Ateísmo: uma Breve Introdução 9788525436931

Ateísmo: uma Breve Introdução (Encyclopaedia) A perspectiva de uma vida sem qualquer crença religiosa é muitas vezes vis

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Ateísmo: uma Breve Introdução
 9788525436931

Table of contents :
OdinRights
Prefácio
Capítulo 1: O que é o ateísmo?
Capítulo 2: A defesa do ateísmo
Capítulo 3: A ética ateísta
Capítulo 4: Sentido e propósito
Capítulo 5: O ateísmo na história
Capítulo 6: Contra a religião?
Capítulo 7: Conclusão
Referências e sugestões de leitura

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DADOS DE ODINRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

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poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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PREFÁCIO Para mim foi um prazer e um privilégio escrever este livro para a (pelo menos até agora) excelente série Very Short Introductions. A fim de manter-me fiel ao espírito da série, tive por objetivo escrever um texto legível e agradável, evitando a aridez acadêmica e ao mesmo tempo fazendo o possível para manter um alto nível de rigor e integridade intelectual. Cabe aos leitores decidir em que medida alcancei este objetivo. A fim de evitar a esterilidade escolástica, não segui as convenções acadêmicas no que diz respeito a citações e notas de rodapé. Em vez disso, listei no final do livro minhas principais fontes de pesquisa e sugestões de leituras adicionais. Espero que sirvam de reconhecimento aos muitos escritores e pensadores cujas ideias alimentaram este trabalho. Este livro dirige-se a uma grande variedade de leitores, incluindo ateus em busca de uma defesa e de uma explicação sistemática dessa posição, agnósticos que talvez pensem que no fundo são ateus e religiosos imbuídos de um desejo sincero de entender como funciona o ateísmo. O principal objetivo foi escrever um livro que os ateus possam dar aos amigos para explicar as próprias crenças depois de usá-lo como auxílio para organizar as próprias ideias. Eu

gostaria

de

agradecer

a

diversas

pessoas

as

contribuições que fizeram para que este livro se tornasse realidade. Em primeiro lugar, a Marilyn Mason, pela sugestão inicial, a Shelley Cox pela encomenda do livro e a Katharine

Reeve

e

Emma

Simmons

por

terem-no

acompanhado até a publicação. Marsha Filion merece uma menção

especial

por

ter

combatido

as

gorduras

na

penúltima versão do texto. Meus colegas do Humanist Philosophers’ Group também me ajudaram a compreender melhor o ateísmo positivo nesses últimos anos. Também gostaria de agradecer a David Nash e a Roger Griffin as sugestões de leitura para o capítulo sobre história.

CAPÍTULO 1 O

QUE É O ATEÍSMO?

Um passeio pelo lado negro? Quando eu era menino, frequentava uma escola católica. Eu prestaria bons serviços à causa do ateísmo militante se pudesse oferecer relatos das surras administradas pelas freiras e das bolinações promovidas por padres safados, porém essas histórias sensacionalistas não corresponderiam à verdade. Pelo contrário: fui criado em um ambiente religioso ameno e benigno. Meus pais não eram carolas, e a ternura jamais faltou a qualquer um dos meus professores. Não creio que eu traga nenhuma cicatriz profunda da doutrinação sutil praticada na escola, onde as crenças eram instiladas à base de repetições e reforços constantes, e não à base de coerção. Para dizer a verdade, o poder que a Igreja exercia sobre mim era muito fraco, sob vários aspectos. Quando passei a estudar em uma escola não católica no ensino médio logo adotei o metodismo, e ao terminar os estudos eu tinha abandonado de vez a fé religiosa. Eu havia me tornado um ateu – uma pessoa que não acredita na existência de Deus ou de deuses. Porém mesmo essa forma sutil de educação religiosa teve certos efeitos a longo prazo. Quando eu estava no ensino primário, a simples menção da palavra “ateu” conjurava

imagens

sombrias

de

um

vulto

sinistro,

maléfico

e

ameaçador. A crença em Deus e a obediência à vontade divina eram partes integrantes da nossa concepção da bondade, e portanto qualquer crença que rejeitasse Deus era por definição oposta ao bem. Os ateus só poderiam estar no lado negro. Claro, hoje eu não compartilho de nenhuma das crenças que fazem parte dessa visão estéril do ateísmo e dos supostos perigos que representa. A bondade e a crença em Deus são, para mim, duas coisas totalmente independentes, e o ateísmo, quando entendido da maneira correta, é uma visão de mundo positiva. Mesmo assim, quando penso na palavra “ateu”, percebo resquícios da mácula que esses mentores católicos lhe impingiram. Em um nível puramente emocional, eles conseguiram estabelecer uma associação entre o ateísmo e tudo o que é sinistro, negativo e maléfico. Hoje essa mácula não passa de um resíduo, quase imperceptível à minha mente consciente. Mesmo assim, ela não pode ser removida por completo, e muitas vezes a minha atenção volta-se involuntariamente a essa palavra, como o olho costuma ser atraído por um defeito quase imperceptível que, depois de visto, não pode mais ser esquecido. Minha experiência poderia ser um caso especial, e talvez nos

detalhes

outras

pessoas

pudessem

descobrir

semelhanças com suas próprias vidas. No entanto, acredito que em um determinado aspecto a minha experiência não

tem nada de especial. Nós, humanos, muitas vezes dizemos que é a nossa capacidade de pensar o que nos distingue dos outros animais. Somos homo sapiens – hominídeos pensantes –, e a capacidade racional é nossa marca distintiva e nossa característica mais importante. Mesmo assim, não somos totalmente racionais. E não me refiro apenas à força de nossos ímpetos e desejos irracionais ou não racionais; nossa própria maneira de pensar é repleta de emoção.

Esses

sentimentos

moldam

os

nossos

pensamentos – muitas vezes sem que nos demos conta. Chamo atenção para o fato porque este livro trata quase exclusivamente da argumentação racional em defesa do ateísmo. Quanto a isso não peço desculpas. Se queremos argumentar a favor de um determinado ponto de vista, o melhor a fazer é apelar para razões e argumentos capazes de nos oferecer o embasamento mais amplo possível. No entanto, também sei que não entramos nessas discussões racionais com a mente vazia e aberta. Trazemos junto preconceitos, temores e opiniões formadas. Às vezes essas coisas não têm fundamento algum na razão, o que lhes confere uma certa imunidade ao poder da argumentação racional. Não é diferente no caso do ateísmo – um tema que poucos leitores vão encarar de maneira neutra. Tenho a impressão de que muitos leitores, mesmo os que rejeitaram a religião, devem fazer mais associações negativas do que positivas em relação ao ateísmo. Essa

é

uma

observação

importante,

porque

essas

associações podem interferir na clareza do pensamento e nos levar a fazer julgamentos precipitados e a rejeitar outros argumentos sem nenhuma razão plausível. Se você está convicto de que os ateus são pessoas tristes, pessimistas e amorais, quaisquer argumentos racionais em contrário

podem

encontrar

uma

profunda

resistência

psicológica. A influência desses sentimentos pode ser muito forte, e não há como fazê-los sumir de repente. Mas podemos conscientizar-nos de que existem e fazer todo o possível a fim de compensá-los. Neste livro tento demonstrar que, em vários aspectos, o ateísmo não é o que as pessoas imaginam. Para que o assunto seja avaliado da maneira mais isenta possível, peço que você tente deixar de lado quaisquer preconceitos sombrios que possa nutrir em relação ao ateísmo e tente julgar apenas o mérito dos meus argumentos.

A definição do ateísmo Na verdade é muito fácil definir o ateísmo: é a descrença na existência de Deus ou deuses. (Deste ponto em diante, vou me referir apenas à crença em Deus, mas todos os argumentos do livro se aplicam de maneira idêntica a crenças monoteístas e politeístas.) No entanto, muita gente pensa que os ateus acreditam que não existe Deus nem moralidade; ou que não existe Deus nem um sentido para a vida; ou ainda que não existe Deus nem bondade humana.

Conforme veremos a seguir, não há nada que impeça os ateus de acreditar na moralidade, em um sentido para a vida

ou

na

bondade

humana.

O

ateísmo



é

extrinsecamente negativo quando trata da crença em Deus. Portanto, é capaz de apresentar tantas visões positivas sobre os outros aspectos da vida quanto qualquer outra crença. Existe apenas um caso em que a negatividade da crença dos ateus estende-se para além da existência de Deus. A rejeição da crença em Deus em geral vem acompanhada por uma rejeição mais ampla de toda e qualquer realidade sobrenatural ou transcendental. Em geral os ateus não acreditam na existência de uma alma imortal nem na vida depois

da

morte

nem

em

fantasmas

ou

poderes

sobrenaturais. Embora a rigor um ateu pudesse acreditar em

qualquer

uma

dessas

coisas

e

mesmo

assim

permanecer ateu, por razões que ficarão claras mais adiante os argumentos que sustentam o ateísmo tendem naturalmente

a

excluir

outras

crenças

em

eventos

sobrenaturais ou transcendentais. O ateísmo opõe-se não apenas ao teísmo e a outras formas de crença em Deus, mas também ao agnosticismo – a suspensão da crença ou da descrença em Deus. Os agnósticos afirmam que não podemos saber se Deus existe ou não, então a única opção racional é suspender o julgamento. Para o agnóstico, tanto o teísta como o ateísta vão

longe

demais

afirmando

ou

ao

negando,

respectivamente, a existência de Deus – simplesmente não dispomos de evidências ou de argumentos suficientes para justificar qualquer uma dessas posições. Para quem não tem uma crença positiva em Deus, o momento de optar pelo ateísmo ou pelo agnosticismo é importante – talvez tão importante quanto o momento de decidir se devemos ou não acreditar em Deus –, e pretendo discuti-lo em mais detalhe no capítulo seguinte.

O ateísmo, o naturalismo e o fisicalismo Outro problema com a ideia de que o ateísmo não seria nada além de um sistema de crenças essencialmente negativas é que muita gente imagina que os ateus sejam meros

fisicalistas

(às

vezes

também

chamados

de

materialistas). O fisicalismo mais primitivo afirma que as únicas coisas que existem são os objetos materiais. Uma versão um pouco menos primitiva afirma que apenas os objetos das ciências físicas – física, química e biologia – existem. A importância dessa segunda formulação é que certas forças fundamentais da física não parecem ser “objetos materiais” no sentido corriqueiro da palavra, embora nenhum fisicalista negue que existam. A maioria dos ateus são fisicalistas apenas em um sentido genérico. Em outras palavras, o ateísmo é motivado apenas em parte pelo naturalismo – a crença segundo a qual existe apenas o mundo natural e nenhum mundo sobrenatural.

Devíamos chamar essa crença de “naturalismo com n minúsculo”

para

distingui-la

de

certas

versões

do

Naturalismo filosófico que fazem asserções muito mais fortes e muito mais específicas. Acredito que essa forma de naturalismo esteja na essência do ateísmo. Esse tipo de naturalismo se adapta confortavelmente à forma de fisicalismo que combina as asserções naturalistas com a asserção extra de que o nosso mundo apresenta uma natureza

essencialmente

física.

No

entanto,

como

o

fisicalismo exige essa asserção extra, não podemos supor que

os

ateus

naturalistas

sejam

necessariamente

fisicalistas. Mesmo que sejam, precisamos entender que a frase

“natureza

compreendida

essencialmente

de

várias

maneiras

física” e

pode

com

ser

diferentes

implicações. Uma forma de compreender essa asserção é dizer que trata de substâncias: da “matéria” de que todas as coisas são feitas. Essa vertente do fisicalismo afirma que a única matéria existente é a matéria física; não existem almas não físicas nem espíritos ou ideias. Essa é a uma versão do fisicalismo a que muitos – senão a maioria – dos ateus subscreveriam. Porém

existe

uma

visão

mais

forte,

chamada

de

materialismo eliminativo. Nessa perspectiva, não apenas a única matéria existente é a matéria física, mas tudo o que não é matéria física na verdade não existe. Assim, não existiriam

coisas

como

pensamentos

ou

ideias.

O

materialismo eliminativo é difícil de engolir porque exige a negação de muitas coisas nas quais parece necessário acreditar. Como vamos negar a existência da mente quando a

existência

dessa

própria

mente

parece

ser

uma

característica tão central da nossa própria existência? Muitos críticos do ateísmo parecem imaginar que os ateus são fisicalistas (uma suposição em muitos casos verdadeira) e que fisicalismo é o mesmo que fisicalismo eliminativo (uma falácia lógica). Assim, valem-se do evidente absurdo do materialismo eliminativo para fazer uma reductio ad absurdum da crença ateísta. Dito de maneira simples, os ateus são representados como niilistas que não apenas negam a existência de Deus mas também a existência de qualquer coisa além dos objetos físicos. Uma existência tão empobrecida teria poucos atrativos. Porém o fisicalismo não implica necessariamente o materialismo eliminativo. Tudo o que o fisicalismo afirma é que a única matéria existente é a matéria física. Isso não significa, por exemplo, que a mente não exista. Significa apenas que a mente, o que quer que seja, não é matéria física. Pensar o contrário é incorrer no que Gilbert Ryle chamou de “erro categórico”. O erro é pensar na mente e na matéria como duas variedades diferentes de uma única categoria, “matéria”. Trata-se de uma concepção falsa. Dentro da minha cabeça não existem dois tipos de matéria – a matéria mental (minha mente) e a matéria física (meu cérebro) – que trabalham em conjunto. Para um fisicalista,

existe apenas um amontoado de matéria dentro da minha cabeça – o meu cérebro. É verdadeiro, em um sentido muito importante, dizer que tenho uma mente e que sou capaz de formar pensamentos e de ter uma consciência. Mas incorro em erro se acho que acreditar que a afirmação “eu tenho uma mente” implica dizer que “sou em parte constituído por uma substância mental não material”. Se isso parecer complicado, pense no amor. Ninguém acha que o amor seja um tipo especial de substância – que exista a matéria física e a matéria do amor. Tampouco se poderia pensar que o amor seja um objeto físico. Mesmo assim, muita gente acredita no amor, sente amor, dá amor e assim por diante. O amor é real, mas não é uma substância. Se não temos problemas com essa ideia, por que teríamos problemas com a ideia de que a mente é real, mas não um tipo particular de substância mental? Muitas coisas reais não são coisas no mesmo sentido de um punhado de matéria, e essa constatação não encerra nenhum mistério metafísico. Estas são águas filosóficas bastante profundas nas quais podemos apenas molhar os pés. Por ora, pretendo apenas enfatizar que os ateus não renegam tudo o que não seja físico, se por “físico” entendermos uma substância física. O que a maioria dos ateus acredita é que, embora exista apenas um tipo de matéria no universo e essa matéria seja física, é dela que vêm nossa mente, nossa beleza, nossas emoções e nossos valores morais – em suma, toda a gama

de fenômenos que enriquece a vida humana. É preciso lembrar que boa parte do ateísmo origina-se não das asserções específicas do fisicalismo, mas das asserções mais amplas do naturalismo. Basta lembrar que o mundo natural é o ambiente natural da consciência, da emoção e da beleza, e não apenas dos átomos e das forças físicas fundamentais. Mais uma vez, a moral da história é que os ateus negam a existência de Deus, mas nem por isso negam a existência de outras coisas.

Uma defesa do ateísmo Meu principal objetivo com este livro é apresentar uma defesa do ateísmo que faça mais do que simplesmente enxovalhar a crença religiosa. Em outras palavras, espero discutir não apenas por que não devemos ser teístas mas também por que devemos ser ateus. Muitos críticos do ateísmo dirão que isso é impossível, uma vez que o ateísmo é um parasita da religião. A evidência estaria no próprio nome – ateísmo é a-teísmo: a negação da crença teísta. Portanto, o ateísmo seria por definição um conceito negativo que depende da existência das mesmas crenças religiosas que rejeita. Penso que essa é uma visão profundamente equivocada. A plausibilidade inicial baseia-se em uma premissa grosseira de

raciocínio

falho

que

podemos

chamar

de

falácia

etimológica. Trata-se de um equívoco que consiste em pensar que podemos entender melhor o significado de uma

palavra se entendermos sua origem. Mas claro que isso nem sempre é verdade. Para dar um exemplo, a palavra “filosofia” vem do grego e significa “amor à sabedoria”. Mesmo assim, não é possível entender o que é a filosofia hoje conhecendo apenas esse fato etimológico. Da mesma forma, se você entra em um restaurante italiano sabendo apenas

que

cappelletti

significa

literalmente

“chapeuzinhos”, não tem uma ideia muito clara do que vai acabar comendo se pedir esse prato. Assim, o simples fato de que a palavra “ateísmo” seja construída como uma negação do teísmo não basta para demonstrar que se trata de um conceito negativo. Deixando a etimologia de lado, podemos ver que essa visão negativa do ateísmo não é mais do que um acidente histórico. Preste atenção nesta história, que começa com fatos e termina com ficção. Na Escócia existe um lago profundo chamado Loch Ness. Muita gente na Escócia – com certeza a maioria dos habitantes do país – acredita que esse lago é apenas mais um como tantos outros. As crenças que nutrem em relação ao lago são o que poderíamos chamar de normais. Mas isso não significa que essas pessoas não tenham nenhuma crença particular. Simplesmente as crenças que têm são tão comuns

que

dispensam

qualquer

tipo

de

elucidação.

Acreditam que o lago é um fenômeno natural de um certo tamanho, que peixes vivem lá dentro e assim por diante. No entanto, certas pessoas acreditam que o lago esconde

uma estranha criatura conhecida como Monstro de Loch Ness. Muita gente afirma ter visto o monstro, embora nenhuma evidência de que exista tenha sido apresentada. Até aqui nossa história baseia-se em fatos. Agora vamos imaginar como poderia seguir adiante. O número de pessoas que acredita no monstro começa a aumentar. Logo uma palavra surge para designá-los: passam a ser chamados de maneira um pouco jocosa de “néssicos”. (Muitos nomes de religiões começaram como apelidos jocosos: “metodista”, “quacre” e até mesmo “cristão” começaram assim.) No entanto, o número de néssicos continua a aumentar e o nome deixa de ser uma piada. Apesar da falta de evidências que levem a crer na existência do monstro, logo o normal é ser néssico, e as pessoas antes consideradas normais passam a ser minoria. Logo elas ganham um nome próprio, “anéssicos” – aqueles que não acreditam no monstro. Seria verdadeiro dizer que as crenças dos anéssicos dependem das crenças néssicas para existir? Isso não pode ser verdade, porque as crenças do anéssicos são mais antigas do que as crenças dos néssicos. Mesmo assim, o essencial não é a cronologia. O essencial é que os anéssicos teriam as mesmas crenças mesmo que os néssicos nunca tivessem existido. O surgimento dos néssicos simplesmente daria nome a um conjunto de crenças que sempre existiu, mas era considerado tão comum que não precisava de um nome especial.

1. Por acaso as pessoas que não acreditam nesta criatura estão sendo negativas?

A moral da história deve estar clara. Os ateus têm uma visão de mundo que inclui diversas crenças a respeito do mundo e das coisas que nele se encontram. Os teístas dizem que existe algo mais – Deus. Se os teístas não existissem, os ateus continuariam a existir, mas talvez não tivessem um nome especial. Porém, como o teísmo predomina em nosso mundo por conta das inúmeras pessoas que acreditam em Deus ou em deuses, o ateísmo passou a ser definido como o oposto do teísmo. Mesmo assim, o ateísmo não depende da religião mais do que as crenças dos anéssicos dependem das crenças dos néssicos. O absurdo de alardear que o ateísmo é um parasita da crença

religiosa

talvez

pareça

mais

evidente

se

considerarmos o que aconteceria se todo mundo deixasse de acreditar em Deus. Se o ateísmo dependesse da religião, certamente não poderia existir sem ela. Porém na verdade

esse mundo imaginado seria o triunfo do ateísmo, e não uma derrota. O ateísmo não precisa da religião mais do que os próprios ateus.

Buzine se for ateu Em resumo, o objetivo deste livro é apresentar uma visão positiva do ateísmo, que não cometa o engano de achar que o ateísmo possa existir apenas como um rival parasita do teísmo, ou que o ateísmo é essencialmente negativo em relação a uma série de crenças além das que dizem respeito à existência de Deus. O ateísmo não é essencialmente negativo em nenhum desses sentidos. Os ateus podem ser apenas indiferentes, e não hostis à crença religiosa. Podem ser mais sensíveis a experiências estéticas, ter valores morais mais elevados e ser mais ligados à natureza do que muitos teístas. Os ateus não têm mais razões para se deprimir ou para abraçar o pessimismo do que as pessoas religiosas. Mesmo assim, não quero cair na armadilha de pintar um retrato cor-de-rosa do ateísmo na tentativa de corrigir preconceitos. Muitos ateus se veem como realistas – o ateísmo é apenas uma parte da vontade de encarar o mundo de frente, sem recorrer a superstições ou a ficções reconfortantes sobre uma vida após a morte ou sobre uma força benevolente que nos protege. Esse grau de realismo nos obriga a aceitar que muito do que acontece no mundo é desagradável. Coisas ruins acontecem, as pessoas levam

vidas miseráveis e você nunca sabe quando o acaso (e não o destino) pode intervir para mudar a sua própria vida, seja para o bem ou para o mal. Por conta disso, muitos ateístas tendem a considerar a alegria incansável e cega um anátema. Os ateus veem uma certa dose de humor negro nos adesivos de carro usados pelos evangélicos que dizem “buzine se você ama Jesus”. Esse adesivo é ao mesmo tempo cômico e deprimente porque reflete a alegre confiança dos religiosos que precisam lembrar a si mesmos da própria crença religiosa para

sentirem-se

melhor

em

relação

ao

mundo.

A

simplicidade grosseira dessa visão de mundo reveste-se de uma comicidade sinistra porque revela a facilidade com que os humanos cedem a imbecilidades reconfortantes. O ateísmo feliz e saltitante é igualmente censurável, mas por sorte o realismo inerente ao ateísmo confere-lhe uma espécie de imunidade. É por isso que você não vê adesivos com “buzine se você for ateu”, ou pelo menos não adesivos que se pretendam sérios. Mesmo assim, na tentativa de derrubar essa caricatura negativa do ateísmo, é preciso ter cuidado para não exagerar na abordagem positiva. A verdade é que não existe nenhuma relação a priori entre ser ateu e adotar uma atitude positiva ou negativa em relação à vida. Ao afirmar que o ateísmo não precisa ser negativo e pode muito bem ser positivo, não estou dizendo que tornarse ateu é um passaporte para a felicidade. Para viver uma vida plena é preciso fazer mais do que isso, e uma das

características marcantes do realismo e do otimismo possíveis no ateísmo é a aceitação de que mesmo essa verdade sóbria não nos impede de alcançar a plenitude.

CAPÍTULO 2 A

DEFESA DO ATEÍSMO

Como fazer a defesa de qualquer coisa Neste capítulo pretendo fazer uma defesa do ateísmo. Mas, antes de começar, quero dizer algumas palavras sobre como fazer a defesa de qualquer ponto de vista em particular. Esse passo é necessário porque, a não ser que tenhamos uma vaga ideia a respeito do que seja uma boa defesa, temos poucas chances de avaliar uma defesa em particular. Nos termos mais amplos possíveis, pode-se fazer uma defesa valendo-se de argumentos, evidências e retórica. Os argumentos podem ser bons ou ruins e se apresentam de várias maneiras, como veremos a seguir. As evidências também podem ser fortes ou fracas. O estranho no ninho aqui é a retórica, porque a boa retórica não torna uma defesa melhor – torna-a apenas mais persuasiva. A retórica é simplesmente o uso da linguagem para fins persuasivos, e pode ser usada para nos persuadir tanto de verdades como de falsidades. Os pregadores religiosos e os políticos tradicionalmente fazem

bom

uso

da

retórica.

Jesus,

por

exemplo,

supostamente disse que “Quem não está a meu favor, está contra mim” (Mateus, 12:30) – uma estratégia retórica retomada por George W. Bush dois mil anos mais tarde quando disse aos outros países: “Ou vocês estão conosco, ou estão com os terroristas”. Essa é uma frase puramente retórica porque, ainda que possa ser persuasiva, não tem nenhum fundamento em fatos ou em argumentos lógicos. Simplesmente não é verdade que uma pessoa que não esteja com Bush ou com Jesus deva necessariamente estar contra eles. É possível estar indeciso, ou ainda relutante em oferecer apoio irrestrito, mas ao mesmo tempo ser receptivo o suficiente para não se virar contra a causa. Porém, ao apresentar a decisão sob essa perspectiva radical, tanto Bush quanto Jesus esperavam fazer com que as pessoas descessem do muro e os apoiassem: “Bem, na verdade eu não estou contra eles, então é melhor apoiá-los de uma vez”. Na exposição a seguir, quero evitar a retórica pura e desmascará-la quando usada contra o ateísmo. Mas acima de tudo quero enfatizar os componentes essenciais a uma boa defesa do ateísmo: a evidência e a argumentação.

A evidência A fala cotidiana recorre constantemente a todo tipo de evidência: “Ouvi no noticiário”, “Vi com os meus próprios olhos”, “Oito em cada dez gatos preferem”. O problema, claro, é que nem toda evidência é boa

evidência. O que caracteriza a boa evidência é um assunto bastante controverso, mas o princípio norteador é que uma evidência é mais convincente se estiver ao dispor de um grande número de pessoas em várias ocasiões; e menos convincente se estiver restrita ao testemunho de um pequeno número de pessoas em um número limitado de ocasiões.

Podemos

ver

como

esse

princípio

funciona

analisando dois exemplos extremos. A evidência de que a água congela a zero grau é um exemplo do melhor tipo de evidência. Em tese, qualquer um pode testá-la sozinho a qualquer momento, e os sucessivos testes tornam a evidência ainda mais convincente. Vejamos agora o outro extremo, muitas vezes chamado de evidência anedótica porque depende do testemunho de uma única pessoa a respeito de um único incidente. Alguém diz que viu o próprio cachorro entrar em combustão espontânea. Será que isso seria uma boa evidência para sustentar a existência da combustão canina espontânea? De maneira alguma, e por vários motivos. Em primeiro lugar, como observou o filósofo escocês David Hume, essa evidência precisa ser comparada à quantidade muito maior de evidências segundo as quais os cachorros não entram em combustão sem motivo. Hume não quer dizer que o testemunho dessa pessoa não seja uma evidência; apenas que é uma evidência insignificante em relação a todas as outras evidências segundo as quais a combustão canina espontânea não ocorre.

Outro motivo para que essa evidência não seja boa é o fato de que infelizmente os seres humanos não são muito bons em interpretar as próprias experiências – em especial se forem experiências inusitadas. Como exemplo, podemos citar a experiência de ver um ilusionista que finge ter poderes reais dobrar uma colher de metal aparentemente sem fazer nenhuma força física. Talvez você ouça as pessoas convencidas por essas experiências dizerem que “viram” o ilusionista entortar a colher “com o poder da mente”. É claro que não viram uma coisa dessas, porque não poderiam ter visto os pensamentos do ilusionista, e portanto não poderiam ter visto os pensamentos dobrarem o metal. O que viram foi uma colher se entortar sem que percebessem o emprego de força física – nada mais. Todo o resto é interpretação. Constatar esse fato não equivale a chamar a testemunha de estúpida ou de mentirosa. Não se trata disso. As pessoas não mentiram – simplesmente se equivocaram; e não são estúpidas, mas apenas vítimas de um embusteiro sagaz. Podemos ver como os méritos desses dois extremos da evidência se comparam ao pensar em como demonstramos que a evidência anedótica é fraca. No caso da combustão canina

espontânea,

a

impossibilidade

de

repetir

o

acontecimento é um dos motivos que nos leva a considerar a evidência anedótica uma evidência fraca. Se os cachorros entrassem em combustão sem nenhuma razão aparente com certa frequência, a evidência seria mais forte, porque

assim estaria disponível para a análise de mais pessoas em diversas ocasiões.

2. Para cortar uma pessoa ao meio é necessário apenas criar uma ilusão; para entortar uma colher, no entanto, poderes psíquicos reais parecem ser necessários. Você está convencido?

Podemos demonstrar uma desconfiança semelhante em relação à força da evidência para o entortamento da colher porque, no momento em que são testados em condições

monitoradas em laboratório, os “poderes” do entortador de colheres desaparecem. Mais uma vez, parece que a evidência não está disponível para análise da mesma forma como a temperatura de congelamento da água está. Minha intenção é sugerir que todas as evidências fortes pesam a favor do ateísmo e apenas as evidências fracas pesam contra. Em qualquer outro caso, essa simples constatação bastaria para determinar que o ateísmo é verdadeiro. A situação é comparável a dizer que a água congela a zero grau; todas as evidências fortes corroboram a tese. Apenas as evidências fracas de anedotas, mitos, boatos e ilusionistas pesam contra.

Ausência e evidência Se incorrermos no erro de ver o ateísmo puramente como uma oposição ao teísmo, podemos ter a impressão de que as evidências a favor do ateísmo resumem-se às evidências contra a existência de Deus. No entanto, como vimos no Capítulo 1, o ateísmo é essencialmente uma forma de naturalismo,

e

portanto

baseia-se

na

evidência

do

naturalismo. Essa evidência não é nada além de uma evidência contra a existência de Deus em um sentido negativo: em outras palavras, como não encontramos evidências de que Deus exista, não temos razão para acreditar que exista. Esse tipo de argumento não costuma ser suficiente para quem apela para o princípio de que “a ausência de

evidência não é uma evidência da ausência”. Mas as coisas não são tão simples quanto uma frase de efeito. Vamos analisar a possível existência de manteiga na minha geladeira. Sem abrir a porta e dar uma olhada lá dentro, a evidência

que

poderia

fundamentar

a

existência

da

manteiga estará ausente, mas esse fato não serve como evidência da ausência. Se olhamos para o interior da geladeira e o examinamos bem e não encontramos nenhuma

manteiga,

então

temos

uma

ausência

de

evidência que de fato serve como evidência da ausência. Na verdade, é difícil imaginar que outra evidência poderia haver

para

a

ausência

de

uma

coisa

além

da

impossibilidade de encontrar qualquer evidência de sua presença. Uma coisa que não existe não deixa marcas, então apenas essa ausência de marcas da existência pode servir como evidência da inexistência. A diferença entre a ausência de evidência quando não abrimos a porta da geladeira e a ausência depois que a abrimos é simples: no primeiro caso, trata-se de um fracasso na simples busca da evidência onde esta poderia encontrar-se; no segundo, a ausência deve-se ao fracasso na

descoberta

da

evidência

onde

esta

poderia

ser

encontrada se de fato existisse. Esse último tipo de ausência é uma forte evidência da ausência. Pense a respeito: a evidência mais forte de que não há um elefante dentro da sua geladeira é que, ao abrir a porta, você não encontra nenhum indício desse animal.

Assim, a evidência para o ateísmo reside no fato de que existe um amplo leque de evidências para a verdade do naturalismo e uma ausência de evidências para todo o restante. “O restante”, é claro, inclui Deus, mas também goblins, hobbits e desodorantes que realmente durem 48 horas. Nesse sentido não há nada especial a respeito de Deus. Deus é apenas mais uma das coisas em que os ateus não acreditam – mas, por razões históricas, é aquilo que serviu para descrevê-los.

A evidência a favor do ateísmo Agora estamos prontos para analisar quais são as evidências que sustentam o naturalismo e, portanto, o ateísmo. A afirmação que pretendo fazer é a de que todas as evidências fortes corroboram a verdade do ateísmo e apenas evidências fracas se opõem a ele. Talvez pareça uma afirmação categórica demais, porém mesmo assim acredito que seja justificada. Pense a respeito de uma das grandes questões em que a evidência tem alguma coisa a oferecer: a natureza das pessoas. O naturalismo dos ateus consiste em encarar o ser humano como um animal biológico, e não como uma espécie

de

alma

espiritual

encarnada,

como

muitos

religiosos pensam. Essa é uma afirmação mínima, que oferece diversas maneiras de levar o raciocínio adiante. Certos ateus acreditam que os seres humanos são apenas animais como quaisquer outros, e que em nada diferem dos

outros bichos. Outros, no entanto, embora acreditem que os seres humanos são animais biológicos, acreditam que certas aptidões, como a consciência e o pensamento racional, tornam-nos essencialmente diferentes dos outros animais. A ideia

do

“excepcionalismo

humano”

sempre

foi

uma

vertente forte no humanismo ateísta. A questão não é resolver a disputa, mas simplesmente constatar que tanto os ateus excepcionalistas quanto os ateus que criticam essa postura concordam que, não importa qual seja a natureza exata dos seres humanos, nós somos acima de tudo criaturas mortais que não têm almas imortais e espirituais. Qual seria a evidência para essa afirmação? Pense em primeiro lugar na evidência forte. Todas as evidências fortes a respeito dos seres humanos apontam para uma natureza biológica. A consciência, por exemplo, permanece um mistério sob vários aspectos. Mesmo assim, sabemos com certeza que a consciência é produto da atividade cerebral e que, sem cérebro, não existe consciência. Na verdade, essa é uma constatação tão óbvia que quaisquer dúvidas a esse respeito deviam ser tratadas como motivo de espanto. Os dados apresentados por exames neurológicos provam que todas as experiências ligadas

à

consciência

estão

relacionadas

a

padrões

específicos de atividade cerebral. A palavra-chave aqui, naturalmente, é “relacionadas”. Dizer que a atividade cerebral e as experiências conscientes estão relacionadas significa apenas dizer que uma sempre

acompanha a outra. Não significa dizer que uma é a causa da outra. A noite sempre vem depois do dia, por exemplo, mas não é causada pelo dia. Mesmo assim, embora seja verdade que uma relação não indique necessariamente uma causa, no caso do cérebro e da consciência a ligação entre os dois é pelo menos de dependência. Em outras palavras, se você inibe ou danifica uma área do cérebro relacionada a uma forma específica de atividade da consciência, essa atividade cessa. (E, por mais estranho que pareça, o estímulo de certas áreas do cérebro às vezes pode induzir atividades involuntárias da consciência. Com o estímulo da área do cérebro associada ao humor, por exemplo, você pode

fazer

uma

outra

pessoa

achar

qualquer

coisa

hilariante.) Mesmo que não possamos ver o que os outros estão pensando, o certo é que, quando o cérebro de alguém para de funcionar, essa pessoa deixa de exibir todos os sinais de vida consciente. Se existe alguma coisa que nos distingue uns dos outros como

indivíduos,

consciência

e

deve

para

o

ser

a

nossa

pensamento

aptidão

racional.

para Se

a

essa

capacidade depende apenas dos nossos cérebros orgânicos – e existem fortes evidências de que assim seja –, a visão ateísta de que somos organismos biológicos e mortais encontra-se muito bem fundamentada. Para muitos ateus o assunto pode ser dado por encerrado a essa altura, pois as evidências que sustentam a tese de que somos criaturas mortais é esmagadora. Mas os teístas

em geral fazem duas objeções nesse ponto. Uma é acusar os ateus de serem muito cheios de si, uma vez que não compreendemos a natureza exata da relação entre a consciência e o cérebro. A outra é apresentar supostas evidências contrárias. No entanto, uma análise dessas evidências contrárias revela que são todas extremamente fracas. Se fôssemos listar as evidências de que a consciência pode continuar a existir após a morte do cérebro, teríamos de arrolar evidências como o testemunho de médiuns, supostas aparições de fantasmas e experiências de quase-morte. Evidências melhores sequer estão disponíveis, já que nenhuma pessoa morta foi capaz de se comunicar com os vivos de maneira a apresentar evidências fortes de que exista. Todas essas formas de evidência são extremamente fracas. Médiuns não são confiáveis. É verdade que certas algumas pessoas acreditam ter se comunicado com entes queridos graças ao auxílio de médiuns, mas esse tipo de convicção pessoal não é uma evidência forte. As pessoas têm

necessidades

fomentar

uma

circunstâncias

emocionais

predisposição normais,

profundas a

seriam

crenças

capazes que,

consideradas

de em pura

ingenuidade – mas que, no caso da perda de uma pessoa querida, sem dúvida merecem um nome mais solidário. Além do mais, nenhum médium jamais foi capaz de nos dizer coisas que provassem além de qualquer dúvida que

estivesse a par das informações do “mundo espiritual”. As aparições de fantasmas são ainda menos convincentes, e as experiências de quase-morte tampouco apresentam boas evidências de que sejamos capazes de sobreviver à morte. O próprio nome – experiência de quase-morte – deixa isso claro. Nesse ponto os teístas provavelmente vão reagir com algumas evidências que, segundo pensam, o ateu não poderá contestar. O que dizer a respeito do médium que indicou o local onde estava o corpo de uma criança assassinada, se nenhuma pessoa viva dispunha dessa informação? Por que a polícia usa médiuns se não são confiáveis? Como você explica que o médium tenha dito à viúva uma coisa que somente o falecido marido poderia saber? Ao exigir que o ateu refute caso a caso todas as supostas evidências de vida depois da morte, o teísta está fazendo uma exigência injusta. É simplesmente impossível que alguém avalie todas as alegações individuais que são feitas. Mas a perspectiva do ateu não exige essa demolição passo a passo. Em vez disso, o ateu pode responder invocando princípios gerais. A primeira coisa a dizer é que, quando examinadas de perto, quase todas essas evidências revelam-se muito mais fracas do que parecem. Como disse David Hume, temos uma tendência natural a nos encantar com maravilhas e mistério, e essa tendência fomenta um forte desejo de

acreditar em histórias sobrenaturais. Os ateus podem dizer com razão que, se em todos os casos analisados de perto encontram-se evidências de que não são o que pareciam ser a princípio, é razoável supor que todos os casos similares trarão apenas evidências fracas a não ser que se prove o contrário. Assim, o ônus recai sobre os teístas, que deixam de poder exigir explicações dos ateus e veem-se obrigados a fazer uma defesa, e não apenas a repetir boatos. Mas a segunda resposta é ainda mais importante. Todas as evidências apresentadas para a existência da vida depois da morte são do tipo fraco. Nenhum dos supostos casos de comunicação com os mortos fornece-nos nada que se pareça com os dados observáveis e verificáveis que caracterizam a evidência forte. A questão para os teístas, portanto, deve ser a seguinte: como o número reduzido de evidências fracas para a vida depois da morte poderia sobrepor-se à montanha de evidências fortes para a mortalidade da consciência humana? Se as evidências para a vida depois da morte fossem do tipo forte, a raridade da ocorrência não faria a menor diferença. Se, por exemplo, alguém diante de uma sala repleta de pessoas se matasse, ateasse fogo em si mesmo e continuasse a falar com a plateia

e

a

interagir

normalmente,

os

ateus

seriam

obrigados a reconsiderar as crenças que nutrem em relação à mortalidade humana, mesmo que se tratasse de um caso único. Mas nenhuma das evidências para a vida depois da

morte chega sequer perto desse nível de força. Parece apenas que certas pessoas estão dispostas a dar mais importância a evidências fracas e anedóticas do que às fortes evidências para a nossa mortalidade. Eis por que até mesmo os casos raros de evidência genuinamente intrigante para a vida depois da morte não funcionam com os ateus. Mesmo que num caso pontual (ou talvez em uma dúzia) um médium tenha dito alguma coisa que apenas os mortos poderiam saber, essas evidências fracas e irrepetíveis perdem-se em meio ao grande acúmulo de evidências fortes para a mortalidade do ser. Não podemos esquecer que todos os dias milhões de alegações são feitas por médiuns. O próprio acaso se encarrega de fazer com que uns poucos pareçam sobrenaturais. Seria tolice

achar

que

exemplos

individuais

dessas

“comunicações” são evidências mais fortes do que tudo o que sabemos a respeito da mortalidade humana. Ao escrever esta seção, sinto que os meus argumentos serão inúteis diante de um forte desejo pela vida após a morte ou de uma forte crença nesse fenômeno. Isso nos leva de volta à questão da ausência de evidência e da evidência da ausência. Assim como uma pessoa que sofre de transtorno obsessivo-compulsivo nunca pode ter certeza de ter chaveado a porta, independente de quantas vezes faça a conferência, uma pessoa que acredita na vida após a morte nunca pode ter certeza de que essa possibilidade foi excluída de uma vez por todas, independente de quantas

tenha

reexaminado

as

evidências.

Sempre

existe

a

possibilidade lógica de que a “evidência definitiva” possa surgir – uma evidência forte e verificável de que não somos mortais. Essa eterna possibilidade nutre a crença e a esperança daqueles que querem acreditar na vida após a morte. O problema é que essas possibilidades eternas poderiam existir

para

muitas

outras

crenças.

Para

dar

alguns

exemplos, é possível que amanhã seja revelado que você viveu a vida inteira em uma máquina de realidade virtual; que alienígenas vêm preparando uma invasão da Terra durante os últimos cem anos; que o papa é um robô; que a Missão Apollo nunca chegou à lua e que tudo foi filmado em um estúdio; que os cristãos evangélicos estavam certos e que o Dia do Julgamento chegou. Porém, a simples possibilidade de que essas coisas possam acontecer não é razão para acreditar nelas. Na verdade, a evidência disponível sugere fortemente que essas hipóteses sejam falsas, e isso devia ser motivo suficiente para desacreditálas. Por isso a alegação de que os ateus exageram na descrença é injustificada. As pessoas dizem que, como os ateus não podem jamais ter certeza de que não existe vida após a morte, seria uma tolice excluir essa possibilidade. No máximo poderiam suspender a crença, como fazem os agnósticos.

(Curiosamente,

muitas

das

pessoas

que

afirmam que os ateus deviam ser agnósticos são religiosas.

Nesse caso, para que fossem coerentes, não deviam abraçar o agnosticismo também?) Mas essa política seria irresponsável, uma vez que para aplicá-la de maneira coerente você teria de ser agnóstico em relação a qualquer assunto em que houvesse uma possibilidade de erro, porque não existe certeza absoluta e sempre é possível que novas evidências surjam e provem que você está errado. Mas ninguém afirma que deveríamos dizer “Eu não acredito nem desacredito que o papa seja um robô”, ou então “Quanto à possibilidade de que ao comer um pedaço de chocolate eu possa me transformar em um elefante, sou completamente agnóstico”. Na ausência de qualquer boa razão para acreditar nessas possibilidades absurdas, simplesmente as desacreditamos em vez de suspender nosso julgamento.

O ateísmo e o dogmatismo Muitas pessoas que afirmam que os ateus deviam ser agnósticos confundem o que vou chamar de “crença firme” com dogmatismo. No âmago da distinção entre os dois encontra-se o termo técnico “falsificabilidade”. Crenças ou verdades

são

falsificáveis

quando

estão

sujeitas

à

possibilidade de que se prove que estão erradas. Crenças ou verdades falsificáveis são, portanto, aquelas para as quais não existe possibilidade de prova em contrário. A divisão precisa entre o falsificável e o infalsificável é uma questão filosófica espinhosa. Em geral, verdades

analíticas como o fato de que 1 + 1 = 2 e a afirmação de todos os homens não casados são solteiros – asserções que parecem verdadeiras em função do que dizem – são consideradas infalsificáveis, enquanto afirmações factuais sobre a natureza do mundo em geral são consideradas falsificáveis. Dessa maneira é possível, embora improvável, que o sol não nasça amanhã (o que torna a crença no nascer do sol falsificável), mas nada pode fazer com que 1 + 1 não seja 2 (de maneira que essa afirmação é infalsificável). No entanto, diversos filósofos, em especial W.V.O. Quine, sustentaram que mesmo as verdades básicas da matemática são falsificáveis. Não podemos excluir a possibilidade de encontrar razões para dizer que 1 + 1 nem sempre é 2. Por sorte, não precisamos mergulhar nessas águas profundas. Só o que precisamos fazer é tomar emprestada a ideia da falsificabilidade para explicar a diferença entre o dogmatismo e a crença firme. Ser dogmático é basicamente sustentar que as próprias crenças são infalsificáveis mesmo quando essa relutância em contemplar a possibilidade de estar errado não se justifica. Um ateu dogmático, portanto, acredita que Deus não existe e que não há possibilidade de que essa crença esteja errada. Um teísta dogmático, de modo semelhante, acredita que Deus existe e que não há possibilidade de que essa crença esteja errada. Seria justo afirmar que as crenças de ambos os tipos de dogmáticos carecem de justificativa, uma vez que nenhum dos dois

pode ter certeza absoluta de estar certo. Mas isso não significa que os ateus devam tornar-se agnósticos.

Significa

apenas

que

devem

admitir

a

falsificabilidade da crença que têm: e para tanto precisam apenas reconhecer que podem estar errados. Isso não é agnosticismo. De fato, é possível ter crenças muito firmes e mesmo

assim

reconhecer

que

essas

crenças

são

falsificáveis. Nem mesmo um ateu que afirme não ver bons motivos para ser outra coisa senão ateu e declare-se incapaz de imaginar uma situação que pudesse levá-lo a abandonar essa crença está sendo dogmático enquanto reconhecer a possibilidade de estar errado. Mas, claro, para estar

livre

do

dogmatismo

é

preciso

reconhecer

sinceramente essa possibilidade, não apenas fazer de conta. Desde que essa sinceridade esteja presente, não existe razão para que não se possa ter uma crença firme no ateísmo e assim trilhar o caminho do meio entre o agnosticismo injustificado e o dogmatismo. Por que esse caminho do meio é tantas vezes esquecido? Acho que tudo isso faz parte de um mito coletivo que remonta a filósofos como Platão e postula que ou o conhecimento é absoluto ou sequer é conhecimento. Temos uma tendência natural a pensar que a abertura de espaço para a dúvida é o bastante para justificar a suspensão das nossas crenças. Se você não tem certeza, é melhor não ter opinião. Mas essa máxima não pode ser levada a sério. Não podemos ter certeza absoluta de nada, a não ser talvez de

que existimos (e mesmo assim apenas enquanto temos consciência desse fato). Se a crença em coisas sobre as quais não temos certeza absoluta é injustificada, então precisamos suspender todas as nossas crenças em relação a tudo. Mas essa não é a moral correta a ser apreendida do truísmo segundo o qual a verdade absoluta é fugaz. A possibilidade de que estejamos errados não nos impede de ter boas razões para achar que estamos certos. Sou contra o dogmatismo ateísta e contra o dogmatismo teísta. Na verdade, acredito que posturas dogmáticas de qualquer natureza são em geral mais perigosas do que as opiniões em si. Ateus inteligentes em geral têm muito mais em comum com os teístas não dogmáticos do que se poderia imaginar.

Inferências a favor da melhor explicação Até este ponto argumentei que o ateísmo é a visão de mundo mais bem sustentada pelas evidências da nossa experiência e que o fato de que essas evidências não sejam infalíveis serve apenas para rejeitar a crença dogmática, não para suspender toda sorte de crença e abraçar o agnosticismo. Como esse argumento talvez pareça fraco para certas pessoas, acho que vale a pena explicar de maneira um pouco mais detalhada por quê, na verdade, é o tipo de argumento mais adequado para o assunto em pauta. Para

isso é necessário apenas refletir sobre como raciocinamos a respeito dos fatos em geral. O método mais comum chama-se indução. A indução consiste

em

argumentar

com

base

em

experiências

passadas ou presentes de maneira a tirar conclusões sobre coisas que ainda não foram observadas, seja no passado, no presente ou no futuro. Esses argumentos baseiam-se na uniformidade da natureza – na ideia de que as leis naturais não param de operar e não sofrem alterações. Cabe ressaltar que isso não equivale a dizer que a natureza é sempre previsível. Essa seria uma asserção ingênua. Muitos eventos na natureza são imprevisíveis ao extremo. Mesmo assim, esse comportamento imprevisível não viola as leis naturais.

Mudanças

climáticas

inesperadas

inexplicáveis.

3. Um ato supremo de fé, se por fé entendermos toda e qualquer crença que não 00%

d

não

são

possa ser 100% provada.

Todos nós fazemos uso desses pressupostos sobre a uniformidade da natureza a cada momento do dia. Mesmo que você não esteja fazendo nada, sempre pode relaxar sabendo que a gravidade não vai deixar de manter você sentado, que o material da poltrona não vai se derreter de repente e que o chá que você está bebendo não vai envenená-lo. Mas a nossa confiança nesse princípio não encontra respaldo na lógica pura. A premissa “É assim que as coisas sempre foram quando observadas” não nos permite concluir “É assim que as coisas sempre foram, são e

serão”.

Assim,

uma

criança

que

acredita

que

os

brinquedos ganham vida enquanto dorme mas não quando está acordada não incorre em nenhum erro lógico: nenhum fato observável durante a vigília pode oferecer provas suficientes de que a mesma coisa acontece enquanto dorme. Mesmo assim, acreditamos que a criança está enganada, pois temos consciência de que dependemos completamente de argumentos indutivos para compreender o mundo ao nosso

redor.

Os

ateus

podem

argumentar

que,

se

aplicarmos esse método indutivo de maneira consistente, a causa

que

apoiam

ganha

mais

força.

A

experiência

demonstra que vivemos em um mundo governado por leis naturais e que tudo o que acontece pode ser explicado em função dos fenômenos naturais. É verdade que certas coisas permanecem inexplicadas, mas os ateus podem argumentar que, quando surge uma explicação para o inexplicável, essa

explicação é sempre naturalista. A experiência demonstra que as boas explicações são explicações naturalistas. Assim,

é

improvável

que

a

classe

de

fenômenos

inexplicados contenha qualquer coisa que venha a ser explicada com base no sobrenatural. A indução fundamenta a crença dos ateus porque é um método de argumentação confiável, tanto para os ateus como para os religiosos. Sendo assim, nem mesmo os teístas podem rejeitar a indução. No entanto, se aceitamos a indução, deveríamos aceitar também que o método aponta para o naturalismo que sustenta o ateísmo, não para o sobrenaturalismo que sustenta o teísmo. O fato de que os argumentos indutivos não trazem certezas absolutas é uma verdade inelutável com a qual precisamos viver, uma vez que precisamos viver com a incerteza da indução se queremos agir no mundo – mesmo que seja para fazer algo tão simples como sentar. Existe um segundo tipo de argumento que se baseia em evidências mas não admite provas no sentido estrito, e esse argumento adquire grande importância no debate entre ateus e teístas: a abdução. A abdução também é conhecida pelo nome mais descritivo de “inferência a favor da melhor explicação”. Embora os argumentos abdutivos façam uso do princípio indutivo segundo o qual o passado, o presente e o futuro não observados se assemelham ao passado e ao presente, a estrutura desses argumentos é distinta. Em resumo, um argumento abdutivo examina um fenômeno ou

um conjunto de fenômenos para o qual existe mais de uma explicação possível e tenta determinar qual das explicações é a melhor. Não existe uma fórmula mágica capaz de estabelecer qual é a melhor explicação, mas em geral as melhores explicações são mais simples, mais coerentes e mais abrangentes do que as outras. É provável que possam ser testadas ou ainda usadas para fazer previsões. Esses argumentos não são conclusivos: a possibilidade de que uma das explicações menos prováveis seja a correta permanece para sempre em aberto. Mas, assim como a indução, a abdução é imprescindível. Se esse tipo de argumentação é incapaz de nos assegurar uma conclusão verdadeira, temos de aprender a viver com isso. No que diz respeito à natureza do universo e à existência de fenômenos sobrenaturais, parece-me claro que podemos contar apenas com o método abdutivo. O motivo é simples: existem várias explicações para a maneira como o mundo se apresenta para nós, e como essas explicações entram em conflito umas com as outras é impossível que sejam todas verdadeiras. Seria querer demais imaginar que justamente essa ou aquela explicação fosse a verdadeira. Como disse Derrida, “Se as coisas fossem simples a notícia teria corrido”. Sendo assim, o melhor a fazer é analisar as opções e decidir que explicação melhor se ajusta aos fatos. Este breve livro introdutório não pretende examinar os méritos de todas as várias explicações para a maneira com o mundo se apresenta para nós. Tudo o que posso fazer aqui

é oferecer uma amostra de por que a visão de mundo ateísta é a melhor explicação. Em primeiro lugar, é uma explicação simples, porque não requer que se postule a existência de nada além do mundo natural. As opções concorrentes exigem que se postule a existência de um mundo sobrenatural inobservado. Essa dimensão extra não apenas consiste em uma extravagância metafísica como torna as afirmações quanto à existência do sobrenatural menos testáveis, uma vez que o mundo sobrenatural é por definição inobservável. É verdade que existem pessoas que se consideram ao mesmo tempo religiosas e naturalistas, mas não sei até que ponto essas pessoas efetivamente discordam dos ateus. A visão de mundo dos ateus também é mais coerente, porque nela tudo o que existe no universo cabe em uma única esfera do ser. Os que postulam a existência de um domínio sobrenatural precisam explicar como esse domínio e o mundo natural interagem e coexistem. Essa visão é por natureza mais fragmentada do que a visão unificada dos ateus. O

ateísmo

também

apresenta

um

forte

potencial

explicativo no que diz respeito à existência de crenças religiosas divergentes. A melhor explicação para que religiões diferentes tenham convicções diferentes a respeito de Deus e do universo ao redor do mundo é que a religião seja um construto humano que não corresponde a nenhuma realidade metafísica. A outra opção implicaria a aceitação

de que, apesar das muitas religiões existentes, apenas uma (ou uma pequena quantidade) estaria correta. Não adianta dizer que as religiões são diferentes caminhos para uma verdade única: precisamos aceitar que as religiões batem de frente umas com as outras e que se alguém se dispusesse a procurar os pontos comuns a todas as religiões encontraria muito pouca coisa. Hindus e cristãos não adoram o mesmo Deus porque, para começar, os hindus não acreditam em um Deus único. Cristãos e muçulmanos discordam em um ponto fundamental, porque os primeiros veem Cristo com o messias, mas os últimos não. Dada a importância de Cristo para a fé cristã, seria necessário falsificar uma das doutrinas para chegar à conclusão de que o Islã e o Cristianismo no fundo são igualmente verdadeiros. Essa comparação das melhores explicações pode ser aplicada a itens particulares. O que melhor explica a existência do mal no mundo? Você pode escolher a hipótese ateísta de que, como somos apenas criaturas evoluídas, não há

nenhuma

expectativa

de

que

o

mundo

seja

necessariamente um lugar bom, ou a explicação religiosa, que exige diversos raciocínios complexos para conciliar a crença de que o universo foi criado por um Deus bondoso com os terríveis sofrimentos e injustiças que existem nessa Criação. O que melhor explica a relação entre a consciência e a atividade cerebral? Você pode escolher a hipótese ateísta de que a consciência é produto da atividade cerebral ou uma

história implausível sobre como espíritos imateriais levam uma existência paralela e interagem com o cérebro, segundo a qual a dependência da consciência em relação à atividade cerebral milagrosamente desaparece no instante da morte, quando a alma passa a viver sem o corpo. O que melhor explica a força do impulso sexual? Você pode escolher a hipótese de que esse impulso surgiu porque aumentava as chances de sobrevivência de um gene ou organismo ou a hipótese segundo a qual Deus nos fez safados em uma tentativa perversa de nos tornar mais suscetíveis ao pecado. Em todos esses exemplos, a melhor explicação para a maneira

como

o

mundo

se

apresenta

e

parece

se

apresentar a nós é um fenômeno natural, e mesmo que essas

explicações

possam

ser

incompletas,

qualquer

explicação que introduza um elemento sobrenatural é bem menos plausível e certas vezes corre o sério risco de cair no ridículo. Visto que o método abdutivo é a forma mais adequada de se argumentar sobre a natureza fundamental do mundo em que vivemos, a defesa do ateísmo ganha força.

O ateísmo é uma posição de fé? Agora estamos em condição de rejeitar a frequente alegação de que o ateísmo é apenas uma posição de fé como a crença religiosa. Essa é uma alegação interessante, porque se o ateísmo é uma posição de fé “tal como” a

crença religiosa, os religiosos não estão em condição de criticar os ateus pelas crenças que nutrem. Na verdade, os religiosos deveriam perguntar-se se é inteligente seguir essa linha de ataque: se as crenças que nutrem e todas as demais crenças resumem-se a posições de fé, será que não caímos em uma espécie de relativismo em que não existem fundamentos para que se possa estabelecer a verdade ou a falsidade de qualquer sistema de fé e em que ficamos limitados a acreditar “no que funciona melhor para cada um”? Essa atitude é especialmente estranha porque um dos versículos da Bíblia mais repetidos pelos cristãos é “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (João, 14:6). Jesus supostamente não disse “Eu sou um caminho, uma verdade e uma vida. As pessoas podem vir ao pai como bem entenderem”. Tampouco encerrou o discurso dizendo, “Mas isso tudo é apenas o que eu acredito – a fé de vocês pode ser diferente”. Seja como for, podemos deixar todas essas questões de lado, pois o ateísmo simplesmente não é uma posição de fé. Para entender por quê, precisamos apenas nos perguntar o que diferencia a fé da razão. Quando as pessoas dizem que o ateísmo é uma posição de fé, muitas vezes parecem estar pensando que, como não existem provas para o ateísmo, uma outra coisa – fé – seria necessária para justificar a crença no ateísmo. Fazer uma afirmação dessas é cometer um equívoco em relação ao

papel das provas na justificativa de uma crença. Nem sempre precisamos de fé para preencher as lacunas entre as provas e as crenças. O ponto fulcral é justamente o que venho enfatizando ao longo de todo o meu argumento: não existem provas absolutas para a maioria esmagadora das nossas crenças, mas a falta dessas provas não é motivo para suspendermos nossa crença. Isso acontece porque, mesmo ao nos defrontarmos com a ausência de provas absolutas, podemos ter evidências contundentes ou ainda uma explicação muito melhor do que as outras. Quando temos esse tipo de fundamento para a crença, a fé torna-se desnecessária. Não é a fé que justifica minha crença de que beber água limpa e fresca faz bem, mas a evidência. Não é a fé que me diz que não é uma boa ideia pular da janela de prédios altos, mas a experiência. Se afirmamos que a fé está envolvida em exemplos como esses, uma vez que supostamente o compromisso com qualquer tipo de crença ou de ação que não seja provada exige fé, na verdade estamos roubando a fé de sua característica mais marcante. Se a fé é isso, então não existe diferença entre as questões de fé e as nossas outras crenças. Tudo se transforma em uma questão de fé, a não ser talvez por verdades evidentes como o fato de que 1 + 1 = 2. Certas pessoas talvez recebam essa ideia de braços abertos. Mas, além de roubar a fé de sua natureza

particular,

essa

abordagem

traz

um

novo

problema.

Diferentes graus de verdade passam a ser necessários, uma vez que é preciso menos fé para acreditar no poder refrescante da água do que para acreditar no poder salvador de Cristo. Mas, nesse caso, dizer que as crenças de um ateu são “questões de fé” torna-se uma objeção vazia. Se tudo é uma questão de fé, esse fato passa a ser trivial. Para torná-lo não trivial é necessário demonstrar de que maneira as crenças dos ateus exigem pelo menos um grau idêntico de fé em relação às crenças dos religiosos. Mas isso não pode ser demonstrado, porque a posição ateísta baseiase em evidências e argumentos a favor da melhor explicação. Os ateus acreditam naquilo em que têm boas razões para acreditar e não acreditam em entidades sobrenaturais

nas

quais

existem

poucas

razões

para

acreditar, todas elas fracas. Se essa é uma posição de fé, então a quantidade de fé necessária é extremamente pequena. Quando comparamos essa situação com a atitude das pessoas que acreditam no sobrenatural podemos ver o que é uma verdadeira posição de fé. A crença no sobrenatural é uma crença em algo que carece de boas razões para merecer crédito. Na verdade, em certos casos é uma crença em algo que contraria todas as evidências disponíveis. A crença na vida depois da morte, por exemplo, é contrária às fartas evidências que indicam que as pessoas são criaturas mortais.

Isso mostra o ponto exato onde acredito estar a linha que separa as posições de fé das simples crenças. Não se trata de provas, mas de crenças que estão de acordo com as evidências, a experiência e a lógica, ou de crenças que ignoram ou contrariam as evidências, a experiência e a lógica. O ateísmo não é uma posição de fé porque consiste apenas em uma crença que se limita ao que é baseado em evidências e argumentos, enquanto a crença religiosa é uma posição de fé porque vai além das evidências e dos argumentos. É por isso que a fé exige um elemento “especial” que não está presente em uma simples crença. Essa interpretação da fé está de acordo com a mensagem das duas grandes parábolas cristãs da fé – as histórias de Abraão e de Tomé. Tomé era discípulo de Jesus e tornou-se famoso por duvidar de que Jesus tivesse se erguido dos mortos, como outros seguidores de Jesus haviam afirmado. Tomé não tinha fé na morte de Jesus. Na verdade, faltavalhe a fé para acreditar que houvesse se erguido dos mortos. A assimetria deve-se ao fato de que nenhuma fé é necessária para acreditar em algo que é demonstrado por todas as evidências, mas a fé é necessária para acreditar em algo que vai contra a nossa experiência e as evidências de que dispomos. Tomé só acreditou depois de ver Jesus e colocar as mãos sobre as feridas. A moral da história é que são “Felizes os que não viram e creram” (João, 20:29). Assim a Cristandade endossou o princípio de que é bom acreditar naquilo em que não temos nenhum fundamento

para acreditar – uma máxima um tanto conveniente para um sistema que não dispõe de boas evidências. Abraão foi instado a sacrificar o único filho a Deus em um teste de fé. Na profunda análise que escreveu sobre a história, Kierkegaard afirma que a grandiosidade do teste não reside na matança em si. Afinal, a vontade de Deus deve ser boa, e se você tem uma fé verdadeira sabe que, a longo prazo, terá feito o melhor para você mesmo e para o seu filho. Mas o teste exige uma fé imensa porque vai contra tudo o que Abraão sabe sobre Deus, sobre a moralidade e sobre a bondade. A razão e a experiência indicam que Deus jamais exigiria um sacrifício humano. Mesmo assim, foi o que Deus fez. Será que Abraão foi enganado? Será que Deus estaria testando Abraão de maneira diferente? Será que deveria subverter a ordem e assim provar a própria bondade? Ou será que não é Deus, mas o diabo quem faz o pedido? Abraão precisa da fé para seguir adiante, porque o pedido desafia a razão. A situação dos ateus e dos religiosos, portanto, é muito diferente. Apenas a crença religiosa exige fé porque apenas a crença religiosa postula a existência de entidades em cuja existência não temos nenhum bom motivo para crer. É um erro elementar supor que, por serem “duvidosas” ou “incertas”, as crenças dos ateus também exigem fé. A fé não serve para preencher a lacuna entre as razões para crer e as provas definitivas, mas para sustentar crenças que carecem

de

embasamento

em

evidências

ou

em

argumentos. É por esse motivo que, como dizem os textos religiosos mais tradicionais, a fé não é tão simples como uma crença qualquer. Ou, como dizem os ateus, é por esse motivo que a fé é estúpida.

Faça suas apostas Um dos argumentos mais curiosos para a crença religiosa é a aposta de Pascal. Essa aposta começa com a suposição de que não podemos ter certeza quanto à existência ou à inexistência de Deus. A seguir, conclui que, dada a situação de incerteza, é melhor acreditar do que não acreditar, uma vez que os riscos da descrença (a danação eterna) são muito maiores do que os riscos da crença (perder nosso tempo com a devoção religiosa); e caso Deus exista a recompensa da fé (a vida eterna) é muito maior do que a recompensa da descrença (mais diversão aqui na Terra) caso Deus não exista. A aposta é tendenciosa porque exclui uma análise probabilística dos vários resultados possíveis. A maioria dos ateus diria que as chances de que exista um Deus disposto a nos mandar para o inferno se nos recusarmos a adorá-lo são tão ínfimas que sequer vale a pena fazer essa aposta. Mas talvez o maior problema seja que, com tantas religiões no mundo, a aposta não nos diz que religião seguir. Será que Deus não ficaria mais irado com as pessoas que o adoram da maneira errada do que com aquelas que simplesmente não o adoram?

Vamos rever a aposta de Pascal e ver o que um apostador de

verdade

faria.

Para

começar,

vamos

possibilidade de que um Deus de amor

admitir

a

bondoso

e

onipresente exista. Dada essa possibilidade, o que devemos fazer? Sem dúvida a prioridade de um Deus como esse seria a bondade. Se existe uma espécie de seleção na vida após a morte, com certeza o principal critério deve ser a virtude. Nesse caso, a melhor aposta seria agir bem. Parece improvável que um Deus com essas características fosse mandar as pessoas para o inferno: afinal, sabemos que a maioria das pessoas ruins são indivíduos sofridos, que muitas vezes tiveram infâncias terríveis. Mandá-las para o inferno seria uma crueldade – um Deus de amor sem dúvida reabilitaria essas pessoas. E, como os agentes penais afirmam com frequência, a reabilitação não se dá por meio da tortura. Então o nosso medo do inferno seria muito pequeno. E quanto à adoração? Parece bem estranho que um ser supremo pudesse exigir a adoração de seres tão pequenos como nós. Será que Deus estaria inseguro? Além do mais, com tantas religiões à disposição seria difícil tomar uma decisão consciente quanto à melhor forma de adorá-lo. E quanto à crença em Deus? Se Deus existe, foi ele quem nos deu a inteligência. Se usamos essa inteligência para concluir que Deus não existe, seria um pouco exagerado nos castigar por isso. Poderíamos argumentar dizendo, “Deus, eu usei as dádivas que você me concedeu para

decidir o que era melhor. Concluí que você não existia. Você quer me penalizar por ter feito o melhor possível com os limitados dotes intelectuais que você me concedeu?”. Então, se Deus existe, o mais provável é que se importe acima de tudo com a nossa bondade, que reabilite os maus e que seja magnânimo o bastante para não se importar muito se não o adorarmos ou não acreditarmos que existe. Sendo assim, se queremos fazer uma aposta como forma de nos prevenir em relação à possibilidade de que Deus exista, deveríamos apenas ser bons, e o resto não faria muita diferença. Ateu, agnóstico ou religioso – seria difícil ver por que uma divindade onipotente preferiria um em detrimento dos outros, e estaríamos nos arriscando a cometer um erro enorme ao escolher uma religião em detrimento das outras. A conclusão da aposta não é muito diferente da lei do E.T.: “seja bom”. E os ateus estão dispostos a segui-la, como veremos no próximo capítulo.

Conclusão A fim de verificar a força do argumento pró-ateísmo é necessário refletir sobre a natureza dos argumentos da experiência e das inferências a favor da melhor explicação, e também sobre a diferença entre posições de fé e simples crenças. Uma vez esclarecidos esses assuntos, no entanto, o caso pode ser resumido de maneira simples. O ateísmo é a posição mais bem fundamentada pela evidência e é também a posição que oferece a melhor explicação geral

para que o mundo seja como é e como parece ser. Diferente das posições de fé, o ateísmo não exige que acreditemos em nada que vá além da razão ou das evidências – muito menos em coisas que as contrariem. O fato de que não podemos ter 100% de certeza de que o ateísmo é verdadeiro

é

motivo

apenas

para

que

não

sejamos

dogmáticos em nossas crenças. Não é motivo para o agnosticismo, nem para que acreditemos que o ateísmo é uma posição de fé como a crença religiosa. Imagino que duas grandes questões ainda estejam incomodando os religiosos nesse ponto. Apesar de tudo o que falei sobre evidências e melhores explicações, as pessoas talvez ainda pensem que dois grandes aspectos permanecem sem resposta. Um é a moralidade. Se o ateísmo é verdadeiro, o que acontece com o certo e o errado? A segunda questão diz respeito ao sentido ou ao propósito da vida. O ateísmo pode explicar muita coisa, mas não explica qual é o sentido e o propósito da vida. E se isso permanece inexplicado, o ateísmo não pode ser a melhor explicação para a condição humana. Pretendo abordar essas preocupações nos dois capítulos seguintes. Por enquanto, gostaria de salientar que, mesmo que o ateísmo signifique o fim da ética e a ausência de propósito da vida humana, isso não é um argumento contra o ateísmo. Pode ser que mesmo o mais verdadeiro e honesto relato sobre o mundo em que vivemos revele que a moralidade e o sentido da vida não passam de uma ilusão. Felizmente, pretendo demonstrar

que não é esse o caso. Mas, para que possamos refletir sobre essas questões com clareza, temos que pelo menos contemplar a possibilidade de que exista um descompasso entre aquilo que gostaríamos que fosse verdade e aquilo que de fato é verdade.

CAPÍTULO 3 A

ÉTICA ATEÍSTA

Leis e legisladores O Ivan Karamázov de Dostoiévski pode ter dito que “Sem Deus, tudo é permitido”, mas aposto que nunca tentou estacionar no centro de Londres em um sábado à tarde. Este capítulo trata das verdades por trás dessa piada, que dizem respeito à autoridade da lei moral e à ideia de que a autoridade divina seria necessária para fazê-la valer. Vou argumentar que ou Ivan Karamázov estava errado, ou não estava discutindo ética. A moralidade não é apenas possível sem Deus, mas totalmente independente dele. Isso significa não apenas que os ateus são plenamente capazes de levar uma vida moral, mas também que podem levar uma vida mais moral do que os religiosos que confundem a lei e o castigo divinos com o certo e o errado. Essas conclusões parecem contradizer uma importante parcela da sabedoria popular,

mas

os

argumentos

que

as

sustentam

são

razoavelmente claros e diretos. Para começar, precisamos entender por que tanta gente acha que Deus é necessário para que exista moralidade. Uma das maneiras de expressão dessa suposta necessidade é a alegação de que para haver um código moral precisa haver um legislador e, em última análise, um juiz. Uma

analogia pode ser feita com as leis humanas, que exigem um poder legislativo para criar as leis e um poder judiciário para fazer com que sejam cumpridas. Sem essas duas instituições – que no caso da moral encontram-se reunidas em Deus – não pode haver lei. O problema é que esse argumento confunde duas coisas separadas – a lei e a moralidade. A lei sem dúvida precisa de um poder legislador e de um poder judiciário. Mas nem a existência de ambos garante que as leis em vigor sejam boas e justas. Existem leis morais e leis imorais. O fator imprescindível para a existência de leis justas é que a legislatura e o judiciário operem dentro dos limites da moralidade. Assim podemos ver que a moralidade não se confunde com a lei. A moralidade é a base sobre a qual leis justas são aprovadas e passam a vigorar, mas não surge a partir das próprias leis. Mas, sendo assim, de onde vem a moralidade? É tentador responder que a lei moral tem um legislador e um judiciário próprios. Mas as mesmas questões levantadas a respeito da lei podem ser levantadas a respeito da lei moral: o que garante que as leis morais sejam efetivamente morais? Para tanto, é necessário que os legisladores e os guardiões da lei operem dentro dos limites da moralidade. Nesse caso, a moralidade é anterior a qualquer legislatura ou judiciário moral. Em outras palavras, a única maneira de provar a moralidade do legislador é demonstrando que as leis estão de acordo com um parâmetro moral independente do

legislador moral. Mesmo que o legislador seja Deus, as leis divinas são morais apenas se estiverem de acordo com princípios morais independentes de Deus. Platão discutiu essa questão em um diálogo chamado Eutífron, que deu nome ao dilema que segue. Sócrates, o protagonista de Platão, perguntou se os deuses escolhem o bem porque ele é bom ou se o bem é bom porque os deuses o escolhem. Se a primeira alternativa estiver correta, fica demonstrado que o bem é independente dos deuses (ou independente de Deus, no caso de uma fé monoteísta). O bem simplesmente é bom, e é por isso que um Deus bom sempre há de escolhê-lo. Mas se a segunda alternativa estiver correta, a própria ideia do bem passa a ser arbitrária. Se é pela simples escolha de Deus que algo se torna bom, então o que impede Deus de escolher a tortura, por exemplo, e assim torná-la boa? Claro que essa ideia é absurda, mas apenas porque acreditamos que a tortura é errada e por esse motivo Deus jamais a escolheria. Ao aceitar esse fato, no entanto, estamos aceitando que não precisamos de Deus para determinar o que é certo e o que é errado. A tortura é errada não apenas porque Deus não a escolheu. Na minha opinião, o dilema de Eutífron é um argumento muito poderoso contra a ideia de que Deus é necessário à moralidade. De fato, o raciocínio vai mais além e mostra que Deus não pode ser uma fonte de moralidade sem que a moralidade se torne arbitrária. Houve tentativas de evitar as

questões mais espinhosas do dilema, mas, como acontece a uma bolha de ar presa, tentar suprimir o problema em um determinado ponto faz apenas com que surja em outro. Há quem defenda que é possível escapar ao dilema afirmando que Deus é o bem, e que portanto a questão suscitada pelo dilema é mal formulada. Se Deus e o bem são uma única coisa, não cabe perguntar se Deus escolhe o bem porque é bom – a própria questão tentaria assim separar duas coisas que sempre andam juntas. Mas o dilema de Eutífron pode ser reformulado de maneira a contestar essa réplica. Podemos perguntar se Deus é bom porque ser bom é ser aquilo que Deus é, ou se Deus é bom porque tem todas as propriedades do bem. Caso optemos pela primeira resposta, mais uma vez chegamos à conclusão de que o bem é arbitrário, uma vez que seria idêntico ao que Deus fosse, mesmo que Deus fosse um sádico. Assim, somos obrigados a optar pela segunda resposta: Deus é bom porque tem todas as propriedades do bem. No entanto, isso significa que as propriedades do bem podem ser definidas independente de Deus, e nesse caso a ideia do bem não depende de maneira alguma da existência de Deus. Portanto, não há motivo para que uma negação da existência de Deus pressuponha uma negação da existência da bondade, de modo que o certo e o errado, a bondade e a maldade não dependem da existência de Deus. De fato, para que a ideia do bem traga consigo qualquer

tipo de força moral, as ideias sobre a bondade precisam ser independentes de Deus. De outra forma, a distinção entre o certo e o errado torna-se arbitrária. Como explicar então a crença generalizada de que “sem Deus tudo é permitido”? Creio que podemos atribuir essa ideia a uma visão equivocada da moralidade, que segue o modelo legal discutido anteriormente. O legado religioso nos ensinou que a moral é um conjunto de regras que devemos obedecer a fim de obter recompensas futuras e que não devemos transgredir a fim de evitar o castigo. Independente do que se ensine na catequese sobre as recompensas da virtude, o fator psicológico mais eficiente para que as pessoas controlem os impulsos mais selvagens são castigos ameaçadores, não recompensas prometidas. Ensinar que Deus está vigiando as pessoas o tempo inteiro e que além do mais as pune por qualquer malfeito é uma forma excelente

de

evitar

comportamentos

contrários

aos

preceitos da Igreja. Sem essas ameaças, no entanto, o que nos impede de fazer coisas erradas? Sem Deus, tudo é permitido apenas no sentido de que não existe autoridade divina capaz de garantir que sejamos castigados por nossos malfeitos. Mas isso

não

é

o

fim

da

moralidade

nem

o

fim

do

comportamento civilizado. A piada sobre estacionar no centro de Londres apresentada no início deste capítulo simplesmente ilustra que as pessoas são capazes de criar e fazer valer proibições tão bem quanto os deuses. Tudo será

permitido apenas se nos entregarmos à anarquia, mas essa decisão não tem relação com a ausência de uma crença em Deus. No fundo, essa moralidade pressupõe que só podemos agir com ética se formos motivados pelo medo do castigo ou por promessas de recompensas. Uma pessoa que não rouba simplesmente pelo medo de ser flagrado não é moral – apenas prudente. Uma pessoa verdadeiramente moral é aquela que tem a oportunidade de roubar sem ser flagrada e mesmo assim não rouba. Argumentei que a moralidade e a crença religiosa são independentes. Se essa suposição estiver correta, um ateu ético parece ter mais méritos morais do que um religioso ético. Isso porque a religião, com as ameaças de castigo e as promessas de recompensas, traz como incentivo à moralidade um incentivo extramoral inexistente no ateísmo. Um dos supostos problemas com uma moralidade ateísta é o grau de escolha pessoal oferecido ao indivíduo. Se não existe nenhuma autoridade moral, por que não nos tornamos

soberanos

individuais?

Muitas

de

nossas

pessoas

próprias

consideram

moralidades essa

ideia

preocupante, mas na verdade a escolha individual é uma parte inescapável da moralidade, independente da crença ou da descrença em Deus.

Moralidade e escolha Já mencionei o Temor e tremor de Kierkegaard como um

estudo de fé, mas esse livro também é um estudo muito profundo sobre a inevitabilidade da escolha pessoal. Esse é o aspecto da obra que rendeu a Kierkegaard a reputação de “pai do existencialismo”. Os pensadores existencialistas formam um grupo bastante heterogêneo, que inclui cristãos, ateus, comunistas, fascistas, espíritos livres e praticamente tudo o que existe entre essas várias posições. O que os une é a crença no caráter inescapável e central da escolha individual e da liberdade na vida humana. A mensagem é que você está sempre fazendo escolhas – mesmo quando tenta fingir que não está – e que essas escolhas trazem responsabilidades consigo. Como exemplo, eu poderia tentar evitar uma decisão pedindo que outra pessoa escolhesse por mim. Mas isso não significa que eu não tenha feito uma escolha – significa apenas que a minha escolha deixou de estar diretamente relacionada à ação e passou a ser apenas um meio de fazer a seleção. Não tenho como fugir da responsabilidade pela minha decisão de ter optado por seguir o conselho de outra pessoa. Mesmo nesse caso, sou tão responsável por ter agido assim como se tivesse escolhido sem conselho nenhum. Afinal de contas, eu poderia ter escolhido aceitar ou rejeitar a escolha feita por mim. A maneira como Kierkegaard reconta a história de Abraão ilustra essa perspectiva. Deus ordena que Abraão sacrifique Isaac, seu único filho. No modelo de moralidade postulado pelo

comando

divino,

no

qual

a

lei

moral

emana

diretamente de Deus, não há escolha: Abraão precisa obedecer. No entanto, Abraão não demonstraria fé e bondade se simplesmente matasse o filho sem pensar a respeito do assunto. Existem pelo menos duas decisões a tomar. A primeira é um tipo de escolha epistemológica: é preciso decidir se o comando recebido é autêntico. Como seria possível determinar se o que parece ter sido uma instrução divina realmente veio de Deus e não de uma voz interior ou de um demônio maligno? O problema é que não existem provas ou argumentos lógicos capazes de resolver essa questão de maneira conclusiva. Em última análise, Abraão precisa decidir se está convencido ou não. Essa é uma escolha pessoal. A segunda é uma escolha moral: vale a pena seguir o comando? Em um incrível conto de Woody Allen, Abraão acha que a resposta é óbvia: “Questionar a vontade do Senhor é uma das piores coisas que se pode fazer”. No entanto, depois que Isaac é morto, Deus sente-se ultrajado ao ver que Abraão levou a piada a sério. Abraão protesta, afirmando que a disposição em sacrificar o filho demonstra que ama a Deus. Deus responde que na verdade essa atitude prova apenas “que certas pessoas estão dispostas a seguir qualquer tipo de ordem, por mais estúpida que seja, desde que seja dada por uma voz ressonante e bem modulada”. O conto de Allen é uma releitura cômica da releitura filosófica que Kierkegaard faz da história bíblica, e as duas

ressaltam os mesmos aspectos. O mais importante é que Abraão não tem como escapar à própria responsabilidade moral apenas seguindo ordens. Precisamos estar atentos a esse fato, uma vez que a predisposição humana a fazer coisas terríveis desde que sejam ordenadas por alguém em posição de autoridade tornou-se bastante evidente no século XX. A escolha de Abraão de obedecer a ordem não é apenas uma aceitação ou uma rejeição da autoridade divina. É uma escolha moral que decide se o que está sendo pedido é certo ou errado. Afinal de contas, não seria certo fazer

o

que

Deus

pede

(mesmo

se

você

estivesse

convencido de era realmente a voz de Deus) independente do que fosse. Se Deus pedisse a você que mergulhasse uma pessoa inocente em um tanque de ácido centímetro a centímetro e assim a matasse em um processo lento e agonizante, estaria tudo bem? Claro que não. Os religiosos têm certeza de que Deus jamais pediria algo parecido, mesmo que no Velho Testamento Deus comande atos um tanto sanguinários. A questão não é decidir se Deus pode ou não pedir às pessoas que façam uma coisa dessas, mas reconhecer

que

um

exemplo

hipotético

como

esse

demonstra que a aceitação ou a rejeição de uma ordem recebida, mesmo que seja uma ordem de Deus, é uma questão

de

escolha

pessoal

que

traz

consigo

uma

responsabilidade moral. Assim, o ateu e o religioso estão juntos no mesmo barco. Nenhum dos dois pode fugir à escolha dos valores morais a

seguir e à responsabilidade por essa escolha. No entanto, o ateu tem a vantagem de estar mais consciente em relação a esse fato. É fácil para os religiosos pensar que podem evitar qualquer tipo de escolha apenas escutando os conselhos dos homens santos (em geral são homens) e dos textos sagrados.

Porém,

como

essa

atitude

pode

levar

a

bombardeios suicidas, à hipocrisia e a outros males morais, fica claro que ela não absolve ninguém da própria responsabilidade moral. Mesmo que a ideia de escolhas morais autônomas talvez não soe muito palatável a quem está acostumado a pensar que a moralidade emana de uma autoridade única, nenhum de nós pode escapar dessas escolhas.

As fontes da moralidade Argumentei

que

a

religião

e

a

moralidade

são

independentes, e que mesmo que você pense que Deus é a principal fonte de orientação moral, não há como fugir das escolhas em relação aos princípios morais que adotamos. Mas precisamos ir mais adiante se quisermos defender de maneira convincente a possibilidade de uma moralidade ateísta. Não basta demonstrar que a religião não pode ser a fonte da moralidade: precisamos demonstrar que fonte é essa. Não basta demonstrar que temos de fazer escolhas morais sozinhos: precisamos demonstrar que essas escolhas têm peso moral. Mesmo assim, quando se trata de estabelecer a fonte da

moralidade não existem respostas fáceis. A dificuldade pode ser exemplificada pela seguinte pergunta: “Por que devo ser uma pessoa moral?”. Essa pergunta admite dois tipos de resposta. Uma pode levar a uma resposta amoral. Você pode responder que deve ser moral porque vai ser mais feliz assim ou porque Deus vai puni-lo se não for. Podemos dizer que essas são razões prudentes para a moralidade. O problema é que uma crença sincera nessas razões parece sabotar a moralidade em vez de sustentá-la. Agir de acordo com preceitos morais movido pelo interesse próprio não parece ser um comportamento moral. A moralidade consiste em agir de acordo com os interesses de todos. No entanto, uma resposta moral à pergunta, nos moldes de “Devemos ser morais porque é assim que deve ser”, introduz um problema de circularidade na argumentação. Como a questão é justamente descobrir por que devemos ser morais, não podemos nos valer de razões morais em nossa resposta, uma vez que isso nos leva de volta à questão inicial. Só podemos apresentar razões morais para nossos atos se já estivermos convencidos quanto aos méritos da moralidade. Vemo-nos portanto diante de um dilema. Se quisermos saber por que devemos ser morais, ou nossa resposta volta à questão inicial (no caso de oferecer uma razão moral) ou sabota a moralidade da moralidade (no caso de oferecer uma razão amoral). Esse não é um problema exclusivo dos ateus. A mesma lógica se aplica a todo mundo. As razões

para obedecer a uma moral que emana de Deus ou são morais ou são amorais, e assim os mesmos problemas se impõem aos religiosos. No entanto, a existência desse problema não é um argumento contra a moralidade. Trata-se apenas de uma precaução quanto à real possibilidade de encontrarmos uma fonte ou uma justificativa para a moralidade que todas as pessoas racionais devam obedecer. Eu diria que essa fonte não existe. A melhor tentativa de encontrá-la é o esforço feito por Kant a fim de demonstrar que a ação moral é exigida

pela

racionalidade



um

argumento

que

examinaremos em breve. Mas, apesar da inventividade e da engenhosidade, creio que nenhuma dessas tentativas obtém um sucesso completo. Então o que podemos colocar no lugar dessa fonte? Acredito que a raiz da moralidade é uma espécie de empatia ou preocupação com o bem-estar dos outros, um reconhecimento de que esse bem-estar também conta. Para a maioria das pessoas, esse é um instinto humano básico. A total indiferença ao bem-estar dos outros não é um comportamento humano normal – na verdade, é um sintoma do que em geral seria chamado de doença mental. A forma extrema dessa doença manifesta-se nos psicopatas, que não têm absolutamente nenhuma empatia com a vida interior das outras pessoas. O reconhecimento do valor dos outros não é uma premissa lógica, mas uma premissa psicológica. Se o aceitamos, conseguimos um ponto de

partida para todos os raciocínios sobre ética que podem nos ajudar a tomar decisões melhores e a nos tornar pessoas melhores. Mas a verdade da premissa – a convicção fundamental de que os outros também contam – não pode ser demonstrada em termos lógicos. Isso é parte do que Hume afirmou quando disse que “a razão é e deve continuar sendo escrava das paixões”. O raciocínio moral depende de um impulso altruístico básico. Outra maneira de encarar a questão é simplesmente aceitar que as razões para a moralidade sejam amorais. Segundo essa visão, a moralidade é uma espécie de interesse próprio esclarecido. Esse reconhecimento sabota a visão romântica de que a moralidade é a ausência de interesse próprio, mas há quem diga que não sabota a moralidade em si. Uma doação a uma instituição de caridade, por exemplo, não deixa de ser moral nem que seja motivada por um interesse próprio esclarecido. O que importa é que agimos bem. Não interessa se as verdadeiras razões para esse ato são egoístas. Essa argumentação não me convence muito, pois acredito que a predominância dos interesses próprios não tem vez na ética. Na melhor hipótese, a visão da moralidade como um interesse próprio esclarecido nos dá razões para evitar comportamentos antissociais e renunciar a coisas que nos beneficiam a curto prazo mas cobram um alto custo a longo prazo. Mas isso não é moralidade. A moralidade sempre pode nos obrigar a agir de maneira contrária aos nossos

próprios interesses. Se não estou disposto a sacrificar parte do meu interesse próprio, não estou preparado para agir de maneira efetivamente moral. Agora podemos retornar aos problemas sugeridos no início desta seção. Se Deus não é a fonte da moralidade, de onde ela vem? Eu diria que a moralidade consiste em uma preocupação

com

o

bem-estar

dos

outros



uma

preocupação que não se baseia em argumentos racionais, mas na empatia e, por falta de uma expressão melhor, na nossa humanidade compartilhada. O segundo problema era determinar se as nossas escolhas têm qualquer peso moral, uma vez que somos livres para escolher. Eu responderia que sim, porque se reconhecemos a necessidade de pensar sobre as dimensões morais das nossas ações a moralidade importa. A constatação de que cabe a nós tomar as decisões não faz com que a moralidade perca importância. A seriedade da moralidade nasce da seriedade com que encaramos a necessidade de cuidar de interesses próprios e alheios, não do sistema que usamos para nos ajudar a levar esses interesses em conta. A seriedade da moralidade não perde importância se as decisões morais forem escolhas livres, e não determinadas por leis escritas no céu.

O pensamento moral A estrutura geral da discussão que apresentei neste capítulo foi a visão existencialista segundo a qual não podemos evitar a responsabilidade pelas escolhas que

fazemos e que de certo modo precisamos “criar” nossos próprios valores. A discussão foi em boa parte sobre metaética – a natureza, a base e a estrutura da moralidade. No entanto, se pretendemos continuar pensando sobre o conteúdo específico da moralidade – sobre como devemos efetivamente agir –, precisamos levar o raciocínio adiante. O que vou fazer a seguir é simplesmente esboçar três abordagens ao raciocínio moral que dominaram a história da filosofia no Ocidente. Todas as três demonstram a grande riqueza potencial das discussões seculares acerca da ética. Evidenciam como os recursos de um bom raciocínio moral estão disponíveis em igual medida para ateus e religiosos. Em vez de considerá-las como teorias concorrentes, sugiro encará-las como diferentes recursos que podemos usar em nossos raciocínios morais. Claro, uma abordagem do tipo “bufê livre” têm limitações extremas. Sabemos que a adoção de uma maneira de pensar a respeito de um problema moral pode levar à conclusão diametralmente oposta à conclusão obtida pela aplicação de um outro método. Mesmo assim, todas essas abordagens oferecem vias de acesso ao pensamento moral que podem nos ajudar a perceber melhor o que está em jogo. O que não devemos fazer é achar que estamos tratando de cálculos morais que podem ser invocados a fim de gerar respostas adequadas para qualquer dilema moral. A maioria das aulas introdutórias de filosofia faria uma distinção entre ética aristotélica, kantiana e utilitarista. No

entanto, como penso que podemos contar com todas as três sem encará-las como teorias concorrentes hermeticamente fechadas, pretendo me focar nas características distintivas de cada uma em vez de considerá-las teorias completas. Assim fica bem mais fácil ver que podemos contar com todas

as

três

sem

nenhuma

perda

de

integridade

intelectual. Essas três características são respectivamente a ênfase no florescimento humano, nas consequências e na forma universal das leis morais.

O florescimento humano Se você folhear as páginas de Ética a Nicômaco, o grande trabalho de filosofia moral escrito por Aristóteles, talvez note algo que parece estranho ao nosso olhar moderno. Em certo ponto, Aristóteles pergunta qual seria o número correto de amigos a ter e também se seria possível travar amizade com pessoas más. Mas como o número de amigos que temos pode ser uma questão de ética? Se conseguir entender isso, você terá entendido a grande diferença que existe entre a concepção da ética na Grécia Antiga e certas concepções modernas populares acerca da moralidade. Temos uma tendência natural a pensar na moralidade como um conjunto de proibições de obrigações. Existem coisas que devemos fazer e coisas que não devemos fazer, e levar uma vida moral consiste em seguir essas regras. Nossos mais amplos objetivos de vida, como o sucesso, a felicidade e a busca pela pizza perfeita são todos

perseguidos dentro desses limites. Essa concepção moderna consegue separar o sucesso de um indivíduo e a observância das regras morais. Essa distinção não existia na ética de Aristóteles, nem em várias outras éticas de pensadores da Grécia Antiga. Para esses filósofos, a ética era a energia necessária para que uma vida humana fosse próspera ou “florescesse”. Aquilo que hoje reconhecemos como um conjunto de regras morais era baseado na ideia de que seguir essas máximas era necessário para se ter uma vida próspera. Como a ética era abordada dessa forma, a lista de recomendações feita por Aristóteles incluía coisas que hoje consideraríamos parte da ética e outras coisas que não. Assim, alguém bom – alguém que leva uma vida próspera – é prudente, tem um círculo de amizades não muito grande, demonstra coragem, é justo, gasta dinheiro com parcimônia e é amigável e espirituoso. Para Aristóteles, era necessário cultivar certos traços de caráter

para

levar

a

vida

dessa

forma.

Aristóteles

reconheceu que somos criaturas movidas pelo hábito e que a melhor forma de agir bem é praticar boas ações para assim começar a fazê-las mesmo sem nos dar conta. A educação moral, portanto, é o aprendizado de hábitos virtuosos, e a teorização moral pode começar apenas depois que atingimos a maturidade e o desenvolvimento. Uma questão importante é determinar se a ética de Aristóteles ignora a distinção entre moralidade e interesse

próprio ou se demonstra que essa separação é ilusória. Seria interessante pensar que, enquanto fizermos coisas genuinamente

necessárias

para

que

as

nossas

vidas

floresçam, estaremos sempre fazendo o bem para os outros. Mas

essa

visão

é

exageradamente

otimista.

Afinal,

precisamos lembrar que Aristóteles escrevia para uma classe de homens escravistas que não levavam em conta os interesses daqueles que ocupavam posições inferiores na escala social. Não há nenhum constrangimento em relação à impossibilidade de um escravo ter uma vida próspera em Aristóteles: Portanto,

os

escravos

temos

são

simplesmente

fundamentos

para

dizer

ignorados. que

essa

abordagem preocupa-se apenas com o interesse de uma parcela da população, e que portanto fracassa no intuito de promover uma moralidade legítima. Mesmo assim, é animador ver o quão longe podemos ir com a abordagem aristotélica. Basta pensar em tudo o que é necessário para uma vida próspera e conjuramos a imagem de uma vida virtuosa e moral ao extremo em quase todos os aspectos. A cobiça, a raiva, a maldade, a mesquinharia e outras emoções semelhantes não existem na vida do homem aristotélico. Para levar uma vida próspera, você não pode se entregar a essas forças destrutivas. Assim conseguimos dar o primeiro passo em nosso raciocínio

moral.

Podemos

esquecer

os

legisladores

transcendentais e as fontes divinas da moralidade. Basta

pensar em tudo o que é necessário a uma vida próspera e logo você evocará imagens de quase tudo o que reconhece como sendo atributos morais. No entanto, seria meio preocupante se isso fosse tudo o que temos a dizer acerca da moralidade. Afinal, sabemos que

os

maus

também

florescem.

Muitos

pensadores

tentaram contradizer essa visão e afirmar que, apesar das aparências, os maus jamais são verdadeiramente felizes ou satisfeitos. Eu gostaria muito que fosse assim, mas a hipótese parece-me difícil de acreditar. A vida seria muito fácil se o interesse próprio e a vida próspera sempre coincidissem. Mas não me parece que seja assim, e por esse motivo precisamos encontrar outras formas de pensar sobre a ética se pretendemos construir uma moralidade confiável.

Consequências Um fato bem conhecido a respeito das ações é que elas têm consequências. Além do mais, essas consequências podem ser boas ou más – podem melhorar ou piorar as coisas. Podemos dizer que o simples reconhecimento desse fato é suficiente para uma forma rudimentar de moralidade. Para dar um exemplo simples, se chuto alguém sem nenhum motivo, causo dor a essa pessoa. Nesse caso, a dor ruim não é compensada por nenhuma outra coisa boa, porque não existe motivo para o chute. Reconhecer que causar essa dor é ruim faz com que eu me abstenha de chutar os outros.

Parece óbvio que se começarmos a pensar dessa maneira vamos encontrar as bases para um tipo de moralidade geralmente chamada de moralidade consequencialista. Temos

motivos

para

não

fazer

coisas

que

têm

consequências ruins e motivos para fazer coisas que têm consequências boas porque reconhecemos que a ocorrência de coisas boas é melhor do que a ocorrência de coisas ruins. Se tentarmos erigir uma teoria moral completa com base nesse truísmo banal, logo teremos problemas. Mesmo assim, não me parece que essas dificuldades subsequentes ponham em xeque as observações simples que nos levam por esse caminho. Tomemos como exemplo uma dificuldade que diz respeito ao status dessas motivações para agir. Se começarmos a pensar por que a possível ocorrência de consequências ruins é motivo para não fazer determinada coisa, deparamo-nos com um quebra-cabeça. Que motivos são esses? Seriam motivos que expressam fatos simples? Será que “a dor é ruim” é uma verdade factual comparável a “o chumbo é mais pesado que a água”? Muitos filósofos chegaram à conclusão de que não. “O chumbo é mais pesado que a água” é uma verdade simples e irrefutável, demonstrada pelas ciências físicas. Ao dizer que isso é verdadeiro, não estamos fazendo nada além de descrever o mundo. Mas quando dizemos “a dor é ruim” estamos fazendo mais do que descrever o mundo – estamos fazendo uma avaliação. Se estivéssemos apenas descrevendo o mundo, diríamos “a dor é desagradável” ou “a dor é algo

que os organismos vivos parecem evitar” – mas no momento em que dizemos “a dor é ruim” estamos indo além dos fatos para emitir um julgamento. Se essa linha de raciocínio estiver correta, qualquer argumento moral baseado na premissa “a dor é ruim” não está

apenas

enunciando

verdades,

mas

fazendo

julgamentos a respeito do mundo. Isso significa que alegações de moralidade não são verdadeiras ou falsas no mesmo sentido que as alegações factuais. Como as alegações morais são julgamentos, é sempre possível que alguém discorde sem incorrer em nenhum tipo de falsificação dos fatos. Se eu disser que a dor não é ruim, você pode discordar, mas não pode dizer que cometi um erro factual.

4. Basta reconhecer que esse tipo de sofrimento é ruim para lançar as bases da ética.

Essa questão é importante sob vários aspectos filosóficos. Na prática, entretanto, não estou convencido de que seja útil. Tudo o que precisamos para dar início a um amplo raciocínio consequencialista sobre a ética é aceitar que a dor é ruim. Tentar decidir se “a dor é ruim” é um fato ou um julgamento pode ser interessante, mas se concordamos que a dor é ruim, para todos os fins práticos essa questão pode muito bem prescindir de uma resposta. Mas o que dizer sobre alguém que não aceita que a dor seja ruim? Vamos supor que a discordância não seja motivada por aspectos

técnicos (em outras palavras, vamos imaginar que o motivo da recusa em admitir que a dor é ruim não seja uma discordância em relação a uma posição filosófica a que a pessoa não subscreve). Nessa circunstância, não me parece motivo de preocupação descobrir que a nossa visão moral não tem 100% de adesão. Conforme eu já disse, a moralidade exige comprometimento pessoal e aceitação de responsabilidades.

Em

algumas

circunstâncias

pouco

comuns, os argumentos racionais podem nos levar a um beco sem saída, e nesse caso estaremos frente a frente com uma discordância radical: eu acho que a dor (desnecessária) é ruim, você discorda. Em uma situação como essa, tudo o que podemos fazer é manter-nos fiéis aos nossos valores. E como os nossos valores mais básicos são compartilhados pela vasta maioria dos seres humanos, uma decisão como essa em face da adversidade não tem nada de fascista. Não

quero

dar

a

entender

que

esse

raciocínio

consequencialista seja à prova de problemas. Na verdade, acho que existem diversos problemas e que qualquer sistema moral puramente consequencialista apresentaria falhas profundas. Mesmo assim, a aceitação de que as más consequências nos dão motivo para não desempenhar certas ações enquanto as boas consequências nos dão motivo para desempenhar outras ações fornece-nos uma base sobre a qual podemos erigir uma moralidade ateísta.

Universalizabilidade

Além de tudo o que já foi dito, a constatação de que é ruim causar dor desnecessária abre a porta para mais uma forma poderosa de pensar a respeito da ética. Em todos esses casos, seria fácil perceber que é ruim para nós sofrer com a dor desnecessária. E, se a dor é ruim para nós, por que não seria ruim para qualquer outra criatura capaz de sentir dor de maneira similar? Se isso for verdade, temos mais uma razão para não causar sofrimento aos outros. Essa é uma linha de pensamento muito natural, e diferentes versões do princípio que a embasa foram elaboradas de várias maneiras ao longo da história, desde a regra de ouro de Confúcio, “não faças aos outros o que não queres para ti”, até o pai que pede ao filho que pense no que aconteceria se todo mundo agisse da mesma forma, passando pelo imperativo categórico de Kant. Que motivos temos para aceitar a regra de ouro de Confúcio? Uma boa razão é que corremos o risco de agir de maneira inconsistente – em outras palavras, de maneira hipócrita – se a recusarmos. É fácil perceber o motivo se pensarmos na distinção feita por Kant entre o que chamou de imperativo hipotético e imperativo categórico. Um imperativo é qualquer tipo de comando do tipo “você tem de fazer X” ou “você deve fazer X”. Certos imperativos sustentam-se

apenas

em

relação

a

determinados

propósitos. Se estou tentando ganhar peso, por exemplo, pode-se dizer que eu devo comer mais um pedaço de bolo. Esse “deve” ganha força apenas porque o meu objetivo é

ganhar peso: devo comer o bolo apenas se quiser ganhar peso. Um imperativo como esse recebe a denominação de “hipotético” na terminologia de Kant, o que significa que precisamos sempre apresentar um motivo ou um objetivo para explicar por que devemos fazer o que o imperativo ordena. No entanto, Kant argumentou que os deveres morais são categóricos. Não devo cometer assassinatos independente dos meus objetivos. A proibição é categórica, o que significa que não precisamos apresentar um motivo ou um objetivo para explicar por que devemos obedecê-la. Kant argumenta que essa é a estrutura de uma regra moral. A natureza das regras morais determina que assumam a forma de imperativos categóricos. Se isso for verdade, sempre que reconhecemos o dever de fazer ou o dever de não fazer alguma coisa endossamos um princípio independente

de

interesses,

desejos

ou

objetivos

particulares, que assume um caráter universal e se aplica a todas as pessoas em igual medida. Assim, se reconheço que não devo ser enganado, ao mesmo tempo reconheço que ninguém deve ser enganado. Portanto, sentir indignação ao ser enganado sem se preocupar com que os outros sejam enganados é um exemplo de hipocrisia – a mudança arbitrária das regras em benefício próprio. Não precisamos ir muito longe com Kant nem abraçar a ideia dos imperativos categóricos para ver que alguma forma de universalizabilidade é ao mesmo tempo uma

característica essencial das regras morais e uma parte natural do raciocínio moral. Para compreender o princípio geral da universalizabilidade basta aceitar que, se certas coisas são boas ou ruins quando acontecem conosco, não há motivo racional para que não sejam igualmente boas ou ruins para outras pessoas em circunstâncias similares. Se aceitarmos essas duas proposições, conseguimos uma base racional para o princípio segundo o qual não devemos fazer para os outros o que não gostaríamos que fizessem conosco. Como acontece com todos os princípios morais que esbocei, não precisamos entrar nos detalhes para que as coisas se tornem difíceis e controversas. Nesse caso, uma das grandes questões é determinar se os imperativos categóricos universais são exigidos pela razão, como Kant acreditava, ou se a universalização das regras morais ocorre apenas em um nível racional mais fraco. De minha parte, acredito que a segunda afirmativa seja a correta. Porém, como acontece a tantos detalhes da filosofia moral, para todos os fins práticos esse debate talvez não tenha muita importância. O princípio básico da universalizabilidade – de que se achamos que algo deve ser feito em uma determinada circunstância, também deve ser feito em outras circunstâncias similares – é tão amplamente aceito e pode ser usado em uma gama tão vasta de argumentações morais que os problemas técnicos relativos à formulação e à justificativa não chegam a criar obstáculos para que seja

empregado em nossos raciocínios morais cotidianos.

Conclusão A essa altura deve estar claro que a ideia de que um ateu é necessariamente amoral não tem nenhum fundamento. Em relação a esse aspecto, religiosos e ateus têm muitas coisas em comum. Em nenhum destes casos o bem e o mal podem ser definidos em termos de Deus ou simplesmente emanar de uma divindade. Em última análise, as escolhas morais são feitas em ambos os casos por indivíduos, e não há como transferir a responsabilidade por essas escolhas morais. Independente da presença ou da ausência da fé, precisamos definir para nós mesmos o que é certo e o que é errado. Para estabelecer uma fonte de moralidade precisamos apenas subscrever à crença de que certas coisas têm um valor e que a existência desse valor fornece motivos para que nos comportemos de uma determinada maneira. Esse compromisso extremamente amplo não pressupõe nenhum posicionamento filosófico ou sequer religioso. Na verdade, talvez não seja mais do que o compromisso básico de todas as pessoas dotadas de sentimentos humanos. Depois

de

assumirmos

esse

compromisso

básico,

dispomos de vários recursos que nos ajudam a pensar em qual é a coisa certa a fazer. Podemos pensar sobre o que é necessário para que a nossa vida e a vida dos outros floresça. Podemos pensar sobre as consequências dos

nossos atos para evitar ações que ferem as coisas a que atribuímos valor e incentivar ações que as beneficiem. E podemos reconhecer que, se uma coisa é boa ou ruim em uma dada circunstância, essa mesma coisa é igualmente boa ou ruim em qualquer outra circunstância similar, o que nos ajuda a buscar a coerência em nosso modo de agir – ou, em outras palavras, a evitar a hipocrisia. Claro, mesmo depois de tudo isso ainda é possível dizer que não dispomos de nenhuma prova lógica de que ateus devam agir moralmente, mas essa prova tampouco existe para os teístas. Um equívoco comum é supor que a crença religiosa traz consigo princípios morais e que, nesse caso, não há necessidade de pensar a respeito nem de justificálos. Ao perceber essa falácia, podemos compreender por que ser bom é um desafio para todos – sejam ateus ou religiosos.

CAPÍTULO 4 SENTIDO

E PROPÓSITO

Para quê? A crença no mito de que sem Deus tudo é permitido talvez não sirva como razão para rejeitar o ateísmo, uma vez que pelo menos abre o caminho para uma certa dose de libertinagem potencialmente desejável. O aspecto mais desanimador talvez seja a ideia de que sem Deus nada faz sentido. Em outras palavras, você pode fazer tudo o que bem entender porque não existe nenhum poder divino para impedi-lo, mas nesse caso de que adianta fazer o que quer que seja? Por que batalhamos ao longo de uma vida inteira – e para muita gente a vida é de fato uma batalha – se tudo acaba em nada? “A vida é um lixo e no fim você morre” é o mantra

niilista

dos

desiludidos

e

decepcionados

que

abandonaram a crença em Deus e acham que assim a vida se torna uma tragicomédia vazia. Para

oferecer

uma

resposta

satisfatória

a

essas

preocupações temos que voltar ao início e refletir sobre o sentido ou o propósito da vida. O verdadeiro problema é que o sentido da vida parece estar resolvido para as pessoas religiosas. Você entra para a religião e de brinde ganha o sentido da vida. Se abandona a religião, no entanto, a vida perde o sentido. Essa linha de raciocínio é parecida com

aquela que atrela a ética à religião. A pressuposição é que a ética vem junto no pacote oferecido pela religião, e portanto sem a religião a ética se torna um problema. Mas vimos no último capítulo que isso simplesmente não é verdade, e agora vou argumentar que tampouco é verdade que o sentido e o propósito da vida estejam incluídos no pacote oferecido pela religião. Mas antes precisamos compreender a ideia de que a vida não tem absolutamente nenhum sentido ou propósito.

O propósito do arquiteto O pensador existencialista Jean-Paul Sartre acreditava que a rejeição da ideia de Deus privava a humanidade de uma “essência”. Sartre tinha uma ideia muito específica do que seria essa “essência”, e para explicá-la deu o exemplo de um abridor de cartas. Segundo Sartre, um abridor de cartas tem uma essência clara porque foi criado com um propósito: o de abrir cartas. Assim o Criador o imbui de uma essência: a natureza essencial do abridor de cartas é abrir cartas. Essa ideia de essência corresponde ao que certas pessoas identificam como o propósito do abridor de cartas. Em outras palavras, o abridor de cartas tem um propósito que corresponde à função dada pelo criador. Sartre afirmava que, como Deus não existe, os seres humanos não são como abridores de carta, uma vez que nenhum arquiteto inteligente os criou. Por esse motivo os seres humanos carecem de uma essência. Curiosamente, no

entanto, Sartre não conclui que a vida humana carece de propósito ou de sentido, por motivos que logo estarão claros. Em primeiro lugar, no entanto, precisamos analisar a ideia de que o propósito ou o sentido das coisas encontra-se dado pelo criador. Essa parece ser a ideia que embasa a visão religiosa segundo a qual a crença em Deus oferece uma resposta automática para a questão do sentido da vida. Se fomos criados por Deus, nosso propósito está dado por esse mesmo Deus, que nos criou com um propósito em mente. Essa analogia surge de várias maneiras no discurso religioso. As pessoas falam sobre a Bíblia, por exemplo, como se fosse um manual de instruções oferecido por Deus a fim de informar às próprias criações para que elas foram feitas. O problema é que essa ideia parece nos fornecer apenas um tipo muito insatisfatório de sentido para a vida. A analogia com o abridor de cartas pode esclarecer por quê. Embora seja verdade que o abridor de cartas tem um sentido e um propósito por causa do criador, esse propósito tem pouca ou nenhuma importância para o abridor de cartas. Claro, um abridor de cartas não tem consciência, e esse importante detalhe reforça a ideia de que quando atribuímos um propósito a alguma coisa em função do objetivo com que foi criada, o significado desse propósito localiza-se no criador e no usuário do objeto – não no objeto em si.

Vamos examinar agora um exemplo hipotético em que o objeto criado tivesse consciência.

Imagine

um

futuro

distópico em que as pessoas são criadas em laboratório para cumprir certas funções, como no mundo em que se passa o Admirável mundo novo de Aldous Huxley. Nesse contexto podemos imaginar uma pessoa que tenha sido criada com o propósito de limpar banheiros. Se essa pessoa perguntasse qual é o sentido ou o propósito da vida que leva, poderíamos responder “limpar banheiros” com certa propriedade. Mas imaginar que assim todas as importantes questões existenciais sobre o sentido da vida estariam respondidas seria absurdo. O propósito ou o sentido dado a uma criatura pelo criador não é necessariamente o tipo de propósito ou de sentido que estamos buscando na vida quando imaginamos qual é o sentido da vida para nós. Se o único objetivo da vida é servir aos propósitos de outra pessoa, deixamos de ser criaturas valiosas e somos reduzidos a meras ferramentas, como abridores de carta ou trabalhadores criados em laboratório. Eis por que a crença em um Deus criador não fornece automaticamente um sentido para a vida. Mesmo assim, para certas pessoas essa crença pode satisfazer o desejo por um significado de duas maneiras. Na primeira, a pessoa decide que a felicidade consiste em obedecer aos desígnios de Deus. Nesse caso, servir a Deus é um propósito suficiente. Isso me parece um tanto estranho, e reconheço uma certa dificuldade para conceber por que Deus criaria os

seres humanos apenas para servi-lo: não creio que precise de ajuda nas tarefas domésticas ou em outras atividades do tipo. Além do mais, é uma atitude irritantemente similar à das pessoas que por séculos imaginaram ter por única função na vida trabalhar para a aristocracia e para as classes dominantes. Orgulhar-se da posição inferior e vê-la como provedora de significado para a vida parece-me indicar aquilo que Nietzsche chamava de “moralidade escrava”: a santificação de uma circunstância indesejável com o objetivo de fazer essa circunstância parecer mais desejável do que na verdade é. Parece ser também um exemplo do que Sartre chamou de “má-fé”: fingir para nós mesmos que as coisas são melhores do que na verdade são para evitar verdades desagradáveis.

5. Essa bem-aventurada criatura teve um propósito claramente determinado pelo criador. Não seria bom se fôssemos assim?

A segunda saída para os religiosos é simplesmente acreditar

que

Deus

nos

deu

um

propósito

que

é

genuinamente um propósito para nós, e não um propósito para ele. Não sabemos direito que propósito seria esse, mas temos a eternidade inteira para descobrir – então por que a pressa? Essa é uma posição totalmente coerente, mas não há como negar que exige um alto grau de confiança cega – ou de fé, como os religiosos preferem chamar. Essa posição equivale a admitir que os religiosos não têm nenhuma ideia sobre qual seja o significado ou o propósito da vida e que simplesmente acreditam que Deus sabe o que está fazendo.

E ainda resta a angustiante incerteza quanto à possibilidade de que o significado que nos foi atribuído por outros não corresponda necessariamente ao tipo de significado que esperamos para a vida. Os religiosos precisam ter fé em que o propósito de suas vidas não seja o equivalente a limpar os banheiros do paraíso por toda a eternidade.

O propósito como objetivo Com ou sem Deus, para que a vida seja repleta de significado é necessário que se relacione aos nossos projetos, às nossas necessidades e aos nossos desejos, e não apenas aos propósitos do que ou de quem nos criou. Por essa mesma razão, a teoria da evolução tampouco nos oferece respostas quanto ao significado da vida. A evolução afirma que, de certa maneira, estamos aqui para replicar o nosso DNA. Mas essa é uma explicação puramente externa da nossa existência e da função biológica que cumprimos. Não é uma explicação mais satisfatória do que afirmar que nascemos para que nossos pais pudessem pedir um auxílio de bolsa-família. Isso faz parte da história de por que nascemos, mas não nos diz por que nossas vidas têm qualquer sentido, caso tenham. Uma maneira natural de começar a pensar sobre o sentido da vida sem invocar os desígnios de um criador é pensar sobre os nossos propósitos e objetivos. Muitas pessoas encaram a vida dessa forma. Elas falam sobre o que pretendem ter feito aos 30, 50 ou 75 anos na esperança

de que a conquista desses objetivos faça com que se sintam plenas e confira sentido à vida que levam. O mais interessante é que na maioria dos casos as pessoas não têm a impressão de que esses objetivos e propósitos foram dados por Deus. É verdade que às vezes ouvimos atletas dizendo coisas como “Deus me pôs na Terra para ganhar a medalha de ouro dos 200 metros nas Olimpíadas”, porém muitos outros atletas poderiam dizer que também queriam a medalha e que Deus não os favoreceu. Em geral as pessoas estabelecem objetivos de vida sozinhas, e isso explica por que esses objetivos adquirem tamanha importância. O que as pessoas tentam fazer

nesses

casos

“autoatualização”:

é

atingir

estabelecem

uma

objetivos

forma que

de

julgam

desenvolver e recompensar o próprio potencial para que de certa forma possam tornar-se melhores do que são. Uma pessoa com talento musical, por exemplo, pode estabelecer um objetivo que, se atingido, prove que desenvolveu ao máximo as próprias aptidões musicais e assim tornou-se um indivíduo mais completo ou mais desenvolvido do que era antes. A ideia de que podemos escolher os nossos propósitos e objetivos e assim estabelecer o sentido de nossa vida é muito importante, e logo vamos retomá-la. Mas antes precisamos reconhecer certos problemas em potencial com a visão que concebe o significado da vida como um ou mais objetivos estabelecidos por nós mesmos. Se formos movidos

a resultados, ficamos expostos a dois riscos. O primeiro é simplesmente não atingir nosso objetivo, e em áreas como o atletismo é inevitável que a maioria das pessoas fracasse enquanto apenas um número reduzido obtém sucesso. Porém, se esse fracasso corresponde a uma parcela importante de tudo o que compõe o significado da vida para uma determinada pessoa, o resultado pode ser catastrófico. O segundo risco é que, uma vez atingidos os nossos objetivos, a vida perde o sentido. Na verdade é o que às vezes acontece a pessoas que se focam em um único objetivo que leva muitos anos para ser atingido. É bem possível que você um dia ouça um comentário como “Dediquei a minha vida inteira a essa conquista e agora não sei

mais

o

que

fazer”.

Muitas

vezes,

quando

têm

personalidades movidas a resultado, essas pessoas reagem estabelecendo um outro objetivo que as leve a enfrentar novas dificuldades. Essa constatação apenas evidencia o problema de associar o sentido da vida à obtenção de resultados: a vida nunca pode ser plenamente satisfatória a não ser nos fugazes momentos que envolvem a conquista de cada objetivo. Em todo o tempo restante, ou se trabalha em prol de um objetivo futuro, ou se olha para as conquistas passadas. O problema pode ser exposto de maneira um pouco mais filosófica se pensarmos sobre o que faz as coisas valerem a pena. Como levo uma vida emocionante, hoje vou sair para

fazer compras. Mas por que gastar um tempo valioso com uma tarefa aborrecida como essa? Porque preciso de comida. E por que eu devia me importar em comer? Por dois motivos: primeiro, porque gosto; segundo, porque preciso de comida para viver. Mas nesse caso, por que me importar em viver? E assim por diante. Essa simples série de perguntas do tipo “por quê?” admite dois tipos de resposta. Um explica minhas ações em função umas das outras: “para ter comida”, “para viver”. Mas com esse

tipo

de

resposta

sempre

podemos

continuar

a

perguntar “por quê?”. Por que comer? Por que viver? Para dar fim à serie de perguntas é necessário apresentar uma razão que baste por si própria, e não simplesmente relacionar cada ação a outro objetivo ou propósito. Uma das razões desse tipo já apresentadas é que como porque gosto. Se você perguntasse por que eu gosto ou por que quero fazer o que gosto, na verdade você não teria entendido o que significa gostar de fazer uma coisa. Gostar de fazer uma coisa é motivo suficiente para fazê-la, desde que você não prejudique a si mesmo ou aos outros nem se prive de fazer outra coisa mais importante. Se digo que gosto de comer para explicar por que estou devorando um prato de comida indiana, seria desnecessário e descabido continuar perguntando por quê. Se aplicarmos esse princípio de maneira um pouco mais ampla, podemos ver que, ao perguntar por que fazemos qualquer coisa na vida, no fim vamos acabar com coisas

que têm valor em si próprias e não são feitas para cumprir um propósito ou atingir um objetivo. Se nos concentrarmos apenas nos resultados, corremos o risco de deixar passar esse detalhe vital. Não é que a conquista de objetivos não possa nos ajudar a encontrar o significado da vida: os objetivos desempenham um papel muito importante em nossas vidas. Mesmo assim, podem

contribuir

ainda

mais

se

satisfizerem

duas

condições. A primeira é que as diferentes etapas que nos levam à conquista do objetivo sejam recompensadoras e providas de sentido. Assim, o tempo que dedicamos ao nosso

objetivo

faz

sentido

mesmo

que

no

fim

não

consigamos atingi-lo. A segunda é que a conquista do objetivo em si possa trazer um resultado duradouro para nós. Assim evitamos que nossas vidas fiquem vazias quando atingimos nosso objetivo.

6. O que fazer após uma conquista dessas?

conquista dessas?

Um

perigo

adicional

quando

somos

movidos

por

resultados e conquistas é que as vidas de um grande número de pessoas podem nos parecer desprovidas de significado. Afinal, muitas pessoas não são movidas a resultado e não têm sede de sucesso. O que a maioria das pessoas quer é um companheiro ou uma companheira, um trabalho de que gostem e dinheiro suficiente para ter uma boa qualidade de vida. Essas coisas conferem significado suficiente à vida, pois o pacote como um todo é um bem em si próprio. Será que faria sentido perguntar “Por que você quer fazer um trabalho de que goste todos os dias para depois encontrar em casa a pessoa que você ama e preencher o tempo livre da maneira que quiser”? Ou será que quem faz uma pergunta dessas está deixando passar alguma coisa?

A vida como resposta em si Chegamos assim à visão de que o propósito supremo da vida deve ser algo bom em si próprio, não apenas algo que sirva como elo em uma cadeia interminável de objetivos. Esse é um dos motivos que permitem aos ateus dizer que a vida tem muito mais sentido para eles do que para um número considerável de pessoas religiosas que veem nossa vida como uma espécie de preparação para outro mundo. Para essas pessoas, a vida não tem nenhum valor intrínseco. É apenas uma moeda que pode ser usada para a

aquisição de um bem maior: a vida no paraíso. Mas essa é apenas uma forma de fugir à questão, uma vez que não explica por que a vida no céu tem valor intrínseco, mas a vida na Terra não. Mais uma vez, temos a impressão de que a

religião

não

fornece

uma

resposta,

mas

pede

simplesmente que aceitemos que a resposta está a caminho. Como existe um certo ponto em que a vida precisa ter valor intrínseco, pois de outra forma deixa de ter qualquer valor, o desejo ateísta de descobrir o que faz a vida valer a pena em vez de nutrir a esperança de uma vida melhor no paraíso parece sensato e prudente, em especial quando levamos em conta todas as evidências que sugerem que esta seja a única vida que temos. Mas o que faz a vida valer a pena? Qualquer resposta curta soa banal, mas a verdade é que não existe mistério. Ray Bradbury resumiu tudo com maestria no conto “...E a lua continua tão brilhante”. A história fala sobre os marcianos, mas a moral da história diz o seguinte: Os marcianos notaram que faziam a pergunta “Por que viver?” no ápice de um período de guerra ou de desespero, quando não havia resposta. Mas depois que a civilização se acalmava, se aquietava e as guerras cessavam, a pergunta perdia o sentido de uma forma diferente. Nesses momentos a vida era boa e não precisava de explicação nenhuma.

Quando atravessamos uma época difícil e nossa vida vai mal, temos a impressão de que nada tem sentido. Mas quando a vida é boa essa questão nem se põe. Como no exemplo acima, se o trabalho e a vida doméstica de uma pessoa vão bem, não faz muito sentido perguntar por que uma vida assim vale a pena. A pessoa que a vive sabe. Claro que essa resposta não é suficiente, porque não nos esclarece o que dizer para os outros nem para nós mesmos quando a vida não vai bem. Para a maioria das pessoas a vida é uma mistura de sensações, e os momentos em que tudo corre às mil maravilhas são raros e fugazes. Mas a verdade por trás dos sentimentos de Bradbury é que a essência da resposta pode estar apenas no fato de que a vida vale a pena por si mesma, mesmo nas épocas difíceis, e não há por que encará-la apenas como um meio para quaisquer outros fins. Além do mais, o reconhecimento de que a própria vida responde à pergunta “Por que viver?” é essencial se queremos confrontar a realidade da nossa finitude e fazer as pazes com ela. Se fingirmos ou imaginarmos que o propósito da vida está fora da própria vida, vamos passar o tempo inteiro procurando nas estrelas o que está bem debaixo dos nossos pés.

O hedonismo Antes, quando dei um exemplo de coisas que eram boas em si mesmas, falei sobre o prazer de comer uma boa refeição. Isso pode dar a impressão de que o que faz a vida

valer a pena é simplesmente o prazer. Afinal, o prazer é uma coisa boa em si mesma e dispensa qualquer outro propósito ou justificativa quando o experimentamos. Então, se a vida é finita e precisamos encontrar um significado nas coisas que são boas por si mesmas, não seria adequado dedicar nossa vida à busca do prazer? Pode-se dizer que essa é a ortodoxia secular da nossa época. Carpe diem – aproveite o dia – tornou-se o lema dos nossos tempos. Incentivados pela mídia, pelos editoriais e pelos anúncios publicitários, passamos o tempo inteiro em busca de prazeres novos e mais intensos. Você logo perderia

a

conta

se

tentasse

passar

um

único

dia

identificando quantos artigos em jornais e revistas e quantos anúncios publicitários em todos os meios de comunicação

prometem

prazeres

mais

intensos.

Essa

realidade se torna ainda mais evidente se você folhear revistas masculinas e femininas sobre estilo de vida, que parecem oferecer apenas a promessa de mais felicidade, mais satisfação e mais apelo sexual. Se essas dicas realmente funcionassem, logo as pessoas não precisariam mais dessas revistas. Mesmo assim, essas publicações continuam a circular em grande número. Creio que isso nos ensina uma lição. O fato de que em geral somos considerados uma sociedade bastante insatisfeita também é revelador. Nos países ocidentais desenvolvidos, temos acesso a prazeres bem mais variados e mais intensos do que os nossos

antepassados poderiam ter imaginado. Mesmo assim, não nos damos por satisfeitos. O que deu errado? O aparente paradoxo não surpreenderia os grandes filósofos do campo da ética, que sempre se mostraram desconfiados em relação à ênfase exagerada no prazer. O maior problema é que o prazer é por definição transitório. É bom se sentir bem, mas em geral o prazer não tem efeitos muito duradouros. Na verdade, uma vida dedicada ao prazer daria um trabalho e tanto, pois se levada a sério exigiria constantes esforços em busca de cada vez mais. O presente é sempre fugaz, e por esse motivo os prazeres escorrem por entre os nossos dedos assim que são atingidos. Por

isso

uma

vida

dedicada

ao

prazer

seria

profundamente insatisfatória para a maioria das pessoas. Com certeza uma vida satisfatória inclui uma certa dose de prazer, e nem mesmo o eticista mais puritano faria objeções quanto a isso. Mas a satisfação exige mais do que simples prazeres transitórios. Exige que levemos nossa vida de maneira

a

nos

sentir

satisfeitos

mesmo

durante

os

momentos em que não estamos aproveitando. Não existe uma fórmula para determinar que tipo de vida é essa, e com certeza ela varia bastante de pessoa a pessoa. Para alguns, uma

vida

de

hedonismo

traz

não

apenas

prazeres

transitórios, mas também uma satisfação constante. Para outros, um lento e discreto trabalho feito com amor pode ser fonte de profunda satisfação, mesmo que não pareça.

O mais importante é não tirar a conclusão precipitada de que, se esta é a única vida que temos e o sentido da vida está em vivê-la, então devemos dedicar nossa vida ao prazer. A ideia talvez corresponda ao estereótipo do ateu raso que busca apenas inebriar-se de prazer a fim de preencher o vazio de uma vida sem sentido, mas como retrato de um ateu está tão equivocado quanto o retrato de um religioso como um fanático de Bíblia em punho.

A morte Espero ter mostrado como a vida pode ter sentido e propósito para os ateus. Mas o que acontece quando invertemos a pergunta – quando perguntamos por que a vida não teria significado ou propósito para os ateus? Por que o sentido da vida parece ser um problema característico dos ateus? A resposta parece ser que o ateu, por não acreditar em nenhum reino sobrenatural, acredita que a morte nesta Terra natural significa o fim da vida. O ateu aceita a mortalidade humana de maneira inequívoca, sem nenhuma crença na vida após a morte, na reencarnação ou sequer na integração do ego ao espírito do mundo. Mas se a vida é curta e a morte é o fim, para que serve tudo isso? Creio já ter apresentado algumas respostas. O que ainda não fiz foi questionar por que a aceitação da mortalidade, se comparada à crença na vida após a morte, parece limitar o sentido da vida. Existem apenas duas explicações: uma é

que a vida precisa ser mais longa do que é para ter significado pleno; e a outra é que a vida precisa ser infinita para ter significado. Nenhuma dessas suposições resiste a um exame mais atento. Tomemos a ideia de que a vida tem sentido apenas se for infinita. Com certeza não é verdade que as atividades em geral precisam ser infinitas para ter significado. A bem dizer, na maioria das vezes o que ocorre é o contrário: muitas vezes um fim é necessário para que determinada atividade adquira significado. Uma partida de futebol, por exemplo, tem sentido apenas porque acaba depois de noventa minutos com um certo resultado. Uma partida infinita seria completamente desprovida de sentido. Peças de teatro, romances, filmes e outras formas de narrativa também precisam ter fim. Quando estudamos, fazemos cursos que acabam em um determinado ponto sem que se estendam para todo o sempre. Praticamente qualquer atividade humana precisa de um fim para que tenha sentido. Essa linha de raciocínio pode nos levar a indagar se na verdade a vida não teria menos sentido se fosse eterna. Para que fazer qualquer coisa se fôssemos viver por toda a eternidade? Para que aperfeiçoar as tacadas de golfe, se você sempre vai ter tempo para fazer isso mais tarde? Não seria justamente a certeza da mortalidade o que nos impele adiante e faz com que a vida tenha sentido? Pode-se responder a esse questionamento dizendo que a

vida seria desprovida de sentido se continuasse para sempre como a vida que conhecemos, mas que poderia ter significado se assumisse outra forma, como a existência em um estado de júbilo supremo ou no nirvana. Essa visão apresenta dois problemas. O primeiro é que se a vida eterna não se assemelha à vida que conhecemos, não sabemos como as pessoas poderiam ser reconhecidas na vida após a morte. Somos criaturas de carne e osso, e todo

o

nosso

modus

operandi

é

humano



temos

pensamentos, sensações, planos, relacionamentos, apetites e decepções. A existência de uma entidade desencarnada, sem nenhuma noção de passado ou futuro e concentrada na absorção eterna de uma sensação de júbilo não é nem um pouco parecida com a minha vida. Vemo-nos assim frente a frente com um dilema. Ou a vida após a morte é reconhecível como a vida que conhecemos e nesse caso a vida eterna parece fazer pouco sentido, ou não é nem um pouco parecida com a vida que conhecemos e nesse caso não parece uma vida que pudéssemos viver. O segundo problema com essa visão é que ela se baseia na ideia de que certos estados são desejáveis por si próprios. O ponto essencial em relação ao nirvana é que não precisamos indagar para que serve esse estado – ele é valioso em si mesmo. Mas se aceitamos a possibilidade de que certas formas de existência podem ter valor intrínseco, por que ignorar a forma de vida que efetivamente vivemos em nome da esperança em uma vida idealizada no futuro?

Assim percebemos que a ideia de que a vida precisa ser eterna para ter sentido é simplesmente falsa. E quanto à outra sugestão – a de que a vida precisa ser muito mais longa para ter sentido? É uma ideia pouco convincente. Se a vida finita pode ter sentido, parece estranho pensar que deva ser uma vida finita de uma certa duração. Quando comparada ao universo, a vida humana é um simples piscar de olhos. Mesmo em termos de percepções humanas, a vida às vezes passa com uma rapidez impressionante. Mas para cada pessoa que chega à terceira idade com sede de viver existe outra que está farta dos altos e baixos da vida. A vida pode não ter uma duração perfeita, mas é longa o suficiente para ter sentido. Pessoalmente, não me identifico com a visão de que a vida tem a duração exata. Há quem defenda essa opinião dizendo que vivemos nossas vidas de acordo com a norma, e que se a expectativa de vida fosse maior nós não levaríamos uma vida com um significado mais profundo – simplesmente ajustaríamos os planos e teríamos menos pressa em começar uma carreira profissional, por exemplo. É um pensamento reconfortante, mas acho que a vida seria melhor se durasse um pouco mais do que dura – desde que tivéssemos saúde para aproveitar os anos adicionais. Existem tantas coisas para fazer que 70 anos parece um tempo curto demais. Aceitar nossa mortalidade não significa acreditar que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Nossa expectativa de vida é curta, e mesmo assim muita

gente não a alcança. Por esse motivo a morte ocupa uma posição central na visão de mundo ateísta. É o ponto final que confere significado à vida – mas uma morte prematura ou até mesmo no momento habitual pode causar sofrimento. Existe um fundo de verdade no velho clichê de que “o que é bom dura pouco”, e assim como a cortina em uma apresentação de Otelo não estraga a peça, mas é condição para que possa ser apreciada, podemos lamentar a morte com a certeza de que essa inevitabilidade é condição para que a vida seja tão preciosa.

Vidas plenas de significado Embora eu tenha defendido a possibilidade de encontrar o sentido da vida mesmo sendo ateu, talvez seja mais convincente dar exemplos de vidas assim. Muitos ateus viveram e vivem vidas plenas de significado e de propósito, e a negação desse fato parece-me um ato de extrema arrogância. No site celebatheists.com você encontra uma extensa lista de ateus vivos. Uma dessas pessoas é Arundathi Roy, a premiada autora de O deus das pequenas coisas, engajada na luta pela reforma social e pela justiça na Índia. Quando um entrevistador perguntou se achava que a morte era o fim, ela respondeu “Acho... e às vezes antes mesmo que você morra”. Essa resposta inteligente demonstra muito bem como uma crença na mortalidade pode motivar uma

preocupação com pessoas que, embora vivas, são privadas de aproveitar a única vida que têm. É interessante notar que muitos ateus famosos são escritores, pensadores ou artistas. Milan Kundera, o autor tcheco que escreveu A insustentável leveza do ser, é ateu, e Terry Pratchett, autor dos romances da série Discworld, disse: “Acho que sou provavelmente ateu, mas tenho raiva de Deus por não existir”. Talvez o maior desafio para quem acha que a vida dos ateus não têm sentido seja a República Tcheca, onde 40% da população é ateísta. Tire umas férias em Praga e veja se a falta de sentido por toda a cidade o perturba. A história tem um número razoável de ateus, entre os quais se encontram o ex-presidente da França François Mitterrand (1916-1996), o físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988), o pai da Turquia moderna Mustafa Kemal Ataturk (1881-1938) e a química e física vencedora do prêmio Nobel Marie Curie (1867-1934). Não estou dizendo que todas essas pessoas foram heróis nem que devemos admirar tudo o que fizeram. Os ateus podem ter vidas boas e más, como os padres, os papas e os rabinos. Quero dizer apenas que essas vidas tiveram sentido e propósito – uma prova concreta de que a vida sem crença em Deus não é uma vida sem rumo ou desprovida de significado. A maior prova de que uma coisa é possível é mostrar que ela de fato existe. Essas pessoas mostram que encontrar um sentido para a vida mesmo sendo ateu não é

uma simples possibilidade teórica. Essas pessoas estão ao nosso redor o tempo inteiro.

CAPÍTULO 5 O

ATEÍSMO NA HISTÓRIA

Não a história do ateísmo Meu objetivo neste capítulo não é apresentar uma história resumida do ateísmo, por duas razões. A primeira é que o assunto é amplo demais para um capítulo breve, em especial para um não historiador como eu. O segundo diz respeito ao propósito geral deste livro. Meu foco é apresentar motivos para se pensar que o ateísmo é verdadeiro e argumentar contra as acusações de que seria falso, e não discutir todos os temas relacionados ao ateísmo. Assim, meu interesse na história do ateísmo fica restrito a duas questões bastante específicas que, segundo penso, devem ser respondidas para integrar minha defesa mais ampla do ateísmo. A primeira trata de quando e por que o ateísmo surgiu na história do Ocidente. A segunda diz respeito ao envolvimento do ateísmo nos terrores do totalitarismo do século XX na União Soviética, na Alemanha nazista, na Itália e na Espanha. A resposta à primeira reforça a defesa do ateísmo, enquanto a resposta à segunda enfraquece certas objeções às vezes feitas.

O nascimento do ateísmo

Quando o ateísmo começou? Existem duas respostas que parecem entrar em conflito uma com a outra. Uma afirma que o ateísmo começou com a aurora da própria civilização ocidental, na Grécia antiga. Essa é a posição defendida por James Thrower na Breve história do ateísmo ocidental. A outra afirma que o ateísmo surgiu de maneira plena somente no século XVIII. É o que defende David Berman em A History of Atheism in Britain. Mas o conflito é apenas ilusório, pois existe uma única explicação compatível com essas duas versões: o ateísmo se originou na Grécia antiga, mas surgiu como um sistema de crenças explícitas apenas no final do Iluminismo. O argumento de Thrower baseia-se na ligação necessária entre o naturalismo e o ateísmo. Como vimos no Capítulo 1, o ateísmo pode ser entendido não apenas como uma simples negação da religião, mas como um sistema de crenças autossuficiente que se resume à ideia de que existe apenas um mundo – o mundo natural. Se essa é a maneira correta de conceber o ateísmo – e nesse ponto concordo com Thrower –, entender as raízes do ateísmo significa entender as raízes do naturalismo. E o naturalismo começa com os filósofos pré-socráticos de Mileto do século VI a.C. – Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Esses filósofos foram os primeiros a rejeitar explicações mitológicas em favor do naturalismo. Mesmo que até então as origens e os fenômenos do mundo fossem todos explicados

através

de

mitos,

os

filósofos

de

Mileto

trabalharam com a ideia – na época revolucionária – de que a natureza podia ser compreendida como um sistema autossuficiente que operava segundo leis acessíveis à razão humana. Essa forma de pensar resultou em uma profunda mudança na orientação das tentativas de explicar o mundo. A partir desse momento, não seria mais necessário postular a existência de outra coisa para compreender como a natureza funcionava: todas as respostas encontravam-se nela própria. Esse instante marcou também o nascimento da ciência, embora ela tenha levado muito tempo até amadurecer e se transformar na ciência rigorosa e experimental de hoje. No entanto, seria um equívoco exagerar o papel dos filósofos pré-socráticos como protocientistas. Os críticos muitas vezes dizem que o ateísmo é fascinado pela ciência e que aceita somente as explicações científicas como legítimas, o que apenas demonstraria que a rejeição da crença religiosa é baseada em uma concepção excessivamente limitada quanto ao que são explicações úteis ou mesmo verdadeiras. O relato sobre as origens do ateísmo oferecido por Thrower parece dar força a essa crítica, uma vez que nele as origens do ateísmo são associadas às origens da ciência.

7. O ateísmo nasceu da rejeição aos mitos. É isso o que eu chamo de progresso!

No entanto, essa crítica é infundada, porque a ciência foi apenas um dos frutos da nova forma de olhar para o mundo iniciada pelos pré-socráticos. Essa revolução do pensamento não foi a substituição da mitologia pela ciência em particular, mas a substituição dos mitos por uma explicação racional genérica. Vejamos como a Grécia antiga se desenvolveu entre as obras de Heródoto e de Tucídides, segundo as explicações de Thrower e do filósofo Bernard Williams em Truth and Truthfulness. Temos aqui mais um exemplo de rejeição do mito em favor de uma explicação racional. Não podemos confundir a história desse longo desenvolvimento com uma transformação instantânea da mitologia de Heródoto para a factualidade de Tucídides. Mesmo assim, uma fronteira importante foi atravessada quando Tucídides começou a discutir a história como uma série de eventos factuais datados que se encaixavam de maneira a contar uma história com causas e consequências. Como Williams afirma, as histórias de Tucídides tinham por objetivo “contar a

verdade”. A visão de história apresentada por Tucídides é hoje um exemplo tão claro de bom senso (embora muitos historiadores acadêmicos permaneçam céticos) que chega a ser difícil imaginar que um dia as pessoas tenham concebido a história de outra forma. Essa constatação reforça o caráter radicalmente transformador da história de Tucídides. Existe uma ligação entre o desenvolvimento da filosofia em Mileto e a história de Tucídides que ultrapassa a simples rejeição dos mitos. A ligação está naquilo que substitui os mitos. Em ambos os casos, o que toma o lugar do mito é a racionalidade. Um relato racional é, em termos gerais, um relato que se limita a razões, evidências e argumentos que podem ser examinados, avaliados, aceitos ou rejeitados com base em princípios e fatos ao alcance de todos. Idealmente,

em

um

relato

racional

não

precisamos

preencher nenhuma lacuna com especulações, opiniões ou quaisquer outras crenças infundadas. Nesse sentido, a ciência fundada pelos pré-socráticos e a forma

de

estudar

história

iniciada

por

Tucídides

caracterizam-se pela natureza racional. A história passa a ser uma tentativa de narrar o passado com base em evidências e argumentos ao alcance de todos. A ciência passa a ser uma tentativa de explicar o funcionamento do mundo com base em evidências e argumentos ao alcance de todos. Essa foi a ampla revolução iniciada pelos filósofos de Mileto.

Podemos ver assim que o naturalismo no coração e na raiz do ateísmo está ligado a um compromisso muito mais amplo com o racionalismo. (Esse racionalismo com r minúsculo não deve ser confundido com o Racionalismo com R maiúsculo do século XVII, muito mais específico e ambicioso nas reivindicações que faz em relação ao poder da racionalidade.) O naturalismo é uma consequência do racionalismo, e portanto é no racionalismo, mais do que no naturalismo, que encontramos os fundamentos do ateísmo. Em vista disso, não seria correto afirmar que o ateísmo vem de um compromisso raso com a primazia da investigação científica.

Na

verdade,

o

ateísmo

baseia-se

em

um

compromisso mais amplo com o valor das explicações racionais, e a ciência é apenas um êxito espetacular desse compromisso. Às

vezes

impinge-se

aos

ateus

um

compromisso

exagerado com o valor das explicações racionais. Essa crítica parece atraente à primeira vista quando pressupõe uma visão de mundo que abarque mais fenômenos do que aqueles que admitem explicações racionais. É claro que um ateu pode aceitar essa visão de mundo, mas apenas se houver motivos racionais para acreditar na existência de coisas que não admitem explicações racionais. Pode-se dizer, por exemplo, que não temos uma explicação racional para a maneira como a consciência surge em um cérebro físico, mas temos motivos racionais para aceitar que a consciência existe porque somos todos seres racionais.

Nesse sentido é racional acreditar na existência de coisas que ainda não admitem explicações racionais. Não nos falta apenas uma explicação racional para a existência de fantasmas, por exemplo: falta também um motivo racional para acreditar que existam. Para que a crítica ao racionalismo ateísta seja válida, é necessário afirmar que os ateus estão errados em dizer que não devemos acreditar em coisas que não temos motivos racionais para crer que existam. Seria difícil entender como se poderia adotar essa linha de argumentação sem abrir a porta para todo tipo de absurdos irracionais. Se estamos dispostos a acreditar em coisas que não temos motivos racionais para crer que existam, por que não acreditar na fada dos dentes, por exemplo? (Os teístas em geral se irritam quando os ateus mencionam entidades como a fada dos dentes ou o Papai Noel para ilustrar o ridículo de permitir a crença no irracional, mas essa irritação não tem valor como contra-argumento.) É claro que as alegações dos teístas mais inteligentes não param por aí, e a mesma coisa acontece com as respostas dos ateus – porém não temos mais espaço para desenvolver o argumento, e o mais importante já foi dito. Em suma, o ateísmo baseia-se no naturalismo, que por sua vez baseiase no racionalismo. As origens do racionalismo e do naturalismo remontam à Grécia Antiga – um fato importante porque marca o primeiro capítulo na história do ateísmo. A importância desse fato reside na relação entre as origens do

ateísmo e as origens da racionalidade ocidental como um todo. Assim o ateísmo pode ser visto como parte de uma história mais ampla sobre o desenvolvimento do intelecto e da compreensão humana. A afinidade entre o ateísmo e o progresso

torna-se

ainda

mais

evidente

quando

examinamos o próximo grande passo no desenvolvimento do ateísmo: o Iluminismo.

O nascimento do ateísmo declarado No livro que escreveu sobre a história do ateísmo, David Berman expressa surpresa com o tempo que o ateísmo levou para se transformar em um sistema de crenças declarado.

Segundo

Berman,

a

primeira

obra

declaradamente ateísta foi o Sistema da natureza do Barão D’Holbach, publicada em 1770, e a primeira resposta em solo inglês foi Answer to Dr. Priestley’s Letters to a Philosophical Unbeliever, publicada em 1782. A autoria dessa última obra é controversa, e talvez o texto seja resultado do trabalho conjunto de dois homens – William Hammon e Matthew Turner. Nos círculos acadêmicos existem debates sobre pequenas obras ateístas que talvez tenham surgido antes. Thrower está convencido de que certos escritos de Demócrito e de Lucrécio são ateístas, embora concorde que o Barão D’Holbach tenha sido “o primeiro ateu inequivocamente declarado na Tradição Ocidental”. Assim o relato de Thrower coincide com a afirmação de Berman, segundo a qual o

ateísmo surgiu como uma força articulada distinta apenas no fim do século XVIII. Antes disso tivemos apenas obras isoladas que podem ser consideradas ateístas e certos períodos históricos em que Deus ou os deuses foram vistos como irrelevantes para algumas camadas da sociedade, como aconteceu entre as classes mais abastadas no início do

Império

Romano,

mas

não

existia

uma

tentativa

sistemática e constante de apresentar e divulgar a visão de um mundo sem deuses como alternativa à visão religiosa. A partir desse ponto, o surgimento e o estabelecimento do ateísmo têm uma história muito interessante, analisada em detalhe por Berman. No entanto, aqui eu gostaria de enfatizar dois pontos por outros motivos. O primeiro é que o surgimento do ateísmo nessa época coincide com a história progressista do ateísmo, segundo a qual

as

raízes

desse

sistema

de

crenças

estão

no

nascimento da racionalidade ocidental na Grécia Antiga. Assim

como

o

naturalismo

e

o

racionalismo



os

antepassados do ateísmo – foram frutos da evolução da mitologia à razão, o ateísmo como doutrina declarada foi fruto do progresso rumo aos valores do Iluminismo. Embora

esteja

na

moda

achincalhar

os

ideais

do

Iluminismo, o sucesso dessa evolução resta demonstrado quando percebemos que as doutrinas iluministas mais básicas são o que hoje fundamentam a nossa concepção de uma sociedade civilizada e moderna. Podemos debater o sentido exato de igualdade, liberdade e fraternidade, mas

esses são três conceitos centrais para a nossa ideia de uma sociedade boa e justa. Podemos ter perdido um pouco do otimismo

iluminista

acerca

do

poder

da

razão,

mas

certamente não gostaríamos de regredir a uma sociedade baseada na superstição. Apesar dos excessos em nosso desrespeito à autoridade, pouca gente gostaria de voltar a um tempo em que cargos eram herdados, apenas homens da classe média tinham direito ao voto e eclesiásticos influentes detinham uma forte influência política. Então, apesar de todos os defeitos, o Iluminismo deve ser visto por qualquer pessoa razoável como um estágio importante no progresso da sociedade ocidental – pois os ideais iluministas triunfaram. Seria exagero dizer que, por ter surgido em meio ao Iluminismo, o ateísmo declarado necessariamente teria de compartilhar essa glória. Por outro lado, seria pouco inteligente

afirmar

que

o

surgimento

simultâneo

do

Iluminismo e do ateísmo moderno seja uma simples coincidência. A chegada de ambos no mesmo ponto da história pelo menos sugere uma ligação, e não é difícil ver como essa ligação pode ser feita. O ateísmo leva a rejeição iluminista da superstição, da hierarquia e da autoridade sem fundamento racional a uma conclusão lógica. Segundo a imagem que o ateísmo tem de si mesmo, seria correto dizer que quando estivéssemos prontos para examinar a religião sob a luz fria da razão, toda a falsidade viria à tona. Afinal, a religião não passa de um conjunto de superstições e mitos

baseados em práticas humanas localizadas. Segundo essa visão, é impossível levar os ideais do Iluminismo a sério e ao mesmo tempo apegar-se à crença de que a religião representa a verdade. Mesmo

que

eu

não

tenha

conseguido

fazer

uma

reivindicação incontestável, não restam dúvidas de que é possível explicar o surgimento do ateísmo declarado no fim do

Iluminismo

como

parte

da

história

do

constante

progresso da sociedade e do intelecto humano – mesmo que esse progresso seja irregular e reversível. O segundo detalhe interessante em relação ao surgimento tardio do ateísmo declarado são as implicações que traz no que diz respeito ao profundo arraigamento da religião em nossa sociedade. Um das coisas mais fascinantes no livro de Berman é o relato de como os escritores do século XVII muitas vezes negavam até mesmo a possibilidade de que pudesse existir um ateu legítimo – uma pessoa que realmente acredita que Deus não existe em vez de simplesmente agir como se Deus não existisse. A religião era vista como uma crença universal. Na época, acreditar na existência de uma pessoa que negasse a existência de Deus seria tão absurdo quanto negar a existência do sol ou das estrelas. Na verdade, houve quem usasse a suposta crença universal

em

Deus

como

argumento

para

provar

a

existência de Deus. Mas essa variação sobre o velho adágio “Cinquenta milhões de franceses não podem estar errados”

deixa bastante a desejar como argumento racional. Afinal de contas, houve uma época em que a maioria da população do mundo achava que a chuva vinha dos deuses ou que a Terra era o centro do universo. Hoje sabemos que essas pessoas estavam erradas, e não é preciso refletir durante muito tempo para chegar à conclusão de que uma crença generalizada é insuficiente para provar a verdade ou a falsidade de uma afirmação qualquer. Se fosse assim, não precisaríamos gastar o nosso tempo em busca de uma cura para o câncer, por exemplo. Seria mais fácil combinar que a cura é comer chocolate. O que a crença generalizada na religião demonstra é apenas que o ateísmo está em uma posição desvantajosa na batalha. Isso também explica por que o ateísmo vem sendo definido negativamente como a negação da crença em Deus, e não de maneira positiva como uma espécie de naturalismo. Como a história sobre o Monstro de Loch Ness demonstra, a necessidade de definir o ateísmo em termos negativos existe apenas em um contexto em que a crença religiosa é a norma. E a crença religiosa foi e continua a ser a norma pelo mundo afora. Conseguir estabelecer-se como uma alternativa à religião e angariar milhões de pessoas – e, verdade seja dita, na maioria pessoas inteligentes e com boa formação – diante de uma oposição quase unânime em pouco mais de duzentos anos é um triunfo e tanto. Mas também é um lembrete de como somos inexperientes em viver nossa vida

e organizar nossa sociedade sem ter a religião como pano de fundo. O ateísmo em massa ainda é jovem, e por esse motivo devemos esperar certos sinais de imaturidade. Alguns desses sinais podem ter sido ao menos em parte responsáveis por alguns dos mais trágicos episódios do século passado. Agora vamos analisá-los.

O ateísmo e o totalitarismo no século XX Uma das acusações mais graves feitas contra o ateísmo é a de ser responsável por alguns dos piores horrores do século XX, como os campos de concentração nazistas e os gulags de Stálin. Os regimes fascistas e comunistas puderam cometer tamanhas atrocidades apenas porque eram ateístas. Como os ateus podem responder a essa acusação? Qualquer tentativa de oferecer uma resposta satisfatória esbarra

na

controversa.

dificuldade Em

de

particular

que

parte

as

causas

da

história

profundas

é do

Holocausto são motivo de acalorados debates. Não pretendo aqui resolver essa controvérsia. Assim, vou basear meus argumentos na versão mais aceita da história, usando argumentos mais controversos apenas para demonstrar que certas

pressuposições

antiateístas

não

passam

de

pressuposições – e não se confundem com os fatos. Mais uma vez, não vou indicar referências e fontes para todas as minhas alegações no texto, mas a informação necessária

encontra-se na seção de referências e sugestões de leitura ao final do livro. Se considerarmos inicialmente o fascismo, o primeiro fato evidente é que o papel da religião no fascismo variou muito e às vezes é difícil de interpretar. Na Espanha, a Igreja Católica ficou ao lado de Franco na Guerra Civil, e continuou a apoiá-lo por muitos anos depois que ascendeu ao poder – os conflitos mais graves surgiram apenas na década de 60. Na verdade, muitos viram a Guerra Civil como uma cruzada religiosa contra a impiedade dos republicanos. Ainda existem muitas controvérsias sobre até que ponto os integrantes da prelatura católica Opus Dei ocuparam posições importantes na Espanha de Franco. É verdade que a Espanha de Franco não foi o regime fascista mais brutal a existir, mas ao mesmo tempo isso só é verdade em relação aos extremos de Hitler. Podemos dar como exemplo a repressão e o terror contra os bascos, imortalizados

na

representação

feita

por

Picasso

do

bombardeio a Guernica na hora de maior movimento em um dia de feira, de maneira a assegurar o maior número possível de fatalidades entre os civis. O fascismo de Franco foi expressamente católico. Na Itália, o Vaticano assinou com o governo fascista de 1929 o famoso Tratado de Latrão, que estabeleceu o reconhecimento mútuo entre a Itália fascista e o Estado do Vaticano e fez de Mussolini o líder em cujo governo o catolicismo romano tornou-se a religião oficial da Itália. A

resistência a Mussolini aumentou com o passar dos anos, mas em nenhum momento houve uma maioria clara na oposição feita ao regime pela Igreja Católica – nem mesmo em 1938, quando as leis antijudeus foram aprovadas. Mais uma vez surgem problemas para quem pretende afirmar que o ateísmo seria a força motriz por trás do fascismo italiano.

8. A ideologia nazista era muito distante do ateísmo naturalista.

O caso da Alemanha nazista é o mais importante, pois sob o comando de Hitler as piores atrocidades fascistas foram cometidas. Por outro lado, sabemos que a Alemanha nazista não era um simples estado ateu. Para dar um exemplo, Hitler defendia a visão germânica tradicional, segundo a qual as mulheres devem se concentrar em “Kirche, Küche, Kinder” – na igreja, na cozinha e nos filhos. Em termos bem mais concretos, uma concordata foi

assinada entre o governo nazista e a Igreja Católica em 1933. A proximidade entre as igrejas protestantes e o regime nazista foi ainda maior em função do tradicional antissemitismo no protestantismo alemão. A resistência não veio

das

igrejas

protestantes

estabelecidas,

mas

do

rompimento promovido pela igreja confessional, liderada pelos pastores Martin Niemöller e Dietrich Bonhoeffer. Esses dissidentes

são

merecidamente

lembrados

hoje

como

exemplos brilhantes de resistência ao nazismo, mas a necessidade de abandonar a igreja tradicional para liderar a resistência não é motivo de celebração para a cristandade. Além do mais, as doutrinas nazistas entravam em contradição com o tipo de naturalismo racional associado ao ateísmo tradicional. Para ser mais exato, a ideologia nazista envolvia o que o historiador Emilio Gentile chamou de “sacralização da política”: Esse processo ocorre quando, de forma mais ou menos dogmática e elaborada, um movimento político confere status sagrado a qualquer entidade terrena (a nação, o país, o estado, a humanidade, a sociedade, a raça, o proletariado, a história, a liberdade ou a revolução) e assim

o

transforma

em

um

princípio

absoluto

de

existência coletiva e passa a considerá-lo a principal fonte de valores para o comportamento individual e coletivo e a exaltá-lo como o princípio ético supremo da vida pública. Assim a entidade torna-se objeto de veneração e dedicação, podendo chegar ao ponto de motivar o

autossacrifício. Le religioni della politica. Fra democrazie e totalitarismo (Roma Bari, Laterza, 2001) Visto nesse contexto, o problema com a Alemanha nazista não foi o suposto ateísmo, mas a elevação de conceitos como sangue, terra e nação a um status quase religioso. Creio ter deixado claro ao longo deste livro que esse tipo de sacralização

é

absolutamente

inexistente

no

ateísmo

racional. Como último comentário em relação à Alemanha nazista, eu gostaria de dizer que, por mais complexas que sejam as causas para o Holocausto, parece impossível negar o papel desempenhado pela religião no antissemitismo ocidental. O historiador Kristen Renwick Monroe escreveu o seguinte: A religião teve um papel importante no Holocausto. Desde a época de Constantino, no século IV, as igrejas cristãs tentavam converter os judeus, e as igrejas cristãs medievais de toda a Europa envolveram-se de diferentes maneiras na perseguição porque culpavam os judeus pela crucificação de Cristo. Essa crença lançou as bases do antissemitismo e jamais foi refutada, ou sequer discutida, por qualquer grupo religioso existente à época. Verbete “Holocaust” da Encyclopedia of Politics and Religion (Londres, Routledge, 1998), pág. 338.

Parece impossível negar que a história do antissemitismo cristão seja ao menos em parte responsável por criar um ambiente em que o Holocausto fosse concebível. Uma questão mais abrangente diz respeito às dicotomias estabelecidas pela religião entre os devotos e os ímpios, os escolhidos e os condenados, os bons e os maus. Nesse sentido,

a

religião

é

por

definição

não

apenas

discriminatória, mas discriminatória de uma forma que eleva certas pessoas acima das outras. Não me parece fantasioso afirmar que os séculos de tradição religiosa na sociedade ocidental possibilitaram a distinção feita pelo nazismo entre a superioridade ariana e a inferioridade de todos os demais.

9. O papa e Mussolini assinam a concordata entre o Estado Italiano e o Vaticano.

Por esse motivo, a hipótese de que o ateísmo tenha sido a força

motriz

por

trás

do

fascismo

europeu

não

é

convincente. Pelo contrário: parece-me que a religião tem uma parcela de culpa maior do que o ateísmo em relação aos horrores perpetrados. No entanto, não é necessário à minha defesa do ateísmo que a culpa recaia sobre a religião.

Basta

demonstrar

particularmente

que

ateísta

não na

existe ideologia

nenhum ou

nas

elemento práticas

fascistas, e que portanto é um equívoco culpar o ateísmo pelo terror. Mas as coisas são bem diferentes no que diz respeito ao comunismo soviético (e também ao comunismo chinês e asiático, que não pretendo discutir). Não há dúvida de que nesse caso houve um estado declaradamente e oficialmente ateu. Sabemos que, em especial sob o regime de Stálin, houve extermínios em uma escala apavorante. Mas isso significa que o ateísmo deve levar a culpa pelos desastres do comunismo estatal? O ateísmo da União Soviética não é motivo para achar que os ateus são maus, da mesma forma como o vegetarianismo de Hitler não é motivo para supor que todos os vegetarianos são nazistas. Certamente se trata de uma refutação histórica da ideia de que o ateísmo é sempre bom, mas apenas um ateu muito ingênuo pensaria que é impossível usar o ateísmo para fazer o mal. Os críticos cristãos que pensam que a União Soviética funciona como uma espécie de refutação lógica do ateísmo estariam obrigados, pela mesma lógica, a aceitar que atrocidades como as Cruzadas ou a Inquisição refutam a cristandade. Para que a história de União Soviética depusesse contra o ateísmo, seria necessário provar que o regime soviético foi uma consequência lógica e inevitável das crenças ateístas. Mas isso não faz sentido. A simples existência de milhões de

ateístas

humanistas

sem

nenhuma

ligação

com

o

comunismo nas democracias ocidentais demonstra que não existe nenhuma ligação necessária entre ser ateu e tolerar a existência dos gulags. Mesmo assim, acredito que uma lição pode ser aprendida com a maneira como o ateísmo se integrou ao comunismo soviético, mesmo que esse comunismo não seja de maneira alguma parte essencial do ateísmo. Essa lição diz respeito ao que acontece quando o ateísmo se torna demasiado militante, e os ideais do Iluminismo, demasiado otimistas. As raízes intelectuais do comunismo soviético estão na filosofia de Karl Marx. Marx ficou famoso ao dizer que “a religião é o ópio das massas”. Mas é errado tomar essa frase de maneira isolada e concluir que Marx defendia uma abolição forçada e imediata da religião. Marx acreditava na abolição da religião, mas para que isso acontecesse seria necessário criar uma sociedade em que as pessoas não precisassem mais de consolos religiosos. Nessa situação não haveria necessidade de banir a religião, pois em um estado

comunista

ela

simplesmente

se

tornaria

desnecessária. Assim, podemos ver que o comunismo soviético encontrase a pelo menos dois graus de distância das crenças centrais do ateísmo. Em primeiro lugar, o comunismo é apenas uma dentre várias crenças ateístas, e com certeza não é a mais popular. Em segundo lugar, a repressão ativa da religião praticada durante o comunismo soviético é uma

distorção

do

comunismo

original

marxista,

que

não

advogava essa prática. Além do mais, embora fosse oficialmente ateísta, a União Soviética

na

verdade

nunca

teve

uma

relação

de

antagonismo com a Igreja. Stálin permitiu a formação do Patriarcado de Moscou, um órgão central da Igreja Ortodoxa Russa. De acordo com o historiador Michael Bordeaux, durante os anos de domínio soviético o Patriarcado apoiou abertamente todas as iniciativas militares do governo soviético: a supressão do levante húngaro (1956), a construção do Muro de Berlim (1961), a invasão da Tchecoslováquia (1968) e a invasão do Afeganistão (1979). Verbete “Russia” na Encyclopedia

of

Politics

and

Religion (Londres, Routledge, 1998), pág. 657. As alegações pós-Soviete de que a Igreja sempre se opôs ao regime soviético simplesmente não colam. Vemos assim que os ateus podem se distanciar dos terrores de Stálin simplesmente dizendo que o comunismo soviético sequer é o resultado lógico do comunismo marxista, e muito menos o resultado lógico dos valores centrais do ateísmo, que não têm semelhança alguma com os valores do comunismo. Porém, mesmo que essa defesa seja suficiente para obter o veredito de “inocente” no tribunal da história, a experiência soviética revela dois

perigos do ateísmo. O primeiro é a militância exagerada. Uma coisa é discordar da religião; outra é achar que a repressão e a instituição do ateísmo oficial sejam as melhores formas de combatê-la. O que aconteceu na Rússia Soviética é um dos motivos por que não vejo o ateísmo militante com bons olhos. Quando há pouco tempo ouvi alguém dizer que considerava a crença religiosa uma doença mental e que não via a hora de que os religiosos passassem a receber tratamento médico, pude ver um exemplo de como o ateísmo militante pode levar a um totalitarismo opressor. Mas esse não é um perigo exclusivo do ateísmo. O fundamentalismo é um perigo para qualquer sistema de crenças, e por esse motivo creio que precisamos nos defender acima de tudo contra todo e qualquer tipo de fundamentalismo, e não apenas contra a religião. O modelo do ateísmo, portanto, não deve ser o ateísmo estatal soviético, mas o secularismo ocidental. Na verdade, o secularismo foi um dos grandes triunfos da civilização ocidental e um dos legados do Iluminismo que mais nos enche de orgulho. A absoluta maioria dos ateus não deseja um estado ateu, mas secular, em que a religião e as crenças não sejam reguladas por governo nenhum, mas deixadas a cargo da consciência de cada um, de acordo com a ampla tradição liberal de liberdades individuais. O estado deveria intervir em assuntos religiosos apenas para combater o extremismo que ameaça a liberdade dos cidadãos. Um segundo perigo evidenciado pelo comunismo soviético

é a crença em que o estado possa organizar-se apenas com base em princípios racionais, sem levar em conta as tradições e a história e sem respeitar as liberdades individuais. Vale lembrar que muitos intelectuais ocidentais, incluindo ateus e livres-pensadores como Bertrand Russell, a princípio demonstraram um grande otimismo em relação à Revolução

Soviética.

Havia

uma

crença

ingênua

na

possibilidade de se passar uma esponja no passado da sociedade e recomeçar da estaca zero, pautando-se apenas pelos valores da justiça e da eficiência. Esse desrespeito ou essa negação da natureza humana e das tradições culturais foi parcialmente responsável pelos terrores que vieram a seguir. Não há motivo para que os ateus se vejam obrigados a adotar essa crença, e na verdade hoje em dia quase ninguém a aceita em função dos resultados que trouxe no século passado. Mesmo assim, no ateísmo racional existe o perigo de superestimar a possível melhoria no estado geral das coisas se a sociedade fosse ordenada de forma mais racional. Se essa melhoria incluir a imposição de um “sistema mais racional” em uma sociedade contrariada, os resultados serão catastróficos.

Conclusão Creio que podemos ter vários insights interessantes ao analisar a história do ateísmo. O primeiro diz respeito ao surgimento

do

racionalismo

na

Grécia

Antiga

e

à

subsequente marcha rumo ao Iluminismo. O ateísmo passa a fazer parte da história da evolução da cultura humana no momento em que substitui a superstição pelas explicações racionais e abandona as ilusões de um reino sobrenatural em favor de uma vida no mundo natural. O segundo diz respeito à ausência de um elo direto ou necessário entre o ateísmo e os terrores perpetrados pelos regimes totalitaristas no século XX. Cabe, no entanto, lembrar que o ateísmo militante ou fundamentalista, que busca suplantar a religião à força, oferece os mesmos perigos que qualquer outra forma de fundamentalismo. Portanto, a manifestação política mais autêntica do ateísmo é o secularismo, e não o ateísmo estatal.

CAPÍTULO 6 CONTRA

A RELIGIÃO?

O errado e o ruim Existe uma percepção generalizada de que o principal objetivo dos ateus é atacar a religião. Essa opinião integra uma percepção ainda mais ampla segundo a qual o ateísmo seria por definição antirreligioso, e não pró-naturalista. É difícil mudar essa percepção, uma vez que em quase todos os países do mundo a religião recebe muito mais atenção do que o ateísmo, e dessa forma os ateus muitas vezes são obrigados a defender o próprio espaço e acabam vistos como inimigos da religião. Um acontecimento recente no Reino Unido pode ilustrar como é fácil causar a impressão errada. Existe um quadro de três minutos no programa matinal de notícias por rádio mais importante do país chamado “Thought for the Day”. O programa, que no restante do tempo é secular, oferece esse espaço a porta-vozes de diferentes religiões para que façam breves pregações supostamente edificantes, ainda que quase sempre o resultado seja apenas banal. As três principais organizações ateístas do Reino Unido – a British Humanist Association, a National Secular Society e a Rationalist Press Association – por muito tempo fizeram campanhas para que pontos de vista não religiosos também

pudessem usar o espaço. Não se trata de excluir a religião, mas

essas

instituições

estão

compreensivelmente

aborrecidas e irritadas, uma vez que a exclusão do ateísmo mais uma vez dá a impressão de que apenas as religiões podem falar com autoridade sobre questões de ética e de princípios. Quando uma carta protestando contra a exclusão dos ateus assinada por várias figuras de prestígio na vida pública recebeu a atenção da mídia, inúmeras pessoas viram a campanha como um ataque mesquinho dos ateus contra a religião. (Pouco resolveu a BBC ter oferecido um espaço alternativo a um oponente da religião bastante agressivo, que previsivelmente usou a oportunidade de maneira hostil.) Assim como inúmeras feministas que lutam apenas

por

direitos

iguais

foram

ridicularizadas

com

acusações de que odeiam os homens, os ateus que se opõem

ao

monopólio

da

religião

sobre

os

valores

educacionais são taxados de “antirreligiosos”. Os ateus são necessariamente antirreligiosos em um único sentido: no de acreditar que as religiões são todas falsas. Mas, nesse sentido do prefixo “anti”, podemos dizer que inúmeros os muçulmanos são anticristãos, inúmeros cristãos

são

antijudeus,

inúmeros

protestantes

são

anticatólicos e assim por diante. Mesmo assim, seria mais adequado não chamar nenhum desses grupos de “anti” simplesmente porque não concordam uns com os outros. Taxar um grupo de “anti” sugere mais do que uma simples

discordância – sugere hostilidade, e os ateus não são necessariamente mais hostis em relação aos religiosos do que os judeus seriam necessariamente hostis em relação aos hinduístas. Claro, existem

existem católicos

ateus

antirreligiosos,

antiprotestantes

e

como

também

vice-versa.

Mais

adiante pretendo investigar os motivos dessas atitudes hostis. Mas essa hostilidade não é inevitável nem necessária ao ateísmo. A oposição feita pelo ateísmo à religião é em essência uma oposição à verdade da religião. Dessa forma, qualquer defesa do ateísmo precisa enfrentar o desafio representado pela crença religiosa. Afinal de contas, muitas pessoas inteligentes são religiosas, e o ateísmo não pode se limitar a desconsiderar a crença religiosa simplesmente alegando que se trata de uma superstição estúpida. Creio ter demonstrado que as evidências que sustentam o ateísmo são muito persuasivas. Para completar o argumento, no entanto, precisamos analisar os méritos da alternativa preferida pela maioria.

Argumentos a favor da existência de Deus Se você pegar qualquer livro de introdução à filosofia da religião, vai encontrar vários argumentos tradicionais a favor da existência de Deus. Demonstrar por que todos esses argumentos são furados é uma diversão e tanto, mas

a meu ver não vale a pena gastar tempo com isso porque continuamos sem saber o que leva as pessoas a adotarem uma religião. Essa não é uma opinião pessoal, mas uma opinião sincera de várias pessoas religiosas que passaram muito tempo a refletir sobre o tema. Posso citar como exemplo Peter Vardy, filósofo cristão e autor de vários livros importantes sobre filosofia da religião que considera esses argumentos “uma perda de tempo”. Russell Stannard, o importante físico que escreveu um livro sobre evidências para a existência de Deus chamado The God Experiment, afirmou: “Eu não tenho que acreditar em Deus. Eu sei que Deus existe – é assim que me sinto”. Em outras palavras, as evidências e os argumentos não servem para muita coisa – o que conta de verdade é a convicção pessoal. Mas nesse caso qual seria a verdadeira função dos argumentos a favor da existência de Deus? A explicação que Vardy oferece para o projeto de Aquino ao formular diversas

versões

do

argumento

parece

ser

a

mais

convincente. “Acho que ele estava tentando mostrar aos que acreditavam – e todo mundo acreditava – que essa crença era racional”, disse. “Não sei se esses argumentos foram concebidos como provas isoladas.” Vardy

está

basicamente

definindo

uma

forma

de

argumentação chamada de “apologética”. A função desses argumentos não é demonstrar que Deus existe, mas demonstrar que a crença em Deus não pressupõe nenhuma irracionalidade. Trata-se de conciliar a crença e a razão, não

de provar que uma pode ser justificada através da outra. Para deixar a diferença mais clara, façamos uma analogia. Um noivo acorda na manhã do casamento e descobre que a noiva desapareceu sem deixar pistas. Sem nenhum motivo racional, passa a acreditar que a noiva fugiu para a América do Sul para se reencontrar com um antigo namorado. Não existe fundamento racional para a crença do noivo, mas isso não significa que essa crença seja contrária à razão. Desde que uma crença esteja de acordo com as evidências, ela pode adequar-se e, em certos casos, justificar-se através da razão. Acho que os argumentos tradicionais a favor da existência de Deus funcionam da mesma forma. Eles não provam que Deus existe. Na melhor das hipóteses, demonstram que a crença na existência de Deus é consistente com a racionalidade e com as evidências. Tentam demonstrar que a existência de Deus, mesmo que não esteja comprovada, é compatível com a razão – como acontece no caso do noivo. Mas então o que são esses argumentos? Não quero discuti-los em muito detalhe, mas parece-me que vale a pena esboçar a forma geral que assumem e explicar por que são inadequados, em especial porque diferentes versões desses argumentos são muitas vezes empregadas pelos religiosos como um ataque contra o ateísmo.

O argumento cosmológico O argumento cosmológico afirma, em resumo, que se tudo

precisa ter uma causa, o universo não seria exceção. A única força capaz de dar conta de um trabalho dessa envergadura seria Deus, ou pelo menos a melhor hipótese para

explicar

as

causas

do

universo

seria

Deus.

O

argumento cosmológico surge toda vez que alguém diz para o naturalista: “Ah, mas se o universo começou com o Big Bang, o que causou o Big Bang?”. A meu ver esse argumento é um verdadeiro horror, uma desgraça para o bom nome da filosofia – e meu único objetivo

ao

discuti-lo

é

desmascarar

a

pobreza

do

pensamento que o fundamenta. Uma das muitas falhas imperdoáveis nesse argumento é que ele se baseia nos mesmos princípios que tenta refutar. Os princípios intuitivos por trás do argumento são que nada pode existir sem causa e que a causa de qualquer coisa enorme e complexa precisa ser ainda mais enorme e mais complexa. Mas no fim o argumento cosmológico postula a existência de Deus como algo simples que dispensa qualquer tipo de causa. Se é possível que Deus exista sem nenhuma causa maior do que Deus, por que o universo não poderia existir sem nenhuma causa maior do que o próprio universo? Os princípios desse argumento ou valem ou não valem. Se valem, então Deus precisa ter uma causa, e assim a cadeia causal regride ad infinitum. Se não valem, não há motivo para se postular a existência de Deus. A segunda falha imperdoável é que, mesmo que a lógica do

argumento

funcionasse,

não

chegaríamos

necessariamente a Deus. Chegaríamos apenas a uma causa maior e mais complexa do que o próprio universo que por sua vez não tem nenhuma causa. Se essa causa se parece com o Deus tradicional, que em geral é mais parecido com uma

personalidade

superuniverso,

individual

permanece

do

uma

que

questão

com aberta.

um O

argumento não consegue demonstrar que a causa do universo seja necessariamente algo parecido com Deus. Visto como um exemplo de apologética, no entanto, podemos compreender os méritos desse argumento, graças ao qual as pessoas podem reconciliar as crenças religiosas com tudo o que sabemos a respeito do universo. A suposição de que o Big Bang tenha sido causado por Deus não contraria a nossa razão, e é possível que todas as coisas no universo necessitem de uma causa e que essa cadeia causal termine em Deus, já que precisa terminar em algum

ponto.

confundirem

Assim,

esse

enquanto

argumento

com

os uma

religiosos evidência

não da

existência de Deus, podem tranquilamente usá-lo como uma demonstração da possibilidade racional da crença em Deus. Mesmo assim, permanece aberta a questão da justificativa para a crença em Deus, que pretendo abordar a seguir. Esse argumento precário também exige cuidado, porque em essência postula a existência de um “Deus das lacunas”. Deus é invocado para explicar aquilo que hoje não sabemos explicar. Essa é uma estratégia perigosa. Afinal, em outros

tempos Deus foi invocado para explicar toda sorte de fenômenos naturais que mais tarde pudemos compreender, e assim precisou se afastar cada vez mais rumo ao desconhecido. Nesse caso, Deus se escondeu atrás do estopim que deu início ao universo. Mas nesse ritmo os religiosos logo vão ter problemas para encontrar mais lugares onde esconder Deus.

O argumento teleológico Esse é mais um péssimo argumento que compara o universo a um mecanismo como um relógio. Se você encontra um relógio, é necessário que ele tenha sido feito por um relojoeiro. Um mecanismo tão complexo não poderia ter surgido por simples acaso. O universo é muito mais complexo do que um relógio, e portanto existem ainda mais razões para supor que não tenha surgido por acaso. Nesse caso, deve haver um grande arquiteto ou um grande relojoeiro por trás de tudo: Deus. A analogia não funciona porque o universo não é um simples mecanismo como um relógio. Quando vemos um coelho, por exemplo, não postulamos a existência de um coelheiro. Pensamos apenas que o coelho teve pais. Diferentemente do que acontece com os artefatos, os objetos do mundo natural surgem através de processos naturais amplamente compreendidos. Ao ler um livro como O

relojoeiro

cego,

de

Richard

Dawkins,

compreender

como

a

evolução

consegue

você

pode

explicar

a

impressão de que existiria um relojoeiro. Na verdade, se você olhar para tudo o que sabemos a respeito da formação de universos e de organismos vivos, a mão do relojoeiro chama atenção justamente pela ausência. Além do mais, como David Hume afirmou, postulamos a existência de um relojoeiro apenas porque conhecemos a causa dos relógios. Mas não conhecemos a causa dos universos,

e

portanto

não

podemos

fazer

nenhuma

suposição quanto a quem ou ao que possam ser. Também me

parece

oportuno

acrescentar

que

é

um

antropocentrismo injustificável supor que o criador do universo seja uma versão luxuosa, onipotente, onisciente e onibenevolente de nós mesmos. Por que não poderia ser algo mais abstrato e muito diferente do Deus religioso tradicional? Mais uma vez, o argumento que tenta provar a existência de Deus revela-se um fracasso retumbante, ainda que abra espaço para a existência de um Deus. Não é contra a razão nem contra a evidência acreditar que possa haver uma inteligência por trás de tudo o que existe. Mas isso não equivale a dizer que existem razões para acreditar nessa hipótese. Essas razões permanecem insondáveis.

O argumento ontológico O argumento ontológico desperta um certo interesse filosófico, mas não obtém mais sucesso do que os argumentos anteriores. Na verdade, de certa forma é o mais

fraco dentre os três, porque nem ao menos contribui para a apologética. Existem inúmeras versões do argumento ontológico. No entanto,

todas

buscam

demonstrar

que

surge

uma

contradição lógica se supusermos que Deus não existe, e que portanto a existência de Deus é uma necessidade lógica. Uma das maneiras de fazer isso é pensar no conceito de Deus e reconhecer que esse conceito representa uma entidade de absoluta perfeição. Ora, uma entidade perfeita que não existe obviamente não é absolutamente perfeita, uma vez que uma entidade idêntica, porém existente, seria superior. Logo vemos que o conceito de uma entidade absolutamente perfeita precisa incluir a existência, e assim percebemos que Deus precisa existir sob pena de cairmos em contradição. A maneira como formulei esse argumento deixa uma falha evidente: tudo o que podemos demonstrar através da lógica é que o conceito de Deus inclui o conceito da existência. Mas essas verdades dizem respeito apenas aos conceitos. Não podemos partir da verdade sobre os conceitos e tirar conclusões sobre o que existe no mundo real. O conceito de círculo, por exemplo, encontra-se claramente definido em fórmulas matemáticas, mas não podemos concluir, a partir do simples conceito, que existam no mundo círculos que satisfaçam todas as exigências matemáticas, ou mesmo que o espaço real esteja de acordo com as regras da geometria

euclidiana em função das quais os círculos são definidos. Mas esse não é o único aspecto em que o argumento ontológico fracassa. O argumento supostamente demonstra uma incompatibilidade lógica entre Deus e a não existência. Porém existem outros pares de conceitos que requerem a existência um do outro em termos lógicos. Descartes falou em

vales

e

montanhas,

por

exemplo.

Existe

uma

interdependência parecida entre os conceitos de marido e esposa. O que essa dependência mostra é que uma esposa sem marido não pode existir como esposa (ou seja, a mulher poderia existir sem marido, mas nesse caso deixaria de ser esposa). Levando a analogia com Deus mais adiante não chegaríamos à impressionante conclusão de que Deus precisa existir, mas apenas à verdade absolutamente banal de que um Deus sem existência não poderia existir. Esse raciocínio não demonstra que Deus precisa existir, mas que se Deus existe, Deus precisa existir. Muitos livros foram escritos sobre o argumento ontológico, porém a maioria dos filósofos concordaria em dizer que esse raciocínio comete o equívoco de saltar das verdades sobre os conceitos para as verdades sobre a existência – um passo nem um pouco lógico. Assim o argumento ontológico junta-se

ao

argumento

ideológico

e

ao

argumento

cosmológico em um arquivo chamado “Erros antigos com os quais podemos aprender”.

O que justifica a crença?

Tenho certeza de que muitos religiosos não vão ficar muito preocupados ao saber que esses argumentos estão sendo desconsiderados aqui, uma vez que pouquíssimas pessoas baseiam a própria fé nesse tipo de raciocínio. Mas se argumentos desse tipo não servem para justificar a crença religiosa, o que poderia cumprir esse papel? Parece que a maioria das pessoas religiosas justifica a própria fé com uma convicção íntima. Como Russell Stannard disse, as pessoas que creem sentem que Deus existe e assim podem dispensar toda sorte de argumentos. O grande filósofo da religião Alvin Plantinga chama isso de fé, e a define como “uma fonte especial de conhecimento à qual não se pode chegar apenas com o uso da razão”. Parece-me importante que teístas e ateus concordem nesse ponto. Mas se esse de fato é o fundamento da crença religiosa, não parece muito inteligente da parte dos religiosos apresentar argumentos para justificar a própria fé. Da mesma forma, é inútil que os ateus ataquem os religiosos refutando as razões para a crença religiosa se na verdade essas não são razões legítimas. A crença religiosa baseada nesse tipo de convicção, que aos religiosos parece ser a apreensão direta da verdade absoluta, tem o poder de negar totalmente a capacidade persuasiva

de

todos

os

argumentos

pró-ateísmo

que

apresentei até este ponto. Podemos comparar a situação ao argumento que nega a existência do próprio ser. Descartes tornou-se célebre ao dizer que a única coisa em relação à

qual não tinha dúvida nenhuma era a própria existência. Muita gente concordaria com esse argumento, e como resultado nenhum argumento racional contra a existência do próprio ser poderia abalar a profunda convicção que temos quanto à nossa própria existência. O ceticismo desaparece ao confrontar-se com a certeza fenomenológica – o sentimento indubitável – de nossa própria existência. Essa é a força da crença que muitos religiosos têm em Deus. Essas pessoas sentem a existência de Deus com tanta intensidade que não podem colocá-la em dúvida mais do que poderiam duvidar da própria existência. Pessoalmente, tenho pouco interesse em tentar destruir esse tipo de convicção, a não ser quando levam a ações e manifestações desagradáveis e hipócritas como as dos fundamentalistas de todas as religiões. Mesmo assim, eu gostaria de dizer duas coisas que podem interessar aos religiosos que se encontram dispostos a pelo menos questionar a própria crença e aos ateus que tentam compreender melhor a crença religiosa. A primeira é que temos de tomar muito cuidado com tudo o que não admite dúvidas. “Não admite dúvidas” muitas vezes significa apenas “não quero duvidar” ou “não consigo imaginar que a coisa posta em dúvida não seja verdade”. Os religiosos podem ter a impressão de que não poderiam duvidar da existência de Deus mais do que poderiam duvidar da própria existência, mas isso não pode ser uma verdade universal – muita gente perde a fé em Deus, mas

nenhuma pessoa mentalmente equilibrada perde a fé na própria existência (embora haja quem, depois de muita reflexão filosófica, perca a fé naquilo que imaginava ser a própria personalidade). Para os que se dizem incapazes de conceber a possibilidade de que Deus não exista, sugiro que se esforcem um pouco mais. Que tentem imaginar como é ser ateu. Que vejam que os ateus podem não apenas viver, mas levar vidas repletas de valores e de sentido. Tente imaginar como seria viver sem Deus para uma dessas pessoas e depois tente se imaginar vivendo essa mesma vida. A segunda é que reconheçam essa confiança na fé – essa convicção íntima que não se baseia na razão nem na evidência, mas é vista como uma fonte de conhecimento – como uma estratégia objetivamente arriscada. Precisamos reconhecer que ao redor do mundo as pessoas têm o mesmo tipo de convicção a respeito de coisas muito diferentes. Como exemplo extremo, podemos dizer que as pessoas que cometeram os atentados terroristas do 11 de setembro nos Estados Unidos acreditavam estar agindo em nome de Deus. Em um exemplo mais corriqueiro, as pessoas tendem a conceber Deus de acordo com a imagem apresentada pela religião a que se afiliam. Os muçulmanos, por exemplo, não sentem a presença de Jesus. A bem dizer, mesmo nas culturas cristãs existem grandes mudanças entre aquilo que os adeptos da religião afirmam saber em diferentes épocas e denominações. O que mais chama a

atenção, no entanto, é que essa percepção de Deus, de Jesus ou do Espírito Santo depende muito da igreja a que pertencem. Esse não é um simples detalhe técnico que possa ser ignorado à luz da doutrina da trindade, segundo a qual as três pessoas formam parte de um Deus único. Existem várias passagens na Bíblia em que Jesus se refere a Deus como uma entidade à parte. “Por que me chamas bom?”, teria dito; “Ninguém é bom senão só Deus” (Marcos, 10:18 e Lucas, 18:19). Essas passagens mostram por que a diferença entre as três pessoas da trindade é importante para os cristãos e por que parece estranho que diferentes adeptos da religião estejam convictos da existência de uma das três. Para muitos ateus, a simples constatação de que o mesmo princípio – a convicção pessoal – seja usado para justificar a crença em religiões diferentes e incompatíveis entre si já basta para demonstrar que essas convicções não podem embasar de maneira consistente a crença religiosa. Isso acontece porque o mesmo tipo de convicção embasa todas as religiões, mas nem todas podem ser verdadeiras. Um argumento

usado

para

justificar

diversas

crenças

incompatíveis entre si não pode ser uma base sólida para qualquer tipo de crença. Os religiosos provavelmente insistirão em responder que não podem falar pelos outros e que não podem mudar o que sentem. Mas confiar nessas convicções pessoais mesmo com todas as evidências contundentes de que não são uma fonte segura de

conhecimento, uma vez que convencem as pessoas de coisas radicalmente diferentes e incompatíveis entre si, é na melhor das hipóteses arriscado, se não uma temeridade. É por esse motivo que muitos teólogos falam sobre “o risco da fé”. A fé é efetivamente um risco porque contraria raciocínios e evidências confiáveis em nome de raciocínios e evidências de foro íntimo que não são confiáveis. Por esse motivo as evidências e os argumentos sempre vão favorecer o ateu, mas pelo mesmo motivo também sempre vai haver pessoas religiosas.

Ateísmo militante Embora

eu



tenha

dito

que

o

ateísmo

não

é

necessariamente hostil à religião, existem ateus hostis – e não apenas às religiões fundamentalistas, que atraem não apenas a hostilidade dos ateus mas também dos religiosos moderados. O que chamo de ateísmo militante é o ateísmo ativamente hostil à religião. Nesse contexto, “hostil” exige mais do que uma simples discordância, por mais profunda que seja – exige um sentimento próximo ao ódio que se caracteriza por um desejo de erradicar todas as formas de crença religiosa. Em geral os ateus militantes fazem duas alegações jamais feitas por ateus moderados. A primeira é a de que a religião é demonstravelmente falsa ou absurda, e a segunda é a de que a religião é sempre perniciosa. Primeiro vamos analisar a acusação de falsidade. Se tivermos em mente tudo o que já argumentei sobre a

necessidade que a fé tem de ir além e de muitas vezes ignorar evidências e argumentos contundentes, talvez pareça tentador concluir que a religião é irracional. No entanto, o problema com essa acusação é que muitas vezes a discórdia entre ateus e religiosos diz respeito justamente aos limites da racionalidade e das evidências no contexto de uma crença. O religioso vê a relutância do ateu em acreditar em

qualquer

coisa

que

não

esteja

de

acordo

com

argumentos e evidências como demasiado restrita. Em geral, os religiosos afirmam que os ateus precisam abrir o coração a Deus ou então que demonstram arrogância ao afirmar que os padrões normais de racionalidade bastariam para explicar todos os mistérios da existência. Em última análise, essa linha de raciocínio chega à conclusão de que a religião parece irracional quando julgada de acordo com certos padrões, mas não além deles. Um bom exemplo do conflito que surge entre esses dois pontos de vista pode ser visto em um dos melhores argumentos na filosofia da religião – o chamado “problema do mal”. Em geral este é considerado um argumento contra a

existência

de

Deus.

A

ideia

é

simples.

Deus

é

supostamente onipotente, onisciente e onibenevolente. Mesmo assim, existe sofrimento desnecessário no mundo. E quando

dizemos

“desnecessário”,

não

estamos

nos

referindo apenas ao sofrimento que poderia ser evitado se as pessoas agissem de forma diferente. Estamos nos referindo a todo o sofrimento que o criador do universo

poderia ter simplesmente ter deixado de fora da criação. Para dar um exemplo, não parece haver motivo para que Deus criasse um universo onde exista sofrimento extremo e doenças terríveis. Deus também poderia ter nos dado consciências mais íntegras, de maneira a tornar impossível a falta de empatia necessária para a prática da tortura. A existência de sofrimento evitável no mundo parece ser um fato inegável. A partir dessa constatação podemos tirar três conclusões diferentes: Deus não consegue evitar esse mal, e nesse caso não é onipotente; Deus não quer parar esse mal, e nesse caso não é onibenevolente; ou Deus não percebe a existência desse mal, e nesse caso não é onisciente. Esse é o problema do mal, que a meu ver apresenta um forte argumento contra a existência do deus judaico-cristão tradicional. Mas existe uma saída: Deus pode e quer parar esse mal, mas não faz isso porque no fim a existência desse sofrimento será melhor para todos nós. Essas tentativas de conciliar Deus e a existência do mal são conhecidas como teodiceias,

e

também

servem

como

exemplo

de

apologética. Mas, como acontece com todas as instâncias de apologética, o problema é que os argumentos servem apenas aos interesses dos religiosos. Para muitos religiosos o problema do mal é um problema não porque ameaça a crença que têm, mas porque querem encontrar uma explicação para o que parece ser inexplicável. Mas ao que tudo indica muitos religiosos estariam dispostos a viver com

o inexplicável se não encontrassem uma teodiceia aceitável. Para essas pessoas, a existência de Deus é como a existência do tempo: acreditam nela mesmo que essa existência pareça criar paradoxos lógicos. Para os ateus, o problema do mal exige uma resposta, e a impossibilidade de encontrá-la mais uma vez depõe contra a existência de Deus. Para o religioso, uma solução seria desejável, mas não imprescindível. Para os ateus militantes, isso prova que os religiosos efetivamente abandonaram os conceitos tradicionais de verdadeiro e falso. A relutância em ver

qualquer

tipo

de

problema

nessas

contradições

demonstraria que os religiosos são pessoas com crenças irracionais. Assim a falsidade da religião ficaria comprovada, e essa afirmação só poderia ser refutada com uma recusa total das exigências de provas e de evidências que o diálogo inteligente pressupõe.

10. Pois Deus amou tanto o mundo?

Tenho uma grande simpatia por essa visão militante, porém evito abraçá-la devido a um princípio metodológico já exposto: a renúncia ao dogmatismo, de maneira a deixar sempre aberta a possibilidade de erro. Na minha opinião, todos os argumentos indicam a falsidade da religião. Mas como não existem padrões comuns para julgar as questões que envolvem ao mesmo tempo ateus e religiosos, pareceme dogmático afirmar que apenas o padrão ateísta possa estar correto. Para mim é suficiente que os argumentos e as evidências apontem para a falsidade da religião. Também acho que todas as pessoas racionais deveriam concordar comigo – porém muitas discordam, e me parece saudável pelo menos cogitar a possibilidade de que haja algum fundamento para a crença dessas pessoas em vez de simplesmente fincar pé e praguejar contra a estupidez

alheia. Mesmo assim, às vezes é o que acontece.

A religião prejudicial O segundo motivo para ser ateu militante é a percepção de que a religião é prejudicial. Uma forma de fazer isso é dizer que sempre é ruim acreditar em uma falsidade e, uma vez que a religião é falsa, ela é necessariamente ruim. “Prejudicial” tem aqui um sentido bastante abstrato e pressupõe uma certa falta de coerência com a verdade. O problema com essa tentativa de justificar a hostilidade em relação a uma crença falsa é que, como as pessoas discordam em relação a várias coisas, o mundo seria um caos se fôssemos tratá-las todas de maneira hostil. Então, para ser militante com base nesse argumento, também seria necessário o dogmatismo ateísta que já rejeitei na seção anterior. Uma linha alternativa de ataque é juntar-se a Nietzsche e afirmar que a religião é sempre prejudicial porque nega a vida em vez de afirmá-la. A religião nos incentiva a buscar recompensas em um mundo imaginário e futuro, e assim rouba das pessoas a motivação para aproveitar da melhor forma possível a única vida de que dispõem. O problema aqui é que nem toda crença religiosa nega a vida. Sem dúvida as religiões pregam um certo comedimento, mas todos os sistemas morais fazem a mesma coisa. Além do mais, parece ser verdade que muitas pessoas religiosas levam vidas plenas e felizes. Portanto, como fundamento

para o militantismo esse argumento parece um tanto frágil. Uma terceira ideia é a de que não se pode separar os efeitos prejudiciais dos efeitos benignos da religião. Se você for a uma típica missa da Igreja Anglicana em um domingo de manhã, com certeza não vai encontrar nada muito censurável. Mesmo assim, a crença religiosa moderada integra uma rede de fé que inclui alas fundamentalistas muito mais prejudiciais. Seria ilusão achar que uma coisa poderia existir sem a outra. A crença religiosa moderada é parte da estrutura que legitima crenças mais extremas. O fundamentalismo precisa da religião moderada porque sem ela correria o sério risco de ser tomado pelo absurdo perigoso que de fato é. Parece-me que essa linha da raciocínio faz sentido, mas tenho a impressão de que também se aplicaria a qualquer outra crença que exista em uma versão moderada e em outra extrema. Os misóginos, por

exemplo,

tentam

legitimar

as

próprias

crenças

afirmando que existem diferenças entre homens e mulheres para então exagerar a relevância dessas diferenças. Mas a misoginia não equivale a acreditar que existem diferenças entre os sexos, e se opor a uma coisa pela simples relação que mantém com a outra é confundir crenças perfeitamente razoáveis com preconceitos irracionais. Não estou convencido da validade de um ataque baseado na

premissa

de

que

a

religião

seja

intrinsecamente

prejudicial. Tampouco acredito que uma crença firme na falsidade da religião seja o bastante para justificar uma

oposição militante. Na verdade, acho que minha oposição ao ateísmo militante se baseia em um compromisso com os mesmos valores que a meu ver inspiram o ateísmo: o compromisso de manter a cabeça aberta para a verdade e as indagações racionais. Esses valores merecem essa denominação, pois expressam não apenas percepções sobre a verdade, mas também sobre as coisas que consideramos mais importantes. A meu ver a oposição hostil às crenças alheias, somada a uma convicção obstinada em relação à certeza de nossas próprias crenças, é incompatível com esses valores. A razão e os argumentos não são apenas ferramentas que podem ser usadas para converter os outros ao ateísmo. São também processos em que devemos nos engajar, e para nos engajarmos com outras pessoas precisamos estar abertos a pontos de vista alternativos. Não podemos nos engajar de maneira apropriada se esses processos forem vistos como aríetes a serem usados para destruir o edifício da crença religiosa.

Conclusão Uma excelente leitura ateísta é Por que não sou cristão, de Bertrand Russell. Gostei muito do livro, mas fiquei com a impressão de que, se Russell queria ser lido por cristãos, fracassou por completo. Neste capítulo espero ter explicado por quê. Podemos atacar a crença religiosa com veemência e mostrar como os argumentos tradicionais para essa crença são vazios. Podemos até demonstrar que a crença

muitas vezes se baseia em convicções pessoais, que não são uma fonte segura de conhecimento. Mas a dificuldade em usar esses argumentos para trazer mais pessoas ao ateísmo é que os religiosos muitas vezes sequer aceitam os fundamentos em que se baseiam. Essas pessoas estão partindo de um outro ponto. Os ateus podem partir das leis da lógica, como por exemplo o princípio de que uma coisa não pode existir e não existir ao mesmo tempo. Mas os religiosos muitas vezes partem de uma convicção na existência de Deus ainda mais forte do que a convicção nas leis da lógica. A crença se sobrepõe a toda a razão. Nesse caso, o melhor que temos a fazer é mostrar às pessoas religiosas que imaginam ter fundamentos racionais para a crença em Deus que estão enganadas. Em outras palavras, podemos obrigá-las a escolher o risco da fé e o uso restrito da razão na apologética ou o abandono completo na crença religiosa. Creio que poucos vão optar por esse último caminho. Porém, quanto mais pessoas agirem dessa forma, menos convicções religiosas serão passadas adiante pelos pais, pelos educadores e pela Igreja, e no fim a razão vai se fortalecer. Assim a religião diminuiria não como resultado de um grupo de ateus vociferando condenações, mas graças ao surgimento gradual da razão.

CAPÍTULO 7 CONCLUSÃO Em outra época, talvez Em um livro breve como este é inevitável que muitas coisas

fiquem

de

fora.

Mesmo

que

não

me

pareça

necessário pedir desculpas por essas omissões, vale a pena apontar a direção tomada por outras vertentes do ateísmo que possam interessar ao leitor. Em primeiro lugar, não apresentei discussões muito elaboradas sobre a filosofia dos grandes pensadores do passado. Preferi manter o foco em argumentos que tivessem uma força e um apelo genérico em vez de citar as palavras

de

um

filósofo

específico.

Para

os

leitores

interessados nas ideias dos grandes pensadores, as obras de David Hume,

Friedrich

Nietzsche,

Sigmund

Freud,

Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre e Albert Camus são ótimos pontos de partida. Outras sugestões encontram-se listadas na seção de referências e sugestões de leitura. Em

segundo

lugar,

não

discuti

as

defesas

mais

sofisticadas da crença teísta simplesmente porque eu não queria apresentar uma discussão minuciosa dos fracassos da religião, mas uma defesa rigorosa das qualidades do ateísmo. Os leitores que desejarem ter contato com a filosofia

religiosa

da

mais

alta

qualidade

podem

se

interessar pelas obras do filósofo cristão Alvin Plantinga, bem como pela teologia não realista de Don Cupitt. Cupitt encontra-se no meio do fogo cruzado entre cristãos e ateus, pois os dois grupos acham que ele simplesmente é ateu e devia se assumir de vez, mas tenho a impressão de que a tentativa de salvar as partes mais valiosas do naufrágio da crença religiosa é admirável e pode ensinar muitas coisas tanto a ateus como a religiosos. Outro tema não muito discutido foi a natureza específica das ameaças que a ciência representa para a crença religiosa. Preferi manter o foco no embasamento positivo que o racionalismo oferece ao ateísmo. Além do mais, parece-me que a discussão ciência vs. religião já deu o que tinha que dar. Uma quarta linha de ataque contra a religião, que mais uma vez deixei de lado em favor de uma abordagem mais positiva, diz respeito a alegações de que a crença religiosa é literalmente

absurda

ou

incoerente.

Esse

tipo

de

argumentação tornou-se muito popular entre os positivistas lógicos do início do século XX e foi trazido ao conhecimento do público britânico pelo filósofo A.J. Ayer. Mesmo assim, a estrela do positivismo lógico apagou-se e não estou convencido de que a melhor forma de estabelecer um diálogo com os religiosos seja a partir da premissa de que as

crenças

que

nutrem

simplesmente falsas.

são

delirantes,

em

vez

de

O humanismo O tipo de ateísmo positivo que venho defendendo ao longo deste livro às vezes recebe o nome de “humanismo”. No sentido mais amplo do termo, os humanistas são simplesmente ateus que acreditam em levar uma vida moral e repleta de significado. No entanto, preferi o termo genérico “ateu” por várias razões. Em primeiro lugar, “humanismo” é um termo mais ambíguo: existe um humanismo cristão, por exemplo. Em segundo lugar, “humanista” não é um termo muito usado pelos ateus para se descrever. Existem motivos para isso. O primeiro é que, como

muitos

países

desenvolvidos

têm

associações

humanistas organizadas, há quem pense que os humanistas sejam membros de um grupo quase religioso. Segundo esse raciocínio,

quem

não

entra

formalmente

para

uma

associação humanista nacional não é humanista. Não concordo com essa visão, mas em termos sociológicos é fato que pertencer a um grupo organizado passou a ser a principal característica das pessoas que se descrevem como humanistas. Outro motivo para evitar o termo é que existe um tipo particular de humanismo que é uma subdivisão muito específica do ateísmo. Essa corrente do humanismo acredita na superioridade da nossa raça e baseia-se em um desejo de celebrar a humanidade e promover o bem-estar da espécie. Muitos ateus e outros tipos de humanistas rejeitam essa corrente porque não veem nenhum motivo para

glorificar o homo sapiens nem para fazer da nossa espécie o centro das atenções. Em vez disso, devíamos nos preocupar com vidas individuais e com o bem-estar de outras espécies capazes de processos conscientes de grande complexidade. Dentro do humanismo no sentido amplo existe um debate constante sobre a consideração que devemos ter com outros animais, então seria errado pensar que todos os humanistas compartilham desse antropocentrismo. Mesmo assim,

como

certas

vertentes

do

humanismo

têm

preocupações um tanto antropocêntricas, certas pessoas evitam se definir como humanistas. Pessoalmente, não me importo muito com o termo usado – para mim, os termos “ateu positivo” e “humanista” (com h minúsculo) são equivalentes. Existem mais chances de confusão se usarmos o termo “humanista”, mas cabe ressaltar que o ateísmo descrito neste livro é de fato uma forma de humanismo.

Retorno ao lado negro Comecei este livro falando sobre a imagem sinistra e ameaçadora que o ateísmo tem. Meu principal objetivo foi justamente acabar com essa imagem. Antes de encerrar o livro, no entanto, devo reconhecer que o ateísmo mantém certos elementos sombrios, embora por razões diferentes. Muitos ateus ao longo da história descreveram a crença ateísta como uma evolução. Freud, por exemplo, via a crença religiosa como uma regressão à infância. Com a

religião, permanecemos iguais a crianças que acreditam estar a salvo no mundo graças a pais benévolos capazes de protegê-las de tudo. Não é nenhuma coincidência que Deus seja chamado de “pai” na tradição judaico-cristã. O ateísmo representa o fim das ilusões infantis e a aceitação de que precisamos encontrar nosso próprio caminho no mundo. Não temos pais onibenevolentes com poderes divinos capazes de nos proteger sempre. O mundo é na verdade um lugar grande e assustador, mas também um lugar onde podemos criar nossas próprias vidas. A perda da inocência infantil é uma faca de dois gumes. Existe um aspecto de perda e de medo que resulta no matiz sombrio relacionado ao sistema de crenças ateísta. Mas essa também é a condição elementar para uma vida adulta plena de significado. Não podemos nos tornar adultos completos sem perder a inocência infantil. Da mesma forma, a não ser que estejamos dispostos a abandonar a inocência das visões sobrenaturais a respeito do mundo, não podemos fazer justiça à nossa natureza de criaturas mortais e finitas. O ateísmo diz respeito a seguir adiante e aproveitar as oportunidades que a vida oferece, e isso traz junto

o

risco

de

fracasso

e

a

rejeição

de

ilusões

convenientes. Por conta desse realismo, o ateísmo jamais pode ser apresentado como uma alegria positiva em estado puro. Na vida real precisamos aceitar os altos e baixos, o bem e o mal e – junto com ambição do sucesso – a possibilidade do

fracasso. O ateísmo dialoga com a verdade da natureza humana porque reconhece tudo isso e não tenta nos proteger da realidade com uma barreira de mitos e superstições.

REFERÊNCIAS

E SUGESTÕES DE LEITURA

O que é o ateísmo? Evitei ler An Intelligent Person’s Guide to Atheism (Londres: Duckworth, 2001), de Daniel Harbour, para não correr o risco de ser influenciado na escritura deste livro. Mesmo assim, ouvi muitos elogios a respeito do título e pretendo lê-lo assim que eu largar o mouse. A ideia de Gilbert Ryle a respeito do erro categórico é extremamente

útil

para

compreender

a

visão

físico-

naturalista do mundo. Essa ideia encontra-se descrita em The Concept of Mind (Londres: Hutchinson, 1949). A defesa do ateísmo Todos

os

textos

filosóficos

clássicos

mencionados

encontram-se disponíveis em várias edições: Investigação acerca do entendimento humano de David Hume (1718), Temor e tremor de Søren Kierkegaard e os Pensamentos de Blaise

Pascal

(1660).

A

aposta

de

Pascal

pode

ser

encontrada em diversas antologias e no volume de Nigel Warburton, O básico da filosofia (São Paulo: José Olympio, 2008). Uma boa introdução às questões filosóficas do eu é a obra de Jonathan Glovers, I: The Philosophy and Psychology of Personal Identity (Londres: Allen Lane, 1988). Para

os

que

buscam

um

guia

abrangente

sobre

estratégias e métodos argumentativos, deixo a modéstia de lado e recomendo o livro que escrevi com Peter S. Fosl, As ferramentas dos filósofos (São Paulo: Loyola, 2008). A ética ateísta Platão (ca. 428-347 a.C.) apresenta o dilema de Eutífron no diálogo surpreendentemente intitulado Eutífron. Kant discute o imperativo categórico e a forma universal da lei moral em Fundamentação da metafísica dos costumes (1785). Aristóteles (384-322 a.C.) discute o caráter e o florescimento humano na Ética a Nicômaco (muitas vezes chamada

apenas

de

Ética).

Mill

defende

a

filosofia

consequencialista em Utilitarismo (1861). Hume afirma que a razão é escrava das paixões no Tratado sobre a natureza humana (1739-40), mas sua principal obra sobre a filosofia moral é Uma investigação sobre os princípios da moral (1751). Para

mais

informações

sobre

filosofia

moral

existencialista, leia o curto mas excelente O existencialismo é um humanismo, de Sartre (São Paulo: Vozes, 2012). O conto de Woody Allen se chama “The Scrolls” e encontra-se no volume Complete Prose (Nova York: Random House, 1991). Por fim, um excelente volume com breves ensaios sobre quase todos os aspectos da filosofia moral é A Companion to Ethics, editado por Peter Singer (Oxford: Blackwell, 1991).

Sentido e propósito As obras de Sartre e de Aristóteles citadas anteriormente também são relevantes para esse tema. Nietzsche discute a ideia de moralidade escrava em Sobre a genealogia da moral

(1887).

São

poucos

os

filósofos

morais

contemporâneos que discutem o sentido da vida de maneira direta. Um desses é Thomas Nagel, que dedicou partes de Mortal Questions (Cambridge University Press, 1979) e de Visão a partir de lugar nenhum (São Paulo: Martins Fontes, 2004) a esse tema. Para compreender a evolução e entender por que ela não explica o sentido da vida, o texto clássico continua sendo O gene egoísta (São Paulo: Companhia das Letras, 2010), de Richard Dawkins. O conto de Ray Bradbury encontra-se em As crônicas marcianas (São Paulo: Globo, 2009). O ateísmo na história Não existem muitas histórias do ateísmo. Por sorte, a Breve história do ateísmo ocidental, de James Thrower (Porto: Edições 70, 1982) e A History of Atheism in Britain: From

Hobbes

to

Russell

(Londres:

Routledge,

1988)

abordam a maioria dos pontos que podem despertar sua curiosidade. O volume The Encyclopedia of Politics and Religion, editado por Robert Wuthnow (Londres: Routledge, 1998), é uma excelente fonte de informação sobre os papéis

desempenhados pela religião e pelo ateísmo na história. Dignos de nota são os verbetes “Atheism”, de Paul G. Crowley (págs. 48-54), “Fascism”, de Roger Griffin (págs. 257-264), “Germany”, de Uwe Berndl (págs. 299-302), “Holocaust”, de Kristen Renwick Monroe (págs. 334-342), “Italy”, de Alberto Melioni (págs. 399-404), “Papacy”, de R. Scott

Appelby

(págs.

590-595),

“Russia”,

de

Michael

Bordeux (págs. 655-658), e “Spain”, de William Callahan (págs. 711-714). A discussão de Emilio Gentile acerca da sacralização da política encontra-se em Le religioni della politica. Fra democrazie e totalitarismi (Roma Bari: Laterza, 2001). O volume Truth and Truthfulness, de Bernard Williams (Princeton: Princeton University Press, 2002), traz uma interessante discussão sobre Tucídides e o estudo da história. Contra a religião? As entrevistas em que Russell Stannard e Peter Vardy discutem os fundamentos da crença religiosa encontram-se em O que os filósofos pensam, editado por mim e por Jeremy Stangroom (São Paulo: Ideias e Letras, 2005). Duas introduções muito diferentes à filosofia da religião são Arguing for Atheism, de Robin le Poidevin (Londres: Routledge, 1996), que adota uma linha ficcionalista, e a obra mais tradicional God of Philosophy (Sutton: TPM, 2001), de Roy Jackson.

Qualquer pessoa ainda fascinada pelo argumento do desenho inteligente deveria ler O relojoeiro cego (São Paulo: Companhia das Letras, 2011), de Richard Dawkins. Os Dialogues Concerning Natural Religion de Hume (1779) continuam

sendo

ataques

devastadores

contra

os

argumentos que tradicionalmente defendem a existência de Deus. Por fim, Por que não sou cristão (Porto Alegre: L&PM, 2011), de Bertrand Russell, é uma leitura excelente para ateus e agnósticos, mas dificilmente vai persuadir os convertidos. Conclusão Alguns textos clássicos dos grandes escritores são O mito de Sísifo de Albert Camus (Rio de Janeiro: Record, 2011), O futuro de uma ilusão de Sigmund Freud (Porto Alegre: L&PM, 2011) e Language, Truth and Logic de A.J. Ayer (Londres: Victor Gollancz, 1936). Para saber como a ciência contesta muitas das nossas crenças mais antigas, leia o livro de Daniel C. Dennett intitulado Darwin’s Dangerous Idea (Nova York: Simon & Schuster, 1991). Don Cuppit escreveu diversos livros sobre a teologia não realista. Recomendo a leitura da segunda edição de The Sea of Faith (Londres: SCM Press, 1994). Para os leitores interessados

no

sofisticado

pensamento

cristão

de

Plantinga, um bom ponto de partida é The Analytic Theist:

An Alvin Plantinga Reader, editado por James F. Sermett (Michigan: Eerdmans William B. Publishing, 1998).

Julian Baggini (1968) é filósofo e escritor inglês, editor-chefe da The Philosopher’s Magazine e patrono da British Humanist Association. É autor de diversos livros sobre filosofia e humanismo. Texto de acordo com a nova ortografia. Título original: Atheism: A Very Short Introduction Primeira edição na Coleção L&PM Pocket: junho de 2016 Tradução: Guilherme da Silva Braga Capa: Ivan Pinheiro Machado Preparação: Bianca Pasqualini Revisão: Patrícia Yurgel Cip-Brasil. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

B133a Baggini, Julian, 1968Ateísmo: Uma breve introdução / Julian Baggini; tradução Guilherme da Silva Braga. – 1. ed. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2016. (Coleção L&PM Pocket, v. 1221) Tradução de: Atheism: A Very Short Introduction ISBN 978.85.254.3693-1 1. Ateísmo. 2. Filosofia e religião. I. Braga, Guilherme da Silva. II. Título. 16-33019 CDD: 211.8 CDU: 299.2 © Julian Baggini, 2003

Atheism foi originalmente publicado em inglês em 2003. Esta tradução é publicada conforme acordo com a Oxford University Press. Todos os direitos desta edição reservados a L&PM Editores Rua Comendador Coruja, 326 – Floresta – 90220-180 Porto Alegre – RS – Brasil / Fone: 51.3225.5777 – Fax: 51.3221.5380 Pedidos & Depto. comercial: [email protected] Fale conosco: [email protected] www.lpm.com.br

Table of Contents Prefácio Capítulo 1: O que é o ateísmo? Capítulo 2: A defesa do ateísmo Capítulo 3: A ética ateísta Capítulo 4: Sentido e propósito Capítulo 5: O ateísmo na história Capítulo 6: Contra a religião? Capítulo 7: Conclusão Referências e sugestões de leitura