Amazônia: Natureza, Homem e Tempo

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·rEMAS

BRASILEIROS

Direção de Arthur Cezar Ferreira Reis 1.

&xodo Rural no Brasil, de José Francisco de Camargo

2.

Amazônia -

3.

A Insurreição Praieira, de Edison Carneiro

4.

O Outro Nordeste, de Djacir Menezes

5.

Formação Histórica do Acre, de Leandro Tocantins

6.

História Social e Política do Brasil, de Arthur Cezar Ferreira Reis

7.

Tropas e Tropeiros na Formação do Brasil, de José Alípio Goulart

TEMAS BRASILEIROS

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LEANDRO ' roCANTINS--~

natureza, homem e tempo, de Leandro Tocaatins

O Grande Sertão em Perspectiva, de Luiz Leduc História de Mato Grosso, de Virgilio Correia Filho · Itinerário e Integração da Amazônia, de Arthur Cezar Ferreira Reis

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AMAZONIA NATUREZA, HOMEM E TEMPO

LEANDRO TOCANTINS

MAZONIA NATUREZA HOMEM E TEMPO

2

O mapa-ornamento da capa dos volumes desta coleção, que visa ao conhecimento do Brasil sob os mais variados ângulos, guarda-se em cópia na mapoteca do Itamarati. As côrcs que o av,i vam c distinguem são as côres por que figura no original, existente em Londres, no Museu Britânico, sob a cota Add. Ms. f4 065 e a insc1'ição "Mappe 11wndi manttsC?"ite sur parchemin, dattée à Arques, 1550". Como tôdas as cartas de seu tempo, não representa apenas o mundo físico sôbre que se colhiam e registravam os primeiros contornos e os p1·imeiros acidentes constatados, mas, igualmente, todo o fantasioso da fauna, da flo1·a e das humanidades em revelação. Seu autor, o cartógrafo diepense Pierre Descaliers, é considerado o criador da hidrografia f1·ancesa. Viveu na N ormândia e elaborou outras peças que lhe asseguraram nomeada. Sob influência dos cartógrafos portuguêses, que lattçaram as bases de uma obra de cultura sob técnicas próprias, suas cartas reproduziram o que aquêles homens de ciência estavam indicando nos mapas e atlas que elaboravam, enriquecidas, porém, com os elementos novos que se deviam aos navegadores franceses.

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COLEÇÃO TEMAS BRASILEIROS Sob a direção de Arthur Cezar Ferreira Reis 1.

~xodo Rural no Brasil, de José Francisco de Camargo

2.

Amazô'll.ia- natureza, homem e tempo, de Leandro Tocantins

3.

A Insurreição Praieira, de Edison Carneiro

4.

O Outro Nordeste, de Djacir Menezes

5.

Formação Histórica do Acre, de Leandro Tocantins

6.

História Social e Política do Brasil, de Arthur Cezar Ferreira Reis

7.

Tropas e Tropeiros na Formação do Brasil, de José Alípio Goulart O Grande Sertão em Perspectiva, de Luiz Leduc História de Mato Grosso, de Virgilio Correia Filho Itinerário e Integração da Amazônia, de Arthur Cezar Ferreira Reis

*

CONQUISTA Av. 28 de Setembro, 174 Brasil

Rio de Janeiro 1960

TEMAS

BRASILEIROS-VOLUME

2

A

A M A Z O N I A -Natureza,

OBRAS DE

LEANDRO TOCANTINS

PUBLICADO:

O RIO COMANDA A VIDA (Uma interpretação da Amazônia) Editôra A Noite, 1952 (esgotado). A sair: 2. a edição, revista e aumentada EM PREPARO:

FORMAÇÃO

HISTóRICA DO

ACRE

A PUBLICAR:

O GUARANÁ AMAZôNICO (visão histórico-social) INGLE:SES NA AMAZôNIA UM HOLANDE:S NA AMAZôNIA PELO CORPO E BRAÇO DAQUELES RIOS

~OYAUME DES

AMAZONES

Homem e Tempo

LEANDRO TOCANTINS

.....

AMAZONIA Natureza, Homem e Tempo +. As ilustrações a traço constantes desta edição foram extraidas do livro O MEU DICIONARIO DE COUSAS DA AMAZONIA, de Rayrnundo de Moraes, 2.a edição, Conquista.

I

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-

Portadas e ilustrações de Israel Cysneiros

INDICE Intróito . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . maneira de prefácio . . . . . . . . . . . . . . . .

À

. . . . . .. . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . .

19t 23.

PRIMEIRA PARTE

I II III IV

-

O espaço físico-social . . . . . . . . . . . . . . . . . . O processo econômico . . . . . . . . . . . . . . . . . . Crônica das gentes, das plantas, dos animais . . A técnica de produção e o comércio exterior . . . .

.. .. .. .. ..

31 57 81 117

SEGUNDA PARTE

V VI VII VIII

-

Revelação e consagração da borracha Seringa, seringal e seringueiro . . . . . . . . A civilização da borracha . . . . . . . . A outra Amazônia ..

Bibliografia . . . . . . . . . . . .

149• 163. 185 213.

237.

ILUSTRAÇõES

'

Curupira . . . . . . . . . . . . . Tucano.. . . . . . . . . Tanajura . . . . . . . . . . . . Tipiti . . . . . . . . . . . . . . fndio mundurucu . . . . . . . fndio jurupixuna . . . . . . . Outro índio jurupixuna . . . Aves.. . . . . . . . . . . . . . . Jaquiranabóia . . . . . . . . .

15 23 28 29 31 35 41 47 55

Pescando com timbó . . . . . fndia jurupixuna . . . . . . . Fiação colonial . . . . . . . . Apulzeiro . . . . . . . . . . . . Arara . . . . . . . . . . . . . . O homem e a tartaruga . . . Pássaro . . . . . . . . . . . . . Flora . . . . . . . . . . Armas . . . . . . . . . . . . . .

57 63 69' 80 81 8591 95 99'

1.0

LEANDRO TOCANTINS

Danças . . . . . . . . . . Instrumentos de música . . . Objetos indígenas . . . . . . Muiraquitãs . . . . . . . . . . Indústria de cuias . . . . . . J>lano da cidade do Pará . Indústrias coloniais . . Cobras e jacarés . . . . Quelônios . . . . . . . . Lagarto . . . . . . . . Pajé . . . . . . . . . . . . .Jaburu . . . . . . . . . . 'Teatro da Paz e Pôrto de Belém . . . . . . . . . . . . • Murucututu . . . . . . . . . . Onça pintada . . Seringais . . . . . . ·. . . . .

103 107 113 119 123 131 133 139 143 146 147 149 155 161 163 169

Macacos . . . . . . . . . . . . . J acamim . . . . . . . . . . . . Urna funerária . . . . . . . . Teatro Amazonas e Palácio do Govêrno do Pará . . . Cerâmica . . . . . . . . . . . Peixes . . . . . . . . . . . . . . Navegação de ontem e de hoje . . . . . . . . . . . . . Tanga . . . . . . . . . . . . . . Bôto . . . . . . . . . . . . . . . Peixes . . . . . . . . . . Borboletas . . . . . . . . Casa-grande paraense . . . . Crendices . . . . . . . . . . . . Bumba meu boi . . . . . . . Caititu . . . . . . . . . . . . . Camaleão . . . . . . . . . .

177 183 185 191 195 201 207 211 213 215 217 223 229 235 239 24 7

A MINHA MÃE

A Amazônia é um tema permanente, seja como capítulo de literatura seja como assunto a exigir a atenção dos homens de govêrno. Neste livro, seu autor, ensaísta LEANDRO (GóEs) TOCANTINS, adota uma .atitude realista com relação a ela, fugindo do sensacionalismo para preferir a interpretação objetiva, que indique a região no que tem contribuído para a projeção do Brasil e no que vem sendo o trabalho de gerações para possuí-la e explicá--la. Nascido em Belém do Pará, filho de chefe de Casa Aviadora, na capital paraense, criança, ainda, foi com a família para o rio Tarauacá, Território do Acre, onde o pai também era proprietário de seringais, jazendo, na antiga cidade de Seabra, hoje Tarauacá, o curso primário. Em Belém, prosseguiu os estudos, concluindo o curso de Humanidades no Instituto Nossa Senhora de Nazaré, dirigido pelos Irmãos Maristas. No Rio de Janeiro, freqüentou o antigo Colégio Universitário da Praia Vermelha e o Colégio Pedro li. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade Nacional de Direito e em Jornalismo na Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil. Exerceu as funções de Assistente de Direção no Gabinete do Superintendente do Plano de V alorização Econômica da Amazônia, em Belém. É diplomado pela Vande'rbilt University, U. S. A., em planejamento regional. Possui o Curso da Escola Superior de Guerra. Suas funções efetivas são as de Procurador da Caixa Econômica Federal do Estado do Rio. É Membro da Comissão Brasileira de Turismo. Escreve11; "O rio comanda a vida", ensaio interpretaf(f:vo da Amazônia, a sair, 'breve, em 2.a edição, e tem em preparo "Formação Histórica do Acre" . ~xótica,





A

AMAZONIA Natureza, Homem e Tempo

' Curupira

"1: desmesurada a cópia das mais lisonjeiras produções e comodidades que a natureza campestre oferece no Pará à Medicina e às Artes. Porém é preciso convir que os seus moradores não colhem todo o benefício possível dessas imensas liberalidades, que a mão do Supremo Regulador do Universo derramou por entre as selvas, pelos vales, campinas, cavernas, grutas, outeiros, montes, serras, rios e lagos." ANTÔNIO LADISLAU MONTEIRO BAENA

"Ensaio Corográfico" "0 meu grande, o meu principal empenho é supreender o Homem, criador da História, no seu meio social e no seu meio físico, movendo-se e vivendo nêles, como o peixe no seu meio líquido ou a ave entre as ondas impalpáveis do éter, em que circula." ÜLIVEIRA VIANA

"Evolução do povo brasileiro" o tempo da História, realidade concreta e viva " abandonada ao seu impulso irrevertível, é o próprio plasma em que se banham os fenômenos e algo assim como o lugar de sua inteligibilidade." MARc BLOCH "Introdução à História"

'

INTRóiTO

Maloca

'

INTRóiTO A Amazônia tem tido um destino singular: oferecer ao mundo elementos de que êsse mesmo mundo se vem valendo para erigir condições de bem-estar material e espiritual, sem que se lhe criassem idênticas condições existenciais. Todo o processo de formação e de desenvolvimento daquela região está vinculado a essa constante. Desde o período em que os inglêses, holandeses, franceses, espanhóis e portuguêses, em disputa militar e em concorrência mercantil, se lançaram à grande emprêsa de descobrir, penetrar, dominar politicamente a região, impondolhe soberania européia e criando o empório de matéria-prima que satisfizesse as exigências dos mercados consumidores do Velho Mundo, aos nossos dias, quando o próprio Brasil vê, na Amazônia, a sua imensa reserva de produtos primários essenciais à sua caminhada no campo da industrialização. Em nenhum momento histórico, a Amazônia viveu distante dêsse estado de ser . Em nenhum momento, seus homens realizaram qualquer façanha para libertá-la, impondo-se como vontades e como iniciativas capazes de trazê-la a uma nova situação e a um novo estágio social e econômico. Sim, porque realizando uma economia de coleta e nunca de utilização imediatista na sua transformação, não puderam estabelecer a sociedade estável, criadora, que desse de si a prova de capacidade para dominar o espaço geográfico na brutalidade física por que êle continua a apresentar-se. Quando falamos, pois, em civilização amazônica, queremos referirnos, principalmente, ao período de maior ativação daquele ciclo extrativo, que permitiu a construção de duas cidades, tentaculares para a região, centros urbanos que se ilustraram nos anais brasileiros pela vida intensiva da época de bonança, de euforia endinheirada, e numa sensibilidade de características distintas que foi fruto da ação, nem sempre prudente, das sociedades locais, na sua ânsia de propor-se pela afirmação de permanência, de criação espiritual e material refinada. Houve, é certo, momentos anteriores, ao longo dos quais se verificou

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LEANDRO TOCANTINS

a primeira corrida ao sertão, mas a elaboração da grande emprêsa comercial que parecia sem fim, essa ocorreu no decorrer da ofensiva contra a floresta para a formação dos seringais. Não cristalizou no propósito da estabilidade, que encerrasse o aventureirismo dos dias do rush gomífero, mas assegurou um tonus novo ao Brasil. A Amazônia, encerrado o ciclo faustoso, rápido, rotinizou-se, como outras partes do mundo que entram em decadência ao perderem a projeção que certos produtos, em especial os da atividade mineradora, lhes haviam granjeado momentâneamente. E não _a presenta, do que chamaríamos de civilização amazônica, senão os vestígios materiais, representados nas duas cidades que haviam comandado a era da borracha. Seu destino de fornecedor de matéria-prima voltou a confirmar-se. Manteve-se. Leandro Tocantins, num livro anterior, "O Rio Comanda a Vida", deu-nos, numa interpretação de conjunto, o retrato da imposição das fôrças físicas da natureza amazônica, exuberante e enganosa, sôbre o homem. O rio imenso não fôra vencido pela sociedade que se formara à sua margem. Ao contrário, êle é que continuava a dominar, vitorioso, sobrepondo-se às fôrças de que o homem se dizia possuidor ou ao sabor de sua vontade. Em "AMAZôNIA- Natureza, Homem e Tempo", o autor oferecenos o balanço do esfôrço que êsse mesmo homem vem efetuando, através de três séculos, na luta contra a floresta, contra o clima, contra as águas, contra as doenças, contra a natureza, enfim, tentando triunfar e criar a civilização regional. Passa em revista a história social e a história econômica, os altos e baixos da vida vivida ali, os êxitos e os desenganos. O que se sente, porém, mais intensamente à leitura atenta de suas páginas, tão cheias de vida, de sabor literário, é que a Amazônia não se libertou daquele destino a que nos feferimos, prosseguindo no seu papel de região útil aos outros, ao bem-estar de regiões distantes, que se civilizaram na base de muito do que ela lhes mandou e que elas souberam manejar com a inteligência pragmática, utilitária e imediatista. O novo livro de Leandro Tocantins não é, assim, apenas, um livro de interpretação histórica do extremo-norte, mas, fundamentalmente, um lançamento da Amazônia nas suas bases sociais, econômicas e culturais, na sua projeção universal, na sua realidade como espaço que ainda não foi possível possuir para ser humanizado.

Arthur Cezar Ferreira Reis

A MANEIRA DE PREFÁCIO

Tucano

Á MANEIRA DE PREFÁCIO f'::ste ensaio é uma tentativa de interpretação histórica da Amazônia. sob aspecto um tanto quanto ecológico. O assunto que se pretende desenvolver em sua trilogia Natureza, Homem e Tempo, já em si reclama exame de fatos interrelacionados com os homens, o solo, as plantas, os animais e a História. Assunto vivamente regional, cuja trama se desenrola no "animadíssimo tapiz" (como diria o professor espanhol Francisco Ayala) do meio-ambiente amazônico, - a êle não poderia faltai· um sentido existencial, isto é, o "do homem social, em movimento, vivo, concreto, situado sob diferentes predominâncias de suas situações de relação", na forma proposta pelo sociólogo Gilberto Freyre. O homem envolvido por aquela natureza a qual Goethe sentiu "cercar-nos e colearnos por tôda a parte, arrastar-nos na sua ronda eterna, criando incessantemente formas novas". O papel que desempenha uma região para erigir novas formas de convivência humana, e, como resultante, criar valores universais, não pode ser medido sõmente por uma análise de fatos de Geografia econômica, de Estatística, ou de mera exposição de ocorrênciaa político-administrativas, e sim, com bastante ênfase, pela sondagem e interpretação de fatos de cultura. E quando se diz fatos de cultura (no sentido sociológico moderno, em que se juntam aos valores eruditos os comuns, os populares, os cotidianos, originários da vida em associação), significa o homem organizando-se no espaço, socialmente, ecologicamente, a fim de realizar o aproveitamento da natureza a favor de sua espécie. Dest'arte, no presente ensaio, o homem é a figura centralizadora, e ao seu redor giram a terra, as águas, as plantas, os animais, servindo-o segundo reéomendam as técnicas e as convenções. Intenta-se a apreensão das verdades do conjunto regional. Como os grupos humanos se ajustaram à "comunidade harmônica e natural de homens animais e plantas", usando a expressão de Ilse Schwidetzky em seu livro "Etnobiologia", como tais grupos reagiram ao meio, como utilizaram OB recursos

2&

LEANDRO TOCANTINS

do solo, da flora, da fauna, que técnicas adotaram em seu trabalho, e o que resultou dêsse esfôrço coletivo, a que se convenciona chamar de esfôrço criador do homem na humanização da paisagem. Procuro, aqui, desenvolver o tema sem intençõees de análise minuciosa (que seria tarefa para vários autores), ou de qualquer espécie de sectarismo. Simplesmente, esbôço de História social, dentro de um sentir pessoal, direi mesmo impressionista. Tentando fazer História de um modo mais amplo, mais humano. Antes de terminar, algumas palavras de explicação sôbre a minha maneira de escrever. Poderá alguém, com idéias ortodoxas, estranhar que o autor despreze umas tantas convenções de linguagem dos profissionais, e, por sua conta e risco, se lance na talvez heresia de certa liberdade literária para melhor exprimir as suas idéias, emprestando-lhes vivacidade que a própria vida sugere. E o que é a História, a Sociologia, senão a própria vida? Lembro-me de haver lido e anotado página de um dos mais lúcidos críticos literários da geração atual, Olívio Montenegro. ~le diz, com perfeita intuição, que os "métodos comuns da ciência está visto que por si só não bastariam para êsse prolongado efeito da verdade. Para que, na recriação da vida" (a História, pergunto eu, não é recriação da vida?) - "essa vida seja de uma sociedade, ou de um homem, seja vegetal ou animal - possa-se aceitar em todo o jôgo de suas afinidades, das suas mais secretas atrações, das suas profundas .simpatias, e também das suas obscuras repulsões, é preciso que não se despreze a experiência mais livre da arte" . E por que evitar certa fotfna estética em qualquer trabalho de caráter científico ou para-científico? São as maiores inteligências que proclamam ser ela inseparável aos homens de espírito. A obra de uma das expressões da sociologia no País, nome que atravessou fronteiras e se impôs à admiração dos círculos intelectuais estrangeiros, quero referirme a Gilberto Freyre, é um exemplo de como podem subsistir ao lado da ciência, o toque de artista e a sensibilidade do esteta. Em todos os seus livros (é Olívio Montenegro quem o diz) "se encontram e se completam a visão do artista e a do sociólogo ou do psicólogo". No campo da História vamos encontrar o grave Arnold J. Toynbee, afirmando que nenhum historiador poderá ser grande se não fôr simultâneamente um grande artista. E êle usa o têrmo dryasdust (sêco tal qual pó), imaginado por Si1· Walter Scott para designar historiadores laboriosos, mas enfadonhos, têrmo aplicável, segundo Toynbee, àqueles

AMAZÔNIA

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que preferiram não seguir a técnica plena de riqueza espiritual dos Gibbons, dos Macaulay. Seria uma lista bem grande a enumerar, a dos homens de pensamento que justificam a arte interferindo na ciência. J. Battista Vico relevou a faculdade artística do historiador, pois ela deve entrelaçar-se "à lógica da representação, da imaginação e da intuição". Spengler, um filósofo que, de longe, nos parece tão frio e ortodoxo, já proclamava que a História se faz poeticamente. Os ensaístas contemporâneos, no Brasil e no mundo, não se descuram em aplicar essas qualidades de argúcia e inteligência na interpretação dos fatos e em reconstituí-los, sem perder a noção real das coisas e o objetivismo científico. Não disse Gilberto Freyre, em seu Nordeste, que o livro estava escrito dentro do critério de ciência alongada em arte e mesmo em poesia? Não se valeu Sérgio Buarque de Holanda, no ensaio Raízes do Brasil, dos versos de Dante, de Garcia de Resende, de Gil Vicente, para ao lado do documentário, dar forma plástica e viva ao seu trabalho? Não está a obra de Oliveira Viana impregnada de .senso artístico? Há uma figura de historiador e de homem de letras na literatura inglêsa, Lytton Strachey, considerado o criador da biografia moderna. Antes dêle, êste gênero literário não passava, pelo menos na Inglaterra, de um panegírico, insípido, "dominado pela idéia de virtude, nobre, casta, serena", na frase de Virgínia Woolf. Foi, então, que apareceu o renovador Lytton Strachey, imprimindo o toque do humano, da harmonia das formas e das idéias. "O biógrafo à Strachey enfeita, harmoniza mas não aumenta nem altera, desfigurando-a, a estrutura de uma grande existência", diz Humberto de Campos, que, por sua vez, se vale do depoimento de um simpatizante do mestre britânico, o escritor André Maurois: "Un livre de Strachey, est avant tout une oeuvre da'rt" . E adianta, logo em seguida: "Strachey, san.s doute, est en même temps un historien exact''. É precisamente esta a sutileza a distinguir no bom historiador : ser ao mesmo tempo exato e realizar sua obra com um sentido harmônico, .acompanhando, passo a passo, a vida que, em si, é tragédia, comédia, ou drama e, portanto, o homem é, sobretudo, o que, no palco do mundo, representa vivamente sua peça, como alcançou Humberto de Campos. Por que desprezar a lição? Eu, de minha parte, desejo seguir estas idéias, que melhor .se ajustam ao meu espírito, e, particularmente, acompanho Olívio Montenegro: "É preciso que se tenha a vida não como fato de memória, mas, intensamente, como um fato de sensibilidade".

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Por isso é que, fazendo História, reconstituindo e interpretando fatos, num quadro de conjunto, dentro de suas realidades intrínsecas, penso haver feito obra também impressionista, isto é, flexível a um sistema estético (como o sente o autor) de transmitir impressões recebidas dos fatos sociais e da natureza. E impressionismo, por surpreender, através da imaginação (o físico inglês Tyndall encarece o "uso e limite da imaginação na ciência") , a vida em seu perpétuo movimento. Tudo, porém, confirmado por técnicas de pesquisa e verificação. E a propósito de restringir os vôos de espírito, vem-me à lembrança uma passagem de Cervantes, na qual Dom Quixote, apesar de sua alucinação, percebeu Vergílio e Homero transpondo a fronteira do real: "A fe que no fué tan piedoso Eneas como Virgílio le pinta, ni tan prudente Ulises como le describe Homero". Ao que o bachiller Sansón Carrasco lhe retrucou, para esclarecer o papel do historiador: "Asi és; pero uno es describir como poeta y otro como historiador: el poeta puede contar o cantar las cosas, no como fueron, sino como debian ser; y el historiador las há de escribir, no como debiam ser, sino como fueron, sin aiíadir ni quitar a la verdad cosa alguna".

PARTE PRIMEIRA

Belém do Pará, julho de 1958. L. T.

Tanajura

Tipiti

I

O ESPAÇO FíSICO-SOCIAL

1ndio mundurucu

I

O ESPAÇO FfSICO-SOCIAL Discorrer sôbre o esfôrço criador do ho0mem, sobretudo numa região de caráter geográfico tão singular, como é a Amazônia, envolve certa ordem de idéias. E o que vem ao pensamento, junto à indagação histórica, é o aspecto da interdependência entre pessoas, animais e plantas regionais, objeto do estudo de uma sociologia especial, a ecologia humana, cuja finalidade é examinar as relações vitais e espaciais entre organismos de espécies diferentes, semelhantes e divergentes, e o seu mundo ambiente. (1). Tais relações ou interrelações apresentam uma face biológica, simbiótica, traduzida na competição e na luta entre indivíduos, a chamada cooperação competidora. Para chegar a êste julgamento, os estudiosos partiram do conceito da luta pela existência, que se verifica na teia da vida, isto é, o emaranhado de todos os organismos vivos, unidos por interdependências. Ilustrando a urdidura de interrelações, é usual citar-se o exemplo clássico de Darwin, que fêz sobressair as relações complexas, desenvolvidas entre animais e plantas, na luta pela existência. Observou o naturalista inglês, que numa localidade da Grã-Bretanha a abundância de certas plantas, como o trevo vermelho, dependia do número de vespas, de ratos silvestres, de gatos e das solteironas da vila próxima. Aquela espécie vegetal, para ser fecundada, há de receber a visita de um zangão da família das mamangabas. E só êle procura o trevo vermelho, porque as outras abelhas não podem alcançar o nectar da planta. Ora, as mamangabas concentram-se nas vizinhanças de aldeias, e aí os gatos, geralmente criados pelas old maids, vêm dar cabo aos ratoSI (1) Roderick D. Mackenzie, "The scope of Human Ecology", in "The American Journal of Sociology", vol. XXXII, n. 0 1, Parte 2, 1936.

34

LEANDRO TOCANTINS

silvestres, que, em conseqüência, diminuem os seus ataques às colméias, permitindo maior reprodução do inseto. Nestas condições, conclui Darwin, "é perfeitamente possível que a presença de um animal felino, numa localidade, possa determinar a abundância de certas plantas, em razão da intervenção dos ratos e das abelhas". (2) Princípio que os sociólogos, posteriormente, estenderam a todos os tipos de organismos em luta na biosfera. J. Arthur Thompson, salientando a contribuição valiosa de Darwin, que, a seu ver, projetou na vida orgânica uma idéia sociológica, e, assim, defendeu a relevância e a utilidade de uma idéia sociológica no rein u biológico, (3) veio dar ênfase a um ponto fundamental da vida no reino da natureza. Thompson destaca o entrelaçamento, numa teia complicada, dos múltiplos organismos vivos, dinâmica natural que êle registrou do seguinte modo: "Quando se entende alguma coisa sôbre o intrincado dar e tomar, a oferta e a procura, a ação e reação entre plantas e animais, flôres e insetos, herbívoros, carnívoros e tantos outros em conflito, porém correlacionados, começa-se a pressentir algo de uma vasta organização regida por si própria". ( 4) Quem tencione compreender o mundo amazônico, sob o ponto .de vista da distribuição no espaço físico de sêres, grupos e instituições humanas, haverá de, preliminarmente, ajustar ao meio o conceito de J. Arthur Thompson. Ou aquêle, do sociólogo indiano Mukerjee, que Gilberto Freyre cita no prefácio de seu "Nordeste", propondo a "investigação de relações regionais de espaço e de alimentação e de processos de adaptação do homem à natureza, seguida pela mensuração do equilíbrio que se verifique nessas mesmas relações". Critério êste que se ajustaria ao ensaio sôbre o esfôrço criador do homem na Amazônia, tantas são as ligações, interdependências e interrelações entre os elementos do habitat, concorrendo para uma certa ordenação humana, animal e vegetal, que, na realidade, é um processo de desenvolvimento de formas especiais de grupos humanos, com alusão ao espaço físico e à sua subsistência. Gilberto Freyre vem frisar, com aquela reconhecida sensibilidade de sociólogo ecologista, o ponto de vista da ocupação humana do espaço, o qual "não nos permite ser rigorosamente fisicistas, ou naturalistas, no (2) (3) (4)

TIPOS

INDíGENAS

Charies Darwin, "A origem das espécies", Pôrto, 1946.

J. Arthur Thompson, "Darwinism and Human life", New York, 1911. J. Arthur Thompson, "The system of animate nature", New York, 1926.

fndio jurupixuna (C.o I~çao - AI exandre Rodrigues Ferreira, Btbhoteca Nacional)

AMAZÔNIA

I

37

estudo sociológico de uma região". O ilustre humanista brasileiro acha que se deve considerar como "valores, - valores do ponto de vista hqmano e relativos a condições regionais de vida e de economia - rios, composições do solo, animais, vegetais, minerais". (5) Critério, também, perfeitamente ajustável à tentativa de esboçar o quadro de valores humanos que dinamizaram a planície equatorial. Todos êsses fatôres concorrem, em maior ou menor escala, para :-:~. organização dos agrupamentos humanos no espaço, os quais, pelas suas necessidades elementares de vida extraem da natureza fontes de subsistência e de utilidade prática no meio social. E êste meio, sendo manifestação da sociedade cultural, na base da comunicação, da tradição, do consenso, nem assim deixa de repousar em uma subestrutura simbiótica, como ensinam os sociólogos: "A ecologia humana tem, entretanto, de levar em conta o fato da competição ter limite na sociedade humana, em virtude da ação, do costume e da cultura. A superestrutura cultural paira bem acima, como instrumento de direção e contrôle, da subestrutura biótica". ( 6) A ocupação humana da planície amazônica foi, de certo modo, um processo ecológico em que atuaram fatôres de geografia, fatôres políticos, econômicos, definindo-se um acento peculiar (regional, pode-se dizer), que o geógrafo norte-americano, Carl Sauer, chama de expressão cultural, ou seja, a harmonia existente entre homens ou instituiçõees humanas e a natureza regional. O que levou Gilberto Freyre a concluir por uma região habitada, tende sempre sôbre o solo "a vegetação, a vida animal, a marca especial do povo que a habite: não só na sua técnica de produção - oomo se apressaria em salientar um marxista ortodoxo -como do conjunto de sua cultura e de sua personalidade ou ethos". (7) Na Amazônia, por sua grandeza espacial, pelas condições especialíssimas do meio físico, o homem, quase inteiramente na dependência dêste. muito pouco pôde fazer a favor dessa "expressão cultural", nos primeiros séculos da colonização. Seu esfôrço perdeu-se nas imensidades florestais, no infinito dos rios. O Padre Antônio Vieira, seduzido pelo espetáculo da água, escreveu uma torrente de palavras tão cheias de vigor e de impressionismo quanto o rio que êle considerou um instrumento das Sagradas Escritu(5)

Gilberto Freyre, "Nordeste", Rio de Janeiro, 1951. Robert Park, "Human Ecology", in "The American Journal of Sociology,.., vol. XLII, n.o 1, julho de 1936. (7) Gilberto Freyre, ob. cit. (6)

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ras: "Diz o profeta que são êstes homens uma gente a quem os rios lhes :roubam a terra". Tamanha a vastidão líquida, que os cursos fluviais "infinitos e os maiores do mundo", se assenhorearam das terras. "Destroço e roubo que os rios fizeram à terra", é a imagem usada pelo genial inaciano. A água, que os economistas classificam de riqueza econômica por excelência, indispensável à vida orgânica, assume, na Amazônia, proporções extraordinárias na Geografia Física, imprimindo na ~ogr~­ fia Humana uma disciplinação social poderosa. É a estrada obngatõria, entrada para a conquista do deserto verde. Se Jean Brunhes, inspirado na Geografia Política de Ratzel (0 Estado é um pedaço de solo e Humanidade) reputou "todo assentamento humano o amálgama de um pouco de Humanidade, um pouco de solo e um pouco de água," seria lícito definir-se a Amazônia um quê de humano, um tanto de solo, e um sem-têrmo de água. Isto, usando fórmula antropogeográfica simplista, mas bastante expressiva. É natural, pois, que a paisagem- água e floresta -haja influenciado os padrões de cultura e a psicologia dos habitantes. Foi a visão impressionante que se mostrou aos olhos dos conquistadorese portuguêses vindos à Amazônia com o propósito definido de fundar núcleos popu' . }acionais, embora disfarçados, na sua primeira fase, pelo forbm, ne:essário à defesa militar, (o caso do Forte Presépio de Belém) . Uma paisagem cheia de dificuldades para humanização. A floresta compacta, os rios formidáveis, internados por entre ela. Mas, acentue-se, uma paisagem sedutora, cheia de promessas econômicas, convidando o homem à associação. Veja-se André Pereira, participando da jornada de Francisco de Castelo Branco, em 1616, observar "por tôdas aquelas partes mostrarem as terras serem utilíssimas de madeira, e na bondade delas cheias as ilhas de muita caça" (8). Ainda, posteriormente, nas instruções transmitidas a André Vidal de Negreiros, Governador-Geral do Estado do Maranhão e do Grão-Pará, dizia o rei: "O Grão-Pará, que também fica abaixo da jurisdição de vosso govêrno, se tem por conquistas grandes esperanças, assim pela grandeza da capitania, como pela bondade das terras, e acomodadas para engenhos de açúcar e criações de gado vacum, e que tem grandes matas de árvore de cravo e noz moscada, como a índia, que

tudo se pode beneficiar com pouco custo e muito proveito dos meus vassalos e da minha fazenda". (9) Não eram estranhas aos portuguêses as notícias dos empreendimentos holandeses e do comércio francês e inglês, no estuário amazônico. O flamengo, fortificado em Gurupá e no Rio Xingu, mantinha boas relações com os selvagens, e disso se valia para trocar produtos florestais por artigos manufaturados na Europa. Pouco ou quase nada se conhece dêsse episódio da aventura holandesa. Mas, as raras crônicas assinalam comércio regular de algumas especiarias silvestres, e o do óleo extraído do peixe-boi, a que chamavam vaca-marinha. Modestíssimos engenhos de açúcar foram montados, e, de certo, arrôbas do produto seguiram para a Europa. Na "Relação" de André Pereira, estão esclarecidas as atividades flamengas, através de depoimentos coevos. Quando Francisco Caldeira de Castelo Branco mandou vir à sua presença um holandês prisioneiro, dêle ouviu a confissão de haverem 250 a 300 compatriotas seus, "repartidos em duas fortalezas de madeira, e como tinham dois engenhos de açúcar de que carregavam alguns navios com o mais que a terra dá de si". (10) As coisas que os índios trocavam com os flamengos eram algodão, tinta de urucu, madeiras, tabaco. (11) E, além disso, a fantasia logo aceitou a miragem do ouro: "Sabemos como é excelente aquela terra (o Pará) e êles (os holandêses) se aproveitam muito dela, não só em escalarem, ali, os navios que vão infestar mares, mas, entrando por aqueles rios a que chamam Curupap, (Gurupá) de onde se diz que tiram ouro da mão do gentio, e outras ooisas, e que têm muitos escravos d' Angola que tomaram, indo para as índias". É isto o que informa o Capitão Simão Estácio da Silveira, em visita à região, no ano de 1618, numa descrição lírica, (12) cheia de entusiasmos pelo "maior rio que há em tôda redondeza da terra", pelo "vale chão de mais de trezentas léguas de comprido, de grandíssima abundância, fertilidade e arvoredos com muitas águas" (13).

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(8) André Pereira, "Relação do que há no grande rio das Amazonas, novamente descoberto", in "Anais da Bibliotecha do Pará", tomo I, 1902.

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In "Anais da Biblioteca do Pará", tomo I, 1902. André Pereira, ob. cit.

(11) lbid (12) Capitão Simão Estácio da Silveira, "Relação sumária das cousas do Maranhão", in "Memórias para a História do Estado do Maranhão", por Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro, 1874. (13) lbid

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TIPOS

INDíGENAS

Essas notícias de otimismo chegavam à metrópole sob a forma de constantes apelos ao espírito de aventura. Um chamado do Novo Mundo. Não teria sido em vão que Shakespeare se deixasse tentar por êsse "extraordinário Mundo Novo", que pareceu constituir em certo tempo, na Europa, uma filosofia de vida, impregnada da idéia de libertação espiritual: Oh! Maravilha! Que soberbas criaturas vejo aqui! Como é belo o gênero humano! Cenário natural de semelhante povo! Oh! Extraordinário Mundo Novo! (15) Entretanto, a terra precisava ser conquistada ao gentio agressivo. Era necessário organizar, integrar e dirigir as energias do homem branco, associadas ao homem indígena, no sentido da formação de uma sociedade apta a manter a posse da terra, e dela tirar os recursos para a sua permanência efetiva. As medidas administrativas da metrópole, nesse sentido, começaram, a bem dizer, pelo velho sistema feudal já adotado no sul do Brasil, de divisão em capitanias hereditárias. As capitanias foram doadas, a partir de 1627, emo prêmios aos soldados mais distinguidos na guerra, aos serviços prestados por fidalgos na côrte. A de Caeté, a de Camutá, a do Cabo Norte, a do Marajó, a do Xingu, a de Gurupá, (esta mantida para o rei) . Experiência fracassada. "Como sucedeu no litoral brasileiro, na fase inicial, as Capitanias não conheceram progresso. Os donatários não lhes ligavam a importância devida, donde, no século XVIII, o Govêrno lusitano tê-las incorporado ao patrimônio estatal." (16) Exceção feita à de Camutá, onde seu donatário lançou, com relativo sucesso, os fundamentos da Vila Santa Cruz, as outras estiolaram-se no marasmo ou indiferença de seus donatários. Adotado o sistema de concessão de terras aos colonos, conhecido por sesmarias, os donatários ficaram com o poder de outorgá-las, segundo as leis do reino, somente aos comprovadamente cristãos. As terras eram possuídas pelos sesmeiros como coisa própria, para êles, seus herdeiros (14) Ibid (15) William Shakespeare, "A tempestade" - O, wonder!/ How many goodly creatures are there here !/ How beauteous mankind is! O brave new world/ That has such people in 'it! (16) Arthur Cézar Ferreira Reis, "Síntese da História do Pará", Belém,' 1942.

O_utro gentio jurupixuna, exibindo singula r maquillage, que se harmomza com o manto de pele de onça . (Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira, Biblioteca Nacional)

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ascendentes e descendentes, sem pagar nenhum tributo, exceto o dízimo a Deus Nosso Senhor, dos frutos que produzissem. A presença de colonos açorianos permitiu estabelecer-se uma agricultura rudimentar, que atendia aos pequenos núcleos de civilização. Em seguida, chegaram os degredados, isto é, os que caíam, na metrópole, nas malhas da rigorosa lei medieval, em punição de simples pecadilhos, transgressões sem quase importância moral. A imigração européia não logrou êxito, quanto ao aspecto de fixação, de produtividade do colono, excetuando-se a portuguêsa, dada a plasticidade social e um conjunto de fatôres étnicos, psicológicos e predisposições mesológicas e de cultura dos lusitanos, favoráveis ao empreendimento nos trópicos. É o caso de recordar-se, a êste respeito, aquela tentativa do Governador Fernando da Costa Ataíde Teive, de levar colonos suíços para a vila Vistosa de Nossa Senhora de Madre de Deus, no rio Anarapucu, entre os anos de 1766 e 1772. Emprêsa totalmente malograda. O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, trazendÓ à baila o fato, diz que "nem para os referidos suíços, nem para a gente do Estado, nem para o serviço e aumento das rendas de Sua Magestade, foi útil semelhante empreendimento, frustando-se, por completo as despesas que com elas se fizeram". E ao comentar outro tentame do governante paraense, assim se expressa: "Em 1769, chegaram as famílias de Mazagão, de cujo estabelecimento sabe-se os desgraçados sucessos que tiveram, elas por uma parte, a fazenda real por outra." (17) Em 1786, o naturalista baiano observa, na composição étnica da Capitania de São José do Rio Negro, a franca predominância lusitana, ou, pode-se dizer, a exclusividade do português, dentre os grupos europims, na região. Os brancos, êle esclarece, provinham da diligência da demarcação de limites que Mendonça Furtado chefiou, ali. Portuguêses oriundos de tôdas as seis províncias de Portugal, particularmente de Entre Douro, Minho, Trás-os-Montes, Alentejo e Algarve, e alguns ilhéus. Havia, também, brancos americanos, descendentes de lusos, vindos de. outras capitanias do Brasil, em especial do Maranhão. (18) Na capitania, viviam 6 642 habitantes, entre os quais, é de observar, 5 760 índios civilizados, 635 brancos e 247 escravos. (19) Nota-se uma (17) Alexandre Rodrigues Ferreira, "Diário da Viagem Filosófica", in "Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro", tomo 50, 1887. (18) lbid, tomo 51, 1888. (19) lbid

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absoluta superioridade do gentio, revelando, ainda, o número irrisório de negros, provenientes do reino d'Angola, das ilhas de Cabo Verde, e alguns da Bahia, por intermédio da Companhia do Comércio do Grão Pará e Maranhão, a emprêsa monopolista criada pelo Ministro Pombal. Aliás , o elemento negro, que provei-o, em maior parte, dos portos africanos Cacheu e Bissau, e de algumas capitanias do Brasil, não chegou a preponderar culturalmente em nenhum ponto da Amazônia. Os primeiros escravos foram introduzidos entre os anos de 1682 e 1685, através da Companhia do Comércio do Maranhão, uma espécie de sindicato detentor do monopólio da mercância de gêneros e de peças humanas, criado em São Luís pelo govêrno real. (20) No século seguinte, a partir de 1756, a emprêsa do consulado pombalino introduziu, até 1778, ano de sua extinção, quase 14 000 negros. (21) Admitindo-se que 6 000 pessoas venham completar o quadro estatístico dêsse comércio odioso, correspondendo às pequenas levas da Companhia do Maranhão e à iniciativa particular que se seguiu à dissolução da sociedade mercantil erigida pelo Marquês de Pombal, ter-se-á uma soma de 20 000 servos. tste número, verdadeiramente irrisório para atender a uma vastíssima área, diluiu-se por várias localidades, sem vir condicionar uma participação étnica, nos moldes observados no Nordeste, onde o Padre Vieira, nos meados do século XVII, já calculava a presença de 33 000 escravos. Historiadores do presente estimam que nada menos de 3 300 000 negros entraram no Brasil, n-o decorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX. (22) Retirando-se os magros 20 000 da Amazônia, ficariam 3 280 000, pelo que se vê a enorme desproporção do comércio africano para o extremo norte, comparativamente ao do Nordeste e outras regiões do país . A maioria dos colonos, nos dois primeiros séculos da existência do Grão Pará, acabava seduzida pela aventura dos sertões, para ooletar

~ especiarias regionais, em detrimento do Forte Presépio de Belém, a cuja sombra se expandia um centro urbano, já com o destino de capitalizar a vida política e administrativa da região. A prova do moroso e quase estagnado processo demográfico é o cálculo do Padre Antônio Vieira, em 1661, emprestando à cidade oitenta moradores, o que J. Lúcio de Azevedo justificou como representativo apenas da "gente grada, chefes de família que eram os povoadores do território; a peonagem, soldados e religiosos não entravam no cômputo". (23) É ainda de J. Lúcio de Azevedo uma outra estimativa, baseada em informações de David Souto Maior: reunindo os que viviam nas terras, os que perambulavam em expedições sertão a dentro, a população branca do Pará não ia além de setecentas almas, no ano de 1661. O que, realmente, é muito pouco para uma região que começara a ser ocupada pelos portuguêses 4·5 anos antes. Foram, porém, as missões religiosas as responsáveis pelo maior impulso de civilização na Amazônia. Desde a chegada de Castelo Branco ao Pará, cogitou-se da presença do missionário. Na carta que êste capitão escreveu ao rei de Espanha e Portugal, ficara expresso o pedido para a côrte mandar religiosos. (24) Vieram primeiro os franciscanos, que levantaram o convento do Una. Seguiram-se os jesuítas, carmelitas, mereedários, capuchos da Piedade, os frades da Conceição da Beira do Minho. A carta régia de 1693 estabeleceu zonas de influência para as ordens pias. Os jesuítas ficaram com a margem meridional do Amazonas, os irades capuchos de Santo Antônio com a região do Cabo Norte e a margem setentrional do rio-mar, cabendo o distrito de Gurupá aos padres -da Piedade. O concurso que o missionário deu à colonização regional está registrado na História como dos mais importantes. Principiando pela obra ·da catequização do gentio, pois era impossível qualquer emprêsa social sem antes romper a barreira considerável da massa humana dos nativos. Vencê-los por métodos suasórios e trazer o seu concurso para ativar ::t

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(20) Bernardo Pereira de Berredo, nos seus "Anais Históricos do Maranhão", Maranhão, 1849, explica a constituição dessa Companhia " ... ajustou (o Govêrno português) um assento com Pedro Alvares Caldas e outros negociantes de grossos cabedais, pelo longo têrmo de vinte anos, que não só estancava tôdas as do País (as drogas do sertão) mas também as fazendas do reino de qualquer qualidade, e negros de tôda a costa d' Africa, que passassem a êle, ficando somente permitida a navegação de todo o comércio aos sócios desta Companhia." O empório mercantil, entretanto, teve vida breve, sendo uma das causas da reação popular conhecida por revolta de Beckman. I (21) Alexandre Rodrigues Ferreira, ob. cit. (22) Roberto C. Simonsen, "História Econômica do Brasil", São Paulo, 1957.

(23) J. Lúcio de Azevedo, "Os jesuítas no Grão Pará", Lisboa, 1930. (24) O historiador paraense Ernesto Cruz, em sua pesquisa nos arquivos portuguêses e espanhóis, trouxe, recentemente, para Belém, cópia de centenas de documentos inéditos da história colonial amazônica, cuja divulgação vai ser feita em volume editado pelo Instituto N acionai de Pesquisas da Amazônia. Dentre essas jleças há uma carta escrita por Castelo Branco ao rei Felipe de Espanha, na qual, -com interêsse, pede a vinda de missionários para o Forte do Presépio.

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AVES agricultura, os transportes (remeiros), os trabalhos urbanos, e, finalmente, agrupá-los nas aldeias, células do pov()amento regional, de onde nasceram quase tôdas as cidades-sedes dos municípios atuais. O trabalho missionário está tão intimamente ligado ao processo social e econômico regional, que ninguém poderá reconstituir os fatos da História amazônica, ou tentar uma interpretação sociológica, sem levar em conta os aldeiamentos indígenas, a catequese dos religiosos, as formas que êstes puseram em prática para atingir uma produção econômica vantaj()sa aos serviços e fins da Ordem, e, ao mesmo tempo, aos interêsses políticos da metrópole de manter soberania efetiva sôbre o território. A exploração florestal, na base das especiarias, jamais teria criado nódulos estáveis de civilização no interior do vale se o missionário estivesse ausente da emprêsa col()nizadora. ~le foi, nêsse particular, um verdadeiro bandeirante, o agente eficaz de colonização. O objetivo de coletar a droga por si só não bastava para operar o fenômeno do povoamento do hinterland, porque a natureza do trabalho e o processo ecológico, além de dispersarem o homem, causavam a repulsão à terra. Quem ia às drogas do sertão tinha de equipar-se obrigatoriamente com uma canoa, isto é, o veículo móvel no qual se arremessava pelos rios e paranás, voltando, em seguida, ao centro armador, sem deixar marca de humanização na terra. ~sses grupos instáveis e nômades, apesar de sua impetuosidade e mobilidade, de efeitos políticos, não construíram nenhum sistema social identificado com o solo, em que passavam como instrumentos de atividades mercantis: apanhar os produtos espontâneos da natureza ou prear índios para o nefando comércio escravista. Aí é que, justamente, o missionário interferiu com a sua obra de sedentarização do homem: os aglomerados a que deram o nome de aldeias, lançando mão da matéria-prima humana regional, o índio. As aldeias missionárias desempenharam, por isso, o papel de estabilizador social e de centros de expansão da colonização. A questão da escravatura do indígena, que empolgou o espírito colonial, na Amazônia, durante quase dois séculos, é um reflexo da grande importância da organização missionária. Aquilata-se o valor dos aldeamentos por uma informação prestada pelo Governador Mendonça Furtado, a quem coube a tarefa de secularizar as aldeias dos jesuítas, em decorrência de sua expulsão do território brasileiro . Referia-se o irmão do Marquês de Pombal ao bispado do Pará, que se compunha de "sessenta e três aldeias, administradas tôdas pela ma-

1. :Acauã (Herpetotheres cachinnans) 2. Caraxoé (Turdus fum1gatus) . - 3. Cauré (Falco albigulares) - 4 . Anu prêto (Cro~phaga am) -;- 5. Ur.ubu-rei (Sarcoramphus papa) _ 6. Gaviao-real (Harpia harp?''Ja) - 7. Irapuru (Leucolepia modulatrix) - 8. Jacu. ~Pe.nelope J.acquacu) - 9. Galinha-de-angola (Picota) - 10. Umcormo (Anh1ma Cornuta) - 11. Mutum (Crax migra)

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neira seguinte: desenove pertencentes aos religiosos da Companhia de Jesus, quinze aos religiosos do Carmo, nove aos da Província de Santo Antônio, sete aos da província da Conceição, dez aos da província da Piedade, e três aos religiosos de Nossa Senhora das Mercês (25). Viviam nessas aldeias, em 1753, cêrca de cinqüenta mil indígenas. O que representava como fôrça econômica semelhante organização, atesta o próprio ardor com que os seculares entraram em luta contra os missionários, em especial os jesuítas, a ordem mais rica, mais dinâmica aquela que defendeu a liverdade do silvícola, enfrentando uma poderosa corrente de interêsses, tanto e principalmente dos colonos, mas, também, das autoridades administrativas que, com raras exceções, acabavam por tomar o partido do cativeiro índio. A luta provinha da obstinação dos religiosos em negar fôsse utilizada a mão-de-obra servil dos indígenas, o que vinha contribuir para a pobreza e improdutividade dos colonos, pois que até na "festa passada do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, não vieram a esta cidade (Belém) as famílias de alguns homens nobres, por causa de suas filhas donzelas não terem que vestir, para irem ouvir missa, nem seus pais possuem cabedal para o comprarem". (26) Não admira que assim acontecesse. Os habitantes seculares não desejavam, na verdade, ser colonos, e sim uma espécie de aristocratas dominadores, servidos por numerosa escravaria. Um trecho de carta da primeira figura da inteligência jesuítica, escrita do Maranhão ao rei D. João IV, retrata semelhante aspecto .social: "Os moradores dêste novo mundo (que assim se pode chamar) ou são portuguêses ou índios naturais da terra. Os índios uns são gentios, que vivem nos sertões, infinitos no número e diversidade de línguas; outros são pela maior parte cristãos, que vivem entre os portuguêses. Dêstes que vivem entre os portuguêses uns são livres, que estão em suas aldeias, outros são parte livres e parte cativos, que moram com os mesmos portuguêses e os servem em suas casas e lavouras, e sem os quais êles de nenhuma maneira se podem sustentar". (27) (25) Arthur Cezar Ferreira Reis, ob. cit. (26) Representação da Câmara de Belém ao Padre Antônio Vieira, em 15 de janeiro de 1661, apud Bernardo Pereira de Berredo, "Anais Históricos do Estado do Maranhão", São Luís, 1849. (27) Antônio Vieira, "Cartas", apud J. Lúcio de Azevedo, "História de Antônio Vieira", Lisboa, 1918.

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Coube a Vieira retratar o organismo social da capitania, onde "cada família há de ter o que tem uma república; porque para a carne há de ter caçador, para o peixe pescador, para o pano fiandeiras e tecelão, para o pão lavrador, e para os caminhos embarcações e remeiros, afora todos os outros serviços domésticos". (28) E sempre em tôrno dêstes objetivos, é que os colonos batiam na mesma tecla: não possuir remeiros, nem "quem lhes vá buscar um feixe de lenha, nem um pote d'água", nem meios para "lavrarem fazendas e para comprarem o que lhes é necessário". Tudo "por falta de escravos, havendo tantos em muitos sertões em quantidade, aonde se podem resgatar". (29) A insinuação clara aos íncolas revela, de um lado, a pobreza de braços com que lutavam os colonos, e, de outro, o sentimento de despeito e de raiva contra a obra prósprera dos missionários, que dispunham de índios aldeados para os misteres econômicos, isto é, os de subsistência das Missões e do Colégio do Pará. Intransigentes os jesuítas, "com o Evangelho em uma mão e com as leis de Sua Majestade na outra", (30) a tremenda luta que sustentaram haveria de findar quando o Marquês de Pombal obteve do Vaticano a bula de extinção da Ordem no Brasil, e, em conseqüência, a lei real de banimento e confisco de bens. Considerado o índio ser humano, imune de coactação, por -sucessivos decretos, via-se o colono, pelo menos legalmente, impedido de usufruir o trabalho gratuito do aborígene. Entretanto, as determinações da metrópole, nesse particular, nem sempre eram cumpridas. Houve mesmo caso de franca desobediência do Senado da Câmara de Belém, ' luta entre esta assembléia e os Governadores que não se e, ' às vêzes, amoldavam aos interêsses econômicos dos colonos, chegando, os representantes do poder metropolitano, a enfrentar, em defesa das leis de El-Rei, forte oposição daqueles elementos conjugados .. Os jesuítas foram o principal instrumento da longa peleja, pois a Ordem de Inácio de Loiola, investida dos poderes legais de fiscalizar e zelar pela liberdade índia, sofreu todo o pêso da campanha escravista . Antônio Vieira dedicou o melhor de seu talento e de sua dialética, re(28)

Resposta do Padre Vieira à representação do Senado da Câmara, em

12 de fevereiro de 1661, apud Berredo, ob. cit. (29) Representação do Senado da Câmara de Belém ao Padre Antônio Vieira, em 15 de janeiro de 1661, apud Berredo, ob. cit (30) Resposta do Padre Vieira ao Senado da Câmara de Belém, em 21 de junho de 16Sl, apud Berredo, ob. cit.

plicando aos adversa' r1·or~.1. da Or d em em pagmas ' · hoje clássicas da literatura luso-brasileira. A vasta legislação reinol, ora a favor do religioso, ora a favor do longo período da história colonial da A mazon1a, A· colono, . .(31) durante . ~e10 cr_1ar a-s mais complexas relações sociais, gerando, em vários enseJ~S, a~~r~:os desentendimentos entre autoridades, colonos e missionáriOs. e1 o exclusivo da questão dos cativeiros um genuíno calcanhar de Aquiles para êles. ' Quando . surgiu o decreto de D. José I, com o toque do Mini-stro Po~bal, bam~do a Ordem dos Jesuítas do Brasil, já se havia criado uma ~oc~edade ma1s ou menos definida na Amazônia, à base dos aldeamentos mdws e de out:os grupos humanos que giravam à sua órbita. A vida d~ Estado, ~e ~m~a. não decorria em função dela, pois o trabalho industrwso dos m1s~1onanos revertia sõmente a favor da Ordem (nenhum dízi~o p~gavamA a. Fazenda ~eal), obtinha, entretanto, foros de uma orgam~a.çao economiCa que ma1s cedo ou mais tarde viria colocar-se no àmbitu of1c1al, como Ar~almente sucedeu, depois da secularização das aldeias. A Amazo~Ia alcançava, independente das questiúnculas e das contendas natu:a1s em t~do meio que se civiliza, um sentido -social em plena evoluç~o_- _üs rehgiosos ~oram os elementos que organizaram, integraram e. dirigiram as energias da sociedade colonial, utilizando-se da massa nat~va que, segundo. a ~magem pitoresca do Padre Alonso de Rojas, ~~m~~nhe1r~ de !'edro Teixeira na jornada Amazonas acima, era tamaa que nao ca1 uma agulha no chão" . ~~alquer que t~mha sido a ação dos missionários, passível ou não de critica, h" t' . f"neste ou naquele ângulo ' o certo e defi n it"IVO e, que seu papel IS onco Ico~ consagrado_ na estrutura social, econômica e política da seu empree~dimento colomzador. ~les lançaram, no espaço e no tempo um ~erdade1ro plano de colonização, que atendeu à conjuntura do momen~ to, vmdo a fundamentar os padrões de vida regional muitos do 8 · até hoje persistem. ' qua1s Portugal não possuía quadros demográficos para enfrentar 0 problema do povoamento amazônico. A importação de negros não podia (31) "Nunca houve tribunal mais versátil que o Conselho Ultra · mente na deliberação acêrca dos índios. Parece que todo o seu em e::rmo, ~o:em após outra, cada uma das parte que disputa!m : raça mfehz: os moradores. sempre insaciáveis; os missionários continuamen: queixosos dos colonos, das autoridades e do próprio Conselho" (J L, · d . . ucio e Azevedo, "Os jesuítas no Grão Pará").

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ser desviada do N ardeste, onde os engenhos de açúcar, beneficiando grandes safras, exigiam, sempre, maior número de escravos. Considere-se, também, que na Amazônia não surgira um motivo econômico preponderante, 0 qual viesse centralizar as atividades humanas. o que houve foi a dispersão causada pela natureza do trabalho e.xtrativista, acrescentando-se, ainda, as dificuldades opostas pelas dis-

ilícitas que o rei demonstrou "quanto o era; de seu real agrado e vontade que se casasse com índias". (33) O govêrno português, vindo ao encontro da preferência de seus súditos europeus e americanos, realizava obra de significado social e político, uma vez que só a miscigenação permitiria o aumento demográfico da colônia, estabelecendo as bases de uma sociedade permanente, garantidora da soberania real. É êste o espírito do Alvará de 4 de abril de 1755, declarando "que os vassalos do reino e da América que se casassem com índias não só não contraíam infâmia ou baixeza alguma, mas antes fariam por isso dignos de sua particular atenção, porque seriam preferidos nas terras onde se estabelecess2m para os lugares e ocupações que coubessem nas gradações de suas pessoas e de seus filhos e descendentes, os quais dava por habilitados para todos os empregos, honras e dignidades". (34) Ocorria, na Amazônia, quase idêntico processo de miscigenação operado em outras regiões brasileiras. E com maior intensidade em relação à índia, porque o pequeno número de negros concorreu para centralizar a luxúria do português no produto da terra, havendo, ainda, severa legislação proibitiva das relações entre pretos e brancos. A receptividade da indígena amazônica, nesse particular, não ficou atrás da de seus parentes Tupinambás, no Nordeste brasileiro, onde Gabriel Soares de Sousa surpreendeu-os "tão luxuriosos que não há pecado de luxúria quP. não cometam". Um caso típico de sexualidade exaltada da índia amazônica ficou no registro da crônica histórica, tendo como personagem a bugre Maria Moaçara, principaleza da tribo dos Tapajós. A experiência de seu casamento cristão com um homem de sua raça não a satisfez, e, por morte do marido, não quis unir-se aos vários pretendentes da taba. Escolheu para casar um português de boa cepa, depois de movimentada disputa entre os indígenas, reclamando, até, a interferência pacificadora dos jesuítas. Não se trata de caso isolado na região amazônica. Ao contrário, pode-se generalizá-lo com tôda a segurança, êsse do sexualismo excessivo da índia. Já o Padre Anchieta notara, com tôda a austeridade de sua ordenação eclesiástica, a selvagem indiferente à presença de outras mulheres na vida de seu companheiro, e ainda que êste a abandonasse em definitivo "não faz caso disso porque se ainda é moça ela toma outro",

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tâncias excessivas. A agudeza de espírito do Padre Antônio Vieira já ressaltara o aspecto da terra "tôda cortada e alagada de rios, com que o comércio humano fica muito' dificultoso, e de grande despesa, havendo de ser todo por mar ". E povoá-la, erigir um sistema de vida para impulsionar êsse comércio demandava 0 concurso do íncola, que, além de vir acrescer .o númer~ de almas cristãs, e, assim participar da civilização, assegu~ana a posse útil e produtiva do solo, posse de outra forma difícil de efetivar. Outro aspecto social importante é o da contribuição cultural do índio amazônico nos hábitos, na culinária, nos processos econômicos, ao pon~o de Gilberto Freyre notar que a Amazônia é a área de cultura, no Bras~l, mais impregnada da influência nativa. E, de passagem, o mestre o e Apipucos cita: "O que aí se come tem ainda o gôsto de ma~; é enrolado em fôlha de palmeira ou bananeira; leva castanha de caJU, prepara-se em cuia; é polvilhado de puçanga feita de fôlhas de kurum~kaá torrada; e os nomes são ainda os dos índios, com um quer que seJa de estrangeiro à primeira vista. Mas só à primeira vista". ( 32) Não é só a culinária amazônica, essencialmente indígena. Juntemse as técnicas especiais para pescar, para remar, para caçar, para coletar os produtos florestais, para fazer roçado (com. o con:plexo da derr~­ bada e da coivara), para utilizar recursos naturais, enfim, um sem ~u­ mero de traços de cultura ainda hoje vivos e predominantes na vida regional. Importante a considerar, outrossim, é o intercurso sexual entre o português e a índia amazônica, em que o i~stin~ femeeiro do ~ra~co, o seu sadismo, unidos ao mazoquismo, por assim dizer, da mul.her md~ge~n, concorreram para o progresso da mescla, enriquecendo a paisagem etmca regional. É 0 que notou Alexandre Rodrigues Ferreira no rio Negro, quando aludiu aos casamentos de ex-soldados da antiga diligência _de limites com as mulheres gentias. Tantas se apresentavam as relaçoes

(32)

Gilberto Freyre, "Casa Grande & Senzala", Rio de Janeiro, 1954.

(33) (34)

Alexandre Rodrigues Ferreira, ob. cit. Apud Alexandre Rodrigues Ferreira, ob. cit.

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e se acontece a mulher ser "varonil e virago, também ela deixa o marid~ e toma outro". (35) Todos os cronistas observaram a índia doida por um corpo de homem branco para se esfregar, preferência a que, em geral, os sociólogos empl·estam motivos priápicos. Gilberto Freyre comenta que Paulo Prado, no seu livro Retrato do Brasil, "foi surpreender o severo Varnhagen insinuando que, por sua vez, a mulher indígena, mais sexual que o homem como em todos os povos primitivos. . . . . . em seus amôres dava preferência ao Europeu, talvez por considerações priápicas." (36) A narração que se lê nos livros brasileiros, desde os bancos da escola primária, sôbre a aventura de Diogo Alvares, o Caramuru, na tribo dos Tupinambás, e de seu idílio com a índia Paraguaçu, é, na verdade, o primeiro teste de relações étnicas do português neste lado do oceano. Pelo menos, o primeiro registrado na História, o clássico, por assim dizer. A paixão da Paraguaçu pelo Alvares, dizem as crônicas, foi eterna, tal como nos contos de fadas. Ela acompanha o marido à EuropaJ batiza-se na França, e, afinal, regressa o casal enamorado às costas paradisíacas da Bahia, lugar de seus amôres e da vida patriarcal que levou até morrer. Aí está o encontro característico de duas raças com predisposições sexuais que condicionaram o padrão étnico regional. Um encontro-simbolo para a-Amazônia, principalmente. Na Bahia ou na linha rlo Equador, dent r o dos mesmos têrmos de vida e de História. E não admira que isso viesse a formar uma constante da ação portuguêsa nos trópicos . Os lusos já traziam no espírito as idealizações ancestrais das mulheres mouras, vistas no Brasil sob a forma daquelas índias morenas, cujo aspecto luxurioso o primeiro cronista das terras de S:mt a Cruz logo observou, com certa devoção: "Bem môças e bem ga:1tis, com cabelos muito pretos e compridos pelas suas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas, e tão limpas das cabeleiras, que de as muib bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha." (37) A organização da vida social na Amazônia repousou, pois, em três, ou melhor, quatro fatôres essenciais: o índio, como elemento de produtividade para os trabalhos físicos e criação de uma nova progênie; o

português, orientando e sustentando politicamente o Estado, absorvendo os costumes regionais, introduzindo os seus, com arte e sutileza; ainda 0 português, na sua função de "procriador europeu nos trópicos" (38) ; e, por último, o missionário, aldeando os silvícolas, imprimindo uma organização social estável, que, depois, se tornou a sociedade padrão na Amazônia dos três primeiros séculos. . Um_a s~ci~dade que, é evidente, foi influenciada pelas fôrças seletivas, distribUidoras e acomodativas do meio, e na qual houve um intenso processo de cooperação competidora, entre as diversas unidadeR individuais de população que se movimentaram no espaço físico. Nas relações de homem para homem, de grupo humano para grupo ~umano,_ e de instituição para instituição, e na medida em que 0 habitot mfluenc10u essas mesmas relações, estão as bases ecológicas da sociedade amazônica, econômicamente ativa pela movimentação de uma série de produtos que vieram contribuir para o bem-estar do gênero humano .

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J aquiranabóia

Padre José d' Anchieta, "Informação dos casamentos dos índips do Brasil",

in "Revista do Instituto Histórico e Gi!ográfico Brasileiro", vol. VII. (36) Gilberto Freyre, ob . cit. (37) Pero Vaz de Caminha, apud Jaime Cortezão, "A Carta de Pero Vaz de Caminha", Rio, 1943.

(38)

Gilberto Freyre, "O mundo que o português criou", Rio de Janeiro, 1940.

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O PROCESSO ECONôMICO

Pescando com timbó

11 O PROCESSO ECONôM CO Na sociedade colonial brasileira o único meio de qualificação social era a posse da terra, e o mesmo princípio pretenderam os portuguêses fazer vingar na Amazônia, durante os primeiros tempos da conquista. Adotaram, para isso, os sistemas de divisão de terra em capitanias, e o da entrega de tratos às pessoas "de sustância e cabedal", sob a forma de sesmarias, dentro das mesmas razões políticas e administrativas que nortearam a medida de D. João III, quase um século antes. Mas, os sucessos na Amazônia tomariam rumo diverso da evolução social e econômica do Nordeste, onde a capitania de Duarte Coelho destacou-se das outras, mediante suas boas condições de solo e o útil subsídio humano que recebeu Portugal. Os satisfatórios resultados da lavoura da cana de açucar condicionaram o povoamento, a economia, e à volta dos canaviais moveram-se os interêsses coletivos. Dêsse modo, a terra acabou por aristocratizar a figura do senhor de engenho. O açucar era tão soberano que Jerônimo de Albuquerque, em 1555, escrevia ao rei de Portugal: "Se não se povoa os engenhos, a terra não pode povoar-se, nem ir adiante." ( 1) No extremo-norte, as condições de geografia, de meio, foram bem outras. Muitos dos povoadores brancos do Pará já haviam participado da experiência de vida no Nordeste. É possível que na Amazônia aspirassem a · construir uma sociedade dentro dos mesmos padrões da que existia, velha de cem anos, no litoral brasileiro. Entretanto, o contato mais demorado com a paisagem regional deve os ter dissuadido de realizar o projeto. Mesmo assim, as principais figuras da conquista do ( 1) Carta in "Anais Pernambucanos", "Revista de História de Pernambuco", ano I, n. 0 7. Apud Manoel Diegues Junior, "População e açúcar no nordeste do Brasil", Rio s/d.

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Grão-Pará foram agraciadas com capitanias hereditárias, e estas divididas em sesmarias, para que os colonos tirassem do solo a riqueza capaz de proporcionar aos seus donatários uma existência digna de fidalgos. A terra, ao contrário dos massapês nordestinos, não possuía aquêle grude, ao qual hoje os sociólogos brasileiros atribuem a fixação do homem na larga faixa litorânea que vai da Bahia a Pernambuco. Negara a cultura de um produto imperial, com ascendência econômica, centralizando as atividades humanas, fazendo o homem parar, construir a casa sólida, organizar família. Tudo leva a admitir que o ideal dos capitães da conquista amazônica haja sido a fundação da indústria açucareira no Pará. Sabia-se que os holandeses possuíam feitorias e engenhos no Xingu, e, de resto, tôdas as crônicas dos tempos iniciais do Forte Presépio estão vasadas em palavras de encanto pelas promessas econômicas das terras do rio-mar, numa antevisão de futuros engenhos com a marca do senhorio rural que sonhavam instituir. (2) Êsse estado de espírito perdurou durante vários anos, como se deduz de um memorial "sôbre as terras e gente do Maranhão, Grão-Pará e rio das Amazonas", peça que o jesuíta Luís Figueira dirigiu a Felipe III, em 1637. Dizia o socerdote, referindo-se ao Pará: "As terras são muito férteis, e se podem fazer infinitos engenhos de açúcar, porque estão nelas mui formosas canas". (3) Opinião coeva é também a de outro religioso, o Padre espanhol Cristóvam d' Acufia, que, acompanhando de Quito a Belém o capitão Pedro Teixeira, se deixou envolver pelas mesmas esperanças dos portuguêses: "As maiores culturas que a meu ver se deveram iniciar neste rio são as de açúcar." (4) Ainda em certa carta, na qual o vice-rei ordenou ao governadorgeral do Brasil que socorresse Castelo Branco, na conquista do GrãoPará, o açúcar merece uma referência particular, pois que no Rio

Grande das Amazonas existia na "banda do norte uma casa forte e povoação em que residiam holandeses que tinham já feito engenhos de açúcar". E sendo a "terra fortalecida de todos os mantimentos que costumam haver no Brasil", ela é "muito acomodada para efeito de se plantarem canas e se fazerem engenhos. " ( 5) Assinale-se que erigir engenhos no Pará era uma idéia fixa até nos holandeses. A respeito, há uma carta do commandeur Gedeon Morris de J onge, endereçada aos diretores da Companhia das índias Ocidentais, em 1637, com o objetivo de interessá-los em ocupar o Maranhão e Grão-Pará. Morris havia sido aprisionado pelos portuguêses no rio Amazonas, e, recuperando a liberdade, pôs-se, de novo, a serviço dos compatriotas, já senhores de Pernambuco. E, nessa oportunidade, ao destacar as grandes vantagens da conquista, êle dá ênfase especial à cana de açúcar, "aí (no Pará) mais grossa e melhor que em qualquer outro lugar; alonga-se muito, atingindo altura superior à de um homem alto, e é mais grossa do que o meu braço". Impressão compartilhada, também, por outros: "Tenho ouvido muitas vêzes os portuguêses dizerem que o solo nessa região é muito mais próprio para a indústria do açúcar do que Pernambuco ou Bahia." ( 6) Compreendendo a realidade ambiente, e dentro daquele espírito pragmático da gente lusa, diga-se, também, plástico, os capitães e soldadc·s da conquista do Grão-Pará, puseram-se a seguir as sugestões da natureza. As lutas contra batavos e britânicos, proporcionaram-lhes um conhecimento exato das condições do meio, suas peculiaridades, e das reações da bugraria, que formava uma barreira viva a serviço, pelo menos no estuário, dos povos invasores, aos quais os índios se aliaram. E as sugestões da natureza, já aceitas pelos holandeses, eram a coleta das especiarias silvestres, a utilização da fauna aquática. Principalmente as especiarias, que viriam dominar na vida econômica regional, durante largo período, ao ponto de constituírem o primeiro ciclo da economia amazônica, tão marcante foi o seu papel no desenvolvimento das comunidades e na manutenção do Estado do Maranhão e Grão-Pará,

(2) É bem aceitável esta hipótese, pois todos êles foram mandados de Pernambuco para expulsar os franceses de São Luís, e daí ao Grão-Pará, com a mesma tarefa, em relação a holandeses e ingleses. Há, outrossim, freqüentes referências a engenhos e canaviais, tanto na correspondência oficial como nas páginas dos cronistas. (3) Apud Manoel Barata, "A antiga produção e exportação do Pará", Belém, 1915. (4) Cristovam d'Acufia, "Novo descobrimento do grande rio das Amazonas", São Paulo, 1941.

(5) Apud Arthur Cezar Ferreira Reis "Limites e Demarcações na Amazônia Brasileira", 1.0 tomo, Rio, 1947. (6) Carta entregue em Middelbourg a 22 de outubro de 1637. Apud José Higino, "Relatórios e cartas de Gedeon de Morris", in "Revista do I.H.G.B.", tomo 58, 1895.

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TIPOS

INDíGENAS

e, mais tarde, também na da Capitania de São José do Rio Negro, desmembrada daquele . Os misteres de coletar na mata produtos espontâneos, exigia, porém, um modo de vida que não era igual ao das outras partes da colônia brasileira. A selva, atraindo o homem, o dispersava. Os rios, oferecendo caminho fácil, requeriam fortes energias humanas para vencer o obstáculo da água, e todo um instrumental necessário a longas jornadas, ao arrepio das correntes. E onde buscar o elemento propulsor para tudo isso? E' óbvio que a participação do índio seria inevitável e reclamada como o único meio de lograr êxito no esfôrço colonizador. A catequização dos silvícolas não seria obra para os rudes soldados portuguêses, que nos primeiros anos da fundação do Forte Presépio se haviam revelado excessivamente violentos com os Tupinambás. São conhecidos os métodos de crueldade de Bento Maciel Parente, quando subjugou a rebelião da tribo e impôs aos prisioneiros abomináveis torturas. A fama dos lusitanos era tão terrível que vários povos ficaram arredios a qualquer tentativa de pacificação, preferindo manter boas relações com os holandeses. Os Aruãs, na ilha de Marajó, resistiram até 1659, e só cederam mediante a persuasão evangélica dos jesuítas, oportunidade em que o próprio Vieira foi ao seu território selar o entendimento cristão. E o apóstolo das selvas não deixou de escrever a sua catilinária contra os lusos: "Desde o princípio do mundo, entrando o tempo dos Neros e Dioclecianos, se não executaram tantas injustiças, crueldade e tiranias, como executou a cobiça e impiedade dos chamados conquistadores do Maranhão". (7) Quando terminaram as lutas para expulsar as gentes da Holanda e Grã- Bretanha do estuário amazônico, os chefes da campanha militar, alguns dêles já donatários de capitanias, não demonstraram interêsse em desenvolver econômicamente o seu feudo. A terra não lhes prometia um solo gordo, no qual se enterrassem as raízes da cana e os alicerces das casas grandes. E' preciso ter em vista que a época era a do açúcar, e tôda essa gente vinha do Nordeste, de onde certamente trouxera uma forte impressão dos canaviais e dos bangüês. E' o que se pressente das primeiras crônicas, sempre mencionando a excelência da terra para cultura da cana. (7)

Antônio Vieira, "Resposta aos Capítulos", Arquivo Ultramarino, Lisboa,

apud João Lúcio de Azevedo, "História de Antônio Vieira", 1.0 volume, Lisboa, 1918.

Í!lâh jt;r-yi.·una em tr::.jes de gala . Observe-se o esquisito penteado ue parece ll~ll ta r a cabeça de cer R od ngues ! q . to pássar . . o . (Coleção Alexandre . . F erre1ra, Biblioteca Nacional

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As feitorias holandesas, no rio Xingu, de nomes Muturu, (atual cidade de Pôrto de Mós), sob a guarda do forte Orange, e a outra, Cuiatniná, mais acima do rio e defendida pelo forte Nassau, produziam açúcar nos seus dois engenhos, exportando-o para a Europa em pequenas quantidades. Os portuguêses desejavam, é claro, ampliar essa indústria em seu proveito, tanto que Feliciano Coelho, donatário da Capitania de Camutá, montou engenho em 1634, aproveitando a cana que medrava espontâneamente nas margens baixas do rio. O próprio conquistador do Grão-Pará, Francisco Caldeira de Castelo Branco foi proprietário de canaviais. No curto espaço de dois anos e oito meses (janeiro de 1616 a setembro de 1618), tempo relativo à sua tumultuosa permanência no Forte do Presépio, - ainda encontrou folga para fabricar "açúcar perfeito", antecipando-se, assim, a qualquer outro português nesse ramo de indústria no Pará recem-ocupado. (7-a) Experiências sem maiores repercussões, pois, em breve, a indústria se mostraria incapaz de influir de modo decisivo no processo econômico da capitania, em virtude de condições ecológicas especiais. Passaria a ser de agoas Gtrdentes, e os pequenos engenhos chegaram a perder o nome, diminuindo como que de condição social: foram simplesmente os molinetes, fabricantes de cachaça, os quais constituíram, durante largo período da história colonial, uma fonte ativa de produção. A terra, na Amazônia da época, sempre negou a aristocratização do homem, em conseqüência do processo econômico ter-se verificado em condição diametralmente oposta ao das áreas monocultoras. Só um produto-rei, impondo a cultura única, a centralização das atividades humanas, o enfeixamento de poderes numa só pessoa, é capaz de criar o aristocrata rural, típico da vida brasileira, em determinadas áreas, e em certa época de sua evolução social. As investidas de colonização portuguêsa no Pará denunciaram essa tendência natural do meio que, ao invés de associar o homem, o convidava à dispersão mais arbitrária possível, pelo atrativo constante da apanha de riquezas silvestres. Foram as drogas do sertão as respon-

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(7-a) In "Documentos para a História colonial da Amazônia", coligidos por Ernesto Cruz no Arquivo da Tôrre do Tombo, Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), e Biblioteca Nacional de Madrid, (originais, 1958). O volume está incluido no programa de próximas publicações do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Existe, no mesmo volume, uma peça do Arquivo Ultramarino, em que alguem testemunha: "viu açucar perfeito delas" (as canas de Castelo Branco), "e que comeu dêle."

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sáveis pela "democratização", se assim é possível chamar, do proc€sso social amazônico. Na colônia, bem entendido. Uma "democratização" que, se por um lado foi útil porque determinou mais rápido avanço da "moving frontier" (o internamento nos rios à cata de drogas e à caça de índios), por outro, produziu o fenômeno dispersivo do €lemento humano. Obra notável de geopolítica, mas de menor significação econômica, é o que se observa no movimento de centrifuguismo dos grupos colonizadores do Grão-Pará. Bento Maciel Parente, donatário da capitania do Cabo Norte, nada fêz pelo progresso de seus domínios. Feliciano Coelho, a quem coube a Capitania de Camutá, embora empreendesse um certo trabalho de valorização econômica, não chegou a transformá-la em um organismo preponderante na vida regional. E' porque todos os capitães da conquista e seus descendentes, e os outros colonos, sentiram-se verdadeiramente atraídos pela aventura dos sertões. Os portuguêses, se vieram à Amazônia com propósitos de agricultura latifundiária, acabaram dominados pela preocupação comercial, representada pelo nomadismo da mascateação. Poucos foram os que se fixaram com idéia de permanecer à volta do Presépio de Belém, e assim mesmo por ser imperioso o cultivo de algumas plantas destinadas à subsistência e a outras necessidades elementares de vida. Produziam a farinha de mandioca, o algodão com que fiavam os panos para a vestimenta, o açúcar, o tabaco. A miragem do ouro também dominou o espírito dessa gama humana que desbravou o vale. Ao lado da especiaria, a idéia dos metais e pedras preciosas funcionava como estimulante às entradas aos sertões, isto é, "pelo corpo e braços daqueles rios", no dizer de Vieira, rios que sempre representaram no quadro antropogeográfico amazônico, uma face do dinamismo da história social. As entradas tinham por objetivo imediato caçar índios, recolher drogas, por intermédio da mercância com o íncola, ou melhor, troca de objetos, o branco dando-os, e o aborígena entregando as especiarias, - e por objetivo remoto o descobrimento de minas. As leis do reino, indo ao encontro das sugestões naturais do meio. estabeleceram a legalidade dos cativeiros, dos resgates e dos descimentos, tendo-se como cativos os índios apreendidos em justa guerra, e resgatados quando eram trocados por objetos. ftstes seriam somente os prisioneiros de guerra tribais que aguardassem o momento do sacrifício final. Nos descimentos vinha a bugraria, espontâneamente convencida

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pela prédica dos missionários, fixar-se nas aldeias, onde era permitido aos colonos escolherem os indivíduos p·a ra prestarem serviços remunerados. Não obstante a intenção disciplinadora da lei, cometiam-se os maiores abusos, desatinos e burlas, na prática daqueles três processos, os quais, na realidade, se convertiam em três processos escravistas. O panorama não mudaria nunca do que pintara Vieira no sermão proferido em São Luís, a 2 de março de 1657, continuando por todo o período colonial: "Todos os índios dês te Estado ou são os que nos servem como escravos, ou os que moram nas colônias de El-Rei como livres, ou os que vivem no sertão em sua natural ou ainda maior liberdade, os quais por êsses rios se vão comprar ou resgatar, como dizem, dando o piedoso nome de resgate a uma venda tão forçada e violenta que talvez se faz com a pistola nos peitos." (8) O que interessava ao colono era usufruir o trabalho gratuito, dispor do índio como escravo. Precisavam de remeiros e tripulantes para as canoas que iam às drogas, de escravos domésticos, destinados às tarefas da "república" aludida irônicamente pelo Padre Vieira, pois os colonos se pejavam em realizar trabalhos manuais, que no seu cOipeito de vida só deveriam ser executados por intermédio de servos. Daí todo o drama que abalou o meio social da colônia, no espaço