Anatomia de uma Revolução
 9789722063111

Table of contents :
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Ficha Técnica
P R E F Á C I O
APRESENTAÇÃO
Primeira Parte NAS VÉSPERAS DA REVOLUÇÃO
CAPÍTULO I A SOCIEDADE, O REGIME POLÍTICO E A ECONOMIA
CAPÍTULO II A AGRICULTURA E A SOCIEDADE RURAL
CAPÍTULO III A REGIÃO
CONCLUSÕES DA PRIMEIRA PARTE
Segunda Parte OS ACONTECIMENTOS
CAPÍTULO IV A REVOLUÇÃO POLÍTICA E A SITUAÇÃO SOCIAL
CAPÍTULO V REFORMA E REVOLUÇÃO NOS CAMPOS DO SUL
A abertura da questão agrária: Abril a Dezembro de 1974
As conquistas à margem da lei: Janeiro a Julho de 1975
O processo revolucionário com cobertura legal: Agosto a Dezembro de 1975
A consolidação e a contestação: Janeiro a Julho de 1976
Terceira Parte A REFORMA AGRÁRIA, 1974/1976
CAPÍTULO VI A OCUPAÇÃO INSTITUCIONAL
A estratégia
As câmaras e as freguesias
As Casas do Povo
Os grémios da lavoura
Os serviços oficiais
Os conselhos regionais de reforma agrária
Um balanço
CAPÍTULO VII A ACTIVIDADE POLÍTICA
A implantação dos partidos
Aliados, adversários e inimigos
Os programas dos partidos
As eleições
As conquistas e a derrota do Partido Comunista
CAPÍTULO VIII DA REFORMA À REVOLUÇÃO
Os primeiros problemas agrários
Uma tentativa reformista
Uma via institucional pré-revolucionária
CAPÍTULO IX A CONQUISTA DA TERRA
As ocupações
As nacionalizações
As expropriações
As unidades colectivas de produção
A produção agrícola
O estatuto das unidades colectivas de produção
O desígnio e a estratégia
CAPÍTULO X A INTERVENÇÃO DO ESTADO
A legislação
A intervenção nas empresas
O Movimento das Forças Armadas
Os militares na reforma agrária
O crédito agrícola e o financiamento da revolução
Revolução pelo Estado e revolução legal
CAPÍTULO XI ASPIRAÇÕES E PODER NA REFORMA AGRÁRIA
Os sindicatos dos trabalhadores agrícolas
As ligas de pequenos e médios agricultores
As associações de agricultores e proprietários
A reforma agrária contra os camponeses
A terra e o colectivismo
Patrícios e servos
A difícil reforma
CONCLUSÕES
ANEXO
AGRADECIMENTOS
SOBRE AS FONTES E OS MÉTODOS
PERIÓDICOS CONSULTADOS
BIBLIOGRAFIA

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Ficha Técnica Título: Anatomia de Uma Revolução – A Reforma Agrária em Portugal 1974-1976 Autor: António Barreto Capa: Rui Garrido Fotografia da capa: © Direitos reservados Revisão: Rita Almeida Simões ISBN: 9789722063111 Publicações Dom Quixote uma editora do grupo Leya Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 © 2017, António Barreto e Publicações Dom Quixote Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.dquixote.leya.com www.leya.pt

Este livro segue a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico de 1990.

ANTÓNIO BARRETO

ANATOMIA DE UMA REVOLUÇÃO A REFORMA AGRÁRIA EM PORTUGAL 1974-1976

PREFÁCIO por Maria de Fátima Bonifácio

Este livro – Anatomia de Uma Revolução. A reforma agrária em Portugal, 1974-1976 – é certamente um dos livros mais importantes que se escreveram em Portugal depois do 25 de Abril de 1974. Publicado em 1987, logo na altura fez-se em torno dele um silêncio total. Ninguém comentou e os poucos que o terão lido não se pronunciaram publicamente. O livro, entretanto, levou sumiço: nem por encomenda se encontra nas livrarias, e a editora, Publicações Europa-América, faliu ou desapareceu há meia dúzia de anos, após uma lenta agonia desencadeada em 2004 pela morte do seu fundador e animador, Lyon de Castro. Em suma: o livro, misteriosamente, eclipsou-se quase logo que apareceu e muito pouca gente terá dado por ele. Não é fácil explicar o que terá motivado este fenómeno bizarro. António Barreto conduz a narrativa desde Abril de 1974 até Julho de 1976; termina-a, portanto, antes de ser nomeado ministro da Agricultura e Pescas em 5 de Novembro de 1976, no I Governo Constitucional presidido por Mário Soares, e também muito antes de elaborar a para sempre chamada “Lei Barreto”, aprovada pelo Parlamento na madrugada de 22 de Julho de 1977, da qual se comemora este ano o quadragésimo aniversário. O livro, que agora se reedita, não é um relatório, não é um ensaio, não é uma justificação pessoal, não é autobiográfico, não é de memórias – é um estudo muito

sólido resultante de um longo trabalho de investigação muito sério, que cumpre todas as regras do cânone académico: a pertinência do tema é incontestável, as alegações apoiam-se em fontes devidamente referenciadas em notas de pé de página, e no final, além da habitual bibliografia, deparamos com uma longa e detalhada explicação “sobre as fontes e os métodos” utilizados na pesquisa – desde documentação arquivística até entrevistas e inquéritos. Com efeito, a Anatomia de Uma Revolução constitui, com as necessárias adaptações e devidamente condensada, a versão portuguesa da tese de doutoramento defendida por António Barreto em 1984 na Faculdade de Ciências Económicas e Sociais da Universidade de Genebra1. O livro traz a marca inconfundível do sociólogo, com a particularidade, porém, do recurso ao género narrativo, que não é usual na disciplina. É que, sem dispensar a “análise dos antecedentes imediatos assim como das estruturas sociais e agrárias” pré-existentes, o estudo centra-se principalmente no processo revolucionário que se desenrolou na ZIRA2 entre 1974, ano da revolução de Abril que abriu as portas à “legitimidade revolucionária”, e 1976, ano em que o regime democrático se consolidou e abriu as portas ao triunfo da legitimidade democrática e do Estado de Direito. No País inteiro, mas sobretudo no Alentejo, aqueles dois anos foram dos mais convulsos. Acontecimentos, mudanças e ocorrências inesperadas, sucedendo-se a ritmo vertiginoso, conjugaram-se para gerar uma espécie de movimento permanente e acção constante, em que sobressaíram múltiplos protagonistas, individuais e colectivos, de que muitos apenas se salientaram fugazmente como figurantes transitórios, e muitos outros, decerto mais discretos, actuaram em permanência como vanguarda impulsionadora e condutora do processo revolucionário alentejano. Um processo revolucionário, por definição, não é algo de estático e

abstracto. É o produto da acção concreta de homens concretos, que se traduz em factos e acontecimentos concretos. Ora a narrativa é a forma literária privilegiada para abordar este tipo de objecto: “um processo social e político […] muito rico em acontecimentos e mudanças”. Por outras palavras: António Barreto narra e portanto interpreta uma história que era, na altura em que a escreveu, “uma espécie de história contemporânea […] um pouco de história do presente”. Por isso nos deparamos com um texto acessível e fluente, expurgado do jargão académico desnecessário, que se lê agradavelmente. A Anatomia de Uma Revolução conta-nos como o Partido Comunista se apoderou do Alentejo. A revolução alentejana é um fruto da revolução de Abril, e o território alentejano abeirou-se do estatuto de um estado dentro do Estado. Esta é uma das teses do livro. Outra é de que a massa do proletariado alentejano, chamada sazonalmente a semear ou ceifar nos latifúndios e nas herdades, nunca tinha estado interessada na posse ou propriedade da terra; a suma e única prioridade desses assalariados miseráveis consistia na segurança do emprego e portanto do salário. O slogan sempre repetido – «a terra a quem a trabalha» – não fazia para eles grande sentido. A solução encontrada pelos sindicatos comunistas foi a aplicação do modelo colectivista das Unidades Colectivas de Produção (UCP), uma réplica fiel do kolkhoz soviético. Graças ao crédito abundantemente concedido pelo Estado, as UCP garantiam as duas coisas – emprego permanente e salário todo o ano. Este é apenas um dos aspectos sob os quais a cooperação do Estado foi vital; sem ela, a revolução alentejana não teria sido possível. E o Estado cooperou porque tanto centralmente como localmente, todas as instâncias de decisão tinham sido rapidamente ocupadas por militantes comunistas. Antes de desencadear a conquista da terra, lutou-se e conquistou-se o poder de Estado; consumou-se a “ocupação institucional”. Dominado o aparelho de

Estado, não foi difícil reunir as peças que comporiam o dispositivo revolucionário: “a força, o dinheiro, a legalidade, a hierarquia administrativa, os meios de comunicação e a mobilidade”3. Durante os governos de Vasco Gonçalves, não só as ocupações foram legalizadas, como foram legisladas as expropriações e as nacionalizações. Afirma Barreto: “Tudo foi feito na prática, e quase tudo na lei, com vista a uma expropriação geral da terra, ou da sua maior parte.”4 Os responsáveis máximos não se coibiram de incentivar a apropriação de terras privadas. “Os principais actos revolucionários nascem no governo, nas assembleias militares e nos quartéis.” Algumas leis de 1975 sobre a reforma agrária assemelham-se a “panfletos políticos” em que a população e os trabalhadores alentejanos são exortados a dar livre curso às suas iniciativas. Não menos importante, os revolucionários estavam seguros do apoio político do MFA bem como da protecção militar, no terreno, das operações de ocupação. Por vezes verificou-se até muito mais do que protecção: o quartel de Vendas Novas, cujos soldados ostentavam nas boinas a efígie de Che Guevara, chegou a lançar no terreno “brigadas de ocupação” ou “brigadas da reforma agrária”. Outra das teses do livro é a de que, ao contrário do mito que se espalhou, não foram ocupados latifúndios incultos ou terras abandonadas à natureza selvagem. Estas não tiveram procura; dariam muito trabalho a arrotear e a cultivar. O ministro da Agricultura de Vasco Gonçalves, Oliveira Baptista (26.3.75 a 19.9.75), distribuiu conselhos e indicou critérios: “«Deve-se começar pelas melhores terras»”; deve-se liquidar “«o poder social e económico dos grandes proprietários»”; deve-se ficar com tudo: “«as árvores e meios de produção, todo o equipamento que lá estiver»”; deve-se “«acabar com o latifúndio e com o pequeno agricultor. Não podemos admitir que a reforma agrária faça novos pequenos patrões»”5. O regime agrário

do Alentejo, a extrema polarização social, a ancestral miséria e a terrível insegurança dos assalariados rurais criaram, muito compreensivelmente, as condições para uma total receptividade ao tipo de exortações acima exemplificadas. O Estado, o MFA, o Partido Comunista e os sindicatos exerceram sem dúvida um papel determinante. Mas este facto não invalida a genuinidade da mobilização e combatividade dos milhares de trabalhadores que em dois anos se apropriaram de mais de um milhão de hectares de terras privadas, entre herdades capitalistas e latifúndios, e organizaram mais de 600 UCP. Para esta massa de assalariados, trabalhar a terra não era muito diferente de assentar tijolos ou preparar betão armado. Não assim para o camponês, o pequeno ou médio agricultor. Para este, o trabalho da terra possui uma específica dimensão religiosa; liga entre si o homem, a terra, a natureza, os animais, a família, os vizinhos, a comunidade, e para os crentes liga até o homem com Deus. Ao voltar-se contra camponeses, pequenos e médios agricultores, a revolução alentejana alienou apoios, forjou uma barreira de inimigos e cavou o seu próprio isolamento social. Mais: fez tocar o alarme nas regiões do Centro e Norte do País, cujos camponeses e agricultores, proprietários ou rendeiros geralmente modestos, se sentiram directamente ameaçados e reagiram com violência, não lhes tendo faltado a solidariedade das populações urbanas. O Alentejo isolou-se do restante conjunto nacional. Tendo-se desenvolvido com considerável autonomia, nem por isso a revolução alentejana era impermeável aos efeitos do refluxo da revolução mais geral que foi a de Abril de 1974. Este refluxo, provocado pelo sentimento, cada vez mais generalizado no País, de que as liberdades públicas e individuais estavam ameaçadas, conduziu à “meia contra-revolução” de 25 de Novembro de 1975, que teve o apoio conjugado dos partidos políticos

democráticos, dos militares moderados, da pequena burguesia, das classes médias e até de um sector maioritário do mundo do trabalho. A relação de forças política alterou-se por completo. Os partidos democráticos recuperaram a iniciativa e a balança do poder tornou-selhes favorável. Por outro lado, as Forças Armadas venceram o MFA. Dois meses após o 25 de Novembro, os militares, regressados aos quartéis e reintegrados na hierarquia de comando de um exército regular, desapareceram da paisagem alentejana. Sem o Estado, sem o dinheiro e sem a força; “minoritária e sem apoio externo”, a reforma agrária no Alentejo refluiu e depois estancou. Mas deixou mais de um milhão de hectares de terras colectivizadas, e uma classe social destruída – a dos grandes proprietários rurais alentejanos. “Em paralelo com a descolonização, foi certamente a mais profunda mudança provocada pelo processo revolucionário dos anos 1974 a 1976.”6 Temos de voltar ao silêncio que se fez sobre o livro de António Barreto aquando da sua publicação em 1987. Muito possivelmente, o livro desagradou tanto à esquerda como à direita. Sobre as razões de queixa do Partido Comunista, de tão óbvias, não vale a pena falar. Já a reacção dos socialistas, que ainda hoje não exaltam a “Lei Barreto” como património seu, só se pode compreender à luz da própria natureza do PS e também das circunstâncias que rodearam a saída de António Barreto do I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares. Soares, falhado o diálogo com o PSD, precisava dos votos dos comunistas no Parlamento, e em troca dos votos o PC exigiu a demissão de Barreto. Ao prescindir dos seus serviços, Soares desvalorizou-os automaticamente, e com isso demarcou-se implicitamente da “Lei Barreto”, a nova Lei da Reforma Agrária aprovada no Parlamento em 22 de Julho de 1977. Mas terá pesado tanto ou mais a natureza peculiar do Partido Socialista: um partido democrático, defensor da

liberdade, mas dentro do qual foram sempre vivendo alojadas várias correntes radicais, mais ou menos influentes consoante os tempos, com grande afinidade ideológica com a extrema-esquerda. Por último, talvez se deva levar em conta o complexo de esquerda de que o Partido Socialista, com as suas várias costelas bem burguesas, sempre padeceu. Ora o socialismo brilhou pela ausência do Alentejo pelo menos até ao 25 de Novembro; e o PC teve a actuação que se sabe. A esquerda em bloco não sai muito bem do retrato que dela se pode extrair da Anatomia de Uma Revolução. E a direita também não. Por um lado, não há bons argumentos com que se pudesse justificar e defender os direitos dos latifundiários. E no clima de exaltação anticapitalista que se instalara em Portugal, seria muito difícil ou até impossível explicar e fazer acatar a necessidade de uma destrinça entre grandes proprietários absentistas e empresários agrícolas donos de herdades bem regadas, bem equipadas e bem exploradas, que também os havia e não eram poucos. Por outro lado, os próprios visados largaram barcos e redes, renderam-se sem qualquer resistência. Mal começou a revolução no Alentejo, a polícia e a GNR, os seus antigos protectores naturais, desapareceram dos campos, substituídos por um MFA em processo de contínua radicalização. Porém, houve resistência, e resistência física com armas na mão, mas por parte de pequenos agricultores, que “queriam conservar o que tinham feito com as suas mãos e que era a sua única maneira de viver”7. A Anatomia de Uma Revolução conta uma história que é de nós todos, dos que estiveram contra e dos que estiveram a favor da deriva revolucionária desencadeada pelo 25 de Abril; dos que participaram e dos que observaram. É tempo de f icarmos a saber mais exactamente como é que tudo se passou no Alentejo de 1974 a 1976.

21 de Março de 2017 1 Título original: «L’État et la société civile au Portugal: La réforme agraire en Alentejo, 1974-76». 2 Zona de Intervenção da Reforma Agrária, criada legalmente em Abril de 1976. 3 António Barreto, Anatomia de Uma Revolução, Mem Martins, 1987. 4 Maria de Fátima Bonifácio, António Barreto. Política e Pensamento, Alfragide, 2016, p. 248. 5 António Barreto, Anatomia de Uma Revolução, Mem Martins, 1987. 6 António Barreto, Anatomia de Uma Revolução, Mem Martins, 1987, p. 332. 7 António Barreto, Anatomia de Uma Revolução, Mem Martins, 1987, p. 315.

APRESENTAÇÃO

Devo à Maria de Fátima Bonifácio, a quem dedico este livro, o estímulo decisivo para promover a sua reedição. Outras pessoas me encorajaram também, em especial a Maria Filomena Mónica e o Rui Ramos. Mas foi a Fátima que tomou a iniciativa, deu os passos necessários, me convenceu, falou com o editor e aceitou fazer o prefácio. Estou-lhe muito grato. Como também agradeço ao editor, Duarte Bárbara, o cuidado e a diligência. Este livro conta uma história que se passou há mais de 40 anos. Entre 1975 e 1976, o essencial do Alentejo agrário produtivo mudou de mãos. Mais de um milhão de hectares de herdades e explorações agrícolas foram ocupados pelos trabalhadores organizados em sindicatos e unidades colectivas de produção. Tudo se passou sob a orientação do Partido Comunista Português, com o apoio das unidades militares da região, do governo, dos funcionários do Ministério da Agricultura e de outros grupos políticos de menor importância. Foi um processo revolucionário rápido que usou de intimidação e terror, mas não, graças à presença das forças armadas, de violência física. A primeira edição da Anatomia, de 1987, foi integralmente mantida. Apenas se fez uma revisão formal. Os acontecimentos aqui relatados decorrem de Abril de 1974, início da revolução, a meados de 1976, ano em que o país se dotou de uma Constituição, de um Chefe de Estado eleito, de um Parlamento democrático e de um Governo constitucional. A legitimidade e a legalidade

democrática passaram a prevalecer, assim derrotando, sem violência, a revolução que alguns pretendiam prosseguir. Hoje, nada sobra desta reforma agrária que só sobreviveria em contexto político comunista e autoritário. Mas talvez aquela tenha contribuído para a criação de uma sociedade mais igualitária e socialmente mais equilibrada. Todos, proprietários, lavradores e trabalhadores terão percebido melhor o que é a dignidade humana e o que são os direitos dos cidadãos. António Barreto

Primeira Parte NAS VÉSPERAS DA REVOLUÇÃO

CAPÍTULO I A SOCIEDADE, O REGIME POLÍTICO E A ECONOMIA

Velha nação europeia, Portugal ilustrou-se, durante os séculos do Renascimento, através das descobertas marítimas, da colonização de vastos territórios ultramarinos e da expansão do comércio. Tendo há muito cessado de pesar na balança da Europa, o Portugal contemporâneo conheceu com grande atraso a revolução industrial, a inovação tecnológica e o desenvolvimento do capitalismo. O antigo regime demorou a chegar ao fim, mesmo se os seus aspectos essenciais tinham quase desaparecido nos finais do século XIX8. A agricultura de subsistência e a sociedade rural baseada em grande parte no autoconsumo mantiveram-se vivas até ao século XX. No princípio dos anos 50, a população agrícola atingia ainda os 52% e eram raras as indústrias modernas. O País é pobre em matérias-primas, faltando em particular o ferro, o carvão e o petróleo. Mesmo indústrias tradicionais como os têxteis, o vidro e o mobiliário cresceram penosamente. Os recursos coloniais foram certamente úteis, indispensáveis até, para esta economia pobre e frágil: primeiro o milho, o feijão, o café, o açúcar, o algodão, o sisal, e, mais tarde, o ferro, os diamantes e o petróleo. Graças aos mecanismos de protecção, as colónias constituíram também o mercado inevitável para alguns produtos alimentares e industriais: vinho, têxteis e depois máquinas, ferramentas, adubos e

outros. Mau grado o seu carácter dependente e subalterno e apesar do seu atraso em relação aos outros países europeus, o capitalismo impõe-se em Portugal, desde os princípios do século XX, como a mais dinâmica forma de produção. Na mesma altura e até aos anos 30, o País vive um longo período de instabilidade política e social9. Os conflitos entre grupos dirigentes, facções ideológicas e interesses económicos eram permanentes. Sem uma hegemonia social, a conciliação era difícil. O antagonismo entre a Igreja e o mundo laico, em particular a Maçonaria, manteve-se no proscénio da vida política durante todo o século XIX e boa parte do século XX. Paralelamente, as rivalidades entre absolutistas e liberais e entre a capital e a província perpetuaram-se tenazmente, mudando embora de feição com os tempos. Comércio, indústria e agricultura tinham mais conflitos do que afinidades. Poucos grupos económicos, ou apenas alguns grandes empresários, tinham interesses simultaneamente na finança, na indústria, no comércio e, eventualmente, na propriedade fundiária. Burguesias e grupos económicos eram mais rivais do que solidários. Em Lisboa e no Porto, mas sobretudo na capital, tinha-se desenvolvido uma classe média de importância relativa, composta por profissões liberais, comerciantes, funcionários de Estado e descendentes de proprietários rurais. Desempenhava papel político importante, apesar de não possuir grandes recursos de capital ou de saber técnico. Sendo embora numericamente reduzida, o seu peso na vida pública era razoável, quanto mais não fosse pela agitação e pela perturbação que gerava. Entre os seus representantes, oficiais do exército e da marinha, intelectuais, jornalistas e políticos mais ou menos profissionais foram os veículos das ideias republicanas que vencem durante a rápida revolução de 1910, para o que contarão esporadicamente com o apoio de alguns

sindicatos e outras associações de classe dos trabalhadores industriais da capital. A implantação da República não trouxe estabilidade política. Certas lutas sociais, em Lisboa e no Alentejo, desenvolver-se-ão desde então. Conflitos políticos, por vezes armados e sangrentos, prosseguirão até 1926. Muitos destes ocorrerão sob o signo da oposição entre monárquicos e republicanos. Todavia, já não se trata de uma verdadeira questão de regime, ou é-o cada vez menos: o que está em causa é a apropriação do aparelho de Estado, independentemente da forma do regime. Uma parte importante das receitas de Estado provinha de contratos e empréstimos externos e de arranjos diversos estabelecidos com banqueiros, industriais e comerciantes estrangeiros. O acesso aos postos de comando do Estado era o meio mais seguro de obter oportunidades de negócios, fontes de rendimento e empregos. Por via do proteccionismo ou da importação, os negócios dependiam estreitamente do poder político e da decisão administrativa. Por outro lado, num país onde o mercado e o nível de vida das populações eram muito reduzidos, as encomendas de Estado (obras públicas, fornecimentos militares, equipamentos, etc.) eram indispensáveis para a sobrevivência de muitas empresas. Finalmente, numa economia onde a indústria e os serviços cresciam muito lentamente, os empregos de Estado eram bens raros e desejados: meios de influência, eram também objecto de lutas políticas. A luta entre patrões e operários teve diversos episódios e algumas fortes tensões, mas nunca foi de real âmbito nacional. Era geralmente limitada a certos sectores, regiões, empresas ou localidades. Em certo sentido, as lutas partidárias e políticas também não eram verdadeiramente nacionais nem mobilizavam largas camadas da população da província. Tinham todavia um carácter imediatamente político e nelas participavam as

instituições, a Igreja, as forças armadas, partidos, clubes e funcionários. Os operários de Lisboa agitaram-se frequentemente, chegando a decretar a greve geral em 1912, enquanto os trabalhadores rurais do Alentejo e do Ribatejo se empenharam em lutas enérgicas em 1911 e 1912. Com estas excepções, a maior parte das lutas sociais eram pouco mais do que desordens ou «casos de polícia», eventualmente uma ou outra revolta localizada. O desemprego era significativo, as reservas de força de trabalho abundantes e a emigração permanente: nesta situação, a força do movimento operário era reduzida, tanto mais que a ele não estavam ligados os principais partidos políticos. Era grande a clivagem entre, por um lado, as regiões de Lisboa e do Porto e, por outro, o resto do País. A política e a economia, as decisões e os rendimentos, o emprego e os equipamentos, concentravam-se nas duas grandes cidades. A industrialização reforçou este desequilíbrio, mesmo quando assentou arraiais em pequenas vilas de província, geralmente a poucos quilómetros das duas cidades: Almada, Barreiro, Setúbal, Vila da Feira, Braga, Guimarães ou São João da Madeira. A história do poder central e do comércio marítimo, assim como a pobreza de matérias-primas, estão na origem deste forte desequilíbrio regional, agravado pela civilização industrial e pelo Estado moderno. No princípio da República, em 1910, Lisboa cresce de modo acelerado: a capital acolhe já 70% da população urbana e as suas taxas de crescimento são duas vezes as do resto do País. A agricultura ocupa ainda mais de 60% da população activa, enquanto a indústria apenas emprega 21%. A concentração de Lisboa tem ainda outros valores: 62% dos Lisboetas sabiam ler e escrever, ao passo que no conjunto do País o analfabetismo atinge 75%10. Apesar do crescimento acelerado de Lisboa, o desenvolvimento económico e industrial de Portugal está

longe do dos países europeus. No princípio do século atraso em relação à média europeia é considerável. Indicadores do desenvolvimento económico, 1910 Indicadores do desenvolvimento económico, 1910  

XX,

o

11

Portugal Europa

Produto nacional bruto, por habitante (dólares de 1960)

290

499

População residente em cidades com mais de 5000 habitantes

17%

36%

0,033

0,104

Consumo de ferro: quilos por habitante

11,1

80,0

Consumo de carvão: quilos por habitante

200

1509

Indústria têxtil: número de fusos de algodão por 1000 habitantes

80,6

237

Caminhos-de-ferro: quilómetros de via construída por quilómetro quadrado

A produção industrial limitava-se a algumas empresas de média dimensão instaladas nas regiões de Lisboa e do Porto. Além dessas, contavam-se por centenas, ou alguns milhares, as pequenas fábricas, fabriquetas e pequenos ateliers que, também nas duas cidades e nas regiões vizinhas, empregavam em geral menos de cinco operários. A burguesia industrial e financeira não era rica, nem importante em número. A parte essencial da vida económica, sobretudo os seus sectores mais modernos, girava à volta do Estado: financiamento dos orçamentos por via dos empréstimos internos, empréstimos internacionais, importações e respectivas autorizações, contratos de fornecimento ao exército, obras públicas, tráfego colonial, caminhos-de-ferro e mesmo empregos. Se é certo que a liberdade de comércio levou gradualmente a melhor desde os anos 50 do século XIX, também é verdade que um certo proteccionismo esteve sempre em vigor. O comércio livre manteve-se razoavelmente controlado, submetido a autorizações, às influências políticas e às

clientelas, condicionado pelas encomendas de Estado e pela disponibilidade de moeda e de crédito. A apropriação do Estado pelos republicanos, depois de duas décadas de crises políticas e de mal-estar económico, não resolveu nada: os conflitos prosseguiram e agravaramse. Durante 16 anos, até 1926, 46 governos tomaram posse, alguns dos quais não ficaram em funções mais do que poucos dias. Sem hegemonia social nem direcção política, faltava a autoridade. As forças armadas estavam divididas, envolvidas frequentemente em lutas partidárias, mas agindo também com a sua própria autonomia política. Os militares intervieram múltiplas vezes na vida política: golpes, intentonas e levantamentos sucediam-se. O mundo rural vivia relativamente à margem destas lutas. Mesmo se o capitalismo estava presente um pouco por todo o lado, sobretudo nas regiões vinícolas e cerealíferas, a verdade é que o autoconsumo e a subsistência predominavam no Norte e no Centro, quer dizer, em três quartos do País. No Sul, no Alentejo e no Ribatejo, a situação é diferente. A grande propriedade domina, aí se desenvolveram as principais empresas de capitalismo agrário, a produção é geralmente comercializada e são numerosos os assalariados agrícolas. Os proprietários fundiários do Sul pertencem, uns, a antigas aristocracias; outros, em maioria, são de origem recente, meados do século XIX. Em conjunto, representam um poder certo, constituem um real grupo de pressão. Com fortuna e alguma instrução, próximos de Lisboa e dos centros de decisão, têm entrada fácil nos corredores do poder. Com as suas próprias organizações, relativamente mais fortes do que as de outras regiões, têm capacidade para influenciar as decisões e os governos, o que não deixarão de fazer cada vez que os seus interesses o exigem. O trigo é uma cultura nacional. O seu mercado, assim como o da farinha e do pão, está mais ou menos

organizado em função do consumidor citadino. Onde falta, crescem tensões, desordens e revoltas. Nas regiões onde subsistem o milho e o centeio, as instabilidades do trigo não terão grandes consequências. Mas a civilização do trigo e do pão urbano, «o pão branco», vai penetrando por todo o lado, vilas e aldeias. Quando a produção nacional não chega para as necessidades, importa-se: fazem-se negócios, mas ameaçam-se os preços, visto que os custos nacionais são superiores ao do trigo importado. A arbitragem do Estado no sector do trigo e do pão é necessária e superior à que exerce em outros sectores da vida económica. Eis que implica a acção de grupos de pressão, as influências políticas e o tráfego respectivo. Os proprietários do Sul, tal como os grandes comerciantes e os industriais da moagem, estão atentos e mais ou menos organizados, criam hábitos de cortejar e frequentar o poder. No resto do País não tiveram equivalente, com excepção eventual dos produtores e comerciantes de vinho. Os agricultores do Sul compreenderam há muito o poder, souberam influenciá-lo ou mesmo exercê-lo. Ligaram-se de tal modo ao Estado que dele ficaram dependentes. Bem mais tarde, já na actualidade, privados de poder e de relações no topo da administração pública, terão dificuldades em agir. Aliás, não agirão. O início do regime republicano é marcado por lutas sociais nos campos do Sul12. Não é a primeira vez: ao longo do século XIX são numerosos os conflitos, as tensões e os movimentos reivindicativos. Eram todavia esporádicos, isolados, locais e sem organização. No entanto, desde 1911, multiplicaram-se os sindicatos rurais concelhios. Um importante processo reivindicativo é desencadeado: os trabalhadores lutam por «tabelas», embriões de contratos colectivos, e outras condições de trabalho. Durante dois anos realizam-se dezenas de lutas e de greves: são geralmente locais, mas o movimento toma inegável feição

regional. As expectativas criadas pela República são grandes, mas a repressão também o será. Em Abril de 1913 contam-se já 127 sindicatos de trabalhadores rurais no Alentejo e no Ribatejo13. Mais do que uma real organização, esta proliferação é resultado da efervescência. Dez anos mais tarde, contar-se-ão 300 sindicatos. Mas, no fim da República liberal, em 1926, pouco ficará deste movimento de classe, tanto menos quanto os sindicatos livres são proibidos a partir dos anos 30. O regime de Salazar, o «Estado Novo» corporativo, estabelece-se gradualmente a partir de 1926, depois do golpe de 28 de Maio. Vários episódios conduzem Salazar ao cargo de primeiro-ministro. À ditadura militar, que dura cerca de sete anos, sucede uma ditadura civil, depois do plebiscito constitucional de 1933. Apesar da rapidez e da eficácia do golpe militar, o novo regime demora alguns anos a instalar-se através de lutas pouco ruidosas. Salazar teve de sobrepor o seu poder, e o do Estado, a diversos grupos e interesses, incluindo económicos. Depois de ter conseguido o apoio dos militares, estabeleceu a autoridade do Governo sobre as forças armadas, cujas autonomia e tendências centrífugas eram notórias. Foi apoiado pela Igreja, mas teve também de lhe impor o seu poder de Estado. Mais do que proclamado ou espectacularmente conquistado, o poder político de Salazar foi pacientemente construído e consolidado, graças à utilização de todos os meios repressivos. O Estado Novo, que muito ficou a dever à desordem social e económica e à instabilidade política que o precederam, tem uma base de interesses sociais que inclui proprietários rurais, empresários, militares e a Igreja, mas goza ainda de um certo apoio do campesinato, das pequenas burguesias urbanas e rurais, do pequeno comércio e dos funcionários públicos. Tem também diante de si silêncio e indiferença. Mas sobretudo não se lhe

depara, desde o início, uma real oposição, pelo que elimina com facilidade eventuais obstáculos. Uma autoridade firme, a supressão das liberdades e a diligência das polícias vão ajudar o regime a instalar-se, a consolidar-se e a manter-se. As oposições são praticamente desfeitas e só conseguirão exprimir-se periodicamente quando as eleições vigiadas permitem uns aparentes debates. Só o Partido Comunista, fundado em 1921, consegue atravessar todo o regime. Todavia, lutando pela sua sobrevivência, o PC será quase sempre uma pequena organização clandestina e muito fechada, cujos dirigentes vivem frequentemente no estrangeiro, quando não estão na prisão. O regime encontrará na doutrina social da Igreja e no pensamento corporativo europeu da época as suas principais fontes de inspiração. Mas acrescenta um certo pragmatismo: as soluções políticas e institucionais serão bem mais portuguesas e empíricas do que importadas ou copiadas. A inclusão do regime no grupo dos fascismos europeus foi sistematicamente feita pelos seus opositores, alguns dos quais, todavia, sublinharam as diferenças que o distinguiam do seu homólogo italiano. Tratar-se-ia de um «fascismo sem movimento», pouco agressivo, muito pouco politizado, com pouco apelo às massas, mas repressivo apesar de tudo14. Internacionalmente, o regime preferiu sempre a prudência e a distância à aventura e à expressão enérgica das solidariedades. Um dos segredos do sucesso da mais longa ditadura ocidental do século XX reside sem dúvida na sua neutralidade durante a guerra de 19391945. O período que vai até ao fim da Segunda Guerra caracteriza-se pela instalação e consolidação de um regime e de um Estado submetido ao poder pessoal. Os adversários são gradualmente eliminados e afastados da vida pública, ao mesmo tempo que se afirma a ideologia e se desenvolvem as instituições. Dada a falência financeira

de quase todas as administrações precedentes, a austeridade será a primeira preocupação do Governo. Daí resultarão a breve prazo a moeda forte e estável e o equilíbrio orçamental, mas também a estagnação industrial e uma queda drástica do nível de vida das populações. Todavia, a agricultura regista um certo crescimento, em particular nas regiões cerealíferas do Sul. Defende-se a ideia de que «o pão é a fronteira do País». Este nacionalismo económico e alimentar inspira a administração, que organiza campanhas de produção de cereais, sobretudo de trigo, apoiadas por políticas de subsídios aos arroteamentos e às sementeiras. Os resultados económicos são imediatamente convincentes: durante alguns anos a produção aumenta de modo significativo. A longo prazo, as consequências são menos felizes: a erosão afectou de maneira quase irreparável largos solos que não deveriam ter sido cultivados, dada a sua pobreza e tendo em conta a sua vocação florestal. No fim da guerra, as oposições tentam tirar proveito da vitória das democracias ocidentais, mas os seus esforços são ineficazes. Uma relativa aceitação internacional, ajudada em parte pela cedência, aos Americanos e aos Ingleses, das bases militares dos Açores, contribui para a consolidação do regime. A oposição contra o regime não se vê sequer legitimada pelas democracias. Da neutralidade, Portugal retirou alguns benefícios palpáveis: continuou a obter rendimentos do comércio, em particular da venda de volfrâmio e de outros minérios necessários às indústrias militares. Um certo apoio internacional, uma moeda mais forte e mais estável, alguns recursos financeiros e a recordação da paz interna durante a guerra dos outros, eis os trunfos que permitirão o relançamento do regime depois da guerra e até aos anos 60. Anunciadas desde os anos 30 como constituindo o núcleo do sistema sociopolítico, as corporações vão sendo finalmente criadas. Começam a

realizar-se os primeiros grandes projectos de infraestruturas, inicia-se a época das obras públicas do Estado Novo, tão frequentemente propagandeadas. Importantes investimentos públicos e privados preparam o nascimento de algumas novas indústrias: ferro, cimentos, energia e química. A situação social e política continua estável, noutras palavras, bem em mãos do Governo e das polícias. No entanto, o nível de vida da população não melhora significativamente e a agricultura retoma um ciclo de estagnação de que praticamente não sairá mais. A modernização tecnológica e a mecanização progridem dificilmente. Não tendo conhecido as destruições da guerra, os Portugueses não sofreram as respectivas privações. Paradoxalmente, também não beneficiaram dos efeitos da expansão e da modernização que, na Europa, resultaram das grandes obras de reconstrução. O plano Marshall não foi desejado, terá mesmo sido recusado por Salazar, que nele via uma ingerência americana em Portugal e, eventualmente, um factor de crescimento económico descontrolado. O Governo era certamente nacionalista e orgulhoso da sua independência e não via com simpatia as aberturas políticas e a forte dinâmica económica do apósguerra. De qualquer modo, e apesar dos atrasos, os anos 50 e 60 anunciam uma nova era: assiste-se a uma real expansão capitalista, acompanhada dum crescimento industrial jamais visto. De 1953 a 1966, a produção nacional cresce a um ritmo anual próximo dos 6%; a indústria transformadora regista taxas de expansão anual da ordem dos 9%. Uma nova economia parece nascer15. A procura externa tem uma influência real: entre 1958 e 1963, por exemplo, as importações aumentam 22%, enquanto as exportações crescem 38%16. Opera-se uma reorientação económica: gradualmente, a Europa ocupa o primeiro lugar como parceiro exterior, tanto no comércio como no

investimento. As colónias perdem relativamente importância económica. Criam-se novas indústrias, seja pela modernização de sectores tradicionais (os têxteis, por exemplo), seja através da instalação de novas produções: indústrias mecânicas, eléctricas, químicas, etc. Em bastantes casos, trata-se de indústrias dependentes: componentes, produtos inacabados para exportação, montagem, tecnologia importada, investimentos externos, etc. As empresas estrangeiras, muitas vezes multinacionais, são atraídas pelos baixos níveis de salários, comparados com os praticados na Europa. Portugal não terá conhecido uma verdadeira revolução industrial, tal como ela se terá realizado, no tempo e no ritmo, noutros países europeus. Apesar disso, viveu uma industrialização lenta, irregular e desequilibrada. Nesse processo sobressaem dois períodos: o fim do século XIX e os anos 50 e 60 do século XX. O último, em particular, mudou a paisagem. Nunca o produto nacional tinha aumentado a ritmos semelhantes, nunca o êxodo rural tinha tomado tais proporções. É verdade que toda a Europa conhecia uma expansão idêntica, mas em Portugal nunca como agora um processo de transformação rápida se tinha organizado à volta da indústria. Um novo proletariado surge na sociedade: formam-se operários rapidamente, nas próprias fábricas. Camponeses e assalariados rurais transformam-se, em poucos meses ou semanas, em operários especializados nas fábricas de montagem de automóveis, nos estaleiros navais, na siderurgia e noutras. A urbanização desenvolve-se ainda mais rapidamente, mas também caoticamente. Crescem os tristes e desordenados arredores de Lisboa, Porto e Setúbal, nascem as primeiras cidades-dormitórios, mas também os bairros-de-lata. Em 1960, Lisboa e Porto concentram 70% da população urbana de todo o País17. Era essa a parte de Lisboa sozinha no princípio do século. Na construção e na indústria há trabalho para toda a

gente. Enfim, quase. Com efeito, o número de emigrantes cresce aceleradamente desde 1961. Em 1965, o número de emigrantes ultrapassa o saldo demográfico da população. Quer dizer, a partir de então, Portugal perde anualmente população. Desde o século XIX e até aos anos 30, e de novo depois de 1950, a emigração dirigia-se sobretudo para a América, o Brasil em primeiro lugar, mas também os Estados Unidos. Agora, os emigrantes vão preferir a Europa, a França em particular. Será pois mais fácil partir, mesmo clandestinamente. Sem soluções económicas capazes, o Governo organiza a emigração legal e tolera a clandestina. Na Europa, os emigrantes ficam bem mais perto de casa. Será mais fácil chamar os parentes ou visitá-los durante as férias. As ligações familiares mantêm-se melhor do que no caso da emigração transatlântica. As remessas monetárias são testemunho dessa permanência. As partidas para o estrangeiro tinham sido constantes desde o princípio do século, mesmo antes. Apenas a grande crise económica e a Segunda Grande Guerra tinham aberto algumas excepções. Todavia, nada era comparável com a verdadeira «sangria» dos anos 6018. Saldos migratórios (em milhares) 1900-1911

– 212,5

1911-1920

– 352,7

1920-1930

– 17,5

1930-1940

+ 64,6

1940-1950

– 128,7

1950-1960

– 680,9

1960-1970

– 1355,8

Entre 1950 e 1970, mais de meio milhão de camponeses

e assalariados rurais (e respectivas famílias) abandonaram o País, enquanto muitos outros deixaram simplesmente o sector primário Em 1950, 51% da população activa trabalhava na agricultura; em 1970, menos de 32%. Noutras palavras, registou-se nestas duas décadas o mais formidável êxodo rural da história. Aldeias inteiras, primeiro do Norte, do Centro e do Algarve, do Alentejo depois, esvaziam-se em Lisboa, em Setúbal, no Barreiro e no Porto, ou no estrangeiro. Nestes 10 a 20 anos, a quase totalidade dos municípios e a maioria dos distritos perderam população em números absolutos. Vila Real, Viseu, Évora e Beja perderam até 5% dos seus habitantes, enquanto Lisboa e Porto ganharam 13% e 17%. Os habitualmente lentos processos de mudança das estruturas demográficas dão agora sinais bem visíveis duma aceleração19. Anos

População total (em milhões)

População agrícola em percentagem da população activa total

1900

5,0

65

1910

5,5

59

1920

5,6



1930

6,4

55

1940

7,2

52

1950

7,9

51

1960

8,3

47

1970

8,1

32

Esta população está muito desigualmente repartida no território: nos distritos do Norte, a densidade média atinge valores próximos dos 150 habitantes por quilómetro quadrado, enquanto nos do Sul não chega a 28 (a média nacional é de 92). A emigração começou obviamente pelas

regiões mais densamente povoadas, mas, no fim do período observado, os emigrantes vêm de todo o País, litoral e interior, cidades e campos. Mesmo os despovoados distritos do Sul perderão população. Apenas as regiões litorais à volta de Lisboa e do Porto estão em franco crescimento. Em 1960, estes dois distritos concentram 31% da população total, 46% do produto interno e 58% do produto industrial20. As classes médias urbanas e a pequena burguesia estão em plena ascensão. Profissões liberais, técnicos de toda a espécie, contabilistas e guarda-livros, funcionários públicos, secretárias, comerciantes, hoteleiros, estudantes, vendedores, «viajantes» e professores multiplicam-se e conferem a Lisboa uma relativa impressão de modernidade. Dado o crescimento muito desequilibrado, esta nova tendência parece só beneficiar Lisboa. Na capital, onde vivem 17% dos Portugueses, encontram-se 53% das sociedades comerciais e industriais, 48% dos seus empregados e 62% das suas remunerações. Em conjunto, Lisboa e Porto acaparam 45% dos estudantes do ensino superior, 58% das profissões liberais, 47% das escolas secundárias e 70% das sociedades21. Além desta concentração em termos quantitativos, os indicadores sociais reflectem também as clivagens existentes. A média nacional dos salários agrícolas é, em 1960, de 27$; mas Lisboa oferece 37$ e Évora apenas 23$; no conjunto do País, há 0,9 médicos por 1000 habitantes, mas 2,7 em Lisboa e 0,3 em Vila Real; o consumo nacional de energia eléctrica é de 71 kWh por habitante, mas é de 191 kWh no Porto e apenas 5 kWh em Bragança. Em resumo, fora das duas grandes aglomerações, uma espécie de deserto demográfico avança lentamente e as condições de vida não melhoram. Deste desequilíbrio, mas também desta rápida mudança, os principais responsáveis, talvez em partes iguais, são a indústria e a emigração. Os poucos grandes grupos industriais e financeiros

portugueses nascem ou desenvolvem-se nesta época. Em Lisboa, em 1970, pela primeira vez desde há longas décadas, fazem-se negócios, investe-se, especula-se. Surge até uma espécie de febre da Bolsa, na qual participam as classes médias. A mitologia do dinheiro fácil e do «génio financeiro» improvisado floresce e o respeito pela legalidade das operações não parece ser a primeira preocupação dos novos adeptos do jogo financeiro. Tudo isto é tão rápido que em 1972-1973 se sentem já ameaças de inflação e consequências da facilidade. As causas deste estado de coisas não residem apenas na economia portuguesa. Além das despesas militares e das remessas dos emigrantes, factores externos exercem as suas influências. Os primeiros sinais da crise económica ocidental, em particular da inflação, fazem-se também sentir em Portugal, cuja economia está agora bem ligada às dos países europeus. Apesar dos atrasos e dos desequilíbrios, mau grado o império e a guerra, não obstante o carácter anacrónico do regime de ditadura, Portugal está, de modo definitivo, social e economicamente integrado na Europa. É uma periferia fraca e frágil, atrasada e subalterna, mas é a Europa. Outros factos ilustram esta evolução social através da qual a modernidade parece finalmente introduzir-se. O analfabetismo, por exemplo, diminui sensivelmente. Taxas de analfabetismo (em percentagem) 1920

68

1930

66

1940

56

1950

45

1960

32

1970

27

As taxas relativas aos meados do século são impensáveis na Europa, na mesma época. São parecidas com as da Inglaterra do século XVIII22. Todavia, apesar de elevados, estes índices mostram, na sua evolução, uma mudança. Também na administração se assiste a uma certa transformação. O planeamento faz os seus primeiros passos, no meio de lutas políticas internas ao regime e contra notórios obstáculos culturais. Os Planos de Fomento são elaborados e o «industrialismo» está na moda. Durante os anos 60 são elaborados ou inicia-se a realização de quase todos os grandes projectos de que hoje se fala, ou que ainda hoje estão em construção: autoestradas, regadio, celulose, portos, estaleiros navais, siderurgia, energia hidroeléctrica, petroquímica, etc. Estas obras são parcialmente financiadas pelas receitas que, nesta época, mais crescem: os rendimentos do turismo e as remessas dos emigrantes. A ambos se ficará a dever o equilíbrio ou o excedente da balança de pagamentos durante vários anos. Entretanto, o mundo rural não vive os anos fastos da indústria e das grandes cidades. Centenas de milhares de camponeses e de assalariados tiveram de deixar a agricultura, sem que isso represente uma verdadeira melhoria da produtividade. A sua partida forçada não é aliás o resultado de um pujante processo de modernização da agricultura. Desde o fim da guerra, com efeito, o crescimento do sector é mais lento do que os outros, até que a estagnação se impõe23. Taxas de crescimento anuais (em percentagem) 1940-1950

1950-1960

1960-1970

1970-1973

Sector primário

2,1

1,3

0,9

0,2

Sector secundário

3,5

6,2

7,5

11,3

Nos finais do século

XIX,

o crescimento agrícola tinha

ficado a dever-se às exportações, mas não fora acompanhado por uma industrialização suficiente: esta distorção criou sem dúvida obstáculos ao desenvolvimento ulterior. No terceiro quarto do século XX, a situação parece de certo modo inversa: o crescimento industrial (que também ficou em parte a dever-se às exportações) não foi acompanhado pelo desenvolvimento agrícola, nem por uma reforma agrária, ou transformação das estruturas agrárias24. No conjunto, a industrialização que se foi processando durante a última centena de anos foi-o sempre com um grande atraso em relação à Europa. Até aos anos 50, a distância aumentou sempre. Só a partir de então é que as taxas de desenvolvimento económico ou de crescimento foram semelhantes às que se verificavam nos países europeus. Produto nacional bruto por habitante em percentagem do PNB por habitante dos países desenvolvidos e em percentagem do PNB por habitante da Itália25 Anos

Portugal/Europa

Portugal/Itália

1860

86

92

1913

45

66

1950

37

65

1975

38

59

Na esfera social e económica, três características marcam a década de 60: o crescimento industrial, a emigração e a estagnação agrícola. Dois acontecimentos políticos maiores dominam o mesmo período: a guerra colonial e o afastamento (sucessão e morte) de Salazar. No princípio de 1961, centenas de mortos, na população civil e nas forças armadas portuguesas, assim como entre as populações locais e os grupos revoltados, marcam o início das guerras coloniais. No fim do ano, a União Indiana

apropria-se de Goa e outros domínios portugueses do subcontinente. Três anos depois, também a Guiné e Moçambique estão em guerra. Os movimentos independentistas e a descolonização tinham já feito desaparecer quase todos os impérios e chegavam também ao ultramar português. Salazar e o seu Governo não transigem nem negociam. O regime endurece, mas a verdade é que esta «causa nacional» o vai reforçar durante alguns anos. O esforço militar e financeiro é colossal, atingirá, em certos anos, 45% do orçamento e mais de 10% do produto nacional. Quase 200 000 homens estarão em armas na metrópole e em África26. O País nunca conhecerá um estado de guerra propriamente dito. Os combates desenrolam-se a milhares de quilómetros e a actividade económica colhe alguns benefícios das despesas militares. Por outro lado, a guerra coincide com o período de mais forte crescimento económico, tanto europeu como português. O desemprego desapareceu quase por completo devido à emigração. As classes dirigentes apoiam em princípio o esforço militar. As classes médias nem sempre revelam o apoio e a mobilização necessários: estão bem mais atraídas pelas carreiras profissionais, pelos negócios e pelas novas perspectivas económicas. No início da guerra, o regime parece receber um capital suplementar de legitimidade: para muita gente, o império faz parte da Nação e não é possível conceber facilmente o seu fim. Com o tempo, sem que a oposição tenha para isso muito contribuído, a indiferença cresce. Pouco a pouco, os candidatos a oficial vão faltar e a Academia Militar conhece graves problemas de recrutamento. Os sacrifícios de guerra vão pesar sobre um número cada vez mais reduzido de quadros militares e de oficiais. Por outro lado, desertores, mas sobretudo refractários e faltosos, partem para o estrangeiro em números crescentes. O poder político não consegue criar ou manter um espírito de mobilização nacional. Os

Portugueses, a começar pelos jovens oficiais, esperam uma solução política para a guerra. Na década de 60, mais de meio milhão de portugueses passaram pelas forças armadas (e a maior parte por África) e mais de um milhão emigrou para a Europa. O isolamento internacional é considerável: a maior parte dos países do terceiro mundo e os países socialistas exprimem frequentemente a sua hostilidade. Mesmo alguns países ocidentais fazem saber que não estão dispostos a apoiar uma guerra que lhes parece anacrónica e que sensibiliza a opinião pública. Mas também é verdade que o apoio discreto mas eficaz dos antigos aliados e dos membros da NATO nunca faltou ao Governo. A doença afasta Salazar do poder em 1968. Até à sua morte, em 1970, não terá mais influência na vida política. O que poderia ser um trauma, o afastamento e a sucessão do responsável por mais de 40 anos de regime autoritário, acabou por se passar sem grandes perturbações imediatas. O sucessor, Marcelo Caetano, goza à partida de um forte capital de expectativa. É um homem do regime, um dos seus mais antigos «barões», mas muitos pensam que ele vai mudar alguma coisa. Outros, certamente em minoria, pensam que se trata de «um homem de transição» e que os problemas em aberto não poderão ser resolvidos por ele27. As questões centrais, e motivo de muitas esperanças, são a guerra e as liberdades. Tudo se vai decidir na dosagem entre a continuidade e a mudança. Mas M. Caetano perde-se nas hesitações. Não consegue, se alguma vez o desejou, liberalizar o regime, nem sequer manter a sua unidade. Às forças armadas, que entretanto tinham conseguido uma posição militarmente mais confortável em Angola e em Moçambique, não consegue explicar como concebe a condução da guerra ou o seu fim. Aos que a queriam prosseguir, não lhes dá a garantia da sua firmeza. Os opositores, não os conquista. Irritou a «velha guarda» do regime, fazendo neles crescer a

intranquilidade ou a dúvida; frustrou os democratas, não concretizando praticamente nenhuma medida de real liberalização. Dentro das forças armadas, a agitação e o mal-estar atingem níveis insuportáveis para um país em guerra. A crise da instituição militar desenvolve-se durante os últimos anos do regime. O Governo é incapaz de encontrar a solução política que muitos esperam. Rivalidades profissionais entre milicianos e oficiais do quadro criam tensões difíceis de resolver e com as quais o Governo não sabe ou não consegue lidar. As práticas seguidas para as promoções e as remunerações eram discutidas e contestadas. Os oficiais do quadro sentiam-se francamente prejudicados: além das várias comissões de serviço, tinham agora de suportar uma concorrência «desleal» por parte dos milicianos. A crise era todavia mais vasta, não se limitava aos aspectos profissionais, mesmo se foram estes o fio da meada por onde tudo começou. O que é certo é que milhares de famílias das classes médias estavam separadas durante longos anos. Por outro lado, era imensa a clivagem cultural e geracional entre os comandantes e os soldados e jovens oficiais. A maior parte dos generais eram jovens oficiais dos anos 30: a sua vida activa era a do regime de Salazar. Não eram sempre bem vistos pelos tenentes, capitães e majores, do quadro ou milicianos: com alguma fortuna, vivendo sobretudo em Lisboa, tendo poucos contactos com o campo de guerra, tinham pouca experiência de África, mas comandavam e tinham interesses económicos em empresas do Estado ou privadas. Os milicianos, pelo seu lado, estavam desejosos de retomar o mais depressa possível os seus estudos interrompidos ou a sua vida profissional. Perder «os melhores anos da sua vida», só por uma causa e uma recompensa: uma e outra pareciam insuficientes. Influenciados pelos movimentos estudantis dos anos 60,

pelas ideias socialistas e pelo espírito anticolonialista, não eram muitos os que acreditavam na guerra, no império, ou mesmo no regime. Ora, os milicianos eram indispensáveis à guerra, dada a crise do recrutamento profissional. A sua importância era crescente, mas não viam a compensação em dinheiro, em poder ou em posição social28. Mas os milicianos desempenhavam ainda outro papel: o de ligação entre os oficiais do quadro e o «mundo», a sociedade, a universidade, a cultura e as ideias. Contribuíam assim para uma espécie de abertura das estruturas militares à sociedade. Por este ou outros modos, as forças armadas estavam condicionadas pela sociedade. Não havia praticamente família onde não se contasse um soldado e um emigrante. Por vezes, um ferido de guerra ou um soldado morto. Para várias gerações, dois a seis anos de interrupção das suas vidas eram as perspectivas de futuro imediato. Entretanto, a evolução da sociedade durante os últimos anos tinha conduzido ao crescimento considerável das classes médias. Com elas e com alguma animação económica, cresciam as aspirações de promoção social, de cultura e de consumo. Mais perigosas ainda, as aspirações de liberdade. Ora, o regime estava incapaz de absorver ou satisfazer estas novas aspirações. Do ponto de vista político, era impossível o regime liberalizar-se por causa da guerra. Economicamente, também o crescimento e a expansão tinham limites internos e internacionais. Os limites não eram todavia sentidos, todos queriam aproveitar. Os novos modos de vida das classes médias urbanas estavam a mudar rapidamente os padrões de comportamento. As novas gerações de universitários, os oficiais milicianos, os próprios jovens oficiais de carreira, os técnicos, as profissões liberais e mesmo empregados bancários entravam em choque com as estruturas rígidas da sociedade e com o conservadorismo do regime. Nas

grandes cidades, mas sobretudo em Lisboa, vivia-se já um ambiente de liberalização que não correspondia de todo às tendências do regime e do sistema político. Os empregos no sector terciário multiplicavam-se, subiam os salários e o consumo aumentava significativamente. Ecos dos acontecimentos de Maio de 1968 em Paris, dos novos movimentos culturais americanos, do feminismo em ascensão na Europa e de novos valores da sociedade permissiva chegavam a Lisboa com facilidade. As campanhas contra a guerra no Vietname e de solidariedade com os movimentos de independência do terceiro mundo encontravam rápidas simpatias em Lisboa, tanto mais que o paralelo com as guerras de África era imediato. As crises estudantis e o crescimento dos movimentos estudantis, quase ininterruptos entre 1962 e 1970, estavam ligados aos movimentos sociais europeus e aceleravam a mudança em Portugal. Nas Universidades de Lisboa criaram-se «guetos» de liberdade, debatia-se a guerra colonial e o socialismo, circulava toda a espécie de literatura e imprimiam-se textos políticos e revolucionários, actividades inimagináveis no resto do País, mas que viriam a ter inegáveis consequências. Ideias e valores, filmes e livros, novos usos e costumes, encontravam fáceis adeptos, penetravam a sociedade e até nas forças armadas encontravam eco, dada a sua particular constituição. Mais grave ainda, entravam em conflito e em contradição com uma longínqua e anacrónica guerra em África. O próprio aparelho de Estado conhecia irreversíveis mudanças, que, embora localizadas, viriam a ter influência no futuro. Começavam a aplicar-se técnicas de planeamento económico e social, multiplicavam-se os gabinetes de estudo e planeamento nos ministérios e departamentos oficiais: nesses locais, novas gerações de profissionais interrogavam-se sobre a sociedade, o que não é seguramente pacífico num sistema fechado. Intelectuais

de esquerda, tecnocratas liberais e universitários portadores de um novo espírito ingressavam nos gabinetes de estudos, nos bancos, em agências de publicidade, nos jornais e na rádio. A sociologia e a psicologia social, sem falar nas diversas disciplinas do marxismo, apesar de proibidas oficialmente, ensinavam-se nalgumas escolas, incluindo na Academia Militar. Era difícil fechar as portas que se abriam numa sociedade fechada, como não era fácil conter a interrogação e a dúvida que cresciam em diversos sectores sociais. A emigração teve efeitos paralelos e contribuiu para esta evolução. A questão social estava temporária e precariamente resolvida, do que resultavam as carências de mão-de-obra, a alta de salários e alguns esforços de modernização tecnológica. Aumentavam a animação económica e o consumo duma parte da sociedade. Mas sobretudo a emigração contribuía para a abertura da sociedade, tal como o turismo, que se desenvolvia também rapidamente e trazia a Portugal alguns milhões de estrangeiros por ano. Nos anos 60, os Portugueses começaram a viajar, por Portugal e pela Europa. A abertura cultural era imparável. Nada disto leva directamente ao golpe de Estado. Mas é também por causa disto que os oficiais não querem continuar a guerra. Até porque o primeiro-ministro, Marcelo Caetano, tinha dito aos generais Costa Gomes e Spínola e a todos os militares: não quero negociações, não quero separar as questões das diversas colónias, uma derrota militar na Guiné é preferível a uma negociação. Os militares não queriam ser mais uma vez os culpados de uma derrota militar, como já tinham sido os bodes expiatórios no caso de Goa. Já não estavam ideologicamente convencidos dos fundamentos políticos da guerra. Não queriam ser excluídos dos anos de fartura, de crescimento económico e de mudança de costumes que se viviam em Lisboa. Para os generais e para as velhas

gerações de oficiais, a situação vigente era excelente. Para os jovens oficiais era frustrante, corriam o risco de passar ao lado da sorte e do bem-estar. As suas razões não eram só materiais. Os seus contactos com os sectores sociais em crise de mudança e de contestação tinham contribuído para criar uma relativa disponibilidade para as ideias socialistas e anticolonialistas, ou pelo menos para a democracia e para a mudança. Os oficiais não tinham um plano político, mas tinham desejos de transformação e pretendiam que a sociedade e o regime satisfizessem as suas aspirações, o que o regime não conseguia e a guerra impedia. As influências políticas directas, por via de organização, sobre os oficiais do quadro não eram importantes. Alguns haveria que tinham tido contactos ou mantinham relações com o Partido Comunista, como sempre no passado e geralmente sem grande eficácia. Mas as outras tradições políticas, do socialismo democrático, da democracia cristã ou do liberalismo, estavam muito pouco presentes, dada a ausência das respectivas organizações. Também era muito reduzida a influência do movimento operário e sindical, cuja herança era magra e longínqua. Eram eventualmente um pouco mais vivas certas correntes republicanas ligadas ou herdeiras da tradição maçónica, mas não tinham programa nem organização. Em resumo, as influências externas sobre as forças armadas não tinham carácter orgânico, dependiam muito mais das transformações em curso na sociedade, dos movimentos sociais europeus contemporâneos e das correntes culturais em voga. Aspirações e solicitações sociais e culturais encontram na guerra e no regime autoritário obstáculos intransponíveis. Motivos de carácter profissional, em particular as promoções e os regimes de comissões de serviço, serão o ponto de partida para a contestação. Todavia, dada a situação social e política geral, a evolução ulterior é muito rápida e politizada. O livro publicado em Fevereiro de 1974

pelo general Spínola, que é mais a consequência do que a causa de uma situação, assim como a atitude tomada por ele e pelo general Costa Gomes (as duas primeiras figuras da hierarquia militar), abrem as forças armadas à discussão política e trazem para a sociedade o debate militar sobre a guerra e sobre a capacidade do Governo para a conduzir29. Tornava-se impossível conter a indisciplina e a insubordinação. Um grande número de militares, jovens oficiais em maioria, organiza-se durante os últimos meses de 1973. Depois de vários episódios, revoltam-se e derrubam o regime. Este cai com uma facilidade surpreendente: quase todas as unidades militares se passam para o lado dos revoltosos. O golpe de Estado é imediatamente apoiado por larguíssimas camadas da população em constantes manifestações. As ruas das grandes cidades, nos dias seguintes, lembram mais os dias de uma gigantesca romaria popular do que os de uma verdadeira revolução social e política. Em duas semanas, os pilares jurídicos e políticos do regime são destruídos: a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa são dissolvidas; demitidos o presidente da República e o Governo; parcialmente revogada e suspensa a Constituição. O partido único (Acção Nacional Popular), a polícia política (Direcção-Geral de Segurança, ex-PIDE) e a censura são desmantelados. Um poder provisório e improvisado é criado, sob a tutela da Junta de Salvação Nacional. Oficiais das forças armadas ocupam a quase totalidade dos postos de comando político. As chefias das forças armadas são rapidamente mudadas. O movimento militar que derrubou o regime (MFA, Movimento das Forças Armadas) surge às claras na vida pública, constitui-se em organização dentro das forças armadas e dirige-as. Surgem também instantaneamente os partidos políticos. Organizam-se uns, enquanto outros se limitam a reivindicar uma existência que ainda não está assegurada.

Entre os primeiros, o Partido Comunista e o Partido Socialista. O PC existia clandestinamente desde há 50 anos e era apoiado pela União Soviética e respectivos aliados. O PS, pequeno grupo de dirigentes políticos sem reais bases nem organização, tinha anunciado oficialmente a sua constituição no ano anterior e era apoiado pela Internacional Socialista. Os principais líderes de um e outro regressam do estrangeiro poucos dias depois do golpe. Todavia, os militantes comunistas vivendo no País são mais numerosos e estão mais bem organizados do que os socialistas. Entre as dezenas de novos partidos que proclamam a sua fundação, distinguem-se dois pela importância de que se revestem quase imediatamente: o Partido Popular Democrático (hoje Partido Social-Democrata) e o Centro Democrático e Social, próximo das correntes da democracia cristã. O poder que se instala ao fim de poucas semanas autoqualifica-se de provisório e fica nas mãos do MFA e de alguns partidos (PC, PS e PPD). Na realidade, pertence sobretudo aos organismos militares, nos quais as forças de esquerda e os oficiais mais radicais se tornam rapidamente predominantes. Grupos e personalidades de direita, ligados ou não ao antigo regime, são geralmente excluídos das primeiras partilhas. A solidez do poder é pura aparência. Num clima de instabilidade crescente, onde dominam o provisório e o precário, toda a gente se procura politicamente e todos procuram o poder. A revolução vai começar. 8 Orlando Ribeiro, Ensaios de Geografia Humana e Regional, Lisboa, 1970; Manuel Vilaverde Cabral, Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XX, Lisboa, 1976; Vitorino Magalhães Godinho, Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, Lisboa, 1975; e Albert Silbert, Do Portugal do Antigo Regime ao Portugal Oitocentista, Lisboa, [1972]. 9 Para este período e até aos anos 1910-1912, ver em particular Vasco Pulido

Valente, O Poder e o Povo, Lisboa, 1975. 10 A. H. Oliveira Marques, História da Primeira República: Estruturas de Base, Lisboa, 1979; António Barreto e Maria Filomena Mónica, Retrato de Lisboa Popular — 1900, Lisboa, 1982; e V. P. Valente, op. cit. 11 Jaime Reis, O Atraso Económico Português em Perspectiva Histórica, Working Papers, Universidade Nova de Lisboa, 1984. 12 José Pacheco Pereira, Conflitos Sociais nos Campos do Sul de Portugal, Lisboa, 1983. 13 J. P. Pereira, op. cit., e M. V. Cabral, op. cit. 14 Manuel de Lucena, O Salazarismo, Lisboa, 1975, e O Marcelismo, Lisboa, 1976. 15 Carlos Almeida e António Barreto, Capitalismo e Emigração em Portugal, Lisboa, 1969. 16 Adérito Sedas Nunes, Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento, Lisboa, 1968. 17 Adérito Sedas Nunes, Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento, Lisboa, 1968. 18 C. Almeida e A. Barreto, op. cit., e Eugénio Castro Caldas, A Agricultura Portuguesa no Limiar da Reforma Agrária, Oeiras, 1978. 19 Instituto Nacional de Estatística (publicações diversas) e E. C. Caldas, op. cit. 20 M. Santos Loureiro, Assimetrias Espaciais de Crescimento no Continente Português, Lisboa, 1965. 21 A. S. Nunes, op. cit. 22 Cario Cippola, Litteracy and Development in the West, Londres, 1969; Maria Filomena Mónica, Educação e Sociedade no Portugal de Salazar, Lisboa, 1978; e E. C. Caldas, op. cit. 23 António Monteiro Alves e Fernando Gomes da Silva, A Contribuição do Sector Agrícola para o Desenvolvimento Económico em Portugal, Lisboa, 1965; Afonso de Barros, A Reforma Agrária em Portugal, Oeiras, 1979; A. S. Nunes, op. cit.; C. Almeida e A. Barreto, op. cit.; E. C. Caldas, op. cit.; e IFADAP, Relatório e Contas. Gerência de 1979, Lisboa, 1980. Ver ainda Ministério do Plano, Plano de Médio Prazo, Lisboa, 1977. 24 Miriam Halpern Pereira, Assimetrias do Crescimento e Dependência Externa,

Lisboa, 1974, e, da mesma autora, Livre-Câmbio e Desenvolvimento Económico, Lisboa, 1972. 25 Jaime Reis, op. cit., e Paul Bairoch, «Europe’s Gross National Product 18001975», in Journal of European Economic History (1976), vol. 5. 26 Em 1974, os efectivos das forças armadas portuguesas eram cerca de 200 000 homens, assim distribuídos: exército, 170 000, dos quais 120 000 a 130 000 em África; aviação, 16 000; marinha, 18 000. As duas principais polícias, a Guarda Republicana e a Polícia de Segurança Pública, mantinham no activo 10 000 e 16 000 homens, respectivamente. Um pouco menos de 3% da população prestava serviço militar efectivo. Na mesma época, só três países ultrapassavam esta proporção: o Vietname do Sul, 5,5%; Israel, 4%; e o Vietname do Norte, 3,2%. Os orçamentos militares portugueses oscilavam entre os 7% e os 10% do produto nacional bruto. Sobre esta matéria, ver Kenneth Maxwell, «The Hidden Revolution in Portugal», in The New York Review of Books (Nova Iorque), Abril de 1975 e Maio de 1975. 27 António Barreto, «O estádio fascista de desenvolvimento do capitalismo», in Polémica (Genebra), n.º 1, 1970. 28 Kenneth Maxwell, op. cit. 29 António de Spínola, Portugal e o Futuro, Lisboa, 1974.

CAPÍTULO II A AGRICULTURA E A SOCIEDADE RURAL

Desde os meados do século XIX e até à época contemporânea, ocorreu na agricultura portuguesa um número considerável de mudanças, nomeadamente tecnológicas. Mencionem-se a mecanização, a introdução de produtos químicos, o melhoramento de plantas, a generalização das culturas comerciais e a difusão de novas produções. Estas mudanças foram acompanhadas pela expansão das empresas capitalistas e do salariado. Trata-se, sem dúvida, de uma evolução parecida com a que se verificou noutros países, no quadro geral da industrialização, do crescimento da economia de mercado e da integração nacional dos sectores produtivos. Todavia, algumas singularidades ilustram a evolução da agricultura portuguesa. A mais saliente destas características reside no atraso geral do processo de desenvolvimento, comparado com os outros países europeus. Caminhos semelhantes foram percorridos, mas, no caso português, com décadas de atraso e ritmos mais lentos. Em meados do século XX, por exemplo, a população agrícola representa ainda metade da população activa, o que não tem quase equivalentes. Hoje mesmo, em meados dos anos 80, uma população agrícola de cerca de 26% é ainda excepção. Os atrasos são igualmente tecnológicos: todos os indicadores, como o consumo de adubos ou a utilização de máquinas, o demonstram. Um muito fraco

desenvolvimento do regadio é também testemunho do atraso: apenas 14% das terras são beneficiadas com obras de rega. Esta taxa é bem mais elevada no Norte (32%), onde os sistemas de água são eficientes, apesar de artesanais. No Sul, menos de 5% das terras são irrigadas. A «revolução forrageira», tão importante nas agriculturas dos países industrializados, está praticamente ausente de Portugal. No decurso dos últimos cem anos, as pastagens naturais foram desaparecendo, ou sendo abandonadas, tendo raramente sido substituídas por prados artificiais. A alimentação do gado faz-se hoje, por uma muito significativa parte, com rações e alimentos compostos. Assim se explica o crescente recurso às importações de milho e outras matérias-primas. A pecuária industrial, sem terra, é hoje dominante, o que tem graves consequências na balança de pagamentos. O alargamento das superfícies cultivadas e florestais constitui outra mudança importante ocorrida durante o último século, tal como ilustra o quadro seguinte30. Superfícies cultivadas (em milhares de hectares) 1875 Superfície nacional

1956-1963 8894

Superfície cultivada

2526

7512

Agrícola

1886

4762

Florestal

640

3234

Superfície produtiva não cultivada

2116

72

Superfície não produtiva

4252

1310

O País está quase inteiramente utilizado pela agricultura e a floresta. Mais de metade da superfície só no último século passou a ser aproveitada. Este fenómeno pode ser considerado um progresso, do ponto de vista da utilização

imediata dos recursos naturais. Não deixa todavia de levantar graves problemas, na medida em que as capacidades de uso das terras e as suas potencialidades nem sempre foram tidas em conta. Vastas áreas são hoje vítimas de erosão. Os critérios de conservação dos solos, de renovação da fertilidade e de adequação dos solos às culturas nem sempre foram respeitados. No conjunto do País, a agricultura não se intensificou suficientemente, e muitas vezes, em particular no Sul, tirou sobretudo partido da extensão. Por consequência, as produtividades e os rendimentos aumentaram pouco. A floresta eliminou uma boa parte da criação pecuária, deixando largas áreas para as espécies industriais de crescimento rápido (o eucalipto). Estas e a expansão cerealífera excessiva são hoje os primeiros responsáveis pela erosão e pela degradação de solos que, em certas regiões, tornaram já a agricultura impossível ou economicamente inviável. Em vez de corrigir graves desequilíbrios das estruturas agrárias e fundiárias, a evolução agrícola acentuou-os e consolidou-os. Sendo embora verdade que o número de agricultores e proprietários aumentou durante os últimos cem anos, é também certo que no Sul a distribuição da propriedade ficou ainda mais desigual, enquanto no Norte aumentou a extrema divisão das parcelas e das explorações. Apesar de uma inegável evolução, a questão agrária manteve-se viva e inquietante. Sinal de subdesenvolvimento, espelho da subordinação, o sector agrícola não teve forças suficientes para influenciar as políticas, impor uma dinâmica de desenvolvimento ou conduzir as reformas. Vejamos, um pouco mais em pormenor, os aspectos dominantes da evolução agrária31. Durante a segunda metade do século XIX, os campos conheceram uma relativa animação económica. Existiam mais perspectivas de exportações rendosas: o vinho, a

carne e os cereais tinham compradores na Europa. Os agricultores, especialmente os de dimensão razoável, beneficiaram de alguma prosperidade. Fazem-se arroteamentos, nomeadamente no Sul, e novas terras são semeadas de cereais. No seguimento das lutas liberais, vendem-se terras da coroa, de alguns nobres, das ordens religiosas e mesmo de algumas instituições públicas. Todavia, as propriedades não são divididas. Os compradores são, em grande maioria, nobres liberais, burgueses, comerciantes e gente da cidade. A reforma agrária perde uma boa oportunidade. Ao mesmo tempo, vastas áreas de terras comunais e baldias são gradualmente compradas, apropriadas ou simplesmente acaparradas por agricultores privados e proprietários que para isso têm os meios necessários ou as influências políticas. O «montado» consolida-se nesta época. Sendo uma forma razoavelmente adequada de aproveitamento dos recursos pobres de certas zonas do Sul, o montado confirma no entanto o carácter extensivo da produção, agravado, nas terras vizinhas, pela simples rotação cereal-pousio, podendo este durar vários anos. No Norte e no Centro, as pequenas explorações mantêm-se abaixo dos níveis de subsistência, socorrendo-se das receitas da emigração. Anualmente, milhares ou dezenas de milhares de camponeses partem para o Brasil e as Américas. Este período coincide com o lançamento de grandes obras públicas, caminhos-de-ferro e estradas, decisivas para a criação e o alargamento do mercado nacional. As economias locais são atingidas, por vezes destruídas. A horticultura algarvia nasce neste momento, virada para os mercados urbanos. Surgem os primeiros indícios de mecanização na produção de vinhos, aguardentes, azeite e mesmo cereais. Embora modesto, o desenvolvimento agrícola teve algum significado. Todavia, chega ao seu termo antes do fim do

século. A instauração do regime proteccionista do trigo (1889-1899) revela a mudança de perspectivas económicas. Sem industrialização notória nem desenvolvimento da economia global, o crescimento agrícola do século XIX foi sobretudo a consequência da expansão dos mercados de exportação e talvez do proteccionismo cerealífero. A crescente emigração é um dos sintomas flagrantes da fragilidade deste crescimento. Com o abrandamento dos mercados externos e mesmo a concorrência de produções estrangeiras, a crise agrícola recomeçou32. A produção alimentar volta a ser insuficiente e os défices externos aumentam. No princípio do século XX, o sistema de subsistência domina no Norte, mesmo se nalgumas zonas se assiste ao desenvolvimento do comércio e das empresas capitalistas, como por exemplo nas regiões vinícolas. No Sul, à volta de Lisboa, nas planícies alentejanas e no Ribatejo, a grande propriedade e a empresa capitalista predominam num sistema agrário comercial. Apesar disso, os atrasos tecnológicos são evidentes, em comparação com os países europeus do Norte. Também é verdade que as condições naturais não são muito favoráveis à agricultura. A par do desenvolvimento das empresas capitalistas, são mais evidentes as manifestações de miséria rural e de ruína dos pequenos camponeses. Para muitos, a emigração é a única solução. As novas indústrias não oferecem empregos suficientes. É verdade que, desde os anos 1860, aquando da venda dos bens comunais, um certo número de camponeses tinha podido adquirir algumas parcelas de terra. Mas estas eram de pequenas dimensões ou pouco férteis. Ou então o seu cultivo exigia capitais que os camponeses ou antigos assalariados e pequenos comerciantes não possuíam. Por causa destas insuficiências e graças aos efeitos da concentração e ao aparecimento de novos empresários ricos ou médios, estes camponeses perderam em pouco tempo as suas terras,

emigraram para a cidade e para o estrangeiro, ou regressaram à sua condição anterior33. Ao mesmo tempo, no Norte, prossegue a divisão da pequena propriedade. As décadas do fim do século XIX e do princípio do século XX são particularmente difíceis para os camponeses. O aprovisionamento alimentar nacional é insuficiente e conhece estrangulamentos. O desemprego e o descontentamento das populações citadinas aumentam e não são estranhos às revoltas urbanas que conduzem ao derrube da Monarquia e à implantação da República. Os grandes proprietários fundiários organizam uma oposição eficaz a qualquer tentativa de reforma agrária, tanto durante a Monarquia como após a República. Esta, aliás, não estará na origem da mudança das políticas agrárias. O proteccionismo do trigo mantém-se. A indústria, que poderia mudar indirectamente a situação na agricultura, não regista crescimento notável. As principais indústrias criadas nesta altura (têxteis, tabacos, óleos, sabões e adubos) servem-se de matérias-primas importadas, o que em nada contribui para o progresso agrícola. Apenas a viticultura se desenvolve razoavelmente. A segunda década deste século é marcada por crises de «subsistência» e de aprovisionamento. A instabilidade política dos princípios do novo regime é acompanhada por agitação e conflitos sociais, tanto nas cidades como nos campos do Sul. Entre 1910 e 1913, o desenvolvimento do sindicalismo rural (facto novo) e a eclosão de numerosas greves permitem aos trabalhadores rurais do Alentejo e do Ribatejo obter apreciáveis aumentos de salários. Todavia, mantendo-se a crise geral e o desemprego, perdê-los-ão durante e após a Primeira Grande Guerra. Os salários rurais estão, aliás, no fundo da escala, duas a três vezes inferiores aos dos outros sectores34. Salários em alguns sectores, 1914 (índices)

Agricultura

100

Vidro

195

Têxteis

135

Transportes

203

Minas

151

Tabacos

216

Construção

168

Construção eléctrica

243

A condição social e económica dos assalariados rurais do Sul é das mais desfavoráveis de todo o País. O império da grande propriedade é indiscutível. Os sistemas agrários extensivos do cereal e do montado não permitem a flexibilidade da agricultura intensiva do Norte. Constituíam, no entanto, a solução «natural» para as condições da época. No Alentejo, com excepção de algumas pequenas regiões bem demarcadas, o campesinato é pouco numeroso e não tem poder. Quem deseja comer deve trabalhar; quem quer trabalhar deve ser assalariado nas médias e grandes propriedades. Os padrões de cultura só criam emprego durante alguns períodos do ano. Nesta época, é frequente trabalhar 120 a 150 dias por ano (o que vai durar, com poucas alterações, até aos anos 1950). As mulheres trabalham ainda menos. Os rendimentos são claramente insuficientes para uma família. O assalariado não tem nenhuma garantia de trabalho: todos os dias, ou todas as semanas, terá de procurar emprego nos «montes» ou nas «praças de jorna». A época «alta» situa-se na Primavera, no princípio do Verão e num curto período do Inverno, durante a apanha da azeitona. Nesses momentos pode mesmo acontecer que a mão-de-obra falte e os salários sejam o dobro dos outros meses. Os assalariados podem trabalhar até dezenas de quilómetros da residência, o que os obriga a verdadeiras migrações entre as aldeias e os «montes». Nos períodos mortos, é frequente ver os trabalhadores correr de «monte» em «monte», tanto à procura de emprego como a

mendigar. Autênticos «bandos de fome», deslocam-se em grupo. Miseráveis, têm pouca força reivindicativa. Dum lado, o desemprego e a «reserva de força de trabalho»; do outro, a concorrência dos «ratinhos» das Beiras e outros. Entre migrantes temporários e assalariados alentejanos, a coexistência nunca foi fácil e os conflitos foram numerosos. Mesmo com os exageros próprios do neo-realismo e da propaganda política, a condição social destes homens e mulheres ficará gravada nas memórias colectivas. O trabalhador alentejano será personagem da literatura, da história e da mitologia política. A sua situação não conhecerá real melhoria antes de 30 ou 40 anos. A mudança só virá a partir dos anos 1960. Mas, aquando da revolução de 1974, os assalariados lembrar-se-ão do que viveram antes, eles ou os seus pais. A República liberal, de 1910 a 1926, não conseguiu introduzir a mudança, não foi capaz de imaginar novas políticas económicas e agrícolas. O regime não conseguiu a estabilidade. Nenhuma nova acção política pode ser prosseguida ou consolidada. Subsistiam as dificuldades económicas, as carências do aprovisionamento e os conflitos sociais e políticos. Sucediam-se os governos. O golpe de Estado de 1926 produzirá um regime autoritário e um governo forte. Nasce uma nova situação. Desde o início da ditadura militar que certos acontecimentos importantes afectam os campos do Sul. O Governo e o seu ministro da Agricultura, o coronel Linhares de Lima, lançam a «Campanha do Trigo», com dois objectivos prioritários: a auto-suficiência cerealífera e a plena utilização dos solos. Os mecanismos essenciais eram os subsídios à produção, os preços de garantia e o escoamento. Muitos proprietários aderiram, ajudados pelas condições aliciantes e a intensa publicidade. Alguns escolheram a exploração directa, mas a maioria preferiu o sistema tradicional da «seara». A «campanha» teve resultados apreciáveis35.

Produções médias de trigo, 1915-1949 (em milhares de toneladas) Anos

Média anual

1915-1919

217

1920-1924

295

1925-1929

280

1930-1934

507

1935-1939

438

1940-1944

381

1945-1949

386

Os preços garantidos a níveis elevados permitiram a muitos pequenos agricultores semear e obter rendimentos apreciáveis. Tendo em conta a sua tecnologia atrasada e a medíocre qualidade dos solos, só com esta política sobreviviam no mercado. Contudo, em menos de duas décadas, os resultados desta «campanha» revelaram-se bem mais negativos do que se imaginava. Em primeiro lugar, levou a cultura do trigo a solos pobres e marginais. As produtividades mantiveram-se baixas, vindo mesmo a descrever ulteriormente. A consequente erosão foi grande e ainda hoje vastas superfícies não foram recuperadas para outras produções vantajosas, pastagem e floresta em particular. Em seguida, esta «campanha» está na origem de uma certa decepção dos seareiros que depositaram esperanças na perspectiva de acesso à propriedade ou à exploração plena e durável. Tarde ou cedo eles vão abandonar as terras que cultivaram. Não tanto por causa dos proprietários, mas sobretudo porque aqueles solos, passados poucos anos, não garantiam a subsistência. Em conclusão, os resultados da «campanha» são mitigados. Por um lado, a produção aumentou; os

pequenos agricultores tiveram benefícios durante alguns anos; novas terras foram arroteadas; os grandes proprietários tiveram proventos consideráveis; a balança alimentar melhorou; a indústria nacional de adubos conheceu uma grande expansão. Por outro lado, os solos erosionaram-se; os seareiros mal viram os seus esforços recompensados, perdendo esperanças na fixação; os rendimentos das novas terras revelaram-se medíocres e marginais; o trigo não estava adequado a muitos solos onde foi semeado; os custos de produção do trigo mantiveram-se altos; as modalidades de produção subsidiada e de proteccionismo cerealífero travaram a evolução tecnológica e a modernização dos processos produtivos; e, finalmente, não se aproveitou a oportunidade para transformar, mesmo modestamente, a estrutura fundiária. Durante os anos 1930, outras iniciativas foram tomadas na tentativa de dar novos horizontes à agricultura, entre elas a Lei de Reconstrução Económica e diversos programas sectoriais, tais como a «colonização interna», a florestação e a hidráulica agrícola. Foi criado um organismo especial para traduzir na prática os objectivos da «colonização»: distribuir a população rural de modo mais equilibrado e realizar investimentos fundiários. Várias leis foram aprovadas e meios consideráveis foram postos à disposição. Nada que fizesse pensar numa reforma agrária. É mesmo legítimo pensar que alguns queriam evitá-la, apesar de ser notório que um certo esforço estava em curso. No papel, tratou-se de um compromisso entre os interesses estabelecidos e os que pretendiam «fazer qualquer coisa» pela agricultura. Na prática, do ponto de vista da reforma agrária, foi um fiasco. Menos de 10 000 ha foram objecto de intervenção na estrutura fundiária36. Destes, a maior parte pertencia já ao Estado, que tinha recebido em testamento as herdades de Pegões. Cerca de 200 «colonos» foram aqui instalados, os

seus descendentes ainda lá se mantêm. Também é verdade que a «colonização interna» trouxe benefícios a um número razoável de proprietários e agricultores já instalados, sob a forma de créditos baratos para investimento. A acção dos serviços florestais também merece menção. As suas intervenções eram de duas espécies: experiências de colonização, sobretudo em regiões montanhosas, e obras de florestação intensiva. As primeiras foram raras, as segundas numerosas. Para todos os efeitos, centenas de milhares de hectares foram retirados aos baldios comunais. Plantou-se pinheiro e eucalipto, vindo este último a expandir-se fortemente, servindo a crescente procura da indústria da celulose. Pastagens e rebanhos foram expulsos de vastas áreas em muitas regiões. Numerosos autores denunciam ainda hoje o espírito e a prática de tais processos. Frequentemente, os camponeses reagiam, e, não raramente, os fogos de floresta foram o seu modo de agir. De toda a maneira, a floresta contribuiu para a integração das agriculturas de subsistência e das comunidades rurais no mercado e no sistema económico. Quanto à hidráulica agrícola, os ministérios competentes (Obras Públicas e Economia) lançaram, durante três ou quatro décadas, vários projectos. Sobretudo no Sul, construiu-se um número apreciável de barragens agrícolas ou de utilização múltipla. Grandes obras de engenharia civil foram fonte de prestígio político, mas também permitiram regar muitos milhares de hectares, em particular no Alentejo. Novos métodos e novos produtos foram introduzidos, nomeadamente o tomate industrial, já nos anos 1960; e, antes disso, a cultura do arroz nos vales e nos estuários. Nas regiões mais favorecidas pela rega, o emprego e os salários aumentaram e muitas mulheres encontravam trabalho sazonal como nunca antes. No entanto, também as obras de hidráulica não estavam isentas de críticas e de erros. Uma vez mais, o poder

político não entendeu intervir na estrutura agrária. Aumentou a proletarização, assim como a agricultura errante dos seareiros. As novas e vantajosas condições da cultura regada não favoreceram a fixação dos camponeses ou de novos agricultores. Apesar do carácter público dos investimentos, foram sobretudo os grandes proprietários que beneficiaram dos empreendimentos, com relevo para os absentistas, que assim puderam aumentar as rendas sem esforço próprio. Mesmo um ministro de Salazar se elevou, em 1962, contra esta flagrante discriminação37. Por outro lado, nem sempre se tirou o melhor partido das instalações hidráulicas. Os solos regados não eram sempre os mais apropriados. Por vezes, nem sequer suportavam a rega. Ainda nos anos 1970 e 1980 se tentam recuperar barragens e perímetros regados, cuja produtividade se manteve medíocre. Obras de engenheiros civis e de políticos, os planos de rega foram por vezes feitos à margem dos agrónomos e dos economistas, quase sempre longe dos agricultores. Finalmente, a cultura do tomate, a que mais lucrou com o regadio, feita intensivamente em sistema de monocultura sem rotação, apresenta inegáveis perigos agrológicos38. Quanto ao enquadramento institucional da agricultura e do mundo rural, os responsáveis do Estado Novo tiveram as suas próprias ideias, mais ou menos originais. Por prudência e inteligência, ou porque as novas organizações não tinham genuínas raízes e tradições, ou porque era necessário estabelecer previamente as bases do poder político, nada se fez com precipitação. Até porque tudo foi feito de cima para baixo e do Governo para a sociedade civil. Os grémios são criados em 1939 e, como organizações obrigatórias, devem representar os proprietários. São dirigidos pelos «20 maiores produtores» do concelho e por alguns outros periodicamente designados pelos sócios. As eleições e as nomeações devem ser explicitamente aceites pelo Governo. Acima dos

grémios, as federações regionais, por sua vez representadas na «corporação nacional». Nas freguesias e nos concelhos, as Casas do Povo agrupavam os trabalhadores rurais e pequenos camponeses, mas os proprietários e agricultores eram também membros contribuintes. Submetidas a estreito controlo político, as Casas do Povo tinham um organismo nacional, a Junta Central, e estavam também representadas na «corporação». Além destas instituições socioprofissionais obrigatórias e tuteladas pelo Estado, os «organismos de coordenação económica» exerciam importantes funções reguladoras do comércio: fixação de preços, escoamentos e intervenções no mercado, distribuição de subsídios, estabelecimento de normas técnicas, armazenamento, etc. Mais estatais do que corporativos, estes organismos não tinham uma política muito autónoma: faziam o que o Governo lhes dizia, sendo todavia objecto de jogos de influência e de pressões dos lobbies. A evolução económica geral do sector conheceu altos e baixos. À animação dos anos 30 sucedeu um período de estagnação. Os grandes agricultores tinham lucrado com as novas políticas e a inflação. No Sul, a mecanização dava sinais de desenvolvimento, mas, paralelamente, o desemprego aumentava de novo. Fazia-se sentir uma forte tendência para a estabilização dos preços. Os salários dos trabalhadores rurais ficaram praticamente inalterados durante duas a três décadas39. Depois da guerra são introduzidas mudanças nas políticas agrícolas, como por exemplo a «lei de melhoramentos» e os novos sistemas de crédito agrícola com baixas taxas de juro, donde decorrerá um razoável aumento do investimento. Este fica todavia bem longe da grande massa dos camponeses, pequenos proprietários, rendeiros e parceiros. O crédito mútuo e o crédito supervisado são marginais. A extensão rural é medíocre. A

assistência técnica limita-se em geral aos melhores empresários40. Nos anos 50 e sobretudo 60 regista-se um mais rápido desenvolvimento da tecnologia, da mecanização, de alguns cultivos e da pecuária industrial. Os produtos químicos (adubos, pesticidas e herbicidas) conhecem o seu período de maior expansão. São os anos de mutação do Alentejo. Crescem ou consolidam-se as novas empresas capitalistas. Os proprietários absentistas e os latifundiários, se bem que ainda presentes e talvez maioritariamente, começam a ceder o lugar aos empresários e às sociedades agrícolas e comerciais. Certos trabalhos manuais e os animais de trabalho quase desaparecem. Os tractores, que há muito tinham aparecido, mas se quedavam em número reduzido, vão generalizar-se. Em 1953 contavam-se 2962 tractores em todo o País; 14 086 em 1964 e 18 000 em 196641. Um aumento de 600% em 15 anos, eis a dimensão desta mudança rápida, embora tardia. Nos distritos do Sul, o coeficiente de tractores por superfície cultivada é 10 a 30 vezes superior ao que se verifica no Norte. A modernização agrícola caminha mais rapidamente nos distritos do Alentejo, do Ribatejo e do Oeste. A mecanização coincide com um período de novo desemprego, logo seguido da emigração. Os anos 60 serão de sangria demográfica. Em poucos anos assistir-se-á a fenómenos sazonais de falta de mão-de-obra. Quem pode parte para as cidades e o estrangeiro. Vivem-se tempos de «industrialismo». O sector secundário é definitivamente predominante: cresce mais rapidamente, atrai mais investimentos e força de trabalho, tem os favores da política económica, do planeamento e do crédito. As forças do mercado impõem-se. A urbanização avança, os sectores do turismo e dos serviços crescem rapidamente. A emigração faz partir anualmente dezenas de milhares de pessoas. Os «planos de fomento» tentam

ordenar o crescimento. Mais do que pelos seus resultados, valem pelo novo espírito da administração que revelam. Para a agricultura, estes planos têm valor desigual. Só o segundo parece prestar particular atenção ao sector primário. São anunciadas reformas, tomam-se alguns compromissos. Novas leis de enquadramento são aprovadas: mais uma vez a «colonização interna»; o «parcelamento» no Sul e o «emparcelamento» no Norte são contemplados com mais vigor. Os resultados continuam, todavia, a ser medíocres. Sabe-se hoje que numerosos técnicos, agrónomos e economistas tentaram ir mais longe. No calor dos escritórios dos ministérios, fizeram propostas mais ousadas de intervenção do Estado, nomeadamente na estrutura fundiária. Mas os grupos de pressão dos proprietários foram mais fortes na Assembleia Nacional e na Câmara Corporativa. Os resultados resumiram-se a decisões razoavelmente conservadoras e boas intenções sem meios práticos42. Os outros planos, sobretudo o último, revelam quase desprezo pelo sector primário. Que as responsabilidades pertençam à evolução económica global ou às autoridades, o que é certo é que as performances agrícolas, ao longo de duas décadas, são fraquíssimas. O produto agrícola bruto, a preços constantes de 1953, é o retrato desse insucesso43. Produto agrícola bruto, 1953-1973 (em milhões de contos) 1953

16,1

1958

15,3

1963

17,3

1968

18,4

1973

18,3

Noutros termos, 14% de crescimento em 20 anos, a uma taxa anual pouco acima de 0,5% ao ano. Este resultado

esconde ainda a estagnação e o decréscimo do produto vegetal, dado que a pecuária e a floresta cresceram a taxas situadas entre 1% e 2%. Apesar de tudo, não se pode concluir que apenas houve imobilismo. Com efeito, os fracos resultados económicos e produtivos coexistem com mudanças por assim dizer dramáticas. Metade da população agrícola dos anos 40 deixou o sector. De 1950 a 1970, os activos rurais passaram de 51% a 32% da população total, devendo este último número ser excessivo, dada a existência crescente de casos de dupla profissão. A economia monetária e mercantil, assim como a agricultura comercial, penetraram toda a sociedade, apesar de o autoconsumo se manter a níveis razoáveis, acima dos 20%. Mau grado os desequilíbrios evidentes, cresceu o capitalismo agrícola, recorrendo, especialmente no Sul, às técnicas mais modernas de produção, à maquinaria, aos produtos químicos e às sementes melhoradas. Nestas circunstâncias, onde se revela a estagnação? Na produtividade, que aumenta muito pouco; na capacidade decrescente de satisfazer as necessidades alimentares da população; nos rendimentos reais dos agricultores; nos atrasos acumulados relativamente ao conjunto da economia; finalmente, nas estruturas agrárias. Em 1929-1933 produziam-se 8,3 q de trigo por hectare; 7,5 q em 1939-1943; 7,8 q em 1959-1963; e 11,2 q em 1969-197344. É pouco, se se tiverem em conta simultaneamente as potencialidades tecnológicas e o aumento da procura. Na década que termina em 1973, as produções médias da maior parte dos alimentos (com a notável excepção do arroz) situam-se a longa distância das europeias45: Produções médias de alguns cereais, 1964-1973 (em quintais por hectare) Portugal

Espanha

França

Itália

Grécia

Trigo

7,6

10,8

30,8

21,4

17,9

Milho

11,2

23,7

36,1

34,9

19,5

4,7

14,3

29,1

14,1

17,1

Cevada

Os anos que precedem a revolução confirmam a estagnação da agricultura46. Evolução dos produtos, 1969 a 1973 (índices; preços constantes) Anos

Produto bruto agrícola

Produto bruto não agrícola

1969

100

100

1970

103

108

1971

98

118

1972

98

131

1973

102

147

Também no comércio externo se encontram sinais da estagnação agrícola. Até 1973, o valor das importações alimentares e agrícolas cresceu mais depressa do que o das exportações. Em 1973, as importações representam já 88% das exportações, enquanto em 1968 eram só 70%. Em 1974 inverte-se o coeficiente: as exportações já são apenas 83% das importações. Desde então, Portugal passa a ser um importador líquido de produtos agro-alimentares. Outra maneira de ver este fenómeno, através da relação entre importações agrícolas e o produto bruto agrícola, revela a mesma situação, numa óptica mais significativa47. Importações agrícolas em percentagem do produto agrícola bruto, 1969-1974 1969

35

1970

34

1971

37

1972

43

1973

46

1974

61

Contrastando com a estagnação do sector, algumas indústrias alimentares ou utilizadoras de matérias-primas agrícolas registaram uma notável expansão. Desde meados dos anos 60, certas produções agrícolas destinadas à indústria, entre as quais o tomate, a madeira e a celulose, crescem significativamente. Certos vinhos, como o porto e os rosés, conhecem também uma expansão constante. A adesão de Portugal à AELE/EFTA, assim como os acordos assinados com a CEE, traduzem um movimento mais geral de abertura da economia à Europa e outros países da OCDE. Desenvolvem-se as exportações. A modernização tecnológica e comercial toca alguns sectores e empresas agrícolas do Ribatejo e mesmo do Alentejo. Instalam-se em Portugal umas poucas empresas multinacionais especializadas em produtos agrícolas e alimentares, trazendo técnicas modernas e novos métodos de trabalho. Estes sectores, espécie de ilhas tecnológicas, contrastam com as indústrias tradicionais48. (Valores de 1973) Número de estabelecimentos

Produção (milhares de contos)

Celulose

6

2779

Açúcar

4

1417

Contraplacados

15

869

Rações para animais

78

2604

Produtos lácteos

45

1017

Sector «moderno»:

Sector «tradicional»:

(Valores de 1973) Número de estabelecimentos

Produção (milhares de contos)

Pão e moagem

2233

3141

Lagares de azeite

3204

1242

Carpintaria

1152

1036

Serração de madeira

874

2412

Curtumes

153

1214

Conservas de carnes

319

993

Esta dualidade não é exclusiva do sector agro-industrial: está presente em toda a sociedade onde as fontes de inovação e os capitais disponíveis são insuficientes49. A produção agro-industrial traduz a coexistência da mudança e do imobilismo. Neste sector, tal como na agricultura em geral, os factores dinâmicos são exteriores. Os investimentos, os elementos de inovação, as tecnologias e até os empresários têm origem no mundo urbano: na indústria, no comércio, na finança ou mesmo nas sociedades estrangeiras e multinacionais. A mudança na sociedade rural provém de investimentos exteriores e do mercado, ou de mutações globais do sistema, tais como a industrialização, a urbanização e a emigração. Ora, a rendibilidade do capital é, na agricultura, menor do que na generalidade dos outros sectores. Além disso, as transformações da agricultura foram menos profundas e menos rápidas por outras razões: porque as estruturas sociais e fundiárias constituíram um obstáculo ao desenvolvimento; porque os capitais disponíveis eram reduzidos; e finalmente porque as autoridades, ou o poder político, não consideraram o sector prioritário ou merecedor de um muito particular esforço. O carácter imobilista está particularmente presente na inércia e no desequilíbrio das estruturas fundiárias50.

Distribuição da propriedade, 1970 Dimensão das explorações agrícolas

Número Percentagem Superfície Percentagem

Menos de 4 ha

628 630

77,5

742 517

14,9

De 4 a 50 ha

170 941

21,2

1 685 866

33,9

9 233

1,3

2 545 773

51,2

Mais de 50 ha

Estes números escondem realidades ainda mais reveladoras. As maiores 488 explorações, com dimensões situadas entre os 1000 ha e os 20 000 ha, ocupavam 1 065 000 ha, isto é, 21,4% da superfície cultivada, que estava assim nas mãos de menos de 0,06% dos proprietários. No outro extremo, cerca de 300 000 explorações, se tal se lhes pode chamar, têm menos de 1 ha, o que é manifestamente insuficiente como fonte de rendimento de qualquer família de produtores autónomos. Quem se encontra nesta última situação deve trabalhar como assalariado noutras empresas agrícolas ou na indústria, contar com as remessas de parentes emigrados ou simplesmente abandonar a actividade agrícola. Ou todas estas hipóteses em conjunto, como acontece frequentemente. A distribuição da propriedade revela ainda muito marcadas diferenças regionais. Ao domínio do latifúndio, no Sul, corresponde, no Norte, o minifúndio como realidade predominante51. Distribuição da propriedade: diferenças regionais, 1968 Explorações agrícolas

Número

Percentagem

Superfície

Percentagem

Menos de 4 ha

492 975

60,9

561 527

11,3

De 4 a 50 ha

115 746

14,3

1 075 899

21,6

Norte e Centro-Norte:

Mais de 50 ha

2 880

0,4

476 099

9,6

135 655

16,8

180 990

3,6

55 195

6,8

609 967

12,3

6 353

0,8

2 069 674

41,6

Sul e Centro-Sul: Menos de 4 ha De 4 a 50 ha Mais de 50 ha

Outros factores agravam esta estrutura fundiária, causa e resultado de desigualdades sociais. O parcelamento de propriedades é um forte constrangimento económico. Por outro lado, a medíocre qualidade dos solos está na origem de baixas produtividades e diminui o valor económico potencial das explorações de pequena dimensão. Com efeito, só 28% da superfície podem ser considerados agrícolas: apesar disso, 54% são efectivamente cultivados, sem contar as matas, as florestas e os prados naturais (cerca de 39%). Fazem finalmente falta os grandes trabalhos de infra-estrutura (regadio e drenagem, por exemplo), que poderiam atenuar as dificuldades ecológicas. Mas nem os governos nem os agricultores contribuíram eficazmente para alterar esta situação. A grande frequência do arrendamento rural pode ainda agravar as dificuldades, na medida em que constitui um relativo desincentivo ao investimento. Tudo isto revela o desequilíbrio, a desigualdade e o arcaísmo das estruturas agrárias. O seu atraso económico e social tem ainda outras manifestações. Em 1970, nas explorações com menos de 0,5 ha, 90% da produção era autoconsumida, 67% nas que se situavam entre 0,5 ha e 20 ha e 28% nas restantes, o que mostra bem a extensão desta espécie de economia camponesa. Acrescenta-se, todavia, que este tipo de organização produtiva não pode ser apenas encarado como um obstáculo ao desenvolvimento económico. Com efeito, certas modalidades de subsistência, em particular as que

resultam da agricultura a tempo parcial, constituem um meio de defesa ou uma estratégia de segurança contra as crises económicas, a inflação, a queda do poder de compra ou as ameaças de desemprego. Paradoxalmente, durante as últimas décadas, à inércia ou à rigidez das estruturas fundiárias correspondem notáveis mudanças demográficas e sociais. Estas devemse à evolução do conjunto da sociedade, bem mais do que ao desenvolvimento da agricultura. A população activa agrícola passou de cerca de metade para um terço da população activa total. Entre 1950 e 1960, a própria composição social da população agrícola teve importantes alterações. Os «patrões» passaram de 10% a 6%; os agricultores autónomos de 30% a 35% e os assalariados de 60% a 58%52. Até 1970, as mudanças foram ainda mais pronunciadas: patrões 2%, autónomos 48% e assalariados 50%. A «taxa de proletarização», número de assalariados por empregados, teria passado de 6,2 em 1950 a 10 em 1960 e a 26 em 1970. As diferenças regionais são evidentemente grandes: entre 50 e 85 em distritos do Sul; entre 4 e 10 nos do Norte. Em 1970, os assalariados representam cerca de um terço dos activos agrícolas do Norte, mas 70% no Sul. No conjunto do País, o seu número vinha diminuindo, em termos absolutos, desde 1960. Número de assalariados agrícolas, 1940-1970 1940

627 000

1950

678 100

1960

702 200

1970

363 500

No mesmo período, o número de patrões diminuiu em números absolutos, fortemente em percentagem; o dos

agricultores autónomos aumentou em unidades e em percentagem, sendo de cerca de metade da população activa agrícola. Esta evolução revela um efeito de concentração, mas sobretudo a perda da qualidade de «patrão» por parte de bom número de agricultores. O crescimento da agricultura capitalista tem exigências que muitos antigos agricultores, sem capitais próprios, tecnologia nem dimensão, não conseguem satisfazer. Frequentemente, deixar de ser «patrão» para ser «agricultor autónomo» ou «camponês» é simplesmente deixar de ser agricultor a tempo inteiro e fazer coexistir a exploração de pequenas parcelas com um emprego permanente noutros sectores. Para outros, expatrões ou ex-camponeses, a emigração foi o caminho. Nestas transformações, o envelhecimento da população agrícola foi característica dominante. No princípio dos anos 1970, metade dos dirigentes das explorações agrícolas têm mais de 55 anos; e cerca de 80% têm mais de 45 anos. Além de que quase metade são analfabetos. A emigração é a principal responsável por esta evolução. Foi um autêntico êxodo que marcou profundamente o panorama rural. Esvaziam-se aldeias inteiras: primeiro os homens e os jovens, depois as mulheres e as crianças. Desde o fim dos anos 60 que falta força de trabalho nos campos, sobretudo durante as grandes operações agrícolas: vindimas, ceifas, apanha do tomate e da azeitona, trabalhos de Primavera, etc. Nestas condições, os salários rurais aumentaram de modo como nunca se tinha visto antes no Alentejo53. Salários diários médios do trabalhador rural no Alentejo e preço por quilo de trigo, 1945-1972 Preço do trigo (escudos/quilo)

Salário diário (escudos)

1945

2$56

17$03

1950

 3$01

17$05

Anos

1955

 3$03

17$89

1960

 2$97

20$87

1965

 3$31

28$79

1970

 3$26

54$07

1971

 3$55

63$17

1972

 3$55

70$13

No fim da década de 60 começou a fazer-se sentir a inflação, que se ficou a dever, entre outros, ao aumento dos rendimentos e de moeda disponível, como resultado das remessas dos emigrantes e das despesas militares com as guerras de África. Na agricultura, é a emigração para o estrangeiro e a transferência do emprego para a construção, a indústria e o turismo que provocam o aumento de salários. Nunca, desde o princípio do século, os salários rurais tinham aumentado nestas proporções. Nem sequer durante os períodos de maiores agitações sociais, como em 1911-1913, em 1944-1948 e em 19611962. Deixando de lado as singularidades conjunturais, regionais e políticas, as lutas sociais no Sul revelam ciclos ou modalidades relativamente permanentes. O «ciclo defensivo»: concentrações de trabalhadores e procura de trabalho no Inverno; e o «ciclo ofensivo»: greves, paralisações e exigências de melhores salários na Primavera e na época das ceifas54. A explicação é simples: nos períodos de trabalhos intensos aumenta o poder de negociação ou de reivindicação dos trabalhadores. Mas todas estas lutas são condicionadas pelo clima geral de repressão policial e pela proibição de actividades sindicais. Em certos períodos, os conflitos podem multiplicar-se, a quilómetros de distância uns dos outros, por vezes sem ligações orgânicas, outras vezes com uma coordenação, um enquadramento ou um simples sistema de informação

assegurados sobretudo pelos funcionários clandestinos do Partido Comunista. Numerosas lutas são localizadas e bruscas. Do ponto de vista dos trabalhadores, trata-se de vencer rapidamente, a fim de evitar o entendimento entre empresários e sobretudo a intervenção das autoridades e da polícia. Tentam ainda vencer enquanto a situação lhes é favorável, isto é, enquanto os proprietários precisam deles. Vitórias e derrotas sucedem-se sem regra. Entre 1950 e 1960, por exemplo, a capacidade reivindicativa e ofensiva dos trabalhadores é reduzida. A repressão policial tinha mais ou menos desmantelado as organizações comunistas locais. A mecanização crescente, neste período, tinha criado um grande desemprego, o que enfraqueceu o movimento operário. Nem sequer as ceifas eram já um argumento favorável aos trabalhadores. Todavia, os anos de 1961 e 1962 revelaram um novo fôlego de lutas: dezenas de conflitos locais e de greves ocorrem durante o mês de Maio e um pouco por todo o lado na região. Em regra, os trabalhadores obtiveram vitórias apreciáveis, dado que o momento era de intensa procura de mão-deobra. Na maior parte dos casos conhecidos, as greves não duram mais do que algumas horas ou um dia. Os patrões cedem rapidamente. Nesta altura, no entanto, os trabalhadores não lutam só por aumentos salariais: reivindicam também as oito horas de trabalho diárias, o que geralmente conseguem. Apesar destas vitórias, o movimento está prestes a esgotar as suas forças: a mecanização, o uso crescente de produtos químicos e a emigração são impagáveis. Até 1974, é um longo silêncio. Os trabalhadores mais jovens e activos partem para as cidades, as fábricas e o estrangeiro. As operações agrícolas são cada vez menos labour intensive. O crescimento industrial e a construção civil surgem como alternativas atraentes. O recrutamento militar maciço e as guerras de África contribuem para a

desmobilização política. O golpe de Estado de 1974, o derrube do regime e a revolução vão mudar tudo isso e provocar uma agitação social inédita. Como em 1911-1912, tudo começará com uma mudança brusca do poder central. Como então, os sindicatos organizar-se-ão e um forte movimento social desenvolver-se-á. Mas, desta vez, tudo será diferente.  30 Eugénio Castro Caldas, A Agricultura Portuguesa no Limiar da Reforma Agrária, Oeiras/Lisboa, 1973. 31 A propósito do século XIX e princípios do século XX, nos parágrafos que se seguem utilizo frequentemente os resultados das análises de dois autores: Manuel Vilaverde Cabral, Materiais para a História da Questão Agrária em Portugal, Lisboa, 1974, e Portugal na Alvorada do Século XX, Lisboa, 1981; e Miriam Halpern Pereira, Assimetrias de Crescimento e Dependência Externa, Lisboa, 1974, e Livre-Câmbio e Desenvolvimento Económico, Lisboa, 1972. 32 M. H. Pereira, Assimetrias […], op. cit., e António Barreto, Independência para o Socialismo, Lisboa, 1975. 33 José Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo, Lisboa, 1976, e M. V. Cabral, Materiais […], op. cit. 34 M. V. Cabral, Portugal […], op. cit., e José Pacheco Pereira, Conflitos Sociais nos Campos do Sul de Portugal, Lisboa, 1983. 35 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit. 36 Idem, ibidem. 37 Antunes Varela, antigo ministro da Justiça, in Joaquim Barros Mouro e Manuel Barros Mouro, Reforma Agrária. Legislação, Notas, Comentários, Lisboa, 1976. 38 René Dumont, Révolution dans les campagnes chinoises, Paris, 1966; OCDE, L’agriculture dans les pays d’Europe méditerranéenne, Paris, 1968; e World Bank, Portugal. Agricultural Sector Survey, Washington, 1977. 39 M. V. Cabral, Materiais […], op. cit. 40 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit. 41 Carlos Almeida e António Barreto, Capitalismo e Emigração em Portugal, Lisboa, 1969. As estatísticas nacionais relativas a tractores nem sempre merecem muito crédito. Com efeito, registam-se os tractores segundo o local de

venda e não o destino. Lisboa estaria assim sobrestimada. 42 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit. 43 Idem, ibidem. 44 OCDE, L’agriculture […], op. cit.; Carlos Portas, «O Alentejo», in Análise Social, 18, Lisboa, 1967; e Estatísticas Agrícolas, INE, Lisboa. 45 Ministério da Agricultura e Pescas, Rapport de la Commission Nationale de la FAO, Lisboa, 1977, e OCDE, L’agriculture […], op. cit. 46 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit., e Ministério da Agricultura e Pescas, op. cit. 47 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit. 48 E. C. Caldas, ibidem, e Armando Rego Ribeiro Santos, A Agricultura no Alentejo e no Ribatejo. Aspectos da Sua Evolução de 1950 a 1970, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1980. 49 Adérito Sedas Nunes, Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento, Lisboa, 1968. 50 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit.; Ministério da Agricultura e Pescas, Rapport […], op. cit.; e M. V. Cabral, Portugal […], op. cit. 51 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit.; Júlio Martins, Estruturas Agrárias em Portugal Continental, Lisboa, 1973; e Manuel Vilaverde Cabral, «Agrarian Structures and Rural Movements in Portugal», in Journal of Peasant Studies, Londres, 1978. 52 A. S. Nunes, Sociologia […], op. cit.; António Barreto, Terra de Revolução, Lisboa, 1981; Maria João da Costa Macedo, As Estruturas Agrárias e o Sector Agrícola no Continente e na ZIRA, Lisboa, 1981; e A. R. R. Santos, A Agricultura […], op. cit. 53 A. Barreto, Terra […], op. cit.; Instituto Nacional de Estatística (publicações diversas); Federação Nacional dos Produtores de Trigo (publicações diversas); e José Hipólito Raposo, Dos Princípios à Chamada Reforma Agrária, Lisboa, 1977. 54 José Pacheco Pereira, Conflitos […], op. cit.

CAPÍTULO III A REGIÃO

A região de que aqui se fala inclui o Alentejo e uma parte do Ribatejo. Desde 1976 que esta região é designada por Zona de Intervenção da Reforma Agrária (ZIRA), cujos limites marcaram o âmbito de aplicação das leis fundiárias. A ZIRA compreende a totalidade dos quatro distritos alentejanos (Beja, Évora, Portalegre e Setúbal), assim como vários concelhos dos distritos de Lisboa, Santarém e Castelo Branco, além de umas poucas freguesias do distrito de Faro. Pelo seu significado histórico, são frequentes as referências à ZIRA como se apenas do Alentejo se tratasse55. A região é pouco acidentada, com planícies e peneplanícies geralmente abaixo dos 300 m a 400 m. Raras altitudes ultrapassam os 600 m. Apesar da presença do Tejo e do Guadiana (além de outros rios de menor caudal, como o Sado, o Caia e o Sorraia), os cursos de água não são numerosos. O clima mediterrânico, em associação com influências atlânticas, é dominante: grande irregularidade, seca no Verão e chuvas no Inverno (por vezes torrenciais), mas sobretudo chuvas irregulares. Os solos são geralmente pobres e por vezes muito arenosos. Os rios têm também regimes irregulares56. Apesar dum certo número de características comuns, a região (ou mesmo o Alentejo) não é ecologicamente homogénea. Tanto as curvas de temperatura e de

precipitação como a composição dos solos são bastante variáveis. Poder-se-iam mesmo distinguir quatro regiões naturais específicas, além de microrregiões particulares. Todavia, a história tem feito um todo desta variedade. As condições agrárias e agrícolas, assim como as produções, foram-se aproximando ao longo dos tempos. Para além do clima e da geologia, os homens e as suas técnicas unificaram a região57. Do ponto de vista da fertilidade e da aptidão, a qualidade média dos solos é medíocre. A classificação das capacidades revela que apenas 31% se situam nas três primeiras categorias (excelentes, bons e médios). Os restantes 69% são medíocres ou impróprios para a agricultura. Os esforços destinados a melhorar esta situação não têm sido, até hoje, muito produtivos: apenas 5% dos solos são irrigados e uma ínfima parte deles foram submetidos a trabalhos de drenagem. Os trabalhos do «Plano de Rega do Alentejo», desde os anos 1950, foram lentos e nem sempre bem adaptados às condições locais. As grandes obras de engenharia tiveram resultados agrícolas e sociais bem modestos. A pobreza dos recursos naturais e o fraco desenvolvimento económico contribuíram para a sobreexploração dos solos. No princípio dos anos 70, as superfícies agrícolas são muito mais vastas do que aquelas com uma real capacidade agrícola, facto que está na origem de más produtividades58. Solos com aptidão agrícola, em percentagem das superfícies produtivas do distrito

Superfícies agrícolas efectivamente cultivadas, em percentagem das superfícies produtivas do distrito

Beja

14

82

Évora

10

68

Portalegre

22

68

Distritos

Setúbal

12

58

Apesar de nem tudo poder ser mudado ou totalmente transformado, a verdade é que o regadio poderia modificar consideravelmente os níveis de fertilidade e de produtividade. Ora, os solos regados em cada distrito são de reduzida dimensão: 2,5% em Beja; 2,7% em Évora; 4,2% em Portalegre. Santarém, com 11,3%, faz figura de excepção. No seu conjunto, a região tem os mais baixos índices do País, cuja média nacional é de cerca de 14%59. Além do regadio, outros processos e culturas poderiam melhorar a utilização e a conservação de recursos: a drenagem, os prados permanentes, o desenvolvimento das forragens e mesmo certos desenvolvimentos adequados da silvicultura. Mas estas orientações não têm merecido, até hoje, atenção ou esforços suficientes. Até o estudo das condições locais e a investigação experimental foram insuficientes. A região partilha com o resto do País, e exceptuando as grandes áreas metropolitanas, o estado geral de fraco desenvolvimento. Em certo sentido, o pólo industrial de Setúbal não pertence à região, antes está ligado a Lisboa, constituindo uma das duas mais fortes concentrações industriais do País. Todavia, desde o século passado, desempenhou um importante papel regional, ao assegurar o emprego para os muitos que durante décadas foram abandonando a agricultura. Na restante área da região encontram-se esporadicamente algumas unidades industriais modernas que para lá foram à procura de mão-de-obra barata, como por exemplo a montagem de automóveis em Vendas Novas ou os electrodomésticos em Évora. Também algumas unidades, relativamente modernas, utilizam matériasprimas locais: concentrado de tomate, óleos, fruta e pasta para papel, por exemplo. Entre as actividades industriais mais tradicionais, mencionem-se os tapetes, o azeite e as

conservas de alimentos. Os mármores são, na zona de Estremoz e Vila Viçosa, uma importante fonte de rendimento e de emprego. Outros recursos, mineiros, como as pirites de Aljustrel, prometem um desenvolvimento razoável, mas a sua exploração intensa apenas começa agora. O produto industrial representa apenas 36% do produto bruto regional e ainda por cima é gerado essencialmente em Setúbal. Sem este, o produto industrial da região não ultrapassa os 10% do produto bruto. A região é, portanto, essencialmente agrícola. O «montado», de sobro ou de azinho, constitui um dos seus traços mais característicos, visível na paisagem e bem presente na economia. O sobreiro domina a oeste, enquanto a leste reinam a azinheira e a oliveira. O pinheiro não está muito presente, mas já o eucalipto se tem expandido rapidamente, durante as duas últimas décadas, graças ao aumento da procura industrial. A vinha encontra-se sobretudo no Ribatejo, mas ainda, bem delimitada, em Palmela, Borba, Vidigueira, Redondo e Reguengos, além de outras manchas, como em Évora, Granja ou Ourique. As condições ecológicas são favoráveis à vinha, que se encontra agora em franco crescimento, mas razões históricas limitaram o seu desenvolvimento. O milho, por seu lado, só com os regadios modernos começou a ser cultivado na região em áreas e volumes significativos. Ao lado do «montado», o outro fenómeno marcante da região é a monocultura cerealífera extensiva e de sequeiro: trigo à cabeça, mas também as aveias e as cevadas. O arroz, cuja expansão é moderna, é muito estimado pelos agricultores, dado o seu rendimento, mas a sua superfície cultivada é reduzida, encontrando-se condicionada pelos regadios e pelos estuários. Se o «montado» e o cereal, associados na grande propriedade, predominam no que se poderia chamar o

«coração do Alentejo», a sua área central e mais vasta, outras regiões, com algumas características próprias, merecem ser mencionadas. A península de Setúbal está dividida em duas partes: uma industrial e urbana, outra ocupada com a vinha e a horticultura. O Ribatejo (ou o que dele está incluído na ZIRA), com uma agricultura mais intensiva e regada, onde não é raro encontrar, além da vinha, da horticultura e das forragens, muito gado e fruta. A pequena e média agricultura, também intensiva, apoiada na vinha e no olival, está bem presente a nordeste, próximo de Elvas, mas também no litoral oeste. Finalmente, as regiões montanhosas das serras do Algarve e de Mértola, em condições ecológicas e agrícolas bem desfavoráveis. Com uma superfície de 3,6 milhões de hectares, ou seja, 42% do País, a região é apenas habitada por 1,3 milhões de pessoas, ou seja 16% da população nacional. A sua densidade demográfica, 36 pessoas, é muito inferior à média nacional, que é de 93. Há 30 anos que o Alentejo perde população, o que traduz bem o fraco desenvolvimento económico e a forte dependência da agricultura. Sem contar a parte industrializada de Setúbal, a região perdeu, entre 1951 e 1970, perto de 200 000 habitantes. Poucas vilas ou cidades com população superior a 10 000 habitantes podem ser mencionadas: Évora, Beja, Portalegre, Elvas e, já nas margens, Castelo Branco e Santarém. Setúbal, a maior de todas, é caso à parte; enquanto a cintura industrial de Almada, Barreiro e Seixal, sendo embora da margem esquerda, pertencem a Lisboa. Do ponto de vista das características demográficas, no princípio dos anos 70, a região não difere muito das médias nacionais: 35% têm mais de 45 anos, o que é só um ligeiro envelhecimento relativo. Já o índice de ruralidade, 85% do total, está muito acima da média de Portugal.

A população activa é de cerca de 520 000 pessoas, seja 40% do total. A sua distribuição é a seguinte: indústria, 28%; agricultura, 40%; serviços, 32%. Mas nos distritos de Évora, Beja e Portalegre os índices de população activa agrícola são de 49%, 62% e 57%, respectivamente, o que revela bem a preponderância rural. Quanto à situação na profissão e nas classes sociais, podiam distinguir-se, nas mesmas datas, os seguintes grupos: patrões, 2%; agricultores autónomos ou camponeses, 13%; classes médias urbanas, 5%; assalariados industriais e rurais, 80%. A forte clivagem social é ainda mais visível na população agrícola: 2% de patrões; 15% a 25% de agricultores; 75% a 83% de assalariados. Autores há que consideram mais vasto o grupo dos camponeses e autónomos, cerca de 40% do total60. De qualquer modo, a preponderância dos assalariados, em termos quantitativos, é inequívoca. O habitat é concentrado em aldeias fechadas, compactas e distantes umas das outras. Os «montes» esvaziam-se ao longo dos últimos 20 a 30 anos: tanto os proprietários como os trabalhadores preferem ou são forçados a viver nas aldeias e nas vilas ou cidades. Com estas características, é previsível que a rede de comunicações não seja muito densa, o que está conforme ao habitat concentrado, aos sistemas agrícolas extensivos e às estruturas agrárias da grande propriedade. A região, com 41% da superfície nacional, 52% da superfície cultivável e 45% da área cultivada nacional, apenas contribui com 29% do produto agrícola nacional. Sem grande capacidade industrial, o peso económico da região é igualmente fraco: apenas 19% do produto interno. Por volta de 1970, a região fornece ao País 30% dos seus produtos vegetais, 32% da madeira e produtos da floresta, 26% do gado e 14% dos vinhos. Para alguns produtos, a parte regional é todavia bem mais significativa: 94% da cortiça, 79% do arroz, 71% da aveia e da cevada, 68% do

trigo e 61% do azeite. Os rendimentos monetários (em milhares de escudos de 1970) por hectare de terra cultivada confirmam as debilidades económicas da região: Beja, 1,7; Évora, 2,0; Portalegre, 2,1; Setúbal, 3,0; Santarém, 4,1; enquanto Lisboa regista 9,0 e a média nacional é de 3,5. Já os rendimentos monetários por unidade de trabalho (ano/homem) revelam uma situação inversa, quer dizer, todos os distritos da região registam valores (entre 43 000$ e 51 000$) superiores aos nacionais (37 000$). Noutras palavras, a agricultura regional revela, no contexto nacional, um sistema menos intensivo, mas tecnologicamente mais evoluído, quer dizer, no caso presente, mais mecanizado61. Tradicionalmente, o produto por activo situa-se, no Alentejo, acima de quase todos os outros distritos. Mas tal não é o caso dos salários: os rendimentos do trabalho desta região são, juntamente com os quatro distritos do Norte, os mais baixos do País. Em termos absolutos, os rendimentos físicos das culturas da região, assim como do País inteiro, são geralmente medíocres, com as notórias excepções do arroz e do tomate. A produtividade do trigo é uma ilustração adequada62: Quintais/hectare Séculos XIV a XVI

6

Fim do século XIX

7a8

1920-1924

8,7

1920-1950

9,2

1952-1956

8,1

1964-1966

7,6

1970-1972

10,2

Estes valores traduzem mudança e acréscimos de produtividade. Mas é difícil considerar que se trata de reais progressos. Num período tão longo e tendo em conta a evolução geral da agricultura e das técnicas, os aumentos ficam aquém das possibilidades e são insuficientes para satisfazer as necessidades nacionais, dos agricultores, das empresas ou dos assalariados. E se é certo que as condições naturais da região não são as mais favoráveis para a cultura do trigo, também é verdade que aquelas baixas produtividades revelam uma utilização reduzida das sementes melhoradas, dos adubos e outros agro-químicos. Uma certa estagnação, ou uma evolução excessivamente lenta, parece ter sido a característica marcante. Não se efectuou a necessária reconversão agrária. As causas são diversas: o clima desfavorável, a pobreza de recursos e de meios de investimento, as estruturas sociais e agrárias, o sistema político, a ausência de conhecimentos técnicos e de investigação, a deficiente formação do empresário e dos técnicos e as políticas agrícolas e económicas. É na conjunção destes factores que se devem encontrar as causas da situação social e económica que se vivia no Alentejo de 1974. O sistema tinha, obviamente, os seus privilegiados. À cabeça, a grande propriedade, o «latifúndio» da linguagem corrente, directamente ligado à agricultura extensiva e gerador da proletarização. Associando métodos tradicionais e contributos tecnológicos modernos, a grande exploração alentejana tinha iniciado, desde os anos 50, um processo de mudança, no qual avulta a mecanização. Esta era uma realidade na província desde os fins do século XIX, mas limitada às empresas de vanguarda. Em meados do século actual, este tipo de modernização generalizou-se, ou, antes, acelerou o ritmo. Entre 1950 e 1974, o número de tractores passou de 2600 a mais de 16 000. Já a utilização de adubos, de pesticidas e de herbicidas ficou muito aquém das médias europeias.

Esta evolução tecnológica recente inscreveu-se no quadro de um crescimento económico geral, tanto nacional como europeu. O crescimento nacional conheceu mesmo, durante os anos 60, taxas da ordem dos 5% a 7% (e 9% a 10% para a indústria), superiores às dos países vizinhos. Mesmo sem dinâmica própria de desenvolvimento, a agricultura foi arrastada, só conhecendo todavia taxas anuais da ordem dos 0,5% a 0,9%. A mudança na agricultura alentejana foi real, mas efectuou-se sem pôr em causa as estruturas sociais e agrárias, nem os sistemas de produção. Por causa da mecanização, muitos trabalhadores abandonaram os campos e boa parte deles dirigiu-se para o estrangeiro. A industrialização, a construção e as obras públicas contribuíram para o êxodo rural, de modo que se assistiu mesmo a um declínio da população. Por outro lado, os regadios e algumas novas culturas, como o tomate, aumentaram os períodos de ocupação da força de trabalho. Deste conjunto de factores resultou um aumento de salários rurais como a região nunca tinha conhecido antes. Nas vésperas da revolução, o Alentejo não gozava certamente de uma situação de prosperidade e desenvolvimento. Mas o desemprego e a miséria tradicionais tinham-se consideravelmente esbatido. As carências de mão-de-obra nos períodos de ponta eram já uma realidade e constituíam o principal problema dos empresários. Nesta situação, os salários aumentaram mais do que qualquer outro factor de produção. O período que vai de 1965 a 1974 é certamente aquele que, na história moderna do Alentejo, mais benefícios trouxe aos trabalhadores alentejanos. Mantinham-se todavia as estruturas sociais, fundiárias e empresariais. A distribuição da propriedade continuava a ser a principal fonte de clivagem social. Portugal, e muito particularmente o Alentejo, registava a mais forte

concentração de terra de toda a Europa mediterrânica63. Em 1960-1970, o panorama da distribuição desequilibrada da terra era o seguinte (em percentagem): Explorações agrícolas

Portugal Número

Alentejo

Superfície

Número

Superfície

Menos de 20 ha

96,6

38,7

86,2

8,0

De 20 a 100 ha

2,8

16,1

8,3

9,5

Mais de 100 ha

0,6

45,2

5,5

82,5

Cerca de 95% das explorações com mais de 200 ha estão situadas na região. Nalguns distritos, metade dos solos agrícolas pertencem a poucas dezenas de proprietários possuindo herdades com mais de 1000 ha64. Número de herdades com mais de 1000 ha

Percentagem da superfície agrícola do distrito

Beja

117

29

Évora

138

64

Portalegre

95

43

Setúbal

47

41

Distritos

A grande exploração domina também a produção: segundo os distritos, a pequena agricultura só representa 15% a 30% da produção. Quanto aos sistemas de uso e posse da terra, note-se a particular importância do arrendamento65. Em 1970, este tocava quase metade das terras agrícolas de Beja (46%), Portalegre (44%) e Évora (40%), enquanto esse valor para o conjunto do País era de 29%. Acrescente-se que, no Sul, o arrendamento se pratica sobretudo na grande propriedade. No Noroeste, pelo contrário, é o recurso da pequena agricultura. No princípio dos anos 1970, existiam de certo modo dois sectores de grande propriedade. Um, moderno, formado

por verdadeiras empresas capitalistas que recorriam aos inputs tecnológicos modernos, possuíam frequentemente as suas próprias estruturas de comercialização e incluíam por vezes até instalações industriais de transformação dos produtos alimentares. A diversificação da produção era crescente: além dos cereais tradicionais, tinham cada vez mais importância o arroz, a horticultura, o gado, a fruticultura e a vinha. Este sector não era dominante, do ponto de vista da superfície, mas vinha-o sendo pelo peso económico, pelo seu papel inovador e pela sua influência política e social. O outro sector, o do «latifúndio» tradicional, produzia também para o mercado e recorria a trabalho assalariado, não sendo por isso menos capitalista. Mas confiava mais na extensão do que no investimento. A integração comercial e industrial era praticamente nula. Continuava a preferir-se a cultura cerealífera extensiva e a exploração do «montado». Este último fornecia lucros atraentes, com custos relativamente baixos. Uma boa parte destes proprietários alugavam as suas terras, guardando por vezes apenas para si o produto do sobreiro. A grande maioria dos proprietários, latifundiários ou empresários não vivia nas explorações, nos «montes», mas sim nas vilas e cidades. Um número razoável vivia em Lisboa e fazia visitas esporádicas às propriedades, onde os «feitores» e «encarregados» tratavam da gestão quotidiana e detinham o saber técnico. O estado de desenvolvimento das explorações era muito diverso, desequilibrado mesmo. A modernização tinha tocado sobretudo as terras regadas e as de melhor qualidade; havia herdades muito bem cultivadas, outras francamente subaproveitadas; umas utilizando as técnicas mais modernas, outras trabalhando com os métodos de há 30 ou 50 anos66. O subaproveitamento geral não era apenas o resultado de uma atitude irracional do proprietário, «conservador e

preguiçoso, pouco consciente dos seus interesses». Estudos recentes desmentem esta imagem tradicional do «latifundiário»: desde o século XIX que os proprietários tomavam as suas decisões económicas e técnicas de acordo com os seus interesses e os da sua empresa67. A mecanização, por exemplo, foi tardia porque não se impunha como economicamente necessária, no contexto dos preços dos factores de produção e do regime de preços do produto. O problema não é, todavia, o da racionalidade dos empresários, é antes o sistema produtivo e social que deve ser interrogado. O nível de salários, por exemplo, não é um dado «natural», depende da acção sindical, inexistente durante quase 50 anos. De toda a maneira, as «culpas» dos empresários e dos proprietários não são aqui objecto de análise nem de juízo. E a racionalidade do seu comportamento económico é bem menos interessante do que as condições gerais em que as suas decisões eram tomadas: dimensão do mercado, preços das máquinas e dos adubos, regimes de preços e de subsídios para os cereais e níveis de produtividade das culturas. As grandes obras de infra-estrutura, o regadio, a drenagem e as vias de comunicação, cujo desenvolvimento abriria as portas à intensificação agrícola e à alteração das condições gerais do cálculo económico empresarial, não poderiam estar a cargo apenas ou sobretudo dos proprietários. O seu principal promotor deveria ser o Estado. Será pois nas suas políticas que se deverá procurar detectar boa parte da lógica do sistema de produção. O regime político (e, num sentido mais lato, o sistema social) foi a garantia da estabilidade da propriedade e da extensão da terra, assim como da abundância e da «docilidade» do trabalho. O acesso aos dois factores de produção, nestas condições de facilidade e de tranquilidade, constituiu um dos pilares do sistema agrário.

Também é verdade que os empresários e os proprietários procuraram frequentemente lucros rápidos com custos sociais mínimos. Foi, por exemplo, o que aconteceu com a introdução do tomate industrial: as características do produto e do mercado eram uma boa oportunidade para uma amortização pronta e para benefícios rápidos. Com a nacionalidade adaptada às circunstâncias, os agricultores reagiram favoravelmente, aproveitando especialmente os salários baixos. Finalmente, a rede social dos proprietários desempenhou certamente um papel importante. Próxima do Alentejo, Lisboa era um ponto de referência permanente. O poder político era-lhes acessível e mostrava-se dócil. A maioria dos proprietários de razoável dimensão tinha outras profissões e outras fontes de rendimento, na finança, na indústria e no comércio. Era socialmente gratificante ter residências em Lisboa, parentes que trabalhavam na capital e filhos que lá faziam os seus estudos. A classe dos proprietários alentejanos, cuja maioria não era certamente composta de ociosos que apenas viviam de rendimentos, pertencia pouco ao Alentejo. Retirava de lá uma parte dos seus benefícios, por vezes nem sequer a maior parte, e procurava oportunidades para investimentos mais lucrativos do que na agricultura. Estas iam aparecendo, e mais rapidamente a partir dos anos 50, no imobiliário, na indústria, nos seguros, na banca e na bolsa. Curiosamente, os grandes investimentos feitos na agricultura durante os últimos 20 anos foram de origem urbana, industrial ou comercial, ou mesmo estrangeira. Algumas das sociedades agrícolas importantes criadas ou desenvolvidas recentemente, e que foram as pioneiras do moderno capitalismo agrícola, não pertenciam a velhos agricultores ou a famílias tradicionais do Alentejo. Foram investimentos novos na região, que começavam, aliás, pela compra de propriedades ou pelo arrendamento de grandes extensões. E certos casos de projectos modernos de velhas famílias

alentejanas eram ainda uma espécie de regresso à terra, raramente uma presença continuada. Do outro lado, os assalariados, a maior parte da população activa da região. Os temporários, cerca de dois terços do total, eram mais do que os permanentes. Estes últimos, com a garantia de trabalho, eram uma espécie de privilegiados. Com efeito, o desemprego e o subemprego foram sempre o mais importante elemento da «questão agrária», talvez mais do que a terra propriamente dita. O sistema de culturas obrigava a fortes procuras de trabalho sazonais. A maior parte dos trabalhadores, até à década de 1950, não conseguia mais do que 150 a 180 dias de emprego por ano, as mulheres ainda menos. Mesmo o Governo salazarista se preocupou com esta situação e criou uma «comissão de obras públicas rurais». O seu objectivo era coordenar esforços oficiais, a fim de criar postos de trabalho para os desempregados68. Em 1956, por exemplo, a comissão terá assegurado 2500 empregos por dia, só no distrito de Beja. Apesar destes resultados, a própria comissão avaliava em 800 000 homens/dia de trabalho por ano o desemprego não absorvido no distrito. No seu relatório, vai ao ponto de afirmar que o desemprego sazonal se agravou e corre o risco de se transformar em desemprego permanente. Era assim o emprego a principal preocupação dos trabalhadores alentejanos. Tanto a estabilidade como a quantidade. Uma e outra, a partir dos anos 60, foram mais fáceis de encontrar nas cidades, no estrangeiro, nas «obras» ou na indústria. Este sistema social e agrário, caracterizado por comunidades rurais distantes, pela presença diminuta de camponeses e de explorações familiares, por uma agricultura errante e com pouca segurança, criou um proletariado rural fragilmente enraizado nas aldeias, nas comunidades ou nas empresas. O objectivo de uma vida era o emprego, não a terra e a sua divisão. Com excepção

de dois episódios localizados (em Barbacena e em Vale de Santiago, no princípio do século), a reivindicação de terra é tradição desconhecida na região. Desde os princípios do século que o movimento anarco-sindicalista, bem implantado no Alentejo, reclamava o emprego e o salariado, criticando ferozmente os que alimentavam sonhos pequeno-burgueses sobre a divisão de terras e as delícias da exploração camponesa. Mais tarde, nos anos 50, não se pode dizer que tenham tido grande sucesso os projectos de reforma agrária do Partido Comunista, que previam a divisão de todas as terras em parcelas de 20 ha. Tais projectos não ficaram na memória de ninguém, nem sequer do PC. A verdade é que a população do Alentejo nunca teve grandes tradições camponesas, não foi desapossada das suas terras (como aconteceu noutras paragens, por exemplo na América Latina e mesmo em certas áreas de Espanha). A memória camponesa e a tradição milenária estão ausentes69. Aliás, quando as terras foram apropriadas por privados, durante o século XIX e mesmo na primeira metade do século XX, não se tratava de terras camponesas, mas sim de bens comuns e baldios, explorados de modo privado e servindo sobretudo à pastagem e à floresta. Para além destas razões históricas, os assalariados alentejanos parecem ter tido consciência das dificuldades da agricultura na região e das condições ecológicas desfavoráveis. Sem meios de intensificação, sem obras de infra-estrutura e de regadio, a pequena agricultura camponesa é um risco de ruína tão rápida ou mais do que o salariado. Por outro lado, o proletário rural é um homem especializado em algumas tarefas (conduzir um tractor, arrancar cortiça, por exemplo), ou um operário de serviços gerais e indiferenciados disponível para todas as operações próprias ao sistema extensivo. Ora, as funções de um camponês ou de um agricultor autónomo exigem

conhecimentos diversificados e seguros. Deve ser um pouco de tudo: agricultor, contabilista, artesão, comerciante e veterinário; sem contar as múltiplas exigências técnicas de uma agricultura diversificada: o gado, a fruta, os cereais, o vinho, o azeite, o queijo, a horta, o fumeiro… Os pequenos agricultores alentejanos eram homens deste género, só que não eram muitos neste Alentejo que conhecia sobretudo os ricos e os pobres e muito pouco os remediados. Proprietários, rendeiros ou seareiros, eram uns poucos milhares que faziam pela vida, que não queriam emprego, mas terra, e que também eles ficavam na dependência dos grandes proprietários. 55 Nem sempre é possível dispor de estatísticas para a ZIRA, dado que esta não corresponde a uma divisão administrativa. Segundo os dados disponíveis, referir-me-ei à ZIRA, ao Alentejo ou aos distritos que deles fazem parte. 56 Para este capítulo utilizo numerosas fontes primárias e secundárias. Além das publicações do Instituto Nacional de Estatística, devo citar: Afonso de Barros, A Reforma Agrária em Portugal, Oeiras, 1979; Júlio Silva Martins, As Estruturas Agrárias em Portugal Continental, Lisboa, 1973 e 1975; Eugénio Castro Caldas, A Agricultura Portuguesa no Limiar da Reforma Agrária, Oeiras, 1978; Armando Rego Ribeiro dos Santos, A Agricultura no Ribatejo e no Alentejo, Lisboa, 1980; Michel Drain, Occupations de terres et expropriations dans les campagnes portugaises, Paris, 1982; Carlos Portas, «O Alentejo: situação e perspectivas socioeconómicas», in Análise Social, n.º 18, Lisboa, 1967; Carlos Almeida e António Barreto, Capitalismo e Emigração em Portugal, Lisboa, 1969; Almeida Alves, O Problema da Fertilidade na Agricultura do Sul, vol. 1, Lisboa, 1961, e vol. 2, Lisboa, 1979; e, finalmente, as obras indispensáveis de Maria João Costa Macedo, do Gabinete de Estudos Rurais: As Estruturas Agrárias e o Sector Agrícola no Continente e na ZIRA, Lisboa, 1981, e Produções, Áreas Semeadas e Rendimentos dos Principais Produtos Agrícolas nos Concelhos e Distritos da ZIRA, Lisboa, 1980. As principais obras geográficas de carácter geral que utilizei são: Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Lisboa, 1968, e Mariano Feio, Le Bas Alentejo et l’Algarve, Lisboa, 1949. 57 C. Portas, op. cit. 58 Ministério da Agricultura, Rapport de la Commission Nationale de la FAO, Lisboa, 1977, e C. Portas, op. cit. 59 A. R. R. Santos, op. cit., e INE, Recenseamento Agrícola, 1979, Lisboa, 1984.

60 A. Barros, op. cit. 61 Mário Pereira, A Estrutura Agrária Portuguesa (1968-1970), Oeiras, 1979. 62 C. Portas, op. cit., e OCDE, L’agriculture dans les pays de l’Europe méditerranéenne, Paris, 1968. 63 OCDE, op. cit. 64 Ministério da Agricultura, op. cit. 65 A. Barros, op. cit. 66 A. Barros, op. cit., e M. Drain, op. cit. 67 Jaime Reis, «Latifúndio e progresso técnico no Alentejo», in Análise Social, n.º 71, Lisboa, 1982; Maria da Conceição Andrade Martins et al., Os Senhores da Terra. Diário de Um Agricultor Alentejano no Século XIX, Lisboa, 1982; A. Barros, op. cit.; e M. Drain, op. cit. 68 Comissão Coordenadora de Obras Públicas no Alentejo, Relatório da CCOPA, Lisboa, 1957. 69 Sobre a situação dos assalariados rurais alentejanos, ver em particular: Mário de Castro, Alentejo, Terra de Promissão, Lisboa, 1933; J. A. C. de Vasconcelos, A Colonização do Alentejo, Elvas, 1884; Paulo de Morais, «Inquérito agrícola: estudo geral da economia da sétima região agronómica», in Boletim da Direcção-Geral de Agricultura, Lisboa, 1889-1890; e José Pacheco Pereira, «Atitudes do trabalhador rural alentejano face à posse de terra e ao latifúndio», in A Agricultura Latifundiária na Península Ibérica, Oeiras, 1981.

CONCLUSÕES DA PRIMEIRA PARTE

A literatura neo-realista e a mitologia política fizeram do Alentejo a «terra de promissão» e a «planície heróica». Durante muito tempo, e ainda hoje, quase não foi possível pensar ou falar do Alentejo sem paixão. Até o nome é frequentemente tido como sinónimo de sofrimento e de opressão e, por isso mesmo, de epopeia e de redenção. Apesar dos excessos e dos maniqueísmos romanescos, autores e militantes tiveram algumas razões, ou, antes, motivos. À maior parte dos seus habitantes, a região não ofereceu segurança nem bem-estar suficientes. Ao longo dos anos, os que iam triunfando eram, em geral, os que iam partindo. A pobreza relativa de recursos naturais, o domínio indiscutível da grande propriedade e um nível muito elevado de proletarização são os traços mais salientes desta região. Durante as últimas décadas, um fenómeno se impõe como característica permanente numa longa evolução do sector agrícola: a estagnação económica e um crescimento da produtividade demasiado lento. Uma e outro tocam tanto a agricultura nacional como regional. Ambos continuam evidentes, mesmo se outras mudanças importantes (emigração, industrialização e urbanização) ocorreram na sociedade. Várias causas, coincidentes no tempo ou sucessivas, explicam o medíocre progresso técnico e económico. Todavia, nem todas são exclusivas da região e das suas estruturas agrárias. Com efeito, a mediocridade dos resultados é de carácter nacional. É o sistema agrícola de

conjunto que é fonte da subutilização dos recursos naturais e humanos: a pequena agricultura minifundiária e camponesa do Norte, a grande agricultura capitalista do Sul, ambas estreitamente ligadas pelas estruturas sociais do País, pelas políticas económicas e agrícolas e pela situação de Portugal no conjunto económico europeu. Entre os factores de estagnação, a pobreza de recursos naturais não é dos menores: por isso os obstáculos ao melhoramento de produtividade são reais. No entanto, as potencialidades estão longe de estar esgotadas, mas a sua exploração exige fortes intervenções de conjunto e exteriores à economia agrícola. Noutros termos, são necessários os grandes trabalhos de infra-estrutura, as obras públicas e os investimentos de carácter social. Quer isto dizer: projectos e investimentos estatais. Ora, o Estado tem feito muito pouco. Durante anos, as suas prioridades foram outras: ora a austeridade monetária, ora o desenvolvimento industrial, ora ainda as comunicações. As suas intervenções agrárias favoreceram geralmente grupos restritos já privilegiados. Também é verdade que, durante os primeiros anos do anterior regime, os recursos financeiros eram insuficientes. Mas, logo que estes aumentaram, as opções políticas não foram favoráveis ao desenvolvimento agrícola. As estruturas agrárias e fundiárias revelaram um grande imobilismo. No Sul, a grande propriedade domina desde sempre. O capitalismo agrário desenvolveu-se, a partir do século XIX, com base na grande propriedade. Nem a empresa (em oposição a propriedade), nem a média exploração, desempenharam um papel importante no crescimento da economia agrária mercantil. Os bens da coroa, das ordens religiosas e de uma boa parte da antiga aristocracia foram directamente adquiridos pelas novas burguesias rurais e urbanas. Em certo sentido, o monopólio social da terra manteve-se. Na posse de dois factores de produção abundante, a área

e a força de trabalho barata, os proprietários investiram lentamente e só muito tardiamente modernizaram as suas empresas. Aliás, neste último caso, fizeram-no em geral sob a pressão da emigração e da urbanização, isto é, do encarecimento e da rarefacção da mão-de-obra. E, mesmo nestas condições, a modernização não se generalizou. Antes do investimento e do desenvolvimento das suas empresas, os proprietários tinham ainda duas preferências: a cortiça e o arrendamento. Durante a segunda metade do século XIX, a agricultura tinha conhecido um período de crescimento graças a boas oportunidades de exportação. Mas, na ausência da industrialização, o crescimento esgotou-se rapidamente e pouco contribuiu para o desenvolvimento geral. As deficiências da industrialização tiveram várias consequências negativas para a agricultura: no fornecimento de factores de produção a preços acessíveis; no alargamento do mercado; no fomento de um eficiente sistema de transportes; e na redução da pressão demográfica através do emprego nas indústrias. Mais tarde, desde o princípio dos anos 1960, verificou-se um notável crescimento industrial, ligado às perspectivas de exportação para os países europeus. Esta evolução, em conjugação com a emigração, provocou importantes mudanças no mundo rural, em particular de carácter demográfico. Estas foram todavia limitadas, dado o imobilismo das estruturas agrárias, sociais e fundiárias. Por outro lado, a industrialização extrovertida repousava pouco no alargamento do mercado interno, tanto de factores de produção como de produtos alimentares diversificados e industrializados. O nível médio de educação e de formação técnica e profissional dos agricultores e dos proprietários é muito baixo e constitui outro obstáculo ao desenvolvimento. Também é verdade, no entanto, que pequenos grupos de empresários mais modernos e educados souberam inovar

e investir, especialmente nos últimos 20 anos antes da revolução de 1974. Assim se criou um sector de capitalismo agrícola moderno, coexistindo com o sector latifundiário e extensivo mais tradicional. Os factores genéticos deste sector moderno são geralmente exteriores ao mundo rural: capitais financeiros ou comerciais, novos empresários urbanos, investimentos estrangeiros e perspectivas rendíveis de exportação. Noutros termos, e de modo mais geral, as fontes de mudança na agricultura e no mundo rural foram sobretudo exteriores: emigração, industrialização, urbanização e investimento agro-comercial. Esta é uma das causas da coincidência da mudança (particularmente demográfica) com a estagnação (da produção e da produtividade). Como também está na origem do agravamento do dualismo da economia e da agricultura: um reduzido sector de vanguarda e de modernidade cada vez mais afastado de um arcaico sector tradicional. O capitalismo agrícola (comercialização e salariado) desenvolveu-se cedo e depressa, mas sem crescimento notório do sector agrícola. Eis uma das origens do malestar agrícola e rural de Portugal e do Alentejo. Eis também uma das causas da insegurança e do desemprego sazonal, os dois mais graves desequilíbrios da sociedade alentejana. Até aos anos 60, o desemprego ameaçava quase toda a população rural. Só a emigração lhe pôs termo, por via do emprego noutros sectores. A insegurança diminuiu também, por causa das carências de mão-de-obra, do desaparecimento do «exército de reserva» e dos aumentos de salários. Por volta de 1974, mesmo se a prosperidade não era grande, os assalariados do Alentejo acabavam de viver, durante uma década, o período de maior bem-estar de todo o século. Durante esse mesmo lapso de tempo, os conflitos sociais são praticamente inexistentes. Na maior parte dos trabalhadores, todavia, estava ainda

viva a memória colectiva de uma grande insegurança, ancestral e recente. Como não tinham desaparecido nem a certeza da sua condição, nem a percepção da profunda clivagem social, ou da polarização da região. Em plena revolução, estas perenes certezas vão contrastar com a fragilidade dos benefícios colhidos durante os últimos anos.

Segunda Parte OS ACONTECIMENTOS

CAPÍTULO IV A REVOLUÇÃO POLÍTICA E A SITUAÇÃO SOCIAL

É verdade que os riscos eram enormes, mas o derrube do regime foi fácil. As primeiras unidades rebeldes tiveram o apoio de quase todas as outras nas primeiras 24 horas. Os hesitantes telefonavam, na esperança de serem ajudados a tomar uma decisão. A PIDE-DGS resistiu dois dias, sem sucesso, mas provocou os mais graves incidentes do golpe de Estado: dois mortos. Os membros do Governo e outros dirigentes nacionais, na sua maioria, abandonaram os seus postos e fugiram. Alguns ficaram simplesmente em casa. Dois ou três acompanharam Marcelo Caetano, primeiro na prisão, depois na cortês deportação, finalmente no exílio. Noutros termos, quase ninguém resistiu ou quis fazer frente aos revolucionários. Os apoiantes do regime não estavam disponíveis para o defender. As adesões às forças rebeldes e ao curso democrático que se anunciava foram maciças, pareciam unânimes, como se viu nas festas que, durante dias, encheram as ruas. O desejo de liberdade e a vontade de mudança vinham de longe, apesar de impotentes ou ineficazes. Uma relativa modernização da sociedade desde os anos 60, a morte de Salazar e a frustração das expectativas que a abertura de M. Caetano tinha suscitado tornavam populares as ideias de mudança e de liberalização. A guerra colonial arrastava-se. Parecia não acabar nunca,

o que descontentava civis e militares. As despesas públicas estavam hipotecadas pela guerra. Até a abertura política e cultural, prometida em 1969, desmentida em 1970, foi impedida pela guerra. Nas forças armadas, o mal-estar era enorme. O Governo não encontrava as soluções políticas que os militares desejavam. Estes, além dos sacrifícios pessoais que deviam fazer com a guerra, estavam excluídos do crescimento económico que se registava na metrópole e dos benefícios de uma relativa modernização. Além disso, sentiam que os preparavam para ser, um dia, os bodes expiatórios de soluções inevitáveis, o que poderia incluir derrotas militares ou mesmo a perda de colónias. Finalmente, em crise de recrutamento, o Governo cometeu todos os erros possíveis no tratamento de várias questões internas, como sejam as relações entre milicianos e oficiais do quadro, ou entre oficiais superiores e jovens. Problemas de geração e questões profissionais ou de corpo misturaram-se com outros, de carácter político e cultural. Milicianos, jovens das classes médias e universitários estavam cada vez mais sensíveis, sobretudo a partir dos finais dos anos 60, aos valores da democracia e do socialismo, assim como aos movimentos de descolonização e às lutas do terceiro mundo. Qualquer tensão nas forças armadas tomava uma importância excepcional. Não só porque se tratava de militares e porque estes eram, há quatro décadas, o apoio essencial do regime, mas também porque na própria oposição política se tinha frequentemente o sentimento de que, sem uma iniciativa dos militares, jamais o regime seria derrubado. Em poucos meses, de meados de 1973 a princípios de 1974, o descontentamento militar alastrou-se a vastas áreas e atraiu diversos contributos, desde prestigiados generais do regime (como os generais Spínola e Costa Gomes) até aos jovens milicianos esquerdistas. O livro do general Spínola (Portugal e o Futuro) teve

larguíssimas repercussões. Mais pela qualidade do seu autor do que pelo valor intrínseco da obra. As suas propostas políticas têm interesse muito desigual. Mas a abordagem de um tema fará escândalo: a guerra. O autor dá a entender, preto no branco, que não será possível ganhar a guerra militarmente. Na boca de um chefe militar, esta afirmação é evidentemente explosiva. E foi-o. Em certo sentido, a guerra colonial separava os partidários do regime e a oposição. Todavia, preocupados com a guerra, os Portugueses não estavam muito sensibilizados para a questão colonial. A população que lá vivia estava longe e não era numerosa. Os emigrados na Europa, mais de um milhão, viviam mais perto, faziam visitas regulares, enviavam as «remessas» e talvez viessem a ajudar os parentes a emigrar, eles também. Para a opinião pública, as vantagens do império não eram tão evidentes como a propaganda tentava fazer acreditar. As classes médias viam com mais interesse o crescimento económico na metrópole. Os jovens rurais procuravam emprego na cidade, na indústria ou na emigração. Mesmo nos círculos militares e políticos afectos ao regime havia momentos de inquietação, logo denunciados pelos «ultras» como sinais de derrotismo. O número de desertores e de refractários crescia lentamente, enquanto nas escolas militares os lugares vazios se iam sobrepondo aos novos alunos. Para conseguir o golpe, bastou ao Movimento das Forças Armadas exibir as suas forças nas ruas e ocupar os pontos estratégicos. Organizar a conspiração tinha sido mais difícil e mais arriscado do que realizá-la. O «Programa do MFA» respeita, em diversos aspectos, a tradição das proclamações dos autores de golpes de Estado: vago, impreciso e consensual, capaz de atrair o maior número possível de pessoas e bem delimitar o «inimigo». Ulteriormente, muitas serão as «leituras» do «Programa», o modo como foram designadas as diversas

interpretações. Cada um foi capaz, com efeito, de legitimar as suas próprias ideias com a fidelidade ao texto. Mas o «Programa» continha mais do que isso. Dois pontos vieram a revelar-se de enorme importância. Um deixava a porta aberta a uma solução política para a guerra, nomeadamente com o objectivo da autodeterminação. Outro prometia eleições para uma Assembleia Constituinte. Parece pouco, mas tratava-se do princípio das soluções para os dois problemas essenciais: a descolonização e a instauração de um regime democrático. Poucas semanas depois, o programa do primeiro Governo provisório confirma as duas opções iniciais, mas acrescenta algo de novo: a preocupação com as questões sociais e económicas, fazendo prova de uma tensão reformadora e moderadamente socializante. Fala-se já de «estratégia antimonopolista» e de «reformas graduais das estruturas agrárias», tendo particularmente em conta as «classes mais desfavorecidas». Estas expressões tiveram a vida longa e, durante mais de dois anos, foram referências obrigatórias. Eram insuficientes, do ponto de vista doutrinário e programático, mas bastaram para marcar uma inclinação à esquerda. No futuro, os debates políticos e as acções concretas terão esta base comum e este ponto de partida, radicalizando-se dia após dia. Em poucas semanas, todos queriam ter alguém à sua direita e o menos possível à sua esquerda. Em Maio, a população vem para a rua. Muitos vão lá ficar quase dois anos. Organizadas ou espontâneas, as massas e as multidões nunca faltarão à revolução, como não faltarão, em 1975 e 1976, aos que lutarão contra a revolução, a favor de uma democracia constitucional. Dois partidos surgem na primeira fila: o Comunista e o Socialista. Outros se organizam. Todos sabem que começou um autêntico «contra-relógio». Todos sabem também que o Partido Comunista tem muitos metros de avanço. As vantagens do Partido Socialista, embora reais,

são bem menores. Ainda em Maio, a Junta de Salvação Nacional (JSN) e o Governo estão em funções. São heterogéneos, não têm um real programa comum. Como não têm líder indiscutível. Nem uma ideia sólida ou um consenso sobre o modo de organização política do País ou as políticas a seguir. O poder político essencial está entre mãos de um MFA que não tem estruturas nem direcção, que não se reconhece num programa e que não possui qualquer experiência política ou da administração pública. Tudo se vai jogar e tudo será ganho na luta, numa luta ainda desprovida de regras. Nenhuma autoridade pessoal ou de grupo se estabelece: o poder pertencerá a quem melhor o souber tomar. Os bastidores, os quartéis e a rua vão decidir. Desencadeiam-se greves por todo o lado: os trabalhadores, os empregados e os funcionários sentem que é chegado o momento em que o que não for ganho hoje talvez nunca mais o venha a ser. Muitas destas greves são conduzidas pelo PC e pela sua central sindical (CGTPIntersindical), mas numerosas serão ainda as espontâneas ou as conduzidas por pequenos grupos de extremaesquerda. Nestes últimos casos, raramente faltará a condenação pelo PC. No conjunto do País, mas sobretudo em Lisboa e nos principais centros urbanos, desenha-se um deslizar geral para a esquerda socialista, comunista e revolucionária. As estruturas paralelas do MFA e alguns dos seus porta-vozes mais faladores reforçam esta tendência. O antigo regime e o fascismo são identificados com o capitalismo. Daí resulta que o socialismo será o equivalente da democracia. Nos órgãos do poder, as divergências surgem rapidamente à luz do dia. Duas questões sobressaem: as colónias e o calendário de fundação do novo regime. Quanto à guerra, duas posições se definem. De um lado, o MFA, o PC, a extrema-esquerda e o PS defendem a independência pura e simples para as colónias e a partida

dos militares portugueses. Do outro lado, os mais moderados e aqueles que procuram manter ou defender interesses em África pretendem estabelecer um processo de negociação com todos os interlocutores possíveis, podendo conduzir a soluções diferentes segundo os territórios. Para os primeiros era claro que o poder só deveria ser entregue aos movimentos de libertação e, entre estes, aos que tinham o apoio da maior parte dos Estados africanos, da União Soviética e dos países socialistas. Para os segundos tratava-se de privilegiar os seus amigos políticos ou, no quadro de uma solução mais vasta, de contar com todos os grupos mais ou menos representativos, incluindo os brancos residentes ou naturais. Entre os grupos moderados alimentava-se ainda a esperança da criação de uma espécie de «comunidade» lusófona. Angola era, evidentemente, o centro de todos estes interesses. Não se poderá finalmente negar a existência de uma terceira corrente, a dos que queriam manter a relação colonial, ou o que fosse possível. Mas estes não se conseguiam fazer ouvir, o que se devia ao facto de não serem muito numerosos, ou de não estarem adequados ao espírito do tempo. De qualquer modo, um certo clima de intimidação impunha limites à expressão da direita. A segunda grande questão, a fundação do novo regime, era bem mais complexa, punha tudo em causa. As forças radicais, com o PC e o MFA à cabeça, mas com o consentimento do PS, pretendiam manter o poder provisório por um tempo razoável; realizar algumas reformas económicas e sociais; «sanear» e mudar o aparelho de Estado; deixar desenvolver o processo social e político. Para estes projectos de reforma social e económica, a «legitimidade revolucionária» era suficiente. O PS não levantou inicialmente obstáculos a este desígnio, mas distinguia-se pela firmeza com que anunciava um limite temporal e político para o poder provisório: a

realização de eleições constituintes ao fim de um ano. Sobre este ponto, comunistas, esquerdistas e MFA eram mais vagos e imprecisos. Os grupos mais moderados e as forças de direita consideravam que o poder provisório não tinha plenos poderes, nomeadamente em matéria de reformas. Na sua argumentação, as eleições ocupavam um lugar de primeira importância: antes da sua realização, nenhuma medida de fundo seria aceitável. E se os problemas a resolver eram importantes e urgentes, então que se realizassem eleições imediatamente, em particular para a Presidência da República, cargo para o qual se pensava haver um candidato indiscutível, o general Spínola. A própria independência das colónias estava em causa. A esquerda considerava que aquela deveria ser acordada desde logo, pelo poder provisório. A direita queria, também neste caso, eleições prévias. Os socialistas tinham a sua posição particular: aceitavam as independências e as reformas sociais antes das eleições; queriam eleições constituintes rapidamente; mas não desejavam eleições presidenciais, até porque não depositavam inteira confiança política no general Spínola. Em poucas palavras, a esquerda era favorável ao movimento, à prossecução de um processo social que se anunciava revolucionário e a um poder provisório com poderes. A direita procurava uma fixação política rápida, com eleições presidenciais, logo seguidas das constituintes e parlamentares. Os socialistas preferiam o movimento, desde que o comandassem, a fim de conquistar posições que lhes permitissem chegar às eleições com alguns trunfos. Os comunistas e o MFA sabiam que a legitimidade revolucionária lhes dava vantagens e lhes permitia mais conquistas do que as eleições. Tanto a organização partidária e sindical do PC como a militar do MFA eram trunfos de peso, tanto mais que os outros não tinham

organização digna desse nome. Apesar do entusiasmo e da forte adesão popular, era evidente que as eleições dariam ao MFA e aos comunistas um lugar na vida política bem menos importante. As eleições fazem quase sempre perder aqueles que fazem as revoluções. Por outro dado, o poder provisório permitiria aos revolucionários e aos seus aliados (o MPLA) resolver expeditamente o problema de Angola. Foi aliás preciso ajudar a armar o MPLA, o que o MFA fez, assim como fomentar a colaboração directa de Cubanos e Soviéticos, o que se conseguiu. Ao contrário, as forças moderadas e da direita, por falta de organização e de apoio militar e debaixo de fortes pressões e intimidações, viam nas eleições a sua salvação. Por fé democrática ou por táctica, pensavam que só as eleições seriam um real obstáculo à revolução. Perdiam quotidianamente posições no aparelho de Estado, na administração, nas forças armadas e até na imprensa. Não tinham o apoio activo e aberto dos militares, até porque muitos destes não tinham a certeza de que os sectores mais moderados ou a direita também queriam pôr termo à guerra. Uma coisa parecia certa: os resultados das eleições seriam de qualquer modo mais vantajosos do que os acontecimentos que, dia a dia, levavam o Governo e o País cada vez mais para a esquerda. O PS, no que a princípio foi a sua fraqueza, mas ulteriormente a sua força, fazia coexistir uma política moderada e um programa revolucionário. Queria a legalidade democrática e a legitimidade revolucionária. Pretendia conciliar a democracia política com a revolução social, as instituições representativas com o poder das bases. Esta ambivalência poder-lhe-ia ter sido fatal ou preciosa. Não seria preciso esperar muito para saber. Os restantes meses de 1974 e os primeiros do ano seguinte foram de uma constante aceleração da vida política e de um progressivo deslize para a esquerda. Por sua própria iniciativa, ou empurrado pelo PC, o MFA toma

cada vez mais poder e assume crescentes responsabilidades. Em Setembro, a direita e algumas forças moderadas tentam a sua sorte, fazendo apelo à «maioria silenciosa». Silenciosa esta se manterá, a maioria não se fez ver e a tentativa falha. Em contra-ataque, os comunistas e o MFA vencem, com a cumplicidade do PS. Isolado, o presidente Spínola demite-se. O seu chefe de estado-maior-general das forças armadas, o general Costa Gomes, substitui-o. A vida para as independências africanas está aberta. Moçambique e Guiné serão Estados ainda em 1974. Para Angola e para que o MPLA se transforme em força dominante será preciso esperar um ano. No «crescendo» da esquerda e dos militares, Vasco Gonçalves tinha sido nomeado primeiro-ministro em Julho. Até ao fim do ano sucedem-se múltiplos episódios, sérios ou rocambolescos, nas ruas, nos quartéis e nos corredores dos palácios de Estado. A preponderância dos comunistas e do MFA reforça-se. O País vive em permanente agitação, correm boatos incríveis e rumores verdadeiros, espera-se a todo o momento um golpe de Estado ou uma acção espectacular. É o tempo das ocupações. Casas ou empregos, cargos na administração ou empresas, tudo pode ser ocupado. As vereações de todos os municípios são demitidas, substituídas por comissões ad hoc, ditas comissões administrativas. Estas são formadas por eleição, nomeação ou ocupação, depende das circunstâncias. Um balanço global das comissões municipais e de freguesia dá vantagem aos socialistas e aos comunistas. Nos ministérios e nas empresas públicas prossegue igualmente a ocupação institucional, da base até às administrações e direcções-gerais. Recrutam-se milhares de novos funcionários. Em muitos casos, conversões oportunas permitem encontrar substitutos nos próprios serviços. O «saneamento», autêntica palavra de ordem, é por vezes

obra do Governo, por vezes dos trabalhadores e dos funcionários. O crescimento dos partidos, em particular do PS e do PC, faz-se nesta altura graças à distribuição de empregos e de responsabilidades institucionais. Distribuição ou assalto, conforme os casos. Vive-se em tom geral de propaganda: em comícios, manifestações e cortejos; nas ruas, na rádio e na televisão. Os jornais estão quase todos entre as mãos de comunistas, esquerdistas ou simpatizantes do MFA. A vida quotidiana, especialmente nas cidades, está submergida pela política, pelos conflitos de toda a espécie, pela competição, pela vingança e até por velhos ajustes de contas. O «fascista» torna-se o lugar geométrico de todos os vícios e defeitos do homem, na escola, na empresa e na via pública; será também o pretexto para mudanças de responsabilidades, de pessoas e de empregos. As hierarquias quebram. Toda a gente tem o direito à palavra e muita gente decide exercêlo. Instala-se a desorganização da vida institucional e económica própria dos momentos de revolução ou de mutação social. Ninguém, pessoa, grupo ou partido, conduz de facto a vida política; ninguém orienta a mudança. O MFA, parte interessada, já não consegue sequer ser o árbitro. No meio da desordem, todavia, algumas estratégias vão tomando corpo. Como se verá. O último trimestre de 1974 é marcado por uma nova escalada: a contestação do poder económico. Capitalistas e empresários sentem-se em sérias dificuldades desde Setembro. Muitos reduzem as suas actividades produtivas; há mesmo alguns que se vão simplesmente embora, para Espanha ou para o Brasil. O poder económico é duplamente posto em causa: por ter sido um pilar da ditadura; por querer sabotar a economia e impedir a revolução. Em fins de Setembro, alguns empresários são presos e partidos políticos da direita são proibidos. O medo instala-se na direita e em círculos moderados, assim como nas empresas, onde o poder patronal e da administração é

constantemente posto em causa. Por seu lado, o Governo aprova medidas legais que lhe permitem proceder a «intervenções» do Estado nas empresas privadas e combater a «sabotagem económica», um conceito que começa a ter largo curso. Antes do fim do ano, estes dispositivos serão utilizados várias vezes, por diversos motivos ou pretextos: fuga de capitais, pressão dos trabalhadores, dificuldades económicas, fuga do empresário, redução dos investimentos ou descoberta de relações entre os patrões e a antiga polícia política. Em meados de Dezembro verifica-se uma segunda acção concertada contra os meios empresariais: algumas dezenas de pessoas são presas ou procuradas pelas forças armadas. Frequentemente, militantes civis acompanham os grupos de militares que efectuam as prisões e as buscas ou controlam as estradas. O «poder popular» e as «bases» conhecem os seus dias de glória. Louva-se a acção dos trabalhadores, empregados, estudantes, funcionários e moderadores, que é aliás encorajada pelo Governo e pelos militares e popularizada pelos jornais e pela televisão. As fugas de empresários para o estrangeiro não desagradam inteiramente à esquerda: fornecem motivos reais para a demonstração da «sabotagem» económica e para a ulterior intervenção do Estado. A direita e o poder económico reagem pouco. Aliás, se quisessem, talvez não soubessem como. Sem a polícia política nem o poder de Estado, tendo contra si quase todos os partidos, os jornais e a televisão, sentem-se impotentes, inexperientes e cercados. Entretanto, no seio do Governo, multiplicam-se os impasses. Faltam direcção e unidade. Falta interesse comum e há concorrência a mais. O poder político não reside no Governo. Ninguém tem ilusões: o poder e o Governo dependem das forças armadas, das suas decisões e dos seus humores. Aí, os mais influentes, sem todavia

serem os únicos, são os comunistas. Estes adoptam a estratégia de conquista do poder através das forças armadas ou por intermediário das estruturas e instituições oficiais. A «Aliança Povo-MFA» torna-se oficial, é o nec plus ultra da revolução. Esta última é oficialmente classificada de libertadora e socialista; o MFA é considerado um «movimento de libertação». No Governo, militares e ministros civis controlam-se e vigiam-se. O «Programa de Política Social e Económica», mais conhecido como «plano Melo Antunes», é encomendado a vários ministros, que levarão algumas semanas a redigi-lo. É a primeira tentativa de dar coerência à acção do Governo, mas também será a sua derradeira tarefa. Tratase de um programa moderado, de inspiração socialista e social-democrata. Aprovado em Janeiro de 1975, é tornado público pouco depois, quando a temperatura política começa a aquecer. Preparam-se as eleições para Março. Aplicam-se os partidos que nelas depositam todas as esperanças, o PS, o PPD e o CDS. Os que pouco acreditam, ou que as receiam, agitam-se por outros lados. Nas forças armadas, as mudanças sucedem-se, as direcções políticas também. O MFA tem cada vez mais veleidades políticas. Discute-se publicamente a «institucionalização do MFA» no futuro desenho constitucional, assim como o seu contributo para a elaboração da Constituição propriamente dita. Todos têm pressa em resolver a questão. Os próprios moderados estão prontos a fazer concessões: para eles, o importante são as eleições. Praticamente ninguém se elevará contra a transformação do MFA em poder constituído. Para dar mais força aos seus argumentos, o MFA inicia as suas «campanhas de dinamização cultural». Regimentos inteiros, militantes comunistas e de extrema-esquerda, grupos de teatro e cantores, médicos e economistas partem para o campo, sobretudo para o Norte e o Centro, animar e dinamizar as populações rurais. Discutem-se

problemas, faz-se o inventário das necessidades e carências, propõem-se soluções. Nada lhes escapa: a saúde, a habitação, a agricultura, a educação e a reforma agrária. As «sessões de esclarecimento» são os locais ideais para a agitação e a propaganda. O acolhimento dispensado às campanhas e a estes emissários varia muito com as regiões. Houve casos de entendimento perfeito, houve casos de hostilidade agressiva. Globalmente, esta iniciativa do MFA provocou mais protestos do que apoios. Entre estes, só se encontravam comunistas e esquerdistas, que desempenhavam, aliás, funções nas campanhas propriamente ditas. Contrariando com mais ou menos veemência, ouviam-se o PS, o PPD e o CDS. Durante o primeiro trimestre do ano, as forças radicais aceleram as suas acções e consolidam posições. A 17 de Janeiro, o Governo e o MFA aprovam a lei da «unicidade sindical», o que vai marear uma autêntica viragem na vida política. O PS opõe vigorosamente, sendo seguido pelos outros partidos de centro e direita. A opinião pública parece desfavorável à lei. Apesar de participar no Governo, o Partido Socialista afirma-se nesta altura como a força dirigente da oposição anticomunista. Não se distancia dos processos em curso porque não quer ser excluído, mas sobretudo quer chegar às eleições. Os revolucionários, pelo seu lado, não se sentem suficientemente seguros, receiam o isolamento e preferem manter as aparências da colaboração com os socialistas e os moderados. Pertencendo à esquerda, o PS não tem problemas de «legitimidade revolucionária». A sua crítica ao MFA e aos comunistas nunca será identificada com o antigo regime e com a direita, apesar das tentativas feitas, nesse sentido, por militares e comunistas. A partir de Janeiro, também o PS mostrará uma forte capacidade para ocupar a rua, mobilizar manifestações e chamar a si o apoio de

multidões. Os moderados e a direita vão segui-lo durante meses, vendo nele a bandeira democrática e a protecção necessária. Foi neste quadro de agitação que ocorreram, no Alentejo e no Ribatejo, as duas primeiras ocupações de terras. Uma realizou-se numa herdade do Estado, outra numa privada que já estava sob intervenção, «intervencionada», como se dizia. O «11 de Março» vem coroar este período de confusão e de lutas, mas também vem dar um novo rumo, mais radical, mais crispado. A direita conspirava desajeitadamente e o próprio general Spínola se envolveu em intrigas frustres. Uma tentativa de golpe é esmagada pela esquerda militar e pelos comunistas, que, com um bom pretexto, fazem o seu próprio golpe político e constitucional. O Governo vira à esquerda, mantendo-se todavia o PPD, por exigência do PS. O Conselho da Revolução é criado, transformando-se no centro de decisão política. As eleições de Março são adiadas para Abril, no que terá sido a principal intervenção moderadora do presidente Costa Gomes, já que havia quem as quisesse adiar sine die. Durante os dias seguintes, todos os grandes grupos económicos são nacionalizados, incluindo vários jornais. Um grande número de oficiais das forças armadas são expulsos, alguns fogem para o estrangeiro, outros são presos. São detidos empresários e figuras de direita, por um lado; militantes esquerdistas adversários do PC, por outro. Algumas semanas mais tarde, pouco antes das eleições, é assinado o «Pacto MFA-Partidos», que uns assinam com vontade, outros com incómodo, outros ainda com medo. Só o Partido Popular Monárquico, sem grandes responsabilidades, mas com alguma coragem, recusa. Neste pacto, o MFA reserva-se um lugar no futuro constitucional e um direito de tutela sobre certos capítulos da Constituição a redigir.

A relação de forças mudou uma vez mais. Trata-se de um real golpe de Estado, uma revolução dentro da revolução. Era talvez inevitável, mas a direita, com as suas conspirações e tentativas, forneceu pretextos. Quanto ao PS, com singular instinto de sobrevivência, deixou-se ir na onda, fez a crítica do método e lançou algumas advertências. A sua prioridade eram as eleições. Tudo fez para não se excluir, recordando as «técnicas do salame», nas democracias populares dos finais dos anos 40. A campanha eleitoral, em fins de Março e em Abril, desenrola-se num ambiente de agitação, temores e boatos. As críticas do PS e do PPD contra os comunistas e os militares são agora abertas e agressivas. PC e MFA respondem violentamente. Só o CDS, à beira da interdição, faz uma campanha discreta. O PDC é simplesmente proibido de concorrer. Sem nunca atingir o verdadeiro terror, o clima é de intimidação. Poucas herdades foram ocupadas, mas muitas foram as casas. Espontâneas, organizadas por partidos de extrema-esquerda ou recomendadas pelos serviços públicos, as acções populares de ocupação, tanto no centro como na periferia de Lisboa e de outras cidades, foram numerosas. Fazem-se buscas nocturnas e prisões, por vezes sem mandado. O comandante do COPCON assina mandados em branco, que os seus oficiais utilizarão conforme as conveniências. São numerosos os presos políticos sem culpa formada. A revolução está na ordem do dia. Discute-se política de manhã à noite. O socialismo está em construção. Duas semanas antes das eleições, o primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, apresenta ao País um «Programa económico de transição para o socialismo», mais radical do que tudo quanto se tinha feito antes. As suas palavras, na televisão, não deixam dúvidas: «Não poderemos perder pela via eleitoral o que foi tão difícil a ganhar pelo nosso povo.» Ou

quer fazer, antes das eleições, tudo o que pode, com receio de que depois já não seja possível; ou pretende, com argumentos fortes, conquistar votos. Ou as duas coisas. A verdade é que mais nacionalizações são anunciadas, entre as quais as dos cimentos, do petróleo, do aço e da química. Realizam-se milhares de comícios em todo o País. Toda a gente sabe que apenas se vai eleger uma Assembleia Constituinte, sem poder legislativo. Mas ninguém duvida de que se vai fazer a primeira medida concreta, uma autêntica prova real. O MFA apela ao voto em branco. Com excepção da extrema-esquerda e do PC, todos os partidos criticam esta manobra, a Igreja também. O MFA conhecerá uma grande derrota: a participação eleitoral é enorme, o número de boletins brancos é ridículo. O PC também perde claramente: tem 12%, a que se podem acrescentar os 4% do MDP. O PS é o vencedor, com 39%; o PPD vem em segundo lugar, com 26%. Pela sua grandeza, os resultados destes dois partidos surpreendem a opinião pública, que, apesar de tudo, esperava ou receava melhores resultados do PC. Em quarto lugar vem o CDS, com 8%. As forças não comunistas ganham um novo fôlego. A todos recordam os resultados eleitorais e proclamam aos quatro ventos a sua vitória. Tudo vai mudar, mas não imediatamente. Os revolucionários, para fazer esquecer a derrota, tomam novas iniciativas e relançam a agitação. A «legitimidade revolucionária» ainda vai durar e exprime-se logo na festa do 1.º de Maio, quando são criadas dificuldades aos socialistas para nela participar. Começa o «Verão quente». O Governo pressiona, efectua novas nacionalizações (tabacos, celulose), prossegue o saneamento da administração e aprova em primeira leitura as leis de reforma agrária. Continuam muito lentamente as ocupações de terras no Alentejo, mas aumentam as de casas nas cidades. Em Julho, no meio de grande tensão, o

PS deixa o Governo, dando como pretexto imediato a ocupação seguida de fecho do jornal República. Dias depois, o PPD sai igualmente do executivo. Os socialistas organizam então uma autêntica campanha nacional de comícios e manifestações onde se critica ferozmente o MFA, os comunistas e o Governo de Vasco Gonçalves. Tudo culmina na Alameda, em Lisboa, onde talvez meio milhão de pessoas exige a demissão do Governo e sobretudo do primeiro-ministro. Nas forças armadas e no MFA assiste-se a nova radicalização. Mas dois fenómenos novos e importantes surgem. Por um lado, divergências entre os militares favoráveis ao PC e os grupos esquerdistas. Por outro, desenha-se um bloco moderado que se reconhece no «Grupo dos Nove». Neste último, o PS acredita finalmente ter encontrado um interlocutor militar, sem o qual a sua acção corria o risco da ineficácia. Entre Julho e Setembro, nos campos alentejanos, as ocupações aumentam em número e ritmo. A aprovação das leis de expropriação e de nacionalização de terras e dos perímetros de rega deu novo alento aos sindicatos e a outros ocupantes seus aliados. Entretanto, no Norte e no Centro do País, várias centenas de atentados à bomba e de incêndios são dirigidos contra as sedes dos partidos de extrema-esquerda e do PC, assim como contra indivíduos e instalações militares. O Governo está nas mãos dos militares radicais e dos comunistas, que apenas obtiveram 12% dos votos. Os sectores moderados das forças armadas exploram esta anomalia e aproximam-se dos socialistas. Os oficiais revolucionários não tiram as mesmas conclusões: aceleram o movimento, prosseguem na mesma linha, até à crispação. Forma-se um novo Governo, o quinto provisório, formado exclusivamente por simpatizantes e independentes favoráveis aos comunistas, chefiado ainda por Vasco Gonçalves. O presidente da República dá posse,

formula uma cândida reticência, mas apoia. Louva o «espírito de sacrifício» dos ministros empossados, reconhecendo embora que se trata de um Governo «por alguns dias». A situação é equívoca. Aparentemente, não se espera grande coisa do Governo. Na realidade, o executivo vai fazer o máximo que pode em dois meses: decretos, medidas, intervenções nas empresas, saneamentos e nomeações. Não perderá o seu tempo. As negociações para a formação do sexto Governo tinham já começado. Pode mesmo dizer-se que tinham começado antes de o quinto tomar posse. Estão interessados o PS, o PPD e o Grupo dos Nove. A independência de Angola está à vista. Em Portugal, os comunistas têm cada vez mais dificuldades em circular, a intimidação voltou-se contra eles. Mais ou menos à vontade no Sul, correm autênticos perigos de vida no Norte. Percebem rapidamente que o MFA não consegue sequer garantir-lhes a integridade física nem os movimentos. Alguns feridos e meia dúzia de mortos são os resultados, apesar de tudo surpreendentes, de várias centenas de atentados, bombas e incêndios. O Governo denuncia a «escalada reaccionária» e as «redes bombistas fascistas», mas quase ninguém ouve, ou acredita. E sobretudo mostra a sua fraqueza ao revelar que não consegue evitar os incidentes. O PS condena os atentados, mas não deixa de sugerir que os principais responsáveis são os próprios comunistas e os seus excessos. Apesar das dificuldades, o Governo não cessa de adoptar medidas. Conta com a oposição da maioria dos partidos e certamente da opinião pública, sem esquecer largos sectores nas próprias forças armadas. O PC deixa no proscénio o MFA e Vasco Gonçalves. Este teoriza o momento: é a transição para o socialismo, período durante o qual «coexistem os sectores público e privado, mas este

último será progressivamente absorvido pelo primeiro». A síntese é brutal: «Revolução ou reacção.» O isolamento de Vasco Gonçalves é-lhe fatal. O PC começa a agir prudentemente, tentando descartar-se do quinto Governo, não sem deixar de integrar o sexto. No MFA e nas forças armadas, a divisão é agora total: esquerdistas de vários bordos, comunistas, socialistas ou simplesmente democratas procuram, com alianças ou golpes de mão, assegurar a direcção político-militar. Vasco Gonçalves é definitivamente batido, à esquerda por Otelo Saraiva de Carvalho, à direita pelos «Nove» de Melo Antunes e seus amigos. Forma-se o sexto Governo, chefiado pelo almirante Pinheiro de Azevedo. O PS e o PPD regressam. O PC continua, mas apenas com um ministro. A relação de forças mudou, mas ainda não totalmente. Com efeito, a pressão revolucionária e esquerdista continua a fazer-se sentir «no terreno»: nas empresas, nos quartéis e sobretudo no Conselho da Revolução, que se mantém intacto. O PC justifica com moderação a sua permanência no Governo, apesar de, na sociedade, reforçar a sua linha de contestação. Os dois primeiros meses do novo Governo são difíceis. A sua vitória está longe de ser completa. No essencial, o poder militar é-lhe desfavorável, o que se traduz principalmente na composição do Conselho da Revolução. Além disso, na rua e nas empresas, a agitação continua intensa. No Governo é perceptível uma certa fragilidade, que lhe advém da sua heterogeneidade, do seu carácter federativo. Não há nenhuma razão para que os grupos de interesses não se manifestem e não tentem obter benefícios e parcelas de poder. Adivinham-se mudanças, que aliás só poderão ser contrárias aos comunistas e aos militares mais radicais. Se assim não fosse, não se teria formado o sexto Governo. A presença maciça dos socialistas no executivo é uma

indicação de que as mudanças, sendo de vulto, não irão no sentido de um improvável regresso ao anterior regime. O PS mantém com efeito o seu programa revolucionário. Será nomeadamente o caso da reforma agrária: os socialistas são francamente favoráveis às expropriações e a várias formas de cooperativismo e mesmo de colectivismo. Em consequência, até pelo menos Outubro ou Novembro de 1975, não se mostram críticos do que se tinha desenrolado no Alentejo e no Ribatejo. Com efeito, durante os primeiros 60 dias de Governo, realizou-se uma autêntica avalanche de ocupações de terras e de herdades, atingindo um total, relativo a todo o ano, de mais de 700 000 ha, sem contar as terras nacionalizadas. Esses dois meses de Governo moderado constituem o período de maior intensidade de ocupações. A razão do paradoxo reside principalmente numa medida tomada pelos ministros das Finanças e da Agricultura (Salgado Zenha e Lopes Cardoso) e que abre os créditos públicos, com aval ou garantia do Estado, ao pagamento de salários nas herdades ocupadas, quer dizer, nas unidades colectivas de produção que se começam a organizar. Tal dispositivo é a promessa de uma relativa tranquilidade económica e é sobretudo um encorajamento à ocupação de mais herdades. Mas não são só as dificuldades políticas que afligem o Governo. A situação social e económica é com efeito muito delicada. E a situação financeira é quase desesperada. Desde fins de 1974 que a produção, especialmente industrial, não parou de baixar. A balança comercial agrava-se dia a dia. As empresas enfrentam enormes dificuldades, seja porque os salários aumentaram consideravelmente, graças às vitórias sindicais dos últimos meses, seja porque o clima de autoridade empresarial ou de disciplina desapareceu completamente. Por outro lado, muitos empresários deixaram de investir, outros fugiram, outros ainda deixaram de obter créditos na banca

nacionalizada. Finalmente, as nacionalizações desequilibraram o sistema económico, tal como estava organizado, sem que um novo arranjo se estabelecesse. As administrações nomeadas pelos governos são geralmente inexperientes, dependentes dos ministros, eles também sem prática. Entretanto, as empresas «intervencionadas», mais de 900, constituíam um sector estranho, deficitário, desorganizado, onde tudo podia acontecer. Olhando para trás, a diferença é considerável. Em princípio de 1974 não havia crise económica séria, com excepção das primeiras dificuldades internacionais e do início da crise energética. O desemprego era reduzido e os primeiros sintomas de inflação não bastavam para pôr em causa o crescimento permanente do nível de vida desde há 15 anos. Em fins de 1975, a crise económica e social é geral. Provocada e fomentada pela crise política, a crise económica encontrará ainda alimento em razões que ultrapassam o País: a paragem da emigração, as dificuldades económicas dos países ocidentais e o «choque petrolífero». Mas a situação interna, incluindo as consequências da descolonização, é a principal responsável pela deterioração social. Num clima geral de insegurança, sem novos investimentos e sem garantias de gestão empresarial pública ou privada, o desemprego começou rapidamente a subir nas cidades e nos campos. Após a nacionalização, quase todo o sector público entrou imediatamente em situação económica difícil. Finalmente, problema maior da economia e da sociedade, 700 000 «retornados», sem meios, nem recursos, nem empregos, regressaram de África em menos de um ano, provocando, só por si, um aumento brusco da população de quase 8%! A dívida externa aumenta, o Estado perdeu parte do seu crédito, inclusive por razões políticas. Vai ser preciso recorrer às reservas de ouro e divisas, assim como aos empréstimos internacionais. Para estes, vindos sobretudo

da Alemanha e dos Estados Unidos, o papel do Partido Socialista será crucial. A tudo isto acrescente-se o resultado da descolonização do ponto de vista estrutural: perda do mercado e das matérias-primas coloniais. No conjunto, a vida económica está degradada, as consequências sociais são já visíveis. Coincidência feliz: a revalorização permanente do ouro e a libertação do seu mercado quintuplicaram a capacidade de endividamento do Estado. Apesar das ajudas do destino, tudo tem um limite. E o pior problema ainda era a ausência de condições políticas para tratar da crise económica e financeira. Iria talvez ser necessário hipotecar ou vender ouro, com todas as consequências políticas imprevisíveis de tal acto. O mês de Novembro é decisivo. A começar por Angola, cuja independência é declarada na primeira quinzena, com a supremacia absoluta do MPLA. É um novo problema político africano e internacional, mas, com ou sem razão, deixa de ter influência na vida política portuguesa. Até porque os comunistas e os militares começaram a exercer menor pressão em Lisboa. Também é verdade que tinham sido derrotados e sê-lo-ão uma vez mais antes do fim do mês. Mas a coincidência pede alguma reflexão. Entretanto, a Assembleia Constituinte, que se tinha começado a reunir durante o Verão, é alvo de críticas esquerdistas e será mesmo objecto de um «cerco» em forma. Os deputados lá iam redigindo laboriosamente os artigos da «lei fundamental», num ambiente razoavelmente desligado do que se passava cá fora, mas num clima geral bem à esquerda. Nesta altura, já estão aprovados: a transição para o socialismo, a apropriação colectiva dos meios de produção, o controlo de gestão das empresas públicas ou privadas, a autogestão e a reforma agrária, incluindo a colectivização dos campos, ou de parte deles. A representação socialista «faz os votos». Levados ou constrangidos, todos os partidos votam mais à

esquerda do que permitiriam os seus programas ou as suas ideologias. O cerco da Constituinte foi apenas mais um episódio, mais grave e mais simbólico, é certo, numa série de lutas e de acontecimentos que, entre 10 e 25 de Novembro, levaram o País ao rubro e o terão aproximado da eventualidade de uma guerra civil. Várias greves se verificaram, em particular a da construção civil, que se atacou ao Governo e à Assembleia Constituinte e deu mesmo lugar a preparativos para ocupação de pontos estratégicos de Lisboa e das vias de comunicação. A desordem é completa. O Governo, além de se sentir impotente, não tem sequer armas para fornecer à polícia. A tal ponto é caricata a sua situação que exige do presidente da República autoridade, clarificação política e espingardas para a PSP. Para bem vincar as suas exigências, o Governo entra em greve! Não será por iniciativa do presidente da República que o Governo obtém o que deseja e precisa. O presidente encarna pessoalmente a dualidade do poder. Depois de ter dado saída a Vasco Gonçalves e posse a Pinheiro de Azevedo, o general Costa Gomes recebe os manifestantes revolucionários a 20 de Novembro, a quem afirma «que em Portugal não haverá jamais uma social-democracia». Quando o Governo entra em greve, o presidente não deixará de o censurar, em nome próprio e do Conselho da Revolução, de que é o presidente também. Poucos dias antes de 25 de Novembro, dir-se-ia que os revolucionários estão a levar a melhor, conquistando posições em diversos quartéis. Mas os adversários estão atentos e organizam-se em diversas frentes. Entre 20 e 23, os socialistas realizam comícios e manifestações por todo o País. Pela primeira vez, criticam abertamente o presidente da República. Por outro lado, discretamente, oficiais preparam a resposta e várias unidades se aprontam. Ramalho Eanes, Garcia dos Santos, Loureiro dos Santos,

Pires Veloso, Jaime Neves e o «Grupo dos Nove», entre outros, conduzem uma operação cuidadosamente estudada. Em jeito de contragolpe, os revolucionários são derrotados. Tinham alguma força, mas faltava-lhes organização, disciplina, unidade e apoio. O estado de sítio dura poucos dias. A relação de forças mudou completamente. O Governo retoma funções. Alguns oficiais esquerdistas fogem para o estrangeiro, alguns são presos por pouco tempo, outros são licenciados. Nos postos de comando militar, oficiais moderados substituem os mais radicais. As mudanças no Conselho da Revolução consolidam os novos equilíbrios. Dezembro e Janeiro são passados em ajustamentos decorrentes da nova situação. Toda a gente está consciente de ter poisado à beira do desastre. Todos marcam encontro para o próximo momento decisivo: as eleições legislativas e presidenciais. Com a sua última intervenção forte, os militares permitem que o primeiro factor de decisão passe das espingardas para as urnas. Os conflitos decrescem rapidamente. Os salários e os preços são congelados por algum tempo. Na administração e nas forças armadas, os dirigentes e os chefes mais radicais, esquerdistas e comunistas vão sendo gradualmente substituídos, a ponto que em breve o PC começará novamente a falar em saneamento, mas desta vez a denunciá-lo. Socialistas e militares da esquerda moderada fazem que o PC se mantenha no Governo e fazem esforços por evitar uma nova «caça às bruxas» anticomunista, que, de qualquer maneira, não era seguro que se preparasse. Com efeito, os atentados contra as sedes partidárias diminuem rapidamente. Um segundo «Pacto MFA-Partidos» é assinado, no qual os militares perdem inúmeras das suas prerrogativas, particularmente o direito de interferir na redacção da Constituição. Reservam-se, é certo, algumas posições na futura Constituição, como por exemplo um lugar para o

Conselho da Revolução, mas nada que se compare com o que estava anteriormente previsto. Tomam-se finalmente decisões definitivas sobre a realização de eleições. A campanha eleitoral será a principal preocupação dos partidos durante os primeiros meses de 1976. Paralelamente, na esfera do Governo, vários acordos políticos são feitos, com a colaboração do presidente da República, entre os quais uma espécie de «plataforma» de acordo interpartidário sobre matérias relativas à reforma agrária, da qual sairão vários decretos e correcções às leis em vigor até ao início do período constitucional. Neste contexto, além de outras medidas importantes, é criada a Zona de Intervenção da Reforma Agrária, através da qual se limitam ao Alentejo e a parte do Ribatejo as leis de expropriação e de nacionalização das terras e herdades. Os partidos moderados vêem, nesta demarcação legal, uma vitória e uma vantagem, já que as regiões do Centro e do Norte, além do Algarve, serão poupadas às medidas de reforma agrária. Para o PC, mais do que um limite, estas «fronteiras» são uma protecção e uma defesa para as suas conquistas já efectuadas. Mantendo alguma pressão «no terreno», os comunistas estão relativamente calmos e moderados. Álvaro Cunhal reconhecera que as «forças revolucionárias tinham sofrido algumas derrotas», isto em Dezembro de 1975. Semanas depois, defende mesmo o sexto Governo, cuja queda eventual seria, nas suas palavras, «mais um passo a favor da direita». Os socialistas comportam-se como os principais responsáveis do Governo, que são na realidade. Além disso, consideram que serão provavelmente chamados a formar o primeiro Governo constitucional, depois das eleições. Internamente, o partido mantém as sensibilidades e contradições, da social-democracia ao socialismo revolucionário. Tem um programa radical de reforma agrária, mas denunciou os métodos do PC e dos

militares. Não quer o regresso ao passado, quer alguma revolução, mas não quer os seus excessos, nem quer que se atente contra as regras básicas da democracia representativa. De toda esta situação bem difícil, Mário Soares extirpará uma teoria original. Para o País, a coexistência concorrencial dos dois sistemas sociais, o socialismo e o capitalismo, o privado e o público. Para o partido, o papel de «charneira», de mediador de antagonismos sociais e de moderador de divergências políticas. Apesar das dificuldades evidentes, esta estratégia vai render, pelo menos até às eleições. O PPD e o CDS estão mais à vontade, sobretudo o segundo, que vivia em quase clandestinidade. Podem agora fazer a sua propaganda em paz, correr o País, realizar comícios. Já não precisam do «guarda-chuva» socialista para expor as suas ideias e abrir as suas sedes. Criticam abertamente todo o curso da revolução. O CDS votará mesmo contra a Constituição, em fins de Março. O PPD, que, desde o «Verão quente», votou todos os seus artigos, votará ainda favoravelmente o conjunto. Vive todavia em crise, durante o primeiro semestre do ano, por razões doutrinárias, políticas e pessoais. Os conflitos militares conhecem uma pausa, talvez uma trégua. Os quatro partidos aproveitam para se consagrar a lutas mais importantes e imediatas: a Constituição e as eleições. Até Março, sem incómodos exteriores, os deputados terminam a redacção da lei fundamental. De certo modo, tudo se passa como se os acontecimentos de Novembro não tivessem ocorrido: os 300 artigos aprovados formam uma Constituição nitidamente à esquerda e consagram a génese revolucionária do novo Estado e a sua vocação socialista. A Constituição não procura estabelecer um consenso nacional, nem traduzir os maiores denominadores comuns, é outrossim um esforço de preservação das conquistas da revolução. As esquerdas parecem recear uma qualquer

reviravolta e não revelam muita confiança no eleitorado: a Constituição fixa limites «definitivos» às revisões ulteriores e restabelece orientações programáticas para a acção dos governos. O texto é promulgado pelo presidente da República a 2 de Abril e entra em vigor no fim do mês. Desenha-se um novo período na vida política e social. As sequelas de 1975 são ainda numerosas, há imensos problemas a resolver; a sociedade está dividida, o discurso dos partidos permanece agressivo, por vezes violento. Mas ninguém quer novos conflitos antes das eleições. Há mesmo quem queira esquecer. O PPD e o CDS, em plena campanha, tentam capitalizar criticando os erros e os excessos da revolução. O PS sublinha o seu papel pacificador. O PC defende as conquistas de Abril e denuncia a recuperação capitalista. Os esquerdistas tentam organizar-se à volta de Otelo Saraiva de Carvalho. Este caiu em desgraça, desde o 25 de Novembro, junto da maior parte dos partidos e dos militares. Preso em Janeiro, será libertado em Março. Não é só uma relíquia da revolução: activo, ainda voltará a fazer falar de si. O papel dos militares na política e no Estado não provocará muita controvérsia nos próximos tempos. O segundo «Pacto», assinado a 26 de Fevereiro, dá satisfação ao PS, ao PPD e ao CDS. O PC também assina, reconhecendo com realismo, como é hábito, as novas relações de forças. Os próprios militares parecem satisfeitos: ficam com um lugar honroso. Conservam uma larga autonomia política e jurisdicional, além de assegurarem as funções de «tribunal constitucional». Em certo sentido, os militares conseguiram o essencial: não serão julgados pelo apoio ao antigo regime e à guerra colonial, nem pela descolonização ou pelos excessos da revolução. A calma é evidente. O cansaço também. Os militares ocupam-se deles próprios e da sua instituição. Os partidos

pensam nas eleições. Também nos campos do Sul a agitação decresce, mesmo se alguns conflitos se prolongaram além do 25 de Novembro. Até Março, ainda se conhecerão algumas ocupações e greves, um ou outro incidente. Mas as unidades colectivas de produção estão mais interessadas em legalizar-se, pelo que fazem publicar os seus estatutos. Procuram agora consolidar a sua existência. Já as associações de agricultores, com a CAP à cabeça, reforçadas ou renascidas desde Novembro de 1975, parecem mais agitadas. Criticam fortemente o ministro Lopes Cardoso, que já era, aliás, alvo dos ataques do PC. Depois de criar uma «comissão de análise» dos problemas decorrentes da reforma agrária, o Ministério mandou entregar terra a umas centenas de seareiros e outros pequenos agricultores. Para a CAP não chegou; para os comunistas foi de mais. Pondo em prática estratégias parecidas, os dois blocos não vão desarmar tão cedo. Na verdade, a reforma agrária é algo mais do que uma relação de forças: é um património de 1 200 000 ha, mais as máquinas, as instalações e o gado. São quase 15% do território nacional, um terço das províncias do Sul, um verdadeiro santuário, onde trabalham 70 000 assalariados, bem enquadrados pelos sindicatos e pelo PC. Os antigos proprietários estão longe de ter perdido a esperança de recuperar grande parte ou tudo. Os comunistas, pelo contrário, depositam neste património as esperanças de um novo modo de produção, de um sistema social limitado mas controlado e de uma fortaleza política. Fins de Abril: os resultados das eleições não constituem surpresa. O PS mantém-se à frente (35%), tendo perdido quatro pontos; o PPD confirma os seus 24%; o PC parece subir dois pontos (14%), mas na verdade perde dois dos quatro que tinha o MDP, que desta vez não concorre. O CDS regista a mais forte mudança, sobe oito pontos, passa para 16%, mas sobretudo coloca-se agora em terceiro lugar, à frente dos comunistas. No essencial, o panorama

eleitoral fica parecido e nenhum partido pode governar sozinho. Logo a seguir, o PS remete aos militares os nomes dos três oficiais que está disposto a apoiar para as eleições presidenciais. Quase sem opinião contrária, os socialistas entendem que não estão em condições de ter candidato próprio, nem sequer um civil. Os militares escolhem Ramalho Eanes. O PPD e o CDS apoiam-no também, enquanto os comunistas se distanciam e apresentam Octávio Pato. Pinheiro de Azevedo decide concorrer também, não se conformando com a falta de apoio dos partidos que tinham composto o seu sexto Governo provisório. Otelo Saraiva de Carvalho apresenta-se em nome de um vasto leque de esquerdistas. Mais ainda do que nas eleições legislativas, é o 25 de Novembro que é submetido a sufrágio. Eanes vence à primeira volta com mais de 60%. Uma grande surpresa: os 16% de Otelo, o dobro de Pato, que apenas consegue metade do eleitorado do seu partido. Em terceiro ficou Pinheiro de Azevedo, com 14%, notável para um candidato sem apoios organizados e que além do mais se encontra hospitalizado com um ataque cardíaco. A revolução terminou. As bases do Estado constitucional e democrático representativo estão criadas. Em fins de Julho, Mário Soares, secretário-geral do PS, é nomeado primeiro-ministro. Tem diante de si a herança de 48 anos de ditadura e de dois de revolução.

CAPÍTULO V REFORMA E REVOLUÇÃO NOS CAMPOS DO SUL

No Alentejo, nos campos do Sul, a revolução foi diferente. No Norte e no Centro rurais esteve praticamente ausente. Mesmo nas cidades, produziu menos resultados a acção directa dos revolucionários e das suas organizações. Estes, no Alentejo, apesar de apoiados pelo Estado, foram mais longe do que em todo o resto do País, mobilizando dezenas de milhares de pessoas e transformando em profundidade as estruturas de propriedade70. A história da região era diferente. As suas estruturas sociais e agrárias são singulares. As forças políticas mais activas, o MFA e o PC, interessaram-se particularmente pela região. Através da revolução, o seu destino foi único. O calendário revolucionário da região está desfasado do processo político nacional. Por exemplo, em 1974, a situação está na região mais calma e estável do que nas cidades. Em certos momentos de 1975 é o contrário: a agitação agrária prosseguirá muito para além dos equilíbrios ou das pausas da capital. Quando a esquerda se consolida no Centro, uma relativa tranquilidade é visível no Alentejo. Mas quando a esquerda perde no Governo, os conflitos aumentam e endurecem na periferia. O melhor exemplo da disparidade de ritmos é o 25 de Novembro: ainda haverá ocupações de terras dois meses depois. Os acontecimentos concretos que marcam as grandes viragens políticas no Alentejo não são sempre, nem são

exactamente, os mesmos que constituem os marcos da política nacional. O 28 de Setembro tem pouca importância; o 11 de Março só tem um impacte imediato relativo. Ao contrário, os momentos decisivos no Alentejo quase passam despercebidos no resto do País. São os casos das primeiras ocupações (Janeiro de 1975), da aprovação das leis de expropriação (Julho de 1975), dos créditos do Governo para pagamento de salários das unidades colectivas (Setembro de 1975) e da «plataforma» dos partidos sobre a reforma agrária (Janeiro de 1976). Os desfasamentos não são o resultado de uma autonomia completa da revolução rural, são a consequência das estratégias políticas e da evidente particularidade de algumas situações. Há com efeito estreitas relações entre a revolução política nacional e a revolução agrária alentejana. Antes de mais, a primeira explica e constitui a génese da segunda. Ao ponto de que, sem aquela, não seriam sequer de prever conflitos sérios na região. Em segundo lugar, ao longo do processo, as leis precederam quase sempre as acções locais e os movimentos sociais. Finalmente, como é natural, as mudanças de poder e de relação de forças tiveram sempre, tarde ou cedo, repercussões locais, regionais e agrárias. Quatro grandes fases se desenham na evolução da revolução agrária71. A primeira vai de 25 de Abril de 1974 até ao fim do ano: é a abertura da questão agrária. Com as ocupações de terra, em Janeiro de 1975, inicia-se a segunda etapa, a das conquistas à margem da lei. A aprovação das leis de expropriação e de nacionalização, em Julho, marca o princípio da terceira fase, a do processo revolucionário com cobertura legal. A quarta, de consolidação e de contestação, começa em Janeiro de 1976 e termina em Outubro, com a demissão do ministro da Agricultura, Lopes Cardoso. Noutra perspectiva, a primeira fase é a da ocupação das

instituições, da preparação estratégica e do desenvolvimento das tensões sociais (que não existiam em Abril). A segunda e a terceira são as da conquista territorial e da apropriação do poder económico. A quarta fase é, para os revolucionários, de organização e defesa do poder conquistado e, para os proprietários, de lançamento da sua ofensiva contestatária. O quadro seguinte ilustra estas quatro etapas com algumas das suas características principais72. As etapas da revolução agrária 1

2

3

4

Janeiro Janeiro Abril a Agosto a a Julho a Julho Dezembro Dezembro de de de 1974 de 1975 1975 1976 Demissões, nomeações e substituições em vereações e freguesias da ZIRA

350

121





Convenções colectivas de trabalho rural e portarias de regulamentação do trabalho aplicáveis à ZIRA

52

7

3



Nomeações de comissões liquidatárias de federações e de grémios da lavoura do Ribatejo, do Alentejo e do Algarve

4

77

18



Intervenções do Estado em herdades e empresas agrícolas privadas



26

1

11

Arrendamentos compulsivos



18

2



Terras ocupadas, em percentagem da superfície total ocupada no fim do processo



13%

85%

2%

Terras ocupadas (milhares de hectares)



156

1009

18

Número de herdades ocupadas nos distritos de Beja e Évora



256

3311

59

As etapas da revolução agrária 1

2

3

4

Janeiro Janeiro Abril a Agosto a a Julho a Julho Dezembro Dezembro de de de 1974 de 1975 1975 1976 Número de unidades colectivas constituídas no distrito de Évora



25

146



Número de unidades colectivas reconhecidas pelo Ministério da Agricultura





348

89

Número de unidades colectivas do distrito de Évora legalizadas no Diário da República





149

10

Número de herdades legalmente expropriadas





865

1261

Número de proprietários expropriados





311

398

Superfícies expropriadas (em milhares de hectares)





344

302

A abertura da questão agrária: Abril a Dezembro de 1974 Só muito gradualmente é que, depois da revolta militar e do golpe de Estado, os problemas agrários surgem na cena política. São sinais dos tempos, quer dizer, da subordinação da agricultura à economia industrial e à civilização urbana, mas também da mais fraca disposição dos agricultores, camponeses e assalariados rurais para a intervenção política. Também são indícios de não haver crise social e económica na agricultura. O «Programa do MFA» não faz referências precisas à agricultura, mas o programa do primeiro Governo provisório já menciona a «reforma gradual das estruturas agrárias». Esta indicação não terá consequências práticas

durante inúmeros meses. Todavia, do programa, uma outra opção será bem mais eficaz, a da «estratégia antimonopolista». Esta ideia será reivindicada como legitimação das medidas mais radicais de carácter económico, entre as quais as leis antilatifundiárias. Ao longo do ano debate-se a questão agrária, de modo disperso e confuso, mas sempre num crescendo político. De início, os temas mais abordados são a modernização, a melhor utilização dos recursos e a introdução de novas culturas. Lentamente surgem os problemas mais controversos: o emprego, a contratação colectiva, os salários, o abandono das terras e o absentismo. A eventual penalização do subaproveitamento parece ser aceite em vastos sectores de opinião. No fim do ano, a realidade já mudou. A palavra de ordem de reforma agrária está um pouco por todo o lado. Sindicatos, militantes, intelectuais, militares e até cantores reclamam a expropriação das grandes herdades e quintas. Entretanto, durante as últimas semanas do ano, o secretário de Estado da Agricultura (ainda não foi criado o Ministério) toma várias iniciativas, visita a região agrícola do Sul, contacta os agricultores e os sindicatos e anuncia medidas para breve. Reúne a maioria dos técnicos superiores dos serviços, sobretudo os jovens agrónomos e veterinários. São assim criadas as «comissões de intensificação cultural», cuja primeira tarefa seria a de proceder a um levantamento das condições e dos meios para melhorar a produção no Alentejo e no Ribatejo. Os técnicos dão provas de entusiasmo. Muitos acabam de terminar a Universidade e crêem ter diante de si uma oportunidade única. Visitam centenas de explorações, discutem com os agricultores, fazem relatórios para o secretário de Estado e tentam estabelecer regras de utilização dos solos, assim como níveis de aproveitamento a respeitar. A ideia de penalização do abandono e do insuficiente aproveitamento está bem presente, mas a

preferência é dada ao diálogo com os proprietários e agricultores. Os diplomas legais aprovados nesta altura reflectem um espírito moderado e reformista: a lei dos baldios; um decreto sobre o arrendamento compulsivo das terras abandonadas ou mal aproveitadas cujos proprietários recusem tomar medidas para aumentar os níveis de rendimento; e o decreto sobre os foros e as terras arroteadas por rendeiros. Um outro decreto, de carácter geral, terá todavia mais importância prática, até porque traduz um espírito mais duro: o Decreto-Lei n.º 660/74, que autoriza o Estado a «intervir» nas empresas privadas. Perante certas situações, como as dificuldades financeiras, a «sabotagem económica», a má orientação dos dirigentes, etc., o Governo fica autorizado a demitir a administração de uma empresa e nomear uma comissão administrativa. Não é uma nacionalização, mas é uma ameaça. Esta medida não será aplicada muitas vezes em 1974. Mas em 1975 o Governo recorrerá a ela em múltiplas situações. No capítulo das medidas práticas, o secretário de Estado propõe-se mudar os serviços, sobretudo os de extensão rural. Os antigos organismos são considerados arcaicos, pouco produtivos e comprometidos com o antigo regime e os grandes proprietários. Anuncia-se a criação do Instituto Nacional de Investigação Agronómica (INIA) e do Instituto de Reorganização Agrária (IRA), a que uns chamam de Reforma Agrária e outros ainda de Reestruturação Agrária. Pelo seu lado, o Ministério do Trabalho determina, por via administrativa, o limite de 45 horas de trabalho por semana na agricultura. Ao mesmo tempo, o Governo encarrega alguns dos seus ministros de redigir um «programa de política social e económica». O executivo avança às apalpadelas. Conhece mal a situação real, tem pouca experiência e nenhuma unidade de pensamento. Os seus membros nunca desempenharam

cargos de importância governamental ou administrativa. O equilíbrio político é só aparente. Os centros de decisão estão dispersos e por vezes não se encontram onde se espera. Ninguém considera a situação estável. Uns esperam eleições, outros a revolução. Mas todos se procuram e se vigiam. Os partidos fazem prova de um certo empirismo. Navegam à vista. A estratégia faz-se todos os dias. Sobre a reforma agrária, o pensamento e os programas são vagos e imprecisos. Só o PC tem uma espécie de programa, formulado dez anos antes, que sublinha a necessidade de uma reforma agrária e da divisão das terras. Mas é preciso sobre um tema: a reforma agrária é uma das tarefas da «revolução nacional e democrática», deve ser feita o mais depressa possível, sem esperar pela Constituição73. O programa do PS, aprovado no exílio em 1973, é favorável à reforma agrária, na generalidade. Preocupa-se bem mais com as eleições, a democratização das instituições e a garantia dos direitos e liberdades fundamentais74. Os outros partidos, que ainda não completaram um ano de vida, não apresentam ideias próprias sobre a reforma agrária. As suas principais atenções vão para a organização partidária, a liberdade de movimentos e as eventuais eleições. No último trimestre, os partidos realizam os seus congressos: o PC a 20 de Outubro, o PPD a 23 de Novembro e o PS a 13 de Dezembro. O CDS só fará o seu a 26 de Janeiro. Depois dos congressos, os partidos terão todos os seus programas agrários, geralmente moderados e reformistas. Formalmente, o do PS será o mais radical de todos. Mas os programas não são tudo. Em períodos instáveis e revolucionários, são mesmo bem menos importantes do que a acção e a estratégia. O que mais parece preocupar os partidos, além do poder militar, é a ocupação institucional, a tomada de posições na administração

central e local. O recrutamento maciço de funcionários públicos data desta época. Todos os partidos lhe devem uma parte importante do seu começo de vida. Até ao fim do ano, 74% dos cargos das vereações municipais e das freguesias são assim ocupados por delegados dos partidos. Nas regiões do Sul, os militantes e simpatizantes do PC e do MDP ocupam a maioria dos lugares nestas comissões administrativas. O PC, mais rápido do que os outros, organiza e abre os seus «centros de trabalho» em todos os municípios e bastantes freguesias da região: 126 ao todo. No mesmo período, até Dezembro, o PS não chega a 30, o PPD menos de uma dezena e o CDS nenhuma sede local ou regional. Nos dois últimos casos, são as residências dos militantes que vão servindo de pontos de contacto. O MDP também organiza e abre as suas secções locais, geralmente em instalações tendo pertencido à União Nacional/Acção Nacional Popular, à Censura ou outros organismos governamentais, sem todavia exagerar o seu esforço: perceber-se-á rapidamente que não quer ou não pode fazer concorrência ao PC. Em certo sentido, especializa-se, sob o lema da «unidade democrática», na formação de comissões administrativas para as câmaras e freguesias, assim como na criação de organismos de carácter socioprofissional, sindicatos, ligas e associações. Os sindicatos têm neste período a sua fase de crescimento rápido, estreitamente ligada a uma acção imediata e eficaz de contratação colectiva. Ainda em Maio de 1974, as suas primeiras reuniões efectuam-se, muitas vezes, nas sedes do MDP, outras nas Casas do Povo. Mas depressa terão a sua autonomia. A contratação colectiva será um dos fenómenos mais marcantes do ano. Até Dezembro, mais de meia centena de convenções colectivas entram em vigor, umas resultantes de reais contratos, outras aprovadas por portaria de regulamentação. De âmbito reduzido

inicialmente à freguesia ou ao concelho, acabam por ser válidos para distritos inteiros, ou mesmo para toda a região, altura em que uma só portaria bastará. Os benefícios são consideráveis: salários, férias, horas extraordinárias, segurança social, etc. Os trabalhadores reconhecem-se nos sindicatos, até porque são obviamente os interlocutores privilegiados do Governo. A evolução dos contratos colectivos ou das portarias de regulamentação mostra uma outra tendência bem significativa: a esfera de competências dos sindicatos aumenta gradualmente. No fim do ano, estes têm funções de avaliação do aproveitamento das terras, de distribuição dos trabalhadores pelas explorações agrícolas privadas e de interlocutor único dos empresários: uma espécie de monopólio da força de trabalho. Através destas funções, exercidas em comissões tripartidas (Estado, sindicatos e associações patronais) ou simplesmente bipartidas (Estado e sindicatos), começa a exercer-se uma forte pressão sobre as explorações agrícolas privadas, utilizando os mecanismos económicos, nomeadamente o emprego compulsivo. A estas pressões juntam-se os partidos políticos, o MFA e a comunicação social. Em Novembro, o PS afirma que é tempo de se tomarem medidas de reforma agrária, a começar «pela expropriação das grandes sociedades agrícolas latifundiárias pouco produtivas ou situadas nos perímetros de rega construídos com fundos públicos». No fim do ano de 1974, no Alentejo, o poder económico dos proprietários e capitalistas está ainda intacto, mas a relação de forças institucionais é quase inversa da que era há menos de um ano. O Governo, que não é muito favorável à propriedade, faz a lei, os sindicatos aplicam-na, apoiados pelas autarquias locais. Em Dezembro, a agitação estende-se a toda a região, com os primeiros sinais de desemprego a aparecerem. Os proprietários falharam a sua primeira tentativa de organização, através das ALA

(associações livres dos agricultores), e não conseguem recuperar para si os grémios da lavoura. Para estes, que representam um imenso património e uma invejável rede institucional, o Governo nomeia comissões liquidatárias. O Governo não é o único culpado pelo fiasco das ALA. Além das responsabilidades dos interessados, há que contar com a ausência dos pequenos e médios agricultores. Estes teriam sido essenciais para o lançamento das novas associações. Ora, em vez de se juntarem aos proprietários e aos grandes empresários, preferem (os que se exprimem e manifestam) a organização autónoma, em concreto as ligas de pequenos e médios agricultores, que começam a nascer em Beja, Évora, Portalegre, Santarém e Setúbal. Apesar de pouco numerosos, estes agricultores e as suas ligas desempenharão um importantíssimo papel político. Do lado dos militares, novas iniciativas surgem nos finais do ano. Por enquanto localizadas e de âmbito reduzido, as primeiras «campanhas de dinamização cultural» são lançadas, por exemplo em Alpiarça, Constância, Montemoro-Novo, etc. Mas os militares já intervêm fortemente no «terreno», em conflitos que se sucedem entre proprietários e trabalhadores, ou entre grupos de diferentes tendências políticas. Toda a gente chama os militares em 1974: os proprietários, para se defenderem; os assalariados, para se protegerem; todos, com vista à arbitragem. A ambiguidade é evidente. Pouco a pouco, as intervenções militares serão mais favoráveis aos trabalhadores e aos sindicatos. O órgão oficial do MFA (Boletim do Movimento das Forças Armadas) levanta progressivamente a questão agrária desde Outubro. Em Novembro faz já propostas concretas de intervenção, segundo as quais seria preciso «obrigar os proprietários a atingir níveis mínimos de produção e substituir os proprietários absentistas por organismos especializados da administração». No fim desta primeira etapa, os sinais de crise social e

económica são evidentes. Vai começar o Inverno e, com ele, um mau período para o emprego. Um número considerável de empresários começam a prever alguns riscos excessivos ou para os quais não estão preparados. Na construção e nas obras públicas, a crise é mais séria, mas a mão-de-obra que fica disponível vem em parte para as áreas rurais. De modo convergente, as perspectivas de emigração praticamente desaparecem, devido à crise económica ocidental. O desemprego surge lentamente. Do ponto de vista ideológico, todo o País parece preparado para a reforma agrária, uns com entusiasmo, outros na resignação. A imprensa, a televisão, os partidos, os militares e grupos de toda a espécie não cessam de abordar o tema. Uma ideia se generaliza: a de que existem centenas de milhares de hectares de terras agrícolas abandonadas e incultas no Alentejo. Os factos não são evidentes, mas a crença é forte. Outra ideia é indiscutível: a da sabotagem económica pelos grandes proprietários, que não investem, que não colhem, que tentam vender «às escondidas» o gado, as máquinas, os produtos e mesmo as terras. Quase tudo está pronto: a organização, as forças, a ideia, o mal-estar e o culpado. As conquistas à margem da lei: Janeiro a Julho de 1975 O início desta segunda fase é marcado pelo fim das iniciativas reformistas, pelo desencadear das primeiras acções revolucionárias e pela forte intervenção do Estado no sector agrícola. O «Programa de política social e económica» é sucessivamente aprovado, até Fevereiro, pelas instâncias militares (especialmente a assembleia do MFA) e pelo Governo. Será rapidamente ultrapassado pelos acontecimentos políticos do mês de Março. Foi a primeira e última tentativa de definição de uma orientação política e

económica global moderada. Consagra a primeira versão de um projecto de reforma agrária, prevendo a nacionalização das explorações agrícolas situadas dentro dos perímetros de rega construídos pelo Estado, assim como determina a intervenção nas herdades privadas cujas terras sejam consideradas subaproveitadas. No seu conjunto, o «Programa» não será mais retomado, discutido ou revogado. Simplesmente não se falará mais nele. Também as «comissões de intensificação cultural» chegam a seu termo sem ter produzido resultados. Reúnem-se cada vez menos. Os seus relatórios ficam nas gavetas dos governantes. Os técnicos sentem que o seu trabalho é inútil e percebem que são ultrapassados pelas primeiras ocupações de terras dos meses de Janeiro e Fevereiro. Gradualmente, as comissões deixam de existir75. O seu espírito e os seus métodos estavam já fora do tempo político. Com efeito, depois de terem examinado algumas centenas de herdades, para um total de 430 000 ha, consideram que apenas 5% poderiam ser considerados abandonados ou subaproveitados. A 22 de Janeiro de 1975, o Governo decreta a sua primeira intervenção numa herdade privada, o «Monte do Outeiro». Poucas semanas antes, uma outra herdade, o «Mouchão do Inglês», tinha sido ocupada pelos trabalhadores. Mas, neste último caso, tratava-se de uma herdade do Estado: a sua ocupação tinha mesmo resultado de um acordo entre os assalariados e os funcionários do Ministério. Neste primeiro semestre haverá ainda 26 intervenções do Estado. É todavia o movimento de ocupações que cresce gradualmente e que melhor caracteriza o período. Entre as primeiras herdades contam-se: «Pombal» (distrito de Évora), «Alpendres» (Beja), «Defesa», «Picote», «Raimundo», «Padrões», «Água Derramada» e outras nas semanas seguintes. Até fins de Julho serão 156 300 ha, assim distribuídos: Janeiro, 1000 ha; Fevereiro, 7300 ha;

Março, 6000 ha; Abril, 14 000 ha; Maio, 26 000 ha; Junho, 32 000 ha; Julho, 70 000 ha. O total representa cerca de 13% da superfície que virá a ser ocupada até 1976. A distribuição geográfica, por distritos, é a seguinte: Beja, 53 500 ha; Portalegre, 40 200 ha; Beja, 30 900 ha; Santarém, 16 100 ha; Setúbal, 7800 ha; e Castelo Branco, 3000 ha (mais 4800 ha não localizados). Entre os primeiros ocupantes contam-se alguns pequenos agricultores (seareiros, rendeiros e alugadores de máquinas) apoiados pelas ligas. Mas rapidamente os sindicatos e os assalariados tomam a cabeça do movimento e conduzem os acontecimentos, até que os pequenos agricultores não estarão mais presentes. Durante os primeiros meses, as ocupações estão geralmente relacionadas com conflitos locais, reivindicações não satisfeitas ou tensões de diversa ordem. Com o tempo, os motivos simplificam-se. A partir da Primavera, ocupa-se porque «é a lei» ou porque «é a reforma agrária». Os proprietários reagem pouco ou nada. Alguns fazem apelo ao Governo ou chamam as forças armadas, mas em vão. O Governo cala-se até ao 11 de Março. A partir do golpe, apoia explicitamente e incita. Não há uma verdadeira ruptura, pois que as ocupações já tinham começado; mas, com aquela data, há uma real aceleração e um conteúdo político mais explícito. Com efeito, a acção do Governo muda de forma decisiva. A Secretaria de Estado transforma-se em Ministério. O novo ministro, Fernando Oliveira Baptista, é um agrónomo cujas posições políticas o situam próximo dos esquerdistas e dos comunistas. O novo Governo, além das nacionalizações na indústria, na banca e nos serviços, aprova o Decreto-Lei n.º 203-C/75, que define as novas prioridades sociais e económicas. Uma será a reforma agrária: as explorações com mais de 500 ha em sequeiro, ou mais de 50 ha em regadio, serão expropriadas.

Começa a criar-se o dispositivo legal e administrativo para encorajar e controlar a reforma agrária. Pouco antes, uma nova lei do arrendamento rural (n.º 201/75) tinha dado certas vantagens aos rendeiros. Um despacho do ministro ordena medidas de controlo do gado. A 17 de Abril, o Decreto-Lei n.º 207-B/75 define os «crimes de sabotagem económica» e prevê sanções, entre as quais o confisco, a expropriação e a prisão. Normas sobre o crédito agrícola para a banca, entretanto nacionalizada, são igualmente publicadas. Os preços e os salários são temporariamente bloqueados. Várias medidas orgânicas vêm aumentar a capacidade de acção dos responsáveis locais do Ministério. Estes podem, por exemplo, requisitar máquinas agrícolas aos proprietários, o que mais tarde se alargará ao gado, aos créditos e à cortiça. Começa uma profunda transformação dos serviços do Ministério. Entre Abril e Julho são criados vários organismos, muito flexíveis, dependentes do ministro, com meios abundantes e cujos funcionários são politicamente seleccionados. São criados os «centros de reforma agrária», com vastos poderes descentralizados, assim como o Serviço de Apoio e Desenvolvimento Agrário (SADA), devendo aqueles ocupar-se dos distritos do Sul e este das regiões de campesinato do Norte e do Centro. Outros novos organismos são instalados nos serviços centrais: são os «grupos de trabalho permanentes» para coordenação dos centros de reforma agrária, para o crédito agrícola, para o associativismo rural, para as indústrias agrícolas e para a coordenação das «comissões de gestão provisória dos perímetros de rega», também criadas no Verão. Surgem ainda os «conselhos regionais de reforma agrária», um em cada distrito do Sul, reunindo delegados dos ministérios, dos sindicatos, das associações de agricultores e das forças armadas; as «comissões distritais rurais» (CDR) e as «comissões técnicas municipais» (CTC),

formadas por funcionários e sindicalistas, por vezes incluindo também pequenos agricultores ou empresários. Finalmente, em Julho, um decreto-lei obriga todas as cooperativas a realizar eleições dentro de 90 dias, considerando que os antigos dirigentes associativos e todas as pessoas ligadas ao antigo regime são inelegíveis. Este dispositivo está montado quando, em princípios de Agosto, as verdadeiras leis de reforma agrária (de expropriação e de nacionalização) são publicadas. Estas leis são mais radicais do que os projectos de Abril. Com efeito, não se tem conta dos níveis de utilização e aproveitamento das terras; os limites das explorações regadas são baixados para 30 ha; o «direito de reserva» só será atribuído ao proprietário mais tarde, na sua herdade ou noutro sítio, e ainda com a condição de se tratar de alguém que retira os rendimentos exclusiva ou predominantemente da agricultura. Previsivelmente, os meses de Abril a Julho são de grande actividade do ministro e dos seus mais próximos colaboradores. Sucedem-se as visitas e as sessões de diálogo e esclarecimento. Por vezes, o ministro sente necessidade de tranquilizar: «Não se tocará nem num milímetro de terra dos pequenos agricultores.» Outras vezes é mais directivo: «A reforma agrária deve começar pelas melhores terras; se se ocupam primeiro as piores, haverá depois problemas de que será difícil sair.» São frequentes as acções de esclarecimento e sensibilização, a cargo, sobretudo, do Governo, dos serviços do Ministério, do MFA e do PC. Este organiza, aliás, «encontros» e «conferências» distritais de pequenos agricultores, de camponeses ou de trabalhadores rurais, mudando a terminologia conforme os casos. Ao mesmo tempo, prossegue o esforço de implantação partidária: até Julho abre mais 90 «centros de trabalho». O essencial da estrutura está montado. Até ao fim do ano só abrirá mais 15 centros.

Os outros partidos vão-se dando conta de que perderam o controlo dos acontecimentos. O PS e o PPD percebem que não tiraram proveitos reais dos resultados das eleições. Mesmo no Sul, no conjunto de freguesias e municípios que virá a ser a Zona de Intervenção da Reforma Agrária, o PS é o primeiro partido, com 41%. Também é verdade que o PC, aqui, vem logo em segundo lugar, com 38%, o que contrasta com a sua média nacional, de 12%. O PPD e o CDS protestam sem grande eficácia contra os acontecimentos no «terreno», mas ninguém os ouve. O PS está dividido: defende a reforma agrária, mas não exactamente estes métodos, nem se mostra muito disponível para apoiar o que lhe parece ser a ausência de legalidade. De qualquer maneira, o que realmente preocupa os partidos não comunistas é a situação geral, que dia a dia lhes é mais desfavorável. Em Julho, PS e PPD saem do Governo e tentam, na oposição e na «rua», fazer o que não lhes era possível no executivo: contrariar o MFA e o PC. Pelo seu lado, os militares aumentam as suas intervenções. São lançadas as grandes «campanhas de dinamização cultural», sobretudo no Norte e nas Beiras. Logo a seguir ao 11 de Março, dezenas de prisões são efectuadas, tanto de civis como de militares. Desde o princípio das ocupações que estão especialmente sensibilizados e activos em tudo o que diz respeito à reforma agrária. Fazem inquéritos, informam-se e procuram influenciar as decisões. «Os proprietários são os responsáveis pelo desemprego», anuncia-se oficialmente no seu boletim. Em fins de Abril, numa espécie de artigoprograma, afirmam a necessidade da reforma agrária, especificando que «1 milhão de hectares passarão para as mãos do Estado». Finalmente, no terreno, colaboram frequentemente nas ocupações, protegem os trabalhadores e intimidam os proprietários. Algumas unidades, como a Escola Prática de Artilharia, de Vendas

Novas, participam em centenas de ocupações. Estabelece-se uma espécie de «soberania» sindical na região. Um regime de trabalho, preparado pelos sindicatos e imposto pelo Governo, substitui todas as convenções locais e regionais. Desde Fevereiro que os sindicatos participam nas ocupações, e em breve serão eles a coordenar as operações. A certa altura, o Sindicato de Beja chega a anunciar que trabalhadores armados ocupariam as terras subaproveitadas e avançariam «contra a sabotagem económica dos grandes proprietários», o que fariam, evidentemente, «com o acordo do MFA». Os sindicatos estão em todo o sítio, nas mais diversas instituições: nas comissões municipais e distritais do emprego; nos conselhos regionais de reforma agrária; são os interlocutores privilegiados do Governo e dos militares; fixam os salários e detêm, na prática, o monopólio da oferta de trabalho; avaliam o estado das culturas. Chegam mesmo a desempenhar, por despacho oficial, funções de inquérito, fiscalização, controlo do gado, vigilância contra os incêndios, policiamento do tráfego rodoviário de mercadorias e aval de créditos agrícolas. As associações de proprietários e agricultores não dão sinais de vida, quase levam uma existência clandestina. As ALA passaram à história, combatidas pelo Governo e pelos militares, pelo PC e mesmo pelo PS. Sobretudo, não tinham conseguido mobilizar os pequenos agricultores. Destes, muitos ficam passivos, mas um número razoável empenhase nas ligas e mantém estreitas relações com o MDP, o PC e o MFA, assim como com os sindicatos. Nalgumas ligas, os principais responsáveis são militantes comunistas ou simpatizantes reconhecidos, como M. Tibério e J. Carita, em Beja e Portalegre. A todos, o secretário-geral do PC declarou com ênfase: «Nos pequenos agricultores não se tocará nem com um dedo.» A situação geral é tensa. A agitação é grande. A superioridade das forças sindicais, comunistas, militares e

governamentais é tal que os incidentes são reduzidos, em todo o caso, no Sul. Fazem-se centenas de comícios, manifestações e sessões de esclarecimento por mês. As ocupações de herdades são frequentemente preparadas por comícios ou manifestações na região. Muito poucas provocam incidentes violentos. Um dos mais graves acontece em Sousa da Sé, perto de Évora. Durante a tentativa da ocupação, em Julho, há troca de tiros entre proprietários e trabalhadores, de que resultam dois feridos. O facto é trazido com força para a imprensa e a opinião pública. A ocupação é depois confirmada pelos militares e pelo ministro, que lá se desloca pessoalmente. Será um caso exemplar e um precedente. A relação de forças é realmente dissuasora. No conjunto das ocupações, não haverá um único morto. Houve intimidação, um pouco de violência, mas não houve terror. Na economia, há crise e desorganização. Durante o primeiro semestre de 1975 cresce o desemprego e os empresários reduzem as suas actividades. Os sindicatos agrícolas estimam o número de desempregados a 5000 em Évora, 3800 em Beja, 3500 em Portalegre, 2000 em Setúbal e 1000 em Santarém. Na região, cerca de 14% da população estaria sem trabalho. Todavia, desde o fim da Primavera que um fenómeno contraria a tendência: as unidades ocupadas procedem imediatamente a recrutamento maciço de trabalhadores, não só rurais, como também os que foram despedidos das obras, da construção civil ou mesmo das indústrias das cidades. O balanço desta fase é favorável aos sindicatos, aos comunistas e aos militares mais radicais. Já o era no plano nacional, mesmo tendo em conta que a contestação socialista começou em cheio. Também o é, ainda mais, na região da reforma agrária. A conquista institucional está consolidada, a conquista territorial está lançada. A relação de forças é favorável aos revolucionários, tanto mais que agora têm mesmo algumas bases de poder económico: as

terras, as herdades, as máquinas e o gado. As resoluções políticas, nomeadamente as do Governo, orientaram a acção. As leis vêm depois legalizar todas as operações conquistadoras. Raramente se levanta, com eficácia, a questão da legalidade das ocupações, politicamente protegidas como foram. Deste período ficam ainda dois legados doutrinários. Em primeiro lugar, a vocação política da reforma agrária. Esta visa a propriedade privada e o capitalismo, não mais as terras abandonadas e subaproveitadas. Reforma agrária e socialismo tornam-se indissociáveis. Em segundo lugar, o espírito colectivista elimina definitivamente qualquer veleidade de divisão camponesa das terras. As herdades serão ocupadas, em seguida expropriadas legalmente; passam assim para a propriedade do Estado, que reconhece as unidades colectivas que nelas se formarão. O ministro não tem dúvidas: «A divisão das terras não resolveria o problema de ninguém. Nós queremos acabar com o latifúndio e com o pequeno agricultor. Não se pode permitir que a reforma agrária faça novos pequenos patrões.» Quando as leis de Julho são anunciadas oficialmente, afirma-se que «o uso colectivo da terra tem carácter permanente, irredutível à pequena propriedade». Com a reforma agrária passa também um programa político e um modelo de sociedade. O processo revolucionário com cobertura legal: Agosto a Dezembro de 1975 Nesta terceira fase assiste-se com mais nitidez ao desfasamento entre a evolução política geral e o processo agrário. O quinto Governo provisório revela o apogeu das forças revolucionárias, mas também o seu isolamento. A verdadeira ruptura política e social far-se-á não com a formação do sexto Governo, mas com o 25 de Novembro.

Será nesta altura que os socialistas e outros democratas confirmam a sua predominância, que a descolonização será completada e a revolução conhecerá o princípio do fim. Durante a curta vida do quinto Governo, o ministro da Agricultura é reconduzido e prossegue a sua política, apesar das oposições crescentes de socialistas, de militares moderados e dos agricultores em geral. No Sul, a questão agrária não sofrerá alterações importantes, nem sequer na passagem do quinto para o sexto Governo. No resto do País, é o «Verão quente» dos atentados e dos incêndios. No conjunto, esta fase revela o maior número de ocupações. O mês de Outubro é, aliás, em todo o ano, aquele em que se ocuparam mais vastas superfícies76. Superfícies ocupadas (em milhares de hectares) Janeiro a Julho



Agosto

169,2

Setembro

153,7

Outubro

411,6

Novembro

231,6

Dezembro

43,3

Agosto a Dezembro Total em 1975

156,3



1009,4



1165,7

De todas as terras ocupadas, 85% são-no neste período de cinco meses. Durante os dois meses de predominância dos comunistas e dos militares no Governo, cerca de 323 000 ha são ocupados. Em Outubro e Novembro, com um Governo bem mais moderado, quase 687 000 ha são ocupados. Na verdade, o poder político não reside ainda no Governo, nem nos vencedores das eleições: é ainda

disputado e os militares detêm uma parte razoável. Os sindicatos reforçam o seu poder. Aceleram as ocupações. Mantêm-se activos nas instituições. Começam a organizar as unidades colectivas de produção. Os trabalhadores alentejanos sabem que, na região pelo menos, o seu emprego depende dos sindicatos. Estes têm permanentes contactos com o MFA e as unidades militares da região mais favoráveis. Em Agosto, sindicatos e militares chegam a apelar para que os trabalhadores «contactem o sindicato e os centros de reforma agrária antes de proceder a ocupações»77. Tal é o seu poder. As instituições e os serviços do Ministério continuam activos. O dispositivo legal e administrativo está instalado. Com a mudança do quinto para o sexto Governo, sai F. O. Baptista, entra António Lopes Cardoso, dirigente do PS. Com este entram vários secretários de Estado, entre os quais Joaquim Lourenço, do PPD, e António Bica, do PC. A falta de unidade é evidente. Os conflitos prosseguirão. O novo ministro é favorável à reforma agrária. Ao que está em curso, no terreno e nas leis, ele dirige algumas críticas, duras é certo, mas que não sugerem ruptura. Vai tentar apoiar os pequenos agricultores, na acção prática, sem procurar mudar a lei geral. As suas intenções são resumidas por ele próprio: «O Estado deve enquadrar a reforma agrária, mas não deve limitar a iniciativa dos trabalhadores.»78 Esta dualidade marca os primeiros meses de actividade do novo Ministério, o que não se passa sem conflitos, incluindo no seio da equipa governamental. A ponto que o ministro chegará mesmo a retirar competências ao secretário de Estado comunista. Além das ocupações, outro sinal revelador de uma certa continuidade entre governos é dado pelas expropriações legais. Tornando irreversíveis as ocupações, aquelas começam a ser publicadas oficialmente em Setembro: 389 herdades, ou 221 000 ha. No fim do ano, 865 herdades

estão expropriadas, num total de 342 000 ha. Todas estas expropriações são feitas rapidamente, dando a impressão de uma corrida contra-relógio. Torna-se necessário consolidar, mas também resolver problemas práticos, dos créditos à responsabilidade jurídica e a outras capacidades administrativas. Assim vão surgindo as unidades colectivas de produção e as cooperativas, com nomes evocadores: «Primeiro de Maio», «Catarina Eufémia», «Muralha de Aço», «Margem Esquerda», «Estrela Vermelha», «Companheiro Vasco», «Che Guevara», «A Esquerda Vencerá», «Alentejo Vermelho», etc. Ninguém sabe muito bem o que é, juridicamente, uma unidade colectiva de produção, nem em que difere de uma cooperativa. Mas, para os primeiros actos administrativos e comerciais, as expropriações são o primeiro passo, o segundo é o reconhecimento legal da unidade colectiva ou da cooperativa pelo Ministério. Até ao fim do ano, 348 unidades colectivas e cooperativas são assim reconhecidas e começam a sua vida «normal» na sociedade e na economia alentejanas. Esta legalização é vital: ficam acessíveis créditos e subsídios, pagamentos de colheitas e actos de compra, venda e contratação. Apesar de precárias e dependentes do Ministério, as UCP passam a ter uma vida para todos os efeitos legal. Para tudo isto, aceleração das ocupações e legalização das UCP, uma medida do Governo é decisiva: o Decreto-Lei n.º 541-B/75, do sexto Governo, publicado pelo Diário do Governo de 27 de Setembro, permite que o «crédito agrícola de emergência» seja atribuído às UCP para pagamento de salários. Não só se resolve grande parte dos problemas das UCP já constituídas e das herdades já ocupadas, como sobretudo se dá um autêntico impulso a novas ocupações. Com efeito, depois de aprovado o decreto, mais 412 000 ha são ocupados só em Outubro. Ao todo, 60% das terras ocupadas durante o ano são-no

depois de publicado o «decreto dos salários». Do ponto de vista laboral, o sexto Governo segue as mesmas orientações que os anteriores: um só regime de contratação é estabelecido para toda a região, por portaria. No entanto, mesmo se as políticas ainda não são muito diferentes, sindicatos e comunistas não vêem com bons olhos o sexto Governo, e muito menos o ministro Lopes Cardoso. Esta atitude não se limita a uma tomada de posição sobre a pessoa. O PC nota e percebe uma mudança da situação geral, no País e na região. As críticas contra a reforma agrária, ou contra o modo como ela foi conduzida, são agora fáceis. Pequenos agricultores prejudicados não têm receio de falar. Os partidos não comunistas apontam com veemência erros e ilegalidades. Os proprietários retomam algumas iniciativas, aqui e acolá. Nas ligas surgem pontos de vista muito críticos e pequenos agricultores movimentam-se. A CAP começa a afirmar-se e a conduzir uma estratégia de massas e de rua, com manifestações e cortejos aos quais assistem milhares de agricultores. Entre estes, muitos grandes proprietários e muita gente de direita; mas a maioria é formada por reais pequenos agricultores, rendeiros e seareiros, homens do povo que, por boas ou más razões, se mobilizam. O ministro dá-se conta desta situação e exprime os seus receios de que a reforma agrária deixe de lado milhares de pequenos agricultores, que, em todo o País, são talvez a maioria. Se forem marginalizados, acabarão por se voltar contra a reforma agrária. Apesar disso, o Ministério ficará «entalado» entre comunistas e CAP, atacado dos dois lados, sem apoio próprio. Em poucos meses, os agricultores e os proprietários ocupam a ribalta, ou, antes, partilham-na. Fizeram uma hábil escalada, começando por exigir o respeito pelas leis e denunciar as ocupações selvagens, acabando, ainda em Dezembro, por exigir a revogação das leis de expropriação

e nacionalização. O próprio Conselho da Revolução, já depois do 25 de Novembro, vem exprimir-se sobre a situação: «Não cederemos a nenhuma pressão destinada a fazer voltar para trás a reforma agrária.» Com isto, apoia como pode o ministro, que parece em dificuldades. A questão da legalidade das ocupações será agora várias vezes retomada. Para os comunistas, como A. Bica, são legais e as únicas que poderão ser classificadas de selvagens são umas poucas que foram levadas a cabo «por negociantes de gado». Para os agricultores, para o PPD e mesmo para muitos socialistas, como o próprio Mário Soares, as ocupações são geralmente selvagens. Para o Ministério, todavia, parecem ser iniciativas dos trabalhadores mais ou menos cobertas pelas leis. Para o MFA, subtilmente equívoco, são selvagens as ocupações «que não resultem da aplicação da lei»79. Num ponto, pelo menos, Governo, ministro, socialistas, agricultores e partidos não comunistas estavam de acordo: as ocupações são manifestamente ilegais se incidem sobre terras de pequenos agricultores ou sobre herdades cujas dimensões se situam abaixo dos limites definidos pela lei. E será em relação a estes casos que o ministro tomará algumas decisões significativas, mandando efectuar devoluções de terras ou atribuindo parcelas para exploração a seareiros. Ainda antes do fim do ano, L. Cardoso começará também a substituir alguns dos dirigentes dos centros de reforma agrária. Contra todas estas medidas se eleva logo o PC, verificando que as suas linhas de orientação e posições de relevo no Estado começam a ser postas em causa. Com o chegar do fim do ano, os socialistas vão ficando mais à vontade relativamente à reforma agrária. Defendem os seus princípios, mas criticam mais facilmente o que consideram ser erros e excessos, quando não autênticas «perversões totalitárias», o que lhes vale continuar a ser um alvo favorito do PC, mas também, de

modo igualmente agressivo, dos partidos à sua direita e da CAP. Apesar disso, não se pode dizer que haja unidade de pensamento no partido. Enquanto o ministro procura sobretudo corrigir erros e rectificar desvios, especialmente no que toca aos pequenos agricultores, o secretário-geral, M. Soares, denuncia o que entende ter sido «uma pura colectivização», criticando em particular «as ocupações selvagens». Também o ministro das Finanças, Salgado Zenha, se refere ao problema: «É tempo de afirmar que se devolverão aos pequenos e médios proprietários agrícolas as terras de que foram desapossados em certas regiões.»80 Pressente-se a mudança. Anuncia-se um ambiente diferente, um novo clima. No fim do ano começam as negociações entre os partidos do Governo, que levarão à aprovação da «plataforma» com os «princípios a respeitar na aplicação da reforma agrária na zona de intervenção». O delicado equilíbrio desta «plataforma» é imposto pelas necessidades, pelas sequelas do 25 de Novembro e mesmo pela nova campanha eleitoral que se avizinha. Também traduz as novas relações de força e resulta da nova atitude dos comunistas, que, para não perderem tudo, procuram salvar o que podem. Mas este acordo é ainda favorecido por um dos acontecimentos mais importantes desta fase: a aprovação, entre fins de Outubro e princípios de Novembro, dos nove artigos da futura Constituição que consagram o princípio da reforma agrária e fixam os seus contornos. Apesar de revelarem uma orientação bastante à esquerda, os diferentes artigos e parágrafos são aprovados ora por unanimidade, ora com esmagadoras maiorias. PS e PPD votam sempre favoravelmente, o PC quase sempre e o CDS a maior parte das vezes. A hipótese de distribuição de terras em plena propriedade a famílias de agricultores é posta de parte. Mesmo as indemnizações, por motivos de expropriação, são consideradas apenas facultativas. Um dirigente comunista dirá mesmo que esse é o «aspecto

conservador» do articulado constitucional81. De qualquer modo, a Constituição ainda não está pronta. Ainda faltam muitos meses para que entre em vigor. Mas o que ficou adquirido e é favorável aos revolucionários é relevante e politicamente significativo. A consolidação e a contestação: Janeiro a Julho de 1976 A quarta e última etapa do ciclo revolucionário é a do restabelecimento de certos equilíbrios. Uma parte das realizações e das «conquistas» da reforma agrária será legal e politicamente consolidada e relativamente institucionalizada. Mesmo o aparecimento da contestação com toda a sua pujança faz parte do novo equilíbrio, que aliás corresponde melhor ao estado das relações sociais e políticas do País. Durante os primeiros meses do novo ano assistem-se a reajustamentos políticos que traduzem a relação de forças decorrente do 25 de Novembro. A «plataforma», negociada sob a égide do presidente da República, do primeiroministro e dos militares do Conselho da Revolução, é assinada após algumas semanas de debates difíceis. Os partidos representados no Governo (PS, PPD e PC) comprometem-se a apoiar as orientações definidas. O PPD dá sinais de reticências: «Não é exactamente o nosso programa, mas o acordo é útil.» O PC não se mostra entusiasta, está consciente do recuo, mas não tem outra solução. O CDS, que não assina nem está no Governo, critica frontalmente a plataforma e exprime doravante, como nunca tinha feito, a sua oposição à reforma agrária. Aliás, no princípio de 1976, quase dois anos depois da revolução, o CDS abre a sua primeira sede do Alentejo. A «plataforma» é uma tentativa de moderação e de respeito pelas leis. Prevê a publicação ulterior de vários decretos e regulamentos, o que acontecerá até Abril. É

demarcada legalmente uma «zona de intervenção da reforma agrária»; são definidas regras muito gerais para a legalização das UCP, o alargamento dos direitos de reserva e a protecção dos direitos dos seareiros. É afirmado com força o respeito pelas explorações dos pequenos e médios agricultores. Trata-se claramente de uma vitória dos partidos não comunistas, assim como dos movimentos desencadeados ou participados por pequenos agricultores. Entretanto, ainda em Janeiro, são feitas as últimas ocupações: apenas 17 600 ha. O balanço final é o seguinte: Superfícies ocupadas (em milhares de hectares)

1.ª fase — Abril a Dezembro de 1974 2.ª fase — Janeiro a Julho de 1975 3.ª fase — Agosto a Dezembro de 1975 4.ª fase — Janeiro a Julho de 1976 Total

Superfície

Percentagem





156,3

13

1009,4

85

17,6

2

1183,3

O património é importante. Se se acrescentarem as terras nacionalizadas dos perímetros de rega, a superfície total representa o equivalente a 13% do território nacional, 24% da superfície dos sete distritos do Sul, 31% da zona de intervenção ou 34% da superfície cultivada da região. O Ministério prossegue as expropriações legais: 300 700 ha durante o período e ainda mais 290 000 ha depois de Julho. Às 348 UCP legalmente reconhecidas vêm acrescentar-se mais 89. O Governo e o Ministério tentam tomar as coisas em mão. Conflitos entre o ministro socialista e o secretário de Estado comunista levam à demissão deste. Após discussões duras, o PC obtém que o substituto seja outro comunista, Vítor Louro.

As mudanças de responsáveis de serviços são agora mais numerosas: governos civis, centros de reforma agrária, conselhos de reforma agrária, delegados locais dos Ministérios do Trabalho, da Administração Interna e outros. Também nas forças armadas mudam os responsáveis de grande parte das unidades locais. A 2 de Fevereiro, uma directiva do Estado-Maior determina que os militares não devem mais ocupar-se de questões agrárias, devem remetê-las para as polícias e para o Ministério. Nomeada em meados de Janeiro, a «comissão de análise» de problemas decorrentes da reforma agrária estuda numerosos casos que lhe são submetidos. Algumas dezenas de parcelas e de pequenas explorações agrícolas serão devolvidas aos respectivos agricultores. O PC, apesar de uma aparente e nova moderação, protesta, defende-se e defende as suas conquistas. A CAP, ajudada pelo PPD e pelo CDS, quer mais, multiplica reuniões e manifestações. Por vezes há incidentes, como em Marvão, a 4 de Abril. Encorajados pelos primeiros sucessos, os pequenos agricultores desenvolvem as suas acções, reivindicam terras, contestam os directores dos centros de reforma agrária e exigem o acesso aos perímetros de rega. Em certos casos, como em Évora e Beja, agem autonomamente; noutros, sobretudo no Ribatejo, juntamse à CAP. Por seu turno, os sindicatos opõem-se violentamente aos seareiros e às devoluções de terras aos pequenos agricultores. Contestam a legalidade de tais actos, mas sobretudo receiam o modelo alternativo ao colectivismo. De salientar que não lutam mais para fazer avançar a reforma agrária, mas para a «defender». Apesar de tudo, e porque todos têm os olhos postos nas eleições, a pacificação faz progressos. Os actos violentos e os atentados são agora raros. Entre Abril e Julho, o Governo aprova e faz publicar vários

decretos, sobretudo o que define a «zona de intervenção»; o que regula o processo de expropriação e os direitos de reserva; o que atribui aos proprietários ocupados e expropriados, mas sem rendimentos, um subsídio mensal a deduzir de futuras indemnizações. A 2 de Abril, a Constituição é finalmente aprovada na globalidade, com os votos do PS, do PPD e do PC. O CDS abstém-se, invocando o carácter socialista do texto. Este entra em vigor no fim do mês. Ainda a 25, efectuam-se as eleições legislativas. Na «zona» de reforma agrária, o PS cede ao PC o primeiro lugar (39%), conservando o segundo (35%). O PPD consegue agora 12% e surge o CDS com 5%. No conjunto, os partidos de esquerda perdem seis pontos a favor da direita, mas é o PS o mais tocado. Poucas semanas depois, nas eleições presidenciais, o grande derrotado no Alentejo é o comunista Octávio Pato, apesar de obter percentagens superiores à sua média nacional. Em Setúbal vence Otelo, com 42%. Nos restantes distritos, Ramalho Eanes vem sempre à cabeça, mas com resultados bastante inferiores aos que obtém para o conjunto do País. Eleições presidenciais, 1976 (em percentagem) Ramalho Eanes

Otelo S. Carvalho

Pinheiro de Azevedo

Octávio Pato

Portugal

62

16

14

8

Beja

34

32

7

25

Évora

36

34

9

19

Portalegre

55

16

13

14

Setúbal

30

42

10

19

Termina a revolução, começa o regime constitucional. O Parlamento entra em funções, o presidente da República toma posse, é investido o primeiro Governo constitucional,

dirigido por Mário Soares. Pouco dispostos a fazer aliança, os socialistas formam governo minoritário, que as oposições deixam passar, em observação. Pela primeira vez, desde 25 de Abril de 1974, o PC não participa no Governo. Plenamente na oposição, fará da Constituição a sua principal bandeira. Os militares saem do Governo, mas fica o Conselho da Revolução. Com o nascimento da vida constitucional, os episódios revolucionários cessam. A questão agrária não está resolvida, nem sequer um ponto de equilíbrio estável e durável foi atingido. A controvérsia vai continuar, mas as lutas, os objectivos e os meios vão mudar. A história da reforma agrária não se esgota em 1976. Mas o seu primeiro processo revolucionário está encerrado. O novo regime parece institucionalmente estável, mas politicamente frágil, dada sobretudo a ausência de maiorias. A legitimidade revolucionária desapareceu quase totalmente dos costumes políticos e cedeu lugar à nova legitimidade eleitoral e à legalidade democrática. A revolução fez pouquíssimos mortos, pouca violência e nenhum terror. O regime democrático, na sua luta contra a revolução, ainda menos. 70 Mencionarei sobretudo os acontecimentos e situações que interessam directamente a região. Falarei de «região», «Alentejo», «ZIRA» ou «zona de intervenção», conforme as necessidades e os dados disponíveis. A principal fonte deste capítulo é o Diário da Reforma Agrária, de Teresa Almada (orientação de António Barreto), Publicações Europa-América, Lisboa, 1984. 71 As características de cada etapa têm raízes na precedente e prolongam-se na ulterior. Mas a natureza de conjunto de cada uma torna-a diferente das outras. A última etapa prolonga-se para lá de Julho de 1976, irá até à demissão de Lopes Cardoso, em Outubro. Mas o período constitucional está integralmente fora do estudo. 72 Certas séries estão incompletas, pois que na verdade se prolongam para além de Julho. As fontes são: Afonso de Barros, A Reforma […], op. cit.; Maria José Nogueira Pinto, O Direito da Terra, Lisboa, 1983; Teresa Almada, Diário […], op. cit.; Maria João Costa Macedo, A Reforma Agrária em Números, Lisboa, 1981; António Barreto, Terra […], op. cit.; e informações estatísticas do Instituto de

Gestão e Estruturação Fundiária, do Ministério da Agricultura. 73 Cf. Álvaro Cunhal, Rumo à Vitória, Edições do PCP, 1964. 74 Cf. Declaração de Princípios e Programa do Partido Socialista Português, Edições do PS, 1973. 75 Cf. testemunhos de F. Borba e G. dos Santos in A. Barreto, Memória […], op. cit. 76 Para todos os dados relativos a ocupações, cf. M. J. Costa Macedo, A Reforma […], op. cit., e A. Barreto, Terra […], op. cit. 77 Cf. Teresa Almada, Diário […], op. cit. 78 In A Luta, Lisboa, 3/10/1975. 79 Comunicado do COPCON (Comando Operacional do Continente), 11/8/1975. 80 Declaração de 11 de Novembro de 1975, in T. Almada, Diário […], op. cit. 81 Cf. B. H. Fernandes, in Diário de Notícias, Lisboa, 13/12/1975.

Terceira Parte A REFORMA AGRÁRIA, 1974/1976

CAPÍTULO VI A OCUPAÇÃO INSTITUCIONAL

A 1.ª série do Diário do Governo de 25 de Abril de 1974 só tem duas páginas. Quando o jornal é distribuído, os militares ocupam a capital e o primeiro-ministro já se refugiou na GNR do quartel do Carmo. Nesse dia são publicados poucos diplomas legais. Um decreto do Ministério das Finanças autoriza a importação de veículos pesados, em contingentes limitados, até 1979. É a tranquilidade. O último decreto do ministro da Agricultura e Comércio fixa os preços e as margens de lucro de alguns produtos, entre os quais o azeite e as matérias-primas para o fabrico de desodorizantes e de champôs. A rotina. Em poucas horas, esta aparente serenidade transformase numa reviravolta completa, rápida e eufórica. A revolta dos capitães não é o produto de uma crise social e económica. No dia do «golpe», o aparelho de Estado e as instituições estão intactos. Os militares que acabam de tomar o poder têm uma ideia na cabeça: acabar com a guerra em África. Parece também quererem fundar uma democracia, mas nem têm o projecto preciso, nem constituem um centro de poder alternativo. Desde o início, proliferam os centros de decisão. Os partidos políticos, quase todos criados a partir de Maio, lançam-se na conquista do poder. Ao mesmo tempo que recrutam e se organizam. Tudo deve ser feito em simultâneo. A sua fundação, sem preparação, parece mais

uma proclamação improvisada. Em menos de seis meses, meia centena de partidos faz conhecer o seu nome e os seus dirigentes. Menos de dez sobrevivem. Marcado pela ideologia e pelas clientelas do regime de Salazar, o aparelho de Estado estava bastante politizado. A organização dos serviços traduzia o carácter ditatorial do regime. É verdade que, na última década, aparecem algumas zonas de modernidade na administração pública, onde tecnocratas aparentemente liberais fazem carreira e ganham prestígio. Tratava-se no entanto de evidente minoria. A maior parte dos responsáveis devem a sua nomeação à fidelidade política, ao comércio de influências e a empenhos de família ou tribo social. Graças ao corporativismo, muitas instituições dependem directamente do Estado central e do poder político, como os presidentes das câmaras e as vereações, por exemplo. Mas também estão na mesma situação os dirigentes das associações socioprofissionais, patronais ou sindicais, das corporações e dos organismos de carácter económico. Os novos titulares do poder, militares e dirigentes políticos, põem imediatamente o problema do domínio ou da transformação do aparelho de Estado. Logo a seguir ao golpe, substituem os primeiros responsáveis políticos: governantes, governadores civis, presidentes de câmaras e vereadores e alguns quadros da organização corporativa, enquanto deputados à Assembleia Nacional e procuradores à Câmara Corporativa são pura e simplesmente demitidos, sendo os órgãos dissolvidos. Depressa se fazem sentir pressões para uma mudança mais vasta e mais profunda na administração. Por um lado, os partidos, com o PC e o PS à cabeça, não querem correr o risco de deixar em postos de comando os antigos responsáveis. Por outro, os próprios militares dão o exemplo, levando a cabo uma operação de substituições de grande envergadura. Finalmente, de modo mais ou menos espontâneo, desenvolve-se uma vaga de

saneamentos. Trata-se de uma verdadeira ocupação institucional, gradual, tocando todos os sectores da vida colectiva (forças armadas, administração, autarquias, escolas, hospitais, serviços públicos, empresas privadas, televisão, rádio, jornais, etc.), que começa logo em fins de Abril, sob a orientação do Governo e dos militares, sob a pressão dos partidos políticos e do MFA, ou em consequência da acção das «bases». Neste movimento de saneamento, muitas iniciativas são espontâneas. Tomam-se decisões em assembleias improvisadas, onde grupos de trabalhadores, de funcionários e de estudantes se arrogam vastos direitos, demitem e nomeiam. Mas estes actos dispersos, às centenas, são eles próprios o resultado de uma visão estratégica: a de remeter para as «bases» uma boa parte da tarefa. Por outro lado, tanto o MFA como o PS e o PC completam, por via do Estado, o trabalho de demissão e de nomeação. Até o PPD, aparentemente pouco empenhado no saneamento, aproveita, mesmo se, por vezes, são simpatizantes seus que são vítimas. Quase sem violência, a ocupação institucional precede e prepara a luta de classes, a conquista económica e a ocupação territorial. O novo poder político e militar tomou ele próprio a iniciativa da ocupação, após a realização do golpe; mas também deu a sua cobertura política e legal às transformações e às substituições que se efectuavam sob pressão das «bases». Os partidos políticos estavam directamente interessados neste processo, pois que se formaram ou cresceram e organizaram na luta institucional. A estratégia Nunca se assistiu, entre Abril de 1974 e Julho de 1976, a um real afrontamento social e político com a violência

própria das revoluções. E, no entanto, foi uma revolução. Os que ganharam não destruíram nem eliminaram os vencidos: antes ocuparam progressivamente as suas instituições, mudaram as suas orientações e desempenharam as suas funções. Os que perderam foramse retirando, pela força de um decreto, pela intimidação das multidões ou de grupos organizados ou por causa dos seus próprios receios. Por vezes, depois de terem levado a melhor, os vencedores seduziram e recrutaram os vencidos. Mau grado a participação de civis, os confrontos de 28 de Setembro, de 11 de Março e de 25 de Novembro foram episódios militares estáticos. As barricadas populares, as barragens nas estradas e o controlo das bombas de gasolina, sendo embora gestos inequívocos de intimidação, tiveram sobretudo como objectivo o estabelecimento de relações de forças entre grupos militares, mas sem afrontamentos directos. A colaboração dos civis em autoproclamadas milícias serviu para demonstrar a capacidade de mobilização dos militares com vista às negociações que depois se efectivavam nos quartéis. A revolta militar precedeu os movimentos sociais. Quer isto dizer que aqueles que pretendiam orientar a evolução política subsequente se prepararam para utilizar os instrumentos do poder político: instituições, legalidade, administração e controlo da repressão. Porque a revolução começou por cima, este poder político não tem, de início, bases nem estruturas, limita-se ao Governo e aos postos de comando militar. Assegurando o sucesso técnico e militar do golpe, a primeira tarefa consistiu na construção, de cima para baixo, dos alicerces do novo poder político, das suas bases sociais e administrativas. Todavia, o Governo não tem unidade política: o centro do poder será assim objecto de disputas e de conflitos de interesses. Os diferentes grupos,

partidos e tendências irão buscar à sociedade as forças necessárias à sua afirmação. À medida que os meses vão passando, o novo poder procura consolidar-se e simultaneamente radicaliza-se, não só por efeito da pressão dos movimentos sociais que entretanto se desenvolvem, mas também graças à orientação impressa por parte do poder político, ou, antes, através dos órgãos do poder político, pelo PC e pelo MFA, pelo PS em menor grau. Os principais actos revolucionários nascem no Governo, nos ministérios, nas assembleias militares e nos quartéis, por intermédio de leis, proclamações, programas e ordens de serviço. Os movimentos que se seguem, como a ocupação de empresas, casas e herdades, o saneamento de instituições e de empresas, ou a ocupação dos órgãos autárquicos, são geralmente a tradução de orientações prévias do poder ou de quem ocupa cargos de poder, mesmo quando comportam uma dimensão de autonomia ou improviso. Mais ainda: iniciativas de base e movimentos sociais são quase sempre cobertos pela lei, organizados por instituições e protegidos por funcionários ou militares. Entre as principais excepções a este padrão, contam-se os acontecimentos ocorridos imediatamente após o 25 de Abril, tais como ocupações de casas em Lisboa, greves em certas empresas e movimentos de estudantes. Enquanto algumas realizações revolucionárias, como a nacionalização dos grandes grupos financeiros e industriais, são simples decisões do poder, outras só são possíveis com a participação intensa de trabalhadores, militantes, sindicatos e outras organizações. Desta segunda categoria, o mais importante exemplo é a reforma agrária. Ainda neste caso, e apesar do considerável envolvimento popular, a iniciativa pertence ao Estado e ao poder, através de programas, leis, orientações, regulamentos e despachos. As leis de reforma agrária de 1975, por exemplo, são verdadeiros panfletos políticos nos

quais se faz apelo à população e aos trabalhadores para que tomem iniciativas. Do golpe de Estado à realização de eleições decorrem dois anos, melhor descritos por três ciclos ou momentos. No primeiro sobressaem a ocupação institucional, o recrutamento partidário e a emergência de uma força dominante, ou de uma linha política saliente. No segundo, de Março a Setembro de 1975, assiste-se ao domínio dos militares mais radicais e dos comunistas e em particular ao derrube do poder económico. O terceiro, até ao início do período constitucional, em Julho de 1976, é o da contenção da revolução, dos comunistas e dos militares vanguardistas. Também se detecta, neste período, uma nova vaga de ocupação institucional por duas vias. Uma, a substituição de responsáveis nomeados para as instituições. A outra, a instituição representativa, isto é, a tradução prática dos resultados eleitorais. No primeiro e no segundo períodos, as principais forças são o Partido Comunista (e organizações vizinhas, como a CGTP) e as forças armadas, estando estas sob a orientação e liderança do MFA mais radical e de esquerda. No terceiro salientam-se o Partido Socialista (e o Partido Popular Democrático em menor grau) e de novo as forças armadas, agora sob a liderança de oficiais mais moderados, mas de esquerda, e de parte da hierarquia profissional. A estratégia de ocupação ganha todo o seu sentido numa revolução que começa por um golpe militar brusco e rápido82. Derrubado o poder, trata-se de organizar as classes e os grupos, agitar as massas e estruturar a organização partidária. O ambiente geral é favorável, o entusiasmo aflora a unanimidade. O golpe de Estado permite a economia de longas lutas violentas e de duras repressões. Os militares têm o apoio da opinião pública. Toda a gente quer tudo ao mesmo tempo. O poder está aberto e disponível. Tudo é possível. Ou tudo parece possível. A estratégia

revolucionária procura impedir a fixação do poder. As eleições são adiadas o mais possível. Entretanto, as prioridades são: conquistar posições, realizar reformas irreversíveis, bater as classes dominantes, multiplicar os processos de lutas, dispersar o adversário, organizar-se. Com estes objectivos, os esforços dos revolucionários tomam três direcções: a ocupação institucional; a aliança com os militares; e a luta de classes e o movimento de massas. Em menos de 12 meses, até Fevereiro de 1975, numerosos centros de poder e decisão são ocupados, permitindo o acesso aos instrumentos e ingredientes necessários à revolução: a força, o dinheiro, a legalidade, a hierarquia administrativa, os meios de comunicação e a mobilidade. A ocupação das instituições, realizada rapidamente e sob o signo de um vasto movimento de democratas, permite um atalho histórico. Em poucos meses obtêm-se resultados que normalmente levariam anos: organização de um partido, desenvolvimento dos sindicatos, nascimento de toda a espécie de associações, criação de redes nacionais de informação e de comunicação social, etc. Com efeito, quem ocupa funções oficiais colhe benefícios consideráveis: detém algum poder, está nas primeiras linhas para favorecer o recrutamento partidário e sindical. O exercício de funções permite aos militantes tornar-se conhecidos e conhecer os problemas, ajudar as populações, conquistar uma base social e seduzir uma clientela. E a promessa de empregos do Estado não é um argumento menor. Relativamente à ocupação institucional, o PC distingue-se nas zonas industrializadas e no Alentejo do latifúndio. Nestes sítios, só o PS lhe faz alguma concorrência, aliás sem grandes resultados. No resto do País, todos os partidos ocupam e beneficiam. No Norte, o PS e o PPD conseguem guardar para si a maioria dos cargos e das

responsabilidades. Destes farão trunfos para o seu recrutamento e para futuras eleições. Tal como o PC, hegemónico no Alentejo. No conjunto, as instituições cuja ocupação se revela útil para a reforma agrária são os municípios, as freguesias, as Casas do Povo, os grémios da lavoura, os serviços do Ministério da Agricultura e de outros ministérios, as cooperativas existentes, os organismos de coordenação económica, algumas empresas industriais e comerciais do sector alimentar, a rede bancária e as comissões de emprego e de mão-de-obra. De início, a posse destas instituições parece traduzir sobretudo a mudança de regime, a democratização, não a revolução social. Em certo sentido, a ocupação institucional funda e legitima o novo regime, não é necessariamente um prelúdio preconcebido à reforma agrária e à revolução. Mas torna-as possíveis e mais fáceis. As câmaras e as freguesias Uma das primeiras medidas da Junta de Salvação Nacional (JSN) é a demissão dos governadores civis, dos presidentes de câmara e das vereações. Provisoriamente, os secretários asseguram as funções dos governadores. Para as câmaras, o caso é diferente. São muito mais numerosos: 305 presidentes e mais de 2000 vereadores. Ainda não há critérios de avaliação nem estruturas de selecção do pessoal político do novo regime. Por outro lado, para marcar uma diferença com a situação anterior, a simples nomeação de autarcas não será o melhor método. Finalmente, partidos, grupos e mesmo a opinião pública locais desejam pronunciar-se, talvez mesmo escolher. Todos estes argumentos são válidos para as freguesias. Com mais forte razão: são 3878 em todo o País (e 395 na região). Assim é que «comissões administrativas» municipais são

rapidamente nomeadas em substituição das vereações dissolvidas. Formalmente, o procedimento é o seguinte: os concelhos indicam nomes de candidatos ao Governo, que, por intermédio do Ministério da Administração Interna, faz as nomeações. Neste circuito simples exercem-se pressões de diversa ordem. Para as juntas de freguesia, cujas nomeações começam um pouco mais tarde, o processo é ligeiramente diferente. São com efeito as câmaras, entretanto nomeadas, que desempenham o principal papel: seleccionam nomes, fazem a proposta ao Governo e ulteriormente dão posse aos novos membros. O calendário das nomeações, incluindo segundas substituições, é o seguinte83:

1974

1975

Câmaras

Freguesias

Maio

18



Junho

16



Julho

24

17

Agosto

19

9

Setembro

1

20

Outubro

7

37

Novembro

7

28

Dezembro

2

145

Janeiro

2

39

Fevereiro

4

33

Março

4

29

Abril

2

3

Maio

3

1

Junho

1



110

361

Total

Nestas nomeações, a principal iniciativa pertence ao

Movimento Democrático Português (MDP ou MDP/CDE), organização que, vinda de antes de 1974, agrupa os compagnons de route do PC e outros democratas independentes. Depois de 25 de Abril, o MDP aparece imediatamente à luz do dia, com grande actividade. De início, privilegia a sua qualidade de «movimento», onde o PS e o PPD também têm lugar. Antes do fim do ano, estes partidos separam-se do movimento, considerando que este não é mais do que uma agência do PC. Em Dezembro, o MDP transforma-se formalmente em partido político. Logo a seguir à queda do regime corporativo, o MDP tenta impor-se com uma espécie de legitimidade democrática, a exemplo do MFA. Os dois trabalham em estreitas relações. Fazem em conjunto sessões de propaganda e esclarecimento, nas quais participam outros partidos, do PPD ao PC, sem esquecer sindicatos e outras organizações. A acção mais eficaz do MDP reside na conquista de posições nas câmaras e nas freguesias. Princípios de Maio. O delegado das forças armadas no distrito de Beja, coronel R. Loureiro, agindo como governador civil, «convoca a comissão distrital do MDP para uma reunião no seu gabinete»84. Informa que a JSN decidiu dissolver as câmaras, «devendo estas instituições ser dirigidas provisoriamente por comissões eleitas, segundo os princípios democráticos, em comícios organizados pelas comissões distritais do MDP». Esta determinação, e outras semelhantes, eleva o MDP a um estatuto suprapartidário que produzirá alguns resultados. Já há partidos políticos, pelo menos com esse nome, mas só o MDP é considerado interlocutor para a questão das autarquias. Em Lisboa, o MFA e o Governo consideram o MDP como mais um partido, mas na província aquela característica de movimento vai subsistir algum tempo. Até porque outros partidos contribuem para o equívoco. O PPD, por exemplo, crê-se obrigado a afirmar um dia que «está integrado no MDP»85.

O «movimento» sabe aproveitar esta situação e lidera de facto a tomada de posições na administração local. Em Évora, o seu porta-voz afirma que «só em três das 14 câmaras do distrito é que a escolha das comissões administrativas não foi o resultado da acção do MDP»86. Esta escolha, em quase toda a região, faz-se formalmente em reuniões ou comícios do MDP. Nestes intervêm responsáveis do movimento, representantes do MFA e o governador, o que confere ao acto todo o valor oficial necessário. No fim da sessão, o dirigente do MDP apresenta uma lista única de cerca de uma dezena de nomes. Os eleitores presentes votam. As seis ou sete pessoas mais votadas são consideradas eleitas. O Governo, mais tarde, formalizará. Assim aconteceu em Aljustrel, Avis, Beja, Elvas, Portalegre, Sousel, Portel, Santiago de Cacém, Barreiro, Abrantes, Alvito, Évora, Ponte de Sor, etc.87. Estas eleições desenrolam-se quase sempre sem incidentes. As pessoas são eleitas por unanimidade, ou simplesmente por aclamação, sem voto. Quase não há traços de uma qualquer oposição a estes processos. Em Portalegre, por exemplo, um grupo de direita acabado de criar (ligado ao Partido Federalista, de curta vida) protesta porque a sua lista, apresentada na sede do MDP dias antes, não foi simplesmente aceite88. Contestações como esta foram raras. O número de pessoas presentes nestes comícios-eleição é variável: entre algumas centenas e dois ou três milhares. Mas trata-se sempre de uma parte muito reduzida da população ou do eleitorado potencial. Em Aljustrel, por exemplo, para um futuro eleitorado de 9238 pessoas, 613 votaram no comício89. Estes desequilíbrios são geralmente grandes, como ainda em Santiago de Cacém (19 269 e 2638), Castro Verde (6110 e 1201) ou Ponte de Sor (11 920 e 653). Na maioria dos casos, todavia, não há sequer contagem, as votações são feitas por aclamação, como em

Moura, Almodôvar, Mourão e Sousel90. Há mesmo casos em que o MDP, em reunião na sua sede, comunica aos presentes os nomes das pessoas designadas91. São raros os casos de verdadeiras eleições, precedidas de um recenseamento, como em Elvas e Vila Viçosa. É verdade que é preciso uma vontade política muito particular, além de um esforço considerável, para levar a cabo recenseamento e eleições na situação em que se vivia. Não há hábitos, nem sequer meios administrativos. Mesmo os cadernos eleitorais fazem falta. De qualquer modo, em dois concelhos fizeram-se eleições e recenseamento. Este, em Vila Viçosa, foi organizado por uma comissão local criada pelo governador civil. A eleição ocorreu a 16 de Junho de 1974. Havia várias listas de candidatos elegíveis que deviam ser propostas por 25 eleitores. Mais tarde, a comissão anuncia que «todas as pessoas são elegíveis», incluindo as que não constavam de nenhuma lista. O resultado é singular. Dezenas de nomes são votados, só os sete primeiros são eleitos. Quem são eles? Um futuro vereador do PPD; um oficial do MFA; um agricultor ligado ao MDP e ao PC; o futuro dirigente local do PS; um presidente de câmara do anterior regime; um agricultor que mais tarde se ligará à CAP. Este exemplo de pluralismo completo provém de uma das raras câmaras onde houve recenseamento e eleição e não apenas comício eleitoral92. A grande maioria das «comissões administrativas» municipais será de membros e simpatizantes do PC e do MDP. Raras são aquelas em que predominam pessoas afastadas ou hostis ao PC. Quando tal acontece, os vereadores nomeados conhecerão toda a espécie de dificuldades. Alguns serão obrigados a demitir-se. O presidente eleito em Ourique, por exemplo, vê a sua eleição logo contestada pelos comunistas e pelo Ministério da Administração Interna. Censuram-lhe o facto «de não residir no concelho», o que em muitos outros casos na

região não teve importância93. Nos conflitos que vão surgir ao longo de 1974 e 1975, as vereações estarão quase sempre ao lado do PC e do MDP, contra o PS e o PPD. Quando o PC e o MDP exigem a demissão do governador civil de Évora, logo as comissões administrativas acorrem a ajudar94. Nas freguesias, do ponto de vista prático, o procedimento é parecido. As comissões são designadas, nomeadas ou eleitas em reuniões ou comícios do MDP, por vezes com a presença de delegados do MFA95. Noutros casos, como em todas as freguesias do concelho de Setúbal, o MDP passa por cima da formalidade do comício: elabora a lista dos seus candidatos e remete-a à Câmara. Alguns dias mais tarde, «as novas juntas de freguesia propostas pelo MDP de Setúbal tomam posse oficialmente»96. Finalmente, há também exemplos de reuniões feitas em edifícios públicos, com vista à designação da futura junta, na presença de delegados das câmaras. Em 1974, o papel do MDP é realmente importante, chega a confundir-se com as estruturas do Estado. Pode por exemplo ler-se no Diário do Alentejo, na rubrica intitulada «Actividades do MDP», que «a comissão administrativa de Castro Verde deu posse a todas as juntas de freguesia do concelho»97. A partir do fim do ano, todavia, a situação começa a mudar, sobretudo com a fractura entre, por um lado, o PS e o PPD, por outro o MDP e o PC. A natureza das relações existentes entre estes dois vai-se tornando evidente. Em muitas freguesias, onde é clara a hegemonia do PC, o MDP abstém-se de se candidatar98. Noutras, onde a posição do PC parece mais frágil, o MDP tenta cativar o eleitorado de esquerda não comunista99. O necessário é sempre feito para evitar a concorrência entre MDP e PC. As eleições constituintes de Abril de 1975 serão a última ocasião de aparecimento autónomo do MDP, mas apenas obtém 4% dos votos. Desde então, ou está ausente das eleições ou concorre a coberto da FEPU (Frente Eleitoral

Povo Unido) primeiro, da APU (Aliança Povo Unido) depois. No poder local alentejano, a supremacia do PC e do MDP foi indiscutível. Conquistaram posições que guardaram até fins de 1976, data em que se realizaram finalmente as eleições autárquicas. Mas, pelo menos parcialmente, foi graças às funções assim assumidas que o PC multiplicou os seus meios de controlo social, adquiriu experiência da gestão pública e sobretudo alargou o recrutamento e a sua influência. As Casas do Povo Enquadrando corporativamente assalariados rurais e pequenos agricultores e desempenhando funções diversas, da contratação colectiva à segurança social, as Casas do Povo constituíam uma rede institucional bem assente no mundo rural. Não tinham certamente grande vitalidade, mas representavam um património interessante: centenas de edifícios, funcionários, mobiliário, meios de comunicação e de controlo social, ficheiros e alguma experiência administrativa100. Ao contrário do que aconteceu com os grémios da lavoura, cuja extinção foi decretada, o Governo decidiu não dissolver as Casas do Povo. Antes nomeou responsáveis nacionais para estudar e orientar eventuais reformas. Mas, ao longo de 1974 e 1975, o Governo revela não saber exactamente que futuro pretende dar a estes organismos. Apenas se percebe, através de várias medidas, que os quer poupar ao processo geral de extinção das organizações corporativas. Também na vida local, contudo, se fizeram sentir as pressões para a mudança. Desde Maio de 1974 que várias Casas do Povo são ocupadas: Ciborro, Escoural, Montemoro-Novo, Alcáçovas, etc.101. Todas as primeiras ocupações se fazem com o objectivo explícito de criar sindicatos de trabalhadores agrícolas. Mais uma vez, o MDP desempenha

um papel decisivo: é o pioneiro das ocupações e das tentativas de transformação institucional. Toma a iniciativa de criar uma «comissão de trabalhadores democráticos para as Casas do Povo», cuja sede fica nas instalações do MDP em Évora. Esta comissão organiza as ocupações e dálhes publicidade. A 3 de Maio, por exemplo, publica um comunicado anunciando que «hoje, 3 de Maio, serão ocupados os sindicatos de trabalhadores agrícolas (antigas Casas do Povo) de Évora-Canaviais (às 21 horas) e amanhã, 4 de Maio, o de Nossa Senhora de Machede». Antes mesmo da aprovação de medidas oficiais, o MDP promoverá ainda, em reuniões suas, eleições para diversas Casas do Povo, como em Sabóia (Odemira), São Matias (Beja), Benavila (Avis), Castro Verde e Sobral da Adiça (Moura)102. O movimento de ocupação e de eleições nas Casas do Povo generaliza-se a todo o País, mas é mais rápido e mais expedito no Alentejo. Uma vez mais, PC e MDP ganharam posições interessantes, mesmo se o PS e o PPD, sobretudo no Centro e no Norte, também colheram benefícios. No entanto, a transformação destes organismos em sindicatos é travada. Os governos vão impedi-la. PS e PPD fazem pressões, receiam que o PC se aproprie de tão importante rede institucional. Mas a verdade é que o PC não insiste muito. Com efeito, se a ocupação lhes parece vantajosa, já o mesmo não acontece com a sua transformação em sindicatos. Por todo o País, sobretudo fora do Alentejo, um número elevado de pequenos agricultores e mesmo de trabalhadores rurais estará pouco inclinado para colaborar com os comunistas. A existência de centenas de funcionários corporativos não deixa de levantar problemas. Os encargos salariais e sociais podem ser excessivos. Finalmente, se as Casas do Povo são simplesmente remetidas às populações, há fortes possibilidades de ver os partidos à sua direita vencerem eventuais eleições, na maioria dos casos, no Norte e no

Centro. O PC ganhará talvez as do Alentejo, mas perderá seguramente as outras. Ora, na esfera do Estado, ficarão mais acessíveis ao trabalho político. Será esta a sua estratégia, no que será acompanhado pelos outros partidos, que igualmente alimentam esperanças. Entretanto, na vida real, inúmeras dificuldades tinham surgido. Com excepção das eleições organizadas pelo MDP, as assembleias eleitorais levantavam toda a espécie de problemas. Não há regras processuais estabelecidas. Muitas vezes, no Norte, são eleitas pessoas estreitamente ligadas ao antigo regime. A tal ponto que, em Agosto de 1974, o Governo publica o Decreto n.º 490/74, pelo qual encarrega o ministro dos Assuntos Sociais de definir regras e determinar as direcções para as Casas do Povo. Mais tarde, todos os que tiveram responsabilidades nacionais, regionais ou locais no anterior regime são considerados inelegíveis para as Casas do Povo, tanto, aliás, como para as cooperativas. O Decreto n.º 702/74, de Dezembro, estabelece as normas para o saneamento, enquanto o n.º 737/74 dissolve as federações regionais de Casas do Povo. Ficam de pé os organismos locais e a Junta Central em Lisboa. Esta mesma lei estabelece que as funções de representação social das federações e das «Casas» devem ser assumidas por associações livres de agricultores. Nesta altura, começa a ser clara a vontade de manter as Casas do Povo na esfera do Estado. Durante os primeiros meses de 1975, ainda os sindicatos de trabalhadores agrícolas do distrito de Beja reclamam as instalações das «Casas», mas a Junta Central e o ministro respondem secamente. A Junta afirma «não compreender a atitude dos sindicatos», uma vez que a maioria das Casas do Povo foi saneada e que as respectivas direcções foram livremente eleitas pelos agricultores e pelas populações locais103. Esta tendência será reforçada várias vezes, especialmente em Julho de 1975, quando o Governo

aprova o Decreto n.º 391/75, através do qual um certo número de competências do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (INTP) é atribuído à Junta Central. Em conclusão, a rede das Casas do Povo, após hesitações dos partidos e do Governo, ficou entre as mãos do Estado. Os sindicatos exigiram-nas de início, mas abandonaram depois a ideia. Os agricultores, não vendo nelas um interesse real, nem sequer as reclamaram. O seu carácter interclassista constituiu certamente matéria para reflexão dos que sonharam em apropriar-se delas. Todos finalmente preferiram que ficassem no sector público, em particular com competências em matéria de segurança social. Do ponto de vista da ocupação institucional, os benefícios foram partilhados entre os três principais partidos (PS, PPD e PC) de um modo mais diversificado do que nas autarquias. No Alentejo, todavia, o PC e o MDP levam francamente a melhor, vencendo a maior parte das reuniões eleitorais preparadas para formar novas direcções. De qualquer mudo, a rede institucional das Casas do Povo não desempenhou um papel singular na reforma agrária, apesar de ter sido um útil instrumento de controlo social e de estabelecimento de clientelas políticas. Os grémios da lavoura Pouco depois de 25 de Abril de 1974, os grémios industriais e comerciais foram extintos. Os seus membros mais activos, na maior parte dos casos, fundaram associações livres, que herdaram funções, património e funcionários dos grémios. Novas direcções foram eleitas, integrando muitas vezes antigos dirigentes. Na verdade, tratou-se de uma transformação de estatuto: o grémio corporativo deu lugar à associação livre. Na agricultura, tudo foi diferente, mais demorado e mais complexo. Pela natureza da sua actividade, a rede dos

grémios da lavoura era mais densa, representava muito mais associados (centenas de milhares) e desempenhava funções mais diversificadas. Logo em Maio de 1974 são feitas várias tentativas de transformar os grémios em associações livres de agricultores (ALA), sobretudo no Ribatejo e no Alentejo. Os primeiros esforços vêm de Beja, Évora e Santarém e serão combatidos politicamente pelos comunistas, socialistas, sindicatos e militares do MFA. Os próprios interessados, aliás, não revelam boas capacidades de organização e, nas circunstâncias da época, preocupam-se mais com a política. Também é verdade que o Governo tudo fará para que as ALA não vinguem. Nem sequer as considerará interlocutores válidos. Um outro factor pesará no falhanço das ALA: por todo o Sul, os pequenos e médios agricultores, ou grande parte deles, procuram organizar-se autonomamente. Assim nascem as «ligas», com sucessos reais em Évora, Beja e Portalegre, mais aleatórios em Lisboa, Setúbal e Santarém. Ora, as ALA não tinham peso, sem a massa humana dos pequenos agricultores. Estes não alimentavam grandes simpatias pelos proprietários do Sul, de quem tinham dificuldades em obter terra para cultivar. A ninguém escapou a importância dos grémios. Em teoria, estes organismos poderiam desempenhar um papel importante em tudo o que interessava aos agricultores: as políticas agrícolas, os contratos colectivos, a fixação dos preços, os serviços aos associados, a distribuição de subsídios, a concessão de créditos, etc. Na prática, a situação variava com as regiões. Numas, grémios activos e representativos; noutras, instituições moribundas. Tudo dependia de inúmeros factores: riqueza da região, personalidade dos dirigentes, adesão dos agricultores, qualidade dos serviços prestados, estrutura social local, etc.104. O que é certo é que se tratava de organizações

indispensáveis à defesa de interesses. Por isso foram objecto e alvo de lutas entre grupos sociais, classes e partidos. Era evidente que quem conseguisse assegurar o domínio dos grémios teria ao seu dispor uma rede de poder e de serviços de grande valor105. O segundo Governo provisório, a 25 de Setembro de 1974, aprova o Decreto n.º 482/74, que dissolve os grémios. Um período de três meses é concedido para que tudo seja consumado. O prazo será alargado várias vezes. Na verdade, o processo durará mais de seis anos. De acordo com as disposições legais, é criada uma «comissão coordenadora central para a liquidação dos grémios», na dependência dos Ministérios do Trabalho, da Agricultura e do Comércio. A seguir, as «comissões liquidatárias das federações de grémios» devem ocupar-se da dissolução dos organismos intermédios e da coordenação das instâncias locais. Nestas últimas, finalmente, as «comissões liquidatárias» são encarregadas da extinção definitiva dos grémios propriamente ditos106. Este conjunto de comissões emprega, no País inteiro, milhares de funcionários e é responsável por importantes negócios agrícolas, do comércio à transformação de produtos, do crédito à representação social. Este universo é poderoso, vasto e enraizado na sociedade. De tal modo que de todos os lados os interessados se manifestam rapidamente, antes mesmo das organizações (ligas, ALA ou sindicatos), dos partidos ou do Governo. Os agricultores tentaram fazer deles as suas associações, mas as forças de esquerda tinham outros objectivos: aproximá-los do sector público, talvez mesmo transformá-los em serviços do Estado. Será esta orientação que, durante dois anos e de modo geral, levará a melhor, sem que nunca se chegue a consolidar. Depois disso, as soluções definitivas afastar-se-ão desta inspiração inicial. De qualquer modo, no plano local, assistiu-se a uma diversidade de situações e de casos, de acordo com as

condições concretas. Após o 28 de Setembro de 1974, as comissões liquidatárias são nomeadas pelos três ministérios responsáveis. Até 11 de Março de 1975, as ocupações de grémios, por via legal, multiplicam-se, sobretudo no distrito de Beja. Nas comissões dominam as pessoas ligadas ao PC e ao MDP, sem todavia terem a exclusividade. Há grémios que ficam nas mãos de moderados, ou mesmo de direita, como em Ourique. Em Évora e Portalegre, os comunistas partilham menos e comandam mais. Sob proposta das câmaras, dos partidos, de associações ou de grupos informais, os nomes das pessoas que vão integrar uma comissão liquidatária são aceites pela «comissão de coordenação» e seguidamente pelo Governo. À medida que os conflitos vão surgindo, estas comissões conhecem problemas. Lutas desenvolvem-se, nomes são substituídos. Nem tudo é «branco e preto»: mesmo se no Governo a esquerda e os comunistas são mais influentes, localmente tudo é mais complicado. Agricultores, famílias, notáveis locais, comerciantes, todos têm uma palavra a dizer e os resultados nem sempre são os previstos pela comissão de coordenação. Quem ocupa estas comissões liquidatárias? Do ponto de vista político, no Alentejo, a esquerda, claramente: socialistas, comunistas, independentes de esquerda e esquerdistas. Entre eles, os comunistas têm vantagem, como em Mora, Avis, Beja, Évora, Sousel, Cuba, Montemor, Arraiolos e Ponte de Sor, embora raramente fiquem sós. Existe um certo pluralismo, apesar de limitado às correntes de esquerda na maior parte dos casos. Mas há situações em que esse pluralismo é completo. Do ponto de vista socioprofissional, a composição das comissões é muito diversa. Há casos em que os agricultores são a maioria, mas também os há em que os funcionários, os técnicos e os comerciantes fazem a lei.

Nas comissões liquidatárias federais, os agricultores estão pura e simplesmente ausentes. Nas comissões locais, o número de agricultores oscila entre 40% (Évora) e 50% (Beja e Portalegre). Na comissão central só há funcionários, técnicos e políticos. Nesta última, de início, dominam os comunistas, entre os quais se conta António Bica, futuro secretário de Estado. Depois de 25 de Novembro, são geralmente substituídos. Em geral, as comissões são pouco estáveis. Ao longo dos meses há várias substituições. Toda a espécie de acontecimentos as modificam: conflitos locais ou nacionais, mudanças de governo, etc. Na primeira série de nomeações contam-se 130 agricultores em 220 membros. Entre aqueles, cerca de 30 têm como principal profissão uma actividade não agrícola. As comissões liquidatárias locais dependem evidentemente das intermédias e estas da central. Na prática, a autonomia das comissões de base é razoável. As orientações gerais são aplicadas na medida do possível e das circunstâncias. Em cada grémio, em cada comissão liquidatária, exercem-se pressões de toda a espécie, há conflitos e entendimentos que, muitas vezes, só localmente fazem sentido. Clientelas, solidariedades, animosidades e famílias compõem um jogo político que deixa assim de ser exclusivamente partidário, apesar de o ser em grau considerável. Até ao Verão de 1975, nenhuma orientação leva a melhor. Comunistas pensam em serviços do Estado, socialistas em cooperativas protegidas pelo Estado. O sexto Governo, em Outubro, continua a hesitar. António Bica deixa a comissão central e ocupa a Secretaria de Estado para a Estruturação Agrária. Entre a comissão e o ministro socialista o desentendimento é grande. Aquela demite-se. As UCP, os sindicatos e numerosas comissões liquidatárias criticam os socialistas e Lopes Cardoso, que acusam, com fundamento, de quererem mandar realizar

novas eleições em todas as comissões e de se prepararem para promover a formação de cooperativas. Convocam uma assembleia plenária das comissões liquidatárias para 27 de Novembro de 1975. A reunião não se fará. Dois dias antes, tudo tinha mudado. A partir de Janeiro de 1976 desenha-se uma nova tendência destinada a pôr em prática as ideias do ministro e dos socialistas. A esquerda comunista perderá algumas posições. De facto, é uma espécie de saneamento, em menor escala que o precedente. O ministro manda substituir vários membros de comissões liquidatárias, determinações que só por vezes são seguidas. Nalguns casos mais renitentes, o ministro nomeia comissões administrativas em substituição das liquidatárias, contra o que o PC reage. Haverá mesmo, na região, eleições em oito grémios (num total de 44). Mas a situação legal, no conjunto, mantém-se. Vive-se ainda e sempre em clima de transição. O período da conquista terminou. Só sete comissões liquidatárias (três em Portalegre e quatro em Beja) liquidaram de facto os antigos organismos e encontraram soluções alternativas. Na verdade, durante este período de mais de dois anos, as comissões liquidatárias administraram os assuntos correntes, asseguraram a transição e chegaram mesmo a alargar as actividades dos grémios. Só uma função tradicional foi realmente abandonada: a de representação social ou de organização de classe. O longo período de transição, que acabou por durar bem mais de dois anos, deve-se à inexistência de uma visão política do futuro destes organismos, das suas actividades, do seu património, do seu pessoal e das suas funções. Deve dizer-se que a transição foi bem aproveitada por alguns grémios, isto é, pelos dirigentes das comissões liquidatárias ou pelos funcionários. Com efeito, em muitos casos, assistiu-se a um real desenvolvimento das suas actividades e à criação de um indiscutível poder

económico. Com o aumento da prestação de serviços e com o fomento das actividades de compra e venda, alguns grémios resolveram os seus problemas internos (como o de pagamento de salários) e deram apoio eficaz a agricultores, a cooperativas ou a unidades colectivas, conforme os casos. Também o seu papel de intermediários no crédito agrícola de emergência (pelo que arrecadavam uma comissão equivalente a um ponto na taxa de juro) permitiu ganhos interessantes. Talvez mais do que os membros das comissões liquidatárias, os pilares dos grémios, nesta fase de transição, foram os seus funcionários. Já antes de 1974 o seu contributo era de peso. As direcções estavam então, geralmente, nas mãos de grandes proprietários ou de comerciantes, em princípio fiéis ao Governo, mas que pouco esforço dedicavam às suas organizações. A gestão competia finalmente aos funcionários. Foram estes que asseguraram a continuidade, depois de decretada a extinção. Durante o período revolucionário, alguns funcionários tentaram apoiar as ALA a partir dos grémios, outros fizeram o mesmo a favor das UCP e dos sindicatos. Mas a maior parte pensavam sem dúvida nos seus interesses e na sua posição, o que quer dizer que «apostavam» no Estado: assim fizeram oposição à transformação dos grémios seja em sindicatos, seja em empresas ou em associações privadas. Queriam ser funcionários de Estado, o que aliás lhes chegou a ser sugerido por vários governantes. Obrigados a um constante esforço à procura de rendimentos, os funcionários foram certamente os principais responsáveis pelo desenvolvimento comercial dos grémios. A evolução das vendas anuais de produtos e de factores de produção revela bem este desenvolvimento em bastantes grémios, como demonstra que havia espaço para estas actividades107.

Vendas anuais dos grémios (em milhares de contos) Grémios

1973

1974

1975

1976

8,7

19,4

35,9

85,2

15,2

17,5

30,6

84,6

Aljustrel

9,8

15,0

18,3

43,4

Moura e Barrancos

9,6

16,1

28,3

38,2

Redondo

1,7

3,5

15,7

29,7

Ferreira

11,2

13,4

23,9

27,8

Serpa

8,0

9,6

16,8

25,7

Elvas

4,1

9,2

9,9

23,1

Alter do Chão

0,6

0,9

7,1

20,4

Grândola

11,2

12,7

15,2

18,5

Estremoz

1,9

2,6

12,1

18,3

Portalegre

5,3

7,8

9,6

16,9

Ponte de Sor

2,2

3,2

5,1

16,9

Vidigueira

1,5

3,9

8,1

15,7

Arraiolos

4,2

4,6

12,6

13,2

Mourão

0,6

1,0

3,0

6,7

Campo Maior

1,6

3,9

6,0

5,8

Marvão

1,4

2,2

3,1

4,4

Nisa

2,1

3,0

3,5

3,5

Évora

1,1

2,0

0,9

2,1

Gavião

0,6

0,5

0,5

1,0

Montemor Beja

[…]

É verdade que, na maior parte dos casos, as vendas elevadas se verificam nos grémios que, antes de 1974, eram os mais activos comercialmente. Mas as taxas de

crescimento dão a medida real da evolução: nalguns casos, as vendas chegaram a aumentar 10 a 20 vezes. Toda a informação disponível confirma a diversidade de situações. Os balanços económicos mostram alguns grémios confortavelmente excedentários (Alter, Estremoz, Vidigueira ou Aljustrel), enquanto outros sofrem as inquietações dos défices (Serpa, Fronteira, Évora e Elvas). Neste período incerto, a grande novidade é a distribuição de crédito agrícola de emergência, como entidade intermediária. Esta actividade traz aos grémios alguns rendimentos e nova importância, tanto mais que o Alentejo (76%) e a «zona de intervenção» (90%) recebem, em 1976, a maior parte dos créditos distribuídos. Assim é que, em termos monetários, o montante de crédito distribuído ultrapassa rapidamente o valor de vendas108. Grémios: valor de vendas em 1976 e créditos distribuídos até 1977 (em milhares de contos) Grémios

Créditos

Vendas

Montemor

488,2

85,2

Beja

456,3

84,6

Serpa

270,6

25,7

Aljustrel

267,8

43,3

Ferreira

200,3

27,9

Arraiolos

146,6

13,2

Portel

137,8

12,6

Vidigueira

137,6

15,7

Redondo

125,0

29,7

Ponte de Sor

111,9

16,9

Castro Verde

99,6

11,2

Elvas

95,4

23,1

Grémios: valor de vendas em 1976 e créditos distribuídos até 1977 (em milhares de contos) Grémios Estremoz

Créditos

Vendas

90,9

18,4

[…] Grândola

18,5

Crato Almodôvar

2,9 4,4

6,3

Durante anos, a liquidação transformou-se em desenvolvimento. Compreende-se que os partidos políticos se tenham interessado pelos grémios. Agem em conformidade com os arranjos locais possíveis, mas a sua atitude global decorre da sua estratégia política. Assim, o PC favorece a estatização; o PS oscila entre a transformação em cooperativas e a absorção pelo Ministério da Agricultura, desde que sob o seu controlo político; o PPD tanto aceita a cooperativa como a da associação patronal ou de agricultores; o CDS prefere a associação de agricultores. Debates e opções ficam a cargo do Governo e das direcções partidárias109. Na prática, durante estes anos, vinga a inércia do sistema, tentando os partidos, no plano local, colocar os seus amigos e militantes. O que faz que seja frequente encontrar casos de colaboração entre todos os partidos numa mesma comissão liquidatária ou num mesmo grémio. A verdade é que os grémios escaparam ao domínio institucional do PC. Tal facto ficar-se-á a dever à natureza social dos grémios e à diversidade de interesses em presença. Não são simples agências administrativas sem base social. Também não são organizações sindicais, nem organizações de classe homogéneas. Nos grémios estão

agricultores de toda a espécie, proprietários, agricultores, grandes e pequenos, rendeiros e até comerciantes. Desempenham funções necessárias às economias locais. Ocupam milhares de funcionários com interesses próprios e real influência. Finalmente, ninguém está interessado em arcar com os encargos salariais. Em resumo, ninguém está apostado em fazer desaparecer os grémios, que assim sobrevivem aos vendavais. Os serviços oficiais Desde o seu nascimento que o novo poder tem diante de si a questão da administração pública e dos serviços oficiais. O problema é de todos os regimes políticos que tentam transformar-se ou consolidar-se, mas tem em Portugal aspectos bem particulares: um aparelho de Estado fortemente politizado por 50 anos de regime ditatorial. Ora, com a revolta de 1974 e os primeiros actos do Governo e das forças vitoriosas, todos os órgãos (e pessoas) de comando político foram eliminados ou substituídos, ficando intacta a administração. A partir daqui, todas as lutas pelo poder institucional são imagináveis. Nuns casos mantêm-se as estruturas, mas novos dirigentes imprimem políticas e orientações. Noutros, são os próprios funcionários ou responsáveis que aparecem à luz do dia como defensores de uma determinada ideia política e alteram a organização e o funcionamento dos serviços. Noutros ainda, dirigentes resistem e estruturas mantêm-se. Por outro lado, à sucessão de governos e governantes correspondem vagas de novos funcionários de Estado recrutados por todos os motivos, familiares ou económicos, profissionais ou políticos, mas em boa parte pela euforia de reformas que a todos toca. Pelas garantias e pela segurança que oferecem, os lugares no Estado têm valor muito especial. A sua multiplicação e o seu preenchimento fazem-se em

paralelo com o crescimento dos partidos. Sendo embora muito vasto o saneamento de antigos funcionários e dirigentes, o mais importante ainda é o maciço recrutamento de novos. Os militares, bem presentes nos órgãos de poder político (JSN, Conselho da Revolução, Governo, Assembleia do MFA), ainda tentarão participar mais directamente nos organismos da administração110. Assim, durante alguns meses, após Abril de 1974, existiram «delegados do MFA» junto dos departamentos ministeriais, mas em breve desapareceram111. Alguns oficiais foram nomeados governadores civis, como em Évora e Beja. Em certos casos, muito particularmente na reforma agrária, as forças armadas ficaram representadas directamente em organismos locais e regionais da administração. A regra geral não foi todavia esta. Os militares ficaram largamente ausentes dos serviços públicos e as lutas institucionais ocuparam sobretudo civis, nomeadamente os partidos políticos. No conjunto do aparelho de Estado, a principal tendência é a da manutenção das estruturas administrativas, com substituição dos dirigentes e alargamento do número de funcionários. Isto é verdade até em alguns organismos corporativos (grémios da lavoura, Casas do Povo e organismos de coordenação económica). Alguns sectores foram no entanto excepção, e apareceram, aqui e ali, organismos novos, com vocações e concepções bem diferentes das que anteriormente caracterizavam os serviços. É muito particularmente o caso do Ministério da Agricultura. Ao princípio, este é simplesmente uma Secretaria de Estado na dependência do Ministério da Economia, o que é bem a tradição portuguesa. Até Março de 1975, Esteves Belo é o secretário de Estado. Neste período, a vida política e militar decorre com agitação e conhece permanentes reviravoltas112. Mas a questão agrária vai-se abrindo sem

afrontamentos e no departamento não se verificam crises significativas. No mundo rural, duas realidades se impõem: por um lado, o crescimento das novas organizações socioprofissionais, com relevo para os sindicatos e as ligas; por outro, os avanços da contratação colectiva de trabalho113. A Secretaria de Estado parece estar a ser gerida calmamente. Os problemas graves da agricultura portuguesa são detectados: baixa produtividade, desequilíbrio das estruturas fundiárias, população activa em excesso e condições de vida bastante rudimentares. Noutras palavras, problemas estruturais de uma agricultura arcaica cuja reforma necessita de estudo, preparação e anos de acção. No imediato não se detectam tensões sociais importantes. Assim é que as primeiras acções de Secretaria de Estado são viradas para as questões económicas e técnicas. Em Julho são lançados os «programas de desenvolvimento». O «Programa autónomo de desenvolvimento da agricultura e da pecuária» (PADAP) e o «Programa pecuário e agrícola dos Açores» (PPA) são criados a 30 de Agosto. O «Programa agrícola de Trás-os-Montes» (PTM) é anunciado a 2 de Novembro. Em Agosto e Setembro é aprovado o novo regime cerealífero e anunciada a criação de dois novos organismos: o IRA (Instituto de Reestruturação Agrária) e o INIA (Instituto Nacional de Investigação Agrária). Só em Novembro e Dezembro é que estes programas e organismos começam actividades, aquando da nomeação dos seus primeiros responsáveis. Algumas destas realizações não constituem completas novidades, visto que representam uma reorganização de serviços anteriores. Mas trata-se, sem dúvida, de uma nova perspectiva e de um novo instrumento de trabalho. O secretário de Estado e a sua equipa imprimem um

estilo de trabalho aberto. Recebem associações e grupos de pressão, viajam pela província e participam em reuniões de informação. As realizações não são muitas, mas vive-se um certo espírito de reforma. Todos os directores-gerais e equiparados e directores de serviços importantes são substituídos. Em Agosto, por exemplo, são nomeados os responsáveis da Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas, do Gabinete de Planeamento, dos Serviços Florestais, do Instituto dos Cereais e outros. Estas nomeações são frequentemente seguidas ou precedidas de inquéritos ou sindicâncias aos anteriores serviços, como foi o caso da Junta de Colonização Interna (2 de Outubro), do Serviço do Plantio da Vinha (30 de Janeiro de 1975), do Instituto dos Cereais e da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, a 5 de Fevereiro de 1975. Os inquéritos dão poucos resultados, ou estes são mal conhecidos. Às vezes, nem sequer chegam ao fim, mas criam um clima, suscitam tensões e contribuem para justificar a necessidade de mudança. Por vezes também, tais inquéritos têm razão de ser, pelas irregularidades e favoritismos próprios do regime anterior ou do período imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Até fins de Março de 1975, todos os organismos do departamento têm novos responsáveis, escolhidos por vezes em função das suas qualificações técnicas e sempre conforme a critérios políticos. Mas desde os fins de 1974, princípios de 1975, que as mudanças nos serviços se fazem mais em profundidade, já nas estruturas regionais e a nível dos quadros intermédios. Novos responsáveis das «brigadas» são nomeados, e, a 21 de Janeiro, são designados os «coordenadores de agricultura» para todas as regiões e sub-regiões. A 22 de Fevereiro toma posse o novo presidente do poderoso Fundo de Fomento Florestal. A 22 de Março é criado o Serviço do Associativismo Rural e nomeado o seu director. Isto sem esquecer as múltiplas nomeações e demissões numa segunda área de serviços:

os antigos organismos corporativos; as associações de regantes; as cooperativas de diverso tipo; empresas e cooperativas ligadas aos grémios e suas federações; as empresas privadas «intervencionadas»; e, finalmente, as comissões liquidatárias dos grémios ou, como se dizia, dos ex-grémios. Entretanto, desenvolvia-se a via paralela: a da criação de grupos de trabalho e comissões. Foram criadas dezenas, por sector de actividade, segundo os grandes problemas, para inquérito, para redacção de textos legais e de apoio ao secretário de Estado. Aos olhos dos responsáveis políticos, os antigos serviços não eram capazes de cumprir as novas tarefas nem de pôr em prática um grande esforço de reforma. Os funcionários idosos, rotinados pela burocracia e cultivando eventualmente ideias pouco favoráveis ao novo regime, deveriam ser substituídos. Com estas comissões e grupos de trabalho vai-se criando um novo departamento governamental e vão-se definindo as novas políticas. Situa-se neste contexto a mais interessante iniciativa tomada neste período: a da criação das «comissões de intensificação cultural» (CIC), em fins do Verão de 1974, formadas por jovens técnicos pessoalmente escolhidos114. As CIC deveriam preparar acções e medidas tendentes a melhorar a produção. Foi uma primeira via reformista relativamente coerente115. Apesar dos resultados medíocres, esta iniciativa criou um novo espírito e suscitou entusiasmos. A via estava preparada, mas não desbloqueada. Para a agricultura, como para a política em geral, o 11 de Março foi o sinal da reviravolta. Quinze dias mais tarde, F. O. Baptista, o novo ministro, toma posse, assim como os seus secretários de Estado. Com eles começa um processo de radicalização que conduz à promoção, nos serviços, dos funcionários e técnicos mais esquerdistas ou chegados ao PC. O MAP (Ministério da Agricultura e Pescas) torna-se

mais activo. Os métodos de trabalho mudam. Os novos serviços, criados na fase anterior e a criar nos meses seguintes, constituem um verdadeiro novo ministério maduro para a revolução. Esta nova vida coincide com as grandes mudanças políticas e legislativas. A primeira lei-programa sobre a reforma agrária é publicada a 15 de Abril (Decreto-Lei n.º 203-C/75), assim como o decreto sobre o arrendamento rural (n.º 201/75). As ocupações de terras conhecem a sua primeira aceleração. Há mudanças nos governos civis, nas unidades militares do Alentejo e nas delegações locais dos restantes ministérios. Nos serviços do MAP assiste-se mais uma vez ao recrutamento de funcionários e à nomeação de novos responsáveis, como por exemplo no Instituto dos Cereais (12 de Abril), na comissão de coordenação de extinção dos grémios (28 de Abril), no INIA (4 de Maio) e na JNPP (30 de Maio)116. Mas é a criação dos serviços paralelos que caracteriza mais adequadamente a gestão ministerial nesta época. Procura-se sanear o Ministério117 e construir um instrumento adaptado a uma nova política118. «Criar um novo ministério», dirá o seu titular. A estratégia dos serviços paralelos, das comissões e dos grupos de trabalho vai fazer confluir para o gabinete do ministro e para os altos funcionários da sua confiança os recursos financeiros, o poder de decisão e os circuitos administrativos. Sem serem abolidos, os serviços tradicionais passam a subalternos. Nesta estratégia, as peças mais importantes são os «centros regionais de reforma agrária» (CRRA). Entre Abril e Julho são criados seis, em Évora, Beja, Elvas, Alcácer do Sal, Santarém e Lisboa, cobrindo o Alentejo e o Ribatejo. Estes organismos concentram, regionalmente, o essencial dos poderes, recursos e autoridade do Ministério. Estão formalmente ligados ao IRA, mas na prática dependem directamente do gabinete do ministro. A decisão é central,

mas a execução é descentralizada. Este princípio é tacticamente vantajoso: a acção é rápida, os executantes têm a confiança do ministro, tudo fica um pouco à margem dos jogos políticos da capital, que podem atrasar a acção. Em Junho de 1975, diante da «necessidade imperiosa de organizar imediatamente os centros», o MAP decide criar um «grupo de trabalho permanente para a coordenação dos centros regionais de reforma agrária», que «funcionará no quadro do IRA, ao qual compete organizar, orientar e dirigir os centros»119. A partir de agora, o IRA será uma espécie de intermediário permanente entre o ministro, por um lado, os serviços e os interessados, por outro. Em toda a reforma agrária, o seu papel será capital. O método dos grupos de trabalho permanentes, posto em prática noutros sectores algumas semanas antes, é o privilegiado para os grandes problemas políticos e sociais. Método expedito, passa por cima das exigências burocráticas dos Ministérios das Finanças e da Administração. Assim, em Abril, é criado o SADA (Serviço de Apoio ao Desenvolvimento Agrário), especialmente destinado aos pequenos agricultores, e o «grupo de trabalho permanente para o crédito agrícola»; em fins de Maio é a vez do «grupo de trabalho permanente para o associativismo rural», em Junho o «grupo de trabalho permanente para as indústrias agrícolas» e em Julho o «grupo de trabalho permanente para a coordenação das comissões de gestão transitórias dos perímetros de rega». Estas últimas comissões tinham previamente sido criadas para se ocupar, em nome do Estado, dos regadios e das respectivas empresas nacionalizadas. Estes novos serviços têm acesso fácil aos recursos humanos e financeiros, em particular aos «fundos» do IRA120. Os centros oferecem aos seus funcionários condições de trabalho excepcionais, como sejam ajudas de custo de 20 a 30 dias por mês, o que se traduz quase em salários duplos. A aquisição, pelos centros, de equipamento e de

automóveis é mais fácil. Dotados de meios e de poderes para distribuir subsídios e garantir créditos, sem controlo burocrático ou financeiro, os CRRA têm argumentos para reforçar a sua acção junto de agricultores, trabalhadores e unidades colectivas. Sem orgânica definida em Conselho de Ministros, os centros regem-se por um despacho do ministro. Não têm orçamento próprio, mas servem-se à vontade dos fundos do IRA, que lhes permitem, por exemplo, ter uma generosa política de recrutamento. Diz um funcionário: «De repente, em poucos dias, chegaram ao Centro de Elvas 70 novos funcionários.»121 O funcionamento destes serviços foi posto em causa por um ou outro técnico, mas a sua legalidade, assegurada por despacho ministerial, não foi contestada. No exterior do Ministério, mas na sua dependência (por vezes indirecta), outros novos organismos completam este dispositivo institucional. As «comissões distritais rurais» (CDR) e as «comissões técnicas concelhias» (CTC) ocupamse das questões do emprego e da avaliação do aproveitamento das terras122. Em várias empresas, cooperativas e explorações agrícolas, as «comissões administrativas» respectivas levam até à produção o longo braço do Ministério. Com estes meios, o Estado alargou consideravelmente os domínios de intervenção e aumentou os seus poderes de controlo social e político, o que aliás não deixará de, muito rapidamente, criar problemas de gestão. Mas, no sentido inverso, este tipo de organização permitiu aos sindicatos e outros grupos aumentar a sua influência na administração, penetrar as estruturas oficiais e até assumir funções estatais123. Os conselhos regionais de reforma agrária Os conselhos correspondem a este desígnio de fusão ou de inter-relação entre organismos oficiais e organizações

sindicais e políticas. Constituem uma das criações institucionais mais originais da revolução. Curiosamente, não representam uma ruptura total com a tradição: o corporativismo já se tinha notabilizado pela criação de laços particulares entre serviços do Estado e organizações socioprofissionais. O conteúdo é agora bem diferente: são os sindicatos os privilegiados e não mais os proprietários. Por outro lado, a presença dos militares é uma inovação. Circunstancial, é certo, mas de forte significado político. Referidos em Março, anunciados em Abril, os conselhos são criados a 5 de Julho de 1975124. Segundo os termos legais, estes organismos serão chamados a desempenhar funções em todo o País, mas, para começar, estabelecemse nos oito distritos da reforma agrária. Quatro arrancam logo: Beja, Évora, Portalegre e Setúbal/ /Alcácer do Sal. Lisboa, Santarém e Faro virão mais tarde. Os conselhos incluem delegados e representantes do MFA, dos Ministérios do Trabalho, da Agricultura e da Administração Interna, do Sindicato de Trabalhadores Agrícolas e da Liga dos Pequenos e Médios Agricultores. Mais do que um órgão consultivo e de concertação social, tem competências deliberativas. Mais ainda, podem-se-lhe apresentar recursos das decisões ministeriais125. São, além disso, órgãos de consulta do ministro, de informação e até de policiamento, inquérito e fiscalização. Na prática, os conselhos arrogar-se-ão ainda mais competências, tomando decisões sobre a intervenção do Estado nas empresas, as expropriações e a requisição de equipamentos agrícolas. Em vários momentos, pedem às autoridades financeiras e policiais que procedam a prisões, confisco de bens e congelamento de contas bancárias. A origem imediata dos conselhos reside no PC. A ideia é sugerida ao Governo em memorando assinado por cinco dirigentes a 12 de Junho de 1975. Estes elevam-se contra o facto de, «três meses depois do anúncio da reforma agrária, o primeiro passo estratégico, quer dizer, a

instalação de órgãos de controlo eficazes, ainda não está assegurado»126. Segundo aqueles autores, estes órgãos, explicitamente designados como «conselhos regionais de reforma agrária», devem ser dotados de poderes alargados e entrar imediatamente em funções. Devem ser acompanhados «de uma legislação severa contra a sabotagem da reforma agrária». O controlo da região deve preceder a aprovação de leis de expropriação e de outras medidas. Neste memorando faz-se uma referência bem particular à composição dos conselhos e aos métodos de selecção dos seus membros: «A escolha das pessoas e das normas de trabalho deve implicar a devoção à causa dos trabalhadores, a um firme espírito de unidade e à prática unitária à volta da aliança revolucionária Povo-MFA.» Não era preciso ser mais claro. Três semanas depois da data do memorando, os conselhos são oficialmente criados. Na mesma altura, princípios de Julho, são aprovados em Conselho de Ministros os decretos de expropriação e de nacionalização, mas que só serão publicados quatro semanas mais tarde. O Governo atribui grande importância a estes conselhos. Os seus membros, de acordo com o decreto-lei, devem ser designados conjuntamente pelo primeiro-ministro e pelo ministro da Agricultura, processo até então reservado aos directores-gerais. Apesar disso, nunca as nomeações foram publicadas no Diário do Governo, o que significa que se está perante um dos raros casos em que a legalidade não foi respeitada nesta revolução tão atenta às formas jurídicas e tão prolixa em decretos. Curiosamente, os conselhos e os centros serão conhecidos indiferentemente pela sua abreviatura comum: CRRA. O director do centro é também presidente do conselho. A confusão será permanente, de que aliás testemunham os jornais da época. Ainda por cima, existe uma terceira organização (CRARA, comissão revolucionária

de apoio à reforma agrária), fundada pelo PC e animada por técnicos e funcionários do Ministério da Agricultura ligados ao partido. Calculado ou não, o resultado é o mesmo: aos olhos da população, o CRRA (centro) e o CRRA (conselho) e eventualmente a CRARA (comissão) são uma e a mesma coisa. Possuem uma só autoridade e a mesma legitimidade. Governo, serviços públicos, técnicos, sindicatos, polícias e forças armadas estão unidos e convergentes num só organismo. A estratégia da ocupação institucional teve, nestes conselhos, uma das suas mais flagrantes e mais curiosas aplicações. Uma das ideias fortes que inspiram estes conselhos é a descentralização. Apesar de dependentes do ministro, os conselhos têm vastas competências. Trata-se de facto de uma descentralização da execução, deixando os conselhos ao abrigo dos obstáculos burocráticos e da intriga política da capital127. Em Maio de 1975, numa sua deslocação a Santiago de Cacém, o ministro toma parte numa sessão oficial na qual participam ainda o capitão Chumbinho, do MFA, e Américo Leal, do comité central do PC. Aí anuncia a criação dos conselhos, acrescentando: «O que nós esperamos destes conselhos regionais é o máximo de eficácia revolucionária.»128 A actividade dos conselhos conhece dois períodos bem distintos: de Julho a Dezembro de 1975 e de Janeiro a Novembro de 1976, altura em que são oficialmente extintos129. Durante o primeiro período, os conselhos, sobretudo os de Beja e Évora, servem a revolução. Funcionários, militares e sindicalistas são geralmente militantes de extrema-esquerda, a maior parte militantes ou simpatizantes do PC. Apoiam as ocupações de herdades e denunciam as actividades dos proprietários. Antes mesmo da aprovação das leis, fazem listas das propriedades a expropriar. Preparam, para o Governo, as medidas de repressão contra os proprietários e de controlo das máquinas, do gado e das colheitas. Em Beja chegam

mesmo a decidir «intervir em 82 herdades e empresas agrícolas». Metade das suas decisões são tomadas antes da publicação das leis. Vinte e duas herdades são ocupadas depois de o conselho de Beja ter decidido. Outras deliberações dizem respeito a inquéritos, missões de vigilância, apoio material a herdades ocupadas, organização das unidades colectivas, requisição de máquinas e medidas repressivas contra os proprietários. Em geral, estas decisões são transmitidas à imprensa local, que as divulga. O tom dos comunicados oficiais é combativo. Denunciam-se a «escalada reaccionária dos latifundiários»130, e a «sabotagem económica»131; ameaçamse os proprietários de «confisco», de «requisição» ou mesmo de «prisão»132; e sobretudo anunciam-se intervenções e expropriações, tenham ou não já sido decididas pelo ministro. Em 1975, o conselho de Beja reúne-se 22 vezes. Há meses em que se realizam três sessões. A Liga dos Pequenos Agricultores do distrito, que muito cedo se distanciou do PC, nunca participou, durante o período revolucionário, nas reuniões que assim se desenrolam em clima «familiar». A situação muda com o 25 de Novembro, tendo antes havido sinais com a formação do sexto Governo e a possível nova política de Lopes Cardoso. Quase todos os representantes nos conselhos mudam, comunistas e esquerdistas são substituídos por socialistas, sociaisdemocratas e outros. Entre Dezembro de 1975 e Janeiro de 1976, todos os responsáveis dos centros (e presidentes dos conselhos) são substituídos, o que acontecerá também com os representantes das forças armadas e dos outros ministérios. Em Beja, só o delegado do Sindicato se mantém, isolado. O conselho de Beja reúne-se ainda 17 vezes, mais espaçadas e menos importantes. O sindicalista protesta contra o Governo. O delegado das forças armadas observa

e tenta distanciar-se. Os funcionários do MAP justificam e defendem a nova actuação do Governo. A Liga, que a partir de agora estará sempre presente, reivindica medidas favoráveis aos pequenos agricultores. Mas o conselho já não tem utilidade. As suas discussões e as suas decisões não têm eco na imprensa. O Governo tenta esvaziar estes organismos do seu conteúdo e devolver poderes e competências aos serviços dos ministérios. O Ministério quer um órgão consultivo, não quer um conselho deliberativo. Como a revolução termina sem ruptura brusca e total, certas instituições, como estes conselhos, prolongam a sua existência. Mas as suas funções e composição já não estão adequadas ao momento que se vive. Os socialistas querem fazer de outra maneira. A ideologia mudou. O País passa a viver em regime constitucional. Um balanço A ocupação institucional era inevitável. Houve verdadeira solução de continuidade, os militares abriram as portas, partidos e grupos civis entraram tanto quanto foi possível. O carácter autoritário e corporativo do regime anterior tinha politizado todas as instituições públicas. Estas, com a queda da ditadura, ficaram privadas do seu princípio genético e de orientação. O vazio criado vai sendo ocupado pelas forças de oposição, que assim tentam chegar aos centros de decisão. A ocupação institucional aproveitou aos comunistas, aos socialistas e aos sociaisdemocratas. Os órgãos de soberania, os comandos militares e as chefias das unidades constituíram os primeiros objectos de ocupação institucional. Com a formação do Governo, quase todos os organismos viram os seus responsáveis substituídos. Em certos casos, como na agricultura, foram mesmo criados novos serviços.

A ocupação institucional tem um fim em si: ocupar responsabilidades é também tomar o poder. Mas também era uma estratégia, um instrumento para subsequentes reformas e transformações. Na ausência de organizações políticas e sindicais fortes e enraizadas na sociedade, foram as instituições públicas utilizadas na condução das mudanças sociais, assim como no próprio desenvolvimento dos partidos e das organizações socioprofissionais. A via foi aberta pela revolta militar e graças a um considerável apoio popular. Os instrumentos de repressão foram seja neutralizados, seja colocados ao serviço do novo poder político. A ocupação institucional seguiu-se ao golpe militar, não o precedeu; não foi a preparação do derrube do regime anterior, foi o seu resultado. Esta evolução (ou esta estratégia) distingue-se de outras situações revolucionárias porque permitiu a economia de grandes afrontamentos sociais violentos. As hipóteses de guerra civil, apesar de reais, foram reduzidas. Não houve «batalhas campais», nem terror, típicos de outras revoluções, se bem que a violência verbal e a intimidação tivessem estado sempre presentes. A estratégia institucional privilegiou as substituições de responsáveis, em detrimento dos esforços de criação de um novo aparelho de Estado. Todavia, no sector agrário, a criação de novos serviços sobrepôs-se, pela eficácia e pelos resultados, à simples substituição de responsáveis. Sem enquadramento jurídico e técnico, a ocupação institucional teve cobertura legal nas orientações e nos decretos sobre o saneamento, assim como nos actos administrativos dos governantes. Sem princípio constitucional, nem sequer parlamentar, ficava a legitimidade revolucionária proclamada, a autoridade militar e as relações de força: foram estes os princípios que regeram o domínio público. Estes valores beneficiaram sobretudo o Partido Comunista, a mais antiga e mais eficaz organização

política em 1974. Este gozou de uma espécie de «precedência democrática», ou, antes, «antifascista», confirmada pela acção do MFA e parcialmente traduzida na actuação do MDP. Apesar de as relações de força serem favoráveis, a ocupação institucional e a realização de alguns actos políticos irreversíveis necessitavam de tempo suficiente e sobretudo de um tempo pré-constitucional. Esta necessidade foi satisfeita pelo adiamento das eleições constitucionais e legislativas. Comunistas, militares e grupos de extrema-esquerda foram os principais partidários do adiamento das eleições. Sem que tenham sido os únicos beneficiados (os socialistas e mesmo os sociais-democratas também ganharam algumas posições), os comunistas conseguiram montar um dispositivo geral de poder político e administrativo que se estendeu até vastos sectores produtivos. Construído pela via de largos recrutamentos de funcionários, este dispositivo permitiu desencadear e apoiar acções revolucionárias, nomeadamente a reforma agrária. No sector agrário, as novas instituições desempenharam um papel singular com especial eficácia. Traduziram um princípio de abertura da administração às organizações sindicais, que chegaram mesmo a ver-se atribuir funções estatais. A estratégia de ocupação, em tempos de grande instabilidade e agitação, revelou maleabilidade e empirismo. As relações entre o centro e a periferia variaram com os acontecimentos, e as iniciativas ora competiam a um, ora a outra. Por outro lado, as estratégias dos comunistas e dos militares fizeram largamente apelo à participação de massas: trabalhadores, empregados, funcionários e classes médias. Foi mesmo um ponto forte da estratégia: a participação popular apoiava os saneamentos, podendo

mesmo tomar iniciativas. A ocupação das instituições por comunistas e seus simpatizantes não teve sucesso em todo o País, nem foi a mesma em todos os casos. Com excepções, conseguiram melhor nas zonas de capitalismo agrário desenvolvido e nas regiões de latifúndio tradicional, assim como nas cidades industriais do Sul. Nas regiões de pequena agricultura, ou onde são numerosas as médias explorações agrícolas, e globalmente no Norte, no Centro e no Algarve, os socialistas e os sociais-democratas levaram a melhor. Nas instituições directamente dependentes do Estado, como os serviços ministeriais e as câmaras municipais, o êxito dos comunistas e do MDP foi geralmente maior e mais fácil do que nas instituições mais próximas da sociedade civil, como os grémios, ou nas organizações socioprofissionais interclassistas. Os revolucionários moviam-se melhor nos corredores do Estado do que no campo aberto das instituições nacionais e locais. Os acontecimentos revolucionários de 1975, em particular a ocupação de terras, foram possíveis graças a este dispositivo institucional. Este não se limitava aos serviços técnicos e administrativos: garantia ainda a força militar, a repressão, a legalidade, os recursos financeiros e os meios de comunicação e de mobilidade. Esta preparação institucional fazia parte de um plano preconcebido? Como plano concreto e pormenorizado, certamente que não. Mas seguramente que sim como ideia-força e como princípio estratégico. Desde os anos 60 que os dois principais textos programáticos do PC encaravam explicitamente a questão do período pósrevolucionário e pré-constitucional133. O cenário que aí é examinado é o do derrube do regime por intermédio de uma revolta militar, de um levantamento nacional ou «de outros acontecimentos imprevisíveis». Os autores tomam partido pelo estabelecimento de um período considerável, durante o qual uma Assembleia Constituinte deveria ser

eleita, reunir e redigir a Constituição, sem se ocupar de política. Entretanto, o poder provisório teria como tarefa sanear a administração, levar a cabo a reforma agrária, «nacionalizar os monopólios», etc. A estratégia de ocupação não foi pensada e posta em prática apenas com o desígnio calculado de desembocar na reforma agrária. As instituições não foram ocupadas apenas com o objectivo de ulteriormente tomar as terras. Foram ocupadas pelo que valiam, que não era pouco, e pelo que podiam valer, que era incerto, mas podia ser muito. Os comunistas e seus aliados queriam o mais e o menos, o todo e a parte, o fim e a via. Queriam a reforma agrária, mas antes precisavam dos meios de acção e das instituições que estavam disponíveis. Sem organismos de controlo, sem meios financeiros nem poder político, sem leis nem instrumentos de coerção, a reforma agrária e as ocupações não teriam sido possíveis. E se os objectivos finais não fossem conseguidos, os meios assim obtidos seriam já uma vantagem. A revolução partiu geralmente do Estado para a sociedade, não o inverso. Houve, é certo, movimentos sociais, acções espontâneas e autonomia. Para ocupar uma herdade, os trabalhadores têm também razões próprias e existenciais, sociais ou sindicais, não estão necessariamente a pôr em prática, e só isso, um plano do Governo ou uma ordem do Ministério. Mas, fazendo-o, sabem que têm a protecção legal, política e militar, o que é decisivo. O sindicato organizava, o partido orientava e os governos ajudavam ou, pelo menos, não estavam contra. Desde os fins de 1975, e sobretudo depois das eleições legislativas de Abril de 1976, os comunistas e seus aliados perdem a sua preeminência. De facto, perdem o poder político e serão progressivamente afastados das instituições pelas outras formações políticas. Os socialistas, em particular, que em termos eleitorais vêm muito à frente do PC, desforram-se. O que não será difícil

nem violento. A ocupação institucional era o reflexo parcial de uma relação de forças que não correspondia à real balança social e política. Desde que esta se revelou mais completamente, a maioria das instituições foi desocupada. O princípio eleitoral representativo tinha levado a melhor, incluindo, aliás, a favor dos comunistas, que asseguraram a sua vitória eleitoral em quase todas as câmaras da zona de reforma agrária. 82 Há alguns meses que o golpe «andava no ar», desde que tinham surgido os problemas militares. Mas não se poderá dizer que era previsível. Aliás, depois do estranho golpe falhado das Caldas, a 16 de Março de 1974, previsões e esperanças eram bem menores. É possível que os dirigentes comunistas tenham estado informados sobre os preparativos militares do golpe. Alguns autores dão informações nesse sentido, como Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, 1977, e A. Rodrigues, C. Borga e M. Cardoso, O Movimento dos Capitães — 229 Dias para Derrubar o Fascismo, Lisboa, 1974. De qualquer modo, o facto de estar informado de preparativos clandestinos, que aliás podiam falhar, como tantas outras vezes no passado, não permitia ao partido preparar os seus militantes. 83 A fonte é o Diário do Governo. O número de municípios na ZIRA é de 72. O total do quadro, 110, explica-se pela inclusão de segundas substituições. No caso das freguesias é o contrário: faltam aquelas em que as nomeações só se fizeram depois de Julho de 1976. 84 Diário do Alentejo, 13/5/1974. 85 O Sorraia, 22/6/1974. 86 Diário do Sul, 21/7/1974. 87 Diário do Alentejo, 13/5/1974, 5/6/1974, 15/6/1974, 18/6/1974, 19/6/1974, 1/7/1974, 3/7/1974 e 4/7/1974; Diário do Sul, 26/6/1974; O Primeiro de Janeiro, 22/6/1974; Jornal do Sul, 30/5/1974; O Distrito de Setúbal, 14/5/1974; Boletim da Liga dos Amigos de Abrantes, Maio de 1974. 88 Diário do Alentejo, 15/6/1974. 89 Para o eleitorado, os valores são os do recenseamento de 1975; a fonte dos resultados eleitorais é o Diário do Alentejo, 13/5/1974, 21/5/1974, 18/6/1974 e 4/7/1974. 90 Diário do Alentejo 13/5/1974 e 21/5/1974, e Diário do Sul, 6/6/1974 e 18/6/1974.

91 Em Abrantes e Alvito. Cf. Boletim da Liga dos Amigos de Abrantes, Maio de 1974, e Diário do Alentejo, 6/6/1974. 92 Comunicado da comissão eleitoral de Vila Viçosa, 14/6/1974. 93 Jornal do Sul, 3/7/1974. 94 O Primeiro de Janeiro, 29/8/1974 e 23/9/1974. 95 São, por exemplo, os casos de Castro Verde, Avis e Moura. Diário do Alentejo, 21/5/1974 e 29/5/1974. 96 O Primeiro de Janeiro, 6/6/1974 e 8/6/1974. 97 Diário do Alentejo, 1/7/1974. 98 As freguesias do concelho de Serpa, por exemplo: em Pias, em Santa Margarida e em Ficalho, o PC elege os três membros; o PS e o PPD também se candidataram, sem sucesso. Em São Salvador, dois eleitos para o PS e um para o PC. No conjunto do município, o PC obtém 11 mandatos, o PS 3 e o PPD 1. O MDP nunca se apresentou. Diário do Alentejo, 9/12/1974. 99 Em Ponte de Sor. Diário do Alentejo, 1/8/1974. 100 Cf. Manuel Lucena, O Marcelismo, Lisboa, 1975. 101 Diário do Sul, 4/5/1974. 102 Diário do Alentejo, 27/5/1974, 29/5/1974, 1/6/1974, 3/6/1974 e 5/6/1974, e Diário do Sul, 29/5/1974. 103 A Capital, 19/4/1975. 104 Cf. Manuel Lucena, Revolução e Instituições — A Extinção dos Grémios da Lavoura e a Reforma Agrária, Lisboa, 1984. Este excelente trabalho contém monografias sobre a maior parte dos grémios alentejanos e mostra bem como, no interior da mesma região, a diversidade de situações é flagrante. Ver ainda: Relatório sobre a Extinção dos Grémios da Lavoura e Suas Federações, relatório encomendado pelo Ministério da Agricultura (1977) a Manuel Lucena, Carlos Costa, António Fragata, Maria Inês Mansinho e Margarida Néri Pereira; Manuel Lucena, «Transformações do Estado Português nas suas relações com a sociedade civil», in Análise Social, n.º 72 a 74, Lisboa, 1983; e, também, do mesmo autor, «Sobre a evolução dos organismos de coordenação económica ligados à lavoura», in Análise Social, n.º 56 a 58, Lisboa, 1980; e «Sobre as Federações dos Grémios da Lavoura», in Análise Social, n.º 62, Lisboa, 1981. Os trabalhos de Manuel Lucena constituem a principal fonte de informações para esta secção.

105 No período aqui estudado, 1974 a 1976, o processo de liquidação ou de transformação fica muito incompleto. As últimas medidas oficiais relativas aos grémios datam de 1981. 106 A partir de 1975, os grémios tornam-se oficialmente «ex-grémios». 107 M. Lucena, Revolução […], op. cit. 108 M. Lucena, Revolução, […], op. cit. 109 Foi o que aconteceu. Depois da dissolução definitiva, a maioria dos grémios deu nascimento a cooperativas de serviços e de comercialização. 110 Ver adiante o capítulo sobre a intervenção das forças armadas. 111 É o contrário do que acontece geralmente nos Estados pós-revolucionários, onde, junto das unidades militares, existem «comissários políticos». 112 Ver a Segunda Parte, «Os acontecimentos». 113 Ver, no Capítulo VIII, a secção «Uma vida institucional pré-revolucionária». 114 Ver os testemunhos de dois responsáveis das CIC in A. Barreto, Memória […], op. cit. 115 Ver, no Capítulo VIII, a secção «Uma tentativa reformista». 116 Alguns dos organismos de coordenação económica, como o Instituto dos Cereais, pertenciam ao Ministério do Comércio ou dependiam simultaneamente deste e do Ministério da Agricultura. A sua acção junto dos agricultores podia ser decisiva: fixação dos preços, intervenção nos mercados, escoamento, importação, fornecimento de sementes, armazenamento, transporte de excedentes, pagamentos, etc. 117 O presidente do IRA declarou: «A legislação sobre o saneamento está já publicada, existe no IRA uma comissão eleita pelos trabalhadores e que trabalha activamente com esse fim e que tem todo o apoio do presidente», in A Capital, 9/1/1975. 118 Ver, a este propósito, Fernando Oliveira Baptista, Portugal 1975: Os Campos, Lisboa, 1978. O autor era o ministro nesta altura. Pode ler-se no seu testemunho: «A acção dos militares e dos técnicos progressistas — a quem foi confiada a direcção dos serviços regionais do Ministério com a criação dos centros regionais de reforma agrária — foi decisiva onde as relações de força regionais não eram susceptíveis de impedir o processo de reforma agrária.» 119 Diário do Alentejo, 23/6/1974.

120 Estes fundos (melhoramentos agrícolas, mecanização, etc.) podiam ser facilmente mobilizados, com poucas regras burocráticas e financeiras. As taxas de juro eram muito favoráveis, da ordem de 1% a 3%, quando outros créditos eram já pagos a 12% e 14%. 121 Testemunho inédito do engenheiro-agrónomo J. Dordio, membro das brigadas técnicas (arquivos do GER, Gabinete de Estudos Rurais, da Universidade Católica). 122 Ver, no Capítulo VIII, a secção «Os primeiros problemas agrários». Ver ainda Maria José Nogueira Pinto, O Direito da Terra, Lisboa, 1983. 123 Ver o Capítulo XI. 124 Decreto-Lei n.º 351/75. 125 O Decreto-Lei n.º 406-A/75, verdadeira lei de expropriações, prevê que estas devem ser decretadas pelo ministro, sob proposta dos conselhos. O mesmo decreto, no seu artigo 14.º, prevê que das decisões tomadas em aplicação deste diploma cabe recurso junto dos conselhos. É um autêntico circuito fechado. Outros decretos alargarão ainda as competências dos conselhos, em especial os Decretos n.os 470-A/75, 407-B/75 e 493/76. 126 Uma cópia deste longo memorando está depositada nos arquivos do Gabinete de Estudos Rurais. O documento é assinado, a título individual, por Dinis Miranda, António Gervásio, Joaquim Diogo Velês e Amílcar Lázaro Leão: na verdade, são membros do comité central do partido e os principais responsáveis pelas questões agrárias. O memorando, além de uma introdução geral, compreende quatro capítulos: «A importante questão das indemnizações»; «A condução das expropriações dos latifúndios e a instalação das novas unidades de produção»; «A questão vital do controlo das colheitas e dos meios de produção»; e «A importância da reforma agrária para o desenvolvimento do País». O documento tem data de 12 de Junho de 1975. 127 A inspiração que está na origem destes conselhos pode bem ir buscar-se à experiência chilena. Um documento redigido por Jacques Chonchol, ministro da Agricultura da Unidad Popular e do presidente Salvador Allende (1971), e cujo título era «As oito condições fundamentais para uma reforma agrária na América Latina», foi distribuído em 1975 aos funcionários dos centros regionais alentejanos e dos serviços centrais em Lisboa. Pode aí ler-se, nomeadamente: «A fórmula operacional mais adequada seria a seguinte: concentração das principais funções complementares sob responsabilidade única, um só organismo, e sua descentralização regional, na base dos chefes locais ou dos conselhos, que deveriam ter muita autonomia e poder, a fim de agir na procura de soluções para os milhares de problemas específicos.» 128 O Século, 12/5/1974.

129 Conhece-se bem a sua actividade por intermédio da imprensa e dos testemunhos de alguns participantes. Por outro lado, as «Actas» das sessões do conselho regional de Beja constituem um documento exaustivo que permite acompanhar a acção passo a passo. Uma cópia deste documento está depositada nos arquivos do GER. Cf. António Barreto, O Conselho Regional de Reforma Agrária do Distrito de Beja, Lisboa, 1980. 130 Diário do Alentejo, 4/8/1975. 131 Ibidem, 11/8/1975. 132 Ibidem, 22/7/1975. 133 Cf. Álvaro Cunhal, Rumo […], op. cit., assim como o seu Relatório de Actividades do Comité Central ao VI Congresso do Partido Comunista Português, Edições do PCP (clandestinas), 1965.

CAPÍTULO VII A ACTIVIDADE POLÍTICA

Logo após o golpe de Abril de 1974, os partidos políticos multiplicam-se. Ou, antes, anunciam a sua existência. Mais de 70. A maioria não passará deste anúncio. Não havendo ainda regras jurídicas, basta a um grupo de indivíduos proclamar-se partido, na tentativa de ocupar espaços vazios134. No fim do ano, quando o Governo aprova regras de legalização (mais de 5000 assinaturas, inscrição junto do Supremo Tribunal de Justiça, etc.), o número de partidos reduz-se bem depressa, não ficando mais de 12, entre os quais os quatro grandes. Todas as ideologias possíveis estão presentes no início, até grupos declaradamente favoráveis ao antigo regime, que todavia desaparecerão rapidamente. Só quatro partidos podem realmente invocar uma existência prévia ao 25 de Abril135. Primeiro o Partido Comunista, fundado em 1921, na clandestinidade desde 1926. Conheceu altos e baixos, mas, graças à existência de um núcleo «duro» de algumas dezenas de funcionários, sobreviveu à incessante repressão das polícias políticas. A direcção vivia no estrangeiro, desde os anos 60, entre Moscovo, Praga e Paris; mas mantinha sempre, em Portugal, um certo número de dirigentes. No quadro do movimento comunista internacional, e segundo a terminologia corrente, era um partido pró-soviético, distinguindo-se na condenação dos «desvios» jugoslavo, chinês e italiano e na aprovação da

invasão da Checoslováquia, em 1968. O seu secretáriogeral, Álvaro Cunhal, estava em funções há cerca de duas dezenas de anos. O Partido Socialista foi fundado em 1973. Era um pequeno grupo de personalidades e de militantes de oposição, na área socialista e social-democrata, que então decidiram assumir uma identidade própria. Alguns tinham colaborado com o PC em «movimentos de unidade». Era o caso do seu secretário-geral, Mário Soares. Em 1973, estes socialistas dotam-se de um programa, de um jornal impresso no estrangeiro e de uma organização embrionária. Alguns dos seus dirigentes vivem no exílio, em países da Europa ocidental, mas a maioria vive em Portugal. Desde a sua criação, o PS adere à Internacional Socialista. O número dos seus militantes não deveria atingir a centena. Considera-se que o PS está mais próximo das correntes ditas do «socialismo democrático» do que das da «social-democracia». O Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE, ou mais simplesmente, MDP) era a última versão dos movimentos unitários que, sob o impulso predominante dos comunistas e com a colaboração de outras forças ou individualidades, tentava conduzir a luta contra o regime de Salazar e Caetano. As origens imediatas do MDP situam-se nas campanhas eleitorais de 1969 e 1973. O MDP era principalmente, como os seus antecessores, o «braço legal» do PC, o que não impedia que muitos não comunistas dessem a sua colaboração. Finalmente, o Movimento para a Reconstrução do Partido do Proletariado (MRPP) esquerdista, maoísta, criado no princípio dos anos 70, muito activo em meio estudantil, com dificuldade em ultrapassar os limites da universidade e de Lisboa. A sua existência era todavia real antes de 1974. Após o derrube do regime, todos se apresentam a

público. O MDP garante continuar como «movimento», o que explica que três partidos o integrem: o PC, o PS e o recém-formado PPD136. Muitos outros partidos anunciam rapidamente a sua fundação. Entre todos, virão a salientar-se o Partido Popular Democrático (PPD), liderado por Francisco Sá Carneiro e formado a partir das franjas liberais do anterior regime, e o Centro Democrático e Social (CDS), conservador e democrata-cristão, chefiado por Diogo Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa e que nasce nas camadas jovens dos que poderiam ter sido os herdeiros do regime corporativo. O MDP nunca virá a ter significado autónomo na vida política. O MRPP não terá peso. Entre todos os outros partidos, dois ou três farão mais falar de si, mas não conseguirão adquirir dimensão: o MES, a UDP e o PPM. Durante a revolução (e depois), quatro partidos vão absorver os votos e as energias militantes: o PS, o PPD, o PC e o CDS. A implantação dos partidos Tudo se passou relativamente depressa, num país que não conhecia os partidos políticos há 50 anos. Dois anos depois do golpe de Abril, mais de 300 000 pessoas estariam inscritas num qualquer partido político137. Com vantagens à partida, o PC faz imediatamente um grande esforço de organização138. Colabora no MDP, mas as suas preocupações essenciais vão para a organização. Os seus esforços conseguem reais sucessos: primeiro nas regiões urbanas e industriais de Lisboa; depois, no Alentejo rural; a seguir nas outras regiões urbanas do País; e finalmente nas restantes áreas rurais, onde aliás a sua implantação demora anos a concretizar-se. No Alentejo e no Ribatejo, as primeiras manifestações públicas, em fins de Abril e princípios de Maio, são

organizadas pelo MDP e organizações anexas, como o MDM, Movimento Democrático das Mulheres. Logo em meados de Maio, uma grande homenagem a Catarina Eufémia é notada. As reuniões começam a multiplicar-se139. Umas para grandes assistências, outras mais discretas, mas públicas, sobretudo nas Casas do Povo. Estas últimas têm várias designações: «colóquio sobre política», «comício» ou «sessão de esclarecimento». Esta última será a terminologia adoptada depois por toda a gente. A partir de fins de Maio, o MDP é a força mais activa em todo o Sul: começou a luta pela conquista das autarquias140. Paralelamente, realizam centenas de reuniões de trabalhadores rurais: as «comissões pró-sindicato» organizam-se rapidamente. Enquanto as intervenções do PS e do PPD só muito gradualmente é que se desenvolvem, o PC desdobra-se em várias frentes. Participa nas reuniões do MDP, nas sessões do IMA e nas comissões sindicais. Os seus verdadeiros comícios autónomos começam em Junho e Julho141. Neste momento há já numerosos «centros de trabalho» na região de Lisboa. No Alentejo, estes vão surgindo mais lentamente. Em Maio há dois no distrito de Beja, um em Évora, um em Avis (Portalegre) e um em Alpiarça (Santarém). Já são mais numerosos no distrito de Setúbal, na região industrial. Apesar de muito à frente dos outros partidos, parece que o PC não tem organização preparada nas áreas rurais, mas sim nalgumas zonas urbanas. Em fins de Agosto, o panorama é o seguinte: em Portalegre, quatro centros concelhios, num total de 14 concelhos; em Évora, oito em 13; em Beja, quatro em 14; em Setúbal, dois nas zonas rurais (Grândola e Santiago de Cacém); dois no concelho de Vila Franca de Xira; e cinco centros no distrito de Santarém. A partir do Outono de 1974, o movimento acelera. No fim do ano há centros de trabalho em quase todos os concelhos do que virá a ser a zona da reforma agrária.

Falta cobrir dez concelhos. Ao todo, estão inaugurados e abertos 126 centros de trabalho, o que não é comparável com qualquer outro partido142. Em fins de 1975, 108 novos centros vêm acrescentar-se aos 126 mencionados143. Do ponto de vista da organização, até 1976, a zona da reforma agrária (menos de 20% da população nacional) representa metade dos esforços do partido na criação de centros de trabalho: 220 em 450144. No conjunto do País, o número de centros de trabalho evolui do seguinte modo: até 28 de Setembro de 1974, 148; de então até 11 de Março de 1975, 232; de Março a 25 de Novembro do mesmo ano, 126; depois, até finais de 1976, 22145. A informação sobre os outros partidos é rara, o que é sinal de fraqueza e de menor organização, mas também de uma concepção política do partido bem diferente. Em 1974 e 1975, na zona da reforma agrária, não há praticamente traços do CDS. A ausência de base social e a intimidação de que este partido é vítima explicam esta situação. Já o PPD abre algumas sedes entre Julho e Dezembro de 1974, nomeadamente em Castro Verde, Beja e Coruche, em Julho, e em Serpa, Alcácer do Sal e Grândola, nos meses seguintes146. A rede de sedes do PS é ligeiramente mais densa do que a do PPD. Desde Junho de 1974 que está presente nas capitais de distrito: Évora, Beja, Portalegre, Santarém e Setúbal. Até ao fim do ano, estará nos concelhos mais importantes, como por exemplo em Coruche, Alcácer do Sal, Vila Franca de Xira, Elvas, etc.147. Quanto às sessões de esclarecimento, o PS leva a melhor sobre o PPD, mas não conseguirá estar tão activo quanto o PC. Está em Avis no fim de Maio, no distrito de Beja em Julho, um pouco por todo o Alentejo em Agosto e Setembro148. Grande parte destas sessões alentejanas realiza-se nas Casas do Povo e é presidida por um dos socialistas mais em vista, Lopes Cardoso.

O PPD organiza as suas primeiras sessões em Maio e Junho. Até ao fim do ano, o seu número aumenta lentamente, acelerando desde o momento em que o partido toma as suas distâncias relativamente ao MDP. Previamente, os seus militantes participam 149 frequentemente em iniciativas do MDP . Antes de todos os outros, o PC orienta grande parte dos seus esforços para a organização sindical e socioprofissional dos trabalhadores rurais e dos pequenos agricultores. Em Maio há já várias comissões «prósindicato» e os primeiros núcleos das ligas estão activos. A grande maioria dos quadros sindicais são comunistas. Em Évora, trabalhadores socialistas estão também mobilizados, mas perdem as eleições sindicais. Nas ligas, entre os primeiros activistas, há de tudo, militantes de todos os partidos, democratas de centro, independentes de esquerda. Pluralistas no início, as ligas serão essencialmente influenciadas pelos comunistas antes do fim do ano. O PC oferece a imagem de ser, entre todos, o que mais depressa e mais activamente se preocupa com os assalariados agrícolas e com os agricultores, de modo diferenciado. Um dos seus métodos de trabalho favoritos consiste na organização, sobretudo em 1975, de conferências regionais e sectoriais, em vários pontos da região. Antecipadamente preparadas, bem publicitadas na imprensa, estas reuniões permitir-lhes-ão retirar benefícios palpáveis e darão a nítida impressão da multiplicidade de iniciativas150. Aliados, adversários e inimigos 1974 e 1975: são os anos loucos das reuniões políticas. Fazem-se dezenas de milhares de sessões de esclarecimento, comícios, manifestações, cortejos, marchas e concentrações. Para convocar uma manifestação, um colóquio ou uma sessão, todos os

motivos são bons: o apoio ao MFA, a denúncia dos fascistas, as greves, as reivindicações salariais, o recrutamento político, a chegada de soldados de África, o protesto dos retornados e três campanhas eleitorais. Os locais de reunião são os «barómetros» da capacidade de mobilização. O Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, «vale» 15 000 pessoas, o Campo Pequeno 25 000, o Rossio 100 000, o Estádio 1.º de Maio 250 000, o Terreiro do Paço 400 000 e a Alameda 600 000! Todos estes locais foram preenchidos por uma ou outra força política, sozinha ou em aliança. Na convocação de uma manifestação, o sítio pode ser tão importante como o motivo, dado que é uma indicação das intenções e da força. A guerra dos números é permanente. Conforme a fonte, jornal ou rádio, a mesma manifestação pode ter reunido entre 50 000 e 500 000 pessoas. A verdade é que a «rua» desempenhou papel importante, tanto na aceitação do MFA e na ascensão do PC como, mais tarde, na contra-ofensiva dos socialistas e na derrota dos comunistas. Não é a rua que decide, mas ajuda a inclinar os pratos da balança. Não se tratava de pura exibição: os militares no poder eram sensíveis às performances de mobilização e de enquadramento das populações. Era aliás para eles e por causa deles que se faziam muitas das grandes manifestações. Curiosamente, com tanta gente na rua, os conflitos violentos são raros, mesmo se os incidentes são numerosos. Após dois anos de lutas vivas e intensas, de movimentos sociais vastos e enérgicos e de efectivas medidas revolucionárias, contam-se, no Alentejo, três mortos. No primeiro ano, pelo número dos seus membros, pelas manifestações de rua, pela organização e pela presença nos corredores do Governo e dos quartéis, o PC é o vencedor incontestado. A partir de Janeiro de 1975, sem que ainda tenha rival, surge o que será o seu principal adversário: o PS, que se revela na batalha da unicidade

sindical. Com a vitória eleitoral de Abril, o PS passa a ter trunfos tão poderosos quanto os do PC, embora por vezes de natureza diferente. Os antagonismos entre PS e PC instalam-se de modo durável: tão cedo não será possível nenhuma colaboração. No segundo ano, do Verão de 1975 às eleições de Abril de 1976, o PS será o grande vencedor. As relações entre estes dois partidos estarão no centro da vida política neste período. Logo após o golpe de Estado, apesar das ambiguidades e das tensões, são múltiplos os sinais de colaboração dados pelos dois partidos (e até, secundariamente, por um terceiro, o PPD). Com a formação dos governos provisórios, a colaboração é forçada pelas circunstâncias, mais do que desejada; e é sobretudo um modo fácil de vigilância mútua. Ao longo dos episódios revolucionários, PS e PPD acompanham o PC e o MFA tão longe quanto eles forem, muito além do que permitiriam os seus próprios programas. Colaboram por fraqueza, talvez por intimidação, por incapacidade de orientar o movimento a seu favor e por medo de serem expulsos do sistema político151. No entanto, a colaboração inicial contribuiu fortemente para os sucessos rápidos do PC, para a sua aceitação como força democrática. Além das vantagens próprias, o PC gozou deste inestimável capital político, fornecido pelos adversários, aliados de circunstância e futuros rivais. No Alentejo, nenhum outro partido tem raízes, tradição ou memória. O PC, pelo contrário, apresenta-se como depositário da herança democrática e da resistência. Não insiste no seu programa comunista, publicita a sua plataforma democrática. Não fala de luta de classes, mas sim do povo do Alentejo. Fá-lo sem rivais, mas com o apoio ou a caução dos órgãos de soberania, dos militares e dos outros partidos. Em 1974 são numerosos os comícios organizados conjuntamente pelo PC, PS, MDP e PPD152. Por vezes, o PS está ausente e só o PC, MDP e PC estão presentes153. Noutras, PC e PS colaboram sozinhos154.

Mesmo depois de 11 de Março de 1975 ainda haverá reuniões conjuntas155. O principal pretexto para todas estas manifestações é o apoio ao MFA e a algumas das mais importantes medidas políticas: as nacionalizações, a independência das colónias, as vitórias nos contragolpes de 28 de Setembro e de 11 de Março, etc.156. Muitas vezes, além dos partidos e dos sindicatos, membros do Governo e sobretudo oficiais das forças armadas participam activamente nestas reuniões públicas157. A medida que se avança no tempo, as reuniões vão sendo cada vez mais radicais e o PS e o PPD estarão menos presentes. Ou são marginalizados ou se auto-excluem. Em Julho de 1975, em Beja, uma manifestação reúne o PC e o MDP, os sindicatos, o presidente da Câmara, o adjunto do governador civil e o comandante do regimento local158. A base social da revolução definiu aqui as suas mais estreitas fronteiras, mas o poder institucional ainda está presente. A força dinâmica da revolução reside no PC e no MFA. Este comanda as forças armadas, última instância do poder, na Assembleia do MFA, no Conselho da Revolução e na Presidência da República. Antes das eleições de 1975 não há verdadeira competição partidária: a concorrência, entre os partidos, faz-se pelos favores militares. Nesta competição, o PC vence durante mais de um ano. Em conjunto, PC e MFA arrastam para a esquerda os outros partidos, sobretudo o PS e o PPD. Este processo foi a forma que tomou a colaboração, mais ou menos forçada, que os dois partidos não comunistas deram ao poder revolucionário. Várias vezes estes dois partidos assinaram e deram a sua caução a medidas do PC e do MFA com as quais não estavam de acordo. Por exemplo, quando em Maio e Junho aprovam as medidas de «saneamento» das cooperativas. Mas é a 7 de Julho que o talento do PC em obter a cumplicidade dos adversários consegue o seu maior

triunfo: o Governo dos três partidos ratifica e aprova os decretos de expropriação e nacionalização das explorações agrícolas. Pelo PPD assina o ministro Magalhães Mota. É verdade que a ausência da assinatura do ministro Mário Soares é significativa, traduz as reservas que o seu partido formula à política agrícola do Governo. Todavia, este acto não é assumido como uma recusa do partido, o que revela ambiguidades e fraqueza: com efeito, afirmam que não assinaram porque não tiveram tempo de ler os projectos159. Uma recusa que pede desculpa não é um gesto político forte. Mas a oposição socialista vai-se organizando, sobretudo depois dos resultadas das eleições de Abril. Estes não dão ao PS o direito de governar, mas são um argumento eficaz e conferem-lhe uma legitimidade indiscutível. O PS arrogase o direito, doravante, de conduzir o protesto quase nacional contra o MFA e o PC. Por todo o País, os actos de violência contra os comunistas multiplicam-se160. O PS não participa nessas actividades, nem de tal é acusado pelo PC. A verdade é que os atentados contra as sedes do PC coincidem, no tempo, com a campanha de oposição liderada pelo PS. Fica uma certeza: a de que em todo o País, em todos os sectores sociais e por todas as formas está generalizada a rejeição da política radical do PC e do MFA. A 10 de Julho de 1975, o PS abandona o Governo e dá a esse gesto um forte conteúdo político. O PPD segue-o dias depois. Convocadas pelos socialistas, enormes manifestações se sucedem por todo o lado. Os comunistas respondem: em Lisboa e no Alentejo, as suas manifestações suportam a comparação, mas não no Norte nem no Centro. Algo quebrou definitivamente. Nos meios militares, exprimem-se finalmente grupos moderados, especialmente o «Grupo dos Nove», que reúne socialistas moderados desejosos de se distanciarem dos

revolucionários. Defendem o consenso sobre pelo menos um ponto capital: o funcionamento democrático das instituições. A sua iniciativa tem sucesso, é assinada por centenas de oficiais. Tudo se precipita161. Sucedem-se os episódios rocambolescos ou dramáticos. Cria-se a consciência de que é possível derrubar os comunistas e os militares radicais. É o que acontecerá quatro meses mais tarde. Os programas dos partidos Abril de 1974: o programa político do PC, aprovado em 1964, inclui um capítulo consagrado ao sector agrícola e à reforma agrária162. O PS tem igualmente o seu programa, aprovado em 1973163. Mais recente, mas mais vago do que o do PC. Como programas políticos, é o que há. Entre Maio e Dezembro de 1974, todos os outros partidos vão publicar os seus programas e os seus pontos de vista sobre a questão agrária. O PS, no seu congresso de Dezembro, aprova um extenso novo programa, incluindo um pormenorizado plano de reforma agrária. O PC, que reúne o congresso a 20 de Outubro, não modifica o seu programa de 1964. Abril de 1975: durante a campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte, todos os partidos apresentam programas e definem opções sobre a questão agrária. Mas, no essencial, todos se referem aos programas aprovados em 1974. Verão de 1975: os partidos que elegeram deputados à Constituinte entregam os seus projectos de Constituição. Todos incluem importantes capítulos sobre a agricultura e a reforma agrária. Nota-se uma evolução geral para a esquerda. Novembro de 1975: os trabalhos da Constituinte avançam lentamente. Os deputados votam os artigos 96.º a 104.º definindo uma orientação constitucional para a

reforma agrária, o que se faz em situação social e política inteiramente nova: com efeito, estão já ocupados milhares de herdades, num total de mais de 1 milhão de hectares. Ao votar, cada partido revela diferenças significativas relativamente ao seu pensamento anterior. Abril de 1976: ocorre a campanha eleitoral para o primeiro parlamento. A Constituição está já aprovada, as acções revolucionárias no Alentejo pertencem ao passado. Ao apresentarem-se de novo ao eleitorado, os partidos publicam novos programas agrários, bem diferentes dos anteriores e do que votaram na Constituição, mantendo embora inalterados os seus programas de partido. Toda esta evolução merece ser revista em mais pormenor. Nos programas de 1974, os partidos de esquerda (PS, PC e MDP) consideram a reforma agrária como objectivo essencial. Para o PC não é possível fundar o regime democrático sem «distribuir uma grande parte da terra cultivável a quem a trabalha»164. Também o PS exige «a transformação das estruturas de propriedade e a transferência dos direitos de posse útil da terra aos que a trabalham». O PPD defende uma «reestruturação fundiária» e a transformação das estruturas de apoio ao sector agrícola. O CDS propõe uma «agricultura renovada» e o equilíbrio de rendimentos entre o sector agrícola e os outros sectores. Em resumo, dois reclamam reformas estruturais, talvez mesmo revolucionárias; outros dois preferem a modernização e a mudança moderada. O PC pretende expropriar «os grandes latifúndios e as grandes empresas capitalistas». As terras assim obtidas seriam entregues aos «assalariados rurais e aos camponeses pobres», tendo em vista a sua utilização «individual, em cooperativas ou directamente pelo Estado». A distribuição de terras deve obedecer «à vontade das massas camponesas». Para resolver a questão

do absentismo, o PC preconiza «a requisição das terras incultas pelo Estado». É um programa radical e estatizante. Só receberão indemnizações os rendeiros que tiverem melhorado a terra. O Estado ficará proprietário de toda a terra expropriada, salvo quando se trate de terra de agricultores-parceiros. Os critérios e as dimensões das explorações expropriáveis não estão definidos. Não existe uma escolha definitiva quanto aos modelos de exploração: da empresa familiar ao colectivismo de Estado, tudo parece possível. O programa do PS, completo e pormenorizado, contrasta com a vaguidão do de 1973. Também se trata de um programa mais radical. Propõe-se privilegiar os direitos de exploração, em detrimento dos direitos de propriedade. Preconiza a «propriedade colectiva dos meios de produção», sistema que se deve sobrepor ao uso individual da terra. Proclama o respeito pela propriedade do pequeno agricultor, mas submete-o a normas precisas sobre os direitos de sucessão. O absentismo deve ser penalizado, geralmente pela expropriação. O mercado de terras e o arrendamento serão estreitamente controlados, devendo o Estado ter sempre um direito de preferência. Nas regiões de latifúndio, a maior parte das terras será expropriada pelo Estado, que «dará os direitos de exploração a quem as trabalhe», devendo no entanto reter a propriedade. Os antigos proprietários receberiam indemnizações calculadas em função das necessidades de subsistência e não dos valores do mercado. Finalmente, o PS propõe um vasto programa de apoio e desenvolvimento das cooperativas. Apesar do pormenor, este programa deixa por definir alguns aspectos decisivos, como por exemplo os limites de propriedade privada aceitáveis. O programa do PPD, muito mais moderado do que os precedentes, insiste nas diferenças ecológicas entre as diversas regiões. Propõe que se garanta simultaneamente «o direito à propriedade privada» e «o predomínio dos

interesses públicos sobre os privados». Prevê a intervenção do Estado através de programas agrários de desenvolvimento, incluindo as compras no mercado fundiário, deixando a porta aberta ao «arrendamento compulsivo» e à expropriação. O desenvolvimento cooperativo é considerado prioritário. Sobre algumas questões candentes, o PPD é mudo: critérios de intervenção do Estado, destino das terras expropriadas ou compulsivamente arrendadas ao Estado, situações que levariam seja à expropriação, seja ao arrendamento compulsivo, etc. O CDS, enfim, sugere «uma reforma gradual da estrutura agrária», utilizando curiosamente a mesma expressão que o primeiro Governo provisório. A reforma agrária passaria «pelo parcelamento e emparcelamento das explorações e, apenas em casos especiais, das propriedades». Defende a grande propriedade, à qual reconhece vantagens produtivas, e preconiza que a sua gestão deve ser confiada a sociedades. Também é favorável às grandes empresas agro-industriais, dada «a sua alta produtividade» e o «seu nível técnico». Sublinha que a «agricultura familiar é a base da agricultura do futuro» e que deve, por conseguinte, ser técnica e financeiramente apoiada. Conclui que a «correcção da estrutura agrária» só pode resultar de «um regime fiscal adequado». Trata-se de um programa aparentemente modernizador, inspirado em orientação claramente capitalista. Como os outros, deixa na escuridão algumas opções fundamentais. Neste caso: os mecanismos e critérios correctores do regime fiscal; os «casos especiais» justificando a intervenção do Estado, etc. Com a campanha eleitoral de Abril de 1976 aparecem programas políticos bem diferentes. O contexto mudou. Os programas têm agora diante de si novas realidades: terras ocupadas, um sector colectivo, a Constituição aprovada, leis de reforma agrária em vigor, etc. Mas também a

balança de poderes mudou. O PC proclama-se «o partido da reforma agrária e dos pequenos agricultores». Ainda mais do que no passado, parece interessar-se pelos camponeses, em cuja terra «não se deve tocar nem com um dedo»165. O programa defende vigorosamente a legislação em vigor. A prioridade vai para as unidades colectivas de produção e para todas as medidas sociais, técnicas, jurídicas e económicas necessárias ao seu desenvolvimento. Insiste em que os «latifúndios devem ser entregues aos assalariados agrícolas e aos pequenos agricultores». As empresas «intervencionadas» deveriam ser nacionalizadas. O partido opõe-se com energia ao pagamento de indemnizações aos antigos proprietários. Quanto às reservas de propriedade, apesar de previstas nas leis em vigor e mau grado constituírem, nessa altura, uma das questões mais controversas, o programa do PC nada diz. Todas as inovações deste programa constituem, em certo sentido, a teorização do que aconteceu no ano anterior. O primeiro programa era vago, permitia várias acções possíveis. O segundo é concreto, destina-se a consolidar a acção, a defender as conquistas já efectuadas. Por outro lado, é também nova a insistência nos pequenos agricultores. Estes, com efeito, estão inquietos, ou são mesmo adversários da reforma agrária, que, até essa altura, ainda não lhes trouxe benefícios, mas já provocou ansiedades e prejuízos. Apesar das suas preferências pelo colectivismo de Estado, bem expressas na prática, não deixa de tentar mostrar a sua política favorável aos camponeses, expressa nos textos. O PS dirige críticas à maneira como a reforma agrária foi conduzida até então. Mas não põe em causa nem o essencial nem a legislação em vigor. Para a região do latifúndio, «o ponto de partida é a expropriação e a nacionalização dos solos», enquanto o «emparcelamento e o cooperativismo» são as soluções preconizadas para a

região do minifúndio. Acentua a necessidade de «garantir de maneira inequívoca a propriedade dos pequenos e médios agricultores» e exige «a devolução rápida das terras indevidamente ocupadas aos seus legítimos proprietários». Mantém a sua vontade de completar o processo legal de expropriação, conforme as leis em vigor, mas é favorável à concessão das reservas e ao pagamento de indemnizações aos antigos proprietários. Remete para um futuro «programa de acção» a definição dos destinos das terras expropriadas, com o qual se procuraria o estabelecimento de um novo modo de produção. Este evitaria ao mesmo tempo a «burocratização» e a «substituição do patrão privado pelo Estado-patrão». Propõe-se ainda combater a criação «de uma nova classe de pequenos proprietários agrícolas». Critica moderadamente as formas colectivistas praticadas pelas UCP, mantendo-se partidário da propriedade estatal do solo, mas com exploração em cooperativas. Vasto e preciso quanto a questões técnicas e jurídicas, o programa evita alguns dos problemas políticos e sociais mais «quentes». Ao remeter opções essenciais para futuros programas, dá a entender que espera formar governo em breve. Enquanto o não faz, tenta demonstrar a coexistência de todas as formas de empresas e dos vários modelos de sociedade. Mais do que uma política própria, parece um programa de coordenação e de contenção. Pelo seu lado, o PPD faz agora a crítica severa das leis e dos acontecimentos do ano anterior. Tenta propor uma política de conjunto, económica, social, técnica e fundiária. Admite a «expropriação progressiva dos latifúndios», mas exige a revisão dos decretos de 1975, em particular a fim de aumentar os limites de propriedades legalmente aceites. É preciso quanto ao destino das terras expropriadas: os beneficiados deverão ser «as explorações familiares e as verdadeiras cooperativas». O colectivismo parece excluído. Parte das terras expropriadas serão

objecto de contrato de arrendamento com o Estado, enquanto outras poderiam ser adquiridas, em plena propriedade, pelos agricultores, através de uma amortização gradual. Criticando as unidades colectivas, o PPD propõe-se «transformá-las em verdadeiras cooperativas», de que se reclama defensor. Trata-se de um programa bem mais pormenorizado do que o de 1975 e talvez mais próximo dos modelos sociaisdemocratas, de que o partido se diz ser a expressão. Mais do que o PS, o PPD põe em causa as leis em vigor, mas não sugere a devolução das terras expropriadas, antes propõe métodos para uma melhor distribuição. Quanto às unidades colectivas, enquanto o PS as admite, o PPD recusa-as claramente, defendendo as cooperativas em seu lugar. Finalmente, fica silencioso quanto aos limites exactos das reservas e da propriedade legalmente aceite. Acrescente-se que, alguns meses mais tarde, na oposição parlamentar ao Governo do PS, o PPD terá propostas bem mais concretas e mais hostis às expropriações. Já o CDS rejeita tudo o que se fez até então e faz uma crítica coerente de conjunto. Recusa a «chamada reforma agrária, que não foi mais do que a promoção de ocupações selvagens e de expropriações desadequadas e injustas». Exige «a suspensão imediata das leis em vigor», «a devolução das terras ilegalmente ocupadas aos seus proprietários» e o pagamento de indemnizações por danos provocados. Propõe que o Parlamento aprove novas leis agrárias que, em particular, limitem as medidas de expropriação às explorações abandonadas ou subaproveitadas. E se for necessário proceder a expropriações, então que as terras sejam distribuídas a agricultores dotados de experiência e de formação profissional suficientes, que, após três anos de prova, poderão tornar-se proprietários. Em comparação com o programa de 1975, o CDS já não defende tão explicitamente a grande propriedade e a

empresa capitalista. Mas é, de longe, mais crítico das leis e da reforma agrária. Sendo o mais firme defensor da agricultura liberal e capitalista, aceita agora mecanismos de expropriação. No conjunto, as suas propostas são claramente opostas ao articulado constitucional: não admira, o partido votou contra a Constituição. Meses depois das eleições de 1975, mas bem antes das de 1976, os partidos tinham publicado os seus projectos de Constituição. Entre o que propuseram então e os programas de 1976 há evidentemente diferenças, mas cada um, nesses projectos, se tinha definido mais claramente. O PC defendia o colectivismo de Estado e a destruição do capitalismo agrário. O PS, combatendo embora o capitalismo, promove modelos mais cooperativos e autogestionários. O PPD defende uma agricultura mista e polivalente, apesar de, no preâmbulo do seu projecto, afirmar que a organização social e económica deve visar a construção do socialismo. O CDS era partidário da livre empresa, da exploração familiar e da agricultura capitalista. Os nove artigos da Constituição relativos à reforma agrária são aprovados entre 6 e 11 de Novembro de 1975. Curiosamente, a independência de Angola é proclamada no dia 11; e a 12 começa o que ficou conhecido como «o cerco da Constituinte». Os nove artigos e parágrafos deram lugar a 14 votações diferentes. São integralmente aprovados pelo PS e PPD; o PC abstém-se uma vez e vota favoravelmente 13; o CDS abstém-se quatro vezes; o MDP abstém-se três. Só a UDP (um deputado) vota contra quatro artigos, além de se abster três vezes e ter aceitado sete outros parágrafos166. Estes artigos constitucionais, aos quais se devem acrescentar os que definem os quadros gerais e os objectivos do sistema económico167, consagram a vitória da esquerda menos moderada, dos comunistas à ala

esquerda dos socialistas. O mais inesperado é o voto favorável do PPD a todos os artigos e parágrafos. Poucos meses depois, este partido criticará as leis, a reforma agrária e o próprio articulado da Constituição. Mais tarde, a partir de Abril de 1976, a Constituição será a grande bandeira do PC. Nela encontra o partido argumento legal para algumas das suas teses mais importantes: propriedade estatal da terra expropriada, nacionalização de todas as grandes empresas capitalistas e latifúndios e apoio às unidades colectivas de produção. Outras matérias, como os direitos de reserva, as indemnizações e a distribuição de terras aos pequenos agricultores, porque desfavoráveis às teses, não são invocadas. Tanto no pormenor como na «filosofia», a Constituição representa em grande parte o triunfo da acção prévia do PC: consolida e legaliza as suas conquistas. Mais ainda: fálo com o contributo do PS e do PPD e parcialmente do CDS. Note-se que um dos temas do capítulo agrário, o que introduz a noção de unidade colectiva de produção, não estava presente em nenhum projecto dos partidos e nem sequer foi aprovado, em Novembro, aquando da votação artigo por artigo. Muito mais tarde, em vésperas de aprovação final global, já em comissão de redacção, a expressão foi acrescentada a pedido de um deputado comunista168. Este episódio ilustra bem a evolução política dos partidos, dos seus programas e da sua acção durante os dois anos de revolução. Cada partido fez a experiência de uma real evolução, tanto na prática como no pensamento, não estando sempre uma de acordo com o outro. A comparação entre os programas de 1974, 1975 e 1976 é elucidativa. Todos agiram com boa dose de empirismo, nem sempre sabendo bem que pensar, como agir ou até onde ir. A dinâmica geral de esquerda sobrepunha-se frequentemente à opinião e aos interesses previsíveis ou

explícitos de um partido. A esta dinâmica não faltava, evidentemente, a intimidação. Por outro lado, a existência de uma forte pressão extrapartidária (militares sobretudo, mas também movimentos sociais, sindicatos e outras instituições) obrigava os partidos a constantes revisões. O poder militar exercia grande influência sobre os partidos. O poder político não era o resultado do livre jogo dos partidos ou da expressão popular. Durante um tempo, o poder político resulta da relação com as forças armadas e o MFA. Neste aspecto, a posição do PC foi privilegiada ao longo de 18 meses. Assim, as influências dos militares sobre os outros partidos, por vezes, eram apenas o resultado das suas relações com os comunistas. Enquanto os militares radicais dominaram o MFA e as forças armadas, os comunistas levaram a melhor sobre os outros partidos em quase todos os domínios: administração, legislação, imprensa, etc. Mas, logo que os militares moderados, certamente ajudados pelos de direita, derrubaram a relação de forças no seio das unidades e dos comandos militares, o PS viu-se imediatamente elevado à posição dominante. Com uma diferença: o seu poder não residia exclusivamente na relação com os militares, provinha também dos resultados eleitorais. Apesar de ter estado «em surdina» em 1974, a questão agrária não foi marginal na luta entre os partidos. Pelo contrário, a partir de 1975, todo o País viveu um pouco sob o signo da reforma agrária. Foi tópico central de manifestações, greves, crises e mesmo actos de violência. Todas as campanhas eleitorais se lhe referiram com insistência. Todas as instituições significativas julgaram necessário exprimir-se, como chegou a ser o caso da Igreja católica, de associações culturais e profissionais. Apesar desta larga participação e do contributo dos mais diversos interesses, foi a relação com os militares que fez a diferença. Apesar de os apoios populares terem desempenhado papel de relevo, foi a aliança com a força

militar que decidiu, nos momentos mais importantes, a evolução e as orientações que levaram a melhor. Noutras palavras, a estratégia revelou-se mais importante e mais eficaz do que os programas. Os partidos eram certamente identificados com alguns grandes valores e com algumas palavras-chave, como «revolução socialista», «democracia» ou «socialismo em liberdade». Mas, no essencial, o poder dependia da estratégia. Sobre muitas das questões agrárias essenciais (reservas, indemnizações, limites de propriedade, destino das terras) os partidos preferiam esperar por depois, quando a situação política estivesse resolvida. Antes disso, o importante era a tomada de poder. Já em fins de 1974 esta relação entre estratégia e programas era visível. Apesar de se reclamar de um programa vago e velho de dez anos, o PC dominava os acontecimentos, adaptava facilmente as suas estratégias às novas situações, fazia e desfazia alianças, deixando sempre intacto o seu atemporal programa de 1964. O PS, pelo contrário, em pleno período revolucionário, encontrava tempo para redigir um programa de política agrícola bem pormenorizado. Na prática, não tinha aliados poderosos, não dominou os acontecimentos agrários de 1975 e limitou-se a seguir o PC e a sua reforma agrária. Inversamente, a partir do Verão de 1975, o PS manteve o seu programa revolucionário e complexo, mas o que lhe permitiu ganhar «a segunda volta» foi a sua estratégia de massas e a sua aliança com os militares moderados. A prática politicamente moderada sobrepôs-se ao programa ideologicamente radical. Nos partidos conservadores ou reformistas moderados, os programas eram mais pormenorizados do que coerentes. Os partidos deixaram-se ir progressivamente para a esquerda, sem se preocuparem demasiadamente com a consistência ideológica. Primeiro a necessidade de sobrevivência. Depois, a espera por eleições valia bem

alguns desvios programáticos. Nos seus manifestos eleitorais e nos seus projectos de Constituição, assim como nos seus votos na Assembleia Constituinte, propuseram e aceitaram o que antes e mais tarde combateram vigorosamente. Os programas foram pois relativamente secundários e pouco influenciaram as acções partidárias. Destinavam-se sobretudo a mostrar ao eleitorado uma eventual capacidade de governo e a criar uma imagem pública que não correspondia exactamente aos projectos políticos e à estratégia. Vencer era mais importante do que convencer. O PC fez a revolução com um programa moderado; o PS contrariou a revolução com um programa radical; o PSD opôs-se ao socialismo com um programa socialista. Todos agiram de modo diferente do que estava previsto nos programas. As eleições Ao fazer o golpe de Estado, os militares prometeram realizar eleições. Cumprem a palavra e, um ano depois, efectuam-se as eleições constituintes. Curiosamente, muitos dos que contribuíram significativamente para garantir as eleições não estavam nas primeiras filas da revolta do ano anterior. Todos os partidos são em princípio favoráveis às eleições. Todavia, mais interessados nas conquistas revolucionárias, comunistas e esquerdistas não insistem muito na defesa da realização de eleições. Os outros, dos socialistas ao centro e à direita, depositam nelas todas as esperanças. O PPD e forças mais à direita tentaram mesmo fazer rapidamente não só eleições constituintes, mas também presidenciais e legislativas. Chegou a haver debate e afrontamento sobre a questão. A queda do Governo Palma Carlos e a saída de Sá Carneiro do Governo têm origem nessa polémica. A posse do

primeiro Governo de Vasco Gonçalves, em Julho de 1974, revela bem a diferença de planos. Afirma o presidente Spínola: «Até que o povo exprima democraticamente a sua vontade sobre opções fundamentais que só ele deve tomar, nenhum governo, sob pena de faltar ao seu mandato, poderá realizar reformas de fundo que afectem as estruturas da Nação ou o foro íntimo dos cidadãos.» Na sua resposta, o primeiro-ministro declara «que não se pode concluir, nem da letra nem do espírito do programa do MFA, que não seja preciso tomar imediatamente as medidas necessárias para acelerar o progresso económico e social, melhorar as condições de vida do povo português e aproximá-lo dos níveis dos outros povos europeus». Foi este ponto de vista que levou a melhor. Mas esta polémica não se refere apenas às reformas económicas e sociais. Neste Verão de 1974, a questão mais importante é a guerra em África e o futuro das colónias. Esse é o pensamento do general Spínola quando refere «as estruturas da Nação». Ele e alguns dos seus apoiantes pensam que é possível separar as soluções, desde a manutenção de certos vínculos, nuns casos, à autonomia noutros, ou mesmo à independência noutros ainda. Não é essa a opinião do MFA nem do PC. Não parece ser também a do PS. E as posições equívocas de outros partidos não denotam em todo o caso vontade de contrariar o que acabou por ser a solução: independência para todas as colónias antes mesmo de se estabelecer o regime constitucional e sem prévia consulta eleitoral ou referendária, na metrópole ou nas colónias. O Conselho de Estado (composto por personalidades que vão da direita à extrema-esquerda), os órgãos do MFA e das forças armadas e o Governo (composto por militares, independentes e três partidos) não só não se opõem como apoiam os planos de descolonização. O presidente Spínola perde o apoio do MFA, dos comandos militares, dos comunistas e dos socialistas; e

nem sequer terá o de grupos e personalidades mais à direita em quem depositava confiança. Demite-se a 29 de Setembro. Substitui-o o general Costa Gomes, até então chefe de estado-maior-general das forças armadas (cargo que, curiosamente, já tinha ocupado, durante alguns meses, sob Marcelo Caetano). Ficará em funções até à aprovação da Constituição. Será partidário das independências imediatas e das reformas sociais e estruturais em profundidade; mas também das eleições, que, à sua maneira, ajudará a garantir. As eleições realizaram-se no último dia do prazo de um ano que o programa do MFA tinha fixado169. Após múltiplas vicissitudes, tinham sido marcadas para Março. O golpe e o contragolpe de 11 de Março adiaram-nas para 25 de Abril de 1975. Nesse espaço de tempo foram tomadas as mais revolucionárias de todas as medidas de carácter político e económico. Do ponto de vista da esquerda radical e comunista, o País ficou então pronto para eleições. A campanha desenrola-se por entre fortes tensões. Quase não se fala de Constituição, nenhum projecto é apresentado ao público e largamente explicitado ou discutido. O que parece estar em causa é simplesmente o poder político. Para uns «as liberdades», para outros «a revolução». Alguns dias antes da votação, o MFA recomenda o voto branco. A manobra contraria os esforços dos partidos não comunistas, que lutam contra a abstenção. Mas os conselhos do MFA não são ouvidos: a participação eleitoral é de cerca de 85%170. Com 39%, vence o PS. O PC, o partido da revolução, perde, obtendo apenas 12%, aos quais se poderão acrescentar os 4% do MDP171. De todos os grupos esquerdistas que concorrem, só a UDP consegue eleger um deputado. As vanguardas e os extremistas são derrotados. O total dos partidos que se opõem aos comunistas e aos militares radicais eleva-se a quase quatro quintos do

eleitorado. Nas regiões onde a reforma agrária está na ordem do dia, o PC vence confortavelmente em Beja, mas é o PS que vem à frente em todos os outros distritos, assim como, globalmente, no que virá a ser mais tarde a Zona de Intervenção da Reforma Agrária. Alguns resultados das eleições para a Assembleia Constituinte — 1975 PS Total

PPD

PC

CDS

MDP

38,6

26,3

12,4

7,5

4,1

ZIRA

41,3

8,3

32,6

3,1

5,1

Beja

35,5

5,3

39,0

2,2

5,5

Castelo Branco*

47,4

19,7

8,0

5,1

3,1

Évora

37,8

6,9

37,1

2,8

7,8

Lisboa*

45,2

7,2

30,1

1,5

5,1

Portalegre

52,4

9,9

17,5

3,9

4,5

Santarém*

47,1

9,3

24,1

3,2

4,1

Setúbal

38,1

5,7

37,8

1,6

6,0

* Nestes distritos só estão incluídos os concelhos que fazem parte da ZIRA. Nota: Estão excluídos os partidos que obtiveram menos de 1%. Entre estes, só a UDP conseguiu eleger um deputado (pelo distrito de Lisboa), num total de 256.

O PS vence em 42 concelhos da ZIRA, o PC em 30. Nenhum outro partido chega em primeiro lugar em qualquer concelho. Nos quatro distritos do Alentejo propriamente dito, o PS e o PC elegem sete deputados cada um, só deixando um para o PPD172. A região vota claramente à esquerda. O PS é o partido com distribuição eleitoral mais equilibrada em todo o País, enquanto o PPD (no Norte) e o PC (no Sul) tiram a sua força de regiões bem limitadas. Para o PPD e o CDS, a região da reforma agrária representa apenas 5% do seu eleitorado. Para o PS, cerca de 20%, o

que é outro sinal de equilíbrio, dado que é mais ou menos essa a parte da população nacional. Para o PC, a região é uma espécie de santuário: quase 40% dos seus votos vêm daqui. No PS e no PPD, depois das eleições, é a euforia. O combate tem agora argumentos sólidos e qualificáveis. Publicamente, o PS parece investido do título de líder da oposição aos comunistas, além de ser o primeiro partido nacional. Mas a luta continuará difícil. MFA e comunistas reservam à vitória dos socialistas o tratamento do que se não gosta: mostrar que a ignoram. Advertem rapidamente a população de que as eleições não têm importância política, dado que se trata apenas de redigir uma Constituição. Quando a Assembleia inicia as suas sessões, tentam impedir que se reserve uma hora, «antes da ordem do dia», para discutir assuntos de interesse geral. Não prescindindo desta tribuna, o PS e o PPD aprovam-na com forte maioria173. Os comunistas e o MDP, não podendo impedir a votação, decidem não estar presentes durante a hora de discussão prévia. Mas depois do 25 de Novembro, tendo mudado a relação de forças, participarão também. Logo a seguir às eleições, todos os motivos e todos os meios foram bons para mostrar que o poder não residia nas urnas: conflitos sindicais, incidentes do 1.º de Maio, manifestações, saneamentos, legislação e medidas do Governo. Para o PC, «em Portugal, é uma revolução que está em marcha e as forças revolucionárias não aceitarão que as suas vitórias sejam contestadas por aqueles que obtiveram votos afirmando que estavam com a revolução e que reivindicam agora os mesmos votos contra a revolução»174. O destinatário da mensagem é o PS; o seu autor, o secretário-geral do PC, que dirá ainda mais tarde: «Querer pôr em causa a reforma agrária por intermédio das eleições não é querer assegurar um regime democrático.»175

Apesar de tudo, os resultados eleitorais não são esquecidos. Lentamente, transformam-se na base mais segura da legitimidade. Quando o PS e o PPD deixam o Governo, em Julho, o picaresco da situação não escapa a ninguém: o PC, o MDP e o MFA formam um governo que, em eleições constituintes, teve menos de 20% dos votos e menos de 50 deputados num total de 256. A campanha de massas que o PS conduz, a revolta que se alarga a todo o País e uma primeira reviravolta militar levam ao sexto Governo provisório e ao apagamento do general Vasco Gonçalves, símbolo indiscutível do poder militar e da revolução176. Mas nem tudo muda, nem tudo ficará esclarecido. Serão necessários novos afrontamentos, até à derrota militar dos radicais em 25 de Novembro, seguida de saneamentos militares e civis, para que se estabeleça uma nova relação de poderes. Da parte de alguns, o desejo de desforra, política ou física, é evidente. Continuam a cometer-se atentados contra as sedes do PC e, na direita, há quem proponha a ilegalização dos comunistas. O PPD só exige a sua saída do Governo. O PS e os militares moderados, mas de esquerda, exigem a sua permanência. Um ministro comunista ficará no Governo. No Alentejo, os comunistas passam à defensiva. A agitação prossegue, há conflitos um pouco por todo o lado, mas a iniciativa pertence agora aos simpatizantes do PS, do PPD e da direita. Todos se sentem agora livres de defender os seus pontos de vista e os seus interesses, o que fazem por vezes com vivacidade. Em Janeiro de 1976 efectuam-se difíceis negociações entre o PS, o PPD e o PC, sob a égide do presidente da República. Chega-se a um acordo sobre a questão agrária que adia os principais problemas, mas que define um consenso relativo sobre alguns temas urgentes177. As consequências são significativas. Os agricultores e os proprietários diminuem a sua pressão. Os incidentes

violentos são agora raros. As ocupações de terras, em queda acelerada desde Dezembro, cessam. Algumas centenas de seareiros vêem os seus problemas resolvidos ao ser-lhes entregue terra para as culturas de Primavera. A plataforma interpartidária sobre a reforma agrária previa com efeito que se fizessem esforços para instalar agricultores sem terra. Outras cláusulas importantes eram: a demarcação da Zona de Intervenção da Reforma Agrária; a devolução de terras indevidamente ocupadas178; a concessão de reservas aos antigos proprietários e também aos antigos rendeiros. No Ministério da Agricultura tentam agora corrigir-se erros, excessos e abusos. Deste acordo, uma conclusão será retirada: os princípios da reforma agrária não foram contestados, mas tão-só alguns dos seus mecanismos, dos métodos seguidos ou dos desvios praticados. As leis de 1975 mantêm-se em vigor. O essencial foi, uma vez mais, adiado179. Neste primeiro trimestre de 1976, o importante são as eleições legislativas. Realizam-se a 25 de Abril, semanas depois de se ter aprovado a Constituição. A campanha eleitoral volta a desenrolar-se sem grandes incidentes. O MDP desiste, o que favorece o PC. O CDS está mais activo, desde que tem liberdade de movimentos. O PS volta a ganhar, apesar de perder três pontos. Será ele a formar governo, como aliás era previsível. O PPD consolida o seu segundo lugar, enquanto o CDS se torna o terceiro partido, ultrapassando o PC. Este parece ganhar um ponto, mas de facto perde os três do MDP, que não recupera. Na ZIRA, o PC é agora o primeiro partido, enquanto o PS perde seis pontos. O PPD e o CDS progridem ambos, aumentando os seus votos quase 50%. Alguns resultados das eleições para a Assembleia Constituinte — 1976 PS

PPD

CDS

PC

Total

34,9

24,4

16,0

14,4

ZIRA

35,0

10,4

6,8

37,9

Beja

31,8

8,2

4,2

45,3

Castelo Branco*

40,2

21,1

18,0

6,9

Évora

30,3

9,2

8,0

44,3

Lisboa*

40,3

8,7

4,8

35,6

Portalegre

42,0

10,1

13,9

23,1

Santarém*

42,3

13,0

7,1

26,8

Setúbal

32,1

8,4

4,4

45,3

* Nestes distritos só estão incluídos os concelhos que fazem parte da ZIRA. Ver nota do quadro anterior.

Esta segunda eleição parece consagrar a estabilidade. Em números absolutos, na zona de reforma agrária, o PC perde 16 000 votos e o PS 78 000; o CDS e o PPD ganham cerca de 60 000. Isto num eleitorado de aproximadamente 900 000. Apesar da revolução e das circunstâncias diferentes das duas eleições, o eleitorado prefere a fidelidade. Já as eleições presidenciais, que se realizam dois meses depois, trazem novidades e surpresas. A vitória do general Ramalho Eanes era previsível, tendo embora obtido bem menos votos (61%) do que a soma dos três partidos que o apoiavam (76%). O primeiro-ministro cessante, o almirante Pinheiro de Azevedo, sozinho e doente, alcança os 14%. Octávio Pato, destacado dirigente do PC, fica em último lugar, com 7,5%, menos de metade do eleitorado comunista. A grande surpresa é o segundo lugar de Otelo Saraiva de Carvalho, uma das glórias da revolução de Abril, apoiado apenas por grupos esquerdistas, mas que obtém 16%. Na zona da reforma agrária, Ramalho Eanes chega sempre em primeiro, seguido de Otelo, com excepção de Setúbal, onde a ordem é inversa. Octávio Pato não consegue melhor, mesmo em pleno Alentejo, do que o

terceiro lugar. As conquistas e a derrota do Partido Comunista Em 1974 e 1975, o PC é o principal animador da reforma agrária e da política que lhe está ligada, tanto no poder central como «no terreno». A sua vitória é rápida e fácil, as suas conquistas são consideráveis. Mas a oposição que vai suscitar é generalizada e a sua derrota será igualmente rápida. Durante dois anos, o PC conseguiu orientar grande parte das transformações sociais, económicas e políticas, seja discretamente, através de aliados e influências, seja abertamente, de maneira autónoma e visível. Exerceu uma influência preponderante em várias realizações capitais, como sejam a descolonização e a nacionalização dos grupos e sectores económicos. Foi o primeiro responsável pela reforma agrária de 1975. O seu peso político e a sua eficácia, durante mais de um ano, não são proporcionais à sua dimensão eleitoral. Agindo através das instituições, civis ou militares, conseguiu amplificar a sua voz e a sua força. No Sul, a sua influência é imensa. Os sindicatos rurais e as unidades colectivas são simplesmente a sua obra, as suas criaturas. O seu papel é preponderante nas autarquias, nos serviços do Ministério da Agricultura, nalgumas unidades militares, nos governos civis e mesmo, até 1976, nas ligas de pequenos agricultores. Tem ainda influência, embora menor, nos grémios, nas cooperativas de serviços e nas empresas intervencionadas. Toda esta construção foi rápida, tanto quanto veio a ser a queda. Apesar de regionalmente poderoso, a fraqueza nacional do PC, depois de um período de grande influência sobre as forças armadas, cedo se tornará evidente. Por isso mesmo, necessitou de uma grande audácia militante, de uma estratégia bem definida (ou pelo menos mais

determinada do que definida), da ausência de adversário à altura e da protecção cúmplice das forças armadas para que a sua força nacionalmente bem minoritária leve a melhor. Em vésperas da revolução, a sua organização está praticamente ausente da região. Um antigo funcionário, dos tempos da clandestinidade, declara: «Desde o meio da década de 1960 que o Alentejo deixou de ser o grande bastião do PC e se transformou num deserto.»180 Com efeito, a partir dessa época, após uma presença tradicional e significativa, a organização do partido é praticamente liquidada. As causas são a guerra colonial, a emigração, o êxodo rural, a mecanização da agricultura e o emprego crescente de alentejanos na construção civil e nas novas indústrias criadas pela expansão económica dos anos 60. De todos estes fenómenos resultaram a diminuição da pressão da força de trabalho, a partida de muitos trabalhadores para outras regiões, a redução do desemprego e do subemprego e o aumento geral dos salários. Em 1974, o partido não tem força nem organização no Alentejo181. Os seus militantes e simpatizantes mais activos envelheceram, emigraram para as cidades ou para o estrangeiro. Entretanto, um novo tipo de empresas agrícolas e agro-industriais vinha aparecendo, onde os assalariados eram mais bem pagos e mais bem tratados do que nos tradicionais latifúndios. As lutas rurais tinham tendência a desaparecer. Nos anos que precedem 1974, só muito esporadicamente é que o Avante! publica notícias do Alentejo. O jornal comunista especializado, O Camponês, quase não se publica. Em 1974, a organização do partido é composta essencialmente por velhos militantes, localmente bem conhecidos e tendo passado várias vezes pela prisão, mas pouco activos. Uns são comerciantes, outros reformados. Durante as primeiras semanas que se seguem ao 25 de

Abril, o PC tem algumas dificuldades em aparecer publicamente de modo autónomo. A sua tendência é para se apresentar flanqueado por outros partidos. É uma medida de defesa e precaução, antes de ter mais esclarecimentos sobre as intenções militares, mas trata-se também da necessidade de ganhar algum tempo para «acordar» a organização e trazer para o Alentejo militantes das zonas urbanas e industriais, antigos assalariados rurais agora na construção e até antigos emigrantes. A abertura de centros de trabalho na região vai seguir um ritmo mais lento do que nas áreas industriais e urbanas. A ascensão do PC no Alentejo não se deve a uma prévia organização forte, mas sim a uma perene memória colectiva e a um indiscutível trunfo: a ausência de outros partidos. Em termos nacionais, a sua implantação situa-se historicamente num ponto fraco, mas a sua organização, realidade bem diferente, mantém-se a única experiente, a mais antiga e a mais rodada. Tem apoios externos, nomeadamente materiais, que lhe permitem encarar com à-vontade as primeiras tarefas. Tem umas poucas dezenas de funcionários com experiência e fidelidade; uma ideologia tipificada, que não é preciso improvisar; um programa conhecido, capaz de influenciar os militares de esquerda; e um número razoável de antigos militantes e simpatizantes cujas memória e disponibilidade podem ser estimuladas em momentos gloriosos. A sua estratégia, fiel a uma parte do legado leninista, revelou-se adequada durante o primeiro período: democrática à partida, vai evoluindo para o socialismo e depois para o comunismo, tornando-se revolucionária à medida que o partido vai acedendo ao poder e vai conquistando posições importantes no Estado e nas forças armadas. Mais do que o movimento de massas, é a ascensão no poder institucional e militar que radicaliza a sua estratégia.

Este processo foi-lhe facilitado pela fraqueza inicial dos seus adversários e também por se ter apresentado, com algum sucesso, como o herdeiro do antifascismo. Única organização que durou tanto quanto a ditadura, tem pergaminhos indiscutíveis. Sublinha constantemente o facto de ter, entre as suas fileiras, as principais vítimas da repressão (mortos, presos, torturados), provando, tantas vezes quantas forem necessárias, que é «o mais antigo», «o mais consequente» e «o único partido organizado durante mais de 40 anos». Com o seu aparelho de funcionários e alguma experiência «unitária», vai poder dedicar-se, muito antes de todos os outros, às organizações socioprofissionais e unitárias ou sectoriais, que aliás cria: sindicatos e Intersindical, o MDP, o Movimento Democrático das Mulheres, as ligas de pequenos agricultores, o Conselho para a Paz e outras associações. Não se trata de táctica original: é, pelo contrário, a mais ortodoxa das tradições comunistas. Acontece que foi posta em prática de maneira oportuna e particularmente hábil; que durante muitos meses não teve rival; e que teve, nos militares, um aliado excepcional. Em vários domínios soube suscitar apoios populares consideráveis, para além da mobilização de classe. Foi o que aconteceu muito em especial com a reforma agrária, para a qual conseguiu recrutar apoios individuais e colectivos, organizados ou espontâneos, nas mais variadas camadas sociais, nomeadamente nas classes médias urbanas e com especial relevo na comunicação social. No seu trabalho político age por etapas, mais atento à estratégia do que aos programas complexos e exaustivos. Vai ao encontro das necessidades sentidas, para depois ir criando e desenvolvendo novas aspirações. Primeiro, os contratos colectivos de trabalho, logo seguidos da penalização dos proprietários que mantinham terras incultas ou subaproveitadas. Depois, a luta contra o

desemprego e a garantia de emprego, precedendo a distribuição forçada de trabalhadores pelas herdades. Finalmente, a expropriação das terras e das empresas, incluindo gados e equipamentos, qualquer que seja o estado de aproveitamento. Uma boa parte dos assalariados rurais da região seguem ou exprimem o conteúdo destas lutas e identificam-se com o PC. Este não se limita obviamente às palavras de ordem: assegura a sua realização prática, apoia e orienta as ocupações (chegando mesmo a planeá-las regionalmente), organiza as unidades colectivas e garante o salário dos seus membros. Mas, acima de tudo, a primeira condição para o seu sucesso é a sua aliança com o MFA. A palavra de ordem comunista «aliança Povo-MFA» foi retomada pelos militares, pelo Governo e até pelos socialistas. O espírito «unitário» e a despolitização semântica permitiram uma razoável intimidade entre o PC e o MFA. Este último, no comando das forças armadas, garantiu o controlo sobre a força e a repressão, nos momentos de maior radicalismo do poder político. O principal interesse comum ao MFA e ao PC, a descolonização, deu lugar a uma intensa colaboração, complexa e arriscada, que, depois de criada confiança entre os dois parceiros, se alargou à política interna. «Aprofundar a revolução» antes das eleições e da institucionalização da democracia representativa foi outro ponto de acordo entre as estratégias comunista e militar que conduziu ao adiamento do regime constitucional e ao prolongamento do poder provisório. O destino reservado ao «Programa de política social e económica» («programa Melo Antunes») é uma boa ilustração dos esforços despendidos contra a estabilidade e contra uma relativa fixação das relações de força. Este plano propunha-se criar um certo consenso sobre as políticas imediatas, incluindo mesmo algumas orientações

moderadas para o futuro. Aprovado em Janeiro, foi imediatamente criticado pelo MFA nas suas publicações, assim como pelo PC, apesar de ambos lhe terem dado apoio. Esquecido pelo Governo, afastado pelos militares, é pura e simplesmente varrido da cena pelos acontecimentos de Março. Este episódio interessa particularmente à questão agrária. Com efeito, no programa estava presente pela primeira vez uma concepção de reforma agrária, embora numa versão politicamente mais equilibrada. Ora, a aceleração revolucionária que se segue ao 11 de Março tem muito especial impacte na agricultura: o secretário de Estado é despedido, é criado um Ministério e nomeado alguém de muito mais à esquerda; é aprovado um programa de transição para o socialismo, do qual faz parte um programa de reforma agrária bem mais radical do que o anterior e coincidente com as teses comunistas sobre o sector182. Dois meses mais tarde, quando se aprontam as leis de expropriação e de nacionalização, novamente o PC se preocupa com o grau de institucionalização da política agrária183. Ao primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, os comunistas expõem clara e confidencialmente o seu ponto de vista: «É de toda a justiça que não haja compromissos com as classes exploradoras a propósito das colheitas e das indemnizações; e sobretudo que não se traduzam esses compromissos em leis.»184 A experiência política dos comunistas é-lhes muitíssimo útil. Experiência organizativa e ideológica; experiência portuguesa, mas também experiência alheia, de outros partidos comunistas, de outros tempos e outras latitudes. Perante grupos sem organização, sem teoria de partido, sem experiência colectiva e com uma doutrina nascente e balbuciante, a sua superioridade é flagrante. No PC, os passos iniciais parecem traduzir na prática uma teoria geral das tarefas e das etapas da revolução: é a velha ideia leninista da transformação da luta democrática em

luta socialista, acompanhada pela mutação progressiva das alianças democráticas em movimento dirigido pelas vanguardas comunistas. O secretário-geral dos comunistas não escondeu nunca a sua fidelidade leninista e nunca deixou de exprimir a sua ortodoxia: «A conquista do poder só será possível se o Estado fascista começar a ser destruído antes da conquista do poder, no decurso da revolução democrática.»185 Não é certamente junto das massas que estes factores revelam toda a sua eficácia. Com efeito, o PC chegou mesmo, a partir de certo momento, a mostrar uma real incapacidade para ultrapassar níveis relativamente baixos de adesão e de eleitorado. É junto dos quadros políticos, dos responsáveis militantes e sindicalistas que tais factores se mostraram convincentes. E sobretudo junto dos militares. Estes não tinham a preparação política nem a formação cultural suficientes, mas tinham a responsabilidade do poder; tinham um mandato, sem a capacidade técnica de o cumprir. A doutrina, a técnica e a experiência dos comunistas, simples, dogmáticas e sistematizadas, foram os primeiros instrumentos postos ao seu alcance. A criatividade teórica do PC é inexistente ou pobre, mas a sua habilidade táctica, a sua capacidade de adaptação e a percepção das relações de força valeram-lhe inegáveis sucessos. Com grande sentido da oportunidade, tira partido da fraqueza política e orgânica das classes patronais e proprietárias, tornadas órfãs sem o Estado de Salazar. Aproveita a inexistência de uma classe média rural. Adapta-se bem ao baixo nível de instrução e de formação da população em geral. Compreende rapidamente que os primeiros meses de poder provisório são decisivos e que importava não dar tempo aos outros partidos e grupos para se organizarem. No caso particular da reforma agrária, o PC aproveitou bem as cumplicidades e a cobertura dos outros partidos,

em especial do PS. Nunca quis a sua colaboração efectiva e partidária (até porque com isso poderia reforçar o partido rival), mas serviu-se sempre da sua caução, enquanto o não denunciou como partido não empenhado na revolução. De uma maneira geral, o PC contou com uma vaga de adesões à ideia da reforma agrária e da sua necessidade. O PPD colaborou, assinou os decretos e votou os artigos da Constituição. O CDS pareceu menos generoso, mas votou, apesar de tudo, a maioria dos parágrafos constitucionais. O PS não só apoiou como esteve frequentemente na primeira linha. Pelo seu lado, o PC acreditava na reforma agrária em geral (o que nem sempre é o caso dos outros partidos) e naquela em particular. Durante um tempo, conseguiu fazer coincidir este seu plano com o ambiente geral. No início de 1975, com raras excepções individuais, quase ninguém ousa exprimir-se contra o princípio da reforma agrária, nem sequer os proprietários186. A isto deve acrescentar-se a inexistência de projectos alternativos de reforma ou de reorganização da agricultura, sejam eles capitalistas, cooperativos ou socialistas. Ao PC, que tem um plano, meios e poder, só lhe resta impedir que os outros tenham tempo de também os ter. Também é verdade que o projecto agrário do PC não foi sempre o mesmo. Há décadas que reclama a reforma agrária, mas não o fez sempre nos mesmos termos187. Nos anos 50, o partido preconizava a distribuição das terras expropriadas em explorações familiares. Na década seguinte, a divisão das terras mantinha-se como o objectivo principal, com vista «à exploração individual ou em cooperativa», mas outra modalidade era encarada, a da «exploração directa pelo Estado»188. Ora, desde 1975, o partido apenas defende e aplica as soluções do colectivismo de Estado, excluindo todas as variantes individuais, familiares e camponesas. Mais ainda, colabora na ocupação de explorações de pequenos agricultores, ou apoia as unidades colectivas na sua recusa de continuar a

permitir que seareiros tenham terras nas herdades ocupadas. O modelo da UCP, espécie de kolkhoz corrigido pela prática salarial do sovkhoz, impõe-se. Houve assim mudança quanto ao destino das terras e ao seu uso social. Mas houve fidelidade quanto à ideia essencial: a da expropriação dos latifúndios e das empresas capitalistas. Aproveitando bem as oportunidades, tendo em conta as características próprias do proletariado alentejano, o partido deu finalmente a prioridade, ou, antes, a exclusividade, ao colectivismo, modelo mais aceitável ideologicamente, mais próximo da experiência soviética de que o partido se reclama frequentemente189. Esta adaptação programática é um bom exemplo do carácter empirista da estratégia dos comunistas que concede um importante lugar à noção de etapas ou de fases, no decurso das quais vão corrigindo ou rectificando. Com uma constante: os fins últimos, os princípios fundamentais, os objectivos, não são alteráveis, enquanto os meios e os caminhos podem variar. A cada passo, vão o mais longe possível, vão até onde podem ir, até onde os deixam ir. O importante é a relação de forças, sempre mutável em teoria. Eis porque é útil impedir que as relações de poder se fixem, que as instituições estabilizem. Eis porque era indispensável prolongar e aprofundar a crise política e o vazio de poder que sucedem ao golpe de Estado, a fim de tomarem os contornos de crise social e económica. Crise geral, multiplicação dos centros de decisão e aparente vazio de poder: eis as condições favoráveis para a conquista de poder e de poderes e de posições nas instituições. Para isso, usando apenas de legitimidade revolucionária, dispensado da legalidade democrática, o PC está mais bem preparado do que qualquer outro. Estando os fins últimos definidos, a estratégia é mais importante do que os programas e do que os objectivos

intermédios. São os sucessos estratégicos que definem os objectivos seguintes. Por exemplo, as unidades colectivas de produção não são, de início, objectivos que seja preciso atingir a qualquer preço. Foram antes as vitórias estratégicas, fáceis e generalizadas, que as tornaram possíveis. Tal como a aliança com os militares, prudentemente esboçada no começo, abertamente praticada e propagandeada depois. É provável que os dirigentes do PC não tenham, à partida, imaginado tanto sucesso. Mas a facilidade das conquistas acelerou o ritmo e alargou o âmbito. Toda a estratégia tem um fim último e todo o partido político tem uma questão a considerar, acima de todas: o poder. Assumidamente ou não, é a sua razão de ser. Um partido comunista tem, além disso, uma vocação totalizante que constitui o seu principal carácter. Será a vocação que explica a estratégia? Saber se, a cada momento, nesse momento, o partido pretende todo o poder ou somente partilhá-lo, é pelo menos uma questão especulativa. Na prática, é indiferente que a resposta seja negativa ou positiva. O objectivo final é todo o poder, para sempre, tendo como parâmetro a identificação entre partido e Estado, tal como está claramente explícito em toda a literatura partidária e na teoria. O PC não quer exercer o poder, quer conquistá-lo. Em consequência, a cada momento, mesmo se os objectivos são limitados e graduais, a mobilização ideológica e a orientação da acção fazem-se sob o signo da totalidade, da missão histórica e da sua inevitabilidade. Querendo todo o poder, o PC quer também os poderes. Ao conquistar poderes, o PC constrói o poder. A reforma agrária é uma conquista e uma transformação que só toma o seu verdadeiro sentido quando os seus autores exercerem o poder. Se o perderem, todas as conquistas correrão perigo. Inversamente, a preservação das conquistas permitirá voltar à carga. Há todavia uma característica do comportamento do PC

(e dos militares) que merece atenção e permite pensar que, na prática e nos seus cálculos imediatos, o partido não procura todo o poder imediatamente, ou pelo menos não julga que tal seja possível. Com efeito, apesar das tentações, não exerce terror revolucionário: raptos, reféns, prisões maciças, execuções e outros actos indispensáveis à revolução. A intimidação não falta: prisões nocturnas, mandados de captura assinados em branco, buscas a domicílio, etc. No entanto, a fronteira do terror apenas foi aflorada ou ligeiramente ultrapassada190. Apesar da violência esporádica, a intimidação não degenerou em terror. Viveu-se um tempo de despotismo legal191. Aliás, historicamente, os movimentos sociais tomam raramente a iniciativa de operações violentas. Estas surgem, em geral, como reacção contra a força organizada das polícias, dos militares ou do aparelho de Estado, qualquer que seja a sua ideologia. Ora, em 1975, as polícias estão neutralizadas e desarmadas, enquanto as forças militares estão passivas ou do lado dos revolucionários, factos que talvez tenham contribuído para evitar a violência. Por outro lado, a conquista do poder absoluto teria igualmente implicado a demonstração dos meios adequados e a realização das operações técnicas típicas e necessárias aos golpes de Estado: são, além da desordem, o controlo e o domínio dos pontos estratégicos das sociedades modernas, tais como as centrais eléctricas, os caminhos-de-ferro, os portos, os telefones, os arsenais e depósitos de munições, os nós rodoviários, etc. Houve aproximações e tentativas foram feitas que pareciam ensaios, mas a mecânica geral não foi desencadeada, nem sequer no 25 de Novembro de 1975 (altura em que, aliás, as dificuldades surgidas entre o PC e largos sectores esquerdistas do MFA tornavam improvável o golpe, ou pelo menos de resultados muito duvidosos). Espera, fraqueza ou cálculo? Interrogar a história, neste caso, não leva

muito longe. De todas as maneiras, múltiplos objectivos intermediários foram atingidos, vários poderes foram conquistados. Entre aqueles e estes, muitos de primeira importância, como por exemplo a descolonização. Interessado no fim último, o PC não deixa de estar interessado nos meios e nos objectivos intermédios. A revolução é o seu interesse, mas a democracia é-lhe útil, mesmo indispensável à sua acção. Eis porque em vários momentos mostrou ter um pé na insurreição, outro na legalidade. Eis porque, a 25 de Novembro, saiu a tempo de um caminho perigoso e foi poupado. Eis, finalmente, porque, tendo perdido nesse dia, se mantém no Governo até à aprovação da Constituição. Com efeito, a sua derrota foi apenas parcial. Que perdeu o PC? O predomínio no poder político, no Governo e na administração; a sua posição de interlocutor privilegiado das forças armadas e de aliado do MFA; a sua capacidade de orientar tanto a política geral como um bom número de acções particulares. Perdendo o seu acesso ao poder central, perdeu a sua posição determinante em muitos sectores e regiões. As suas políticas foram postas em causa, nomeadamente a intervenção do Estado, a pressão sobre as empresas privadas, a expropriação dos meios de produção, a promoção de um sindicato único e a estatização da comunicação social. Muitos dos seus militantes, colocados oportunamente em instituições, organismos e serviços públicos, são substituídos ou apenas manterão posições subalternas. Que conservou o PC? As suas estruturas partidárias, organizadas e desenvolvidas como nunca antes na sua história. A sua influência sobre um certo número de organizações que criou, especialmente no mundo sindical. Um eleitorado oscilando entre 14% e 20%. Notáveis posições em várias dezenas de autarquias do Alentejo e da cintura industrial de Lisboa. Algumas disposições

constitucionais relativas à organização social e económica, como as nacionalizações e a reforma agrária. Sobretudo a reforma agrária. Neste caso, com efeito, a sua influência exerce-se directamente, por intermédio dos seus sindicatos e das suas unidades colectivas de produção, não através do Estado. Em 1976, isto representava um importante património de cerca de 1 milhão de hectares, uma significativa produção de bens, interessantes recursos e úteis empregos192. O espólio não é magro. Todavia, comparado com a capacidade geral que o PC teve antes de determinar a marcha dos acontecimentos, as perdas são imensas. Tanto mais que, reduzido a um eleitorado relativamente fraco e por todos remetido à oposição, não interessa aos restantes partidos para uma eventual aliança. Os seus adversários vão tentar, uns, restaurar a ordem anterior; outros, reformar e reconverter as suas conquistas; outros, ainda, passar por cima, fazer novo. Neste contexto, o PC fica na defensiva. A defesa da Constituição e do statu quo será, a partir de 1976, a sua prioridade. Que acontecimentos, que forças superiores, travaram a revolução em tão pouco tempo e com a mesma relativa facilidade com que tinha sido feita? O isolamento do PC e do MFA é uma primeira explicação. Gradualmente começaram a ameaçar, em vez de convencer, dividiam em vez de unir. Em vez de alargar, reduziam a base de apoio, de que resultava uma típica «fuga» para a frente, no verbo e na acção. Estreitavam-se as vias da revolução e limitavam-se às da revolução socialista e da ideologia proletária. A vontade de evitar os equilíbrios sociais e de impor o modelo colectivista criava cada vez mais inimigos. O exercício do poder conduzia inevitavelmente a uma limitação sensível das liberdades, talvez mesmo à sua abolição, isto num país que tinha vivido mais de quatro décadas em regime autocrático. Havia de novo presos políticos, as liberdades de expressão e de associação já

não estavam inteiramente garantidas. A partir de certa altura, já não eram só capitalistas e proprietários que viam comprometidos os seus interesses e as suas crenças, eram também trabalhadores, camponeses, técnicos e em geral as classes médias. Os que perderiam com a revolução tornavam-se mais numerosos do que os que poderiam ganhar algo. Passado o período de intimidação e receio, a adesão aos partidos não comunistas, em particular ao PS, crescia dia após dia. A luta pelas liberdades foi o primeiro obstáculo contra a revolução e o principal responsável pela queda do PC e do MFA. O PS tomou a cabeça da luta anti-revolucionária, sob o signo da defesa das liberdades, mas outros grupos se associaram, provenientes de todas as classes e de todas as regiões. Os camponeses do Norte e do Centro sentiram bem que não se tratava só, ou já não se tratava, de uma luta entre ricos e pobres: também as suas terras e a sua segurança (bem relativa, mas talvez superior à incerteza) corriam perigo. Os meios religiosos, de início passivos ou silenciosos, movimentaram-se e contribuíram certamente para a mobilização das energias anti-revolucionárias193. Sobre a reforma agrária, em particular, exprimiu-se a Igreja com firmeza, considerando as ocupações «selvagens» e «à margem da lei», ao «serviço da especulação partidária»194. Quase todos os partidos políticos, incluindo o PS (o maior partido da esquerda…), lutaram contra esta revolução. No combate encontravam-se trabalhadores e agricultores em grande número, o que lhe conferia carácter popular e nacional. As eleições de 1975 foram alfaias para o PC e para o MFA: todos se contaram e os que eram contra aquela revolução ultrapassavam os 80%. É verdade que os revolucionários são geralmente minoritários e que, se não podem evitar a prova das urnas, não será isso que os fará desviar do seu caminho. Mas aqui a diferença era excessiva. Mesmo entre os trabalhadores alentejanos,

múltiplos conflitos e peripécias revelavam o crescimento de divergências e o desenvolvimento da oposição. Camponeses que ficaram sem terra, pois tinham sido ocupados ou impedidos de fazer searas nas UCP; trabalhadores que, por razões diversas, preferiam o emprego nas empresas privadas; trabalhadores que, depois de terem aderido, quiseram ou foram forçados a abandonar as UCP: também os assalariados abriam uma frente contra a reforma agrária do PC. A ruptura com os pequenos agricultores alentejanos, proprietários, rendeiros, seareiros e mesmo alugadores de máquinas foi um dos principais falhanços do PC que se virou contra ele próprio. Ameaçados, banidos e sem ter recebido reais benefícios, aqueles que a princípio tinham aderido ao movimento de reforma agrária separaram-se ruidosamente. Constituíram a primeira massa humana que se opôs à reforma agrária e que se revoltou. Com os seus iguais do Norte e do Centro, formaram a base social sobre a qual a CAP cresceu e a partir da qual animou grandes movimentos de massas. Foram eles um dos mais importantes factores de legitimação dos argumentos dos proprietários. A ruptura com os militares moderados, incluindo de esquerda democrática, e o regresso à cena política e nacional do «exército» regular, contra a noção revolucionária de «movimento», foram outros factores singulares decisivos. Depois das eleições de 1975 e sobretudo desde o Verão, o renascimento das forças armadas vinha prosseguindo mais ou menos secretamente. A vitória do 25 de Novembro, fácil do ponto de vista militar, apesar das dificuldades políticas, marcou o momento em que as forças armadas levaram a melhor sobre o MFA. Esta reviravolta militar, apoiada pelo PS, pelo PPD e por outros grupos, foi essencialmente inspirada por razões políticas de ordem geral, a começar pela questão das

liberdades. A reforma agrária não foi seguramente o seu primeiro fundamento. Mas os contactos entre socialistas, oficiais, «populares democráticos» e agricultores eram estreitos e frequentes. Aliás, o 25 de Novembro começou a 24, em Rio Maior e noutras localidades rurais, nas barragens de estrada organizadas por agricultores. 134 Cf. António Barreto e Maria Paula Vidal, Os Partidos Políticos e a Reforma Agrária, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1980. 135 Existiam outros pequenos grupos, antes de 1974, mas não prosseguiram actividades com os mesmos nomes ou dirigentes. 136 Até o Partido Popular Monárquico «se integra no MDP e apoia sem reservas o Programa do Movimento das Forças Armadas», in O Sorraia, 22/6/1974. 137 Os partidos mantêm algum segredo e um certo mistério relativamente ao número de militantes. Como alguns dados divulgados são frequentemente fantasistas, mesmo os valores aqui referidos devem ser olhados com cuidado. Durante a campanha eleitoral de 1976, tanto o PS como o PC reivindicavam, cada um, mais de 100 000 militantes inscritos; o PPD, um pouco menos. 138 O maior número de informações públicas e disponíveis diz respeito ao PC. Este partido publicou regularmente, nos seus órgãos de imprensa, dados e notícias sobre a abertura de sedes e «centros de trabalho». Os outros partidos, além de serem de natureza diferente, abriram menos sedes e informaram menos sobre estes aspectos da organização. 139 Por exemplo em Beja, Moura, Alter do Chão, Évora e Serpa. Cf. Diário do Alentejo de 7/5/1974 a 30/5/1974. 140 Beja (1/6/1974), Arraiolos (7/6/1974), Portel (12/6/1974), Cuba (20/6/1974), Alvalade do Sado (29/6/1974), Alandroal (2/7/1974), Aljustrel (12/7/1974), Castro Verde (12/7/1974), Montargil (21/8/1974) e muitas outras. Cf. Diário do Alentejo nas datas referidas. 141 Montemor, Évora, Santarém, Elvas, Portalegre e Setúbal. Cf. Teresa Almada, Diário da Reforma Agrária, Lisboa, 1984. 142 Estes 126 estão assim distribuídos: Beja, 23; Castelo Branco, 2; Évora, 32; Faro, 7; Lisboa, 4 (somente em zonas rurais); Portalegre, 15; Santarém, 10; Setúbal, 33 (incluindo as sedes urbanas). Acrescentaram-se as sedes distritais. Fontes: O Militante, Avante! e Diário do Alentejo. 143 Beja, 30; Castelo Branco, 10; Évora, 9; Lisboa, 9; Portalegre, 10; Santarém,

11; Setúbal, 29 (incluindo as sedes urbanas). Cf. as fontes da nota anterior. 144 O Militante, Setembro e Novembro de 1975. 145 Cf. Relatório do Comité Central ao VIII Congresso, Lisboa, 1977. 146 Diário do Alentejo, 1/7/1974 e 2/7/1974; O Povo Livre, 20/8/1974 e 3/9/1974; O Sorraia, 13/7/1974; e Diário do Sul, 23/10/1974. 147 Diário do Alentejo, 8/6/1974 e 22/7/1974; Diário do Sul, 8/1/1975; e O Sorraia, 12/8/1974. 148 Diário do Alentejo, 22/5/1974, 6/6/1974 e 15/6/1974; Diário do Sul e Diário do Alentejo dos meses de Julho a Setembro de 1974. Realizam-se reuniões do PS nomeadamente em Aljustrel (6/8/1974), Beja (8/8/1974), Aldeia Nova de São Bento (9/8/1974), Moura (20/8/1974), Ourique (21/8/1974), Alvito e Beja (20/8/1974), Serpa e Moura (27/8/1974), Setúbal, Nisa e Monforte, em Setembro. 149 Beja, Coruche e Alcácer do Sal, em Julho; Serpa, Castro Verde e Ourique, em Agosto; Montemor, em Setembro; Castelo de Vide e Grândola, em Outubro; Évora, Montemor e Beja, em Novembro; etc. Cf. Diário do Alentejo, O Sorraia, Jornal de Alcácer e Diário do Sul. 150 Conferências de camponeses ou conferências de pequenos e médios agricultores, ou encontros de trabalhadores agrícolas e camponeses, etc. Houve exemplos em Santarém (5/1/1975), Castelo Branco (26/1/1975), Portalegre (26/2/1975), Beja, Évora, etc. Cf. T. Almada, Diário […], op. cit. 151 A expressão «técnica do salame» e a referência aos métodos seguidos pelos PC nas democracias populares no após-guerra eram correntes e faziam parte dos debates públicos. Tinha-se assistido sucessivamente à eliminação de partidos de direita (Partido Liberal e Partido do Progresso), à proibição de uma candidatura às eleições de 1975 (Partido da Democracia Cristã), à marginalização de um partido (Centro Democrático e Social) e à tentativa de afastamento do PPD do Governo, que o PS conseguiu evitar, pois não queria ser «o próximo». 152 Por exemplo em Évora (30/7/1974), em Alcácer do Sal (2/8/1974), em Beja (30/9/1974) e em Elvas (princípio de Outubro). Cf. Diário do Alentejo, Diário do Sul e Jornal de Alcácer. 153 Em Alcácer do Sal (16/11/1974), em Coruche (5/10/1974), etc. Cf. Jornal de Alcácer e O Sorraia. 154 Em Beja (Diário do Alentejo, 11/7/1974), em Torres Novas (Diário do Sul, 22/9/1974), no Barreiro (Outubro de 1974), em Évora (Março de 1975), etc. Cf. Diário do Alentejo e Diário Popular, 27/10/1974.

155 Em Évora, Pias, Grândola, Fronteira, Moura, Sobral da Adiça, etc. Cf. Diário do Alentejo, de 13/3/1975 a 1/4/1975. 156 A participação do PPD nas manifestações do após-11 de Março é tanto mais significativa quanto o PC exige a sua exclusão do Governo. 157 Em Alcácer do Sal (16/11/1974), Évora (Março de 1975), etc. 158 Diário do Alentejo, 16/7/1975. 159 Cf. Diário de Notícias e A Capital de 7/7/1975 a 10/7/1975. 160 Ver uma longa lista de atentados in T. Almada, Diário […], op cit. 161 Ver o Capítulo IV. 162 Cf. A. Cunhal, Rumo […], op. cit., e Relatório […], op. cit.; PCP, Programa do Partido Comunista Português, Edições Avante, Lisboa, 1974; e sobretudo José Pacheco Pereira, Conflitos Sociais nos Campos do Sul de Portugal, Lisboa, 1983. 163 Cf. Programa do Partido Socialista Português e Declaração de Princípios, 1973. 164 Salvo menção em contrário, as citações referem-se às publicações oficiais dos partidos e aos seus «projectos de Constituição» publicados no Diário da Assembleia Constituinte. 165 Afirmações do secretário-geral em campanha eleitoral, in Avante!, 16/3/1976. 166 O texto declara nomeadamente que «a reforma agrária é um dos instrumentos fundamentais da construção da sociedade socialista». O artigo 97.º define: «1. A transferência da posse útil da terra e dos meios de produção directamente utilizados na sua exploração para aqueles que a trabalham será obtida através da expropriação dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas. 2. As propriedades expropriadas serão entregues, para exploração, a pequenos agricultores, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores ou a outras unidades de exploração colectiva por trabalhadores.» 167 Entre os artigos da Constituição que têm uma influência geral sobre a orientação da reforma agrária, podem citar-se: um dos objectivos do Estado é o de «assegurar a transição para o socialismo mediante a criação das condições do exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras» (artigo 2.º); uma das tarefas fundamentais do Estado consiste na «socialização dos meios de produção» (artigo 9.º). Segundo o artigo 10.º, «o desenvolvimento do processo revolucionário implica, no plano económico, a apropriação colectiva dos principais meios de produção». Os fundamentos da organização social e económica estão resumidos no artigo 80.º: «A organização económico-social da

República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção socialistas, mediante a apropriação colectiva dos meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e no exercício do poder democrático das classes trabalhadoras.» 168 Ver os textos oficiais do Diário da Assembleia Constituinte, assim como os documentos diariamente distribuídos aos deputados e que relatavam os trabalhos de véspera e os artigos aprovados. A comparação entre os textos de Novembro de 1975 e os de Março de 1976 revela a metamorfose. 169 O «Programa do MFA» refere as eleições nos seguintes termos: as medidas de dissolução dos órgãos da soberania serão «acompanhadas do anúncio público da convocação, no prazo de 12 meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita pelo sufrágio universal, directo e secreto […]». 170 Todos os dados eleitorais são extraídos de Maria João Costa Macedo, Resultados das Eleições na ZIRA, Lisboa, 1980. 171 Nas legislativas de 1976, o MDP desiste de se apresentar. Nas autárquicas do mesmo ano, MDP e PC fazem uma frente eleitoral (Frente Eleitoral Povo Unido, FEPU). 172 Este cálculo só pode ser feito para os distritos inteiramente integrados na ZIRA. 173 A composição da Assembleia foi a seguinte: PS, 116 mandatos; PPD, 81; PC, 30; CDS, 16; MDP, 5; UDP, 1. 174 Discurso de A. Cunhal, em Montemor-o-Novo, em Junho de 1975. 175 O Primeiro de Janeiro, 19/1/1975. 176 A propósito do «Verão quente», ver os Capítulos IV e V. 177 «Princípios fundamentais a respeitar na prossecução da reforma agrária na zona de intervenção», aprovado em Janeiro de 1976. 178 Rigorosamente, e segundo a lei, não há «boas» e «más» ocupações, «legais» ou «selvagens». Todas seriam à margem da lei. Na prática, os regulamentos legais e os serviços do Ministério legalizavam a posteriori as terras ocupadas, considerando «boas ocupações» as que se verificassem em prédios cujas dimensões ultrapassassem os limites da lei. 179 O PS estava dividido sobre esta questão. O seu secretário-geral, Mário Soares, tinha ideias bem diferentes das do seu ministro. Afirmou, por exemplo, que «não houve verdadeira reforma agrária, mas somente ocupação de terras. […] Não é uma lei de reforma agrária, mas uma lei de colectivização de terras. […] As terras foram todas ocupadas independentemente da lei ou mesmo contra

a lei», in Comércio do Porto, 1/3/1976. 180 José Silva Marques, Relatos da Clandestinidade, Lisboa, 1977. 181 Cf. José Pacheco Pereira, Conflitos […], op. cit. 182 Decreto-Lei n.º 203-C/75, de 15 de Abril de 1975. 183 Decretos-Leis n.os 406-A/75, 406-B/75, 407-A/75, 407-B/75 e 407-C/75, de 29 e 30 de Julho. 184 Trata-se do memorando, já citado, dos quatro dirigentes do PC. 185 Cf. A. Cunhal, Rumo […], op. cit., particularmente os Capítulos 8 e 9, assim como a p. 101. 186 Entre as excepções, um caso notório é o de J. Pequito Rebelo, proprietário, escritor, político, militante integralista e de extrema-direita desde os anos 1930. Tinha escrito, há 40 anos, Os Desastres da Reforma Agrária, Lisboa, 1932; em 1975 e 1976 escreveu, entre outros, Boas e Más Reformas Agrárias, As Falsas Ideias Claras em Economia Agrária e A Soberania Soviética em Portugal. 187 Cf. J. P. Pereira, Conflitos […], op cit., assim como certas publicações clandestinas do PC: O Camponês, de 1947 a 1965; O Que É a Reforma Agrária?, 1955; Por Uma Agricultura Florescente! Por Uma Vida Desafogada nos Campos!, 1954; e A. Cunhal, Unidade, Garantia da Vitória, 1947. 188 Cf. A. Cunhal, A Questão […], op. cit. 189 Cf. o memorando dos dirigentes comunistas. São previstos três tipos de explorações agrícolas. As cooperativas seriam formadas por camponeses que já fossem proprietários mas que ainda não estivessem convencidos da superioridade dos sistemas colectivos; as explorações colectivas nas terras expropriadas e que correspondem às unidades colectivas efectivamente criadas; e, finalmente, as herdades de Estado, destinadas às melhores empresas e aos «trabalhadores de vanguarda». São os modelos em vigor na União Soviética e nas democracias populares. 190 Por exemplo, a seguir ao 25 de Novembro, descobriu-se que se torturava nas caves do regimento da Polícia Militar. No Alentejo, alguns proprietários e mesmo trabalhadores socialistas foram fechados em casas privadas e interrogados durante várias horas ou até dias, sob ameaça e intimidação. Ver ainda o Relatório sobre as Sevícias, Lisboa, 1976. 191 Nunca foram realmente criados os «tribunais populares», mais ou menos ad hoc, tão típicos das revoluções violentas. Nesse sentido algumas pressões foram exercidas, mas sem grande resultado, além de um ou outro incidente (como o «caso José Diogo»). O poder militar chegou a exprimir a ideia da criação de um

«tribunal revolucionário». Tudo começou com a discussão legal e um projecto de diploma foi elaborado por oficiais e juristas. A 7 de Abril de 1975, o «tribunal revolucionário» chegou a ser pública e oficialmente anunciado, mas não se foi mais longe. 192 Um pouco mais de 500 UCP empregavam nesta altura entre 50 000 e 70 000 trabalhadores permanentes e eventuais. Em 1982, o número de UCP era de cerca de 250, explorando uma superfície de mais ou menos 500 000 ha e empregando 10 000 assalariados permanentes e talvez outros tantos eventuais. 193 Paradela de Abreu, Do 25 de Abril ao 25 de Novembro, Lisboa, 1983. 194 Ver em particular a moção do clero da arquidiocese de Évora, Janeiro de 1976.

CAPÍTULO VIII DA REFORMA À REVOLUÇÃO

A questão agrária não está na génese da revolta militar nem da revolução política. Todavia, em 1974, são visíveis alguns sinais de mal-estar rural. Com efeito, o crescimento medíocre da produção agrícola, durante duas décadas, ou mesmo a estagnação, começa a criar problemas. A balança agrícola e alimentar tinha começado a perder os excedentes, os défices apareciam. A distribuição da propriedade mantinha-se desigual e inalterada. O minifúndio, em dois terços do território, constituía um real obstáculo ao desenvolvimento, ao mesmo tempo que não permitia uma melhoria do nível de vida das populações. No Sul, o latifúndio domina e constitui a base de uma acentuada bipolarização social. Apesar da modernização de umas quantas empresas agro-industriais e agrícolas, os medíocres níveis de produtividade e rendimento mantêmse. No entanto, nos anos 60, o crescimento industrial e a emigração tinham modificado o panorama rural. Partiram centenas de milhares de camponeses, o desemprego tinha diminuído e os salários aumentaram sensivelmente. Nos regadios, nas zonas do litoral e nas cinturas verdes das grandes metrópoles, uma nova agricultura intensiva crescia gradualmente. Mas a evolução é demasiado lenta. Não acompanha a expansão industrial nem o crescimento demográfico. Do ponto de vista social, apesar de progressos reais,

sobretudo relativos ao nível de emprego, os salários e as condições de vida dos assalariados rurais e dos pequenos agricultores continuam muito inferiores às médias urbanas e nacionais. Sem sindicatos, sem contratos colectivos de trabalho e sem regimes de protecção legal suficientes, os trabalhadores sofrem de real insegurança e de um bem precário estatuto social. Isto tudo, sublinhe-se, num país que começa a conhecer os efeitos da urbanização rápida e da abertura de horizontes causada pela emigração (e pelos modernos meios de comunicação), fenómenos que estão na origem do desenvolvimento das aspirações e do consumo. Por todas estas razões, as reformas impõem-se aos olhos de todos, ou de muitos. Para a oposição ao regime há ainda outras razões: os «latifundiários» e os grandes capitalistas da agricultura, sem serem o grupo social dominante, constituem todavia um dos pilares do corporativismo e da ditadura. Exercem real influência sobre o poder central. No plano local, o seu forte controlo social, ressentido como opressivo, baseia-se no monopólio da terra, dos recursos e do emprego. O conjunto da esquerda sempre considerou que, para mudar o regime, a reforma agrária era indispensável. O PC desde sempre, o PS desde a sua criação, em 1973, e todos os outros grupos de oposição fizeram da reforma agrária um capítulo significativo das suas proclamações e dos seus programas195. Depois do golpe de Estado, esta tradição produziu os seus efeitos. Nos partidos, nas instituições e na opinião pública, o ambiente geral é favorável à reforma da agricultura. Pelas boas e más razões. Uma certa má consciência urbana alimenta-se com a ignorância das realidades rurais e com um eventual sentimento de culpabilidade por causa dos «privilégios» das cidades. Há momentos em que as classes médias urbanas estão inteiramente disponíveis para a solidariedade com os

camponeses, «que fazem o nosso pão, mas que o crescimento marginaliza». Os anos de 1974 e 1975, em Portugal, terão sido um desses momentos. A propaganda a favor da reforma agrária encontra uma grande receptividade. Praticamente, todos os partidos aceitam a ideia. Até proprietários parecem dispostos a encarar a hipótese, pelo menos verbalmente e nos jornais. Os responsáveis comunistas, alguns socialistas e um número reduzido de técnicos ou de especialistas têm ideias mais ou menos claras da situação e dos projectos necessários. Mas, de modo geral, as élites políticas, apesar de apoiarem a noção de reforma agrária, ignoram as implicações. A justiça em meio rural e o desenvolvimento da agricultura parecem não ser questões difíceis para os citadinos. A história agrária portuguesa, entre a pobreza e a desigualdade, suscitou sempre, junto dos dirigentes políticos e das classes médias, os melhores sentimentos. O ano de 1974 só cria esperanças. Levar a cabo uma reforma, especialmente agrária, supõe um poder político forte, a existência de programas complexos ou, em alternativa ou conjuntamente, pressões sociais eficazes e amplas. Ora, em Abril de 1974, nada disso existe. Apesar do acolhimento favorável, a questão agrária evolui gradualmente. Mas, no fim do ano, a situação estará radicalmente diferente, tanto na esfera do poder como nas condições sociais e económicas. Os primeiros problemas agrários Depois da revolta militar, os problemas políticos, militares e coloniais levam a melhor sobre todos os outros e exigem mais atenção. Um novo regime vai começar, mas, sem democracia prévia, os recém-chegados na classe política não estão preparados. O poder é partilhado de improviso entre os antigos oposicionistas. Os órgãos provisórios de soberania são compósitos e contraditórios.

Os programas ainda mais. O MFA, heterogéneo e recheado de lutas internas, não constitui um factor durável de unidade, nem uma força orientadora indiscutível. Pelo contrário, mudará de «linha política» várias vezes e em diversos momentos será ele próprio fonte de perturbações. Comanda a evolução, o ritmo e a mudança, mas não dirige nem governa. Ao longo dos primeiros 12 meses, a crise política estará em constante aceleração. Daí resultará a crise económica e social. É neste contexto que o secretário de Estado da Agricultura tenta atacar os problemas. Ou, antes, gerir o que pode, estudar, preparar ideias e programas. Será esse o conteúdo essencial da sua acção, enquanto se preparam os vendavais. As mudanças na administração têm um lugar importante na sua actividade oficial. Para uma nova política, serão em princípio precisos novos homens196. A 5 de Julho, o secretário de Estado anuncia a reorganização dos serviços na sua dependência. Por outro lado, ocupa-se com pequenas questões de administração corrente: fixação de preços e outras exigências de rotina. Recebe muito: grupos, comissões e delegações sindicais. Recebe grupos que querem ser reconhecidos como os novos interlocutores das autoridades, mas também recebe herdeiros das instituições corporativas197. Desloca-se frequentemente, visita feiras, participa em reuniões públicas. Na vida prática, o problema mais importante e actual é o da negociação colectiva. Será este o primeiro objecto de luta social e política. Teoricamente, diz respeito ao Ministério do Trabalho, mas terá enormes consequências para a agricultura. Outra questão, difícil e delicada, ocupa os dois ministérios: a extinção dos grémios da lavoura e a sua substituição. Também constituirão objecto de importantes lutas sociais e partidárias198. No Alentejo, o debate vai aumentando de vivacidade. A

imprensa nacional, rapidamente controlada pela esquerda, faz-se eco e intervém. Por vezes o tom sobe. Os jornais ligados ao PC, sobretudo o Avante!, acusam os «agrários» de actuações condenáveis: abandono das terras, absentismo, atraso nas colheitas, subaproveitamento das terras, vendas precipitadas de gado e despedimentos colectivos199. Aqueles também são acusados de não respeitar os contratos colectivos: uns porque tentam pagar abaixo da tabela, outras porque pagam acima, procurando convencer os trabalhadores a não fazerem semanainglesa200. Aqui e ali ocorrem greves, sobretudo com o fim de forçar a assinatura de um contrato colectivo. Praticamente, todas as greves são locais e curtas. O Verão é propício: a cortiça está pronta, o tomate e os cereais devem ser colhidos, os proprietários cedem e os trabalhadores obtêm 201 rapidamente o que querem . Fala-se frequentemente de reforma agrária, mas os seus contornos, os seus objectivos e os seus mecanismos não estão definidos nem são claros. Um trabalhador afirma a um jornal que «é preciso fazer a reforma agrária, distribuindo os trabalhadores pelas herdades e obrigando os proprietários a aceitá-los». Um outro, igualmente partidário da reforma agrária, considera que esta deveria ser «a distribuição das terras, tomadas aos proprietários, pelos trabalhadores». São, na verdade, dois programas diferentes. Uma coisa é certa, as opiniões hostis à reforma agrária não se ouvem: ou são raras ou não são corajosas. Nos serviços oficiais, pouco a pouco, um certo espírito reformista parece vingar e traduzir-se em medidas concretas. Estas são geralmente de carácter técnico e económico e não traduzem a evolução política. Aparecem os «programas autónomos de desenvolvimento»; preparam-se os regulamentos para os mercados de certos produtos. Um ar de novidade vem com a legislação sobre os foros e os arroteamentos feitos pelos rendeiros, o

regime legal dos contratos colectivos de trabalho e o desenvolvimento dos adubos202. Em Outubro, preparandose para um passo mais firme, o Governo anuncia a sua intenção de alterar as leis do arrendamento rural que interessam a mais de 300 000 agricultores. Um projecto é divulgado e será a base de debates públicos. Mas só muitos meses mais tarde é que o novo decreto será aprovado. Na verdade, começa a tocar-se no fundo dos problemas e na estrutura social e agrária203. A 31 de Outubro de 1974, o Decreto-Lei n.º 573/74 congela as rendas rurais, com o objectivo explícito de defender a situação dos rendeiros. A 22 de Novembro, o Decreto n.º 653/74 é mais um gesto de intervenção do Estado na vida económica: fixa normas de cultura de aproveitamento das terras e confere ao Estado o poder para tomar em arrendamento compulsivo, por intermédio do IRA, as terras abandonadas e subaproveitadas. Outras medidas são aprovadas neste último trimestre do ano. Mas a situação geral é já tensa e exercem-se pressões sobre o Governo para que medidas de carácter estrutural sejam tomadas. O problema é que não há estudos nem projectos. Além do arrendamento rural, também os baldios são motivo de atenção e é mandado preparar um projecto de lei, desde logo submetido a debate público. O Inverno aproxima-se. A luta pelo poder está cada vez mais agitada, as tensões sociais em crescimento. Em matéria de emprego, a situação é difícil para alguns trabalhadores. Os sindicatos, já bem organizados, recolhem os frutos de um intenso trabalho sobre os contratos colectivos assinados antes do Verão (para o resto do ano agrícola de 1973-1974) e no princípio do Outono (para o ano agrícola de 1974-1975). O PC já lançou a sua ofensiva rural. O PS reclama com veemência uma reforma agrária. O PPD adere à ideia. Entre Outubro e Dezembro, moderada ou obstinadamente, os três partidos exprimemse a favor das expropriações, dos arrendamentos

compulsivos e da intervenção do Estado. Na televisão, numerosas emissões e os mais variados testemunhos apelam à reforma agrária. Os militares distinguem-se pela atenção que prestam aos assuntos agrícolas. Na televisão, na imprensa e em reuniões públicas. Entre Novembro de 1974 e Janeiro de 1975 tomam posições firmes. Em quase todos os números do jornal do MFA são publicados artigos sobre a reforma agrária e mesmo sobre as modalidades que pode revestir204. São visíveis sinais de desemprego. Por outro lado, há mudanças de mentalidade: já não se aceita facilmente a ideia de emprego sazonal. Os sindicatos lutam pelo emprego garantido e anual. Entretanto, a situação política quase paralisou as obras públicas. Na construção, por precaução, medo ou interesse, as empresas privadas reduziram estaleiros e investimentos. Atitudes semelhantes são tomadas nalgumas empresas agrícolas. As consequências da descolonização agravam a conjuntura. Fazem-se sentir os primeiros efeitos da crise internacional (recessão e primeiro «choque» petrolífero). A emigração, válvula de segurança tradicional, está praticamente impedida pelos países ocidentais. Tudo isto faz que a situação do emprego não esteja muito favorável para os trabalhadores, do ponto de vista económico. Mas está bem melhor politicamente. Com efeito, desde o fim do Verão que se tinham começado a fazer «distribuições de trabalhadores» por herdades e empresas agrícolas. Entre estas, algumas dizem ter dificuldades em pagar os salários ou em arranjar trabalhos. Por outro lado, desde Setembro que a desconfiança alastrava nos meios de proprietários. Alguns tinham sido presos, sem motivos nem culpa formada. As hostilidades pessoais tinham também começado. O consenso vai sendo impossível. Ninguém deseja negociar seja o que for. O Governo é arrastado pelo populismo radical do seu

primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, apesar de os comunistas e militares não serem ainda predominantes nos órgãos do poder. Noutras palavras, há ainda, no Governo, quem alimente a ideia de projectos e de reformas de carácter moderado. Foi o caso do «Programa de política social e económica», aprovado em Janeiro de 1975 pelo Conselho de Ministros e pela Assembleia do MFA205. Este programa propõe uma reforma agrária moderada, mas tocando já em certos aspectos da estrutura fundiária. Em particular, prevê a nacionalização dos perímetros regados construídos com fundos públicos mas que beneficiaram sobretudo os proprietários. São igualmente previstas: a penalização das grandes propriedades incultas ou subaproveitadas, assim como medidas de carácter técnico e económico favoráveis ao desenvolvimento das cooperativas. De inspiração reformista, socialista ou social-democrata, este plano não entusiasma os comunistas, nem os esquerdistas, nem os militares. Alguns meses antes, o «Programa» estaria certamente em avanço sobre o seu tempo. Em Fevereiro está atrasado e os seus promotores já não têm os meios políticos da sua realização. Quando é aprovado pelo Governo e pelo MFA, já só os seus autores acreditam. Ou talvez nem isso. Na mesma altura verificamse as primeiras ocupações. Uma tentativa reformista Este «Programa» era uma experiência. Tratava-se de um plano concebido quase em laboratório. Não correspondeu ao poder político real, não passou ao estádio experimental e não produziu nenhum fruto, a não ser a demonstração da sua inutilidade. A viragem revolucionária de 11 de Março envia para os saldos ou para os alfarrabistas os milhares de exemplares do «Programa», já envelhecido quando é apresentado ao público em conferência de imprensa de 24

de Fevereiro. Ao contrário, a experiência das «comissões de intensificação cultural» (CIC) teve mais hipóteses, contou com o empenho de muito mais gente; agricultores houve que se sentiram interessados e envolvidos. Estas comissões foram criadas a 14 de Outubro de 1974, por despacho, no seguimento das «reuniões de Oeiras»206, às quais assistiam o secretário de Estado (que tomou a iniciativa), membros do seu gabinete, conselheiros, altos funcionários e um grande número de jovens agrónomos, veterinários, economistas e outros escolhidos pelos responsáveis dos serviços207. A escolha de técnicos jovens corresponde a uma exigência do secretário de Estado. Nestas reuniões discute-se de tudo, mas o tema principal é o da modernização da agricultura. Procura definir-se uma nova política agrícola. «Trabalhava-se com entusiasmo, o clima era bom, a maior parte dos técnicos sentiam-se mobilizados», recorda J. Dordio, um dos participantes. A primeira série de reuniões decorre entre fins de Setembro e meados de Outubro. Está igualmente presente o secretário de Estado dos Preços e Abastecimentos. São abordados os problemas técnicos e económicos de todos os sectores agrícolas e alimentares. O tom é sereno, as conclusões moderadas. O vigor revolucionário só parece estar muito marginalmente presente no «apoio que é necessário dar, em modalidades ainda indefinidas, à campanha de dinamização cultural e de esclarecimento sociopolítico que o Movimento das Forças Armadas vai empreender brevemente em todo o País»208. As preocupações essenciais são o aumento da produção, a intensificação das culturas e a melhor utilização dos recursos. Anuncia-se que as herdades do Estado serão transformadas em herdades-piloto e que aí se realizarão experiências a fim de dar o exemplo aos agricultores209. A principal missão prática das CIC consiste na definição de critérios de base que permitam a avaliação das

explorações e das suas performances. As comissões deverão igualmente seleccionar as empresas susceptíveis de intensificação e encontrar as modalidades adequadas para pôr em prática novos projectos. A comissão central fica na dependência administrativa do IRA, mas trabalha directamente com o secretário de Estado, cada vez que seja necessário. Esta comissão conta com a colaboração de vários técnicos de formação universitária, com o apoio das «brigadas técnicas» distribuídas pelos distritos do Alentejo e do Ribatejo. A comissão vai trabalhar activamente. O seu funcionamento é simples. De sua própria iniciativa, ou a pedido das ligas e dos sindicatos, visita herdades consideradas subaproveitadas. Na base do seu «critério mínimo de intensificação cultural», procede à avaliação. Os resultados, sob a forma de relatórios, são enviados ao núcleo central da CIC, que os aprecia, dá parecer e remete instruções ao IRA. Reuniões, entrevistas com agricultores e organizações, visitas às herdades e redacção de relatórios e pareceres: o trabalho é intenso, sobretudo feito em pouco tempo. Por outro lado, a CIC prepara os planos de exploração para algumas herdades do Estado consideradas elas próprias subaproveitadas210. Também elabora listas de explorações onde o Estado poderá vir a intervir a fim de impedir vendas ilegais de cortiça. Elabora esquemas de organização para os serviços regionais de agricultura, assim como normas de aluguer de máquinas agrícolas. Ocupa-se da definição de regras para o transporte e a circulação de gado, dado que surgem sinais de actuações ilegais. Tenta ainda resolver problemas que são detectados em nove grandes explorações agrícolas onde o Estado tem responsabilidades211. Os técnicos visitam centenas de herdades privadas. Algumas, designadas pelos sindicatos, revelam reais possibilidades de intensificação, pelo que a comissão inicia conversações com os proprietários a fim de melhorar as

culturas. «Alguns dos proprietários mostram-se entusiasmados e começam a investir, enquanto outros se mostraram apenas receptivos», afirma um dos técnicos. A um certo momento, a comissão visita, segundo o seu relatório, «uma herdade ocupada, ou em vias de o ser». Finalmente, numerosas herdades visitadas são 212 consideradas em estado satisfatório . Após uma primeira inspecção, a CIC elabora igualmente um relatório sobre o conjunto dos distritos de Évora e Portalegre. Conclui que, nos dois casos, «não há muitas propriedades incultas, mas algumas apenas mal cultivadas», mencionando uma lista de «casas agrícolas» nestas condições213. Esta opinião não agrada a muita gente. Habitualmente, a esquerda e os sindicatos proclamam que há centenas de milhares de hectares abandonados e incultos. A visão dos proprietários é oposta: nas circunstâncias naturais do Alentejo, não é possível fazer melhor. Sem serem exaustivos, os relatórios das CIC tentam resolver a questão e vão, aliás, ao encontro de opiniões de quem não tem interesse directo na região: por um lado, o abandono puro e simples é muito raro; mas, por outro, é possível fazer muito melhor, com investimentos, trabalhos de infraestrutura e mudanças progressivas nos sistemas agrários e nos padrões de cultura. Tudo isso supõe planos técnicos e económicos, reformas graduais da estrutura agrária e fundiária e novas políticas agrícolas. Para tudo isso é preciso tempo, meios financeiros e poder político. Apesar de superficial, o balanço das CIC é sem dúvida o mais independente e o mais actualizado. Não agrada aos proprietários, porque lhes comete mudanças e investimentos. Não agrada aos sindicatos, nem aos técnicos de esquerda, porque destrói o mito do Alentejo abandonado, sobre o qual repousam os argumentos favoráveis à reforma agrária e à nacionalização. Neste contexto, as CIC não vão durar.

Um dos principais responsáveis das CIC mostra como os seus trabalhos foram ultrapassados214. Em três ou quatro meses de trabalho fizeram o inventário de praticamente quase todo o distrito de Évora (738 783 ha de superfície total e 724 487 ha de superfície cultivada, agrícola ou florestal). Chegaram à conclusão de que havia um pouco mais de 80 000 ha de solos realmente mal cultivados. «Curiosamente», afirma o testemunho, «estas terras pertenciam quase sempre a senhores da cidade, uns empreiteiros ou comerciantes que não cuidavam delas. Mas não havia nada que se parecesse com centenas de milhares de hectares nesta situação: no máximo, 80 000 ha em Évora, e os nossos critérios eram apertados. À medida que o nosso trabalho avançava, mandávamos os relatórios ao secretário de Estado, mas nada acontecia. Chegámos a pensar que não queriam mudar nada. Mas, de repente, o novo responsável do IRA, o engenheiro Silvestre, apareceu: queria expropriar tudo, nacionalizar as herdades. E as coisas começaram a mudar rapidamente a partir do mês de Dezembro de 1974. Os três responsáveis do IRA e do gabinete do secretário de Estado, Sítima, Silvestre e Alves da Silva, metiam-se em tudo. Compreendemos que já não estávamos na jogada, que o que fazíamos não servia para nada, que estávamos ultrapassados. Havia constantemente reuniões de pequenos grupos e de subcomissões e as decisões não nos eram comunicadas.» Uma nova dinâmica impunha-se pouco a pouco. A 18 de Fevereiro de 1975, os membros da CIC fazem um relatório no qual se confessam ultrapassados pelos acontecimentos, «pelos factos consumados: as ocupações, a sabotagem económica e o abandono de herdades». Depois de 11 de Março, com o novo Governo (o quarto), a acção das CIC perde o seu sentido. Em Abril, os responsáveis preparam uma reunião com o novo ministro da Agricultura e sugerem uma ordem de trabalhos

reveladora: «a) Que fazer no Alentejo?; b) As ocupações; c) A promoção discriminatória de funcionários e técnicos.» A reunião não se realizará. Alguns dias depois, vários membros das CIC pedem a demissão, outros são transferidos. A tentativa reformista chegava a seu termo e a via revolucionária estava já bem avançada. Uma via institucional pré-revolucionária Tendo começado antes, a acção dos sindicatos agrícolas ultrapassou as tentativas reformistas do Estado. Depois do seu apogeu, no Verão de 1975, o movimento sindical rural do Sul perdeu grande parte da sua influência, mas ficou a constituir uma realidade durável na sociedade. De um papel inicial de parceiros sociais, os sindicatos chegaram a uma posição predominante nas relações de trabalho que lhes permitiu praticamente impor a sua vontade na região. Conseguiram aceder a funções institucionais e estatais. Ao mesmo tempo, o Estado, tomando a defesa e adoptando os pontos de vista dos sindicatos, assumiu a responsabilidade de determinar as condições de trabalho, substituindo-se assim às negociações colectivas. Os sindicatos desempenharam ainda um papel decisivo nas ocupações de terras e na organização das unidades colectivas. Depois do 25 de Novembro, perderam rapidamente todas as funções institucionais e, com estas, uma espécie de «soberania sindical» que exerceram conjuntamente com o aparelho de Estado. Desde então, limitaram-se às funções tradicionais das organizações sindicais. Voltemos ao princípio. A 25 de Abril de 1974 não há organizações sindicais no Alentejo e no Ribatejo. O PC mantém uma rede de simpatizantes, de antigos militantes e de funcionários. A esta «matéria-prima», reduzida, embora real, acrescentar-se-ão vários funcionários e

militantes que, vindos da cidade ou mesmo do estrangeiro, formam o núcleo inicial. Já em Maio aparecem as primeiras comissões «pró-sindicato», que conhecem sucessos rápidos. No distrito de Beja, de onde a iniciativa mais forte, os sindicatos estão desde logo estreitamente ligados ao partido. Em Évora, pelo contrário, os primeiros esforços são resultado da acção unitária de militantes do PC, do PS e do MDP. Só um ano mais tarde, com as eleições sindicais, é que os comunistas asseguram em Évora o controlo total sobre o sindicato, tal como já tinham feito em Portalegre, Santarém, Lisboa e Setúbal. Os sindicatos crescem paralelamente ao desenvolvimento das negociações colectivas e à obtenção dos respectivos contratos. Neste domínio, cada vitória é um trunfo de prestígio e um instrumento de recrutamento. As condições de trabalho, os salários, os horários e a segurança melhoram rapidamente, no interesse e para benefício dos trabalhadores. Em Agosto de 1974 há contratos colectivos de trabalho (CCT) em vários concelhos do distrito de Beja215, num de Setúbal216, nenhum em Évora, em duas freguesias de Portalegre e uma de Santarém217. Foi esta a primeira série de negociações colectivas válidas ainda para o resto do ano agrícola de 1973-1974218. A segunda série começa em Setembro e aplicar-se-á ao ano agrícola de 1974-1975. São assinados contratos em vários concelhos do distrito de Santarém219, de Portalegre220 e de Lisboa221. Dois CCT de novo tipo entram em vigor em Beja (Setembro) e em Évora (Outubro): cada um aplica-se ao conjunto do distrito. Até ao fim do ano, vários CCT de âmbito concelhio são ainda assinados em Portalegre, Santarém e Setúbal. Em meados de 1975, quatro distritos têm já um CCT unificado: Beja, Évora, Portalegre e Santarém. Em Setúbal, oito novos contratos «concelhios» vêm acrescentar-se aos precedentes. No fim do Verão, um só regime de trabalho vigora em

todos os distritos do Sul, incluindo Faro. Substitui-se a todos os CCT de menor âmbito territorial. Esta unificação é paralela à crescente intervenção do Estado. Com efeito, em 1974, os primeiros contratos tinham sido assinados pelos parceiros sociais, ou, antes, por representantes mais ou menos qualificados, mais ou menos conhecidos222. Ora, tal vai deixando de acontecer depois. Invocando argumentos legais ou sob pretexto de que a representatividade dos signatários não é indiscutível, o Ministério do Trabalho manda publicar os textos dos acordos de trabalho no seu boletim oficial, mas fá-los acompanhar de uma portaria (PRT, portaria de regulamentação do trabalho) que lhe confere força de lei e obriga a todos dentro da freguesia, do concelho ou do distrito. Este método substitui-se progressivamente à negociação entre parceiros. Alguns contratos, por exemplo, vêem o seu âmbito de aplicação alargado ao conjunto do distrito, por força de uma «portaria de alargamento de âmbito» (PAA). Outras vezes, a PRT não inclui sequer um contrato: é simplesmente a imposição de uma regulamentação de trabalho, o que, por exemplo, acontece com as últimas portarias válidas para toda a região. Esta intervenção estatal faz-se seja por iniciativa do Ministério, seja a pedido dos sindicatos. No primeiro caso, trata-se de manter o controlo social. A unificação das condições de trabalho é útil, pois impede a diversificação desfavorável ao movimento sindical. É também uma maneira de obrigar todos os agricultores à mesma disciplina, forçando-os mesmo a sentirem-se representados pelos signatários. Finalmente, o Ministério procura dar real valor aos CCT, pois que surgem dúvidas quando as assinaturas não são as de verdadeiros empresários. Em última análise, o Ministério assegura também um certo controlo sobre o movimento sindical, nomeadamente impedindo que outros sindicatos venham a organizar-se. Do ponto de vista dos sindicatos, a intervenção estatal é

uma protecção e uma segurança. Quando não há organização de patrões, ou quando estes não querem assinar nem ceder às reivindicações, os sindicatos passam por cima do obstáculo, o Ministério assina a PRT e a regulamentação fica legalizada. Muitas vezes a portaria retoma simplesmente as propostas dos sindicatos para negociação. Assim é que, depois de terem exigido do Ministério a publicação dos CCT, os sindicatos remetem-se à disciplina protectora do Governo, sem terem de seguir o caminho da negociação223. Nesta evolução, o PC desempenha, uma vez mais, um papel importante. Não só controla os sindicatos, dirigidos por militantes seus, mas sobretudo reservou-se o Ministério do Trabalho durante os primeiros cinco governos provisórios. O ministro é um militante civil ou um militar simpatizante; os secretários de Estado são geralmente militantes seus, assim como numerosos altos funcionários. Aliás, o partido não o esconde: exibe mesmo a sua excelente folha de serviços224. Quanto ao conteúdo dos CCT e das portarias, três traços caracterizam a sua evolução. Primeiro, a passagem da negociação à via administrativa. Segundo, o alargamento do âmbito de aplicação. Terceiro, a melhoria constante das condições de trabalho dos assalariados. A este propósito, o Governo contribui também com a fixação de um salário mínimo rural e a criação de novos esquemas de segurança social. Os primeiros contratos dizem respeito sobretudo aos níveis de salários e às remunerações complementares. Os sindicatos obtêm aumentos significativos, além de férias, melhores horários de trabalho e pagamento de horas extraordinárias. Os benefícios são grandes, as condições em que os trabalhadores se encontravam previamente eram consideravelmente desfavoráveis. Com o tempo, as reivindicações sindicais aumentam. Por cedência dos patrões ou por portaria do ministro, o

resultado é que os regulamentos ficam cada vez mais vantajosos para os trabalhadores: alimentação, subsídios de fim de ano e de férias, regime especial de sábado e fins-de-semana, transporte para o local de trabalho, etc. O que importa notar, mais do que o montante de benefícios, que não chegam a ser privilégios, é a progressão rápida. Alguns contratos ou portarias retomam velhas reivindicações dos sindicatos do princípio do século: a prioridade de emprego aos trabalhadores da região, só podendo os patrões ir buscar mão-de-obra fora da região depois de assegurado o pleno emprego local. São substanciais os benefícios obtidos em tão pouco tempo. E são benefícios bem sentidos, pois que a situação dos assalariados antes de 1974 era relativamente precária. Em certo sentido, mais ainda do que as vantagens materiais, os contratos colectivos trazem aos trabalhadores agrícolas a consciência de um estatuto social mais digno e de uma força que nunca tinham conhecido até então. A segurança e as garantias são os elementos mais frequentes nos textos dos contratos, tanto como nos documentos sindicais. A conquista de um estatuto menos precário e menos aleatório não é uma magra vitória. Os trabalhadores têm essa percepção e os sindicatos saberão aproveitar. Os sindicatos serão verdadeiros «alfobres» de militantes e de dirigentes locais chamados a desempenhar, no Verão de 1975, um papel decisivo nas ocupações. Mas uma vantagem sindical, obtida em negociações, e confirmada por legislação ministerial, ultrapassa todas as outras, pelas consequências políticas, sociais e institucionais. Trata-se do emprego compulsivo, da distribuição de trabalhadores e das comissões de avaliação de herdades e do aproveitamento das terras. Estas comissões são criadas pelos contratos colectivos ou pelas portarias. São geralmente paritárias (sindicatos e patrões) ou tripartidas (Estado, sindicatos e patrões), mas

podem até ser simplesmente sindicais. Têm diversos nomes, segundo a data e o local, mas constituem os embriões das futuras «comissões distritais rurais» (CDR) e das «comissões técnicas concelhias» (CTC)225. Segundo os casos, estas comissões têm poderes mais ou menos vagos e diversos, mas serão concretizados e unificados com o tempo. Umas devem «acompanhar a execução da PRT»226; outras têm como missão «verificar e distribuir o pessoal»227; ou ainda «controlar os 228 despedimentos e garantir o trabalho» . Num caso, a comissão deve proceder à «repartição dos trabalhadores abrangidos por esta convenção» por entre as herdades que ultrapassem os 150 ha229. As comissões previstas na portaria relativa ao distrito de Beja são nomeadas pelo governador civil e «procedem à avaliação das propriedades, em prioridade das que estão subaproveitadas, e efectuam a colocação da mão-deobra»230. Finalmente, as comissões criadas pela portaria de 10 de Setembro de 1975, a que se aplica a toda a região, devem «efectuar a colocação de trabalhadores nas propriedades em regime de subaproveitamento total ou parcial»231. A composição destas comissões é variável. Algumas incluem representantes dos sindicatos e dos agricultores (Cuba, Aljustrel, Almeirim e Benavente); a maior parte integra também delegados do Ministério do Trabalho (Évora, Vidigueira e Serpa); outras excluem a representação dos patrões, integrando apenas dois delegados do sindicato e dois representantes dos Ministérios da Agricultura e do Trabalho. Neste último caso, encontra-se a mais importante de todas as portarias, a que se aplicou à região inteira. Pelo seu poder e pela composição, estas comissões consagram a ascensão dos sindicatos até às funções institucionais. Consolidam o seu poder, em detrimento do dos agricultores e proprietários, que aliás faltam

frequentemente às comissões em que têm o direito de estar presentes. É em Setúbal que estas comissões atingem o seu estado mais organizado. Apesar de a portaria de 10 de Setembro ter criado comissões semelhantes para todos os distritos, a CDR de Setúbal é uma realidade um pouco diferente. Foi criada antes, a 28 de Fevereiro de 1975, por despacho conjunto dos secretários de Estado da Agricultura, do Trabalho e do Emprego. Inclui três representantes dos sindicatos, três da associação de agricultores (ALA), três da liga dos pequenos agricultores, quatro da Secretaria de Estado da Agricultura, um da Secretaria de Estado do Trabalho e um do Serviço Nacional de Emprego. Formalmente, a sua principal função consiste na coordenação e apreciação do trabalho das comissões técnicas concelhias (CTC). Estas últimas tinham sido previstas na portaria de 21 de Janeiro, que se aplicava apenas aos concelhos de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago de Cacém e Sines, assim como à freguesia da Marateca. A 15 de Fevereiro, o ministro ordena o alargamento de âmbito a todo o distrito. Nesta altura, as funções das comissões concelhias consistiam na avaliação das explorações agrícolas e na formulação de recomendações. A sua composição incluía apenas dois delegados dos patrões e dois dos trabalhadores. Todas estas competências foram ainda alargadas pela portaria de 10 de Setembro de 1975. Esta não só unifica o regime aos cinco distritos como ainda consagra legalmente o poder das comissões para avaliar globalmente o estado das explorações. Após exame prévio, as comissões podem impor directamente a colocação de trabalhadores. A partir desta data, as comissões só integram representantes dos sindicatos e dos ministérios. Recurso das suas decisões pode ser apresentado junto das comissões distritais (CDR), cujo parecer é executório, definitivo e retroactivo. Acrescente-se que a composição das comissões será ainda

modificada, em novas condições políticas: a 4 de Março e a 28 de Maio de 1976, o ministro ordena que os representantes dos patrões façam parte também. As CDR e as CTC tiveram uma existência bem diversa, segundo as localidades e as condições políticas. Não previstas na convenção colectiva de 21 de Janeiro, são impostas pela portaria de 28 de Fevereiro. Apesar de cobertas por decisão ministerial, a sua legalidade não é indiscutível. Em Junho de 1976 será a CDR de Setúbal, ela própria, que suspenderá funções, considerando que o seu funcionamento é ilegal. Na realidade, continuará a reunirse e deliberar, afirmando mesmo que «é a única em todo o País que se mantém em funções»232. Esta CDR considera ter cumprido os seus objectivos, mesmo se os três representantes da ALA e da liga «se distanciaram sempre» das sessões. A composição da CDR de Setúbal conhecerá, aliás, mudanças constantes, decididas pelo governador civil, pelo Ministério ou pelos seus membros. O problema é geralmente o da representação dos empregadores, que vêm raramente às reuniões. Os poderes da CDR são amplos: recurso das decisões das CPC; avaliação das herdades; colocação de trabalhadores. Das suas decisões não há apelo: o despacho do ministro diz que «a violação das deliberações da CDR será considerada como violação das leis de trabalho». A portaria que cria a CDR de Setúbal só é publicada a 28 de Fevereiro, mas o governador convoca a primeira reunião para 14 do mesmo mês. A 19 realiza-se a primeira sessão formal, na Câmara de Alcácer do Sal: estão também presentes o governador, um delegado do MFA e o vice-presidente do IRA233. Na segunda reunião, a 26 de Fevereiro, procede-se à composição nominal da comissão, que será legalmente reconhecida pelo ministro da Economia a 14 de Março. Esta CDR reuniu-se 56 vezes, entre Fevereiro de 1975 e

Outubro de 1976. Até Novembro de 1975 reúne-se regularmente quatro a cinco vezes por mês. Segue-se uma interrupção de dois meses, motivada certamente pelos acontecimentos políticos. Retoma as suas sessões, mas já só se reunirá uma a três vezes por mês. Os dois períodos de vida são bem diferentes. No primeiro, decide febrilmente; a aliança entre sindicatos e funcionários do Ministério impõe-se e inspira os trabalhos. No segundo, a comissão discute, mas não decide: os representantes dos ministérios foram todos mudados. A primeira preocupação da CDR é o desemprego. Em todas as sessões, as principais decisões dizem respeito à distribuição e à colocação de trabalhadores. Na segunda fase, a preocupação parece manter-se, mas mudam os métodos. Por exemplo, dirige-se ao governador civil e aos presidentes das câmaras pedindo colaboração para encontrar emprego fora da agricultura em Grândola, Alcácer e Santiago234. Centenas de cartas são enviadas à CDR por agricultores e empregadores. Estes expõem os seus pontos de vista, mas só um quinto se mostra disposto a recusar os trabalhadores que lhe foram distribuídos. Todos os conflitos são submetidos à CDR, especialmente os que opõem empregadores e sindicatos. Os diferentes assuntos são levados à CDR pelas comissões concelhias, pelos sindicatos ou pelos agricultores. São quase sempre questões relativas à distribuição de trabalhadores e ao pagamento de salários. Por vezes, outras entidades recorrem para a CDR, como por exemplo o regimento de Setúbal, que denuncia, a 5 de Março de 1975, uma série de herdades «que não estão cultivadas». Este processo, como outros de carácter geral, é remetido para a comissão de intensificação cultural (CIC). Quando há diferendos, a CDR adia geralmente o assunto para a reunião seguinte e convoca os patrões e os trabalhadores. Mas, na maioria dos casos, decide

imediatamente o número de trabalhadores que devem ser colocados nas explorações agrícolas ou mesmo nas fábricas de tomate industrial, numerosas na região. Militares do MFA assistem a certas reuniões. Pedem explicações sobre a situação de umas herdades ou tentam acelerar processos de avaliação ou de ocupação. Aos proprietários que se dirigem directamente à CDR é sempre dito que os problemas concretos devem ser tratados a nível concelhio pelas CPC. Problemas relativos a ocupações são geralmente transmitidos ao IRA ou ao CRRA, afirmando a CDR que estes assuntos não são da sua competência. Todavia, quase todas as herdades de que a CDR se ocupou foram mais tarde ou mais cedo ocupadas. No Outono de 1975, a CDR toma algumas decisões relativas a unidades colectivas, em particular ordena transferências de assalariados. Assim se afirma a vocação essencial da CDR: depois do desemprego, a planificação integral da força de trabalho. Como, em paralelo, o sindicato centraliza razoavelmente a oferta de mão-deobra junto dos agricultores privados, o controlo do trabalho fica quase assegurado. Apesar de, na prática, a CDR e as CTC não terem cumprido todas as missões que o Governo lhes atribuiu, foram todavia eficazes nalgumas funções, em especial no «emprego compulsivo». O que não é nada pouco: com efeito, esta distribuição de trabalhadores preparou as ocupações de terras e herdades. Segundo os testemunhos, a maior parte dos ocupantes activos eram trabalhadores temporários previamente colocados nas herdades. As decisões da CDR são quase sempre favoráveis aos sindicatos e aos grupos de trabalhadores, assim como, mais tarde, às unidades colectivas. As necessidades gerais de promoção do emprego, na perspectiva da CDR, tudo justificavam. Chegou a oficiar ao Centro Regional de Reforma Agrária sugerindo um faseamento «das áreas expropriáveis […] e de ocupação de terras»235.

Ao contrário dos conselhos regionais, que frequentemente ultrapassavam as suas competências, a CDR limita-se geralmente aos seus poderes legais. Mesmo quando convoca agricultores através da polícia, não pode deixar de se admitir que tinha poderes para isso e que assim procurava utilizar todos os meios adequados ao cumprimento das funções legais. Estas eram bem mais institucionais e estatais do que consultivas. Teriam mesmo, curiosamente, um certo carácter corporativo, na medida em que havia fusão de entidades públicas e privadas no exercício de poderes administrativos. Por razões políticas, mas também por causa da composição das comissões, esta fusão aproveitou exclusivamente aos sindicatos. Assim é que, do ponto de vista dos trabalhadores temporários, dos desempregados e dos sindicatos, a acção da CDR e das CTC foi socialmente positiva e eficaz: garantiu empregos e salários; pressionou e cercou os proprietários, levando-os por vezes à insolvência; e abriu a porta às ocupações. Na óptica dos agricultores e dos proprietários, é evidentemente o contrário: estas comissões destruíram empresas privadas. Consideram que os critérios de avaliação e de distribuição de mão-de-obra eram errados. E queixam-se de terem sido obrigados a ficar com trabalhadores sem que houvesse trabalho nas herdades ou de terem recebido pessoal a mais. Não é possível julgar rigorosamente o bem fundado dos critérios técnicos e económicos invocados pelos sindicatos e pela CDR, nem o dos argumentos avançados pelos proprietários. Com efeito, as decisões eram tomadas a partir de informações rápidas, ou mesmo verbais, na sequência de visitas individuais às herdades. Algumas informações superficiais bastavam: superfícies, tipo de cultivos e número de trabalhadores já ocupados. (Para cada decisão, o processo é demasiado simples e não permite uma avaliação rigorosa. As opiniões dos

agricultores, relativamente à realização de novas tarefas e à ocupação de mais pessoal, são sempre negativas. Todavia, a argumentação não esclarece sobre as questões técnicas. Um proprietário, J. B. Núncio, invoca as más condições económicas em que se encontra e afirma simplesmente que não pode empregar mais ninguém236. A proprietária da herdade «Brunheira do Meio» pede à CDR que não coloque mais ninguém, visto que «não tem mais meios para pagar» e que a sua outra herdade, o «Monte da Vinha», já está ocupada237. O proprietário da «Barradas» e da «Fonte do Cortiço» afirma que não pode empregar mais nove trabalhadores, «além dos cinco permanentes que já lá estão»; requer uma nova inspecção, acrescentando que a sua exploração ultrapassa os níveis máximos de intensificação238. Como estes, os exemplos são às centenas. São muito poucos os casos em que os proprietários aceitam explicitamente as decisões das comissões. O da «Freixeira», por exemplo, diz que aceita receber mais 14 mulheres que foram colocadas, «mas só para evitar conflitos», dado que não são necessárias239. Muito raramente, menos de uma dezena de vezes, a CDR aceita os argumentos dos proprietários. Na herdade de «Vale do Orgo» reconhece as dificuldades económicas invocadas e manda suspender os trabalhos em curso, «apesar de a herdade exigir obras de beneficiação»240. Na herdade «Veiga de Baixo», a CDR suspende também os trabalhos, dado que o proprietário se encontra numa situação financeira grave241. Inversamente, em carta dirigida à CTC de Alcácer do Sal, a CDR afirma peremptoriamente que «a fraqueza económica invocada pelo proprietário não deve fazer obstáculo à continuação dos trabalhos, dado que estes se justificam tecnicamente»242. À sociedade «Barrosinha», a CDR comunica que os trabalhadores que lá são considerados excedentários só poderão ser despedidos

depois de terem encontrado trabalho noutro sítio243. E ao proprietário de «Vale do Carmo», a CDR escreve: «[…] não compete à CDR pronunciar-se sobre as dificuldades económicas dos empresários agrícolas, mas só justificar tecnicamente os trabalhos que é preciso efectuar e que, por consequência, o pessoal colocado pela CTC de Santiago de Cacém deve ficar.»244 Estas polémicas são previsíveis. Apesar dos argumentos técnicos e económicos, o diferendo é social e político. Os proprietários entendem que as suas herdades estão bem cultivadas. Os sindicatos não cessam de repetir que as herdades estão geralmente subaproveitadas, que há milhares de hectares a cultivar e que se podem criar numerosos novos empregos. Os sindicatos estavam, evidentemente, interessados em defender os direitos e as aspirações dos seus membros e em garantir os empregos a qualquer preço. Queriam avançar até à reforma agrária e alterar a estrutura da propriedade. Com este fim em vista, todos os meios eram bons e legítimos, tanto mais que não faltava protecção legal. Tratava-se de uma relação de forças, não de um exame técnico e económico. Não havia consenso sobre as estruturas de propriedade e de produção. O argumento da viabilidade económica das empresas privadas só fazia sentido para os proprietários. Os da garantia dos salários e da continuidade do emprego só interessavam aos trabalhadores. A batalha era política. O que estava em causa era o poder económico, a propriedade e a sobrevivência dos proprietários. Depois da legislação sobre as expropriações, os sindicatos não se deram mais ao trabalho de invocar a situação agrícola de uma herdade: se tinha as dimensões determinadas pela lei, era ocupada. Por vezes, mesmo algumas que se encontravam abaixo desses limites não escapavam. A CDR e as CTC desempenharam-se eficazmente das

suas funções na via que conduziu à reforma agrária e às ocupações. Institucionais e estatais pela sua origem e pelos seus poderes, estas comissões tinham uma actuação revolucionária pelos seus métodos, objectivos e regras, de comportamento. Elemento de fusão de interesses entre sindicatos e administração pública, contribuíram para a realização da revolução através do Estado. Na ausência de um poder político unitário e estável, os reformismos tinham falhado. No aparelho de Estado infiltrava-se um novo poder, colocando a seu proveito as engrenagens da administração245. Mas este mesmo poder, ou convergência de poderes, do PC e do MFA, não contava exclusivamente com o Estado. A pressão das «bases», os movimentos sociais, os sindicatos e grupos de toda a espécie, colaboravam igualmente na conquista política. A junção das várias dinâmicas, do centro e da periferia, das cúpulas e das bases, ou das organizações e dos movimentos, efectuou-se em certos organismos públicos onde colaboravam as instituições civis, as forças armadas, o partido e os sindicatos. A luta pelo poder político sobrepunha-se aos esforços de reformas sociais, aos programas de mudança gradual e aos consensos necessários à concretização de uma política social e económica. As dificuldades económicas, crescentes desde Abril de 1974, a multiplicação dos conflitos sociais, institucionais e políticos, contribuíram para uma certa paralisia do Estado. Neste contexto, comunistas e militares não estavam muito interessados em reformas, pois que perceberam que podiam ir muito mais longe. O reformismo era impossível ou foi tornado impossível. Em seu lugar houve a revolução. 195 Ver, por exemplo, o «Programa para a democratização da República» (1961); o «Programa eleitoral da CDE» (1968); além dos programas do PC e do PS. 196 Ver o Capítulo VI, «A ocupação institucional».

197 Por exemplo: o MOLA, movimento livre dos agricultores das regiões de pequena e média exploração a Norte do Tejo, a 5 de Junho de 1974; a União dos Produtores de Fruta de Portugal, a 6 de Junho; a direcção da Federação dos Grémios de Braga, a 12; os representantes dos produtores de tomate do Caia, a 17; e ainda as ligas dos pequenos e médios agricultores, as comissões «prósindicato», representantes de proprietários, etc. 198 Ver, no Capítulo VI, a secção «Os prémios da lavoura»; assim como Manuel Lucena, Instituições […], op. cit. 199 Ver, por exemplo, o Avante! de 16 de Agosto de 1974. Apesar de com menos frequência, também os socialistas divulgam os seus pontos de vista e denunciam, como fez a Federação de Beja, «as manobras da reacção fascistacapitalista de alguns agricultores que pretendem fazer despedimentos em vez de cultivar as terras […]» (moção de 17 de Setembro). 200 Avante!, 12/7/1974. 201 Houve greves ou pequenas paragens de trabalho, por exemplo, em Montemor (Junho), Azambuja e Benfica do Ribatejo (Agosto), Almeirim, Salvaterra de Magos e Chamusca (Setembro), etc. As greves duravam poucos dias, por vezes horas. 202 Decretos n.os 547/74, de 22/10/1974; 573/74, de 31/10/1974; 580/74, de 5/11/1974; e 699/74, de 6/12/1974. 203 Decreto-Lei n.º 201/75, de 15/4/1975. 204 Ver o Boletim do Movimento das Forças Armadas de 26/11/1974. Um artigo intitulado «É urgente começar o processo de reforma das estruturas agrárias» conclui: é preciso «obrigar os proprietários a obter níveis mínimos de produção e substituir os proprietários absentistas por organismos especializados da administração pública». O número do Boletim de 14/1/1975 retoma a questão e explicita melhor os critérios e os objectivos da expropriação. O Boletim de 11/2/1975 descreve elogiosamente a reforma agrária argelina e cita-a como exemplo para Portugal. 205 A equipa responsável era composta pelo ministro de Estado (major Melo Antunes) e pelos ministros Emílio Rui Vilar e José Silva Lopes e secretário de Estado Vítor Constâncio. O programa é aprovado pelo MFA a 4 de Janeiro e pelo Governo a 5 de Fevereiro. 206 Em Oeiras está sediada a Estação Agronómica Nacional. 207 Os arquivos do Gabinete de Estudos Rurais, da Universidade Católica, conservam um grande lote de documentação relativa às CIC, assim como transcrições de entrevistas inéditas com vários técnicos, como por exemplo J. Dordio, G. dos Santos e F. Borba. Ver ainda A. Barreto, Memória […], op. cit.

208 O Século, 19/10/1974. A segunda série de reuniões realiza-se em fins de Novembro, de novo em Oeiras. As sessões são muito mais politizadas. Além dos secretários de Estado, o primeiro-ministro também está presente. O seu longo discurso, típico do seu estilo populista muito peculiar, e sucessivamente moderado, emotivo e revolucionário: «É preciso que sejamos todos militantes nos locais de trabalho. […] Aquele que não estiver disposto a seguir os novos caminhos deve dar o seu lugar aos mais novos. […] Um novo regime está instalado e ou vai ou racha!», in O Século, 30/11/1974. 209 São várias, espalhadas por todo o País, num total de cerca de 10 000 ha. Tinham em geral bons recursos, mas a sua gestão era medíocre. 210 «Couto da Várzea», «Abóbada», «Comenda», «Alfarófia», «Revilheira» e «Lameirões». 211 «Pontal», «Judia», «Meliça», «Girvaz», «Carrapatal», «Mouchão do Inglês», «Caveira», «Ervideira de Baixo» e «Lamaçais». 212 Por exemplo, a 12 de Outubro de 1974, o Sindicato de Beja remete uma lista de herdades que considera subaproveitadas: «Monte da Serra», «Rosas», «Marquesa», «Estacas», «Sobral», «Delicada», «Trolão», «Apariça», «Assentos», «Miranda», «Lameiras» e mais duas dezenas. Só duas, «Apariça» e «Assentos», foram consideradas mal cultivadas; para estas, a CIC propôs o arrendamento compulsivo ao Estado. 213 Eram nomeadas as «casas agrícolas» de J. B. Núncio, A. Murteira, M. B. e Silva, A. L. V. Lobos e C. Sabino. 214 Testemunho inédito do engenheiro J. Dordio. 215 Alvito, Cuba, Ferreira, Aljustrel, Beja, Vidigueira, Moura, Serpa, Mértola e Castro Verde. 216 Alcácer do Sal. 217 Benavente. 218 Cf. M. J. Nogueira Pinto, O Direito […], op. cit.; do mesmo autor, O Processo de Contratação Colectiva Rural e o Emprego Compulsivo, 1974/76: Elementos para o Seu Estudo Jurídico, GER, Lisboa, 1981; Margarida Moura, Contribuição para a História da Contratação Colectiva, do Trabalho Rural na ZIRA, 1974/76, GER, Lisboa, 1981; e António Barreto, «Classe e Estado: os sindicatos de trabalhadores rurais e a reforma agrária, 1974/76», in Análise Social, Lisboa, n.º 80, 1984. 219 Almeirim, Coruche, Cartaxo, Chamusca, Santarém e Golegã. 220 Fronteira e Castelo de Vide.

221 Azambuja. 222 Do lado dos sindicatos há várias espécies de assinaturas: «Comissão prósindicato», «Sindicato», «Comissão de trabalhadores» e mesmo «Casa do Povo». A situação é idêntica no caso do patronato: «Associação de agricultores», «Associação livre de agricultores», «ALA», «Comissão de agricultores», «Grupo de agricultores» e também «Grémio». Todos os contratos estão publicados no Boletim do Ministério do Trabalho, Lisboa. A maior parte das assinaturas são «ilegíveis», no dizer do Boletim. 223 Ver outros exemplos no Avante! de 5/7/1974 e A Capital de 10/8/1974 e de 16/1/1975. 224 Ver artigos do Avante! de 2/8/1974 e de 22/11/1974. 225 Alguns dos muitos nomes utilizados são: «comissão paritária», «comissão de verificação», «comissão de colocação», «comissão concelhia» e «comissão local de agricultores». 226 Aljustrel, Alvito, Beja e Cuba, in B. M. T. (Boletim do Ministério do Trabalho), n.º 32, 29/8/1974. 227 Cuba, ibidem. 228 Vidigueira, ibidem. 229 Castro Verde, in B. M. T., n.º 35, 22/9/1974. 230 In B. M. T., n.º 43, 22/11/1974. 231 In B. M. T., n.º 36, 22/9/1975. 232 Carta dirigida ao secretário de Estado do Trabalho pela CDR, 31/5/1976. 233 Capitão Chumbinho e advogado Sítima, respectivamente. Ver as actas da CDR de Setúbal, de que o Gabinete de Estudos Rurais (GER) possui uma cópia. 234 Carta de 29/4/1976 dirigida ao governador civil. 235 Carta de 2/9/1975 (D. 579 dos arquivos do GER). 236 Carta de 4/3/1975 (D. 688, GER). 237 Carta de 24/2/1975 (D. 700, GER). 238 Carta de Abril de 1975 (D. 701, GER). 239 Carta de 5/4/1975 (D. 689, GER).

240 Resolução de 27/3/1975 (D. 745, GER). 241 Resolução e carta de 1/4/1975 (D. 687, GER). 242 Carta de 9/4/1975 (D. 776, GER). 243 Carta de 5/3/1975 (D. 748, GER). 244 Carta de 3/4/1975 (D. 771, GER). 245 Durante o primeiro ano, a relativa passividade do Governo em matéria agrária pode parecer surpreendente. A este propósito, Salgado Zenha, ministro de vários governos provisórios e presidente do grupo parlamentar do PS na primeira legislatura, afirmava na Assembleia da República: «Um dos mistérios aparentes da revolução de 25 de Abril reside no facto de ser somente a 29 de Julho de 1975, isto é, mais de um ano após o derrube do fascismo, que as leis agrárias gonçalvistas conheceram a luz do dia. Isto é tanto mais estranho quanto é certo que, desde o princípio, todas as correntes democráticas e progressistas as reclamavam perante o consenso geral das forças militares e políticas então hegemónicas. Um facto é no entanto evidente: Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal, verdadeiro co-presidente dos governos provisórios desde Julho de 1974, a isso se opuseram sempre prontamente», in Diário da Assembleia da República de 19/7/1977.

CAPÍTULO IX A CONQUISTA DA TERRA

No início de 1975, o poder político da esquerda e da extrema-esquerda é incomparavelmente maior do que o seu poder social e económico. Os comunistas, os sindicatos, os militares do MFA e, em menor escala, os socialistas controlam uma boa parte das instituições, do aparelho de Estado e da imprensa. O Governo de aliança ou de composição está praticamente paralisado e hesita perante as reformas e a acção. A presença do PS, do PPD e de outros moderados impede o «núcleo radical», composto pelo primeiro-ministro, os comunistas e os militares, de dispor à vontade do Governo. O MFA e o PC não se desinteressam do Governo, mas prestam mais atenção aos sindicatos e às forças armadas, assim como a movimentos sociais que se desenvolvem. As comissões de «moradores», de trabalhadores e de empresa e toda a espécie de grupos proliferam. A direita está derrotada. Os empresários estão cercados e sentem-se ameaçados. Uns deixam de correr riscos económicos, outros vão-se embora para o estrangeiro. Os partidos de centro e de direita não têm força nem organização. O PS, com um pé na revolução e outro na democracia, não consegue orientar o movimento. Com o 11 de Março, o PC, os esquerdistas e o MFA consolidam a sua preeminência política, no Governo e nas forças armadas, e nacionalizam os grupos económicos. A revolução encontrou a sua base económica.

Na rua, a agitação é intensa. As manifestações sucedemse às manifestações, os cortejos às concentrações, uns sempre mais à esquerda do que outros. Multiplicam-se os comícios e as sessões de esclarecimento convocados pelos partidos e pelo MFA. Nas empresas, nos serviços públicos e nas escolas, o clima é semelhante. Um pouco por todo o lado, as «bases», ou os que usam o nome, tomam poderes, saneiam, nomeiam e exigem. A agitação acompanha o medo, a euforia e a inquietação misturam-se. No Alentejo, a ascensão dos sindicatos parece irresistível. Apoiados pelos militares e enquadrados pelos comunistas, tomam posições cada vez mais importantes no aparelho de Estado. Ganham os contratos colectivos de trabalho. Impõem-se aos proprietários. Os seus aliados nas câmaras e nos serviços públicos reforçam-nos. Os proprietários têm medo, mas as suas reacções são diversas. Uns conseguem «actualizar-se», aumentam os salários, melhoram as condições de trabalho e de alojamento dos trabalhadores e esperam assim ser reconhecidos. Há quem cultive mais terras do que habitualmente, na esperança de não ser apontado ou penalizado. Outros escolhem a passividade: não abandonam, agem pouco, não correm riscos nem investem. Alguns, mais nervosos ou mais calculistas, tentam vender o cereal e o gado, talvez mesmo máquinas e terras. Outros vão para o Brasil ou para Espanha. Nada disto é bom para o emprego, tanto mais que é Inverno. O clima político e a desorganização do Estado também fazem reduzir as obras públicas e a construção. Os desempregados regressam às aldeias e olham para as herdades. Em Lisboa, nas cidades, nas indústrias e na administração, tanto como nos serviços e no comércio, toda a gente ganha mais do que há um ano. Não é propriamente a prosperidade, mas os aumentos salariais concedidos pelo Estado e pelas empresas ultrapassam por

vezes os 30%. As classes médias e os operários gozam de condições de vida e de níveis de consumo que nunca conheceram antes. Para esta realidade olham os camponeses de todo o País, os assalariados do Alentejo, os trabalhadores temporários e os desempregados. Por que razões não terão a mesma sorte? Os camponeses do Norte, resignados ou voluntaristas, viram-se para si próprios: dependem do seu trabalho, que é muito, e das suas terras, que são pequenas. Talvez o mercado e os preços tragam alguns benefícios… Os assalariados do Alentejo não têm motivos para olhar para si próprios. Não têm terras suas, apenas vendem o trabalho, desde que haja comprador, o que, neste Janeiro de 1975, não acontece frequentemente. Os trabalhadores alentejanos olham para as terras dos proprietários. Nunca tinham pensado nisso. As suas lutas, há 10, 20 ou 30 anos, tinham outros motivos: os salários, os horários, a alimentação… Numa palavra, o emprego. Nunca a terra. Nunca tinham ousado e, aliás, não a saberiam cultivar sozinhos. Os mais idosos lembravam-se talvez dos seus pais, em 1911, logo a seguir à fundação da República: milhares de trabalhadores em luta, centenas de greves e dezenas de sindicatos formados. Antes de tudo perderem, tinham então obtido melhores salários e melhores condições de vida. Mas não a terra, que aliás não tinham perdido, nem talvez desejado. Os trabalhadores olham para as terras e para as herdades. É ali que é possível encontrar emprego. Na emigração já não é possível. Nas cidades já não há para todos, pois que alguns até voltam à aldeia. Os assalariados alentejanos sabem que muito dificilmente conseguirão os mesmos benefícios que os operários da indústria ou os funcionários públicos. Mas, bem pior, correm o risco de vir agora a perder o que ganharam desde o princípio dos anos 60: emprego mais seguro e melhores salários.

Os tempos da fome e da mendicidade já passaram, mas não estão assim tão longe. Recordam-se ainda dos anos 40 e 50, quando era preciso andar a pedir trabalho em Novembro, pão em Janeiro e esmola em Agosto… E obedecer sempre. Diante da insegurança do presente, a memória crispa-os. Olham para as terras e as herdades, mas também para os sindicatos, novos em folha, e para o Partido Comunista, o único de que se lembram. O partido e os sindicatos já conseguiram para eles, desde Abril de 1974, contratos colectivos que nunca tinham tido, melhores salários, um pouco mais de segurança, força negocial e sobretudo um estatuto mais digno. Só que essas regalias não chegam para toda a gente. A todos, o partido e os sindicatos mostram o caminho e dizem onde se encontra a solução: as herdades dos capitalistas e as terras dos latifundiários. Os funcionários, que os trabalhadores sempre tinham visto distantes e burocratas, dizem-lhes desta vez que é preciso fazer a reforma agrária, dividir as terras, ocupar as herdades. É também o que o Governo diz: que há terras incultas e que a terra deve ser para quem a trabalha. A polícia e a Guarda Republicana, que os trabalhadores se habituaram a ver sempre do outro lado das manifestações, não fazem nada agora, ficam nas esquadras e nos quartéis. Consta mesmo que foram desarmados. Os militares, enfim, último sinal de poder e de ordem, última forma da autoridade do Estado, só têm uma coisa para lhes dizer: é preciso acabar com os capitalistas e os latifundiários, vamos fazer o socialismo, é preciso ocupar as terras e fazer a reforma agrária. É o que os trabalhadores fazem. Ocupam as terras e as herdades. As ocupações

A preparação não faltou. Entre Setembro de 1974 e Março de 1975 foi intensa a actividade no terreno: sindicalistas, militares, militantes, funcionários e técnicos dão o seu contributo. Gente da cidade, ao serviço do Estado ou do partido, ou dos dois, colabora também. Em milhares de reuniões nocturnas, nas aldeias e nos montes, preparam-se planos e trabalham-se as consciências. Numa actividade que lembra os tempos da clandestinidade, grupos de duas a cinco pessoas vão de aldeia em aldeia, de herdade em herdade, ao encontro dos trabalhadores. Anunciam-se os contratos colectivos, sublinham-se as regalias obtidas e discutem-se os direitos dos trabalhadores. Faz-se o inventário dos problemas locais, mas também o das herdades e das máquinas. Mede-se a adesão e o entusiasmo dos trabalhadores, mas avalia-se também o estado das culturas e o grau de utilização das terras. As primeiras ocupações não definem exactamente o modelo do que vai seguir. Com efeito, algumas fazem-se em herdades que já pertencem ao Estado. Outras são o fruto da colaboração entre assalariados e pequenos agricultores, o que não voltará a acontecer dois meses depois. Os proprietários «ocupados» entendem que se tratou sempre de «gente de fora», dos serviços públicos e das forças armadas246. Esta opinião só reflecte uma pequena parte da verdade. Nas ocupações há gente de fora (da administração, do exército e de outros sectores de actividade, até das universidades), mas também gente de dentro: trabalhadores permanentes e sobretudo temporários e desempregados. A dinâmica da ocupação é geral, estende-se a toda a região, pouco depende dos méritos ou das culpas de um empresário individual. Para esta dinâmica contribuem as pressões exercidas pelos militares, sindicatos, militantes comunistas e esquerdistas, no plano tanto local como nacional. É uma

autêntica vaga que pode tomar a forma de influência e de arrastamento. Mas também de contágio ou de intimidação. Por exemplo, um membro do comité central do PC, Dinis Miranda, num comício de Montoito, a 7 de Setembro de 1975, «ameaçou os trabalhadores, no caso de eles não ocuparem as herdades, de trazer homens de Montemor que o fariam»247. Na sequência desta reunião, dez herdades são ocupadas na localidade248. Outro responsável do PC, Joaquim Diogo Velês, parece ter agido do mesmo modo nos concelhos de Alter do Chão, Avis e Ponte de Sor249. Outro exemplo, em Cabeção, distrito de Évora, onde «12 grandes e médias herdades são ocupadas por trabalhadores e por forças militares da Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas»250. Quando começaram as ocupações? Em Novembro de 1974, um conflito está na origem da primeira exploração colectiva de uma herdade por trabalhadores. Mas não se pode ainda dizer que se trata de uma verdadeira ocupação. Com efeito, o «Mouchão do Inglês», em Alpiarça, é propriedade do Estado: uma parte da herdade foi entregue aos técnicos e aos trabalhadores. A primeira ocupação será a da herdade do «Outeiro» ou «Herdade do Zé da Palma», no concelho de Beja. É a única que se verificou ainda em 1974. Com uma superfície de 775 ha, teria apenas 200 ha cultivados251. O proprietário recusou dois trabalhadores colocados pelo sindicato e pretende despedir outros 12. Os trabalhadores ocupam parte das terras e apelam para o Governo. Este, a 25 de Janeiro de 1975, declara a intervenção do Estado e nomeia uma comissão administrativa. Imediatamente são admitidos 34 trabalhadores permanentes e 20 eventuais252. A 8 de Janeiro, em Évora, a herdade do «Pombal» é temporariamente ocupada (a 3 de Fevereiro sê-lo-á definitivamente) por alugadores de máquinas. Ainda em Janeiro, a 27, é tomada a herdade dos «Alpendres», em Beja.

O ritmo aumenta muito lentamente. Até ao fim de Janeiro, menos de um milhar de hectares são ocupados. Em Fevereiro, mais 7343 ha, particularmente as seguintes herdades: «Defesa», em Évora; «Picote», em Montemor; «Sousa da Sé», «Almendras», «Raimunda», «Botaréus», «Aldeia de Cima», todas em Évora; «Quinta da Ferraria», em Alcoentre; os restos do «Mouchão do Inglês», em Alpiarça; e outras nos distritos de Beja, Portalegre e Lisboa253. Até Janeiro de 1976, serão ocupados 1 182 924 ha. Esta superfície pertence a cerca de 4000 herdades, na posse de aproximadamente 1000 famílias254. Ocupações: distribuição mensal (superfícies em hectares) 1975: Janeiro

907

Fevereiro

7 343

Março

5 233

Abril

10 353

Maio

8 226

Junho

30 933

Julho

64 303

Agosto

169 236

Setembro

153 643

Outubro

230 222

Mais 28 698 ha nos distritos de Lisboa, Santarém e Setúbal, mas cujas datas exactas de ocupação não são conhecidas.

Novembro 230 222 Dezembro

37 000

1976: Janeiro

17 635

Uma «periodização» das ocupações põe em relevo a importância decisiva das mudanças políticas a nível central, assim como a das medidas legislativas do Governo. Os seis períodos de ocupação de temas Números de Hectares Percentagem meses

Períodos Desde 25 de Abril de 1974 até à primeira medida preparando a reforma agrária, o «Programa de política social e económica»

8

0

0

Desde a aprovação do PPSE até à ratificação das leis de reforma agrária n.os 203/75 e 207/75, na sequência do 11 de Março

3

13 483

1

Desde as leis-programa até à aprovação das leis de expropriação e de nacionalização dos perímetros regados

4

142 513

12

Desde as leis de expropriação até à criação de um sistema de crédito para o pagamento de salários das herdades ocupadas e das UCP

2

322 879

27

Desde a entrada em vigor do sistema de crédito até ao 25 de Novembro

2

649 414

55

Desde o 25 de Novembro até ao acordo entre os partidos sobre a reforma agrária, em Janeiro de 1976

2

54 635

Total

21

1 182 924

5

100

As primeiras ocupações, apenas 1%, verificam-se depois da aprovação do «Programa de política social e económica», no qual são consagrados os princípios da reforma agrária e da eventual expropriação. A seguir ao 11 de Março, criado o Conselho da Revolução e formado o novo Governo, bem mais à esquerda, é aprovado um programa de reforma agrária, que toma a forma do Decreto-Lei n.º 203-C/75. Aí estão previstas as expropriações, mas ainda não os mecanismos adequados. Os resultados são todavia visíveis: 12% das ocupações. Após a aprovação das leis de expropriação e de nacionalização, que incluem a definição dos limites de propriedade, as ocupações multiplicam-se (27% em dois meses), mesmo se ainda não estão legalmente definidos os critérios de avaliação e os processos de exploração. As ocupações levantam problemas aos trabalhadores. Como subsistir imediatamente? Quem paga os salários e fornece o fundo de maneio? Os sistemas de agricultura alentejanos não criam entradas regulares e constantes de fundos. Conforme as herdades e as suas produções, há momentos privilegiados para recebimento pelas colheitas: os cereais, a cortiça e, quando os há, o azeite, o tomate e as oleaginosas; além do gado, do vinho, da madeira e do carvão, sendo estes bem mais raros. Para as herdades ocupadas, as grandes fontes de receitas são os cereais e a cortiça. Alguns, que ocuparam as herdades antes das colheitas, obtiveram ainda a liquidez necessária para prosseguir os cultivos. Outros, tendo ocupado depois, conseguiram ainda que o Instituto dos Cereais pagasse a eles e não aos antigos proprietários. Mas a maior parte corre o risco de não ter rendimentos, o que quer dizer não pagar salários nem suportar os encargos dos trabalhos de Outono e de Inverno, em especial alqueives e sementeiras. Esta situação pode ter constituído um dissuasor de ocupações, já em Setembro. No fim desse mês, o quinto Governo é demitido. O seu

sucessor, de maioria socialista, inclui Lopes Cardoso na Agricultura, um partidário da reforma agrária. Com ele, dois secretários de Estado socialistas e um comunista. No dia 27, os Ministérios da Agricultura e das Finanças fazem publicar o Decreto-Lei n.º 541-B/75, que permite que o crédito agrícola de emergência (CAE) seja utilizado para o pagamento de salários das UCP e das herdades ocupadas. Foi um autêntico detonador. Imediatamente as ocupações se multiplicam a um ritmo até então desconhecido: cerca de 420 000 ha em Outubro e 230 000 ha em Novembro. Fins de Novembro: o MFA radical e os esquerdistas são vencidos. O PC também e corre o risco de perder o seu lugar no Governo, mas é «salvo» pelos militares moderados e pelos socialistas. Os comunistas ficam na defensiva. Os militares radicais são progressivamente substituídos, tanto nos comandos nacionais como nas unidades, incluindo alentejanas. Tudo isso demora um certo tempo. As ocupações decrescem rapidamente: 5% em dois meses. Cessam inteiramente quando os partidos do Governo (PS, PPD e PC) e o MFA assinam o acordo sobre a reforma agrária. Ainda há, todavia, centenas de herdades que ultrapassam os limites estabelecidos na lei e que não foram ocupadas. Paradoxalmente, a maior herdade do País, «Rio Frio», com perto de 15 000 ha, não é ocupada. Algumas das maiores e mais modernas empresas agro-industriais, como a «Alorna», «Caia-Sagrep» e «Sugal», não são tocadas. Mas as relações de força estão mudadas. O PC prepara-se para uma longa e agressiva defesa das suas conquistas territoriais e económicas, protegidas agora por uma muito legal «zona de intervenção». A direita começa a sua ofensiva. Os socialistas, pela sua parte, vão tentar conservar e mudar ao mesmo tempo, tarefa árdua, por vezes impossível. Do ponto de vista regional, as ocupações distribuem-se do seguinte modo:

Distribuição distrital das superfícies ocupadas e sua parte nas superfícies cultivadas de cada distrito (a) Distritos Beja

Superfícies ocupadas (em hectares)

Percentagem

Percentagem da superfície cultivada do distrito (b)

328 699

27,8

33,0

10 877

0,9

3,7

431 183

36,5

59,5

6 583

0,6

13,9

233 910

19,7

40,4

Santarém

76 571

6,5

21,0

Setúbal*

95 101

8,0

20,7

1 182 924

100,0

34,1

Castelo Branco Évora Lisboa Portalegre*

Total ZIRA

(a) A superfície nacionalizada dos perímetros regados, ou seja, 210 415 ha, não está incluída. (b) Para os distritos de Castelo Branco, Santarém e Lisboa apenas se considera a superfície cultivada incluída na ZIRA. * Números aproximados; o total exacto nunca foi encontrado.

Cerca de um terço da superfície cultivada da região foi ocupada. Acrescentando as superfícies nacionalizadas dos perímetros de rega, obtêm-se 1 393 339 ha, seja 40,2% da superfície cultivada da «zona de intervenção». Em termos nacionais, trata-se de um património fundiário considerável: 16% do território nacional e 19% da sua superfície cultivada. Com os regadios e a Companhia das Lezírias (igualmente nacionalizada), a parte da superfície cultivada de cada distrito ainda aumenta, sobretudo em Santarém e Setúbal, onde os regadios têm mais significado: Beja, 37,7%; Castelo Branco, 7,1%; Évora, 60,7%; Lisboa, 32,3%; Portalegre, 42,9%; Santarém, 31,6%; Setúbal, 38,6%255. Pelo número de ocupações e pela importância da superfície cultivada, três distritos se evidenciam: Évora, Beja e Portalegre. É o coração da região da grande

propriedade, quase todo o Alentejo se encontra aí. Do ponto de vista cronológico, as ocupações foram mais rápidas em Évora: quase dois terços antes de Setembro. Beja aparece com certo atraso: 20% em Agosto e Setembro, 66% em Outubro e Novembro. Portalegre regista 23% até Setembro e mais 77% entre Outubro e Dezembro. Em Castelo Branco, a maioria das ocupações ocorrem em fins de Dezembro, o que é caso especial. Lisboa parece ser o distrito onde as ocupações foram mais rápidas, 68% até Julho, mas esta rapidez não é significativa, pois a superfície ocupada é restrita (6583 ha) e limitada aos concelhos de Azambuja e Vila Franca de Xira. Em Santarém e Setúbal, o movimento é tardio: respectivamente 64% e 71% das terras ocupadas são-no durante o último trimestre do ano. Não há uma ocupação-tipo. A variedade das circunstâncias e dos participantes é grande. Nas primeiras, cerca de duas dezenas, encontram-se pequenos agricultores e alugadores de máquinas, definitivamente ausentes nas seguintes. Trabalhadores e sindicalistas estão sempre presentes. Na maior parte dos casos participam assalariados permanentes, temporários ou eventuais e desempregados da região. Os mais frequentes serão os trabalhadores temporários. Em bastantes casos, longe no entanto de serem a maioria, estão presentes trabalhadores da construção ou vindos da cidade e da fábrica. A participação das mulheres é muito elevada. Militares e funcionários acorrem também: por vezes, antes da ocupação, para discutir com os trabalhadores; muitas vezes, durante a ocupação, armados ou não, em pequeno ou grande número; sempre, depois da ocupação, a fim de fazer inventário, aconselhar os ocupantes e apoiar a criação de uma unidade colectiva. O número de ocupantes, entre trabalhadores, funcionários e militares, pode igualmente variar muito: entre uma dezena e várias centenas.

Houve ocupações sem incidentes nem altercações, como naquele caso, perto de Elvas, em que o proprietário conduz de carrinha uma dezena de trabalhadores à herdade e, quando se vai retirar, ouve: «Escusa de vir buscar-nos esta tarde: nós ocupamos», após o que parte sem discussão256. Algumas são decididas de «comum acordo» entre proprietários e trabalhadores. Há casos em que o proprietário, de boa-fé ou na esperança de ulterior devolução, diz aos «seus» trabalhadores para ocuparem, antes que venham «os de fora». Há situações bem menos pacíficas. Em certos casos, os agricultores resistem e conseguem mesmo impedir que a ocupação se efectue. Os exemplos mais frequentes deste tipo de comportamento são rendeiros, seareiros ou pequenos proprietários257. Quando, em grandes empresas, se verifica alguma resistência, os acontecimentos podem revestir várias modalidades. Os ocupantes cercam a propriedade, vêm cada vez mais numerosos e, após uns dias, o proprietário abandona. Ou então, muito mais simplesmente, os ocupantes chamam as forças armadas. Os militares apresentam-se, geralmente com o objectivo explícito «de impedir conflitos e violência», o que aliás conseguem. O resultado da operação é sempre a confirmação da ocupação. Ou porque são essas as instruções superiores; ou porque o oficial que comanda o destacamento está convencido do direito dos ocupantes e está solidário com eles; ou, finalmente, porque parece a melhor maneira de evitar conflitos, isto é, entregar a propriedade aos mais numerosos. Convencer o proprietário a partir, com a promessa de um exame ulterior do caso, e enviar o processo aos superiores e ao Ministério da Agricultura, eis a solução que permitiu, com menores desgastes para os militares, sair de múltiplos impasses. Poucas situações deram lugar a reais violências físicas, mais frequentes nas manifestações urbanas e nos comícios

do que nas ocupações258. O caso da herdade de «Sousa da Sé» marcou uma data. O Governo e as forças armadas intervieram energicamente, foi uma autêntica advertência aos proprietários e um encorajamento aos trabalhadores. A 15 de Julho de 1975, de manhã cedo, um grupo de trabalhadores procede ao alargamento de uma ocupação iniciada em Março, com o acordo do Centro Regional de Reforma Agrária259. Os proprietários estão armados, ajudados por alguns trabalhadores permanentes que ficaram «fiéis» e por algumas pessoas do exterior. Há tiros de parte a parte e um ferido grave de cada lado. Chegam destacamentos militares e impedem a continuação da luta. Oito pessoas, do lado dos proprietários, são presas. Após rápido inquérito, os militares dão razão aos trabalhadores e confirmam a ocupação. No dia seguinte, o ministro da Agricultura desloca-se expressamente à «Sousa da Sé», trazendo aos trabalhadores a solidariedade do Governo e a autoridade. As forças armadas, o Ministério e o Conselho Regional de Reforma Agrária tomam posições firmes e condenam «os reaccionários da pior espécie» e as manobras dos que pretendem criar obstáculos «à justa luta dos trabalhadores e às decisões dos órgãos do Governo»260. O caso da «Sousa da Sé» serviu de exemplo e de aviso. Os proprietários eventualmente dispostos a resistir pela força sabem agora com o que podem contar. O ministro ameaça tomar medidas legais contra os que pretendam opor-se às ocupações, mesmo se estas, em princípio, são ilegais261. Quem o fizer perderá o direito a futuras indemnizações e a reservas de propriedade. De qualquer modo, a presença das forças armadas é suficientemente dissuasora. Esta realidade será talvez uma das principais causas da ausência de violência, habitual nos processos de reforma agrária ou de revoltas camponesas. Houve também iniciativas estritamente militares. Na Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas, por exemplo,

chegou a constituir-se uma «brigada de ocupações», ou «brigada da reforma agrária», na qual se distinguiu o capitão Andrade e Silva. Formava-se «um pequeno destacamento com jipes que deixava de manhã cedo o quartel e ia correr as herdades. Eram verdadeiros revolucionários: levavam boinas ‘à Che Guevara’ e cartucheiras à volta do corpo. Pegavam nuns trabalhadores, dirigiam-se para uma herdade, deixavamnos lá e declaravam a herdade ocupada. Num só dia, chegaram a ocupar 12 herdades desta maneira»262. No entanto, a principal iniciativa pertence aos sindicatos e às suas «comissões de ocupação», ou «comissões de trabalhadores». Apesar de alguns improvisos, a maior parte das ocupações foi precedida de uma preparação mais ou menos minuciosa, chegando mesmo a haver uma espécie de planeamento regional. Sendo verdade que muitas ocupações se fizeram isoladamente, o certo é que são numerosas as ocupações de herdades vizinhas no mesmo dia ou na mesma semana. Os dirigentes da unidade colectiva «Muralha de Aço», composta de várias herdades do concelho da Vidigueira, contam como prepararam as ocupações. Escreveram previamente ao Centro de Reforma Agrária. O sindicato acompanhou a ocupação e fez os inventários. Um oficial das forças armadas veio a seguir. Tudo se passou sem problemas. Depois de organizada a UCP com as primeiras herdades, planearam a segunda série de ocupações, mais tarde, em Outubro, no mesmo dia. «Fizemos um estudo de todas as herdades que ultrapassavam os limites definidos pela lei», diz um dos responsáveis263. Outro exemplo vem de Campo Maior. A acção foi rigorosamente preparada. Na manhã de 20 de Agosto de 1975, o sindicato organiza grupos de quatro trabalhadores cada um. Armados com caçadeiras, dirigem-se para as várias herdades, que serão ocupadas simultaneamente: «Castros», «Xévora», «Poço de Cima», «Poço de Baixo»,

«Ronquilha», «Vale de Albuquerque», «Salvador», 264 «Mourinha» e Serrinha» . Um responsável da CGTP confirma esta ideia de preparação: «As ocupações não foram selvagens, sem coordenação. Há evidentemente excepções, aquelas em que os ocupantes não são trabalhadores, mas filhos de proprietários que se divertem às revoluções. No essencial dos 300 000 ha já ocupados, as acções decorreram de um estudo detalhado das condições de produção e das possibilidades de aumentar as taxas de utilização da terra.»265 Além da intervenção dos sindicatos e dos militares, a do PC, como tal, é também significativa. Conhece-se a actuação dos membros do comité central em várias séries de ocupações266. Longas listas de responsáveis partidários vêm regularmente referidas nos relatórios que as unidades militares deviam elaborar para os seus superiores, que vêm aliás organizadas em secção autónoma: «Elementos do PC intervenientes nas ocupações»267. Na ausência de serviços de polícia e de informação, tais tarefas eram desempenhadas pelas forças armadas. Em Julho, por exemplo, os serviços de escuta militares interceptam um telefonema da sede do PC em Évora para a sede do PC em Lisboa pelo qual se transmite a lista de propriedades da região que vão ser ocupadas268. De qualquer maneira, as relações entre militantes comunistas e sindicalistas são tão estreitas e intensas que não é possível distinguir a génese partidária ou sindical das ocupações. A maior parte dos dirigentes sindicais são membros do partido e é como tal que se apresentam em reuniões públicas e em eleições locais. Na acção dos militantes J. Soeiro, J. Luís, M. Vicente ou Tibério não é possível distinguir o que é partidário, o que é sindical ou o que é cooperativo. Sendo embora fortes e organizados, os sindicatos nunca tiveram real autonomia em relação ao partido.

Curiosamente, não há líderes regionais ou nacionais vindos dos meios camponeses e de assalariados. A revolução alentejana não produziu os seus dirigentes. Os «heróis» da reforma agrária são velhos funcionários do PC (D. Miranda, A. Gervásio, D. Velês), um advogado e secretário-geral do partido, dois generais (Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho) e alguns funcionários públicos. Quando as ocupações se terminam, em Janeiro de 1976, quase metade das terras e da produção agrícola do Alentejo está nas mãos das unidades colectivas. Em certos sítios, vastas extensões não são ocupadas: Almodôvar, Castro Verde, Mértola, Odemira e Serpa. Estas herdades não atraem a atenção de ocupantes: são solos geralmente muito pobres, de capacidade agrícola nula ou reduzida. Só uma dispendiosa reconversão permitiria que dali se retirassem rendimentos, o que não está ao alcance dos trabalhadores. Pelo contrário, a maior parte das grandes herdades e empresas modernas e produtivas foram prontamente ocupadas. A ideia de penalizar o subaproveitamento e o abandono, presente no espírito de todos em 1974, está muito longe dos objectivos dos ocupantes de 1975. Estes querem atingir a propriedade e a empresa capitalista. Os poucos casos de grandes empresas que não foram ocupadas explicam-se por razões circunstanciais. Nuns, os trabalhadores permanentes aliaram-se aos empresários e defenderam o statu quo269; noutros, as herdades estavam situadas em regiões onde grande número de pequenos agricultores constituíram uma verdadeira protecção ou barreira dissuasora270. Estes casos, frequentes no Ribatejo, são mais raros no Alentejo. Também ocorreram situações excepcionais. Um proprietário foi poupado porque tinha boas relações, no antigo regime, com a oposição; outro, porque um oficial do MFA lhe ficou a «dever a vida» no decurso de incidentes num comício; outros, finalmente, porque, apesar de serem

notáveis do antigo regime, tinham relações familiares estreitas com dirigentes de partidos de esquerda. Mas estes casos são a «pequena história». A paragem das ocupações não se ficou a dever a razões particulares, agrárias ou regionais, mas sim gerais e políticas. Há, todavia, fenómenos específicos e singulares que influenciaram os acontecimentos. O meio camponês, a densidade de pequenos agricultores, de rendeiros e seareiros, travou, aqui e ali, a progressão dos ocupantes. Conflitos locais entre trabalhadores e camponeses ou pequenos agricultores marcaram uma espécie de limites ou marcos. A verdade é que a «zona de intervenção» legalmente definida parece ter fronteiras numa linha que liga os locais de conflitos: Rio Maior, Almeirim, Alpiarça e Gavião, a norte; Odemira, Ourique e Monchique, no Sul271. Apesar destas particularidades, a principal razão para o fim das ocupações é a mudança das relações de força em finais de 1975. A assinatura da «plataforma» dos partidos sobre a reforma agrária é o acto representativo da nova situação. É o fim das ocupações e a demonstração das estreitas relações existentes entre estas e o poder político. As nacionalizações As principais nacionalizações, actos política e juridicamente diferentes das expropriações, foram as dos perímetros regados. O seu instrumento legal é o DecretoLei n.º 407-A/75, de 30 de Julho. Estes perímetros são compostos por vários conjuntos de prédios rurais, de dimensões muito diversas, beneficiando em grande parte do acesso à rega. As obras foram feitas depois dos anos 60, pelo Estado, e faziam parte do «Plano de rega do Alentejo», que aliás ficou aquém dos seus objectivos. Constituem um total de 186 638 ha, assim distribuídos: Campilhas e Alto Sado, 16 833 ha; Caia, 8597 ha; Idanha,

10 050 ha; Divor, 2225 ha; Loures, 77 ha; Mira, 12 208 ha; Odivelas, 24 239 ha; Roxo, 8001 ha; Vale do Sado, 68 400 ha; Vale do Sorraia, 36 008 ha. A esta superfície pode acrescentar-se a Companhia das Lezírias, sociedade privada por acções, o maior conjunto agrícola do País (23 777 ha) e um dos mais vastos da Europa ocidental. Compreende uma extensa área regada, além de grande parte em sequeiro. A sua nacionalização foi decidida por Lopes Cardoso, já durante o sexto Governo provisório. A Companhia está situada nos distritos de Lisboa (8611 ha) e de Santarém (15 166 ha). Trata-se de um património considerável, mais de 200 000 ha. Mas o seu valor económico, graças à água e à qualidade dos solos, é muitíssimo maior do que superfícies equivalentes em sequeiro: superior intensificação, produção e produtividade mais elevadas, mais emprego e maiores rendimentos. A maior parte das terras regadas pertencem aos distritos de Setúbal (82 609 ha), Beja (47 069 ha) e Santarém (38 650 ha). Portalegre (14 835 ha), Castelo Branco (10 050 ha), Lisboa (8688 ha) e Évora (8511 ha) vêm a seguir. Uma parte muito importante destas superfícies concentra-se em poucos concelhos: Alcácer do Sal (68 000 ha), Ferreira (23 000 ha), Coruche (18 000 ha), Odemira (14 000 ha), Santiago de Cacém (12 000 ha) e Idanha-aNova (10 000 ha). As nacionalizações foram, por excelência, o meio estatal de conquista da terra. As decisões foram políticas, tomadas em laboratório, não implicaram nem tiveram relações com movimentos sociais. Todavia, diversas forças políticas encaravam favoravelmente a intervenção do Estado nos regadios. Mesmo o moderado «Programa de política social e económica» previa a expropriação da maior parte das terras regadas com obras feitas pelo Estado. Trata-se, com efeito, de terras beneficiadas por grandes

obras de infra-estrutura, muito dispendiosas, financiadas por dinheiros públicos. Ora, uma minoria de proprietários e de grandes empresários teve, com estas realizações, desproporcionadas vantagens e significativos lucros. Enquanto uns aumentaram as suas produções com poucos investimentos próprios, outros aumentaram os preços que fizeram pagar aos rendeiros pelas suas terras272. Do ponto de vista jurídico, a intervenção do Estado é fácil: as barragens, as infra-estruturas e os equipamentos pesados pertencem ao Estado. A superfície bonificada é conhecida e medida. Nacionaliza-se o conjunto da área e das explorações agrícolas abrangidas, deixando aos agricultores com áreas inferiores a 30 ha os direitos de que gozavam antes273. Nestes perímetros não há praticamente ocupações de terras até Agosto de 1975, data de promulgação do decreto-lei. Tudo aqui é diferente do sequeiro. Não que haja menos assalariados, bem pelo contrário. Mas é uma agricultura diversificada que ocupa grande número de pequenos agricultores, proprietários, rendeiros e seareiros e que dá trabalho durante períodos mais longos. A diversidade social e uma superior densidade de população e de explorações agrícolas tornaram praticamente impossíveis as ocupações, ou pelo menos mais difíceis. Aliás, dois anos depois das nacionalizações (e mesmo dez anos depois…), centenas de proprietários e de agricultores não tinham deixado de trabalhar as suas terras, mesmo os que possuíam muitas mais do que permitia a lei. As expropriações Para os prédios abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 406-A/75, de 29 de Julho, é preciso agir de modo diferente, isto é, caso a caso. Serão necessários inventários, medidas e avaliações; e em seguida, por portaria, decretar as expropriações individualmente.

Outro traço distingue estas explorações, por comparação com as que foram nacionalizadas: estão quase todas ocupadas, já estando mesmo criadas dezenas de unidades colectivas de produção. As primeiras expropriações acontecem em Setembro de 1975. Já há 400 000 ha ocupados. O quinto Governo provisório chega ao fim. Receando o futuro e desconhecendo o sucessor, o ministro da Agricultura manda publicar no Diário do Governo portarias de expropriação representando uma superfície de mais de 220 000 ha. O Governo seguinte não contraria esta orientação, que aliás estava consignada na lei. As expropriações prosseguem, a ritmos diversos, até Outubro de 1976, havendo mesmo algumas em 1977 e 1978274. Ao todo, foram legalmente expropriados 931 827 ha. Na sua quase totalidade, trata-se de herdades previamente ocupadas. Evolução mensal das expropriações (superfícies, número e dimensões médias das herdades) Data

Superfície (em hectares)

Número de herdades

Dimensão média

1975: Setembro

221 099

389

568







Novembro

41 169

201

205

Dezembro

80 585

275

293

67 792

166

408

6 665

14

476

20 117

152

132

Abril

1 075

2

537

Maio

49 564

216

230

Outubro

1976: Janeiro Fevereiro Março

Junho

86 206

259

333

Julho

68 680

452

152

262 177

1226

214







1 589

73

22

1977

23 642

184

129

1978

1 467

14

105

931 827

3623

257

Agosto Setembro Outubro

Total

O interesse desta evolução é mais político e administrativo do que social. Não traduz o ritmo de ocupações, é apenas o reflexo do trabalho e das prioridades do Ministério. As dimensões médias decrescem desde o início, sendo finalmente bem reduzidas. As últimas são já parcelas ou prédios pertencendo a proprietários que já foram expropriados de áreas mais vastas. O número de prédios expropriados atinge os 3623, mas o de proprietários situa-se ligeiramente abaixo de 1000. Nestas condições, o número de herdades por proprietário é de quase quatro275. A dimensão média de terra possuída por um proprietário, individual ou familiar, é de 950 ha a 1050 ha. O total de 931 827 ha expropriados não atinge o de terras ocupadas, que é de 1 182 924 ha. Com efeito, muitas herdades ocupadas não chegaram a ser expropriadas. A sua situação legal não virá a ser corrigida tão cedo. A superfície expropriada total inclui o conjunto de propriedades visadas pela lei, abrangendo ainda a parte que o proprietário poderia guardar: são as reservas, previstas em termos restritos pela lei de 1975, mas alargados pelas alterações de Janeiro de 1976. Com efeito, as reservas não são conferidas em plena propriedade, mas

apenas como direito de posse e uso. A distribuição regional das expropriações confirma as observações feitas a propósito das ocupações. Évora, Beja e Portalegre distinguem-se pelo número de herdades expropriadas (1153, 1034 e 947, respectivamente), assim como pelas superfícies: 425 290 ha, 164 910 ha e 179 062 ha. Em certos concelhos, a superfície expropriada e nacionalizada representa mais de metade da superfície cultivada. No distrito de Beja: Barrancos (59,8%) e Ferreira (58,7%); em Évora: Évora (72,9%), Mora (75,7%), Viana (72,9%), Portel (71,3%), Montemor e Vendas Novas (71,1%), Arraiolos (69%) e Redondo (59,6%); em Portalegre: Avis (65,6%), Sousel (61,7%), Ponte de Sor (59,6%) e Alter do Chão (53,7%); em Santarém: Coruche (57%) e Chamusca (53,9%); e, finalmente, no distrito de Setúbal: Alcácer do Sal (79,3%). Na maior parte dos concelhos, as expropriações e as nacionalizações representam entre 10% e 50% da superfície cultivada. Na base da escala, com menos de 10%, encontram-se os concelhos seguintes: Almodôvar (0,3%), Castro Verde (10%) e Mértola (7,9%), no distrito de Beja; Castelo Branco (2,2%) e Vila Velha de Ródão (valor insignificante), em Castelo Branco; nenhum no distrito de Évora; Marvão (v.i.), Nisa (1,7%) e Portalegre (9,7%), em Portalegre; Almeirim (2,5%), Constância (v.i.), Golegã (v.i.), Rio Maior (3,7%), Salvaterra de Magos (2,6%) e Vila Nova da Barquinha (v.i.), em Santarém; e, enfim, Sesimbra (v.i.) e Setúbal (7,7%), no distrito de Setúbal, donde foram excluídos os concelhos essencialmente urbanos, como Almada e Barreiro. Esta grande disparidade revela a diversidade de situações sociais, económicas e naturais. Os concelhos onde aquele valor é superior a 50% são os que registam as mais altas percentagens de assalariados na população activa agrícola, acima dos 85%276. Pelo contrário, nos

concelhos com taxas de expropriação mais reduzidas, a população activa surge mais equilibrada, representando os assalariados valores próximos dos 60%277. Há, evidentemente, excepções, mas esta é a tendência geral bem nítida. Paralelamente, nos concelhos onde é maior o número de agricultores autónomos, da ordem dos 20% a 40%, é menor o número de ocupações e de expropriações. As excepções, que também as há, são devidas à existência de regadios, onde, por um lado, é superior o número de pequenos agricultores, mas também são mais vastas as superfícies nacionalizadas. Do ponto de vista da sua distribuição geográfica, os seguintes factores exerceram uma forte influência na intensidade de ocupações e expropriações: a) Percentagens mais elevadas de solos com boas capacidades agrícolas; b) Predominância da agricultura extensiva de sequeiro; c) Maiores dimensões médias das herdades; d) Taxas de proletarização elevadas; e) Taxas de concentração de terras cultivadas; f) Intensidade da produção de trigo. Existe finalmente, como seria de esperar, uma forte correlação entre as ocupações e os resultados eleitorais do PC278. Inversamente, os seguintes factores são desfavoráveis, ou coexistem nos concelhos que registaram os mais baixos índices de ocupação de terras: a) Número de pequenos agricultores mais elevado; b) Existência de regadios; c) A má qualidade dos solos; d) Maiores dimensões de terras incultas, subaproveitadas ou não cultiváveis;

e) A baixa produtividade da terra; f) As elevadas densidades de população; g) A diversificação agrícola e a intensidade das culturas. As unidades colectivas de produção Uma coisa é ocupar terras e herdades. Outra, bem mais complexa, é organizar a produção. No começo não há modelos conhecidos. As disposições legais são vagas, apenas mencionam o apoio às cooperativas. Os programas divulgados pelo PC e pelo PS contentam-se com generalidades. Tudo parece possível, da divisão de terras à constituição de herdades do Estado. Não haverá então nenhum plano? O PC tem um. Discreto, confidencial mesmo, mas relativamente concreto e pormenorizado: está contido no memorando enviado ao primeiro-ministro, assinado por quatro responsáveis do comité central que se intitulam, a abrir o texto, «nós, filhos das classes trabalhadoras»…279 Além das cooperativas tradicionais, previstas como «mais frequentes nos distritos do Norte», os signatários propõem, para as regiões do Sul e nas terras a expropriar, dois novos tipos de empresas: as «herdades colectivas» e as «herdades de Estado». Os trabalhadores recrutados para as primeiras «deverão ser trabalhadores de vanguarda», serão «remunerados com um salário e terão as regalias e as condições de trabalho fixadas pelo estatuto dos trabalhadores do Estado». Estas herdades deverão «funcionar como herdades-modelo e serão instaladas nas zonas nevrálgicas e nos sistemas de regadio». Pelo seu lado, as herdades colectivas destinar-seão às vastas extensões de agricultura de sequeiro, às quais parecem melhor adaptadas. Precisam de uma organização mais maleável, não pertencendo os trabalhadores às vanguardas. As remunerações também seriam exclusivamente os salários. Foi o princípio das herdades colectivas que inspirou o

modelo das unidades colectivas de produção, as UCP. O Governo não assumiu a responsabilidade de definir o estatuto, preferiu esperar por desenvolvimentos futuros. O PC defendia com insistência que o Governo não tomasse excessivos compromissos legais. O Governo nada adiantou juridicamente, mas na prática tomou várias decisões favoráveis às UCP. Assim, o Decreto n.º 406-B/75 estabelece regras de reconhecimento legal das «novas unidades de produção». Isto com vista a facilitar a concessão de créditos e a fim de fazer beneficiar as UCP «da assistência técnica e financeira do Estado, mesmo antes da sua regularização estatutária e legal definitiva, desde que sejam reconhecidas como unidades colectivas de produção». O preâmbulo deste diploma esclarece as razões desta aparente passividade: «Seria altamente prejudicial fazer depender a concessão de crédito […] de regulamentos estatutários e do reconhecimento legal de unidades que podem ser a diversos títulos consideradas como experiências de vanguarda. O certo é que o seu regime jurídico poderá ser definido com base no amadurecimento e no desenvolvimento das experiências sociais em curso.» Sincera e táctica, esta atitude permitiu aceitar as UCP de facto, sem compromissos jurídicos ou políticos, mas, também de jure para os fins práticos, isto é, para o crédito, as operações comerciais e a assistência do Estado. O mais importante era, com efeito, o desenvolvimento das ocupações e o crescimento das UCP no quadro de um dispositivo suficiente para garantir a orientação colectivista. Esta teria sido bem mais difícil se tivesse de ser objecto de negociações em Conselho de Ministros, onde o PS e o PPD estavam representados. A criação de UCP seguiu de perto as ocupações. Em fins de 1976 contavam-se cerca de 610 unidades colectivas, numa superfície total de 1 182 736 ha280. A área média de cada uma é de 1939 ha. Também em média, cada UCP é

constituída por seis herdades diferentes281. O sector colectivo em 1976: número e superfície das UCP Distritos Beja

Área total

Número de UCP

Superfície média (em hectares)

192

347 238

1808,5

7

10 306

1472,3

178

439 449

2468,8

4

4 366

1091,5

Portalegre

70

205 998

2942,8

Santarém

81

79 617

982,9

Setúbal

78

95 762

1227,7

610

1 182 736

(1938,9)

Castelo Branco Évora Lisboa

Total

Tendo em conta as deficiências do aparelho estatístico e as incertezas do momento, é possível que o número de UCP tenha sido menor. Teríamos, nesse caso, que a área média das UCP ultrapassaria os 2000 ha282. Os distritos de Beja e Évora distinguem-se uma vez mais: pelo número de UCP, pela área do sector colectivo e, juntamente com Portalegre, pela dimensão média das UCP. Esta última, que varia bastante de distrito para distrito, depende de vários factores: situação geográfica, tipo de culturas, número de herdades, existência de instalações e de equipamentos, presença de regadio, etc. Só uma tendência aparece: as maiores unidades colectivas estão instaladas em zonas de agricultura de sequeiro. Um certo número de UCP ultrapassa claramente os 10 000 ha, como por exemplo: «12 de Maio», em Ponte de Sor (12 700 ha); «1.º de Maio», em Avis (12 200 ha); «Aguiar», em Viana (14 300 ha); «Salvador Joaquim do Pomar», em Montemor (13 900 ha); «Margem Esquerda», em Serpa (15 700 ha); «Estrela do Guadiana», em Mértola (11 900 ha); «Terra de Catarina», em Beja (10 500 ha); e «Esquerda

Vencerá», em Serpa (10 200 ha). Pelo menos 35 UCP têm áreas situadas entre 5000 ha e 10 000 ha. Apesar das diferentes circunstâncias sociais e económicas, os primeiros efeitos das ocupações e das expropriações vão no sentido da concentração fundiária, o que aliás está na tradição colectivista. Com maior número de UCP distinguem-se os concelhos de Beja (53), Coruche (51), Alcácer do Sal (31), Évora (30), Montemor (25), Mora (24), Arraiolos (23), Santiago de Cacém (22) e Ferreira (20). Note-se que quase todos estes concelhos têm vastas áreas regadas. Entre os concelhos com menor número de UCP contam-se Almodôvar, Barrancos, Sesimbra e Sines, com uma só unidade283. Para se constituir formalmente e possuir personalidade jurídica, as UCP deviam elaborar e fazer publicar os seus estatutos. Este procedimento será generalizado, como medida de defesa, a partir de Janeiro de 1976, depois das derrotas de Novembro anterior. Terminada a revolução, tornava-se necessário consolidar as conquistas e organizálas. O maior número de legalizações formais de UCP verifica-se na transição entre o regime provisório e o regime constitucional, o que é significativo. Em Évora, 143 UCP fazem publicar os seus estatutos, assumindo-se como «cooperativas» para todos os efeitos legais, entre Agosto e Outubro de 1976. Todavia, na busca de assistência oficial e de créditos, as UCP tinham-se feito reconhecer antes, em processos bem mais sumários, mas igualmente legais. Desde Outubro de 1975, ainda decorriam as ocupações, o secretário de Estado A. Bica fazia publicar no Diário do Governo (2.ª série) listas de UCP «reconhecidas». Até Julho de 1976 são assim legalizadas 473, das quais 160 em Évora e 86 em Beja. Quanto à população das unidades colectivas, a repartição dos trabalhadores permanentes de UCP, por distrito, é a seguinte284:

Trabalhadores permanentes nas UCP, 1976 Beja

8 069

Castelo Branco

227

Évora

17 103

Lisboa

158

Portalegre

8 598

Santarém

2 510

Setúbal

3 387 Total

40 052

Évora destaca-se uma vez mais, seguido de Beja e de Portalegre. As razões entre o número de assalariados, as superfícies do sector colectivo e o número de unidades colectivas evidenciam as grandes dimensões das empresas e confirmamos sistemas agrários extensivos285. Trabalhadores permanentes por UCP e hectares por trabalhador no sector colectivo, 1976 (por distrito) Distrito

Trabalhadores por UCP

Hectares por trabalhador

Beja

73,4

43,0

Castelo Branco

22,7

45,4

101,2

25,7

17,6

27,6

Portalegre

136,5

24,0

Santarém

34,4

31,7

Setúbal

48,4

28,3

Évora Lisboa

Os vários distritos não estão muito longe uns dos outros. As diferenças são o reflexo das condições naturais e das culturas, nomeadamente a presença de regadio e de

cultivos labour intensive, como o tomate, a vinha e o azeite. De qualquer modo, os índices de área por trabalhador revelam, ou, antes, confirmam, os métodos agrícolas em vigor na região há muito tempo. A produção agrícola Energicamente defendidas pelos seus partidários e vigorosamente criticadas pelos adversários, as unidades colectivas transformaram-se numa realidade e num símbolo bem controversos. Os seus membros estão geralmente satisfeitos e querem preservar o que consideram serem vantagens materiais e subjectivas. Os trabalhadores do sector privado estão partilhados entre a simpatia e a animosidade. A maioria dos pequenos agricultores denuncia-as com veemência. Os proprietários declaram-se seus inimigos absolutos, estimando que são apenas o resultado de um roubo286. Nestas circunstâncias, aliás previsíveis, o teste e a avaliação dos resultados das UCP poderiam ser as suas produções. O problema é que tal estudo ainda não foi possível. Os meios oficiais sabem muito pouco e por vezes nem sequer se interessam em saber. As UCP, os sindicatos e o PC reivindicam produções prodigiosas, «as melhores do século», assim como melhoramentos técnicos constantes: regadios, mecanização, aumento dos gados, alargamento das superfícies cultivadas e introdução de novas culturas287. Os adversários, antigos proprietários, responsáveis da Confederação dos Agricultores de Portugal e círculos próximos do PM e do CDS afirmam exactamente o contrário: as UCP obtiveram os piores resultados produtivos das últimas décadas, destruíram infraestruturas e não sabem tratar das culturas nem dos gados288. Uma arbitragem rigorosa é impossível. São absolutamente insuficientes os dados credíveis sobre o

sector colectivo e sobre as herdades que o constituem, mas na altura em que eram explorações privadas. Por outro lado, o sector colectivo não ficou estável durante um período bastante para permitir uma análise. Com efeito, formado ao longo de 1975, atingiu um máximo (em áreas e número de trabalhadores) em 1976 e começou a diminuir desde então por causa da demarcação de reservas, das devoluções e dos abandonos de unidades colectivas. Em cinco anos, depois de ter chegado a 1 100 000 ha, foi reduzido de cerca de 650 000 ha, dos quais 500 000 ha entregues aos proprietários e 150 000 ha distribuídos a pequenos agricultores. É todavia possível sondar alguns aspectos da produção. O ano agrícola de 1974-1975 foi bom, do ponto de vista das condições naturais e dos rendimentos agrícolas. Prepararam-se os alqueives para o ano seguinte. No Outono de 1974 fizeram-se as sementeiras. Com boas condições e algum optimismo dos agricultores, as superfícies semeadas foram alargadas relativamente ao ano anterior. Trata-se de uma situação normal no sistema de rotações do Alentejo e que acontece periodicamente, como por exemplo em 1970. Entre Setembro e Novembro de 1974 fazem-se as sementeiras para 1975 e os alqueives para 1976. As condições psicológicas ainda não são muito desfavoráveis para os proprietários e os agricultores. As primeiras pressões sindicais no sentido do aumento do emprego tiveram talvez como consequência fazerem-se mais trabalhos de Outono, até porque o clima ajudava. As colheitas de 1974, sem serem excelentes, tinham sido boas, os rendimentos razoáveis. Os agricultores estavam portanto em condições de encarar, sem dificuldades excessivas, os consideráveis aumentos salariais do ano de 1974, 30% a 45% relativamente ao ano anterior. São estes os principais factores que estão na origem da boa colheita de 1975, que nada deve às ocupações nem à reforma agrária. As colheitas fizeram-se entre Junho e

Setembro de 1975, em parte já sob a responsabilidade dos ocupantes, mas a maioria ainda sob a orientação dos agricultores. Estes não verão, aliás, uma boa parte das receitas, dado que o Instituto dos Cereais reteve avultadas somas, seja para liquidar dívidas dos agricultores, seja simplesmente para as entregar aos ocupantes. O ano agrícola de 1975-1976 (colheitas de 1976) dá resultados excelentes para o trigo, a aveia e a cevada. As produções são superiores a quase todos os anos precedentes e às médias 1960-1963 e 1970-1973289. Só o arroz tem uma queda considerável. Zona de Intervenção da Reforma Agrária: produção de cereais (em milhares de toneladas) Média 1960-1963

Média 1970-1973

1974

1975

1976

1977

Trigo

359

458

432

494

578

175

Arroz

131

136

99

98

67

78

Aveia

64

69

78

97

103

46

Cevada

38

45

57

69

99

29

Ora, as produções de 1976 são da responsabilidade dos ocupantes e das UCP, que fizeram as sementeiras no Outono de 1975 e talvez tenham aproveitado os alqueives feitos no ano anterior, ainda pelos proprietários. Em 1976, estes aumentos de produção bem evidentes são devidos ao alargamento das superfícies semeadas e a excelentes condições naturais. Zona de Intervenção da Reforma Agrária: superfícies semeadas com cereais (em milhares de toneladas) Média 1960-1963 Trigo

491

Média 1970-1973 386

1974 356

1975 394

1976 431

1977 198

Arroz

26

31

24

21

15

24

Aveia

240

141

132

165

175

117

87

68

68

74

116

49

Cevada

Nota-se ainda uma ligeira melhoria dos rendimentos do trigo (em quintais por hectare): 1970-1973

11,87

1974

12,13

1975

12,54

1976

13,41

Todavia, este aumento, pouco significativo porque num período muito reduzido, inscreve-se no crescimento da produtividade que, apesar de muito lento, data de há já alguns anos. Os outros cereais, durante os mesmos períodos, revelam uma certa estagnação da produtividade ou mesmo uma pequena redução. A aveia passa de 4,9 q/ha em 1970-1973 a 5,9 q/ha nos anos de 1974 a 1976. A cevada cresce até 1975, mais baixa em 1976 (6,6 q/ha, 8,6 q/ha, 9,3 q/ha e 8,5 q/ha). Já o arroz conhece uma diminuição muito significativa, tanto na produção como nas superfícies semeadas, enquanto os rendimentos por hectare são erráticos, mas sem oscilações excessivas: 43,87 q, 41,25 q, 46,67 q e 44,67 q. Até 1976, os dados são insuficientes para demonstrar a «superioridade da produção colectiva», como o são para confirmar o «desastre da reforma agrária». Se as estatísticas revelam alguma coisa, ainda é uma certa continuidade de resultados, de técnicas e de métodos. Uma coisa é certa também: nestes três anos, o clima manteve-se o elemento decisivo, o que é próprio das agriculturas tradicionais, extensivas, em sequeiro. O factor singular, na origem dos aumentos de produção,

é o alargamento de superfícies semeadas. Este é evidente em 1975-1976, sob a responsabilidade das UCP; mas tinha sido já iniciado ou preparado pelos proprietários em 19741975. Com efeito, nos principais distritos produtores de cereais, o crescimento das superfícies semeadas com todos os cereais é muito significativo relativamente à média da década precedente, mas menos importante em relação ao ano anterior. Crescimento das superfícies semeadas: Cereais, 1975-1976 (em percentagem) Em relação à média da década de 1966-1975

Em relação a 1974-1975

Beja

27

13

Évora

83

41

Portalegre

24

11

Setúbal

28

14

Mesmo a grande colheita de 1976 (685 000 t de trigo em todo o País, das quais 578 000 t na zona de intervenção), anunciada pelas unidades colectivas como a demonstração da sua eficácia produtiva e económica, não vale como argumento de peso. Com efeito, ainda fica abaixo de algumas colheitas excepcionais durante o século, nomeadamente a de 1971: 794 000 t de trigo em todo o País e cerca de 700 000 t na zona de intervenção290. Outros anos em que a produção ultrapassa a de 1976 são os de 1968, 1958, 1957, 1954 e 1953. O ano agrícola de 1976-1977 pode eventualmente esclarecer um pouco mais esta questão291. Tanto no sector privado como no colectivo, as colheitas são feitas por quem preparou os alqueives e semeou. Neste período, é mesmo o único ano em que tal acontece. As devoluções e sobretudo as demarcações de reservas ainda não começaram. Assim, 1976-1977 poderia ser um ano

testemunho. O problema é que as condições climáticas foram muito más, excepcionalmente desfavoráveis para os cereais. As superfícies semeadas de trigo e cevada foram reduzidas mais de metade e a de aveia um terço. A produção é quase um desastre. Relativamente ao ano anterior, obtêm-se 30% do trigo, 45% da aveia e 29% da cevada. Os rendimentos também baixam: o trigo para 8,83 q/ha, a aveia a 3,9 q/ha e a cevada a 5,9 q/ha. É simplesmente um dos piores anos do século. Só o arroz resiste: de 1976 para 1977, a superfície semeada passou de 15 000 ha a 24 000 ha e as produções aumentam de 67 000 t para 78 000 t292. Mesmo assim, a produção de arroz fica a 57% da média de 1970 a 1973; além de que os rendimentos revelam significativa queda: de 44,67 q/ha para 32,50 q/ha. Trata-se de um ano agrícola que põe em causa as capacidades das unidades colectivas, mas apesar de tudo não permite retirar conclusões definitivas. As tensões políticas e sociais na região, assim como as incertezas quanto à situação fundiária, tiveram certamente influências negativas na produção, tanto do sector colectivo como dos empresários privados. Mas múltiplas observações e vários testemunhos confirmam a falta da capacidade técnica e de experiência de muitas unidades colectivas. Os seus métodos de trabalho, nomeadamente os seus horários inspirados na realidade industrial e burocrática, não estão adaptados às condições particulares da agricultura. Por exemplo, durante os meses de Outubro e Novembro, mesmo quando faz bom tempo e seco, as sementeiras fazem-se, como todos os outros trabalhos, até às 17 horas e respeitam-se integralmente os fins-desemana e os dias feriados. Ora, em 1976 e 1977, as chuvas chegaram com abundância em Novembro, tornando impossíveis os trabalhos de sementeira e de preparação dos alqueives. Os que não aproveitaram antes todos os dias secos tiveram resultados ainda piores. Foi o

que aconteceu com as UCP, cujos esquemas de organização eram demasiado rígidos. Por outro lado, a falta de estímulos, assim como o facto de os trabalhadores, apesar de serem nominalmente «cooperadores», apenas receberem salários, contribuem para um real desinteresse e uma falta de disponibilidade para trabalhar fora de horas ou em quaisquer circunstâncias. O facto é que as condições climáticas foram tão más que qualquer juízo definitivo seria prematuro. Por outro lado, a evolução da produção durante os anos de 1975 a 1977, comparando o conjunto do País com a zona de reforma agrária, mostra que globalmente os resultados não se afastam muito, o que sugere uma semelhança de situações. Mais em pormenor, os resultados são desfavoráveis à zona de intervenção nos casos do trigo, da cevada e da aveia, mas favoráveis em relação ao arroz. Na produção deste, todavia, intervêm proporcionalmente mais pequenos agricultores do que unidades colectivas. Noutras palavras, é mais um sinal da eventual inferior eficiência económica das UCP. Índices da produção de cereais no conjunto do País e na Zona de Intervenção da Reforma Agrária (1970-1973 = 100) 1975

1976

1977

Trigo: Produção nacional

95

108

36

108

126

38

Produção nacional

77

56

59

Zona de intervenção

72

49

57

133

140

66

Zona de intervenção Arroz:

Aveia: Produção nacional

Zona de intervenção

141

149

67

Produção nacional

134

183

61

Zona de intervenção

153

220

64

Cevada:

Na agricultura, mais do que em qualquer outro sector económico, um ou dois anos têm pouco valor como testemunho dos resultados produtivos. As primeiras sondagens são relativamente desfavoráveis às unidades colectivas, mas não são dados suficientes e conclusivos. Ainda não é possível distinguir com rigor as responsabilidades que pertencem às condições naturais e à organização dos homens. Do ponto de vista social, os assalariados das unidades colectivas consideram que estas novas empresas lhes trouxeram vantagens reais e palpáveis. Dos 40 000 trabalhadores permanentes do sector colectivo (em 1976), um pouco mais de metade eram, três anos antes, trabalhadores eventuais, sem garantia de emprego nem rendimento estável. Para estes homens e mulheres, é um benefício significativo. As condições gerais de alimentação melhoraram também, até porque muitas UCP forneciam géneros a baixos preços. Equipamentos e serviços sociais, como os transportes e as creches organizados pelas UCP, favorecem igualmente os assalariados. Tendo desaparecido os lucros patronais e a renda fundiária, houve uma real transferência de recursos. Finalmente, os membros das UCP apreciam o seu novo estatuto, que consideram mais digno, mais solidário e menos opressivo, exprimindo até o sentimento de trabalharem para si próprios e não para os proprietários293. A imensa maioria dos trabalhadores das UCP considera satisfatória a sua situação, sublinhando as que reputam ser as mais interessantes vantagens: a segurança do emprego e a garantia do salário294. A este sentimento de

maior justiça acrescenta-se um tom quase heróico, uma visão épica do seu esforço e do que conseguiram, numa manifestação de real coesão. As palavras do dirigente de uma UCP resumem esta atitude: «Nós lutamos para que esta terra, que roubou as forças, o suor e a energia dos nossos pais, nos alimente, a nós e aos nossos filhos, sem que haja fome, miséria ou opressão.»295 As opiniões dos trabalhadores das herdades privadas não são as mesmas. Maiorias significativas acusam as UCP de pagarem pior do que os proprietários, de não terem as necessárias competências técnicas e de serem dirigidos pelos «novos patrões» e pelo «partido». Tudo isto sem animosidade particular, independentemente de pertencerem ao mesmo sindicato ou até de votarem comunista. A verdade é que as UCP só pagam salários e recusam-se definitivamente a distribuir lucros ou dividendos. Por outro lado, a maioria só paga o salário mínimo rural, não tendo capacidade para competir com os agricultores privados. E também é verdade que não se têm distinguido pelas suas performances técnicas. Recebendo pouca assistência, tendo expulsado a maioria dos feitores, desconfiando de toda e qualquer intervenção técnica exterior, as unidades colectivas pouco mais fazem do que continuar a fazer o que se fazia antes, sobreviver e garantir aos seus assalariados a subsistência mínima (o que para alguns é um progresso). As UCP são uma espécie de «corpo estranho» na sociedade global, no mundo rural português e na economia de mercado. São vistas com hostilidade por uma boa parte da população, pelos serviços de Estado e por quase todas as forças políticas não comunistas. Outra crítica que lhes é frequentemente endereçada: entre 1975 e 1977, as UCP só sobreviveram graças a injecções maciças de crédito garantido pelo Estado, de que uma grande parte não foi nem será talvez nunca reembolsada. A carga excessiva de força de trabalho,

recrutada por solidariedade, por motivos sociais e como trunfo de clientela partidária, foi quase fatal para as UCP, sobretudo quando não há mudanças significativas dos métodos culturais e nas infra-estruturas. Com um número bem superior de assalariados, a mediocridade dos resultados produtivos é ainda mais evidente. Submersas por estes problemas, isoladas na opinião pública nacional, politizadas e inteiramente identificadas com os comunistas, as unidades colectivas são uma espécie de relicário da revolução com o destino incerto e improvável. O estatuto das unidades colectivas de produção Peças de um conjunto, momentos numa transição e elementos de uma revolução inacabada ou de uma passageira conquista do poder, as UCP nunca tiveram um estatuto bem definido. Apesar do meio jurídico e económico hostil, as UCP reivindicam, desde 1976, a sua existência de facto e de direito. Pretendem-se uma nova realidade institucional emergindo do quadro anterior, tal como as cooperativas ao nascerem no capitalismo. São, na realidade, instituições compósitas. Das cooperativas retiram vários princípios, como sejam a ausência de capital societário e a auto-organização, mas já não a abolição do salariado. Dos kolkhozes adoptam a autonomia perante o Estado (mesmo se esta, nos países comunistas, é mais teórica do que real) e a propriedade estatal da terra; mas não a distribuição de dividendos ao pro rata do trabalho fornecido, nem a possibilidade de exploração individual de parcelas ao lado da exploração em comum296. Dos sovkhozes retiram o princípio do salário como único meio de remuneração e única ligação ao trabalho colectivo. O que daqui resulta é uma realidade híbrida, contraditória e talvez impossível. Como conciliar a autonomia total (que as UCP e os comunistas recusam

categoricamente identificar com a autogestão) com a garantia de pagamento de salários? Quem, se não for o Estado, pode assumir esta garantia? Dificilmente teórica, talvez ultrapassável, mas contradição política provavelmente irresolúvel num Estado e numa sociedade hostis, ou que em todo o caso se regem por outros princípios. As UCP pressupunham um desígnio mais vasto e um sistema de organização social completo. Não se esperava que fossem «ilhas» colectivistas em meio capitalista, o que de facto são, antes se pensava na sua capacidade de alargamento a todo o País. Poderiam teoricamente coexistir com pequenas explorações camponesas e familiares, mas tal parece mais difícil com empresas capitalistas e mais ainda cercadas por estas, como aconteceu. A sua existência e a sua viabilidade implicavam finalmente que o Estado e o poder político fossem de inspiração predominante colectivista, o que está longe de se ter verificado. A UCP é o resultado de dois processos convergentes e complementares: o do direito e o dos feitos revolucionários. O primeiro é da responsabilidade do Estado e do poder político, nos quais o PC desempenhou papel de relevo. O segundo tem origem no sindicato e directamente no PC. A partir de certo momento, ultrapassada a preponderância comunista no Governo, a dinâmica estatal muda de natureza: as UCP perdem uma parte importante do seu suporte de existência. Tornam-se realidades defensivas e cercadas. Depois das ocupações, o património passa para as mãos de «grupos», «comissões» ou «colectivos de trabalhadores», que o Estado reconhece, sem definir o estatuto nem as responsabilidades. Em seguida, o Estado efectua as expropriações legais, mas não define as «regras do jogo» relativamente a uma multiplicidade de questões, como por exemplo a disponibilidade da terra para futuras

divisões, vendas ou alienações. As capacidades jurídicas e económicas das UCP são o que há de mais vago. Que podem adquirir ou alienar? A que título? Quem assume, em última instância, as responsabilidades contratuais, nomeadamente em casos de créditos, compras, dissolução ou falência? As UCP tinham um devir, não eram supostas ficar a meio caminho. Por enquanto, transformaram-se em fortalezas defendendo conquistas. Fazem lembrar o que as convenções chamavam «zonas libertadas» de um movimento de resistência anticolonial, onde nasciam novas relações sociais e económicas, sob o signo da necessidade e do constrangimento, e onde se construía uma economia paralela, ou de guerra. Há todavia, entre outras, uma diferença de peso: o território não está fora do alcance da administração, as UCP não são clandestinas e o Estado tolera-as e até lhes suporta alguns custos. Aos olhos dos trabalhadores que nelas obtiveram emprego, as UCP não são censuráveis pelas suas insuficiências. Esperavam emprego e salários, garantias e segurança, tiveram-nos. Vivendo em condições ecológicas que tornam difícil a agricultura camponesa, não querem ou não podem correr os riscos da exploração individual ou familiar nem os das incertezas climáticas. Habituados ao salariado, sem conhecimentos técnicos suficientes nem capital inicial, acomodaram-se ao novo sistema, que parece só ter vantagens. Tanto mais quanto o próprio Estado os convidava a ocupar e garantia os salários, desde que se criassem unidades colectivas. Finalmente, o colectivismo parecia adequado à euforia e à desorganização de uma revolução. Mais tarde, na aflição da derrota, aquele garante uma espécie de protecção solidária. Se uma «cultura operária» existe, ele será, como a ideologia sindical, colectivista. O legislador, pelo seu lado, admite gradualmente as unidades colectivas. De início, o seu estatuto aproxima-as

das cooperativas, como acontece no Decreto-Lei n.º 203/75, mas destacam-se progressivamente. As leis e as portarias relativas às expropriações, o crédito e o controlo dos gados e das máquinas aumentam as diferenças. A Constituição, finalmente, sem as definir com precisão, fazia delas uma realidade diferente das cooperativas. O Governo adiou explicitamente a definição das UCP, considerando que era preciso apoiá-las, mas não limitá-las. Aos serviços dos ministérios foram dadas instruções para apoiar as UCP sem lhes fazer as exigências processuais habituais. A partir de 1976, a situação política passa a ser bem diferente da que esteve na génese das UCP. Com a plataforma dos partidos, pela primeira vez se diz que as terras expropriadas integram desde logo o património nacional: é a partir daqui que toda a apropriação individual fica excluída. Mais se estabelece que as «unidades instaladas (nas terras expropriadas) só terão o direito ao uso da terra», ficando de novo afastada a livre disposição. Outro esclarecimento importante: o direito de uso é concedido com contrapartida, isto é, as unidades instaladas deverão pagar ao Estado uma renda ou um imposto fundiário. Paralelamente, com outras medidas administrativas, o Estado tenta ter algum controlo sobre as UCP. O poder mudou, são agora sobretudo os socialistas que têm a responsabilidade da agricultura. O Ministério mostra a sua vontade de impedir que se criem «herdades de Estado» e revela a sua intenção de procurar determinar as dimensões racionais para as novas explorações. Pela primeira vez também, o Governo mostra-se empenhado em distribuir parcelas de terra aos pequenos agricultores que queiram alargar as suas explorações. O PS tenta ainda distinguir bem o colectivismo do cooperativismo, preparando-se para apoiar o último. A Constituição entra em vigor em Abril de 1976. Um novo

passo é dado: as UCP fazem definitivamente parte do sector público, enquanto para as cooperativas é reservado um sector especial. As terras são propriedade do Estado, os bens pertencerão aos colectivos de trabalhadores ou às cooperativas. Aos trabalhadores competirá decidir e escolher em qual dos sectores desejam ficar integrados. Os equívocos não desaparecem. As UCP pretendem o melhor dos dois mundos: o estatuto cooperativo para a autonomia e a independência; o estatuto colectivo para o salariado e as responsabilidades financeiras do Estado. Inscrevem-se no notário e no Diário da República como «cooperativas de produção», autónomas e soberanas, até com capacidade para adquirir, em plena propriedade, terras e herdades (o que aliás concretizam). Mas persistem na recusa de aceitar a generalidade das regras e dos princípios do movimento cooperativo. Uma vez mais, as UCP instalam-se no provisório e na transição. A sua identidade e o seu estatuto definitivo dependem da evolução política geral. Esperam pelo regresso de um poder político inspirado na mesma fonte colectivista. Mas há outros problemas que as UCP têm dificuldade em resolver. O PC e os sindicatos são obrigados a viver com uma difícil contradição, ao tentar conciliar interesses bem diferentes: defender os interesses do sector privado contra os patrões, mas também os que trabalham no sector colectivo e que constituem uma das suas principais bases de recrutamento; defender os membros das cooperativas como assalariados, mas também as UCP, como empresas, o que equivale a dizer como patronato. Quando, em 1975, pagavam salários superiores aos das UCP, os proprietários foram acusados pelos conselhos regionais de «sabotagem económica». Em 1976, a assembleia de militantes comunistas afirmava nas conclusões do seu encontro que «a reacção e os esquerdistas procuram hoje excitar o interesse material dos trabalhadores por salários cada vez mais elevados, isto

no momento em que os trabalhadores deram golpes mortais no latifúndio, controlam a terra e a produção e libertaram-se da exploração capitalista»297. Na sua forma combativa, esta afirmação não consegue esconder a realidade delicada e a posição equívoca do PC e das UCP. Não é, aliás, uma questão nova: desde o início das ocupações que os sindicatos e mesmo os serviços do Ministério da Agricultura alertavam energicamente contra os «altos salários» pagos pelos proprietários, isto depois de terem denunciado, durante as negociações colectivas, os «baixos salários e a exploração»298. Há UCP ricas e pobres, conforme os recursos, a gestão e o número de trabalhadores. Mas o PC e os sindicatos são hostis à diversificação das condições de trabalho, pois não querem dar o flanco a ideias de participação e distribuição de dividendos e de benefícios. Por outro lado, a comparação entre os níveis de salários das UCP e das herdades privadas é muitas vezes desfavorável às UCP. Finalmente, a diferenciação de remunerações entre UCP e entre especialidades profissionais pode abrir brechas na rígida coesão existente. Perante tais tendências, a resposta do PC tem sido sempre no sentido da unificação e da uniformização: «A assembleia convidou [as unidades colectivas] a respeitar tanto quanto possível as tabelas de salários das convenções colectivas de trabalho.» Ora, estas regulam as relações entre assalariados e patronato, nas empresas capitalistas. Para os comunistas, esta dificuldade é só aparente: «A distribuição da riqueza produzida [nas unidades colectivas] pelos trabalhadores não pode ser feita com base na luta de classes ou na luta reivindicativa. A sua distribuição deve ser feita de modo científico. Agora, os trabalhadores são donos da produção, são os proprietários da sua riqueza. A diferença de salários entre várias unidades colectivas, para serviços iguais, é a causa da divisão dos trabalhadores e da guerra entre as unidades.»299

É pois preciso que os contratos típicos do sistema capitalista regulem as relações de trabalho que supostamente já o não são. Como não é fácil compreender, é necessário «que as células do partido desempenhem um grande papel na educação dos trabalhadores quanto à distribuição científica da riqueza produzida por eles». O sistema é, uma vez mais, híbrido e provisório. Tem no entanto um objectivo: impedir o cooperativismo, a empresa familiar ou camponesa e a economia de mercado. O que importa é preservar o salariado. O desígnio e a estratégia Tudo foi feito na prática, e quase tudo na lei, com vista a uma expropriação geral da terra, ou da sua maior parte, com excepção de alguns pequenos agricultores, eventualmente de umas poucas médias empresas. Na legislação, as questões das reservas e das indemnizações foram muito insuficientemente tratadas e ainda menos regulamentadas. A definição dos seus mecanismos foi adiada para leis ulteriores, ou para as calendas. Ora, a sua resolução prévia, em simultâneo com as expropriações, era essencial para definir o modelo social e o «centro de gravidade» político da reforma agrária. As leis não previam apenas a expropriação das áreas excedendo os limites definidos pela lei, mas sim a superfície integral300. O direito de reserva podia ser concedido ou não. Nas leis de 1975, critérios muito restritos tornavam este direito praticamente inacessível. Os autores da reforma reservavam-se o privilégio de, após expropriação integral, ajuizar do direito dos proprietários a receber uma parcela, demarcada nas suas antigas herdades ou noutras, na mesma região ou noutra. Colocados os obstáculos, os eventuais candidatos ao direito de reserva seriam levados a renunciar ou deixar-seiam arrastar para actos puníveis. As adequadas medidas

legislativas e administrativas visavam os que se opusessem às ocupações e às expropriações301. Por outro lado, as possibilidades de manutenção ou de exploração de uma reserva seriam reduzidas. Tratava-se de um direito precário e o seu titular não teria a plena propriedade da terra. Do ponto de vista prático, ser-lhe-ia difícil prosseguir a sua actividade económica e agrícola, no meio predominantemente colectivista e com previsíveis dificuldades no recrutamento de mão-de-obra. Além disso, à maioria dos proprietários e dos empresários não seria atribuída nenhuma indemnização, o que implicaria um sério desequilíbrio económico. A exploração intensiva da reserva, exigindo consideráveis fundos de reconversão, seria difícil ou impossível. Esta intenção de conquista geral da terra está ainda bem visível nos métodos de determinação dos limites de propriedade (os 50 000 pontos). Com efeito, estes favorecem a dimensão (e relativamente o absentismo) e penalizam o investimento. Tomemos como exemplo duas herdades em condições idênticas de dimensão, localização e qualidade dos solos. Ambas têm 40 000 pontos, se se consideram unicamente a superfície e a natureza do terreno. No entanto, se um dos empresários fez benfeitorias, tais como o regadio, a drenagem, a plantação de árvores de fruto e de vinha, a instalação de prados e de vedações para o gado, a sua herdade ultrapassará largamente os 50 000 pontos e deverá, pois, ser expropriada. Pelo contrário, o proprietário vizinho, que nunca investiu e se limita à cultura extensiva, pode guardar as suas terras. O desígnio de conquista, nestas disposições, sobrepôs-se a uma qualquer preocupação de desenvolvimento e de encorajamento da produção302. Este animus está ainda presente nos critérios que levaram à definição do limite de 50 000 pontos303. Bloqueadas no seu crescimento a níveis muito baixos, as explorações agrícolas resultantes das reservas tinham

possibilidades de sobreviver, mas estavam na impossibilidade de se desenvolver ou de obter melhoramentos produtivos importantes. A prazo, estes empresários ver-se-iam na obrigação de vender as suas terras (obrigatoriamente ao Estado) ou de as abandonar. Limites demasiado restritos ao desenvolvimento e à intensificação das culturas são tão nefastos quanto a ausência total de limites de superfície e de propriedade. Até 1976, um ano depois das ocupações e das primeiras leis de reforma agrária, nenhuma reserva tinha sido concedida, apesar de terem sido expropriadas mais de 3600 herdades. Os dirigentes políticos e sindicais partidários da reforma agrária afirmavam em 1975 que não se podia «esperar por estudos e pela burocracia» e que era preciso prosseguir as ocupações. Mas, quanto às reservas, seria necessário «esperar por estudos ulteriores» e por «planos de ordenamento agrícola». Entretanto, neste vazio administrativo, tudo dependia do arbitrário do poder político. É verdade que, do ponto de vista estratégico, se impunha uma acção rápida dos serviços, uma autêntica corrida contra-relógio. Com efeito, não havia, em 1974, uma administração capaz de conduzir uma reforma agrária. Ora, o PC, os sindicatos e o MFA não queriam esperar por eleições. O essencial deveria estar consumado antes da aprovação da Constituição e da entrada em funcionamento do Parlamento. Para os comunistas e os militares, e certamente que também para alguns socialistas, a reforma agrária decorria da legitimidade revolucionária e não da legalidade democrática. É verdade que, durante os primeiros meses, não forçaram os acontecimentos. Havia outras prioridades: a independência das colónias, o trabalho político nas forças armadas e a organização partidária e sindical. Os dirigentes comunistas não sentiam ter a força suficiente e consideravam que as condições não estavam maduras.

Procurando, antes de mais, consolidar a sua influência no poder político e militar, não incitaram os conflitos. Não mostraram muito entusiasmo com os primeiros episódios de agitação, que poderiam talvez ultrapassá-los. Entre Maio e Julho, na área de Lisboa, várias vezes contestaram e criticaram acções de massas e greves que não controlavam. Em Junho de 1974, num comício rural em Mora, os grupos comunistas locais criticaram algumas iniciativas esquerdistas que criavam problemas no trabalho do tomate. Os cartazes e bandeirolas que exibiam eram reveladores: «Os trabalhadores agrícolas dizem NÃO à greve.»304 Em princípios de 1975, as condições gerais da vida política e as circunstâncias particulares do mundo rural tinham-se tornado favoráveis. A partir de Janeiro, a aceleração é notória. Depois de Março, a revolução leva tudo à sua frente. O PC organizou e apoiou toda a espécie de movimentos reivindicativos, greves e ocupações. As reservas que tinha formulado relativamente aos esquerdistas, em 1974, estavam agora ultrapassadas, pois o PC tinha uma estrutura de controlo que lhe permitia, em última instância, aproveitar as consequências das iniciativas dos outros. Tendo em mente tanto o governo e a administração como os trabalhadores e os sindicatos, foi necessário fazer a pedagogia da ocupação: que ninguém alimentasse a ilusão de que a transferência da propriedade das terras se faria em aplicação de uma lei e de um processo regulamentar de expropriação. Nesta actuação, o método poderia valer mais do que o conteúdo ou o objectivo. Era preciso agir depressa, com dois prazos no espírito. Por um lado, o calendário político: as eleições, a redacção da Constituição e todo o processo de fundação do regime parlamentar e democrático. Por outro, o calendário agrícola: as colheitas de 1975. Qualquer que fosse o método escolhido, era preciso evitar a todo o preço que os

ocupantes viessem a possuir apenas a terra nua, sem instalações, equipamentos, gados e capitais de exploração. Tratava-se, por consequência, de impedir o proprietário de colher os cereais (ou de embolsar as receitas), de arrancar a cortiça ou de vender o gado e as máquinas. O memorando dos dirigentes comunistas dirigido ao primeiro-ministro insistia singularmente neste ponto: o melhor dote que se pode dar aos ocupantes e às futuras unidades colectivas consiste em dar-lhes a possibilidade de arrecadar o fruto pendente e as colheitas do ano e de reter as máquinas. O secretário de Estado A. Bica confirmou esta ideia: «Os trabalhadores sentiram a necessidade de garantir uma reserva mínima de dinheiro que lhes garantisse a subsistência, mesmo com salários reduzidos, até à próxima colheita.»305 Em muitos casos, tal não foi possível directamente: as ocupações foram feitas já no fim do Verão e no Outono. Para resolver o problema, foram encontrados expedientes legais e administrativos. Os funcionários do Instituto dos Cereais retinham as receitas dos proprietários e esperaram pela formação das UCP. Se estas tardavam, a formalização de uma «comissão de trabalhadores» bastava. Em último caso, responsáveis do sindicato assinavam em nome das múltiplas unidades colectivas em formação. Quando os revolucionários começaram a perder as batalhas de rua e nos quartéis, no Governo e nas eleições, a batalha das ocupações estava, no essencial, ganha e acabada. Tudo o que viesse a seguir teria de ter em conta este facto novo que já tinha mudado a sociedade alentejana: mais de 1 milhão de hectares ocupados, 200 000 ha nacionalizados, cerca de 600 unidades colectivas em funcionamento e uma classe de proprietários derrotada. Qualquer restauração parecia impossível e uma tentativa de reforma seria bem difícil. 246 Cf. Margarida Moura, Terra Ocupada, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa,

1981. 247 Cf. o relatório do Estado-Maior do Exército «Elementos do PCP directamente intervenientes em ocupações», Estado-Maior do Exército, Quartel-General da Região Militar Sul, Outubro, 1975. 248 «Alpendres», «Azinheira», «S. Domingos da Ordem», «Passanha», «Misericórdia», «Grou», «Capitoa», «Cabide», «Casa Alta» e «Fragosas». Ver fonte na nota anterior. 249 Entre outras, são-lhe atribuídas as ocupações das seguintes herdades: «Condado da Torre», «Monte Padrão», «Vale de Paio», «Vale do Arneiro», «Vale Bom», «Monte Branco», «Formiga», «Parreira», «Vale d’Alerta», «Contados», «Monte Frades», «Comenda», «Pegos», «Cujancas de Cima», «Cujancas de Baixo», in correspondência entre a Região Militar Sul e o Estado-Maior do Exército, 10/9/1975, arquivos do EME. 250 Jornal Novo, 1/10/1975. 251 Declaração do engenheiro Romana Martins, administrador-delegado, in O Século, 16/5/1975. 252 A intervenção do Estado, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 660/74, foi publicada no Diário do Governo de 15/2/1975. 253 As fontes são numerosas e bastante contraditórias: a imprensa em geral; os jornais do PC, Avante! e O Militante; as obras já citadas de Blasco Hugo Fernandes, Afonso de Barros, Fernando Oliveira Baptista, Michel Drain, Bernard Roux e Vítor Ferreira; A. Cautela, in O Século, 17/6/1975: e, finalmente, o Almanaque Popular, 1978, Lisboa, 1978. Apesar de incompletos, os arquivos do Ministério da Agricultura, dos Serviços Regionais do Agricultura do Alentejo e do Instituto de Gestão e Estruturação Fundiária (IGEF) são as melhores fontes. O tratamento mais exaustivo destes problemas é o de Maria João Costa Macedo, A Reforma Agrária em Números, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1981, assim como, da mesma autora, Geografia da Reforma Agrária, Lisboa, 1985. Não havendo outra menção, é esta autora e as suas obras que aqui são utilizadas como fontes. 254 Acrescente-se que as relações económicas e familiares entre estas 1000 famílias são frequentes e estreitas. A tradição diz que na verdade se trata de 200 famílias… mais ou menos aparentadas! 255 Nos distritos de Lisboa, Santarém e Castelo Branco só se considera a superfície cultivada efectivamente integrada na zona de intervenção. 256 Cf. A. Barreto, Memória […], op. cit. 257 Cf. os testemunhos dos agricultores Mendes Dias, Brotas e Lourenço in A.

Barreto, Memória […], op. cit. 258 Na região, e a propósito da reforma agrária, houve manifestações e comícios que estiveram na origem de alguns incidentes com relativa gravidade, como por exemplo: Rio Maior (Agosto de 1975), Almeirim (Setembro de 1975), Gavião (Setembro de 1975), Elvas (Outubro de 1975), Odemira (Novembro de 1975), São Brás e Monchique (Novembro de 1975), Rio Maior (Novembro de 1975), Coruche (Março de 1976) e Marvão (Abril de 1976). Em Coruche registaram-se dois mortos, um do lado dos sindicatos, outro nas fileiras dos agricultores. 259 São estes os termos do comunicado do Quartel-General da Região Militar Sul, in O Primeiro de Janeiro, 16/7/1975. 260 Comunicado do Conselho Regional de Reforma Agrária e da Região Militar Sul, 16/7/1975. 261 Ver as declarações do ministro da Agricultura, que afirma a sua determinação de prosseguir a reforma agrária, recorrendo a todos os meios, incluindo a força das armas. 262 Testemunho inédito de J. Dordio, ex-membro das CIC, in arquivos do GER. 263 O Diário, 10/4/1976. 264 In «INF., RIELVAS para RMS, 22/8/1975», relatório de informação do Regimento de Infantaria de Elvas para o Quartel-General da Região Militar Sul, arquivos do EME, Lisboa. 265 Zillah Branco, «A reforma agrária em perigo», in O Século, 23/9/1975. 266 Ver notas 2 a 4 deste capítulo. 267 Arquivos do Estado-Maior do Exército (EME), Lisboa. 268 Ibidem. 269 Os motivos para estas «alianças» podiam ser simplesmente relações cordiais entre proprietários e trabalhadores; mas em geral eram benefícios reais (salários, alojamento, conforto, segurança) que os trabalhadores receavam perder. Por vezes, estes benefícios eram bem recentes, tinham sido concedidos logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Dizem por exemplo as assalariadas da «Quinta da Morna», grande propriedade em Almeirim: «É quase o paraíso! Ganhávamos 64$ e agora 125$!», in A Capital, 16/1/1975. 270 Em Pegões, há um pouco mais de 30 anos, foram instaladas umas centenas de famílias camponesas, a quem distribuíram parcelas de terra. Foi a única experiência de parcelamento levada a cabo pelo regime anterior. Curiosamente,

as quatro grandes herdades da região, entre as quais o maior latifúndio português, «Rio Frio», não foram ocupadas. Tudo leva a crer que foram «protegidas» pelo meio social, pela presença de numerosos pequenos agricultores. É também esta a opinião expressa pelo Prof. Carlos Portas (testemunho inédito, arquivos do GER). 271 Fora da zona de intervenção, o número de ocupações não ultrapassa a meia dúzia: em Mirandela, perto de Coimbra e a alguns quilómetros da Covilhã. Em Mirandela tratava-se de uma propriedade do Estado; em Coimbra foram ocupações episódicas, talvez só simbólicas. 272 Mesmo um ministro de Salazar, o Prof. Antunes Varela, ministro da Justiça nos anos 60, sublinhou esta desigualdade: «Trata-se de obras que valorizam propriedades privadas, mas que são pagas com fundos públicos. […] À luz dos bons princípios da justiça distributiva, não é aceitável que o acréscimo de rendimentos do conjunto das propriedades seja sensivelmente superior à taxa que cada titular deve pagar: haveria aí um enriquecimento injusto, a expensas de outrem, traduzido num sacrifício imposto à massa dos contribuintes, a proveito de uma minoria restrita de proprietários privilegiados», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 165, 1967. 273 Ver, no Capítulo X, a secção «A legislação». 274 Ultrapassam-se ligeiramente os limites cronológicos deste trabalho. Com rigor, teríamos 642 950 ha expropriados no período em estudo e 288 875 ha depois, dos quais 262 177 ha dizem respeito a expropriações preparadas administrativamente pelo sexto Governo, ainda em Julho de 1976 ou antes. Os prazos de publicação no Diário da República explicam este aparente desfasamento. 275 Algumas imprecisões são motivadas pelas variações dos próprios dados oficiais. O cadastro, além de atrasado e mal organizado, é uma autêntica floresta de subterfúgios e de anacronismos, incluindo partilhas adiadas por décadas, partilhas e doações inter vivos para fugir aos impostos, sucessões e heranças não registadas, vendas simuladas, etc. 276 Barrancos, 88%: Ferreira, 93%; Arraiolos, 95%; Évora, 89%; Mora, 93%; Montemor, 91%; Viana, 88%; Portel, 94%; Redondo, 95%; Avis, 92%; Alter do Chão, 90%; Ponte de Sor, 88%; Chamusca, 92%; Coruche, 88%; Alcácer do Sal, 96%. 277 Almodôvar, 63%; Castro Verde, 71%; Mértola, 60%; Castelo Branco, 68%; Vila Velha de Ródão, 60%; Marvão, 60%. 278 Ver os trabalhos do GER, em particular M. J. Costa Macedo, Geografia […], op. cit., e A. Barreto, Terra […], op. cit. 279 Ver a nota 45 do Capítulo VI. Quando o documento foi entregue, estavam

ocupados menos de 30 000 ha. 280 Desde 1976 que este número não parou de diminuir. São muitas as causas: falência ou dissolução; divisão em várias empresas; devolução voluntária das terras aos antigos proprietários; fusão de várias; mudança de nome; entrega compulsiva das terras aos proprietários. Algumas eram mesmo fictícias, servindo apenas para ter acesso ao crédito. Os dados utilizados aqui são os que se obtiveram com as investigações do Gabinete de Estudos Rurais, para o que foi possível consultar praticamente todas as fontes oficiais que interessavam. 281 As surpresas e as incertezas da revolução; a desorganização de alguns serviços do Ministério da Agricultura, ou por vezes a incompetência; o segredo e o sectarismo das organizações ligadas às UCP; fraudes e ficções diversas; a utilização política e demagógica dos dados e das estatísticas; as frequentes mudanças de responsáveis, de critérios e de métodos de trabalho: são tantas as razões que explicam a grande disparidade de valores citados por diferentes origens. Dois dos estudos mais sérios citam números diferentes dos que aqui se retêm: A. Barros (A Reforma […], op. cit.) menciona 504 UCP e 1 180 858 ha, enquanto o Banco Mundial (Survey of the Agricultural Sector in Portugal, Washington, 1978) refere 472 UCP e 1 253 079 ha. 282 Apesar de muito próximos, os valores relativos ao sector colectivo (1 182 736 ha) e às ocupações (1 182 924 ha) não cobrem exactamente a mesma realidade. As terras expropriadas ou nacionalizadas mas que não foram ocupadas previamente estão incluídas no primeiro grupo, e não no segundo. Com as terras ocupadas que ou não foram expropriadas depois ou não foram integradas em unidades colectivas passa-se o contrário. 283 Não se consideraram as múltiplas situações de UCP tendo terras em vários concelhos. Nestes casos reteve-se como critério o da sede da exploração. 284 A este propósito, as diferentes fontes são ainda mais controversas e díspares. As exigências da luta política e da propaganda, favorável ou contrária às UCP, conduzem a autênticas fantasias estatísticas. Uma vez mais, os valores retidos são os que resultaram das investigações do GER, após verificação e controlo de todas as outras fontes. Duas publicações já mencionadas referem números ligeiramente diferentes: relativamente aos nossos valores, A. Barros situa-se acima (42 097) e o Banco Mundial abaixo (36 200). Nas nossas contas, apenas considerámos os trabalhadores permanentes. Os eventuais são numerosos, entre 30 000 e 50 000, mas o número de dias de trabalho que fornecem é muito variável, podendo oscilar entre 1 e 200. Não é possível fazer uma ponderação, nem tão-pouco converter em homens/ano, dado que as próprias UCP, nas suas informações ao público, se limitam a adicionar os totais de permanentes e eventuais. Acrescente-se, como referência, que em 1985 o número de permanentes é estimado entre 10 000 e 12 000. 285 Dado que o número de trabalhadores se refere ao fim de 1976, utilizou-se também o número de reconhecimentos efectivos de UCP válido à mesma data.

286 O Gabinete de Estudos Rurais conduziu um inquérito junto de 1200 pessoas em 12 freguesias da zona de intervenção. A amostragem foi estratificada em vários grupos sociais, incluindo assalariados do sector privado e das UCP. Ver José Júlio Carvalho Ribeiro, Inquérito à Reforma Agrária, Lisboa, 1981. 287 Ver, por exemplo: Eugénio Rosa, Portugal. Dois Anos de Revolução na Economia, Lisboa, 1976; Miguel Urbano Rodrigues, in O Diário, 5/4/1976; Dinis Miranda, in O Século, 24/10/1975; obra colectiva, A Reforma Agrária Acusa, Lisboa, 1980; Partido Comunista, O Livro Negro do MAP, Lisboa, 1977; assim como os documentos das seis «conferências da reforma agrária» que o PC, as UCP e os sindicatos organizam anualmente no Alentejo. 288 Ver, por exemplo: José Hipólito Raposo, Dos Princípios à Chamada Reforma Agrária, Lisboa, 1977; A. Vacas de Carvalho, O Fracasso de Um Processo: a Reforma Agrária no Alentejo, Lisboa, 1978; João Garin, Reforma Agrária: Seara de Ódio, Lisboa, 1978; M. Silveira da Costa, «A César o que é de César», in Jornal do Agricultor, Lisboa, 21/5/1980; e Mariano Feio, «Reforma agrária: balanço provisório dos aspectos económicos», in Expresso, 20/1/1979. 289 Cf. anuários do Instituto Nacional de Estatística e M. J. Costa Macedo, Produções […], op. cit. 290 Uma vez mais, é forçoso referir a insuficiência e a má qualidade dos dados, que nos impedirão, talvez para sempre, de ter um conhecimento rigoroso destes problemas. Não é possível, por exemplo, determinar a parte com que cada sector, privado e colectivo, contribuiu para a produção total em 1976. Para 1977 já se consegue saber que o sector colectivo entregou na EPAC 71 000 t, enquanto o sector privado da zona de intervenção remeteu 97 000 t. Dois anos mais tarde, em 1979, o sector colectivo e as empresas privadas entregavam, respectivamente, 67 000 t e 115 000 t. Note-se, todavia, que, em 1978 e 1979, com as devoluções e as entregas de reservas, o sector colectivo perdeu vastíssimas áreas. 291 Este ano agrícola está fora dos limites cronológicos deste trabalho. Fica feita a referência, não só porque ajuda a compreender a situação, mas também porque os alqueives foram feitos desde 1975-1976. 292 Um mau ano para cereais, por excesso de chuvas e de calor, pode ser um ano bom ou mesmo excelente para o arroz, cuja sementeira se faz na Primavera. 293 J. J. Carvalho Ribeiro, Inquérito […], op. cit., e A. Barreto, Memória […], op. cit. 294 Cerca de 90% da amostragem. 295 J. J. Carvalho Ribeiro, Inquérito […] op. cit.

296 Nas UCP, só muito excepcionalmente se autoriza a exploração de pequenas parcelas individuais; trata-se, aliás, de minúsculas hortas. 297 O Militante, n.º 8, 1976. 298 Pode ler-se no comunicado de uma reunião do Conselho Regional de Reforma Agrária de Beja: «O Conselho preocupou-se com outro problema considerado altamente significativo da reacção contra o processo revolucionário em curso na agricultura: os altos salários pagos por alguns proprietários, com vista a provocar dificuldades às acções de reforma agrária», in Diário do Alentejo, 26/7/1975. 299 O Militante, n.º 8, 1976. 300 Os limites são de 50 000 pontos. O «ponto» foi uma unidade de medida de cálculo do rendimento e da dimensão da terra segundo as capacidades. 301 Por exemplo, os jornais publicam as resoluções do Conselho Regional de Portalegre, ameaçando de punição, prisão e expropriação sem direito de reserva todos aqueles que «incitem, mobilizem ou participem em actos contra a reforma agrária», in Jornal do Comércio, 2/8/1975. 302 Uma das mais pertinentes críticas a estes aspectos foi feita pelo Prof. Henrique de Barros. Afirmou nomeadamente que «não se devia contar de modo nenhum, tendo em vista o cálculo do rendimento fundiário, as benfeitorias de curta duração (digamos, inferiores à esperança média de vida humana), tais como plantações de árvores de fruto e de vinha; nem as benfeitorias de longa duração quando são efectuadas pelo actual proprietário», «Lei controversa e controvertida», in É Indispensável Consolidar a Reforma Agrária, Lisboa, 1977. 303 Foram muitas as discussões sobre este limite. Não houve conclusões unânimes, mas ninguém pretende que esta dimensão permite o enriquecimento. O Prof. Henrique de Barros também se exprimiu sobre o assunto: «Poder-se-á considerar como latifundiário, ou como um senhor da terra mais ou menos feudal, ou ainda como um impiedoso explorador do trabalho de outrem, um agricultor autónomo que, além da remuneração do seu trabalho e dos seus familiares e do juro do capital de exploração próprio, pode guardar para si uma soma de algumas dezenas de milhares de escudos, no fim de um ano agrícola, depois de ter vencido múltiplas vicissitudes? […] Foram abrangidos pela lei numerosos médios agricultores autónomos, dos quais alguns eram apenas empresários familiares que nada tinham de um latifundiário, cuja sobrevivência não contribuía para a injustiça social e cuja preservação como empresários era não só justificável sob todos os pontos de vista, mas também socialmente útil», ibidem. 304 Testemunho inédito do Prof. Carlos Portas, in arquivos do GER. 305 A Capital, 3/1/1976.

CAPÍTULO X A INTERVENÇÃO DO ESTADO

Ao contrário de outros casos conhecidos, o Estado não sofreu ataques repetidos e derrotas sucessivas. Não se entrincheirou atrás de políticas cada vez mais defensivas e isoladas, a não ser relativamente às questões militares e coloniais. O poder político não se agarrou desesperadamente ao Estado tentando conter as vagas revolucionárias, pela simples razão de que estas não existiram. O Estado foi atingido e conquistado antes da sociedade. Foi-o rapidamente, num só golpe. As reviravoltas e perturbações sociais vieram depois. Seguidamente, o Estado foi chamado a desempenhar um papel preponderante. Foi a partir desta situação que os revolucionários se multiplicaram e se dispersaram no território e nas instituições. A conquista do Estado, tanto do seu aparelho civil e administrativo como das suas forças policiais e militares, foi o ponto de partida do processo revolucionário e não a sua conclusão nem o ponto de chegada. Os principais autores do derrube do regime, os militares, agiram no interior do Estado, não a partir do exterior ou da sociedade civil. Os primeiros representantes do novo regime e a maior parte dos seus dirigentes mais preeminentes eram militares que nunca tinham assumido responsabilidades civis ou sociais, ou então civis que se revelaram, aos olhos da população, nas suas novas responsabilidades de Estado. Nem uns nem outros tinham previamente dirigido

ou representado forças sociais ou civis. Alguns eram conhecidos, sob a ditadura, graças ao seu papel na oposição clandestina, mas o âmbito limitava-se a pequenos círculos urbanos e politizados. A sua ascensão nos órgãos de poder político provisório foi o ponto de partida da maioria das organizações políticas. De certo modo, o Estado esteve na origem da revolução social que se seguiu ao golpe de Estado. Todavia, não tomou, como tal, a iniciativa de todos os movimentos sociais e de todas as acções revolucionárias. Não tinha, para tal, a coesão suficiente. As forças políticas dirigentes eram demasiado heterogéneas e concorrentes; estavam interessadas em crescer, alargar o recrutamento e aumentar a sua influência no Estado e na sociedade. Na lógica de luta política, cada uma procurava ser preponderante e eliminar todas as outras do poder. Isto não seria mais do que a normalidade da vida política, não fora o facto singular de as principais forças políticas estarem conjuntamente envolvidas no poder, supostamente em plena colaboração. Sem organização nem base social (o PC tinha, no entanto, uma situação mais favorável), os partidos procuraram as suas clientelas, no que a acção do Estado ou através do Estado lhes foi utilíssima. Mas também era necessário agir fora do Estado, pelo que foram criadas, sob a condução dos partidos, importantes dinâmicas sociais. Mas outras provinham mais ou menos espontaneamente dos grupos e das origens mais diversos. Tendo as liberdades públicas sido repentinamente instauradas, toda a gente procurava lutar pelos seus interesses. Os partidos prestaram atenção a todos estes movimentos. Apesar de nem sempre os terem iniciado ou conduzido, os partidos conseguiram frequentemente atraí-los ou recuperá-los. No entanto, sem controlo político, os movimentos sociais evoluíam mais depressa do que os partidos se organizavam. Ora, preocupados com o recrutamento,

receando perder o controlo dos acontecimentos e desejosos de enquadrar os movimentos reivindicativos dispersos, os partidos acentuaram todos a sua «linha de massas»: adaptaram-se, para melhor controlar. Na acção dos partidos houve complementaridade entre as suas posições estatais e as suas iniciativas sociais. Durante o período mais marcadamente revolucionário, o PC foi o que melhor conseguiu desencadear ou tomar a liderança de uma grande variedade de movimentos sociais, mas também, convergentemente, reforçar as suas posições e a sua influência no Estado. Este, graças à lei e à coerção, permitiu-lhe proteger as suas bases sociais, recompensar os revolucionários e punir os seus adversários. O outro detentor do poder político, o MFA, só aparentemente estava à altura de realizar um certo consenso ou de dar ao Governo estabilidade e coesão. No seio das forças armadas, era uma minoria organizada, embora a maioria, durante certo tempo, não o tenha activamente hostilizado e se tenha mesmo submetido ao seu comando político e hierárquico. O MFA repousou sobre uma política de corpo e uma solidariedade de circunstância. As suas ideias políticas eram as mais variadas. Com o tempo, as diferenças tornaram-se mais nítidas e originaram lutas internas. O MFA ia-se mantendo, mas a sua direcção e a sua orientação iam mudando no decurso dos meses. O que se manteve foi sobretudo o seu carácter de emanação das forças armadas. A direcção política do Estado foi assegurada, segundo os momentos, por tal ou tal outra fracção do MFA e das forças armadas em aliança com partidos políticos. Dominado pelas forças da mudança e do novo regime, o Estado tomou frequentemente a iniciativa das transformações sociais, económicas e políticas. Forneceu à revolução as leis e as decisões, os homens e a administração, a força e o dinheiro.

Após a suspensão da Constituição de 1933 (que foi a primeira medida jurídica da Junta de Salvação Nacional), as antigas leis iam sendo substituídas, revogadas, modificadas ou mantidas em vigor, segundo as circunstâncias políticas e as exigências da nova ordem. Por vezes, estas medidas eram a resposta a solicitações ou reivindicações sociais. Mas, geralmente, foram iniciativas do Estado e resultavam da influência de um ou vários partidos, ou do MFA. Traduziam as relações de força no centro do poder e só marginalmente eram o reflexo de relações de forças sociais no conjunto do País. Não obstante, as estratégias revolucionárias do PC e do MFA fizeram frequentemente apelo «às massas», seja em apoio da sua acção no Governo, seja na tentativa de contrariar os seus adversários, que aliás eram, em grande parte, seus parceiros de Governo. Do mesmo modo, o PS, batido em 1975, fez apelo à mais vasta participação de «massas» e conseguiu conquistar uma posição de influência predominante no poder político. Na iniciativa das mudanças e na aplicação, o papel desempenhado pelos serviços da administração pública teve muito particular relevo. Falou-se mesmo da «revolução dos serviços»306. Por um lado, aplicavam as novas leis e traduziam na prática as novas disposições. Mas, por outro, multiplicavam iniciativas e acções de intervenção. Subordinados a um poder instável, heteróclito e mutável, agiam mais de acordo com as fidelidades partidárias dos funcionários do que com as orientações estatais, que aliás ou não existiam ou eram contraditórias, à imagem do Governo. Os poderes e os centros de decisão eram múltiplos. As medidas legais contribuíam elas próprias para descentralizar poderes e dispersar responsabilidades. O poder político e o poder de Estado não coincidiam. Nesta situação, a acção dos serviços e dos funcionários, segundo as suas simpatias políticas, desenvolveu-se largamente.

Foi mesmo decisiva na maior parte das grandes transformações radicais, como por exemplo as ocupações de terra e o emprego compulsivo. Para o desempenho deste papel, por parte dos serviços públicos, vários princípios de acção ou estratégicos revelaram-se particularmente eficazes e adequados ao cumprimento de tarefas revolucionárias. A ocupação institucional assegurou a penetração da administração por milhares de novos funcionários recrutados segundo regras de clientelismo partidário; e permitiu o exercício de responsabilidades públicas por militantes fiéis aos seus partidos. A mestiçagem da administração com o MFA e com organizações civis (sindicatos, associações, comissões de toda a espécie) permitiu a politização do aparelho de Estado e a sua colocação ao serviço dos grupos activistas e militantes mais bem organizados. Combinado com a multiplicidade dos centros de decisão e com a descentralização dos poderes executivos, aquele factor esteve particularmente em evidência no caso da reforma agrária. Os serviços públicos estavam parcialmente nas mãos de grupos de interesses. Estes, os sindicatos, as diversas comissões, as comissões administrativas autárquicas, os conselhos regionais e outros agiam de acordo com uma centralidade, uma orientação comum e uma coordenação: não as do Estado, mas as do Partido Comunista. O alargamento tentacular dos poderes de decisão e das competências dos organismos públicos completava este dispositivo, ao mesmo tempo que estatizava a maior parte dos assuntos correntes, sociais ou económicos. Isto faziase através do aumento de funções dos organismos existentes; ou pela criação de novos; ou por intermédio da absorção, pelo Estado, de instituições e de empresas, como os grémios da lavoura, as Casas do Povo, as câmaras, cooperativas, empresas e associações privadas. Através de medidas legais, eram colocadas sob a

responsabilidade do Estado: saneadas, «intervencionadas» ou nacionalizadas. De modo convergente, os sindicatos associaram-se às instituições públicas, tendo-lhes mesmo sido confiadas funções geralmente estatais. Os sindicatos agrícolas tiveram poderes de denúncia, vigilância, fiscalização, controlo económico, inquérito oficial, avaliação do estado das culturas e distribuição compulsiva de trabalhadores. Um novo aparelho de Estado encontrava-se em formação, embora desordenadamente. Não havendo coincidência entre o poder político e o aparelho de Estado, esta espécie de «caos» institucional aproveitava aqueles que conseguiam um certo grau de centralização e de disciplina que permitiam uma visão de conjunto: o PC e parcialmente o MFA. Sobretudo o primeiro. Com efeito, se é verdade que o poder pertencia, em última instância, às forças armadas, também é certo que a instabilidade e a mobilidade da liderança lhe destruíam a capacidade política. Paradoxalmente, a estatização e a politização das questões correntes coexistiam com uma espécie de «vazio de Estado», ou «vazio de poder». A mutação fazia viver simultaneamente aqueles dois fenómenos contraditórios. A abundância de legislação, de portarias e de despachos revelavam os vazios, jurídicos, mais do que consagravam uma autoridade clara. Sem Constituição, sem leis-quadro, sem orientações gerais, as questões particulares só podiam resolver-se com leis particulares, por vezes promulgadas ou publicadas depois dos factos consumados. Concebidas precipitadamente, as leis eram geralmente incompletas e não resistiam ao menor confronto com a vida: eram rapidamente corrigidas, modificadas, revogadas ou substituídas. Aprovadas nas vagas dos acontecimentos políticos, traduziam a precariedade dos equilíbrios e eram de âmbito cada vez mais restrito e particular. Aqui se situava uma das fontes do arbitrário, ou mesmo da

desigualdade perante a lei. Mas, formalmente, a legalidade quase nunca faltou. Estava presente seja através das leis particulares, seja por intermédio da «legalidade sem lei», isto é, os actos das agências de Estado, dos organismos públicos, dos funcionários e dos militares no exercício das suas funções. As leis permitiam-lhes agir. Descentralizadoras, conferiam vastos poderes. Sem regulamentos específicos, consagravam a capacidade de juízo e a força de decisão dos organismos locais e dos funcionários. Estes multiplicavam as suas intervenções. Do ponto de vista do público, era fácil confundir a lei com toda e qualquer acção do agente do Estado, sobretudo em tempos de incerteza, do direito. No decurso de uma ocupação, no processo de concessão de um crédito, ou numa disputa acerca de um problema de propriedade, a palavra do funcionário fazia de lei. A legislação «A reforma fez-se na 1.ª série do Diário do Governo, a revolução na 2.ª»307 As leis gerais, que não foram muito numerosas, reflectiam mais um certo espírito reformista, criando mecanismos geralmente moderados com vista à mudança ou à reforma de certos aspectos das estruturas agrárias. Só excepcionalmente a sua inspiração era extremista. O alcance das suas medidas podia ser mais ou menos moderado, mas os seus objectivos eram publicamente definidos, além de serem o resultado de acordos entre partidos no Conselho de Ministros. Ora, foi através de decisões particulares que a revolução foi mais bem servida. Foram recrutados funcionários politicamente seleccionados; os serviços foram reorganizados; foram criados serviços paralelos e comissões ad hoc. Não previstas na lei, as ocupações de terras foram administrativamente legalizadas, tal como as

herdades foram expropriadas e reconhecidas as unidades colectivas. Foram atribuídos fundos, concedidos créditos e distribuídos subsídios segundo os critérios discricionários do ministro ou do secretário de Estado. O excesso de legislação tem origem no vazio jurídico308. A ausência de Constituição e de leis-quadro torna necessária uma plétora de normas, regras e decisões. Age no mesmo sentido a rápida evolução política. Com as mudanças no Governo são necessárias novas medidas. A heterogeneidade política dos ministros contribui também para a inflação de leis e de regulamentos. Todos, segundo as suas filiações partidárias, agem mais ou menos à vontade e contraditoriamente. O número crescente de membros do Governo (o sexto chegou a 60) é outra causa da proliferação legislativa e regulamentar. No entanto, o Ministério da Agricultura regista uma relativa continuidade política. Durante os cinco primeiros Governos, esteve nas mãos de militantes e simpatizantes comunistas e de extrema-esquerda. Com o sexto Governo, a pasta é atribuída a um dirigente da esquerda socialista, mas que teve de aceitar um secretário de Estado comunista. Apesar do seu volume, o conjunto legislativo e regulamentar de 1974 não é muito significativo do ponto de vista das inovações. A maior parte das leis importantes visa a supressão de instituições do antigo regime e a revogação de normas anteriores. Todo o regime de liberdades, direitos e garantias fica liberalizado, apesar de insuficientemente regulamentado, até por ausência de quadro constitucional. O sistema corporativo é globalmente desmantelado, mesmo se em alguns dos seus aspectos, como o dos grémios da lavoura, vários anos serão necessários para proceder à efectiva extinção e à consequente transformação ou substituição. As Casas do Povo são saneadas pelo Decreto-Lei n.º 702/74 e legalmente dissolvidas pelo n.º 737, do mesmo ano. Os

grémios são dissolvidos pelo Decreto-Lei n.º 482/74, de 25 de Setembro. Para o sector agrícola, as primeiras e mais importantes medidas estatais são as relativas à disciplina do trabalho309. Primeiro, as convenções colectivas; depois, a sua homologação pelo Ministério do Trabalho; em seguida, as «portarias de alargamento de âmbito»; e, finalmente, as «portarias de regulamentação do trabalho rural», que se substituem às negociações. As normas do emprego compulsivo começam por ser estabelecidas pelos contratos colectivos, sendo mais tarde legalizadas por despachos ministeriais, nomeadamente pelo despacho conjunto dos secretários de Estado do Trabalho e da Estruturação Agrária310. Este último, que dá força de lei à colocação compulsiva de trabalhadores e à primeira «comissão distrital rural», não é publicado no Diário do Governo, mas, sim no Boletim do Ministério do Trabalho (a 28 de Fevereiro de 1975), inadvertência ou erro que os revolucionários não cometeram frequentemente. Entre as iniciativas inovadoras de 1974, citem-se as que visavam o subaproveitamento dos solos agrícolas e os arrendamentos compulsivos como medida punitiva. Estão neste caso os Decretos-Leis n.os 547/74 e 653/74, de Outubro e Novembro, assim como o despacho do secretário de Estado da Agricultura de 22 de Novembro de 1974. São a tradução de um certo espírito reformista e de uma preocupação produtivista, apesar de uma relativa inspiração estatal. O Decreto-Lei n.º 547/74 revela, além do mais, uma vontade de justiça social ao permitir aos rendeiros e foreiros o acesso à propriedade nas terras que arrotearam e valorizaram durante anos. Mas é o Decreto-Lei n.º 660/74, de 25 de Novembro, que, entre todos, será o mais radical e traz mais pesadas consequências. Não visa particularmente a questão agrária, dirige-se às empresas privadas de qualquer sector,

permitindo a «intervenção do Estado», que se traduz na demissão dos seus órgãos sociais e na nomeação de uma «comissão administrativa». Quase um milhar de empresas serão assim «intervencionadas» em 1975, entre as quais algumas dezenas de explorações agrícolas311. Estas intervenções marcam uma viragem na economia. Sob a ameaça da intervenção, durante um conflito ou em processo de negociação, os empresários podem escolher entre o abandono, a resistência ou a cedência. Nos dois primeiros casos, a intervenção segue-se automaticamente. No terceiro, a empresa fica rapidamente em desequilíbrio e a sua sorte é semelhante. Com esta lei instaura-se o controlo directo e imediato do poder económico pelo poder político; e fica selada uma primeira aliança entre o Governo e os sindicatos. Depois da aprovação deste decreto-lei, os conflitos empresariais terminam-se invariavelmente pela vitória do sindicato ou pela intervenção estatal. Para os empresários, é a primeira grande derrota depois do 25 de Abril. Para os revolucionários, é o primeiro grande passo na luta pelo poder económico. Só 39 empresas agrícolas foram «intervencionadas» e, nalguns casos, entregues aos trabalhadores. Este decreto teve pouca aplicação no sector agrícola. Mas a sua importância não foi menor. Com efeito, as primeiras transferências de propriedade, antes das ocupações e das expropriações, foram feitas por via de «intervenções do Estado». Durante o ano de 1975, o legislador será bem mais prolixo e radical. A produção e o conteúdo das leis vão acompanhar de perto a evolução da balança política favorável à esquerda. Em Janeiro é a primeira tentativa de elaboração de um plano orientador, o «Programa de política social e económica». Até Abril, a agitação crescente, a preparação das eleições constituintes e os golpe e contragolpe de 11

de Março ocupam os espíritos e as energias. A partir de Abril, com o novo Governo, o Conselho da Revolução e a nova situação política, as leis vão suceder-se. Datam de Abril, entre outros: o Decreto-Lei n.º 201/75, sobre o arrendamento rural, prevendo novas vantagens para os rendeiros; o Decreto n.º 203-C/75, de importância crucial, incluindo o programa económico do Governo e um novo projecto de reforma agrária; o Decreto n.º 207-B/75, sobre a «sabotagem económica», prolongamento radical do decreto sobre as intervenções do Estado nas empresas privadas; o Decreto n.º 213/74, dando poder ao ministro para nomear comissões administrativas para as Casas do Povo; e, finalmente, os Decretos n.os 215-A/75, 215-B/75 e 215-C/75, estabelecendo a liberdade de associação para o patronato e para os sindicatos, mas só reconhecendo uma única central, a CGTP-Intersindical312. Estes decretos, que, directa e indirectamente, dizem respeito à questão agrária, são acompanhados por outros, de carácter mais geral, mas que marcam fortemente o novo curso: criação do Conselho da Revolução; o «pacto» entre o MFA e os partidos; a atribuição ao Conselho da Revolução de competências para realizar reformas estruturais na sociedade e na economia; e as sucessivas nacionalizações de empresas, grupos e sectores económicos. Nos campos do Sul, desde Março, redobra a agitação e multiplicam-se as provas de força. Ainda há muito poucas ocupações de terras, mas o Decreto-Lei n.º 203-C/75 dálhes legitimidade suficiente. Todavia, o que tem mais impacte é a promessa, feita pelo ministro, da próxima aprovação das leis de expropriação. Entre Maio e Agosto, os sindicatos e os próprios serviços públicos não cessam de reclamar a sua publicação313. Fazem-se ocupações e tomam-se decisões oficiais invocando explicitamente «a legislação cuja publicação se espera»314. Esta, no entanto, demora. Discretamente preparadas, as

leis são discutidas em Conselho de Ministros, no princípio de Julho. O PC, o MFA e os independentes mais radicais conhecem os projectos do ministro da Agricultura. Os socialistas são apanhados de surpresa: dizendo-se chocados, não assinam. Apesar de a data oficial ser a de 29 de Julho, as leis só são publicadas a 11 de Agosto315. Este longo prazo, de quatro meses, desde os primeiros anúncios até à publicação, é o resultado de divergências entre os ministros, incluindo entre os comunistas e o ministro da Agricultura, mas também da necessidade ressentida por todos de preparar antes as condições e os instrumentos favoráveis à aplicação das leis. Na prática, a urgência é só relativa. Sindicatos, unidades do MFA e outros revolucionários prosseguem a sua acção no terreno. Todavia, do ponto de vista político, algumas medidas prévias são julgadas necessárias. Assim, a Portaria n.º 299/75 estabelece níveis de intensificação que os agricultores devem respeitar. O despacho ministerial de 23 de Junho institui o controlo do gado: o número de cabeças, o abate e a deslocação de animais devem ser declarados, autorizados e fiscalizados. Receia-se que os proprietários, na previsão das expropriações, vendam o seu gado aos comerciantes ou mesmo em Espanha, o que aliás acontecerá algumas vezes. O Decreto-Lei n.º 351/75, de 5 de Julho, cria os «conselhos regionais de reforma agrária»316, aos quais se acrescentam os diversos «grupos de trabalho 317 permanentes» . Estes últimos são geralmente criados por despachos simples, que não necessitam de discussão e aprovação em Conselho de Ministros. São estes os principais instrumentos de criação do «novo Ministério» e do saneamento do antigo318. O despacho de 7 de Julho dá orientações sobre o financiamento das unidades colectivas pelos serviços oficiais e pelos centros regionais. Isto antes que as leis de expropriação e as normas de reconhecimento das UCP

sejam aprovadas. Uma vez mais, a legislação precede a acção e os serviços adiantam-se ao Governo. Em princípios de Agosto, a legislação-quadro é finalmente publicada. Parece estar em atraso sobre os acontecimentos, mas na verdade é a confirmação das medidas precedentes, em particular o Decreto-Lei n.º 203C/75. A verdadeira lei de expropriações é o Decreto n.º 406-A/75, peça mestra do pacote legislativo. Expropria o conjunto das terras pertencendo a um mesmo proprietário e cujo total ultrapasse os 50 000 pontos, e não apenas as superfícies em excesso daquele limite319. Aos proprietários expropriados é concedido um «direito de reserva» numa superfície equivalente a 50 000 pontos, desde que sejam agricultores directos e que retirem os seus rendimentos, de modo exclusivo ou predominante, da actividade agrícola. Será ainda necessário que as terras não estejam incultas nem abaixo dos níveis de produtividade estabelecidos pelo Despacho n.º 299 e que os proprietários não se encontrem em nenhuma das situações puníveis previstas pela legislação sobre a intervenção do Estado e sobre a sabotagem económica. Além dos proprietários, os rendeiros que se encontrem em situações equivalentes de dimensão económica serão também expropriados. Do ponto de vista do seu conteúdo social, é uma lei relativamente radical, visando os grandes proprietários e absentistas, mas também empresários de média dimensão. Os agricultores que mais investiram serão os mais penalizados, dado que o resultado do investimento, as benfeitorias, é contado na pontuação. O Decreto-Lei n.º 406-B/75 prevê mecanismos de crédito para as terras ocupadas, mas sobretudo as regras de reconhecimento legal das unidades colectivas, com vista à concessão de créditos. O Decreto-Lei n.º 407-A/75 nacionaliza integralmente os perímetros de regadio, cerca de 186 000 ha no Alentejo e no Ribatejo. Os direitos de reserva são atribuídos em

condições semelhantes às do Decreto n.º 406-A/75. O Decreto-Lei n.º 407-B/75 estabelece o controlo sobre a cortiça. Toda a cortiça produzida pelos proprietários susceptíveis de expropriação (ou por aqueles que produziram mais de 375 t durante um ciclo de dez anos) é declarada indisponível e submetida ao controlo do Estado. As infracções cometidas pelo proprietário serão punidas com a perda do direito de reserva. O proprietário é todavia obrigado a proceder a todas as operações de arranque, como em tempo normal, excepto o transporte e a venda. Como no caso do gado, trata-se de impedir que os proprietários realizem capitais e de proteger a viabilidade económica das futuras unidades colectivas. Este aparelho legal consolida os avanços já feitos anteriormente em matéria de reforma agrária, mas marca uma grande viragem: a partir daqui, as ocupações aceleram. Estas leis, todavia, não revelam um projecto preciso de reforma agrária, nem um desígnio social explícito quanto aos modelos futuros. As suas principais preocupações parecem ser a destruição das bases materiais da burguesia fundiária e proteger os meios de produção colocados à disposição dos sindicatos e dos trabalhadores. As leis não pretendem controlar e orientar os processos assim desencadeados: criam um novo quadro geral e legal dentro do qual os grupos mais activos agirão e porão em prática os seus projectos. Esta aparente «dialéctica» deve ficar em vigor, enquanto o Estado não pertence inteiramente a uma só força política. É certo que os movimentos sociais, as acções reivindicativas, os protestos e as ocupações de terras têm uma indiscutível importância e conferem a todo este processo uma dimensão de revolta social ou de levantamento. Mas quase todos vivem à sombra da lei e do Estado. O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 406-A/75 é uma boa demonstração desta relação e do interesse que têm os comunistas, os militares, os sindicatos e seus

simpatizantes em que o Estado passe a mão à «imaginação dos operários agrícolas e dos pequenos agricultores». É a própria lei a pretender que «este processo de reforma agrária não constitui, no que tem de essencial e de profundo, uma iniciativa ou um facto do poder de Estado». O legislador convida a ver neste decreto «um apelo e um quadro, a fim de que a iniciativa popular se desenrole, na base de múltiplas assembleias locais, às quais competirá dar o impulso à reforma». Modesto, o texto de lei apenas pretende ser «o quadro geral de ataque contra a grande propriedade e contra a grande exploração da terra»… As leis apenas se pretendem políticas e protectoras dos movimentos dos trabalhadores. São deixados para definição ulterior os novos regimes de propriedade e de aproveitamento das terras e das águas, os futuros sistemas de produção e os novos estatutos e modelos de organização das empresas. «Esses regimes e esses estatutos não podem, nem devem, brotar unilateralmente do Estado: devem nascer, numa larga medida, das iniciativas e das lutas sociais, assim como da vontade das assembleias que, através dos campos, de aldeia em aldeia, marquem o controlo do processo produtivo pelas classes trabalhadoras». A verdade é que, depois de aprovada a lei, se verificam 90% das ocupações de terras e herdades. E é ainda outra medida legal que dá a este processo uma grande velocidade e um carácter de autêntico «movimento de massas». O Decreto-Lei n.º 541-B/75 permite que o crédito avalizado pelo Estado seja utilizado para o pagamento de salários das unidades colectivas em simplificadas e expeditivas condições processuais. Depois da entrada em vigor desta medida, nova viragem e nova aceleração: dois terços da área ocupada sê-lo-á depois do «decreto dos salários». Até à entrada em vigor da Constituição, em fins de Abril de 1976, a produção legislativa conhece ainda um

momento importante. No rescaldo do 25 de Novembro de 1975, partidos e militares chegam a um acordo sobre a reforma agrária. Este prevê várias correcções na legislação e na prática seguida pelo Ministério. O essencial das leis mantém-se em vigor, mas as emendas são significativas. Serão publicados, em conformidade, vários decretos-leis, entre os quais os n.os 236-A/76, 236-B/76 e 248/76. As correcções consagram algumas das teses moderadas defendidas pelo PS e pelo PPD, mas, dado que as leis ficam em vigor na sua generalidade, o PC não hesita em assinar também. Com isso garante a sua permanência no sexto Governo. As correcções traduzem um abrandamento geral das disposições em vigor. As expropriações ficam limitadas à zona de intervenção. São reforçadas as garantias de respeito pelas explorações dos pequenos agricultores, sejam eles proprietários, rendeiros ou seareiros. É criada a «reserva de exploração», ou «reserva de rendeiro», ao lado da reserva de propriedade. É finalmente prevista a devolução de todas as terras ocupadas ou expropriadas «indevidamente», o que quer dizer com menos de 50 000 pontos. Com o fim de examinar todas as situações complexas entretanto criadas e que tinham sido motivo de queixas formais junto do Ministério da Agricultura, é criada a «comissão de análise». Durante os seus dez meses de funcionamento, examina 1103 casos. Entre as suas recomendações contam-se devoluções de terras e herdades, concessões de reservas e instalação de rendeiros e seareiros320. Os proprietários não agricultores ou os que têm outras profissões e outros rendimentos recebem igualmente alguns benefícios com a nova legislação, nomeadamente o direito de demarcar reserva, que não tinham anteriormente. Aos proprietários que são também agricultores directos, quer dizer, que trabalham eles

próprios a terra, reconhece-se o direito à plena propriedade, não expropriável qualquer que seja a dimensão. Outras modificações menores traduzem as mesmas intenções: moderação e preocupação de conceder algumas vantagens aos camponeses e aos pequenos agricultores e proprietários. Mais tarde, em Junho de 1976, dois novos decretos confirmam esta política. O primeiro, n.º 489/76, institui o pagamento de mesadas, a título de adiantamento sobre indemnizações, aos proprietários expropriados que se encontrem em situação de necessidade. É a primeira aceitação legal e prática do princípio das compensações monetárias pela expropriação. Paralelamente, outras mudanças vêm esclarecer questões relacionadas com as unidades colectivas. Procuram inculcar-se alguns princípios cooperativistas numa realidade predominantemente colectivista. Várias disposições são aprovadas: uma reforça a autonomia de gestão, retirando às UCP as características próprias às herdades de Estado; outra concede às UCP o direito de preferência em caso de venda ou arrendamento de uma reserva; outra ainda protege certos direitos adquiridos, procurando impedir que a demarcação de uma reserva de propriedade cause prejuízo ao equilíbrio ou à viabilidade económica de uma unidade colectiva. Apesar de todas estas modificações, alguns dos principais pontos de fricção e de conflito político, tanto nas esferas do Governo como na sociedade, mantêm-se intactos. Na verdade, os modos capitalista, camponês, cooperativo, colectivista e estatal são todos possíveis e concorrentes, mas também contraditórios e fontes de tensões. Tanto mais que o Governo e o Ministério da Agricultura não conseguem pôr em prática a maior parte das correcções legalmente admitidas e que parecem ficar letra morta. Várias dezenas de seareiros e de rendeiros são instalados na Primavera de 1976, mas as mudanças

práticas não são numerosas. Muito em particular, toda a questão das reservas é adiada. Ora, este é um ponto crucial. Sem a concessão das reservas, tudo fica a meio caminho, nada é irreversível. As unidades colectivas querem guardar as superfícies inteiras, enquanto os antigos proprietários, perante a hesitação, acabam por tudo querer recuperar. Em Novembro de 1976, o ministro da Agricultura, isolado, é forçado a demitir-se. Atacado pelos comunistas, cercado pelos proprietários, não conseguiu sequer fazer-se apoiar pelos camponeses e pelos pequenos agricultores. A intervenção legislativa do Estado, durante o período provisório e revolucionário, é coroada pela Constituição que entra em vigor em Abril de 1976. Os artigos consagrados à reforma agrária definem um modelo de certa maneira radical. Outros, sobre o sistema económico e social, confirmam o modelo, conferindo-lhe um sentido socialista, revolucionário e colectivista321. Tanto a Constituição, na sua globalidade, como os artigos relativos à reforma agrária são aprovados por uma fortíssima maioria: mais de 230 votos contra os 17 do CDS. Era imaginável que a questão agrária tivesse encontrado um ponto de equilíbrio e que a legislação revolucionária, entretanto corrigida e moderada, proporcionasse um certo consenso. Nada de semelhante aconteceu. O que estava votado não constituía compromisso. Uma grande parte da Constituição, nomeadamente os artigos sobre a reforma agrária, tinha sido redigida e votada noutros tempos, antes mesmo do 25 de Novembro, numa altura em que muitos se esforçavam por ver pouca gente à sua esquerda. Aliás, os deputados constituintes tinham todos sido eleitos em pleno período revolucionário. Sem grande mal-estar, os três partidos não comunistas contradizem, meses depois, o que votaram na Constituição e nas leis agrárias. Os comunistas, pelo seu lado, dão mostras de não quererem respeitar as novas leis, incluindo

as correcções que eles próprios aprovaram. Se é verdade que a Constituição marca o fim do provisório e fecha definitivamente a era revolucionária, não é menos verdade que traz consigo uma nova contradição capital: entre o modelo político constitucional e os equilíbrios sociais322. Por outro lado, a legislação revista não tem base social: demasiado à esquerda para uns, insuficientemente para outros. Não seria talvez um problema grave, se o poder político fosse forte. Mas não é o caso. Em certa medida, é mesmo mais fraco do que durante o período revolucionário, dado que agora existem limites constitucionais e políticos ao poder. Ao arbitrário das vanguardas sucedeu uma democracia representativa, mas sem consenso nem hegemonia. Nem sequer uma maioria parlamentar. A intervenção nas empresas Graças ao Decreto-Lei n.º 660/74 e à legislação sobre a «sabotagem económica», o Estado procedeu à 323 «intervenção» em cerca de um milhar de empresas . Apenas 39 são agrícolas, ou agro-alimentares, situadas nos distritos do Alentejo e do Ribatejo e assim distribuídas cronologicamente. Em 1975: Fevereiro, 1; Março, 4; Abril, 3; Maio, 6; Junho, 12; Julho, 10; Agosto, 1; e em 1976, em Janeiro, 2. Há três grupos de empresas a distinguir: explorações agrícolas, 18; cooperativas e uniões cooperativas de transformação, 15; empresas agro-industriais, 6. Do ponto de vista do número e das superfícies, esta intervenção no mundo rural é sobretudo estrategicamente significativa. Com efeito, precedeu as ocupações e mostrou aos sindicatos e aos empresários as intenções do Governo. Em certo sentido, as intervenções abrem a via para as expropriações: quando estas começam, aquelas acabam.

Este mecanismo legal permitia ao Estado controlar empresas, sem agitar o «espantalho» da nacionalização. Constituía também um recurso do Governo em caso de graves problemas económicos ou conflitos sociais numa empresa. Na agricultura, este dispositivo legal facilitou a intervenção do Estado em áreas delicadas, como sejam as cooperativas e as grandes empresas capitalistas de transformação de produtos agrícolas. Umas e outras são indispensáveis à produção agrícola, garantem a comercialização, estabelecem com os produtores contratos que dão uma certa estabilidade e oferecem mesmo emprego significativo em algumas regiões. Podendo embora também haver razões técnicas ou económicas, as principais intervenções neste tipo de empresas têm motivos marcadamente políticos. À volta das empresas ECA e Grisul, colocadas sob intervenção e transformadas em «centro agro-industrial», houve dezenas de ocupações e criaram-se várias unidades colectivas. Depois de muita agitação, a união de cooperativas «Com a União, Venceremos» é legalmente reconhecida. Esta agrupa as duas empresas industriais, o antigo grémio e quase todas as unidades colectivas de Santiago de Cacém324. O espírito de kombinat agrícola, desenvolvido pelo capitalismo agrícola e generalizado nos países socialistas, inspira esta instituição. O Governo apoia e põe em prática a política de integração estatal da economia. Além das unidades colectivas, dos grémios dependentes da administração, das cooperativas e das agro-indústrias sob intervenção, o Governo reforça ainda as competências e os poderes dos organismos de coordenação económica325. São-lhes cometidos alguns monopólios legais, nomeadamente na importação de matérias-primas e de produtos alimentares (açúcar, álcool, cereais, carnes, etc.). Os seus empregados são equiparados a funcionários públicos. Para todos os

efeitos, os organismos passam a ser serviços dos ministérios. Quanto às explorações agrícolas, a primeira intervenção do Estado (ao abrigo do Decreto n.º 660/74) é de 5 de Fevereiro de 1975. Trata-se de uma decisão do Conselho de Ministros, que todavia só será oficialmente publicada a 15 do mesmo mês. São visadas as herdades do «Zé da Palma», ou «Monte do Outeiro», no concelho de Beja. No entanto, são os jornais de 23 de Janeiro que, duas a três semanas antes, anunciam a intervenção, dando todos os pormenores, incluindo o nome do administrador de Estado que vai ser nomeado326. É também a imprensa que informa sobre os motivos da intervenção: «perda de produção, venda de gado não justificada, falta de trabalhos essenciais à produtividade e à conservação das explorações, despedimentos injustificados e outras violações das convenções colectivas de trabalho»327. A imprensa afirma ainda que o administrador nomeado pelo Estado, o engenheiro Romana Martins, deverá propor ao Governo as medidas adequadas, incluindo «o arrendamento compulsivo ou a expropriação». A 3 de Março de 1975, o Diário do Governo publica outra resolução do Conselho de Ministros, datada de 19 de Fevereiro, sobre a intervenção nas herdades «Donas Marias» e «Cavacedo», no concelho de Mora. O motivo invocado é a «necessidade de atingir níveis de intensificação cultural adequados e de garantir o emprego». A 8 de Abril, são as herdades «Padrões» e «Padrões Novos» que são intervencionadas, por despacho do ministro, não mais por resolução do Conselho de Ministros. Motivo invocado: «Não funcionam de maneira a contribuir normalmente para o desenvolvimento económico do País.» Este despacho traz outra inovação: o ministro ordena ao IRA que pague os salários dos trabalhadores através do Fundo de Melhoramentos Agrícolas.

Num outro caso, um despacho do ministro de 17 de Junho de 1975, publicado a 25 do mesmo mês, ordena a intervenção na herdade «Forninho». A justificação legal apresentada é a «situação de sabotagem, que não afecta somente a economia, a produção agrícola e, por consequência, a reforma agrária, mas também a própria revolução socialista». Sobe o tom. A revolução também. O Movimento das Forças Armadas No regime corporativo, a ditadura não era militar. Os soldados tinham estado na sua génese, mas o poder político civil conseguira impor-se, gozando, evidentemente, do apoio militar indispensável. Nos anos 60, os militares são de novo chamados a desempenhar um papel determinante na vida nacional: a condução das guerras de África e a defesa do «pacto colonial». Em consequência, o seu peso na sociedade e na vida política aumentou. Tiveram mesmo uma palavra a dizer na sucessão de Salazar e na escolha, em 1972, do presidente da República328. Mas também o seu descontentamento aumentava, à medida que os anos passavam e que eram cada vez maiores os seus «sacrifícios», sem que o Governo encontrasse as soluções para a guerra e para as colónias. Nos primeiros anos da década de 70, desenvolve-se nos círculos militares um mal-estar ao qual vêm acrescentar-se os conflitos profissionais que o Governo não conseguiu evitar e que desajeitadamente provocou. Conseguida a conspiração de 1974, o poder militar que dela sai não é unitário, não tem ideologia nem desígnio político ou programa; não está preparado para se atacar à questão do estabelecimento de um novo regime, nem elaborou um plano para a descolonização. Dentro do MFA, e ainda mais nas forças armadas, encontram-se todas as

opiniões e tendências imagináveis. A luta pela liderança vai ser viva, tanto mais que certos grupos se associam mais ou menos abertamente com os partidos políticos que vão surgindo. O primeiro reflexo dos militares consistiu em manter-se a alguma distância dos assuntos políticos e do Governo. Nem totalmente dentro, nem absolutamente fora. Esta foi a atitude prevalecente, no imediato, mesmo se já oficiais e grupos mais radicais se batiam por um envolvimento político superior. No entanto, as lutas políticas que se seguem, o vazio de poder e a desorganização do Estado, as ambições de alguns militares e a estratégia dos comunistas vão criar uma dinâmica de empenhamento progressivo dos militares nos assuntos políticos e civis. Isto principalmente por causa da guerra. Os oficiais querem acabar com ela, rapidamente e a qualquer preço. A simples palavra «negociação» provoca a desconfiança. Mas também por causa do socialismo e da revolução. Alguns militares do MFA consideram-se os «motores da revolução», papel em que são confirmados pelos esquerdistas, pelos comunistas e até por alguns socialistas. Finalmente, por causa das profundas clivagens que apareceram na sociedade e que terão criado a necessidade de um mediador ou de uma orientação superior. O MFA propõe-se desempenhar este papel, no que aliás é apoiado por várias forças políticas. Depois da vitória da esquerda mais radical dentro do MFA, sobretudo após 28 de Setembro de 1974, o MFA impõe-se lentamente às forças armadas. Identifica-se com elas e pretende dominá-las. Os seus dirigentes, na boa tradição africana, concebem o MFA como um «movimento de libertação». A fórmula é desajeitadamente copiada dos seus inimigos da véspera, em Angola e Moçambique. A Aliança Povo-MFA transforma-se no símbolo do regime que os militares de esquerda querem fundar, ideia que

conta com o apoio entusiasmado dos comunistas. Na verdade, a aliança verdadeira é entre o MFA e o PC. A sua radicalização conduzirá ao isolamento do MFA nas forças armadas e do PC no País. Mas, antes de serem derrotados em Novembro de 1975, comunistas e militares conseguem realizar alguns projectos do programa comunista, em particular a descolonização, a nacionalização dos grupos económicos e a reforma agrária329. No seio do MFA e das forças armadas, durante dois anos, várias facções surgem e desaparecem, lutam, levam a melhor ou são batidas. Apesar dos seus contornos mutáveis e pouco nítidos, alguns grupos influentes podem ser identificados, utilizando como referência as personalidades mais em vista. Entre os «aliados» ou «próximos» do PC, ou entre aqueles que mantiveram sempre uma actuação política razoavelmente convergente com este partido, contam-se: Vasco Gonçalves, primeiro-ministro de 18 de Julho de 1974 a 19 de Setembro de 1975, certamente a mais controversa personalidade de toda a revolução e figura de proa de todo o ciclo esquerdista do MFA e do Governo; Costa Gomes, presidente da República de 30 de Setembro de 1974 a 14 de Julho de 1976; Martins Guerreiro, membro de todos os órgãos superiores do MFA e de todos os Conselhos da Revolução; Costa Martins, ministro do Trabalho até Setembro de 1975. Mais ou menos em ruptura, em concorrência ou em aliança com o PC, revelaram-se também Varela Gomes e Rosa Coutinho330. Os esquerdistas populistas (e que se identificavam nomeadamente por defenderem o «poder popular») deram à revolução uma dimensão imprevista. A sua ruptura com os comunistas foi uma das causas imediatas do fim da revolução. Otelo Saraiva de Carvalho é o seu mais conhecido símbolo e dirigente. Socialistas de esquerda, mas partidários de um certo pluralismo político, manifestaram-se em vários momentos

e constituíram talvez o elemento mais durável do MFA. São conhecidos, durante o Verão de 1975, como o «Grupo dos Nove». É graças a eles que esquerdistas e comunistas são travados a 25 de Novembro. Todavia, além do seu próprio poder, procuravam facilitar a coexistência, ou mesmo um entendimento, entre o PS e o PC. Melo Antunes e Vasco Lourenço são os seus membros preeminentes. Pezarat Correia, comandante da Região Militar do Sul em 19751976, pertence a este grupo. Defensor de uma reforma agrária «legal» em 1975, será fortemente contestado pelos comunistas. A partir de 1976, quando deixa a Região Militar para se limitar ao Conselho da Revolução, as suas tomadas de posição são geralmente favoráveis às unidades colectivas e aos sindicatos comunistas, que daí em diante lhe mostram as suas simpatias. Em vários momentos, outras personalidades militares manifestam a sua preocupação pela defesa das liberdades, ou surgem mesmo como adversários dos esquerdistas e dos comunistas. Desempenharão, no futuro, papéis importantes, mas, até 1976, não são bem definidas as suas posições políticas. Entre eles, Ramalho Eanes, Firmino Miguel, Loureiro dos Santos e Pires Veloso331. E há ainda oficiais, em geral politicamente ao centro ou à direita, que se identificam mais com as forças armadas e as suas tradições e que, por razões diversas, surgem menos abertamente na cena política e militar. Depois do afastamento do general Spínola, deixam de desempenhar qualquer papel no MFA, mantendo todavia peso como dirigentes militares. Entre eles poderão mencionar-se os então coronéis Durão, Soares Carneiro, Tomé Pinto e Rocha Vieira. Durante dois anos, a evolução do poder político é marcada pelas lutas entre estas facções, assim como pelas suas alianças com os partidos políticos, forças civis, os sindicatos, a Igreja, etc. Noutras palavras, o MFA e as forças armadas não se mantêm como forças estáveis, nem

fiéis a um programa ou uma ideia. Tanto é possível dizer que o MFA se opôs à fundação de uma democracia representativa, durante um período, como afirmar que o MFA, em fins de 1975, defendeu tal regime e garantiu as eleições. Na verdade, MFA e forças armadas eram aquilo que faziam as fracções dominantes ou os oficiais que conseguiam impor-se durante um certo tempo, aproveitando, aliás, da organização militar e de alguma disciplina, do que restava de hierarquia e do espírito de corpo. Em dois anos, o MFA teve pelo menos seis estruturas diferentes de poder e de organização, assim como vários modos de associação ao poder político e aos órgãos de soberania, os quais, por sua vez, também iam mudando, por obra e graça tanto dos civis como dos militares. Até Novembro de 1975, o núcleo vitorioso é o dos simpatizantes do PC, estando os esquerdistas em lugar de destaque. Depois daquela data, o grupo predominante é o dos socialistas de esquerda, apoiados inicialmente pelo PS, reunidos seguidamente à volta do general Eanes. A mobilidade ideológica e política da maior parte destes grupos é uma característica importante do MFA. Militares que, em 1974, se declaram «sociais-democratas», como Otelo Saraiva de Carvalho e outros, defendem em 1975 a «revolução socialista e o poder popular» e desprezam a «democracia formal, parlamentar e burguesa». Oficiais liberais ou conservadores, como A. Spínola, procuram um entendimento governamental com os comunistas em Maio de 1974, criticam-nos em Agosto, declaram-se simpatizantes do socialismo democrático em Fevereiro de 1975 e tentam um golpe marcadamente direitista em Março. Socialistas de esquerda, como M. Antunes, partidários de uma síntese entre revolução e democracia, atacam frontalmente os comunistas no Verão de 1975, mas prestam-lhes inestimável ajuda após o 25 de Novembro. Militares comunistas, fiéis à teoria das fases da

revolução, passam facilmente da «revolução democrática» de 1974 à «revolução proletária» de 1975; e, em 1976, fiéis desta vez ao princípio das relações de força, tornamse legalistas e defendem a Constituição. E tudo isto, sempre, em nome do MFA e do 25 de Abril, dos seus «princípios», da sua «pureza» e do regresso ao seu espírito autêntico. Quem os define? Os que têm o poder. No Verão de 1975, a desorganização das forças armadas atinge o seu ponto alto. Grupos mais tradicionalistas ou unidades mais disciplinadas, como o eficaz Regimento de Comandos, estão atentos, esperam por uma ocasião para intervir, o que farão em Novembro. Outros, adeptos do método conspirativo ou ligados às estruturas mais ou menos discretas do PC, mantêm-se organizados, certos de que o caos militar é a melhor maneira de destruir as antigas forças armadas. Um número considerável de regimentos e de unidades das regiões metropolitanas de Lisboa e Porto, assim como no Alentejo, estão fortemente politizados e francamente indisciplinados. Centenas ou milhares de militares, soldados ou oficiais, em uniforme ou «à civil», participam em manifestações políticas e em comícios da sua escolha, em geral na extrema-esquerda. Oficiais encapuçados e em uniforme, armados de espingarda-metralhadora, dão conferências de imprensa, anunciam na rádio e na televisão que acabam de criar, dentro do exército, uma organização clandestina revolucionária332. A Polícia Militar, um dos núcleos mais duros da extrema-esquerda, intimida nas ruas e prende mais ou menos arbitrariamente soldados e civis. A 26 de Novembro de 1975, várias pessoas serão encontradas nas caves da P. M., onde terão sido vítimas de torturas. Nas ruas desfilam militares, acompanhados ou não de civis, mostrando o punho fechado e a bandeira vermelha. Exigem aumento de vencimentos, o derrube do Governo, o saneamento dos oficiais «reaccionários» ou a revolução

socialista. Os blindados, sobretudo os famosos Chaimite, fazem parte do mobiliário urbano, como também intervêm numa ocupação de herdades no Alentejo. Em todos os conflitos políticos ou sociais, nas praças dos mercados, nos campos ou nas empresas, aparecem destacamentos militares, metem-se nas discussões, acabam geralmente por dar razão a tudo o que está à esquerda. Em várias ocasiões, todas as estradas conduzindo a Lisboa ou ao Porto, assim como certos «nós» rodoviários, são fechados e ocupados por militares, apoiados por grupos de civis ostentando imprevisíveis braçadeiras333. Os carros são controlados, os passageiros revistados. Ninguém sabe ao certo porquê, a não ser que se procuram «armas e reaccionários». Na verdade, os militares procuram o que encontram. Garrafas, varapaus, mocas, de vez em quando uma faca, raramente uma pistola: o espólio é magro. Por todo o País, a todo o momento, procura descortinarse a disposição e a evolução dos regimentos e das unidades militares: há os revolucionários e os operacionais. Com este último eufemismo designam-se os regimentos eventualmente anti-revolucionários que ainda não estão desorganizados. O número de quartéis revolucionários parece crescer, as suas manifestações também. No fim do Verão de 1975, os recrutas do R.A.L. 1 prestam juramento com o punho fechado e garantem defender os trabalhadores e a revolução socialista. Os operacionais parecem minoritários e cercados. Fazem falar pouco de si, mas os seus nomes são murmurados, com esperança ou receio. Há quem não esqueça que as intervenções operacionais tiveram já maus resultados: quando certas unidades tentaram resolver conflitos, como aconteceu com os pára-quedistas em Março e Outubro, há grandes possibilidades de ver os soldados «virados» pelos militantes activistas. Para os chamados operacionais só há uma saída: intervir uma só e última vez, vencer e mudar o

curso dos acontecimentos. É o que será feito no 25 de Novembro de 1975. Sem história própria nem doutrina, sem raízes sociais, o MFA é uma instituição, um corpo de Estado, mais uma força militar. Isto na medida em que se confunde com as próprias forças armadas. Mas também é uma minoria organizada dentro das forças armadas. Começa por apoiar os projectos comunistas, isto é, a intervenção militar na vida política e constitucional, assim como a ideia de um poder militar próprio e autónomo, não submetido ao Governo. Partilha com o PC o objectivo de revolução socialista, permite-lhe realizar as reformas estruturais prévias às eleições e concede-lhe mesmo um apoio relativo para os seus projectos de organização do Estado, na qual o princípio da representação não teria o primado. Depois, mudando de direcção, o MFA transforma-se no garante da realização de eleições e do nascimento de um regime baseado no sufrágio popular. Antes disso, foi ainda um factor decisivo para a realização de vários aspectos marcantes da revolução, do ponto de vista social e económico. A reforma agrária foi um deles. Os militares radicais, esquerdistas ou comunistas, não tiveram força suficiente para impor um regime autoritário. Nestas condições, acolheram a democracia como um mal menor. Não podiam correr o risco de uma restauração: as forças de direita, as classes capitalistas e os militares do antigo regime não lhes teriam perdoado o golpe de Estado, nem as nacionalizações, nem a descolonização. Assim se mantém o espírito de corpo, entre militares com ideologias e pontos de vista tão diferentes, durante dois e mais anos. A instituição militar não podia deixar transformar-se no alvo ou no objecto de um processo histórico, no processo de quanto foi feito depois do golpe e do levantamento. Mesmo depois de 1976, quando os oficiais mais radicais foram afastados das chefias militares, de postos de responsabilidade ou passados à reserva (punição

relativamente doce), perdões e amnistias acabaram por apagar rivalidades que os tinham feito passar bem perto do conflito armado, ou mesmo da guerra civil, segundo alguns. A instituição militar recusava ser politicamente julgada tanto pela guerra colonial como pela descolonização. Os militares na reforma agrária As ocupações são movimento subversivo, revolução organizada e levantamento popular. É diverso o seu carácter. Mas o seu sucesso e a sua rapidez devem tudo à intervenção privilegiada das forças armadas. O seu contributo traduziu-se na protecção dos ocupantes, na ausência de repressão e na intimidação dos proprietários. Os próprios soldados diziam frequentemente aos trabalhadores e aos proprietários: «Antigamente, a Guarda Republicana estava sempre ao lado dos patrões. Hoje, as forças armadas estão ao lado dos trabalhadores.»334 Quase não há resistência ou oposição física aos ocupantes. Para os proprietários, a situação era clara: «Como era possível resistir? Não só os trabalhadores eram mais numerosos, como vinham acompanhados de destacamentos militares armados, comandados por oficiais. E até o Governo os protegia.»335 Esta força dá aos trabalhadores e aos sindicatos uma confiança tal que lhes permite qualquer audácia. Além de que têm um forte sentimento da legitimidade, ou mesmo da legalidade da ocupação. A impunidade é total, o acto revolucionário é valorizado, o difícil talvez seja não ousar. Para os proprietários, as forças armadas tinham sido sempre o último bastião da legalidade. Isso ainda é verdade durante os primeiros meses de 1975, no meio da desorganização crescente da administração e mesmo das polícias. O Alentejo parece ter sido atingido pelo «vazio do poder». A quem recorrer, quando ameaças pairavam sobre

as suas herdades? Às forças armadas, com certeza. Foi o que fizeram, até perceberem que era relativamente inútil. «Os proprietários estavam habituados a servir-se das polícias ao menor conflito. Ora, a partir de um momento, tratava-se de obedecer aos militares, muitas vezes chamados a intervir pelos próprios agricultores, que não sabiam o que fazer.»336 Mas, no Alentejo, a acção do MFA não se limitou ao apoio directo às ocupações. Manifesta-se e está presente em várias frentes: nos órgãos de poder do Estado, nas instituições, em acções conjuntas com os partidos e os sindicatos e directamente junto das populações. Além da força e da legitimidade, a eficácia da contribuição das forças armadas reside no facto de serem os únicos a fazer a «quadrícula» do território. Também têm os meios de comunicação e de mobilidade. São vantagens palpáveis se comparadas com a desorganização administrativa e com a fragilidade relativa dos partidos recém-nascidos. Todas estas razões fazem do MFA um aliado desejado: todos os partidos colaboram com ele, todos procuram os seus favores, mas é o PC que leva a melhor. A mais espectacular das acções do MFA em meio rural é a sua «campanha de dinamização cultural». Regimentos inteiros, com meios materiais e recursos humanos excepcionais, vão-se pelos montes, de aldeia em aldeia, semear a boa palavra, despertar as populações e sensibilizá-las para a nova situação política. Partidos e sindicatos, grupos culturais e animadores, imprensa e televisão, dão a sua colaboração. Além da política, os militares ocupam-se de tudo: assuntos locais, desenvolvimento e saúde, escola e agricultura. Estas campanhas não deixam de fazer recordar outras para as quais os militares tinham sido treinados: as acções de «psico» que faziam em África junto das populações. No Norte e no Centro são campanhas de grandes dimensões, envolvendo centenas de pessoas durante

vários dias337. Nas regiões rurais do Sul e no Alentejo, onde os partidos de esquerda e os sindicatos são bem mais fortes, as campanhas são mais modestas: dispensam os blindados, não têm o mesmo cenário guerreiro que tinham no Norte e traduzem-se geralmente em «sessões de esclarecimento» efectuadas conjuntamente com civis. Como seria de esperar, as campanhas radicalizam-se rapidamente. Os partidos não comunistas distanciam-se depressa. O PS e o PPD criticam-nas em termos violentos. Paralelamente, o MFA instala militares em cargos de responsabilidade institucional. Fá-lo por vontade dos militares, mas também sob proposta ou por incitamento de civis, especialmente dos comunistas. É verdade que o regime não é militar, mas há militares um pouco por todo o lado. Há governadores civis, como em Évora e em Beja. Há-os em comissões administrativas de autarquias, de cooperativas ou de empresas «intervencionadas». E há-os sobretudo nos «conselhos regionais de reforma agrária» e nas reuniões das «comissões distritais rurais»338. Os soldados agem também quotidianamente junto das populações e em meio rural. Intervêm em centenas e centenas de casos, geralmente a meio de um conflito. Quase todos os incidentes lhes são apresentados, ou para quase todos eles são chamados. Arbitram ou resolvem, como podem. Segundo as situações, aparecem em pequeno ou grande número, pacificamente ou em cima de blindados. Podem vir por várias razões. Por exemplo, a pedido dos proprietários em dificuldade, ameaçados de ocupação339. Ou, pelo contrário, chamados pelos trabalhadores, quando o proprietário faz oposição ou não quer deixar a herdade ocupada340. Também podem tomar as suas iniciativas, que muitas vezes se traduzem por ocupações. A este propósito, a Escola Prática de Vendas Novas distingue-se pela sua enorme actividade341. Umas vezes são os ministérios que apelam para os militares342. Noutras, ainda, são os militares

que alertam o Governo para situações de conflito que consideram graves343. As intervenções do MFA no Alentejo não são apenas relativas a questões agrárias. Depositários da autoridade e da força, encarregados da repressão e da vigilância geral, os militares ocupam-se de toda a espécie de assuntos públicos e o que fazem não deixa de ter consequências para o clima social da região. Nos dias seguintes ao 11 de Março de 1975 efectuam importantes missões de controlo. Assim, são presos «vários fascistas do distrito de Évora, entre os quais G. G., grande latifundiário de Reguengos; J. C. R., também latifundiário em Reguengos; J. M. M. G., grande latifundiário, proprietário da herdade da ‘Galeana’, e outros»344. Alguns dias depois, o MFA de Beja faz um apelo para a vigilância popular e manda publicar um comunicado nos jornais: «MFA — Telefones contra boatos! A 5.ª Divisão do Estado-Maior-General das Forças Armadas dispõe de três linhas de telefone pelas quais pode confirmar os boatos que circulam no País e receber informações que a população julgue necessário fornecer a este serviço.» Seguem os números de telefone345. As intervenções dos militares são geralmente favoráveis aos trabalhadores e aos ocupantes. Há, todavia, excepções. Com efeito, tomam algumas vezes o partido dos proprietários ou dos rendeiros, em especial se são de pequena dimensão. O comandante do regimento de Setúbal, por exemplo, a 24 de Julho de 1975, dirige-se ao ministro da Agricultura dando-lhe parte da sua inquietação: as ocupações arbitrárias começam a atingir os pequenos e médios agricultores, assim como herdades bem exploradas. E acrescenta que «se suspeita da presença, atrás destas ocupações mais ou menos selvagens, de uma certa organização partidária. […] Tudo isto pode ter consequências negativas, incluindo a perda da pequena burguesia para o processo revolucionário em curso e a sua rejeição para a oposição»346.

Este género de atitudes depende, evidentemente, da conjuntura, mas também da personalidade dos comandantes e dos oficiais das unidades. Entre os inúmeros relatórios, inquéritos e informações conservados nos arquivos militares, uns revelam-se abertamente favoráveis à revolução; outros adoptam uma posição «legalista», limitando-se aos factos e às missões para que foram escalados, sem comentários; outros, ainda, dão a prioridade ao inquérito sobre as actividades dos revolucionários, tanto civis como militares. Em certos casos, além do inquérito, os militares podem passar à acção. Em Outubro de 1975, por exemplo, unidades da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, efectuam várias operações de polícia nas zonas de Cartaxo, Almeirim, Alpiarça e Azambuja e prendem vários militantes da organização esquerdista LUAR. Armas e munições são apreendidas. O regimento publica um comunicado sobre estas acções e denuncia elementos «da 5.ª Divisão do Estado-Maior» que teriam andado a agitar os oficiais locais com referência a questões de reforma agrária347. Depois de 25 de Novembro de 1975, a acção das unidades militares está menos presente no terreno, mas mais nos gabinetes. Com efeito, elaboram estudos, relatórios periódicos sobre a reforma agrária, listas de militantes comunistas envolvidos em acontecimentos ou incidentes, levantamentos das regiões e das UCP segundo as simpatias políticas e as influências partidárias, etc. Parece haver, em cada unidade, um autêntico serviço de informações. Directivas do Estado-Maior, de Janeiro de 1976, mandam as unidades fazer relatórios regulares, assim como dão instruções precisas sobre o comportamento dos militares relativamente a questões de reforma agrária. A ideia geral é simples: devem os militares manter-se tão afastados quanto possível. Se há problemas, devem ser os serviços do Ministério da

Agricultura e resolvê-los. Se a ordem pública for perturbada, compete às polícias intervir. No caso de estas serem ultrapassadas pelos acontecimentos, e só nesses casos, as unidades militares podem mostrar-se. Na prática, não voltam a intervir348. Politicamente, o MFA ocupou-se dos assuntos de toda a sociedade. Mas, se for possível distinguir entre as suas várias intervenções sectoriais, a da reforma agrária foi a mais significativa de todas pela sua duração, pelo seu âmbito e pelos seus resultados. As condições geográficas e sociais da agricultura favoreceram esta intervenção. A dispersão das aldeias, das explorações agrícolas e das populações impôs modalidades de acção diferentes nos campos e nas regiões urbanas ou de concentração industrial. Os problemas e os conflitos agrários eram por definição disseminados, era preciso ocupar-se deles caso a caso. A convicção de que os camponeses do Norte e do Centro não se sentiam muito atraídos pelas ideias revolucionárias foi também um encorajamento para os militares. Os seus aliados de esquerda rejubilaram: uma aproximação política directa, nessas regiões, teria sido talvez mais difícil. No Sul, o caso era bem diferente e o MFA esteve politicamente menos presente, isto é, menos activo em «campanhas de dinamização». Mas, sendo aí mais evidente o afrontamento de classes, os riscos de incidentes também eram maiores: daí que o MFA estivesse militarmente mais presente. Último reduto da soberania, guardião da ordem pública, o MFA foi solicitado por todos, na esperança de uma decisão favorável. Até à viragem do 25 de Novembro de 1975, a intervenção militar na reforma agrária seguiu o curso geral do MFA, cada vez mais socialista e radical, até ao isolamento. Sem doutrina sobre a questão agrária, o MFA partiu de ideias vagas e gerais, para chegar a projectos radicais e ameaçadores, autênticas «fugas para a frente».

Fórmulas moderadas e sem conteúdo preciso, tais como «a reforma gradual das estruturas agrárias», tinham sido as escolhidas para os primeiros programas do MFA e do Governo349. Em fins de 1974, já o «Programa de política social e económica» propõe uma reforma agrária mais concreta. No fim do Verão de 1975, os últimos números do Boletim ameaçavam com arrogância e excesso. Só o colectivismo era agora encarado como solução, enquanto os inimigos eram cada vez mais numerosos: «A burguesia capitalista […], seus agentes e beneficiários locais, os caciques, os intermediários parasitas, os provocadores fascistas […], os seus agentes que se escondem nos partidos pseudoprogressistas com tons sociais-democratas […].»350 Estas proclamações não eram ainda o resultado da derrota: com efeito, mais de 850 000 ha iam ainda ser ocupados. Mas já revelam a solidão. Dois meses mais tarde, o MFA tinha desaparecido do mundo rural. Presentes por todo o lado durante ano e meio, nos comícios dos partidos e nas ocupações, nos órgãos da administração e nas reuniões das ligas de pequenos agricultores, os militares passarão a interessar-se sobretudo ou apenas pelos regimentos, pelos órgãos de soberania e pela fundação do regime democrático. Abandonaram a acção, tendo ficado no poder por pouco tempo mais. O crédito agrícola e o financiamento da revolução Legalidade, autoridade e poder militar: três ingredientes essenciais fornecidos pelo Estado. Só faltava o dinheiro. Também veio do Estado. Logo a seguir às ocupações, os problemas económicos dos trabalhadores apareciam sob uma nova luz: era preciso organizar a produção, investir e sobretudo pagar salários. Em cada unidade colectiva, ou em cada herdade ocupada, aumentou o número de trabalhadores: aos que já

lá estavam acrescentaram-se novos permanentes e eventuais. Em certas herdades ocupadas antes das colheitas, alguns recursos ficaram disponíveis. Noutras, os ocupantes conseguem, com a ajuda dos serviços competentes, receber os pagamentos por cereais anteriormente entregues pelos proprietários. Todavia, na maioria não há produto da colheita nem pagamento a receber. Para todas as UCP, qualquer que seja a situação concreta em que se encontram, os trabalhos do Outono e o período do Inverno levantam problemas difíceis. Mesmo os antigos empresários recorriam ao crédito. Há ainda problemas novos. Em muitos casos, os proprietários conseguiram levar com eles gado e máquinas. Em consequência, os trabalhadores deverão fazer novos investimentos. Finalmente, muitos proprietários deixaram dívidas nos bancos ou nos fornecedores. A maior parte resulta da actividade normal da empresa e dos créditos utilizados, seja em despesas anuais, seja em investimentos a prazo. Prevendo o que lhes pode acontecer, os proprietários abstêm-se de reembolsar ou amortizar. Depois das ocupações, ainda pensam menos nisso. Instala-se a incerteza. As UCP não se sentem na obrigação de pagar dívidas dos proprietários; estes, privados das suas empresas e mesmo das colheitas, não se consideram comprometidos. Tudo isto aumenta as necessidades de dinheiro por parte das UCP. Os comerciantes têm dificuldades em continuar a vender a crédito, sem terem sido reembolsados antes. Os bancos já não sabem quem lhes deve e ainda não sabem a quem podem emprestar. O Governo toma algumas medidas para tentar resolver uma ou outra situação. Decreta a suspensão das dívidas à banca (entretanto nacionalizada) e autoriza os organismos de Estado a deduzir das somas que servirão para pagar os cereais e a

cortiça os montantes necessários ao reembolso de dívidas de antigos proprietários. No meio de uma autêntica floresta jurídica, financeira e administrativa, algumas soluções provisórias vão sendo encontradas. Mas o problema mais importante continua a ser o das necessidades financeiras das UCP, em permanente aumento devido ao recrutamento maciço de novos trabalhadores. A solução encontrada chama-se «crédito agrícola de emergência» (CAE). Os seus primeiros mecanismos foram criados pelo Decreto-Lei n.º 251 /75, de 23 de Maio351. Começa por ser um crédito de campanha destinado à compra de adubos, sementes e outros factores de produção. O acesso é reservado aos pequenos agricultores. A grande vantagem deste crédito, além das reduzidas taxas de juro, reside na simplificação de processos. A decisão sobre um pedido de crédito pode ser tomada localmente e sem garantias reais ou hipotecárias. Espera-se assim que os camponeses aumentem o uso do crédito. Com efeito, para os pequenos proprietários, a hipoteca é um obstáculo psicológico e económico. Quanto aos rendeiros, parceiros e seareiros, nada tinham para hipotecar. A criação do CAE foi justificada por estas razões de ordem geral, mas também por motivos conjunturais. O ministro considerou que, tendo em conta as perturbações provocadas pelas transformações sociais em curso, era preciso apoiar os pequenos agricultores352. O novo sistema não é aplicado facilmente. Surgem dificuldades burocráticas. A falta de experiência dos agricultores, dos funcionários e da banca complica os processos. Os responsáveis bancários nem sempre vêem com bons olhos o novo sistema. Vários protestos se fazem ouvir. Por exemplo, os pequenos agricultores que empregam um ou dois assalariados permanentes ou eventuais sentem-se marginalizados. As UCP também pretendem ter acesso. Pouco a pouco, até fins de

Setembro, o Governo vai procedendo a ajustamentos. O Decreto n.º 406-B/75 alarga o crédito às cooperativas. A 18 de Agosto, o Governo admite que os beneficiários possam ser pequenos agricultores com um assalariado (no Norte) ou dois (no Sul). Finalmente, o Decreto-Lei n.º 541-B/75, de 27 de Setembro, já da autoria do sexto Governo, torna o crédito disponível para o pagamento de salários das UCP353. É depois deste decreto que se faz a maior parte das ocupações354. Antes disso, já as UCP tinham conseguido obter alguma liquidez. Os centros de reforma agrária tinham sido autorizados a apoiar financeiramente as novas unidades, mas só o fazem com montantes reduzidos, utilizando para isso os fundos do IRA ou mesmo créditos bancários limitados. Uma outra maneira de ajudar as UCP exigia a colaboração das ligas. Em certas herdades ocupadas, os trabalhadores não anunciavam a criação de uma UCP, mas manifestavam a sua intenção de trabalhar em grupo, como pequenos agricultores. Os seus pedidos de crédito são acompanhados de uma carta da liga que certifica a sua qualidade de pequenos agricultores. Com este processo, a banca concedia o crédito355. Os empréstimos do CAE, para os quais o Governo fixa um plafond global, são concedidos pela banca e garantidos pelo Estado, que assim cobre os riscos dos credores e dos devedores. Entre a banca e os agricultores ou as unidades colectivas, as «entidades intermediárias» analisam os pedidos e, na realidade, concedem o crédito. Estas entidades são geralmente as «comissões liquidatárias dos grémios», cuja rede cobre todo o País356. Foi essa a sua mais importante contribuição para a reforma agrária. Além destas comissões, em certas localidades, também as cooperativas podem exercer as mesmas funções. Estas entidades amealham uma taxa (1%) a reter nos juros a pagar.

Rapidamente o Alentejo e as UCP se transformam nos principais clientes e beneficiários deste sistema de crédito, o que não se explica só por razões políticas. Com efeito, no Norte, o uso de crédito pelo campesinato encontra reais barreiras culturais e sociais. No Sul, o hábito está muito mais generalizado. Além disso, há esta nova realidade, que são as UCP e dezenas de milhares de trabalhadores, que, sem esse crédito, não têm literalmente com que viver e trabalhar. Finalmente, a acção de informação e assistência levada a cabo por funcionários do Ministério, empregados da banca (geralmente simpatizantes com as UCP) e dirigentes sindicalistas contribui para a divulgação do crédito. Todas as UCP pedem e utilizam prontamente o CAE. O dinheiro está disponível, o Estado garante, não há nenhuma razão para se privarem. Também prontamente, os trabalhadores multiplicam as ocupações, sabendo de antemão que os seus salários estarão mais garantidos numa herdade ocupada ou numa UCP do que numa empresa privada. Os empresários, aliás, não têm qualquer espécie de interesse em investir ou pagar salários, sobretudo se as suas herdades ultrapassam os 50 000 pontos: para eles, a expropriação é só uma questão de tempo. Pelo mesmo motivo, os bancos, em previsão da aplicação da lei, deixaram de lhes emprestar dinheiro. Seja por razões políticas, estruturais ou conjunturais (ou todas ao mesmo tempo), a verdade é que o Alentejo, a zona de intervenção e as UCP recebem as maiores fatias de crédito, sem o qual a reforma agrária teria certamente sido diferente do que foi. Crédito CAE distribuído* Até 30-9-1975 Milhares de contos Total nacional

70,6

Até 30-9-1976

Percentagem 100,0

Milhares de contos 3689,5

Percentagem 100,0

Zona de intervenção Beja Évora Portalegre Setúbal Santarém

45,8

64,9

3330,1

90,3

0,5

0,7

1044,5

28,3

11,7

16,6

1006,0

27,3

6,3

8,9

434,3

11,8

11,0

15,6

376,9

10,2

9,8

13,9

270,3

7,3

* Em milhares de contos; valores acumulados. Fonte: Manuel Lucena, op. cit., e Maria Inês Mansinho, op. cit.

Em Setembro de 1975, a zona de intervenção recebe já 65% do crédito. Um ano mais tarde, a região atinge os 90%. O desequilíbrio é notório, qualquer que seja o motivo, quando se compara com o peso real da região: um quarto a um quinto da produção agrícola, da superfície cultivada, da população e do número de explorações agrícolas do País. O que pode ser considerado como uma discriminação regional é reforçado com uma discriminação social e política. Com efeito, as unidades colectivas arrecadam cerca de dois terços do crédito357. Crédito CAE distribuído aos sectores colectivo e privado em quatro distritos da ZIRA* (em milhares de contos) Distritos

Sector colectivo Total

Sector privado

Por hectare

Total

Por hectare

Beja

1322,2

5,3

242,7

0,3

Évora

1114,6

2,7

164,5

0,5

Portalegre

528,6

2,7

60,2

0,2

Setúbal

269,4

2,5

338,2

1,0

* Total dos créditos concedidos até 30 de Dezembro de 1976. Fonte: IGEF, Ministério da Agricultura.

O sector colectivo parece marcadamente privilegiado.

Esta situação provoca, desde fins de 1975, violentas polémicas na imprensa e nos meios políticos, sem falar dos meios agrícolas. Perante isso, a Governo tenta controlar os mecanismos de crédito, o que não consegue. Os serviços e a banca, sem rotina nem experiência, não acompanham o ritmo de crescimento dos créditos pedidos e concedidos. Pela direita, o Governo é acusado de favorecer as UCP, os sindicatos e o PC, marginalizando os pequenos agricultores e os empresários, além das regiões do Norte e do Centro. Pela esquerda, é criticado por não dispor de fundos suficientes e por apertar o plafond, por não prestar assistência técnica e por tentar ingerir-se na vida das unidades colectivas. Estas opõem-se fortemente a que o Governo interfira na gestão. Para tentar controlá-las, ou, antes, para controlar a utilização dos créditos, o Ministério imagina mecanismos de vigilância e de acompanhamento, mas não é capaz de os pôr em prática. As UCP exigem também que os créditos de campanha, mais caros e a curto prazo, sejam transformados em créditos de investimento, mais baratos e com prazos longos. Afirmam que uma grande parte dos empréstimos serviu para comprar gado e máquinas, ou para trabalhos de infraestrutura, e que é impossível amortizar ou reembolsar rapidamente. Ora, o CAE é um crédito de campanha, a curto prazo. Na verdade, está criado um caos financeiro onde nada falta: créditos não pagos, fraudes, favoritismo, fundos desviados do seu destino, grandes investimentos financiados com créditos a curto prazo, devedores insolventes, créditos irrecuperáveis… Oscilando entre a passividade e a sobrerregulamentação, o Governo precisará de vários anos para pôr um pouco de ordem358. Criado precipitadamente, forçado pelos acontecimentos, inspirado em motivos tanto políticos como sociais e económicos, este sistema de crédito desempenhou diversas funções. Acelerou as ocupações em 1975.

Garantiu a sobrevivência das UCP. Serviu como uma espécie de fundo social ou subsídio de desemprego. Permitiu às UCP recrutar maciçamente pessoal, muito além do que era economicamente razoável. Foi uma condição indispensável para que a produção agrícola se mantivesse a níveis aceitáveis num momento particularmente agitado de mutação social. O crédito foi indispensável à revolução e, paradoxalmente, talvez tenha contribuído para amortecer as suas consequências, dado que a produção se manteve. Não faltaram a alimentação, o emprego e os salários. Que se teria passado sem este crédito? Se a produção não tivesse logo retomado em 1976? Se faltassem significativamente os salários e a alimentação? Teria havido mais ou menos ocupações? Mais ou menos perturbações? Assegurando o seu financiamento, o Estado foi o suporte material da revolução, tal como tinha sido, no passado, o pilar da agricultura latifundiária. Revolução pelo Estado e revolução legal Se não constituiu uma verdadeira revolução, a reforma agrária foi pelo menos revolucionária, pela sua rapidez, pela sua amplitude e pela participação dos trabalhadores. Mas também pelos seus resultados. As classes de proprietários perderam uma parte substancial do seu poder económico; foi-lhes retirada parcialmente o seu poder no Estado; foram consideravelmente enfraquecidas. Outrora poderosas, devem agora negociar. Já não têm a capacidade para influenciar o Estado à sua vontade. Local e regionalmente, outros grupos e classes aumentaram o seu poder económico e institucional: as unidades colectivas, os sindicatos, as cooperativas e os pequenos e médios agricultores. Em resumo, houve uma mudança brusca e radical das relações sociais e uma redistribuição

dos poderes políticos e económicos. Alteraram-se instituições, mudaram comportamentos. Revolução, pois, mas como consequência de um golpe de Estado militar cujos primeiros motivos eram coloniais e militares e que não decorriam de lutas sociais internas nem das estruturas económicas. Os autores do golpe apropriaram-se dos órgãos de soberania e das fontes de legalidade. Esta, apesar de imposta pela força, foi consagrada por uma dupla legitimidade: não só os militares gozaram imediatamente de um inegável apoio popular explícito, como tinham derrubado um regime ditatorial de discutível legitimidade. A revolução não tinha inicialmente as suas bases sociais: foi preciso conquistá-las. O MFA distanciou-se o mais possível das classes e grupos até então dirigentes. Tendo ousado abolir a Constituição e os órgãos de soberania, tinha como objectivo descolonizar e terminar com a guerra. Não havia hipóteses de aliança entre o MFA e as classes possidentes ou os grupos profundamente atingidos: o fim do império anunciava-se como uma viragem histórica. O MFA procurou aliados capazes de construir um regime diferente. O corpo militar dirigente não provinha das classes economicamente superiores. Os oficiais vinham em maioria da pequena burguesia e das classes médias. Ao lutar contra as classes possuidoras, os militares não estavam a lutar contra os seus iguais. O poder político e institucional poderia ser para eles, mais do que o poder económico privado que não possuíam, a via de acesso ao reconhecimento social. Procurando alicerces populares para um novo regime, os militares encontraram naturalmente os partidos de esquerda que tinham sido excluídos da vida política durante cinco décadas e que defendiam uma descolonização rápida e incondicional. Outros partidos, como o PPD e o CDS, preferiam soluções moderadas ou

mitigadas, lentas e negociadas, alguns encarando mesmo a hipótese de criação de uma «comunidade» com as colónias. Nenhuma dessas ideias interessava aos militares, pelo menos aos mais activos e representativos do MFA, pois que esses projectos não garantiam suficientemente o fim rápido dos envolvimentos militares em África. O MFA liga-se assim mais estreitamente aos partidos de esquerda, em particular ao PC, o mais bem organizado e o único a ter estabelecido, em poucos meses, uma base sindical e meios de controlo social. A «tomada do Palácio de Inverno» (ou o assalto ao «quartel-general», ou simplesmente a conquista dos órgãos superiores do Estado) precedeu a revolução e desencadeou-a. Tudo começou pelo topo, pelo Estado e pelas leis. Mas os militares e os seus aliados não se ficaram por aí. Procuraram as bases sociais capazes de legitimar a descolonização. Abriram a revolução tanto quanto puderam, até perder parcialmente o controlo. Nesse desígnio, as doutrinas socialistas e comunistas levaram a melhor sobre outras correntes políticas. As forças políticas de esquerda, com relevo para o PC, desenvolveram imediatamente a sua acção em duas direcções: a sua própria organização e a penetração do aparelho de Estado ou ocupação institucional. Esta, beneficiando da natureza do golpe de Estado, foi rápida e fácil. Do Estado partiram, seguidamente, as iniciativas de mudança social e económica. A conquista das instituições foi tanto mais fácil quanto a revolução pelo Estado, através do Estado, encontrou um Estado feito para a revolução, quer dizer, centralizado, corporativo e fortemente hierarquizado. No Estado e nas suas instituições, a administração, a política, a economia e o militar encontravam-se intrinsecamente ligados. O regime de ditadura impedia a associação e a expressão; o regime corporativo evitava a separação dos problemas. A fraqueza da sociedade civil, do seu tecido associativo,

autárquico, regional e empresarial tornava inúteis as tentativas de mudança «por baixo». A concentração e centralização do poder indicaram a única via para a mudança: a decapitação. As tentativas precedentes, reformistas, vindas do interior e das franjas do regime, tinham todas sido travadas pelo mesmo obstáculo: a guerra colonial. Esta fazia parte integrante do regime, sabiam-no os partidários e os adversários. Apoiar a guerra era apoiar o regime. Para acabar com a guerra era preciso derrubar o regime. Todas as grandes iniciativas foram tomadas, depois de Abril de 1974, por um poder político provisório, que não se identificava com o aparelho de Estado preexistente, mas que dele se serviu como instrumento de acção, de legalidade e de coerção. Dominando as instituições e os serviços, o novo poder político procurou criar a sua própria legalidade a fim de se fazer respeitar. Não a procurou na instauração rápida de uma nova legitimidade, baseada no sufrágio universal, contentou-se com a legitimidade revolucionária, equívoca, mas real. Para isso, multiplicouse em produção legislativa. O adiamento da institucionalização da democracia, isto é, das eleições e da aprovação da Constituição, não significa que as autoridades tenham pensado dispensar as leis e o direito. Pelo contrário, aproveitaram este período para produzir abundante legislação. No decurso da sua redacção, que durou quase um ano, a Constituição foi assimilando a nova situação social e económica, ou, antes, as transformações estruturais, entre as quais a reforma agrária. Até lá, o poder procurou apoios populares e sociais e agiu por sua própria iniciativa. Não recorreu ao terror, mas ao despotismo, na sua temível variedade que é o despotismo legal. O direito não serviu para moderar a força do poder, mas foi utilizado para impor a vontade do «príncipe». Era o «primado da lei sobre o direito»359. Assim foram tomadas as principais iniciativas de reforma

agrária e de controlo social e económico. A decisão política vinha de cima e do centro, mas a execução era em grande parte deixada ao movimento social e à periferia. As leis da capital precederam a prática descentralizada. O ministro anunciava leis e decisões, assinava despachos e decretos, publicava o conteúdo de futuras medidas, preparava a acção, afirmava a sua intenção de criar instituições onde os militares, os funcionários e os sindicatos se encontrariam e tomariam iniciativas360. Anunciou até a criação de serviços de Estado dotados de largas e vastas competências, entre as quais a de «promover a criação de ligas e sindicatos» e a de «trabalhar em conjunto com os militares do MFA»361. As próprias leis continham apelos explícitos à acção das massas, à participação dos trabalhadores e dos sindicatos e insurgiam-se contra o «formalismo» e o «legalismo». O Estado não orientou explicitamente a acção de reforma, nem definiu o desígnio e os horizontes; não traçou as vias de realização, não teorizou os objectivos, nem formulou os modelos sociais. Abriu a via, mas interessou-se mais pela destruição do statu quo e pela luta contra as classes dominantes. No decreto-lei da nacionalização das terras regadas, por exemplo, o Governo entendeu afirmar que «a reforma agrária tem por objectivo fundamental abater o poder social e económico dos grandes proprietários»362. Ao Estado, como tal, a destruição da ordem estabelecida; ao PC, principal força sindical na região e principal aliado do MFA, o desígnio, os objectivos sociais e os modelos de organização. O modelo colectivista, definido por este partido, foi imposto pelo Estado, não directa e explicitamente, mas por intermédio dos créditos, do financiamento, do apoio dos funcionários e da assistência. Acrescente-se que este modelo era uma resposta possível e prática às exigências sociais imediatas. O Estado não impôs cegamente uma solução ou um modelo: impôs a solução dos sindicatos comunistas.

A acção do Estado seguiu assim duas vias principais: uma, a da destruição do poder das classes dominantes; a outra, a da organização dos meios, dos serviços, do financiamento, isto é, dos apoios à acção sindical e partidária. As leis anticapitalistas eram fortemente restritivas e punitivas. As leis de ordenamento e regulamento eram permissivas e vagas, serviam sobretudo para deixar campo livre aos revolucionários, legalizar os factos consumados, como as ocupações, e consolidar as posições conquistadas. As leis gerais não diziam como se faria uma expropriação, nem previam os mecanismos de demarcação de uma reserva ou de eventual pagamento de uma indemnização. Marcavam simplesmente os limites da propriedade aceitáveis, apelavam à acção das massas e seduziam os sindicatos. Ao mesmo tempo, o ministro ameaçava com sanções «todos os que criassem obstáculos à reforma agrária». Fizeram-se as ocupações. Várias vezes, o Governo e os militares falaram de «ocupações ilegais» ou «selvagens». Na verdade, apenas pensavam nas ocupações de herdades cujas dimensões não atingiam os 50 000 pontos. Ora, a partir de 1976, todas as ocupações foram consideradas ilegais, quaisquer que fossem as suas dimensões. As ocupações cessaram. Não foi a lei que mudou, foi a balança política e a relação de forças. De qualquer maneira, a ocupação era apenas um gesto. O que o Estado legalizava era o seu resultado. O Ministério reconhecia rapidamente o facto consumado e criava-se a unidade colectiva. No princípio de Julho de 1975, em Casebres, um mês antes da publicação das leis, o ministro admitia já a existência de 120 000 ha ocupados, «dos quais 80% tinham recebido ajuda do Ministério»363. Alguns participantes tinham uma ideia mais definitiva sobre a contribuição oficial, em particular das forças armadas. Otelo Saraiva de Carvalho, então comandante do

COPCON, afirmava que «a reforma agrária, reivindicada por certos partidos políticos, foi iniciada pelo COPCON». As primeiras ocupações ter-se-iam verificado depois de os trabalhadores se terem queixado dos proprietários: «e o COPCON disse-lhes simplesmente para ocuparem as terras. Dei-lhes a minha palavra de honra de que o exército não os iria tirar de lá e que até os ajudaria a ocupar»364. A ocupação não era uma acção explicitamente reconhecida pela lei, embora fosse politicamente recomendada nos próprios textos legais. Mas, enquanto a montante as leis limitavam a propriedade, a jusante as mesmas leis permitiam o apoio financeiro e técnico. Por outro lado, o Governo e os serviços da administração reconheciam de jure as unidades colectivas. Finalmente, a ocupação tinha-se tornado o único meio de obter crédito e de pagar salários. Para os trabalhadores, era mais do que suficiente. 306 Cf. Maria José Nogueira Pinto, O Direito da Terra, Lisboa, 1983. 307 Cf. Maria José Nogueira Pinto, O Direito da Terra, Lisboa, 1983. 308 Ver também Maria José Nogueira Pinto (coordenação), Agricultura e Reforma Agrária: Legislação 1974/76, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1981. 309 Ver a primeira secção do Capítulo VIII. 310 Na dependência, respectivamente, dos ministros do Trabalho e da Agricultura. 311 Ver a próxima secção, neste capítulo. 312 Estes decretos datam de meados de Abril. Geralmente, referem-se as datas de publicação, que ocorre uma a três semanas depois da aprovação em Conselho de Ministros. 313 Os «conselhos regionais» fizeram-no várias vezes. Ver a secção respectiva. 314 Um outro caso interessante é o do despacho ministerial que instaura o controlo do Governo e do sindicato sobre a deslocação de gado (23 de Junho de 1975). As infracções cometidas pelos proprietários são consideradas crimes de sabotagem económica, tendo em conta «a legislação a publicar» sobre a

reforma agrária. Definem-se crimes e sanções antes de a lei existir: é um dos raros casos de ilegalidade flagrante. 315 Leis publicadas a 11 de Agosto, num suplemento ao Diário do Governo com data de 29 de Julho. 316 Ver, no Capítulo VI, a secção «Os conselhos regionais da reforma agrária». 317 Ver, no capítulo VI, a secção «Os serviços oficiais». 318 Em Janeiro, o presidente do IRA afirma a sua disponibilidade «para apoiar os funcionários» na tarefa de saneamento; cf. A Capital, 9/1/1975. 319 Foi a unidade de cálculo criada pelo Ministério. Entra-se em linha de conta com a dimensão, a qualidade dos solos e das águas, a localização, as capacidades produtivas e os rendimentos, para os quais contribuem também as benfeitorias e as plantações. Em sequeiro, os 50 000 pontos podem representar, segundo as condições específicas, entre 150 ha e 700 ha de terra. Em regadio, os limites oscilam entre 25 ha e 35 ha. 320 Cf. Relatório da Comissão de Análise, Ministério da Agricultura, Lisboa, 1976. Esta Comissão só analisava os casos que lhe eram submetidos pelos interessados. 321 Ver a nota 33 do Capítulo VII. 322 Na revisão de 1982, os artigos constitucionais sobre a reforma agrária mantiveram-se iguais, com excepção de pormenores de redacção. O PPD e o CDS tentaram fazer uma revisão mais profunda, mas o PS e o PC fizeram oposição. Ora, eram necessários dois terços dos votos. Todavia, o PS, em Julho de 1977, tinha tomado a iniciativa de uma nova legislação agrária de conjunto, fazendo aprovar no Parlamento a «Lei de Bases Gerais da Reforma Agrária», Lei n.º 77/77. 323 A expressão «intervenção do Estado» tinha sido utilizada pela República Espanhola nos anos 30. Todavia, a origem imediata deve ter sido a legislação chilena da Unidad Popular, de Salvador Allende. O Chile socialista de 1970 a 1973 parece ter sido fonte de várias inspirações, nomeadamente em matéria agrícola. As experiências do ministro Jacques Chonchol, os seus escritos e os dos seus colaboradores foram largamente difundidos em Portugal e entre os funcionários do Ministério da Agricultura em 1974 e 1975. Vários antigos altos funcionários da reforma agrária chilena visitaram Portugal a título de conselheiros e peritos. 324 Entre as UCP contavam-se: «Estrela Vermelha», «Fidel Castro», «Passos de Lenine», «Che Guevara», «Humberto Delgado», «Ou Vai ou Racha», «Salvador Allende», «Unidos Venceremos» e «Estrela da Liberdade». Cf. A Capital, 28/10/1975.

325 Instituto dos Cereais, Junta Nacional das Frutas, Junta Nacional dos Produtos Pecuários, Junta Nacional do Vinho, Administração-Geral do Açúcar e do Álcool, Instituto dos Produtos Florestais e Instituto do Azeite e dos Produtos Oleaginosos. 326 Diário de Notícias, 23/1/1975. 327 Ver M. J. Nogueira Pinto, O Direito […], op. cit. 328 Foi escolhido Américo Tomás, presidente desde 1958. 329 O programa foi desenvolvido em duas publicações do PC: Rumo […], op. cit., e Relatório […], op. cit. 330 Este último foi o responsável pelo Governo provisório e de transição em Angola. Foi demitido do Conselho da Revolução após o 25 de Novembro de 1975. 331 Do ponto de vista militar, as operações foram coordenadas pelo então coronel Ramalho Eanes, logo a seguir nomeado chefe de Estado-Maior do Exército. Em Julho será eleito presidente da República. 332 A mais célebre tinha por nome «Soldados Unidos Vencerão», SUV. 333 Fizeram-se barragens deste tipo em Setembro de 1974, em Março, Junho e Julho de 1975. 334 Testemunho de M. Projecto, dirigente da Liga de Évora, in A. Barreto, Memória […], op. cit. 335 Testemunho inédito de M. Mira da Silva, grande proprietário e empresário, in arquivos do GER. 336 Testemunho inédito do Prof. Carlos Portas, in arquivos do GER. 337 Em especial as campanhas «Nortada» e «Maio Nordeste». 338 Ver, no Capítulo VI, a secção respectiva. 339 O rendeiro da «Courela do Sorraia», em Coruche, chamou os militares. Segundo estes, «o sindicato queria obrigá-lo a aceitar trabalhadores que ele não podia pagar. Ora, só os que não eram membros do PC estavam obrigados», in arquivos do EME, Janeiro de 1976. Em Alter do Chão, a 12 de Agosto de 1975, o agricultor da «Selada» pretende impedir a ocupação e pede protecção da unidade militar de Elvas, in arquivos do EME. Em Avis, a 14 de Agosto de 1975, os proprietários das «Padrão e Anexas» pedem a intervenção militar dois dias antes da ocupação, in arquivos do EME.

340 Por exemplo, na herdade da «Gâmbia», transformada em UCP «1.º de Maio», em Setúbal; ou no famoso conflito de «Cujancas», no Gavião. Cf. arquivos do EME; A. Barreto, Memória […], op. cit., e Vacas de Carvalho, O Fracasso […], op. cit. 341 Neste regimento havia uma «Brigada da reforma agrária», também conhecida como «Brigada das ocupações»; cf. arquivos do EME. Este regimento é frequentemente mencionado pela imprensa como responsável por múltiplas ocupações, como por exemplo as herdades «Barroca», «Chaminé», «Poço de Cima», «Poço de Baixo», «Franzina», «Água Boa» e 12 outras no concelho de Moura. (In Diário do Alentejo, 6/8/1975 e 20/8/1975.) Outro exemplo: «Em Cabeção, distrito de Évora, 12 grandes propriedades rurais foram ocupadas por trabalhadores e soldados da Escola Prática de Vendas Novas», in Jornal Novo, 1/10/1975. Vejam-se ainda as declarações do coronel A. Ribeiro, comandante da Escola Prática de Santarém: «Elementos das forças armadas juntaram-se a funcionários do IRA e a sindicalistas para fazerem a reforma agrária por sua própria conta», in A Capital, 29/10/1975. 342 A carta do secretário de Estado da Estruturação Agrária de 22/12/ 1975 dirigida ao comandante da Região Militar do Sul solicita «a intervenção firme e organizada das forças armadas não somente na prevenção de casos semelhantes, mas também na necessária repressão de actividades contrarevolucionárias que põem em causa a acção dos assalariados rurais», in arquivos do EME e arquivos do Ministério da Agricultura. 343 Aconteceu, por exemplo, a propósito das herdades «Sousa da Sé», Cujancas», «Torre Bela» e «Brotas», in arquivos do EME. Nas actas da CDR de Setúbal encontram-se várias cartas do Regimento de Infantaria n.º 11, de Setúbal, denunciando proprietários, in arquivos do EME e arquivos do GER. Este mesmo regimento dirigiu-se directamente aos Ministérios do Trabalho e da Agricultura pedindo instruções e a intervenção do Governo, in arquivos do EME. 344 Diário do Sul, 15/3/1975. Semanas depois, todos serão libertos sem acusação formal. 345 Diário do Alentejo, 17/3/1975. 346 In arquivos do EME e arquivos do GER (D. 449). 347 A Capital, 27/10/1975. 348 Directiva do Estado-Maior do Exército n.º 2/76, Janeiro de 1976; despacho 9/76 do CEME, de 27/1/1976; directiva do Estado-Maior do Exército de 30/1/1976; nota da Região Militar Sul n.º 92/76, de 16/2/1976; etc. In arquivos do EME. 349 Ver o «Programa do MFA» de Abril de 1974 e o «Programa do Governo provisório» de Maio de 1975.

350 Ver o Boletim do Movimento das Forças Armadas de 14/8/1975. 351 A este propósito, ver: Manuel Lucena, Revolução […], op. cit.: Inês Mansinho, «O crédito agrícola de emergência. Balanço de uma inovação», Análise Social, n.º 63, 1983, Lisboa; e Inês Mansinho, O Crédito Agrícola de Emergência no Alto e Baixo Alentejo, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1981. 352 A Capital, 7/5/1975. 353 O decreto é assinado pelos ministros socialistas das Finanças e da Agricultura do sexto Governo (Salgado Zenha e Lopes Cardoso). Os ministros tinham tomado posse uma semana antes, a 19 de Setembro. Sabe-se hoje que se começou a preparar esta medida durante o quinto Governo, mas foi o sexto que a terminou e aprovou. 354 Ver, no Capítulo IX, a secção «As ocupações». 355 Ver, no Capítulo XI, a secção consagrada às ligas. 356 Ver, no Capítulo VI, a secção «Os grémios da lavoura». 357 Segundo Barros Mouro (A Reforma Agrária, Coimbra, 1976), as UCP tinham recebido, até 31/12/1975, cerca de 64% do CAE. Segundo o Ministério da Agricultura, no fim de 1976, a repartição era a seguinte: unidades colectivas, 71,3%; explorações privadas, 28,7%. 358 Ainda em 1984, Governo e unidades colectivas acusam-se mutuamente de dívidas de milhões de contos, de roubo e de fraudes diversas. 359 Cf. M. J. Nogueira Pinto, O Direito […], op. cit. 360 Cf. A Capital, 7/5/1975. 361 Cf. a conferência de imprensa de lançamento do SADA, em Abril de 1975. Veja-se ainda o comunicado do Ministério da Agricultura de 15 de Abril de 1975. 362 Decreto-Lei n.º 407-A/75, de 30 de Julho. 363 A Capital, 7/7/1975. 364 Cf. a sua entrevista à agência AP, Associated Press, em Junho de 1976.

CAPÍTULO XI ASPIRAÇÕES E PODER NA REFORMA AGRÁRIA

A luta política, militar e institucional impôs-se durante dois anos e dominou a vida pública. Mas não se pode dizer que as questões sociais e económicas e as lutas de classe tenham sido secundárias. A questão agrária, em particular, revelou um complexo processo de lutas sociais, durante o qual os assalariados, os camponeses, pequenos e médios agricultores, proprietários e grandes empresários se organizaram e mobilizaram energicamente para defender os seus interesses. Todos lutaram pelo poder e pelos poderes, procuraram influenciar o Governo e tentaram conquistar posições institucionais dominantes. No centro dos combates, além da luta pelo poder, estavam objectivos económicos concretos. Os assalariados começaram por tentar melhorar substancialmente as suas condições de trabalho e reforçar o seu estatuto na sociedade. Atacarão de seguida a propriedade, num esforço de realização das suas principais aspirações, a garantia do emprego e a estabilidade do salário. Os pequenos agricultores do Sul, proprietários, rendeiros e seareiros, oscilaram inicialmente entre uma espécie de neutralidade e uma relativa disponibilidade para a reforma agrária. Uns queriam ter acesso à propriedade, outros esperavam alargar as suas explorações, outros, enfim, pretendiam melhorar as condições de arrendamento. Em

comum, queriam mais flexibilidade no mercado fundiário e acesso mais fácil à terra cultivável. No princípio, não parecem ter muitas simpatias pelos grandes proprietários. Mais tarde, dois anos depois do golpe de Estado, mostraram-se bem mais dispostos a aliar-se com eles e a contrariar os sindicatos e as unidades colectivas. Defendiam a propriedade privada e a exploração familiar. Ora, a reforma agrária não lhes trouxe reais benefícios e as unidades colectivas tinham mesmo tornado a terra mais rara. Os grandes agricultores e os proprietários fundiários são visados desde o início do processo político. Depois de algumas tentativas falhadas de se organizarem em novos moldes, vivem mais de um ano na defensiva. O subaproveitamento da terra e dos recursos é a primeira acusação que lhes é feita. São apontados o absentismo e o abandono das herdades. Mais tarde, estes aspectos serão ultrapassados: passarão a estar em causa a empresa capitalista e a propriedade privada. Tendo a iniciativa pertencido sobretudo às forças de esquerda, que utilizam as vias legais e os canais de Estado, os proprietários não conseguem defender eficazmente os seus interesses. Mais tarde, aproveitando a derrota dos elementos mais radicais no Governo e nas forças armadas, organizam-se e passam à ofensiva, tirando partido do apoio dos pequenos agricultores do País inteiro. As lutas políticas não são simplesmente o reflexo dos antagonismos económicos. Na verdade, a luta política precedeu e desencadeou as lutas sociais. Estas desenrolaram-se nas particulares condições históricas e estruturais de cada região ou sector, com relevo para o Alentejo rural, sociedade marcada pela polarização, e pela forte clivagem de interesses. Noutras palavras, as características específicas da região marcaram o desenvolvimento das lutas sociais. Estas não eram apenas o prolongamento das lutas políticas nacionais, nem o seu

simples resultado. Durante este período de dois anos, o grupo social que mais se distinguiu, que mais rapidamente se organizou e que mais iniciativas de mudança social tomou foi sem dúvida o dos assalariados agrícolas. Os sindicatos dos trabalhadores agrícolas Em Abril de 1974 não há uma organização sindical no Alentejo. Apenas há velhos militantes, simpatizantes e alguns funcionários comunistas. Adquiridas as liberdades, o PC e o MDP vão prestar muito particular atenção ao sindicalismo e à região. Antigas tradições justificam esta prioridade, assim como as características locais: os trabalhadores constituem o mais numeroso grupo social e a região revela as mais altas taxas de proletarização. Em Maio formam-se em Beja e Évora «comissões prósindicato». Logo a seguir, Setúbal, Portalegre e Santarém. O recrutamento começa imediatamente. Cada sindicato é organizado com base no distrito365. A primeira fase de organização é virada para o exterior e acompanhada por uma viva campanha de reivindicações profissionais e sindicais: aumentos de salários, férias, segurança social, horários, pagamento de horas extraordinárias, alimentação, transportes, etc. As reivindicações e a acção sindical são canalizadas para a negociação dos contratos colectivos que são obtidos ainda para o resto do ano agrícola de 1973-1974, que se termina em Setembro. A progressão é constante e rápida: de uma dispersão de contratos limitados a freguesias ou a concelhos passa-se, um ano depois, a um só contrato válido para toda a região366. Paralelamente, passa-se de uma negociação «liberal», envolvendo patronato e sindicatos, a uma completa intervenção do Estado, que por intermédio do Ministério do Trabalho impõe a regulamentação do trabalho. Desta

primeira fase resultam vantagens quantitativas e profissionais inegáveis para os trabalhadores367. Estes conseguem, em particular, garantir mais dias de trabalho por ano e aumentar relativamente o número de trabalhadores permanentes. Nos meses seguintes, os sindicatos conquistam vantagens cada vez mais importantes. Participam, com o Estado ou com o Estado e o patronato, em comissões de controlo da aplicação dos contratos colectivos; nas comissões de avaliação do estado das culturas e do aproveitamento das herdades; nas comissões de repartição de trabalhadores pelas herdades; e nos conselhos regionais de reforma agrária. Obtêm a garantia de que os empregadores não procurarão força de trabalho noutros sítios antes de atingir o pleno emprego em cada região. Em resumo, os sindicatos realizam uma velha aspiração do movimento operário: o controlo da oferta de trabalho. Um dos seus instrumentos, o emprego compulsivo, é quase uma forma unilateral de poder: os proprietários ficam dependentes da resposta do sindicato quanto ao fornecimento de trabalhadores, mas ficam ainda obrigados a seguir as decisões sindicais, incluindo sobre a oportunidade das operações agrícolas. Um pouco mais de um ano basta aos sindicatos para mudar a seu favor as relações de força e poder na região. Foram esta acção e estes sucessos que contribuíram para a organização rápida e o recrutamento maciço. As reais vantagens já obtidas e a defesa visível de interesses dos assalariados são argumentos fortes. Quando os sindicatos se legalizam, em Janeiro de 1975, formam já a mais forte organização profissional do Alentejo e do Ribatejo. Este progresso não se fez sem incidentes. Múltiplas greves, cuja duração é muitas vezes de algumas horas ou de um e dois dias, apoiam as reivindicações e forçam a assinatura dos contratos colectivos. Em várias ocasiões, os sindicatos acusam os proprietários de «sabotagem

económica», isto é, de não investir, de não respeitar os contratos colectivos e descapitalizar as empresas368. A situação económica agrava-se desde o Outono de 1974. Com as tensões políticas e o Inverno, os agricultores não querem ter demasiados compromissos permanentes. Sentem uma inédita insegurança. Diante deles, pela primeira vez, elevam-se os sindicatos como interlocutores fortes e organizados, capazes de impor a sua vontade. Mais ainda: o apoio que o Governo, os militares e a administração oferecem aos sindicatos é insólito e ameaçador. O patronato não está habituado a negociar. Entre o Outono de 1974 e a Primavera de 1975, a situação muda profundamente. O poder político e militar desliza para a esquerda. A nacionalização dos grupos económicos e o anúncio oficial da reforma agrária são ressentidos como ataques efectivos contra os proprietários. O desemprego cresce: porque é o Inverno; porque os empresários não querem ou não podem tomar mais riscos; porque os desempregados da indústria, dos serviços e da construção afluem aos campos; e porque a banca quase não concede mais crédito aos proprietários. Por outro lado, os trabalhadores e os sindicatos já não aceitam como antes o emprego sazonal. A sua resignação e a sua completa subordinação estão ultrapassadas. Com a força da organização, do apoio governamental e da situação política favorável, os trabalhadores são agora capazes de ousar e de impor. Mais ainda do que as vitórias das reivindicações, as vantagens gerais dos contratos colectivos criam nos trabalhadores a consciência de um estatuto social mais digno, de uma capacidade contratual que nunca tinham conhecido e sobretudo de uma força incontestável. Esta força, não a vão buscar apenas ao partido, ao sindicato e ao apoio militar. Retiram-na também das instituições e dos novos organismos criados para enquadrar o sector agrícola. As comissões bipartidas ou tripartidas, onde os

sindicatos desempenham o principal papel, têm vastos poderes sobre o emprego e a actividade económica. Directamente ou por intermédio do PC, têm acesso aos serviços locais da administração, aos ministérios, aos bancos, um pouco por todo o lado. Os sindicatos exercem ainda inesperadas funções de vigilância, de polícia e de inquérito oficial. Não cumprem apenas as funções próprias de uma organização profissional, mas aproximam-se das estruturas do Estado, com este partilham funções e exercem a sua autoridade. Algumas destas competências são conquistadas, outras são-lhes conferidas pelo Governo. Por exemplo, as medidas legais sobre o controlo da circulação e transporte do gado conferem as respectivas responsabilidades «às autoridades administrativas e sindicais da região»369. Em Beja, é o próprio sindicato que comunica aos seus associados que não devem permitir a saída de máquinas ou de gado das herdades sem a sua autorização escrita e sem o seu selo branco370. Nalguns sectores, o sindicato é quase uma entidade pública. É neste contexto, reforçado pela incerteza e pelas ameaças de desemprego, que avança a ideia de reforma agrária. A partir de Janeiro de 1975, multiplicam-se as «conferências» de camponeses e trabalhadores agrícolas, organizadas pelos sindicatos e pelo PC. A 26 de Janeiro, o Sindicato de Beja decide «começar imediatamente a reforma agrária por sua própria iniciativa»371. Citam-se números e casos de desemprego: «15 000 em Beja, 5000 em Évora, 3000 a 4000 em Portalegre, alguns milhares em Setúbal»372. De Janeiro para Fevereiro ocorrem as primeiras ocupações. O número é reduzido, mas foi dado o sinal. Pequenos agricultores deram a sua colaboração, mas rapidamente o sindicato assume a direcção. Depois de 11 de Março, realizam-se manifestações em todo o Alentejo e a reforma agrária transforma-se na principal palavra de ordem. A 17 de Abril, no seguimento e em apoio à

publicação do decreto-programa sobre a reforma agrária (Decreto-Lei n.º 203-C/75), 20 000 a 30 000 trabalhadores manifestam-se em Beja e Évora. A 20 de Abril, o jornal oficial do MFA considera que há 938 000 ha de terras expropriáveis. As ocupações aumentam lentamente, a agitação sindical cresce rapidamente. O Governo, por incapacidade ou estratégia, atrasa a publicação das leis e dos regulamentos de expropriação, apesar de tanto o ministro da Agricultura como o secretário-geral do PC apoiarem as ocupações373. No terreno, a propaganda sindical tem agora uma excelente bandeira: a publicação das leis prometidas. Em Julho, a Intersindical publica um comunicado, «apela ao empenhamento na política antimonopolista e antilatifundiária do MFA» e convida os trabalhadores «a aplicar as medidas de reforma agrária e a criar uma dinâmica revolucionária capaz de ultrapassar a esclerose do aparelho de Estado»374. As leis, já aprovadas pelo Conselho de Ministros, só serão publicadas um mês mais tarde. A 8 de Julho, em Beja e Évora, reúnem-se plenários sindicais em que participam cerca de 15 000 trabalhadores. Denuncia-se a sabotagem económica, exige-se a publicação da lei prometida e proclama-se a intenção de prosseguir as ocupações375. No Verão e no Outono de 1975, os sindicatos dedicam-se a duas tarefas essenciais: ocupar herdades e organizar as unidades colectivas de produção. Já fizeram uma longa caminhada. Pelo seu próprio itinerário e graças à evolução da situação geral, os sindicatos passaram da negociação colectiva ao monopólio da força de trabalho; da penalização do subaproveitamento das herdades à expropriação generalizada da grande propriedade. A verdade é que a garantia completa de emprego e a estabilidade salarial não eram possíveis sem o acesso à propriedade. Um certo controlo, apesar de vantajoso, não bastaria. O sindicato seria obrigado a um desgaste

permanente, em toda a região, na defesa dos seus associados e na procura de soluções concretas para os inúmeros conflitos. As suas decisões seriam sempre consideradas como ingerências na administração da empresa e como limite do direito de propriedade privada. Uma situação desse tipo seria, a curto prazo, insuportável e transformar-se-ia talvez na sua derrota. Finalmente, os factores ideológicos, estratégicos e políticos indicavam o mesmo caminho: o da expropriação e da socialização dos meios de produção. No processo de ocupação da terra, o papel do sindicato é determinante376. Na preparação, na mobilização e nas diligências junto dos serviços oficiais e dos regimentos militares377. As situações e as circunstâncias podem variar, mas o sindicato, em estreita ligação com o PC, é o elemento indispensável de coordenação e de controlo da execução. Até depois da ocupação. Com efeito, os acontecimentos tomam um tal ritmo a partir do fim do Verão, que se instala uma certa espontaneidade. Quem pode ocupar ocupa. Depois vai ao sindicato e aos serviços regularizar o caso. Alguns assuntos são complexos e revelam dificuldades imprevistas. Por vezes, é preciso tratar com os proprietários, com os advogados e com a administração. Outras, é necessário proceder a inventários completos. Há ainda o problema financeiro: os sindicatos constituem-se em procuradores de ocupantes e habilitam-se a receber os pagamentos devidos pelo Instituto dos Cereais aos antigos agricultores. O sindicato também pode certificar junto do Ministério e da banca uma ocupação ou a constituição de uma UCP: fica assim aberto o acesso ao crédito e a possibilidade de assistência técnica e de reconhecimento legal. Em certo sentido, o sindicato faz de procurador dos ocupantes e de estafeta entre UCP, serviços oficiais, banco, militares e comerciantes. Mas o sindicato tem também, como organização de

massas ligada ao PC e representando ainda trabalhadores do sector privado, outras tarefas que não ficam esquecidas por causa do apoio às ocupações e às UCP. Em primeiro lugar, o recrutamento sindical, partidário e eleitoral. O sindicato é seguramente a primeira agência na região, no que está bem credenciado pelas vantagens reais que conseguiu para os trabalhadores. Em seguida, o controlo social e político. Procura não se fazer ultrapassar por outras organizações de esquerda e esquerdistas, ainda menos pela espontaneidade de algumas acções. A certa altura, o Sindicato de Évora vê-se obrigado a emitir um comunicado no qual adverte os trabalhadores: «devem contactar o sindicato e os serviços do Ministério antes de ocupar herdades»378. Noutro momento, o Centro de Reforma Agrária informa que, sob proposta do sindicato, tomou a decisão «de não legalizar as ocupações efectuadas sem audição prévia do Centro»379. Finalmente, o sindicato não cessa a sua actividade no domínio do emprego nas explorações privadas. Fornece mão-de-obra aos agricultores que subsistem e encarregase da distribuição de trabalhadores eventuais pelas empresas, ao abrigo das normas do emprego compulsivo, e também pelas unidades colectivas. Mantém-se ligado às UCP, mas não se desinteressa dos milhares de trabalhadores que, em cada distrito, não obtiveram lugar nas UCP. Além destes aspectos sociais e económicos, os sindicatos continuam atentos às questões políticas. Os seus fiéis e simpatizantes encontrarão emprego e responsabilidades. Por vezes, nas UCP ou no emprego compulsivo, socialistas e trabalhadores sem partido, mas notoriamente não comunistas, não obtêm lugar ou perdem os que têm380. Será essa, aliás, uma das principais críticas que se farão às UCP. Apesar desta situação geral extremamente favorável, os sindicatos não deixam de encontrar dificuldades de peso.

Defendem interesses por vezes contraditórios, que, neste quadro, adquirem especial relevo: os dos eventuais e dos permanentes; dos assalariados e das UCP como empregadores; dos trabalhadores do sector colectivo e dos do sector privado. Tanto o sindicato como o PC denunciam os «esquerdistas» que incitam os trabalhadores a exigir aumentos de salários e os «proprietários reaccionários» que pagam salários mais elevados do que os do contrato colectivo, a fim de «criar dificuldades à reforma agrária»381. Lentamente, sem que a separação seja jamais total, as unidades colectivas criam a sua própria estrutura de coordenação paralela ao sindicato: as uniões, os secretariados concelhios e distritais. O que está em construção é a organização de um verdadeiro poder económico que convém não misturar com a força sindical e reivindicativa. De qualquer maneira, o partido assegura as relações de coordenação. A partir dos fins de 1975, com a situação geral menos favorável ao PC, é inegável o interesse em separar estrategicamente UCP e sindicatos: a cada um a sua especialidade. Ora, a batalha das UCP é agora, acima de tudo, económica: trata-se de mostrar a superioridade produtiva do colectivismo, de investir e de alimentar trabalhadores que até então têm estado em excesso. Os sindicatos vão limitar-se ao sindicalismo. Percebendo as mudanças e detectando as ameaças futuras, organizam a sua defesa. Curiosamente, é nesta fase que parecem mais aguerridos e agressivos e que têm menos dificuldade em desrespeitar as normas legais e as decisões administrativas ou governamentais. Mostram-se o mais «intratáveis» possível, atacam verbalmente e organizam manifestações e greves contra o Governo, nomeadamente contra Lopes Cardoso, embora se trate de um socialista de esquerda382. Perdem quase todas as suas posições importantes nos ministérios e nos serviços; perdem os seus aliados

militares383; passam a ter de contar com a hostilidade dos governos. No futuro, a um esforço de conciliação, por exemplo com os socialistas, preferirão sempre um isolamento relativo a uma determinação sectária384. A sua intransigência revela uma estratégia destinada a preservar o mais possível das suas conquistas, terras e herdades. Desse ponto de vista, o poder económico e o controlo social têm-se imposto à acção sindical. Na verdade, esta situação sugere a eventual emergência de novas formas económicas e de novas organizações sociais e empresariais no interior de um sistema que lhes é em princípio hostil. As ligas de pequenos e médios agricultores Os camponeses nunca foram muito numerosos no Alentejo. A propriedade e a exploração agrícola sempre foram concentradas e a sociedade muito polarizada. No entanto, desde há duas ou três décadas, com a redução do número de patrões e a baixa considerável dos assalariados, a importância relativa dos pequenos agricultores parece estar em crescimento. Em certos casos, têm funções especialmente importantes, como acontece com os regadios, nas regiões onde se pratica o sistema da «seara» ou arrendamento de campanha, e nos grandes latifúndios que os proprietários não cultivam directamente. No princípio de tudo, em 1974, os pequenos agricultores não são hostis à reforma agrária. Alguns, pelo contrário, esperam obter terra. Cedo se encontram, alguns deles, em tentativas de organização. Nascem as ligas, com o distrito como base territorial. Dão os seus primeiros passos algumas semanas após o 25 de Abril de 1974, mas vão demorar mais tempo do que os sindicatos a estruturar-se e a tornar-se publicamente activas. Na origem estão pequenos agricultores, mas também

alugadores de máquinas e técnicos. Do ponto de vista político, os pioneiros são comunistas, socialistas, militantes do MDP e alguns independentes. As primeiras reuniões efectuam-se em Maio e Junho de 1974, em Évora, na sede do MDP. Alguns meses depois, a liga distrital será fundada385. Durante o período que precede a criação das ligas desenrola-se um interessante debate nos meios agrícolas e políticos locais. Alguns independentes defendem a ideia da organização autónoma dos pequenos e médios agricultores, à parte dos grandes empresários e proprietários. Outros, mais ligados à propriedade e à empresa agrícola, são de opinião que todos os agricultores se devem juntar na mesma organização. Os partidários desta segunda ideia estarão na origem, em 1974, das associações livres de agricultores (ALA) e, mais tarde, da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP). Os primeiros levarão a sua ideia à frente. Haverá ligas em cinco distritos: Beja, Évora, Portalegre, Setúbal e Santarém, assim como em alguns concelhos do Norte e do Centro, mas com menor expressão. Os primeiros vestígios e ecos são das reuniões de Évora, ainda em Maio. Mas a primeira liga de que exista menção formal parece ser a de Beja, criada em reunião de Junho. Em Setembro, esta última reivindica já cerca de 4000 sócios, o que talvez possa ter sido conseguido graças à transferência do ficheiro do antigo Grémio. O programa desta primeira liga é vasto, na defesa dos interesses da classe. Pretende-se «democrático, sem filiação 386 partidária» . Em Elvas, uma «comissão provisória» organiza-se no plano concelhio e separa-se explicitamente dos que querem criar uma ALA387. Será dado em Elvas o primeiro passo para a organização da Liga do distrito de Portalegre, cuja direcção é constituída em Janeiro de 1975. A Liga de Évora constrói-se lentamente a partir de Junho.

Existe de facto em Setembro, mas só em fins de Dezembro de 1974 estará razoavelmente estruturada. No distrito de Santarém, várias iniciativas locais conduzem à criação de ligas concelhias, como as de Coruche e Alpiarça, lutando contra a fusão com os grandes agricultores. A partir de Janeiro de 1975, a Liga existe efectivamente no plano distrital388. A Liga de Setúbal existe formalmente desde Dezembro de 1974, mas terá pouca importância. Em todas as ligas, a luta pela liderança é viva. Lentamente, o PC vence em quase todas, sem nunca conseguir, aliás, instrumentalizá-las completamente. Mesmo nos momentos em que os seus militantes ou simpatizantes ocupam quase todos os cargos dirigentes, a realidade interna será sempre diversificada e controversa. Em Novembro de 1974, sob a influência do PS, um secretariado nacional provisório das ligas anuncia a sua fundação. Defende-se de toda e qualquer ligação com os interesses dos grandes proprietários389. Mas a sua existência terminará praticamente com a sua autoproclamação. Em Fevereiro de 1975, o PC organiza o primeiro «Encontro de pequenos e médios agricultores do Baixo Alentejo», com o que espera dar um sinal da sua influência. Aí já se reivindicam algumas expropriações390. Poucas semanas depois, a 9 de Março, é a vez do primeiro «Encontro de pequenos e médios agricultores do distrito de Évora»391. A organização é notoriamente comunista. Membros do comité central e dos órgãos regionais do partido dirigem-se aos agricultores presentes e aos dirigentes das ligas. A de Évora deve ter três mil membros, ou talvez apenas inscritos, mas só algumas centenas assistem à reunião. Os outros não se querem identificar excessivamente com o PC392. Não obstante, é mesmo o partido que orienta e anima a Liga em aspectos essenciais. Agricultores da Liga de Évora participam em ocupações

durante os meses de Fevereiro e Março de 1975393. Apesar das esperanças de alguns, a Liga não encara a hipótese de distribuição de terras. Aceitará ou não contestará o colectivismo, enquanto os comunistas detêm uma posição influente na organização. Mais tarde, em Setembro, quando 12 agricultores pretendem formar uma cooperativa numa herdade ocupada e distribuir uma parte das terras, a direcção da Liga declarará secamente «não aceitar o oportunismo de 12 elementos que querem tudo para eles e não querem colaborar com o Sindicato»394. Diga-se que os sindicatos se fazem representar e são aceites em quase todas as reuniões da direcção da Liga de Évora e que, noutros distritos, mantêm boas relações com os dirigentes locais das ligas. A actividade das ligas ficará muito aquém da dos sindicatos: a participação e a mobilização dos seus membros é menor. As direcções multiplicam-se em telegramas, cartas e comunicados, na esperança de obter vantagens ou de influenciar decisões, como no caso da revisão da lei do arrendamento. Mas uma boa parte da sua actividade parece dirigida especialmente para a opinião pública e a comunicação social. Na Primavera e no Verão de 1975, a Liga de Évora está assim politicamente activa. Felicita o Governo e o MFA pelas «suas vitórias», saúda o Conselho da Revolução e associa-se aos festejos públicos395. Estas tomadas de posição parecem justificar-se sobretudo pelas necessidades da imagem pública da revolução. Mas são o resultado da decisão de um pequeno grupo de dirigentes. Em fim de Abril de 1975, a Liga felicita o Governo e o MFA pela lei-programa de reforma agrária. No seu comunicado, afirma que «as ocupações se justificavam antes da aprovação destas leis […]. Agora, perderam o sentido […]. Pedimos aos nossos membros, a bem do processo revolucionário, que não ocupem mais herdades». Esta orientação agrada aos dois interessados: aos

sindicatos, que querem liderar o processo e pensam que uma participação excessiva dos camponeses poderia criar obstáculos ao colectivismo; aos camponeses, porque as ocupações começam já a preocupar alguns. Em meados de Junho, a Liga publica novo comunicado, elevando-se energicamente contra «as ocupações selvagens», e apela aos seus membros para que advirtam a direcção antes de proceder a uma ocupação, caso esta se justifique por abandono do empresário. Ao longo de 1975 e parte de 1976, as principais repercussões públicas da actividade da Liga decorrem da divulgação de comunicados e telegramas. Prosseguem todavia outras actividades, mais discretamente. Em particular, avalizam os pedidos de crédito de pequenos agricultores e de assalariados que ocuparam herdades. Entre Abril e Setembro de 1975, a Liga de Évora passa dezenas de certidões e envia centenas de cartas aos bancos, aos grémios e aos serviços oficiais, pedindo apoio, dando a sua caução e defendendo os rendeiros contra os proprietários-senhorios396. As ligas parecem mais dotadas para a acção institucional do que para a acção de massas. O PC ainda tenta, aparentemente, que a sua actividade seja mais intensa ou mais consistente. Não só destaca vários militantes e funcionários como organiza os «Encontros», com os quais toma compromissos públicos. Várias vezes os membros do comité central se dirigem explicitamente às ligas, sublinhando o que lhes parece ser o essencial: «É preciso organizar os pequenos e médios agricultores e impedir que os grandes proprietários os explorem por intermédio das ALA.»397 Uma relação particular se estabelece entre as ligas e o PC, a ponto de ser publicamente reconhecida por membros do secretariado da Liga de Évora, que afirmam que a criação desta última se ficou a dever ao MDP e ao PC398. Mas a verdade é que, no interior das ligas, outras

tendências existem e se exprimem nas direcções e nas assembleias de delegados, apesar da presença de elementos do sindicato e do MFA. Agricultores politicamente independentes, não comunistas, socialistas e simpatizantes do PPD, apoiados por técnicos agrícolas, tentam fazer valer os seus pontos de vista e não comprometer demasiado a Liga do lado dos comunistas, em detrimento dos interesses dos pequenos agricultores. Com o PC, estes sectores de opinião partilham sobretudo ou apenas uma ideia: a da organização separada dos pequenos e médios agricultores. Quanto ao resto, têm interesses e opiniões razoavelmente diferentes. Estas tendências, que virão a ter importância numérica, começam lentamente a levar a melhor quando, a partir do fim do Verão de 1975, os agricultores se começam a queixar seriamente399. Motivos não faltam. Agricultores, vizinhos e até membros da Liga foram obrigados a empregar trabalhadores. Alguns houve que viram as suas terras ocupadas. Outros ficaram sem terras ou sem contratos de arrendamento, porque ocupantes e UCP não quiseram manter os contratos anteriormente existentes com os proprietários. Quer isto dizer que não somente não receberam as terras e os benefícios económicos esperados, como também se sentem eles próprios ameaçados pela reforma agrária. O ministro Lopes Cardoso confirma esta situação: «Os erros cometidos no passado recente atiraram para os braços da direita camadas importantes da população, particularmente sectores ligados à agricultura, ou tornaram-nos manipuláveis por ela.» Afirma ainda que «se ignorou muito um factor fundamental da nossa realidade agrícola, o pequeno e médio agricultor […]. Este facto teve uma consequência extremamente negativa junto dos camponeses do Norte e do Sul. Fala-se muito dos assalariados agrícolas do Sul, mas esquece-se de que só são uma minoria. Temos perto de 150 000 assalariados rurais, ao lado de 600 000

agricultores dispersos por todo o País»400. No Outono de 1975, o descontentamento dos pequenos agricultores é crescente e já se tornou evidente. Os socialistas aproveitam a ocasião para apoiar as suas reivindicações contra a hegemonia comunista. Acompanham-nos, por exemplo, numa manifestação em Beja, em Outubro, onde se reúnem mais de 2000 agricultores401. O PPD também acorre, assim como antigos animadores das ALA. Por toda a região se repetem incidentes, conflitos e manifestações, reunindo os pequenos agricultores e um número crescente de aliados, contra os serviços do Ministério e mesmo contra as ligas ou as suas direcções, como por exemplo em Portalegre, Santiago de Cacém, Coruche, Rio Maior e Marvão402. O PS e o PPD tentam integrar o movimento o mais possível. Procuram dividendos e um espaço político que tinham perdido. Mais importante ainda, o que tinha sobrado das ALA surge de novo: proprietários e agricultores preparam-se para relançar o seu movimento e organizar a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP). Em todo o País são desencadeadas verdadeiras acções de massas. Sem nunca conseguir conquistar as ligas do Alentejo, a CAP organiza os pequenos agricultores do Ribatejo e mesmo de Portalegre, além dos de outras regiões do Norte e do Centro. A sua acção contribui eficazmente para a criação de um clima geral e de um ambiente de protesto contra a reforma agrária. Nas regiões onde a CAP penetra bem, Santarém, Portalegre, Castelo Branco e Lisboa, as ligas estiolam e morrem rapidamente. Mas em Beja e sobretudo em Évora há obstáculos reais contra uma aliança entre pequenos agricultores e proprietários ou grandes empresários. A CAP mal consegue instalar-se nesses dois distritos. Os camponeses, especialmente os de Évora, conseguem, pelos seus próprios meios e no interior da Liga, derrubar as tendências pró-comunistas. A partir do segundo semestre

de 1976, a Liga de Évora é de novo uma realidade viva, com orientações bem diferentes. Curiosamente, um grande número dos seus dirigentes eleitos, aqueles mesmo que desde o princípio tinham tentado contrariar a linha dominante, conservam as suas posições de influência e direcção. Os conflitos internos e a diversidade nunca foram completamente eliminados: a Liga é conquistada pelo interior. Só a Liga de Évora consegue realmente escapar à dinâmica de bipolarização social. Relativamente à terra e à agricultura, toda a lógica do processo revolucionário parece basear-se apenas na existência de duas classes: o proletariado rural e os grandes proprietários. Do lado dos militares, dos governos e dos comunistas, querem concretizar um difícil e tradicional objectivo do pensamento socialista e revolucionário, a aliança entre camponeses e assalariados. Mas esta tentativa esboça-se de maneira desigual e em detrimento dos camponeses. Todas as referências, feitas por quase todas as esquerdas, ao campesinato têm carácter acessório, ideológico e táctico. Comunistas e militares não deixam, aliás, de especificar que a aliança deve ser dirigida pelos proletários, senhores «de um nível de consciência mais elevado»403. Esta aliança é forçada, imposta. Durou curto período, talvez por nem sequer ter sido aliança real de interesses. A divergência acabou por se revelar de modo flagrante e com demasiada força404. No entanto, com a excepção do distrito de Évora, onde a Liga reivindica 10 000 membros inscritos, a oportunidade da organização autónoma dos camponeses falhou ou foi adiada. Com efeito, o movimento nascente dos agricultores e dos proprietários, sem distinção de estatuto ou de dimensão económica, quase não deixou espaço próprio para os camponeses. Destes, os mais activos juntaram-se em maioria à CAP.

As associações de agricultores e proprietários Os agricultores e os proprietários não estavam habituados à livre associação. Os grémios, da organização corporativa, eram de inscrição obrigatória. Neles se desenrolava certamente uma vida associativa com algum significado, mas a situação geral, social e política, não exigia nem motivava a experiência tradicional da defesa de interesses. Os grandes conflitos, quando os havia, eram mais encarados como casos de polícia. As negociações colectivas não existiam verdadeiramente. O sindicalismo livre era proibido. Os grémios, cuja rede cobria todo o País, tinham em princípio base concelhia e agrupavam-se em federações regionais. Associações de produtores, como a Federação Nacional dos Produtores de Trigo, cruzavam-se com as organizações verticais. A Corporação de Agricultura representava nacionalmente todos estes níveis, incluindo as Casas do Povo e suas federações. O novo poder ordena o desmantelamento da organização corporativa405. Aqui e acolá, os agricultores ainda tentam conservar ou recuperar a estrutura dos grémios. Será esse o objectivo dos seus primeiros movimentos desordenados e sem grande eficácia. Ao contrário do que se passou com a maior parte dos sectores industriais e comerciais, o Governo e os partidos políticos que dele fazem parte decidem que deve ser o Estado a encarregar-se da dissolução e da reconversão destes organismos. Por causa da importância da rede nacional dos grémios, ou porque têm funções práticas e económicas ligadas à produção, ou finalmente por razões ideológicas e estratégicas, a verdade é que os grémios da lavoura são imediatamente objecto de tratamento diferente. Esta situação vai criar reais dificuldades à fundação de novas associações profissionais, até porque, sem sedes e sem património, nem sequer ficheiros, tudo será mais complicado.

Apesar de tudo, alguns agricultores tomam iniciativas em várias frentes: na Associação Central de Agricultura (ACAP), nalguns grémios, em certas federações e no terreno, junto dos agricultores406. Em poucas semanas, as bases das primeiras ALA estão lançadas. Em Beja nomeadamente, donde vem um primeiro «Esboço de programa para uma reestruturação agrícola». Apesar de ser ainda um rascunho, este é um projecto ambicioso, não se preocupa apenas com questões técnicas e económicas, mas também propõe uma organização nacional para todos os agricultores, quaisquer que sejam os seus estatutos e dimensões. Organizam-se núcleos locais que tentam conquistar os grémios, como esta «comissão de agricultores» de Grândola, que, entre Maio e Junho de 1974, se considera como a «comissão administrativa do Grémio»407. Ocupa-se dos assuntos correntes e encara imediatamente o seu alargamento aos concelhos vizinhos de Alcácer do Sal, Santiago de Cacém e Sines. Em Julho toma uma nova designação: «comissão municipal da ALA». Paralelamente, outras comissões se criam em Évora e Beja e rapidamente se pensa na coordenação de actividades, ou mesmo numa federação. As várias comissões trabalham activamente, promovem reuniões públicas, ocupam-se de assuntos do dia-a-dia (taxas, subsídios, etc.) e publicam manifestos e comunicados. No entanto, em fins de Julho já circulam também documentos e panfletos das ligas. A vida das novas associações conhece as primeiras sérias dificuldades. As ALA e as ligas acusam-se mutuamente de falta de representatividade. A ALA denuncia a «divisão de classe» provocada pela Liga. Esta censura as ALA, acusando-as de estarem dominadas pelos grandes proprietários e capitalistas. Entre ALA e ligas, a divisão é real e definitiva. Aquando das negociações pelos contratos colectivos de

trabalho, as ALA são razoavelmente ultrapassadas. Em alguns concelhos, é verdade que os agricultores assinam em seu nome408. Mas, na maior parte, são simplesmente «grupos de agricultores» que tomam a responsabilidade409. Multiplicam-se os desacordos. Não há entendimento entre agricultores de diferentes regiões, por vezes nem sequer entre os de um mesmo concelho. Pelo seu lado, o Governo ocupa-se de modo crescente com a regulamentação do trabalho, substituindo-se aos parceiros sociais, não só por razões políticas e estratégicas, mas também por motivo e pretexto da falta de organização e de representatividade dos patrões ou dos agricultores. O facto é que, no último trimestre de 1974, os sindicatos estão organizados em todo o Sul, muito mais e muito melhor do que os agricultores. A estes falta um plano, uma orientação geral e meios de acção (meios que os próprios empresários não põem à disposição dos esforços associativos). É verdade que, na Associação Central, um pequeno grupo de agricultores, de proprietários e de técnicos tenta assegurar uma qualquer coordenação do movimento e definir uma orientação. Mas não conseguem. Pelo menos para já410. As ALA perdem ainda uma batalha importante. Os seus mais preeminentes membros ocupam-se muito de política. Alguns estão ligados aos partidos de direita que são proibidos (Liberal e do Progresso). Muitos apoiam o presidente Spínola, obrigado a renunciar a 29 de Setembro de 1974. A ALA de Grândola, por exemplo, tentou mesmo convocar manifestações de apoio ao general Spínola, incluindo a 28 de Setembro, dia da sua derrota. As dificuldades das ALA são imensas. As ligas fazem-lhes concorrência, no Alentejo, com razoável eficácia. As ALA perdem os grémios, pois que entretanto o Governo começou a nomear comissões liquidatárias. A administração pública, os governantes e os partidos não lhes facilitam a vida: as ALA não obtêm o direito ao

diálogo, não são ouvidas nem consideradas como interlocutores válidos. Já relativamente aos contratos colectivos as ALA tinham mostrado a sua incompetência e a sua desorganização. Em fins de 1974, a sua decadência é notória. No ano seguinte, as suas estruturas desaparecem quase completamente, com muito poucas excepções, entre as quais a ALA de Santarém. O 11 de Março de 1975 e a radicalização da política do Governo aceleram o declínio das ALA. O fim não será definitivo. Morre a ALA, mas ficam os seus activistas e os sectores sociais interessados. Pequenos grupos mantêm-se em contacto. No fim de Julho de 1975, uma tentativa aponta para a renovação: em Portalegre, agricultores pretendem criar uma Associação dos Produtores Agrícolas, imediatamente denunciada em termos violentos pelo Ministério, pelos serviços locais e pelo MDP411. Esta iniciativa tem a vida curta, mas demonstra que existe uma necessidade e que o problema não está resolvido. Uma rede de contactos mais ou menos orgânicos existe, é animada por alguns activistas e será energicamente despertada no fim do «Verão quente». Desta vez, é um sucesso, ajudado por condições gerais favoráveis. Surge a CAP. Encontram-se à sua frente alguns dos agricultores que tinham fundado as primeiras ALA. Em comum com estas, a Confederação tem o seu carácter anti-revolucionário e anticolectivista, uma parte dos seus promotores, o seu papel político412. Mas as diferenças são significativas: o contexto geral, o apoio social e o método de organização. A ALA nasce no Alentejo dos grandes proprietários, penetra mal no Ribatejo e não chega sequer às regiões do Norte e do Centro. Os mais importantes partidos não comunistas (PS e PPD) fogem ao seu contacto. Tem pouco apoio militar e político. E sobretudo não tem a larga base dos pequenos e médios agricultores. Além disso, a sua ideologia e o seu programa são confusos e variam de

região para região. Com a CAP, quase tudo é diferente. Em primeiro lugar, o contexto. Quando nasce, a esquerda comunista e a extrema-esquerda estão em nítido recuo. O capital de reacção e protesto contra as ocupações é grande, pode ser canalizado. Para muitos dos interessados, é agora mais fácil correr riscos do que um ano antes: os apoios parecem surgir mais generosamente. O ambiente é propício: já não se trata de montar fria e racionalmente uma organização, mas de mobilizar emoções e energias reais contra o comunismo e a favor da propriedade, com a ajuda do movimento de defesa das liberdades. O método seguido não exclui as negociações de «cúpula» e as intrigas políticas de bastidores, mas insiste sobretudo na mobilização de massas e na maneira populista. A CAP procura as multidões, efectua centenas de reuniões e de manifestações e convoca dezenas de comícios. Demonstra a sua força e ameaça Lisboa e as grandes cidades com barragens nas estradas e corte de víveres. O centro das iniciativas já não é o Alentejo da grande propriedade, mas o Ribatejo da agricultura intensiva, das empresas capitalistas de média dimensão e dos pequenos agricultores. Também os agricultores do Norte e do Centro são desde logo chamados a dar o seu contributo. Curiosamente, a massa humana que se põe é a dos proprietários ocupados do Alentejo, mas a dos agricultores que receiam que a reforma agrária acabe por chegar às suas terras. É neste momento que o que foi feito em nome da reforma agrária, as ocupações e as unidades colectivas, une o que parecia inconciliável em 1974: os pequenos agricultores e os grandes proprietários, os rendeiros e os empresários capitalistas. A CAP é denunciada pelos comunistas e mesmo por alguns socialistas de esquerda, assim como por funcionários do Ministério, mas desta vez os ataques vindos da esquerda fazem-lhe mais bem do que mal413.

Recebe colaboração de alguns socialistas, do PPD e do CDS, assim como de militares414. A Igreja contribui à sua maneira: seja oficialmente, através de declarações e de tomadas de posição gerais, mas inequívocas, por parte dos bispos, seja discreta e informalmente, por intermédio da acção prática e por vezes conspirativa de membros do clero415. Antes de 25 de Novembro, a CAP não é muito hostil aos socialistas, nem sequer ao ministro Lopes Cardoso. Elevase contra «as ocupações selvagens», sem pôr inteiramente em causa a ideia de reforma agrária. Os acontecimentos de Rio Maior de 24 de Novembro, que constituem aliás uma valiosa contribuição para a vitória militar do dia seguinte, mostram a sua força e a sua capacidade de mobilização. Até um dirigente socialista afirmará que «é uma explosão popular»416. Mais de 30 000 pessoas participam em reuniões, manifestações e correrias, nesses dias agitados, chegando ao ponto de cometerem actos violentos e de cortarem estradas e caminhos-de-ferro. No meio daquela gente estão inúmeros pequenos agricultores, cuja presença é reconhecida por todos, incluindo pelo PC e pelo MDP, que, todavia, denunciam a manipulação de que seriam vítimas417. A seguir, é um crescendo permanente que vai durar mais de um ano. Os dirigentes da Confederação, em particular o seu secretário-geral, José Manuel Casqueiro, multiplicamse, em reuniões, comícios e deslocações em todo o País. Mudam facilmente de posição, de acordo com a evolução dos acontecimentos, o que lhes permite alargar a sua audiência e acompanhar as oscilações de opinião. Organizam as suas bases locais, as associações de agricultores concelhias e distritais, mas fazem-no prosseguindo uma estratégia muito aberta e pública, atraindo multidões. Entre Novembro de 1975 e Março de 1976, convocam dezenas de plenários, autênticas assembleias regionais que chegam a agrupar 50 000

pessoas418. Do ponto de vista político, a estratégia da CAP parece-se estranhamente com a dos revolucionários: massas em permanência nas ruas, reuniões, sessões de esclarecimento e comícios, mas também conspirações, pressões sobre o Governo e contactos estreitos com os militares. Socialmente, estas acções públicas têm algo de particular: também mostram o povo, os rostos duros de agricultores, gente de trabalho e filas de tractores. Ninguém poderá dizer que se trata dos proprietários, nem sequer que estes são numerosos. Com o tempo, ao longo de 1976, a CAP consegue alargar o seu recrutamento e ganhar algumas das suas causas. A plataforma dos partidos, de Janeiro de 1976, dá-lhe relativamente satisfação. Os seareiros que apoiou acabam por receber terra. A cada vitória aumenta as suas reivindicações e sabe mostrar-se habilmente impaciente. Em Março de 1976 critica violentamente o ministro socialista Lopes Cardoso, acusando-o de não querer ir até ao fim. O ministro já reconheceu os prejuízos causados aos pequenos agricultores, mas não está disposto a ceder nem a atacar as unidades colectivas. Algumas restituições de terra a pequenos agricultores são anunciadas e cerca de duas centenas de seareiros recebem courelas para os seus cultivos. Mas, para a CAP, isto não basta. Na Primavera, tenta suspender as leis em vigor e chega a reivindicar a mera devolução de numerosas terras e o pagamento de indemnizações pelas outras. Os seus ataques contra o ministro continuam durante alguns meses419. A um ponto tal que o PC modera as suas críticas, bem mais duras em Setembro de 1975. O que não quer dizer que o PC tenha mudado significativamente a sua oposição e a sua hostilidade. A verdade é que o ministro tem dificuldade em encontrar uma via. A maior parte das decisões relativas a devoluções e a demarcações

de reservas não são aplicadas. Entre dois fogos, é obrigado a demitir-se em Outubro de 1976, estando o primeiro Governo constitucional em funções há cerca de três meses. Para a CAP, o Verão de 1976 é em certo sentido o apogeu da sua luta. Reconhecida pelos partidos, organizada em quase todo o País (menos em Évora, onde a Liga parece inamovível), conhecida do público, tendo acesso aos jornais, assídua na rádio e na televisão, prestigiada por algumas vitórias, a CAP é um interlocutor necessário. Mais do que isso: tem uma existência autónoma e independente do Estado e dos partidos. Os agricultores e os proprietários têm finalmente uma organização que se prepara para agir no novo quadro legal e político, no regime constitucional. O seu último empenhamento político do período provisório é o apoio à candidatura do general Ramalho Eanes à presidência da República, em conjunto com os partidos não comunistas. Ganhará, mais uma vez. Dois anos antes, agricultores e proprietários tinham falhado de modo espectacular. Tinham perdido influência, não conseguiram organizar-se, perderam apoio popular e ficaram mesmo sem uma boa parte dos seus bens e das suas propriedades. Para tudo isto contribuíram alguns factores externos, como a natureza da revolução e a hostilidade dos militares. Mas outros elementos constituíram condições intrínsecas de derrota: falta de coesão, falta de experiência orgânica e de hábitos de luta. Em 1974, as primeiras reacções de empresários e de proprietários são dispersas e variadas, para não dizer contraditórias, desde a fuga para o estrangeiro até à procura de entendimento com os sindicatos420. No conjunto, demonstraram inicialmente pouca facilidade de adaptação ao sistema democrático e às regras de negociação social. Revelaram ainda que, no antigo regime, o seu poder e o seu controlo social indisputados provinham mais do Estado, do Governo e das polícias do que das suas próprias

posições locais e regionais na sociedade civil. Perdidos os seus apoios, os proprietários tiveram dificuldade em mobilizar-se e organizar-se. Quando o conseguiram, com sucesso, também contaram, além do seu próprio esforço, com o contributo de factores externos, nomeadamente apoios militares e de partidos não comunistas. Mas beneficiaram sobretudo do apoio e da mobilização de pequenos agricultores, indispensáveis não só pelo número como também pelo carácter popular que trouxeram ao movimento. A reforma agrária contra os camponeses A ruptura com os camponeses foi o factor determinante na inversão de tendência da reforma agrária. Os que se tinham mantido afastados, talvez na expectativa, sentiram-se ameaçados e reagiram. Os que a princípio tinham colaborado, ao ponto de participar em ocupações, arrependeram-se e mudaram de campo. No seu conjunto, os camponeses foram rejeitados para as forças antirevolucionárias. Comunistas, militares e alguns socialistas tinham agido com esperança na «aliança natural entre assalariados e camponeses»421. Rapidamente se tornou evidente que a aliança não seria paritária e que a hegemonia sindical e colectivista seria imposta pela força. No final de contas, as questões vitais que separam assalariados e camponeses, isto é, a terra e os benefícios imediatos da reforma agrária, não foram ultrapassados. Os camponeses esperavam melhores preços, facilidades de comercialização para os seus produtos, assistência técnica, subsídios e crédito fácil. Com ou sem reforma agrária, tal seria indiferente para muitos. Ora, a política agrícola revelou-se pouco vantajosa. Pior ainda, tiveram alguns prejuízos, nomeadamente os aumentos de salários. Boa parte de pequenos agricultores recorre

esporadicamente a trabalho exterior. Com o acréscimo geral de salários previsto pelo Governo (que instaurou também o salário mínimo rural) e pelos contratos colectivos de trabalho, pequenos e médios agricultores começaram a medir os inconvenientes do novo curso político, sem sentirem as vantagens. Outra consequência nefasta da reforma agrária, para os agricultores, foi o emprego compulsivo de trabalhadores a quem deviam pagar salários e eventualmente encontrar trabalho. Isto não aconteceu com muita frequência a pequenos agricultores e nunca fora da zona de intervenção. Mas alguns casos foram suficientes para criar a desconfiança e a ameaça. Problema era também o dos limites: onde pararia a noção de pequeno agricultor, protegido em princípio pela reforma agrária, e onde começaria a de patrão ou mesmo de capitalista? Uma definição rigorosa de limites teria podido eventualmente tranquilizar uma parte dos camponeses, mas as dificuldades técnicas, económicas e sociais de tal operação tornaram-na impossível. Por outro lado, muitos agricultores de média dimensão, ou até mesmo grande, devem o que têm, herdades, gado e fortuna, ao seu próprio trabalho, muitas vezes até manual. Como era possível simpatizar com a reforma agrária, sendo um pequeno agricultor, quando aquela inclui cláusulas e mecanismos que penalizam o investimento e castigam o trabalho? Foi a terra que constituiu o mais sério elemento de divisão entre pequenos agricultores e assalariados. Os seareiros e os rendeiros não obtiveram as superfícies desejadas. Os pequenos proprietários não puderam alargar as suas courelas. Alguns camponeses, ainda por cima, foram ocupados; outros perderam os seus contratos e não conseguiram arrendar noutro sítio. Foram estes os problemas e os factos que afastaram os camponeses do Sul e fizeram recear os do Norte e do Centro.

As precauções dos militares e dos comunistas não convenceram, porque não passaram do verbo. O secretário-geral do PC bem podia declarar que «nos pequenos agricultores não se tocará nem com um dedo», mas bastavam uns poucos casos concretos de ocupação ou de perda de terra de renda ou de seara para demonstrar quanto as garantias eram teóricas. Para um pequeno agricultor da Chamusca, F. Oliveira, assalariado e proprietário de 1 ha, não havia dúvidas: «Isto não é uma reforma agrária, é roubo! Querem roubar o milho que nós cultivámos.»422 Um outro, M. Grazina, proprietário de 8 ha, tem medo de semear, «porque eles esperam o momento das colheitas para vir apanhar tudo»423. Agricultores de dimensões um pouco maiores queixavam-se também, mesmo sabendo que a lei os protegia. Por exemplo, A. Alegria, 48 anos, cultivava directamente nove parcelas herdadas de seu pai e cujo total se elevava a cerca de 300 ha. Foi ocupado em fins de Outubro, tendo mesmo perdido a casa: «Seis trabalhadores ocuparam as minhas terras, alguns dos quais trabalhavam para mim antes. O Centro de Reforma Agrária tinha-se assegurado que nada aconteceria, dado que as minhas explorações só atingiam 30 215 pontos. Apesar disso, apanharam tudo, e as forças armadas e a Guarda Republicana confirmaram.»424 A despeito de algumas precauções de governantes e dirigentes partidários, a opção colectivista impôs-se desde o início. E quando de aliança entre assalariados e camponeses se falava, o entendimento e a mensagem explícita era de que os camponeses não tinham mais do que se submeter. Os sindicatos defendiam esta visão das coisas, o que parecia previsível: a maioria dos assalariados talvez não quisesse transformar-se em pequeno agricultor. Mas a força que imprimia esta orientação vinha do Governo e das instituições. Numa reunião pública em Portalegre, onde veio anunciar a criação dos conselhos

regionais, o ministro F. O. Baptista era explícito: «Nós queremos acabar com o latifúndio e com o pequeno agricultor. Nós não podemos permitir que a reforma agrária faça novos pequenos patrões. Nós queremos fazer unidades onde se possa trabalhar conjuntamente a terra.»425 Também o secretário de Estado A. Bica, no seu mais completo documento de orientação, abordava a questão camponesa em termos pouco equívocos: «Os camponeses não têm nem nunca tiveram o mesmo grau de consciência social e política, nem o mesmo nível de organização que os operários agrícolas.» E acrescentava: «Os agricultores abandonarão dificilmente as suas pequenas explorações individuais. Isso provocará naturalmente contradição entre a forma de produção colectiva e a forma de produção individual. É um custo que será preciso suportar durante uma ou duas gerações até que o nível de cultura e de consciência social das novas gerações, assim como o crescimento progressivo da produção, criem as condições de abolição das explorações individuais.»426 É verdade que os assalariados, em todo o caso a maioria, não reivindicaram terra. Mas os pequenos agricultores pediam-na. Talvez o não tenham feito com a veemência nem com a mesma força que mostrou o movimento sindical. Mas o mais importante foi o ataque sofrido por alguns e a perda efectiva de terras e de direitos. E, mais ainda do que no Alentejo, foi a ameaça ressentida pelos camponeses do resto do País que fez inclinar os pratos da balança e reforçou a hostilidade à reforma agrária. O ministro L. Cardoso apercebeu-se desta situação, mas era demasiado tarde. Tinha com efeito afirmado que «se o trabalhador rural do Alentejo, em regra geral, não reivindica a propriedade da terra nem o seu uso individual, pelo contrário, o seareiro, o rendeiro e o pequeno agricultor fazem-no. Pretender, como aconteceu até agora, integrá-los nas unidades colectivas pela força de pressões

locais é uma via completamente errada que privará a reforma agrária do apoio de toda a gente»427. Quando os seareiros foram reinstalados nas suas parcelas, em Coruche, em Abril de 1976, os sindicatos reagiram imediatamente: em tom de advertência e de ameaça, sustentaram que assim nada se resolveria e que se «iam criar zonas de conflitos entre seareiros e trabalhadores»428. Os pequenos agricultores, como disse S. Lourenço, pequeno proprietário em Mora, perceberam que não se visava somente, nem sequer sobretudo, as terras abandonadas ou subaproveitadas: «Se ocupam as terras bem trabalhadas, as nossas também serão.»429 Ora, o ministro F. O. Baptista tinha-o afirmado publicamente: «Deve-se começar pelas melhores terras. Não devem apenas ocupar as terras, mas também apropriarem-se das árvores e meios de produção, todo o equipamento que estiver lá.»430 O número de camponeses vítimas de ocupação nunca foi revelado. É mesmo possível que ninguém o conheça, até porque é difícil contar as superfícies dos pequenos rendeiros e dos seareiros. Mas, tendo em conta todas as situações, o total oscila entre 600 e 1000 agricultores. A superfície assim abrangida situar-se-á entre 25 000 ha e 35 000 ha. Este total parece reduzido, cerca de 3% da superfície ocupada431. Todavia, do ponto de vista político e psicológico, é sem dúvida demasiado, suficiente para que a insegurança se generalize rapidamente. É esse o sentimento que traduzem as interrogações de A. Mata, rendeiro em Alcáçovas: «Até onde irão as ocupações? Quais são os limites? Quais são as garantias? Onde é que isto vai parar?»432 O Governo, os comunistas e os militares pretenderam, é certo, oferecer garantias verbais em diversas ocasiões. Mas, no terreno, ou faziam o contrário ou deixavam fazer. E as medidas oficiais também não traduziam as promessas

de tranquilidade. As leis de expropriação e nacionalização, publicadas em Agosto de 1975, tinham sido anunciadas um mês antes. Ora, o comunicado oficial do Ministério era categórico: «A afectação da terra nacionalizada far-se-á de maneira a tornar possível e permanente a sua utilização colectiva fora dos quadros da propriedade privada.»433 Na verdade, os camponeses nada tinham a ganhar com esta reforma agrária. E tiveram mesmo o pressentimento de que podiam tudo perder. Eis porque contribuíram para o derrube do poder da esquerda radical. Foram seguramente os militares e os partidos não comunistas que alteraram o curso político e afastaram a maior parte dos militares esquerdistas dos órgãos de poder: mas a atenção que prestaram à opinião e aos sentimentos dos agricultores, tanto a norte como a sul, foi um dos seus principais estímulos. E no terreno, nos meios rurais, sem esperar por uma nova situação, nem pela chegada dos militares, foram os camponeses, rendeiros, pequenos proprietários e mesmo médios empresários cultivando directamente as suas terras que reagiram em primeiro lugar contra as ocupações. A quase totalidade dos casos conhecidos de resistência física oposta aos ocupantes, por vezes com armas na mão, são feitos de pequenos agricultores434. Defendiam qualquer coisa mais do que títulos de propriedade, empresas anónimas ou herdades dirigidas à distância pelo telefone. Queriam conservar o que tinham feito com as suas mãos e que era a sua única maneira de viver. A terra e o colectivismo Durante os dois anos de revolução detectaram-se manifestações do que é habitual chamar-se «fome de terra», isto é, a necessidade e a vontade de obter parcelas de terra adicionais, ou de conseguir acesso à terra para exploração individual ou familiar, ou de distribuir por

camponeses terras tomadas aos grandes proprietários. Com esse fim, foram tomadas várias iniciativas e houve mesmo camponeses que participaram em ocupações. Todavia, a acção mais enérgica dos pequenos agricultores da região, incluindo dos que antes tinham ocupado herdades privadas, concretizou-se mais tarde, não na procura de novas terras, mas na defesa das que possuíam e dos direitos de exploração de que ainda usufruíam ou que tinham perdido. No entanto, na região, foi um outro fenómeno que teve mais importância e que melhor caracterizou o movimento revolucionário dos anos 1974 a 1976: a ocupação de terras e de herdades por assalariados com vista à manutenção dos empregos e dos salários. Para assegurar estes objectivos, os trabalhadores, apoiados pelos seus sindicatos, organizaram unidades colectivas de produção, não mostrando vontade de dividir terras e prédios tomados. Note-se que as terras ocupadas não eram públicas, nem baldias, nem estavam abandonadas: eram terras privadas geralmente cultivadas. No princípio deste processo registaram-se episódios de uma certa comunidade de interesses entre assalariados e camponeses. Tinham condições de vida e níveis de rendimento relativamente próximos (em geral baixos) e que aparentemente podiam traduzir uma solidariedade social mais profunda, nomeadamente numa relativa hostilidade aos grandes proprietários, que detinham uma espécie de monopólio da terra e do emprego rural. Mas esta comunidade eventual desapareceu rapidamente, desde que surgiram à luz do dia e tomaram corpo as verdadeiras aspirações dos dois grupos. Uns queriam terra, outros queriam emprego. Pelo seu lado, as autoridades e o partido mais activo neste movimento inculcaram uma orientação colectivista e criaram toda a espécie de mecanismos legais e financeiros destinados a desencorajar soluções camponesas, mesmo

parciais ou episódicas. Apesar de proclamações tácticas e precauções tranquilizadoras dirigidas aos camponeses de todo o País, o modelo colectivista estatal e o salariado eram as únicas soluções práticas possíveis. A preparação vinha de trás. Antes mesmo do início das ocupações, o presidente do recém-criado IRA tinha afirmado: «O futuro das herdades pertencendo ao Estado consistirá na experimentação no domínio das explorações colectivas.»435 O Partido Comunista justificava esta situação de maneira simples: os trabalhadores não querem dividir as terras. A reforma agrária prometia mesmo ser uma realização muito mais avançada do que noutros países, dado que «os assalariados recusaram a propriedade da terra». Nos círculos políticos ligados a este partido sublinhava-se «o altruísmo dos trabalhadores que só reservam para si o uso da terra e entregam a propriedade ao Estado»436. Esta recusa e estas decisões nunca se exprimiram realmente. Não houve escolha explícita, nem voto, nem concurso, nem consulta. Não havia sequer a faculdade de, em grupo ou individualmente, serem tomadas decisões diferentes. Tudo se passou de outro modo e em certa medida naturalmente. A escolha foi uma e a possibilidade era também só uma. Tudo se passou, por parte dos trabalhadores, com um misto de espontaneidade e de disciplina sindical, fruto da necessidade. Por parte das autoridades, com premeditação. A ideologia comunista, eficazmente veiculada pelos sindicatos, deu tons gloriosos à opção colectivista. Tendo sempre sido proletários, os assalariados nunca tinham supostamente querido terra, até porque o seu nível de consciência era, dizia-se, superior ao dos camponeses. Não somente desejavam rejeitar o modo capitalista e recusavam voltar a trabalhar para os patrões, como sabiam que o modo colectivista e estatal era superior a todas as formas de organização da produção. Nesta lógica,

a transformação da pequena exploração camponesa em grandes herdades de Estado era uma forma de concentração da produção, processo objectiva e historicamente necessário. O capitalismo tê-lo-ia feito, em benefício dos proprietários; o socialismo deveria fazê-lo também, até às últimas consequências, não em proveito dos capitalistas, mas dos trabalhadores. Quanto aos camponeses, pequenos e médios agricultores, pequenos e médios empresários, deveriam evoluir e integrar-se nas superiores formas de produção colectiva. As posições do PC, retomadas pelas autoridades e pelos militares em 1975, eram mais ou menos tradicionais na história dos movimentos comunistas; mas, em Portugal, constituíam uma novidade relativa. Com efeito, entre 1930 e 1960, este partido defendia com ardor a ideia de divisão das terras437. Nessa altura estava empenhado politicamente na «via unitária» e na estratégia das «frentes democráticas». Mais tarde, numa situação que lhe era ou parecia bem mais favorável, impôs uma linha política puramente proletária e estatal. Logo em 1976, tendo-se apercebido das suas próprias derrotas, o partido tentará activamente recuperar parte dos pequenos agricultores e fará esforços nesse sentido tanto no Norte como no Centro do País438. Sem grandes resultados, nem continuidade. De qualquer maneira, o tom teórico e a filosofia da história estavam presentes há muito: «Nós, comunistas, temos razões para nos regozijar com o peso económico dominante do proletariado rural nos campos portugueses. O proletariado rural alarga nos campos a base social da revolução democrática e cria condições favoráveis para o socialismo.»439 Nesta linha ideológica, também o secretário de Estado A. Bica tinha sido peremptório: «Exclui-se quase inteiramente a conjunção da produção colectiva e da produção privada em parcelas familiares […]. Os trabalhadores não aspiram à distribuição de saldos positivos no fim do ano económico;

eles só desejam receber o seu salário.» Realista, reconhecia todavia que, «cada vez que um trabalhador de uma unidade colectiva mantém uma pequena exploração familiar, terá tendência a faltar ao trabalho da UCP […] e será incitado a faltar ao respeito da propriedade colectiva a favor da exploração individual»440. O colectivismo, a coberto de um governo favorável, era o meio de assegurar o controlo social e a administração económica das terras e das herdades. A divisão das terras e a economia camponesa, ou mesmo cooperativa, não teriam permitido nem um nem outro. Por outro lado, havia reais dificuldades técnicas e económicas para a divisão imediata das terras e para o estabelecimento de empresas familiares. Faltavam os agricultores experientes, os conhecimentos, as máquinas, as alfaias e os sistemas culturais. Não havia suficientes capitais disponíveis, nem serviços de apoio competentes para uma reconversão rápida dos modelos agrários. O equipamento adaptado às explorações de pequena e média dimensão faltava ou era raro. Os assalariados que ocuparam as grandes herdades não possuíam os conhecimentos técnicos, nem a capacidade de gestão, nem o capital necessário à multiplicação de empresas de reduzidas dimensões441. Os sistemas de transporte, as vias de circulação, os esquemas de utilização da água e as facilidades de armazenamento estavam adaptados à grande empresa e constituíam reais obstáculos a uma transformação estrutural imediata. Por razões políticas, os feitores e caseiros, assim como técnicos especializados e operários qualificados, foram quase todos afastados no momento das ocupações. Considerados agentes dos patrões, eram indesejáveis nas unidades colectivas. Sem eles, as UCP perderam capacidades e quadros técnicos indispensáveis. Os assalariados queriam um salário garantido e um emprego permanente. A ocupação de terras e herdades

tinha sido o primeiro instrumento de realização dessa aspiração. A gestão colectiva era ou parecia o único meio ao seu alcance para assegurar uma qualquer estabilidade. Tanto mais que o Governo era favorável, avalizava os créditos e garantia os salários. Pela mesma via do grupo ou do colectivo, ficavam ao abrigo de eventuais represálias dos antigos patrões e proprietários: a hipótese de depender novamente do seu arbítrio despertava recordações por vezes dolorosas. Finalmente, na agitação revolucionária e com os riscos que aquela supõe, a solidariedade colectiva, no interior das UCP ou entre elas, era ou parecia a melhor arma de protecção e autodefesa. De qualquer modo, era já difícil ser-se camponês ou agricultor autónomo. Transformar-se num camponês é ainda mais difícil. Os assalariados da região nunca o tinham sido. Seus pais e antepassados também não. Não descendiam de uma tradição de camponeses despojados ou destituídos das suas terras, como acontece frequentemente noutras partes do mundo. Só conheciam o salariado, eventualmente a servidão, e tinham plena consciência das dificuldades vividas por um pequeno agricultor. Este último, para começar uma exploração própria e autónoma, precisa de muito mais do que terra. São-lhe necessários capital, fundo de maneio para vários meses, máquinas, sementes, adubos, animais e talvez uma residência. Precisa de créditos e de relações. Mais ainda, necessita de conhecimentos técnicos muito diversificados, bem mais complexos do que os de um assalariado. Deve dominar dezenas de operações técnicas no cereal, na fruta, nas árvores, no gado, no regadio, na horta, sem falar de mecânica, da comercialização, da contabilidade e dos cuidados veterinários. Tudo isso exige formação, experiência e tradição. Para isso, os assalariados não estavam preparados. Além de que viam os pequenos agricultores com quem partilhavam tantas vezes a

pobreza; apercebiam-se da insegurança dos arrendamentos e da instabilidade do sistema de searas; conheciam as irregularidades do clima e sabiam as consequências de uma má colheita. A agricultura camponesa só tentava os que já a praticavam e queriam melhorar; e talvez alguns feitores que se sentiam mais capazes e experientes. O colectivismo parecia a solução, a única, desde que se afastassem todos os pequenos agricultores e seareiros, ou os abrigassem a transformar-se em assalariados, como algumas UCP tentaram, mas sem sucesso. Apesar de tudo, os problemas surgiram logo em 1976 e desenvolveram-se mais tarde. As primeiras dificuldades provinham do enquadramento económico hostil ou contraditório, da opinião pública relativamente desfavorável, assim como das políticas governamentais que não partilhavam os princípios e os valores do colectivismo. O PC ficou marcadamente minoritário do ponto de vista eleitoral e nunca mais teve acesso ao Governo. Todos os outros partidos se esforçaram por contrariar os projectos comunistas e as consequências visíveis dos seus gestos passados. Aos comunistas e à revolução foram imputadas as responsabilidades pelas dificuldades económicas e sociais que o País conheceu depois. Ora, o colectivismo não podia dispensar o apoio do Estado: assistência, créditos, protecção legal e orientação futura, incluindo planos de desenvolvimento e investimento. Não só o Estado não apoiou como também se revelou mais favorável às outras formas de organização económica: empresas familiares, cooperativas e capitalistas. Novas leis, assim como a aplicação estrita das anteriores, obrigavam o Estado a devolver algumas herdades aos proprietários e sobretudo a demarcar reservas de propriedade e de exploração a empresários e rendeiros. Na defensiva, as UCP transformaram em derrotas difíceis de digerir o que, em última análise, decorria directamente das

leis e dos mecanismos em vigor. Opuseram-se à demarcação de reservas, invocando todos os argumentos, políticos, ilegais, sociais e económicos. Tentaram defenderse com a viabilidade das UCP, que seriam inexoravelmente condenadas se fossem retiradas as áreas necessárias à demarcação das reservas. A verdade é que as UCP estavam todas sobredimensionadas, do ponto de vista do emprego. Qualquer reserva implicaria imediatamente que trabalhadores fossem dispensados ou despedidos. A carga salarial excessiva, alguns desperdícios e incapacidades técnicas obrigavam ao recurso sistemático ao crédito oficial. Ora, as taxas de juro e as cargas financeiras estavam em fase de rápido crescimento, tendo atingido níveis insuportáveis. As dívidas das UCP resultavam, em maioria, de empréstimos a curto prazo, caros portanto, tendo muitos sido utilizados em investimentos a longo prazo ou na aquisição de máquinas e de gado. Sem a «compreensão» do Estado, a situação económica das UCP, ou, antes, da maior parte das UCP, ameaçava, em fins de 1976, transformar-se em catástrofe. Más colheitas nos anos seguintes, devidas a condições naturais excepcionalmente desfavoráveis, mas também a má gestão, contribuíram para criar um clima difícil à volta e no interior das UCP. Problemas não tardaram. Grupos de trabalhadores que queriam «desanexar», isto é, organizar cooperativas mais pequenas e independentes, foram violentamente criticados e atacados. Em muitos casos surgiram aspirações que punham em causa a organização da UCP e contestavam a autoridade: uns reivindicavam o voto secreto, outros queriam participar nos benefícios; uns desejavam poder cultivar hortas familiares, outros queriam ter os seus próprios gados; uns queriam ter salários diferentes, outros pretendiam que as melhores UCP, ou as mais produtivas, tivessem níveis de salários e de benefícios correspondentes. A insegurança, a disciplina sectária, o

igualitarismo estrito, as dificuldades económicas, a entrega de reservas, as quebras de produção e o permanente conflito com os governos são alguns dos factores que pesam negativamente na vida das UCP e que contribuíram para o afastamento de bom número de trabalhadores, muitas vezes os mais novos e mais qualificados: mecânicos, tractoristas, trabalhadores da cortiça, do vinho e do gado. Além disso, por estratégia ou simplesmente por interesse económico, muitos empresários privados começaram a pagar melhores salários, enquanto as UCP se limitavam ao salário mínimo rural. Cinco anos depois, o número de unidades colectivas era de cerca de 200. Exploravam um pouco menos de 500 000 ha e empregavam perto de 10 000 trabalhadores permanentes. À semelhança dos antigos proprietários, recorriam o mais possível a trabalho eventual. A situação em que se encontravam as UCP variava muito, desde a falência e a difícil sobrevivência à prosperidade (há UCP que compraram herdades com centenas ou milhares de hectares). O futuro das unidades colectivas continuava incerto. Conquistadoras em 1975, passaram a viver cercadas desde 1976442. Patrícios e servos As dificuldades de sobrevivência das UCP contrastam com a facilidade com que foram criadas. Na origem desta facilidade estão as circunstâncias políticas e os apoios do Estado e dos militares. Mas está também a natureza particular da sociedade e das relações entre proprietários e trabalhadores. Sob o regime corporativo, graças à ditadura, os proprietários fundiários gozavam plenamente dos seus direitos e poderes, quase dispensados de obrigações e deveres para com as classes subordinadas. O seu estatuto social era indiscutível e indisputado. Nem estava

submetido a uma qualquer necessidade de concertação. O patrão podia proteger o seu trabalhador (e muitos faziamno), mas não precisava de o respeitar e muito menos de negociar. Na ausência de discussão, afrontamento ou negociação, os proprietários ostentavam uma calma de patrícios e não se preocupavam particularmente com os seus adversários sociais. Talvez muitos não tivessem sequer imaginado que, em sociedade, os subordinados podem ser adversários. Nestas condições, não tinham real necessidade de se organizar, nem sequer de se associar. Os grandes proprietários viviam como senhores da terra, mesmo quando a fortuna não era muito grande. Raramente podia sê-lo, naquelas terras, mas o estatuto e o privilégio eram fortes, mais fortes do que o poder económico. A força dos proprietários era a força das coisas, o apoio indefectível do Estado e a contestação interdita. Situação jurídica da terra em 1983 (em milhares de hectares) Distritos

UCP

Agricultores individuais

Reservas

Não afectado pela reforma agrária

Évora

199,2

31,8

255,1

136,6

Beja

133,0

32,0

154,2

436,5

Portalegre

71,0

24,5

133,3

257,5

Setúbal

50,1

9,1

57,7

367,7

Total 453,3

97,4

600,3

1198,3

Não tinham real necessidade de se mostrar, de estar presentes na sociedade e nas empresas. Viviam com os olhos virados para a capital. Os seus interesses estavam no Alentejo, mas era em Lisboa que se defendiam. No Alentejo mesmo, tinham poucas organizações profissionais, culturais, técnicas, políticas ou mesmo recreativas e mundanas: não tinham simplesmente

necessidade e pouco uso teriam. As suas relações com o poder central pareciam mais cumplicidade do que outra coisa. Perante a cidade, a indústria e a finança, impunha-se o mimetismo social, talvez a inveja. Uma grande parte dos grandes proprietários alentejanos já eram citadinos, gente da capital. Perante as comunidades locais, vilas e aldeias, o seu caciquismo vivia de complexa mistura de paternalismo, de tutela autoritária e de delegação do poder central ou do Governo. Em face dos trabalhadores, privados de liberdades e de sindicatos, podiam revelar humanidade e até caridade, mas, no essencial, era uma relação leonina, sem contrapesos. O seu poder não conhecia praticamente factores moderadores. A facilidade acabou por criar a fraqueza. O tecido ou o corpo social dos proprietários não tinha uma forte existência real. Mais do que uma classe, os proprietários do Alentejo formavam uma espécie de casta. Quanto aos empresários mais modernos, apesar de viverem ainda em fase de desenvolvimento, eram gente de fora, ou citadinos de regresso ao campo, quando se tratava de descendentes de alentejanos que se interessavam de novo pela terra, ou pelo investimento fundiário. Em geral, habitavam a cidade. Tinham poucas raízes no campo. Há duas ou três décadas que os «montes» se esvaziavam. As suas relações com o Alentejo não eram pessoais, culturais ou sociais. Podiam administrar pelo telefone, visitar esporadicamente as explorações, ou mais simplesmente as propriedades, receber rendas anuais ou ocupar-se da tiragem da cortiça todos os nove anos. Durante as últimas décadas, os proprietários alentejanos iam-se deixando ultrapassar por outras fontes de inovação: o Estado, com os seus projectos de regadio; os rendeiros e os agricultores de média dimensão; os empresários citadinos, que por vezes eram sociedades capitalistas e multinacionais ligadas à agro-indústria. Para os

proprietários, era útil que o Alentejo se mantivesse estático. Mais do que no investimento agrícola, pensam e interessam-se na prospecção de negócios mais rendíveis na indústria, na finança, no imobiliário e na bolsa. Mais do que com as relações de trabalho, preocupavam-se com os preços e os subsídios, que eram da competência do Governo central. De qualquer maneira, as relações laborais mais se pareciam com questões de ordem pública. Havia mutações em curso, mas eram lentas. Desde o início do século que a base da propriedade se tinha alargado, mas insuficientemente. O número de agricultores médios, de novos empresários e de agricultores autónomos tinha aumentado e o de assalariados estava em regressão. Mas a transformação estava longe de se generalizar. Há já dez anos que os salários aumentavam regularmente, mas a memória dos trabalhadores, dos rendeiros e dos agricultores com poucos recursos estava ainda viva. Sentindo as ameaças do desemprego, os assalariados não revelaram disposições para a negociação. Tanto mais quanto sabiam ter o apoio e o incitamento do PC, dos militares e do Governo. Quiseram ousar, impor e conquistar, não procuraram compor. Aproveitaram a desorientação de uma classe de proprietários que estavam habituados a resolver, no Alentejo, os problemas do Alentejo. Como sempre, os proprietários olhavam para os ministérios, os governos civis, as esquadras das polícias e os quartéis das unidades militares: em vez dos amigos tradicionais, encontraram adversários e gente de esquerda que tinha entretanto ocupado as instituições; e quando encontravam as mesmas pessoas, já não eram o que tinham sido antes. Este vazio serviu aos sindicatos e aos trabalhadores, que se comportaram não tanto como assalariados reivindicativos, mas como servos libertados. A sua soberana audácia aproximou-se do despotismo. Para isso,

havia motivos puramente políticos e estratégicos, que conduziram a uma actuação militante e disciplinada; mas também havia razões mais profundas e ressentidas. Em primeiro lugar, a necessidade: os trabalhadores procuravam garantir emprego e salário numa época de crise e de instabilidade. Depois, foram ajudados pelos elementos formadores da opinião pública (partidos, jornais e televisão) que não escondiam simpatias pela reforma agrária. Esta atitude, que tinha fortes raízes urbanas, acompanhava um sentimento generalizado de agressividade contra o proprietário ou o «latifundiário» alentejano: depois das polícias, era talvez a mais detestada personagem social. O PC, os funcionários sindicais, os militares e os governos orientaram facilmente o movimento dos trabalhadores. Mas tal não constituiu apenas uma consciência exterior ou uma pura manipulação. Eram reais os sentimentos latentes e as predisposições capazes de fornecer a energia social. Poder-se-á falar de vontade popular e de «ódio de classe», feitos de memória recente, de humilhações ancestrais e de opressões herdadas? Não faltavam emoção e sentido dramático no tom reivindicativo e agressivo dos trabalhadores durante as ocupações e nas diversas manifestações que não podem ser exclusivamente atribuídos ao controlo partidário. Os trabalhadores mais velhos e antigos militantes lembravam-se ainda dos «bandos da fome», aqueles grupos de mendigos que andavam de herdade em herdade, de aldeia em aldeia, a pedir trabalho, comida ou esmola. Só uma combinação de ameaças, de riscos e de perigos presentes, de um lado, e de ansiedades e sofrimentos passados, do outro, pode explicar aquela disposição revolucionária rapidamente traduzida em energia e audácia. Os poucos meses de ameaças de desemprego não parecem suficientes para explicar o nascimento de um

fenómeno revolucionário tão vasto, exigindo tanta energia, tensão e temeridade. O passado social e económico teve pelo menos tanta influência quanto o presente político. A difícil reforma Os serviços do Estado, as forças armadas e os partidos desempenharam seguramente um papel determinante. Mas, qualquer que seja a sua importância, que foi grande, o facto é que milhares de assalariados rurais se mobilizaram, se apropriaram de mais de 1 milhão de hectares de terras privadas, ocuparam herdades e organizaram as unidades colectivas de produção. Foi preciso tocar um ponto sensível para que os trabalhadores rurais ousassem abandonar os seus pudores atávicos, os seus receios de toda a ordem, e se decidissem a realizar acções revolucionárias de tal envergadura. É certo que não havia Estado capaz de reprimir, que cresciam os riscos de desemprego e que as forças armadas incitavam ao levantamento. Mas havia qualquer coisa mais. Há qualquer coisa de «natural» no espírito revoltado dos trabalhadores alentejanos, na sua audácia, no seu radicalismo duro e aparentemente violento. Não acreditavam nas transformações graduais trazidas pela lei e pelo Estado, na ordem e no rigor administrativo. Há muito que tinham perdido essa esperança. Só muito raramente tinham ganhado ou recebido benefícios da acção do Governo e dos planos oficiais. As principais melhorias da sua vida deviam-nas ao êxodo rural e à emigração. Não estavam prontos a canalizar para as instituições as suas aspirações e as suas reivindicações. Sem sindicatos, sem experiência de organizações, sem defensores nem representantes, frequentemente sem instrução, não tinham muitos motivos para confiar. A sua história não lhes permitia ter a paciência e a força serena necessária às reformas e às mudanças sociais controladas.

O reformismo (o espírito de reforma, diria Tocqueville) procede por reflexões particulares e aplicadas, interessa-se no melhoramento constante de situações particulares, decorre da possibilidade que têm as populações de exprimir os seus pontos de vista e de sugerir ou encontrar soluções para os seus problemas. Por sua vez, a revolução alimenta-se de ideias gerais e decorre de um pensamento global sobre a sociedade; preocupa-se com o derrube da ordem estabelecida e procede por mudanças gerais e bruscas. A ideia revolucionária decorre da impossibilidade de melhorar ou mudar as situações particulares. A revolução não procura resolver problemas, tenta construir uma sociedade preconcebida. No Alentejo, a cólera e a audácia tinham raízes fundas no passado, na ausência de diálogo, na dificuldade da mudança e no abismo cultural entre as classes. Era uma questão longínqua, ressentida como opressão, descrita por escritores e militantes, artistas ou sociólogos. Não há estudo, crónica ou memória sobre o Alentejo que não mencione a desigualdade das estruturas agrárias, o desequilíbrio da propriedade e dos rendimentos, o desenraizamento dos trabalhadores e o comportamento dos proprietários opulentos, déspotas e indiferentes. Nem todos os proprietários eram, evidentemente, iguais, nem todos correspondiam ao mesmo cliché. Era frequente o paternalismo protector, por parte de «senhores» que se ocupavam da educação dos filhos dos trabalhadores e que eram seus padrinhos; que davam esmola aos mendigos e desempregados, ou que legavam os seus bens «à terra». Tudo isso é verdade, mas também não é mais do que a confirmação de uma sociedade desigual marcada pelos laços pessoais. E a caridade, se alivia, também agrava feridas ancestrais da dignidade. Se a ideia de reforma acompanha os valores de liberdade, confiança e concertação social, os assalariados do Alentejo não estavam para ela preparados. Tem-se a

sensação de que não combatiam, em 1975, um regime particular ou um governo em especial, ainda menos uma família ou um proprietário. Pareciam lutar contra um sistema composto de cidades e de governos, de polícias e de políticos, de banqueiros e de comerciantes, de patrões e de proprietários. Simultaneamente, não pareciam defender uma causa precisa, politicamente identificada, para além da garantia dos empregos e dos salários. Nesta via, muitos seguiram o Partido Comunista, mais próximo deles do que qualquer outro. O vazio de poder que se cria depois do golpe de Estado permitirá tudo desejar, tudo crer possível, incluindo a prosperidade e as vantagens a que se tinha provado gosto no fim do regime anterior. Não era a ocasião para reflectir em reformas. Nem de esperar muito tempo, calmamente. E ainda menos de arriscar perder o pouco que se tinha obtido. A «memória da fome» é a referência ameaçadora dos trabalhadores rurais que não vivem mas saem de um processo de empobrecimento. A euforia geral dos dias que se seguem à revolta militar e a unanimidade que parece fazer-se nas ruas são bem os sinais de que não se sai de uma crise social e económica, mas política e institucional. Talvez por causa disso, a revolução faz-se em superfície, sem vaga de fundo, mas com uma longínqua memória gradualmente desperta, à medida que surgem as novas dificuldades. Revolução muito política e ideológica, menos social e económica. Revolução que destrói antigos laços de obediências habituais e humilhantes, mas que é finalmente pouco libertadora: deseja uma vida nova, sem a anunciar; é rica em motivos e em pulsões, mas pobre em razões e em pensamento. Depois do golpe de Estado, na ausência de um real novo poder, as iniciativas sociais e políticas multiplicam-se. Os centros de decisão proliferam. E, enquanto os militares e os comunistas se preparam para uma revolução, os

factores de crise agravam-se. Uns, pela força das coisas: a recessão económica internacional, a crise energética, a impossibilidade de emigrar, o regresso de 600 000 pessoas de África e as independências das colónias. Outros, pela força dos homens: a paragem do investimento, os saneamentos, o desaparecimento da confiança económica, as lutas políticas, a ocupação de casas e de empresas, as prisões e as barragens das estradas. E muita intimidação. Em princípios de 1975, o País vive já uma situação de crise que interessa aos revolucionários. Tendo em conta a sua inexperiência institucional, política e sindical, a expectativa reformista dos trabalhadores rurais no Alentejo é praticamente nula. Mas é grande a sua disponibilidade. Respondendo aos apelos militares e aos do Governo e dos partidos, mas também tomando as suas próprias iniciativas, os trabalhadores passaram à ofensiva contra as classes de proprietários e de empresários, tendo em vista assegurar o emprego. A via estava aberta: não encontraram resistência nem obstáculos. 365 Ver António Barreto, «Classe e Estado: os sindicatos de trabalhadores agrícolas e a reforma agrária, 1974/76», in Análise Social, n.º 80, 1984, Lisboa. 366 Ver a secção «Uma via institucional pré-revolucionária», no Capítulo VIII. 367 A evolução dos salários agrícolas nesses anos foi a seguinte. Salário nominal: 1973 = 100; 1974 = 172; 1975 = 197. Salário real: 1973 = 100; 1974 = = 106; 1975 = 112. Cf. A Economia Portuguesa em Números, Banco de Fomento Nacional, Lisboa, 1984. Todavia, os aumentos salariais no Alentejo foram bem mais significativos, até 30% mais elevados, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística. 368 Avante!, 5/7/1974; A Capital, 10/8/1974, 16/1/1975 (reportagem de Edith Esteves) e 18/1/1975; Diário do Alentejo, 2/7/1975; e A Reforma Agrária Acusa, op. cit. 369 Despacho ministerial de 23 de Junho de 1975. 370 A Capital, 29/4/1975. 371 A Capital, 27/1/1975.

372 Estimativa de A. Gervásio, membro do comité central do PC, retomada pelos sindicatos. (In A Capital, 5/2/1975.) 373 A Capital, 20/4/1975 e 6/5/1975. 374 O Primeiro de Janeiro, 7/7/1975. 375 O Século, 9/7/1975. 376 Ver, no Capítulo IX, a secção «As ocupações». 377 A documentação militar e política do Estado-Maior do Exército (EME) sobre as ocupações é muito vasta e refere-se a centenas de casos. É muito precisa, citando profusamente datas, nomes e locais. 378 Diário do Alentejo, 6/8/1975. 379 A Capital, 4/10/1975. 380 Ver as declarações de J. Penderlico, trabalhador rural da região de Évora, militante socialista e pioneiro do sindicato distrital: «Onde vou trabalhar? […] Só porque não era comunista, trataram-me de reaccionário, acusaram-me de agir contra os trabalhadores e de ser um traidor», in A Luta, 7/11/1975. Ver também as declarações de um outro socialista, Florêncio Matias, dirigente de uma cooperativa de produção e deputado à Assembleia da República, in Diário da Assembleia da República, 26/7/1977. 381 O Militante, n.º 8, 1976, e Diário do Alentejo, 26/7/1975. 382 Ver, por exemplo, Avante!, 18/10/1975 e 25/12/1975; O Século, 4/11/1975; e A Capital, 14/11/1975. Os sindicatos chegaram a acusar Salgado Zenha e Lopes Cardoso de «sabotagem económica», in Diário de Notícias, 3/1/1976. 383 Ainda antes do 25 de Novembro, os sindicatos davam já sinais de um radicalismo acrescido, desde o fim do quinto Governo. Chegaram, por exemplo, a apoiar as duríssimas manifestações do grupo clandestino «SUV — Soldados Unidos Vencerão», como em Évora, a 15 de Outubro de 1975, in A Capital, 16/10/1975. 384 O tom dos comícios e dos comunicados sindicais é revelador da intransigência sectária e do isolamento. O PS é acusado de pactuar com os latifundiários; o PPD é tratado de reaccionário e fascista. Todos os jornais não comunistas são denunciados como agentes imperialistas. Ver, por exemplo, O Diário, 16/3/1976. 385 Testemunho inédito do Prof. Carlos Portas, um dos primeiros animadores da Liga e mais tarde nomeado formalmente como um dos seus «técnicos», sob proposta do grupo de agricultores não comunistas, in arquivos do GER; ver

também a entrevista com o agricultor Sebastião Lourenço, in A. Barreto, Memória […], op. cit., assim como as «Actas» das reuniões da direcção da Liga de Évora, in arquivos da Liga, Évora. 386 Diário do Alentejo, 20/7/1974. 387 Avante!, 20/9/1974. 388 A Capital, 4/1/1975. 389 Portugal Socialista, 5/12/1974. 390 Avante!, 20/2/1975. 391 Diário de Lisboa, 10/3/1975. 392 Ibidem. 393 Por exemplo, as herdades «Picote» e «Charrascal», em Montemor; «Entre as Matas», em Alcáçovas; e «Chaminé», em Vendas Novas. Cf. «Actas», op. cit. 394 Cf. «Actas», op. cit. 395 Diário do Alentejo, 2/4/1975 e 14/4/1975, assim como as «Actas», op. cit. 396 Cf. a documentação das ligas in arquivos do GER e nos arquivos da Liga de Évora. 397 Declarações de Dinis Miranda in Avante!, 20/2/1975, e de Joaquim Velês in Diário de Notícias, 6/3/1975. 398 Declarações de A. M. Grelha in A Capital, 6/3/1975. 399 As «Actas» relatam numerosos casos de pequenos agricultores tendo sofrido prejuízos com a reforma agrária. Com o tempo, as actas deixam aperceber claramente a crescente tensão entre os membros e dirigentes da Liga. 400 Jornal Novo, 2/10/1975 e 22/12/1975. 401 Diário de Notícias, 25/10/1975 e 1/11/1975. São desta altura as declarações de Salgado Zenha, então ministro das Finanças: «É tempo de afirmar que se vão devolver aos pequenos e médios proprietários agrícolas as terras de que foram desapossados», in arquivos da RTP, 10/11/1975, e O Século, 11/11/1975. 402 A Luta, 24/10/1975; A Capital, 5/11/1975, 11/2/1976, 12/3/1976 e 16/3/1976; e Portugal Socialista, 12/11/1975. 403 Ver a carta do secretário de Estado A. Bica, militante comunista, aos

comandantes das unidades militares da Região Militar Sul e aos directores dos centros regionais de reforma agrária. A carta, de 22/12/1975, acompanha um importante documento oficial cujo título é «Orientações sobre as principais questões decorrentes da execução da reforma agrária»; in arquivos do EME e arquivos do MAP; cópia in arquivos do GER. 404 A história da Liga de Évora é contada in A. Barreto, Terra […], op. cit. 405 Ver, no Capítulo VI, a secção «Os grémios da lavoura». 406 A Associação Central da Agricultura de Portugal (ACAP), antiga Real Associação […], nascida há mais de um século, tinha sido tolerada pelo Estado e pela organização corporativa, mas não representava os agricultores. Associação facultativa, exercia sobretudo actividades técnicas, científicas, de informação e divulgação. Era tradicionalmente dominada pelos grandes proprietários do Sul, com relevo para os empresários e agricultores, não os absentistas. 407 Ver as «Actas», op. cit. 408 Por exemplo, em Aljustrel, Alvito, Cuba, Serpa, Évora e Chamusca, entre Julho e Outubro de 1974. 409 Por exemplo, em Beja, Castro Verde, Benavente, Crato e Sousel, entre Julho e Outubro de 1974. 410 Entre outros, faziam parte: Raul Miguel Rosado Fernandes, José Manuel Casqueiro, Francisco Lino e A. Gonçalves Ferreira, futuros fundadores e dirigentes da CAP. 411 Diário de Notícias, 21/7/1975 e 23/7/1975, e Jornal Novo, 1/10/1975. Os seus promotores são tratados de «lacaios dos latifundiários»… 412 Tal como a ALA se envolveu no 28 de Setembro, também a CAP participou no 25 de Novembro. Só que a ALA perdeu e a CAP ganhou. 413 O Diário, 30/3/1975. A CAP é aí descrita como o instrumento de penetração da CIA em Portugal. 414 Recorte de Uma Luta, edição da CAP, Lisboa, 1978; José M. Burguete, O Caso Rio Maior, Lisboa, 1978; entrevista de José M. Burguete in Diário de Notícias, 12/4/1976. 415 Paradela de Abreu, Do 25 de Abril […], op. cit.; J. M. Burguete, O Caso […], op. cit.; assim como múltiplas declarações da hierarquia católica, como por exemplo a moção aprovada pelo clero da arquidiocese de Évora, aquando da assembleia geral do ano pastoral, Évora, Janeiro de 1976. 416 Mário Sottomayor Cardia, in O Primeiro de Janeiro, 25/11/1975. A grande

reunião de 24 de Novembro tinha sido convocada pela ALA de Santarém. No seu panfleto apela «a todos os agricultores a reunir-se em Rio Maior, contra os ditadores», in arquivos da CAP e arquivos do GER. 417 O Primeiro de Janeiro, 26/11/1975. 418 Rio Maior, 14/12/1975; Santiago de Cacém, 3/1/1976; Loulé, 4/1/1976; Braga, 11/1/1976; Torres Vedras, 14/1/1976; Cabeceiras, 14/1/1976; Rio Maior, 22/1/1976; Alcobaça, 26/1/1976; Viseu, 1/2/1976; Bombarral, 1/2/1976; etc. 419 Declarações de J. M. Casqueiro: «Não confiamos mais. O ministro só defende a sua ideologia e não a agricultura», in O Século, 12/4/1976. 420 Pode citar-se, nesta última situação, a «Quinta da Alorna», uma das maiores empresas agrícolas do País, situada no Ribatejo, dentro da zona de intervenção. Os proprietários, empresários modernos que administram directamente, tomaram medidas imediatamente após o 25 de Abril. A opinião dos trabalhadores não permite dúvidas: «Agora, dir-se-ia o paraíso», afirma A. Trocata, assalariada na «Alorna» há mais de 30 anos. «Antes, ganhávamos 64$ por dia e agora 125$ […]. Antes, éramos obrigados a andar sempre com as crianças atrás. À noite, nem podíamos ficar direitos, por causa do reumatismo. Agora, os carros vêm-nos buscar e levar a nossas casas todos os dias», in A Capital, 16/1/1975. Apesar da sua localização e das suas dimensões, a «Quinta da Alorna» nunca foi ocupada. 421 Toda a literatura comunista e sindical é disso reflexo. Ver também a carta da Liga de Évora, dirigida ao Sindicato do mesmo distrito, onde a mesma posição é assumida, in arquivos da Liga e arquivos do GER, carta de 30/12/1974. 422 A Luta, 21/11/1975. 423 Ibidem. 424 Jornal Novo, 12/11/1975 (reportagem de A. Oliveira). 425 Jornal do Comércio, 20/5/1975. 426 Ver nota 39. 427 Jornal do Comércio, 19/2/1976. 428 Ibidem, 5/4/1976. 429 A. Barreto, Memória […], op. cit. 430 Jornal do Comércio, 20/5/1976. 431 Números oficiais do Ministério da Agricultura. Ver também A. Barros, A

Reforma […], op. cit. 432 António Barreto, Palavra de Rendeiro, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1980. 433 Jornal do Comércio, 8/7/1975, e arquivos do MAP. 434 A. Barreto, Memória […], op. cit., e A Luta, 24/10/1975. 435 A Capital, 9/1/1975. 436 Ver, entre outros, Zillah Branco, in O Diário, 18/2/1976 e 10/3/1976; A Reforma Agrária Acusa, op. cit., e o prefácio a A Questão Agrária, edições Avante, Lisboa e Moscovo, 1975. 437 Ver, no Capítulo VII, a secção «As conquistas e a derrota do Partido Comunista». 438 Ver, no exemplo, as intervenções do secretário-geral nos comícios do Porto e outras regiões do Norte, in Diário Popular, 16/1/1976 e 18/1/1976. 439 A. Cunhal, Rumo […], op. cit. 440 Ver a nota 39. 441 Earl O. Heady, Análise do Desenvolvimento Agrícola e da Reforma Agrária em Portugal, Lisboa, 1977. 442 Em fins de 1983, um pouco mais de metade das terras ocupadas tinham sido devolvidas aos seus antigos proprietários a título de reservas. Quase 100 000 ha tinham também sido retirados às UCP e distribuídos a agricultores individuais, ou a candidatos a agricultores. Só se conhece com relativa exactidão a situação em quatro distritos, o que de qualquer maneira é representativo, pois constitui cerca de quatro quintos das superfícies abrangidas. No conjunto, cerca de 23% das terras da região pertencem agora ao Estado, das quais 19% estão nas mãos das UCP e 4% nas de agricultores individuais, 26% foram devolvidos aos proprietários a título de reservas e 51% não foram afectados pela reforma agrária. Estas informações foram obtidas junto da Comissão de Coordenação da Região do Alentejo e da Direcção de Crédito Agrícola do Banco Pinto & Sotto Mayor.

CONCLUSÕES

O sucesso do golpe de Estado ficou a dever-se à adesão do povo e do aparelho de Estado. A sua indiferença teria eventualmente conduzido à manutenção dos militares no poder, como frequentemente acontece. Mas, em Portugal, o apoio popular e das instituições públicas deu à revolta militar uma larga dinâmica social, cultural e política e modificou-lhe consideravelmente o carácter. É um exemplo raro de golpe de Estado puramente militar que não conduziu à implantação de um regime militar. É também um exemplo, pouco frequente, de derrube de uma ditadura pela força, mas sem violência e sem intervenção de potências externas. É certo que os militares ficaram algum tempo no poder. Mas partilharam-no com vários partidos políticos. E, apesar de alguns grupos militares se terem batido por um lugar mais importante no futuro regime, o facto é que a estada das forças armadas nos órgãos de direcção do Estado foi, desde o início, claramente qualificada de provisória. A mudança de regime não podia ser conduzida por uma instituição depositária da legitimidade, pela simples razão de que tal instituição não existia. Nenhum partido político, nenhuma aposição institucional, nenhum líder nacional, se afirmaram com suficiente autoridade para dominar e orientar a mudança. Foram o Movimento das Forças Armadas e as forças armadas que desempenharam parcialmente este papel. Mas o exército, ele próprio, encontrava-se atravessado por conflitos, seja puramente internos, seja provocados pela sua exposição às lutas

sociais. Acrescente-se que também as forças armadas viviam uma certa crise de legitimidade, ou, antes, tinham quebrado com a sua legitimidade, pois que derrubaram o poder estabelecido, o poder que elas apoiavam, e revogaram a Constituição, que tinham jurado, com um acto de força. Noutras palavras, a mudança de regime decorreu das relações de força na sociedade e dos afrontamentos em pleno dia e, globalmente, não foi sendo conduzido por uma força política, uma pessoa ou uma instituição. Não foi a economia que esteve na origem da revolução, foi a política e a guerra colonial. As dificuldades económicas dos últimos anos do anterior regime eram crises de crescimento e de transformação gradual ligadas à expansão económica e a uma certa modernização. Pelo contrário, era bem mais grave a crise política e militar, nomeadamente a guerra de África. Por outro lado, por causa do carácter autoritário e arcaico do regime, tinham-se criado predisposições para uma mudança profunda da vida pública. A liberalização frustrada de M. Caetano tinha fechado as portas às reformas. Ideias socialistas e revolucionárias tinham sensibilizado largas camadas da população e das classes médias em particular contra o regime politicamente bloqueado. No dia seguinte ao golpe de Estado, muita gente se revelou disponível para correr os riscos de uma revolução, enquanto outros a desejavam explicitamente. Ninguém apareceu a defender o regime e poucos o justificaram. Desenvolveram-se rapidamente aspirações revolucionárias e projectos socialistas, ao mesmo tempo que o Estado se desintegrava e se abria às manifestações da sociedade. A crise social e económica que se seguiu criou raízes nesta crise de mutação e no consequente vazio de poder. A primeira causa da luta de classes que se desenvolveu foi a mudança do poder político e militar e

não o confronto ou as contradições sociais e económicas. Antes da propriedade, foi o Estado o objecto das lutas. O processo revolucionário teve pois um primeiro sujeito, a instituição militar, e um primeiro campo de acção privilegiado, a esfera do político. O apoio popular e as intenções de certos protagonistas militares abriram o processo de mudança ao conjunto da sociedade. Dispersos, mas muito activos, os movimentos sociais surgiram um pouco por todo o País, mas sobretudo nas grandes aglomerações e na capital. Partidos políticos de esquerda, forças revolucionárias e militares radicais apropriaram-se dos postos de direcção política e de comando da administração. Foi através do Estado que se tomaram múltiplas iniciativas no sentido da transformação mais radical da sociedade e da economia, visando em particular um processo global de transferência da propriedade. A consequência foi o desenvolvimento de movimentos sociais mais bem enquadrados, politicamente encorajados e legalmente protegidos. Estes, aliás, também influenciaram o universo político: contribuíram para o radicalismo dos líderes, impediram o restabelecimento de equilíbrios considerados prematuros e deslocaram para a esquerda o centro de gravidade da política e da sociedade. Os militares e os órgãos de Estado forneceram a sectores do proletariado e a grupos muito activos das classes médias uma legitimidade política e jurídica que lhes faltava; mas receberam em troca uma legitimidade social e revolucionária que não tinham. Os militares procuravam uma base social suficiente para legitimar o derrube do regime anterior e a descolonização. Por sua vez, os sindicalistas, trabalhadores e empregados procuravam uma protecção legal para defender os seus interesses e conquistar poderes. Obtiveram-na dos militares. Foi esta protecção legal que explicou a transgressão que os trabalhadores cometeram, com audácia, contra a propriedade e contra as normas jurídicas tradicionais.

Ao mesmo tempo, os partidos políticos, e mais particularmente o Partido Comunista, lutavam por posições de poder a fim de conquistarem o apoio popular. A situação revolucionária, sem regras de comportamento político estabelecidas ou aceites, impunha esta estratégia, ao contrário do que habitualmente se verifica nas lutas políticas institucionais, em que os partidos procuram o apoio popular como meio de acesso aos poderes. Foi assim que o Estado (incluindo as forças armadas) se revelou simultaneamente um lugar de exercício do poder e um instrumento de acção. As forças políticas e em certa medida as forças sociais agiram através do Estado utilizando os recursos que este lhes fornecia: a legalidade, a força, a organização e os meios materiais. Dependendo todavia das forças sociais e políticas, o Estado seguiu a sua evolução e transformou-se. Mas, como sede e local de poder, com as suas instituições e os seus corpos de funcionários, o Estado revelou também os seus próprios interesses e a sua força autónoma. O Estado não foi independente das classes e das forças sociais e políticas, mas também não esteve simplesmente ao seu serviço, muito menos ao serviço de uma só classe. A propriedade não é a única fonte de poder, e ainda são precisos o direito e a força para a proteger. Sem falar da cultura e da ideologia, há outras fontes de poder, entre as quais a organização política e sindical, a força militar e o aparelho de Estado. A apropriação deste último pelas forças políticas de esquerda, nomeadamente pelos comunistas e pelos militares radicais, permitiu o estabelecimento de um novo poder, mesmo se instável. Sem a propriedade, o poder político e sindical lutava pelo poder económico: só o Estado lho poderia fornecer. À prossecução deste objectivo não se depararam imediatamente muitos obstáculos: numa sociedade com graves insuficiências económicas, o Estado, melhor do que a iniciativa privada, era fonte de segurança, como

revelavam as vastas dimensões da administração pública. Uma pobreza relativa e a emigração estrutural também não eram o indicador de uma economia poderosa. Nestas condições, as ideias socialistas e o princípio de uma intervenção acrescida do Estado na economia e na sociedade encontraram facilmente adeptos nas classes médias e junto dos trabalhadores assalariados, sem falar dos funcionários. A súbita queda do regime e a desorientação generalizada das instituições fizeram imediatamente aparecer o problema do poder político. Antes mesmo ou melhor do que a organização das forças sociais em partidos, associações ou sindicatos, o controlo do Estado poderia significar o controlo e a condução das mudanças que inevitavelmente acabariam por surgir, até porque pareciam desejadas. Esta situação foi eficazmente utilizada por um partido de revolucionários profissionais para quem os principais objectivos estratégicos eram o poder de Estado e a força militar. Também é verdade que, em apoio dessa estratégia, o Partido Comunista não desprezou os movimentos de massas nem as acções colectivas que servem para consolidar as posições conquistadas no aparelho de Estado, no Governo, nas instituições e nas forças armadas. Nos países industrializados, os revolucionários modernos lutam pelo Estado e, tanto quanto possível, no interior do Estado. Foi através do Estado e das instituições nacionais e locais que foram tomadas as principais iniciativas de transformação das estruturas sociais e económicas. Essas medidas tiveram algum eco favorável ou foram ao encontro de aspirações expressas por movimentos sociais, nomeadamente reivindicações de trabalhadores e de certas camadas das classes médias. A região da agricultura latifundiária e o poder económico dos proprietários e empresários agrícolas transformaramse em alvos privilegiados da revolução social. A reforma

agrária decorreu da revolução política de carácter geral, mas introduziu-lhe uma dimensão específica. As origens da revolução agrária do Sul (a sempre designada «reforma agrária») foram exteriores à agricultura e ao capitalismo rural. Foram políticas e resultaram da balança de poderes políticos nacionais e da crise de mutação do Estado. Todavia, as características das lutas e dos movimentos sociais ligados à reforma agrária revelaram causas remotas nas estruturas sociais e económicas da região. Ao contrário das revoltas camponesas, a reforma agrária no Alentejo não visava apenas nem sequer sobretudo a terra, mas sim o conjunto das estruturas de produção, de comércio e de administração da região. Os sindicatos de trabalhadores rurais não exibiram os traços dos movimentos milenários tradicionais, antes se mostraram muitíssimo politizados e enquadrados por formas de organização próprias das sociedades modernas. Ao contrário das revoltas camponesas, a revolução alentejana decorreu de uma centralidade política. Contrastando ainda com as revoltas camponesas, que geralmente produzem os seus próprios líderes carismáticos, a revolução agrária do Alentejo apenas teve por dirigentes funcionários do Partido Comunista, militares, intelectuais e funcionários públicos. A revolução do Alentejo não foi uma revolta contra o Estado e seus agentes, como são frequentemente as revoltas camponesas, antes contava com a protecção activa do Estado e tinha o apoio de muitos dos seus agentes. Enfim, o factor comunitário, geralmente importante nas rebeliões camponesas, teve pouca importância nesta região, onde a organização sindical levou a melhor sobre as outras formas de estruturação social. No entanto, os sucessos das estratégias comunistas e militares no Alentejo não podem ser apenas atribuídos às suas virtudes, nem somente aos mecanismos de

manipulação de massas. Com efeito, os trabalhadores rurais, parcialmente apoiados pelas classes médias locais e urbanas, reagiram favoravelmente às solicitações do Partido Comunista, dos militares e do Governo porque aquelas correspondiam a algumas das suas necessidades e das suas aspirações. Mais ainda do que a desigualdade, patente em todo o País, os traços dominantes do Alentejo eram a proletarização e a polarização excessivas. As expectativas dos assalariados rurais e a crescente ansiedade perante a crise foram mais bem acolhidas pelo Partido Comunista, que lhes oferecia sindicatos, cumplicidades no aparelho de Estado, um emprego permanente e eventualmente empresas para gerir. Em resumo: um estatuto social e a segurança. Quanto aos outros partidos, pareciam apenas ter para oferecer promessas de democracia. Era pouco e, na região, o seu sucesso ressentia-se disso. A democracia política não era a mais premente das necessidades dos assalariados rurais. Aliás, já gozavam das liberdades públicas desde o golpe de Abril. A iniciativa revolucionária adaptou-se bem a esta região polarizada do latifúndio. Privados do apoio do Estado, os proprietários e as classes capitalistas reagiram pouco e foram facilmente derrotados. Já não tinham a legalidade para proteger a sua propriedade. Pelo contrário, os trabalhadores tinham a força e uma certa legitimidade para atacar a propriedade. Foi o que fizeram. Apesar de ter sido provocada pelas mudanças políticas nacionais, a reforma agrária alentejana adquiriu pouco a pouco uma certa autonomia, acabando por se revelar uma verdadeira conquista territorial com real poder económico. As transformações sociais e económicas na região transformaram-se numa espécie de revolução dentro da revolução. Em paralelo com a descolonização, foi certamente a mais profunda mudança provocada pelo processo revolucionário dos anos 1974 a 1976.

Na região nasceu uma nova organização social e económica, inspirada nos princípios do colectivismo e consagrando a propriedade estatal dos meios de produção e da terra. É certo que estes modelos foram impostos pelo poder político, pela legislação e pela administração. Mas também é certo que, na região, não encontraram obstáculos à altura. Os camponeses e os pequenos e médios agricultores, minoritários no Alentejo, não tiveram força suficiente para reivindicar a divisão das terras. Para os sindicatos e para os trabalhadores que tinham ocupado herdades, o colectivismo apresentava-se ou era entendido como a única maneira possível de organizar a produção. Era sobretudo considerado como o meio mais seguro de garantir a sua principal aspiração, a de um salário permanente. Todavia, a reforma agrária revolucionária e algumas das suas conquistas mais marcantes não resistiram à derrota política do plano nacional. Na tormenta, a fraqueza do movimento de reforma agrária apareceu em plena luz. Aquela resultava em primeiro lugar do seu carácter essencialmente regional. A maior parte do mundo rural, cerca de três quartos da população, que forneciam uma proporção ainda mais elevada da produção agrícola nacional, não se identificou com esta reforma agrária. Fora do Alentejo, as populações receavam-na e foram sensíveis aos argumentos das forças políticas que a combatiam. Em segundo lugar, tanto no Alentejo como no resto do País, a reforma agrária alienou os camponeses e os pequenos e médios agricultores. Mesmo quando são pobres, os camponeses respeitam a propriedade dos outros porque querem que se respeite a deles. Quando se lançam ou atacam a propriedade privada, na Europa ou noutros continentes, trata-se geralmente de terra usurpada, terra que foi deles ou dos seus antepassados, da comunidade ou de todos; e, quando o fazem, a primeira intenção é dividi-la ou ter o seu usufruto como camponês,

não como assalariado ou membro de um colectivo. Ora, para os trabalhadores do Alentejo, a propriedade não tinha valores «morais» nem simbólicos e não tinha outro interesse que não fosse a garantia do salário. Tanto mais que não sabiam servir-se individualmente da terra e que as condições agrícolas e a ecologia regionais não se prestam imediatamente à reconversão baseada na empresa familiar. Finalmente, o movimento revolucionário e a nova organização colectivista dependiam da existência de um governo favorável e de políticas sociais e económicas adaptadas às novas circunstâncias. Ora, quando as eleições alteraram o poder político e os militares radicais foram substituídos por uma corrente mais moderada, a reforma agrária, tal como tinha sido conduzida até então, foi contrariada por projectos bem diferentes ou mesmo hostis. As concepções sectárias que tinham prevalecido não só limitaram consideravelmente as bases sociais da reforma agrária como tomaram impossíveis revisões e novos acordos. O curso da revolução começou por atingir, com sucesso, os interesses dos proprietários e das classes capitalistas, sem suscitar muitas oposições. Depois ameaçou as classes médias, a pequena burguesia e os camponeses. Foi aqui que a revolução foi travada. Os modelos colectivistas e as respectivas formas de organização social e política ameaçaram os fundamentos da democracia pluralista e os interesses de parte importante da população. Os partidos políticos e os militares moderados reagiram e encontraram facilmente o apoio popular necessário. As classes médias, que tinham sido decisivas para a revolução, foram-no igualmente para a contra-revolução, desde que sentiram ameaçados os seus próprios interesses. Não se tratou, aliás, de uma verdadeira contra-revolução: numerosas medidas tomadas anteriormente e algumas das novas situações criadas mantiveram-se e não foi exercida

repressão contra os revolucionários. A oposição à revolução foi buscar à reforma agrária alguns dos seus argumentos. Mas não foi essa a sua principal motivação, que decorreu da evolução política geral. Com efeito, todos os partidos não comunistas e uma parte importante da sociedade, largamente maioritária do ponto de vista eleitoral, sentiram-se ameaçados e consideraram que as liberdades públicas estavam em perigo. A verdade é que estava em causa a fundação do regime democrático. Durante um ano, militares e seus aliados civis fizeram as leis, interpretaram-nas e aplicaram-nas sem outra legitimidade que não fosse a da própria revolução. Esta acumulação era uma das fontes de despotismo. Nunca ao poder revolucionário faltaram as formas legais, mas aquele era frequentemente arbitrário na medida em que o direito era incerto e imprevisto. Não estava cabalmente garantida a segurança dos cidadãos porque o poder não era sempre exercido em conformidade com leis conhecidas. O direito dependia de relações de força quotidianas e não institucionalizadas. A princípio ganharam os mais ousados, finalmente os mais fortes levaram a melhor. Comunistas, militares radicais e outros grupos de extrema-esquerda confrontaram-se com a reacção relativamente limitada dos proprietários e dos empresários, mas sobretudo com a reacção maciça dos partidos políticos, dos militares moderados, dos camponeses, da pequena burguesia e das classes médias, não tendo faltado um muito forte contributo do mundo do trabalho. Minoritária e sem apoio externo, a revolução das vanguardas falhou. O Movimento das Forças Armadas e o Partido Comunista percorreram sucessivamente caminhos coincidentes, concorrentes e opostos. Enquanto caminharam juntos, a revolução triunfou. A sua separação foi a primeira derrota dos revolucionários. A segunda foi a oposição de uma real

maioria popular, descontente com as tendências sectárias prevalecentes. Finalmente, na prova eleitoral, a revolução perdeu, como acontece quase sempre. Deixou todavia na sociedade traços indeléveis. Os Portugueses descobriram a diferença política e a conflitualidade; compararam os riscos da revolução com os do arcaísmo e os riscos da liberdade com os da ditadura.

ANEXO

AGRADECIMENTOS

As investigações que deram origem a este livro (e à tese de doutoramento) foram efectuadas no Gabinete de Estudos Rurais, da Universidade Católica de Lisboa, entre 1979 e 1982. A duração do projecto e a diversidade dos estudos realizados tornaram-me devedor de colaborações, apoios e informações cujo inventário é considerável. A Faculdade de Ciências Humanas, da Universidade Católica de Lisboa, o seu director de então, o Prof. Mário Pinto, e a Fundação Friedrich Naumann, que apoiou a Universidade, permitiram-me estudar e fazer os necessários inquéritos durante quase três anos, em toda a liberdade, assim como dirigir o improvisado Gabinete de Estudos. A Universidade Nova de Lisboa, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, concedeu-me um ano de equiparação a bolseiro e outro de licença sem vencimento. O Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa, e o seu director, o Prof. Adérito Sedas Nunes, deram-me tempo e coragem. Dos membros do Gabinete de Estudos Rurais (e especialmente Maria José Nogueira Pinto, Ana Barros, Teresa Almada, Maria João Costa Macedo, Francisco Azevedo e Silva e Margarida Moura) apenas tive colaboração da melhor. Dos professores da Universidade de Genebra e dos membros do júri de doutoramento tive apoio e confiança, mas também crítica e severidade, além de uma lição de hospitalidade académica. Devo distinguir os Profs. Roger

Girod, Christian Lalive D’Epinay, Paul Guichonnet e Elimane Kane. Vários amigos ajudaram-me com comentários, discussões e a leitura de alguns capítulos: Maria Filomena Mónica, Vasco Pulido Valente, Adérito Sedas Nunes, Manuel Lucena, Fernando Gomes da Silva, Carlos Portas, Luís Filipe Salgado Matos, Manuela Nogueira e Joëlle Kuntz. Algumas pessoas abriram portas difíceis ou forneceramme informações úteis: o então presidente da República, general Ramalho Eanes, o antigo primeiro-ministro, Dr. Francisco Sá Carneiro, o general Pedro Cardoso, na altura chefe de estado-maior do Exército, o Prof. Montalvão Marques, os engenheiros Sevinate Pinto, Fernando Gomes da Silva, Oliveira e Silva, João Cabral, Joaquim Dordio, Francisco Borba, Manuel Figueiredo e Alberto Guerreiro dos Santos; os agricultores Sebastião Lourenço, Mendes Dias, António Mata e Projecto. Também certas instituições, como tal, merecem agradecimento por colaborações de diversa ordem: o Estado-Maior do Exército, o Ministério da Agricultura, a EPAC, o Instituto Nacional de Estatística, a Direcção Regional de Agricultura do Alentejo, a Direcção de Crédito Agrícola do Banco Pinto & Sotto Mayor, o Instituto de Gestão e Estruturação Fundiária, a Liga dos Pequenos e Médios Agricultores do Distrito de Évora, a Confederação dos Agricultores de Portugal, os secretariados distritais das unidades colectivas de produção, os Sindicatos dos Trabalhadores Agrícolas dos Distritos de Évora, Beja e Portalegre, o Partido Socialista e o Partido SocialDemocrata. Agradeço finalmente as pessoas que colaboraram comigo e com o Gabinete de Estudos Rurais através da publicação de trabalhos autónomos mas por mim encomendados: José Pacheco Pereira, Manuel de Lucena, Maria João Costa Macedo, Maria José Nogueira Pinto e Teresa Almada.

SOBRE AS FONTES E OS MÉTODOS

O tema deste projecto era: «O processo de reforma agrária em Portugal durante o período revolucionário de 25 de Abril de 1974 a 30 de Julho de 1976». Foi indispensável proceder a uma análise de antecedentes imediatos, assim como das estruturas sociais e agrárias. Mas o acento tónico do trabalho está no processo concreto e datado, nas suas causas e no desenrolar dos acontecimentos. Isto foi feito em detrimento de outros aspectos, tais como as consequências económicas ou os efeitos sociais e políticos mais duráveis da reforma agrária. Dada a natureza do objecto de investigação, o trabalho está geograficamente limitado às regiões do Ribatejo e do Alentejo que constituem a Zona de Intervenção da Reforma Agrária. No entanto, são feitas numerosas referências a acontecimentos de carácter nacional. Era com efeito necessário, não sendo possível separar a reforma agrária da revolução política. Trata-se, aliás, de uma evidência deste trabalho: a revolução política desencadeou a reforma agrária e os movimentos sociais que lhe são próprios. Sem o golpe de Estado de Abril de 1974 não teria havido reforma agrária. Os limites cronológicos do trabalho estão claramente definidos e foram impostos pela realidade dos fenómenos estudados. O 25 de Abril de 1974 não precisa de justificação. O mês de Julho de 1976 é em certo sentido o fim da transição para o regime democrático. Com efeito, entre Abril e Julho desse ano o País dotou-se dos atributos de um sistema constitucional: uma Constituição, um

Parlamento eleito, um presidente da República eleito, um Governo constitucional responsável perante o Parlamento e um regime de garantias, direitos e liberdades dos cidadãos. A partir de Julho de 1976, o Estado de direito leva a melhor definitivamente sobre a «legitimidade revolucionária» que tinha prevalecido até então. A escolha da narrativa como método de exposição não se deve apenas às preferências pessoais, mas também à natureza do objecto. Trata-se de um processo social e político, tanto regional como nacional, com desenvolvimentos múltiplos e rápidos. É um período muito vivo e muito rico em acontecimentos e mudanças, cuja evolução tem ela própria um significado. É um pouco de história social global, mas concentrada num lapso de tempo reduzido. Foi todavia necessário recortar a realidade segundo certos temas e instituições, a fim de analisar as componentes do processo global. Foi o que se tentou, sobretudo nos capítulos que tratam de organizações. Dado que houve ruptura política, não foi difícil marcar o princípio do período a estudar. Todavia, uma boa parte do que aconteceu supõe, evidentemente, uma história anterior, estruturas sociais e um «caldo de cultura». Por essa razão, a primeira parte tenta passar em revista esses antecedentes. Privilegiaram-se os factos e os acontecimentos que tinham relações directas e indirectas, mas efectivas, com o objecto de investigação. Não é pois um «resumo» exaustivo da história de Portugal no século XX. Pelo método e pelo objecto, este livro constitui uma espécie de história contemporânea. Mais: um pouco de história do presente. Daqui resultam vários problemas. Em primeiro lugar, não vale a pena escondê-lo, perde-se a distância histórica que permite maior sedimentação dos factos. Esta questão, milhares de vezes mencionada na literatura de ciências sociais, não é um obstáculo absoluto.

Mas é uma dificuldade com a qual se deve viver. A proximidade tem todavia a vantagem de permitir o contacto directo com os vivos e com as testemunhas dos acontecimentos. Isto, do ponto de vista das fontes, tem um valor inestimável, embora nunca suficiente. O facto de muitos dos protagonistas estarem vivos tem no entanto outras consequências e cria novas dificuldades. Com efeito, ficam por resolver necessidades contraditórias. Por um lado, não atentar contra a discrição obrigatória num trabalho académico, evitar causar prejuízos às pessoas interessadas e não divulgar certas fontes voluntariamente discretas. Por outro lado, identificar, datar e localizar factos e acontecimentos históricos. Não parece desejável disfarçar as identidades, nem é aconselhável que um estudo como este aprofunde excessivamente os itinerários políticos pessoais tão próximos de nós. O leitor verá que se tentou uma solução com peso e medida, não sei se conseguida. Os nomes das instituições, das organizações e das pessoas constituem referências necessárias porque identificam frequentemente a natureza das acções. Por outro lado, nos grandes movimentos colectivos, os papéis individuais surgem, talvez paradoxalmente, com extraordinária força e rara dimensão. Os movimentos ditos de massas forçam muitos indivíduos a sair do anonimato. Assim é que a maior parte das referências pessoais feitas neste livro têm fontes públicas, isto é, jornais, documentos filmes e livros conhecidos ou detectáveis. De tudo isto decorre a necessidade do rigor na interpretação e da fidelidade na narração: é, finalmente, uma dificuldade que tem vantagens. Tomei frequentemente o ponto de vista institucional. Isto não quer dizer que despreze ou subestime as «pressões da base», a influência dos movimentos sociais difusos ou dos movimentos de massas não organizados. Mas a verdade é que a acção mais eficaz se desenrolou nas organizações e

através das instituições. Foram pois estes «sujeitos» e estes «meios» que foram objecto de muito particular atenção: organismos administrativos, unidades militares, partidos políticos, associações e outros. O trabalho mostra, aliás, como a actividade organizada dos indivíduos e dos grupos se sobrepôs claramente à acção espontânea ou anónima dos indivíduos e das massas. Talvez seja útil esclarecer que as instituições do Estado não revelaram uma coesão permanente, e ainda menos pensamento monolítico ou conduta inequívoca. Com efeito, a revolução, as mutações e a mudança atravessaram as instituições e várias vezes as transformaram. A primeira preocupação deste trabalho é a interpretação. Não tentei reconstruir exaustivamente a história, nem encontrar a verdade quantificada. Procurei conhecer o maior número possível de acontecimentos e factos; encontrar-lhes um sentido, mais do que uma finalidade, e dar deles uma interpretação plausível. Do ponto de vista dos métodos e das vias de inquérito, adoptei uma aproximação múltipla combinando várias técnicas e todas as fontes acessíveis: documentos, arquivos, imprensa, questionários individuais directivos, entrevistas abertas, questionários institucionais, sondagens e análise estatística. Todavia, nenhum inquérito em particular é objecto, nesta exposição, de um relato pormenorizado dos procedimentos e dos resultados. A narrativa apoia-se sobre todas as fontes e todos os inquéritos ao mesmo tempo. Os trabalhos sectoriais e temáticos estão disponíveis ao público, seja em livraria, seja na Universidade Católica. Além da literatura existente, as diferentes fontes e os vários inquéritos de que me servi são os seguintes: a) A legislação e os actos administrativos, incluindo os debates da Assembleia Constituinte. As fontes são os diversos diários oficiais e compilações várias. Em plena

revolução, o número de decretos, portarias e despachos governamentais é impressionante. O seu estudo permite seguir a evolução política de maneira precisa; b) Documentos de toda a espécie, públicos ou privados, em particular: os arquivos de vários serviços do Ministério da Agricultura; arquivos de correspondência e de informações do Estado-Maior do Exército, da Região Militar Sul e de algumas bases militares da região; arquivos e correspondência de algumas associações, nomeadamente a Liga de Pequenos e Médios Agricultores de Évora, certas associações livres de agricultores e a Confederação dos Agricultores de Portugal; actas de reuniões dos corpos dirigentes de várias associações e de organismos oficiais, designadamente: a Liga dos Pequenos e Médios Agricultores do Distrito de Évora, o Conselho Regional de Reforma Agrária de Beja, a comissão distrital rural do distrito de Setúbal, a comissão de intensificação cultural; documentação e propaganda de partidos; documentação, manifestos e propaganda dos sindicatos agrícolas; publicações do Instituto Nacional de Estatística; levantamentos de contabilidade e movimento de vários organismos, especialmente da Empresa Pública de Abastecimento de Cereais (EPAC); c) Ficheiros de vários organismos oficiais relativos a herdades, empresários, reservas e unidades colectivas de produção ou cooperativas; d) Análise da imprensa quotidiana e semanal, nacional, regional e local, de 1974 a 1976 (33 títulos); e) Inquérito por questionário fechado junto de 500 proprietários e empresários cujas herdades tinham sido ocupadas. Os questionários incluíam três grupos de perguntas: situação pessoal do proprietário; características e estado das herdades antes da ocupação e da expropriação; circunstâncias da ocupação;

f) Inquérito por questionário fechado às cooperativas e unidades colectivas de produção: num total de 600 entidades, 500 questionários enviados, cerca de 300 recebidos. Solicitava-se aos responsáveis a resposta a questões de facto: áreas, dimensões, produções, etc.; g) Entrevistas não directivas de 51 pessoas seleccionadas entre dirigentes formais, estudiosos, líderes informais, «informadores» qualificados e especialistas da região: proprietários, sindicalistas rendeiros, seareiros, técnicos, dirigentes associativos e dirigentes de unidades colectivas; h) Inquérito por questionário junto de 1462 pessoas residentes em 12 freguesias da zona de intervenção e representativas da região. A amostra foi dividida em seis categorias socioprofissionais, das quais cinco ligadas à agricultura. A utilização de diversas fontes documentais permitiu verificar numerosos factos, em particular os relatados na imprensa. Os acontecimentos revolucionários, pela importância do que está em causa e pela emoção com que são vividos, são vistos e relatados nas mais variadas e até opostas versões pelos que neles estão envolvidos. Não se trata apenas de uma questão de interesses. Não há sequer consenso quanto às noções de legalidade e legitimidade. Em grande parte, prevalecem as relações de força em detrimento de regras ou normas codificadas. Aliás, o próprio golpe de Estado, na génese dos acontecimentos supervenientes, é uma derrogação das leis em vigor e conduz à revogação imediata da Constituição. A instauração de uma nova legalidade demorou muito tempo, tanto mais que os critérios de legitimidade revolucionária se sobrepunham claramente à lei escrita. Foi em grande parte com estes critérios que se avaliaram e relataram factos e comportamentos. Estes eram julgados mais em função do estatuto social ou da posição política

dos seus autores do que dos seus méritos próprios. Os fenómenos de rejeição ou identificação de grupo presidiram à apreciação dos factos e à formação da opinião mais do que em condições de estabilidade. Nestas circunstâncias, a verificação das fontes impôs-se a todos os estádios da investigação. A utilização da imprensa revelou-se muitíssimo útil. Era impressionante a massa de informações veiculadas pelos jornais, pela rádio e pela televisão. Todos os grupos que desejavam ter uma intervenção, contra ou a favor da revolução, ou simplesmente na defesa dos seus interesses e ideias, faziam-no também por intermédio da imprensa. Jornais foram ocupados, tomados, comprados ou fundados. Partidos, sindicatos, associações e grupos de pressão tinham os seus jornais. Estes relatavam tudo. Parecia não haver segredos nem imprevistos. Chegaram a anunciar-se, com antecedência razoável, golpes de Estado, ocupações de terras e «assaltos» a instituições. A imprensa de Estado desempenhou um papel de relevo, não só pelo número de títulos e pela importância das tiragens, como pelo facto de traduzirem os pontos de vista dos grupos que mais força tinham nos órgãos políticos em determinado momento. Não eram, todavia, apenas oficiosos: com efeito, a instabilidade e a heterogeneidade do Governo e das forças armadas repercutiam-se na linha editorial e no conteúdo dos jornais. A imprensa publicava, evidentemente, proclamações e tomadas de posição, debates lógicos e artigos de opinião. Mas o mais importante era a informação. Todos os meios de comunicação modernos foram utilizados e aproveitados. Que tal se deva a uma qualquer singularidade, ou simplesmente ao estado de desenvolvimento das tecnologias e da organização da informação, o facto é que a imprensa esteve extremamente activa e interveniente nesta revolução. Mais ainda: houve uma batalha pela informação, neste sentido

de que todos os grupos tudo tentaram para conquistar os meios de comunicação e informação. Esta situação exigiu precauções especiais sobre a validade e a confiança que mereciam as informações. Com efeito, estas eram frequentemente o espelho dos seus autores e reflectiam os seus desejos e interesses de modo pouco razoável. Foram assim feitas verificações a propósito dos factos significativos. Uma coisa é certa: apesar da ideologia, das deformações deliberadas e de eventuais manipulações, a imprensa revelou-se fonte inestimável e inesgotável para o estudo da sociedade e do processo de mudança. Está lá quase tudo. No entanto, as fontes públicas e divulgadas pelos media podem privilegiar os porta-vozes e os dirigentes. São igualmente significativos, na medida em que aqueles orientaram a acção e modelaram as transformações. Mas tais fontes não constituem toda a realidade. Eis a razão por que se levaram a cabo vários inquéritos (por questionário e entrevista) com o objectivo de detectar percepções, avaliações e comportamentos mais generalizados. Note-se que existe uma vasta zona de coincidência entre a expressão pública e a imagem generalizada dentro de um mesmo grupo social. O que estava em causa era público e transparente; as opções eram bem demarcadas; a oposição de interesses era frontal. Forças e aspirações estavam polarizadas, as consciências individuais e colectivas estavam frequentemente em sintonia. É verdade que as percepções de situações vividas ou contemporâneas mais ou menos estáveis parecem mais diversificadas do que as relativas a momentos revolucionários e respectivas lutas. Dir-se-ia que, durante uma revolução ou no decurso de transformações fundamentais, nem sempre se pensa o que se quer, mas o que se pode.

PERIÓDICOS CONSULTADOS

Diários A Capital (Lisboa). A Luta (Lisboa). O Diário (Lisboa). Diário do Alentejo (Beja) Diário da Assembleia Constituinte. Diário da Assembleia da República. Diário do Governo. Diário de Lisboa. Diário de Notícias. Diário Popular. Diário da República. Diário do Sul (Évora). Jornal do Comércio (Lisboa). Jornal Novo (Lisboa). O Comércio do Porto (Porto). O Primeiro de Janeiro (Porto). O Século (Lisboa). Semanários e outros Análise Social (Lisboa). Avante! (Lisboa). Boletim da Liga dos Amigos de Abrantes (Abrantes). Boletim do Ministério da Justiça (Lisboa). Boletim do Ministério do Trabalho (Lisboa). Boletim do Movimento das Forças Armadas (Lisboa). Jornal do Agricultor (Lisboa). Jornal de Alcácer (Alcácer do Sal).

Jornal do Sul (Setúbal). O Camponês (clandestino). O Distrito de Setúbal (Setúbal). O Expresso (Lisboa). O Militante (Lisboa). O Povo Livre (Lisboa). O Sorraia (Coruche). Portugal Socialista (Lisboa).

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