As ilusões do eu - Spinoza e Nietzsche
 9788520010174

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As ilusões do eu Spinoza e Nietzsche

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André Martins Homero Santiago e Luís César Oliva (organizadores)

As ilusões do eu Spinoza e Nietzsche

SBD-FFLCH-USP

I\II\I\\Ull~ III\\U\I 302332 CMLIZAÇÃO BRASILEIRA

Rio de Janeiro

2011

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Copyright© André Martins, Homero San~iago e Luís César Oliva (orgs.), 2011 PROJETO DE MIOLO

Euely,r Grumach e João de Souza Leite CAPA

Sérgio Campa,rte

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ 129

As ilusões do eu: Spinoza e Nietzsche/André Martins, Homero Santiago, Luís César Oliva, organizadores; [tradução Daniel Santos da Silva ... et ai.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. ISBN 978-85-200-1017-4 1. Spinoza, Benedictus, 1632-1677. 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 3. Subjetividade. 4. Filosofia moderna. 1. Martins, André. li. Santiago, Homero. III. Oliva, Luís César.

10-5244

CDD: 194 CDU: 1(44)

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Direitos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela edição adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA um selo da EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA. Rua Argentina, 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000 Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções. Atendimento e venda direta ao leitor [email protected] ou (21) 2585-2002 Impresso no Brasil 2011

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Sumário

APRESENTAÇÃO

Spinoza e Nietzsche: crítica ao sujeito e imanência 9 André Martins, Homero Santiago e Luís César Oliva

PARTE 1

Spinoza, Nietzsche e o Romantismo alemão CAPÍTULO 1

O Romantismo em Nietzsche enquanto um problema temporal, estético e ético 19 Eduardo Nasser

CAPÍTULO 2

Nietzsche e Kant: aproximações, usos e afastamentos

41

Antonio Edmilson Paschoal

CAPÍTULO 3

Nietzsche e o conservadorismo romântico

63

Ivo da Silva Júnior

CAPÍTULO 4

Nietzsche e os pré-românticos: visões do popular

77

Henry Burnett

5

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AS ILUSÕES DO EU: SPINOZA E NIETZSCHE

CAPITULO 5

O Romantismo, Spinoza e Nietzsche: um percurso de influências, distanciamentos e proximidades

95

André Martins

PARTE 11

Crises e anátemas da modernidade filosófica CAPITULO 6

O direito à decisão em Spinoza e a questão do "sujeito» político

137

Laurent Bove

CAPITULO 7

"Inconsequência de Spinoza?"

163

Werner Stegmaier

CAPITULO 8

Contra modernos e pós-modernos: Nietzsche e as filosofias de fachada 183 Scarlett Marton

CAPITULO 9

Nietzsche e a modernidade: ponto de virada

203

Vânia Dutra de Azeredo

CAPITULO 10

A linguagem, nosso primeiro outro-mundo

227

Viviane Mosé

CAPITULO 11

A concepção nietzschiana de homem moderno ou a modernidade como momento «crítico" da história 243 Céline Denat

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SUMARIO

CAPITULO 12

O Iluminismo à luz do Iluminismo radical: sobre um novo paradigma interpretativo 257 André Tosei

CAPÍTULO 13

Spinoza, um ecologista avant la lettre? 281 Maria Luísa Ribeiro Ferreira

CAPÍTULO 14

A crença no progresso: civilização e darwinismo como sintomas de decadência 299 Wilson Antonio Frezzatti Jr. PARTE Ili

Sismos na metafísica da subjetividade CAPÍTULO 15

Um anacronismo interessante 321 Marilena Chaui CAPÍTULO 16

Do eu ao si: a refundação da interioridade em Spinoza 349 Chantal Jaquet

CAPÍTULO 17

Do conhecimento de si à contemplação de si próprio 367 Luís César Guimarães Oliva

CAPÍTULO 18

A potência da imaginação em Spinoza 391 Pascal Sévérac

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AS ILUSÕES DO EU : SPINOZA E NIETZSCHE

CAPITULO 19

Metafisica e subjetividade 423 Oswaldo Giacoia Junior

CAPITULO 20

Nietzsche e a crítica da metafísica do sujeito: por um "si,, corporal? 445 Blaise Benoit

CAPITULO21

A arte de dar estilo ao caráter

469

Rosa Maria Dias

CAPITULO 22

Nietzsche: Da crítica do sujeito à posição do indivíduo soberano 487 Clademir Luís Araldi

CAPITULO 23

Uma genealogia às avessas. A metafísica da subjetividade e a metafísica como subjetividade 507 Patrick Wotling

CAPITULO 24

Auto-organização intencional: uma "neurofisiologia spinozista,,?

527

Henri Atlan

CAPITULO 25

O corpo da gramática 559 Homero Santiago

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Apresentação* Spinoza e Nietzsche: crítica ao sujeito e imanência**

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"O eu não é senhor em sua p opria casa.") ) I

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Fre~

Spinoza escreve no solo epistêmico do início da modernidade. Época de uma nova ciência, de uma nova maneira de compreender as relações entre o homem e o mundo e em que começa a tomar forma o que se consagrou chamar, em sentido amplo, de "iluminismo". Tempo de Bruno, Galileu, Bacon, Descartes, Leibniz, Newton, o século XVII caracteriza-se pela valorização do homem e de sua razão, sendo nisso herdeiro do Renascimento e pondo-se em franca oposição à Idade Média e principalmente à filosofia escolástica, atravessada pela autoridade religiosa e por sérios limites ao saber. Os modernos claramente demarcam-se dessa tradição, com maior ou menor ênfase dependendo do caso, mas sempre com a consciência de inovar; e uma das inovações mais radicais é que, com a modernidade, o homem e a razão assumem-se como capazes de conhecer o •As edições de referência para os originais de Spinoza e de Nietzsche ao longo do livro serão as seguintes: B. de Spinoza, Opera (G), estabelecimento do texto: Carl Gebhardt, Heidelberg, Carl Winters, 1925 (reimpressa em 1972), F. Nietzsche, Digita/e Kritische Gesamtausgabe Werke e Briefe auf der Grundlage der Kritischen Gesamtausgabe Werke, estabelecimento do texto: Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 1967; e Brie(wechsel Kritische Gesamtausgabe, Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1975, publicados por Paolo D'Iorio, disponíveis em: http://www.nietzschesource.org/texts/eKGWB ..A grafia Spinosa, com que o próprio filósofo assinava, foi escolhida para este livro, em lugar de Espinoza, forma aportuguesada, a fim de empregar o mesmo termo adotado intencionalmente, embora se saiba que esta última, também correta, seja a de preferência de

alguns dos autores do livro. 9

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-AS ILUSÕES DO EU : SPINOZA E NIETZSCHE

mundo de forma autônoma, sem o intermédio da palavra divina e sem o recurso à autoridade da revelação. Talvez não haja melhor expressão desse novo contexto que o ambicioso projeto baconiano da instauratio magna e a sintomática qualificação do homem como um deus para 0 próprio homem. Nietzsche, por sua vez, dirá que nesse momento Deus morreu - dando, contudo, lugar ao homem moderno, que, submetido à razão, como sujeito da ciência, coloca-se no lugar de Deus, podendo manipular a natureza ao seu grado. Spinoza partilha do racionalismo de sua época. Porém, o adota de maneira peculiar, bem diferente do credo em que vários de seus contemporâneos comungam. Pois além de ser um crítico, como os demais, das doutrinas e dos dogmas do pensamento medieval, é ainda um crítico de algumas das ideias nascentes que viriam a se tornar basilares da modernidade. E , entre elas nada menos que a ideia de sujeito, que a tradição interpretativa faz remontar a Descartes e que se ergue mediante o expediente conceituai da substancialização da mente como uma alma e do corpo como puramente material. A negativa spinoziana, aqui, será impiedosa. Ao passo que muitos modernos, Descartes em primeiro lugar, propõem um sujeito do conhecimento que seja imune aos afetos, uma alma imaterial que determine pelo livre-arbítrio as ações do indivíduo, uma razão dissociada do corpo, Spinoza reafirma os direitos de uma razão que não está desvinculada dos afetos, de um conhecimento que seja pensado junto ao real, de um corpo, por assim dizer, pensante, ou seja, capaz daquilo que nossos preconceitos costumam reservar com exclusividade à alma ou à mente. É nesse sentido que, apesar de não só estar nesse início da modernidade como ainda compartilhar de muitos dos preceitos do projeto , moderno, Spinoza surge já como um crítico desse momento histórico que se vai firmando. Com notável lucidez, ele já faz a crítica da nascente metafísica da subjetividade no momento mesmo em que ela aparece com ares revolucionários. Tal crítica, iniciada no século XVII, encontra seu acabamento posteriormente com Nietzsche, já quando o modelo e as pretensões modernas mostram sinais de desgaste e fracasso. A filosofia ue nasce com a modernidade critica a metafísica da Idade Média nome de um su1e1to o c~ h~cimento e da a ~ oral, sem nem ~ speitar -- --- -

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APRESENTAÇÃO

9ue esse sujeito é igualmente metafísico. É precisament'- nesse sentido que Spinoza está na origem da modernidade e é ao mesmo empo seu mais agudo crítico avant la lettre. A mesma modernidade que teve em Spinoza um de seus marcos principais não soube, porém, reconhecer nas críticas do fil( sofo toda a sua profundidade e todo o seu alcance. Essa modernidade impôs-se e atravessou os séculos XVII e XVIII, e foi somente no final do XIX, com Nietzsche, e sobretudo no XX, sob o decisivo influxo do filósofo alemão, que se fez uma crítica contundente do Iluminismo como um movimento que, ao promover a elevação máxima da ciência e da razão, terminou por torná-las tão dogmáticas quanto a escolástica que antes vinha combater. A primeira grande crítica ao Iluminismo, no século XIX, foi realizada pelo Romantismo alemão e teve por escopo o resgate da importância da arte e da intuição estética - crítica esta que influenciou enormemente. a de Nietzsche. Contudo, os românticos não chegaram a opor-se ao Iluminismo em sua totalidade, mas apenas a alguns de seus aspectos, já que nele conferiam ainda um lugar de honra à pretensa autonomia do sujeito - por mais que tivessem uma visão mística desse sujeito. Curiosamente, era o elogio do sujeito individual que se encontrava na base da crítica do Romantismo ao Iluminismo, uma vez que este teria feito pouco caso da arte, bem como da religião, em nome de uma supervalorização da razão e da ciência. O Romantismo alemão foi, assim, um movimento artístico e cultural cuja característica mais saliente era uma revalorização da arte e da religião, em firme contraposição ao Iluminismo, que aos olhos românticos pouco interesse nutria pelas artes. Embora o Iluminismo se esforçasse em conciliar a razão e a fé, a princípio incompatíveis, mantinha claramente fronteiras entre as duas, fronteira essa que o Romantismo procuraria apagar. Antes do Romantismo, a arte do Classicismo confundia-se com o registro de imagens e fatos muito mais do que servia para expressar emoções, pulsões ou o ser íntimo dos indivíduos. Mais do que opor a arte à ciência, é a dicotomia entre emoção e razão que o Romantismo deseja apresentar dialeticamente. Eis por que, nesse movimento, arte e religião se misturam: a religião ali valorizada não o é mais pelos dogmas 11

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AS ILUSÕES DO EU: SPINOZA E NIETZSCHE

da Idade Média, mas, assim como a arte, à guisa de meio de acesso a esse foro íntimo da existência humana que constitui o seu ser mais profundo. É essa concepção romântica da arte, até então inexistente, que de algum modo perdura ainda hoje. Com a dicotomia entre a razão e a ·e moção, esferas bem delimitadas são reservadas a cada uma. A razão, inclusive em sua expressão científica, ocupa o lugar do dever, coercitivo e exterior ao ser, mas não menos imprescindível para que a vida, especialmente a social, torne-se viável. Já a emoção surge como um aspecto da existência individual que, embora não possa mais ser negligenciada, na dialética do Romantismo e do Idealismo alemães como um todo é tomada em contraposição à sociedade; um âmbito fundamental do ser que, no entanto, leva-o à destruição. Nessa medida, não espanta que a dialética seja alçada a instrumento privilegiado, da qual se espera a solução das contraditoriedades, a começar dessa mais fundamental entre razão e emoção. A primeira, se se realiza, o faz ao custo da gelidez; a segunda, ao manifestar-se, o faz numa arte e numa religião que sofrem com o peso da impossibilidade de sua realização. A mais clara representação desse estigma é aquela protagonizada pelos amores românticos e seu fado de impossível efetivação: mantêm-se vivos por não se realizarem; se se realizam, pagam o preço da morte, quer a da chama amorosa quer a dos próprios amantes. É na esteira do Romantismo que Nietzsche, em fins do século XIX, ergue-se como um crítico feroz tanto da Modernidade como do próprio Romantismo. Ao passo que Spinoza criticava a Modernidade em sua aurora, Nietzsche a criticava em seu ocaso, quando ela já se mostrava num declínio ocasionado em boa medida pela crítica romântica. Nietzsche não surge como um autor do Romantismo, mas surge pelo Romantismo, em seu solo epistêmico, e, portanto, como herdeiro da valorização da arte, do elogio ao indivíduo e da desconfiança relativamente à Modernidade, ao Iluminismo, à ciência. E um dos aspectos mais vigorosos de sua empreitada crítica dirige-se, tal como em Spinoza, à ideia de sujeito. Exatamente como o filósofo holandês surge no seio do racionalismo seiscentista criticando a ideia de sujeito e de livre-arbítrio que o fundamenta, o filósofo alemão faz sua crítica a partir do Romantismo sendo, 12

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APRESENTAÇÃO

contudo, um crítico feroz do Romantismo, sobretudo de sua dicotomia básica, que ele acusa de metafísica e à qual opõe uma visão trágica do mundo que trata de integrar razão e emoção, recusando-se a dissociá-las. Ao confrontar-se com o Iluminismo em nome do indivíduo, o Romantismo valia-se de Spinoza, em particular interpretando para seus fins o terceiro gênero de conhecimento. Por uma nítida distorção que se presta ao combate da interdição de Kant a toda intuição intelectual, o que era conhecimento intuitivo na Ética torna-se uma intuição estética que, contra a crítica kantiana, possa abrir o caminho à intuição tanto de Deus quanto da arte. Ora, muito do que Nietzsche vai herdar do Romantismo traz como marca indelével esse problema da intuição intelectual, só que não mais com o nome de intuição estética, e sim de experiência estética. Nietzsche não o diz, mas foi bem isso o que o Romantismo hauriu de Spinoza para combater o Iluminismo; e, nessa medida, a crítica nietzschiana ao iluminismo configura-se como herdeira do spinozismo. Quando Nietzsche renega a dicotomia dialética romântica, ele o faz não somente mobilizando no Romantismo o que este tomara a Spinoza; também critica no Romantismo aquilo que não vem de Spinoza, justamente o seu inconfundível aspecto kantiano. Com efeito, a dicotomia de todo o idealismo provém de Kant, que a reboque de Platão separa mundo inteligível e mundo sensível; e é exatamente essa dicotomia metafísica, inexistente no spinozismo e presente no âmago do Romantismo, que Nietzsche elege como um de seus alvos principais. Nesse sentido, Nietzsche reconhece em Spinoza seu precursor - "e que precursor!", exclamou certa vez. Porque, justamente, Spinoza havia empreendido a crítica do sujeito metafísico e de suas ideias correlatas: o livre-arbítrio, a ordem moral do mundo, a existência de bem e mal como valores transcendentes, a ideia de causa final e de um desinteresse possível. Em suma, é sobretudo na crítica ao sujeito que Nietzsche e Spinoza · encontram-se e, malgrado suas diferenças, podem reunir-se num único trabalho crítico de grande envergadura, importantes consequências e rica posteridade. Com efeito, se sob certa perspectiva a operação conjunta vem desfazer ou ao menos infirmar algumas das ilusões metafísicas mais pregnantes da modernidade e bater de frente com a dicotomia que faz do 13

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inteligível o contrário do sensível, da parte estética ou sensória da exis. tência; sob outra perspectiva, assumida com a positividade que convém tanto a Spinoza quanto a Nietzsche, o esvanecimento da ilusão de que Q e~, crend