As seis doenças do espírito contemporâneo
 9788577992263, 8577992268

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BIBLIOTECA DE FILOSOFIA DO INSTITUTO BRASILEIRO DE HUMANIDADES

Constantin NÓICA

As Seis Doenças do Espírito Humano Tradução FERNANDO KLABIN E ELENA SBURLEA INTRODUÇÃO E REVISÃO TÉCNICA

OLAVO DE CARVALHO

RECORD/D’AVILA

Fernando Klabin e Elena Sburlea ................................................ 1 Introdução e revisão técnica ........................................................ 1 Olavo de Carvalho ....................................................................... 1 INTRODUÇÃO .................................................................................. 5 I. O QUADRO DAS SEIS DOENÇAS ............................................. 7 [DOENÇAS PROVENIENTES DA CARÊNCIA] ......................................... 7 [1. Carência do individual] ......................................................... 7 [2. Carência do geral].................................................................. 8 [3. Carência de determinações] ................................................... 8 [DOENÇAS PROVENIENTES DA RECUSA] ............................................ 8 1. Dom Juan e a recusa do geral .................................................. 9 2. Tolstói e a recusa do individual ................................................ 9 3. Godot e a recusa das determinações ...................................... 10 AS SEIS DOENÇAS ............................................................................ 10 II. CATOLITE .................................................................................. 12 III. TODETITE ................................................................................ 17 IV. HORETITE................................................................................. 22 V. AHORETIA .................................................................................. 26 VI. ATODETIA ................................................................................. 32 VII. ACATOLIA ............................................................................... 38 VIII. O EQUILÍBRIO DO TEMPO E O ESPÍRITO ROMENO 42

AS SEIS DOENÇA S DO ESPÍRITO Causa imediata

RECUSA

C A R Ê N C I A

Necessidade não

DOENÇA

EXEMPLO

DOENÇA

Generalidade

1. Acatolia

D. Juan

4. Catolite

Individualidade

2. Atodecia

Tolstoi

5. Todetite

Determinações

3. Aorecia

Godot

6. Horetite

atendida 

EXEMPLO

INTRODUÇÃO Olavo de Carvalho

“No desdeñéis la palabra, poeta. El mundo es ruidoso y mudo: sólo Dios habla.” ANTONIO MACHADO

H

á um humorismo sutil, meditativo e extravagante, na idéia de nomear os mais sublimes padecimentos do espírito com neologismos técnicos, de composição grega, que parecem diretamente extraídos de um tratado de patologia clínica. Pois é exatamente isso o que espera o leitor nas páginas que se seguem. Constantin Noïca, o mais célebre dos filósofos romenos, empreende aqui uma patologia do espírito, não no sentido prático e clínico com que enfrentou matéria análoga o eminente psiquiatra Viktor Frankl, mas num sentido analítico e descritivo que subentende uma anatomia – uma esquemática estrutural – do espírito humano, isto é, uma antropologia filosófica, e se prolonga, quase que naturalmente, numa anatomia e patologia geral do ser: vale dizer, numa metafísica geral. É muita coisa para um livro tão breve, dirão alguns. Mais estranho ainda é que todo esse mundo de intuições fundamentais possa caber na simplicidade esquemática da metáfora médica que resume a sua fórmula: três necessidades espirituais básicas, duas orientações possíveis no modo de atendê-las ou desatendê-las, seis moléstias essenciais possíveis, resultando dessa multiplicação e combinando-se em dosagens infinitamente variadas – como as seis

linhas de um hexagrama do I Ching – para produzir toda a trama da nossa desgraça e da nossa redenção. Tudo isso é, de fato, muito extravagante. Mais que extravagante: é romeno. O leitor talvez não saiba o que é um romeno. É um descendente de um antigo povo de camponeses orgulhosos e aristocráticos, fortemente apegados à sua liberdade e à sua fé religiosa e constantemente obrigados a suportar o jugo de invasores estrangeiros -- romanos, turcos, russos, alemães – que forçavam para lhes impor uma fé estranha e línguas estranhas. Sua língua traz as marcas das progressivas misturas. É uma estrutura latina preenchida de sons eslavos, árabes, turcos e germânicos. Sob o tacão do invasor sempre superior em número e em armas, esse povo aprendeu a astúcia. É proverbial a habilidade romena no comércio, na publicidade, no jornalismo – em tudo o que o homem pode fazer sem outra arma que não a palavra. Mas, enquanto desenvolvia as artes da adaptação a um mundo hostil, ele forçava, por dentro, para conservar sua identidade, sua religião, seu estilo de viver. A variedade alucinante das situações que atravessou não se reflete em nada, por exemplo, na sua arquitetura, de evolução notavelmente contínua ao longo dos séculos, com os mesmos adornos mitológicos e cristãos das cabanas de pastores do século X a repetir-se nos palacetes da era burguesa, sob uma casca de estilo francês fingidamente copiado para agradar o visitante. No século XX, esse povo, como todos os demais do Leste Europeu, contaminou-se a fundo nos dois maiores pecados da nossa época: o nazismo e o comunismo. Contaminou-se à força, levado por vizinhos poderosos, que o arrebataram na voragem dos grandes delírios. Mas, mesmo no meio desse turbilhão sangrento, ele buscava, quase extenuado, continuar fiel a si mesmo, impor às idéias estrangeiras, mediante os mais excêntricos arranjos e improvisos, a marca da vontade nacional. Tentou cristianizar o fascismo, tentou nacionalizar o comunismo. Nas duas ocasiões, foi derrotado. É o que sempre acontece a quem se vê forçado a negociar com o mais forte. Quatro ditaduras

num século, duas guerras, inumeráveis revoluções e golpes de Estado: a história romena, um quebra-cabeças que leva o estudioso estrangeiro ao desespero, reflete os movimentos alucinados de um povo que se debate como um peixe fisgado para escapar de um anzol, sabendo que outro anzol o espera mais adiante. O romance romeno mais famoso no exterior ainda é A Vigésima-Quinta Hora, de C. Virgil Gheorgiu: a odisséia de um homem simples perdido no vendaval do mundo, obrigado a vestir todos os uniformes, a jurar falso a todas as bandeiras, lutando para preservar um fundo de sinceridade na dobra mais oculta da consciência. Os romenos perderam tudo. Não poderiam apelar à consolação grandiloqüente dos franceses: Tout est perdu, sauf l’honneur. Eles não vêem, de fato, honra alguma nos feitos bárbaros da Guarda de Ferro, na corrupção sangrenta dos vinte e cinco anos da ditadura Ceaucescu. Eles têm uma memória terrível, conservam uma recordação deprimentemente exata de cada uma das vergonhas, de cada uma das farsas cruéis que o obrigaram a encenar. Eles perderam tudo, menos essa exatidão que se chama, precisamente, sinceridade consigo próprios, a coragem de dizer a si mesmos verdades terríveis que outros povos, em situação idêntica, ocultariam em proveito da boa auto-imagem nacional. Mas ser sincero consigo é o mais precioso dos bens. Quien habla sólo espera hablar a Dios un día. Eles perderam território, independência, riquezas e incontáveis vidas humanas, tudo enfim, menos a única coisa necessária – a primeira que tantos outros trocaram por um prato de lentilhas. Este é o segredo de duas características tão marcantes, que não se esperaria encontrar num povo tão sofrido e tão realista: um sereno bom-humor e um fundo de altivez que não tem nada a ver com orgulho nacional, pois emana de uma luz que não é deste mundo. É a altivez humilde do pecador que, sabendo-se redimido por uma força mais alta, não teme o olhar da malícia humana que busque acusá-lo daquilo que Deus já lhe perdoou.

Ora, não há neste mundo coisa que pareça mais enigmática do que a simplicidade. E os romenos, que são o que são e sabem o que são, enxergam com resignado humorismo o papel de esquisitões que se reserva àqueles que não são compreendidos justamente porque falam as coisas como elas são. Não há povo talvez no universo que tenha mais que ele o senso da incongruência entre o exterior e o interior do homem, da impossibilidade de expressar a realidade nua e crua sem que ela acabe parecendo uma fantasia alucinada. O dadaísmo, não convém esquecer, é invenção romena. Também o é o teatro do absurdo. Não há coisa que um romeno considere mais divertida do que não ser compreendido quando está dizendo uma coisa perfeitamente óbvia e verdadeira. Só a um romeno, portanto, ocorreria a idéia de expor a mais alta metafísica na forma literária de uma paródia da medicina. Esse povo tem o gênio da ambigüidade aparente a encobrir uma sinceridade profunda, que os brasileiros também têm, mas que nele se mescla a um toque de gravidade tragicômica que nos falta quase por completo1. Quem leu Ionesco ou Cioran sabe que em certos trechos de suas obras é rigorosamente impossível discernir se falam a sério ou brincando. E é nessa faixa de indecisão e perplexidade que eles colocam o melhor, o mais profundo e o mais autêntico de uma visão romena do mundo. Malgrado a comicidade quase alucinógena de algumas de suas expressões, seria inexato dizer que essa visão é irônica. A ironia pressupõe uma frieza, um distanciamento cerebrino, que pode ser, conforme a índole do escritor, natural ou defensiva. Mas nenhum dos 1 Quase, digo, porque o encontramos abundantemente em Machado de Assis. Mas muito falta para que a sutileza a um tempo amarga e resignada do maior dos nossos escritores se integre na consciência comum, mesmo das classes letradas, e nos nossos usos e costumes literários. [N.E.]

grandes escritores romenos dá o menor sinal de ser indiferente aos sofrimentos humanos ou de pretender defender-se deles mediante um artifício intelectual, seja o da ironia, seja qualquer outro. Ao contrário, eles não apenas assumem o sofrimento e o absurdo da vida com plena consciência da fatuidade desses artifícios, como também procuram expressá-lo da maneira mais franca, direta e literal. É precisamente desta franqueza que brota, quase paradoxalmente, o efeito cômico, quando o sofrimento descrito, chegando aos últimos limites da opressão e do nonsense, ultrapassa o dom das lágrimas e se converte em riso. Mas seria igualmente inexato dizer que é um riso sinistro, diabólico. Pois a gargalhada de Satanás é a última palavra após a sentença terrível que condena o homem à perda do dom da fala. Asura, “demônio” em língua sânscrita, quer dizer: “criatura desprovida do dom da fala”. É natural, pois, que o Adversário aspire, acima de tudo, a desprover sua vítima daquela capacidade de dar nome às coisas, que a fez com justo orgulho e exata modéstia definir-se a si mesma como zoon logistikon, o bicho que fala. Entre os condenados, com efeito, não ouve Dante conversações em língua de gente, mas tão somente orribile favelle, gritos e gemidos animalescos que expressam sem nomear, que quanto mais ressoam menos dizem, impotentes para, objetivando a dor, transfigurá-la em consciência, prenúncio da liberdade. Mas, nos livros romenos, o homem recusa a mordaça diabólica: ele continua falando e falando, muito além do ponto em que o eterno Adversário poderia julgar ter-lhe imposto, mediante sofrimentos e absurdidades indizíveis, a impossibilidade de dizer. E o que é que eles dizem? À primeira audição, é uma conversa estranha, um arrazoado fantástico de incongruências e extravagâncias. Ouvindo com mais atenção, notamos que esse jogo de enxadristas doidos tem um método, um propósito, visa com maquiavélica premeditação a um alvo preciso e determinado: o que eles buscam expressar – e não raro o conseguem  é justamente a idéia, a estrutura interna, a equação lógica do absurdo, o

qual, sem deixar de ser absurdo, jaz assim derrotado aos pés da inteligência humana tão logo formulado em todo o grotesco do seu conteúdo eidético impossível. Forse tu non pensavi ch’io loico fossi!, exclama o demônio ao perplexo visitante florentino: “Não imaginavas que eu também fosse lógico!” Mas os romenos, estes sim, o imaginavam, e entregaram-se com apaixonado afã à mais improvável das tarefas: decifrar a lógica demoníaca, sistematizar em silogismos a fórmula do jogo sujo universal, que, uma vez exposto à luz do dia, jaz morto e se transfigura num monumentum aere perennius ao dom divino da linguagem humana. Eis por que os livros de Cioran, de Ionesco e este que se vai ler agora, têm esta paradoxal e inconfundivelmente romena propriedade de, justamente quando mais nos oprimem com a visão do intolerável, nos libertar de súbito, nos infundir uma luminosidade calma e soberana e nos elevar às portas de um reino angélico de contemplação e sabedoria. Eles celebram a vitória da linguagem sobre o mutismo ruidoso do mundo satânico. O jogo de excêntricos amalucados revela assim sua verdadeira natureza, a missão secreta desses anjos disfarçados em palhaços: é o divinum opus da cura pela palavra. Se a metafísica de Noïca aparece portanto em trajes de medicina, sabendo da comicidade da situação, é porque por dentro está consciente de uma comicidade mais profunda ainda: o disfarce é a realidade, a metafísica de Noïca é medicina no seu mais alto e autêntico sentido. A coisa mais inacreditável do mundo é que as coisas sejam exatamente o que parecem.

AS SEIS DOENÇAS DO ESPÍRITO HUMANO

I. O QUADRO DAS SEIS DOENÇAS

A

o lado das doenças somáticas, que conhecemos há séculos, e das doenças psíquicas, identificadas mais recentemente, deve existir outras, de ordem superior, às quais chamaremos doenças do espírito. Nenhuma neurose poderia explicar o desespero do Eclesiastes, o sentimento do nosso exílio na terra ou da nossa alienação, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo, a hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma psicose poderia explicar o “furor” econômico ou político, a arte abstrata, o “demonismo” técnico, ou talvez aquele formalismo extremo que hoje em dia, em todos os domínios da cultura, consagra o primado da exatidão sobre a verdade. Incontestavelmente, de algumas dessas tendências, se não de todas, nasceram e continuam a nascer grandes obras: nem por isso deixam de ser grandes desregramentos do espírito. No entanto, diversamente das doenças somáticas, que são acidentais (a morte mesma, dizem, é um acidente na ordem dos seres vivos), e das doenças psíquicas, que de certo modo são contingentes e necessárias ao mesmo tempo, as doenças do espírito parecem revestir-se de uma natureza constitucional.

[DOENÇAS PROVENIENTES DA CARÊNCIA] Desejaríamos, nas páginas que se seguem, mostrar que essas doenças do espírito são, na realidade, doenças do ser, doenças ônticas  e que é isto mesmo que as torna, à diferença das outras doenças citadas, doenças verdadeiramente constitutivas do homem: pois se o corpo e a alma também participam do ser, só o espírito pode, em contrapartida, refleti-lo plenamente e dar conta de sua força ou de sua precariedade. E o ser também pode, ele mesmo, cair doente; se então ele é afetado nas coisas viventes ou inanimadas, estas permanecem secretamente bloqueadas por uma dessas doenças, que no entanto se dissimulam por trás da aparente estabilidade das coisas; mas se é atingido no homem, este último, graças à sua instabilidade superior, revela sua doença à plena luz do dia. Por outro lado, o ser pode ainda revelar-se falso. Suponhamos que um cientista descubra o meio de prolongar indefinidamente a vida e que ele ponha sua descoberta a serviço da humanidade: após render-lhe homenagem, deveríamos levá-lo a julgamento. Seu crime seria o de ter falsificado um valor, isto é, o ser. Com efeito, assim como o dinheiro é tentação para os moedeiros falsos, outros valores  o verdadeiro, o belo e, acima de tudo, o bem  podem, eles também, ser uma tentação para os falsários. (Neste sentido, aliás, toda uma parte da técnica poderia, hoje, ser acusada de falsificar, mediante bens inúteis, a idéia mesma do Bem.) Na medida em que o ser é um valor  senão “o” valor  no seio do real, ele pode portanto ser falsificado.

Tal como um moedeiro falso a forjar sua moeda falsa, nosso cientista nos teria proposto o falso ser. Mas é altamente improvável suspeitarmos da falsidade do ser  como da de uma moeda , e nosso falsário teria todas as chances de permanecer impune. Ao contrário, apressar-nos-íamos em tirar proveito dessa contrafação, na esperança de dar enfim sentido e plenitude ôntica à nossa existência, a qual, dentro de seus limites humanos, não realiza senão imperfeitamente o seu ser. Em outros termos: mediante essa contrafação  que não deixa de nos recordar a existência da ameba, cuja duração de vida ultrapassa a de todas as existências terrestres , desejaríamos compensar todo a nossa carência de ser. Mas pode ser também que essa dilatação da nossa vida no tempo nos permita enfim, pela primeira vez, tomar consciência de nossa carência de ser. Não temos (como o diz tão bem E. Ionesco em Le roi se meurt) o direito de pedir o prolongamento de uma existência tão irremediavelmente afetada de anemia crônica, talvez de verdadeira hemofilia espiritual; não nos é lícito receber o dom desse prolongamento. Em contrapartida, quando tivéssemos compreendido que a eternidade não é condição suficiente para realizar o ser  e será ela aliás condição necessária? , poderíamos enfim nos perguntar se é mesmo na consciência de sua natureza “perecível” (tão incriminada) que se deve buscar a causa que faz do homem esse “animal doente” por excelência que nele já se reconheceu. Veríamos então, para além de sua doença “crônica”  se é que chega a ser uma doença o fato de ter sua quota medida no tempo , perfilarem-se as verdadeiras doenças do homem, ser nascido no tempo e que não encontra sua medida no tempo.

[1. CARÊNCIA DO INDIVIDUAL] Embora esteja bem claro que o prolongamento indefinido da vida não foi senão um exemplo extremo, destinado a pôr em evidência as carências do ser no homem, escolheremos agora um outro, menos estranho, que poderá nos concernir a todos, no futuro. Algumas doenças ônticas, que no homem se traduzem por doenças do espírito, se manifestarão bem mais claramente assim que o homem tiver permanecido por um tempo suficientemente longo em estações espaciais, como já se previu que o fará. Faltará a esse novo homem algo que nos aparece logo de entrada como um elemento essencial na realização do nosso ser: a individualidade. Esse homem irá, como todos, respirar, mas o ar que ele irá respirar será condicionado e “geral”, não este determinado ar da sua terra, cujo odor ele tão bem sabia reconhecer; ele se alimentará, por certo, mas, aí também, de substâncias gerais; ele se esforçará, como sempre, na via do conhecimento, mas se interessará antes pelas essências do que pelas realidades particulares; e se alguma planta ainda o puder deslumbrar, ela terá certamente brotado numa estufa. Em parte alguma do cosmos ele reencontrará aquela realidade individual, o sabor particular de “esta coisa aqui”, o tode-ti do filósofo grego, cuja ausência nos faz sofrer bem mais do que a imperfeição. Nem ele nem as coisas que o rodeiam terão mais realidade particular. Por isto ele deverá, de tempos em tempos, voltar à Terra para curar sua todetite.

[2. CARÊNCIA DO GERAL] Mas doentes afetados de todetite já podem ser encontrados, e aliás sempre se encontraram, entre as grandes naturezas teoréticas: os heróis de Dostoiévski, em Os Demônios, por exemplo — ou certos heróis de Thomas Mann —, dos quais a sociedade real fornece generosamente os modelos. Mesmo Platão sofria disso, de tempos em tempos, em sua obstinação — que se pervertia em obsessão – de querer plantar o cenário de sua sociedade ideal naquela pobre cidade de Siracusa. Pode ser, no entanto, que, à medida que a visão teórica e a programação venham a impor seu primado num futuro próximo, a todetite (a necessidade de encontrar o individual autêntico) se dissemine cada vez mais no nosso mundo. No momento, ainda é mais freqüente a doença que de certo modo lhe é oposta; doença na qual o sofrimento não vem da carência do individual, mas, ao contrário, da do geral. Se apelarmos de novo à língua grega, o “geral”, kathalou, lhe dará seu nome: catolite. Num certo sentido, a catolite é mesmo a doença espiritual típica do ser humano, tão atormentado pela obsessão de se elevar a uma forma de universalidade. Quando, por um gesto elementar de lucidez, o homem desperta da hipnose dos sentidos comuns que ordinariamente o manobram — no interesse, aliás, da espécie e da sociedade —, ele busca por todos os meios curar, de sua amargura de ser, uma simples existência individual sem qualquer significação de ordem geral. Então ele busca, mediante a maior parte de seus engajamentos deliberados, apoderar-se dos sentidos gerais. Com muita

freqüência ele cai na armadilha dos sentidos prontos (como as “ideologias” do seu tempo) que não são senão falsos remédios, impotentes para curar seu mal em profundidade. Por isto, desde que o homem  mesmo o mais medíocre  prolongue seu gesto de lucidez por tempo suficientemente longo para perceber a futilidade do geral ao qual se devotou, sua catolite retoma toda a sua virulência. A literatura  traduza-se: a vida  é, ainda desta vez, rica em exemplos. Em seu Journal de Salavin, Georges Duhamel descreve a confusão de um homem comum, incapaz de encontrar, em sua mediocridade, recursos suficientes para elevar-se a um sentido geral, e que decide então se tornar  simplesmente  um santo. A catolite, latente em cada um de nós, é aqui deliberadamente ativada e apresenta, no coração mesmo do desastre que ela acarreta, uma evolução excepcionalmente rigorosa e serena: progressivamente, o herói se afasta da sociedade, da família, da vida cotidiana, enfim da vida tout court, sob a plácida alucinação daquela ordem geral que essas realidades não poderiam conter. A mesma doença, em contrapartida, assume uma forma histérica em César Birotteau, o herói balzaquiano que ela precipita nas convulsões patéticas da sua confrontação ilusória  na sua escala de homem comum  com Napoleão. (É por essa confrontação com um destino que lhe parece da mais alta generalidade que o herói espera, na realidade, chegar por sua vez a um nível de afirmação mais geral.) Temos aí como que dois extremos patológicos da catolite, mas que parecem enquadrar toda uma gradação de formas, variadas e nuançadas, dessa doença que nos espreita a todos, seres desprovidos do geral.

[3. CARÊNCIA DE DETERMINAÇÕES] E, ao lado da catolite e da todetite, vem ainda nos atormentar uma terceira doença, também ela proveniente das profundezas do nosso ser espiritual. A ausência de um sentido geral adequado, na catolite, e a de uma realidade individual, na todetite, não podem, por si, dar conta de todas as crises espirituais do homem. Além de um geral e de um individual, o ser tem também, para se realizar, necessidade de determinações adequadas, isto é, de manifestações que possam se harmonizar tanto com sua realidade individual como com o sentido geral a que tende. E, já que a doença é provocada pela impossibilidade de obter tais determinações, poder-se-ia denominá-la horetite, tendo em mente o grego horos, que significa “termo”, “determinação”. Esta doença exprimiria então os tormentos e a exasperação do homem por não poder agir de acordo com seu próprio pensamento e suas convicções. O caso mais extraordinário de horetite, na cultura européia, é Dom Quixote. Toda a busca patética do herói espanhol, que com tanta pertinência escolheu a função de “cavaleiro errante”, é uma busca de determinações; estas lhe serão recusadas, primeiro, em sua verdade, quando ele as inventa por si mesmo na primeira parte da narrativa (não são senão moinhos de vento e rebanhos de carneiros); depois, em sua realidade, na segunda parte, onde tudo é fingimento e fabulação maliciosa de outrém. Mas, como a catolite, a horetite pode, ela também, revestir formas menos violentas e manifestar-se por uma se-

rena  e inútil  espera das determinações adequadas. É semelhante existência que nos pinta um autor contemporâneo, Dino Buzzati, no seu romance O Deserto dos Tártaros: seu herói vai se deixar, ao longo dos anos, literalmente cair doente de horetite, instalando-se como oficial na espera passiva de um incerto combate, em algum lugar num posto de fronteira, contra um inimigo desconhecido. Por fim, seu único verdadeiro inimigo será a morte, essa última determinação que se apodera da vida dos homens, desprovida, como tão freqüentemente acontece, de determinações significativas. E aqui também, entre esses dois extremos patológicos do mal, podem-se escalonar todas as formas da horetite, a terceira doença espiritual do homem. Acreditamos ter podido identificar, nas páginas precedentes, três doenças espirituais, que refletem, no homem, as carências possíveis dos termos do ser: geral, individual, determinações. Tal como numa outra medicina  e não sem sorrir , foi-nos preciso dar-lhes nomes. Mas como não lhes dar nomes, se elas se manifestam tão claramente no homem e, mui certamente  enquanto “situações” do ser , também nas coisas?

[DOENÇAS PROVENIENTES DA RECUSA] Todavia, a lista das doenças de ordem superior não está ainda encerrada. Três outros grandes desregramentos se nos apresentam, segundo nos parece, provenientes já não da carência, mas da recusa, no homem  sinônimo de inaptidão, nas coisas , de um dos três termos do ser. E, já que as três primeiras doenças receberam nomes, não iremos privar deles estas três recém-chegadas no repertório patológico do ser e

do espírito. Tendo em conta o seu aspecto privativo, vamos chamá-las: acatolia, atodecia e aorecia. Comparadas às primeiras, elas parecerão, à primeira vista, um pouco mais estranhas: por isto, vamos deixá-las à vontade para que se apresentem por si mesmas, através de suas manifestações no homem. E como a cultura é o espelho ampliador da nossa vida espiritual, escolheremos, também desta vez, ilustrá-las por meio de três criações literárias. 1. DOM JUAN E A RECUSA DO GERAL Tomemos o caso de Dom Juan: não há talvez um melhor para ilustrar a acatolia. Com Dom Juan, estamos ante um destino-limite, ante um ser que rejeita categoricamente o geral, até que este se apresente a ele como uma simples estátua de pedra. Em tal destino parece-nos poder ler, num livro aberto, os sintomas dessa primeira doença do espírito. Dom Juan encarna plenamente o primeiro termo do ser, o individual, pois ele é uma “individualidade” no sentido forte do termo, isto é, um ser humano que conseguiu se destacar da inércia das generalidades comuns. E, não o esqueçamos, os homens, como as coisas, não são na maioria senão realidades particulares  e não individuais : simples casos particulares da espécie e da sociedade. Dom Juan soube, portanto, libertar-se da inércia de uma ordem estabelecida e forjar seu próprio destino. Ele pretende não mais deixar-se comandar pelas verdades (pelos preconceitos) da sociedade e da religião. Ele é libertino e libertário, ele age como bem lhe parece. É neste sentido que ele adquiriu já sua individualidade, o que não quer dizer sua personalidade: pois, se ele se libertou de uma ordem imposta,

deveria agora abrir-se a uma ordem diferente e que lhe fosse própria. Mas Dom Juan não se abre deliberadamente a nada. Ele permanece um “individual” absoluto, o homem do diabo, como no-lo diz Sganarello na versão de Molière, isto é, aquele que está condenado à recusa do geral. Destacado e como que suspenso acima dos fluxos da existência comum, o individual absoluto não se deixa, no entanto, flutuar ao acaso; é ele mesmo quem se dá doravante suas próprias determinações, é ele só quem tem a iniciativa dos acontecimentos que vão modelar seu destino. Um libertino como Dom Juan, em conseqüência, coloca igualmente em jogo o segundo termo do ser, pois o libertino é aquele que se dá a si mesmo determinações livres. Mesmo se o Dom Juan de Molière não se atém, na verdade, à conta das “mille e trè” determinações  as mil e três conquistas amorosas , ele todavia coloca em jogo uma infinitude potencial delas e faz, diante de Sganarello, uma sutil exposição da teoria da necessária infidelidade a todo amor terrestre. É verdade que, bem antes de Molière, um outro já tinha feito essa teoria: Platão. Só que, enquanto no filósofo a infidelidade a uma só ou a uma multidão de encarnações do belo era uma ascensão à Idéia do Belo, isto é, a um geral que conteria todas as determinações doravante ultrapassadas, em Dom Juan a infidelidade permanece cega e fechada a toda ultrapassagem. O herói quer simplesmente “fazer justiça” à beleza particular de cada uma das mulheres que encontra; ele não sabe fazer justiça à beleza tout court, isto é, ao geral. Ele ama a conquista amorosa em si mesma, pelo só prazer dos “pequenos progressos” que a cada dia ele faz no empenho de “forçar as resistências”, e isto lhe basta para se julgar à altura dos grandes conquistadores. Ele sente

orgulho em subjugar, à sua maneira, a Terra inteira... e deixa escapar a frase que trai seu desequilíbrio: ele desejaria, como Alexandre, que houvesse outros mundos, – é o que diz –para poder lá estender suas conquistas até o infinito. Estando, portanto, de posse dos dois primeiros termos do ser, Dom Juan recusa o terceiro: o geral. Só que, da sua recusa, eis que surge o “mau infinito” de que fala Hegel: o infinito do “de novo e de novo”. É ele que vai aniquilar o herói, pois é ele que aniquila tudo o que é simples repetição de si e retorno do mesmo. No fundo, não há nenhuma necessidade da condenação moral nem do castigo celeste que evocam Sganarello, Dom Luís e Elvira. A queda no mau infinito das determinações é, em si, punição suficiente. Mas se essa desventura do ser  cair no mau infinito  é a sorte tanto dos humanos quanto do resto dos viventes, o que, em contrapartida, está reservado somente ao homem no destino de Dom Juan é seu sentimento de culpabilidade; não tanto a culpabilidade de contravir às leis terrestres ou celestes, isto é, a um geral determinado, quanto a de ter recusado o geral enquanto tal. É interessante notar que, diversamente de seus precursores espanhóis ou italianos, que acentuam o castigo divino, Molière parece propor-nos ele mesmo essa outra interpretação: com efeito, logo de início  desde a entrada do herói em cena , a peça concentra-se em torno da confrontação com o geral inerte que é o “Convidado de pedra”. Dom Juan vive seus últimos dias: o mecanismo das determinações já começou a se desarranjar, por falta de um sentido geral. O herói não parece mais regozijar-se com seus “pequenos progressos”  dos quais no entanto continua a

se gabar ; ele não exerce mais sua arte sutil sobre vítimas de eleição, e já não usa senão da sedução rasa do pedido de casamento. Com meios mais sutis, Dom Juan teria talvez continuado a fascinar um criado como Sganarello; por sua desordem, que nenhum refinamento, talvez nenhum gozo  mesmo frusto  vêm compensar, ele já não consegue senão exasperá-lo. A desordem engendrada por Dom Juan reflete-se aliás fielmente na desordem do discurso de Sganarello, que, agora, quer desesperadamente reconduzir seu patrão ao bom caminho. É aqui, no meio da peça  em campo aberto, ou, em suma, não importa onde , que surge a estátua do Comandante, o pai de Elvira, que Dom Juan havia matado, tanto é verdade que a generalidade inerte pode aparecer em qualquer lugar. À desordem vem assim opor-se a ordem mais baixa, a ordem do inanimado. Ela, ao menos, deveria acalmar a fúria das manifestações donjuanescas desprovidas de sentido. Os apelos ao arrependimento, renovados por todos os outros personagens  Dom Luís, Elvira, o irmão dela quando Dom Juan lhe salva por acaso a vida , parecem ser outras tantas advertências enviadas pela estátua. Quanto a Sganarello, não sente ele mesmo a evidente advertência do geral, ao perguntar a seu patrão: “Não vos rendeis à surpreendente maravilha dessa estátua movente e falante”? Mas Dom Juan responde: “Há realmente alguma coisa aí dentro que eu não compreendo; mas, o que quer que seja, não é capaz nem de convencer meu espírito, nem de abalar minha alma.” Que o nada possa falar em nome da ordem, quando não se soube encontrar uma melhor, eis, na verdade, o que Dom Juan não soube compreender.

No entanto, a desordem absoluta não aparece no próprio Dom Juan, pois o herói sabe se dominar e bravatear: ela aparece, em contrapartida, no último ato, na cena II, no espírito de Sganarello, cujo pensamento agora se perde num delírio argumentativo: “O homem está neste mundo como o pássaro no galho; o galho está ligado à árvore; quem fica ligado à árvore segue bons preceitos” e assim continua, loucamente, até a conclusão, que é no entanto justa, ainda que sem relação com o raciocínio: “Em conseqüencia, sereis danado por todos os diabos”. É neste momento preciso que faz sua aparição final o Comandante  o sentido geral exterior; ele está lá para trazer o não-ser a um mundo que se recusou tão obstinadamente a se abrir ao ser. Ele assume de início a forma de um espectro de mulher velada, símbolo anunciador da morte: “Dom Juan já não tem mais que um momento”, diz a aparição. Em seguida, o espectro muda de aparência, como para se aproximar da imagem da inércia última: ele é o Tempo vazio com sua foice, e não diz mais nada. Surge enfim o Convidado de pedra, a estátua mesma do Comandante, que toma o herói pela mão. Ao contato da pedra, Dom Juan sente enfim o fogo devastador que o aniquilará. Nas versões anteriores, espanholas ou italianas, a peça era intitulada O Convidado de Pedra. É certo que, de um ponto de vista artístico, a versão de Molière lhes é superior; mas esse não é talvez o caso do título; pois o “Convidado” encerra, com efeito, o admirável pensamento do geral que o homem se empenha por vezes em enfrentar e que ele não tolera senão como simples conviva, quando seu verdadeiro lugar seria o do dono da casa.

A acatolia é a doença do escravo humano que ignora todos os seus mestres, inclusive seu mestre interior.

2. TOLSTÓI E A RECUSA DO INDIVIDUAL Comparada à acatolia, que, com suas recusas provocadoras, exacerba a individualidade, a atodecia manifesta-se com menos violência, pois põe à frente o geral, cujas resistências são mais discretas. Doravante, será em nome do geral, isto é, em nome de uma entidade ou de uma lei, que virá a recusa; estranha ao desafio  que em Dom Juan se confundia com a revolta , a recusa atodécica toma ora a forma da compaixão para com o mundo inteiro, ora a da indiferença para com tudo o que é humano e individual. Se nos é permitido ver na acatolia o mal característico do nosso mundo europeu, onde primam as individualidades, a atodecia será, por sua vez, característica do mundo asiático. Em todo caso, o autor que se encarregou de descrevê-la, talvez de viver em si mesmo a recusa do individual, tinha algo de ambos: trata-se de Tolstói. O comum dos mortais, diz Tolstói, ignora que todo ato e toda manifestação dependem de leis que desprezam as individualidades, ainda que da estatura de um Napoleão. Na acatolia, era o retorno do geral aviltado que arrastava o indivíduo à perdição; na atodecia é o individual que é desprezado e é a ele que cabe, na sua terrível vingança, a tarefa de desprover o homem atodécico de seu lugar, de sua identidade e de seus fundamentos. Mas nem a atodecia nem a acatolia poderiam trazer dano à qualidade das obras literárias

que as refletem. Tanto Dom Juan quanto Guerra e Paz, o romance de Tolstoi que ilustra tão bem, a nosso ver, esta segunda doença, parecem, ao contrário, ter obtido do mal do homem um acréscimo de sua tensão interna, e  semelhantes nisto a todas as criações artísticas  se expandem ao contato das paixões e dos desregramentos humanos. Tolstoi, ele próprio e só ele próprio pessoalmente, sofreu do seu mal, pois a atodecia o impediu de realizar sua vida e seu ideal. Sua obra, em contrapartida, teoriza a atodecia, e isto a despeito de que, enquanto obra, venha necessariamente a desmenti-la. A recusa do individual domina todo o romance, e isto desde a primeira cena, a recepção nos salões de Anna Pavlovna Scherer. Todos os personagens que aí fazem sua entrada  com a exceção de Pedro Bezukhov, cuja autenticidade é indispensável ao autor, como eixo central da narrativa  trazem no seu ser a marca de uma sociedade bem estabelecida em suas modalidades gerais e que não pretende mais fazer concessões às autenticidades individuais de uns e outros. Tolstoi, o artista, se proíbe, certamente, de reduzir sistematicamente seus personagens a simples “figuras típicas”: em contrapartida, o atodécico nele saberá colocá-los em situações típicas, ou  quando ameaçam escapar, em sua verdade vivente, ao controle do geral e transformar-se em sedutoras individualidades , reduzi-los ao silêncio. Os grandes e os humildes sofrem com isso, lado a lado: Napoleão e o tzar russo, pelos primeiros, Platão Karataev, o “tipo” do camponês russo, pelos segundos. Entre esses dois extremos, todos os personagens deixam ouvir o ronco surdo de suas pulsações de vida e de autenticidade reprimidas; mas,

a cada vez, o discurso de um sentido geral procura  e consegue, com muita freqüência  deter sua eclosão2. Para esse efeito, uma das funções-chave dos herói, e em geral de todos os personagens lúcidos, é a de ressentir a vaidade dos seres, a deles próprios como a dos outros. Em Austerlitz, Andrei Bolkonski, gravemente ferido no campo de batalha, percebe Napoleão a contemplar o teatro da sua vitória e se diz que o Imperador não é senão um nada em face da imensidão do céu. No dia seguinte, quando é transportado entre os feridos de uma certa patente, e revê o Imperador, tem de novo a mesma revelação da “vaidade das grandezas”. A vaga, ou antes, o refluxo do geral varre assim, impiedosamente, tudo aquilo que ao longo das páginas tentara obter um contorno individual. E como se, apesar de tudo, a obra arriscasse ainda desmentir a atodecia do autor, Tolstói, num apêndice, se dá uma vez mais o trabalho de afirmar a vaidade do individual. O que é que verdadeiramente é?, pergunta-se ele. Qual é realmente o ser da história, ou, em termos mais claros, qual é a força que faz com que na história – e, em conseqüência, na narração histórica – as coisas tenham um sentido e uma consistência, tal é a questão essencial que coloca, sem nenhuma ambigüidade, o “Posfácio” do romance. Com muita freqüência, a nosso ver, as ambições 2 Nota-se hoje em dia a mesma coisa nos personagens de Soljenítsin, em O Pavilhão dos Cancerosos, por exemplo. No instante mesmo em que parecem ao ponto de se abrir à autenticidade e à vida, o autor, sob a pressão de suas intenções demonstrativas de ordem geral, os impede de fazê-lo. Como Tolstoi, Soljenítsin parece-nos sofrer de atodecia. [N.A.]

teóricas de Tolstói foram encaradas com aquela espécie de indulgência que só uma fraqueza da obra poderia merecer, e o foram mesmo quando se reconhecia que o visionário e enfim o profeta que ele se tornou tinham sido, nele, solidários do artista. É no entanto difícil não ver em todas essas digressões teóricas a probidade profunda do autor; e é ainda mais difícil, na perspectiva da atodecia, a qual, enquanto doença constitucional do homem, aparece de maneira tão flagrante na sua visão de profeta, não sentir que sua teoria tem algo de tão perturbador quanto sua obra mesma. Não vamos insistir no fato de que, por definição, a arte põe em jogo o individual; de que ela talvez represente, no fundo, a conversão das determinações do individual no sentido do geral; nem de que sua virtude é de arrarcar às coisas à sua “catá-strofe” e de salvá-las, por uma espécie de “aná-strofe”, da queda e do aniquilamento: é natural, aí, que Tolstói não tenha podido se impedir de salvá-las, a despeito de seus discursos sobre a vaidade delas. Em contrapartida, faremos observar que sua lucidez teórica pôde ser, às vezes, tão surpreendente e tão sedutora quanto sua inspiração artística, mesmo se, por outros aspectos, parece ir de encontro a esta última. “Apreender diretamente a vida – escreve Tolstói no ‘Posfácio’ –, ainda que fosse a de um só povo, a fim de descrevê-la, eis algo impossível.” Ninguém poderia, com efeito, encontrar todas as determinações dessa imensa realidade individual que é um povo, como ninguém poderia dizer qual é a força que põe os povos em marcha. Com efeito, qual é a força, qual a lei, qual a razão interna que cria a história? Não se pode mais, doravante, invocar a vontade divina, dizem; a vontade das massas também não, pois não

encontra jamais sua expressão justa. Quanto à obra dos heróis e das grandes personalidades que os novos historiadores põem à frente, em lugar da vontade divina, não poderia ser o caso uma vez que se viu neles o humano, demasiado humano, tal como ele, Tolstói, fez com o o tzar Alexandre ou com Napoleão. Sob o impulso de sua alma aberta à humanidade inteira, Tolstói vê a história como um produto de todos. Cada homem é, à sua maneira, um agente da liberdade, liberdade forjada conforme aquilo que lhe sugere sua própria consciência. Mas, ao mesmo tempo, cada homem sente que sua vontade é entravada por leis – e a razão as descobre no seio mesmo da história: as leis estatísticas, ou as do determinismo político-econômico, por exemplo. No fundo, diz-nos Tolstói, acontece com a história o que se dá com todas as outras ciências: lá como cá, certas forças se manifestam sob a forma de leis. A força da humanidade é a liberdade; as da natureza, a força de gravitação, a inércia, a eletricidade ou a vitalidade. Mas quê sabemos, de exato, sobre todas essas forças? Exatamente tão pouco quanto sabemos da essência da liberdade. Sabemos, em contrapartida, uma coisa: se houvesse um só corpo que pudesse se mover a despeito das leis mecânicas, toda a ciência da natureza se tornaria, no mesmo instante, vã. Tal é também o caso da liberdade: ela encontra necessariamente, em suas fronteiras, a necessidade. Censurou-se em Tolstói o afundar no fatalismo. Poder-se-ia dizer, ao contrário, que ele condece demasiada importância às massas e a cada um em particular, e que isto o leva ao “infinitesimal” da liberdade – segundo suas próprias palavras –, obrigando-o, no fim das contas, a

sacrificar a personalidade humana. Não se poderá fazer verdadeiramente história, diz ele, enquanto se buscar a causa dos acontecimentos na “livre” vontade dos grandes homens, pois assim se deve, obrigatoriamente, chegar à liberdade infinitesimal de cada indivíduo, que permanece todavia inacessível. Mas com a história dá-se o mesmo que com a ciência: sem conhecer a essência da gravitação pode-se compreender as suas leis, e sem saber qual a necessidade histórica última, reconhecemos suas leis, integrando nela os elementos infinitesimais, eles também desconhecidos. “A marcha dos acontecimentos no mundo depende da coincidência de todas as vontades”, eis o comentário do romancista ante o inexplicável na história, que culminava, na época, com a batalha de Borodino. Refletindo bem, Tolstói exprime essa verdade admirável, incessantemente confirmada depois pela ciência: a relação de duas séries de desconhecidos pode ser algo de conhecido. Não sabemos o que é a liberdade, nem o que é a necessidade, mas conhecemos no entanto sua relação. O individual dá a si mesmo determinações diversas, que não podemos conhecer na sua totalidade e, menos ainda, prever; o geral coloca, ele também, sua infinidade de determinações possíveis e, desta vez, organizadas; igualmente desconhecidas. Mas o ser – o ser histórico, no caso – nasce, no entanto, dessa relação entre determinações que, fora da sua conversão a um sentido geral, não são senão nada e esse mesmo sentido geral, do qual jamais saberemos se é outra coisa senão nada. Tal como no cálculo infinitesimal, dois nadas engendram algo de determinado.

Pode-se, então, encontrar o individual verdadeiro? Tolstói quis nos dissuadir disso – ao menos em Guerra e Paz –, e sua grandeza é precisamente a de ter tentado o impossível: completar sua visão artística a despeito da precariedade do ser histórico que ele havia posto em jogo. Na verdade, para além dos destinos individuais, aos quais Tolstói, enquanto artista, devia não obstante dar um contorno, para além mesmo do sucesso, desta vez consentido, de um personagem, Pedro Bezukhov, a obra vive da extraordinária enfatização de uma outra realidade individual: a época. Esta, nenhuma das leis da história na escala humana pode esmagar, nem reduzir ao papel de elemento infinitesimal. Em contrapartida, o fracasso, que Tolstói encontra na pintura daquele que deveria ter sido – malgrado sua aparição episódica – o personagem-chave do romance, o camponês Platão Karataev, é, este sim, profundamente revelador da atodecia do escritor. O autor não podia pintá-lo de maneira viva, mas somente como um estereótipo – o “camponês russo” – que ele esmaga sob o peso das vãs declamações generalizantes. E é ainda a recusa do individual que acaba sendo denunciada por essa outra obra-chave que deveria ter sido a própria vida de Tolstói, com seu profetismo, e que terminou por desencaminhá-lo, tanto no mundo histórico quanto no mundo íntimo, até o paroxismo da sua “fuga” de casa, isto é, da mais elementar ordem humana. Se a atodecia não fosse, precisamente, a doença típica dos profetas de toda sorte, teríamos podido dizer, dele, que fôra, como Fausto, “der Unbehauste”3. 3 Em alemão no original: “o sem morada”. [N. E.]

3. GODOT E A RECUSA DAS DETERMINAÇÕES Após a recusa do geral e do individual, chega a vez das determinações, com a ahorecia, doença evidente do nosso mundo “decadente” (pensamos, por exemplo, na ahorecia dos hippies), embora seja constitutiva do homem e em conseqüência, de certo modo, eterna. Não é de maneira alguma absurdo – ao menos no que diz respeito às conseqüências práticas do gesto – negar, com Dom Juan, a divindade, as leis ou a existência de um sentido geral. Não o é, igualmente, dizer com Tolstói que o indivíduo, como tal, não existe na história, que ele está sempre imerso em algo de mais vasto, que ele é, talvez, evanescente. Não será, em contrapartida, absurdo sustentar que as manifestações do indivíduo, suas mensagens, em particular, quando se trata do homem, e em geral todas as determinações das situações e dos seres não são nada, não significam nada, ou, no máximo, são intercambiáveis? “Nada a fazer” são as primeiras palavras da peça de Samuel Beckett, Esperando Godot.

AS SEIS DOENÇAS

II. CATOLITE Chamei então catolite – de katholou, que significa “em geral”, mas que mesmo em grego se usa como substantivo – às anomalias produzidas pela carência do geral, tanto nas coisas como nos homens. Na verdade, a nada faltam sentidos gerais e, assim como qualquer realidade do presente, viva ou morta, tem atrás de si alguns bilhões de anos, ela é também encruzilhada de inumeráveis sentidos gerais. Mas o que pode faltar ou ser incerto é o seu geral – uma situação que o homem às vezes sente de maneira aguda. É como se lhe fosse necessário um outro geral, um só, à sua medida individual, a despeito de já ter todos os outros. E ainda mais: é como se esse geral não se encontrasse num lugar, num depósito de gerais prontos, do qual se pudesse invocar o geral adequado, mas como se lhe fosse preciso a cada vez adquirir uma nova face, simultânea às manifestações do individual. Mediante a investidura do geral, o homem quer ser. Quer ser para os outros, para si, no absoluto, na história, quer ser no sentido em que são uma estátua, uma fama, uma justeza, uma verdade, um criador, um destruidor – apenas ser. O tormento do homem é, de maneira discreta ou exasperada, o do real, que também aspira a ser, pelo menos no sentido elementar de persistir. Que boa criatura! Ens et Bonum convertuntur, diziam os medievais. E enquanto a placidez corrente das coisas, em comparação com o ser humano, está ligada ao fato de que não podem ter por si mesmas um “outro” geral, o sofrimento do homem reside em que ele pode ter um outro mas na verdade não o obtém. Ele se reposiciona o tempo todo ao longo de sua vida, assim como as coisas só se reposicionam ao longo da vasta evolução; mas nem sempre ele é. A este desequilíbrio, em busca de algo de ordem geral, dá-se o nome de catolite. A maneira de existir em desequilíbrio surge justamente da inconsistência das maneiras de se manifestar, nas coisas e nos homens. Há no mundo processos em liberdade: todos os tipos de ondas do espectro eletromagnético correm por todas as partes; fatos da vida e atos humanos pulsam, sem se finalizar em nada. São manifestações cegas. Não seriam “cegas” por não lhes percebermos as leis e a consistência? Mas são cegas em si mesmas, assim como acontecem as coisas no movimento browniano das partículas de matéria de um líqüido. Um exemplo espantoso deste primeiro modo de existir em precariedade, nascido das manifestações cegas, é oferecido pela biologia. Dentro dela fez-se distinção, como parece, entre protenóides e proteínas. As primeiras possuem muitos dos elementos de que se constituem as segundas, fora que suas letras, do código genético, são casuais. Elas representam, assim, um modo de existir perfeitamente garantido, mas que não pôde chegar a uma plenitude das sortes de existir. Só as proteínas, em que há ordem das letras, conseguem

dar vida, conseguem conduzir ao ser da vida. As protenóides têm letras, têm até mesmo “palavras”, mas que não constituem uma linguagem, isto é, algo de ordem geral. Protenóides existem por toda a parte. A realidade tem de estar plena de substâncias ou de processos que possuam os elementos da ordem, mas que não tenham obtido ordem, ou seja, que tenham permanecido caóticos. Portanto, houve, talvez, muitos modos de o homem se comunicar e mesmo falar que não formaram uma gramática, não se fixaram num sistema de regras gerais, e como tais não se constituíram numa língua. Mas não seriam também assim os homens? Também eles não reeditam, em seu plano, uma aproximação ontológica? Poder-se-ia dizer que Napoleão foi uma simples protenóide da história: deu manifestações, ou suscitou todo tipo de manifestações, mas a ordem não estava nelas. A ordem - significado de natureza geral dos atos, sua justificação histórica - haveria de ser provada pelo Memorial de Santa Helena. Só que era tarde demais, e a protenóide Napoleão não mais podia tornar-se uma proteína. No muito, foi aproveitada por outras proteínas, estas verdadeiras, da história. Mas assim como as protenóides representam também elas um modo de existir da vida, as manifestações cegas do seio do real são, por sua vez, um simples modo de existir. Elas não permanecem suspensas no vazio. São mantidas juntas por algo individual, ao qual dão a expressão, por exemplo, de um destino humano (Napoleão), de uma determinada matéria, ou de uma determinada situação. Tais realidades individuais se desprenderam da inércia geral e dão a si mesmas determinações específicas, sem obter, contudo, “o código” do ser. São um maço de manifestações presas por um pólo, o individual, sem que haja um segundo pólo, o geral, através do qual se pudesse obter o pleno equilíbrio do ser. O que a catolite elucidava desde o início era o fato de que, pelo menos no caso do homem, não é qualquer geral ligado ao individual que conduz ao equilíbrio. “Por que você não se contenta com o que tem? Você não vê que está em ordem?” dizem os outros para um homem e sua alma toda poderia dizê-lo ao próprio homem. Ele não está em ordem. O geral apresenta no homem esta condição especial, de ser específico; de até mesmo parecer ser individual, próprio, de qualquer modo. É necessário sair da condição individual e confirmá-la ao mesmo tempo. É necessário encontrar o geral certo. A tensão da catolite nasce daqui, da necessidade do geral certo. Mas é também daqui que nasce o risco de não saber da falta do geral, tendo em vista que ele ainda é não-identificado. Surgida da carência do geral, a catolite é a única doença espiritual em que justamente o geral pode ser ignorado. Todas as outras vão surgir graças à sua presença ou, como no caso da acatolia, através de sua recusa consciente. Aqui, no caso da catolite, pode não existir consciência dele, e então surgem manifestações de um tipo das doenças, enquanto que a consciência do geral, ou de sua carência, vai produzir, sempre no caso da catolite,

manifestações de outro tipo. Há portanto dois tipos de catolite. Em Salavin e César Birotteau encontrávamos manifestações da doença que se deviam à consciência do geral, carecendo dela; em Bonaparte, poder-se-ia dizer, encontramos o caso contrário, em que, a doença catolite aparece sem a consciência de que falta o significado geral. Com ele podemos, portanto, iniciar a descrição do primeiro aspecto clínico da catolite. 1) Este homem, em que a própria pessoa era completamente hipertrofiada, não negava os gerais, como Don Juan. Nem parecia sentir a falta deles, atribuindo-os todos, misturados, a si mesmo: sentidos revolucionários, destino histórico da França, a idéia européia, até mesmo a Igreja. Mas justamente por atribuí-los a si, ou seja, subordinando-os à sua pessoa, ele provava que não tinha verdadeiramente consciência deles, não demonstrando nenhuma forma de submissão a algo além deles. Abandonou rapidamente a idéia revolucionária; não pôde oferecer à França nada além de uma boa administração (incluindo uma vã soberba); e a idéia européia ele a comprometeu, não importa quantas conseqüências tenha tido, por isso, a sua aventura histórica. As únicas determinações efetivas que se lhe puderam atribuir foram as campanhas militares - simples desempenhos. A carência do geral, no seu caso, conduziu à síndrome da catolite típica de todos os grandes líderes: a necessidade cega de ação. E, de fato, sob esta forma a catolite é a doença dos tiranos, cujas manifestações, na falta dos sentidos, se exacerbam. Atormentado por ações, o doente de catolite pode chegar, então, até mesmo a chacoalhar a história com os seus calafrios. Sobre aqueles tomados por tais tremores, pôde-se dizer o seguinte: “pitié pour les forts”. Mas o exemplo das maiores mutilações do espírito, como Napoleão, arrisca desfigurar, finalmente, as coisas. Privado da consciência do geral, pode sofrer de catolite também o homem comum, cujo caso anônimo revela a primeira forma da doença quiçá melhor que a exasperação dos grandes. A ignorância do geral é mesmo a lei, no caso desse homem e, quando jovem, o fato de que lhe falta geral e de que lhe falta mesmo a consciência dessa falta assume formas tão encantadoras que a gente se pergunta, num primeiro momento, se ainda se pode falar nesse caso de uma doença espiritual. Desse modo, o homem jovem começa por se abrir naturalmente a fatos e determinações, sem nada para além deles. Assim como na criança existe a simples “sede de nome”, ou seja, a necessidade de fixar as coisas denominando-as; assim como mais tarde surge e se desenvolve até à gratuidade a necessidade de entrar em contacto direto com as coisas, apalpando-as a fim de ver como são feitas e de poder manejá-las, da mesma maneira surge, como uma primeira idade do homem - de fato como sua primeira precariedade -, a idade em que o ser individual se atribui determinações e se satisfaz na riqueza delas, independente de qualquer temor ou rumor de geral. A criança invocada por Goethe no poema Prometheus não sabe de Deus, ou seja, de nada de ordem geral, mas está contente com a vida ferindo a chicotadas os cardos do campo.

Goethe, da mesma maneira, se atribui, nos primeiros anos da juventude, as determinações mais livres, dos espetáculos teatrais que cria sozinho e as estórias que conta aos outros inventando-as no mesmo momento, até ao primeiro encontro com aquilo que finalmente mais tarde lhe parecerá “generalidade”, sob o nome de “eterno feminino”, o encontro com Annette de Leipzig. E Agostinho - também ele exemplar de homem representativo, nos anos da juventude - prolonga até tarde, até ao confronto com o maniqueísmo, como uma primeira entrada na ordem que se lhe oferece, os anos em que o único modo de vida é a plenitude ou a variedade das determinações que a gente se atribui, sem relacionar com outra coisa. Nos homens que não se aprofundam nunca no humano, a vida permanece nessa idade primeira, a das determinações e manifestações livres - na caça de que falava Pascal, na distração em todos os sentidos, mesmo naquela de levar a vida a sério, com a demência dos seus fatos vazios - de modo que uma vida de homem pode ser um simples desenrolamento de determinações cujos acontecimentos representem, para eles, consumo de vida. Neles, com a sua febrilidade, começa a ser nítido um início de adoentamento do espírito. Pois uma forma branda de catolite se encontra por detrás de qualquer vida desenrolada em perfeita inocência e aparente saúde. E mesmo a distração, uma grande conquista do homem sobre as necessidades cegas, pode representar na verdade uma punição sobre ele. O inferno foi descrito por alguns teólogos como uma festa que começa, continua, prolonga-se, e que não acaba mais, desvelando, dessa maneira dilatada, o seu vício oculto. Existe algo bem oculto, por detrás de tudo o que fazemos, nesse nível. Nem podemos saber de uma falta, no momento dos primeiros entusiasmos, quando se vive debaixo da magia dos verbos: que flutuemos, que viajemos, que sonhemos, ou que destruamos, que construamos, que façamos um mundo nosso, que ergamos um mundo para todos, melhor. Um verbo atrás do outro traz a solicitação, oferecendo tanto espaço de ação que nenhum corretivo pode mais frear as devoções. O verbo ainda é puro, sem advérbios; ele não tem outros limites a não ser os que um outro verbo lhe traz, que surge com a mesma rigidez, relacionando-se somente com a sua ação. Algo poderia, entretanto, despertar inquietude, nesta condição singular do verbo, mas agora ainda não é momento para outra inquietude que não seja a mais distante portadora do verbo puro. Não podemos parar para ver se a ação tem sentido e significado, visto que parece que ela nos enriquece. “Tudo o que me engrandece é verdadeiro”, dizia Goethe, em sua grande inocência. Acumulamos fatos assim como juntaríamos haveres, sob a crença oculta de que a acumulação pode significar por si só existência. Todas as formas de acumulação, terminando com a de enriquecimento dos conhecimentos, ou hoje a de acumulação de produtos técnicos desejados ou indesejados, solicitaram do homem, como se tivessem uma verdade sua no simples fato de que são obtidas, assim como talvez no passado, com os seus mitos, o homem acreditasse que as coisas existem porque ele fala delas. De certo modo, continuamos

acreditando nisso, exatamente como o homem das culturas que têm por base os mitos. Em sua criação literária, o homem crê que existe tudo aquilo que é destino individual ou coletivo desenrolado de maneira segura e artística, num plano de realidade das culturas e do pensamento. Na sua pintura, acreditava que tudo o que pintava com maestria, até ao mais humilde rosto humano ou canto de realidade e paisagem, hoje até à estrutura mais abstrata, obtinha ou possuía carga ontológica. Em sua criação musical, acreditava e acredita que pode elevar à harmonia qualquer caos sonoro, dando-lhe assim o direito de existir. Existir, onde e como? Não sabemos bem, nem se esse enriquecimento está na medida adequada ao mundo, ao homem. Mas “sou rico em fatos e criações, logo existo”, este é o raciocínio de quem esconde a doença. Mas seria isso aqui uma forma de adoentamento, ou talvez efetivamente uma forma de saúde do homem? Num primeiro momento, não é uma nem outra. Se a saúde espiritual do homem significa a conexão do indivíduo com um geral, nas manifestações descritas acima trata-se sempre de uma conexão, do individual com um possível. Por que não poderíamos dizer pensamos então - que o possível é mesmo a forma de realidade do geral ou que, pelo menos, o aumenta e enriquece? Em todo caso há algo de inocente no possível (seria a inocência do devir), no primeiro momento em que ele suscita vida, e o senso geral forçosamente ainda não precisa surgir. Aqui está em jogo o direito à criação de que o homem se encarregou, ou seja, o direito “de enriquecer a natureza no seio da natureza”, direito que, segundo Schiller, pertence só ao gênio. Qualquer criação inocente parece ter nela algo de puro. Numa primeira tentativa de criação, ainda próxima do estado de natureza, atribuem-se por exemplo determinações novas a uma certa realidade individual. Um tronco de árvore ou um bloco de pedra podem se tornar uma mesa com cadeiras, como uma “Mesa do Silêncio” , assim como uma pedra polida pela água pode ser polida ainda mais, até formar um corpo humano, ou assim como se pode imaginar um destino individual, na criação literária, surpreendido por todo o gênero de situações e acontecimentos da vida, como os de Ulisses. Num certo nível, aparentemente mais alto, mas onde a natureza e a cultura se encontram igualmente bem como nos primeiros exemplos, Balzac deu em seus romances - até o momento em que se tornou consciente do geral sob o qual se encontravam todos eles: A Comédia Humana - um exemplo extraordinário da conexão do individual com o possível, exprimindo não só a riqueza da sociedade ou da selva social de seu tempo, mas efetivamente enriquecendo a natureza no seio da natureza, ou seja, as listas do estado civil, como se disse. E, definitivamente, se Balzac não houvesse chegado à idéia (ao geral) da Comédia Humana, teria isso então significado que os seus romances haviam sido uma simples acumulação de    N. do T.: Escultura que compõe, juntamente com o “Portão do Beijo” e a “Coluna sem Fim”, o complexo estatuário da cidade de Târgu Jiu, executado por Constantin Brancusi (1876-1957), escultor romeno estabelecido em Paris, considerado um dos maiores escultores modernos.

sucessos artísticos, neles escondendo um adoentamento do espírito, uma espécie de câncer da criatividade? Pode ser que nas manifestações artísticas seja uma inverdade falar tão rápida e sumariamente sobre o adoentamento, no caso em que elas não ocupem lugar sob o signo de um sentido de ordem geral. Na realidade, um primeiro senso geral deve existir nessas manifestações, de momento em que os outros gostam delas; elas exprimem assim o pensamento e o ideal deles, erguendo-se aos sensos de uma comunidade inteira. A obra de arte se justifica por si mesma, assim como os romances de Balzac se justificavam por si mesmos, independentemente de seu significado ulterior; as obras também podem acumular o quanto for - até que uma insatisfação de sucesso, uma desorientação na maestria obtida, assim como um certo cansaço do artista e do espectador comece a se desvelar. Se não for a falta do geral, talvez seja então a falta de um outro geral. A pintura flamenga pôde dar por vezes a sensação de falar bem demais uma mesma coisa; assim como, por outro lado, a música de hoje fala maravilhosamente bem qualquer coisa, até esse taedium culturae, esse tédio por qualquer coisa. Picasso por vezes pareceu ser um fenômeno de cansaço, justamente na sua extraordinária prolificidade, assim como na cultura antiga o número limitado de assuntos, aqueles 110 temas de tragédia sobre que falava Goethe, conduzia ao impasse da criatividade simultaneamente à proliferação das criações. Uma certa exuberância criadora, junto com um primado do possível vazio, assim como com outro da maestria vazia (sobre que se falou sempre em épocas de decadência), seguida hoje pela maestria da execução e da direção, parece solidária com aquela perda de si em “ação” que traía ao espírito o estágio de adoentamento da catolite. Existe, assim, um indício de sutil miséria no momento de aparente glória de qualquer cultura artística plena. Mas no momento em que não se pode falar de onde ou quando a arte trai uma forma de adoentamento do espírito - assim como não se pode dizer hoje de onde e de quando a técnica começou a ser uma proliferação doentia -, por outro lado, para a vida moral do indivíduo, assim como para a vida histórica das comunidades, as coisas são mais simples e o diagnóstico faz-se mais facilmente, pelo menos quando é o caso da catolite: ela surge no momento em que se sai, legalmente ou não, de debaixo da tirania de uma ordem geral e ainda não se entrou na ordem “própria”. Duas límpidas ilustrações estão à nossa disposição: o filho pródigo para a vida moral do indivíduo e a história em si para a vida das comunidades. Talvez o filho pródigo, de um lado, e a história, de outro, sejam verdadeiros paradigmas da catolite, em sua forma primeira. “Faço o que gosto”, diz o filho pródigo, e parte para o mundo, saindo de debaixo do senso geral da família e da sociedade para obter os sensos que deseja e que ignora como sendo sensos gerais; pois justamente isto o exaspera, a tirania da generalidade. Agora libertou-se. Se gosta do encanto da natureza, vai se aprofundar na natureza; se quer conhecer países, vai

rodar o mundo; quando quiser a ordem ou a desordem do amor, vai procurar o amor. Vai se perder, assim, sem perceber, de um geral para outro, demonstrando explícita ou implicitamente que a sua liberdade é, de fato, a de procurar pelo próprio geral. O filho pródigo e, em geral, o homem de aventura não é, entretanto, consciente nem desse, nem de nenhum outro geral, acreditando que a sua liberdade significa aventura “pura”. Mas o geral não precisa a todo preço ser invocado a fim de ser ativo, na desordem aparente da aventura, com sua presença ou mesmo com sua ausência. Qualquer andar e qualquer perder-se representa um caminho e possui uma transcrição segura no mapa do coração humano, assim como toda curva traçada casualmente num papel corresponde nas matemáticas a uma equação. Se o agente finalmente não se der conta disso, vai terminar por ferir-se na ordem mais baixa, a da necessidade cega, assim como as manifestações livres de Don Juan terminavam, em sua exasperação, na necessidade mais comum, a morte. O filho pródigo, o homem “faço o que gosto”, não obtém mais que um momento do rosto de Don Juan. Ele tem à sua frente gerais muito mais variados que o eros, que não recusa mas nem transforma, como o outro, desafiando a sociedade. A sua arma é outra que não a contestação: é a infidelidade. Mais profunda que a infidelidade daquele, a qual não existe senão diante das mulheres - portanto dentro de um só geral -, a infidelidade do filho significa liberação diante de quaisquer gerais existentes. Resta-lhe dar-se um, mas ele se acostumou demais a fugir de tudo para chegar a pensar em tal coisa. A sua doença é a falta, da qual não é nem mesmo consciente, do geral, catolite de primeiro tipo. Se houvesse sabido de um geral através do qual pudesse se realizar, poderia ter permanecido em casa, ou teria partido em busca de si mesmo; e mesmo se não o houvesse encontrado, teria pelo menos sabido por que acabou tomando conta de porcos. Mas ele não sabe, em matéria de geral, senão da casa, que abandonou e, por isso, no momento em que precisa da proteção de alguém, ele volta para os seus. Teria sido possível acontecer de viver em palácios, ao invés de tomar conta de porcos; mas de qualquer modo ele teria voltado, se tivesse sido honesto consigo mesmo. Porque ele está doente, em plena juventude e energia. Levou consigo a doença por todas as partes do mundo, e agora volta para continuar sofrendo, mas pelo menos debaixo do mimo dos pais. Entretanto, o pai (a generalidade da família) não poderá dar nem a ele, nem ao seu irmão, que sofre de outra doença, mais do que mimos. São comunidades históricas que não têm, infelizmente, essa última carícia e esse refúgio num “em casa”. Quando o seu destino ou aventura histórica as conduziu à situação de tomar conta dos porcos dos outros, muitas delas se apagam efetivamente como guardiões de porcos; ou se, sob circunstâncias favoráveis e com a própria rebelião, algumas saem da escravidão, outras acabam por se perder na história, como o filho pródigo pelo mundo.

Na verdade, a maioria das comunidades, assim como a maioria dos homens, atribuem-se sem ter em vista, muito freqüentemente, um senso geral - determinações de todo tipo, cuja lenta acumulação pretende um dia tornar-se “história”. Mas o que é história, sob tal perspectiva? E como ela pode ser exibida? É estória, nada mais que isso - não é história. Goethe não aceitava a história como disciplina distinta da cultura humana e nem compreendia a história real como elevação a algo com o sentido do devir humano. Para ele, a história real era o inteiro devir coletivo, sem restar nada, de tal maneira que a única história escrita poderia ter sido a transcrição e a “biografia” dos eventos. E apesar de não poderem fazer justamente isso, muitos historiadores, dentre os quais os que não vêem o geral e a idéia na história real, permanecem realmente na simples biografia dos eventos. Perdemo-nos em crônicas e documentos, ou na história das famílias principescas da Renascença, assim como se perderam elas mesmas nas areias da história. Não têm sentido as coisas? Não se vertebram elas através de nada geral? O exemplo mais espantoso na história, de incapacidade de sair da precariedade das manifestações cegas e de obter um senso geral (até mesmo um “estado”), é oferecido por um povo como os Celtas, que, alguns séculos antes de nossa era e até hoje, no espaço que haverá de se ter tornado o romeno, e depois na França, Espanha, Inglaterra, estiveram continuamente - como já se disse - minando tudo o que era estado constituído, mas sem terem podido eles mesmos chegar à idéia e à realidade de ordem mais geral de estado. A história é plena de grandes anonimatos, graças à não-elevação aos sensos gerais, mas um insucesso tão persistente provavelmente não possui equivalente, pelo menos no espaço europeu. Se se pode falar de catolite nos povos, ou seja, de sofrimento provocado pela falta do geral e de sua consciência, nem um dos povos conhecidos padeceu tanto quanto os Celtas. Mas, de uma maneira ou de outra, a catolite de primeiro tipo (sem a consciência do geral) persegue todos os povos, pois até aqueles que se alçaram à idéia geral de estado, imbuindo-se mesmo, depois, de um senso geral como “missão histórica”, sofrem de certo modo de sua falta e navegam apenas debaixo de seu pavilhão e veleidade. São como “caravelas bêbadas” da história. Mas quando algumas delas têm a felicidade de alcançar um porto, as outras, ainda tomadas pelos calafrios da catolite, têm o cuidado de espantá-las dali, como se nada pudesse descansar na ordem do geral, dentre as que flutuam no oceano da história. Se reunirmos agora num lugar os traços principais que os casos mencionados de catolite trouxeram à luz, vemos que todos eles são como uma réplica do espírito diante da falta, sentida de maneira indefinida, do geral, que pode modelar os destinos e as tentativas do indivíduo ou da comunidade. A réplica do espírito tem, no início, algo de positivo nela. Traz consigo, nos anos da inocência, a sedução do verbo puro, livre com suas aberturas e de qualquer trajeto. Com a sua reação como se diante de um vazio (o vazio da vida), o espírito

desperta a riqueza do possível, mas sem resolvê-lo num real, até mesmo quando o leva à realização, realizando-o como uma reação em cadeia, possível após possível. Entrado dessa maneira em exuberância, o espírito poderia perder logo, se não olhasse para trás, as acumulações da experiência vivida e, às vezes, da criação, em casos privilegiados. Mas as acumulações são um simples acúmulo, assim como era apenas um acúmulo de vitórias vazias a série de guerras de Napoleão; e o homem, indomesticado de um senso mais largo de seus fatos, vê-se obrigado a suscitar fatos novos, deixando-se narcotizar pela ação. Assim como a proliferação excessiva de células num organismo trai a carência de controle genético, a pluralidade para ela mesma é, no espírito, sempre prova de carência do Uno. As determinações, não submetidas a um geral, não podem tornar-se senão pletóricas, de tal modo que, em plena aparente saúde, a abundância pode revelar justamente as vicissitudes que o espírito encontra. Por que vocês se agitam tanto?, dizia um indiano aos europeus, e todos o podem dizer, de sua perspectiva. O primado do verbo, da ação, do possível, das acumulações, da proliferação acaba por ser a síndrome de uma perda e prodigalidade de si. O filho é melhor denominado “pródigo” que “peregrino”; porque ele se prodigaliza o ser ao invés de juntá-lo sob um senso geral, como o prodigalizam os povos na história. É significativo que a ciência da história tenha nascido no continente europeu, onde mais incide a catolite. Os povos que se encontram sob o signo do geral - como alguns dos asiáticos - não têm necessidade de história. Eles sofrem, porém, de outras doenças do espírito. 2) Uma primeira forma de catolite, aquela em que não só falta o geral mas falta também a consciência dele, foi por nós assim examinada. A segunda forma vai possuir manifestações diferentes, apesar de solidárias, ao limite, com as primeiras. Por estarmos agora falando da doença espiritual daquele que tem consciência de que lhe falta o geral adequado, a atmosfera será mais refinada, mas também a morbidez será mais acusada. Nesta versão, a catolite é uma doença do homem erguido ao nível da cultura e, em todo caso, daquele que busca a lucidez. De modo especial, o homem de ciência, no momento em que sai da segurança da especialidade e sente a necessidade de filosofar, arrisca-se a ser tomado por essa segunda forma de doença espiritual que estamos analisando. Na verdade, ele adoece espiritualmente de fato - como aconteceu em nossos dias, no caso do biólogo francês Monod - sob o espetáculo de um mundo em que deveriam, sobretudo para ele como homem de ciência, aparecer leis e sensos gerais, recusando-se porém a aparecer a não ser sob a forma de necessidades evidentes. O homem de ciência tem, assim, a consciência do geral, mas não o podendo identificar em lugar algum, proclama categoricamente, apesar de ele mesmo vacilar dentro de si, que o mundo não é senão um encadeamento cego, visto da perspectiva de sua ciência. Uma semelhante visão é freqüente na história, de Epicuro e Lucrécio a Jacques

Monod, mas este a pôs em evidência de maneira tão provocatória que bastaria só ele ser invocado. Que o mistério da vida se reduza à conversão do acaso em necessidade; que a vida seja um acidente no universo e que o homem seja um nômade no mundo, uma criatura sem razão e sem motivo - quantos sábios desabusados e cínicos não o disseram? Se as coisas são repetidas agora por Monod em Le Hasard et la Nécessité, à luz das grandes descobertas científicas e em particular do código genético (em cuja elucidação contribuiu o próprio autor), isso nos interessa menos como visão filosófica, visto que ela é concebida antes, do que como sintoma de uma doença espiritual que não pára de tentar homens de ciência e os homens “lúcidos” em especial. Quanta objeção não se fez e quanta mais objeção não se faria a semelhante visão? Poder-seia dizer, por exemplo, que o acaso que se transforma em necessidade (“hasard capté, conservé, reproduit… et converti en nécessité”, op. cit., p. 112) pareceria perfeitamente, num outro momento da ciência, como sendo completamente outra coisa que não um simples acaso; que, em todo caso, é a forma mais trivial de acaso, no nível de quem brinca com a sorte, que em modo correspondente tem, como se sabe, uma idéia igualmente trivial da necessidade, de tal maneira que pode às vezes acabar na superstição da necessidade; e que - se devemos mesmo falar de acaso e necessidade - é bom dizer, da perspectiva do pensamento filosófico, que existem também outros tipos, algo mais refinado, tanto de acaso como de necessidade, assim como vão justamente demonstrar as outras cinco doenças espirituais cuja descrição virá a seguir. Mas o essencial é que em plena glória da pesquisa científica, como hoje, pôde-se reativar uma doença, constitucional do homem, no perfeito estilo clássico do pensamento científico. Perguntemo-nos mesmo se semelhantes doenças espirituais, sendo constitucionais, não seriam elas as que dão o impulso e depois o timbre de nossas visões sobre o mundo. De quando em quando, a catolite poderia pôr no mundo sistemas de conhecimento, em que o geral seria nada mais que necessidade cega e casual, como em Epicuro e Monod. Mas, se está em jogo a carência do geral e a consciência dessa carência, então, ainda melhor que as visões com base de ciência, aquelas com base de reflexão filosófica podem dar expressão ao desajuste produzido pela catolite. Assim ocorreu em nossos dias, de modo exemplar, com o existencialismo. Se alguém quiser ver, no nível da cultura, o que exatamente significa uma doença espiritual (com o seu positivo e sua criatividade), então o existencialismo lhe está à disposição. Desde o início, o existencialismo, ou os seus precursores, reconheceram, às vezes pateticamente, o adoentamento do espírito humano, com a tortura deste de saber que tem de buscar uma ordem geral, que entretanto não encontra. Não importando quanta aparente

segurança existisse em seu engajamento religioso, um Agostinho no final da Antigüidade e depois um Pascal viveram e pensaram dramaticamente, na falta daquilo que declaravam ter. Mas enquanto neles a busca ainda era equilibrada por uma clara abertura para o geral, num Kierkegaard e depois no existencialismo ateu dos nossos dias (sobretudo o francês), onde o individual, e não o geral, tem primazia, aparecem: a exasperação, as contorções do espírito e o desespero. Kierkegaard é, sem dúvida, o grande doente de catolite da história de nossa cultura. Ele sabe do geral, sente-lhe a presença, no caso de seu pai, como uma blasfêmia, percebe-o e o reinvoca por conta própria constantemente, mas ao mesmo tempo ele o contorna e se enterra em seu destino individual. Em termos específicos ele se pergunta, no período bom de seu amor por Reghina Olsen, se “se realiza ou não o geral”, o qual poderia agora tomar a forma, aparentemente comum, de casamento e submissão à lei religioso-social. Mas não se realiza o geral e ele se retrai tanto em sua experiência individual, que chega a declarar que tudo o que escreveu (tudo o que pensou, portanto, sobre o seu geral) tinha sido escrito para a glória da amada. Se é verdade, como se disse, que ele tenha proclamado o direito à subjetividade, contra Hegel e todos os agentes do geral, e que tenha sonhado com homens como “indivíduos” autênticos, então com a sua pessoa ele conseguiu. Mas se ao mesmo tempo queria, como já se disse de novo, buscar o geral num indíviduo, ele não o encontrou. Pôde evitar o panteísmo - porque sem a categoria do individual pode-se cair facilmente no panteísmo -, mas não pôde evitar o primado do individualismo, e igualmente o da desolação. Como Kierkegaard, existem pensadores que permanecem bloqueados no individual e em determinações, mas de uma outra maneira que não a experiência imediata e “normal”, onde o geral é ignorado; neles isso se explica através da impotência de encontrar acesso a um geral, cuja consciência entretanto têm. Têm primazia então as determinações de existência (daqui “existencialismo”) sobre a “essência”, assim como surge declarado sobretudo no existencialismo francês, com Sartre. O movimento do individual, através de determinações, para o geral, tão harmonioso em Platão, torna-se aqui torturado, porque o individual se enterra finalmente em determinações, ao invés de se abrir através delas; o próprio encontro com o geral, se ocorre, torna-se um “terremoto”, segundo o filósofo dinamarquês, e não um entrar em ordem. Quando não teve mais a cobertura, fosse até mesmo ilusória, da essência ou do geral divino, o existencialismo teve de reconhecer os seus limites, terminando, fosse no calar-se, como em Heidegger, fosse - o que é inacreditável para uma filosofia - na confissão de que deriva de outra filosofia, como fez Sartre com o marxismo. Permanecendo sozinho, o existencialismo conduz o ser humano à consciência do exílio, como na visão com base na ciência, ou à exasperação, terremoto e angústia.

Na verdade, o que nos parece comandar o existencialismo, assim como a “lucidez” dos modernos, é uma compreensão equivocada da inexistência e, geralmente, um pavor precipitado diante do “nada”. Nele mesmo, o nada não é perturbador, numa certa área da realidade, e nem deveria passar o sentimento da inexistência: um nada, ou seja, um lugar vazio, no plano da química, da biologia ou do espírito, coexiste perfeitamente com o pleno, como se viu na tabela dos elementos químicos de Mendeleiev, ou quem sabe em que tabelas da realidade; por outro lado, os tipos de nada obtidos da perspectiva da consciência não são mais do que calmas inteirações lógicas ou epistemológicas do real positivo através de um negativo, como no caso das quatro formas de nada de Kant (nihil privativum, ens rationis, ens imaginarium e nihil negativum). Não se pode falar de “inexistência” química, ou física, nem inexistência lógica. Só as formas de nada do interior do ser desequilibram o real. Se às vezes elas trazem a direção da realização necessária, com o que lhes falta, outras vezes elas dão o senso de bloqueio a uma coisa. E este vazio de ser, que pode ser fértil, mas que pode às vezes despertar, com os seus bloqueios, o sentimento da inexistência, tem como objetivo termos do ser: o geral, as determinações e o individual. O existencialismo não sabia, talvez, que se encontrava diante de uma determinada inexistência e mais nada que isso. Dessa maneira, no lugar que deveria ocupar, na economia do ser, o geral pode não ser “nada”. Vivemos a vida tranqüilamente com as suas acumulações, na qual podemos tentar ver seja a nossa liberdade e as restrições do mundo, seja outras vezes a nossa necessidade interior e a contingência do mundo; de qualquer modo, vivemos uma vida plena de determinações variadas. Assistimos depois ao espetáculo da realidade, onde as coisas e os seres, presas pelas situações do individual, se manifestam também eles de todos os modos, preenchendo o palco do mundo com a sua exuberância. Poder-se-ia dizer que não se pode tratar de vazio, nos momentos em que as coisas ou o homem produzem tanta riqueza de manifestações. E, na verdade, vazio não existe, mas pode existir inexistência (ou seja, sentimento do vazio) se falta a boa conversão para um senso geral que dê consistência à riqueza daquela. A inexistência é uma irrealidade mais sutil que o vazio; no meio de uma plenitude aparente, ela pode nos fazer dizer: “aqui não há nada, de fato”. É o que nós também às vezes dizemos, com a sabedoria dos anos tardios. Essa inexistência de destramação (porque existem outros tipos de inexistência) é também a mais freqüente, sendo percebida por qualquer um sob a existência tão comum do “que passa” ou do “cerceamento” da vida e das coisas, mesmo se não é límpido para qualquer um que justamente a falta do geral é o que faz com que tudo se destrame. Porém a consciência da falta do geral dá, naturalmente, um sentimento mais profundo da inexistência: sabemos bem que aqui deve haver algo - e não há nada. O desabamento do individual e das determinações acumuladas são, pois, pouco demais e algo comum demais diante da carência

de geral. “Deus morreu”, exclama Nietzsche, inflamado também ele de catolite. Como substituir, conforme o seu pensamento, através da simples “vontade de poder” do homem, ou com o “eterno retorno” daqueles que tornam, a presença do geral? Não se pode nada mais que enfrentar o geral, e a trágica colisão em que se entra dessa maneira (Dionísio contra Cristo, do delírio de Nietzsche nas vésperas da loucura) será a experiência extrema da catolite. É uma das formas do trágico (das seis formas do trágico) esta em que culmina a doença catolite: o trágico da colisão entre duas ordens gerais. Porque tendo a falta de geral, mas consciente da gravidade de semelhante falta, o homem pode atribuir ele a si mesmo semelhantes gerais e confrontar aqueles que não soube reconhecer. Antígona invoca as “leis não-escritas” para afrontar as da cidadela; El Cid veste a lei da honra para afrontar a própria lei; assim como Nietzsche se declara deus, para afrontar o divino. A forma clássica do trágico é assim apenas o final do caminho da catolite: a sua providência extrema, a inimizade dos gerais em sujeito consciente. Enquanto a catolite, no sujeito carente de consciência do geral, tem como manifestações, em sua forma primeira: a perda em ato, o excesso de ações, a exuberância do possível, a obsessão das acumulações, a pluralidade cega, a proliferação, agora sob a consciência do geral, ou da falta dele, em sua forma segunda surgem experiências espirituais em que dão o tom: o evento passado em necessidade cega, o sentimento de perda de si e do exílio, a angústia, a exasperação e a colisão trágica entre sujeito, doentiamente adequado ao nível do geral, e o geral ele-mesmo. O mundo deveria ter um sentido, mas para semelhante assunto não o tem. O homem tenta dar ele um sentido, se esforça e luta por ele, mas não o pode impor. Está sofrendo. - Mas a sua doença foi muitas vezes benfazeja para o mundo.

III. TODETITE É a doença causada pela carência do individual, uma carência que chega efetivamente até a falta “desta coisa mesma” (tode ti, em grego arcaico), através da qual se realizam tanto o senso geral como as suas determinações. Enquanto a catolite era a doença espiritual da imperfeição, justamente a de não poder obter o geral adequado, a todetite é de certa maneira a doença da perfeição, ou, no caso do homem, da disposição teórica em que ele põe o seu confiscar-se por um senso geral, fazendo com que não se ache no individual adequado. Poder-se-ia imaginar a própria natureza às vezes “sofrendo” desta doença; em todo caso, o divino sofre dela. A consciência religiosa do homem por vezes sentiu, no pensamento de perfeição do divino, o sofrimento de o não ver corporificado em nada, buscando-o em meteoritos caídos do céu ou nas realidades que lhe pareciam milagrosas sobre a terra. Se criou também uma situação histórica especial entre as religiões, o cristianismo o deve também ao fato de que teve o poder de sustentar até o fim a corporificação individual do divino. Poder-se-ia dizer que a corporificação não representa um dom do divino feito ao mundo, mas ele mesmo: o ser divino saía desta maneira do nada e da falta de identidade da perfeição. Antes, então, de atingir a doença do homem instalado no geral, pode-se falar da doença das realidades gerais elas mesmas. O tempo absoluto, imaginado com bom-senso muito antes de haver sido concebido por Newton, o mesmo com o espaço absoluto, ou com o ser de Parmênides, eram efetivamente doentes de perfeição. Nada individual não os vinha macular, levando-os a uma “realização” sua, assim como nada individual não resistia diante deles. O tempo parecia uma vasta ironia metafísica; afirmava-se - nessa concepção - através do presente, para desmentir-se sozinho; ou punha continuamente no mundo filhos do momento, a fim de os suprimir, como Cronos. Também o espaço era ao mesmo tempo o princípio de individualização (hic et nunc), através da determinação local, mas também o de dissolução de toda localização. Diante dos tempos reais e individualizados de acordo com a espacialidade em que se encontram, das ciências de hoje (outro é o tempo terrestre, em face do cósmico), o tempo absoluto parecia, com a sua necessidade, “tudo o que é mais poderoso

e tudo o que é mais fraco”, como dizia Hegel. Diante do espaço-campo das ciências novas, o conceito de espaço absoluto denominava o próprio vácuo. Os princípios que lhes correspondiam em lógica eram igualmente doentios: diante da identidade real da coisa modificadora (ou do “eu”, que é o mesmo, apesar de o homem se modificar todo o tempo), o princípio da identidade expresso como A = A representa uma verdadeira alucinação lógica; assim como, diante das contradições efetivas do seio do real, o velho princípio da contradição reclamava, para as coisas, algo tão perfeito que, graças ao seu regime, nem mesmo às matemáticas faltavam graves contradições. Se “a doença” das entidades gerais e de suas reflexões lógicas pode a alguém parecer uma simples metáfora, o homem de qualquer modo efetivamente sofreu por sua causa e graças a sua consciência. Sua perfeição, com a falta de qualquer acesso ao individual - para o qual as entidades deveriam de qualquer modo ser enviadas, porque elas são aquelas que o enquadram e sustentam -, deu ao homem a forma mais nobre de todetite, mas também a mais difícil de suportar, não só como homem religioso mas também como ser pensante e conhecedor; pois a todetite está associada a processos superiores, em primeiro lugar os do conhecimento. Poder-se-ia haver dito que o mundo moderno, com a degradação que levou às instâncias supremas (divino, ser puro, tempo, espaço absoluto) e com a relativização através do conhecimento de qualquer entidade geral, escapou da obsessão da perfeição e, assim, de uma das formas de todetite. Mas ocorreu, de novo, algo totalmente inesperado: se através do conhecimento exato desfez-se a névoa de todo absoluto de fora, permaneceu no homem conhecedor o absoluto da exatidão. Todas as perfeições se dissolveram pelo conhecimento, mas ficou a exigência da perfeição do conhecimento. A necessidade da exatidão absoluta encontrou uma expressão extraordinária na lógica simbólica, cujo ideal de rigor é de tal natureza que ela detecta graves imperfeições em tudo o que foi pensamento organizado e em tudo o que é afirmação do logos, em primeiro lugar nas línguas naturais, desvelando mesmo contradições e paradoxos, como dizia, até nas matemáticas. Uma tal exigência de rigor absoluto não pode deixar de reativar a doença espiritual da todetite, sob a forma do sofrimento de não poder encontrar realidades individuais à sua medida e de as dever inventar ou propor com modelos ideais. Aliada à máquina, ao maquinismo e até mesmo à automatização, a cuja medida e serviço se encontra, a lógica simbólica exprime em estado puro o primado do geral sobre tudo o que pode ser individual e, assim, o primado do rigor, da exatidão, da perfeição mecanicistaracional, graças ao qual o ser do homem, todo natural, arrisca atingir um desajuste através de um excesso de regulagem. Aquilo que poderia despertar a doença espiritual no homem antigo, mais exatamente o sentimento e a convicção de que existe um mundo incorruptível, diante do qual o mundo dele não era senão um mundo do individual e do corruptível; aquilo

que contudo não fez os gregos antigos adoecer, graças quem sabe a que tipo de bom instinto de sua saúde, agora arrisca adoecer a nós, no momento de todas as descrenças e desmitificações. Mas se a lógica e a máquina exprimem em estado puro a forma de incorruptível do homem moderno, a sua exigência de rigor e de reação segura em cadeia se manifesta, concretamente, em toda a cultura científica, não importa o quão deficitária seja ela ainda sob o relatório da exatidão absoluta em muitos setores, conduzindo desta maneira não só a uma tensão dramática do conhecimento, mas - como ainda vou tratar - a uma outra forma de trágico que não aquela em que a catolite poderia culminar: ao trágico do conhecimento suspenso, à detenção de um geral perfeito, destacado de individual. Nas ciências, de fato, o homem é ou tem de ser uma ausência, assim como tudo o que é individual. Qualquer ciência é a redução de uma diversidade a uma unidade, portanto, de algumas determinações a um geral. O problema principal foi fazer com que a variedade de determinações da natureza - enriquecida pelo homem de ciência com determinações novas, da experimentação - encontrasse aquelas leis que levassem a todas as partes a ordem e a verdade do geral. A indiferença com relação ao individual não leva em consideração só aquele que conhece também o seu mundo (o sujeito não deve contar), mas leva também em consideração o objeto individual do conhecimento. Pois, na medida em que conhece, a consciência “come” o seu objeto, assim como já se disse; ela o desfaz como tal, reduzindo-o à lei, e ainda muito mais, reduzindo-o a uma simples expressão de ordem matemática. Que tudo o que seja natureza vacile desta maneira? Mas fiat scientia, pereat mundus. O individual como tal, até mesmo o Grande indivíduo que é este nosso astro, são colocados em parêntesis diante da verdade de conhecimento. Se se dissesse que não passasse aqui de uma aparência de trágico, para o destino de conhecimento do homem - na medida em que ele quer conhecer algo, e permanece diante de si somente com um espectro, ou com a “épura” matemática de algo -, é seguramente um verdadeiro senso trágico nas aplicações técnicas desse conhecimento, que, no momento em que acaba por tentar reaver uma realidade individual, ameaça aquelas efetivas ou põe no seu lugar outras, simplesmente explosivas. Assim como mais tarde, para o impasse trágico da cultura de alta doença espiritual, escolheremos a arte da música, não se pode escolher agora, para o impasse da cultura científica, nem a física, sobre cujos terríveis riscos hoje qualquer um sabe, nem a química com a sua poluição, nem a biologia com o seu intervencionismo deformador possível, mas simplesmente a medicina, que chegou à situação de não poder deixar de salvar a progenitura da humanidade, porém sabendo perfeitamente que, agindo assim, apressa a explosão demográfica, ou seja, ameaça ela mesma a vida humana, assim como, prolongando infindavelmente e conduzindo à hebetude a velhice do homem, ameaça mais uma vez a própria vida com a sua própria degradação. 

De novo surge, com esse trágico cuja consciência atinge o homem que sofre de todetite, uma de suas formas culminantes, assim como encontrávamos no caso da catolite. Ilustremos então a todetite nas situações mais comuns, seguindo-a em suas formas iniciais, e mostremos, como no caso das outras doenças constitucionais do homem, o quão luminosas podem ser as suas manifestações no homem jovem, ou que virtudes animadoras e criadoras ela desperta mais tarde na vida, a fim de reencontrar quase no fim algo do impasse trágico da doença. Com a perfeição, agora com a exatidão, enfim com a reação segura em cadeia do geral, ela teve uma entrada solene na vida e na cultura do homem. Mas um geral tal que não encontra bem o individual - e por isso arrisca extirpar todo individual do seio da realidade - é ativo também em formas imediatas, não apenas naquelas superiores de conhecimento. A todetite é tão velha quanto o mundo, assim como as outras doenças. É uma doença típica para a metade da humanidade, para mulheres que têm como objetivo fixar o geral da espécie num individual: num amor, numa criança, num lar. Mas da mesma maneira todo jovem passa por um momento da vida em que sofre de todetite, graças ao seu idealismo, estúpido porém cheio de belezas e exaltações, sobretudo no caso da magia do ideal, como uma primeira e vaga elevação ao plano do geral pelo qual se encontra, num dado momento, escravizado. Sob a forma do ideal, o geral é ativo, no caso do jovem, primeiramente no coração. Parece que é uma felicidade - antes de se tornar um sofrimento - no indeterminado do sentimento despertado pela experiência do geral. Sente-se necessidade de fazer, mas não se sabe bem o quê; endireitar o mundo, sem ver bem como; amar, mas não saber exatamente quem. É tanta sede, generosidade e amor no coração que parece que se pode viver suspenso neles. “Amabam, diz Agostinho, sed nondum sciebam quod amabam.” Por seu lado, Goethe ama Frau von Stein antes de se encontrar com ela, só por causa do contorno que vê do seu rosto. O estado está acima do conteúdo, no que se refere ao coração. Quando o intelecto é que se embebe de sensos gerais, ele transforma o homem em ser ativo, desejoso por realizar o geral; mas quando o coração se enrosca no geral, ele fica um tempo suspenso. Não nós amamos, mas é algo em nós que ama. Dir-se-ia que seja uma boa plenitude passiva, se não for uma forma de desequilíbrio espiritual, como se vê imediatamente depois que o ser sai do estado de suspensão. Ela pode não encontrar nada na medida do ideal do coração, ou pelo contrário, pode fixar-se em qualquer coisa, assim como Fausto, rejuvenescido pela maga, enxergava a imagem da bela Helena na primeira moça que encontrasse. Justamente o amor, que deveria identificar o individual sob a vestimenta de um “tode ti” privilegiado, arrisca, sob a pressão do geral, atingir uma obnubilação diante do individual.

  O detentor do prêmio Nobel de Biologia, Krick, propôs que, após os 80 anos, o homem não mais tomasse remédios.

O ideal, porém, como expressão do geral vazio, é ativo não só sobre o coração mas também sobre o intelecto, num momento do homem e sobretudo numa de suas idades. É a idade jovem da “consciência teórica”. Tendo quase sempre chegado até aqui, o jovem cai sobre um geral degradado. Assim acontece mesmo com os grandes espíritos. Goethe encontrava nos anos de juventude algo da ordem da teosofia, naturalmente sob a influência da senhora von Klettenburg, mas com uma receptividade que mostra quanta necessidade ele tinha de um senso geral, qualquer que fosse. Agostinho, que se encontrava na mesma necessidade, deixase encantar pelo maniqueísmo, que lhe vai satisfazer um momento a necessidade do geral e não o vai deixar disponível para outra experiência senão após a decepção que lhe vai produzir o encontro tão esperado com Fastus, o apóstolo do maniqueísmo. O que é característico desta idade e impressionante, tanto no caso de Goethe como também no de Agostinho, é o fato de que o ser individual se abandona, quase em totalidade, aos sensos gerais que se lhe revelaram, e se deleita muito mais com a experiência da ordem posta pelo geral em determinações variadas do que com a afirmação própria ou a aplicação do geral, também própria, às situações reais. A teosofia para Goethe e o maniqueísmo para Agostinho representaram, num dado momento, aquela resposta total, de que o homem jovem tem necessidade mesmo então quando não se pôs a si todas as perguntas e quando nem bem sabe o que fazer das respostas. Nessa segurança, quase no sono dogmático da segunda idade, o homem pode ser tomado por todos os fanatismos ideológicos, que lhe parecem ainda mais convincentes na medida em que ele tenha esquecido de si e do mundo. - Mas o individual, sob a forma da “realidade” que resiste a ele, como se graças à verdade do próprio ser, que não se deixa demasiado tempo confiscar pelo ideal, exige os seus direitos. O sentimento da inadequação se aninha no coração daquele que sofre de todetite, assim como no caso da catolite era o sentimento de exílio. E, contudo, não só nessa idade, mas em qualquer momento da vida, o homem é tentado e se alegra em ver como ele mesmo se ergueu, ou como as coisas se ergueram, no geral, mesmo se arrisca a não mais saber ancorar, ou ver as coisas ancoradas no individual. As variedades tentam tornar-se espécies, mostra Darwin. De toda a variedade de situações em que nos envolvemos e de determinações que nós nos propusemos, quereríamos ver desprendendo-se uma versão humana que se mantivesse, um tipo de variedade que houvesse se tornado espécie, ou seja, uma lei válida para outros mais. Se não podemos ver sentido de lei na própria vida inteira, que não nos é dada como tal, nós o buscamos nos seus fragmentos terminados. Então constatamos com surpresa como, na nossa vida e na dos outros, fatos desordenados possuíam na verdade ordem atrás de si, e nos dedicamos com confiança a alguns mandamentos da sociedade que tivera cuidado de nos colocar em suposição e modelação antes que consentíssemos sozinhos com as suas regras.

A alegria de ver desta maneira as determinações casuais tomadas na rede da lei social e histórica pode nos conduzir a qualquer momento a um esquecimento de nós próprios, assim como de tudo o que é individual, fazendo-nos registrar o formigueiro organizado do mundo como uma forma de subsistência, além das formigas singulares. Sem que queiramos, um encantamento nos envolve, não tanto de conhecimento como de existência, vivemos estados gerais ou nos vemos vividos por eles (por um entusiasmo coletivo, por situações históricas dominadoras, pelo espírito do tempo, ou pelo espírito objetivo de nossas carreiras, como também pelas idéias de todos), de tal maneira que o geral, com as determinações que dele se desprendem, prima agora sobre todo senso individual e recebe uma espécie de autonomia. Mas seria ele o nosso geral? É antes uma subsistência fantomática. “Eu não fui eu”, sente cada um, graças a esse sonho mau. Em definitivo, o que são esses sensos gerais, passageiros a seu modo, diante da realidade dos indivíduos? Não estamos na condição de formigas a fim de criar eternamente somente pelo formigueiro e suas leis. Os sensos gerais passam, assim como passam os domínios humanos, e nós permanecemos; ou mesmo se eles sejam mais vastos e mais duros que o indivíduo, eles se mostram no final das contas mais fantomáticos que ele. O homem quer ser e quer ver o mundo que existe. É-lhe um sofrimento constatar que também ele e as coisas tenham entrado na monotonia do geral, onde toda providência e afirmação pretensamente individual são captadas pela estatística. A todetite é, pelo contrário, a doença espiritual com que o homem se confronta no momento em que percebe que foi tomado pela estatística. Na realidade, aquele geral que transforma em caso geral toda providência individual não esmaga as situações e os destinos individuais só porque ele mesmo se encontra nalgum lugar em carência, não conseguindo obter a plenitude no individual. Mesmo nas situações objetivas do real, o individual pode às vezes faltar. Processos, instruturas e determinações podem se desenvolver organizadamente dentro da realidade, sem se ancorar nem eles em algo individual. Retomando o exemplo biológico, pode-se facilmente imaginar - e os homens de ciência deram certamente nome a tal tipo de situações - que nas origens, ou ainda hoje, algo da ordem da vida se obteve, sem se ter obtido também a organização por espécies; ou que talvez algo da ordem das espécies, se não a própria espécie, se obteve em alguns casos, sem ter alcançado exemplares individuais. É também essa uma maneira de ser, composta por determinações que atingiram o geral, mas que não estão à altura de produzir também o individual. Isso significa que surge também no real uma forma de todetite, no momento em que as manifestações dele tendem para a direção da individualização, porém fracassando. Talvez as determinações da matéria se organizam numa medida muito maior no senso do geral do que no do individual, permanecendo assim em carência, assim como parece ser no vasto cosmo. Mas certamente tais irrealizações ressurgem ou se refletem no homem, nas

suas teorizações ou nas suas tentativas de criação. As vidas dos homens podem-se organizar em sensos gerais que não se individualizem em nada (como as naturezas heróicas que não têm ocasião de realizar atos de heroísmo), assim como, num outro plano, o homem pode construir, a partir das determinações do real e do pensamento, visões teóricas que tenham uma única consistência de ordem geral, mas que não se ancorem em nada. Até mesmo no plano da criação podem existir verdadeiras visões organizadas, que não conduzam a obra nenhuma. Na Idade Média, uma admirável matriz criadora ofereceram alguns mitos e temas de ordem geral que podiam conduzir a grandes obras dramáticas; tudo era preparado para se obterem os assim chamados, em termos literários, “mistérios”, começando com as determinações mais variadas (as lendas crísticas) e terminando com o seu significado de ordem geral; mas a substância dos mistérios não encontrou, por um motivo histórico ou por outro, a realidade individual - o criador e a obra -, apesar de se pretender que no momento em que “tudo está preparado” devam também aparecer aqueles. Sob um determinado ponto-de-vista, na criação artística mas também em outro tipo de criação do homem, vê-se o mais claramente possível a predisposição à todetite. Toda criação é, inicialmente, a tentativa de conduzir estados anímicos e determinações exteriores a um sentido; a tentativa de juntá-lo com um senso geral, de tal maneira que os estados e as determinações possam depois integrar-se, organizadamente, numa realização. A dificuldade no primeiro momento, para um criador, é a de conceber ou “ver” sensos gerais que possam somar uma riqueza de determinações (de ver em cada canto da natureza uma “paisagem”, por exemplo). Foi provavelmente difícil também para a natureza reunir manifestações diversas de vida numa variedade biológica e depois transformar as variedades, como dizia, em espécies. Mas não seria agora uma nova dificuldade tornar as espécies indivíduos? Da mesma maneira foi difícil para o romancista Balzac ver uma Comédia Humana nas personagens e nos acontecimentos da sociedade francesa do início do século XIX. Mas, depois de conseguir perceber esse senso geral e assim sentir, com uma esplêndida candura, que estava a caminho de tornar-se um gênio, como dizia à sua irmã, o mesmo Balzac terá percebido que a genialidade não consta da intuição do geral vazio, mas antes de sua implantação nas realidades e situações individuais. Mas e se o individual resistir? Assim aconteceu ao próprio Balzac. Inflamado pelo senso geral da Comédia Humana, ele sentiu que devia prestar contas de toda a comunidade francesa e implantar esse senso na realidade individual do mundo rural de sua época; escreveu então seus romances campestres, que não saíram bem. Tinha à mão tudo, no que diz respeito ao geral, mas um “tode ti” lhe faltava. Com o seu sentimento artístico tão seguro, terá sofrido, então, com o insucesso, e terá se confrontado com uma forma de todetite. E na verdade não seria a todetite, ou seja, o esforço de obter o individual (a realização adequada), justamente a doença dos artistas?

Os artistas a seu modo são visionários políticos: é-lhes necessária uma realização individual de seu pensamento, que não conseguem obter quase nunca, por estarem debaixo da maldição de ter de incorporar idéias no plasma da sociedade humana, o qual é tão inseguro e intranqüilo, de modo algum pedra, som ou palavra, como no caso dos artistas propriamente ditos. O sofrimento de artista é por isso ainda mais vivo neles, seja quando utópicos, seja quando realistas. A utopia do estado platônico, as utopias políticas do Renascimento, as constituições que Rousseau confecciona para diversos estadinhos, não passam de preocupações espirituais com que o homem se confronta. Se existe, talvez, um encantamento gratuito em fazer construções teóricas, quanta miséria espiritual, por outro lado, na impossibilidade de edificar praticamente. Os utópicos podem permanecer nas formas mais brandas da todetite, enquanto os visionários realistas entram na demência dos “Possessos” de Dostoiévski ou no furor político dos reformadores infernizados e desamados que enchem as páginas da história. Estados inteiros podem se alçar à generalidade de uma idéia, que não estão à altura de realizar nem por dentro, nem por fora. Dessa maneira, na falta de uma identidade histórica, o continente norte-americano se alçou desde o início, através de uma simples Constituição, ao geral; deu a si mesmo um sentido histórico, uma idéia, que não consegue muito bem, de há aproximadamente dois séculos, nem realizá-la verdadeiramente na vasta comunidade, nem passá-la para outras comunidades (“o modo de vida americano”). Por outro lado, no caso de outras comunidades históricas, como foi a Roma imperial ou como é a França de hoje, o senso geral, ou seja, a idéia de civilização e de cultura, tem tanto sucesso, tanto por dentro como por fora, que qualquer um lá se sente em casa, tudo se torna cosmopolita (e não universal, num sentido humano mais profundo), e o sentido entra assim em dissolução, através da perda do individual e de todo suporte histórico criador. O império romano se descompunha, na verdade, pelo cosmopolitismo, também como parece entrar em dissolução aquilo que se poderia denominar: o império espiritual francês. O geral transformado em simples generalidade (valores de consumo universal, civilização adequada a qualquer um, cultura por base do encantamento, não importando o quão rafinada) mina e desagrega o próprio ser histórico. Podem-se assim perder em “idéias” também os povos, assim como se perdem indivíduos, sem mais poder reencontrar o bom caminho de volta ao seu individual. Uma consciência teórica afirmada demais pode esvaziar comunidades históricas importantes, como pode esvaziar culturas. A tendência da cultura moderna na direção do positivismo e da exatidão, assim como a tendência da arte contemporânea na direção de formas de arte abstrata são solidárias com uma certa maturidade histórica que se atingiu e que, no mundo de hoje, incorpora essas duas formas contrastantes: lucidez teórica de um estado que ainda não existe, assim como aconteceu com o norte-americano, e a lucidez refinada de uma nação historicamente supersaturada. (Que significativo que a Revolução Francesa, próxima de um

final histórico como se mostrava, era solidária com a americana, surgida num início histórico.) Mas tanto historicamente como artisticamente, a carência é do individual. A história assim como a arte, a natureza assim como o indivíduo pode assim estar sob a carência do individual, ocasionando a quem contempla as coisas o espetáculo de uma inexistência mais sutil do que aquela do destramar, à qual conduziam as vicissitudes do geral no quadro da catolite. Se não se obtivesse o geral, então a realidade individual se destramava, perdendo-se no seu passageiro e no seu nada; mas se não se obtém o individual, o geral permanece livre e produz verdadeiramente uma inexistência de suspensão das coisas. Pode ser que “a sopa vital” da origem da vida, sobre a qual falam alguns biólogos, tenha flutuado por muito tempo sobre as águas, sem que os seres individuais nascessem. Isso significa que se obteve uma substancialidade geral como a vida, assim como talvez se obteve também em outras zonas cósmicas, sem se ter obtido também as suas realidades substanciais. Desse modo, o homem pode ver como se lhe organizam admiravelmente, em concepções, os ideais ou, pelo menos em sonhos, as determinações da vida; pode surpreender por outro lado como as manifestações caóticas do mundo poderiam confessar-se, no seu profundo, começando com a natureza geral da história e as suas leis, que lhes dariam fundamento e segurança; mas a uma e a outra pode faltar a condensação da nuvem em chuva real. Tudo permanece sem nome, mas a sabedoria tardia vê como a agitação do mundo e o seu tumulto criador permanece numa inexistência de suspensão. Se as naturezas teóricas se satisfizessem em contemplar a urdidura contínua das coisas no geral do qual elas não mais saem, ou se dessem livre curso ao exercício de uma inteligência que conhecesse somente os possíveis, então certamente se desviariam da todetite (apesar de que iriam cair numa outra, como veremos com o espírito contemplativo), rejubilando-se com a infinidade qualitativa das nuances e delimitações do geral, ao invés da infinidade quantitativa dos indivíduos e estados reais. Assim como o belo, com o qual “não se sacia mais olhando para ele”, a verdade teórica pode compreender diversas características e aspectos, sem que a sua acumulação estupefique a visão e a mente. Mas na maioria das vezes as naturezas teóricas não se satisfazem com o vazio da realidade, pondo em jogo a riqueza de possíveis do geral, justamente a fim de obter a sua inscrição no real. O individual se encontra aqui, na todetite, tão somente em carência, ainda não é contestado, assim como vai ser no caso da atodetia. Todo o refinamento da cultura será necessário para que, saindo da crise da consciência téorica, o homem passe para uma outra crise, a da consciência da contemplação. Somente com uma consciência teórica, o homem se adoenta ao ver não só quanta resistência existe no real, mas também como ele sozinho para si ergue, com a perspectiva do geral sobre que se assentou, novas formas de acaso e necessidade, diferentes daquelas que via o homem de ciência, particularmente um Monod, debaixo da doença espiritual da catolite.  

 N. do T.: Jacques Monod (1910-1976), geneticista francês. Prêmio Nobel de 1965.

Pois não ocorre no mundo só o acaso que fazia com que algumas determinações livres, por exemplo certos processos de ordem química, se integrassem à generalidade da vida e acabassem num código biológico. Pode acontecer também o acaso oposto - deve-se dizê-lo, assim como ocorre com tantos outros - como um código já constituído, uma espécie, por exemplo, em que, por ser espécie, as determinações integraram-se num geral, não conseguiria encontrar a sua natureza individual correspondente. Não seria justamente isso que acontece na vida? Qualquer um, sem ser biólogo, pode observar o fato de que, graças a certas mudanças fortuitas (climáticas, geológicas, ecológicas), passam bruscamente a existir novas espécies de seres, aos quais faltava não o código, ou seja, o geral, mas sim a condição particular de individualização. Os biólogos talvez devessem dizer - se querem minimamente filosofar, como Monod e outros - como existiam aquelas espécies sem exemplares individuais e quão vasta pode ser tal área das realidades gerais que também não têm estatuto de realidades individuais. Da mesma maneira, os historiadores deveriam identificar, de certo modo, se não a presença, pelo menos a possibilidade real, num determinado momento histórico, daquelas naturezas gerais humanas que estão prontas a eclodir no seio da realidade, no momento de uma revolução ou catástrofe histórica. Sob essa perspectiva, de um acaso interessado pelo geral, e não o individual, o mundo inteiro, que surge como uma necessidade e que estudamos como tal, torna-se perfeitamente contingente. Com alguns graus de calor a mais ou a menos, a natureza sobre a Terra, assim como a sua história, seria totalmente outra. Dirão: é velha a história do “o que teria sido se”… Mas não, é o problema do “o que será se?” É o problema em que acabaram a ciência e a técnica moderna que - já se disse - não mais têm por eixo exclusivo o “por quê?”, mas põem em vigência o “por que não?” Por que não esta visão teórica, estes objetos, esta natureza, modificada? E trata-se, definitivamente, da preocupação toda, até à doença todetite, da consciência teórica - diretamente registrada por qualquer um no homem político - que também pensa com “o que será se” (não com: o que teria sido), ou que põe em vigência o “por que não assim” ao invés de se demorar no “por quê” (ou justamente na prolongação do por quê). Se tudo o que é real é contingente, isso então significa que não só o acaso se transforma em necessidade, como querem alguns homens de ciência, mas também a necessidade (o geral, a teoria) pode tornar-se acaso, respectivamente, lote do real. Deve-se admitir, de qualquer modo, que, ao contrário das visões comuns do acaso e da necessidade, há de se conceber uma outra visão e que tanto acaso como necessidade têm sentido para todos os termos ontológicos, não só para o individual mas também para o geral e as determinações. Permanecendo agora no acaso do individual que é projetado na

generalidade e no novo, do geral (códigos genéticos, personalidades ideais, ou leis, teorias, estruturas) que passa para a realidade das existências individuais, significa que entra em ação, além do acaso que estrutura e modela, um que fixa e “realiza” antes do estruturado. E correlativamente a este novo tipo de acaso, dever-se-ia pensar também num outro tipo de necessidade, que não mais se assemelha à necessidade cega do primeiro caso, mas antes a uma mestre de si mesma. É a necessidade que a natureza teórica sente. O pendular entre acaso e necessidade faz o escândalo dessa natureza e da sua doença. Como se pode deixar irrealizado o geral que se viu em sua perfeição, riqueza e bondade? E se ele depende de necessidade, como realizar-se somente por acaso? No nível moral, essa situação intolerável, de ver a lei e os mandamentos realizando-se por acaso, é a que produz a indignação, no coração do irmão suposto e benfeitor, diante do retorno do filho pródigo do mundo. Esse último não fez senão “o que gosta”, enquanto o outro fez “o que deve”. Por dominar os sensos gerais, a lei da família e da sociedade, ele sentiu o tempo todo, diante do outro, a superioridade de fazer ao mesmo tempo o que deve e o que gosta, pois encontrava satisfação justamente na realização do dever, ou seja, subordinando ao geral tudo o que fazia. Se também ele possui um senso para a liberdade, é o de julgar, no espírito e no horizonte da lei. Com o seu juízo livre, porém não carente de critérios últimos, ele pôde apreciar em que medida as suas providências e as dos outros estão adequadas às grandes regras prescritas. O sacrilégio do filho pródigo parece ser mesmo o de haver tomado a liberdade diante da lei. Nesse sentido, parece ao irmão que o outro nem mais merece ser condenado; a punição virá sozinha, e a primeira punição que se abateu sobre o filho pródigo foi a do não-assentamento (como mais tarde com Fausto: “Ich bin der Unbehauste…”). Pode ser que, haja vista a seus escrúpulos, nem ele, o irmão, não esteve sempre em perfeita ordem. Mas as coisas com ele se encontram completamente de outra maneira; se às vezes pôde dizer sozinho que errou, ele contudo sente, em sua insatisfação declarada, uma satisfação escondida, de natureza superior, como aquela do artista que acabou acima de suas obras, ou, num outro plano, como a do demiurgo que saberia de mundos possíveis melhores do que o criado. Mas como aceitar que uma vida de desordem, como a do filho, pudesse conduzir, graças a um simples perdão do pai, à ordem? Aquele que, como o irmão, conhece o geral e a lei, antes mesmo de os ver em materializações individuais, não pode mais admitir que o acaso e o arbitrário também eles venham pôr ordem nas coisas. Ele não pode outro senão sofrer com a idéia de que a ordem não pôs completamente de lado o acaso. Entende perfeitamente por que o filho pródigo não foi punido. Mas que seja mesmo premiado pelo seu retorno?

As naturezas teóricas de todos os tempos, mas sobretudo as modernas, favorecidas como são pelo conhecimento comum, depois que se perderam pela natureza e pelos laboratórios como filhos pródigos da cultura (pois eles não entenderam permanecer na compreensão religiosa e filosófica de casa, lançando-se no vasto mundo), acabaram de qualquer modo por aprender algo do espírito moralizador e reformador do limitado irmão que ficara em casa. Como este, eles não gostam de nada do vasto mundo que freqüentaram por todos os lados. Os lógicos e os lingüistas não gostam das línguas naturais, os sociólogos não gostam da história, os ideólogos não gostam da sociedade civil, os geneticistas nem sempre gostam dos códigos genéticos reais e pensam em modificar os tipos de trigo assim como os de homem, enquanto pode ser que, finalmente, os cosmonautas nem gostem da terra. A razão se torna, nisso tudo, “racionalização”, assim como sempre de outra maneira o geral tentou colocar no mundo realidades adequadas à sua perfeição. Graças aos sensos gerais acreditados pelos conhecimentos que conseguimos obter, o mundo hoje torna-se um mundo do laboratório, da retorta, do transplante, ou dos satélites artificiais e da colonização do homem no cosmo, torna-se um mundo do planificar, direcionar e modelar os destinos humanos. Então eclode a todetite. Sempre ativa na categoria das doenças espirituais do homem - como se provindo no passado da consciência do incorruptível e da perfeição suprema, na versão moderna, da constância mais apagada mas indizivelmente mais rígida da necessidade de rigor e exatidão, e na versão do homem comum sob a consciência do ideal -, ativa no homem iluminado graças à consciência da sua natureza teórica, que detém leis a ser incorporadas no mundo, a todetite exalta o homem, fazendo-o colocar o real em dúvida. Ele posiciona melhor o mundo? Ele próprio se posiciona melhor? Com as irrealizações ou realizações pela metade aonde a sua intenção o conduziu e conduz, ele tem geralmente a supresa de ver a inadequação em torno de si e o fantomático em tudo o que faz, ou de ver a si mesmo rendido à estatística, junto com as coisas. Mas ele sai da estatística em nome do geral a que se alçou e o qual, com o seu orgulho humano, dá-se o direito até mesmo de modificar, se o geral mostrar-se indigno da realidade. Quem chegou ao nível do geral, ou seja, quem provou das coisas que não existem, não mais se dá facilmente com as coisas que existem, não importando quantas dificuldades esteja por enfrentar. E tudo vem a mostrar que o homem europeu, que sofreu e criou tanto sob o signo da catolite, prepara-se para sofrer e para criar sob o da todetite.

IV. HORETITE “Horetite”, de horos, “determinação” em grego antigo; quer denominar o desajuste das determinações que as coisas e o homem se atribuem, um desajuste que pode conduzir à precipitação, mas também a sua lentidão, até a extinção. Essa doença acompanha os fenômenos da vontade, no homem, enquanto a catolite estava ligada mais ao sentimento, e a todetite, à inteligência e ao conhecimento. Sofrem de horetite, pela linha da vontade, tanto grandes impacientes, quanto, por outro lado, grandes tolerantes e o bando de pacientes do mundo. Se o desajuste das manifestações é causado em primeiro lugar pela vontade, com o seu positivo e o seu negativo, ele pode acelerar ou desacelerar o curso delas. Até mesmo o ritmo das manifestações históricas a vontade do homem tenta modificar, com o devir estimulado e o devir moroso que ela pode trazer. Por isso, a horetite vai estar presente, muito mais do que as duas primeiras doenças, também no quadro histórico. Mas tanto no homem como na história, pode constituir seja uma forma aguda, seja uma crônica. 1. Horetite aguda. Se pensarmos na horetite do indivíduo humano - não ainda na da história ou, talvez ainda mais, na do ser -, vêm-nos primeiro à mente grandes impacientes, como Dom Quixote, que já mencionei, como Fausto em seu próprio plano, como algumas figuras reais da história da cultura, um Nietzsche, por exemplo, e de qualquer modo como o profeta criado por ele à sua imagem e semelhança, Zaratustra. Se pensarmos nos deuses, vem-nos à

mente a Estrela d’Alva, imaginada pelo conto popular e depois por nosso poeta. Todos eles passam pela doença espiritual da impotência de oferecer manifestações adequadas à sua vontade. Comecemos com o poema de Eminescu em que, tão impressionante quanto a doença catolite no caso de Catalina - a sua aspiração ao universo e o sentimento do exílio como vagueação na luz (“desce e ilumina-me a vida”) - é, combinada à todetite, a horetite na Estrela d’Alva. Ainda mais, enquanto que na moça o adoentamento não atinge uma forma de trágico, mas somente enriquece o ser humano, embelezando-lhe o amor de terrena, na Estrela d’Alva o sofrimento tem um caráter trágico. Pois existe também um trágico das naturezas gerais, como a Estrela d’Alva, que pareceria um trágico duplo: além de não poder obter (a não ser “com dificuldade”) uma corporificação individual, assim como com dificuldade vem de seu mundo a Estrela d’Alva, o novo trágico, depois que obteve a corporificação individual, é o de não poder obter também determinações - ou seja, justamente o sofrimento da horetite. Dir-se-ia que não se pode falar de trágico do geral, representando o trágico uma experiência de limite do homem; o trágico seria característico somente ao indivíduo, ou às coletividades históricas bem individualizadas. Mas o geral abunda de uma versão humana, a saber “o gênio”, que o incorpora, a fim de conversar com o bom romantismo e com Eminescu. Pelo menos na versão do gênio pode aparecer um trágico, que não mais pertence à pessoa, mas à natureza geral nela incorporada. Um exemplo nesse sentido dá justamente a Estrela d’Alva, em que Eminescu via testemunhado o drama e a impotência do gênio “de alegrar os outros e alegrar a si mesmo”. Na verdade, como natureza geral a Estrela d’Alva não se pode individualizar (sofrendo como tal de todetite); ou consegue num dado momento individualizar-se, ou até mesmo em dois momentos, mas a cada vez é antes “um morto belo com olhos vivos”. Não podendo atribuir-se determinações terrenas, entrelaça então a sua todetite com a horetite aguda. O demiurgo vai mostrar-lhe que poderia contudo receber algumas determinações, se as desejasse em consonância com a sua natureza geral; só que a Estrela d’Alva deseja as determinações do amor humano, que é naturalmente entrelaçado com a devoção e com a morte, enquanto o geral não pode entrar na noite da devoção individual e da morte. A impaciência da Estrela d’Alva de obter determinações terrenas encontra-se, de certo modo, em simetria com a de Fausto, que quer determinações supraterrenas, entre outras,    N. do T.: Mihai Eminescu (1850-1889), poeta nacional romeno. Escreveu em 1883 o poema Luceafarul (A Estrela d’Alva), de filosofia popular e gnóstica, que, misturando mitologia romena e antiga mitologia grega, ilustra, através de uma dimensão simbólica e metafísica, a condição trágica do gênio na terra.

alçar-se até o Espírito da Terra. Com a mesma precipitação que faz com que a Estrela d’Alva queira e peça determinações individuais, para o seu ser geral, deseja Fausto determinações do geral para o seu ser “genial”. Mas o Espírito da Terra detém-lhe o ímpeto, assim como o Demiurgo detém a Estrela d’Alva. E da mesma maneira como ela retorna a sua limitação, permanecendo “imortal e fria”, assim vai permanecer Fausto “mortal e frio”, estranho a qualquer determinação real, não participando senão com o possível que Mefisto lhe confere, não com o próprio real, de tudo o que lhe acontece depois do encontro com o Espírito. Tanto em um como noutro a horetite assume a forma crítica da experiência última, que conduz à extinção espiritual. De uma maneira completamente diferente, e mais exatamente com o seu positivo e a sua riqueza, manifesta-se a horetite em Dom Quixote. A sua impaciência de se realizar como natureza geral conduz efetivamente a determinações que, mesmo se não completam um destino individual real, terminam por edificar grandes sentidos. Diante do real, tudo é como se fosse uma gênese fracassada. É o mesmo como se no mundo da vida, onde igualmente parece manifestar-se às vezes uma impaciência dos gerais (das espécies) de penetrar na realidade e onde, na arqueologia da biologia, figuram espécies, tão bem codificadas no plano geral como também atestadas no plano individual, como as espécies dos sáurios, mas sem que os exemplares individuais respectivos possam atribuir-se determinações através das quais consigam subsistir verdadeiramente. É uma gênese fracassada - mas é uma gênese. É o que mostram, além de Dom Quixote mas de certo modo sob o seu signo, algumas naturezas de realizadores. O homem vê muito bem que não obtém a ordem assim, através da simples acumulação de fatos na catolite; vê, igualmente noutras vezes, que não a obtém nem através da submissão às grandes normas gerais dadas e que, no final das contas, podem muito bem subsistir esmagando os destinos individuais (todetite) ao invés de os realizar. Então o homem de formato grande, tornado consciente da presença necessária da lei e da norma geral em tudo o que tende tornar-se ser, toma ele, de maneira ativa, esse sentido, assumindo o papel de portador e realizador da lei. “Existo, porque fiz uma lei incorporar-se em mim; conferi-me sozinho um senso de generalidade, ou o conferi a uma área de realidade que está sob o meu poder.” Assim como um cavaleiro medieval enverga uma armadura, adotando por conta própria um ideal justiceiro e partindo pelo mundo com o sentimento de uma investidura, partimos agora armados na direção da realização de si. Mas de novo, como aquele, podemos permanecer um simples cavaleiro “errante”, quer dizer, sem determinações e fatos seguros, se realizarmos o ato de violência de incorporar a qualquer preço a lei. Existe uma medida dos gerais, que, não importa o quão fantomáticos e evanescentes sejam, pedem também eles, quase como os organismos vivos, uma gestação, uma adaptação à precariedade do real em que se implantam e um momento favorável a sua incorporação. O homem não obtém o próprio ser, nem traz ordem ao mundo, com a simples armadura do geral, mas somente com determinações na medida desse.

O sofrimento da horetite, aqui sob forma aguda, não ocorre na realidade por causa da falta de determinações, mas por causa da sua natureza de ser simili-determinações, como o capacete de papelão de Dom Quixote, o qual ele experimenta para ver se é bom, descobre que não é, mas o decreta bom, saindo com ele na direção de luta e ação. Por toda a parte, no tomo I do livro, onde tudo o que acontece se encontra sob o signo da ilusão de si de Dom Quixote, e no tomo II, onde as coisas se encontram sob o signo da ilusão dos outros (o duque e a duquesa), as determinações estão desajustadas. Mas porque as determinações existem, até mesmo tortas e grotescas, a horetite acaba por revelar, assim como as outras doenças espirituais, a sua face boa. Nietzsche sofreu também ele agudamente de tal doença. Poderíamos ilustrar também com Fichte a horetite de uma consciência filosófica, mas escolhemos Nietzsche. Pode-se contudo dizer, com certeza, que a sua aventura espiritual representa um dom-quixotismo? De qualquer modo uma forma típica de horetite existe, encontrável também no seu caso sob o signo da impaciência, como nos heróis evocados até agora. Dom-quixotesco em Nietzsche é o caráter por demais sumário da sua mensagem - ou a idéia e o pathos do dionisíaco, o tema do super-homem aparentado com a demência goetheana e inferior àquela como visão, o tema da inocência do devir e do eterno retorno, emprestadas claramente sempre de Goethe uma mensagem em nome de que ele se permite negar e derrubar, ilusoriamente, quase tudo; dom-quixotesca é também a sua exaltação de reformador, no vazio espiritual de um século refinado que, após a indiferença terrível do início, recebeu e aplaudiu a sua injúria, ao invés de sentir-se chacoalhado por ela. Mas as suas intuições no fenômeno da cultura e no moral são extraordinárias, por vezes, como as suas formulações, de maneira que a doença espiritual atinge em Nietzsche outra grandeza que não aquela indireta de Dom Quixote. Só que tudo se torna uma forma de singularidade. Ele se atribui, obra após obra, todo tipo de determinações teóricas que, com o pensamento delas pulverizado em aforismas, permaneceram também elas na poeira das bibliotecas e das consciências, mesmo se fizeram ou se ainda fazem sobressaltar algumas dessas. À sua natureza geral, com a sua genialidade reformadora, teriam sido necessárias também outras manifestações além de obras. De cada página e pensamento seu ele esperou contudo um eco chacoalhante, mas com “Ecce Homo” precipitou-se ele mesmo no indeterminado da noite espiritual. É profundamente significativo, para a doença espiritual de Nietzsche, o fato de que ao herói em que idealizou-se por si, a Zaratustra, não lhe acontece nada quando desce das montanhas. Sobretudo, ele não possui fatos e não se pode atribuir determinações adequadas e organizadas, entrando numa terrível forma de horetite. Por detrás das palavras, algumas verdadeiramente extraordinárias, existe uma carência total, quase inacreditável. Zaratustra

desce, após dez anos de retiro nas montanhas, como corporificação de uma vasta natureza geral, pregando em vão e errando casualmente. Não tem uma parte de nada necessário. Encontra um velho que não tinha ouvido que “Deus morreu”, encontra um bando de homens, tem a sorte de o dançarino da corda-bamba cair, de maneira que pode levar o seu cadáver nas costas, vê o bobo-da-corte e os coveiros, depois adormece, desperta, nota uma águia com a serpente enrolada em torno do pescoço, atravessa países e povos, faz discípulos, abandona-os, retorna, encontra a moça dançando na floresta, um corcunda, o guardião do grande cansaço, dois reis, enfim, pisa num homem e começa a correr, mas não encontra mais ninguém. Poucas descrições da horetite, a alto nível, são tão sugestivas, nos anais da cultura, como o cenário dramático de Assim Falou Zaratustra, ou, se se prefere, como falta de um verdadeiro cenário. É provável que não somente esse profeta do super-homem, mas os seus próprios super-homens arriscam que se lhes aconteça assim, se lhes for dado surgir no mundo. Passemos, com Nietzsche, das personalidades exaltadas pelo seu espírito profético, à história e às comunidades tomadas às vezes também elas por exaltações. Assim como acontece ao seu profeta, acontece aos “super-homens” também no nível histórico: não encontram para si determinações adequadas. Os mesmos povos germânicos sobre os quais Nietzsche disse as coisas mais impressionantes, terminando com: “Die Deutschen sind nichts, sie werden etwas”, oferecem estranhos exemplos de horetite a nível histórico. Poder-se-ia dizer dessa maneira que os Vikingues, que tanto edificaram no norte da Europa, desceram até a Sicília com um senso histórico fechado, para o qual não mais encontraram determinações adequadas, caindo dessa maneira vítimas da horetite. De qualquer modo, esses povos viveram graças à inquietude de algo da ordem da horetite e depois as ordens religiosas germânicas prontas para realizar edificações no Oriente. Levavam com eles, pelo menos os últimos, um senso geral, fora as idéias religiosas do tempo: uma idéia de civilização, destinada a ser conduzida ao burgo e à burguesia em seu espaço de origem, como se no colonizado. Mas a sua idéia, que apressava a sua própria realização através de grupos isolados, implantados no meio de outros povos, não encontrava para ela as determinações através das quais se harmonizasse com o espaço étnico e o contexto histórico onde as edificações eram implantadas. Ergueram cidades por toda a parte, até mesmo no nosso espaço, mas, após séculos, os descendentes dos cavaleiros colonizados no Oriente pagaram com o destramar das comunidades criadas o primado dado por eles à idéia e à realização precipitada da idéia. Se favoreceram a história de outros, as comunidades germânicas de lá não fizeram elas história, mas mantiveram-se e sobreviveram, apenas. Algo da miséria de Esparta ressurge, no nível mais baixo, quase anônimo, no destino daqueles corajosos realizadores no vazio.

Pois Esparta pode dar o exemplo típico para a impaciência do geral e, em conseqüência, o fracasso das determinações. Os sensos gerais impostos à comunidade através de uma constituição, que certamente não era somente de Licurgo, puderam modelar séculos após séculos a comunidade em que se quiseram incorporar. Quando porém o geral se implanta diretamente no individual, as determinações sofrem. Assim ocorreu com o povo espartano, que fez história mas não teve história e não criou suficientemente no plano da cultura, perdendo de certo modo até mesmo a consciência helênica. Um historiador que descrevesse Esparta (quando isso não lhe é por demais hostil, como para Toynbee) não pode obter a “biografia” daquela comunidade tão estável, com os seus casais de reis anônimos e com a sucessão de fatos resumidos à monotonia de algumas idéias sobre educação e estado. Não existem determinações, ou estão elas distorcidas. A horetite tornou-se doença de estado, com Esparta. Eis assim em alguns povos, como no caso de algumas grandes figuras plasmadas ou ideais, formas claras de horetite, surgidas sob o signo da impaciência do geral. As manifestações de semelhantes doenças espirituais eram também elas claras; a cegueira diante da realidade (“Foste cego a vida toda” diz a Fausto, no final, a Preocupação), a substituição das determinações naturais por simili-determinações, pertencendo ao possível, com Fausto, ao imaginário e artificial em Dom Quixote, à hipertrofia da vontade em Nietzsche, ao profetismo vazio e no vazio em Zaratustra; então as fundações vãs, no caso dos povos superiormente resolutos, o espírito espartano, a tensão como norma de vida, a ex-temporização, a anistoricidade em plena história. Só que o mesmo espírito do geral que podia adotar, com as características de “superhomens” e com os povos que se querem superiores, o estilo da impaciência, pode ser também a própria paciência; pode não precipitar os destinos em manifestações flagrantemente desajustadas, mas deixá-los ver-se sozinhos, sob a massividade do geral de que são portadores, o desajuste. Existe uma outra forma de horetite, crônica, digamos. 2. Horetite crônica. Para o caráter crônico desta doença espiritual - e somente uma doença das determinações, com o desenvolvimento delas no tempo, pode ser crônica - o melhor pano de fundo é dado pela própria cronicidade; o tempo. Assim como o espaço perfeito, o tempo absoluto nos parecia mais acima carente de algo individual, de um “tode ti”, ambos oferecendo uma imagem cósmica da todetite. Mas, quando descemos de sua idéia absoluta para a sua imagem no real, o tempo e o espaço são registrados como se entrelaçados com o individual e sugerem (assim como a Estrela d’Alva), muito mais que a carência do individual: a carência, até a extinção, das determinações. Pois no real, o espaço e o tempo são justamente os princípios de “atualização”; neles, através de um hic et nunc, individualizam-se as coisas e os processos. No espaço e no tempo acontece tudo. Mas não lhes acontece nada. Eles exprimem a grande indiferença diante de tudo o que é determinação, o horizonte vazio

e a ritmidade vazia, como a expansão de uma onda que permanece a mesma na sua monótona propagação. Neste pano de fundo de desacontecimento de nada, com o seu puro desenvolvimento, increvem-se as formas de vivência, no espírito, tocadas pela horetite crônica. “Não acontece nada” quer dizer: não acontece nada significativo, nada necessário e nada enriquecedor, mesmo se a vida do espírito, graças a sua generosidade, possa fazer com que, da inexistência das determinações como em Dom Quixote, floresçam alguns sentidos, para o homem. Não acontece nada na vida dos anjos, por exemplo. Tenham sido de qualquer modo concebidos, mesmo com os demônios da visão antiga, eles surgem e subsistem sob o signo da horetite crônica. Tanto geral existe incorporado em seu ser individual que ele não mais pode receber as próprias determinações do individual e permanece sendo - como ocorreu com algumas visões medievais - geral desde o início, cada anjo caracterizando uma espécie. É dado ao homem alçar-se ao senso geral, enquanto imagina-se que o anjo esteja fixado nele; no máximo tem um brando balançar no seio do geral, assim como tinha o demônio antigo como intermediário entre o mundo de baixo e o de cima, ou como era o anjo cristão, como “anunciador”, como o demonstra o nome, de um mundo para o outro. Não possui determinações, nem mesmo de lugar ou de tempo, pois está em todo a parte e é sem idade. Por outro lado, justamente dessa maneira o folclore romeno imagina o Paraíso, reencontrado após o Juízo Final: todos os homens serão da mesma idade e não vai haver habitação, nem amor, nem palavra, mas “tudo será o mesmo dia”. Ao ser humano foi dado atingir esta hipóstase numa versão sobre que se falou bastante, na religiosidade tardia e refinada, como foi a do romantismo: na versão da “alma bela”. Muito pode acontecer a uma tal alma nobre e desprendida da mácula do mundo, ou pode ela mesma atribuir-se algumas determinações, mas todas são por ela transfiguradas de tal maneira que cessam de ter quaisquer significações renovadoras, pois são anteriormente significadas, a cada vez. Na condição angelical em que aqui se instalou, o geral envolve como um espírito bom todas as manifestações, transferindo-as para uma mesma glória e luz. Tudo é “um dia”, como na visão folclórica do paraíso. A noite germinante das determinações deu lugar ao dia. Mas desse modo o dia se transformou, por sua vez, numa branda noite, assim como sentimos que ocorre às vezes em “Testemunho de uma alma bela”, da obra de Goethe. Numa medicina do espírito, trata-se simplesmente de uma forma de horetite crônica. Desçamos mais um degrau, no plano da experiência espiritual mais comum do homem, e encontraremos, no caso contudo escolhido daqueles que sozinhos se auto-impuseram uma ordem superior, os sintomas do adoentamento deste tipo. Uma vez encontrada e compreendida, é difícil de se desviar da ordem do geral, como acontece com Agostinho com o maniqueísmo no início, e depois com o cristianismo. Sob a ação desta ordem, a vida torna-

se outra. A pergunta é se não se torna tão “outra”, que por vezes se constitua, graças às transformações do homem respectivo, algo inadequado também a ele, e à ordem que invoca. É como uma nova idade do homem, depois daquela das andanças da primeira juventude, agora, quando a sua ação se torna responsavelmente engajada. Mas a responsabilidade não existe apenas diante de si mesmo, mas diante do geral aceito. A ação do homem deve agora decidir até mesmo o próprio senso geral. O que seria o geral, ou as grandes normas, identificadas num momento mais maduro, se não conduzisse ao responder da realização delas? E assim, portador da lei, o homem começa todo o tipo de edificações, sem a cegueira de Dom Quixote, mas firme também ele. São-lhe necessárias apenas determinações de vida adequadas, assim como buscava Agostinho, sozinho ou com os seus amigos, no recolhimento de Cassiciacum, um conteúdo novo de vida, sob a medida do modelo religioso que encontrara e adotara. E todo o problema desse momento, em que o geral se encontra implantado diretamente nos destinos individuais, será o de não permitir que as determinações que virão sejam deformadas pelas adversidades do mundo e pelas próprias inseguranças. Mas podem ser deformadas também através das próprias seguranças. Acontece ao homem, então, assim como a Agostinho: a salvo das adversidades do mundo e dono de si, como a “alma bela”, ele torna insignificativa uma vida demasiado acentuadamente significada. A experiência de Agostinho junto com os seus amigos, tanto como “recolhimentos” em nome de uma idéia, tanto como falanstérios e comunidades ideais, terminam geralmente por conduzir à inverdade da própria verdade. Por quê? Porque, justamente, não podem dar ao homem determinações verdadeiras e plenas; porque aquelas idéias “não cabem” na vida real por virem demasiado de cima, ou pelo contrário, permanecem por debaixo dela. A vitória da idéia nos homens arrisca desajustar-se e adoenta o real da vida deles. No que diz respeito à idéia tornada “ideal”, ela foi sempre uma agressão ao real, que, uma vez vencido, carrega atrás de si, em sua cinza, o ideal vencedor. Existe um dizer, cuja verdade foi freqüentemente sentida: “a tristeza depois da vitória”. Este dizer é muito mais revelador porque exprime o surgimento, quase inevitável, de uma doença espiritual, a própria horetite. A vitória deveria abrir-se para uma riqueza de novas determinações, que fossem também elas vitoriosas diante das velhas determinações. Mas para isso seria necessária uma outra vitória, em vista de qual o vencedor não se preparasse e em cuja medida não pode existir: é por um lado a vitória sobre aquela inércia que faz com que as velhas determinações (“o homem de sempre”) prolongassem sua vida em pleno triunfo daquele que as teria vencido; por outro lado deveria ser a vitória sobre a brutalidade e o caráter sumário da nova verdade, que ainda não passou pela realidade e que vem por sobre ela com toda a grosseria do geral. “A tristeza depois da vitória” exprime o temor confuso de que o mundo permanecerá o mesmo, ou de que tudo que o tente modificar transformá-lo-ia

em desmundo. Que determinações podem aparecer, de tal modo que estejam na medida do geral em cujo nome se deu e se venceu a luta? No segundo dia tudo começa a parecer triste. Deve ter sido terrivelmente pesada - para passarmos a outra figura histórica - a horetite sob a qual terá vivido um Luís XIV. Quando um homem, sendo ele também rei, diz: “O Estado sou eu”, então ele toma diretamente o geral em seu destino individual e finge dar, para o mundo em derredor e para si, as determinações que convêm. Pode ser que nos primeiros anos de reinado, ainda atormentado pela juventude, por algumas vitórias militares e pela sua investidura de si, ele terá efetivamente imaginado - independente da desordem que existisse em sua vida íntima - que edificava algo através de cada palavra pronunciada, que trazia ordem com cada gesto, assim como se dizia do rei de Fausto II que erguia palácios a cada passo ao longo do seu império, subitamente enriquecido com cédulas sem garantia. Mas a experiência dos anos da maturidade devem ter-lhe dado o sentimento de que nem tudo o que fazia podia ser significativo, e que não qualquer gesto imperial era memorável e edificante, embora devesse ser assim, tendo em vista que ele era a instância geral. O pobre rei da França terá caído sozinho na armadilha; pois ou era verdadeiramente estatuário, ou deveria ser mistificado, todo o tempo. Pode ser que o tédio que se instaurou em Versailles após 1680 e sobre que fazem menção muitos contemporâneos deve-se menos ao envelhecimento do rei, ou à austera senhora de Maintenon e à influência da igreja católica, do que à doença espiritual da horetite de que começava a sofrer o Soberano. Pois não seria possível que ele não tenha sido claramente tomado pela horetite, diante de tantas determinações inseguras, artificiais, vãs, umas sinceramente desacreditadas mesmo por aqueles que as recebiam supondo-as válidas, outras as quais o próprio Soberano, como agente do geral, terá percebido que não seriam acreditadas pelo tempo. E que estranho jogo de horetites confrontadas terá ocorrido, num certo momento, naquela França “clássica”, então quando as determinações dos partidários do rei enfrentavam as determinações em vão dos partidários do herdeiro (que terá morrido antes dele), cada corrente de manifestações e providências prontas a determinar, de certo modo, e a pressionar o mundo francês, a sua história e a história da Europa, mas ao mesmo tempo prontas a se desfazerem, rompendo-se elo após elo, se o acaso da morte e da vida tirasse do jogo um ou outro daqueles que, naquele momento, incorporavam “o geral”. Podemos passar sem solução de continuidade desta horetite dos reis para a horetite comum dos heróis do amor, por exemplo, dos abençoados pela vida, vitoriosos sobre as adversidades também eles, a quem se abre de agora em diante a felicidade do ingresso na ordem geral do casamento. Poucos criadores tiveram a crueldade, aliada à imprudência artística, de penetrar nos detalhes do tipo de horetite de que são freqüentemente tomados tais heróis casados. Só um Tolstói assume os riscos de nos descrever, numa página de epílogo de Guerra e Paz, uma Natasha um pouco gorda, irritantemente tirânica diante de Pierre e carente de graça em seu relacionamento com as crianças; mas nem ele consegue, no plano artístico, lograr tal

descrição. Não se dera conta muito bem, talvez, que ao invés de prolongar uma felicidade, começava a descrever uma doença. Pode ser que, mais expressiva para a doença do que essa experiência espiritual demasiado comum da vida, seria a situação que se desabre a Pigmalião após a criação, tão feliz em si mesma como também para ele, de Galatéia. Os deuses lhe deram a sua bênção, animando-a e destinando-a à vida. Mas o que acontece depois disso? Que outras determinações naturais e vivas, enriquecedoras para Pigmalião, podem surgir? Não se trata em nenhum momento da horetite banal de um simples casamento. Está em jogo, pelo contrário, algo da doença espiritual do artista que se dedicou a uma única obra e que pôde acreditar que nela resolveria o seu destino. Na verdade, amamos aquilo que podemos modelar; amamos a produção de nossas mãos. Mas que amor curioso é este também. Sabemos agora bem, após começarmos a criação, que não amamos o ser ou a coisa que modelamos, mas a idéia que neles colocamos, o geral. Só que, nem o geral amamos como anteriormente, por exemplo como todos os homens, pois nos vem inserir na sua ordem as determinações e as providências - a necessidade de jogo, a necessidade de sonho, a necessidade de ato -, mas o amamos de ponta-cabeça, porque não está pronto, nem é seguro de si, porque ele nos solicita, o geral, que o incorporemos nas coisas, a fim de que também ele se determine, se amolde de acordo com o real e, talvez, se defina por fim. Amamos assim aquilo que se faz, mais do que aquilo que existe. Primeiramente amávamos, como homens, determinações livres (“flutuarmos, sonharmos”), depois podíamos amar o geral por que se deixam prender as determinações; um terceiro amor nos leva agora na direção dos trabalhos do geral no seio da realidade, individualmente. Amamos os homens e as coisas em que se exerce uma ação do geral. Balançamos assim entre os seres reais e o seu pano de fundo de idealidade, até nos darmos conta de que, deste modo, deformamos os seres reais através dos sentidos com que os dotamos, deformando também ao mesmo tempo os sentidos através das incorporações singulares que lhes damos. Pois agora, a Galatéia seria aquela que retivesse para si toda a idealidade do artista. Mas que conteúdo de determinações pode trazer consigo uma única obra, a fim de realizar uma consciência de artista? Seria uma inverdade do pensamento e uma sua mutilação. Nenhum criador pode colocar a criação obtida acima da criatividade. Se é artista verdadeiro, Pigmalião pede aos deuses que tragam de volta Galatéia ao mármore. Pigmalião é amaldiçoado a viver em sofrimento, a partir do momento em que comete a imprudência de acreditar tanto numa obra sua. Uma única criação não lhe pode oferecer determinações incessantemente, mas ele enterrou a sua visão numa única criação. Uma Galatéia viva não mais teria graça nenhuma, pois estaria comovida pela sua parte de geral. É uma blasfêmia da criação, assim como um impasse do ser, esmagar por vezes o individual, através do senso geral nele incorporado. Talvez por isso, no seu grande momento, as

religiões não consigam oferecer grandes obras de arte (a não ser arquitetônicas, onde o geral não se exprime diretamente): a sua carga de generalidade pressiona sobremaneira os destinos e as realidades em que se incorporam. Mas de novo, justamente por isso as religiões do passado puderam atingir grandes criações artísticas, ou por vezes a crença se enfraquecia, como no caso dos gregos posteriores ao século V, ou no Renascimento; os seus sensos gerais tornavam-se então suportáveis para as realidades individuais (quão límpido se vê isso na pintura religiosa do Renascimento laico), deixando-as livres para se exprimir, e mesmo oferecendo-lhes um conteúdo de manifestação, através do geral que incorporavam. Bach não poderia ter surgido num momento de religiosidade tirânica. Os artistas têm necessidade de um geral crepuscular. Dos anjos até aos artistas, passando pelos homens comuns e pelos reis, todos podem sofrer de horetite crônica, então quando o impacto do geral é grande demais. Mas assim acontece também aos povos, até mesmo a outros que não aqueles que vemos sofrendo de uma horetite aguda. Desse modo pode-se dizer que para os povos árabes, o islamismo representou um bloqueio de seu ser histórico, não mais permitindo-lhes, após um início que parecia brilhante e que podia eclipsar com os Mouros o mundo europeu, atribuir-se determinações adequadas a uma vida histórica plena. Aos povos turcos, por outro lado, que desde o início talvez não tivessem grande vocação criadora, o islamismo não deixou nada a não ser a capacidade vã de conquistar e dominar, sem um conteúdo próprio de civilização e de cultura. Se em sua forma aguda a horetite acusa uma genial cegueira de si, a precipitação das determinações, substituição daquelas reais por outras somente possíveis, imaginárias, artificiais, de falsa plenitude, enquanto que no plano histórico manifestava criatividade em vão, perseverança tenaz, espírito espartano, anistorismo, agora com a horetite crônica surgiram em cena as determinações estacionárias ou já significadas e imultiplicáveis, uma melancolia superior, a tristeza depois da vitória, a acedia, a falta de confiança em si, a resignação contudo ativa, ou o sentimento do tédio e da mutilação através do absoluto. Não se pode sair, como homem, daqui e entretanto não se pode permanecer aqui. Com cada doença espiritual identificada, o homem encontra o seu muro e lamenta nele, como o povo de Israel. Ou tenta ir mais longe, com muro e tudo.

V. AHORETIA Agora começam as doenças da lucidez. Momentos de lucidez apareciam também até agora: o homem podia saber que não estava em ordem seja com o geral, seja com o individual, seja com as determinações. Mas ele não se adoentava só pela recusa de alguns deles. Agora os enfrenta um após o outro e crê, às vezes com razão, no positivo da recusa, imaginando que enriquece o espírito através dele, assim como a perda de uma carga elétrica produz, no mundo da matéria, íons positivos. A lucidez - que também é definitivamente constitutiva do homem - tornou-se-lhe assim fonte de desajuste de sua vida. A ahoretia denomina a recusa, respectivamente a renúncia, mais atenuada ou mais categórica, de ter horoi, determinações. O exemplo que oferecia a peça de Beckett, Esperando Godot, representa a forma exasperada da ahoretia, a recusa categórica e total das determinações. Um outro exemplo, solidário com este, era o da experiência hippie, expressão da exasperação (porém baixa) também ela. Mas se a ahoretia parece de algum modo estranha, na civilização do espírito aberto ativo que é esta européia, ela se sente por outro lado em casa na concepção e espiritualidade indiana, onde o monumento literário correspondente não é mais uma

simples obra dramática, nem uma experiência excêntrica e juvenil como o movimento hippie, mas uma extraordinária epopéia, encontrando-se no meio da cultura respectiva, como o Bhagavad Gita, em que a experiência espiritual de recusa às determinações não mais assumiu a forma de uma excentricidade, mas a de uma tendência superior lúcida de se retirar do mundo, consacrada lá na escada histórica. O herói do Bhagavad Gita, Arjuna, é o soldado que recusa lutar, pode-se dizer. “Para que serve o poder, ó Govinda, para que nos servem as coisas ou [mesmo] a vida?”, pergunta-se ele. O Deus mostra-lhe que é necessário lutar, pois assim exige a lei, mas acrescenta ele que o ato está mais abaixo que a Yoga do conhecimento. Então por que lutar? insiste Arjuna, no que o Deus responde que tudo o que se lhe pede seja desligado de luta e do desejo dos seus frutos. Deve-se ver no ato a “irrealização”. Mas “estás ligado ao ato nascido da tua natureza, ó filho de Kunti; aquilo que, por causa do turvamento da mente, não desejas realizar, irás realizar sozinho”. Neste turvamento da mente de não realizar, ou de não querer atribuir-se determinações mundanas, parece estar qualquer consciência superior no mundo indiano. E o que é contudo estranho também na sua cultura, pelo menos para aquele que o observa de fora, é que ali os deuses atribuem-se todo o tipo de determinações, numa proliferação jamais vista, como numa selva, enquanto o homem as recusa. Poder-se-ia dizer que os deuses indianos, com tantas faces, manifestações e nomes que não mais podem ser controlados nem pela imaginação, sofrem de horetite, enquanto os homens sofrem de ahoretia. Na verdade, diante da variedade de incorporações e meios que ali o mundo celeste põe em jogo, o mundo humano tende a interromper ou a controlar e dominar toda providência corpórea e toda reação espontânea do espírito. Em nenhum outro lugar que não no mundo indiano poder-se-ia pôr em jogo um meio de ação do mesmo tipo do que foi a “resistência passiva”. O milagre da ahoretia, como o de qualquer doença espiritual, é que obteve o positivo mesmo na forma extrema do negativo, ou a ação eficaz através de total passividade. E de novo, diante dos deuses que não param de realizar novas incorporações e que se rejubilam reincorporando-se, com a sua polissomatia, o homem indiano aprende que a corrente das reencarnações representa uma blasfêmia e que o nosso eu, que não deseja senão a tranqüilidade no seio do eu vasto, torna-se o “eu enlouquecido” graças a sua incorporação contínua. Em nenhum lugar, portanto, melhor do que na dupla visão indiana não se evidencia o contraste entre horetite e ahoretia. Poderia ilustrar perfeitamente a horetite (a aguda) com o desencadeamento das determinações nas divindades indianas, se para o mundo    Bhagavad Gita, no volume A Filosofia indiana em textos, Editora Científica, Bucareste, 1971, tradução para o romeno de Sergiu Al-George.

respectivo não fosse ainda mais característica a ahoretia, no caso da sociedade histórica e do indivíduo. Mas o contraste entre a recusa ontológica no real do homem e a insaciedade ontológica, sempre no real, do deus diz provavelmente também ele sobre esse mundo indiano de todos os contrastes. Pode ser que o geral dele, Brahma, seja tão vasto diferenciando-se de um Jeová e um Alá - que diante dele o homem e a sociedade não mais significam nada, mas os deuses, pelo contrário, significam qualquer coisa. Mas é entretanto completamente diferente querer ter determinações como na horetite e não receber adequadas, diante da sua recusa. O ahorético recusa as determinações em nome do geral, cujo individual deve integrar-se totalmente, derretendo-se nele “como uma estátua de sal”, diria o pensamento indiano. Quando o geral era projetado diretamente sobre o individual, através do qual ele se “realizava”, surgiam: a precipitação das determinações e a cegueira, no caso da horetite aguda, a tristeza depois da vitória, no caso da crônica. Agora, no caso da ahoretia, em que o individual se realiza mais através do geral, aparecem: a lucidez e não a cegueira, a alegria da derrota e não a tristeza do triunfo. Assim se passou com os Estóicos, os únicos junto com os ascetas, na cultura européia, que podem lembrar-se diretamente do mundo indiano. O estoicismo faz indubitavelmente a ligação entre a razão individual e a universal. “Criaste como uma parte de um todo. Tu te vais reabsorver no ser que te produziu”, diz o imperador Marco Aurélio, depois que o escravo Epictet dissera: “Recorda-te que és ator num drama cujo autor o fez segundo a sua vontade.” O estóico não tem portanto necessidade de intermediação das determinações a fim de se alçar ao geral, em cujo nome ele até mesmo as recusa. O primeiro ainda dizia: “O homem tem um grande poder à mão, o de não fazer outra coisa senão o que permite o Deus.” Ou: “Afasta de ti todo o resto e não te preocupes senão com estas poucas coisas.” Ou ainda: “Nem um olhar, por mais fugaz, a nada que não seja a razão justa.” Não temos nada a fazer a não ser consentir fora - mesmo se sejamos mendigos - e triunfar dentro, erguendo-nos, com o significado do geral, acima de tudo o que acontece no mundo e conosco. Devemos acostumarmo-nos com a indiferença. “Se abraças o filho ou a esposa - cogita Epictet na crueza da indiferença - dizes que abraças um ser humano, de maneira que, se morrerem, permanecerás tranqüilo.” Naquilo que nos diz respeito como homens “considera-te uma criatura por morrer; despreza-te o corpo”, e façamos de tal maneira que “a parte da tua alma que comanda e domina em ti permaneça imóvel diante de qualquer movimento corpóreo”; e no que diz respeito ao mundo, “não te admires com nada, não te sobressaltes com nada”, diz tudo isso Marco Aurélio. Aquele que se alçou ao significado do inteiro não tem nem mesmo a dizer muitas palavras: alguns aforismas bastam. Mas os aforismas não são daqueles explosivos, como os de um Nietzsche tardio, mas cogitações da sabedoria, que não quer mudar o mundo, mas somente entrar na sua ordem mais profunda. “Não és senão uma imagem, que não representa de modo algum a realidade”, diz Epictet. Numa tal última colocação do pensamento, nem mesmo as

determinações da cultura e do filosofar por demais aprofundadas não nos merecem ser oferecidas: “Se não perdi meu tempo, confessa o imperador Marco Aurélio, com o estudo dos escritores, com a interpretação dos silogismos ou com a pesquisa dos segredos celestes, devo-o aos deuses.” A ahoretia é quase total no caso dos estóicos. Também os deuses, ou desta vez o Deus de uma religião segura de si, terão conduzido à extraordinária forma de ahoretia dos ascetas cristãos orientais. Nenhum tipo de determinações mundanas está em jogo agora. Os estóicos ainda mantinham uma forma de refúgio no meio do mundo e também com a realização do papel em que tinham sido distribuídos pelo Dramaturgo. Agora, com os ascetas, a recusa é também exterior, a ahoretia tornando-se absoluta, e se dentro ainda existem determinações conscientes, até mesmo verdadeiras lutas com os turvamentos da própria mente ou com a sedução do Outro, tudo o que acontece nas almas visa a uma forma de realização, que no limite conduza ao total esfacelamento das determinações, através do amálgama com a natureza geral e através do êxtase. Não nos demoremos nas naturezas extáticas, que são a estação final das naturezas ascéticas e se inscrevem plenamente no registro da ahoretia. “Havia luz e limpidez no meu coração, mas não podia ver nem cor, nem criatura”, diz um extático oriental do século XVII, mostrando que até as determinações mais marginais, as cores e as formas das coisas, devem desaparecer, na glória do êxtase. Poderemos contudo passar, pelos extáticos, pelos mundos de exceção, como o mundo indiano, pelas doutrinas de exceção, como a estóica, e pelas manifestações religiosas extremas, como a ascética, até ao homem comum, que também cai, muito mais do que se poderia crer no início, nas formas de ahoretia, semelhantes às acima mencionadas. Poder-se-ia dizer que um equivalente do rapto extático existe também até mesmo na natureza, reencontrando-se desta maneira no real um pano de fundo ontológico da ahoretia extrema. É necessário que apareça, no inorgânico e no orgânico, uma situação da ordem do “rapto”. Tal processo quase instantâneo, que o ser humano registra uma vez com a sua perda extática em algo geral (como no êxtase estético, por exemplo), representa a absorção direta, feita por uma natureza mais geral, do individual. Podemos portanto imaginar, seguindo os rastros do que escrevem os homens de ciência, não somente substâncias que arrancam e atraem em sua organização partículas de outras, elétrons por exemplo; não somente corpos cósmicos que tomam para sua órbita outros corpos, como se disse que teria tomado a Terra o corpo da Lua, mas também substâncias ou corpos em que outras substâncias ou corpos, integrados com o todo, com a extinção de suas determinações específicas, sejam dessa maneira simplesmente ahoretizados. Definitivamente, qualquer “assimilação” obtida (a comida, sobre o que o pensamento indiano fala tão profundamente) integra numa realidade com generalidade mais segura algumas naturezas individuais, que podem ser-lhe necessárias para abrir-se, somente ela, para novas determinações, no caso em que nem ela permaneça,

como natureza inorgânica, na letargia da sua generalidade. Com tais integrações, a realidade autoriza processos revolucionários fecundos, ao invés de lentas transformações, através da acumulação paulatina de determinações. Esta boa precipitação na direção do ser (ou da verdade) encontra-se entretanto sobretudo no homem, por exemplo nos assaltos que o conhecimento faz à verdade, ou às vezes as providências “indutivas” (o que não mais busca antes justificação lógica, mas produz-se, simplesmente) enviam o pensamento para o geral, usando o modelo daquilo que se poderia chamar um integrante ontológico. Contudo, no caso do homem, ainda mais significativa que a providência do conhecimento, nesta linha, existe uma outra: a do amor. Quando se vêem obrigados a dizer algo sobre o seu “rapto”, os extáticos não podem falar senão em termos de amor. Podem existir, de qualquer maneira, muitos tipos de amor (diria seis tipos, na linha das doenças do espírito), mas tudo aquilo que é verdadeiramente amado revela-se finalmente ser o geral. “Qualquer amor verdadeiro é amor de Deus”, dizia Max Scheler, e num sentido laico ele parece ter tido perfeita razão: amamos no fundo somente o geral, se não fosse o fato de que, no nível mais baixo como se disse, não amamos a criatura bela por ela mesma mas no interesse da espécie, do geral. Mas quando intervém a lucidez, como é o caso na doença espiritual que agora pesquisamos, quando estamos conscientes de que amamos o próprio geral, no ser ou na realidade individual amada, então, mesmo se não entramos na contemplação do êxtase, somos tomados pela ahoretia. O que mais pode significar na verdade as nossas determinações individuais, o nosso amor como tal, diante do geral? E se ele nos exorta a nos atribuir algumas novas determinações, à sua medida, elas vão cair imediatamente na monotonia das determinações estóicas, ou ascéticas, ou angélicas, ou seja, estarão sob o signo da ahoretia. Pois, diferenciando-se das naturezas angélicas, que estão diretamente na ordem estabelecida, nós teremos entrado na ordem através de um ato de lucidez que, com a extinção voluntária das determinações livres, significa efetivamente para o homem uma forma de ahoretia. O próprio amor, por outro lado, em qualquer uma de suas formas, tem em si algo de ahorético e quase ascético: há uma recusa ao mundo, a fim de preferir uma única criatura sua, em cuja felicidade vão caber menos determinações novas, até a mais banal forma mundana de ahoretia: o tédio. O próprio tédio superior, o assim chamado metafísico, não parece ser senão um amor por demais bem satisfeito: o amor da lucidez vazia, como na limpidez sobre que falava o extático oriental, e em que não mais vemos nem as cores, nem as criaturas, assim como o grande desabusado do tédio metafísico não mais percebe os significados e o milagre do mundo. Se o amor pode criar, no registro comum humano, um bom terreno, até mesmo um exemplo para a ahoretia, será necessário que isso aconteça com o seu espectro na sintonia da cultura,

com a poesia lírica, definitivamente a poesia em si. Particularmente, poder-se-iam reencontrar na poesia aquelas duas modalidades arquetípicas postas em jogo pela ahoretia: a ascese e o êxtase. A poesia é, primeiramente, uma ascese ao próprio, “um exercício” do pensamento e do coração, mas é também, num sentido mais largo, por exemplo, uma ascese à palavra, pelas renúncias a que se submete. É a renúncia à função de comunicação imediata da palavra, digamos, como na prosa do Sr. Jourdain; mas é também a renúncia à função de comunicação superior, pelo argumento e justificação lógica, renúncia à função de conhecimento racional da palavra, do logos; à sua função de historizar, à épica, de momento em que estamos na poesia lírica; renúncia à sua função de persuasão sobre os homens e - ao menos com a poesia moderna - de domínio mágico sobre a realidade. Com tantas renúncias, que são para a palavra como se um desprendimento seu do seu mundo e das suas determinações, a poesia quer fazer da palavra uma vitória nua no contemplativo. A palavra nela mesma - como São Simeão nu, numa coluna de pedra -, além de quaisquer determinações da fala, com seu exercício puro e sua abertura semântica, na sintaxe do contexto, na direção de um semantismo mais puro, da idéia, ou da emoção, ou do valor, ao êxtase a que ela queira conduzir, esta parece ser a palavra da poesia lírica e, uma vez com ela, a substância dela. Na ahoretia a que ela conduz, quantos admiráveis sucessos não pode haver! Mas a ahoretia é, se não fosse senão porque a emoção da palavra poética seja tão próxima da emoção do silêncio, aquela a que às vezes chega também a contemplação filosófica. Passei, expondo os casos típicos de ahoretia, da ascese e do êxtase ao amor, e deste à poesia. Pareceria talvez menos justificada a passagem da poesia às matemáticas? Mas não só que se tenha feito a aproximação, em repetidas vezes; não só que as matemáticas possam ter algo “contemplativo” nelas, como se pode ver nos matemáticos como Euler, com sua equação em que resumia o mundo, ou como a traíam, mais próximos de nós, um Wittgenstein, até mesmo um Russell; - mas, se se trata de observarmos as coisas da perspectiva da ahoretia, então as matemáticas se nos oferecem por si. Sem invocarmos os grandes exemplos da ahoretia matemática - um deles destinado a apaziguar a passagem daqui às matemáticas no nível das providências religiosas, tão opostas a elas em outros planos - justamente o exemplo que dá Platão, então quando diz que o Deus, ahorético por excelência, atribui-se um tipo de determinações, que não sejam verdadeiramente unas (pois sairiam de sua pureza e igualdade), ou seja, fazendo geometria; sem portanto recorrer a tais exemplos, diremos que as matemáticas devem invocar aqui muito mais do que outra aventura humana, justamente a fim de poder revelar a presença e a ação da ahoretia no mundo moderno. Não seriam as matemáticas uma verdadeira ascese do conhecimento? Num sentido alargado da ascese (que reencontra espantosamente o sentido originário de “exercício”, evidente nas matemáticas), elas são uma ascese do pensamento conhecedor, assim como a poesia era uma ascese do pensamento falante. Com elas, o pensamento recusa-se a conhecer qualquer área da

realidade, desprende-se voluntariamente de todas as determinações do real e parte para o deserto, tornando-se um tipo de “estilista”, e é, como São Simeão, suspenso como está, na coluna estreita de alguns postulados e axiomas. A pureza ahorética do matemático - que não só renuncia inicialmente a quaisquer determinações do real, mas se orgulha de não reencontrar nenhuma em seu exercício, assim como diz Russell que o matemático não sabe sobre o que fala e se falasse sobre algo - representaria um escândalo, para a cultura humana, e surgiria um jogo vazio, pois ela não parece posta a serviço de nada, como outras “retiradas do mundo” (para Pascal, ele próprio gênio matemático, as matemáticas ainda são um jogo, e não uma atividade séria, de acordo com o que escreve ele a Desargues), se da puridade do exercício matemático não resultasse, diversamente da ascese, que se pretendia a serviço do mundo abandonado, um inesperado e fantástico reencontro do mundo. Eis aqui uma das mais surpreendentes lições do espírito, com as suas doenças, no que concerne às virtudes da recusa e da ahoretia em particular. De toda esta ascese do pensamento conhecedor, com as matemáticas, produziu-se muito mais que uma vitória do conhecimento; produziu-se, através da técnica, uma demiurgia criadora que, da mesma maneira como a vitória do conhecimento, nos faz crer que Platão tinha razão ao dizer que Deus geometriza, mas desta vez de outro modo que não no sentido de que encontraria por este caminho um expediente a fim de não entediar-se. E entretanto, algo da ordem da ahoretia inicial permaneceu justamente naqueles dois inesperados sucessos das matemáticas, o conhecimento e a técnica. Não falemos amplamente do primeiro aspecto, somente teórico, da sobrevivência de uma “recusa”, no que diz respeito às determinações reais, mesmo no sucesso das matemáticas de as conhecer e explicar (por intermédio das ciências a que se aplicam); pois, na verdade, reduzir todas as determinações a expressões matemáticas pelas quais se formulam as suas leis significa passálas do real para uma tela onde tudo se torna espectral; ou significa fazê-las parecer com “outra coisa”, assimilá-las e desfazê-las como tais, exatamente o que quer a ahoretia. Sublinhemos por outro lado - pois o aspecto leva diretamente à vida prática do homem especialmente a ahoretia que se mantém, das matemáticas, ou que ressurge à luz uma vez com o universo dos objetos fabricados, um universo monótono justo quando parece existir uma selva da demiurgia; mas sobretudo mostremos que, devido a esta progenitura direta e indireta das matemáticas, ou seja, o mundo técnico, o mundo do industrialismo e das máquinas, a vida histórica impõe responsabilidades novas ao homem, umas de controle racional, de racionalização e de predeterminação, que parecem a algumas pessoas acabar por reencontrar algo do problema teológico da predestinação (tão solidário com si é o homem em tudo o que faz, seja no sacro, seja no profano) e de qualquer modo parecem reativar a partir de agora a ahoretia. O homem europeu, levando atrás de si o homem do planeta, encontra-se no ponto de transformar a catolite (a sua doença histórica, surgida durante a busca por um geral

satisfatório), por um lado em todetite, ou seja, no esforço de encontrar um individual adequado, com o prolongamento dela na horetite, a dificuldade de dar-lhe determinações adequadas, por outro lado transformá-la - devido à sua lucidez - em ahoretia. No fundo, o homem europeu é provavelmente o único que tem tomado sobre si todas as doenças do espírito (pois veremos como as últimas duas terão retornado). Agora entretanto ele toma sobre si em primeiro lugar a ahoretia, que nos parecera característica ao mundo indiano. Só que existe uma outra variante da ahoretia, na medida em que também o geral através do qual se equilibra o espírito europeu é outro que não Brahma. Com um geral menos vasto, com um tipo de razão que geralmente nem mesmo não mais busca justificações filosóficas, proclamando-se sumariamente “ordem racional”, às vezes sem nenhum nome, o homem dos novos tempos recusa as determinações mais livres, tanto da natureza como também do próprio ser ou sociedade. Ele não mais pode - em nenhuma parte do mundo agora - não planificar, não organizar, não predeterminar e não danificar as determinações livres, em perfeita aspiração ahorética. O mundo se esvazia de surpresas, como no caso dos estóicos, assim como o conhecimento tende a esvair-se de novidade, ou vem - como a filosofia banal - explicar perfeitamente, diante de algumas novidades, que tinha de ser assim. De qualquer modo, a novidade radical não mais existe. Nós a aguardamos de um eventual encontro com extraterrestres. Não mais encontramos, agora, ou não mais nos deparamos com nada surpreendente através do contato direto; no máximo por vias indiretas. Quando Máximo Gorki saiu de Nijni Novgorod para a Criméia, ao longo de milhares de quilômetros, em cada vilarejo por que passou ele viu e encontrou uma coisa diferente. Agora, pelo menos ao viajante não se oferece mais nada de novo nos vilarejos e nas cidades do mundo, e isto não somente na parte oriental, onde o fenômeno bom da ahoretia, no sentido da integração da sociedade (as classes tendem a desaparecer), é evidente, mas cada vez mais em qualquer outra parte do mundo. Os homens se agitam e se movem como nunca, mas não mais viajam de verdade. Desaparece de nosso mundo aquele viajante que trazia com ele a novidade e a confrontava com a de outros. Da mesma maneira como aquele do deserto, nós não nos movemos, com a nossa extraordinária mobilidade. O homem da ahoretia é entretanto justamente aquele que não mais viaja. Por haver descido tanto, do homem das extremas experiências ascéticas e extáticas, até às nossas vidas marginais do momento histórico em que nos encontramos, talvez não parecerá impertinente denominar um destino individual como ahorético. No final das contas, uma doença, seja ela também espiritual, existe pelos doentes. Se se pode aprender de tratados todo o tipo de coisas sobre os sintomas e a síndrome de uma doença, ainda permanece muito o que descobrir da ficha de observação de um doente. Mas o doente que segue apresentou-se sozinho diante do autor, a fim de ser consultado. É o próprio autor.

Descrevendo à distância a doença espiritual da ahoretia, ele teve a surpresa de ver, num determinado momento, que aponta e emoldura sozinho o seu próprio destino. Por que escondê-lo, se pode servir, no mínimo, para uma pesquisa teórica? Somos todos fragmentos de teoria, enfim, uns insetos no insetário da humanidade, e se às vezes o inseto tenta tornarse entomólogo, como aqui, ele não pode senão servir melhor ao conhecimento do insetário, antes de recair nele. Descrevamos então um caso de ahoretia no registro objetivo que se faria por um médico especialista, digamos, por um “nooiatra”. Ficha clínica O paciente declara que leu aos 18 anos Kant e que se sentiu confiscado, para sempre, pelo pensamento especulativo. (É conhecido o fenômeno do rapto, que está quase sempre na origem da ahoretia. Só às vezes é substituído pela recusa vazia, na ahoretia degradada. A forma que tem por base o rapto é aquela positiva, malgrado o seu cortejo de negações. Significativo é o fato de que, no paciente, trata-se de Kant, homem que nunca viajou, com efeito.) Desde o início este fato transformou-lhe a vida, dando-lhe uma temporã porém, como percebeu mais tarde, falsa maturidade. Era uma maturidade que se baseava na atitude, não no conteúdo. Apesar de tomado por cultura, recusava, em nome da especulação, áreas inteiras da cultura, como as artes, e naturalmente recusava tudo o que era aplicação prática, pesquisa de campo ou ação. Não participava plenamente nem da vida dos outros, não se explicando bem como os podia submeter por vezes, com a sua não-participação e mesmo com a sua ignorância nas suas áreas de ação. (O paciente parece não saber do “poder do negativo”.) Sentiu desde então uma tendência na direção do excesso, na sua natureza humana, e quando leu a confissão de alguém que preferira na vida o excesso a mais, disse a si mesmo que ele prefere decididamente o excesso a menos. (Caráter típico da ahoretia, que não reside na “natureza humana”, assim como crê o sujeito analisado, mas no ato de lucidez, seja também juvenil, que conduz ao auto-adoentamento.) À pergunta se não fora abordado pelos sentimentos comuns de atração e amor dos jovens, respondeu que aqui se sentiu à margem dos outros; mas não pôde esconder que descobrira com interesse, pela linha do excesso a menos, quanto poder de atração confere a recusa - é claro que freqüentemente estimulada - de deixar-se atraído. Fez até mesmo uma teoria do donjuanismo pela não-conquista, assim como fez uma espécie de teoria do não-ato e, praticamente, da não-possessão, a que, para a sua sorte - reconhece ele, dada a situação histórica em que tinha de viver - teve vocação. Fez igualmente uma teoria sobre os cinco

significados do não-A. (Aqui o detive, satisfeito com toda essa proliferação do negativo, significativa para o ahorético no quadro de sua vida.) Continuou confessando que se sentia dessa maneira com o negativo recebendo a “virtude”, e começava a ser tomado de orgulho; mas compreendeu ainda nos anos de juventude os limites da virtude vazia. Primeiro, ela arrisca a ser algo “para os outros”, se se baseia na simples atitude virtuosa; sendo assim, ela se torna ligada demais a recusas, o que não demonstra uma virtude verdadeira; finalmente, viu que, em seu caso, a virtude é antes virtuosidade, e então começou a considerá-la como tal. (Cai em modo adequado, com a virtuosidade, sobre o caráter da ascese neste nível mundano, de ser exercício e nada mais, sobretudo nos ahoréticos piorados na doença.) Haja vista a que sentia uma certa hipocrisia, os amigos dizendo-lhe às vezes que tem algo de jesuíta nele, quando não o honravam com o qualificativo de “diabólico”, procurou compensar a insegurança de sua posição moral com uma virtude que lhe parecia, desta vez, autêntica: a do “secretariado”. Através disso o paciente compreende o pôr em ação, minimamente organizado, dos outros, através de sua boa valorização com a ajuda de uma idéia que se atira em discussão, ou de uma programação imperceptível nos encontros com os outros, até mesmo sem chegar à organização de grupamentos (literários ou ideológicos) em que seja secretário-demiurgo. Agradava-lhe essa condição de secretário, ou seja, de homem que se segrega e que se secreta a si mesmo, atuando de algum modo a partir da sombra, porém de fato do meio das coisas, para ver os outros desencadeando-se. Chegava até a arriscar a própria derrota, nalgumas discussões, a fim de mobilizar melhor os outros (que formas menores pode assumir a alegria estóica da derrota) e de permanecer depois à parte, invalidado na aparência, porém agente principal ignorado. (Inesperadamente significativo: não nos atribuímos nós determinações, mas favorecemos que os outros se atribuam. É uma “transferência de ação”, para o qual deve-se estar atento no caso da ahoretia, com o seu jogo duplo de passividade e atividade inibida.) Por esta linha, obtinha ele um estado de indiferença (típica à doença!) que o fazia dizer que se deve amar a alternativa no seu inteiro, com ambas as possibilidades ao mesmo tempo: “Se sou tocado pelo pecado, está bem, tenho a volúpia; se não sou, está bem, tenho a virtude.” Tudo isso acontecia debaixo da falsa calma da primeira juventude. Não o atraíram perguntei-lhe - as experiências extáticas, fixadoras? Reconhece que se resguardou delas como demasiado sedutoras, tendo sido retido pelo êxtase especulativo, sentindo-se bem por não poder obtê-lo, senão após anos de “exercício” (claro que neste sentido desde o início gostou do Parmênides de Platão); mas a sedução da música ele a sentiu por um período, vendo nela um imensurável “exercício” do sentimento e fixando-se em Bach, em quem, mesmo além da Kunst der Fuge, vê o exercício absoluto. Numa reflexão mais tardia, toda a cultura pareceu-lhe ser assim: “Dom Quixote é um exercício, o teatro e Shakespeare a seu modo um outro, Goethe, toda a filosofação, sempre exercício.” (Detive-o mais uma vez, retendo somente a perspectiva do ahorético sobre o fenômeno da cultura.) Da poesia ficou sobretudo com a

palavra, em sua pureza, sentindo desde jovem que uma palavra pode ser acariciada ou comiserada como uma criatura viva. Lamentou desde então a aventura da palavra “festa”, em língua romena, um vocábulo tão eleito, que caiu nas mãos dos festeiros. (Talvez tenha razão lingüística, mas na dimensão da vida a festa, no sentido bom, representa algo pleno, enquanto os sensos que ele lamenta, como ahorético, encontram-se suspensos acima da vida.) Não sabe bem por que venerou tanto as matemáticas. Saboreou muito pouco delas, é verdade, não as pôde conduzir até um fim, de medo novamente de não ser confiscado por outra coisa que não o pensamento especulativo, porém manteve todo o tempo o culto a elas, com uma devoção de indivíduo repudiado, retomando-as em vão por duas ou três vezes, em anos mais tardios. Talvez tenha-lhe agradado nelas o fato de que representam uma nobre forma de não-conhecimento, como a especulação, enquanto todo o resto das ciências tem o apetite “primitivo” (o horror do ahorético) de conhecer determinada coisa, caindo na mutilação e na unilateralidade que se pagam tão gravemente agora. Porém, assim como insiste ele, não entende bem o que sempre o fascinou nas matemáticas, produzindo-lhe o seu “desespero”. (Como se não fosse óbvio que, sofrendo da sua doença espiritual, era inevitável venerar este modo supremo de não fazer nada, que são as matemáticas em seu momento puro.) Fato é que na idade de 25 anos retirou-se voluntariamente de qualquer engajamento. Com exceção de algumas viagens de estudo (viagens de não-viajante!) e de escritos, não fez nada. Declara decidido, reconhecendo contudo que de um determinado momento fora favorecido pelas circunstâncias à inação: “Durante 30 anos não fiz nada.” (É um modo, novamente característico, de ahoretizar a sua própria vida, não querendo ver nela nenhum tipo de determinações. Foi-me necessário insistir. Não fez mesmo nada, no sentido de participação direta? Nenhum ato de vida pública?) Confessou uma exceção, reconhecendo que empreendeu contudo um ato de participação; mas escolheu, a fim de o realizar, o momento quando “não havia mais o que fazer”. Agradaram-lhe na vida os vencidos, confessa ele de novo. Soube apoiar uma ação quando tudo estava comprometido. (Claro que assim estava destinado a comportar-se como um ahorético, homem na posição de partir para a guerra depois que a guerra terminara, mais ainda da parte do derrotado.) Mas e a guerra propriamente dita, que caía em seus anos plenos? Aqui animou-se um pouco. A guerra foi uma experiência extraordinária, para ele. Sabia já de antemão como a guerra, apesar dos seus horrores, atraía alguns homens. Dava-lhes a possibilidade de arrancar, de sua caixinha misteriosa, um alter-ego que a vida comum não lhes valorizava: um homem por exemplo que sabe comandar, um empreendedor, mesmo um herói. Depois, eram atraídos pela guerra porque, numa sociedade em que viviam demasiado sob responsabilidades falsas, a guerra os posicionava em perfeita e boa irresponsabilidade, limitando-os a uma única ação.

A ele, por outro lado, interessava a guerra por outro motivo: como inação (simplesmente!). Não só que ela nos arranca de toda atividade sustentada, na vida privada e mesmo pública; não só que nos atira a uma espécie de não-existir, em que é necessário apenas sobreviver e viver, mas em si mesma a guerra pareceu-lhe uma imensidade de inação: nove décimos dos homens não lutam (e ele foi um deles). Todo o mundo espera um momento culminante que, quando ocorre, não mais está sob controle de ninguém, e de resto não ocorre nada propriamente dito. Nada de novo no fronte ocidental é um título perfeitamente adequado ao estado de guerra (segundo ele). Soube com encantamento, pelos outros, da “inação” mesmo das primeiras linhas, como também do fato de que muitos homens fizeram leituras essenciais justamente no front. A guerra lhe parece uma grande escola de não-acontecimento em todos os sentidos, até ao acontecimento final, vindo sobre as nossas cabeças. (É a visão do ahorético sobre o apocalipse.) Depois veio o “estranho interlúdio”, sobretudo quando nos posicionamos mal na partida desenvolvida. Mas, segundo ele, isso pode ser utilizado como uma vantagem, pois nos atira à margem, à linha de fundo, como se diz no esporte. A vida “marginal” pareceu-lhe uma condição adequada à sua passividade ativa, e ele admira tudo o que ocorre na margem, começando pelas experiências do homem em situações-limite, até à condição de “marginal”, que observou com satisfação na vida dos marginais transilvanos, dalém da fronteira dos Cárpatos, com aquele outro estatuto seu e com outra realização que não aquela através das determinações do cidadão comum do estado. Em seu caso, contudo, como também no de outros, a marginalidade não era reconhecida e aceitada como positiva, no momento respectivo, mas acusada e ameaçada como tal. Com o perigo de uma sanção, ele viveu anos após anos com uma secreta volúpia (graças aos prazeres do ahorético!). Não era, então, pressionado por nenhuma responsabilidade, como eram aqueles que eram ativos pela participação, mas o paciente declara que sentiu, naquele estranho interlúdio, cada dia livre como uma dádiva. “Um mínimo de perseguição não estraga na vida”, diz ele. Ainda mais, justo sobre aquele período de “espera” (a espera de que lhe acontecesse algo!), fala como se fora o momento mais animado de sua vida. Viveu, conforme o que diz, durante cinco anos com a febre do “poder do negativo”, a qual agora ele aprofundava com Hegel, mas sobretudo no extraordinário fervor de vida de Goethe. Pretende até mesmo ter tido com Goethe - nas leituras feitas durante anos, de autores e comentadores mais renomados um contato incomum, de convivência e participação direta. Festejou e rejubilou-se com Goethe, diz ele, ficou noivo diversas vezes e rompeu os noivados com ele, administrou um estadozinho, depois fugiu para a Itália, voltou e dedicou-se a uma pesquisa pseudocientífica, depois no mundo do teatro; discutiu, com o seu grande amigo e com Schiller, todos os problemas da cultura, saturou-se da vida e retomou, com os amores tardios, a insaciedade dela, fraternizou-se com Fausto e sobretudo com Mefisto, depois do que esboçou uma saudação ao mundo e disse como Goethe: “Es ist gut.” (O sentimento do ahorético que vive

e que se atribui determinações caso veja o outro vivendo; experiência de “vida por delegação”.) Quando veio a reclusão, depois de bem 10 anos de espera ativa (diz ele), estava quase cansado da intensidade da vida vivida (respectivamente não vivida) e, até um ponto, desejava um tempo de reflexão, a fim de se regenerar. Se não houvesse registrado a experiência amarga de que todas as coisas que fazemos e que não fazemos, até mesmo os nossos isolamentos, têm um caráter social e se referem de certo modo aos outros, fazendo-os pagar por nós esta entrada numa das poucas grandes solidões do homem moderno, que é a reclusão, parecer-lhe-ia um encantamento, de momento em que as coisas aconteciam num período em que as fúrias se haviam apagado e quando tudo se reduzia a um “exercício” e uma demonstração, para a tranqüilidade dos espíritos e definitivo posicionamento das coisas no caminho por que entraram. Aqui entre quatro paredes, com um, com vinte homens, ou sozinho, podia-se reobter um pouco de vigor espiritual. Aqui, além de tudo, podemos reobter a consciência de que cada um é um sujeito humano, enquanto o mundo exterior nos havia transformado, até mesmo ou sobretudo com as suas situações boas, num verdadeiro objeto seu. Naturalmente, a nossa subjetividade é muito delicada e, mal rodeados por tais circunstâncias, vemos toda a nossa pequenez e nulidade como homens ou espíritos, com uma memória que nos atira para além da soleira da consciência todos os seus aluviões impuros, com uma imaginação que entra rápido em parafuso e com um pensamento que não sabe dominar nem os processos de consciência, nem os problemas que nos colocamos. Com tudo isso, pequeninos como somos - ein kleiner Mann ist auch ein Mann, cita ele de Goethe -, tornamo-nos agora um verdadeiro sujeito e começamos a ver como os outros fora das nossas paredes, o médico bem como o cozinheiro, ou Argos com os seus inumeráveis olhos fixados sobre nós, são eles um tipo de objetos humanos, que nos servem e nos mantêm em nós, e que no final das contas tornam-se-nos até mesmo uma espécie de aliados. No fundo, se soubermos nos posicionar bem na vida (ou seja, recolhermo-nos bem, segundo o ahorético), todos e tudo se nos tornam aliados, assim como lhe dizia uma vez um menininho que “dar-te o troco” significa, pensava a criança, que não tens suficiente, e o outro dava-te o troco. Mal chegado aqui ele sentiu a verdade do dizer daquele, que é válido para a cultura inteira, onde não sabemos suficiente e a ciência do mundo nos dá o troco, mas é até mesmo válido também para uma sociedade ideal, em que ninguém não tem suficiente, mas a boa gestão e a solidariedade dos homens faz de tal modo com que seja dado o troco. Mesmo em condições de inimizade, sustenta ele, se as coisas não conduzem àquela solução desumana da “contradição” que é a anulação - uma condição primitiva, cuja barbárie só a lógica moderna mantém na cultura, dizendo que A e não-A simplesmente se anulam -, então uma das partes integra, e não destrói a outra. E depois como “não se sabe nunca quem dá e quem recebe”, não se sabe nunca quem integra o outro e quem é integrado, como no capítulo de Hegel com o escravo e o senhor. Não se sabe nunca quem vem com o seu

dinheirinho e quem dá o troco. (A visão idílica do ahorético com visão sobre a adversidade e as feiúras do mundo.) Quando saiu dessa experiência, pareceu-lhe que não tinha suficiente e que todo o mundo de fora vinha dar-lhe o troco. Lembrou-se, então, de um dizer de Talleyrand, que transformou conforme o seu pensamento: “Qui n’a pas vécu après la révolution n’a pas connu la douceur de vivre.” Tudo lhe parecia incrivelmente bom e enriquecedor, na medida de suas esperanças e ainda mais. Realizara-se no mundo a revolução técnico-científica, sem que ainda se houvessem revelado as ameaças. Ela trazia promessas miraculosas, tanto para a sociedade quanto também para o indivíduo: um controle, agora naturalmente organizado e não tirânico, sobre a agitação econômica do homem, uma feliz racionalização, enfim segura, da sociedade, um tipo de programação dela, com prognoses de redução da virulência e do desequilíbrio do “novo”, uma programação até mesmo do indivíduo, começando pelas formas de eugenia até dotá-lo com capacidades espirituais engrandecidas, se não se tratasse senão de uma memória melhor; uma lenta homogeneização, que não suprimisse a diversidade, mas que desaguçasse o fio; o espetáculo suportável do mundo, finalmente como no teatro antigo, onde o espectador já conhecia o mito posto na tragédia e não vinha ver senão como fora dramatizado -, ou seja, de um mundo em que não há mais necessidade de viajarmos porque estamos nele em toda a parte. (O paciente descreve dessa maneira a imagem do mundo futuro no pensamento de um ahorético, com o seu perfume de otimismo.) Passaram-se anos em que não fizera nada, e agora envelhecera. Mas justamente neste momento havia algo a fazer! (Atenção ao que segue, pois é o cúmulo do característico para a mentalidade do ahorético.) Após tanto não-viajar, podia dizer que chegara a algum lugar. Definitivamente, esperamos a vida toda que aconteça conosco algo milagroso, e não acontece nada. Mas uma anotação de Creanga - “vê-se que também veio, de momento em que não veio mais” - pareceu-lhe terrivelmente adequada para o fim da vida dos homens, mas só alguns (eles, os ahoréticos) estão à altura de valorizar assim as coisas. A vida é uma preparação para o envelhecimento, diz ele. Parece-lhe um dos grandes dizeres lamentáveis e vãos da humanidade aquele que diz que “a vida é uma preparação para a morte”, infelizmente um dizer invocado por homens da categoria de um Sócrates, de um Pascal, ou até determinado ponto invocado também por um Heidegger. Mas é algo absurdo, se não pensarmos, platônica ou orficamente, que iremos “retornar” da morte para a vida. A preparação para um estado sem conteúdo e sem horizonte? Para uma nova etapa no melhor dos casos? Para a inexistência, no pior? A vida é, por outro lado, uma preparação para o    N. do T.: Ion Creanga (1837-1889), escritor romeno. Observador jovial e irônico da natureza humana, mestre do estilo oral paremiológico.

momento em que, enfim, o homem pode fazer de si algo e pode estar verdadeiramente em ação: para o envelhecimento. (Qualquer comentário daqui em diante é inútil: as coisas falam por si. No máximo pode-se sublinhar que está em jogo a revanche da ahoretia sobre a vida, com a senectude, pela transformação do seu negativo no positivo da vida.) Se a vida não é um crescendo, então ela permanece sendo uma simples questão de biologia. Que esplêndido é o envelhecimento - não a velhice propriamente dita, se ela deve significar decrepitude -, com aquele momento quando os estímulos secundários da vida se apagam, um após o outro, e quando permanece o essencial do nosso ser; quando vemos que tudo visou à direção deste ponto de acumulação da nossa vida, em que se condensa e se precipita a vida inteira. Saímos agora debaixo da tutela da espécie, da sociedade, como também dos nossos vãos entusiasmos ou ambições, e somos enfim homem, livre, sujeito humano, e não a criatura manobrada por todos os outros. Não vivemos mais nem com esperanças vãs - que aconteça algo, que o mundo dê um giro de 180 graus, que desça sobre nós sabe-se lá que investidura ou felicidade -, não mais vivemos então sob “ce sale espoir”, como dizia um escritor francês. Não mais podemos aguardar, procrastinar, esperar por nada. Mas, sendo assim, é a única idade quando não mais vivemos em suspensão. Cada homem está numa suspensão - e até determinado ponto é bom que seja assim, a fim de não fazer afirmações a que faltem maturidade. Mas como fazer, nos anos mais jovens, com que, permanecendo em suspensão, em abertura e preparação, não sejamos contudo seres mutilados? Está aqui toda a sabedoria temporã, enquanto a sabedoria tardia representa, pelo contrário, a libertação das nossas forças criadoras. Aqueles que envelhecem plenamente poucos, porém essenciais para o mundo - devem ser um tipo de “supernovas” da humanidade: iluminam poderosamente, e depois se extinguem em explosão. No final das contas, todas as pessoas ativas trabalham para este tipo de homens, a fim de os sustentar. E como é que um terço da humanidade - pois tantos serão em breve os que terão entrado na magia do envelhecimento - o terço que mais aprendeu com os anos, o mais experimentado e iluminado de vida, como poderia ele representar a parte decrépita da humanidade? Mas é uma ofensa para o homem, para o espírito, para o grande criador, ou para a natureza. Que não cresça absolutamente nada em nós, ao longo da vida, e o crescimento do homem seja apenas o dos dentes, das células, do esqueleto? Mas agora, justamente, tudo o que se acumulou ao longo dos anos pode frutificar-se verdadeiramente. Se é verdade que, no plano da criação científica, a primeira parte da vida pode ser mais frutuosa, pois é necessária uma acuidade, uma atenção e uma energia do espírito que são ligadas quase à animalidade tanto quanto ao espírito (quanta boa

animalidade não é necessária a um matemático ou a um físico, a fim de realizar descobertas), por outro lado, para o mundo dos valores e a cultura humanista, a segunda parte da vida é aquela verdadeiramente criadora. Não somente aos homens mas até mesmo às mulheres a segunda parte da vida, com a sua libertação da natureza, cria as grandes ocasiões do espírito. O que seria a humanidade sem a sua sabedoria? O que é ela hoje, sem tal sabedoria? Pois talvez por isso exista tanta insegurança nos sucessos de hoje, porque a humanidade não teve suficientemente, no passado, a ocasião do bom envelhecimento. Os homens se extinguiam jovens demais. Algo inesperado se oferece à humanidade, uma maturação pelos anos, que dê ao mundo sentidos, não só conhecimentos, como deu o mundo jovem demais até agora; ou que dê sentidos justamente a estes conhecimentos, vindos com a sua magia mas também com a sua explosão vindos talvez prematuramente para cima de um mundo ainda jovem. Estamos no momento em que todas as explosões podem produzir-se; se contudo saberemos encontrar uma feliz implosão no envelhecer, o homem e o espírito vão se rejubilar no mundo. Após a apresentação da ahoretia, tanto por casos gerais como também, excepcionalmente, por um caso individual, a sua descrição resumida é simples: é a doença nascida por um rapto anímico ou intelectual, conduzindo a uma brusca iluminação ou lucidez de consciência, que faz com que o sujeito interdite a própria participação, domine as próprias determinações, veja o positivo do não-ato e o do negativo, aceitando a derrota, assimilando-a e caindo em indiferença, amando tudo o que se desprende do mundo como tal, da ascese e poesia até às matemáticas e o espetáculo da revolução técnico-científica, colocando a vida e a história sob a ordem da razão, que desfaz o novo e proclama a fertilidade da não-viagem. A ahoretia, como recusa das determinações, revela a própria medida no momento da senectude, quando nenhuma das determinações cegas do mundo profana mais o espírito.

VI. ATODETIA Platão sofria de todetite então quando se esforçava por encontrar uma certa cidadela - ou seja, uma realidade individual - sobre a qual pudesse aplicar a sua idéia geral sobre o estado. Por outro lado, teria sofrido de atodetia (fazendo também outros sofrer) se houvesse aplicado efetivamente a sua idéia sobre o estado. Pois nisso, se se houvesse realizado, a realidade individual, que agora era o simples cidadão, conseqüentemente não teria sido considerada (cada jovem, conforme a República, passaria a pertencer a todos, não à sua família, e ninguém teria o direito, até os 50 anos, de deixar a cidadela), de tal modo que qualquer adepto convicto da respectiva concepção devia recusar um dos termos do ser, o individual, acreditando contudo que só dessa maneira se obtém, na cidadela ideal, o ser da história. Com a todetite, descrita anteriormente, o homem tendia a obter o individual, sem nunca atingi-lo; com a atodetia, por outro lado (da mesma origem grega tode ti = esta coisa mesma), o homem o recusa conscientemente. Ela representa, como a ahoretia, uma doença da lucidez. Tanto está em jogo a lucidez, no seu caso, que ela invoca o conhecimento límpido, um tanto baixo e rudimentar. Por isso a atodetia surge também no momento de maturidade tardia dos povos e dos indivíduos (o que pode ser muito cedo, historicamente), assumindo a forma do cultivar, do modelar, do nuançar, do cerimonial, da cultura e, finalmente, do comentário. Povos inteiros, assim como indivíduos, puderam ser um mero comentário a uma religião, a uma ética, ou simplesmente a uma “idéia”. Num nível mais elevado, o que seria a vida sem o seu comentário? Por outro lado - em alguns povos do passado e talvez até mesmo de hoje - o que seria a vida social sem o seu cerimonial? E mais ainda, o que seria a sociedade em geral, sem o domínio controlado das realidades individuais? E tudo ocorre sob o signo de um conhecimento, que pode levar ou não leva o individual em consideração, mas que se pode tomar em conseqüência com si até à recusa do individual. Atodetia. O conhecimento de que falamos não assume bem do início a forma clássica da cultura, mas a do cultivo do homem pelo “sacro” e pela religiosidade. Graças a esta relação, justamente, a maturidade tardia dos povos e dos indivíduos parece temporã na história, com o título dos conhecimentos, respectivamente das crenças de todo o tipo, organizadas em práticas, se não ainda institucionalizadas. Enquanto a maioria dos crentes se submetem ao cerimonial, alguns

à sua frente conhecem, ou crêem conhecer verdadeiramente, de tal maneira que, se na ahoretia, com a recusa das determinações, caracterizante era o asceta ou o extático, na atodetia, por outro lado, com a recusa somente do individual, caracterizante é o tipo do padre (do detentor de verdades). Mesmo em nossa civilização perfeitamente profana, o homem de cultura exercita, ou deveria exercitar, um sacerdócio, assim como para a atodetia típica da China de tempos idos (em contraste com a ahoretia típica da Índia) o conhecedor da ordem e do cerimonial tinha de manter continuamente um caráter sacerdotal. Debaixo de tal atodetia endêmica viveram então os povos, até à afirmação da pessoa, ou seja, do individual, na versão do herói (e talvez na do filósofo/sofista) da Grécia antiga, e mais tarde na versão da pessoa cristã e finalmente da pessoa livre da cultura européia moderna. A maioria dos povos aceitaram a história como uma história das delimitações pelas quais atribuem-se, através delas, um senso geral (às vezes somente tribal). Um tal senso geral é, como o sugerimos, aquele que produziram, num nível mais elevado, as grandes religiões. Com o sacrifício do individual, grupos humanos inteiros se viram colocados a serviço de uma idéia religiosa, trazendo-lhes antes nuanças e versões novas do que preenchendo os seus exemplares humanos através delas. Assim, a idéia islâmica se matiza em variadas versões do mundo árabe, passando depois para a versão dos povos otomanos, onde se demonstrou demasiado larga e esterilmente fanática. Por sua vez, até mesmo o cristianismo, em que surgia a idéia da pessoa humana e da sua remissão como pessoa, atribuía-se as bem conhecidas delimitações massivas (Oriente grego, Ocidente latino), para depois, através da idéia protestante, matizar-se em inumeráveis seitas, dentre as quais umas com capacidade real de afirmação histórica. E, na Ásia, a idéia budista assegurou adesão a algumas comunidades étnicas, a fim de se definir e redefinir por elas. Como não existir, então, históricos que vejam o mundo do passado da perspectiva de algumas “idéias” (como faz Spengler, o histórico atodético por excelência, que não mais vê o individual histórico mas o analógico, ou vê o individual somente ao nível de oito grandes culturas), se as religiões do passado oferecem tal espetáculo em que o herói propriamente dito é o geral? Mas uma experiência histórica mais sutil, sempre sob o signo da atodetia, vivem as comunidades alçadas ao nível da cultura refinada. Talvez os mouros tenham estado, num determinado momento, num caso semelhante. Num passado mais remoto, o Egito e a China puderam efetivamente estagnar no requinte e na matização de um grupo de sensos gerais obtidos já prontos. Ainda hoje, a mesma China em que a idéia diretora decide, além da pessoa, apresenta um esplêndido exemplo de conversão ao positivo do fenômeno da atodetia, sob cujo signo estagnara demais. Ainda mais no momento presente do século XX, mesmo na França, a mesma França que passou pelo que havia de positivo de algumas doenças espirituais, executa de modo exemplar a experiência da matização, pelo espírito e pela inteligência, das idéias européias criadas ou pelo menos sintetizadas por ela, com o risco de uma estagnação histórica (ao contrário da atodetia, agora ativa, da China), do mesmo tipo

daquelas que aparecem em qualquer sociedade demasiado requintada, um risco que dobra, no caso da França, o da cosmopolitização. Surgiu talvez, no grande país ocidental, o belo momento do crepúsculo histórico, quando todos os sensos gerais se delimitam sutilmente, até o seu próprio desaparecimento. Se contudo se falará que numa cultura como é a francesa o individual não é recusado - como nos mundos asiáticos -, mas pelo contrário, afirmado ao extremo, responderemos que a exacerbação consciente do individual (a afirmação de cada um com todas as liberdades, até à vaidade de quaisquer afirmações e a histrionice: todos fazem “trois petits tours et puis s’en vont”) equivale à sua recusa consciente. Existe ali uma outra forma de atodetia. Quando o indivíduo conta tanto, ele não conta mais. Poder-se-ia acreditar, após o acima dito, que a atodetia surgiria somente no nível histórico, mais exatamente através da aniquilação do indivíduo, no interesse da comunidade e do estado. No final das contas, todo estado e todo regimento prefere a si mesmo do que ao indivíduo, acabando por ser a própria atodetia, ou seja, a recusa ao individual. (Daí o protesto ocidental de hoje de tantos jovens e velhos contra a opressão, freqüentemente bem camuflada, das formas estatais, mas daí também a profunda idéia marxista do desaparecimento final do estado.) Só que a atodetia não aparece apenas no supraindividual das comunidades históricas, mas no próprio indivíduo. Esta doença espiritual pode ser, até mesmo mais do que as outras, uma doença dos povos (de momento em que recusa justamente o individual), mas, com segurança, representando uma doença constitucional do homem no nível do ser e de suas precariedades, ela deve retornar também ao homem como ser individual. Por ser entretanto uma doença proveniente em primeiro lugar do conhecimento (e de seus eventuais excessos), ela surge no indivíduo sobretudo no nível da cultura. Por favorecer o conhecimento - que em linhas gerais pertence ao geral, como devemos admitir com Aristóteles -, a cultura acaba por ser uma familiarização com o geral (leis, teorias, idéias) de todo o tipo, numa medida tão vasta que pode conduzir não só ao esquecimento provisório do individual e à necessidade de o reencontrar, como na todetite, mas geralmente pelo contrário, conduzir a um abandono deliberado de tudo o que seja individual, na convicção de que só o geral e as nuanças que lhe trazem as determinações apresentam interesse ao conhecimento e mesmo à realidade. A cultura conduz a um “sentimento musical da existência”, como se disse por vezes, e a uma suspensão, de novo como se musical (das “musas”, definitivamente, deidades da cultura inteira), sobre toda a realidade individual. Assim como a acatolia será uma doença da civilização, a atodetia agora enfatizada é a doença da cultura. Se em sociedade ela assume formas opressivas e mesmo tirânicas, no homem, e em particular no homem de cultura, ela será talvez a doença mais bela e superiormente criativa do espírito, demonstrando - se ainda fosse necessário - que aquilo a que somos

obrigados a denominar “doenças” significa, na ordem do espírito, verdadeiras fontes de vida para ele. Poucos sentidos do homem podem ser mais nobres que a ocupação com o geral, e se nas outras doenças o geral é colocado em jogo indiretamente, agora ele é conhecido e contemplado para ele mesmo, sendo cultivado com um amor que vai até ao interesse por tudo aquilo que pode acontecer mesmo a ele. Pois o geral também tem expiações, em seu puro devir. É suficiente rejeitar deliberadamente toda a possibilidade de se macular com o individual, a fim de o ver. Certamente, o conhecimento pode debruçar-se sobre as vidas (especialmente pela técnica, na cultura européia, e pela sabedoria humana, na cultura oriental), mas a sua alegria plena se dá permanecendo suspenso. Existe um amor puro - no seu final um “amor dei intellectualis”, como queria Spinoza - que pode assumir as formas mais humildes, sem começar a subjugar em nome do geral. Vale a pena vivermos a vida a fim de ver como viveu Goethe, disse um biógrafo inglês seu, portanto vale a pena recusar o teu individual diante da magia do geral de outrém. Vale a pena vivermos a fim de registrar as delimitações, as nuanças, as vicissitudes dos sensos gerais, seja por se tratar de uma natureza arquetípica (“on dit Goethe comme on dit Orphée”, dizia Valéry), seja por se tratar de grandes instantes da cultura, a sociedade, o pensamento, a natureza transfigurada ou os deuses. A própria verdade, o que se tornou ela na cultura? Não algo que se debruça sobre o real individual, mas - assim como se vê hoje na cultura dos grandes refinados - algo que se deseja cultivado para si mesmo. E assim cultivado, a verdade cessa de ser estação final e segurança atingida. Encanta-nos, pela cultura, justamente a sua transformação contínua. A declaração de Lessing que, entre a verdade e a sua busca, ele escolheria a busca, parece-nos hoje culpadamente rígida (ou busca, ou verdade) e até mesmo um pouco ridícula em sua solenidade. Não estão em jogo a busca e a verdade, mas a própria verdade busca a si mesma continuamente, delimita-se e determina-se melhor todo o tempo, integrando as verdades velhas, que coloca em minoria. Chegou-se, neste momento de cultura superior que vivemos, a um tipo de educação das verdades (assim como se falou de educação da natureza). O mundo dos gerais, que parecia ser um mundo de verdades estáveis, transformou-se para a razão do homem contemporâneo num fascinante mundo ideal, de laboratório, em que o homem de ciência não só dispõe da exceção que confirma a regra, mas quer a exceção que negue a regra, aspirando a que suas leis se desmintam, a fim de as poder alargar. Um simples inseto que surgisse numa nave espacial seria uma fonte interminável de enriquecimento das leis sabidas com relação à vida. Mas o inseto como tal, com a sua pobre realidade individual, não seria objeto de interesse. Assim como o homem que matiza e revisa as suas verdades, a realidade pode ser observada também ela como se pondo em jogo regularidades, formações, leis que incontidamente se especificam; mas, fazendo assim, elas se adaptam e se modificam, ou pelo

menos se matizam e se redefinem. A evolução das espécies, por exemplo, ocorre pela sua educação e transformação, portanto pelas delimitações do geral em novas modalidades, que são objetos de interesse por elas mesmas, não por exemplares individuais que obteriam. Com ou além de Darwin, o evolucionismo oferece à razão uma ocasião de encantamento puro, na medida em que não só as situações de vida podem ser infinitas mas também as espécies (libertas da rigidez inicial de serem proporcionadas justamente pelo criador) não permanecem nem elas na rigidez de uma estação final, mas evoluem elas mesmas continuamente, podendo ser praticamente infinitas. A cultura traz este bom primado do possível sobre o real, fazendo com que a razão veja - não só pressuponha, como na concepção de Leibniz sobre os mundos possíveis - a riqueza da qual o real se encontra carregado. Aqui se pode limpidamente fazer a diferença entre possível e possibilidade, possíveis e possibilidades. Pois possibilidades tem somente o individual, que agora não conta mais; no primeiro plano estão os possíveis do geral. Também aos seres gerais acontecem muitas coisas, não importa o quão imutados eles pareceriam a olhos comuns, dentro de um período limitado, pelo menos. O conhecimento não tende a alçar-se somente à lei, mas pode ser também um reconhecimento das vicissitudes da lei, ou da sua certificação, até àquela situação extrema sobre a qual falava Hegel dizendo que uma natureza geral (o divino, em seu exemplo) demonstra efetivamente ser verdadeira só então quando é capaz de confirmar-se através de tudo que a pode desmentir (pela incorporação num homem histórico, dizia ele, no momento mais miserável da história do povo respectivo). Agora é simples relevar que esse encantamento espiritual, com a renúncia atodética ao individual e tendo em vista somente as vicissitudes do geral, ocorre especialmente na consciência de quem filosofa. Citei o caso de Spinoza, com a sua substância única, em cuja margem não sobra lugar senão para um amor intelectual, mas podemos citar com justificações mais sugestivas o caso de Kant. Ahorético na vida, ou seja, carente de determinações, Kant é atodético na filosofia, no nível mais alto e criativo. Ele recusa - ao contrário de um Hegel mais tardio, que procurará incessantemente obter o individual histórico - qualquer recurso à realidade individual (até mesmo a exemplos, como se observou) invocando somente o seu geral e as suas determinações do seio da realidade. Kant oferece, com as suas “Críticas”, justamente um sistema de filosofia com acento sobre fenômenos, ou seja, sobre determinações, tanto do mundo exterior como do homem. Em seu caso entra em jogo uma das mais brilhantes modalidades de filosofar, em cujo quadro - de ponta-cabeça diante do banal alçar-se do geral ao bom-senso filosófico - só o geral é aquele que se atribui determinações e se delimita. Na verdade, o individual se reduz, com o criticismo, à matéria e ao diverso que a coisa em si oferece, desconhecida; portanto, o individual é decididamente recusado. Mas o

geral do qual parte o criticismo não é mais, como em Spinoza, uma substância única e tirânica, mas uma sugestiva ordem geral, aquela das formas aprióricas. Com apenas 14 formas, duas da sensibilidade (tempo e espaço), e 12 do intelecto, as categorias, Kant reencontra, descreve, e até justifica toda a fenomenalidade do mundo. É um admirável código genético que agora lhe propõe o pensamento, a fim de compreender sistematicamente todas as determinações físicas e humanas, ou assim como declara Kant com um dizer conhecido demais mas geralmente compreendido de modo banal, as determinações “do céu estrelado acima de mim e do mundo moral de mim”. Com este geral que se atribui determinações seguras, Kant ofereceu durante muito tempo o próprio estilo da filosofia, e o fato de historizar a sua doutrina tornou contudo Hegel possível, a fim de que por sua vez este favorecesse a visão da dialética materialista - tudo isso fala por si. Mas no final das contas faltou a Kant o individual. A oposição de Kierkegaard diante de Hegel, no tema da ausência ou da deformação do individual, deveria antes influenciar Kant, cuja atodetia é categórica. Qualquer um se sente fascinado por Kant num determinado momento, finalmente percebe que não tem acesso ao real concreto, particularmente àquele humano (“formalismo ético”, diz-se sobre a doutrina de Kant), nem à história do homem. O próprio filósofo percebeu que lhe escapa mesmo o real físico, procurando em vão, nas páginas daquele vasto “Opus postumum” - editado agora completo, mas não lido por quase ninguém -, fazer a passagem do geral e dos princípios para o real. Dominando décadas após décadas, até mesmo retomado, após o interlúdio hegeliano dentre 1830 e 1860, o criticismo foi abandonado, no início do século XX, por um lado em nome de um real físico mais individualizado (outros espaços geométricos que não o euclidiano, outra física que não a de Newton, uma física de campos individuais num sentido largo), por outro lado em nome de um individualismo que era dominante e até mesmo estridente na segunda metade do século XIX, prolongando-se até 1914. A perda (ou a recusa consciente do individual) no criticismo foi um dos motivos que puderam reatualizar Goethe na filosofia da cultura, após o empirismo, derrotado contudo por Kant, depois como conduziu mais tarde, na pátria do empirismo, àquela filosofia analítica anglo-saxônica, fundamentada por um nominalismo que o pensamento filosófico autêntico sempre repudiou. Característico, por Kant, para a atodetia é o fato de que leva a razão na direção de um pensamento crítico e dissociativo, enquanto a ahoretia conduzia na direção de um pensamento extático e ao mesmo tempo de tipo matemático, assim como mostramos. A razão que recusa o individual não tem mais de buscar a lei (Kant, ao contrário de Bacon, Descartes ou Leibniz, não sonha e não propõe novas ciências), mas apenas o exercício da lei, no conhecimento da natureza e do homem. De certo modo, trata-se agora de um primado do conhecimento sobre a realização (só restando ao marxismo manter o primado da realização), mas não o primado de um conhecimento que encontra as leis da natureza, mas antes de um que as institua, ou que colabore criticamente em sua instituição. De qualquer modo é um

conhecimento que pertence à maturidade tardia - assim como mostrava Hegel a semelhança da filosofia com a visão da coruja no fato do anoitecer -, uma maturidade que pareceria caracterizar o espírito filosófico, mas que representa, como logo veremos, um degrau humano mais largo. Na verdade, mesmo espíritos estranhos à filosofia e devotados ao concreto ou ao individual, como era Goethe, ou espíritos tomados pelo fervor cristão, como era o caso de Agostinho, podem sofrer, num momento de sua vida, da atodetia da maturidade tardia. Num tal momento, o homem não quer mais ser um fazedor; o geral não mais o solicita para a realização, mas para um conhecimento como se desinteressado. Ele busca ver todo o tipo de delimitações e matizações possíveis do geral, assim como Agostinho matiza e aprofunda, redefinindo-a, a sua mensagem cristã, até àquelas estranhas Retractationes finais, em que o autor cristão revisa, no fim da vida, em nome de dogmas cristãos obtidos pela igreja, a sua própria doutrina, ou seja, pune-se a si próprio em nome do geral e, de certa maneira, esmaga o seu próprio individual. É uma idade da cultura a que os homens de formato superior chegam às vezes, assim como a viveu Goethe, no início modestamente, ao redor dos 50 anos, aprendendo do farmacista Bucholz de sua pequena Weimar tudo o que precisava sobre as ciências naturais, a fim de lhes sugerir uma renovação (com o tema do “fenômeno originário”, por exemplo, que não era senão uma generalidade, uma “idéia”, como lhe dizia Schiller), ou preferindo dar conferências científicas às senhoras da corte, ao invés de ser de novo um primeiro-ministro do ducado. Como mais querer o fato puro, nesses anos da lucidez, quando se viram todas as tortuosidades do mundo, como as de si próprias? Os sensos gerais não realizaram fundações na medida deles nem em nós, nem naqueles que gostaríamos de ter feito felizes. Por outro lado, têm neles a riqueza do possível, que somente o pensamento pode abarcar e somente a cultura pode ilustrar. Não se pode viver de verdade sem o comentário da vida e da realidade. Se é verdade que os fatos são o que nos mais interessa nos anos maduros e não as idéias propriamente ditas, como confessava Schiller, o idealista, a Goethe, o realista, é talvez justamente porque na idade da lucidez estamos na condição de ler nos fatos brutos mais teorias, vendo em cada feito uma modulação do geral. No momento da verdadeira atodetia cultural, não mais nos preocupam tanto os substantivos e os verbos quanto os advérbios. Poder-se-ia dizer - e vamos mostrá-lo adiante que no século clássico francês, o XVII, não o sujeito mas os heróis interessavam, não a ação, mas a modalidade, respectivamente o advérbio. O comportamento distinto, nobremente heróico e variadamente motivado psicologicamente do herói trágico, interessava então indizivelmente muito mais que os heróis e os feitos, os quais a tragédia francesa emprestava sem pudor da tragédia e dos mitos antigos. (Mesmo em nossos tempos um Giraudoux pareceu num determinado momento encantador para o simples comentário sutil que ele fazia aos temas antigos.) Agora o comentário se encontra em primeiro plano e à maturidade

cabe modelar com sábia sutileza a criação emprestada, de nenhuma maneira a criação de novos mitos. Em momentos de maturidade (um pouco cansada), o criador de qualquer área sente a necessidade de dar razão ao geral, determinado e reconhecido, limpando-o justamente do toque com o individual. Esse último pode ser esquecido completamente, assim como ocorre no gênero literário, ainda inaceitavelmente didático porém atestado no fato, que nos tenta, com as justificações que seguem, a denominá-lo “musical”. O geral está presente sob a forma de uma idéia, de uma disposição afetiva, ou de uma visão intelectual, e livres estão as determinações, as delimitações e as suas nuanças. Criar nesta hipóstase significa explorar todos os lados de alguns sensos gerais, podendo variar infinitamente um tema. (Pode ser que nem sempre assim acontecesse na tragédia antiga, onde, apesar de que os temas fossem limitados, algo criador e de qualquer modo um sentido vivo de atualidade e de participação direta dos espectadores, que conheciam de dentro as situações respectivas, fazia com que o ato de cultura não fosse um ato de cultura vazia, quase alexandrina, como hoje.) Não só a música, portanto, mas também a literatura ou mesmo a pintura podem permanecer na precariedade das determinações de um geral, enquanto a criação filosófica se reduz verdadeiramente, na maioria das vezes, ao desenvolvimento, o mais organizado possível, das delimitações de uma idéia geral, assim como ocorre em toda forma de barroco ou pelo menos em sua forma clássica, onde nenhuma realidade individual não vem, geralmente, fixá-lo. Ilustrei com Tolstói o aspecto extremo da atodetia na matéria literária: a recusa total do herói e do individual. De fato, precisamos invocar no final das contas especialmente as suas teorias e a sua atodetia de princípio (o ato de lucidez que faz com que ele reduza a um “diferencial” até mesmo um Napoleão), do que as situações reais de Guerra e Paz, onde alguns heróis, sejam principais, sejam mesmo secundários, conseguem obter uma realidade individual graças ao gênio artístico do autor, que quis contudo esmagar a todos. O melhor exemplo porém não pode ser dado com um autor, e ainda mais um que desmente pelo seu gênio a mensagem teórica, mas através de uma inteira orientação cultural que, com o requinte de certo modo estéril de sua maturidade, sublinhe a modalidade e o advérbio, autorizando uma encantadora modulação eterna do geral, pelas determinações. Pois as determinações, que podiam conduzir, então quando eram do individual, a uma infinidade imprópria (mais uma manifestação e mais uma), desenvolvem-se numa boa infinidade, controlada, então quando existem manifestações do geral. Elas vêm agora exprimir os diferentes lados dele, a sua politropia; e assim como não mais nos saciamos observando a beleza em diversas versões, da mesma maneira, por toda a parte do mundo dos valores e da cultura, portanto no seio das manifestações espirituais, pode aparecer uma boa infinidade, de momento em que o espírito pode totalizar-se com si não importa quanto, ele permitindo, ao contrário das realidades das áreas inferiores, acumulações infinitas. Não existe excesso de verdade, de beleza ou de bem.

Por esta linha de cultura superior e de livre variação, sob o controle contudo seguro do geral (por vezes conhecido, outra vezes desconhecido, como ocorre no plano da vida social), inscrevem-se não só a temática da necessidade que é talvez profundamente ligada ao geral, mas também a da liberdade, que parece ligada ao individual, sem ser assim até o fim. A necessidade é geralmente mal entendida, por causa das oposições rígidas em que se encontra. (Geralmente os dualismos, necessários didaticamente, falsificam a vida do espírito, que de fato não permanece congelada em oposições e dualismos.) A necessidade opunha-se ao possível, como mais pronunciadamente opunha-se ao contingente, mas de certo modo pôde opor-se também à realidade (como simples existência de fato, não de direito, como daria a necessidade) e de qualquer modo opôs-se à impossibilidade. Nada porém não mostrava melhor o seu estatuto incerto do que a impotência de a definir através de qualquer uma de suas contradições. De fato, nenhuma das oposições acima mencionadas da necessidade tem um caráter verdadeiramente contraditório (a necessidade englobando a possibilidade, como se disse, e do mesmo modo com as outras); por outro lado, uma outra modalidade, geralmente não inscrita no quadro lógico das modalidades, terá um sentido contraditório, sem que desta vez seja um sentido rígido: a liberdade. Sobre a liberdade não se fala geralmente a não ser como de uma modalidade “lógica” (são mencionadas só a necessidade, a possibilidade, a contingência e a realidade), pelo simples motivo de que o termo de liberdade parece ter sido confiscado pelo seu sentido de valor humano. Mas a liberdade é também das coisas, de certo modo, não só do homem; existem graus de liberdade nas coisas - poder-se-ia dizer, mesmo timidamente - e existe uma margem no exercício dos gerais, que não pode ser denominada senão liberdade. Pois a liberdade não é do indivíduo nem do individual, nem mesmo das determinações como tais. A assim chamada liberdade do indivíduo de atribuir-se quaisquer determinações não representa a verdadeira liberdade, mas a possibilidade vazia; e a liberdade das determinações de não se totalizarem num geral (as liberdades, no plural) merece ainda menos o nome de liberdade, como sendo somente o caos da diversidade pura. A liberdade é do geral e consta das delimitações que ele pode dar a ela ou que se lhe podem ser dadas. Só quando nos instalamos no geral somos ou podemos ser livres. O fato de que a liberdade seja do geral nos pode reconduzir ao homem. A partir de Hegel falou-se justamente que o homem não obtém a sua liberdade senão como “necessidade compreendida”. Mas o que pode significar isto, senão que, só quando conhece o seu geral - e não como simples indivíduo, quando exercita as suas determinações de maneira anárquica -, só então ele se torna livre de verdade? E o que significa ser livre sob a necessidade, sob a lei e não fora dela, senão que a própria lei pode ser modelada e que o geral não representa algo rígido, de qualquer modo não modulável, monolítico, fixador,

como na modalidade clássica da necessidade, mas é um geral suscetível a se moldar e obter variadas determinações? A liberdade significa a inflexão do geral, e no homem ela é a consciência de sua inflexão, uma vez atingido o geral. A necessidade comum fazia do geral um selo colocado sobre as determinações, e o selo podia ser, logicamente, transferido de uma determinação a outra (como no silogismo da modalidade onde a necessidade passa da premissa à conclusão, nos exemplos de Aristóteles). Sempre do ponto de vista lógico, por outro lado, a liberdade compõe um campo das determinações; e pode ser que apenas uma teoria dos campos lógicos, ao invés daquelas das formas lógicas, como geralmente se faz, pelo menos na lógica clássica, saberia pôr em jogo a modalidade da liberdade, que os lógicos até agora não tiveram necessidade de invocar porque o seu geral estava congelado, como as espécies de Linné. Só que, sendo assim, a liberdade traz alguns riscos, talvez também para a natureza, de qualquer modo para o homem. As delimitações do geral podem entrar em colisão entre si; a liberdade de uma consciência pode entrar em conflito com a de outras, e a cultura respectiva, como teatro dessas liberdades que têm a segurança do geral, mas sem mais ter a do fixamento do geral numa situação individual, pode ser o próprio teatro, espetáculo, debate. O irmão do filho pródigo sabe bem que faz o que deve em nome do geral (do espírito de família) que respeitou e dentro do qual atribuiu-se todo o tipo de liberdades verdadeiras, não ilusórias como o filho pródigo. Mas o pai deles toma a liberdade de dar outra interpretação ao mesmo geral, do espírito de família, trazendo o perdão ao filho ao invés de punição, até mesmo a comemoração do filho com o abate da vitela mais gorda. E então o irmão se põe à parte e se torna empedernido, desiludido com a sua lei na interpretação do pai. Pode ser que só agora o filho, tornado a casa e incluído de novo na ordem da lei, vá saber atribuir-se uma forma superior de liberdade. Quem sabe se não vai tornar-se artista, poeta ou pelo menos memorialista, com graça e liberdade, invocando agora e compreendendo - melhor que o outro, cuja experiência de vida fora sumária - aquela lei a que possa dar delimitações e nuanças inesperadas. Pode ser então que o filho, uma vez de volta, torne-se contemplador e comentador, ardendo de uma boa atodetia. Imaginemos que o filho pródigo torne-se biólogo e, num determinado momento, esboce, como Jacques Monod nos nossos dias, um tipo de filosofia da biologia. Ele não escreveria um trabalho como Acaso e Necessidade, pois sabe de muitos acasos e muitas necessidades, assim como de diferentes lados do geral. Falando sobre a Vida, ele levaria em consideração o fato de que esta Vida com maiúscula se delimita firmemente também ela, não sendo um simples acaso transformado em necessidade, como dizia o nosso contemporâneo. Definitivamente, para além da passagem para outra espécie no quadro de sua evolução, pode-se imaginar, mas não mesmo ver, o modo como se modula e como pratica variações sobre o mesmo tema uma só espécie. Se as diferentes variações de uma espécie parecem ter

explicações satisfatórias pelas condições externas a que a espécie fora submetida, ou por quem sabe quais circunstâncias evolutivas, pode-se igualmente imaginar uma margem de variação do próprio geral biológico, uma variação que exprima a tensão interna e o seu grau de liberdade, mesmo então quando ele próprio não quebra o seu molde a fim de passar para um outro geral. No fundo, de momento em que saiu da fixidez das espécies, é natural que saia também da fixidez de uma espécie. Imaginamos, neste sentido, que se poderia fazer o estudo da natureza (como também por vezes se fez) por unidades maiores do que os exemplares individuais, unidades “ecológicas” dizemos hoje, mas que não mais sejam indispensavelmente espécies determinadas, mas espécies ecologicamente ou de qualquer maneira moduladas. Desta vez, porém, justamente o individual é aquele que faltaria (não o geral, ou seja, a Vida, como em Monod e outros), fazendo com que o acaso se elevasse sobre ele. E é claríssimo que o acaso não mais expressaria, como no primeiro caso, um banal concurso feliz de circunstâncias externas, mas antes trairia uma aptidão interna do geral de atribuir-se sozinho aquelas variações que se podem impor no seio da realidade. Tal acaso “interior” seria um acaso aberto para a individualização. De qualquer modo não se pode denominar acaso (respectivamente necessidade) apenas o concurso de circunstâncias, como quer o pensamento trivial; acaso existe também no concurso de tendências dos processos e da intimidade das coisas. Se contudo o filho pródigo, de volta e incluído de novo na ordem do geral, não fizer a filosofia da biologia, nem da ciência em geral, mas filosofia pura, ou cultura humanista com horizonte filosófico, talvez até mesmo arte, mas consciente de si e carregada de reflexão como é a arte de hoje, então aconteceria a ele perder-se nas modulações e vicissitudes do geral até à recusa atodética de todo individual. Tendo sobrado e contemplado sozinho, com o seu desprendimento de tudo o que é real, o geral pode rarefazer-se ainda mais, tornando-se em totalidade “abstrato” e fazendo com que também uma determinada arte tenha a coragem de denominar-se abstrata. O geral então perderia, no requinte do pensamento culto, qualquer capacidade modeladora, tendo, com as realidades individuais debaixo dele, não a relação viva da lei íntima à sua incorporação (como na Idéia platônica generosamente compreendida), mas a relação da lei externa ao seu exemplar individual, um exemplar perfeitamente reproduzível e indiferente como tal, exato como nas matemáticas. O individual recaiu na estatística. Não resta dúvida de que tal desconsideração desejada, através da cultura e da lucidez, pelo individual pode conduzir a uma nova forma de inexistência (pois a inexistência também assume, como sentimento do nada, vários tipos, diríamos, seis tipos, assim como assumiam os acasos e as necessidades variados tipos). Desta vez seria uma inexistência do conhecimento e da cultura, portanto verdadeiramente uma inexistência do homem. Pode ser

que também as coisas tenham a sutileza de dar aos seus estados gerais algumas nuanças e delimitações que não objetivem nada, simples disposições, intenções e sugestões de realização, que recuem em seu éter. É certo contudo que o homem possua essa sutileza, que o conduziu à cultura. Ele partiu da necessidade de conhecimento, por um lado, da de contemplação, por outro, ambas frutuosas então quando se debruçam sobre o real humano e quando enriquecem o ser, posicionando-o melhor no mundo. Um bom primado do possível sobre o real cria então espaço no mundo do homem, enriquecendo-o com todos os seus recursos de possível do real; as coisas entram na ordem de sua generalidade, encontrando para si isotopias e variantes naturais. - Mas no lugar de um possível do real se infiltra às vezes o possível vazio e, ainda pior, o “possível impossível”, como diziam os medievais, aquele que está destinado a permanecer possibilidade e a não se tornar de modo algum e jamais realidade. E todas as delimitações do geral, mesmo também esta última, podem atrair o conhecimento e a contemplação, fazendo com que ambos deixem atrás de si a exigência do individual - aqui como realidade humana - de fixar numa situação real, ou pelo menos de objetivar artisticamente, as extraordinárias peripécias do geral. O cansaço da cultura, aquele taedium que os antigos pressentiram, exprime naquele momento demasiado pouco da experiência amarga do homem de cultura; aquilo que experimenta, nessa demência das determinações e delimitações sem âncora no individual, é a inexistência da cultura, assim como hoje alguns dentre os ocidentais sentem as coisas. É uma inexistência de certa maneira branca, diríamos; não uma inexistência negra, mas branca. Podemos nos lembrar da formidável página sobre o branco e o seu terror do romance Moby Dick, com a baleia branca, de Melville, que falava sobre “esse gigantesco véu branco, que envolve todas as coisas”. E acrescenta: “Seja talvez porque o branco é menos uma cor do que uma ausência de cor, sendo ao mesmo tempo a mistura profunda de todas elas?” Pode ser que cada doença espiritual tenha uma cor característica para ela. A atodetia de qualquer modo tem o branco. A nossa cultura tornou-se como uma página branca. Quando pensamos nas leis que chegamos a conhecer por toda a parte, com a sua riqueza jamais esperada (quem imaginaria poder conhecer as profundezas do Universo e mesmo do homem, com o seu inconsciente e subconsciente?), pode-nos vir à mente que tudo se tornou semelhante a um disco de Newton, com infindavelmente mais cores do que aquelas sete. E, apesar de tudo isso, logo que invertemos o disco a fim de obter um sentido do inteiro, acontece-nos como no caso do disco newtoniano: tudo se torna de novo branco. Da perspectiva do passado, aquilo que ocorre hoje seria catastrófico: quanto mais exploramos e mais encontramos, tanto mais o volume da nossa ignorância cresce, ao invés de diminuir. O que ganhamos em matéria de conhecimento e ação? Só o fato de que nos abrimos novos horizontes de conhecimento e ação. - Então um antigo cético poderia considerar confirmado tudo o que nos acontece com o átomo, com a célula, com a vida,

com o homem da antropologia ou da psicologia, com as línguas, com o espírito, com a história. Não o combaterá contudo ninguém, desta vez. É-nos evidente, pelo contrário, que todas as complicações surgidas, no nosso conhecimento e mesmo na nossa ação, têm uma larga parte benfazeja; pois esperamos criarnos novas complicações e impasses, com outras perspectivas de conhecimento, assim como a física e a técnica de hoje, afogadas como estão no conhecimento e na manipulação do átomo com as suas partículas, esperam contudo chegar à utilização das partículas neutrino, que são mais leves e talvez mais expliquem o que resta do que os elétrons. E mais a quem pode mandar ao ceticismo o inexplicável do universo da célula, com aquelas cerca de 100.000 substâncias presentes nela e com os seus ácidos nucléicos - ou o inexplicável do ser humano, aparentemente mais do que nunca, mais enigmático para si? Pois, é verdade, a cultura científica por um lado, a humanista por outro não mantiveram a promessa de dar respostas fechadas. Mas elas fizeram algo mais significativo: mostraram o quão poucas coisas significaria um inventário de respostas fechadas. Existe algo de negativo, existe algo de positivo nesse resultado a que chegou, sob a forma da cultura, a atodetia do homem moderno? Positivo é o fato de que a liberação da cultura de responder diante do individual (liberação, no passado, do político, da aplicação, da resposta no imediato, mesmo da modelação humana) deu extraordinárias possibilidades de investigação, que puderam levar, indiretamente, a surpreendentes embora indesejadas supraposições sobre o real. Negativo por outro lado é - para além dos riscos ao homem, à sociedade e mesmo à Terra que essas inesperadas supraposições sobre o real trazem - o fato de que a acumulação de conhecimentos, seja também em vão, não foi acompanhada de uma de sentidos. Surgem pela cultura grandes orientações gerais, idéias, técnicas de conhecimento e mesmo técnicas espirituais, que se atribuem, em sua generalidade, todo o tipo de determinações, modulam-se e refinam-se não importa quanto, ou podem não dizer nada ou deixar espaço a dizeres de nada. O homem se ergue, pelo conhecimento, à maestria científica ou artística, até elas, surpreende-as e até mesmo enriquece as delimitações no seio da cultura, sem poder tirá-las do vago de sua generalidade. Os sensos gerais benfazejos existem, a sua adaptação ao real é preparada por todos os pedagogos do mundo, mas a cultura pode muito bem permanecer e geralmente permanece efetivamente suspensa acima das consciências individuais, sendo retomada a cada geração, como as colheitas, tanto melhores, como piores. Da domesticação da animalidade do homem e até ao seu bom posicionamento metafísico no mundo, passando pela sua educação moral e a abertura para um si alargado - quanto de tudo isso obtém a cultura, que tornou-se contudo para o homem a irmã mais velha da natureza? Após alguns séculos de primado da cultura e das suas técnicas sobre o homem natural como também sobre a sociedade natural (que se equilibra com um simples sistema de crenças em seu meio, como aconteceu até o início do mundo moderno), o balanço poderia

preocupar, até mesmo às vezes poderia deixar espaço ao sentido trágico da cultura. E se este pensamento parece entretanto teórico demais ou sumário demais, então colocaremos a seguir o caso sutil porém evidente da música, na cultura moderna, daquela arte que, em sua simplicidade, educara contudo plenamente os antigos, enquanto que com a sua riqueza polifônica e com o seu requinte deixou recair em estado de natureza bruta justamente o povo que a cultivara mais e melhor. Pelo menos com a música, o trágico dos gerais, não importa o quão variados, de poder permanecer como o espírito flutuando sobre as águas e de ser assim percebidos por uma consciência de cultura, em sua nobre futilidade, dá ao homem de hoje um aviso que diz respeito àquilo que é benéfico e que poderia ser maléfico na doença espiritual da atodetia. * Comentando a música dos salmos, um medieval dizia: “Aquele de cima não ama a música em si mesma. Ele não tem necessidade de canto, como não tem necessidade de imolações; se aceita o canto… é por pena diante da fraqueza do homem” (Combarieu, vol. I, p. 196). É bom - independentemente de sentidos religiosos - que os músicos e os amantes de músicas pensem às vezes num dizer como este e se perguntem se nalgum lugar, sobretudo na música moderna, não se vêem as marcas de uma fraqueza humana. A extraordinária maestria atingida pela música, juntamente com toda a sua magia, não pode esconder uma certa precariedade, revelando-a mesmo mais perturbadoramente. A arte do belo em movimento como se disse - ao lado da poesia e da dança, enquanto a arquitetura e as artes plásticas constituem a arte do belo imóvel, suscita diante de nós belezas, seqüestrando-as depois para o insabível e o indizível. Ela nem mesmo não tem como a poesia um sentido falado, que se mantenha como sentido na mente. Traz consigo uma nobre generalidade, mas dos estados de alma, não dos estados de espírito; e, depois que a modela infindavelmente, resolve-se na irrealização da própria generalidade, sem poder ancorar-se em nenhum lugar. Falta-lhe a condensação em torno de algo individual. É uma esplêndida corporificação da precariedade ontológica característica da cultura e do humano refinado. Tem geral, tem determinações inefáveis deste, mas não tem individual. Num momento do passado, embora completamente pobre de meios, a música tinha um encontro melhor com a realidade. Enquanto era só melódica e monódica, a música possuía poderes mágicos, curava os homens, erguia ou fazia os outros crer que erguiam muralhas com ela, abrandava as feras, as almas e mesmo os deuses. De quando tornou-se polifônica, ela se concentrou sobre si, produziu extraordinárias estruturas e construções, mas não estremeceu a mais ninguém. A nossa música “que tem na origem uma genial criação da Idade Média, o contraponto” (Combarieu, p. 259) que não mais faz com ele simples

construções ornamentais ou “arquiteturas sonoras”, como no início, tornando-se um verdadeiro discurso musical, tem algo contudo das prédicas sem objeto de São Francisco aos passarinhos e aos animais. Ela transmite algo, mas não se sabe bem o quê, parece modelar as almas, mas não se sabe bem como ou se positivamente e, acompanhando depois a dança - e agora ultimamente esta dança das imagens que é o espetáculo cinematográfico -, ela recusa contudo qualquer sentido funcional e auxiliar, afirmando a sua independência absoluta por uma gratuidade aristocrática e por um perfeito rigor, quando não lhe agrada tornar-se iniciática. Mas mesmo assim também, ela é aceitável para quaisquer ouvintes, pois lhes encoraja a falta total de responsabilidade espiritual e lhes lisonjeia o espírito crítico elementar ao nível dos mais baixos julgamentos e discriminações, aqueles à base de: gosto - não gosto. Já se pôde dizer, surpreendentemente, que só a forma vulgar da música moderna, o jazz - como emanação de outro tipo de uma alma primitiva -, reencontra um senso pleno da música. Mas isso ocorre na ponta de baixo. Pode ser que também na outra ponta, onde a música hoje tende a ultrapassar os sons e as notas, tomando como seu material os ruídos reais, com a música concreta, ou ruídos e sons fabricados, com a música eletrônica, até mesmo aqui também vai ocorrer um bom reencontro de si da música, na medida em que o ouvinte dos ruídos e dos sons do vasto mundo poderia chegar um dia a algo da ordem da harmonia das esferas celestiais, sobre que falava Pitágoras. Ou, a fim de falar de modo mais plausível, pode ser que, conseguindo passar do registro das ondas sonoras àquele das ondas eletromagnéticas, a música ou a sua extensão sábia venha a dominar a comunicação entre os homens e com os objetos cósmicos, venha a poder controlar, orientar e modelar de novo verdadeiramente, desta vez num nível superior, transformando em realidade a ação mágica que o ilusório reivindicava no início. Pode ser que a música seja como a lógica matemática; esta criou em vão, até encontrar a sua aplicação a mecanismos, enquanto a música se aplicaria a organismos e ao espírito. Quem sabe em que vasto individual não será captada um dia esta generalidade irreconhecida, ainda casada com nada, da música? Até então, nos modernos, a música é como uma alma exilada de corpo e que relataria a ele, do exílio, o quão bela é a união das almas com o corpo. * Numa alma sem corpo a atodetia pode acabar, como recusa do individual, se essa recusa perde o caminho voltado ao real. Vimos, em resumo, como surge a doença espiritual em questão ainda cedo na história, com a “alma” das comunidades, uma alma que pode muito bem recusar as consciências individuais, por tanto tempo enquanto estas ainda não se alcem à consciência da pessoa. O individual que não tomou consciência de si expressa-se então efetivamente através do geral, ao invés de ser esmagado por ele, como acontecerá mais tarde. É um mundo do conhecimento ou pelo menos da crença em algo geral e, como tal, um

mundo do sacerdócio em nome deste geral, assim como é um mundo da regulamentação cerimonial adequada. Pôde-se estagnar historicamente graças a tal sacerdócio, mas hoje alguns povos asiáticos reentram na história justamente sob o seu signo também da atodetia. A doença espiritual em jogo é uma doença que, como tal, pertence à cultura, o que pode ser fermento ou, pelo contrário, a expressão da decadência refinada, tanto nos povos como também nos indivíduos. Na escala individual, a doença representa o cuidado com o geral como o interesse exclusivo por ele, indo até à educação das verdades, ou ao acompanhamento das vicissitudes do geral. Tendo em vista que os fatos gerais não estão determinados, o interesse cai sobre o possível, não sobre o real, sendo a atodetia característica de um tipo maior de pensamento filosófico, com espírito crítico e dissociativo. Ela não é menos ativa em quase todo autêntico homem de cultura, no momento da maturidade, quando o regozijo intelectual e as considerações teóricas primam sobre as ações, portanto quando o comentário da vida torna-se mais interessante que a vida, a modalidade e o advérbio mais preciosos que a substância temática e o verbo. Neste sentido, uma boa infinidade de nuanças torna-se possível, assim como um sentido pleno da liberdade, ao contrário das liberdades vãs do indivíduo a que falta um senso geral. Mas a liberdade, que não é senão do geral e conduz à inflexão dele, porta consigo riscos. Ela enriquece a compreensão do geral com uma visão mais nuançada sobre as necessidades, respectivamente sobre o acaso, e sobre a lei, invocando porém uma lei que pode admitir somente um individual estatístico, ou mesmo não objetivar em nada real, permanecendo ela nas zonas do possível. Uma inexistência do conhecimento e do regozijo é então o resultado último, e ao sentimento desta inexistência pôde experimentar o mundo contemporâneo chegando, da glorificação da cultura como um paraíso de gerais, ao senso trágico da experiência da cultura. Nada melhor que a música do mundo contemporâneo, tanto na sua criação como também na modalidade de recepção leviana e perfeitamente irresponsável, mostra melhor as marcas, sobre a alma humana, da atodetia.

VII. ACATOLIA Enquanto a atodetia era a doença típica da cultura, a acatolia (recusa do geral) é a da civilização. Sendo assim, ela caracteriza o nosso tempo - em sua versão européia, decisiva para o resto do mundo - com tanta evidência que, embora seja uma doença constitutiva do

homem como as outras, merece ser analisada no final, como se oferecesse, no espírito do nosso tempo, o traço culminante. Parece-nos muito mais fecundo - ousemos dizer - estudar a civilização sob o signo da acatolia do que como fez Spengler em O Declínio do Ocidente, como um fenômeno de cansaço e de estação final de qualquer “cultura”. Agindo assim, o pensador alemão não podia ver senão o negativo da civilização. Mas a recusa consciente do geral, como no caso das outras duas recusas (da ahoretia e da atodetia), está longe de ser um fenômeno de cansaço e de ser situado somente no passivo do homem, como declínio e início do fim. Spengler não pôde dessa maneira compreender, segundo nos parece, nem a plenitude, diríamos romântica, da revolução técnico-científica, nem as grandes exasperações da inteligência revoltada contra o geral (como em L’Homme révolté de Camus), nem as gigantescas explosões, informacionais ou demográficas, e para informacional o sentido bom, não o de “curiosidade”, como diz ele; nem a renovação esportiva, diríamos, do nosso mundo, nem o seu envio extraordinário do pensamento aos limites - o que não depende absolutamente de decadência -, conduzindo decerto até ao nível das catástrofes mais intensas que a humanidade alguma vez tenha vivido, mas também aos grandes problemas renovadores que se põem ao homem, assim como finalmente não pôde ver, na civilização como fenômeno de decadência, as suas extraordinárias promessas para o homem e para o reencontro de si, justamente pelo desmentir de si (como diria Hegel) do espírito! Vivemos sob o signo da civilização, ou seja, no seu elemento, que tornou-se o quinto depois das quatro grandes forças: terra, água, ar, fogo. Em particular, vivemos no elemento do fogo frio, da eletricidade e dos fluxos eletrônicos, que levaram a um maquinismo diferente daquele do fogo ainda quente, do primeiro maquinismo. Um passo mais para trás, e esta civilização pode ser, pelo menos materialmente, uma civilização do fluxo da energia solar, que estamos a captar (e com a fotossíntese poderíamos captá-la totalmente para o homem, para além da “natureza”), ou seja, de certo modo vivemos sob o signo da luz, assim como dizia Louis de Broglie (talvez também um pouco os Livros de Moisés) que tudo começou com a luz. Mas da luz partiu também o espírito já faz dois séculos, com o iluminismo. Por ser a razão demasiado rica e por envolver por demais o espírito, com todos os alicerces do coração, a fim de poder ser só luminosa, o homem moderno pôs em jogo a inteligência pura, a fim de poder praticar o iluminismo total. O iluminismo surgiu como contestação contra todos os gerais, sobretudo aqueles dados prontos (de Deus em primeiro lugar) e, com a sua acatolia original, dir-se-ia que não estava destinado por definição a reencontrar nenhum geral. Mas seguramente que, como parte da razão, a inteligência teria reencontrado o espírito em sua plenitude, se houvesse sido deixada em seu exercício verdadeiramente livre, assim como desejava. Sobretudo, a inteligência não podia querer, para si e para o homem, só conhecimentos, e mais alguns só positivos, mas teria acabado por buscar também sentidos. A inteligência se

rejubila, é verdade, em ceticismo, porém só num dado momento; depois se restabelece e, com a morte do espírito pisando sobre a morte, ela deve chegar à luz, de momento em que nasceu sob o signo dela. Só que a inteligência do iluminismo não se exercitou livremente até o fim. Ela foi obnubilada por outra coisa, a saber, pelo empirismo, pelo utilitarismo, pelos sucessos da técnica e por alguns grandes sucessos puramente materiais (que conduziam à sociedade de consumo), falhando, pelo menos por enquanto, em sua grande vocação, no ser histórico do homem e no ser, simplesmente. Aquele esplêndido lema iluminista “Ilumina-te e serás” (modestamente surgido mesmo na versão iluminista romena) foi capaz de se transformar num “ilumina-te, mas porás em perigo o teu ser”, que vive hoje com surpresa, diante do assombro, o mundo ocidental. Nem a acatolia iluminista, contestação de todos os gerais, podia, como toda doença espiritual, manter-se demais em seu desajuste, que tanto trazia o positivo num primeiro momento. Mas, assim como mencionamos, ela se encontrou e se casou com outra acatolia, a do mundo anglo-saxão, mais tenaz do que a dela, talvez mais crônica; e assim bastardizou-se. Na verdade, esta parte dos povos germânicos do norte, o mundo anglo-saxônico, parece efetivamente sofrer de acatolia crônica. O mundo do norte foi curioso: não produziu, nos séculos dentre 800 e 1200, quando desvelou seus mitos, uma religião grande de verdade, nem epopéias do nível daquelas gregas ou índicas, nem mesmo ou pouco mais do que quaisquer estados históricos (o estado inglês sendo antes constituído por franceses, como se disse), algo que relevamos nos Vikingues, mas fez surgir em seu seio duas vocações sem equivalente no resto do mundo: a vocação filosófica e musical nos alemães, ao lado das corporações de ofício, a empírica-prática e técnica nos ingleses, com a invenção da máquina, esta última vocação transformando finalmente a face do mundo. De qualquer modo a acatolia do mundo inglês é agressivamente formulada no “nominalismo”, ou seja, na doutrina que defende que tudo o que seja de ordem geral representa um simples nome. A inteligência iluminista não teria dito apenas isto; mas intimidou-se e nem ela falou mais. Só que, antes de ver os limites deste acatolismo, em que ambas as partes, o iluminismo europeu e o nominalismo anglo-saxão, puseram o que tinham nelas de mais vigoroso (não era possível que o pobre grande iluminista Voltaire não admirasse desmedidamente o espírito inglês), vejamos os seus grandes sucessos. O que dizer sobre o fato de que o mundo anglosaxão é um mundo da acatolia, com o que pode haver de bom e de mau nessa doença, ele nos parece tão evidente quanto o fato de que a Índia esteja sob o signo da ahoretia, o que a    N. do T.: Clara alusão a um verso da oração cristã-ortodoxa entoada por ocasião da Páscoa: “Cristo ressuscitou dos mortos / Com a morte pisando sobre a morte / E àqueles dos túmulos / Oferecendo a vida”.

faz estar permanentemente acima e abaixo da história, ou a China sob o da atodetia, que a manteve séculos inteiros na recusa à história, a fim de a precipitar agora, na história tornada amadurecida para a atodetia, ou seja, para a recusa ao individual. Os sucessos da acatolia moderna são de tal natureza que, resumindo-nos à de tipo inglês (com a versão por vezes excessiva e deformante do mundo americano), poder-se-ia dizer que, após a II Guerra Mundial, quando a Inglaterra perdeu um império, o espírito inglês por outro lado conquistou o mundo. Conquistou pelo menos o mundo ocidental e a parte da Terra que se encontra sob a sua influência. Na verdade, os valores anglo-saxões lá se impuseram - e alguns deles, como vai-se ver, exercitam uma atração também no resto, sobretudo sobre a juventude - numa medida inesperada e que poderia fazer com que os ingleses tivessem outro orgulho que não aquele externo e vitoriano (de simples traje, de morgue, self-respect exagerado, ritual profano e smoking) do passado próximo. Sem falarmos da língua inglesa (com toda a deformação americana), constituindo também ela parte do espírito, até mesmo dominante, que se impõe por toda a parte numa determinada zona do mundo, inclusive a Europa Ocidental, com a sua simplicidade ou mesmo simplismo gramatical e com a sua incrível apatia lexical, que a fez apropriar-se do tesouro de outras línguas, em particular da latino-francesa, assim como no século da pirataria os ingleses, dentre os quais alguns renomados, apropriavam-se dos tesouros espanhóis; uma língua essencialmente “masculina” e sóbria, como dizia dela o lingüista dinamarquês Jespersen, a qual justamente por isso perde qualquer profundidade do feminino, perde todo o contacto com o original e permanece condenada a não permitir absolutamente nenhum acesso ao pensamento filosófico, mas que em troca - talvez justamente com a sua precisão (pois se ocupa somente com a proposição e não também com o logos pleno) e com a sua riqueza emprestada, por outro lado, como também com os seus extraordinários sintagmas possíveis obtém no espírito a grande poesia, ao lado da linguagem científica, assim como obtém o canto, a denominação justa, o slogan, o humor e a intitulação ideal, sendo definitivamente um piado esplêndido e perfeitamente organizado do homem. Pensemos, para além da língua, nos valores da sociedade e da civilização contemporâneas, que são quase todas de origem anglo-saxã, começando por baixo, com o jogo, o esporte, a dança, o tipo de festa (o chá das 5 tornado five o’clock), passando por tecidos, vestidos, salão, comportamento social, depois pelo Parlamento, sistema de liberdades individuais, meeting, na cultura através do primado da sociedade sobre o herói, o que conduz ao jornal, à revista e de qualquer modo ao romance (surgido no século XVIII na Inglaterra), até o romance policial por um lado, a ficçãocientífica por outro, a fim de chegar ao plano da cultura, pelo primado do empirismo, indizivelmente mais operativo do que o positivismo francês, e sobretudo pelo experimento e pelo fisicismo - onde grandes físicos europeus, como Planck, Einstein, de Broglie, Bohr, Heisenberg, puderam mudar a imagem sobre o mundo, mas os ingleses com um Faraday e Maxwell mudaram o mundo - para chegar à máquina e depois à eletricidade, que são certamente criações ou descobertas do espírito anglo-saxão, também a cibernética de hoje,

ou num sentido mais vastamente cultural, para chegar ao culto da exatidão no lugar da verdade e a essa lógica matemática cuja origem anglo-saxã ninguém pode contestar e que ameaça fecundar mas também devastar, começando pela lingüística, todas as outras especialidades da cultura humanista. Pensemos, concentrando as coisas, na parte dominante do espírito anglo-saxão nas novidades técnico-científicas de hoje - que têm a sorte de mudar até mesmo a natureza humana, pela primeira vez na histórica conhecida - e então compreenderemos que a acatolia deste espírito anglo-saxão significou e significa algo no mundo. Definitivamente, se nos concentrarmos sobre as inovações técnico-científicas de hoje, que tornaram possível a acatolia européia em geral e particularmente a inglesa, é claro que tal inovação foi possível justamente porque a acatolia tornou-se num determinado momento preponderante no mundo europeu. Constatou-se que os egípcios poderiam ter chegado também eles a técnicas mais avançadas, pelo menos em matéria de navegação a vela, porém não eram suficientemente acatolizados para sair de seu quadro histórico; os gregos, por sua vez, só de acatolia não sofreram, pelo menos em seu grande momento, deixando assim o experimento e a técnica - a que estariam à altura - no lugar da jangada, do artesão comum; os indianos, que também podiam obter a técnica, sobretudo com a sua inventividade matemática, sofriam demais de ahoretia para se interessar por determinações técnicomundanas e pelo “domínio da natureza”. (Que bela é neste sentido a lenda com o rei indiano que pediu que se cobrisse com couro o mundo todo para não ferir os seus pés, no que um sábio mostrou-lhe que seria suficiente que ele pusesse couro nos pés, sob a forma de calçado - o que faz com que um sutil pensador moderno diga: é mais fácil e mais sábio adaptar o homem à natureza, do que adaptar a natureza ao homem, como quer por vezes a técnica.) E qual historiador da cultura duvida que na China, o império que queimou as próprias naves pelos séculos XV-XVI, para não ser tentado a lançar-se no largo oceano, e onde apareceram tantas invenções técnicas, poderia nascer um vasto mundo tecnológico? - Mas a Europa foi estremecida pelos calafrios da acatolia, dobrando a natureza do bom Deus com os feitos técnicos do homem. É contudo um milagre, que o pensamento filosófico deveria - ao contrário de um Heidegger e de tantos outros, às vezes até mesmo homens de ciência - olhar para a sua bondade, antes de condenar o homo-technicus, o qual, coitado, começa a condenar-se e aterrorizar-se sozinho, como acontecia com Norbert Wiener. Pois a partir de agora pode-se dizer: por que assustarmo-nos tanto com os riscos da nossa civilização, que é uma civilização do fogo frio? Não comportaria também a civilização do fogo quente riscos igualmente grandes, pelo menos na sua escala? Quando o homem descobriu o fogo, devem ter aparecido muitos sábios que diziam: qualquer criança pode atear fogo às florestas, num momento de seca, ou às cidades feitas de madeira. Pode ser que o grande incêndio de Londres - depois do qual a cidade foi finalmente sistematizada - tenha sido causado por uma criança, enquanto que

sobre Nero se diz às vezes que tenha posto fogo em Roma não tanto sob o signo de sua loucura, mas por certas concepções edílicas. Os riscos da nossa civilização são aqueles de qualquer outra civilização. Tudo isso, começando pela inovação técnico-científica, representa contudo só as conseqüências da acatolia. É bom pesquisarmos a doença em si mesma, a fim de ver depois quais são os seus limites e os seus limites para o homem, mais exatamente os limites e os riscos espirituais, para além daqueles acidentais. * Como qualquer doença do espírito, a acatolia é identificável no homem, nas suas idades e seus engajamentos, da mesma maneira como surge, numa outra escala, nas sociedades e nos povos. A recusa ao geral era um gesto provocador em Don Juan, através do qual ilustramos desde o início a acatolia; ele é, contudo, como recusa, ao mesmo tempo uma tentativa digna, por vezes sutil e positiva, outras vezes resignada do homem de ser e de fazer com que as coisas existam sem investiduras de exceção. Expressão de lucidez e de maturidade tardia, a acatolia, seja como fenômeno de cultura, seja como simples fenômeno de vida espiritual, como uma renúncia a sensos gerais incontroláveis e ao reencontro de respostas diante de sensos individuais reais de conhecimento (positivismo), surge do seio da pessoa e do todo da sociedade histórica. O que interessa agora é, para além de quaisquer sensos gerais, a aplicação das determinações e das manifestações de um modo ou de outro em situações reais. Deixadas livres, as manifestações do mundo e do homem representam também o seu caos. Têm necessidade de uma fixação e de uma verdade. A verdade das nuvens do céu é a chuva. Existe tudo o que existe agora e aqui. O último critério do ser, e portanto da ordem, sob tal perspectiva, é o individual. Se a austeridade das formulações teóricas pode ser abandonada por um momento, então poderíamos dizer que deve existir também no seio da realidade aquela situação que surge num romance policial: tudo o que acontece se organiza ao redor de uma culpa singular. Devese portanto captar o individual, deve-se pegar o culpado. Que na falta de um senso geral, esta afirmação do individual tenha nela um quê de absurdo ontológico? Mas seja não o mais sentindo, como na experiência do homem comum que se satisfaz com hic et nunc, seja proclamando-o aberto, com o humor britânico, ou com a gratuidade (André Gide) e com o absurdo contemporâneo. É o nonsense da história pura, o acontecimento histórico simplesmente, assim como tem também a natureza uma larga parte de história insignificante em si; é a condensação e a concentração cega em situações de realidade que são todas extinções dela. Poder-se-ia dizer que está aqui o não-ser, mas num certo sentido pôde ser o ser da história; e de qualquer modo foi a exatidão dela. Ernest Renan encontrou de verdade,

seguindo os seus rastros até Jerusalém, Jesus de Nazaré. (É verdade, encontrou só o de Nazaré, não também Jesus Cristo.) De fato, existiram também no passado épocas e mundos sem acesso ao geral, e então a história significava, como no caso dos fenícios, em particular como no dos cartagineses, a concentração sobre algumas realidades individuais - cidadelas ou comunidades por base de interesse - de determinações históricas carentes de um senso geral. Pode ser que os povos do comércio sejam assim; de qualquer modo os venezianos foram plenamente assim (que “idéias” tiveram eles?), assim como hoje, com o primado do econômico organizado e da boa administração, os holandeses, os suecos e os suíços tendem a se tornar assim, talvez também os ingleses, ao término de uma experiência histórica entretanto mais plena. De maneira significativa, em todos estes povos a história escrita se retransforma numa crônica, ou seja, na fixação de eventos cantonais e paroquiais, em sua nudez. É de outra maneira, no plano literário, a época das memórias, do jornal e das gravações em fita. Mas não mais surge, na falta do senso geral, a alegria do biográfico da primeira versão da história, assim como o concebia Goethe. É apenas a objetividade ou o positivismo dos processos verbais. Estes processos verbais, com material variado porém sem horizonte histórico da vida de uma sociedade, acumula-se de tal modo que, com a sua explosão informacional, parece desfazer a história escrita e constituída em obras. Lá onde falta o geral não há mais lugar, na verdade, para a história num sentido superior, assim como a falta do código jurídico leva, no caso do povo inglês, à simples prática jurídica. Talvez a Europa Ocidental inteira se prepara para entrar na experiência histórica que denominaríamos a do “particularizante”, com a sua inclinação sobre o individual. Mas a mesma inclinação sobre o individual sem interesse pelo geral, acima descrita como experiência histórica, pode ser encontrada na consciência do homem em geral. O homem não se demora para sempre no regozijo das delimitações que pode produzir ele ou que podem ter os sensos gerais. Existe conhecimento neste regozijo, não existindo porém também sabedoria prática de vida, mas antes uma forma de evasão. Vem a idade da lucidez, quando o homem se pergunta o que deixa ao mundo e o que tem valor ou não, neste mundo, de modo algum sobre os mundos possíveis. Agora deixa de lado os sensos gerais, procurando ver quanto significa cada coisa, respectivamente quanta riqueza de determinações poder-se-ia condensar em cada situação individual. Goethe escreve Dichtung und Wahrheit e, mais tarde, mas na mesma idade do homem, pode dizer que, debruçando-se sobre a vida passada, tudo o que se sente é: admiração. Sabedoria de vida significa consentimento à vida. Depois que se quer mudar tudo, de fato ou pelo menos em pensamento (que opera sobre os gerais), agora se aceita o mundo assim como é. Pois em algum lugar ele também é bom, de outra maneira não existiria, não se falaria sobre ele e não se sustentaria. Quando um pensador como Hegel saltou diretamente, com a sua

extraordinária maturidade última, nessa idade de término do homem, ele então deu razão a todas as coisas, dizendo: “tudo o que é real é racional”. Mas ele tinha um senso de vasta e superior generalidade para o racional, enquanto o homem da idade de hoje o diz apenas com a cegueira da sabedoria frustra. Tudo está em ordem agora. Alegremo-nos em ver os fatos carregados de toda a admiração do mundo, sem mais buscarmos neles os sensos gerais. Assim como falamos das nossas vidas, das nossas lembranças e dos nossos acontecimentos, da mesma maneira se organizam também as coisas, cuja toda tentativa de legalização geral lhes mostraria um lado inadequado ou mesmo excessivo e absurdo. “Wie es auch sei das Leben, es ist gut”, dizia Goethe em nome de todos aqueles que chegaram à idade da lucidez acatólica. Em tal idade dizemos a nós mesmos que somos demasiado injustos com a vida imediata. Ao longo da vida inteira mais amamos nela algo “ideal” do que a sua realidade, amávamos uma espécie de geral conhecido ou ignoto, que traria com ela a realidade. Mas a piedade diante de deuses é geralmente a impiedade diante de homens e coisas. Em anos tardios, depois que apreendemos tantas formas de piedade, uma sabedoria ou uma certa resignação nos pode fazer reencontrar com piedade o imediato. Não vimos a tempo nem a beleza, nem a bondade. Existe mais verdade no mundo em nosso derredor do que na tua filosofia, Horácio diríamos agora, tomados por uma acatolia sagrada, junto com Shakespeare. E então, deixamos os gerais no céu deles, e amamos toda a riqueza de determinações acumuladas em seres humanos e realidades particulares. À alegria de fazer justiça ao real imediato corresponde plenamente uma das modalidades de criação do homem como artista, uma modalidade que a técnica moderna veio favorecer ainda mais. A acatolia encontrou, com o homem moderno, os seus próprios meios e a sua própria arte. Na verdade, criar pode significar não só obter a projeção do individual em algo geral, mas, para além de qualquer geral, a condensação de um mundo de manifestações ou mesmo fantasmas em destinos e corporificações individuais, que os fixe. Devido ao fato de a visão ser o principal sentido fixador (todos os outros sentidos tendo como se uma tendência para o difuso) e aquele que de verdade parece definir no homem a virtude de delinear tudo, da idéia (ligada também ela à visão para os gregos) até à imagem real, este gênero de criação será o do visual. Tudo se pode traduzir em imagem, como se o ato criador constasse de pôr ou transpor um mundo numa tela. Surgem desta maneira, num mundo da acatolia, as novas artes da tela, em primeiro lugar a cinematografia, com sua veleidade de fixar no individual tudo, até a imaginação mais livre, mas também com a sua miséria de não ter o equilíbrio artístico último - que é também ontológico - dos sensos gerais. Pois por que se fixariam essas determinações, livres como são de qualquer senso geral, antes acima de algumas realidades individuais do que da de outros? É como uma forma de

posicionamento não posicionado, este posicionamento da fixação em simples imagens. As manifestações que deveriam ser fixadas acabam de fato na instabilidade dos casos particulares (como no romance moderno), que devem proliferar infinitamente, a fim de responder, dessa maneira, com algo da ordem da quantidade à carência fatal do sentido. Lá, onde não existe nem mesmo o eco do senso geral, tudo sucumbe à infinidade estúpida dos casos particulares. A alegria de fazer justiça ao real se transforma - como também as nossas vidas vazias de sentido - no sentimento da nação. No imediato contudo não parecia existir nada. “Cultivemos o jardim”, diz sempre um Voltaire, reencontrando a alegria do particular e do imergir-se nele. A cada vez o positivismo - da mesma maneira estupidamente chamado positivismo, sendo a eletricidade “negativa”, que de fato é positiva - tinha, pelo menos num primeiro momento, a ilusão de uma boa conversão na direção do seu individual e idiomático. Mas é como se nos interessássemos pelos “dialetos” do ser, sem nos ater também às suas “línguas”. Um tipo de logos geral se demonstra contudo ativo, com a abertura para o universal, em todas as línguas do planeta, assim como nos “códigos” do ser. Mas a sua recusa nos faz mergulhar nos fechamentos que apenas fecham e nas limitações que apenas limitam. Pode ser que todas as coisas do mundo façam assim, num determinado momento seu, cansadas da tensão do geral que solicitara demais delas. Enterram-se nelas mesmas entrando numa fatal implosão. Com esse mundo de estrelas mortas, onde nenhuma forma de geral não é mais ativa, o nada de extinção cria um lugar para si no seio do real; uma vasta vacuidade, ou a experiência frustra do nada. Quando não está em jogo justamente o sentimento do nada, permanece aquele de uma contingência universal para as nossas realidades e vidas. E o contingente não representa de maneira alguma uma expressão do positivo (no máximo, uma expressão “positivista”), assim como é o possível, com o qual ele é por demais confundido. O contingente demonstra ser, de certo modo, o exato contrário do possível, que é sempre suscetível a se propor novas determinações, enquanto o contingente fecha, concentrando as determinações sobre uma situação individual. Como possibilidade acontecida, o contingente não constituirá uma coisa só com o acontecimento possível: a contingência de uma situação representa justamente a extinção de suas possibilidades. Tudo foi acaso. Existe, nesta linha, ainda um tipo de acaso diferente daquele que invocou Jacques Monod e que significa a instituição casual de uma ordem que depois se tornava necessidade. Podernos-íamos assim perguntar se não cabe o esquecimento do geral também no seio da natureza, ou se nisso não se inscreve uma liberdade diante do geral, uma acatolia, que a conduza à sua própria dissolução como ordem natural. Os próprios biólogos se perguntaram se as espécies têm ou não realidade bem definida, e os médicos, se não se deveria talvez falar mais de doentes do que de doenças, respectivamente de exemplares individuais e não de classes. O acaso mostraria então um novo lado, ligando-se desta vez aos gerais; constaria da

sua aparição possível de um instante. Uma natureza que transgredisse permanentemente tudo o que captasse ou mantivesse forma de generalidade, derrubando assim todo molde e concentrando-se somente sobre os seus exemplares irreproduzíveis, poderia ser concebida pelo menos como uma hipótese de trabalho. No fundo, se alargarmos a “natureza” até o homem, poder-se-ia dizer que hoje chegou-se justamente a uma tal concentração de tudo o que seja natureza sobre a coletividade humana (ou seja, o homem retomando em si toda a natureza) compreendida como um vasto individual no seio da vida, enquanto a natureza não mais se importa com o resto, permitindo-se extinguir uma após a outra espécies inteiras que pareciam indispensáveis ao seu equilíbrio. A própria natureza terminaria, então, naquilo que parecia, segundo um Schopenhauer, ser privilégio e sinal de vigor para o homem: a capacidade de suicidar-se. Fato é que através do homem a natureza se esvazia, assim como o homem pode se esvaziar sozinho através de alguns excessos da civilização, trazidos justamente pela acatolia. A própria natureza “civilizou-se”, alçando-se até ao homem e entregando-se a ele. Sair do estado de selva, deixando que a criação mais honrosa que ela pôde instituir, o homem, disponha de si mesma. E com a sua acatolia - que não é mais metafórica, assim como pode ser considerada na natureza - o homem dispõe efetivamente disso. A coisa é surpreendente, num primeiro momento. Se a recusa ao geral deve nos fazer voltar à realidade imediata, à piedade diante dela e nos fazer ocupar de nosso jardim, então haveria necessidade de que o homem acatolizado, por exemplo aquele posterior ao Renascimento, se descobrisse rousseauista na natureza, com toda a natureza, de qualquer modo não contra ela. Poder-se-ia até mesmo dizer, à primeira vista, que o homem moderno não seria de modo algum um acatólico, de momento em que buscou na natureza as suas leis científicas, portanto, o geral. - Mas aqui vamos responder: ele não invocou mais a natureza como um geral independente de si e não seguiu as leis deste inteiro, mas seguiu as leis livres, que são tantas quantos são os sistemas locais de relações; e as leis como relações (a idéia de função, que substituiu aquelas idéias de substância da Antigüidade, como dizia Cassirer em Substanzbegriff und Funktionsbegriff) não são mais verdadeiros gerais concretos, mas gerais abstratos, um tipo de determinações que se aplicam sobre o indivíduo. As relações têm direito “geral” apenas naquele abstrato de suas formas, matematicamente simbolizável. As matemáticas (juntamente com o experimento, ou seja, a natureza distorcida) são aquelas que decidiram não a ontologia, mas a problemática do ser no mundo ocidental. De tal modo que, no final das contas, o que restava da natureza e da piedade diante de seu individual? Restava tão pouca piedade que, como numa perfeita acatolia, onde sobrevivem somente as determinações e o individual, o mundo moderno teve de inventar o seu Universo de individuais, mais exatamente o técnico, que viesse a dobrar o Universo dos individuais

naturais. Não só que o universo da técnica não reclame para si o ser (como poderiam fazer aquelas realidades absolutas dos sistemas de crença, míticas ou religiosas, do passado), mas, ainda que pertença também ele no fundo a uma forma de demiurgia, consolida-se em ciências que, como as matemáticas, a física matemática, a lógica matemática, se recusam abertamente a quaisquer problemáticas do ser, tratando a realidade no máximo como uma “matéria”. E, na verdade, como poderiam reclamar algumas determinações vazias (uma asa a mais que se oferece com um avião mais rápido, ou um dispositivo a mais, como uma máquina de calcular qualquer coisa porém nada determinado) um estatuto de ser? O universo a que a civilização técnica conduziu é num primeiro momento - se aparece numa sociedade que não tem um bom posicionamento nas idéias - exatamente como aquele universo do início sobre o qual falava um pré-socrático, em que mãos, pés, troncos de homem e fragmentos de coisas flutuavam caóticos no elemento universal. O que tem o homem a fazer em tal mundo que não “vai” mais, um mundo que não mais tem nele a verdade, seja também pressuposta, do geral, é claro: ele tem de encontrar a segurança, através da exatidão. Agora a exatidão substitui a verdade. A segurança da parte cura a insegurança do inteiro. Assim como característico para as ciências contemporâneas dominantes é o fato de que não põem mais em jogo axiomas mas simples postulados, ou de que os seus axiomas são postulados bem escolhidos, que conduzem a deduções bem asseguradas, característico é igualmente o fato de que a exatidão, a precisão, a necessidade de dizer que isto é isto e não é senão isto se impõem. Dissemos e fizemos tudo o que tinha de ser dito e feito. É o mundo da filosofia analítica, da lógica matemática, da cibernética, assim como é o mundo do romance policial ou do engenheirismo para si mesmo, econômico e social, o mundo da sociedade de consumo. Desta vez se pode ver claro, em especial no indivíduo, o que é o mundo da acatolia em si mesma, com as suas manifestações como se clínicas. Os desajustes do acatólico tornam-se tanto quanto virtudes: a ordem no mundo imediato (no quarto, nas idéias, na fala, na sociedade), a precisão em tudo o que se faz, o self-control, a dignidade diante de outros e diante de si, a civilização, a polidez. Que extraordinária é essa página do pensamento chinês, onde aparece a “queda” sob a qual vive o acatólico. “Quem perde o Tao permanece com a virtude; quem perde a virtude permanece com o amor aos homens; quem perde o amor aos homens permanece com a justiça; quem perde a justiça permanece com a polidez.” Nem falemos de Tao, sobre qualquer geral último, no homem da acatolia, de momento em que justamente isso ele repudia; mas nem a virtude plena lhe resta, pois também isso deveria consolidar-se numa concepção ética. Ele ainda poderia ter amor aos homens, mas ele se sustenta numa ordem, ainda geral, do coração, num ordo amoris, e o acatólico não aceita o geral nem mesmo sob a forma de uma simples ordem que preexista. Então que lhe reste a justiça? Mas - assim como se vê no direito inglês - ela não pode constituir para o acatólico

mais do que uma prática boa e consagrada pela tradição, uma justiça consuetudinária, baseando-se assim em casos ao invés de princípios. O que fazer então para que o mundo, respectivamente a sociedade, vá? Que se invoque o respeito ao homem pelo homem, a dignidade pessoal e interpessoal, o fair play, a civilização, a polidez. E com simples “polidez” a sociedade é contudo possível, recebendo mesmo por vezes uma inesperada e esplêndida consistência! Até mesmo no malfeitor deve-se despertar o sentimento do respeito e do fair play: os policiais ingleses não portam armas consigo, para que nem o bandido faça uso de armas, se mantiver nele um resto de humano. Uma das mais admiráveis “sociedades” da história pôde surgir com base na simples polidez, ativa nas consciências individuais tanto quanto átomos da sociedade. Pois a sociedade é aqui apenas a soma dos indivíduos, nada pertencendo ao próprio inteiro. Tal indivíduo dotado de self-respect e com respeito pelos outros torna-se no final das contas, na experiência consumada daquela família exemplar da Bíblia, o irmão do filho pródigo. Desiludido pelo fato de que a sua lei não era também a lei do pai, ou de que o pai criador da lei derrota aos seus olhos a lei própria, o irmão mantém a submissão, mantém a consciência do dever, mas agora esquece-se voluntariamente da lei. Torna-se acatólico, ele, aquele que experimentara mais do que ninguém o geral. Não se interessa mais pela verdade, mas apenas pela exatidão. Mas pode fazê-lo até ao excesso. Assim vai acontecer com o pietismo (essa seita de irmãos do filho pródigo) no plano da experiência religiosa; assim vai fazer o positivismo no plano do conhecimento (com esses positivistas, uma espécie de irmãos também eles diante dos filhos pródigos da sede pelo conhecimento científico e filosófico). Agora entra em jogo a submissão no objeto e no limite (o positivismo fala claramente sobre os limites do conhecimento), no plano político a liberdade com a sua responsabilidade, ou antes as liberdades, com a necessidade de conduzir a um estado entendido como uma “coexistência das liberdades”; no plano econômico surge o liberalismo (laissez faire, laissez passer), mas numa medida em que não conduza à anarquia; no plano moral e social, uma espécie de respeito mútuo como “deixa-me deixar-te”, ou seja, deixar-te também eu em paz; no plano da cultura, o primado da exatidão e a invocação da suprema instância de controle, que quer verificar até mesmo a exatidão das matemáticas, sobretudo a lógica matemática. O irmão do filho pródigo, que começara lendo Cícero, acaba por fazer lógica matemática. Quanto à ação, ela é pragmática e de modo algum ligada a princípios ou ideologias: wait and see. Os princípios não podem produzir nada bom, a lei não significa senão leis, assim como a liberdade não significa senão liberdades individuais. “Deus morreu”. Resta-nos ser civilizados e exatos. Não é senão natural que um tal homem civilizado e da exatidão surja no mundo anglo-saxão (inclusive os Estados Unidos), assim como o relevamos (resultando que os seus criadores surjam da margem dos não-conformistas). Mas podemos pressenti-lo, se não mesmo identificá-lo, em muitas outras zonas da Europa de hoje e sobretudo o identificamos no

mundo espanhol, onde parece ter um nobre passado. Quando os seus exemplares escolhidos não se encontram sob a genialidade de um outro desajuste, como Don Juan ou Dom Quixote, o homem superior do vasto mundo espanhol se encontra antes sob o desajuste de um máximo de pessoal e orgulhosa dignidade. Em particular no homem de cultura, a dignidade significa a segurança última do pensamento. Ardendo de acatolia também ele, debruçado então com um esplêndido esmero sobre o mundo daquela, ele dá contas dela com aquela precisão do pensamento que não mais deixa espaço, com a sua radiografia exata, à idéia. Encontramos um exemplar deste tipo em Martinez Estrada (é suficiente ver-lhe o rosto sobre as capas dos livros para perceber o seu complexo de segurança), com a sua célebre Radiografia dos Pampas, um livro cheio de pensamentos encantadores (sobre o gaúcho, sobre o tango, sobre a faca, e tantas outras coisas), mas um livro onde não aparece nenhuma idéia, se devemos denominar a idéia como o pensamento voltado sobre o pensamento. Aqui as determinações se concentram na verdade sobre uma situação ou realidade individual, e assim fazem sem resto; mas justamente por isso não mais podem - e nem querem - conduzir à idéia. Aqueles que não invocam o geral recusam a idéia. Basta-lhes a exatidão. Num mundo da exatidão, as artes podem sofrer não importa quantas inovações e contorsões, no sentido da arte abstrata e do “novo” romance, espectroscópico, no sentido da música eletrônica, ou da literatura de processo verbal; elas todas são porém nalgum lugar incômodas - pelo menos pelas suas criações passadas - para o homem acatólico, excetuando o cinematógrafo. É verdade, ainda cabe espaço, fora a arte da tela e do espectral ou do espectroscópico, para uma espécie de arte do diagnóstico exato; não apenas a arte do “isto é isto”, do tipo daquela da Radiografia dos Pampas, mas também do tipo do: isto não é senão isto. Neste último caso chegamos, pela linha da acatolia clássica, ao cômico (por vezes a algo mais profundo do que o cômico), enquanto a acatolia de hoje chega ao nonsense e ao absurdo. Pois tudo isso é um tipo de diagnóstico dos defeitos do mundo. O autor cômico, com a sua acatolia original, com o seu modo, ou seja, de “não ter nada santo”, como Aristófanes, Molière ou o nosso Caragiale, denunciou sempre os defeitos e a estupidez do mundo, e ainda talvez demasiado freqüente pagou com o próprio gênio e inteligência a denúncia da estupidez dos outros. Agindo assim, o gênero cômico não pôde produzir muito - nem mesmo muitos criadores - e, não importa o quão alto coloquemos Molière por exemplo, teremos de admitir que a denúncia dos defeitos dos outros é estreita e infecunda, se não acaba por agarrar também o espectador, fazendo-o apenas rir do outro. Nesse sentido, mais profundo que o cômico, na    N. do T.: Ion Luca Caragiale (1852-1912). Escritor romeno, profundo observador das realidades sociais autóctones. Criador de tipos memoráveis. Ergueu o teatro romeno ao nível europeu com as suas comédias, em que satiriza os costumes políticos e familiares, utilizando com extraordinário efeito o cômico de situações e da linguagem, a expressão estereotipada definidora e o humor, inclusive o absurdo.

linha da acatolia, parece-nos o sentimento profundo do ridículo, por exemplo aquele posto em jogo por um Cervantes, quem, fazendo-nos rir de Dom Quixote com a sua horetite aguda, faz-nos ao mesmo tempo prestar atenção, talvez sem querer, a que não se trata apenas do defeito daquele mas também do nosso. E sempre num melhor posicionamento do que o cômico clássico se encontram as criações, desta vez sobretudo contemporâneas, com base no nonsense e absurdo: elas denunciam não o absurdo ou a irrisão do outro, mas aquilo que pode dizer respeito aos espectadores e leitores, respectivamente ao homem como tal. Com um Voltaire as coisas permaneciam ainda na desmistificação e na sátira, não importa quão feliz; com um (hoje tão modesto) Anatole France, as coisas se reduziam ao exercício da inteligência, erudita e graciosa, de dizer que “isto não é senão isto”. Mas com o nonsense e o absurdo de um Ionesco pode-se obter ou obteve-se algo mais profundo: a acatolia chega ao seu limite, denunciando justamente a fronteira a que ela leva, com a recusa ao geral, sobretudo na falta de sentido e absurdo. E isto diz respeito a todos, pois em cada um de nós existe uma gota de acatolia. E, contudo, assim como a música nos parecia característica para a atodetia, agora não os expedientes das artes tradicionais mas a arte nova da cinematografia nos parecerá dar a medida e a cor (o cinzento) da acatolia. Nascida sob o signo da precariedade (ontológica, no final das contas) de não se ter desprendido de algo geral, como se desprenderam todas as outras artes do geral da espiritualidade religiosa ou largamente humana, a cinematografia encontrou imediatamente uma extraordinária função artística, sem poder ter se tornado também uma verdadeira arte. De fato, ela realizou repentinamente duas funções: a de reencontrar o sentido da arte popular - assim como se constatou que antes da Renascença, até mesmo na Antigüidade, o teatro era popular, ignorando a diferença entre as classes - e a função de servir, por outro lado, como experimento artístico, ao criador que não mais pode permanecer nas artes tradicionais. Em ambos os casos, a cinematografia responde às necessidades de um mundo em que predomina a acatolia. “Iluminadas” como são, as massas não mais buscam hoje o ensinamento e os sentidos, recusando instintivamente o geral, o qual lhes era oferecido antes pelas grandes obras e livros de ensinamento da humanidade, mas elas reclamam, na falta dos sensos gerais que comandem a arte, a simples “evasão” pelo espetáculo; e é certo que, nesta linha e graças à acatolia sempre mais acentuada da nossa civilização técnica, a cinematografia vai manter a sua popularidade. Mas a partir de agora essa semi-arte está generosamente à disposição do criador para experimentos artísticos, lá onde a riqueza dos pensamentos e das imagens vem constantemente preencher o vazio deixado pela perda de “idéia”. Pode ser que na cinematografia se façam num futuro próximo as tentativas mais interessantes no sentido de dar um estatuto artístico às exigências espirituais impostas pela acatolia à civilização técnico-científica. E quem sabe se, através do mergulho em seu individual, e também no homem terreno, o espírito ocidental não vai contudo reencontrar, mesmo que de ponta-cabeça, o céu?

Até agora, vive-se num mundo em que o mais difundido agente artístico, o cinematógrafo, não produz arte; os mais numerosos objetos e realidades, as criações técnicas, não têm investidura ontológica, e os conhecimentos locais mais seguros e que não mais podem faltar ao homem moderno, os conhecimentos históricos e sociais, não têm leis. Algo vacila no mundo da acatolia, com toda a sua exatidão. Resta ao homem, sobretudo ao homem europeu, reencontrar, através da contribuição de outros mundos - orientais, sul-americanos, ou talvez ainda infra-europeus -, a própria riqueza espiritual, através daquelas outras doenças, a fim de reobter dessa maneira, para além do espírito da exatidão, alguns caminhos na direção da verdade, e a fim de reencontrar-se de verdade como homem do espírito, e não como seu laboratorista. * E desta vez é simples resumirmos os aspectos principais da doença em jogo. Doença da civilização, a acatolia invocou, em sua versão européia, a inteligência pura e o iluminismo, ao mesmo tempo com a inteligência prática, e com o empirismo e o nominalismo anglo-saxão, conduzindo a um inesperado mundo da técnica e do maquinismo, mas também, num nível superior, a um inteiro sistema de valores, anglo-saxões, que se impuseram ao mundo moderno, em grande parte. É verdade que, no fundo, essa experiência espiritual é aquela velha experiência dos povos do negócio, assim como, com a sua inclinação sobre o real, é o velho início de toda sabedoria no imediato; é ainda verdade que arrisca um sentimento do nada, através do mergulho na pluralidade cega dos casos individuais, dos processos verbais e da estatística (que significativo e triste o elogio trazido por Balzac, com o qual concorreu o estado civil, ou seja, a estatística, enquanto os heróis antigos concorriam com os deuses!). Mas no novo caos deixado pela recusa ao geral surgiu a necessidade de segurança, sob a forma da exatidão, produzindo esplêndidos sucessos científicos locais e oferecendo uma miraculosa proeminência, e por que não também inovadora para o espírito, às matemáticas, em todo caso à lógica matemática, assim como no plano humano e social a mesma acatolia nova conduz à dignidade pessoal e à consolidação da sociedade, através do simples liame do respeito por si e pelos outros. As artes, naturalmente, podem sofrer num tal mundo da acatolia, pois normalmente elas se alimentam da substância do geral. Mas as artes da tela e em primeiro lugar a cinematografia permanecem mantendo aberto, com a toda a sua miséria aparente e talvez apenas inicial, o Livro do mundo, na história do espírito, assim como a revolução técnico-científica reabriu o Livro do homem como ser psicossomático. A sexta doença poderia ser contudo a sexta promessa da Terra, sobre a qual as precariedades do ser exercitam, na versão do homem, a sua magia.

VIII. O EQUILÍBRIO DO TEMPO E O ESPÍRITO ROMENO Não tanto o cuidado e o medo do início Do que o cuidado e o perigo do final… (de um velho escrito)

Das doenças ônticas que se tornaram doenças do espírito, assim como dos seus sintomas e manifestações, encontrados por toda a parte, podemos agora passar simplesmente para o espírito romeno, com os seus não-posicionamentos, posicionamentos e pronúncias. Todas as doenças do espírito foram reativadas, graças à transformação estimulada e portanto planetária em que a história entrou. Mesmo se nalgumas partes do mundo, ainda poderosamente influentes, assim como é o mundo do Ocidente europeu e sobretudo o americano, nos pareceu predominante uma só doença, em particular a acatolia, entretanto a conjuntura histórica em que nos encontramos, o equilíbrio do tempo, como poderíamos chamar conforme nossa velha língua, põe em jogo todas as doenças juntas. E aliás o homem europeu foi e é assolado por todas elas, talvez mais do que o homem de outros lugares da Terra, e como participante do destino da Europa, também o espírito romeno as experimentará. Com tudo isso prevalecem nele algumas doenças, e justamente por isso poderia ser útil - não só para o conhecimento de si, mas também para a eventual contribuição que poderíamos trazer, com um plus de afirmação no mundo, em suas margens - pormos bem à vista, o mais que pudermos, a nossa natureza mais especial. Relembremos apenas, antes de fazer a confrontação do nosso espírito com o humano da terra, animado pelas doenças constitutivas como é, o quanto de positivo se manifesta nesses inevitáveis não-posicionamentos do homem. Nós as deduzimos das precariedades do ser, ou seja, “de cima”, de maneira alguma de modo em que se faz geralmente, sobretudo hoje (com o freudismo, por exemplo), de algum lugar dos subterrâneos do homem, de maneira reducionista. Mas se se lamentasse e se buscasse imprescindivelmente o equilíbrio do ser, no lugar de suas precariedades, teríamos o direito de nos perguntar: seria possível o equilíbrio do ser, e, se fosse, seria ele verdadeiramente criador? O que é que vem dar medida ao homem: o ser, atingido e bem equilibrado, ou a criação? Digamos contudo mais uma vez que não se pode escolher entre a verdade e a busca por ela, entre o ser e o seu devir, mas que a verdade é por si mesma uma busca contínua, assim como

o ser é para o homem um impulso para a modelação e a criatividade, uma tal criatividade sendo a medida plena e de qualquer modo a medida histórica do homem. Mesmo se nas zonas do espírito se pôde obter, por vezes, algo da ordem do ser realizado, foi apenas no plano individual e com uma reconciliação de si que, como no mundo indiano, foi anistórica. Por outro lado, as doenças do espírito nos pareceram não só constitucionais do homem histórico mas também benéficas (elas sendo verdadeiramente “doenças” apenas em formas agressivas ou forçadas, como no caso do faquir, na ahoretia, ou nos excessos europeus ocidentais de hoje); e a partir de agora podemos dizer que, na medida em que tudo no homem deve existir antes para o ser, do que no ser - como não parece estar o homem senão graças a uma ilusão ou exceção -, significa que um caminho, um Tao, uma boa abertura “para”, que exprimiria justamente o nosso vocábulo, “para”, confere a medida correta ou pelo menos a boa denominação da vida espiritual, exprimindo ao mesmo tempo o sentido positivo e os destinos criadores de tudo o que nos pareceu adequado denominar doença. Neste sentido, o “adoentamento” do espírito romeno não deverá de modo algum ser compreendido como um invalidamento seu, como nem foi o caso para os outros mundos; vamos até mesmo dizer no final que, de certo modo, com o nosso “existir para”, alguém poderia enxergar que trazemos e propomos a vastos mundos uma sétima doença, que seja também a nossa contribuição frutuosa para o equilíbrio do tempo. Tendo assim parte de todas as doenças do espírito, o que significa todas as grandes orientações do homem, o espírito romeno parece mais animado por umas e mais sensibilizado por outras, com outras palavras, põe acentos diferentes sobre as orientações humanas. Comecemos com a última doença descrita, a acatolia. Sem repugná-lo ou sem vê-lo em posição de inferioridade em relação às conquistas da civilização a que conduziu a acatolia moderna - uma civilização que seguimos permanentemente com a nossa inventividade, no possível se não mesmo sempre no real -, o espírito romeno não é contudo predisposto a outras formas da doença espiritual respectiva. Ele aceita plenamente os seus resultados, mas não adere voluntariamente ao espírito em que alguns deles foram obtidos, em particular não adere à recusa a qualquer senso geral para a civilização. E de outro modo há de se perguntar se a recusa do geral, e sobretudo a persistência nessa recusa, como parece compreender uma boa parte do mundo ocidental, não arrisca transformar num fracasso espiritual aquilo que se obteve. No fundo, os perigos desta acatolia são revelados justamente por agentes da civilização do tipo acatólico. O romeno diz de alguém: “Não tem nada de santo nele.” Qualquer um sente que não se trata de um sentido religioso do dizer, mesmo se no início ele poderia ser assim interpretado. Dizendo assim, qualquer um pensa na piedade, na verdade ou na medida - aquela muito invocada medida do nosso espírito - que devemos pôr em tudo o que fazemos. Mas deste modo invocamos, mesmo sem claramente reconhecê-lo, algo de ordem mais geral, uma

compreensão e uma finalidade que deve possuir toda coisa feita pelo homem e o próprio homem, com a vida que dá a si mesmo. Sobre Don Juan, o acatólico que consideramos representativo para uma forma da doença, podemos simplesmente dizer que “não tem nada de santo”, e com isso dizemos a nosso modo o último pensamento sobre ele. Por seu lado, as criações excessivas da técnica nova, tantos produtos excedentes surgidos numa sociedade de consumo, até mesmo a própria sociedade de consumo no seu todo, podem cair ao nosso julgamento: ela mesma se denomina sociedade de consumo (como se uma sociedade, uma comunidade humana, pudesse ser só isso!) justamente por reconhecer vagamente que “não tem nada de santo”, assim como os seus bens são por vezes carentes também eles de qualquer justificação, não dependendo de uma necessidade real, que lhes dê o caráter de coisa “santa” na vida do homem e da sociedade. Poderíamos tomar então cada característica, dentre aquelas descritas na acatolia - como poderíamos por outro lado fazer com todas as outras doenças - e dessa maneira obteríamos, através de uma confrontação mais rigorosa, alguns traços caracterizadores do espírito romeno. Porém duvidamos ter obtido, com a tabela das doenças e com a sua apresentação clínica, uma base científica tão rigorosa que nos permita evidenciar, no espírito de exatidão, o que precisamente caracteriza e o que não pode caracterizar até o fim o espírito romeno. E por outro lado, pareceu-nos que a inclinação para a exatidão e o diagnóstico seguro seja ela mesma um sintoma da acatolia, favorável nalgums planos porém danoso, talvez, quando tende a tomar o lugar da abertura para a verdade. Interessa-nos a verdade sobre nós mesmos, e por isso o confronto que vamos empreender será algo mais livre, satisfazendo-se em constituir uma simples sugestão de verdade. O que merece ser retido ainda desse primeiro caso de acatolia - que não parece caracterizar plenamente o espírito romeno - é o fato de que a respectiva doença espiritual nos acossa contudo também a nós, como romenos, sob diversas formas. Se no cômico, como gênero literário, vimos uma expressão da acatolia, então Caragiale, com tudo o que existe nele de representativo para o espírito romeno, deve ser invocado. Não há dúvida de que, para além do gênero literário que preferencialmente adotou, Caragiale ele próprio foi assolado pela acatolia: pelo menos às vezes, ele parecia não ter nada de santo nele. Sem colocar aqui em discussão o gênero literário e os seus limites espirituais na arte - o que mencionamos acima, mostrando que o sentimento profundo do ridículo ou mesmo o absurdo contemporâneo poderiam ser considerados mais afirmativamente espirituais do que o cômico - como também sem discutir a natureza humana de Caragiale, sobre cuja presença e função na nossa cultura já se pôde dizer algumas coisas más e outras muito boas, vamos ter de admitir que todos nós somos por vezes acossados por algo acatólico, não apenas sob a forma, contudo espiritualmente fecunda quando não passa de um degrau, do ceticismo de pensar, mas também sob uma forma, mais espumosa e referindo-se ao exercício soberano da inteligência, mais exatamente a zombaria. Zombou-se no passado de demasiadas coisas, situações e

destinos, em nossa vida pública, se não houvesse sido senão a Revolução de “quarenta e oito4“. Do positivo da acatolia, temos o bom exercício da inteligência e a alegria do iluminismo; por outro lado, no plano econômico, faltaram-nos de certo modo as qualidades (por sorte também os defeitos) dos povos do comércio, assim como no plano moral nos faltou demasiado no passado, por vezes, o self-respect, o sentimento da responsabilidade imediata - mesmo se tivemos o sentimento da responsabilidade última -, o senso da exatidão no comportamento, do esmero no que produzimos e fazemos. No plano espiritual do futuro, resta ver se saberemos nos deixar tomar bem pelo elã da revolução técnico-científica, que está prestes a mudar o mundo. Estamos assim imunes àquilo que pode ser mau na acatolia, mas não completamente desprendidos de algumas manifestações, mais ou menos medíocres, dela. Não estando diretamente tomados pelo seu fervor e sua criatividade, resta-nos contudo trazer uma contribuição - talvez mais preciosa - à sua eventual proeza na história, fazendo isso por uma ou por outra das doenças que nos acossam. Vamos passar então às outras doenças espirituais, buscando ver qual delas precisamente nos caracteriza propriamente e qual delas nos caracteriza mais pela contaminação. Antes de nos confrontar com as outras cinco, vamos relembrar que em todas essas, ao contrário da acatolia, é ativo e conscientemente ativo (com exceção da primeira forma de catolite) o geral. Esse fato é inteiramente significativo, pois só o geral dá às coisas a sua verdadeira medida, enquanto que na sua falta, na acatolia, encontravam-se apenas substitutos para o equilíbrio do homem. Mas a presença ativa do geral ainda é significativo por um motivo: aquele pelo qual, de 1800 até hoje, o nosso mundo mudou o seu centro do real para o possível. Prima, desde então, o possível sobre o real, com alguns riscos (os quais descreveu antecipadamente Goethe em Fausto II), mas também com grandes benefícios. A partir de agora podemos dizer que o espírito romeno está bem com o possível - poder-se-ia dizer: esteve melhor com o possível, no passado, do que com o real -, e a ação do geral no seio das doenças faz com que o primado do possível tenha bons destinos de sucesso histórico. Só na acatolia joga o possível vazio (criações e produtos sem destinação precisa, sociedade aparentemente equilibrada porém no fundo desequilibrada, demência e explosividade em todos os planos), e neste sentido podemos nos consolar com a nossa irreceptividade para uma tal orientação espiritual. Quanto das outras cinco doenças nos caracteriza propriamente? Vamos dizer diretamente o que não nos parece caracterizar, como ocorre com a acatolia: não parecemos sofrer, a não ser

4 N. do T.: Trata-se da Revolução de 1848,

de novo parcialmente, de atodetia, nem de horetite; enquanto as outras três orientações nos caracterizam plenamente. A atodetia, em primeiro lugar, significa a recusa do individual, enquanto temos, após um unânime reconhecimento, um autêntico e indesmintido senso do concreto, o que nos faz não praticar em nenhum lugar, nem ao menos no conhecimento e na cultura, um culto em vão do geral. Da nossa forma de religiosidade passada, em cujo quadro o divino foi sempre entrelaçado ao terreno, entrando também ele, segundo o nosso folclore, em todos os contactos, acasos e por vezes vicissitudes do homem (inclusive o nascimento, pois também o divino nasceu de uma maneira ou de outra, conforme as nossas lendas populares), daqui e até o nosso modo de fazer cultura, mesmo no nível da filosofia especulativa, onde sempre interessou o pensamento voltado sobre o mundo real e curvado sobre ela, justamente o “sofiânico” de Blaga5, o nosso modo de conhecer e contemplar o geral não existiu na ausência da realidade individual. É verdade que também nós temos, da atodetia, um agudo espírito crítico e dissociativo, como uma tendência de pôr especialmente o acento sobre o comentário da vida do que sobre a vida e por vezes de fazer teorias de certo modo em vão, como toda nação inteligente; mas o possível que amamos não carece de supraposição, por cima do concreto (“seja o que for”, e não “seja em princípio o que deve ser”), a infinidade de nuanças que invocamos não é apenas do geral mas sobretudo do real, e quanto à sociedade e ao homem, temos um gosto demasiado acentuado da individualidade e da afirmação pessoal a fim de consentirmos facilmente as estatísticas. O grande sucesso da cultura atodética, por base no requinte e no desprendimento, não exige de nós, talvez nem o musical puro - a não ser pela contaminação -, por outro lado um sentimento “artístico”, ou seja, uma corporificação do geral no concreto nos segue com a sua tendência permanente, fazendo até mesmo do nosso pensamento científico, talvez, um pensamento que não permaneça estranho a belezas concretas - para não mais falar do fato de que muitos homens de ciência em nosso país “literaturizaram” - ou se não, um pensamento estranho ao resto do mundo real, com o risco porém para nós de chegarmos ao enciclopedismo, por um lado, e ao ensaísmo, por outro. Sem individual, concreto ou pelo menos supraposição sobre o real, o mundo nos pareceria insípido. O romeno não sabe muito sobre o tédio, e ainda menos sobre o trágico da experiência de cultura ou sobre a inexistência dela. De qualquer modo, se a atodetia pode

5 N. do T.: Lucian Blaga (1895-1961), poeta, dramaturgo, filósofo e ensaísta romeno. Como pensador, é criador de um sistema filosófico original, que, tendo como núcleo a idéia de mistério, apela na teoria do conhecimento a um método dogmático agnóstico e, na explicação da criação cultural, a fatores inconscientes. Em suas últimas obras, desenvolveu idéias epistemológicas próximas de uma compreensão racionalista e dialética da ciência.

acabar numa alma sem corpo, deve-se dizer tranqüilamente que o espírito romeno sempre amou a alma com corpo e tudo. Da mesma maneira poderemos dizer, em segundo lugar, à luz do acima mencionado, que não sofremos sobremaneira de horetite. Se a horetite é a doença de não poder encontrar as determinações adequadas, devemos admitir que não tivemos como povo (e talvez nem tenha o indivíduo romeno) a pressa das determinações, menos ainda a sua impaciência, como no caso dos grandes doentes de horetite, Dom Quixote, Fausto ou povos inteiros. O nosso povo, longe de ser um povo que busque sua identidade, que procure afirmar-se de todos os modos e que conquiste fora, compreendeu antes manter sua identidade, e historicamente, ele não se formou por expansão ou por contração, justamente como souberam mostrar os nossos historiadores, tendo ele mais precisamente se concentrado sobre o espaço carpático dos dácios, da vasta extensão da romanidade oriental. É verdade de novo que, sendo estranho àquilo que denominamos horetite aguda, o espírito romeno pôde ter algumas manifestações de horetite crônica, atribuindo-se determinações “estacionárias”, como foi continuamente a nossa civilização aldeã, ou vivendo sob uma forma de descrença em si e por vezes resignação, na maioria das vezes ativas, portanto às vezes também passivas, ou enfim, sendo tomado por formas superiores de melancolia, da qual a nossa palavra “saudade6“ reteve alguma coisa; é igualmente verdadeiro que até mesmo uma certa impaciência do tipo da ahoretia aguda nos pôde tomar por vezes, diante dos grandes perigos em que vivemos, mas tratou-se de uma impaciência de certo modo afável e, diríamos, criadora de instituições. Em definitivo, que boa horetite terá acossado Estêvão o Grande7, quando erguia a cada ano pelo menos uma igreja, tentando desta maneira atribuir determinações no real de seu domínio, não só em nome da crença mas também em nome da sua grandeza principesca. Totalmente estranhos à horetite não pudemos ser nem nós; e sobretudo na Romênia moderna, quando tudo veio - como se de repente, com a nossa composição estatal - nos exigir que nos atribuíssemos determinações na história e também como homens livres. Mas em nós algo de precipitação na direção de determinações se recusa, e neste sentido será necessário invocarmos de novo o caráter da medida bem concedido a nós, assim como invocamos aquele, igualmente bem acreditado, do nosso sentimento pelo concreto. A horetite, com as suas dramáticas afirmações e catástrofes, assim como a sua tristeza depois da vitória, permanece no lote de outrém.

6 N. do T.: Em romeno: dor. 7 N. do T.: Estêvão o Grande (1457-1504). Príncipe da Moldávia, santificado na década de 1990 pela Igreja Cristã-Ortodoxa Romena. Uma das mais importantes personalidades da História romena. Notável comandante militar e diplomata brilhante, fez da Moldávia um significativo fator político na Europa Oriental de seu tempo. Vitorioso em diversas batalhas contra os turcos otomanos.

Quando nos preparamos para passar, agora, àquelas tantas sugestões de verdade sobre nós que acreditamos poder produzir à luz das doenças restantes, parece-nos adequado sublinhar que as doenças e genericamente as orientações espirituais que não nos acossam, a acatolia, a atodetia e a horetite, são todas elas três doenças de certo modo da decisão e do decidido. O acatólico decide claramente que o geral não existe (não passa de “nome”), o atodético, como se o individual não tivesse de ser levado em consideração (é apenas estatístico), e aquele que arde de horetite decide que deve inclinar-se à ação mesmo que seja com uma metade de ideal e com qualquer risco pleno. No nosso caso, por outro lado, nos domina uma demora na decisão, ou um juízo tão bem refletido sobre a decisão que, com todas as boas conseqüências no geral, parecemos cair por vezes na indecisão. Alguém que quisesse nos criticar - e houve muitos destes - poderia dizer, em relação às doenças que seguem e pelas quais somos acossados (a catolite com a busca do geral, a todetite com a do individual e a ahoretia com a recusa das determinações): o romeno não sabe bem o que busca, não sabe bem o que encontra, e sem sabê-lo bem para que decidir-se, não mais se decide absolutamente. E não é que se exprimem todas essas três irrealizações em sua tão característica palavra “saudade”? Vamos ver o sentido entretanto bom do mesmo vocábulo nas orientações pelas quais o espírito romeno é efetivamente animado, começando com a catolite. Não pairam dúvidas sobre o fato de que o nosso espírito tem o órgão do geral, tem pelo menos a abertura para ele e, com uma palavra dele, “tem algo de santo”. Descrevemos a catolite, que nos pareceu verdadeiramente a primeira dentre as doenças do homem e caracterizante em particular para o homem europeu - influente no mundo em primeiro lugar com a catolite, antes de colocar em jogo o seu inverso, a acatolia, para a Terra inteira -, mais em seus aspectos negativos. Pareceu-nos necessário fazer desta maneira pois era a primeira doença descrita e tínhamos de revelar antes os desajustes, criadores é verdade, do homem, do que o seu bom equilíbrio, o qual no limite pode ser também estéril. Mas em todos os aspectos da doença, descritos antes pelo seu excesso na direção de pôr as coisas melhor em relevo, algo benfazejo pode intervir, transformando-os então em aspectos positivos: um certo controle. A catolite, tendo passado por um controle espiritual, torna-se então verdadeiramente positiva, não só pela criatividade indireta a que ela conduz e a qual mencionamos, mas também pelas suas virtudes diretas: é a doença, ou desta vez melhor a orientação do homem na direção daquilo que nem a natureza, nem as acepções imediatas da vida não podem dar, na direção da sua ordem mais geral e de sua finalidade segunda. Com uma verdadeira e humana medida, a perda em ato e o excesso da ação, que evidenciamos naqueles que ardem da busca do geral, abrandam-se e se tornam feito de habilidade, mas um que busca ser capaz da habilidade; um feito aberto para a sua acepção melhor expressa. A catolite não denominaria desta maneira o estado transfigurado daquele que, a qualquer preço e consciente ou não, busca o geral, assim como aquele que o segue com a submissão aberta ao feito ao seu ver. O espírito romeno pôde assim ser acossado pela doença em jogo. Ele não a realizou com exaspero, nem permaneceu no sedentarismo daquilo que lhe era dado, mas - se o pastoral prevaleceu contudo sobre o

agrário no nosso mundo, como se disse - da mesma maneira como os pastores, semelhantes a navegadores da terra, partiram na direção de outros horizontes buscando grama melhor, o feito do homem daqui conduziu também incessantemente na direção de outros horizontes, com acepções melhor ordenadoras. Todos os outros sintomas que evidenciamos na catolite: a exuberância do possível, a obsessão das acumulações, a pluralidade cega, a simples proliferação puderam obter uma face luminosa, com a extraordinária experiência no possível que realizou o espírito romeno, assim como com a branda pluralidade, com aquele sábio politeísmo de suas crenças naturais, ou com a riqueza de sua criatividade folclórica e com a sua permissão com relação à diversidade das crenças e dos mundos. Enquanto o acaso frustro, na catolite descrita como doença, passava diretamente para a necessidade cega, o espírito romeno sabe fazer um bom casamento entre o contingente e o necessário, vendo tudo como uma necessidade moldada e acontecida ela mesma. O sentimento da perda de si e o do exílio, que podia experimentar o homem da catolite, são atenuados também eles, com uma boa graça que faz o romeno dizer: “este mundo não é o meu, nem é meu o outro”, mas o faz no final das contas sentir-se em casa no mundo daqui e fabular qualquer coisa sobre o mundo do além. Quanto ao exaspero e à colisão trágica dentre um sujeito erguido ao geral e o geral propriamente dito (as soleiras do mundo), eles se transformam facilmente num verdadeiro “encontro”, como o do Velho da “Arca” de Blaga com o próprio Noé, e se um trágico persiste na consciência popular romena (na consciência culta podendo ser um de contaminação), trata-se de um trágico difuso, que desta maneira consegue transformar o insuportável em suportável. Como para qualquer doente de catolite, o mundo deveria ter um sentido. Mas o espírito romeno não cai na desesperança de não o encontrar. “Tem de existir” um, diz a si mesmo, e o continua buscando. Não desejaríamos transformar em idílio uma das experiências mais ativas e decisivas no homem ou na história do homem. Mas se devemos encontrar uma explicação para a atenuação que o espírito romeno insistiu em levar a alguns grandes impulsos de vida despertados pela catolite, invocaremos a experiência no possível que o homem romeno soube acumular ou que casualmente acumulou, uma experiência que o faz evitar as rochas do século, quando necessário, e continuar viajando, pelas águas do possível. Algo continua verdadeiramente flutuando, como se por cima de águas, com o nosso espírito. De certo modo, ele é como um riacho que nem sempre chega às grandes águas, mas parece não cessar de as buscar. Talvez seja signficativo o fato de que as lendas mais profundas e simbólicas da nossa cultura sejam aquelas sobre riachos, não aquelas sobre cidades, aldeias, ou as lendas ligadas à consideração do solo e de nomes de lugares. Numa coletânea (Lendas Geográficas Romenas, Editora para o Turismo, 1974) foi republicada a Lenda do riacho Buzãu, que nos parece ilustrativa para o que se disse mais acima. O jovem Buzãu, diz a lenda, com

cabelos de ouro porém chamado Buzãu, ou seja, “ensimesmado, turvo, incompreendido”, caminha na direção de uma bela, cujo marido, o dragão Danúbio, a mantém trancada num palácio de cristal. O nosso herói chega, naturalmente, ao riacho Siret, mas sem um fio de cabelo, pois os arrancara, assim como lhe pedia a voz da amada. Atira-se lá, nas águas do Siret, e todo o caminho percorrido se transforma num riacho, com as ondas como o cabelo dele. - Existe aqui também um primado do possível sobre o real: o riacho não atinge as grandes águas, mas junto com as águas em que desembocou, continua buscando por elas. Pode ser que o mesmo primado do possível - um de tipo especial, não diretamente assimilável com o primado moderno do possível, que é de laboratório - seja reencontrado na versão romena daquela segunda doença espiritual que especialmente nos acossa, mais precisamente na todetite. Doença originária da necessidade de encontrar um individual adequado para o geral e para as suas determinações, ela foi reativada no mundo contemporâneo pelo domínio seguro de um conjunto de conhecimentos, que conduzem assim a um tipo de leis incorruptíveis difícil de ser aplicado sobre o real. Mas o mundo do espírito romeno, não tanto pela linha teórica é ajudado pela todetite, quanto pela linha do ideal ou dos valores in que este espírito crê, sem poder-lhes sempre encontrar a corporificação. Se na catolite de tipo romeno a palavra “saudade” exprime uma aspiração saudável e frutuosa na direção de algo ainda vago porém mais alto que as realidades imediatas do homem, agora, na todetite, a mesma palavra, compreendida como saudade de determinada coisa, de alguém mesmo que idealizado, vem exprimir a aspiração na direção de uma realidade ou de uma realização concreta. Existe saudade também numa consciência de artista que não obtém diretamente a corporificação, assim como surge um sentimento da saudade até mesmo na aspiração de realização através do feito, uma espécie de nãoposicionamento, ou de posicionamento do pensamento através de uma resposta adequada. Na linha da todetite descrita, o nosso espírito percebe constantemente uma inadequação entre aquilo que existe e aquilo que deveria existir (devia existir, não pôde existir), mas sem deixar, assim como na doença descrita, que o real apareça fantomático, mas antes fantástico e feérico. “Quem não provou da doçura do que existe - traduzia Udriste Nasturel8 em A Vida de Varlaam e Josafá9 - não pode compreender a natureza daquilo que não existe.” Mas aqui, inversamente, “aquilo que existe” representa a vida verdadeira e ideal, ao passo que “aquilo 8 N. do T.: Udriste Nasturel (?-1659), boiardo e homem de letras da Valáquia. Desempenhou um importante papel cultural e político durante o período do governo de Matei Bassarab, seu cunhado, para quem realizou algumas missões diplomáticas. Traduziu pela primeira vez do eslavônico para o romeno o romance popular Varlaam e Josafá (1648-1649). 9 N. do T.: Romance popular de grande circulação na época feudal, que tem em sua origem a lenda da vida de Buda. Chegou no século XVI à Romênia por intermédio da versão eslavônica.

que não existe” significa “a mentirosa riqueza e honestidade deste mundo”, ou seja, justamente o mundo propriamente dito real com as suas efemeridades, com “as suas coisas passageiras”, como diz ele. Não há necessidade, de novo, de vermos imprescindivelmente a religiosidade nesta disposição do nosso espírito de não aceitar o real como bom em si e nem digno de ser desejado como tal. E não temos mais de ler, nos sintomas da doença que nos acossa, uma tendência de irreconciliação destinada a nos conduzir à saída do mundo, como no texto de Nasturel, mas o sentido mais ativo da irreconciliação com um real, diante de que o possível, com as suas riquezas, surge como um aperfeiçoamento, mas um aperfeiçoamento com realizações contínuas também desta vez. Neste sentido, que bela é a evolução da palavra “ens” do latim, significando ser, que em língua romena pôde transformar-se em “ins”, indivíduo: é uma expressão viva da nossa todetite, compreendida como necessidade de enviar o ser, do seu geral etérico, à realidade e pessoa. Mas em geral, toda a exploração feita pelo espírito romeno no ser através da língua é profundamente significativa, como se aparentemente conseguisse dar alma e concretização ao geral mais abstrato. É quase dramático, para quem tem interesse e compreensão filosófica para a sua língua, o esforço da nossa língua gasta em encontrar equivalentes apropriados para diversas nuanças filosóficas obtidas na grande especulação do pensamento. Nos impressionantes Escritos Filosóficos de Samuil Micu10 surge mesmo a tentativa de traduzir ens por “îns”11, com o sentido de ser ainda, mas não constante de ser geral, da mesma maneira como aparecem os termos como: îns e neîns, ou estere (“do estere à possibilidade”) compreendido como existência, ou o termo de ser próprio, como essência, ou mesmo o termo de temperamento. Ens não se tornou mesmo indivíduo, pessoa, mas tornou-se um tipo de estima, como teria dito Eufrosin Poteca12, um tipo de entidade real (“este mundo é ser realizado e o dia de amanhã é ser irrealizado”, ou ainda: “o ser do pensamento”), que teria uma essência como ser, uma existência como estere e um temperamento como natureza. - A exploração da nossa língua no ser foi constante, assim como foi também a nossa exploração no verbo ser, com as suas multiplicações que evidenciamos num outro lugar: não pôde ser, estava prestes a ser, terá sido, poderia ser, deve ser, pôde ser. E te

10 N. do T.: Samuil Micu (1745-1806), filólogo e historiador iluminista romeno. Autor da Elementa linguae daco-romanae sive valachicae, primeira gramática publicada da língua romena. Em seu “Livro de Orações” (1799), utilizou, pela primeira vez na história da tipografia romena, o alfabeto latino. 11 N. do T.: Equivalente em português: próprio. 12 N. do T.: Eufrosin Poteca (1786-1859), iluminista romeno. Publicou em 1829 a tradução da Filosofia da Palavra e dos Vícios, obra do filósofo alemão J. G. Heineccius, através da qual contribuiu para a fixação da terminologia filosófica romena.

perguntas: estamos no império do real? ou de certa forma, mais do que outros, no do possível? Enfim, sempre o império do possível, mais poderoso segundo o nosso espírito do que o do real, de que não nos livramos totalmente, assim como fizeram com tantos riscos alguns mundos ocidentais, está prestes a ressurgir no horizonte daquela terceira doença espiritual que nos acossa, a ahoretia. Com certeza, se de novo a doença é tomada, desta vez, menos em suas formas acentuadas, assim como tivemos de a descrever, do que numa versão mais discreta, a ahoretia poderia ser o principal “adoentamento” clássico romeno. É uma doença da lucidez, e tanto o povo como o homem daqui parecem lúcidos e despertos; é uma doença que não recusa, cegamente, os sensos gerais, assim como a acatolia, nem os sensos individuais, assim como a atodetia, pondo em perigo desta maneira seja o equilíbrio no real, seja o próprio real, mas só recusa - numa medida maior ou menor e onde mais uma vez a nossa “medida” parece entrar em jogo - as determinações, incontroladas e não filtradas pela sabedoria da mente, as quais o homem e os povos podem produzir. Com ou sem o “rapto” que conduza a uma boa iluminação, assim como aparecia a ahoretia em seus casos extremos, a doença em jogo dá as condições para a orientação sábia, por um lado, ou desprendidas, por outro, uma orientação que pôde igualmente conduzir, como vimos, a grandes experiências do espírito no Oriente, ou, uma vez com o espírito matemático e racionalista que o favorece igualmente, a algumas grandes novidades do espírito europeu de hoje. Poderia parecer curioso que as experiências extremas da Ásia e aquelas, sempre extremas, da Europa tenham se tornado possíveis por uma mesma doença espiritual. Mas elas têm algo em comum, e algo decisivo para o espírito: um bom encontro com o negativo, ou com aquela negatividade da qual Hegel fazia a vida da razão. Não nos pareceu que abusamos mostrando que, da ascese e da poesia até às matemáticas e à revolução técnico-científica, o negativo da razão foi perfeitamente solidário com si mesmo e ativo, mesmo se um tipo de ruptura tenha talvez existido entre o mundo europeu e o asiático ou o indiano em particular. Pode ser que, porém, justamente a forma branda de ahoretia, de que sofre o espírito romeno, possa refazer a continuidade, assim como se disse sobre o nosso país que, no limite, poderia ser o pivô do mundo de amanhã, funcionando, com a sua dupla abertura para o Ocidente e o Extremo Oriente, como o mediador de que o mundo da história de amanhã vai ter tanta necessidade. Mas enquanto a proclamação de tal papel, seja histórico, seja espiritual, ou de ambos os tipos, ainda não encontra lugar aqui, os principais traços e sintomas da ahoretia já se encontram por aqui, autorizando-nos a dizer que ao nosso espírito foi dada a experiência do negativo, até à assimilação da derrota num plano ou noutro, com a superação, diferente porém não totalmente estranha àquela superação superior (aufheben) que Hegel sabia invocar para a sua dialética, ou que qualquer dialética viva de hoje

implicitamente invoca. Pudemos encontrar no “ba13“ romeno as marcas vivas de um autêntico espírito dialético, assim como encontramos na função positiva do diabo, em nosso folclore, ainda uma prova concernente à nossa capacidade de colocar o negativo para trabalhar. Se nisso tudo podem-se ler as marcas do racional e um consentimento à racionalidade, que não é estranha mesmo à mais baixa “racionalização” no senso comum - então quando ela não se torna abusiva -, então estamos no direito de dizer que as formas plenas e ativas da ahoretia, como aparente doença do desprendimento do mundo mas na realidade como uma forma melhor de engajamento no mundo, podem ser encontradas entre nós. E mesmo se é verdade, como nos parecia, seguindo, é verdade, linhas de certo modo subjetivas, que o grande triunfo das naturezas ahoréticas se obtém nos anos tardios e com a sabedoria tardia, então de novo podemos dizer que a forma de sabedoria que o nosso espírito ama é uma de tipo ahorético. Permanece de qualquer modo em aberto, diante da tabela concreta das doenças do espírito, a pergunta se a ahoretia nos caracteriza melhor que as outras ou não. Algo porém nos parece decisivo para sustentar o primado da ahoretia, mais exatamente uma palavra. Desta vez não será mais a “dor”, apesar de ela estar plenamente em seu lugar no mundo bom e ativo da ahoretia, mas se trata da preposição “para”, que já invocamos noutra parte e que vem novamente diante de nós, agora, oferecer-se como uma chave para a compreensão de nossa natureza espiritual. As vicissitudes do universal na cultura européia. O significado que pode ter a expressão de estar “para” depreende-se melhor, talvez, da descrição sumária que poderíamos dar às vicissitudes do universal na cultura européia, em particular da Idade Média e até hoje. Diríamos que nas categorias, hoje banais e desconsideradas, de gramática podem ser encontradas as fórmulas adequadas a essas vicissitudes pelas quais passou o universal na consciência européia. Na Idade Média o universal era substantivo. Conhece-se bem a assim chamada querela dos “universais”, e qualquer um sabe o quão facilmente eram substantivadas e personificadas todas as noções gerais, não a fim de serem reduzidas ao concreto mas apenas para serem representadas em seu universal. Assim, em Le roman de la Rose aparecem as conhecidas personificações do Amor, do Ciúme, da Razão, da Amizade etc., mas também noções como Doce-visão e Boa-acolhida. Tudo era pensado em universal, mas ao modo do substantivo. O Renascimento trouxe um outro termo da nossa gramática tão significativo para o espírito: trouxe o adjetivo. Agora a cor, a variedade, a nuança, a riqueza e, numa palavra, toda a feeria do adjetivo como “epitheton”, epíteto, coisa posta sobre algo, entra em jogo. É o mundo de 13 N. do T.: Advérbio equivalente ao doch alemão.

Florença, com os seus tecidos, com as suas formas e cores, e no final das contas, claro, a sua pintura e os seus esplendores artísticos. A Renascença inteira poderia ser entendida como um mundo do adjetivo, onde a unicidade do substantivo desapareceu e surge a pluralidade e a acumulação, até à bastardização, do adjetivo. Pois os bastardos são característicos desse mundo (Leonardo da Vinci era ele próprio um bastardo), e com a bastardização, que levará também ao barroco a sua exuberância, o adjetivo exprime, do início e até o fim da Renascença, toda a sua aspiração ao universal, até mesmo em seu papel gramatical do bem conhecido ideal humano do “Uomo universale”. Veio depois o mundo do classicismo francês do século XVII, onde o universal não se exprimia mais como substantivo, nem como adjetivo, mas como advérbio e com o auxílio das locuções adverbiais. Esse Classicismo não pretendeu absolutamente possuir originalidade; deteve-se apenas a ter maneira e estilo. Tomou, para as suas criações de todo o tipo, em primeiro lugar para a tragédia, tudo o que lhe agradava da Antigüidade, ou mesmo dos vizinhos espanhóis e italianos, mas soube tratar tudo “de maneira eleita”, “de maneira motivada” com as profundezas psicológicas de Racine, “de maneira racional” com a sabedoria crítica de Boileau ou na completa sinceridade do homem sobre si mesmo, com os moralistas franceses, que não entenderam criar, mas apenas rodear com advérbios os atos e os engajamentos clássicos do homem. Se o século XVIII trouxe até o fim esse refinamento e essa estilização pelo advérbio, em torno de 1800 aparece uma nova forma gramatical que toma para si as responsabilidades do universal: desta vez é uma modalidade conhecida do adjetivo, sem nenhum retorno porém ao mundo positivo e real qualificado pelo adjetivo. Agora aparece o comparativo e, após algum tempo, o próprio superlativo. Na verdade, com as novas civilização e economia, com a máquina em particular, surgem no mundo “mais bens” e o desejo ardente de obter em todas as partes uma condição “melhor” para o homem. A característica desse mundo é que o homem surge nele de certa maneira suspenso: o mundo não sabe mais (e hoje continua seguramente não sabendo, na sociedade de consumo por exemplo) o que significa bem e bom, mas sabe perfeitamente o que significa mais bem e mais bom, e ainda na versão americana ele sabe admiravelmente o que significa muito bem e muito bom. Esses são os valores que têm de ser buscados e o universal aqui teria se refugiado; mas quantos riscos surgem para ele, vemo-os bem agora, e uns os viram bem ainda no início da preeminência, no mundo dos valores, com o comparativo. O mundo mais novo, de outro modo, especialmente o mundo ocidental da acatolia, mas também geralmente o mundo da segunda revolução industrial, parece agora pôr acento numa nova forma gramatical, para além de substantivo, adjetivo, advérbio, assim como também para além de comparativo e superlativo. Com a técnica eletrônica e os sistemas de comunicação e controle trazidos pela cibernética, o que domina é o mundo da conjunção. O

universal assumiu hoje, numa vasta parte do mundo, a forma da conjunção - respectivamente e, ou, se… então - as conjunções que comandam a lógica matemática e, através delas, uma boa parte do mundo das automatizações de amanhã. Espiritualmente, são as mesmas conjunções que fazem as ligações entre homens e mundos. Mas elas ainda são ligações? Os contactos entre homens por tais conjunções - e essa maneira de contato têm efetivamente os homens, nas grandes aglomerações humanas, onde encontram-se acumulados de “es”, ou seja, colando-se uns aos outros só através de: e eu, eu, ou onde se encontram separados pelos “ous”, ou seja, ou eu, ou você -, tais contactos parecem, com a sua pretensão de representar o espírito em sua universalidade, uma verdadeira dissolução do espírito. Aqui pode entrar em jogo a contribuição romena. Ela vem apresentar-se com a forma modesta de mais um termo gramatical, mais exatamente a preposição. Tudo o que nos acontece, e de outro modo tudo o que acontece ao universal, deve obter um posicionamento e um equilíbrio, deve existir em algo, acima de algo, com algo, a fim de algo. Mas um milagre, ousemos dizer, da língua romena faz com que uma única preposição englobe todas as outras, exprimindo não só a sua totalização, mas aparentemente muito mais: é a preposição “para”, que compreende e torna possíveis, na verdade, com a sua falta de posicionamento espacial, todas as outras preposições, em sua espacialidade exata. E com tal preposição, o espírito romeno poderia trazer o universal para o mundo da preposição. Pois para que existem todos esses grandes sucessos da civilização e do homem contemporâneo? Se a vida do espírito tem um sentido, então é o de existir “para algo”, e isso o espírito romeno, com modéstia mas com firmeza, poderia dizer a um mundo em que as doenças constitucionais, hoje reativadas de maneira demasiado violenta, correm o risco de transformá-lo, segundo o dizer indiano, na condição do si enlouquecido.