no Brasil esteja por trás de várias narrativas dos entrevistados — e, segundo Pierson (BICUDO, 1945, p. 6 l; ver, neste volume, p. 156), a mobilidade social do mulato expresse essa situação — , Virgínia insiste em mostrar, mediante algumas entrevistas, a presença da consciência da exclusão. Embora extrapolando os termos por ela usados, eu diria o sentimento da discriminação. Veja-se, com o ilustração, a expressão “sou doente e sei por­ tanto onde me dói” (ver, neste volume, p. 76), usada por um deles e que coloco com o epígrafe deste prefácio.

A vivência da discriminação como dor lembra-me um conto de Primo Levi. Ele, que foi sempre consciente das conspirações contra a continuidade da vida, escreve sobre seu personagem: Ruminou uma ideia sobre a qual não pensava havia tempos, porque sofrerá bastante: que não se pode extirpar a dor, nem se deve, pois ela é nossa guardiã. Frequentemente é uma guardiã estúpida, porque inflexível, fiel à sua tarefa com uma obstinação maníaca, e nunca se cansa, ao passo que todas as outras sensações se cansam, se dete­ rioram, especialmente as mais prazerosas. Mas não se pode suprimir a dor, fazê-la calar, porque faz parte da vida, é a sua salvaguarda (LEVI, 2005, p. 91).

De certo modo, a tese da existência de uma democracia racial no Brasil funciona como a versamina do conto de Levi, droga descoberta e aplicada por Kleber e capaz de transformar a dor em prazer. Já foi apontado por vários analistas da questão racial como essa afirmação funda uma consciência falsa da realidade (várias vezes denunciada pelos entrevistados por Virgínia) e

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opera com o um impeditivo à coesão do grupo discriminado. Ou, ainda, funciona com o obstáculo a movimentos sociais que denunciem a precariedade da condição do negro na sociedade brasileira. Sem fazer diretamente uma crítica ao que será pos­ teriormente denominado “mito da democracia racial”, a tese de Virgínia Leone Bicudo, agora publicada com o livro, contribuiu para o avanço dessa temática e possibilitou novas abordagens sobre o problema da discriminação racial. São Paulo, novembro de 2010 E lide R ugai B astos Professora titular do Program a d e Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Cam pinas (UNICAMP).

Referências BICUDO, Virgínia Leone. Estudo d e atitu des ra ciais d e p retos e m u­ latos em São P au lo. 1945. Dissertação (Mestrado em Ciência) — Es­ cola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, 1945. COSER, Lewis. M asters o f S ociolog ical Thought: ideas in historical and social context. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971. FISHER, Berenice M.; STRAUSS, Anselm L. O interacionismo. In: BOTTOMORE, Tom; NISBET, Robert (Orgs.). H istória d a a n á lise sociológ ica. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, p. 596-649. LEVI, Primo. Versamina. In: LEVI, Primo. 71 contos. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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NUCCI, Priscila. Os intelectuais d ia n te do racism o an tin ip ôn íco no Brasil: textos e silêncios. São Paulo: Annablume, 2010. PARK, R. E. Human Migration and the Marginal Man. A m erican J o u r n a l o f Sociology, 33, p. 881-893, 1928.

______ . Introduction. In: STONEQUIST, E. The M argin al Man-, a study in personality and culturç conflict. New York: Charles Scribner’s Sons, 1937. ______ . Introduction. In: YOUNG, Pauline V. The Pilgrims ofR u ssian-Tow n: the community of spiritual christian jumpers in Amer­ ica. Chicago: University of Chicago Press, 1932. PARK, R. E.; BURGUESS, E. W. In troduction o f the Scien ce o f Soci­ ology. Chicago: University Of Chicago Press, 1921. STONEQUIST, E. The M argin al Man. a study in personality and Culture Conflict. New York: Charles Scribner’s Sons, 1937.

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IN TR O D U Ç Ã O : A C O N TR IB U IÇ Ã O DE V IR G ÍN IA LEO N E BICU D O A O S ESTU D O S SO B R E A S RELA ÇÕ ES RA CIA IS N O BRA SIL M arcos C hor M aio*

Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de socio­ logia porque, se o problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado ao nível sociocultural (BICUDO, 1994, p. 6).

Os elos entre subjetividade, preconceito de cor e a Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) parecem evidentes no depoi­ mento de Virgínia Leone Bicudo (1910-2003). Passaram-se prati­ camente cinco décadas desde que ela defendeu sua dissertação de mestrado intitulada E stu do d e A titu des R a c ia is d e P retos e M u latos em S ão P a u lo (1945), investigação pioneira sobre as relações raciais em um grande centro urbano, sob a orientação do sociólogo Donald Pierson. A pesquisa foi desenvolvida en­ tre os anos 1941 e 1944 e a dissertação defendida no ano se­ guinte. Tendo por base estudos de caso, entrevistas, exam e de documentação da Frente Negra ,Brasileira (1931-1937) e do jornal Voz d a R a ç a , Virgínia Bicudo traça um amplo painel das relações sociais na cidade de São Paulo. Por meio do estudo das “atitudes raciais” e orientada pelas interseções entre Socio­ logia, Antropologia e Psicologia Social - Bicudo apresenta um

Sociólogo, Doutor em Ciência Política é Professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e pesquisador do CNPq.

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universo dividido em classes representado por negros, mulatos e brancos.

Este mundo desigual é perm eado por conflitos,

com petição, mobilidade social, busca de status, preconceito de cor e discriminação racial. A partir dos ricos depoimentos de homens e mulheres das camadas populares e médias , Virgínia Bicudo demonstra, lem ­ brando as reflexões de Dumont (1997, p. 303-316), que no m o­ mento em que a percepção hierárquica do mundo cede lugar ao ideário igualitário, emerge o racismo. Assim, a socióloga torna evidente a possibilidade do conflito racial em contexto intelectual em que prevalecia a visão do consenso. A titu des R a c ia is d e P retos e M u latos em S ão P au lo, junto com os trabalhos de Oracy Nogueira, apresenta nova reflexão sobre as relações entre cor/raça e classe social. Evidencia a persistên­ cia do preconceito de cor m esm o quando se atenua as dife­ renças sociais. O estudo suscita uma visão mais rica e matizada da produção das ciências sociais desenvolvida por instituições brasileiras. Sob a direção de Donald Pierson, a Divisão de Es­ tudos Pós-Graduados da Escola Livre de Sociologia e Política produziu um conjunto de pesquisas, a exem plo da investigação sociológica de Virgínia Bicudo, que permite repensar os estu­ dos sobre as relações raciais no Brasil. A partir das marcas da trajetória de Virgínia Bicudo, considero que ela concebeu o conflito com o parte constitutiva da vida social. Os achados sociológicos de sua dissertação de mestrado contrapõem-se às visões tradicionais acerca da existência de har­ monia racial na sociedade brasileira calcada no pressuposto de que o preconceito de cor estaria subsumido ao de classe. Nesse sentido, o trabalho pioneiro de Bicudo, ao lado das pesquisas realizadas por Oracy Nogueira, revelam o protagonismo e a atu­ alidade dos estudos sobre as relações raciais no Brasil realizados

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pela Escola Livre cie Sociologia e Política nos anos 1940 e 1950. Educadora sanitária, visitadora psiquiátrica, cientista social, professora universitária, psicanalista, divulgadora científica, protagonista de diversas iniciativas no plano da institucionaliza­ ção da psicanálise no Brasil, eis o mundo diverso em que Virgí­ nia transitou. Cabe então conhecerm os um pouco da trajetória multifacetada de Virgínia Bicudo em período de efervescência intelectual na ELSP. Primeiros Tempos: da Educação Sanitária às Ciências Sociais Virgínia Leone Bicudo nasceu na cidade de São Paulo, filha de Joana Leone, branca, imigrante pobre de origem italiana, e de Teófilo Bicudo, negro e afilhado de fazendeiro de café em Campinas. O padrinho de Teófilo, Bento Augusto de Almeida Bicudo, foi senador pelo Partido Republicano Paulista (PRP), positivista e fundador do jornal O E stad o d e S ão P au lo. Durante a infância e adolescência residiu no bairro popular da Luz, na Rua São Caetano, a Vila Economizadora, conjunto de habi­ tações construídas no final do século XIX que abrigava fun­ cionários públicos, imigrantes e operários (MEDRANO, 2006). Lá morou com os pais e cinco irmãos. Seu pai, Teófilo, contou com o apoio financeiro do coronel Bicudo, quando se trans­ feriu para a cidade de São Paulo a fim de realizar sua formação escolar. Estudou no tradicional Ginásio do Estado e ingressou, por influência política do padrinho, nos Correios e Telégrafos, onde veio a se tornar alto funcionário.6 6 Virgínia Leone Bicudo. Documentos Diversos, CEDOC-FESPSP; http://almanaque.info/ ProvinciaSP/PROVINCIASP.htm; http://www.al.sp.gov.br/web/legislativo/parlament/capitulo2/partell.pdf, acessado em 23/03/2010; Os avós maternos de Virgínia Bicudo vieram da Sicilia (Itália) para o Brasil no fim do século XIX, no contexto da grande leva de imi­ gração italiana. Trabalharam em Campinas, na fazenda de café do coronel Bicudo. O pai morou e trabalhou na fazenda do coronel Bicudo, sendo tratado como filho pelo coronel.

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Família d e V irgínia Leone B icudo na casa d a V ila E conom izadora. Da esquerda para a direita vêem-se as irmãs Lourdes e H elena, a m ãe, Dona Joana, a irmã C arm em com a boneca, o p a i Sr. Teófilo B icudo, Teófilo Filho e V irg in ia B icudo. S ão Paulo, 3 d e m arço d e 1 9 2 9 .

Em 1933, a morte de Teófilo Bicudo levou a primogênita a assumir a responsabilidade pelo sustento da família.*7 Da Luz ao Jardim Paulista, eis a circulação de Virgínia Bicudo pela geogra­ fia da cidade espelhando o processo de mobilidade social m e­ diante a educação, espaço privilegiado no qual as mulheres de classe média com eçaram a ascender ao mundo das profissões de maior reconhecim ento social. Em 1930, após estudar na Es­ cola do Brás e no Ginásio do Estado, Bicudo concluiu o curso secundário na tradicional Escola Normal Caetano de Campos.8 Em seguida, exerceu o magistério na categoria de “professora substituta perm anente” nos Grupos Escolares Carandiru e ConA mãe, Joana, foi babá da filha de criação do coronel. Na fazenda, Teófilo e Joana se casaram. Posteriormente, Teófilo foi estudar em São Paulo, por decisão de Bento Bicudo. Entrevista de Rosa Zingg, sobrinha de Virgínia Leone Bicudo, a Marcos Chor Maio. São Paulo, 17/12/2009. 7 Entrevista de Rosa Zingg a Marcos Chor Maio. São Paulo, 17. dez. 20098 A tradicional instituição pública de ensino denominada Escola Modelo Caetano de Cam­ pos, situada no bairro da Luz, em São Paulo, foi criada em 1890. Sobre a ideologia das escolas modelos, ver Carvalho (2002).

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y solução.9 Ela foi chamada a lecionar em escola rural de Marancluba (Ubatuba), mas acabou seguindo outro destino, induzida pelo pai, ao ingressar no Curso de Educadores Sanitários do Instituto de Higiene de São Paulo.10 Criado em 1925, o Curso de Educadores Sanitários do In­ stituto de Higiene estava voltado para professores primários devido à longa duração do curso de enfermagem e à falta de profissionais formados nesta área em São Paulo. A partir de uma visão preventiva, os educadores ministravam conhecim en­ tos teóricos e práticos de higiene em escolas e centros de saúde (FARIA, 2006, p.181). O surgimento do curso coincidiu com um momento de crescente profissionalização das mulheres das classes médias urbanas. As políticas educacionais entre as déca­ das de 1920 e 1940 foram fundamentais à inserção gradativa das mulheres no campo profissional e acadêmico. As mudanças no sistema escolar, associadas às transformações mais amplas como a urbanização e a industrialização - contribuíram para a redefinição dos papéis sociais femininos nos centros urbanos da época. A expansão progressiva da econom ia impulsionou as atividades das mulheres para fora do mundo do trabalho doméstico (AZEVEDO; FERREIRA, 2006, p. 217-220). Desse modo, a presença das mulheres no curso de educadores san­ itários e nos serviços de saúde representou um novo patamar no universo social feminino (ROCHA, 2005). Ao concluir o curso de um ano em 1932 e realizar estágio no primeiro se­ mestre de 1933, Virgínia Bicudo foi contratada pela diretoria do Serviço de Saúde Escolar do Departamento de Educação para 9 Esta informação me foi concedida gentilmente pela psicanalista Maria Angela Moretzsohn, da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). 10 Entrevista de Rosa Zingg (2009). Lista de alunos da türma de 1932 do Curso de Educa­ dores Sanitários. Centro de Memória da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

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Professor e colegas d o C urso d e Educadora Sanitária d o Instituto d e H ig ie n e . V irgínia é a prim eira d a esquerda p a ra a direita, na prim eira fila , d e roupa escura, chapéu e lenço bran co no pescoço. S ão Paulo, 1 9 3 2 .

dar aulas de higiene em educandários da cidade de São Paulo (ZINGG, 2009). Em 1936 ela ingressou no curso de graduação em Ciências Políticas e Sociais da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP). As ciências sociais passaram a ser uma das alternativas profis­ sionais emergentes para as mulheres11 e, no caso de Bicudo, permitiu o aprofundamento da visada sociológica adquirida no âmbito da educação sanitária, na estreita relação entre puericul­ tura e condições de vida (MAIO, 2010). Trazendo sua experiência sanitarista, Bicudo matriculou-se em instituição pioneira no campo das ciências sociais no Brasil, criada em 1933, fruto dos esforços intelectuais de setores da elite paulista que buscavam alternativas políticas, a partir da formação de quadros técnicos, à derrota da Revolução Constitucionalista de 1932. As Ciências Sociais tornam-se importante 11 Sobre a presença feminina nos cursos de ciências sociais em São Paulo nos anos 1940 e 1950 ver Anuários da ELSP. Ver também Miceli (1989).

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J

fonte de conhecim enlo para as incipientes organizações de planejamento econôm ico e desenvolvimento social (LIMONGI, 1989; SIMÕES, 2009; DEL VECCHIO; DIÉGUEZ, 2009). Sob os auspícios da ELSP foram realizados estudos sobre o negro; pa­ drão de vida e assistência filantrópica na cidade de São Paulo; enquetes sobre preconceito e atitudes raciais; pesquisas de opinião pública, imigrantes, condições de trabalho e personali­ dade dos operários; higiene mental e psicanálise; experiência social de doenças; estudos de comunidades rurais; projetos de desenvolvimento de comunidade, etnologia indígena, etc.12 Para contemplar o amplo e diversificado leque temático de suas pesquisas, a ELSP, sob ascendência norte-americana, con­ tratou sociólogos e antropólogos estrangeiros, tais como: Horace Davis, Samuel Lowrie, Donald Pierson, Radcliffe-Brown, e rece­ beu a visita temporária de outros: Franklin Frazier, Melville Herskovits, Charles Wagley (MASSI, 1989). Inspirando-se na Escola Sociológica de Chicago13, a ELSP adotou perspectiva interdisciplinar como nas relações entre Antropologia, Sociologia e Psicologia Social. Fez dos problemas urbanos e rurais seus laboratórios.

O bacharelado da ELSP tinha a duração de três anos e, no período em que Virgínia Bicudo foi aluna da Escola, a grade curricular era composta das seguintes disciplinas: Biologia Social, Economia Social, Estatísticas, Introdução à Economia, Sociologia, Ciência Política, Contabilidade, Economia Interna­ cional, Finanças Públicas, História das Doutrinas Econômicas, Psicoténica, Administração Pública, Contabilidade, Economia Internacional, Educação Nacional, Finanças Públicas, História 12 Ver Anuários da Escola Livre de Sociologia e Política. 13 No final do século XIX, Chicago transformou-se num verdadeiro “laboratório social’’ em decorrência dos problemas sociais advindos da urbanização e da industrialização. As Ciências Sociais da Universidade de Chicago foi pioneira na proposta de uma sociologia empírica tendo em vista propósitos reformistas. (VALLADARES, 2005).

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Econôm ica do Brasil e Psicologia Social. Em 1938, Bicudo ba­ charelou-se em Ciências Sociais e Políticas sendo a única mu­ lher formada numa turma de 8 alunos. Neste período, Virgínia Bicudo conheceu o m édico e psi­ canalista Durval Marcondes, que atuava no Serviço de Saúde Escolar desde meados da década de 1920 e foi professor da disciplina Higiene Mental para o Curso de Educadores Sani­ tários a partir de 1937. No ano seguinte, criou o Serviço de Higiene Mental Escolar (SHME) da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, ocasião em que Virgínia Bicudo tornou-se visitadora psiquiátrica. O SHME funcionava por intermédio das clínicas de orientação infantil, cujas funções eram a prevenção e o tratamento de problemas psíquicos da criança (BICUDO, 1941). Marcondes e Bicudo tinham outro elo em comum: a psi­ canalista alemã e judia Adelheid Koch, refugiada do nazismo. Ele a conheceu em 1936 e Bicudo tornou-se a primeira mulher a ser analisada por Koch, a partir de 1937. (BICUDO, 1989; SAGAWA, 2002). No início da década de 1940, Bicudo passou a lecionar, junto com Marcondes, as disciplinas Higiene Men­ tal e Psicanálise na ELSP. Esta parceria profissional e intelec­ tual contribuiu para a transformação da instituição acadêmica num importante espaço de difusão e de institucionalização dos “saberes psi” em São Paulo, entre os anos 1930 e 1950.14 “Na Escola de Sociologia se estudava o problema do Negro”15: a pesquisa sobre atitudes raciais na ELSP Em diversas entrevistas, Virgínia fala em “sofrimento” com o um importante motivo para sua opção pelo curso de ciências so14 Sobre a história dos “saberes psi”, ver Duarte (2005). 15 Entrevista de Virgínia Leone Bicudo a Marcos Chor Maio era 25. Set. 1995; ver Maio, 2010.

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c iais na ELSP, “imaginando

A ORIENTAÇÃO PSICOTERAPICAÍ DE EDUCADORES E DO EDUCANDOl Causas emocionais de fracasso dos educadores — Á psicoterapia ou a | reeducação como meio de rea justamento da personalidade

contacto cio. sor humano com a realidade qúe -o cerca (ob­ jeto* animados e Inanimados), se estabelece por melo doâ afetos ou emoçócs. A evolução dos afetos «través do crescimento flslco-pslco«ocial, da iníancia até a idade adul­ ta, dá-so por etapas, cada uma daa quais apresenta características pró­ prias. Do catado narclslco, isto 6, de afetos voltados para si mesma, a criança evolui paulatlnamcutc pa-' ra o catado de relaclonar-se emocionaim entc com oa objetos do mundo exterior. Por essa razão, os primeiros anos de vida da criança caracterizam-se por atitudes de «goisrao, vaidade, exibicionismo. In­ veja, ciúme, isto é, por eíotos que buscam unicamente o prazer pes­ soal. sem nenhuma consideração pei* realidade exterior. Impedida por motivos intrínsecos • extrlnsecos de permanecer viven­ do como se tosse o centro de gravitação do universo,' a criança é compelida a mudar os seus afetos primários, soclalizando-os. A socia­ lização da criança consiste, por­ tanto, em ajudá-la a produzir m u­ danças nos afetos, de modo a tor­ nar-lhe mais desejável do que frustradora a aceitação das técnicas de vida e dos padrões de comporta­ mento, que fazem possível a vida em sociedade. O processo normal do socialização da criança i, pois, constituído peia educação. Motivos psíquicos intrínsecos encontram-se nos diferentes medos específicos que normalmcnte sur­ gem, opondo-se a que a criança permaneça indefinidamente fixada aos prazeres característicos de ca­ da etapa do desenvolvimento, ao \&üo do surgimento de novas fontes de prazer, consequentes ao proprlo crescim ento. Assim, durante os pri­ meiros . 18 meses de idade, as expe­ riências da criança se fazem primordiãlmente por meio do prazer oral: tendo a atitude de levar tudo à boca, tudo controlar e Incorporar a si devorando, aos poucos vai sur­ gindo o medo de que o oposto lhe ocorra, isto é, que o-mundo exterior a trate com a mesma atitude "devoradora” . Concomitantemente, sur­ gem novas fontes de prazer, com a valorização das suas funções fisio­ lógicas, a criança obtendo uma no­ va forma dc estabcloeer contacto, dominar e controlar o ambiente. Sor sua vez, o prazor proveniente da valorização de sua "obra”, produzlndo-a, expèilndo-a ou reten­ do-a. encontra limitações com o surgimento do medo de que as pes­ soas de seu ambiente (mãe) tenham õ mesmo modo de sentir, e, por­ tanto, desejem espollã-la, tirar-lhe coisas de dentro de seu corpo e es­ vaziá-la. Enioclonalmente, & crian­ ça sente desejável abandonar o prazer anal e substituí-lo pelo pra­ zer genital, o qual acompanhado de sentimentos de ciumo e inveja tam­ bém passa a ser temido, alem do medo de ferimentos que geralmente , aparece nessa epoca. Esser. são al­ guns ,exemplos de medos específicos par» diferentes comportamentos ins­ tin tivos, c s quais surgcm_ pondo término às respectivas fontes de prazer, ao mesmo tempo que são sucessivamente substituídos por no­ vas fontes dc prazer. Esse processo

Fonte: Divisão de Documentação e Pesquiso da História da Psicanálise/ SBPSP.

O

neoessaria a intervenção de uma ori­ entação pslcoteraploa ou reeducatlva dos pais e do educando. A pslcoterapia ou reeducação tem, por­ tanto, o objetivo de proceder ao tratamento dos distúrbios emocio­ nais, por melo do estabelecimento de uma relação entre o paciente (crian­ ça, adolescente, adulto), libertando- . o de sentimentos e mecanismos in ­ fantis, conduzindo-o do estado de imaturidade para a maturidade emo­ cional, da dcpendencla para a eman­ cipação, pcio robusteclmento do ego, que não- s® torna capaz de encon­ trar melhores soluções para os esta­ dos de tensão c de conflito psíquico do que aquelas obtidas pelos sintoOs métodos de psicoterapia podem ser classificados em dois grupos: a psicoterapia psicanaütlca, que tra­ balha cora mateçiai do inconscien­ te. e os outros tipos de psicotera­ pia, que lidam com material do consciente. A diferença entra os dois tipos de psicoterapia fica no fato de que, enquanto a psicanálise procura remover os sintomas tiran­ do do Inconsciente os elementos - perturbadores, as pslcoterapias não analiticas procuram remover os sin­ tomas utilizando-se excluslvamcnt» dc técnicas de apoio e, portanto, ape­ lando para a parte consciente da personalidade. Todavia, um e ou­ tro tipo dc psicoterapia trabalham na base da relação entre paciente e plscoterapepta, a qual se fundamen­ ta na situação de transferencia e de contra transícrencia. O fenomeno da transferencia é um fato que ocorre em todas as rela­ ções humanas e, portanto, cm todas as situações de psicoterapia, porque t determinado pela tendencla psiquica do transferirem-ac para situa­ ções posteriores as emoções que du­ rante as expcricnciaa in fantis não encontraram as iras normais de des­ carga. À luz da transferencia expli­ cam-se, por exemplo, as reações do adulto quê està sempre em defesa, assumindo uma atitude de agressão antecipada ou de retraimento, por imaginar quo os outros só desejam trai-lo, humllbà-lo. desprezá-lo ou agredi-lo fisicamente. Nesses casos, o adulto encontra-se transferido-pa­ ra os contatos, humanos do presen, te, os mesmos sentimentos com que ’ vive as suas cxperienclas infantis. As simpatias ou antlpatias gratui­ tas são outro exemplo do fenôme­ no de transferencia dc afetos liga­ dos a situações infantis. Na situação de psicoterapia, fatalm cnte o paciente transferirá para o psicotepeuta os mesmos aíetos infantis e os mesmos meca­ nismos psíquicos de defeso. Ao mesmo tempo que deseja receber do pslcoterapeuta amor, conside­ ração ou reconhecimento, o pacien­ te teme ser rejeitado ou de algum mo-, do punido. O conteúdo dos pensa­ mentos ou fantasias que dão senti­ do aos afetos in fantis variam de um individuo para outro, segundo « historia de cacla ura e o condlcloniujiento das cxperienclas pessoais. Hà ■portanto_ diferentes formas dc defesa. Énquârito Uns se defendem adotando atitudes de amabiiidade excessiva outros otíotam’ atitudes de excessiva agressividade, e outros ain-

mo casar-se, — expllcou-ihe — ha- (P via ficado multo aflito, achando • que vinha sendo tão feliz com sua mulher Justamento por não 6e ter casado com ela; assim, cia por me­ do era sempre submissa; mas ca­ sando-se tudo iria mudar, a mulher iria relaxar c acabariam separandose". Por motivos emocionais pes­ soais, M. tinha unicamente consi­ derado os aspectos emocionais üa ligação marital dc seus pacientes, descuidando-se de tratar dos moti­ vos neuróticos determinantes da­ quela forma de ligação. Para qu8 sua orientação fosse cumprida, M. deveria em primeiro lugar mostrar que o pai mantinha uma situação falsa, baseada na Insegurança e no medo de perder sua mulher, razão por que precisava conscrva-la sub. missa, desprotegida e dependente, fazendo-se cego a todas as inconve­ niências desse arranjo. Num outro caso, G .. ao tomar co­ nhecimento dos problemas de um menino por meio de entrevistas com a mãe, imediatamente percebe que esta se havia apegado excesslvamcnte ao filho desde a morte do m a­ rido. Consequentemente, não dei- • xava o filho afastar-se dela u não ser para ir à escola. O menino es­ tava com 12 anos, mas não podia brincar com outros e dormia com a mãe na cama de casai. Para G. ficou evidente que a mão tinha de mudar suas atitudes em beneficio da criança e orientou-a dizendo-lhe: “A sra. precisa dar mais liberdade a seu filho! Deixá-lo que tenha re­ creação fora dc casa, permitir-lhe que tenha amigo* e dar-lhe uma cama individual, pois ele està mui­ to grande pára dormir com a sra.” — "Mas no quarto não há lugar . para outra cama", rcplica-lhe a mãe. — "A sra. ajeita uma cama na sa­ la d» frente, uma cama de "ven­ to", que só serã armada ã noite. Para a saude do menino é multo mais higiênico ele dormir só". Após umas semanas G. entrevista novam eate a mãe do menino, perguntando-lhe se havia seguido sua orientação. "Sim — respondeu-lhe a era. — deixo-o brincar com outros e noto que ele está mais alegre. Quanto a mudá-lo de cama eu en­ contrei uma solução melhor;, cu .0 faço deitar-se antes de mim e quan­ do ele jã adormeceu entro devaga­ rinho na cama; pela m anbi levan­ to-me antes que ele desperte." — "S ã o — responde G. — a sra. não entendeu que é preciso tlrà-lo da sua cama como medida de higiene." —- "A sra. só exige sacrifícios de mim”, interrompe a mãe, e choran­ do continua: “fiz tudo que a sra. mandou, tudo que afasta o meu ft11» de mim; só , tenho esse filho no mundo, agora até separar de ca­ ma, isso é demais para' mira, não De fato para o seu estado emo­ cional a orientação de G. cr» ex­ cessiva porque recebida com o sen­ tido de afastá-la do filho. Somen­ te depois de estar esclarecida so­ bre os motivos emocionais de 11xar-Se ao filho e da Irrealidade de que perderin o afeto do filho se lhe desse maior liberdade * que rl» póderla aceitar a orientação de O. A relação entre o paciente e o psicoterapcuta constitui o melo de obter dados para a compreensáo da

C lip p in g d a coluna N osso M u n d o M e n ta l assinada p or V irgínia Leone B icudo no jornal Folha d a M a n h ã . São Paulo, 1 9 5 5 .

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F a te À c e rc p e s o d ifc s c a ®

V irgínia 1950.

Leone

B icudo,

anos

Forte: Acervo pessoal de Roso Zingg

C a p a d o livro N osso M u n d o M ental, d e V irgínia Bicudo, p u b lic a d o em 1 9 5 6 .

V irgínia Leone B icudo e o presid e n te ju sce lin o Kubitschek no d ia 7 d e setembro d e 1 9 5 8 em recepção na e m b a ixa d a d o Brasil em Londres.

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Fonte: Divisão de Documentação e Pesquisa da Historio da Psicanálise/ SBPSP

Lygia A m aral e V irgínia Leone Bicudo. São Paulo, 1 9 6 0 .

Festa d o Prêmio J oãoJulião d a C osta A guiar. Da esquerda para a direita: Bernardo Blay, 2.°; H erm inda M a rco n de s, esposa d e Durval, 4 ° ; V irgínia Leone Bicudo, 5 .° ; Lygia A m aral, 6 .a; Durval M arco n de s, 7 o e; colegas psicanalistas. São Paulo, 2 7 d e junho de 1 9 6 8 .

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fc ó r x ^sa naÊc 5eF5? i Dicãc de D ocrerra ã = Fonte: Acervo pessoal de Rosa Zingg

V irgínia Leone B icudo e Durval M a rco n de s. A o la d o Bernardo Blay e senhora. D éca d a de 1 9 7 0 .

V irgínia em festa d e fam ília com as irmãs. Da esauerda para a d ire ita : V irgínia Leone B icudo; H elena B icudo Soares de O liv e ira ; M a ria a e Louraes B icudo Z in g g ; Joana Leone B icudo e; C arm em Leone B icudo De Prá.

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Título

A t i t u d e s K a c ia is i >k P r e t o s i ; M i n ,a t o s i i m

Autora

VmtilNiA Liíonk B icudo

Organizador

M arcos C hor M aio

Produção

R od rig o E stramanho

Projeto gráfico de capa e miolo

M oema C avalcanti

de

Editoração Eletrônica

B árbara F onseca

Digitalizações

C ores S oluções G ráficas

da

A lmeida

R ocha

Revisão de texto

F rank R o y C intra F erreira

Revisão de provas

R od rig o E stramanho

Secretaria Editorial

de

A lmeida

R osa M aria A ndrade G rillo B eretta S ilvia A parecida S antos T erra P edro C atarino

Formato

16 x 23 cm

Mancha

11 x 1 7 ,5 c m .

Tipologia

ITC Garamond e Futura

Papel

P ólen S oft 8 0

g /m 2

C artão S upremo 2 5 0

Número de páginas

g /m 2

192

Tiragem

1 000

Impressão

Prol Editora Gráfica Ltda.

SAo

P ai

vou u estudar ns reluçfies raciais no Hmsil. Monos conhecida, entretanto,