Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários

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GEORGES SNYDERS

ALUNOS FELIZES Reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários

Tradução Cária AidaPereira da Silva

EB

PAZ E TERRA

Copyright by Georges Snyders e Editions EAP Títulos do original em francês Des éleves heureuxRéflexion sur Iajoie à /'éco/e à partir de que/ques textes littéraires Preparação: Sandra Rodrigues Garcia Revisão:Lulz H. Nery e Antônio P. Danesi Revisão técnica: Maria Lúcia Pereira Capa: Isabel Carballo

ÍNDICE

Dados Intemacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil) . Snyders, Georges. Alunos klizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários / Georges Snyders ; tradução Cátia Aida Pereira da Silva Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. 1. Difusão cultural 2. Educação humanísticaAspectos psicológicos 3. Motivação na escola 4. Programas de melhoramento escolar 1. Título. IL Título: Reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários. 93-0107

CDD-370.1 Indices para catálogo sistemático: 1. Educação: Filosofia 370.1

Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA SA. Rua do Triunfo, 177 01212 - São Paulo - SP Tel.: (011) 223-6522 .Rua São José, 90 - 11.° andar - cj. 1111 20010 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (021) 221-4066 que se reserva a propriedade desta tradução.

Conselho Editorial: Antonio Candido Celso Furtado Fernando Gasparian Femando Henrique Cardoso

1993 Impresso no Brasil / Printed in Brasil

PREFAcIO À EDIÇÃO BRASILEIRA INTRODUÇÃO

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PRIMEIRA PARTE

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A PRESENÇA DA ALEGRIA ESCOLAR ALEGRIA E NÃO-ALEGRIA JOVENS E ADULTOS AS RELAç6ES PESSOAIS

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53 69

SEGUNDA PARTE

1 A ESCOLA, O OBRIGATÓRIO

E A ALEGRIA

2 AALEGRIAEAESCOLACOMO UM MUNDO DIFERENTE 3 A OBRA-PRIMA COMO RUPTURA

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TERCEIRA PARTE

1 GENERALIZAR, UNlVERSALIZARA ALEGRIA ESCOLAR 2 ALGUMAS BREVES PALAVRAS, PARA FINALIZAR

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PREFÁCIO

A EDIÇÃO

BRASILEIRA

Para quem conhece a obra de Georges Snyders, a lucidez com que escreve, a coerência com que defende suas posições, o rigor com que analisa os problemas que discute, conviver, agora, com Alunos [eliZfS - Reflexões sobre a alegria na escola a partir de textos literários será uma satisfação e uma alegria que se repetem. Este é, sem dúvida, um livro profundamente atual. Um livro que ultrapassa certo ranço tradicionalista em que a alegria se afogava envergonhada de si mesma, contida, para não virar pecado, que supera Certo cientificismo arrogante da modernidade e grita, mesmo discretamente, mas decididamente, ao estilo do autor, em defesa da alegria. A alegria na escola, por que Georges Snyders vem lutando, alegremente, não é só necessária, mas possível. Necessária porque, gerando-se numa alegria maior - a alegria de viver -, a alegria na escola fortalece e estimula a alegria de viver. Se o tempo da escola é um tempo de enfado em que educador e educadora e educandos vivem os segundos, os minutos, os quartos de hora à espera de que a monotonia termine a fim de que partam risonhos para a vida lá fora. a tristeza da escola termina por deteriorar a alegria de viver. É necessária ainda porque viver plenamente a alegria na escola significa mudá-Ia, significa lutar para incrementar, melhorar, aprofundar a mudança. Para tentar essa reviravolta indispensá-

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vel é preciso deixar bem longe de nós a distorção rnecanicista; é necessário encarnar um pensar dinâmico, dialético. O tempo que levamos dizendo que para haver alegria na escola é preciso primeiro mudar radicalmente o mundo é o tempo que perdemos para começar a inventar e a viver a alegria. Além do mais, lutar pela alegria na escola é uma forma de lutar pela mudança do mundo. Por outro lado, é possível a alegria, para falar apenas entre nós. Para quem duvida que a alegria de viver está sendo intensamente assumida pela juventude hoje, que se d~ conta da geração de adolescentes e jovens que, recentemente, enchendo as praças e as ruas, cantando, de cara pintada, vestidos multicolormente, inauguravam uma nova forma de fazer política. Se batiam pelo impedimento do presidente, finalmente conseguido. Não vieram às ruas sisudos, de paletó e gravata, de colarinho duro. Vieram em algazarra criadora. Vieram cantando. Vieram alegres e firmes. Falaram. Criticaram. Choraram. Exigiram vergonha. Uma dessas adolescentes alegres disse, na televisão, com duas lágrimas que lhe deslizavam pela face sorridente, no dia da votação do impedimento: "Assim como fomos capazes de pôr o presidente na rua, nunca mais deixaremos que a vergonha Se mude deste país". Esta é uma afirmação grávida de seriedade mas, ao mesmo tempo, de esperança. E não há esperança sem alegria. Felicito a Editora Paz e Terra por acreditar na alegria.

Paulo Freire São Paulo, janeiro de 1993.

INTRODUÇÃO

Faltam novas idéias? Será que não me expliquei o suficiente?' Tive vontade de retomar os problemas sobre a alegria na escola,' esforçando-me para considerá-los sob um novo ângulo. Os "pedagogos", cientistas da educação a partir dos quais escrevi meu livro anterior, são especialistas que muitas vezes se dirigem a especialistas. Donde meu desejo de recorrer também a "escritores": romances, biografias, autob iografias, diários íntimos onde os autores falam sobre si mesmos, criam personagens e evocam vidas ilustres. Para o meu tema de pesquisa, isso não faz muita diferença: as autobiografias são redigidas tanto tempo após os acontecimentos que ficam, sem dúvida, impregnadas de perfumes imaginários. E as criações romanescas são fruto, afinal, das emoções vividas. O que me atrai nos escritores é que eles não são profissionais da escolaridade. Tampouco são consumidores incondicionais da escola; eles formam uma espécie de camada intermediária. Assim, pretendo que os textos literários tragam testemunhos mais variados, mais abertos e mais pessoais do que os estudos dos pedagogos. Por um lado, procuro nos textos literários matéria para reflexão: às vezes eles serão simples pontos de partida, já que *

O livro anterior do autor, Ia joie à l'écolc, PUF, 1986, trata do mesmo assunto. (N.T.)

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eu poderia chegar sozinho às mesmas afirmações. Mas não raro eles me ajudarão a precisar, a enriquecer, até mesmo a alterar o tema da alegria: vou superar a idéia de alegria para atingir alegrias particulares, localizadas, distintas umas das outras, para alcançar as inúmeras possibilidades de alegria na escola, os múltiplos recursos da escola em termos de alegria. Por outro lado, procuro provas nesses textos: eles me confirmam que a alegria escolar existe de fato, que eu não estou me perdendo na irreal idade, pois a escola como local de alegria não representa uma utopia, simples desejo desvinculado daquilo com que alunos e educadores sonham e de que sentem falta. A escola já contém elementos válidos de alegria. Ela não é oposta à alegria, esse sentimento já é possível na escola atual, o que torna ainda mais lamentável que ela não esteja entre seus objetivos primordiais. É a partir da pr6pria escola, dos fragmentos felizes que ela deixa transparecer, que se pode começar a pensar em como superar a escola atual. Eu gostaria que os testemunhos de alegria na escola aparecessem como índices precursores, propondo através de exceções o que a escola poderia vir a ser em geral. Ou melhor, que esses testemunhos fossem pontos de apoio para que isso ocorresse, assim como certos homens são os precursores do que o homem pode se propor. ~ Tenho ainda um terceiro motivo para pesquisar testemunhos de alegria na escola: esta deve ser transformada e renovada, mas pode ela melhorar ou é incorrigível? Seria o caso então de destruí-Ia: Ilich afirma que toda escola gera estruturas "burocráticas" e que isso não tem remédio, a não ser renunciando precisamente ao que define a escola: a sistematização. Ao contrário, os textos sobre a alegria na escola reforçam minha convicção de que esta, apesar de terríveis fracassos, também consegue ser bem-sucedida. Não é preciso transferir as esperanças para outros lugares (formação voluntária, lazer...);

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podemos aspirar a uma sociedade melhor com melhores escolas, sem termos que nos resignar com uma sociedade "sem escola". Na verdade, recorri na maioria das vezes a obras "literárias", sem descartar obras mais teóricas, de jaurês a Brecht, de Freud a Gramsci. Devo confessar que tal afirmação pode não corresponder ao tom geral do livro. Ela constituiria um interlúdio iluminado em meio a um conjunto obscuro, porém representa o que eu gostaria de ter valorizado. Não me preocupei com a cronologia nem com a heterogeneidade dos autores, ora muito ilustres, ora quase desconhecidos: o sonho não tem a propriedade de abolir as barreiras temporais e espaciais? E o aluno feliz na escola e por causa da escola é um tema que tem ainda algo de sonho ...

A pesca é escassa Pois os exemplos são raros, raríssimos, excepcionais. A alegria na escola é vivenciada por poucos e parece reservada a pouquíssimos. Eu precisei ler pilhas e pilhas de livros para recolher o sumo de alguns momentos favoráveis. Eu pesquei, diria mesmo que quase implorei por casos de alegria "escolar" nos livros. A imensa maioria dos escritores tem muito em comum com a imensa maioria de alunos ao dizer que não existe alegria na escola. Esse tema, para mim um dos aspectos essenciais do problema escolar, para muitos parece irreal, provoca risos. Quase não consegui compartilhar as preocupações da minha pesquisa com meus amigos e colegas, para não falar dos meus ex-alunos. Não procurei sondar metodicamente os testemunhos de alunos "em carne e osso", pois queria me referir a textos literários. Contudo, entrevistei um grande número de jovens, apresentei perguntas a várias classes, das quais citarei apenas um exemplo: em três classes do segundo ano do curso primário,

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perguntei o que era um "bom aluno". Nenhuma resposta evocou a alegria ou o prazer, apenas um ou dois sugeriram que o bom aluno é aquele que se interessa pelo que faz na escola. Em compensação, apareciam incessantemente os temas da obediência, da aplicação, da docilidade - fazer como foi dito para ser feito. Não só os alunos que fracassam, como é de se esperar, mas também muitos e muitos daqueles que são bem-sucedidos, de acordo com as regras convencionais, consideram evidente que a escola é triste e está condenada a ser triste - do mesmo modo que lhes parece evidente que o Sol gira em torno da Terra. E a alegria começa onde a escola termina; pode-se fazer o que se quiser, como se quiser, não há mais sanções. Alguns guardam rancor contra a escola, mas o pior talvez seja o fato de que a maioria dos alunos se resigna docemente à monotonia da escola, esperando que ela. termine ao fim de cada dia, ao fim de cada ano, ao fim da juventude -- na expectativa (e conformando-se com isso) de que ela os prepare para aquele famoso futuro cheio de promessas e ameaças. A escola de hoje, onde não há mais palmatória, onde quase não há castigo, não tem uma imagem melhor, em relação à alegria, do que a mais rude escola do passado. O mais desconcertante é o caso dos escritores: a maioria, ao evocar sua juventude, a juventude, nem mesmo concebe que a alegria seja possível na escola. Eles proclamam que não só sua experiência de vida, mas até mesmo suas leituras, deram-se essencialmente fora da escola, na maior parte das vezes na biblioteca de seus pais. A escola aliás é desacreditada tanto pelos escritores-professores como pelos escritores-escritores. Dessa forma, esses intelectuais que se dedicam à cultura, atingindo seus mais altos níveis, e que por outro lado se dirigem a um público culto, não teriam conhecido nenhuma alegria quando a escola os iniciou na cultura.

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Quando se trata de amor ou de família, a maioria dos livros diz: em certos momentos, tudo vai bem e somos felizes; em outros não, tudo degringola. Quanto à escola, a alegria parece que nunca vai se estabelecer, a não ser muito excepcionalmente. Ora eu ficava admirado, ora escandalizado, e tinha a sensação de que o tema escapava ao meu objetivo. Admiti o abismo existente entre os grandes "topos", os ímpetos retóricas sobre a missão da escola, e a "realidade" desesperadora da escola tal como ela aparece em tantos romances escolares. Terminei por me concentrar sobre a reduzida seleção de textos que me eram favoráveis.

Serei um ingênuo? Para não ceder ao desânimo, disse a mim mesmo, em primeiro lugar, que, considerando-se a prática das aulas no dia-a-dia, meu espanto é que é espantoso: professores e alunos vivem em condições realmente lastimáveis, com classes geralmente superlotadas, locais inadequados, cansaço, angústias ... Portanto, ambas as partes estão essencialmente preocupadas em sobreviver. Podendo-se, uma vez ou outra, sentir algum prazer, tanto melhor. Mas quantos possuem a força, a audácia de abrir verdadeiras perspectivas à alegria e os meios de alcançá-Ia? . Em seguida, concluí que não seria preciso tomar os textos ao pé da letra. O adulto desenvolve atitudes bastante ambíguas em relação à sua juventude: muitas vezes ele tem contas a ajustar com ela, tratando com ironia e desprezo os entusiasmos, as esperanças do seu passado e só guardará, da escola, os momentos deprimentes. Quanto ao escritor, ou seja, o adulto culto e orgulhoso de sua cultura, ele é levado a crer e a fazer crer que seu talento e seu êxito devem-se somente a ele: o que aprendeu durante

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sua escolaridade, na experiência comum através de exercícios triviais, em companhia de colegas limitados demais para apreciar o seu valor: tantos obstáculos que ele superou pela força excepcional de sua personalidade. Que escritor consentiria em narrar uma infância acomodada à instituição? Onde colocar a mordacidade, a ironia incisiva?

À procura do sentido

e há certos professores que querem abrira seus alunos esse tipo de itinerário: por exemplo, formar uma personalidade de opositor, pegar, da cultura, os temas de oposição. Determinado professor lamenta que o colégio (técnico) prepare os alunos para a "obediência ... a humildade social... a resignação" e está convicto de que eles se desenvolveriam se chegassem à insubmissão: Que fazer para que 'eles se revoltem contra mim? Porque somente se revoltando contra mim é que eles terão aprendido alguma coisa de mim ... Certamente eu sou o único que pode ensinar-lhes a revolta."

Havia, pois, necessidade de decifrar as queixas e acusações dos alunos: nem minimizá-las nem tomá-Ias ao pé da letra, mas tentar compreender a que dificuldades elas correspondern. Perante os colegas, perante um professor "sabido", o aluno sente medo de não estar à altura e o temor se traveste facilmente em crítica e em recusa. O medo do fracasso, o medo de enfrentar o difícil acionam mecanismos profundos de defesa: ceticismo generalizado, recusa das obrigações e avaliações. Há momentos em que o aluno que fracassa pode apenas refugiar-se no "orgulho" de afirmar que "seus resultados pouco lhe importarn'Y logo, ele só pode entregar-se à "preguiça". Certamente não excluiremos o papel positivo dessas negações escolares no desenvolvimento da personalidade, mas o que é denunciado então pelo jovem faz sentido muito menos como testemunho sobre os fatos do que como expressão de uma personalidade à procura de si mesma: "Esta dureza, (como uma) casca, crescera em torno dele porque precisava dela"." Porque são, por definição, jovens, de modo algum personalidades já formadas, ainda menos fixadas; não se representará a pessoa do professor chocando-se com as pessoas dos alunos, mas sim alunos tentando diferentes papéis e o papel de refratário pode figurar entre os mais favoráveis. Mais um passo: é justamente seguindo caminhos indiretos que certos alunos avançam, afinal, em direção à alegria-

Resta distinguir entre o desenvolvimento do jovem na revolta e o simples prazer de protestar contra determinada pessoa, determinada autoridade. Não se deve ver em toda recusa escolar a réplica legítima dos jovens, oprimidos, nem tratá-Ia como capricho infantil, mas sim decifrá-Ia como uma das atitudes possíveis nesta tão rude e às vezes desesperadora ascensão à alegria escolar. Em suma, decodificar os textos, pois talvez eles sejam menos desesperadores que à primeira leitura. Uma última observação sobre este ponto: levaremos em conta o pudor dos jovens, sobretudo quando estão em classe e em grupo: eles quase não deixam transparecer suas emoções pessoais, íntimas: "os colegas vão zombar de mim". Mesmo que exista alegria, ela aparece pouco nos fatos e corre o risco de aparecer ainda menos na fala. Alguns gostariam de retrucar que está na moda criticar a escola; mas por que não a moda inversa? De fato, desde Montaigne - que se diz "desapontado" porque o termo magister possui "pouco significado honroso entre nós"? - até Francisque Sarcey, no final do século XIX - propondo-se como nova tarefa traçar perfis de professores que deixariam de ser enfim "pouco agradáveis"6 -, é bastante longa a lista daqueles que não encontraram alegria na escola.

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Valorizada, desvalorizada, superualorizada É impossível ignorar que o discurso antiescolar faz parte da batalha política geral: repetir que a escola é um lugar de tristeza é contribuir para o desânimo, para criar uma atmosfera onde os alunos se sentirão desestimulados. O jovens já hesitantes quanto às suas possibilidades e à sua carreira serão mais facilmente persuadidos a interromper os estudos - e eles, em sua maioria, não pertencem às classes mais favorecidas. O discurso antiescolar também pode contribuir para o desenvolvimento de outros centros educativos além da escola - em geral à base de voluntários, escapando assim a muitas dificuldades do escolar, mas arriscando-se a ignorar suas tentativas rumo à igualdade. Retomarei mais adiante a esse assunto. É preciso dizer também que atacamos a escola porque é mais fácil e menos arriscado do que se opor às Forças Armadas, ou à Magistratura, ou à organização capitalista, enfim, à sociedade da qual a escola não é senão uma das partes; e os fracassos da escola são apenas um dos aspectos dos fracassos de nossas sociedades. Se a escola atraiu e continua a atrair tantas críticas, é porque está profundamente viciada - e sua renovação é uma tarefa urgente. Tais ataques, porém, demonstram também a intensidade das esperanças colocadas na escolarização. A escola é alvo de expectativas demasiado grandiosas para que ela possa satisfazê-Ias - como quando se quer transformá-Ia no laboratório da paz social, do entendimento entre os povos. Depois do que, atacam-na a ponto de silenciar sobre seus sucessos, os quais poderiam suscitar-lhe a alegria.

Escolas contra a alegria Não é em absoluto evidente que a escola deva centrar-se na alegria dos alunos.

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No século XVII (em minha tese, insisti longamente nisso), a maioria dos valores educativos são colocados ao lado da austeridade e da ascese. Lembrarei um único exemplo disso: Jacqueline Pascal quer acima de tudo persuadir as moças pelas quais ela zela de que "quanto menosagradávellhes for o trabalho que fazem, mais ele agradará a Deus".7 Trata-se de habituar as crianças a "trabalhar com espírito de penitência", a "se mortificarem" no e pelo trabalho. Como conseqüência disso elas não devem "seguir suas inclinações", nem mesmo "se apegando mais a uma obra do que a outra". Tais renúncias custam um preço alto, pois "é preciso vigiar perfeitamente as crianças, nunca as deixando sozinhas em qualquer lugar que seja". Sem dúvida, Jacqueline Pascal é profundamente apegada a esses jovens alunos e é com a maior boa fé que ela acrescenta: É preciso que nossa vigilância contínua seja feita com doçura e com uma certa confiança que os faça, acima de tudo, acreditar que são amados e que é apenas para acompanhá-Ias que se está com eles. Um amor sustentado pela compaixão, que se preocupa com as individualidades, sobretudo em suas fraquezas: "Não se deixa, no entanto, de sentir piedade delas e de acostumar-se com elas o máximo possível". Essa condescendência não pode - aliás, não deve, aqui -. compensar a negação intencional da alegria. Nos séculos XIX e XX, o acaso me fez encontrar três sátiras inglesas que, de um modo evidentemente irônico, proclamam o tema da escola como que organizado pela não-alegria dos alunos. Em primeiro lugar, afirmar-se-a que a questão alegrianão-alegria não deve ser tratada em matéria de educação: "Seus mestres sempre pareceram considerar que a satisfação que podia haver em aprender isto ou aquilo era uma coisa com a qual [o aluno] não tinha nada a ver"."

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Um pouco mais e teremos a alegria castigada em praça pública: "Quanto mais (o aluno) detestasse uma coisa, maiores eram as chances de que essa coisa figurasse entre as suas obrigações". Ainda aqui, a oposição entre o dever e o prazer se inscreve numa perspectiva religiosa: o que é agradável "cheira a pecado" e junta-se a um pecado primordial, fundamental: "Eu já disse inúmeras vezes que ele próprio sentia estar sendo mau". É o pecado original da inf~ncia que vem mais uma vez puxar a orelha. Por meio desse conjunto de castigos e temores, os educadores esperam conduzir a atitudes de submissão: "[Ele acreditava] sem hesitação em tudo o que lhe era dito por aqueles que tinham autoridade sobre ele". Será necessário insistir na relação, no vínculo com o conservantismo social? Em Dickens (e também pensamos, evidentemente, na infância de Jules Valles), os educadores estão convictos de que a experiência cotidiana basta para justificar seu preceito: o melhor método para educar crianças e formar seu caráter é "darlhes tudo de que não gostavam, e absolutamente nada do que gostavam [..,] fazer tudo o que lhes desagradava, sem nunca fazer o que lhes era agradável"9. Como se faz com freqüência em pedagogia, usaremos de metáfora extraída do campo da biologia: não a criança se formando e se desenvolvendo como uma flor delicada que vai desabrochar, mas como uma ostra que deve ser "aberta à força", Bernard Shaw, por sua vez, evoca a escola não mais como um local de severidade e de maus-tratos, mas sim como se esta estivesse entregue a um mal talvez ainda mais inimigo da alegria: a escola é a instituição que nos "habituou a nos aborrecermos" e ao longo dos anos desenvolveu em nós" a paciência para aceitar, para suportar o tédio" ,10 Graças à ação da escola, as pessoas, quando adultas, continuam a consentir no tédio: por exemplo, assistindo a conferências como aquelas que fez Shaw precisamente sobre o tema do tédio .., Não há mais necessidade de um regimento escolar.

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Mas para chegar a um resultado assim, foi preciso repreender muito as crianças, cujo movimento inicial era "indignar-se" quando se entediavam na escola, o que é um claro indício de que esperavam dela algo muito diferente.

Para levantar nosso moral Eu não gostaria de deixar ao leitor impressões tão contrárias ao fim que persigo, e antes de entregar-me a análises mais detalhadas gostaria de fazer eco a certos autores que pelo menos lançaram apelos em direção a uma escola que provocasse a alegria. Victor Hugo, após um violentíssimo ataque contra o ensino e os mestres, evoca o momento em que Sendo o saber sublime, aprender será suave, Homero carregará em seu vasto refluxo O estudante fascinado. 11

Mas, para obter tal êxito, a escola não pode permanecer isolada, A alegria na escola supõe que "o Sol é para todos", Michelet deseja que, além dos problemas de método, a pedagogia consiga propor aos alunos "um substancial alimento" onde o desenvolvimento e a alegria não estejam separados, sendo o substancial "aquilo que (na escola} alegrará, preencherá o coração da criança", 12 Gosto muito de colocar lado a lado estas duas frases de esperança e de cobrança. Uma, de Freud: "A escola deve proporcionar aos jovens vontade de viver e oferecer-lhes sustentação e ponto de apoio" ,13 A outra, de Einstein: "A arte mais importante do mestre é provocar a alegria da ação criadora e do conhecimento'v'" • Mas por que não me limitei simplesmente a Comenius, que não aceita que as crianças sejam infelizes na escola e deseja fundar uma nova educação onde a alegria ocupe todo o espaço

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que lhe é devido? "O local de ensino é, por sua natureza, alegre e afável... delícia da alma."15 Seja como for, nossos alunos de hoje talvez se identificassem mais com as angustiadas perguntas que o jovem Tõrless dirige aos próprios objetivos da educação, a uma alegria que se esquiva não renunciando, porém, à exploração da matéria - e esse é um dos aspectos, ,.., o menor, d"e suas pertur bacões" nao açoes .

13. Sigmund Freud, Résuliats, Idées, Problemes, I, p. 131, PUF, 1984 (sobre o suicídio, 1910). 14. Albert Einstein, Comment je vois le monde, 1979, P: 31. 15. Comenius, L'École de l'enfonce, 1628, capoI1I, citado por J. Prévost. 16. Musil, Les Désarrois de l'éleve Tõrless, 1960, P: 34 (em alemão, datado de 1906).

A cada noite, sabe-se que se aprendeu isto ou aquilo [...] que se obedeceu ao horário; [são] preparativos, exercícios: para quê? Experimentamos uma espécie de fome interior [e nos perguntamos]: de tudo o que fazemos aqui, o que é que nos levará a algum lugar?16

NoTAS 1. Em relação ao meu último livro (La joie à l'ecole, PUF, 1986), o atual é inteiramente novo: as análises são outras, os exemplos são diferentes e as conclusões gerais - creio e espero - foram renovadas e enriq uecidas. 2. Elisabeth Petit, Mademolselle Simon, 1958, p. 35. 3. Marcel Proust, [ean Santeuil; t.l, capo 1, V (escrito a partir de 1896, será publicado somente em 1952). 4. Pascal Laine, L7rrévolution, 1971, P: 79 (ele é professor de filosofia em um colégio técnico). 5. Montaigne L. I, Du pédantisme, capo25. 6. Francisque Sarcey, Souvenirs de jeunesse, 1885, P: 253. 7. Jacqueline Pascal, Réglement pour les enfonts de Port-Royal. 8. Samuel Buder,Ainsi va toute chair, capoXXXI, 1921, escritoem 1885. 9. Dickens, Dombey et fils, L. L, capoVII, escrito em 1848, trad. fr. de 1864. 10. Bernard Shaw, prefácio a Mésalliance, escrito em 1909. 11. Victor Hugo, Contemplations, L. I-XII, "A propósito de Horácio", 1856. 12. Michelet, Nos fils, "Introdução", 1869.

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1 A PRESENÇA DA ALEGRIA ESCOLAR

L PREVER •. OATUAL Eu ousaria, se não parodiar, pelo menos trazer para limites estritamente escolares o "final" triunfante da Ética: "A beatitude não é o prêmio da virtude, mas apr6pria virtude; e não sentimos alegria porque reprimimos nossas inclinações; ao contrário, é porque sentimos alegria que podemos reprimir nossas inclinações",' E eu gostaria de dizer: somente se o aluno sentir a alegria presente na escola é que ele reprimirá sua inclinação à distração, à preguiça, à facilidade. Pode-se realmente ajudá-Io a progredir exortando-o primeiro a despojar-se daquilo que o tenta? Afirmo que a escola preenche duas funções: preparar o futuro e assegurar ao aluno as alegrias presentes durante esses longuíssimos anos de escolaridade que a nossa civilização conquistou para ele. A criança é o desejo de crescer; inúmeros jogos comprovam como ela imita o que pôde conhecer da vida dos adultos. Conhecer, adivinhar ou suspeitar. O desejo de atividade sexual ronda: "As crianças pressentem que numa esfera misteriosa, contudo capital, o adulto é capaz de uma coisa maravilhosa ... nelas agita-se uma violenta vontade de fazer o mesmo"." A preparação para o futuro constitui um estímulo certo no presente e se inscreve na primeira categoria daquilo que eu

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denominaria alegrias intermediárias. O "mais tarde" é o campo da prática profissional, do sucesso profissional -- e também do exercício dos direitos; estamos muito longe de um utilitarismo que deveria envergonhar-se de si mesmo. A escola abrindo-se para o futuro: "trabalhe bastante para que mais tarde ... " ou então a variante pessimista "senão, mais tarde ... ", Para tanto, contribuem a vida diária - "mais tarde, quando você não for mais criança" -, o desejo do jovem de poder comportar-se enfim como os adultos e a pressão do seu círculo e da sociedade para que ele leve em conta o longo prazo. Esse papel é tão evidente e tão freqüentemente lembrado que serei breve a respeito dele -- e, ademais, gostaria de dedicar este trabalho à exploração de uma outra missão da escola. Contudo, é preciso enfatizar que preparar-se para o futuro faz parte das alegrias presentes na infância: o desejo de crescer é um dos componentes essenciais do presente da criança. Expectativas, projetos, tensão em relação ao desconhecido: Ela se julga, reconhece a nulidade do que faz, do que é. E, no entanto, está segura do que será, do que fará... tem aquela estranha sensação de que o algo mais não é o que ela é no presente, mas o que sera, aman h-a.3 Os métodos e as atitudes que a escola introjeta servirão ao sucesso posterior do aluno e são os mesmos dos quais ele já necessita no presente para sentir alegria. A alegria presente da criança exige um certo autogovemo e·um controle de suas ações - e a existência adulta terá que manter e desenvolver essas aquisições. Isso significa a esperança de um futuro caloroso que prolongue a vivência atual e, reciprocamente, a satisfação atual como trunfo dos futuros êxitos. Aqueles famosos executivos dinâmicos, solicitados em toda parte, não seriam adultos que viveram plenamente as alegrias da infância e que não esqueceram a intensidade delas?

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Todos os refletores voltados para opresente Preparação para o futuro e alegria no presente são duas funções que deveriam ser complementares, caso nenhuma tentasse obliterar a outra. Meu temor é que hoje isso não esteja em questão e que a tensão, ou até mesmo a crispação sobre o futuro apague a outra função da escola, o outro aspecto da juventude: o agora. Cabe à escola encontrar um ponto de equilíbrio entre a criança como futuro adulto e a criança como atualmente criança. Uma criança que desejo que seja feliz em suas qualidades de jovem, no seu presente de jovem, a começar pelo seu presente escolar. A fim de endireitar o bastão torto curvando-o em sentido contrário, façamos doravante silêncio sobre a escola como preparadora do futuro. Minha finalidade, agora, é centrar este trabalho nas alegrias presentes dos jovens, dar pleno espaço às alegrias do presente, ou melhor, criar um espaço pleno, na escola, para as alegrias do presente. Eu gostaria de uma escola onde a criança não tivesse que saltar as alegrias da infância, apressando-se, em fatos e pensamentos, rumo à idade adulta, mas onde pudesse apreciar em sua especificidade os diferentes momentos de suas idades.

Alegria de ser aluno, alegria de serjovem A alegria do aluno não pode ser separada da alegria do jovem, da alegria de ser jovem. A criança é um ser dotado para o presente, capaz de coincidir com o interesse presente, "inteira em seu ser atual"; ela tem por que amar seu presente e viver no presente. Eu gostaria que ela vivesse o projeto de contentamento e mesmo projeto de superação, adaptados às suas sucessivas etapas: "Cada idade tem a perfeição conveniente, a espécie de maturidade que lhe é própria; [fala-se muito] de um homem feito, mas consideremos uma criança feita"." A

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cada idade corresponde uma forma de vida que tem valor, equilíbrio, coerência, que merece ser respeitada e levada a sério; a cada idade correspondern problemas e conflitos reais, mas também recursos - e que já demonstraram sua capacidade, pois, o tempo todo, ela teve que enfrentar situações novas. Temos que incentivá-Ia a gostar da sua idade, a desfrutar do seu presente. O adulto amará a juventude não só pelo que ela promete ser, mas pelo que ela já é, ou seja, um período que merece ser vivido, ao invés de um mero tempo de exercícios, nos dois sentidos da palavra. A especificidade da infância e sua valorização constituem dois temas estreitamente ligados: na medida em que se consegue pensar a infância como distinta, ou seja. compreendida no seu presente, é que ela deixa de aparecer como uma ausência em relação ao adulto. A moderna psicologia infantil formou-se demonstrando que a infância não se reduzia a ensaios preparatórios, mas que já constituía uma vida harmoniosa. Uma pedagogia moderna fará da escola mais do que um simples lugar de pré-visão.

Frustrações necessárias e alegrias indispensáveis Para crescer harmoniosamente, a criança precisa munirse de alegria no presente. É verdade que, em cada etapa da vida do jovem, as limitações, as frustrações, os momentos de não-alegria têm um papel a desempenhar, dissuadindo-o de parar, de se "fixar" no estágio em que se encontra. Mas se o que predomina é a insatisfação do presente, o indivíduo arrisca-se a buscar no futuro uma espécie de refUgio e é de se temer que ele não tenha a força suficiente para construir esse futuro, para construir-se nesse futuro. Se ele não ama seu presente, se não tem confiança em si mesmo no presente, seu desejo de crescer ameaça transformar-se em fuga para o futuro. Bem mais do que as decepções, a alegria presente é que lhe dará forças para se desvencilhar das satisfações primitivas, para ir

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mais longe. É essencialmente através da alegria já conseguida que ele vai pressentir que a etapa seguinte pode lhe proporcionar muito mais alegria.5 Há algo irrefutável quando se opõe o princípio do prazer ao princípio da realidade, quando se repete para o jovem que ele deve trabalhar agora a fim de assegurar seu sucesso futuro, que ele deve se organizar em função de objetivos a longo prazo, adiar prazeres imediatos com vistas a obter satisfações mais importantes e mais duradouras. Evidentemente, esses conselhos têm fundamento; nenhum de nós, educadores, pôde um dia furtar-se a eles. O perigo é que acabem desvalorizando as alegrias da juventude .. O problema é defender a preparação para o futuro, fazendo sentir, ao mesmo tempo, que o presente comporta alegrias válidas, de boa qualidade; elas não são incompatíveis com os objetivos globais, e pode-se selecioná-Ias a fim de que não sejam incompatíveis com tais objetivos. Não se deve postular, mesmo de maneira implícita, que os desejos da criança são inevitavelmente medíocres." No final das contas, o próprio futuro, aquelas metas distantes pelas quais incitamos a criança a se sacrificar no presente, não são freqüentemente apresentados como renúncia, resignação, submissão? - no melhor dos casos como triunfo, o que não significa que ele seja prazeroso. A alegria corre o risco de ser descartada tanto da infância como da realidade futura, em prol da austeridade e até mesmo do medo. A valorização da vida adulta e o preço atribuído à alegria na infância finalmente caminham juntos.

Alegrias específicas da escola Procuro algo além do prazer imediato, mas também algo além do sacrifício dos prazeres imediatos. Quando eu induzo alunos a falar sobre a alegria na escola, alguns recordam a ale-

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gria das algazarras, a alegria do companheirismo. Muitos transpõem para a escola alegrias vindas de fora, como festas combinadas na escola ou excursões organizadas pela escola, mas todas com o objetivo preciso de sair da escola. Sem negar o valor e a importância que podem assumir tais ocasiões, procuro me ater fundamentalmente ao que chamarei de alegria propriamente escolar, quer dizer, a alegria de esperar o que me parece constituir a propriedade característica da escola: a convivência com a "cultura cultivada" que culmina na relação entre o aluno e os mais belos resultados atingidos pela cultura/ as grandes conquistas da humanidade em todos os campos, desde poemas até descobertas prodigiosas e tecnologias inacreditáveis. Alegria cultural, alegria cultural escolar... Eu anuncio em algumas palavras os desenvolvimentos vindouros. Essas são alegrias impossíveis de ser atingidas sem intensos esforços. Tais alegrias, vividas no presente do aluno, longe de anular, justificam as exigências, compensam a demanda constante para esse "se aplicar". "O esforço vale a pena, em vista da alegria que ele me proporciona", dirão os alunos, pelo menos de vez em quando, "vale a pena levantar tão cedo todo dia e engolir tanto sapo". Ando à cata de alegrias escolares presentes, não imediatas senão o que seria da ação do educador? -, mas conseguidas na vida presente da classe, digamos que durante as semanas dedicadas à abordagem de um determinado tema de estudo. Se, num passado recente, os alunos puderam verificar, dentro de um determinado prazo, que seu trabalho efetivamente lhes retribuía a alegria prometida, eles darão ao professor um crédito breve e satisfatório: a promessa de que, ao cabo de seus esforços, eles conhecerão a alegria de compreender, de se comover, de saber fazer ..•

vencer mais tarde - sem se preocuparem dos vivenciados ou não no presente.

mais com significa-

Trabalhar e serfeliz Há uma simples promessa: "Isto lhe servirá mais tarde ... mais tarde você dará valor". E o agora? A partir daí, os alunos ficam evidentemente tentados a antecipar esse futuro, a se transportarem imediatamente para o "mais tarde" e, como eles dizem, a "trabalhar", o que estranhamente significa que não se está mais na escola. A escola deveria ser um local de alegria para os alunos e também para os professores. Na realidade, eu me ocuparei quase que somente dos alunos; contudo, privilegiar a alegria dos alunos já seria contribuir bastante com os professores. O bom seria perguntar à criança, quando esta voltasse da escola: "Você estudou direitinho?" E, no mesmo tom de voz: "A aula foi agradável? Ela trouxe algo de novo para você?". Com, apesar de tudo (e tenho que admiti-lo), este equívoco fundamental: mesmo que a escola não satisfaça completamente o aluno, este não pode ser o motivo para que ele a abandone. Como fazer com que os alunos sintam que podem e devem reivindicar a alegria escolar no presente? Com professores que ousem dizer a seus alunos que o trabalho na escola é o contrário do tédio: "Nós vamos viver juntos uma bela aventura"." Recreação - esse estranho termo: é evidente que a gente se cria, que a gente se recria e se recreia melhor fora da sala de aula?

O que me parece temível é que alunos e professores vejam-se reduzidos, com tanta freqüência, a experimentar a escola como tempo inevitável de preparação, espera, meio de

É claro que o trabalho dos adultos nas empresas pode incluir a alegria, embora não tenha por objetivo nem a formação do indivíduo nem a busca da alegria. Eu gostaria que o trabalho dos alunos na escola fosse vivido de modo bastante diferente: as obrigações, inevitáveis tanto num caso como no outro, não representam aqui condições de produtividade e de lucro, mas etapas em direção à alegria - a menos que se chegue ao extremo de dizer que o trabalho escolar poderia ser o exemplo precursor do que será um trabalho adulto livre.

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Se fosse possível fazer tudo o que quiséssemos Agora, quero parodiar Platão. Sócrates explica muito bem que, para a imensa maioria dos homens, a justiça se reduz a uma triste necessidade: se não respeito a propriedade do vizinho, que garantia posso ter de que os meus vizinhos respeitarão minha propriedade? É compreensível a sedução exercida pelo mito de Giges, aquele que podia tornar-se invisível e cometer assim todas as infrações que quisesse sem o risco de represálias. Sócrates, ao contrário, sustenta que a justiça representa para· cada um a saúde e a harmonia do seu ser, participando da harmonia do cosmos. Não é verdade que para muitos a escola se reduz a urna triste necessidade? É preciso que a juventude seja vivida em algum lugar, é preciso passar a juventude preparando a pós-juventude... Qual Sócrates fará urna escola onde o aluno possa encontrar a consonância consigo mesmo? Esse sonho de reconciliar a escola e a alegria presente não data de hoje. Basta pensar em Rabelais e mesmo IlO século XVII, época já evocada pela sua austeridade educativa, e ouvir madarne de Maintenon fazer um trocadilho: "Uma educação triste é uma triste educação". E Fénelon por sua vez: Observai uma grande falha das educações habituais: coloca-se todo o prazer de um lado e todo o aborrecimento de outro; todo o aborrecimento no estudo, todo o prazer nos divertimentos. Que pode fazer uma criança senão suportar impacientemente essa regra e correr ansiosamente atrás dos jogos?9

Diversas causas me parecem favorecer as iniciativas atuais, apesar dos problemas provocados pelas crises, pelas dificuldades sociais, pelas decepções de todos os tipos: durante as últimas décadas, a pedagogia e as ciências da educação preocuparam-se bastante com os métodos e as relações pedagógicas e, assim, realizaram-se progressos nessas áreas. Agora, começa a operar-se uma conscientização da essencial importância dos conteúdos ensinados, gerando, dessa forma, um esforço para a renovação dos mesmos. Não basta que na escola se formem os instrumentos, os métodos e os hábitos destinados essencialmente a servir ao "mais tarde". Manifesta-se cada vez mais a preocupação com uma cultura escolar suscetível de responder às demandas atuais dos jovens. Temos uma segunda razão para acreditar que o eterno problema da alegria na escola possa conhecer um progresso decisivo hoje. Durante séculos, a escola pôde subsistir proporcionando aos alunos pouquíssima alegria no presente. Mas, hoje, muito mais jovens passam muito mais tempo na escola, não só todas as fases da infância corno uma grande parte das fases da adolescência se desenvolvem no universo escolar. A adolescência escolarizada exerce uma influência sobre a infância, que está ciente de ter um longo período de aulas pela frente. Não se trata mais de um período breve no qual é possível resignar-se com a ausência de alegria _.- provisoriamente.

Assim, o ideal da alegria na escola, da alegria presente na escola nunca desapareceu. Porém, como eu já disse, quando procuro testemunhos, notadamente entre os escritores, deparo com uma imensa maioria de descontentes. Podemos ter a esperança de acertar mais que as coortes que nos precederam?

É fundamental ressaltar, em terceiro lugar, que a escola atual recruta uma parte de seu "público" nos meios sociais onde o presente, a alegria do presente e mesmo a festa do presente ocupam um espaço considerável. Os argumentos clássicos de economia, de investimento, do longo prazo têm pouquíssimas chances de serem levados em consideração por esses novos consumidores da escola. É verdade que, em qualquer época, a infância e a adolescência constituíram momentos da vida ávidos de alegria presente e aptos à sua fruição. Mas o mundo contemporâneo produz jovens mais capazes,

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Hoje, maiores chances de alegria

em relação ao passado, de conquistar essa alegria. Sem diferenciar o que é causa e o que é conseqüência, eles passam a procurá-Ia, a solicitá-Ia, a exigi-Ia com mais intensidade. Por um lado, o lazer se estruturou em instituições. Os instrumentos de lazer, desde a televisão até a organização dos esportes e das férias, ocupam posições-chave em nossas sociedades, sem paralelo com as simples distrações de tempos atrás. Ademais, certas instituições de lazer, consideradas como meios de formação, estabelecem uma concorrência cada vez maior com a escola. Elas prometem aos seus seguidores ~ que não são alunos, que não são constrangidos como alunos _.- progre~ dir sem despender tanto esforço como na escola, desfrutando da alegria muito mais rapidamente do que na escola. Se a escola não quer travar um combate por demais desigual, ela deverá se preocupar bem mais com a satisfação de seus adeptos. Enfim, os temas da penitência, da dificuldade e do valor educativo tendem a se dissipar. Vivemos num mundo onde a procura da alegria, ao invés de provocar culpa, aparece como um dos valores mais confessáveis, às vezes mesmo como um valor dominante ..

institucionalizar que os jovens só encontram alegria na vida extra-escolar, e a escola se veria reduzida a atividades fragmentárias de exercícios. Mas, felizmente, podemos encarar a situação pelo seu lado positivo e concluir que nosso tempo propõe como dever real a reconciliação entre a escola e a alegria.

IL A ExTRA-ESCOIARIDADE EAALEGRIA DO PRESENTE Evidentemente, eu poderia buscar essa alegria cultural do presente no âmbito da extra-escolaridade e teria, num certo sentido, menos dificuldade de encontrá- Ia. A extra-escolaridade oferece uma diversidade que permite responder aos diferentes desejos, à multiplicidade dos gostos - desde a equitação até os grupos de rock e desenvolver atividades não praticadas em aula, ou quando muito praticadas raramente. A extra-escolaridade é, na maior parte das vezes, opcional; escolhemos o que queremos fazer, escolhemos prolongar essa atividade até que ela não nos agrade mais. Além disso, muitas das atividades da vida extra-escolar (esporte, música) se orientam para fins próximos, estão pouco preocupadas em preparar o fUturo e não pesam portanto como preocupações distantes, mesmo quando o resultado é medíocre. Por todas essas razões, a luta contra a não-alegria é menos intensa do que na escola.

Dessa forma, o desejo de alegria dos jovens, mais forte, mais reconhecido que antigamente, encontra menos oposição, em princípio, na sociedade dos adultos, ainda que as dificuldades de aplicação permaneçam extremas. O ascetisrno é um valor em baixa em todas as camadas da população. Mesmo que ainda quase não se diga que educar é ir em direção à alegria, afirma-se menos que antigamente que educar é ir contra a alegria. A "sociedade de consumo" tem como verdade a procura da alegria, mesmo que se tenha receio de que a alegria escape precisamente quando procurada dessa maneira. Aliás, os jovens dão provas de uma crescente impaciência ante uma escola que lhes oferecesse pouca alegria e ameaçam, finalmente, recusá-Ia de forma cada vez mais intensa. Está em jogo o papel que a escola deve desempenhar e talvez até mesmo sua sobrevivência. Acabaríamos por admitir e mesmo

do fracasso que me faz teimar em buscar a alegria. na instituição - a es-

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A extra-escolaridade ora retoma, à sua maneira, setores já escolarizados, ora se abre para atividades que (ainda?) não tiveram lugar na escola. É inegável que ela pode oferecer, aliás, as ,llegrias da cultura mais elevada.

Não me posso impedir de ser reticente É o gosto pelo paradoxo ou pelo masoquismo

cola - que aparenta ser a mais apropriada para excluí-la? Na verdade, tenho vivos temores em relação às próprias alegrias que a extra-escolaridade suscita. Não ter necessidade de enfrentar sanções ou avaliações como na escola retira, sem dúvida, um grande peso, mas o amadorismo não pode cair numa certa insipidez devido à descontinuidadei A solução seria restabelecer a emulação através dos jogos e concursos - mas então seria julgada por quem? Seria desanimador para quem? Receio, sobretudo, que a extra-escolaridade se encaminhe para as alegrias fáceis e que renuncie ao supremo, à obraprima. Evocada por um instante na televisão, a obra-prima atua como um complemento, fica marginalizada, afogada em meio a dez outros tipos de entretenimento. Existe a preocupação de voltar a atenção para as grandes criações e para o indispensável esforço que deve ser feito para desfrutá-Ias? Resta o recurso de negar a obra-prima e de proclamar que o gosto pelo romance policial tem o mesmo valor que o goSto por Rimbaud. Esses aforismos são muitas vezes proferidos por autores cobertos de títulos, distinções e honrarias e insisto em ver nisso um dos meios mais sutis para os bem-sucedidos de continuar a reservar para eles próprios e para a sua classe social a leitura dos grandes escritores - e as vantagens que, inevitavelmente, decorrem disso. Receio que a extra-escolaridade não amplie realmente a variedade dos gostos, pois, dentro do contexto das formas de lazer "livres", cada um procura o que já aprecia ou já domina; e, ao mesmo tempo, corre-se o risco de acentuar os desníveis sociais, de consolidar ainda mais fortemente as desigualdades. Não há dúvida de que a escola está muito longe de conseguir êxitos iguais dos jovens de todas as origens, mas a extra-escolaridade não atinge nem mesmo de maneira unitária o conjunto da população. Se é proposta uma atividade envolvendo futebol e uma atividade envolvendo poesia, deixando-se cada um ir para onde o conduz seu "desejo", que proporção de filhos de

operários especializados e de filhos de operários especializados imigrantes irá buscar os prazeres da li nguagem? Sonho com uma complementaridade e uma harmonização entre a vida escolar e a vida extra-escolar, acima de tudo no que diz respeito às instituições extra-escolares. A escola é um tempo da vida do jovem; ela não deve querer reger toda a sua existência nem se considerar a única detentora de todas as formas de cultura. Ela me parece indispensável, por um lado, por ter a oportunidade de atingir largos contingentes de jovens, mesmo que reticentes - digamos, com otimismo, inicialmente reticentes --, e, por outro, por superar o nível dos gostos e dos hábitos já familiares, levando a um nível mais elevado. Aliás, dá-se livre curso ao desenvolvimento das individualidades na extra-escolaridade. Não esqueçamos, porém, que a vida escolar ajuda a vida extra-escolar, pois esta última se realiza de maneira bastante diferente conforme o nível básico dos interessados. Em suma, mesmo que eu às vezes inveje os prazeres da extra-escolaridade, não pretendo renunciar à introdução da alegria do presente na escolaridade.

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Cultura desinteressada? Quero dizer de passagem que tenho a maior dificuldade em empregar o termo cultura desinteressada e não gostaria, portanto, que ele fosse confundido com a busca de alegria na escola. É claro que eu não penso, em absoluto, que a escola (nem mesmo e principalmente a escola técnica) tenha por tarefa visar a fins imediatos de inserção profissional. Gostaria, aliás, que a especialização profissional e também cultural, quando, apesar de tudo, se fizer necessária, continuasse a incluir uma formação total da pessoa. Mas muito se abusou do termo "desinteressado": por exemplo, durante muito tempo o estudo do latim foi apresen-

tado como o tipo por excelência de formação desinteressada. Porém terminava-se a sua defesa demonstrando que, através do seu .aprendizado, o aluno poderia ter mais chances no futuro de atingir posições invejáveis. O desinteresse temporário se resumia a uma antecipação bem conduzida, a uma boa colocação de pai de família. Procuro uma escola interessada, interessada em ser, no presente, interessante.

2 ALEGRIA E NÃO-ALEGRIA

NOTAS 1. Spinoza, L'Ethique, 5a parte, Proposição 42. 2. Sigmund Freud, Un souuenir de Léonard de Vinci, cap.v, publicado em 1910. 3. Romain Rolland, Jean Christophe, 2, Le Matin, última página, 1904. 4. Jean-Jacques Rousseau, Emile 11, La Pléiade, p. 418. 5. De acordo com Janine Chasseguet-Smirgel, Revue française de psychanalyse, dez. 1973. 6. Cf. Bruno Bettelheim, Survivre, trad, de 1974. 7. Empregarei sempre o termo "cultura" no sentido normativo de cultura cultivada; refiro-me a valores e obras culturais. Mas gostaria, ao mesmo tempo, de introduzir uma ligação com os interesses da vida cotidiana, do trabalho, das atividades de lazer, 8. Alain Bosq uet, L'Enfont que tu étais, 1981, p. 319. 9. Fénelon, Traité de l'éducation desfilles, capoV.

Estou falando sem parar de alegria; vou invocar a alegria cultural, a alegria escolar, chegarei mesmo a introduzir o neologismo "não-alegria", indispensável para minha tentativa de examinar as relações entre alegria e tristeza. Não pretendo chegar ao extremo de retomar os debates da Antiguidade entre estóicos e epicuristas para determinar as noções de prazer, de soberano bem; não sou de modo algum favorável a uma forma de eudemonismo. Contudo, conservaria da Antiguidade, com muito gosto, a confiança atribuída à alegria, confiança a tal ponto relevante que Aristóteles recusa qualquer discordância entre a alegria e a pertinência da ação correspondente: "O ato de virtude é acompanhado de prazer ou, pelo menos, é desprovido de amargura e, em todo caso, não é algo penoso". 1 Desse modo, é a presença ou a ausência da alegria que se torna o sinal da validade moral de nossas ações:

o homem que teme a sombra do perigo, que tem medo de tudo, que é incapaz de suportar qualquer coisa, torna-se covarde, enquanto o que de nada tem medo e enfrenta tudo se faz temerário. Igualmente o que se. abstém de toda classe de prazeres encontrando alegria é temperante, enquanto o que se aflige é internperante.ê A pedagogia de Kant é vista muitas vezes como um panegírico acanhado do dever, exclusivo da vida dos sentimentos.

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Na realidade, a alegria é colocada como sendo necessária ao progresso moral: "Um coração alegre é o único capaz de sentir satisfação ao fazer o bem"." Não ter vergonha da alegria e sim exaltar o gosto, o desejo de alegria. Eu sonho em poder estabelecer um vínculo com Spinoza, quando ele distingue o prazer, parcial e passageiro, da alegria, onde o essencial está em jogo. Todo o ser e o movimento de todo o ser estão interessados nisso, um caminho é aberto rumo à investida total: "Quanto maior é a alegria, mais passamos para uma perfeição maior". 4 A alegria é um ato e não um estado no qual nos instalamos confortavelmente, é «a atividade de passar para ... ". A alegria também é um ato na medida em que, através dela, "a potência de agir é aumentada", um acréscimo de vida, fazendo o indivíduo se sentir como que prolongado, enquanto a nãoalegria vai se restringir, se reduzir, se economizar, ficar de vigília ou entregar-se à dispersão. Como eu gostaria de retomar, conforme o meu modo de ver, este pressentimento poético de uma relação entre a alegria e a luz: No espelho de fogo da verdade A alegria sorri a quem a busca.5

o provérbio

inglês simplifica sem dúvida a situação, mas

é muito gracioso:

o que interessa na vida é ser feliz O lugar de ser feliz é aqui A hora de ser feliz é agora. Na verdade é aí que os problemas se multiplicam: na medida em que a alegria é passagem, ela é "desejante", marcada, portanto, pela necessidade e até mesmo pela falta. Ela se relaciona, assim, com o modo de vida dos jovens que é transição,

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busca. Mas até onde a angústia do desejo pode se introduzir na alegria sem ameaçar a existência desta? Para tomar o meu tema na sua globalidade, gostaria de tentar apreender a intersecção da alegria e das tristezas.

As angústias Cultura é conscientização e por isso mesmo exacerbação de conflitos e dores. A partir do momento em que me tira do "banho morno", ela me obriga a confessar as angústias e discórdias que existem dentro de mim, ela me coloca diante da miséria e da vergonha dos homens. A guerra é testemunha atroz de que a humanidade não conseguiu sair de sua pré-história. A cultura são também os transviados, os dilacerados, os delirantes, os malditos, os abismos, meus abismos, o louco que eu trago em mim e que me ameaça. A cultura vai me abandonar por meio das minhas angústias? Ruptura (e arrependimentos) em relação aos prazeres primitivos, a uma vida mais simples, a posições que pareciam já asseguradas e vividas com um certo conforto. Que acontece com nossas crenças mais singelas, à medida que penetramos na cultura? Rupturas também com os menos cultos ou simplesmente com aqueles que têm outro tipo de cultura: geralmente com a família, com os primeiros colegas. A angústia é mais viva entre aqueles que vêm de mais longe até a nossa cultura: são inúmeros os imigrantes que se envergonham tanto do seu meio quanto de separar-se dele. Seria progresso ou traição adotar valores e um modo de vida que os seus não compartilham? Em contrapartida, alguns alunos "burgueses" experimentam certo mal-estar na condição de privilegiados, rompendo então com a sua classe para conviver com "pés-rapados" ou lamentando não ousar fazê-Ia.

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As dominações Existem na cultura ideologias a serviço dos dominantes e fragmentos de ideologia dominante, e não estou bem seguro de poder evitá-los: todos os discursos que, para manter a ordem estabelecida e garantir o respeito e a submissão às autoridades, justificaram as segregações - os negros, as mulheres e o povo foram vistos então como insuficientemente maduros, portanto, incapazes e indignos de gozar os direitos dos adultos. Existem também os silêncios dessa cultura. Reina-se ideologicamente a partir do que não se diz: a escravidão, os massacres dos índios etc. A ideologia dominante me parece condenada a uma oscilação incessante entre as afirmações "a situação é, no geral, satisfatória" e "não se pode fazer nada melhor, tudo o que se tentou conduziu ao fracasso, reforçou o fracasso". Quando se trata de uma ideologia dominante "avançada", ela se comove com as boas intenções daqueles que querem mudar algo mas demonstra, do mesmo modo, o fracasso e as catástrofes que eles desencadeiam ao querer fazer algo melhor do que o que já existe. Tem-se um avatar da cultura: ela pode tornar-se evasão, esquecimento, isolamento e refúgio em um mundo etéreo que se faz presente apenas em oposição ao mundo do cotidiano oásis num mundo dilacerado que eu abandonaria às suas discórdias. A cultura pode, assim, manter-me emparedado na resignação e no fatalismo. O mundo e a ordem do mundo apareceriam como um dado "natural" contra o qual nada pode; e o homem, como uma "natureza" mais ou menos idêntica ao longo do tempo, dificilmente mutável. Querem me conduzir à alegria da aceitação, deixar-me satisfeito com o que é um pálido e frio reflexo da alegria que eu já havia sentido. Quanto à própria alegria, não posso evitar certas questões espinhosas: as alegrias perversas, as alegrias da crueldade (Schadenfreude), para não falar em sadismo, em maus-tratos a alguém mais

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fraco ou a alguém diferente dos outros, na exaltação bélica contra aqueles que não pertencem ao meu grupo. E há também as alegrias fáceis: deixar-se levar pelo conformismo, aderir às correntes da moda é o quanto basta para que fiquemos tranqüilos com a coincidência dos gostos. Ideologias simplistas que pregam o mundo como ele é: os conflitos são escamoteados, as preocupações são reabsorvidas, desde que cada um contribua para isso com um pouco de boa vontade ou simplesmente de gentileza. O importante é aceitar no todo as coisas tais como elas se apresentam.

Estar alegre e manter os olhos abertos Como fazer face à torrente de acusações contra a alegria e também contra a ausência de alegria na cultura? Este trabalho deveria ter por conseqüência, pelo menos eu o espero, o restabelecimento dos direitos da alegria. Eu gostaria simplesmente, neste momento, de fazer algumas observações preliminares. Sobre a alegria da crueldade: Adler analisa o homem cruel como aquele que primeiro se deixa levar pela piedade, a qual é sentida depois como uma fraqueza, levando-o a instalar-se obstinadamente no extremo oposto. Aparece, assim, o aspecto incompleto essencial das alegrias "perversas": elas só existem esforçando-se para não levar em consideração as nãoalegrias, as angústias e os problemas, congelando-se num bloco rnonolítico." Do mesmo modo, as alegrias da cultura-evasão dirigemse apenas a uma parte do indivíduo: exigem que se coloquem fora do circuito porções essenciais de si mesmo, a ligação teoria-prática. Mas não se consegue esquecer completamente os imperativos do mundo do qual se gostaria de fugir: eis um segundo aspecto incompleto. A alegria do conformismo mantém-se tão-somente por querer ignorar as angústias e por deixar de lado as aspirações

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dos explorados, como o conhecimento das transformações já realizadas em sua vida. Isso significa ignorar a porção de abertura, de generosidade que existe nos outros, em particular nos jovens, que ainda têm chances de escapar da esclerose da boa ." conscrencia. Procurar alegria na cultura implica não pegar qualquer cultura e sim escolher entre as culturas, e para isso vejo dois critérios: 1. uma cultura e uma alegria que se dirijam ao conjunto da personalidade; 2. uma cultura e uma alegria que não ignorem as angústias, que num certo sentido as provoquem, mas que também abram caminho para superá-Ias através da denúncia, do desmascaramento, não mais tolerando as falsas aparências tranqüilas - e então o mundo começa a parecer como um conjunto de tarefas e de exigências. É preciso ainda que a cultura que elucida as exigências não as torne, por isso mesmo, impossíveis. Talvez seja necessário chegar ao extremo de dizer que cada aquisição de alegria cultural é acompanhada de responsabilidades e de angústias novas. Eu quero, eu escolho culturas cujo balanço seja positivo, onde o excesso de alegria ultrapasse o excesso de "incômodo".

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Enfim, aspiro a momentos de alegria, explosões de alegria num contexto que oscila entre o difícil e o atroz, aspiro a alegrias que "compreendam" angústia e dor, que, "co-nasçam" com a angústia e a dor. Não aspiro à felicidade, que me parece evocar a prudência num sentido de abstenção mais ou menos estóica, ou referir-se a um subentendido religioso.

A cultura rebaixada, a cultura realçada Alguns autores podem me ajudar a captar essa alegria exposta à não-alegria, mas que emerge, não obstante, desta última. Freud afirma que os resultados essenciais atingidos pela cultura se reduzem a outras tantas "humilhações'? Copérnico

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nos ensinou que o homem não desempenha um "papel predominante no Universo", que ele não é "dono do mundo", pois a Terra não é o ponto central do Universo. Darwinanula "nossa pretensão de estarmos separados do mundo animal". Freud apresenta-se como o terceiro dos mortificadores, nos ensinando que "o ego não manda na sua própria casa"; não sabemos o que se passa em nós e, pior ainda, não nos direcionamos conforme uma vontade clara, já que o inconsciente se encontra no princípio de nossas condutas e de nossos pensamentos," Num certo sentido, as análises de Freud são irrefutáveis. O progresso cultural, de fato, minou certas alegrias simples e em seu lugar fez nascer angústias. Mas a cada uma dessas decepções culturais contrapõe-se uma alegria. A psicanálise constitui, acima de tudo, um certo domínio do nosso inconsciente e, finalmente, de nós mesmos. Com ela, pode-se impedir que mecanismos psíquicos perigosos se aproveitem da nossa ignorância. Na peça de Brecht, o astrônomo moderno exibe o esplendor de um mundo expandido até o infinito: Durante dois mil anos a humanidade acreditou que o Sol e todos os astros do céu giravam em torno dela... muralhas, conchas e a imobilidade!"'Hoje, tomamos coragem e deixamos que eles se movam em liberdade, sem repouso ... E a Terra gira alegremente em torno do Sol [e os homens] giram com ela. De um dia para o outro, o Universo perdeu seu centro e, na manhã seguinte, havia um sem-número deles. Assim, hoje todo mundo e ninguém pode ser considerado o centro, pois de repente sobra lugar. Nossos navios vagam ao largo, nossos astros se movem ao largo num vasto espaço.

o Universo

torna-se grandioso, incomensurável nas imagens de um antropocentrismo primário. No evolucionismo de Darwin, Jaurês encontrou um dos pilares de seu otimismo: "Que os alunos possam imaginar de um modo geral a espécie

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humana dominando pouco a pouco as brutalidades da natureza e as brutalidades do instinto'? ou ainda, "a lição da vida que, degrau por degrau, parece ascender em direção a um píncaro, como se a vida tivesse como lei, inscrita na própria natureza, superar-se sempre"." Sentir-se merecedor dessa imensa elevação alimenta uma confiança sempre renovada do homem em S1 mesmo. Subsistem os sofrimentos culturais denunciados por Freud; contudo, mesmo permanecendo pungentes, eles são como que encobertos por alegrias muito mais intensas.

Alegrias e dores, mas nunca em partes iguais Esse entrelaçamento entre alegria e não-alegria, resultando finalmente numa vitória da alegria ou num coeficiente superior de alegria, não teria sido mais bem analisado do que pelo próprio Freud. Ele fala em três fontes de sofrimento: A pulsão recalcada não pára nunca de procurar sua completa satisfação e, no entanto, nada pode pôr fim a seu estado de tensão permanente [de maneira que subsiste a cada vez uma] diferença entre a satisfação obtida e a satisfação perseguida. 11

uma citação do Fausto de Goethe) nos impele sem trégua para a frente, sempre para a frente". Alegria da conquista, alegria de um progresso que não tem fim. No amor, Freud afirma que "as mais belas manifestações de nossa vida amorosa, devemo-Ias à reação contra a impulsão hostil que sentimos em nosso foro íntimo". A alegria do amor torna seu impulso no ódio, mas se distancia bastante dele. Enfim, parece possível uma reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade: quando a cultura (na verdade, fala-se aqui da pintura) é encarnada por uma obra, uma criação, ela simultaneamente é resultado do "livre curso dos desejos", nela se manifesta a "satisfação das pulsões" e não é mais forçada a "renúncias"; e ao mesmo tempo o artista soube "retomar pé na realidade" e pode-se dizer que ele encontrou o "caminho de volta", aquele que vai do desejo ao fato. Aí está a obraY Transformando-se em realidade artística, o desejo escapa ao risco de encerrar o indivíduo em si mesmo, em seus sonhos. Pode-se estabelecer a alegria de uma comunicação intensa entre o artista e seu público, sem que o desejo tenha que se restringir. As obras de arte seduzem pelo "prazer ligado à beleza da forma"; o real, quando tocado pela beleza, deixa de

Mais particularmente, a não-alegria do ódio é um componente indispensável à alegria do amor: união e mesmo unidade de "nossas mais ternas atitudes amorosas" com uma "hostilidade que pode chegar a comportar um desejo de morte inconsciente". Enfim, em toda a nossa vida, o princípio do prazer tenderia à satisfação de nossos desej os, mas ele se choca com o princípio da realidade, ou seja, com a tristeza das limitações. Entretanto, toda vez Freud abre um caminho pelo qual a alegria pode levar a melhor. No primeiro caso, é a própria distância entre o desejado e o realizado que se torna "a força motriz, o aguilhão que nos impede de nos contentarmos com uma situação dada, qualquer que seja ela, e que (trata-se de

ser aquele obstáculo que bloqueia nossas aspirações. Basta substituir os criadores por alunos e responsabilizar a todos nós, que somos meros amadores, pela luta vitoriosa da alegria. A alegria cultural não é serenidade satisfeita, ela é sempre atravessada e confrontada por elementos de não-alegria; esta não é um primeiro momento que seria depois suprimido pela alegria. Na realidade, a alegria é conquista instável, a ser arduamente defendida, pois está sempre ameaça da de recair no desespero. É impossível separar a alegria cultural da luta para superar a não-alegria; é preciso participar dessa luta. Deve haver lucidez nessas lutas, "sarça ardente".

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É aos poetas que eu me entregaria para sondar esse assunto: Piedade de nós que sempre combatemos nas fronteiras do ilimitado e do futuro. É de sofrimento e de bondade que sera'fi'erta a ble eza. 13 Partilhar dos dramas daqueles que combatem, participar da alegria de ultrapassar limites que pareciam definitivos: apesar de tudo, a luz vai brilhando cada vez mais. Para ir em direção à alegria, conto com as obras e os homens de cultura, já que esta está comprometida com a alegria. Quanto ao desalento, consigo vencê-Ia muito bem sozinho.

Transposição diddtica da alegria

o

problema consiste em passar da alegria/não-alegria da cultura para a alegria/não-alegria da cultura dentro das condições escolares. A escola é terrivelmente difícil de suportar quando comparada aos momentos em que o jovem pode fazer aquilo que deseja, na proporção que deseja e do modo como deseja sem que lhe prescrevam determinado objetivo e determinado método para atingi-lo, sem que tenha que prestar contas nem ser avaliado, sem que seja obrigado a uma atividade de resposta. Tais momentos podem acontecer em companhia de colegas que o jovem, afinal, mais ou menos escolheu, que partilham sem dúvida dos seus gostos, enquanto o grupo escolar... O aluno corre o perigo de sentir-se vencido pela escola ("eles" são mais fortes, tenho que ir à escola), enquanto meu problema, minha tarefa e meu tormento são estudar como a alegria escolar pode levar a melhor sobre as alegrias da cultura inicial e da cultura do lazer.

NOTAS 1. Aristóteles, Éthique à Nicomaque, IV-1, 1120a. 2.Id op.cit., Il-2, 1l04b. 3. Emmanuel Kant, Réflexiom sur l'éducatíon, p.135. 4. Spinoza, 111- Définitíon des sentiments, N 45. 5. Friedrich Schiller, Ode à Ia joie, V. 6. Adler, Connaissance de l'homme, 2a parte, capo 5, .publicação de 1927. 7. Sigmund Freud, lntroduction à Ia psychanalyse, XVIII, publicação de 1916. 8. Podemos notar uma ressonância dramatizada dessa passagem de Freud num livro recente: o professor de física lhes ensina "dois segredos terríveis" e o jovem afirma: "Desde então, creio que as duas feridas que ele abriu jamais cicatrizaram completamente". Em primeiro lugar, "a Terra não é, como acreditávamos, o centro do Universo; o Sol e a abóbada celeste não giram, muito dóceis, em torno de nossa Terra; nosso planeta não passa de um asrrozinho insignificante, atirado num canto da galáxia e girando servilmente em torno do Sol. A coroa real caíra da cabeça de nossa mãe Terra". E a segunda afronta: "O homem não é a criatura querida. privilegiada de Deus ... ele é, como os outros, um elo da infinita cadeia dos animais". Daí a conclusão: "Nós, os homens, somos insignificantes". Kazanrzakis, Leme au Greco, p. 114. 9. jean jaurês, Aux instituteurs, artigo de janeiro de 1888, ed. Riedec 10. Id., Díscours, janeiro de 1910. 11. Sigmund Freud, Au-delà du príncipe de plaisir, V, Essais de psychanalyse, 1920. 12. Sigmund Freud, Résultats, Idees, Problemes, I, p. 135, PUF, 1984 (os dois princípios, 1921). 13. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: La [alie Rousse, Collines, 1918.

Para compensar todas as suas desvantagens, é preciso que a escola se encaminhe em direção à obra-prima.

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3 JOVENS EADULTOS

I.

OPOSIÇÃO ENTRE JOVENS EADULTOS: RFALlDADES E QUIMERAS

Há realmente pouca esperança de alegria cultural na escola se a juventude se reduzir à fraqueza, ao informe, às trevas e à incerteza - ou pecado original, ser desnaturado que tem necessidade perpétua de ser corrigido, ou ainda, amontoado de humores e caprichos, abrandados com alguns prazeres simplórios. A juventude não levada a sério, desvalorizada, indigna do adulto, como poderia ela elevar-se até a alegria cultural? Sua educação deve então ocorrer na dausura e no isolamento, sob o signo da restrição e da austeridade. A criança deveria ser infeliz por não passar de uma criança. Como uma ladainha repetem-se as queixas seculares dos adultos contra os jovens, de toda geração contra a geração seguinte. É preciso dar um basta ao fato de a vida da criança e a vida do adulto não encontrarem linguagem comum, de a vida da criança e a do adulto só estarem ligadas (se assim me posso exprimir) pela descontinuidade. Esse aspecto provocou nãoalegria em Simone de Beauvoir: "Meus pais repetiam que a vida faz esquecer as amizades de infância ... os adultos não partilhavam das nossas brincadeiras nem dos nossos prazeres". 1 Também não se deve aceitar que a infância seja interrompida pela adolescência e pela vida adulta e constitua um episódio

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tranqüilo, sem dúvida mas pelo fato de se desenvolver dentro de falsidades tranqüilizadoras. Por outro lado, como contar com a alegria cultural escolar se a juventude é apresentada como ponto culminante, suprema conquista da vida? A iniciação à vida (adulta), longe de marcar momentos fecundos, soaria como regressão, decadência, seria a desolação de sentir desaparecer o que há de mais caro e, conseqüentemente, o jovem não teria grande necessidade da cultura adulta. Ele pegaria dela somente alguns ornamentos e poderes, úteis para rivalizar com os mais velhos. Essa "supervalorização" da infância é um lugar-comum na literatura. Poderíamos dizer que não é o caso de tomar esses escritos ao pé da letra. Entretanto, eles contribuíram para importantes correntes da sensibilidade educativa, Supervalorização religiosa: Ora, a inocência é plena e a experiência é vazia A inocência ganha e a experiência perde A inocência sabe e a expenenCla d escon h ece.2 'A



Supervalorização poética: "Talvez a infância seja o que mais se aproxima da verdadeira vida"." Supervalorização física: "O corpo da criança é a harmonia, a perfeição do equilíbrio ... (as crianças são) perfeitas maravilhas de arquiterura'" - crescer só traz "deformação". Ou ainda, "a criança de 12 anos atinge um ponto de equilíbrio e de desenvolvimento insuperável que faz dela a obra-prima da criação ... Depois, vem a catástrofe".5 Supervalorização psicanalítica: "Pensem no melancólico contraste que existe entre a inteligência brilhante de uma criança saudável e a fraqueza mental de um adulto médio". 6 Mais duas citações:

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Se as crianças continuassem a se desenvolver da maneira como se anunciam, teríamos apenas gênios; (mas) geralmente, elas prometem mais do que podem? Somente as crianças sabem o que procuram; elas perdem tempo com um boneca de pano e esta toma-se importantíssima. 8 Os adultos serão apresentados como eternos apressados, sem que saibam, aliás, qual é a causa de sua pressa, e como eternos insatisfeitos com o que fazem e com o que são. Eu diria que, de fato, a ação do Pequeno Príncipe não tem mais razão de ser do que a ação do adulto. Simplesmente, ele tem por lazer dedicar bastante tempo a ela, acabando por transformá-Ia em apego, a menos que se trate de simples hábito. A desvalorização do adulto culmina com a desvalorização da criança, apesar das intenções contrárias.

A infância como refúgio Um dos motivos pelos quais a alegria na escola continua sendo uma ínfima exceção nos romances (ou mesmo nas biografias) é que muitos autores supervalorizam a primeira infância e, assim, depreciam a ação do adulto e das instituições adultas sobre os jovens. Os escritores mais evidentemente cultos devotam uma espécie de culto à criança inculta, supostamente feliz antes da cultura, fora da cultura. De maneira geral, são inúmeros os adultos que destilam uma nostalgia da infância, se refugiam, se encolhem na infância, em particular naquilo que eles imaginam ter sido sua infância. Todos os elogios feitos à criança estão longe de ser desinteressados: quando o adulto não ousa abordar de frente as dificuldades de sua existência, ele se apraz em imaginar que existe uma criatura diante da qual todos os problemas se dissipam: a criança. Além disso, o adulto sente-se como um ser sensível e terno quando fica comovido com a fraqueza, a fragilidade da

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criança. Ele se garante assim em relação à sua própria emotividade, ao seu próprio valor. Elogios politicamente interessados: a criança é "sábia", ela precisa ser .sábia, precisa aceitar o mundo como ele é, ou melhor, como lhe propõem as autoridades. A criança confia no poder, o que é um exemplo meritório aos olhos de alguns ... Isso não impede toda geração adulta de proclamar a decadência dos jovens da geração seguinte, assim que se sente prestes a ser suplantada por esta última, não a tolerando, pois. Não se trata unicamente da infância. Existe também a tentação, em certas épocas, de proclamar a adolescência como valor em si e desse modo declarar que ela não tem necessidade da cultura adulta, e menos ainda d~ alegria cultural escolar. Dizia-se: "Eu sou jovem", e havia-se formulado uma filosofia, lançado um grito de guerra. A juventude era uma conjuração, um desafio, um triunfo ... Era inquietante, difícil e delicioso ser jovem. Era um problema constante, uma infinita volúpia.?

tende àquele período em que o aluno, para afirmar-se e para marcar posição como jovem, vive a oposição aos adultos como medo ou desprezo, aversão ou compaixão - inclusive, natu,,)) ra Imente, por seus mestres . Na minha opinião, a condição básica para que possa haver alegria na escola é que a criança sinta alegria em ser criança e que ao mesmo tempo essa alegria seja incessantemente reconquistada cada vez que surgir um dos cem motivos que ela tem para ficar infeliz é aí que a cultura adulta e escolar pode constituir uma ajuda. Existem cem motivos para ficar infeliz: desejo de crescer, mas também tormento - não será preciso, para isso, renunciar a muitas vantagens e privilégios? Crescer é precipitar os pais na velhice e na morte. Suspeita-se que sem dúvida será bem grande o abismo entre as esperanças jovens e o que o mundo vai oferecer, entre o que se promete fazer e o que se consegue realizar. Ser pequeno é estar à mercê dos grandes, não ser levado a sério, não estar à altura. Um texto emocionante de Henri Michaux vem a calhar:

Pode-se assegurar, assim, todas as vantagens da revolta juvenil sem ter que elaborar nenhuma análise, nenhum programa de aço, nada é derivado da cultura dos predecessores. Reúne-se, aliás, dessa maneira, o máximo de chances de conduzir a revolta a um impasse - assim que os adolescentes se tornarem adultos. Sob uma forma infinitamente mais moderada, notaremos inúmeros romances onde os jovens parecem capazes de se devotar a causas puras e grandiosas, enquanto os adultos, os pais são reduzidos a cuidar dos seus pequenos interesses. Donde, face à existência adulta, os jovens experimentam como sentimento dominante o temor de atingi-Ia. Está-se realmente do lado oposto àquele de uma alegria cultural no qual os jovens se iniciariam por intermédio do mundo adulto. A alegria cultural é ainda mais difícil de atingir porque a escola se es-

Mas a criança pode encontrar um jeito de compensar esses dissabores e construir a alegria de ser jovem. Há uma alegria incontestável na juventude, pois as suas qualidades a tornam apta à alegria. A experiência, repetida sem cessar, da crença e da tendência da juventude à felicidade comprova que o mundo e a criança não são opostos, mas podem se conciliar, se reconciliar. Eis a possibilidade de a cultura adulta repre-

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[o palhaço,] aquele que recebe golpes, não chega a devolvê-los, mas bem que gostaria, e recebe muitos outros, pois é desprovido de dureza, num mundo duro. Ele fascina as crianças que riem loucamenve dele ou choram desoladas, pois aquilo lhes diz respeito."

Recursos da juventude

sentar um papel, seu papel necessário, inclusive aí, ou, melhor dizendo, sobretudo na escola. Eu gostaria de relernbrar três dessas potencial idades da juventude:

a) A juventude como vitalidade "Ele se sente com força suficiente para animar o que o cerca".'! Já quando bebê, "que superabundância de força, de alegria e de orgulho nesse serzinho ... um entusiasmo que nada cansa e que tudo alimenta ... uma fonte que jorra uma inesgotável esperança". 12 Aos 14 anos, "você sente em si uma enorme energia, que vem do peito e do ventre, espalha-se pelos braços, dilata-se na garganta e termina no crânio. Você é feito de aço e de terrível vontade'l.P Aos 21 anos, ao saber-se tuberculoso, Camus escreve ao seu professor de filosofia: "Um ser jovem não saberia renunciar totalmente a si. Todas as fàdigas reunidas não triunfariam sobre as forças de recomeço que ele traz".14

c) A juventude como disponibilidade "A juventude é uma maneira de se enganar que se transforma rapidamente numa maneira de nem mesmo poder" se enganar."16 Não nos enganamos mais por não ousarmos nos lançar num pensamento mais atrevido, voltando-nos para as posições que acreditamos manter solidamente.

Isso quer dizer que a juventude

é tempo de indeterminação: há mil possibilidades, estradas são abertas e oferecidas, outras esperam para ser trilhadas. Riqueza e alegria da indeterminação profissional: [depois da aula de retórica] eu recusava apontar minha vocação. Eu ainda não queria isto. Eu me sentia capaz de ser oficial, banqueiro, arquiteto; [ele recusa o contrato decenal para o professorado; ele não quer assumir compromissos que o deixem na situação] de não [poder] construir durante dez anos uma catedral, de não [poder] comandar o Exército, de não [poder] tornar-me monge.17

porque o jovem é novo e não porque os outros seres estão gastos. Assim, um laço mais íntimo, mais puro o prende a tudo o que vive: "Ele desfruta do mundo formando um todo com ele".1s Alguns (aqui Bosco) dizem que ele vai direto ao cerne das realidades, que ele atinge o "próprio ser das coisas" e que suas intuições exprimem uma fé, um indizível de opostos aos raciocínios, superiores aos raciocínios. Quanto a mim penso antes na criança como uma chance de escapar ao "nada de novo sob o sol" e à indiferença, ao entorpecimento daí resultantes.

A indeterminação é também a oscilação entre os extremos da vida moral - e a força de trafegar entre uma e outra: "É o tempo da devassidão e da santidade, o tempo da tristeza e da alegria, da caçoada e da admiração, da ambição e do sacrifício, da avidez e da renúncia" .18O excessivo e a alegria do excessivo. A indeterminação deixa enfim o jovem na expectativa" na moratória. Ele ainda não se encontra encerrado em determinada função, em determinada "situação", daí estar aberto para sentir interesses além de seus interesses, ser mesmo capaz de decidir contra seu interesse, uma vez que é mais sensível ao sofrimento dos outros. A criança descobrindo a injustiça, indignada, decidida a não aceitá-Ia. Vitalidade, virgindade, disponibilidade: tantos caminhos para os quais ser educado, tantos apelos para ser educado, provocações para tentar a síntese enriquecedora das idades.

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b) A juventude como virgindade É a primeira vez, será o primeiro amor: o mundo é novo

IL A

SÍNTESE ENRIQUECEDORA

DAS IDADES

A escola é uma obra comum dos jovens e dos adultos, os adultos que lá estão em carne e osso, aqueles que instituíram a vida escolar e constituíram o saber escolar para que os jovens, pouco a pouco, se apropriem da cultura adulta. Contudo, os jovens também abordam essa cultura com sua especificidade, insuflando-lhe sua maneira de serem jovens. Já falei da união das alegrias e das incertezas, com, apesar de tudo, um certo predomínio da alegria. A segunda condição que possibilita a alegria na escola é a vivência enriquecedora da síntese entre as idades. "Olhares da infância, ricos por ainda não saberem ... olhares densos para tudo o que lhes escapa, enriquecidos pelo ainda indecifrado" .19 E o poeta pode propor: "As carências da criança constituem sua genialidade". 20 Gostaria de refletir sobre o ponto de junção entre as carências e a genial idade, salvaguardando a genialidade da criança sem com isso negar as carências. É certo que os conflitos e as oposições entre jovens e adultos subsistem e devem subsistir. Mas não se pode, ao mesmo tempo, trabalhar para uma síntese entre eles? O jovem leva para a escola a "genialidade" da qual ela necessita para vir a ser escola de alegria, e as "carências", que fazem com que ele necessite da escola para buscar mais alegria. A alegria na escola significaria ao mesmo tempo felicidade por ser jovem e felicidade por tornar-se "adulto", lançando mão da mediação do adulto que ensina. Felicidade por crescer e continuar a viver seu passado infantil sem amargura.21 ' • 22 Ch eganamos a, maravi ilha d"a super-m. fAancia. A infância não é uma coisa que morre em nós e seca assim que cumpre seu ciclo. Não é uma lembrança. É o mais vivo dos tesouros e continua a nos enriquecer sem que o saiba-

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mos. A infância deita rafzes e ramos até em nossas mais entrinchei~ d e pe dra [e ai'dá] . ~ d e1"1C1OSa. 23 ra d as construçoes se uma mvasao

Isso é dito aqui corno um dado, um fato a ser constatado: os psicólogos observam que permanece em nós uma criança que nunca cresce realmente, uma porção de imaturidade. Nós a lamentamos ao mesmo tempo que suspeitamos que ela nos é preciosa. Da minha parte, vejo aí principalmente uma tarefa a ser cumprida: forjar como que uma unidade progressiva entre as idades de um mesmo indivíduo, para não dizer uma coexistência. Unir o arrebatamento, o calor da infância às atitudes elaboradas do adulto. Isso me faz pensar em outras tentativas igualmente proveitosas: Michelet e Gramsci sonhando unir cultura popular e cultura erudita, Ma~ e Lênin, a vida do proletariado e a ação do partido. Tais sínteses seriam possíveis? Elas permanecem difíceis e instáveis. Os riscos de que um termo destrua ou invalide o outro são enormes. Gostaria simplesmente de citar alguns exemplos onde se realizou essa feliz junção entre as idades.

a) O adulto ajudando os-jovens a tomar consciência de seu valor. Muitas vezes os jovens aceitam, a respeito de si mesmos e de Sua geração, muitas idéias e juízos que lhes são desfavoráveis e que, em última instância, justificariam sua auto depreciação. Alguns adultos, no entanto, são capazes de fazer com que os jovens se levem profundamente a sério. O novo professor de filosofia, por exemplo, incita os alunos a adquirir uma "consciência mais nítida de sua dignidade".24 Um aluno começa a rir, pois "nunca lhe ocorrera que ele, um colegial, pudesse ter dignidade", o que leva o professor a exclamar: "Que o inconveniente se retire".

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"" Em circunstâncias como essa é o adulto que faz com que os jovens reconheçam o valor daquilo que estão vivendo - e, principalmente, daquilo que estão fazendo e produzindo: "Ele lia os seus textos com uma voz que, instantaneamente, os transformava em obras-primas] ...] Ele entendia melhor que vocês o que vocês tinham querido dizer" .25

b) "Ajudemos ajuventude a se conhecer;ela nos J J ,,26 restttutra o aom ae amar . •



I

Os adultos têm o que ensinar aos jovens, como ordenar seus sonhos, dominar seus sonhos (o que não significa de modo algum renunciar a eles), ir além de sua história pessoal e das tentações do narcisismo, esforçando-se para ser objetivos. Existe como que uma efervescência da juventude, que pode se perder e cair no ceticismo. A influência adulta pode contribuir para transformá-la em impulso autoconsciente, em tarefas possíveis e mesmo necessárias, consideradas certas condições históricas. Mas é com a juventude que se conta para insuflar como que uma febre criadora. É a capacidade de amar o mundo, de animá-Ia, contra tudo e contra todos, que os joVens têm a transmitir aos adultos. "Quando a juventude esfria, o resto do mundo treme. "27

É pela influência, pela ação dos jovens que os mais velhos têm uma chance de escapar a um dos mais graves riscos que os ameaça: a indiferença. Os adultos "têm necessidade de provar a si mesmos, admirando de novo o que eles admiravam outrora, que não estão decadentes".28 Conseguiríamos gostar de nós mesmos através das diferentes idades da vida: felizes por nos sentirmos jovens e felizes por estar indo para a idade adulta. A juventude como válida em si e como etapa a ultrapassar - o que supõe que a vida adulta não seja apresentada aos jovens e principalmente não se apresente como repugnante.

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c) Unir assim ofim ao início da vida. Encontrar enfim a solução do problema que a infância lançou: "O que é uma grande vida senão um pensamento de juventude executado pela idade madura?" .29 A juventude sonha e muitas vezes sonha certo, mas na falta de meios e instrumentos eficazes, permanece em estado de sonho. A vida adulta, para que o imaginado assuma formas efetivas, torna-se criação, construção, cultura, conservando os gostos da criança que brinca, do jovem que deseja. Segundo o ponto de vista que nos guia neste momento, a alegria da escola pode tornar-se realidade na medida em que a oposição psicológica entre as idades se dilua, proporcionando trocas produtivas entre elas. O que torna esse resultado difícil é o fato de que o adulto, em particular, se constrói a partir das múltiplas promessas de sua infância, escolhendo e acentuando potencialidades que ele sente em si (sempre chega um momento em que é preciso se especializar) e arriscando-se a sufocar e a se privar de outras - em última instância, mutilando o jovem que ele era. Por isso, ele ficaria ainda menos permeável às relações com aqueles que vivem a juventude. "Nasci vários e morri um só".30 Nosso problema caminharia para uma solução se este "um" pudesse ser não retraimento, mas unidade organizada, acumulada, de uma multiplicidade que não tivesse sido renegada. Penso em André Breton quando ele afirma que a mulher mais amada representa a síntese, a composição de todas aquelas que já haviam agradado por certas qualidades particulares." Um último exemplo de síntese enriquecedora ocorre no campo da comunicação - e de um modo muito diferente. Quero, porém, falar um pouco sobre ele. Parece que ordinariamente a criança vive a comunicação como coisa evidente e garantida. Ela sente que há um terreno comum entre os seres, uma coexistência pacífica; a proximidade leva mesmo à indivi-

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I são, a vida alheia e a sua participam da mesma história. Em seguida, ocorre a descoherta da distância entre os seres, a pluralidade das perspectivas, muros, cisões, solidão, mas como compensação capital cada um terá um ponto de vista original. Tudo isso é bastante conhecido. O objetivo dos trabalhos de M~rleau-Ponty é mostrar que o amor do adulto é capaz de reconquistar o dado primitivo, de fazê-lo reviver mantendo; evidentemente, as aquisições posteriores. O fosso entre as consciências permanece uma realidade fundamental e, entretanto, "não se podem mais separar absolutamente os papéis ... amar é viver pelo menos em intenção a vida do outro. O amor me tira de mim mesmo e institui uma mistura de mim e do outro".32 Essa confiante comunicação com o outro - que era oferecida à criança como dado primitivo e confortável - é de reconstrução difícil e tumultuosa na medida em que a idade avança, pois ela deve agora se harmonizar com o sentimento de cada vida em particular. Mas a síntese não é impossível e constitui um notável exemplo da unidade progressiva de uma vida humana.

llL A ARTE E A CRIANÇA A arte (aqui essencialmente a pintura) constitui um exemplo privilegiado dessa síntese enriquecedora da infância e da idade adulta .- e é o que torna possível e necessária uma profunda cooperação entre jovens e adultos, jovens e cultura adulta e portanto uma escola de alegria. Não faltam tentações de supervalorizar a arte da criança. Falou-se muito, muitíssimo que o artista adulto devia tomar como modelo a criança, resgatar a admiração da criança diante das coisas descobertas pela primeira vez. É verdade que importantes correntes da pintura contempodnea inspiram-se expressamente na arte da criança,

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quando esta não seria senão a coexistência desenhada entre' o visto e oconcebido. A vida adulta seria então um período quase inútil que o artista, em última instância, se esforçaria para suprimir. Chega-se, assim, a uma oposição entre as idades que tornaria impossível uma ação educativa entre as mesmas - e que tornaria inútil a intervenção da arte adulta nessa "perfeição" infantil. Sabemos muito bem que a arte da criança possui qualidades e valores: a criança descobre que é capaz de se expressar, e que aquilo que ela expressa participa da sua auto construção e da exploração do mundo. Seu desenho dá provas de caráter, vida, vivacidade, audácia; disso nasce um sentimento de deliciosa e aérea facilidade, donde decorre com tanta freqüência a alegria: "exprimindo despudoradamente seu prazer] ...] estando na idade em que não tem vergonha de mostrar seu prazer".33 Nas criações do artista adulto vão se reproduzir certas características da arte infantil, porém dentro de condições completamente novas que comportam agora a experiência da solidão e da infelicidade e as tentativas de superá-Ias; "duro desejo de durar" e, portanto, de trabalhar co m matérias sólidas, tão rudes quanto o que se espera fazê-las expressar. "A infância [é] dotada agora [... ] de órgãos viris e do espírito analítico que lhe permite ordenar a soma dos materiais involuntariamente amontoados" e, Baudelaire pode afirmar, o artista é "um homem que possui a genialidade da criança" .34É esse mesmo termo - "posse" - que vai ser elaborado por Malraux: passa-se da criança que "seu talento possui" ao adulto que toma posse de seu talento, chega à "dominação de seus meios", consciência e controle de seus sonhos, cuja visão final é "tentativa de posse do mundo".35 Nem a arte e a vida da criança se an ulam quando ela enfrenta o crescimento, nem a vida adulta é um apêndice supérfluo de uma infância onde o essencial já teria ocorrido. Não somente cada período da vida possui e conserva seu valor,

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como também esses diferentes valores dos diferentes momentos estão aptos a se enriquecerem uns aos outros, e desse modo a educação se faz possível - o que significa que para mim é possível uma educação da alegria.

NOTAS 1. Simone de Beauvoir, Mémoires d'une jeune fille rangée, 1958, P: 105. 2. Charles Peguy, Mystere des saints innocents, 1912. 3. André Breton, Premier manifeste du surréalisme, 1924. 4. Pascal Bruékner, Allez jouer ailleurs, 1977; P: 160. 5. Michel Towrnier, Le roi des aulnes, 1970, P: 154. 6. Sigmund Freud, L'Avenir d'une illusion, IX, publicação de 1927. 7. Goethe, Poésie et Vérité, ta parte, L. n. 8. Antoine de Saint-Éxupery, Le Petlt Prince, XXII, 1943. 9. K1ausMann (nascido em 1906), Le Tburnant, capo m. 10. Henri Michaux, Deplacernents, Dégagements, p.70. 11. Jean-Jacques Rousseau, Emile, La Pléiade, p. 289. 12. Romain Rolland, [ean Christophe, 1, L'Aube, fim do 10 capítulo, 1904. 13. Alain Bosquet, LEnfont que tu étais, 1981, p. 319. 14. Camus, citado por Roger Grenier. 15. Henri Bosco, Lejardin des Trinitalres fosepb, 1966. 16. Paul Valéry, Mauuaises pensées et autres - à Ia lettre J, 1941. 17. Giraudoux, Simon le patétique, capo11,1926. 18. François Mauriac, Le [eune Homme, 1926. 19. Henri Michaux, Passaees, 1950. 20. Henri Michaux, Déplacements, Dégagements, 1985. 21. No lado oposto, temos os lamentos: "Ah, jamais me curarei da minha tgrra natal! (...) E quem aliás algum dia se curou da sua infância?". Lucie Delarue-Mardrus, Honfleur, l'Odeur du pays. 22. Bachelard, Poétique de ta rêuerie, 1960; Lautréamont; 1939. 23. Hellens, Documents secrets, 1978, p. 104. 24. Maurice Barrês, Les Déracinés, 1987. 25. R. Rabiniaux, Le Soleil des dortoirs, 1965, p. 31.

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26. Michelet, Le Peuple, 3a parte, capoVIU, 1846. 27. Bernanos, Les Grands Cimetieres sous Ia Lune, La Pléiade, 1938, p.494. 28. Jean Jaures, Discours à Ia distribution de prix du !ycéed'AIH 1880. 29. Alfred de Vigny, Cinq Mars, XX, La Lecture, 1826. 30. Paul Valéry, Eupalinos, La Pléiade, 1923, p. 114. 31. André Breton, L'Amour flu. 32. Merleau-Ponry, Cours à Ia Sorbonne sur les relations chez l'enfont, 1964. 33. Henri Michaux, Déplacements, Dégagements, 1985. 34. Charles Baudelaire, Curiosités esthétiques, La Pléiade, 1868, p. 1159. 35. André Malraux, Les Voix du silence, 3a parte: "La Création artistique", lI, 1951.

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I 4 AS RELAÇ6ES PESSOAIS

Eu diria de bom grado que as relações pessoais na escola são de três naturezas. A escola é um lugar onde o aluno progride: - com a ajuda dos colegas, através de suas relações com seus iguais, ele toma conhecimento dos outros "na escola"; - através de suas relações com pessoas que são um pouco superiores a ele: os professores e todos os outros adultos que contribuem para o funcionam~nto do estabelecimento; . - através de suas relações com realidades elevadíssimas: as grandes obras e seus criadores, aos quais os professores servem essencialmente de intermediários. A escola são conteúdos e relações específicas: é preciso encontrar prazer em ambos para atingir a alegria.

L As REIAç6ES DOS ALUNOS ENTRE SI Dentro da sala de aula, os alunos vivem a experiência das particularidades individuais e das diferenças de grupos e do todo da classe: os indivíduos são diferentes entre si, e muitas vezes de difícil acesso. Os grupos sentem e desenvolvem freqüenternente a exclusão, o desprezo, a incompreensão uns em relação aos outros. O todo da classe e o todo da escola têm muita dificuldade em constituir uma unidade. Na maioria das

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vezes, eles a encontram mais em fases de oposição comum a uma autoridade exterior do que em suas próprias riquezas. Assim, uma série de tensões se superpõem umas às outras. O aluno pode sentir sua originalidade individual ameaçada tanto por seus pares quanto por seus superiores ou pela instituição. A questão é atingir uma alegria das relações, superando esses graves riscos de não-alegria. A maioria esmagadora dos autores (biógrafos ou romancistas), ao evocar a escola, apresenta seus jovenshérois (muitas vezes eles próprios) como individualidades eminentes, cujo valor advém de uma originalidade inestimável: eles são incomparáveis, casos, as exceções infelizes, maltratados e exilados em meio ao comum. Individualidades fortes, mas personalidades delicadas isoladas no grupo, a um só tempo rejeitadas e subjugadas por classes que exigem conformismo. Eles próprios sentem a presença dos outros, tão grosseiros, como uma constante ameaça à riqueza de sua intimidade. Projetos de intelectuais, futuros artistas, mas já não reconhecidos pelos colegas e muitas vezes também pelos professores, tanto seus interesses e ideais ultrapassavam o nível médio; sua aparência muitas vezes é frágil. Eles podem ser também bolsistas, separados dos colegas por suas origens sociais; e, nas fileiras nobilíssimas do colégio, alguns membros, "diferenciados" do proletariado que vivem e proclamam constantemente seu isolamento. 1 Minhas leituras literárias me mostraram que o grupo de colegas em geral é muito mais um freio do que um apoio.

o agrupamento Minha

dos que são rebeldes ao agrupamento

escola quer instituir

relações de alegria entre os

alunos. Como conseguir isso? Uma primeira possibilidade seria que os excluídos se encontrassem e se reunissem. Não resta dúvida de que cada um deles se sentia perdido no meio

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dos outros rapazes vigorosos e briguentos, unir em torno de uma base própria:

mas eles podem se

Eu sempre tive, desde a mais tenra idade, amigos que detestavam a violência, apreciavam brincadeiras moderadas, gostavam de conversas sensatas, buscavam resolutamente o reino da equidade [...] os pacíficos se reconheciam rapidamente no meio da bagunçr

É possível aos mais frágeis atingir uma, alegria de camaradagem; a seu grupo pode faltar, contudo, um pouco de força vital. Por outro lado, não poderia nascer uma alegria de camaradagem a partir das próprias algazarras? A gente se desafia, se encontra depois da aula, e é com o coração quente e a cabeça cheia de honra que a gente briga copiosamente pela glória. Uma agressividade juvenil que já tem todos os furores do amor. Duas vontades de poder ainda rudes se chocam, se penetram, reconhecem seus limites e acabam por se respeítar.ê

Muito bem, mas o autor pressupõe aqui uma igualdade de força e de desafio entre os parceiros: este caso é favorável e podemos nos perguntar quantas disputas correspondem a esta.

o bom aluno

é um bom colega?

Para garantir uma maior alegria nas relações entre alunos, com que podemos contar? Com um aluno? Com um bom aluno? O bom aluno é capaz de despertar na classe uma vida calorosa, de responder aos desejos de sociabilidade dos colegas com a mesma felicidade com que responde às perguntas dos professores? Infelizmente, o bom aluno tomado pela emulação, pela ambição individual é muitas Vezes apartado de seus colegas. Nos melhores casos, ele também seria capaz de ser bem-sucedido naquilo que agrada aos outros, as façanhas es-

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portivas, mas ele quase não as pratica: "Ele tinha outros interesses e outros prazeres, bem superiores ... profunda vida interior ... vida espiritual"," elogiam os outros com uma certa ironia. Não é de espantar que, em Drieu de Ia Rochelle, os "bons alunos" fiquem distantes da massa e quase sejam definidos por essa distância: eles

Esta é a razão pela qual ele protege e assegura a coesão feliz do grupo; ele é ao mesmo tempo propriedade de todos - "Eu pertencia aos meus colegas" -, seu destino é o destino de cada um, ele é o personagem central a partir do qual se desenrola a existência de todos: "Você é a consciência da classe", dizlhe um dos professores.

desprezavam o jogo[ ...] ficavam nos olhando gesticularmos, nos agarrarmos e nos jogarmos no chão; eles ouviam nossos urros incessantes. Nossa loucura, nossas imbecilidades, nossa vulgaridade lhes pareciam evidentes. E eles tomavam um cuidado cada vez maior em sua atitude, escolhiam suas palavras.5 ".

Simon, o aluno que gosta do trabalho propriamente escolar e que se entusiasma com todas as formas de cultura. Não se separarão seus sucessos em unir seus colegas em relações de amizade feliz e a influência dos grandes heróis aos quais ele devota sua admiração - e que, freqüentemente, foram também agrega dores. '

o

que me interessa são os casos em que o milagre se realiza: o bom aluno favorece a existência comum, torna-se o intérprete de todos, seus colegas se reconhecem nele, reconhecem nele as qualidades que gostariam de possuir: Traços que, em outros, nos teriam enchido de desconfiança, nele nos seduziam mais ainda; sua aplicação: se ele era o melhor aluno, não o era, em absoluto, facilmente[ ...] ele parecia ser o primeiro a se desculpar por isso] ... ] dava-nos uma confiança em nós da qual ele mesmo, em relação a si, parecia às vezes desprovido."

o idealismo

de Giraudoux ultrapassa voluntariamente o limite: o absoluto e a perfeição viram realidade. Simon é o perfeito bom aluno e o colega perfeito. Ele não tem que recorrer à premeditação e à moderação, não tem necessidade de refrear sua vida afetiva para ceder espaço ao intelectual e ao escolar, não se vê às voltas com a oposição entre o indivíduo e a coletividade: "Não havia nenhum sentimento que eu não pudesse expandir à vontade dentro dos limites da minha classe." Ele vive a complementaridade harmoniosa de seus desejos e a correspondência entre seus próprios desejos e aqueles dos seus colegas.

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Nem todo mundo possui esse talento inato que constitui o encanto dos personagens de Giraudoux; são inúmeros os "bons alunos" que se alçaram à posição de conciliadores despendendo longos esforços táticos. O bom aluno pode trazer para os outros mais trabalho, trabalho mais difícil; seus sucessos provocarão inveja; e depois, ele compactua ... Daí a prudência: "[eu demonstrava] uma simulação satisfatória de desenvoltura para evitar o descrédito normalmente atribuído aos sujeitos bons demais". 8 O grande segredo é não "fazer" demais nem de um lado nem de outro: "Durante meus anos de ginásio, esforcei-me para gozar, junto a meus mestres, das vantagens do bom aluno, sem nem por isso passar por um. cdf aos olhos de meus colegas"." Um bom aluno, mesmo com características mais comuns do que Simon, pode desempenhar o papel de mediador entre o professor e os colegas, contribuindo assim para criar uma atmosfera mais favorável. Há, em toda classe, pelo menos um aluno que goza do privilégio de ser ao mesmo tempo muito pouco "caxias" para não se desmerecer aos olhos dos colegas e de uma gravidade suficientemente sábia para que, se for o caso, o professor se apóie nele.l''

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Assim parece, aliás, que é possível ser um "bom aluno" sem tirar notas extraordinárias, quando se vive a aula com uma certa intensidade de interesse e de seriedade.

o coro tem

suas razões

Dar-se bem com os colegas de classe, entre companheiros de classe, não é a mesma coisa que o companherismo de lazer, de jogos: a cultura, o progresso cultural se acham em questão, visto que a gente está na escola. Pegamos aqui um dos momentos em que a cultura escolar coincide com' um modo de vida; a teoria da solidariedade se une a uma prática de comunidade, limitada sem dúvida em sua extensão, mas intensa para todos os que a vivem no dia-a-dia. Classes onde realmente se trabalha em comum, "cada um tortura a mente junto com os outros para encontrar soluções". Daí uma primeira superação: são classes onde "cada um participa da organização", e o próprio esforço é que lança os alunos em direção à questão fundamental: "como convém viver"Y Em suma, conflitos entre os alunos e sofrimento dos excluídos - mas os excluídos podem se reagrupar, e as bagunças talvez não tenham somente aspectos diabólicos. E, em certos casos, a ação e o prestígio de alguns alunos podem representar um papel pacificador; arrastar a classe toda em direção a uma amizade; à alegria do convívio pode se unir a alegria de uma tensão projetada para a cultura. A classe como coletividade, vivendo em "bom entendimento" (a expressão é magnífica), ansiando por trabalho e talvez mesmo por obras-primas. Que sonho! "Uma vez, um aluno havia entendido: em coro] ...] e isso, no fundo, não era assim tão mal: aprender em coro, conhecerem todos juntos, formar um único saber" . 12

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lLREIAç6ES

ENTRE PROFESSORES E ALUNOS

Eu usaria de bom grado, como epígrafe a esse tema, uma seqüência do mme r:Aile ou Ia Cuisse. Co\uche faz os }ovens espectadores de um circo rirem às gargalhadas ao jogar um balde d' água num palhaço. O pai dele, Funes, afirma que aquilo não requer inteligência nem é diHcil de fazer; repete então o mesmo gesto e nenhuma das crianças acha graça. Então Coluche diz: "É preciso ter vontade de fazê-Ias rir" - e eu traduzo: é preciso que o professor tenha vontade e, o que é mais difícil, continue a ter vontade de formar os jovens na alegria. A escola é uma instituição onde está em jogo alcançar a cultura, a alegria cultural pela mediação constante e contínua das pessoas, não uma pura troca de idéias, pois nela a cultura ,é transmitida pela vivência. As relações pessoais professores-alunos e também alunosalunos são sempre evocadas tanto nas biografias como nas entrevistas diretas com alunos. Elas ocupam um lugar capital na sua consciência. Logo que se fala nelas, voltam três temas obsessivos: o que salva a escola de ser um inferno, ou, como se diz agora, de ser como a condenação às galés, são os amigos, a ligação com os jovens da mesma idade. "No ano passado, eu gostava do professor de matemática, comecei a gostar de matemática e fiz progressos; este ano, como eu não gosto do professor de matemática, piorei de novo na matéria". Finalmente o elogio tão contestável feito por alunos (e também por pais): "Um bom professor consegue ensinar qualquer coisa ... ele nos leva aonde quiser". Os alunos vivem um universo de relações pessoais que lhes parece ter uma incidência essencial sobre suas alegrias e não-alegrias. Como reação, eu tenderia a menosprezar as relações, visto que receio que o contato pessoal reduza o cultural. Quero, apesar de tudo, dar plena expansão à alegria das relações.

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Quanto menos alegria os alunos esperam dos conteúdos culturais (pelo menos, é muito raro que o digam), mais eles proclamam suas esperanças com relação a um "professor legal". O cultural, o ideal cultural aparece para o aluno, na maioria das vezes, nos traços de um professor assim, que passa a ser incontestável: "As coisas que eu aprendi diretamente da boca de meus professores (na escola, portanto, e não nos livros) permanecem estreitamente ligadas, na minha lembrança, àqueles que as formularam".13

A presença do educador e o papel muito particular daquilo que é a expressão mais direta de uma pessoa e que cria um vínculo imediato com o outro: a voz, a voz do educador que comunica a emoção, o fervor, a exaltação própria às grandes obras. Um professor declama poemas de Verlaine, e de maneira impecável: "Era para uma vitória que sua voz nos transportava, vitória de uma beleza e de um mistério". Uma vez em casa, o aluno vai reler os poemas, mas, "sem o auxílio da dicção magistral, eu receava não sentir todo o encanto que aqueles textos deviam conter" .14Platão já reprovava fio texto escrito o fato de dirigir-se da mesma maneira a todo mundo e de não conseguir responder nem às perguntas nem às críticas das quais é objeto: ele é incapaz de se defender," Na escola, o professor adapta e responde às perguntase aos silêncios, geralmente mais reveladores ainda. Apreciar-seá o aforismo de Freud: "Alguém fala: a luz se faz".

relação tudo o que o professor provoca inadvertidamente, sem sequer se dar conta, às vezes contra o que ele pretendeu. Por exemplo, uma observação dirigida a um aluno estrangeiro que a interpretará como prova de que ele não é plenamente aceito - e o professor não tem consciência de que suas atitudes podem assumir esse sentido. Geralmente, nesse claro-obscuro das relações, pode ocorrer "a reação que suscitava neles uma palavra que me escapara e a frieza com que rejeitavam o que eu desejava ardentemente transmitir-lhes"."

Os perigos do sucesso Mesmo quando a relação parece boa, sérios riscos podem ser sentidos pelos alunos. Risco de conformismo: Valéry-Larbaud põe em cena um jovem que adora poesia, aquela que lhe ensinam na escola. Um dia, ele descobre num jornal da moda um poema recente que o toca profundamente e, no en~anto, não ousa gostar dele porque as regras escolares não são respeitadas nele;'? "Estávamos agindo errado ao18amar aquela poesia impura e irregular; nosso gosto era mau como nossos sentimentos e nossos instintos". O aluno que se abandonasse nas mãos do professor perderia a confiança em seu próprio julgamento, em seus próprios gostos e., finalmente, em si mesmo. Chegaria ao extremo de assumir os juizos geralmente tão depreciativos dos educadores sobre os "jovens de hoje" e, sobretudo, renunciaria a contribuir com as novas inflexões da juventude para o patrimônio cultural.

Todos sabem que nos romances, biografias etc. abundam acusações contra os professores. Não me deterei muito nisso, pois quero destacar o que provoca alegria; Entretanto, vejo-me obrigado a fazer eco a essas acusações. Inevitavelmente, introduzem-se naquelas longas horas de aula as mudanças de humor do professor, seus equívocos e seus momentos de distração, suas escolhas arbitrárias ou que, pelo menos, assim parecem, dividindo a classe em rejeitados, suspeitos e preferidos. Também tem um peso muito grande na

Risco de mimetismo: de tanto Se adaptar a cada um dos professores e se habituar às suas exigências particulares, o aluno arrisca-se a dissolver sua própria personalidade, a perder de certo modo sua alma. Alguns são talentosíssimos em imitar as pessoas e suas mamas:

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[Eu observara] que cada professor tem uma idéia pessoal do aluno ideal: aquele que cohsegue se aproximar o máximo possível dela está feito ... [com aquele professor] sempre bemhurnorado, animado e disposto, eu era engraçado e atrevidamente íntimo; [com aquele outro] eu brilhava no papel de rapazinho modelo ... Entretanto, às vezes eu gostaria de saber exatamente qual desses rapaZes, cujos papéis eu interpretava tão bem, eu era. 19 Temos dois extremos: surge um professor que, pelo brilho puro "e simples de sua personalidade, dissipa todos os problemas. Eu sempre desconfio quando a escola é apresentada como um lugar idílico, a partir da chegada do professor excepcional, pois estou convencido de que a relação é e continua sendo difícil. No universo tão negro de Frapié, o milagre ocorre quando uma substituta assume o lugar de uma das professoras cansadas e apagadas: "Ela entra, no primeiro instante sorri para as crianças, estas lhe sorriem ... ela lhes agrada, elas lhe agradam ... Depois, ela se apodera da classe". Trata-se de um milagre, e o aspecto religioso não está longe: "Sentia-se que ela se consumia, se esgotava; recebam-na: sua substância, seu calor"." Temos uma atmosfera bastante semelhante a essa numa classe de terceira série, onde a devoção a um professor é vista como capaz de suprimir todas as dificuldades: Assim que ele assumiu sua cadeira (no início do ano), estabeleceu-se uma energia leve, calorosa e benéfica entre a classe e ele [...] tal capacidade de dar e de receber [...] fomos levados de roldão e ficamos felizescom essa ascendência/" Por outro lado, quando as rejeições atingem certo grau de brutalidade e de paixão, inclino-me a interpretá-Ias mais como desafios e provocações do que como ruptura:

'f ,I

Ele não conseguia nem explicar a si mesmo que um aluno pudesse ter, com um professor, outras relações que não

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as de adversário para adversário] ...] A regra do jogo pedia que cada um permanecesse em seu campo.22

Não posso saber se amo ou se odeio? Na verdade, a relação educadores-educandos é marcada pela coexistência de duas atitudes contradit6rias e esse é um tema que atravessa a pedagogia, de Platão a Freud. Alcibíades, na presença de S6crates, declara: "Normalmente, seria com júbilo que eu o teria visto desaparecer dentre os vivos; mas sei que, se isso ocorresse, eu teria ainda mais dificuldade".23 Quando fica diante do mestre, ele se envergonha: "Considero indigna a minha maneira de viver", indigna das promessas e das perspectivas às quais havia, naquele momento, aderido. Mas ele não se mantém nesse nível e s6 lhe resta confessar a hesitação fundamental: "Realmente eu não sei como proceder com o diabo desse homem".

É sabido que, para Freud, o aluno transfere para o professor a contradição que vive em relação ao pai: o pai, modelo a ser respeitado e imitado, aquele de quem tanto se espera, mas também um. rival a ser eliminado e, antes de" mais nada, rival sexual, obstáculo contra o qual a criança luta para conquistar seu próprio lugar na existência. Tantas virtudes e tantas decepções." Freud relembra sua pr6pria experiência escolar - revolta e submissão, crítica e veneração dos professores: "Ficávamos à espreita de suas pequenas fraquezas e orgulhosos dos seus grandes méritos". É extremamente penoso para um jovem tolerar, aceitar a superioridade de poder do pai e do educador _ mas é completamente impossível evitá-Ia. Mesmo que possa resultar na alegria, a relação educadoreducando jamais será simples ou plana. Depender de alguém que não tem nem a mesma idade, nem os mesmos gostos, nem o mesmo estilo de vida acarretará graves problemas.

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Não posso saber se admiro ou se desprezo? Numa mesma linha, cotejarei três textos de alunos ao mesmo tempo deslumbrados e decepcionados. Wiechert está decepcionado com o abismo existente entre as doutrinas professadas por seus mestres e suas vidas. N6s não tínhamos um professor sequer de religião que, uma vez havendo descido da cátedra, pudesse tornar-se discípulo de Cristo; nenhum professor de história que fosse capaz de pôr em prática aquelas virtudes de soldado e de homem de Estado que ele louvava com tanto ardor.25

Péguy: "Nossos jovens mestres eram belos como hussardos negros. Esbeltos, severos; de porte ereto". Certos alunos conseguem conciliar respeito e zombaria: [Meus professores de retórica], eu os compreendia debochando deles, assim como fazem os jovens rapazes prontos a apreender o ridículo, sem deixar que o entusiasmo sofra com isso.28

An tin omias parciais, antinomia global

Ele gostaria de poder tecer os mesmos elogios a todos os aspectos da personalidade de seus professores e lamenta não consegui-Ia. Em contrapartida, penso na célebre passagem de

Contudo, essa contradição vivida pelo aluno entre o apego e a rejeição ao educador está no cerne da vida escolar; não é possível suprimi-Ia, e ela é dolorosa e provoca um intenso mal-estar. Então eu me pergunto como, apesar de tudo, conduzir a relação para mais alegria. Um caminho possível seria que a escola elaborasse certo número de contradições parciais, que me parecem ser, na realidade, os desdobramentos da contradição inicial. Em cada oportunidade, a questão consistiria em que alunos e professores conseguissem valorizar igualmente os dois termos e manter no mesmo nível os dois pratos da balança. Pode-se alcançar assim, de cada vez, uma alegria específica e progredir em direção à alegria global. a) Para que o aluno encontre alegria na relação, é preciso que ele se sinta e seja efetivamente levado a sério, tanto quanto um adulto, "a gente não é criança ... ele nos trata como criança". Mas não é menos necessário que ele seja reconhecido como diferente do adulto, porque é jovem e, ao mesmo tempo, porque faz parte da nova geração. Portanto não tomaremos ao pé da letra este elogio feito a um excelente professor: "Ele nos tratava como adultos e, com ele, nós o éramos" .29 Os parceiros têm que viver entre si como diferentes, desiguais e, simultaneamente, em reciprocidade, porém uma reciprocidade que não suprima, que não tenha a pretensão de suprimir o fosso que existe entre as idades. .

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A desilusão de Pontalis é ainda mais viva porque ele se deu ao luxo de comparar a pessoa de seu professor. com os grandes fatos que este lhe apresentava: Um dia, eu vi nosso professor de história correr atrás de um Ônibus... o quê? Para ajudá-Io a subir, o cobrador tinha que estender a mão [àquele homem] que conhecera o exílio em Santa Helena e vencera os árabes em Poitiers. O mundo estava de ponta-cabeça; eu estava desconcerrado.é" Cavanna, aos 14 anos, ama. e admira seus professores, mas está às voltas com o que ele chama de "complexo de Tar.zan". Ele é contido em seu entusiasmo pelo físico dos professores, que ele considera lastimável: Eu não' imaginava que alguém pudesse ser realmente inteligente se não fosse um atleta. A imperfeição do corpo era o sinal visível da degenerescência e os miolos da cabeça eram necessariamente tão gelatinosos quanto os músculos abdominais.V

Albert Thierry lembra uma frase de Pécauln "Não depositem sua esperança nem sua recompensa principal na afeição " ,.. acei-. , e comenta: "Uma recompensa, eu nao dos seus aIunos taria recompensa. Mas uma esperançal" A igualdade das posições é uma promessa assintótica lançada ao infinito. b) Os alunos imploram ao professor que confie neles, a fim de que atinjam a alegria de ter confiança em si mesmos, de acreditar em suas forças: confiança na classe como um todo, confiança em cada um; todo aluno é importante, nenhum é excluído. Por exemplo, na Escola Normal "a confiança de uma mente jovem e ávida numa mente culta e experiente. A confiança de um coração fácil de entusiasmar num coração honesto e bom" .31 Realmente, eles duvidam com tanta freqüência de si próprios, nunca estando muito longe do desespero, do abandono, de ir de encontro ao abandono - e a alegria. da relação bem-sucedida se confunde com a promessa de não serem incapazes: "Ele tinha o raro talento de comunicar seu talento aos alunos" ,32ou ainda: "Ele encontrava em todos nós qualidades maiores e, às vezes, até mesmo talento. Talvez realmente os tivéssemos, tanto ele nos exaltava".33 Não é menos essencial que os alunos tenham à sua disposição forças de resistência e ostentem um comportatnento fanfarrão. c) O educador torna-se ridículo; ele passa tanto tempo diante dos alunos, os quais vão aproveitar essas horas intermináveis para descobrir suas manias, suas fixações. "Pode-se viver sem fraquejar diante do punhal sempre em riste do olhar de trinta crianças? ... [enfrentar] a cada minuto que passa, o animo ou a apatia, ambos extenuantes, de uma classe."34 Numa análise mais profunda, o educador fica ridículo porque, ao mesmo tempo, ele vive naquilo que a cultura apresenta de mais elaborado e quer que seus discípulos o acompanhem - e é assaltado por preocupações imediatas e vulgares, das quais a primeira é garantir a disciplina. Anatole

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France simbolizou isso muito bem através das frases entrerneadas que, alternadamente, anunciam castigos de garotos e celebram o heroismo triunfante de um herói da Antiguidade." O educador é frágil e os alunos, de modo mais ou menos confuso, dão-se conta disso: em relação aos grandes poetas, aos grandes sábios que evoca, e invoca, ele não passa de um humilde servidor, nunca à altura deles, jamais seguro de ter conseguido, por um instante que seja, atingir seu valor - e ainda menos de ter logrado comunicá-lo, Simbolicamente, Sócrates nos diz que uma mulher vira parteira quando ela própria não pode mais, por causa da idade, conceber. O educador deve se contentar em contemplar os filhos (espirituais) dos outros. O educador é vulnerável porque está exposto às mesmas tentações que a maioria de seus contemporâneos, dos membros de sua classe social: preferência por "pessoas de bem", por aqueles (alunos ou pais) que estão dentro da norma, que são agradáveis ao convívio, que compreendem depressa e que lhe farão as honras; temor e desconfiança em relação àqueles que não estão de acordo: "maleducados", sujos ou, simplesmente, muito fracos." Essas tentações, ocorrendo num âmbito restrito e definido, são particularmente visíveis - e chocantes, pois contradizem as proclamações igualitárias mil vezes repetidas. Numa classe, qualquer classe, você tem todos os imbecis, todos os pouco dotados, todos os crápulas de amanhã. E, ao lado, os belos tipos sirnpáricos] ...] Você não fará distinção entre eles, pois nisso consiste a honra da profissão.37

A relação educador-educando fica insustentável quando os alunos que não pertencem à "elite" sentem que - mesmo que a escola lhes seja necessária e até imposta - aquela não é a escola deles e portanto a alegria escolar não é feita para eles. A relação progredirá em direção à alegria na medida em que o educador tomar consciência desses elementos negativos,

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esforçar-se para superá-Íos na medida do possível em determinado momento de uma determinada sociedade e permanecer atento às exigências a serem cumpridas - e afirmar que, apesar de tudo, ele já é grande, grandioso, exemplar, visto que é ele que abre caminho para o grande, o grandioso e o exemplar. Nós sabemos que a crítica dos alunos contra os professores junta-se a uma certa admiração e que é através da crítica que eles podem se encaminhar simultaneamente para uma admiração mais viva e para uma crítica mais feroz: "A superioridade manifesta [dos professores] que nos obstinamos em não querer reconhecer, mas à cujo contato o olhar se aguça, o espírito torna-se crítico até a perversidade'U" d) O educador é, simultaneamente, superior aos alunos por sua posição, seu saber e sua experiência de vida e é superado pelos alunos na mesma proporção em que o amanhã supera o hoje, em que a força que se anuncia supera as realizações já fixadas. É necessário que o professor admita a superação sem se refugiar na exasperação ("eles não são nada") ou na piedade ("não são nada e nem isso é culpa deles"). Não resta dúvida de que os alunos desenvolvem "qualidades" de arrogância nada fáceis de serem aceitas pelos professores; um certo espírito de oposição ou, pelo menos, de cisão; uma impaciência e exigências que traduzem, na verdade, a ansiedade das expectativas: é a vida deles que está em jogo, sua iniciação na vida, sua irrupção na vida. No entanto, para que a relação seja feliz, é essencial que os professores consigam tratar com alegria esses mesmos elementos de combatividade: "[a juventude me agrada porque] eu encontro nela uma certa aspereza, uma amargura no gostar que é positiva".39 Compreensão, essa bela palavra: um professor compreensivo aceitará o aluno como ele é, ir~ compreendê-lo como ele é, e é precisamente o aspecto de benevolência incluso na compreensão que fará com que ele progrida.

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e) Um educador que conheça suá profissão, que tenha o domínio daquilo que se propõe e que tenha preparado minuciosamente seu curso - ao mesmo tempo, os alunos sentiriam que ambas as partes estão associadas na mesma tarefa e que participam juntas da mesma busca. A alegria de descobrir com um professor que também descobre, que busca, explora, tenta, tateia corno eles e, talvez, um pouco graças a eles. Vivacidade, imprevistos, o contrário da rotina. Um professor explica a tática: "Dar a impressão de desconfiar do texto que vai ser explicado ... e, subitamente, revelar sua beleza de improviso e compartilhar da surpresa da garotada".40 E o aluno usufrui desse ganho inesperado: Os estudos de texto faziam-nos assistir ao desenrolar de uma exploração. Tínhamos certeza, pela maneira como ela questionava o texto (que talvez soubesse de cor), de que as profundezas do sentido eram quase tão novas para ela como para n6sY

Não se trata aqui de uma simples montagem onde o educador encena uma comédia. Cada vez que ele se lança numa "exposição", fica "exposto" ao julgamento, à crítica dos alunos e antes de tudo exposto a não ser compreendido nem acompanhado. Nada é adquirido: o professor jamais chega a ter segurança de ter sido aprovado, e muito menos de ter conduzido seus alunos até a cultura. O entendimento, assim como a autoridade, tem que ser reconquistado sempre.f Isso significa que a indiferença dos alunos e até a bagunça constituem ameaças nunca afastadas, riscos que, nesta profissão, aumentam terrivelmente com a idade - ao passo que, na maioria das outras, o tempo de serviço traz as garantias da dignidade. Assim, o aluno exerce controle sobre a autoridade do mestre, tem autoridade sobre a autoridade do mestre; basta que o aluno se mostre indiferente para pôr o educador em cheque. Gostaria de extrair daí uma dupla conclusão: sendo o poder do professor profundamente distinto dos outros pode-

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II I"

i

res, não é repressivo da mesma maneira, portanto não é de espantar que ele possa se tornar tão menos avesso à alegria que os outros poderes. E a relação proporcionará alegria na medida em que os alunos sentirem que o professor, mesmo sabendo que o resultado nunca é garantido, sente prazer em atrair sua cumplicidade. Professores-pais-patrões-policiais: era bom, e continua a ser necessário denunciar sempre os riscos inerentes a todos os poderes e o conluio sempre ameaçador entre eles. O setor em que poder social e poder escolar mais se podem confUndir é o do fracasso em massa onde se perdem, apesar das felizes exceções, as crianças mais exploradas. Contudo é essencial que o aluno sinta também o papel do professor, a relação com o professor na sua especificidade -- o que é proporcional à irnportância que ele atribuirá à escola como local da descoberta em comum da cultura e não só da disciplina, proporcional ao espaço que a escola atribuirá à cultura, e não só à dornesticação, Os alunos sempre se decepcionarão se procurarem no professor um pai; não receberão o que lhes é devido caso se limitem a ver nele um policial. f) O educador é, por excelência, o adulto: aquele que sabe, organiza, prevê, assume as responsabilidades e comanda. Mas também se pode pensar que, se o educador escolheu essa profissão, foi mais ou menos conscientemente para salvaguardar uma certa parcela de infância nele mesmo. Hermann Broch conta que, quando era aluno, queria ser professor e fazia uma bela imagem de seu íuturo: de sua futura classe "compreendendo seu próprio rosto de criança".43 Assim, a relação do professor com o aluno é também a relação do primeiro com sua própria infância e talvez, se ela for suficientemente depurada ao longo dos anos, a relação com a infância absoluta. Mais do que todos os outros adultos, o professor mantém um diálogo constantemente renovado com a criança que ele era ou está convencido de ter sido.

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A relação será feliz na medida em que o professor não se envergonhar de ser um adulto que permaneceu um pouco mais criança do que os outros, ou antes, um adulto que, melhor que os outros, reconquistou a sua infância. Em particular, que ele tenha um certo tipo d.e humor: os alunos apreciam que um professor tenha guardado alguma coisa d.o seu tempo de aluno que não se leve totalmente a sério. Ele é, ao mesmo tempo, o professor que se deve levar a sério e o aluno, o exaluno que zomba um pouquinho dele. g) Para que a relação proporcione alegria, é necessário que seja vivida com gravidade e profundidade. O professor não se encontra à parte, sentado em sua nuvem; ele revive os sentimentos e as aspirações dos alunos como se fossem os dele: [...] minha responsabilidade [...] eu sou um acontecimento relevante para estas crianças; todo ano, elas trarão a mim uma grande parte de seus pensamentos; todo ano, elas se nutrirão das minhas idéias, dos fatos que lhes revelarei, dos trabalhos e dos castigos que lhes infligirei.44

Que isto sirva de consolo para os educadores: sim, é verdade que os alunos, muitos alunos esperam algo de vocês e da sua cultura. Mas também se faz necessário tornar menos dramática a relação, primeiramente recorrendo à humildade: é acaso que determina que o aluno tenha, naquele ano, aquele professor; dessa forma, qual é realmente a margem de liberdade de um professor em sua classe? Ademais, em determinadas ocasiões, a melhor atitude do professor seria talvez se apagar, apagar-se pelo menos enquanto interveniente ativo e concentrar-se no papel de ouvinte. Mostrar-se disponível, mesmo que não possa dar aprovações, e muito menos intrometer-se. Alunos vêm contar suas desgraças ao professor:

°

Ele recebia aquilo suavemente, como se apanhasse uma pena [...] aquelas penas deixadas ali pelos garotos depois das

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brigas, não se tentava colá-Ias novamente em suas asas, pois elas não se ftxariam mais.45 Um interesse e até mesmo uma afeição que não se impõem, mas que sabem deixar todo o espaço às jovens personalidades; uma harmonia a ser estabelecida entre combater e bater em retirada. h) A condição primordial para um educador bem-sucedido é que, ao longo de todas as suas dificuldades pedagógicas - sobrepostas evidentemente às dificuldades pessoais e familiares -, o professor mantenha um potencial elevado de alegria, pois seu papel é convencer os alunos de que a escola e a existência, agora, e aquilo que os espera depois merecem que eles se esforcem em crescer. Um ex-aluno está totalmente equivocado ao se queixar: "Confiam-nos (muitas vezes) a homens que talvez tenham muito a reclamar da vida para que nos façam arriá-Ia"." Mas o belo círculo vicioso da pedagogia consiste em que o professor, para dar alegria aos alunos, deve precisamente receber alegria dos alunos - talvez não a mesma alegria, mas pelo menos um sempre possível estímulo para a alegria. Para que o professor, lhes dê autoconfiança, é preciso que eles tenham confiança nele e que o próprio professor o sinta a ponto de ter confiança na confiança deles.

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em comum. O professor visto como pessoa aterrorizante porque encarna uma terrível cultura de dificuldades, terrível pelo que ela vai revelar. Essa contradição pode ter alegria, é a alegria própria da relação escolar no momento em que ela atinge seu mais alto nível.

Ligação e cultura Encontramos nos romances e biografias todos os graus de ligações simpáticas, afetuosas e amorosas entre alunos e professores, homo ou heterossexuais. Mas tais ligações, na maioria das vezes, se desenvolvem na escola quase como se desenvolveriam fora da escola. Avançamos realmente para a alegria específica da relação escolar quando a sexualidade se une à admiração cultural e contribui para a admiração cultural -' o que, naturalmente, não a impede de subsistir enquanto tal. Um autor cita uma professora de francês que teve nas séries finais do 10 grau: "Uma jovem loura, viva, apaixonante; sua voz era sonora e rouca, sensual a ponto de me causar arrepios e até mesmo, muitas vezes, ereções. Ela lia admiravelmente". 48 O ponto final entre as duas frases basta para marcar a complementaridade dos dois aspectos. Outro exemplo: trata-se de um professor recém-chegado a uma cidadezinha, jovem, bonito, cheio de qualidades. Surge então uma sexualidade difusa: "O grande corpo de Antoine se inclina sobre as carteiras, algumas vezes desliza sobre um banco ... os cabelos então se roçam, elas têm ali, bem junto a elas, o calor e o perfume dele" .49 Mas coexiste um outro movimento: "Nos seus bons momentos, Antoine dizia a si mesmo que estava vendo inteligências se estruturarem, sensibilidades se abrirem e se refinarem".

Uma professora afirma, a propósito de uma ex-aluna: "Foi graças a ela, sim, graças a ela que eu pude acreditar em mim. Eu, que era jovem, insegura, desajeitada, pude acreditar em mim e na minha profissão" Y A alegria da relação é uma troca, todos dão, todos recebem. Quem se lembraria de avaliar os valores relativos do que é dado e do que é recebido? Acredito poder agora não suprimir totalmente a contradição fundamental, mas talvez compreendê-Ia melhor e tornáIa mais suportável, percebendo o aspecto mais global da coexistência de dois termos, ambos dignos de consideração. O professor visto como pessoa sedutora, e isso com uma conotação até sexual: ele permite o acesso à alegria da cultura, da vida

Terá François Nourrissier absoluta razão ao dizer que "os encontros professores-alunos preenchem, nos adolescentes,

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uma paixão que a família já não alimenta e que o amor ainda não monopoliza"?50 É necessário esclarecer a natureza afetiva e mesmo sexual da relação: a aula não é um puro diálogo de espírito para espírito. Porém não se pode limitar o aspecto positivo da escola à relação afetiva nem procurar como única alegria da escola a alegria da relação. As palavras de um professor querido certamente têm peso e prestígio, mas nem tudo o que o professor querido diz tem o mesmo valor e proporciona a mesma alegria. Não é possível nem desejável que seus comentários eliminem a diferença de nível entre Jean Aicard e Victor Hugo. Na verdade, somente na medida em que os alunos não esperam encontrar na escola a alegria dos conteúdos culturais, e em que desacreditam da cultura como algo capaz de lhes proporcionar alegria, é que toda a sua expectativa é monopolizada pela relação. Ousaria dizer que eles acabam por aceitar a relação. A escola não se confunde mais com o relacional do que a pedagogia com uma distribuição bem-dosada do efetivo. A vocação da escola é ser uma ponte entre as pessoas e participação na cultura: local de apropriação cultural, superação rumo à alegria cultural através da vivência de certas condições de comunicação, de adaptação e de apoio de pessoa a pessoa. Num certo sentido, o relacional é um meio a serviço do acesso dos alunos à cultura; o professor é um servo, um servo de Victor Bugo. Maís profundamente, o relacional é um componente do progresso cultural, do progresso total do aluno: viver em companhia de, em amizade com, às vezes quase em amor por um homem de cultura que tem por tarefa ajudá-lo a ter acesso a essa cultura.

Estamos sempre à beira do abismo É no interior das relações pedagógicas mais ricas que pode ocorrer um tipo de drama escolar: o professor deseja

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conduzir os alunos até o mais supremo e se decepciona por não consegui-lo: e o aluno sente que o supremo está em jogo, decepciona-se por causa da decepção do professor e por ficar tão aquém das expectativas. Eu via que [o professor] amava o que nos lia [Virgílio], que gostaria de nos transmitir aquele amor, exasperado por ser obrigado a se limitar às correções mais elementares; [o aluno argüido] balbuciava, ficava exasperado consigo mesmo, naquele instante ele se odiava cruelmente por ser incapaz de [fazer] melhor.t! Torçamos para que, em outros momentos, a esperança do professor e os recursos dos alunos consigam se harmonizar.

Esperança de unidade Dizer que a relação entre educadores e educandos é ao mesmo tempo afetiva e de progresso cultural - de progresso na conquista da cultura - é afirmar que o elemento intelectual está apto à se unir aos elementos de sentimento. Dizer que essa relação escolar pode proporcionar alegria é garantir que o elemento intelectual contém como que um apelo à junção com os elementos de sentimento - quando ambos são vividos com bastante profundidade. Reciprocamente, o afetivo dá acesso ao intelectual: "O sentimento-paixão torna-se compreensão e, portanto, saber" .52 Isso significa que o homem pode alcançar sua unidade, que não está condenado a uma infeliz distorção entre sentimentos vivos, porém obscuros, indomáveis, e inteligência transparente, embora inerte. Na medida, contudo, em que a personalidade nascente dos alunos já se mostra capaz de unificar-se é que ela pode esperar uma alegria escolar composta de amor pelo professor e amor pela matemática. A cultura escolar chegaria com isso a abraçar, a abrasar a totalidade da pessoa.

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Procurei no campo das relações bem-sucedidas entre alunos e professores um testemunho de que a inteligência e a afetividade podem não se opor uma à outra, Depois, tive vontade de falar um pouco mais sobre esse tema. De um modo geral, o homem -- e, desde cedo, a criança - é dividido, sacudido e dilacerado entre potências divergentes, essencialmente a inteligência, as tarefas racionais a serem cumpridas e a clareza do julgamento, de um lado, e o passional e o desejo, de outro. O que caracteriza a escola é que a formação da personalidade, o progresso total que se espera da personalidade, passa essencialmente pela apropriação do conhecimento. Portanto, conta-se já com um vínculo entre o conhecimento e a individualidade global. Contudo, certas áreas do conhecimento (poesia, artes ...) visam mais diretamente o afetivo; de todos os conhecimentos, da geografia à matemática, esperam-se ressonâncias afetivas. Todos sabemos que, para o aluno, o conhecimento é trazido pelo afetivo: ele aprende realmente bem o que o cativa, numa atmosfera de aula que lhe parece segura, com um professor que sabe criar afinidades. Eis por que a escola ao mesmo tem tempo necessidade de conciliar o intelectual e o afetivo, e constitui um local privilegiado para operar essa conciliação. A alegria na escola só é possível na medida em que o intelectual e

união de um sentimento e de uma noção; o ensino da história vai "precisar" a noção, mas também "fortalecer" o sentimento, na medida em que o conhecimento do passado se aproxima da "poesia" .55 Existe urna possível unidade do intelectual e do afetivo, apesar de todas as discordâncias evidentes. Isso significa que o desejo de compreender e a alegria de conhecer se acham tão profiindamente enraizados em n6s quanto a necessidade de amar. É o que autoriza Bachelard a falar de um "complexo de Prometeu" que seria o" complexo de Édipo da vida intelectual" .56 E o poeta evoca aquele horizonte para o qual gostaríamos tanto de nos dirigir - e, sobretudo, dirigir a escola: "6 Sol, este é tempo da razão ardente".57 O saber pode ser convertido em fruição e as obras da cultura podem demonstrar que o sentimento pode se encaminhar para a clareza, constituir uma via para o conhecimento e, assim, atingir a eficácia. 58 As emoções podem se unir a uma crítica das emoções, a um julgamento das emoções, sem que ambos percam a acuidade.

Amar, querer amar, saber amar

o afetivo conseguem não se opor. O ensino de história constitui um exemplo significativo. Sem sombra de dúvida, a história é reflexão, espírito crítico e ordenação minuciosa, mas ao mesmo tempo emoção: sensibilidade em relação ao passado, às imagens do passado, desde as evocações descritivas até os retratos -.Quando dá vida aos homens ou aos episódios do passado, ela se dirige a um imaginário preenchido pelo racional _.- e, dessa forma, suscita uma

A cultura da "minha" escola gostaria de avançar mais nessa reconciliação do indivíduo consigo mesmo e na alegria que ele pode esperar dessa reconcilação. O grande momento da unidade entre. o intelectual e o afetivo seria um amor que não temesse "submeter-se ao trabalho da reflexão" e ao qual o amante somente deixaria "o campo livre ap6s a experiência do pensamento" .59 O modelo disso é Leonardo da Vinci, enquanto representante da unidade resplandecente dos poderes, das pulsões e do tipos de conheci-

"impressão grandiosa, saudável, duradoura. 54 Lavisse realiza uma típica aplicação disso ao ensino do patriotismo na escola primária: o patriotismo é considerado.

mento. Aqueles que amam "conseguem sintonizar plenamente seu amor com suas outras produçôes'T" Não é fatal que o amor exclua toda e qualquer lucidez - o que condena a es-

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cola à tristeza de um deserto afetivo e o aluno, sobretudo o bom aluno, às diversas formas de austeridade." A escola poderia ser um dos locais privilegiados para a reconciliação entre o conhecimento e o amor. Na verdade, o que me desola à leitura de tantas biografias e romances que evocam as evoluções da juventude é a divisão realmente estanque que separa as buscas amorosas e sexuais da existência, das aquisições da escola, do desenvolvimento do pensamento pela escola. Dir-se-ia que o teórico e a cultura escolar nada têm a proporcionar a alunos em busca do amor, a não ser o curso de educação sexualque se limita, na maioria das vezes, a detalhes de prudência. Algumas exceções, entretanto, podem abrir caminhos: por exemplo, certos estudantes desejosos de enfrentar a vida e, acima de tudo, o amor. Ao invés de descartarem a escola e os livros em nome "da vida", procuram nos livros modos de se refinarem para viver e amar melhor: retomam livros estudados em classe, principalmente madame de La Fayette, e a partir deles entregam-se a "experiências em pensamento'l.f Perdemo-nos na preparação do futuro, pois preocupar-se com amar já é uma forma de amar. Aliás, as releituras já são acontecimentos: "Procurávamos os desvios de nosso próprio coração".

Os primeiros momentos do amor

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A psicanálise nos ensinou que, para que esta reconciliação entre o afetivo e o intelectual tenha uma chance de se realizar, pelo menos em parte, ela deve ser iniciada bem cedo - e que a contribuição dos adultos, do conhecimento do adulto, desempenha aí um papel capital. Muitas vezes as criancinhas descobrem na angústia o que diz respeito à vida sexual, a começar pelas diferenças entre meninas e meninos. Há orisco de a vida sexual parecer-lhes uma "coisa horrível e repugnante",63 onde se manifesta a irrupção

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dos sentimentos de culpa. Pela freqüência com que as crianças trocam informações, fazem confidências umas às outras, Freud tem a convicção de que elas não progridem fora dessas atitudes. Os apoios explicativos fornecidos pelo adulto é que as ajudarão a confiar no amor. Freud afirma que o papel da escola primária é dirigir-se nesse sentido aos seus alunos. A escola se vê portanto investida, e pelo próprio Freud, de uma missão de integrar o mais secreto, o mais inquietante do afetivo com o discernimento racional.

Nous 1. Cf. Annie Ernaux. 2. Georges Duhamel, Inventaire de l'abtme, capo IV; 1944. 3. Pierre Emmanuel, Autobiographie, L'Ouvrier de ia onzieme heure, 1970, p. 242. 4. A.-J. Cronin, Les VertesAnnées, capo VII, 1944. 5. Drieu de Ia Rochelle, Etat-civil; 2a parte, capo lI, 1921. 6. Marcel Arland, Les Vivants, 1934, p. 81. 7. Giraudoux, Simon lepathétique, capoI, 1926. 8. Raoul Girardet, Essais d'Ego-Hi;toire, 1984, p. 147. 9. Lukács, Pensée vécue, Mémoires parlés, edição francesa de 1986, p.35. 10. Renê Masson, Des hommes qu'on livre aux enfonts, 1953, p. 200. 11. Tendriakov, Le Prix desjours, 4a parte, capolI, 1976. 12. Reger Bordier, Un âge dor, 1967, p. 105. 13. Elias Canetti, Histoire d'une [eunesse; 1980; 1908 em alemão, p.197. 14. G. E. Clancier, Un jeune homme au secret, 1989, p. 74. 15. Platão, Phêdre, 275d-e. 16. Paul Guth, Le Naifaux 40 enfonts, 1955, p. 265. 17. Valêry-Larbaud, Enfontines Devoirs de uacances, 1917. 18. Trata-se de um rapaz que vai entrar no 30 ano, cuja narração se refere a ele próprio. 19. Hermann Bahr, "Autoportrair" em Jean Launay, Textes, 1986.

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20. Léon Frapié, La Maternelle, capoVI, 1904. 21. Yves Courriere, Joseph Kesse~ 1985, p. 76. 22. Brincourt, Le Vert Paradis, 1950, p. 27. 23. Platão, Le Banquet, 215e. 24. Sigmund Freud, Résultats, Idées, Problêrnes, I, p. 228, PUF, 1984 (Psychologie du lycéen, 1914). 25. Ernst Wiechert, Des flrêts et des bomrnes, 1950, p. 152. 26. J. B. Pontalis, L'amour des commencements, 1986, p. 77. 27. Cavanna, Les Ritals, 1978, 207. 28. Romain Rolland, mémoires, 1956, P: 33. 29. Jean Daniel, Le Temps qui reste, 1984, p. 23. 30. Albert Thierry, L'Homme em proie aux enfants, L. lI, capo X,

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1909. 3 L Mouloud Feraoun, L'Anniversaire, 1989, p. 106. 32. Erckmann-Chatrian, Les années de college de maitre Nablot, VI, 1874. 33. Henri Bosco, Pascalet, 1958. 34. Christian Rouaud, La Saldéprof 1983, p. 150. 35. Anatole France, Le livre de mon ami, Nouoelles amours, IX, 1885. 36. Cf. Daniel Zimmermann, La sélection nan verbale à l'école, 1982. 37. Roger Semer, Le Corsage à brandebourgs, 1964, P: 159. 38. Elias Canetti, Histoire d'une jeunesse, 1980; 1905 em alemão,

53. O intelectual e o afetivo podem então participar juntos do livre curso da imaginação. Pascal vive no colégio momentos felizes, "pois era preciso imaginar tudo. Tudo, por sua própria conta. Tudo o que (o professor) ensinava doutamente. Tudo, desde a cor das águas do Orinoco até a forma dos números ... ver, escutar, sentir, tocar os objetos irreais que um mestre lhe propõe, que alegria mágica". 54. Michelet, Le Peuple, 3a parte, capoIX, 1846. 55. Lavisse, Questions d'enseignement national, 1885, P: 208. 56. Bachelard, Psycbanalyse du feu, capoI, 1938. 57. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: La Jolie Rousse, De l'ordre et de l'auenture, 1918. 58. Cf. Brecht, Petit organon pour le tbêatre. 59. Sigmund Freud, Un souvenir de L. de Vinci, publicação de 1910, p.24. 60. Brecht, Meti, p. 159. 61. Particularmente, o "bom aluno" desejado por Françoise Dolto desenvolveu nele o racional em detrimento do afetivo, desfazendo sua individualidade original. 62. Robert Kanters, Aperte de vue, 1981, p. 36. 63. Sigmund Freud, Vie sexuelle: Les explications sexuelles données aux enfants, publicação de 1907.

p.199. 39. Janine Sparling, Le Compromis, 1955, P: 46. 40. Janine Sparling, Le Comprornis, 1955, P: 46. 4 L Colette Audry, La Statue, 1983, p. 72. 42. Roland Banhes, Le bruissement de Ia langue, 1984, P: 348. 43. Hermann Broch, La Grandeur lnconnue, 1968, P: 54. 44. Albert Thierry, EHomme en proie aux enfants, 1909, p. 86. 45. Christian Rouaud, La Saldéprof 1983, 65. 46. Sacha Guirry; Si j'ai bonne mémoire, 1965, P: 78. 47. Tendriakov, La nult du bac, 1979, capo nr. 48. Georges Jean, La passion d'enseigner, 1985, p. 78. 49. Fréderic Rey, Haute Saison, 1984, p. 261. 50. François Nourrissier, Un petit bourgeois, 1963, 110. 51. Butor, Degrés, 1960, p. 149. 52. Gramsci dans le texte, 1975, pp. 115 e 173.

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1 A ESCOLA, O OBRIGAT6RIO E A ALEGRIA

L SER OBRIGADO E SER FELIZ: SUCESSJlljt OU SIMULTANEAMENTE? Quem duvida que a nossa escola seja lugar de cumprir obrigações? O aluno não escolhe nem os seus professores, nem os colegas, nem tampouco as modalidades de vida com eles. Não escolhe o que se estuda, nem a maneira pela qual se estuda, os programas e os horários são impostos. É o domínio do "dever"; autoridades nos vigiam para que nos conformemos às ordens. Decorrem daí duas modalidades particularmente escolares de obrigação: o aluno deve prolongar o ensino em aplicações pessoais - responder, executar os exercícios correspondentes etc. e tem que se submeter a avaliações, a julgamentos e, de maneira quase garantida, a comparações com os outros. Na maioria das vezes, seu trabalho e sua performance são corrigidos, isto é, confrontados com um modelo que passa a ser, na verdade, obrigatório. Em suma, não se faz o que se quer, nem como se quer. A produção do aluno se intercala entre um direcionamento prévio e uma avaliação posterior. Existe, além disso, um implícito da obrigação que se pode ler na cátedra mais alta do professor - e mesmo que ela seja colocada no mesmo nível, as cadeiras dos alunos estão voltadas em conjunto para o professor; e mesmo que todos se

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instalem em circulo, o professor por um momento a sua "tirania".

talvez só tenha dissimulado

Festival de lamúrias Todos sabem que o obrigatório é objeto das mais violentas imprecações por parte dos alunos, e é considerado o que mais se opõe à alegria. Para a maioria, alegria é sinônimo de opção. Como esperar alegria de um lugar onde não existe opção? No interminável florilégio de queixas contra o obrigatório escolherei arbitrariamente, alguns textos que me impressionaram particularmente. Trata-se de escritores devotados às grandes obras e que deploram que a obrigação as transforme em algo semelhante a uma punição: "As mais belas línguas do mundo, os maiores poemas da humanidade não passam,para ele [trata-se de um adolescente no colégio], de objeto de enfado, de revolta e de desgosto". 1 "Quando me falavam da beleza de uma ode de Horácio, eu imaginava que estavam querendo caçoar mim[ ...] nada era mais enfadonho".2 E, sob uma forma mais teórica, Paul Valéry se indigna porque "o que foi verdadeiro, o que foi belo [...] um instrumento de prazer ou de emoção" se degrada, pelo autoritarismo escolar, em um "instrumento de classificação"." A escola corre o risco de ser pura e simplesmente assimilada à repressão. Quando um professor conta uma história, basta que os alunos escutem. Não se imporá nenhum exercício ou controle, e a criança exclamará: "Era uma hora encantada ... nem parecia mais ser aula". 4 Não insistirei nos temas mais conhecidos: o autoritarismo da escola produzindo ou revoltados ou seres frouxos que se curvam, se curvam, não ousam e nem mesmo pensam em reerguer a cabeça. O "bom aluno" tem o hábito de obedecer e de aceitar os modelos e valores sem questionã-los; doutrinamento; assim se preservam as dominações sociais. 102

Sem chegar a coisas do tipo "a escola irá domesticá-lo ", não está bem consolidada a idéia de que a escola é feita para "conter" as crianças? Além disso, é terrivelmente verdadeiro que a palavra disciplina tem duplo sentido: os mais altos valores culturais e os truques para manter os alunos sossegados. Aliás, \um dos riscos da obrigação escolar é fixar o aluno em sua puerilidade - e que ele adote condutas do mesmo nível para resistir, isto é, aquelas que ele sente como as mais apropriadas para exasperar o adulto, mais provocações que revoltas. Queixas torrenciais dos alunos: o que nos impõem é difícil demais, inutilmente difícil; eles nos impõem isso somente . para poderem nos classificar e em seguida nos "orientar", quer dizer, nos eliminar ou nos deixar de lado; eles nos impõem isso para que o adulto tenha ocasião de realizar seu desejo de superioridade, sua sede de autoridade sobre os jovens, submetendo-os a vexames e até a crueldades. Eles não justificam o que nos impõem e se dispensam de justificá-Io, porque seriam obrigados a reconhecer todo o arbitrário que isso contém. Só o fato de isso ser imposto já é humilhante e infantilizante, faz-nos viver num estado de dependência infantil. Eles nos exigem demais, gastamos um tempo demasiado com isso, não estamos mais suficientemente disponíveis para todo o resto. Como falar de alegria quando nos fazem viver com um medo perrnanentei? Medo quando a professora "passava em revista cadernos e lousas". Medo de ser obrigado a recitar uma poesia "sozinho, em pé, diante da classe inteira'" -- e uma poesia difícil. Medo de ser obrigado a responder ao ser argüido: "Encontrarei forças para não gaguejar? Conseguirei no mínimo pensar, preso por aquele olho no qual não se lia nenhuma mansidão?"

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Pode-se ir além das lágrimas? Sendo tudo isso bastante conhecido e freqüentemente repetido, é a outra vertente que me interessa explorar: as alegrias do obrigat6rio. Em que medida a alegria pode nascer no interior do obrigat6rio e mesmo nascer do obrigat6rio, como atrair o obrigat6rio para a alegria? a) Em primeiro lugar, esses medos podem ter seu encanto: "Eu gostava da emoção que o ruído dos passos da professora que voltava fazia correr pela sala. Eu gostava do medo que nos invadia quando ela passava em revista cadernos e lousas"." Alguns querem levar ao paroxismo, ao paradoxo as alegrias pr6prias dessas situações de tensão' e de emoção. Celebrase a alegria dos exames e dos concursos na medida em que eles provocam um "estado emocional particular em que o ser é obrigado a ir até o limite das suas possibilidades". 8 Eu diria de bom grado que a prova é a quintessência da obrigação escolar. atrativo do obrigat6rio é o tempero que ele traz à

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vida escolar: No colégio, ao invés de me submeter ao aspecto arbitrário da regra do jogo, eu via um jogo nas regras. Nós as respeitávamos para que a partida, prestes a acontecer, pudesse assegurar nosso prazer. No fundo, os maus alunos não passavam de maus jogadores.9 Assim, uma primeira alegria consiste em que a obrigação escolar pode oferecer ao aluno um leque de experiências ernotivas que não tem equivalente no mundo cotidiano, na liberdade comum: emoções vivas, às vezes violentas, mas controladas pelo conjunto da situação. b) Com efeito - e isso leva a um segundo tipo de alegria _, pode-se amar esses medos nascidos do obrigat6rio na medida em que, simultaneamente, nos sentimos protegidos pelo obrigat6rio, que passa a ser garantia, alívio e alegria de sentir-

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se protegido. Todos devem submeter-se, logo todos devem ser tratados da mesma maneira e, portanto, todos devem ter seus direitos estabelecidos. A outra face, o anverso da obrigação, é que se um aluno não tem direito, na escola, de fazer tudo de que tem vontade (longe disso, aliás), os outros também não têm o direito de fazer tudo de que têm vontade - nem de fazerem com ele tudo de que têm vontade. Eu acrescentaria que ainda devem ser realizados enormes progressos para que cada aluno usufrua os seus direitos e possa lutar contra as suas violações. Mas aconselho enfaticamente que s6 se abandone o obrigat6rio quando se tem certeza de que não se vai cair no regime do capricho. c) Assim, o que protege e rege a vida escolar é precisamente a regra. Daí um terceiro aspecto da alegria: adotar uma conduta mais firme e mais estruturada do que as da vida habitual - sem chegar ao universalismo do dever kantiano, o aluno pode sentir que a norma escolar tem uma origem diferente dos hábitos e fundamentos distintos das situações já estabelecidas: ela pretende uma imparcialidade que não depende, que não dependeria das preferências, das afinidades ou mesmo do valor dos indivíduos em questão. Resulta daí a possibilidade de se livrar do caos das influências do ambiente assim como das cumplicidades e dos pressupostos. d) Estar protegido contra a arbitrariedade dos outros e também se proteger contra a arbitrariedade contida em si próprio: a obrigação escolar é forçar a... mas é, ao mesmo tempo, ajudar a superar certas agitações da alma, hesitações inconsistentes, frouxidão nas atitudes e nos desejos. Pode-se pôr termo a disposições mágicas e regressivas como essas; entregar-se a desvarios; saberíamos tudo, possuiríamos de um s6 lance, sem esforço; o mundo vai ceder aos meus desejos ... Uma das virtudes e uma das alegrias da obrigação consistem em mostrar aos alunos que certas extravagâncias e certos

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caprichos "não colam". Só importa o que pode adquirir um certo peso de realidade, pelo menos de realidade escolar. e) A obrigação é a chance que cada um tem de encaminhar-se para aquilo que ainda não o atraía, onde ainda não fora bem-sucedido. O encontro da criança com Rimbaud tem muito mais chances de ocorrer caso seja imposto pela escola. Resta em seguida a seqüência, feliz ou não, desse encontro. Resta também ao aluno tomar consciência de que ele não se teria encaminhado para isso "espontaneamente". f) Procurar, enganar-se e recomeçar após o erro. Todos sabemos que é assim que se progride, que se atinge a alegria de progredir, mas se essas retomadas não fossem impostas, se as deixassem por nossa conta, na maioria das vezes não faríamos corpo mole? A irmãzinha leva pito, tem que refazer suas contas de somar e é assim "obrigada a uma vitória sobre si mesma, cujo alcance exemplar ela ignorava". 10Não ceder, empenhar-se em vez de entregar-se à dispersão: isso não é uma chance de alegria? Péguy diz com sutileza: "O ressaibo amargamente bom da penosa obediência desejada". 11 Quando aprende a escrever, ele acha ilógico que lhe imponham escrever com branco sobre preto, quando habitualmente se escreve com preto sobre branco; entretanto, ele aceita o obrigatório e sua alegria advém, creio eu, de uma confiança, aliás cheia de reticências, na legitimidade do que a escola exige. g) No sentido mais global, a obrigação escolar é a esperança de incitar o aluno a ir ao máximo de suas forças, ao limite das suas possibilidades, ao extremo de si mesmo; transcender o nível habitual e seu desleixo por demais sossegado. Alegria de enfrentar resistências, de vencê-Ias, pelo menos em parte, de progredir em determinado campo e também alegria de enfrentar-se a si mesmo e de progredir no autodomínio com a convicção de que, se a luta fosse facultativa, não se teria ido até esse ponto.

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"A Vontade de lutar com futuros enigmas gramaticais, seus 'navarreses' e seus 'castelhanos' ", diz o herói do livro que conhece de cor "seu" Cid.12 Quero aplicar à escola estas duas frases, mesmo que não tenham sido pensadas diretamente para ela: "Aquele a quem nunca se pede o que não pode fazer, nunca faz tudo o que pode"13; e de modo bem semelhante: "Aqueles que nada fazem quando lhes é pedido um esforço comum, mas são prodigiosos quando se trata de um esforço que está acima de suas forças"." Acho que estou autorizado a passar do "pedido" à obrigação. Não há dúvida de que nenhum aluno pode viver tantos anos nesse estado de supertensão, evocado pelos dois autores; no entanto, é nessa direção, que conseguem ultrapassar até certo ponto, que podem apreender a alegria de uma realização e que um dos caminhos para atingi-Ia é ser apoiado pela obrigação. Sem Cair nas armadilhas do "mais tarde", existem, mesmo assim, momentos em que a gente deve penar para tornar-se sensível à beleza de Baudelaire. Trata-se de "triunfar sobre os desvios do espírito que Se esquiva"15; tenacidade, concentração de esforços, mas também momentos de crise e de aridez. Não é da primeira vez, à primeira leitura de um poema, à primeira visita ao museu que todo aluno é tomado como que por uma revelação. Mesmo aqueles que são mais receptivos, mais acolhedores em relação à cultura, têm necessidade de recomeços, de novos encontros ocorridos graças a novas circunstâncias e também de tomar uma certa distância. Se a obrigação não estivesse ali como apoio, as metas culturais teriam menos chances de ser atingidas.

É um consolo, um incentivo saber que, sobretudo para os maiores, o caminho não foi suave: Nietzsche pede que se faça os alunos sentirem "o martírio que são a história das ciên-· cias ... as lutas, as derrotas, os retornos à luta dos sábios ... (há razão para) fazer tremer a alma dos jovens". 16 107

Quis fazer surgir o caráter culturalmente frutífero da obrigação, entretanto não posso esconder os seus limites, os seus riscosnem o que existe de fundamento na oposição dos alunos à obrigação. Desse ponto de vista, uma primeira tarefa da "minha" escola seria fazer evoluir o obrigatório; caberia, em seguida, buscar as condições de um progresso rumo a uma autonomia propriamente escolar.

Fazer as obrigações evoluírem Está fora de cogitação aceitar todas as obrigações existentes. Algumas são devidas a falhas de organização; muitas, à falta de recursos locais, pessoal e dinheiro; algumas só se mantêm por sobrevivência; outras se originam do desconhecimento das necessidades e demandas dos jovens. Pode-se mesmo perguntar se não existem algumas que visam rebaixar e humilhar o aluno, ao invés de educá-lo. Portanto, não se pode considerar a obrigação em si mesma como libertadora, porém cada tipo de obrigação deve ser posto em questão: naquele caso determinado, determinada obrigação cumpre um papel positivo? Na ausência de determinada obrigação, o progresso do aluno correria o risco de estagnar? & vezes, são simples mal-entendidos que precisam ser superados, mas, principalmente, temos muitos imperativos que precisam ser transformados, subvertidos. ' Isso exige, no mínimo, que os adultos discuta~ esse assunto com os jovens e, portanto, que a escola institua um espaço e um tempo, provocando hábitos de palavras tais para que as discussões se desenvolvam em condições favoráveis e tenham seqüências efetivas. 17 Uma das primeiras reformas pedagógicas a serem promovidas seria organizar, em todas as escolas, em todos os níveis, a possibilidade de que os alunos em grupos (pois a força dos

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fracos reside no seu número) exprimam suas reações e demandas em relação àquilo que estão vivendo. Em todos os casos, os professores terão por tarefa justificar a legitimidade das obrigações que serão mantidas: elas só produzem efeitos positivos na medida em que os alunos reconhecem que elas existem para ajudá-Ios - conscientização a ser adaptada, evidentemente, à idade deles. Em que condições os alunos podem admitir que as obrigações escolares não são iguais aos trotes de calouros? Uma escola que lute para que a obrigação não seja, nem inicialmente nem depois, sentida como um trote de calouros. Esse acordo com os alunos e a participação deles na elaboração do obrigatório podem funcionar igualmente como freios à sua desvalorização. Trata-se, principalmente, de fazer com que os alunos sintam que o obrigatório e os trabalhos a que ele serviu de apoio os ajudam a penetrar nas áreas difíceis e essenciais, onde serão supercompensados com alegria pelos esforços despendidos. Isso é o que chamarei, na última parte deste livro, de campo das obras-primas. Não poderíamos, assim, nos encaminhar para uma reconciliação entre os que protestam e os que aceitam -- talvez, quem sabe, com uma docilidade demasiado cômoda? "Minha" escola está decidida a introduzir essas zonas de autonomia que tantas pedagogias, hoje, exigem; no plano da organização, os alunos exprimirão suas reações, dirão seu ponto de vista, exporão seus próprios problemas; aprenderão pouco a pouco a entrar em acordo, a encontrar procedimentos de trabalho, não recuarão diante das responsabilidades e das iniciativas a serem tomadas, proporão e participarão das decisões. Em relação ao trabalho, trarão contribuições a partir das suas próprias experiências - voltarei a esse assunto, a propósito da continuidade.

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Uma autonomia especificamente escolar

O professor não dá o seu saber para o aluno: ele lhe permite o acesso a ele desde que cada wn realize, por sua própria conta, o movimento que fundamenta determinada idéia - talvez, também, o compromisso que sustenta a validade de tais metas. Plutarco já dizia: "A inteligência dos alunos não é um vaso que se tem de encher; é uma fogueira que é preciso manter acesa". Os itinerários para a cultura são múltiplos, mas nunca inteiramente sinalizados. Só existe consentimento real por parte do aluno se houver, pelo menos vislumbradas, outras saídas possíveis. Pode haver educação sem que o discípulo selecione, critique, rejeite, recuse, se oponha, se rebele - quando isso s6 aconteceria em certos momentos, em certas fases, em relação a certos procedimentos? Nesse sentido, um alicerce de autonomia e uma alegria primeira da autonomia encontram-se na base de todo ensino que ouse apresentar-se como tal. Um segundo momento dessa autonomia especificamente escolar, e da alegria a ela correspondente, pode ser procurado na relação entre o aluno e a obra-prima.

Eu gostaria, sobretudo, de colocar a questão que me interessa sobremaneira, pois uma dificuldade essencial surge aqui: os alunos muitas vezes procuram na escola o mesmo tipo de autonomia existente na vida cotidiana ou no lazer, ou seja, a opção - e se irritam por não encontrá-Ía, Na realidade, na escola, a autonomia não pode consistir em fazer, a seu bel-prazer, este ou aquele dever, ou nenhum outro, nem optar entre um tex.to de Vitor Hugo ou uma página de romance policial, pois as exigências culturais existem e são elas que mandam. Além disso, gostaria que os alunos percebessem que, na escola a autonomia de uma atividade não basta para garantir seu valor. Não admito que qualquer atividade assumida pelos j avens (recolher jornais velhos para ter os fundos necessários para uma viagem etc.) seja, só por isso, considerada válida: viso, na escola, atividades de alto nível, que se unam a conhecimentos de alto nível, atividades diretamente relacionadas às aquisições culturais. Ando à cata de uma autonomia especificamente escolar, na qual percebo dois aspectos. O primeiro patamar é que o aluno não atinge nem o progresso nem a alegria se não retomar, de modo pessoal e voluntário, isto é, autônomo, o trajeto que o professor (ou o livro) traçam à sua frente ou mesmo, em parte, com ele. Não se trata somente de dizer que o aluno -nâo deve receber a verdade do exterior, repetir respostas calcadas nas de outrem e que não põem em jogo sua atividade pessoal. Mas o aluno não pode receber a verdade do exterior, pois a verdade não pode ser transferida de uma mente para outra mente. O aluno colocado em xeque geralmente fica bloqueado numa espécie de passividade incoerdvel, tomando-se um fantasma presente-ausente; ele não conseguiu partir para a conquista de significados e as palavras não chegam a adquirir vida nele.

De fato, parece-me que posso encontrar nessa relação com a obra-prima uma síntese entre a obrigação e a autonomia, entre a afirmação do obrigatório e o desejo de autonomia daqueles que protestam contra o obrigat6rio. Num certo sen·tido, a obra cultural aparece como o que há de mais obrigatório, de mais contrário ~ autonomia do aluno; não s6 no desenrolar dos programas escolares determinadas obras são prescritas para determinado momento - mas, sobretudo, as obras por si s6: o quadro está dado, concluído, não tenho outra coisa a fazer a não ser admiti-lo. O livro aparece como

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A singularidade da "minha" escola é transformar os conteúdos escolares a ponto de colocar em primeiro plano a obraprima e a alegria que o aluno pode extrair da obra-prima; uma escola que ambiciona confrontar o aluno com as conquistas humanas essenciais, na esperança de que ele alcance assim as alegrias essenciais.

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um objeto alheio a mim mesmo, ingerência de um outro, intervenção vinda do exterior. A resposta de Picasso a essas objeções banais é magnífica: neste exemplo, o quadro é um nu; ao mesmo tempo ele foi inteiramente realizado pelo artista e cada um pode cornpô-lo: É preciso que você dê a quem olha as condições para que ele, próprio faça o nu, com os seus olhos; [é preciso que] ele tenha à mão todas as coisas das quais necessite para fazer um nu. Então ele mesmo as porá no lugar com os olhos dele. Cada um fará o nu que quiser com o nu que eu tiver feito para ele. 18 A relação do espectador com o quadro é bem a síntese do obrigatório e da autonomia: a partir de dados impostos, é ele que monta o quadro, e esse quadro restituído é um Picasso; a prova de que a síntese foi bem-sucedida é a alegria sentida. A situação do aluno não me parece fundamentalmente diferente daquela que vive, esse diletante, salvo pelo fato de que o aluno não optou por ir ao encontro da obra-prima. Mas uma vez que tenha ido ...

Tornar-se o que se é graças a um outro

a aluno

fica preso a determinado livro por regulamentos obrigatórios, livro esse que constitui em si uma submissão ao seu autor.

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papel dã "minha" escola é o de escolher a obra que pode convir àquele momento, àquelas circunstâncias, aos alunos e, estabelecidas as regras, apresentá-Ia em condições favoráveis à sua apropriação (notadamente aquela continuidade da qual falarei em breve). A obra pode então se transformar em instrumento privilegiado para conquistar a autonomia: "Essa impressão de parir a si próprio". 19

pouquíssima alegria). Conseguir enxergar-se mais claramente: o livro é como uma daquelas "lentes de aumento"; ficamos mais capazes de discernir nossas intenções, a ponto de se poder afirmar que os leitores, conduzidos pelo autor (e alguns diriam: subjugados pelo autor), são menos os leitores do autor do que os "leitores de si mesmos'v''' A atividade original do aluno não é anulada, mas exaltada pelo que lhe é proposto: o impulso provocado pela leitura se produz, em última instância, "no fundo de nós mesmos", e eis por que ele pode abrir "no fUndo de nós mesmos a porta de moradas onde não teríamos logrado penetrar". Mas a metáfora, aqui, pode induzir ao erro: não imaginar territórios dados e delimitados, que teriam escapado a nossas investigações anteriores - e, portanto, o autor teria que nos guiar até lá passo a passo. O que se encontra desperto nos leitores é a "vontade de servir-se do seu espírito" e precisamente o "poder de pensar por si mesmos". Para pôr em ação minha razão, meu espírito, minha vontade, careço de um outro; eis o paradoxo que fundamenta a liberdade do aluno dependente. E se foi uma obra genial que abalou meu pensamento, ele vai se voltar em direção ao genial, "tentar recriar em si mesmo o que um mestre sentiu" - e também o que ele compreendeu e desejou. Estamos aqui na confluência de uma obrigação e de uma liberdade, e é a alegria desse encontro que eu sonho insuflar ao aluno.

Interpretações criativas

Tornar-se o que se é livrando-se do peso das idéias prontas, desembaraçando-se de uma infinidade de preconceitos e menosprezos (menosprezar proporciona, no final das contas,

Ou a obra-prima permanece letra morta, ficando assim perdida, ou os alunos irão, de uma vez, aceitá-Ia como é e interpretá-Ia, quase no sentido como se fala de intérprete no teatro, no cinema, no concerto - aliás, isso pode acontecer sem fazer nenhum gesto, nem dizer uma palavra suplementar. Fazer viver a partir da sensibilidade de sua época e de seus

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problemas, e também cada um a seu modo, a partir do que cada um é, do que já viveu, de suas expectativas. O aluno dá vida à obra, dá sua vida à obra, e essa inter-

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pretação pessoal é que constitui a primeira conquista de sua originalidade autônoma. O primeiro "papel" dos alunos é "representar" à sua maneira, inimitável, os teoremas de geometria ou as estrofes de um poema. Pode chegar, assim, a um "olhar produtivo": associar sua própria experiência à do autor,

Diz-se freqüentemente que a escola tem por finalidade negar a si própria, suprimir-se, a fim de criar um adulto "livre", sem mestre; a escola seria minada por uma contradição interna: ela acumula obrigações e mestres, enquanto o fim visado é atingir o pensamento pessoal, buscar e aprender por si mesmo, fazer suas próprias aquisições e encontrar suas próprias normas. Com isso, chega-se mesmo a afirmar que a escola, seus mestres e suas obrigações são necessariamente contrários à verdadeira aquisição do saber e ao crescimento dos alunos. O tempo escolar seria o oposto da idade adulta, a criança submissa seria o oposto do adulto autônomo. , E, sob formas diversas, teceremos comentários a partir da frase final de Nourritures Terrestres [OsFrutos da Terra]: "Natanael, agora, jogue meu livro fora".23 Na realidade, porém, a esperança de Gide e, de uma maneira mais genérica, a esperança e o papel do educador são que Natanael procure outros livros, livros do mesmo nível, de alto nível; que não se contente com a publicidade que o cerca, com o conforto que o cerca, com os prazeres fáceis, imediatos e egoístas: o discípulo se livra da submissão àquele mestre, mas para atingir a altura dos mestres. E se Natanael se deixasse levar pelas pequenas modas sucessivas, Gide ficaria convencido de que seus esforços educativos fracassaram. Gostaria de dizer principalmente que o adulto nunca prescinde de mestres: ele se fia num determinado jornal, confia-se a determinada Igreja, adere a determinada corrente de sua época, inclusive o ceticismo, o indiferentismo e a abstenção, que são posições tão nítidas quanto as outras. Não há dúvida de que ele pode criticar as empreitadas às quais se presta; mas o aluno, por sua vez, também não deixa de fazê-Io. Ele pode escolher, abandonar, mudar, esforçar-se

compará-Ia, assimilá-Ia, opôr-se a ela.21 O aluno não está condenado a ser um simples consumidor da cultura, ele não recebe simplesmente a obra, mas a prolonga, a enriquece, acrescenta-lhe algo, faz nascer nela ecos que nunca haviam ressoado. E eSS;1longa, lenta e difícil coabitação autônoma com as criações é a condição para que a criatividade do aluno alce vôo, ultrapasse a utilização hábil e as combinações astuciosas dos estereótipos espalhados à sua volta. É por meio da alegria assim sentida - e que provoca o desejo de se envolver numa "interpretação" - que o aluno deixa de ser submisso e dominado; ele concilia em si a parcela do sujeito autônomo e a parcela da herança recebida, das influências sofridas, da autoridade. As obrigações da escola podem levar os alunos a uma independência que torna quase insignificante a liberdade que eles pensam encontrar quando fazem muito simplesmente tudo de que têm vontade na hora. Um professor lê poemas a seus alunos, fala dos autores, encontrando sempre o tom adequado: então eles vivem [...] uma aventura e uma liberdade mais fortes do que aquelas, precárias, das andanças, das férias] ...] [é tão melhor que o pátio do colégio] onde nos divertíamos sem parar com as mesmas brincadeiras, nos entregávamos às mesmas algazarras, retomávamos interminavelmente os mesmos diálogos entremea22

dos de fanfarronadas, de trocadilhos e obscenidades.

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EsCOIA PARA APRENDERA

PRESCINDIR

DE MESTRES?

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para unir e até mesmo misturar várias influências, matizandoas. Isso é importante, sem dúvida, mas durante todo o tempo em que ele confia-se a determinada fonte de informação ou de direção, está tendo um mestre. Evidentemente, não é possível verificar in loco as notícias, os comentários, as ordens, as recomendações, Cada adulto deve também extraí-los de determinada fonte (ou de determinadas fontes) exterior a ele próprio, imperiosa enquanto ele não decide mudar de fonte e procurar outra. A gente é sempre um pouco aluno do seu jornal, da sua Igreja, do seu partido - e ser do grande partido daqueles que não querem ter partido não faz ser mais autônomo, não faz perder o caráter escolar do que pertencera um partido constituído. A escola não para aprender a prescindir de mestres, mas para se preparar a fim de melhor escolher os mestres voluntários da maturidade.

17. Cf. Oury, Pédagogie institutionnelle. 18. Hélene Parmelin, Picasso dit, 1966, P: 111. 19. Annie Leclerc, Origines, 1988, p. 100. 20. Marcel Proust, Le Temps retrouvé, La Pléiade, IU, p. 911 e 1032. 21. Brecht, Écrits sur le théâtre, I, op. 258. 22. G.E. Clancier, Un jeune bomme au secret; 1989, p. 77 e 82. 23. André Gide, Les Nourritures terrestres, 1897.

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NOTAS 1. George Sand, Histoire de ma vie, I, 1855, P: 119. 2. Erckrnan-Chatrian, Maitre Nablot, IV; 1874. 3. Paul Valéry, La Pléiade, P: 497. 4. Louis Gilloux, Le Pain des rêues, 1942, p. 65. 5. Joseph Zobel, Ia Rue Cases-Negras, 1974, 95. 6. Mede Hodge, Crick, crack, VII, 1982; em inglês, 1970. 7. Joseph Zobel, ibid. p. 95. 8. Georges Jean, La passion d'enseigner, 1985, p. 101. 9. J.-B. Ponralis, L'amour des commencements, 1986, p. 23. 10. Catherine Paysan, Nous autres les Sancbez; 1976, P: 41. 11. Chades Péguy, Pierre, La Pléiade, I, P: 1235 (redigido a partir de 1898, só foi publicado em 1931). 12. Malegue, Augustin, 1932, L. II, capo r. 13. James Mill, O pai de Stuart Mil!. 14. Monteherlant, Ia releve du matin -- Le Jeudi de Bagatelle, 1922. 15. Roger Martin du Gard, Souvenirs, I, La Pléiade, 1955. 16. Nietzsche, Aurore, Aphorisme, 195.

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2 AALEGRIAEAESCOLA COMO UM MUNDO DIFERENTE

L EM QUE CONDIç6ES APRENDER PASSA A SER UMA MANEIRA DE VIVER? A escola como um mundo diferente da vida: como em relação à obrigação, aqueles que reclamam dela constituem uma multidão, e escolhi arbitrariamente alguns testemunhos sobre o assunto. A escola tristemente oposta à vida, mas ainda mais tristemente oposta a si mesma. É uma construção cinzenta, fria, de janelas com barras de ferro, com garotos sujos e malvestidos: "Fazem-nos explicar Virgílio, os belos adolescentes dourados pelo sol itálico, os doces pastores felizes que tocam flauta num paraíso bucólico". Bem pior, "as grandes amorosas Dido, Fedra e Safo são propostas como em temas de devaneios a pequenos reclusos limitados às masturbações de dormitório". E finalmente: "Ensina-se o vasto mundo a garotos enclausurados que nem sequer têm o direito de ir brincar no jardim da cidade". Em suma, a alunos aprisionados a esse ponto "ensinase a conquista da liberdade".' Os riscos de não-alegria são então evidentes e foram evocados com muita freqüência: risco de que a escola se degrade como irreal, artificial, factícia; ela gira em torno de si mesma, cai na mesmice, rotina, desgaste, sem dúvida ainda mais con-

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trários à alegria que incidentes mais ou menos dramáticos. Receio que essa abstração gere muita melancolia e torpor na vida dos alunos; o que se opõe à alegria é muito menos o tormento do que o tédio, o vazio: vaidade, para quê? Daí o emprego pejorativo do termo "escolar" para denunciar o que não tem relação com uma vivência real; leitura "esco I" I·" ar , re d"" açao escoI" ar e tam b'em exercicros esco Iares ", como quando os alunos fazem de conta que estão levando ao professor "respostas" para informá-Ia das coisas que ele, evidentemente, sabia há muito tempo. São inúmeros os alunos ávidos por deixar esse recinto para ir ao encontro do mundo cotidiano, pois este lhes parece o mundo "autêntico"; encontrar condutas, desejos e até mesmo idéias e palavras que não existem e não têm equivalente na escola. A distância entre o escolar e o vivido fora da escola é tão grande que a escola se descobre, por essa razão, desbotada e fantasiosa. Mas são sobretudo as crianças do proletariado que ficam divididas entre seu mundo rude, que se impõe a elas rudemente - às vezes, também, por movimentos bruscos, alegremente -, e as transposições etéreas da escola. Um belíssirno texto de Calaferte evoca alunos "horrorosos", crianças da zona miserável que não podem, que não querem distinguir uma zona escolar de uma zona não-escolar; eles se recusam a diferenciar regras de conduta: "Nós não sabíamos brincar como crianças. Precisávamos de verdadeiras batalhas. Era preciso que nos rasgássemos, que houvesse gritos de dor e lágrimas"." Aliás, finalmente, ainda assim eles vão progredir quando um diretor souber com eles, contra eles, bagunçar de verdade, como eles, partindo do estilo de vida deles e conduzindo ao mesmo tempo um projeto pedagógico. Voltemos àquilo que constitui aqui os riscos mais gerais de não-alegria: "O que mais nos desagradava nos estudos era a inutilidade dos nossos trabalhos. Exercitar-se sempre e nunca

fazer nada".3 Ao tema do "mais tarde", junta-se o desgosto de que o exercício não tenha outro fim a não ser ele mesmo. Ele gostaria de participar de uma pesquisa minimamente inovadora, seja para estudar uma planta ou para caracterizar o léxico de um escritor, e que isso resultasse numa publicação - em suma, deixar uma marca efetiva. Arcaísmo: os professores (e também os pais) tendem a apresentar aos jovens as idéias e os livros que lhes agradavam antigamente, quando tinham a mesma idade que eles. O circulo fechado da escola parece muito propício a tal passadismo, diante do que toda geração reclama o direito à originalidade, vive a novidade do seu mundo e reivindica ser diferente - e é disso que ela espera sua alegria. A Antiguidade culmina no reino do latim e no elogio do mundo romano; era a "cultura de uma sociedade individualista, patriarcal, agrícola, de economia fechada"," que aparece ao aluno como incapaz de iniciá-Ia no mundo conternporâneo. A impressão que fica é que se espera, desse modo, deter o curso da história. Enfim, a irreal idade da escola permite lançar-se no idílico - e isso de dois modos: vai-se afirmar aos alunos que todos, ricos ou pobres, nativos ou estrangeiros, são iguais na escola e podem esperar em seguida as mesmas carreiras, as mesmas belíssimas carreiras: o que daria a cada um alegria e esperança, se isso não fosse desmentido pela experiência, a qual, a partir de então, torna suspeitos até mesmo os germes de igualdade que alguns professores se esforçam por introduzir. Daí o agravamentoda não-alegria. A escola também vai proclamar que todos os homens, todos os alunos são irmãos; vai ensinar o dever, a bondade e a justiça como possíveis e necessários. Em todas as áreas, ela vai apresentar heróis e propor o sentido, o exemplo de existências heróicas, a serviço de todos.

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, Muitos alunos se recusam a entrar em tais perspectivas, pois a contradição com o que eles vivem diariamente é demasiado viva. Alguns se entusiasmam: "Pelos seus discursos e pelo seu exemplo, o senhor me fez acreditar que havia um grande número de homens verdadeiros ... o senhor me deu o desejo apaixonado de uma vida extraordinária'i.? escreve um ex-aluno ao seu professor de colégio. Em seguida, porém, empregado modesto de uma repartição, ele encontra na vida unicamente crueldade, pequenas rivalidades e aviltamentos. E de quanto mais alto se cai, mais dolorosa é a queda.

Suprimir a irrealidade da escola?

tome emprestado do extra-escolar gestos, momentos banais, comuns e que podem, portanto, ser pouco formadores. Há o risco de que a escola perca sua alma, quer dizer, sua originalidade: a relação da alegria com as obras-primas culturais sem conseguir, aliás, eliminar seu caráter "factício": mesmo que a classe prepare um verdadeiro projeto de um verdadeiro restaurante, não haverá, como num escritório de planejamento, um projeto único redigido por um pequeno grupo, mas tantos projetos quantos forem os grupos que a classe comportar, como num corriqueiro dever de matemática.

A escola, real e irreal ao mesmo tempo A escola diferente da vida: em que medida isso é uma perda para a escola e em que medida é seu papel, e até mesmo sua definição? O duplo aspecto da questão é assinalado pela coexistência de dois textos de Freud, se não contraditórios, pelo menos divergentes: num deles, Freud censura a escola por ser irreal, já que se entrega muito facilmente ao idílico; a educação atual

Eu gostaria de falar um pouco sobre as pedagogias que se esforçaram metodicamente para aproximar a escola da vida. Suprimir as não-alegrias da alteridade, suprimir a alteridade da escola. Por exemplo, uma experiência ocorrida na França, no GFEN: os alunos põem realmente para funcionar um restaurante, uma cantina na sua escola ou no seu bairro; os escritos que eles vão produzir serão mensagens reais, dirigidas a pessoas reais, desde o prefeito até os fornecedores; as discussões orais em classe terão igualmente objetivos reais: age-se seriamente. De uma maneira mais geral, a escola incita os alunos a organizar fabricações ou atividades em dimensões reais: um circo de alunos vai percorrer a França; os alunos gerenciam os recursos com o concurso discreto dos professores. A experiência mostra que assim se proporciona muita alegria a muitos alunos. Resta saber se esse é verdadeiramente um caminho de renovação da escola ou um simples paliativo, . enquanto se espera que a escola encontre a força e os meios para se renovar. "Se a escola foi inventada, é porque a vida não é suficiente para educar"(Martinand). Receio sobremaneira que aqui a escola não reproduza o extra-escolar e, menos provavelmente, não

Estamos, aqui, no cerne do problema. Por certo, a proclamação idílica da igualdade, a negação temporária e tão parcial das disparidades ameaçam reverter-se em artifícios destina-

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[...] não prepara as crianças para a agressividade da qual elas estão destinadas a ser objeto; [é como se] se imaginasse equipar pessoas para uma expedição polar com roupas de verão e mapas dos lagos italianos.6 Mas num outro momento de sua obra, quando centra sua reflexão na escola, Freud adverte: A escola nunca deve esquecer que lida com indivíduos ainda imaturos, aos quais não pode ser negado o direito de se demorar em certos estágios, mesmo que desagradáveis,do desenvolvimento. Ela não deve reivindicar para si a inexorabilidade da vida, não devepretender ser mais que um jogo de vida?

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dos a manter as desigualdades reais. A ficção de um universo virtuoso ajuda tanto menos os alunos quanto mais eles sintam a opressão cotidiana. Entretanto, a escola pode renunciar à afirmação da igualdade, do progresso possível? A portas fechadas, certamente; logo, com todos os riscos de irreal idade. A renovação não deve ser anunciada como fatos já realizados, mas como tarefas a serem executadas em classe, na escola, na vida - e dizê-Ío pode tornar-se aqui um dos primeiros passos em direção ao fazer, sem ilusão imediata, mas sem renúncia. A alegria gratuita do discurso puro caindo na recusa ou na decepção; a alegria áspera do discurso como acompanhamento da ação. Se a escola se abrisse rapidamente à reprodução do cotidiano imediato, ela perderia a oportunidade, talvez única, de fazer viver o outro lado, igualmente existente, do mundo: a imensa coorte, através da história, dos esforços para superar a desigualdade entre o homem livre e o escravo, o nobre e o plebeu, o homem e a mulher, o opressor e o oprimido.

Alegrias M irrealidade Daí a importância de levar em conta aqueles que encontraram alegria no fato de a escola ser diferente da vida. O colégio, escreve Giraudoux, "a única morada onde as leis da gravidade são falsas... [ali] eu recebi o mundo renovado". 8 Minha escola quer incitar o aluno a usar plenamente a irrealidade, de maneira a sentir alegria com ela. A alegria consiste primeiramente em que esse mundo diferente, irreal, pode ser metódica e sistematicamente programado para "apreendê-Ia", com regras, no duplo sentido de regrado e regular, que só são possíveis numa esfera assim - e que garantem a segurança necessária ao estudo: "leis que todos devem respeitar me protegem" .

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"O uso do tempo" escolar é completamente diferente do tempo empregado na vida habitual; por certo, o tempo é imposto, mas sabemos que temos tempo à nossa frente, quanto tempo temos à nossa frente: o tempo é garantido enquanto a realidade é um intervalo entrecortado, imprevisível. O escolar é um retorno periódico e exatamente previsto de determinada matéria em determinado momento: daí uma expectativa, uma possibilidade de se preparar para quando a hora disso chegar, finalmente, de dar uma atenção especificamente disponível para isso. Uma mesma matéria prosseguirá no mesmo ritmo durante um ano todo, pelo menos; daí resultam possibilidades de progresso que não se pode esperar dos encontros "reais", visitas ou passeios, que se fazem de vez em quando e sobre assuntos variados, de acordo com os caprichos da oferta e da procura; e os acasos, feliz ou infelizmente desordenados, do que se encontrar. Caminha-se passo a passo, aprende-se dentro de uma ordem; existem etapas e não se queimam etapas. Uma das frases mais usadas na escola é: "Na última vez, nós paramos em tal ponto; portanto, retomemos a partir desse ponto". Nada de coincidências, de assuntos abordados em determinada ocasião e abandonados devido a algum incidente. A efervescência desordenada tem, sem dúvida, seus encantos, mas esse não é o ponto forte da escola. O estudo poderia e deveria ser feliz na escola, já que pode ser graduado, progressivo e, portanto, adaptado aos recursos, em determinado momento, de determinado aluno: "Esforçam-se para introduzir em minha mente o que tem exatamente a sua medida, previsto expressamente para ela".? "Minha" escola cuidará para que a irrealidade se transforme em adaptação individual - aquilo com que a vida real não se preocupa. Um pouco além da medida imediata:

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Difícil o suficiente para impedir minha mente de relaxar (...] meu contentamento, meu apaziguamento são rapidamente seguidos por uma nova inquietude, e novamente todas as minhas forças se tensionarn [...] que jogo pode ser mais excitante? A aula se passa em grupos e o grupo escolar é muito diferente das reuniões "da vida": fica-se junto por um longo tempo sem escolha - daí as convivências de ricos e pobres, cristãos e judeus, brancos, mulatos e negros. Por certo, sabemos todos que elas são parciais e, num certo sentido, impossíveis e inúteis, mas é apenas na escola que elas têm lugar, o que é, apesar de tudo, a glória da laicidade. Não, a escola não é paradisíaca; as exclusões, as separações nela prosseguem e prosseguem suas vítimas. No entanto, em certas circunstâncias, os alunos são como que arrancados de suas hierarquias; num momento, eles podem estar inteiros onde estão, naquela classe onde finalmente são os maiores homens, às vezes sábios, às vezes poetas, que fazem a lei: ocorre de a escola realizar um modo particular de harmonia, seu modo de harmonia. Os alunos se sentem, ainda assim, um pouco mudados, engrandecidos e enobrecidos; e o educador também é transformado por isso, em relação ao que ele era há um instante, na rua. Na escola, adultos inteiramente disponíveis têm como única fiinção permanecer ao alcance das crianças e colocar o saber, sua experiência, ao alcance delas. Na vida, os adultos sempre têm outra coisa a fazer enquanto se ocupam de sua prole. A alegria escolar consiste em que, precisamente nesse mundo diferente, o peso, os múltiplos, indefinidos e irnprevisíveis acidentes do real podem, de repente, deixar de ser sentidos como ameaçadores. Pode-se esperar que a escola seja um lugar que ponha de lado determinadas dificuldades pessoais do aluno; o aluno se livraria de determinados embaraços que pesam sobre ele de outro modo. O aluno pode tentar sentir a

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alegria daqueles momentos escolares em que "só tenho que vencer a mim mesmo, em que não experimento outros medos senão aqueles advindos de mim, da minha fraqueza, da minha preguiça" .10 Em particular, os outros personagens da sua história, com o que têm de afetuoso, mas também de devo rado r, podem, por intervalos, sair do proscênio. Pontalis, ao viver no colégio, descobre uma liberdade, uma distância emancipadora em relação a pais permanentemente atentos e, portanto, permanentemente vigilantes. Com os colegas, é possível se manifestar, : falar, expressar-se, proclamar tantos acontecimentos que, na vida, seriam calados, deveriam ser calados: Em toda família [reina] uma lei secreta do silêncio... tudo o que se transmite de forte entre os seus, tudo o que os une, os fixa uns aos outros, o ódio ou o amor, o rancor ou o mal-estar não pode ser dito. 11 Eis por que os "acertos de contas" na escola lhe parecem muito mais claros, mais fáceis do que em relação a seus pais. Precisamente porque não tem com seus alunos os laços reais da longa duração, a escola pode, às vezes, incentivá-Ias para o futuro com mais audácia que a famOia. O poeta se dirige à escola: Disputando com as famílias, que de um vÔo precoce apavora, Os talentos ocultos que as farão ser ilustres Tua receptividade estimula a vocação verdadeira Que suspira hesitante. 12 Na verdade, a escola nunca é maternal; de imediato ela estabelece laços completamente diferentes, um lugar completamente diferente. Em suma, há mil razões para que a alteridade da escola se transforme num apoio ao aluno, aos seus estudos e também

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à sua vida. Resta à escola colocá-Ia efetivamente em prática. É belíssimo quando Nathalie Sarraute afirma que a escola lhe permite "possuir, realizar o que eu própria desejo". 13 Por que ela não diz que a escola faz também nascer novos desejos, Concretiza num desejo aquele que o aluno apenas pressentia ainda confusamente?

para alguns) para o sentimento tão feliz, a convicção de que o mundo é compreensível - e que o estamos compreendendo. Simone de Beauvoir, na condição de estudante, percebe a "harmonia das esferas". Tudo o que existe parece-lhe justificado e parte de uma ordem global: "Eu ocupava meu lugar na face da Terra e fazia o que devia ser feito[ ...] cada coisa e eu mesma tínhamos nosso lugar exato aqui, agora e para sempre". 16

Domínio, transparência, consonância

A geografia torna-se "êxtase", não só porque o mundo é para ser admirado, mas sobretudo porque seu atlas apresenta imagens perfeitas, ou melhor, "a idéia perfeita" da ilha, do. cabo ... perfeição característica do irreal escolar.

A alegria possível da escola como mundo diferente me parece culminar em dois pontos: domínio e transparência. A escola é um lugar onde se podem atingir os controles da evidência, visto que cada momento, cada detalhe pode ser programado para esse fim. No jardim de infância, tem-se que colorir círculos sem sair de seus limites, mas não deixando espaços em branco: "Um milagre miúdo, estreito, delicioso sai das minhas mãos e o círculo é preenchido"." Esse sucesso advém de sua própria aplicação e todos os ingredientes escolares estão reunidos: ela sente "a proteção da mestra" e também "a presença das outras crianças debruçadas em volta de mim", e atinge uma primeira experiência estética: "fervor ... podia-se dar um contorno à luz ... era delicioso e perturbador".

E Nathalie Sarraute está convencida de que é preciso e basta continuar a se instruir como ela começou para chegar ao ponto em que "eu saiba tudo ... não haverá nada que eu não lograrei conhecer" .17 O mundo como que oferecendo imediatamente estruturas capazes de acolher nossos desejos, de responder aos nossos planos e susrentá-los; a comunicação seria em breve alcançada e até mesmo a unidade entre os homens. Sabemos muito bem que o ingresso no segundo grau vai dissipar essa alegria escolar simples e tão segura de si. Na verdade, desde os primeiros anos, seria possível contar com os colegas para evitar que a criança viva numa inocência por demais completa. E a escola primária já comporta aspectos complexos, abertos para uma plural idade de perguntas e respostas, desde a instrução cívica até a educação artística.

Nathalie Sarraute gozará da impecabilidade escolar quando, ao ter que sublinhar algo, executar "um traço perfeitamente reto e limpo, sem nenhuma irregularidade" e também quando aprender a lista exaustiva e definitiva (pelo menos para ela) das regiões em que se divide a França: "Ei-las enfim todas ali, no seu lugar, docilmente, uma após a outra, [elas] se apresentam ao meu chamado". 15 A escola é capaz de apresentar, de fazer viver um mundo organizado e consonante: a conformidade, a alegria da conformidade. Ao longo de todos os anos de escola primária, o que se aprende e a maneira pela qual se aprende concorrem (pelo menos

De qualquer modo, é verdade que a partir do colégio, a alegria escolar não pode mais consistir nessa crença simples numa totalidade límpida: "Depois do mundo das certezas, entrava-se naquele do bastante bom, o mundo da dúvida ... da apreciação" 18, e Nathalie Sarraute diz que, no colégio, o mundo "se abria em todas as partes, se desfazia, se perdia". O colégio e a adolescência: descobrir o mundo como caótico e o conhecimento vacilante. É necessário mesmo ficar sabendo, um dia, que não existe, já pronto, simplesmente para

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ser ouvido, um concerto universal. Angústia face à complexidade do mundo, risco de não-alegria na cultura e, portanto, na escola. Mas uma base primeira de segurança é extremamente favorável a um enfrentamento da angústia. Quando, por volta dos 15 anos, Simone de Beauvoir descobre que o que existe não é totalmente belo, ela decide tornar-se escritora, instalarse entre os "intelectuais" porque "o sábio, o artista, o escritor, o pensador [criam] um outro mundo, luminoso e alegre, onde tudo tem a sua razão de ser"19, ou seja, ela compreende que esses temas primeiros da escola primária estão muito longe de ser efetivos - e ela se impõe por tarefa participar da sua realização. Não se cogita que ela renuncie a sua emergência. Se, mais tarde, ela luta e sabe lutar contra a injustiça e a cacofonia, não é também porque ouviu o acorde, a harmonia nesse lugar, diferente da vida de todos os dias, onde começou sua carreira .pensante? Um impulso que ela extrai dessa ~xperiência primeira, saboreada e depois perdida um pouco como o amor pela mãe e tudo o que frutifica a partir da nostalgia desse tempo abolido.

Alguns trabalhos onde a irrealidade se une à alegria Gostaria de considerar rapidamente alguns trabalhos escolares que me parecem favorecidos pelo fato de a escola ser um mundo diferente - e eles proporcionam alegrias que me agrada chamar de escolares. O fato de a língua da escola não ser em todos os pontos semelhante à da vida normal é a prova de que a escola é um ambiente específico (acho que, em certos momentos, se exagerou muito a diferença, a ponto de cristalizá-Ia em oposição; contudo, ela existe). É justamente isso o que permite a passagem para uma comunicação renovada e cheia de recursos: a linguagem da escola chega ao conceito, à abstração (e é notável que esse termo possua ao mesmo tempo um sentido muito

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laudatório e um sentido muito pejorativo), enquanto em família ou na rua "a gente não usava palavras, a bem dizer, mas exclamações ou gritos acompanhados de gestos ou, a rigor, frases convencionais adaptadas a situações estereotipadas".20 A alegria abre-se assim ao domínio do .refinamento, tanto científico como literário. Evidentemente, não ignoro os riscos de "supernormas" da linguagem elaborada, nem as extremas dificuldades de acesso a ela por parte de categorias inteiras de alunos. É preciso fazer tudo para que eles sejam bem~sucedidos nela, mas não abandonando a própria meta, o leque múltiplo dos pensamentos e dos sentimentos . A interpretação de textos é não só um exercício especificamente escolar como parece reservado às escolas francesas. Na vida ou, pelo menos, na vida literária, o texto se defende, se impõe por si só e é a escola que se empenha em fazer com que ele seja acompanhado por um comentário. Essa dissecação foi denunciada mil vezes. Mas eu gosto quando um autor declara: "Nunca pude admitir que um' poema fosse dissecado pela análise".21 Muitos alunos têm necessidade de explicações que despertem a beleza de um texto, que chamem à vida a beleza de um texto, que convidem os alunos à beleza do texto; e porque a escola é um ambiente fechado onde se conhecem os alunos e a situação de cada um, pode-se tentar pressentir o que eles necessitam _ é por isso que um esforço desses tem alguma chance de ser bem-sucedido. Existe algo mais escolar do que fazer com que os textos sejam decorados? Entretanto, creio que Jean Bernard tem razão quando diz: "Muitas vezes é ao reler um poema pela quarta, quinta vez que descobrimos uma certa beleza, uma certa interpretação que nos havia escapado até então".22 Saber de memória é evidentemente chegar a esse tipo de repetição eà provocar.

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a melhor maneira de alegria que ela pode

A tradução é um exercício escolar que existe também

na

vida comum. Encontro, estranhamente, o mesmo termo em duas citações que não têm, por outro lado, realmente nenhum ponto em comum: "Por detrás do torneio francês, percebemse na frase (original) sentidos misteriosos que estão por trás, que se agitam e se manifestam" ,23 Por outro lado, a propósito dos romances ingleses, Simone de Beauvoir diz: Eu os decifrava lentamente. Eu sentia prazer em levantar, com a ajuda de um dicionário, o véu opaco das palavras: descrições e narrações retinham um pouco do seu mistério; eu encontrava neles mais encanto e profundidade do que se os tivesse lido em francês.24

É a palavra misteriosa que estabelece a ligação, e é aí que eu gostaria de perceber a intervenção específica do escolar: a equivalência mais exata possível entre duas línguas é procurada e obtida nos casos práticos; porém, além disso, a escola pode ter o tempo, o vagar, a disponibilidade de espírito necessários para revelar o que há de secreto e íntimo na correspondência entre as línguas.

o exercfcio matemático Analisarei um pouco mais longamente duas alegrias escolares que atestam da maneira mais convincente a alteridade da escola: gostaria de ressaltar seu valor e seus limites, já que, apesar de tudo, elas tendem também para "a vida". Considerarei a matemática antes que ela se torne conscientização da relação entre o pensamento e o real, a redação antes que ela se torne posse estética do mundo. Nada parece tão escolar quanto a matemática, ou talvez, melhor dizendo, há um primeiro uso, especificamente escolar, da matemática. A alegria matemática é o tipo de alegria que favorece a escola enquanto

mundo diferente.

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Mundo onde se pode aplicar um método, progredir graças a um método e ir até o fim do método: [em matemática] "para quem segue a marcha correta, passo a passo, tudo é simples; para quem pretende de repente recuperar os atrasos e pular etapas, tudo fica impossível",25 Isso é escolar: o que se propõe ao aluno é feito para estar no nível dele, que pode dominá-lo até o fim. Trata-se de passar gradualmente de uma a outra proposta: a "sucessão vinculada' e urgente das razões" - basta seguir, entregar-se a um encadeamento lógico; obscuridade, dificuldade, sinuosidade da busca até a alegria de encontrar a solução e de estar certo de que aquela é mesmo a solução: cada elemento no seu lugar, não podendo ser de outra maneira.ê" A matemática convinha ao meu tipo de espírito, incapaz de se declarar satisfeito antes de haver compreendido totalmente o problema dado [...] nunca me conformei com pensamentos que não fossem até o fim deles mesmosP

E o lugar onde se pode levar as idéias até suas conseq üências e às conseqüências das conseqüências sem ser interrompido pelo surgimento de um acontecimento fortuito é a escola. Lugar onde se pode fazer exclusivamente o que foi prescrito, o que prescrevemos para nós mesmos, sem dispensar atenção a nenhuma das circunstâncias do mundo chamado precisamente de "exterior". Essa é a razão pela qual a matemática desponta como um dos aspectos mais representativos da escola. Um certo tipo de isolamento feaIndo, uma espécie de msularidade caracterizam ao mesmo tempo a matemática ea escola: [na matemática] a gente se aventura numa única e mesma direção, ininterruptamente; a gente se pergunta aonde aquilo vai dar, a gente se proíbe de olhar à direita e à esquerda e avança passo a passo no desconhecido.28

Por certo, esse tipo de alegria matemática conserva um lado factício irreal; ele pede e também permite uma alegria

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mais definitiva que abrirá uma relação com o mundo. oportunidade

Terei a

de voltar a esse ponto.

Ortografia e redação Retorno agora ao campo literário e, em primeiro lugar, ao aprendizado da ortografia. Além de sua motivação direta, temos aí também um ponto de encontro de desconfianças políticas: pode-se sustentar - e muito se afirmou que as regras de ortografia, como as da linguagem correta, como as da boa educação, do bem vestir e dos bons modos, cumpriam tão-somente um papel socialmente conservador. Certos gramáticos, com uma candura mais ou menos consciente, reforçam tais temores. Por exemplo: [...] uma sociedade onde se confunde cada um" e "cada" é uma sociedade onde as palavras não estão no lugar certo. E quando as palavras não estão no lugar certo, por que as pessoas e as coisas ficariam nos seus lugares? 29 A ortografia, instrumento convencional, forjado e mantido pela classe dominante para eliminar aqueles que, não tendo nascido em berço de ouro, vão se perder entre as dificuldades malignamente acumuladas. Não deixa de ser bastante verdadeiro encontrarmos, por esse viés, um dos maiores riscos da escola e de não-alegria na escola: a seleção em benefício dos já favorecidos. Mas é possível uma outra versão e Cavanna, filho de imigrantes italianos realmente pobres, nos conta que alegria lhe proporcionou

a ortografia:

Existem palavras com h demais, consoantes dobradas, muitos eau, ault, ain e xc. Eram as minhas preferidas. Isso lhes dá uma fisionomia especial, um ar precioso, um pouco doentio como thé [chá] ou, ao contrário, musculosas como appor-

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ter, recommander [trazer, recomendar] ou fazendo ranger os dentes como exception [exceção] ... [eu vejo palavras] tentarem se colocar um s no plural, e porque não lhe vão bem, jogá-lo fora, caindo na risada porque não deu certo mesmo, resultou feio e grotesco, e rapidamente se pendurando o x que cai como uma luva, ah, perfeito.30 • Tem-se aí como que um princípio de experiência estética que se desenvolve sobre o material propriamente escolar da ortografia: certos alunos talvez tenham necessidade, de início, justamente para atingirem o belo, de se sentir em terreno conhecido, cercados de regras estritas, com barreiras bem definidas, as da correção formal, antes de navegarem no oceano sem limites das emoções, por exemplo, musicais. O que nos encaminha para o último exemplo de alegria provocada pela alteridade da escola, a escola como mundo distinto do mundo da vida: a redação. Escrever é o que há de mais irreal, palavras, palavras, e não fatos ou ações. Mas é o que há de mais real, pois nada é mais vivo que as criações literárias. A redação está entre os exercícios mais nobres da escola e que podem dar mais alegria, sem dúvida porque anuncia um artificial que tende, apesar de tudo; a participar do mundo. Mareel Arland tem que fazer uma redação sobre a neve: ao mesmo tempo, "parece-me que essa neve, a partir do momento em que a chamei pelo nome, existe, me gela e me dá prazer"31 e, ao mesmo tempo consciente da irrealidade, diz que "é um modo de agir, uma mentira". A partir do momento em que Simone de Beauvoir compõe histórias imaginárias, "elas existiam e eu ficava muito orgulhosa de tê-Ias tirado do nada"32, o que é escrito em classe toma consistência na comunicação: o texto "interessava a ou-

* Evidentemente, Cavanna está se referindo ao francês, língua em que este livro foi escrito. (N.T.)

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tras pessoas". A bem dizer, seu público se reduz aos colegas, professores e pais. E chego agora à redação de Nathalie Sarraute33; o tema dado agrada-lhe enormemente: relembrar "meu primeiro desgosto". Imediatamente ela se instala na alteridade: nem cogita de "relembrar um de meus desgostos ... um verdadeiro desgosto sentido por mim, vivido por mim pra valer... não entrego nada que seja exclusivamente meu".34 Como a escola, mas à sua própria maneira, a literatura é diferente da vida, é uma transposição que só é possível através de um distanciamento em relação aos acontecimentos vividos. Temos então mudanças consideráveis: nossa jovem narradora quer escolher um desgosto "que estivesse fora da minha própria vida", pois "eu poderia considerá-Ia mantendo-me a uma boa distância". Já que a veracidade não é mais o critério, passam a existir duas ordens deles: primeiro, e como sempre acontece na escola, o público ao qual se dirige, as condições de uma boa comunicação com esse público tão particular: Eu preparo para os outros o que considero bom para eles, escolho o que eles gostam, o que eles podem esperar ... escrever para os outros sobre um daqueles desgostos que lhes dizem respeito.

O escritor, no fundo, como o professor, não é aquele que se entrega, se dá, mas aquele que dá aos outros algo de que eles têm necessidade para que se interessem: "Eu fico na sombra, fora de alcance" . E, sobretudo, o critério da beleza literária: o cachorrinho que ela supõe haver perdido poderá ter-se afogado ou ter sido esmagado por uma locomotiva, a cena poderá se passar no verão ou no outono, de acordo com as imagens que pareceram mais emocionantes à autora e as palavras que ela considerar mais impressionantes. Entramos na ordem do literário, onde a vontade de impressionar o leitor altera o rumo do caso narrado, onde a forma modifica o conteúdo, já que ambos são inseparáveis.

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É preciso que o texto seja belo· -

e, para isso, que cada um dos elementos o seja, a começar pelas palavras. Mas estamos num primeiro estágio de iniciação estética, onde são consideradas belas as palavras "revestidas de belas vestimentas, de roupas de festa"; as palavras que figuram nas antologias de trechos escolhidos e "cuja origem garante a elegância, a graça, a beleza". Como se diz "como você está bonito" a um amigo que se vestiu com apuro e que faz todos os esforços para se manter impecável, mas que está pouco à vontade. Na verdade, isso já vai um pouco mais longe. Habitualmente a gente usa as palavras de todo dia, sem considerá-Ias realmente. Porém, quando empregadas numa redação, "adquirem, no contato com as outras, um ar respeitável". O valor ético das palavras não reside somente na busca de um efeito de estranheza, de afeição, mas nas relações que se logrou estabelecer entre elas. Tais relações são capazes de valorizar termos que o uso banalizara. Amor pelas palavras, alegria de falar bem. Essa é a sua iniciação na preocupação estética: ela acredita que a beleza só se pode afirmar sem estabelecer uma relação com o real, que só se consegue o belo se não se levar em conta o verdadeiro. Isso porque ela ainda está presa ao dilema: ou pálida reprodução da vivência ou imaginações mágicas que não querem se relacionar com a vivência, O factício prevalece por seu poder ernotivo, e ela pensa poder alcançar a beleza ernotiva apenas pelo factfcio. Uma das primeiras experiências de beleza, de prazer encontrado na beleza. O factfcio tem riscos e limites: pode-se ir em direção ao arbitrário, a qualquer coisa, não se estabelecendo contato com a "rude realidade a ser extinta" - de resto, é muito mais fácil colocar a vivência à distância para aqueles a quem ela não oprime com muita rudeza. Mas, em espelho, o factício tem valor: ele será sempre um dos ingredientes do literário; aqui, no início da aprendizagem, ele ocupa quase o espaço todo.

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Abrir-se para a vida, não seperder na vida A escola, na sua alteridade, é o espaço privilegiado do factício e, muito particularmente, a redação. A redação que se apresenta ao professor não tem por finalidade ensinar-lhe algo que ele ignorava e gostaria de conhecer, o que constitui o papel real de um texto nas comunicações reais. Ela tampouco participa de um projeto para modificar uma situação. Contudo, são precisamente a segurança e a leveza asseguradas pelo factício da escola que permitirão dedicar-se à beleza. Não há nenhuma importância fatual no fato de o cachorrinho afogar-se ou sofrer um acidente, e é por esse motivo que a autora pode escolher a situação que sentir como a mais propícia à beleza, à emoção que deseja provocar. Evidentemente, deve-se ir além dessa redação que é um exemplo voluntário e caricaturalmente escolar, deve-se ir além da pista que ela nos indicou: o belo literário será buscado numa elaboração, que não será nem reprodução, nem mentira explícita; a linguagem elaborada não se confunde com os termos pomposos. Porém o sentido do belo, do literário, da beleza literária está realmente em germe nesse exercício de redação. A escola, paralelamente, deve, como se diz, abrir-se mais para a vida, aproximar-se mais do mundo - mas também é essencial que ela se mantenha na sua alteridade: um lugar onde o que se escreve e o que se faz não tem uma conseqüência direta em relação à realidade; onde se pode proceder, em condições menos duras que as da vida, às primeiras abordagens da cultura e da alegria que lhes correspondem.

Integrar o irreal e superá-lo

tório) essas alegrias são atravessadas e contraditas por múltiplas não-alegrias, que nascem do caráter, apesar de tudo, factkio desses processos; alguns os taxam de insignificantes. Resultam dois tipos de questão: por que tais pessoas e esse pequeno grupo só encontram alegria nessa escola? Como renovar a escola apoiando-se nesses poucos, para que essas alegrias se generalizem? Pode-se esperar uma síntese entre o factício da escola e uma escola cujo lastro seja o real? Isso pareceria uma tarefa impossível, se as alegrias do factício não fossem ao mesmo tempo as primeiras tentativas de um apelo a se prolongar em direção a um real que elas anunciam, prometem, e do qual necessitam; algo que as superasse englobando uma relação com a experiência vivida. É na continuidade das culturas que eu busco tais sínteses.

IL

CONTINUIDADE

"Minha" escola quer pôr em primeiro plano a obraprima - e voltarei longamente a esse tema -, mas ela também quer tomar como fundamento pedagógico a continuidade das culturas enquanto esperança de superar a contradição entre a escola como mundo diferente e o desejo de realidade no escolar. "Minha" escola quer e acha possível uma continuidade entre a vivência do aluno, seus valores, gostos, expectativas, os problemas que ele coloca e a cultura que a escola lhe oferece. Continuidade ao mesmo tempo para que os alunos sejam pessoalmente afetados pelo que lhes é ensinado e para que tenham confiança na possibilidade de ter acesso ao que lhes é ensinado. Essa continuidade pode existir, e nunca é evidente ou fácil; há necessidade da minha escola para promovê-Ia e para que o aluno complete esse trajeto.

Reuni casos e dei exemplos onde se afirmavam as alegrias da escola como mundo diferente e que mostravam que alguns encontraram a alegria assim. Mas (como, aliás, no caso do obriga-

Trata-se de estimular a elaboração do que o aluno vive e sente; alegria de sentir a complementaridade entre sua cultura

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primeira e a cultura elaborada, entre a alegria da cultura primeira e a alegria da cultura elaborada; alegria dos alunos de se sentirem a caminho de ... Num filme de Eric Rohmer, Conte de printemps [Conto de primavera], um professor de filosofia evoca o que eu quero chamar de continuidade: completar e ampliar a experiência, o pensamento dos alunos, sem tomar o lugar deles. As dificuldades não advêm tanto do a juventude, como eu já disse, está apta apoiar-se nas alegrias já existentes para dúvida de que os jovens têm mil razões entanto, tantos adultos que celebraram a

campo da psicologia: à alegria; trata-se de expandi-Ias. Não há de não-alegria e, no felicidade da infancia

não conseguiram enganar-se totalmente. É em relação às próprias culturas que se deve refletir. Em primeiro lugar, alguns exemplos felizes de alunos que sentiram essa continuidade a ponto de ficarem comovidos com as matérias ensinadas. O aluno vibrando com o estudo de história: Eu gostaria de ter sido um daqueles gladiadores que responderam "n6s te segUiremos" ao escravo Espártaco e sonhava 35 ter a oportunidade de lutar ao lado de homens de coragem.

O aluno vibrando com o estudo da geografia: Não era da minha carteira, por certo, que eu ouvia a lição de geografia, mas do alto da grandegávea, em plena luz do céu resplandecendo o infinito das águas... Parecia-me, à visão daqueles mapas, que me fora feita a promessa de que um 36 dia meu desejo [de viajar] tornar-se-ia realidade. Eles vibram junto com o estudo da geografia: uma aula sobre o Egito: Consegui maravilhar meus alunos da 6a série [...] eu via seus olhos se arregalarem, a vontade de viajar passando de uma

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cabeça para outra, como .um incêndio de árvore em árvore numa floresta seca.37 Agora uma aula sobre a descoberta

da América:

Falo daquele desejo que levou Cristóvão Colombo a partir para as índias, tento reacender em seus espíritos aquela familiaridade com o ouro e com as grandes cidades resplandecentes. Nota-se aqui que é necessária uma mudança do conteúdo ensinado para que os alunos alcancem essa continuidade emocionante: que seja colocado em primeiro plano o estado de espírito do descobridor, do viajante; resta então ao professor insuflar-lhe vida. Apesar do aspecto anedótico, de menor alcance, o caso a seguir pode servir de incentivo; em Ambert, o professor da 6a série com quem tem início o estudo do latim, [...] conhecia todos os tipos de nossa cidadezinha; ele aproveitava isso para comentar os textos com a ajuda de exemplos e anedotas tiradas dos costumes locais. Isso influía nos jovens cérebros. Saindo da aula, podíamos encontrar Catão, o Velho, bom administrador, duro com seus empregados e usando couve como remédio para todas as doenças. Ou mesmo Arquimedes sob os traços de Louis de Ia Ribeyre que, por um sistema de pranchas sustentadas por alavancas, erguia o telhado de uma granja.3B As pessoas encontradas adquirem assim uma certa poesia, os heróis antigos são valorizados ao se aproximarem da vida da cidadezinha. Por que essa continuidade

é tão difícil de realizar?

O escolar geralmente paira sobre o aluno, sem que este nem mesmo imagine que a meta a ser atingida é incorporá-lo à sua vivência: "As crianças têm duas vozes, uma voz de estudante para ler na escola, recitar suas lições e responder aos professores; e uma

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Chorar juntos é uma etapa para mitigar o pranto. O aluno, por sua vez, faz a experiência de que a cultura que lhe é proposta esclarece o sentido do que ele pensa e faz,

do que ele pensava e fazia. Mudanças de atitudes que só são possíveis por mudanças dos conteúdos ensinados. Uma cultura que leve o aluno a se compreender melhor, a se sondar melhor. É como se o autor apreendesse e sentisse melhor qu.e ele o que se passa nele; a cultura encontra palavras adequadas para exprimir o que ele gostaria de dizer. Os homens necessitam de um porta-voz, um "Édipo que lhes explique seus próprios enigmas'?", pois nossos sentimentos e nossas experiências são com tanta freqüência indecisos, em contradição uns com os outros - e é justamente aí que temos necessidade de orientação. Não se trata, naturalmente, de um simples registro, nem de puro intelectualismo, nem tampouco de uma exortação: a cultura elaborada leva a uma maior coerência e estabilidade das experiências até então fugazes: "Os grandes autores [conseguiam] consolidar minhas descobertas balbuciantes" .44 Mais do que isso: um esforço para fazer com que cada um viva sua dignidade real e, no entanto, tão facilmente abandonada, renegada: "Tentar conscientizar os homens da grandeza que eles ignoram existir dentro de si próprios". 45 O objetivo da "minha" escola é que o aluno se encontre graças ao que lhe é proposto, o reconheça como seu, faça-o seu - o ame: "De tefabuta narratur'46 ["O sujeito da história és tu"], dizia velho Horácio. Um belo exemplo de continuidade: os diálogos de Platão: "Pequenas verdades familiares e palpáveis, todas elas... os pequenos acontecimentos da vida coridiana'Y e chega-se sobre a justiça, a beleza e a ciência, a "conclusões enormes". O tema da continuidade entre cultura do aluno e cultura escolar implica, portanto, uma concepção particular da cultura - eu diria mesmo uma renovação na cultura. . A afirmação primordial é que a vida comum, a vida cotidiana dos homens e, portanto, dos alunos comporta algo além do esmagador, do medíocre onde chafurdamos, do sufocante.

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voz de homenzinho para discutir as suas coisas"..39 A voz de estudante é "solene", mas diz respeito ao que eles sentem como "fora do mundo e morto". Eles mantêm o escolar à distância deles mesmos. Mas também não se deve acreditar que a continuidade se estabelece facilmente da prática rumo à compreensão: as crianças podem muito bem construir modelos reduzidos de aviões sem se preocupar com dados teóricos nem conhecer os princípios do vôo. O porquê do que elas fazem não as afeta; ler obras facilitadas quase não as ajuda, pois elas só andam à cata de "elementos técnicos de caráter imediatamente prárico"," Para que progridam, é preciso que o educador organize um tipo de tarefas que, por si só, as conduza e até as obrigue a se questionar sobre suas ações - e que ele as ajude nisso.

o professor

no nível do aluno, o aluno no nível do professor

A continuidade entre a cultura escolar e a vivência do aluno se conquista, creio eu, na confluência de duas correntes: o educador se esforça para coincidir com as experiências do aluno - evidentemente, para fazê-Io progredir, mas, antes de mais nada, para revivê-Ías com ele, de maneira que o aluno sinta a pedagogia como que deitando raízes no seu real: "Tu, o mestre ... tu te instalas naquilo que o discípulo compreendeu, na maneira pela qual ele compreendeu; (então) talvez tenhas a chance de conduzi-Ia para onde tu estás"." E, numa linguagem mais direta, mais apaixonada, um professor diz a propósito de seus alunos: "Com aqueles que cantam, eu canto algumas vezes; com aqueles que choram, tento chorar; se eu acreditasse poder ser útil a algum dançando, eu dançaria para ele".42

o

"Para conhecer os homens, não basta desprezá-los"," o mundo não se resume a um imenso contra-senso. A cultura da "minha" escola não quer ser erigida sobre a desvalorização dos homens: Mas faz tanto tempo que fazem as pessoas acreditarem Que elas não têm futuro, que são irremediavelmente ignorantes E idiotas de nascença Que tomamos o partido delas.49

encontros com rapazes ricos e bonitos à beira de uma luxuosa piscina particular não representa um nível zero de cultura, e sim sonhos ele felicidade e beleza. Aqueles que não estão do lado melhor ela sociedade refazem o mundo para que este lhes traga mais prazer. Essa não é também uma forma acabada da cultura: o imaginário é ingênuo, por inteiro. Estarnos no início de uma conscientização, o sonho ainda é apenas o pressentimento de uma ação possível. Unir o espontâneo ao teórico

Ela quer, sim, deitar raizes nos valores contidos no cotidiano, o cotidiano de todos: "Os gestos delicados e fraternos dos homens repartindo o pão"50; há "bastante vida pura e nobre para construir todo um mundo ... essa vida possível estava ali, prestes a brotar"Y Mesmo um homem que tem fome, principalmente ele; valores fundamentais são vivenciados na sua dor: a vergonha de não conseguir pensar em outra coisa; a reivindicação de alimento tornando-se sinônimo de reivindicação de dignidade. O que é sentido pelas massas no trabalho, nas relações humanas, na política: isso parece muitas vezes desconcertante, caótico, muito distante da alta cultura. Entretanto, os valores afluem para aí: experiências de robustez nascidas na mesma ação, coragem, paciência, resistir, agüentar; confiança no grupo, principalmente se ele consegue unir, apesar de todas as dificuldades, abertura para a vida, simpatia p ela vida, poder de estimulação.P A cultura de "massa" - programas de rádio e TV e filmes comuns, diversões de massa - não é o estágio terminal ao qual espero conduzir os alunos da "minha" escola; esse também não é um prazer inútil, e menos ainda aviltante: assistir a um jogo na televisão pode ser um estímulo ao esforço, ao respeito às regras, à façanha. A cultura de evasão que faz as datil6grafas sonharem com

As .idéias recebidas, as influências sofridas ao acaso das condições e dos meios de vida; esperanças, desej os, expectativas, aspirações sentidos primeiro no próprio acontecimento; "paixões elementares" sujeitas às grandes oscilações entre a despreocupação e o desestímulo, que ameaçam flutuar entre o egoísmo, a agressividade, o fechamento, a culpa - face ao desejo de ser eficiente, de mudar alguma coisa na sua vida, de contribuir para o outro, de dividir.

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O problema da "minha" escola é convidar os alunos a um encaminhamento que parta do cotidiano e que, de etapa em etapa, siga em direção à obra-prima. Essa longa marcha da cultura rumo à cultura para levar a termo o que existe em germe no cotidiano: nem considerar esse trajeto impossível, nem acreditá-Ío já percorrido, concluído: "Eles pareciam não duvidar do que seriam capazes, mas tudo neles achava-se pronto para o despertar e para a conquista."53 Avanços enormes ainda estão por realizar-se, mas eles não são incapazes de fazê-lo: que quebrem "o encanto que escondia deles próprios sua humanidade [e que tenham] vislumbrado a alegria. Então, eles gostariam de conquistá-Ia e saberiam assenhorear-se dela". Se eu creio ser capital que o aluno fique face a face com os grandes avanços culturais, não é para "introduzir ex novo uma ciência", mas sim para "renovar uma atividade ja existente". 54

A cultura da "minha" escola se impõe por meta organizar a vivência: superar o parcial, estabelecer ligações, vislumbrar perspectivas, conseguindo colocar como conjuntos a situação, a comunidade e até o desenrolar da história. As obras-primas da cultura são necessárias para esses fins e, assim, somos conduzidos até elas. Entre o espontâneo e o teórico existem constantes trocas, a união de duas forças, e aí reside, diz Gramsci, ajudando-nos assim a ter a dimensão total da questão escolar, "todo o mistério da educação e do governo".55 É por isso que eu gostaria de me diferenciar de Alain, que opõe desesperadamente as formas da cultura que ele admira a todas as outras que não passariam de rnesrnice.f" Gostaria de me diferenciar também de certos contemporâneos que podem estabelecer um dilema entre o trabalho de se informar, documentar, investigar, colocar em ação as técnicas e o acesso às grandes obras da cultura.? Consideremos, por exemplo, aquelas "pesquisas" em que o aluno é colocado em contato direto com a experiência. Ele terá a oportunidade de se expressar, de se comunicar a partir do que sente e do que o afeta: afinal, não é elucidando sua própria experiência que ele se tornará compreensivo para com a experiência dos outros e, aos poucos, ao ganhar em gravidade, chegará até a experiência dos heróis da cultura? Existe oposição ou complementaridade entre o desejo de se informar sobre os acontecimentos, as técnicas atuais e a vontade de compreender por que essas técnicas dão certo e como transformam nosso mundo? Chartier e Hebrand me parecem, contudo, aceitar muito facilmente "o desaparecimento das funções de transmissão patrimonial que sobreveio por volta de 1976" (p. 392). Nossa época oferece novos caminhos para chegarmos às obras-primas, antigas e novas. Ela não obriga, absolutamente, a renunciar às obras-primas - desde que não se comece pelas mais recuadas, mais distantes.

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Esses novos caminhos são necessários: o novo público de alunos tem ainda menos chance que o antigo de assimilar as descobertas feitas fora da escola. Esses novos caminhos são possíveis, tecnicamente possíveis (livros de bolso, presença constante da música, de todas as músicas), mas, sobretudo, culturalmente possíveis: é precisamente porque as "outras" culturas, como o cinema, o jazz ou o rock, ganharam importância e dignidade, que se torna possível não mais recusá-Ias, não mais contrapô-Ias à cultura da escola, mas sim fazer delas etapas em direção à cultura.

o atual Evidentemente, a imensa maioria do que se aprende na escola pertence ao passado. A escola tem que legar a herança, a experiência acumulada; não só conservar o passado, mas assumi-Ia: "Essa couraça de segredos que os homens precisam transmitir uns aos outros".58 O passado como tal, mantido a distância, em sua estranheza (como "alhures"), pode proporcionar alegria aos alunos: sua diferença deixa liberdade para imaginar como as coisas podiam acontecer, então. De um modo agradável, divertir-se sobrepondo os fatos contemporâneos aos acontecimentos de outrora: a guerra da Espanha em 1936 é comparada aos combates dos filisteus contra os hebreus, uma regata faz pensar na lnvendvel Armada." De modo mais sério, os alunos podem ter acesso à sensação de que o passado não está perdido e não se perdeu; a história é um movimento pelo qual o passado se mantém e se prolonga no presente e se ultrapassa, se projeta para o futuro. Nosso presente conserva presentes as etapas do passado; as culturas passadas, em particular, não abandonaram sua existência, e seu estudo ainda pode ser fonte de alegria. A cultura passada não é somente o peso de uma herança;

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é também o favor de ser aceito por aqueles que, através dos tempos, conseguiram ernbelezar o mundo, é enfim a promessa e a esperança de transmitir algo, por minha vez, saldando a minha dívida para com aqueles que me permitiram realizá-lo. Mas a escola não está condenada a ser passadista, inadaptada ao atual, ignorante e até desdenhosa do atual - o que tornaria impossível qualquer continuidade com a experiência vivida pelos alunos. "Minha" escola atérn-se essencialmente a prolongar a cultura até hoje: o presente ou, pelo menos, um passado próximo. Quando Butor fala em obras "conternporâneas", estende-se aos últimos 50 anos.60 De maneira alguma fica evidente que seja necessário iniciar o estudo da literatura francesa pela obras da Idade Média. Os alunos sentem alegria ao se dedicarem ao atual: assim, eles têm muito mais chances de se sentirem envolvidos, de reconhecerem seus problemas. Não se exclui a possibilidade de que eles tenham uma experiência pessoal e queiram expressá-Ia, discutir, apaixonar-se. Não se exclui a possibilidade de que o estudo resulte numa ação. A cultura atual vai desde ouvir Boulez até a criação dos alunos. Existe, por certo, o risco de se deixar levar; a escola quase não ousa abordar o mundo atual: muitas vezes existem dificuldades técnicas para abordar as técnicas atuais; muitas vezes esse mundo é indizível: a guerra, a fome. Ele é sempre objeto de discussão e, portanto, de indecisão. "Minha" escola, apésar de tudo, pretende reservar um amplo espaço para o atual; ela confiará o bastante no presente para transmitir aos alunos confiança em sua época: existe em tudo o que está ocorrendo o compreensível, o justificado, o válido e a grandeza - e podemos sem dúvida perceber aí o anúncio de um "algo mais".

duplo aspecto da fecundidade e das explorações: "Liam-se [no mapa] o esforço e a paixão dos trabalhadores".

o mundo

atual está em dificuldades, não em decadência

O presente provoca nos alunos um interesse que o professor pode ampliar até o universal: "Para julgar a guerra [um professor de quem ele gosta muito] nos lia Giraudoux"62, que era contemporâneo deles. O professor deve convencer os alunos de que de fato existe uma "alta cultura" presente, atual, contemporânea deles, enquanto eles tendem a pensar que aquela pertence exclusivamente ao passado. e que não tem equivalente nas produções hodiernas. O que é, para a maior parte deles, um compositor de música "moderna"? O desejo do atual é particularmente e nas técnicas:

intenso nas ciências

E você se perguntava [...] em que momento, enfim, vocês deixariam aquele purgatório de chatice, aqueles balbucios das primeiras lições de física (roldana, composição das forças concorrentes)( ...] vocês poderiam penetrar finalmente naquele campo tão maravilhoso, o perfil das asas de avião. 63 O atual complexo parece muito mais atraente que o elementar, passado.

Com determinado professor, a "geografia se abrilhantava com movimento e vida ... uma maravilhosa viagem à descoberta de paisagens e de humanidades contemporâneas'T" Em particular, captar os homens em suas atividades sob o

Somos levados a crer que a música de Boulez é difícil demais para o aprendizado dos jovens e que melhor seria, "para começar", fazê-Ios ouvir Mozart. Não é por um movimento semelhante a esse que se prefere ensinar as "máquinas simples"? "Minha" escola quer apostar que a atração do atual, a conivência com o atual e uma certa conformidade das sensibilidades no atual serão poderosas o suficiente para conduzir os alunos para além dos obstáculos nascidos da complexidade dos processos.

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Já que ninguém pensa seriamente em contestar a presença do passado na escola, a questão é organizar o vaivém entre passado e presente, e muitas vezes será mais vantajoso fazê-lo a partir do presente: "Tanto quanto é perigoso para o historiador, é necessário ao professor escolher seu ponto de partida no presente para explicar o passado" .64 O que, aliás, leva a uma reflexão importante sobre a diferença entre a ordem da descoberta e a ordem da exposição, a diferença entre a constituição de uma disciplina e o seu ensino, logo, à especificidade da pedagogia; é o tema da transposição didática que é

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assim reencontrado. Esse vaivém exige do educador múltiplas competências, e Butor colocará mesmo o interesse pela cultura atual como critério de valor geral de um educador: "56 [são] capazes de pôlos verdadeiramente em relação com o passado os professores que nutrem uma certa curiosidade pelas obras contemporâneas'l.f Muitas vezes é a partir da literatura contemporânea que o jovem se tornará sensível à literatura - e, portanto, também à literatura do passado. Mas é preciso ir além, questionando-se sobre as alegrias que os alunos encontram nas obras do passado: em que casos elas são imediatas? Muitas vezes elas não são derivadas da participação em alegrias do presente, de sua tensão para o presente? "O prazer que nos proporcionam as obras antigas fica maior quando somos mais capazes de gozar dos prazeres pr6prios do nosso tempo".66 Os alunos têm assim que transpor para passado os prazeres que geralmente começam a experimentar em sua própria época, nos acontecimentos e obras de sua época. É preciso que esses prazeres sejam fortes para que a transferência se faça possível.

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hoje que, a cada geração, mantêm a vida de Homero" Y Não se trata de propor aos alunos (somente) o sentido histórico da obra, tal como ele quis e concebeu em sua criação. Não é obrigatório que eles coincidam com a intenção primitiva, o "horizonte" dos primeiros leitores - o qual poderia estar seriamente ameaçado de não mais se relacionar com a sensibilidade atual deles/" Mas se a obra do passado sobrevive e nos dá alegria hoje, é porque ela é rica em significados múltiplos, tão rica que cada geração pode encontrar nela respostas a suas interrogações, resposta adaptada à sua época: um sentido presente; a obra nos diz respeito, ela tem valor em relação ao que estamos vivendo. Acontece de esta visão contemporânea da obra passada estabelecer-se a partir de obras que nos são efetivamente contemporâneas e inspiradas no antigamente: talvez seja à luz do Vendredi de Michel Tournier que os alunos descobrirão o encanto de Robinson Crusoé. A escola como local de alteridade: as alegrias podem encontrar espaço nela assim como os protestos e as queixas; tentativa de superar essa contradição pelo tema de uma cultura que se situaria em continuidade com a vivência dos alunos. Num extremo, ela permanece distinta do cotidiano e beneficia-se da irreal idade da escola para se manifestar; no outro, ela está às voltas com o real, com as experiências daqueles a quem ela se dirige. A continuidade da cultura proposta com a vivência dos alunos implica o espaço do atual.

A obra-prima, o grande homem como continuidade

No final das contas, o êxito do ensino, aqui, consiste em integrar ao passado o presente da cultura. "São as obras de

Já falei da obra-prima em sua relação com a dualidade obrigação-autonomia. Dedicarei à obra-prima o desenvolvimento final. Aqui, quero considerá-Ia em relação à continuidade: à primeira vista, a obra-prima parece ser o contrário da continuidade; mas, na realidade, ela é a expansão desta.

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Fazer de Homero nosso contemporâneo

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Falemos primeiro do "grande homem", notadamente do "grande escritor" - não o escritor perdido na sua diferença, desgarrado no meio dos outros, e menos ainda a salvo, longe dos outros; ele fala em seu nome inirnitável e em nome daqueles que nunca falaram: ele faz ouvir "as palavras que nunca foram ditas, que permaneceram no fundo dos corações".69 O escritor sente mais intensamente que os outros a comunidade humana - e é por isso que ele sente com tanta freqüência a necessidade de se dirigir a ela, de evocá-Ia como capaz de existir em sua multiplicidade unida: Eu choro por mim ou por todos nós? São lágrimas por minhas lágrimas ou por nossas lágrimas? Mas eu não choro . 70 .EU gnto. A obra-prima existe, mas não como um meteoro sem comunicação e, portanro, sem ponto de apoio. Muito pelo contrário, ela é a "expressão mais poderosa, o testemunho espiritual de uma época, ela concentra todas essas forças num impulso soberano"." Captar a validade de todas essas existências, no presente e no passado, aqui e noutro lugar, torná-Ia consciente para os interessados: o conjunto de tantas vidas banais é que possibilitou os grandes movimentos da história e a ação de alguns grandes homens históricos. A obra-prima é capaz de estabelecer comunicação com tantos homens porque prolonga os valores de tantos e tantos homens. Sua originalidade consiste, enfim, em dar forma ao que os homens dessa época pressentiam: as exigências a serem satisfeitas, possibilidades em via de nascerem. Eu gostaria de levar a sério a metáfora do século XVIII: a cultura como "luzes", para lembrar que a luz tem a vocação de resplandecer.

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o culto é um pária? Se assim for, a cultura, mesmo como convívio com o grandioso, não precisa subtrair o culto do seu ambiente de origem, por mais "modesto" que ele seja. Evidentemente, é dificílimo para a pessoa culta escapar de uma espécie de isolamento entre os seus. Ousaria dizer que um pouco de cultura, o início do ingresso na cultura, descarta os menos cultos, e que mais cultura, mas sobretudo aquela cultura que não rompeu com a cotidianidade ou negou os valores da cotidianidade, permite redescobrir os múltiplos laços entre a sua cultura e a cultura daqueles que passam por não tê-la? Michelet viveu esse problema pessoalmente: "Quase todos aqueles que ascendem, perdem-se, tornam-se mistos, bastardos; perdem a originalidade de sua classe, sem ganhar a originalidade de uma outra".72 E Michelet afirma que ele conseguiu subir muito alto na sociedade e na cultura sem renegar nem sua família nem os primeiros momentos de sua personalidade. Afirma ele que deve isso à sua tarefa de educador, que foi devido à "amizade" com os jovens: estes ainda não haviam conseguido sucesso e se colocavam como mediadores entre o povo e o "gran d e h omem. " Da mesma forma, o desejo de uma cultura em continuidade com a vida das massas e a participação na edificação de tal cultura constituem um dos fios condutores de sua carreira: "Caso abram meu coração quando eu morrer, ler-se-á a idéia que me perseguiu: quando haverá livros populares?"73 Mais um passo: ao invés de pensar e de deplorar o abismo existente entre as pessoas cultas e as massas, Marx conta precisamente com a cultura para conduzir certos "burgueses" às posições revolucionárias, desde que eles levem sua reflexão longe o bastante para abarcar a "inteligência teórica do conjunto do movimento histórico".74 Para que os alunos possam sentir a continuidade entre a

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cultura que lhes é proposta e a sua vida, em determinados casos - notadamente no caso das ciências - será preciso inserir os fenômenos a serem estudados num encaminhamento adequado. Em outros casos, será preciso buscar mesmo uma renovação dos próprios conteúdos culturais.

IIL OBRAS SECUNDÁRIAS,ALEGRIAS INTERMEDIÁRIAS

tédio e no desagrado da alegria cultural.

e que não atingem o "encantamento"

É extremamente

difícil traçar um quadro delas, pois que se imbricam e se misturam. Pode-se simplesmente evocar algumas áreas, sem pretender ser axaustivo, Vou enumerá-Ias, meio ao acaso: a) alegria do bom funcionamento, alegria do sucesso, triunfar so bre a dificuldade, orgulho de não desistir; vencer-se, superar-se, mostrar do que se é capaz, mostrá-lo aos outros e a si mesmo, enfrentar o esforço; o esforço pela beleza do esforço; b) sentir-se progredir e tornar-se cada vez mais senhor de si, superar o medo, adquirir autoconfiança: eu estou à altura, COmose deve ser e COmose espera de mim, mostrar o que se vale. E acercando-se cada vez mais da área escolar: a alegria do dever cumprido, a alegria de obter bons resultados e boas notas: c) trabalhar bem para dar prazer àqueles que se ama; d) tudo isso é bom para preparar meu futuro e prova que saberei conquistá-lo;

"Minha" escola quer colocar em primeiro plano as obrasprimas, mas não é possível que os alunos passem de obraprima em obra-prima, a gente não se alimenta apenas de suculência. A escola consome em larga escala obras que chamarei de secundárias, de Jean Aicard a Rossini. "Minha" escola deseja que elas sejam uma preparação para o que há de mais completo, sem se confundir com ele. Elas abrem caminho para ... trazendo alegrias mais fáceis de serem atingidas, constituindo transições: uma sensibilidade mais próxima da nossa, experiências progressivas e menos intimidadoras, Um pintor japonês explica que, na juventude, diante dos quadros mais famosos, ficava "bloqueado" justamente pelo respeito e pela admiração que chegavam ao ponto de provocar nele sentimentos de indignidade: "Eu teria me sentido ridículo diante de mim mesmo se tivesse afirmado poder compreendê-los"." Em contrapartida, quando contemplava obras onde se expressavam homens "que não eram gênios", ele se sentia à vontade, à vontade o bastante para fruí-las, Isso não passou de um período transitório. Se as obras intermediárias tomam parte no progresso dos alunos, é porque elas se inserem num certo modo de continuidade: trazem em si algo do valor, da grandeza das obras-primas "em quantidades infinitesimais e por isso mesmo mais assimilãveis"." E é aí que eu gostaria de falar mais longamente sobre as alegrias intermediárias: são elas que motivam, que põem em movimento a imensa maioria dos alunos que não afundam no

f) finalmente, alegria de aprender, de compreender, de se expressar, de agir, realizar, criar - tomando mais iniciativas, assumindo responsabilidades e sentindo sua autonomia se afirmar. Chamo essas alegrias de "intermediárias" na medida em que não visam às gra,ndes conquistas humanas, não se centrarn nas obras-primas, na medida em que se desenvolvem fora dos objetivos essenciais da cultura e, na maioria das vezes, sem que o valor cultural do objetivo seja realmente considerado; é a alegria de se expressar, sem se preocupar tanto com o valor do que é expresso; alegria de progredir em autonomia, até por meio de ações prosaicas (juntar jornais velhos, vendê-los e, com o dinheiro, levar a classe para fazer uma excursão etc.). Outros exemplos: classificar e colecionar um pouco de tudo o que cai na mão e se presta à enumeração, ou então

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e) viver com os colegas e simultaneamente deles, brilhar aos olhos deles;

se distinguir

organizar nomenclaturas de capitais, de ossos do crânio... e decorá-Ias. Às vezes, chega-se ao difícil pelo difícil - montar o quebra-cabeça, resolver um enigma simplesmente por ele ser enigmático. Na verdade, não é a qualidade dos conteúdos culturais que é posta em primeiro plano: os alunos montaram uma peça de teatro e o público transformou-a num verdadeiro sucesso. Talvez se tratasse de uma obra medíocre, mas de belo efeito cênico. Talvez ela seja válida, mas os alunos/atores preocuparam-se tanto com o seu alcance quanto com as dificuldades múltiplas que tiveram que superar - e com seu êxito?

Amar muitas «não-o bras-primas "para conseguir amar as obras-primas É importante ter em vista o papel positivo dessas alegrias intermediárias. Em primeiro lugar, não procuraremos traçar linhas de demarcação: em que condições a alegria da obra-prima é realmente pura? Na alegria de ter acesso a determinado poema talvez se insinue a gloríola de não ser como aqueles que permanecem alheios a ele. O usaria até dizer que é mais ou menos como acontece no amor: quando se parte em busca de um amor perfeitamente desinteressado, puramente platônico ... E sobretudo as alegrias intermediárias, de abordagem tão mais fácil, podem constituir etapas rumo ao essencial: desde que se conseguiu dominar esforços repetidos, difíceis, para guardar os nomes dos ossos do crânio (o que por si só, caso se fique nisso, não me parece nem mais nem menos válido do que montar o quebra-cabeça), pode-se mesmo assim dar um passo à frente, pois nos encontramos muito perto da obra para compreender coisas realmente importantes. Por exemplo, como é que a cabeça funciona? Estamos dispostos a ir em direção a conhecimentos bem mais enriquecedores do que os

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simples termos de uma enumeração. Ao mesmo tempo, concedemo-nos os meios e os intrumentos necessários ao progresso, pois refinamos nossa inteligência e nossa mem6ria. A alegria intermediária é ao mesmo tempo estímulo para ir mais longe e como que uma prefiguração do que se vai descobrir indo mais longe. "Minha" escola quer expandir as alegrias intermediárias, o que é possível visto que elas contêm os elementos mais válidos, certamente misturados a dejetos: a alegria da concorrência em classe ameaça se degradar em gloríola e mesmo em antecipação de sujeitar os "inferiores"; mas isso pode se tornar também, desde que os professores participem ativamente, desejo de ter adversários à altura, desejo de que muitos colegas façam muitos progressos para que o confronto valha a pena. Pode-se até fazer um esforço no sentido de organizar o confronto no conjunto das esferas da vida, perguntando-se se quem leva a melhor quando se trata de resolver um problema de matemática continua na frente quando entra em cogitação ajudar um colega a compreender a matemática. Figurar entre os primeiros da classe. Não era somente a vaidade que o aconselhava a se aplicar nos estudos, nem o desejo de confirmar a boa opinião que os seus pais tinham de você. Era preciso saber comportar-se [...] Nojo do desleixo??

Contra as tentações de amolecimento, adotar atitudes de firmeza, de dignidade, que o aluno, aqui, pressente quão favoráveis são ao encontro com a cultura. Não se pode negar as alegrias intermediárias, a continuidade das alegrias intermediárias nas alegrias essenciais. Alain, por haver ignorado esse encaminhamento, e mesmo por ter oposto as alegrias umas às outras, isolou a obra-prima da vida do aluno e finalmente eliminou a alegria. A prova disso é que, ap6s anunciá-Ia de maneira tão bela em algumas passagens, não logra fazer dela um dos tons dominantes de sua pedagogia.

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Não se pode tampouco instalar os alunos nas alegrias intermediárias como se não houvesse nada além disso. Creio que Freinet não saiu do lugar a partir do momento em que, sob o nome geral de escolástica, deixou de lado as obras mestras da cultura. O maior risco das alegrias intermediárias, e o mais freqüente é querer se realizar sem apelar, para a obra-prima e até indo contra a obra-prima. Para que os alunos da "minha" escola sintam as alegrias intermediárias simultaneamente como etapas válidas e patamares a serem ultrapassados, é preciso algo como a coragem; a alegria da obra-prima está unida à não-alegria de forma muito mais rude do que certas alegrias intermediárias que vão dar imediatamente na satisfação: montar uma peça de Racine é confrontar-se com o trágico, ao passo que apresentar uma obra bonitinha ...

29. A. Moumet, fácio.

NOTAS

30. Cavanna, Les Ritals, 1978, p. 144. 31. MarcelArland, Terrenatale, 1938, 32. Simone de Beauvoir, íbid., P: 71.

1. Claude Roy, Moije, 1969, p. 137. 2. Calaferte, Requiem des innocents, 1980, p. 149. 3. Valéry-Larbaud, Enfontines Deuairs de uacances, 1917, p. 202. 4. Paul Vaillant-Coururier, Enfonce, 1938, p. 165. 5. Albert Thierry; Le Sourireblessé, 1922, p. 218. 6. Sigmund Freud, Malaise dans Ia civilisation, Vfl l, em nota, publicação de 1930.

7. Sigmund Freud, Résultats, Idées, Problêmes, I, p. 131, PUF, 1984 (sobre o suicídio, 1910). 8. Giraudoux, Adorable Clio, Nuit à Cbâteauroux, 1920. 9. Nathalie Sarraute, Enfonce, P: 160. 10. Jean Forton, L'Épingle dujeu, 1960, p. 64 .. l1.J.-B. Pontalis, ibid, P: 15. 12. 13. 14. 15.

Sully-Prudhomme, Le Bonheur, 1888. Nathalie Sarraute, ibid., P: 160. Annie Leclerc, ibid., 1988, p. 25. Nathalie Sarraute, ibid., P: 160.

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16. Simone de Beauvoir, ibid., pp. 26, 68, 80. 17. Nathalie Sarraute, ibid., p. 166. 18. 19. 20. 21.

Gaston Bonheur, L'Ardoíse et Ia Craie, 1980, p. 72. Simone de Beauvoir, ibid., p. 142. Raymond Abellio, Ma derniêre rnémoire; 1971, P: 149. Colette Audry, Ia Statue, 1983, p. 73.

22. Jean Bernard, C'e« de I'homme qu'il s'agit, 1988, p. 54. 23. Fr. Sarcey, Souvenirs de jeunesse, 1885, p. 286. 24. Simone de Beauvoir, ibíd., p. 72. 25. André Maurois, Mémoires, 1970, cap.2. 26. Raymond Abellio, ibid, capo VI. 27. Yukawa, L'Itinéraire d'un physiden [aponais, 1982, p. 80. 28. Elias Canetti, Hístoíre d'une [eunesse, 1980; 1905 em alemão, p.316.

Encore le massacre de Ia Iangue française, 1935, Pre-

N.

33. Convém precisar que as análises magistrais de Claude PujadeRenaud, contidas no seu livro L'écoIe dans Ia littérature, a respeito dessa redação de Nathalie Sarraute, foram da maior importância para mim, embora eu me distancie das conclusões apresentadas. 34. Nathalie Sarraute, ibid., p. 194. 35. Florimond Bonte, De l'ombre à Ia lumiére, 1965, capo 36. Louis Guilloux, Le pain des rêues, 1942, p. 59. 37. Butor, Degrés, pp. 87-90.

V.

38. Henri Pourrat, Les fardins sauvages, 1923, p. 36. 39. Guehenno, "Sur le chemin des hommes", Humanisme jourd'hui, 1959, p. 144.

d'au-

40. Leontiev, Activité,

Conscience, Personnalizé, 1984, p. 128. Point de vue explicatif de mon oeuure, capo I, 2,

41. Kierkegaard, publicação de 1859, em francês 1940.

42. Michel de Saint-Pierre, Les NouveauxAristocrates, 43. Micheler, fournal, janeiro, 1842. 44. Memmi, La Statue de sel, 2a parte, capo n, 1966. 45. André Malraux, Le Temps du mépris, 1935, p. 9.

159

1960, capo n.

e,..••',;.;~

46. Horácio, Satire L 47. Taine, Étienne Mayran, capo VIII, 1862, (1909). 48. Benjamin Constant, Journaux intimes. 49. GuillaumeApollinaire, Calligrammes: sur lesprophéties, 1918. 50. Louis Guilloux, Lesangnoir, 1935, 131. 51. Jean-Paul Sartre, Les Mains safes, 1948. 52. Gramsci dans le texte, 3a seção, II. 53. Louis Guilloux, Lesangnoir, 1935, p. 131.

3 A OBRA-PRIMA COMO RUPTURA

r-

54. Ibid.,

r- 604.

55. Gramsci, ibid., P: 173. 56. Alain, por exemplo, Resolução de 20 de junho de 1933. 57. Chartier e Hebrard, Discours sur Ia lecture, 1990. 58. Paul Nizan, Anioine Bloyé, 1933, p. 168. 59. Christine de Rivoyre, Boy, 1973. 60. Buror, Conversation avec Gaussen, Le Monde de l'éducation, fev. 1976. 61. Paul Vaillant-Couturier~ Enfance, 1938, p. 163. 62. Jean Daniel, Le Temps qui reste, 1984, r- 23. 63. Butor, Degrés, 1960, p. 113. 64. Lavísse, Questions d'enseignement national, 1885, P: 30. 65. Butor, Conversation auec Gaussen. 66. Brecht, Additif au petit organon. 67. Butor, Conversation auec Gaussen. 68. Jauss, Pour une esthétique de Ia réception, 1978. 69. Michelet, Journal, janeiro 1842. 70. Guillevic, Avec, 1966, P: 81. 71. Stephan Zweig, Ia Confosion des sentiments, 1929, p. 32. 72. Michelet, Le Peuple, A Edgard Quinet, 1846, P: 70. 73. Michelet, Nosfils, LV, capo II, 1869. 74. Karl Marx, Maniftste communiste, I, 1848. 75. Oskar Kokoschka, Ma vie, 1986, p. 51. 76. Mareel Proust, La Prisonniere, La Pléiade, 3, p. 263. 77. François Bott, Autobiographie d'un autre, 1988, p. 47.

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L SIM, OADMIRÁVEL ExISTE

Já fui levado a falar da obra-prima,

primeiro em sua relação com o obrigatório, para dizer que ela constituía o caminho mais real rumo à autonomia; depois, com relação à continuidade: a obra-prima não é necessariamente o contrário da continuidade, pode ser sua forma superior. Gostaria agora de voltar mais diretamente ao tema da obra-prima: o centro da "minha" escola é a relação do aluno com a obra-prima. Continuidade, por certo, mas também ruptura - ou melhor, a educação me parece a arte de modular, conforme o caso, a dialética continuidade-ruptura. Continuidade: esforço para vincular o novo ao que já constitui a experiência e o gosto. Ruptura: existem coisas que ultrapassam e até mesmo transcendem o habitual. Que os alunos percebam que existem grandes obras, grandes ações, grandes personagens - muito acima do que se faz diariamente. Choque, atração do choque, atração pelo que passa das medidas ou, pelo menos, das minhas medidas. A continuidade é a valorização da vida, da pessoa, da cultura dos alunos. A rup- . tura é a confiança nas obras-primas, na ação das obras-primas e no papel da escola de modo que o aluno não fique alheio a elas. Pretendo valorizar o cotidiano e a obra-prima; não pretendo renunciar nem ao cotidiano nem à obra-prima. 161

Certamente a educação nunca pode ser uma contribuição puramente exterior que seria vertida, revertida sobre os indivíduos; mas não se desconhecerá a importância da ruptura. A educação não se reduz a um desenvolvimento do que já estava latente, a uma simples aquiescência às forças espontâneas do ser.

alegria cultural. E de vez em quando trabalhar com as obrasprimas que se farão, desse modo, raras e anunciadas meio solenemente. Os alunos serão avisados de que uma obra-prima será abordada. Momentos fortes; voltar os refletores para o admirável. Tentaremos mostrar aos alunos que todo o resto é via de acesso; ao fazermos o resto, ficará presente na mente uma orientação no sentido de... uma ultrapassagem de ... uma presença, um apelo para não parar muito antes. "Minha" escola, a tarefa, a vocação e a alegria final da minha escola: convencer os alunos de que existem obras-primas e de que elas constituem os focos, os "faróis" da cultura, logo, da escola:

Convém lembrar que os temas natureza e espontaneidade tiveram um papel importante a desempenhar em determinado momento da história, quando era preciso opor-se à imagem da criança como o ser mais violentamente exposto ao pecado original. Porém, agora, esses temas devem não ser abolidos, mas integrados numa síntese mais ampla. Também nos refugiaremos no tema do parto, que poderia desconhecer a importância da ruptura. Essa metáfora pode dissimular facilmente, em alguns, a falta de grandes valores a serem propostos. Cuidemos para que o receio tão legítimo do doutrinamento não se transforme em ceticismo, o que continua sendo a negação do educativo. Só se justifica que cada um seja o depositário de uma verdade interior e satisfatória dentro de uma perspectiva religiosa ou, no mínimo, metafísica que cabe, pois, explicitar, De fato, em Platão, a arte de parir os espíritos, a maiêutica, leva a participar das idéias cuja existência pura, eterna, transcende a todo indivíduo; o diálogo socrático, com a intervenção constante e muitas vezes invasiva das palavras de Sócrates, visa afastar o interlocutar da experiência sensível como a simples opinião e conduzi-lo muito além do que ele compreendia, do que ele era para si mesmo. Nem todas as alegrias culturais são alegrias da obra-prima, pois a cultura não é somente obra-prima; as obras intermediárias, as tarefas intermediárias, as alegrias intermediárias ocuparão a imensa maioria das horas escolares. Na escola, não mais que na vida do dia-a-dia, é impossível estar todo o tempo no nível das obras-primas. Trata-se de conscien.tizar os alunos de que naqueles momentos também não se está no máximo da

O esforço da "minha" escola é para que o aluno participe da grandeza, trave relações com ela; instituir o cara-a-cara entre o aluno e a grandeza; o aluno é convidado a associar-se aos maiores:

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Eu só ficava curioso, só ficava ávido por conhecer somente o que eu sonhava ser mais verdadeiro do que eu mesmo, o que tinha o mérito de me mostrar um pouco do zên] 1 pensamento d e um gran dee gemo.

Pluralidade das obras-primas É essencial estender o termo e a noção de obra-prima ao conjunto das áreas - mesmo que não se possa esperar que elas atinjam a todos: obras-primas do passado, mas também do presente; obras-primas artísticas e literárias (e é a essas que se costuma reservar a palavra), mas também as grandes descobertas científicas que levaram a novas imagens do mundo, novos modos de pensamento; as grandes sínteses das ciências humanas que levam a perspectivas plenas quanto às civilizações e aos diálogos entre as civilizações; obras-primas morais, problemáticas dos valores; obras-primas de ação, a luta sistemática contra a injustiça; obras-primas técnicas, sobre as quais, infelizmente, não sei dizer grande coisa.

"Eu me descobria todos os dias e não havia, parecia-me, limites nem em mim nem nas riquezas do mundo'? (Ele está então no colégio.) "Minha" escola tem o intuito de colocar a obra-prima um pouco mais ao nosso alcance, para que os alunos se aproximem dela sem serem esmagados e sim, ao contrário, para que extraiam do seu caráter excepcional toda a alegria que pode atingir as pessoas comuns, as pessoas que não são geniais, portanto os alunos que ainda não são geniais. Que os alunos descubram a grandeza nos livros, o teórico, raciocínios e experiências preparadas pelo educador - e é bem significativo que o termo experiência corresponda tanto a um sentido existencial como a um sentido científico. Eles apóiam-se nela, confiam nela e, assim reconhecida, a experiência pode prosseguir, transpor-se em veemência, vivida por conta própria pelo jovem, em força e solidez. Talvez seja preciso que cada um, a escola e a vida, tenham a coragem de

Às vezes, o professor de francês lê para eles um grande texto: "Ficamos embasbacados, somos sacudidos por uma tempestade, algo imenso passa: a literatura". 6 Quando Clancier evoca os poemas de que gosta, sente que tais obras mudam sua vida, conferem-lhe uma "intensidade" e uma "graça" das quais ele se achava bem distante no curso comum; a dor e a angústia não desaparecem, pelo contrário, mas, evocadas pelo poeta, elas "me davam uma espécie de exaltação feliz".7 Ele está fora do cotidiano e bastante próximo do cotidiano, pois que os poemas lhe parecem designar as moças que ele começou a descobrir. O aluno não está encerrado, emparedado; ele vive uma abertura: "Suas palavras [pareciam-me] vindas não do passado, mas do futuro".

desempenhar seus papéis. Hoje, a novidade da escola, a renovação da escola seria que ela tivesse por fim a obra-prima. A alegria da obra-prima é a razão de ser, o elemento essencial da "minha" escola - impõem-se renovações do obrigatório e da alteridade para que o aluno consiga atingi-Ia. Propor "explicações, respostas que não humilhem, mas que encham o ser de emoções exaltadas'l.!

Pode acontecer de o sentimento de ruptura ser tão forte que a continuidade não fica mais salvaguardada: quando Zobel está no colégio, parece-lhe que existe, por um lado, "um mundo de todo dia, banal, brutal, inexorável aos desejos" e, por outro, "um mundo espaçoso, lógico e.sobretudo benevolente, atraente, desejável"." O universo da cultura e da arte correria o risco de servir simplesmente como compensação, como suplemento de alma ao mundo cotidiano, que abandonaríamos à sua própria sorte, afirmando que não é possível melhorá-Ia. Todas as espécies de tentações estéticas são ameaçadoras,'

Eu teria a ingenuidade de tomar ao pé da letra o que Annie Ernaux diz ironicamente a respeito de si mesma e de uma cultura que lhe custou tantos esforços, notadamente porque ela pertencia a um ambiente essencialmente diferente. Ela sente alegria de ser "da tribo" dos grandes escritores, dos grandes espíritos: "Eu penso como eles, sinto como eles"." Sentimo-nos melhor sustentados pela vida cotidiana: nos livros, notadamente naqueles que se estudam em classe, "os adultos falavam enfim daquilo que jamais diziam na vida, confessavam sentimentos exaltados, dos quais pareciam, aliás, sentir vergonha" .5

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Grandeza adivinhada, grandeza vivenciada

Mas os avanços são ainda exemplo, quando o professor lê crianças muito infelizes, que já que se auxiliam mutuamente na "Ah, como eu gostaria também ...

necessárias e possíveis. Por histórias onde são evocadas trabalham, exploradas, mas fraternidade e no heroísmo: [de ser] o herói de um sacri-

fício consentido por um outro"." A identificação cultural com um certo jovem herói não se separa da esperança de um devotamento pessoal.

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Mais tarde, na adolescência, somos alçados às nuvens "pelos grandes autores que amamos: paixões fortes, desejos de amor integral, o oposto do degradante".'? Heroísmo captado nas obras-primas, heroísmo visado na própria vida. Não que se possa passar diretamente da cultura à existência de todo dia. Mas renunciar a prolongar a cultura numa vida significativa, fora do comum, seria ainda assim encerrá-Ia num irnpasse: inspirar-se nos heróis estudados, tornarse digno deles, responder a seu apelo, por certo isso é um jogo, começa como um jogo: "Vou ser fUlano" - mas isso pode ficar muito distante da vivência, Projetar-se "no país de Júlio Verne, de Livingstone e de Savorgnan de Brazza. De tanto imitar, brincando, os grandes exemplos de coragem, audácia e sangue-frio, não se pode esperar conseguir algumas dessas qualidades?". 11

e repercussão na vida. "Consentimos nas obras-primas. Admirar, ser entusiasta: sempre me pareceu que, em nosso século, é bom dar esse exemplo de besteira". 12 Sacralização da cultura, da obra de arte, idolatria? Não, trata-se simplesmente de retomar nosso bem, o bem dos homens, a grandeza do que é terreno.

o poder de admirar

Apesar de todas as desigualdades que a dilaceram, a escola constitui uma oportunidade de cada aluno atingir a obraprima numa ou noutra área; e é para introduzi-Ia na obraprima que a escola se faz mais necessária, pois para isso deve haver esforços longos, contínuos e sistemáticos; um direcionamento, o obrigatório; o bom êxito de uma dialética de continuidade e ruptura. A obra-prima justifica a escola, as alegrias da obra-prima é que compensam as dificuldades da escola. A partir do momento em que se renuncia à obra-prima, pode-se renunciar à escola e contentar-se com "locais de formação". Em seguida, evidentemente, acumulam-se todas as dificuldades: ninguém poderá levantar o rol das obras-primas, os juízos de valor variam consideravelmente. Estou convencido de que o que é obra-prima em Pequim deve ser reconhecido, acabará sendo reconhecido como obra-prima em Paris, porém às custas de que hábitos, de que esforços? São mil dificuldades, que deixam, porém, intacta a própria afirmação da obraprima, a qual dá origem a alegrias, alegrias escolares distintas das alegrias habituais, pois têm bem mais acuidade, densidade

Vejam-se quantas tarefas impossíveis! Existe, no entanto, um sustentáculo - e grandioso: a capacidade de admiração própria da juventude. "Quando então sentiríamos as belezas da vida, a não ser na inancia?"13 A criancinha admira: mil escritores já evocaram o garotinho que descobre, se deslumbra, experimenta tudo pela primeira vez, "nenhum aspecto da vida está ainda embotado" (Baudelaire), todas as coisas surgem para ele em sua novidade, donde tantas experiências de alegria. O que quer que se costume dizer sobre isso, o fato é que essa capacidade de admirar não desaparece com a idade, mas sim assume novas formas. Os jovens são levados pelo desejo de admirar, pela esperança de admirar. Através daqueles a quem se admira, sobrevém também a necessidade de se auto-afirmar, de se estimar: ser valorizado a partir dos entusiasmos. Todos sabemos que, atualmente, são raríssimos os alunos que vivem a escola como espaço de admiração. O drama da escola é que a massa dos alunos quase não usa essa força do encantamento, essa tensão para o que eles apreciam e que os supera, reservando-as para outras áreas - astros dos esportes ou da música, certos filmes, certas canções, certas façanhas, certas personalidades. Na maioria dos casos, é fora da escola que os jovens às vezes instauram, e às vezes reconhecem, grandezas que admiram. A escola, por sua vez, tende a renunciar à admiração e a

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se contentar com o esforço. Quantos educadores não deixaram pouco a pouco seu entusiasmo atenuar-se, pois é humanamente . difícil manter o ardor ao longo de tantos anos, de tantas repetições .:_. e após tanta recusa. Muitos nem querem mais saber que seu ofício é profissão de entusiasmo, e além disso o ambiente social deveria oferecer uma sustentação muito maior. "O valor do homem está na proporção do que ele admira."14 "Minha" escola se impõe por tarefa recuperar pelo menos uma parte dessa capacidade de admirar, coloca a admiração como exigência constituiib. Exaltar, aguçar a admiração eu ousaria dizê-Ia? -, ensinar a admiração. Mas como fazer para que os alunos admirem o que se desenrola e se repete no interior da escola? Não significa chamá-Ias a inverter sua experiência própria e, assim, ir ao encontro do fracasso? Na melhor das hipóteses se conseguiria uma aceitação d6cil.

As admirações se discutem A sorte do professor é que ele se dirige a jovens e que, muito naturalmente, seu desejo de admirar (ainda) comporta amplas zonas difUsas, iqcertas; e eles têm dificuldade em estabelecer diferenças, em escolher; às vezes, por causas mínimas, deixamse convencer por certo colega, deixam-se arrastar pela moda do momento. O professor pode levar os alunos a tomar consciência do que se introduz de acaso, de determinação nas suas preferências e, portanto, que não é um verdadeiro sacrilégio questionar seus gostos. Certamente, os alunos dificilmente suportam, na maioria das vezes, que o professor ataque a sua escala de valores. Eles aceitam que o professor de física queira substituir as idéias deles pelas suas, pois são as idéias da ciência, mas de modo

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algum que o professor de música pretenda substituir as escolhas dos alunos pelas dele. No entanto, acho que não é nem escandaloso nem contradit6rio organizar o desejo de admirar, inserindo nele a reflexão e as conscientizações, A admiração - e isso é muito evidente - não se impõe. Menos que nunca, o papel do professor, aqui, será o de comandar. Dará, sim, muitas explicações, esclarecimentos e selecionará o que, em determinado momento, pode tocar determinado público de alunos; administrar as margens de continuidade e também os sobressaltos da ruptura, apresentação do magnífico ao mesmo tempo para desencadear reações essenciais e para infundir nos alunos a confiança de que eles são capazes de ter acesso a todas essas coisas. Em que casos podemos esperar que as admirações dos alunos se transformem, em que casos seremos levados a justapor tipos diversos de admiração? "Nosso professor de francês, de vez em quando, ao ler um texto [que admira] ... entra em transe; os grandes textos transformam-no em outra pessoa."15 Não há dúvida de que o professor deve pôr muito de si nisso: é primeiro pela simpatia, em uníssono com o professor, deixando-se conquistar por seu entusiasmo, que os alunos vão vibrar. E esse não é um papel fácil de manter: o professor "embarca" nos seus êxtases; os alunos sorriem. Conseguirá ele justificar seus arroubos sem fazer um sermão, sem cair no enfático? Muitos alunos esperam simplesmente que a aula regula .. mentar retome seu curso. Mas, sobretudo, para haver uma chance de que os alunos admirem o escolar, é preciso que o escolar apresente algo de admirável - pelo menos de vez em quando, não como alimento diário, já que, repito, as obras e as alegrias intermediárias devem ocupar amplos espaços. A escola pode apresentar

algo tão admirável quanto

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os

shows de Madonna, as façanhas esportivas de Maradona? Quem dá aos alunos tanta alegria, quem desperta desejos de identificação tão vivos? Ademais, é necessário que a escola ouse afirmar o que é admirável, pois os alunos talvez não o descubram sozinhos, assim como não descobrirão sozinhos a Lei de Ohm. O essencial é que se tornem capazes de verificar e redescobrir a tal lei por seus próprios meios, por pouco que tenham sido ajudados a atingir o limiar. Assim também, após ter anunciado a obra-prima, "minha" escola acionará tudo para que os alunos a sintam efetivamente como tal.

IL ALGUNS EXEMPLOS DE ALEGRIAS DA OBRA-PRIMA A admiração pela poesia - que tem continuidade imediatamente na alegria de compor as próprias poesias: E é assim que começa primária, naquela carteira ... estão vivas, que de duas em como pássaros ou homens contam nos encanta.

a iniciação poética, naquela escola eu vejo e ouço que aquelas linhas duas elas se respondem pela rima, que colhem as uvas, e o que elas

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O jovem Marcel Pagnol, aos 13 anos, descobre versos que julga esplêndidos: "Senti o arrepio sagrado da beleza. Lágrimas subiram-me aos olhos e penetrei naquele reino",17 Essas experiências muitas vezes surgem de forma repentina para aquele que as vive: revelação. Na verdade, elas são o resultado de um trabalho e de um progresso: "Aprendi lentamente a gramática. Treinaram-me na sintaxe. Despertaram meus sentimentos. E eis que, bruscamente, um poema atinge o meu coração". 18 Admiração pela beleza plástica. Maurice Sachs e sua classe fazem uma excursão à abadia de jnmieges: "[Deixei aquele lugar] transformado e consciente de uma verdade de beleza exterior a mim, palpável e comunicativa",19

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Admiração histórica e valor literário servem aqui essencialmente de suporte! Augustin Thierry se recorda do "entusiasmo" sentido no ginásio ao ler certa passagem do livro Os Mártires de Chateaubriand: Andando de um lado para o outro da sala [de estudos], eu repetia em voz alta e fazendo meus passos ressoar: "Pharamond! Pharamond! Lutamos com a espada e, depois, a evocação do combate de quarenta mil bárbaros".2o

Admiração pelas obras-primas científicas E alguns exemplos de admiração por obras-primas científicas: na classe de Lavisse, o professor discorre longamente sobre Galileu confirmando Copérnico: "Uma nova explicação do mundo ... uma grande coisa ... aquilo me pareceu tão bonito que, naquela noite mesmo, escrevi aos meus pais para contarlhes aquela aula em termos entusiásticos" .21 A alegria provém ao mesmo tempo do conteúdo ensinado (a perspectiva do Universo na sua infinitude) e da confiança que os jovens adquirem em suas próprias forças intelectuais: "Nós éramos portanto capazes de amar a ciência e de compreender sua beleza, sua grandeza, sua utilidade". [A química:] ciência harmoniosa, lógica sem ser abstrata, rigorosa em seus princípios e inesperada em suas manifestações [...] Uma ciência dos amores e dos ódios moleculares.F

Perceber tal dinamismo no interior da matéria e de um modo ordenado e compreensível suscitou o entusiasmo de jaurês, que apreendia assim o mundo da química em correspondência com o mundo social e descobria a unidade das existências: ele estava no ginásio e, pela primeira vez, fazia a experiência da combinação de dois gases:

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A idéia da atividade espontânea, das afinidades secretas, da proporção, da medida penetrava subitamente naquilo que até então não passara, para nós, de matéria inerte e estúpida. Parecia-nos que uma grande comoção de inteligência e de vida estava abalando o universo material.23

Admiração pelas obras-primas matemáticas: já falei das alegrias matemáticas expandindo-se na alteridade da escola e gostaria agora de captá-Ias no momento em que passam para a categoria de alegrias das obras-primas.

a) Alegria de confiar no pensamento

mento. É como um primeiro amor, diz Russell.ê" enquanto Einsteinse encaminha mais para a liberdade interior e a serenidade. Sthendal, como se sabe, gostava muito de álgebra: ela realiza "prodígios" vinculando-se apenas a uma das qualidades do objeto, permitindo ao espírito "reunir todas as suas forças num s6 lado do objeto". Essa divisão dos pontos de vista, por conseguinte, é um procedimento muito artificial, considerando o objeto apenas em sua global idade, isto é, na sua realidade. Contudo, Sthendal tem a convicção de que a matemática pode ser transmutada em conhecimento universal: "Eu imaginava, aos 14 anos, que avançando na matemática conseguiria saber coisas certas e indubitáveis e poderia pôr-me à prova à vontade sobre todas as coisas".29 Sua paixão pela matemática surgiu quando ele a sentiu como o contrário da "hipocrisia", a área onde a hipocrisia é impossível, insustentável porque ela própria se denunciaria. Daí sua decepção quando, numa dificuldade precisa de álgebra elementar (um fator negativo multiplicado por outro fator negativo "dá" um resultado positivo), ele percebe que seus -professores,seus interlocutores se refugiam numa obscuridade mais ou menos voluntária, o que não está longe da detestada malandragem.

Os refratários à alegria matemática são, evidentemente, numerosíssimos, Citarei apenas dois deles, visto que meu trabalho optou por se colocar ao lado daqueles que encontram alegria na escola. Um censura o professor de matemática por ser "pretensioso" e s6 aprecia as disciplinas onde reinam os "dogmas da dúvida prudente, da incerteza e do relativo") o inverso, pois, da força afirmativa.24 Outro exige os direitos do indivíduo, da diferença individual, não os encontra contemplados no campo da matemática: "Eu via que s6 é possível encontrar uma solução exata para cada problema e isso acabava com qualquer vontade de procurar o que os outros poderiam achar tanto quanto eu".25 O jovem Einstein, ao contrário, gosta na matemática de "libertar-se das cadeias do puramente pessoal"26e participar do que é comum a todos os homens, atingir o universal. Mil vozes se harmonizam para louvar a validade categórica, não resta dúvida, prova-se o que se afirma, manipulam-se seres sem o menor escrúpulo, dizem-se apenas coisas garantidas; um saber organizado, unificado, num encadeamento incontestável. Broch traduz isso em metáforas poéticas: "cordões de fios celestes... rede de realidades luminosas't." Daí o encantamento, a paixão, a sensação de felicidade, a felicidade do pensa-

Outros encontraram professores mais convincentes e não tiveram que abafar seu entusiasmo matemático. A grande alegria matemática na qual eu gostaria de insistir aqui, porque se alça ao nível da alegria das obras-primas, é que a matemática se aplica ao mundo, torna-o menos opaco: acordo entre a matemática e a realidade, isto é, finalmente, entre o espírito e as coisas; o homem não seria, portanto, estrangeiro, exilado num Universo impenetrável às suas idéias,

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l:

b) Stbendal deu azar

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indiferente à sua sorte. Podemos esperar humanizar o mundo, pois o que calculamos, o que demonstramos coincide com o desenrolar dos fenômenos. Temos a afirmação de que o pensamento do homem e o próprio homem estão no lugar certo em sua relação com o universo - e a isso chamarei propriamente obra-prima matemática - nos discípulos de Tendriakov: Um ilngulo grad.uado permite estabelecer a altura de uma chaminé de fábrica [...] o comprimento e a largura de uma caixa-d' água [permitem estabelecer] o número de crianças hospedadas numa colônia de férias.30 Admiração fundamental diante da matemática: ela estabelece um elo entre coisas que pareciam completamente heterogêneas entre si, fazendo com que surja algo comum entre elas. O mundo não é tão desordenado, tão caótico, não está fora do nosso alcance, como se poderia temer anteriormente. Já é admirável, quando se está aqui na Terra, que os cálculos, os raciocínios e as demonstrações, através de seus desvios tão obscuros, se achem em concerto com a realidade. Mais admirável ainda quando se chega a conhecer a distância entre a Terra e as estrelas, e a prever eclipses. O que "não se vê, é preciso calcular"; pode-se calcular e os resultados desses cálculos não serão imaginações nem caprichos.

Grandes homens da ciência Li três grandes matemáticos da mesma época que, em termos quase semelhantes, dizem e louvam o que foi, para eles, a alegria matemática no ginásio, e conseguem levá-Ia até a obra-prima. Aos 12 anos, Einstein aprende a demonstração de que as três alturas de um triângulo se cruzam em um mesmo ponto: "É extraordinário descobrir que o homem pode, no campo do

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pensamento puro, atingir (tal) grau de certeza" 31 e que esse pensamento teórico relativo aos triângulos geométricos se aplique aos triângulos efetivos: "O Universo se mantém diante de nós como um enigma e, no entanto, é parcialmente acessível às nossas observações e à nossa compreensão". Esse mesmo fervor aparece em Max Planck: Desde minha tenra juventude isto nunca deixou de me encher de entusiasmos: as leis da razão humana coincidem com as leis que governam o mundo; e, portanto, o raciocínio puro torna o homem capaz de atingir o conhecimento dos mecanismos deste rnundo.P Quanto a Heisenberg, ele criou uma brincadeira "mais apaixonante do que qualquer um dos jogos aos quais se entregavam meus colegas" e que consistia em "brincar de combinar a matemática com as minhas percepções", e sempre ganhava, visto que a matemática "combina com o que se vê".33 As vidas não seriam incompreensíveis, elucidações progressivas são possíveis e a matemática é ao mesmo tempo a construção e a revelação delas.

Beleza da matemática, angústia da matemática O aspecto estético da matemática, celebrado com tanta freqüência, pode ser sentido pelos alunos desde que os professores estejam convictos da sua importância: "O ensino da matemática: à beleza dessas noções é que conviria, antes de mais nada, tornar sensível, e sua utilidade prática viria como acréscimo" .34 Beleza: é muito pouco dizer que o pensamento puro da matemática desemboca no real; na verdade, ele constrói um real harmonioso. O professor mostra fotografias que representam conchas, um desenho de Da Vinci, o Partenon, e a .cada vez faz aparecer um traço do geométrico, a regra de ouro, proporções entre as linhas e os volumes, a um só tempo perfei-

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apesar d~ todos os dissabores, recuos e ameaças no meio dos quais nos debatemos.

tarnente exatos e calculáveis - e que provocam a sensação da plenitude estética." A matemática revela um campo "de uma harmonia e de uma simplicidade além... das contradições do humano". Ela não poderia, por conseguinte, ajudar-nos a abordar os enigmas obscuros, apenas dizíveis, que se agitam dentro de nós?36 Nem por isso as coisas se tornam simples: não é de espantar que a matemática, aguçando a perspicácia, intensifique o sentido do mal e da infelicidade. Pode-se esperar que ela seja ao mesmo tempo alívio para as dores que ela própria avivou? "Com a ajuda desse auxiliar terrível eu descobrirei na humanidade... a maldade sombria e hedionda. "37 E também se pode recorrer à matemática "santa" para "consolar-se", Ambigüidade da alegria. Do mesmo modo, a matemática pode provocar confusão, participar das confusõesdos jovens: o infinito, o poder de ir sempre além sem que nunca exista a segurança de um limite - isso não constitui "uma força irracional, selvagem, destrutiva"? 38 O aluno Tõrless recusa as interpretações místicas da matemática. É em si mesmo, mas tomando distância em relação ao pensamento consciente e refletido, que ele procura uma "certeza íntima", capaz de ajudá-Ia a "transpor o abismo" entre nossas simples experiências habituais e a audácia de manipular, como se as dominássemos realmente, noções tão explosivas quanto o infinito ou os números imaginários. Inquietude, "pavor que se transforma lentamente, muito lentamente, em volúpia". A importância, o valor da matemática e das ciências em geral não diz respeito somente à imensidão de suas aplicações: a partir do momento que são sentidas como obras-primas, elas provocam uma alegria que se pode tornar primordial para os alunos; pelo menos para certos alunos: alegria de conhecer, alegria de que é possível conhecer, alegria porque o mundo não é impróprio ao nosso conhecimento - e à nossa alegria;

Felicidade de participar de um grupo, unido de um modo simples e forte: todos realizam ao mesmo tempo a mesma tarefa, a voz de cada um reforça a voz e, ao mesmo tempo, a confiança do outro. E o acordo se completa na tensão para a alegria cultural; a porta está aberta para a cultura e, simultaneamente, para a consideração dos outros.

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Se existe vida, existem obras-primas para se amar É importante dizer que a alegria escolar presente, e sobretudo a alegria diante das obras-primas, pode e deve começar bem cedo: ela não está de modo algum reservada às classes mais adiantadas. Antes mesmo de entrar na escola, deve existir confiança, e a intuição de que a experiência vai ser bonita: poesia, música, o aluno espera que lhe sejam reveladas as "maravilhas do céu e da Terra". Essa esperança se apóia numa decisão infantilmente cultural, razão pela qual o aluno tem chance de ser aceito: estávamos "decididos a fazer de cada uma das letras que tínhamos que traçar uma obra-prima imortal".39 O que atrai muitas crianças é a alegria de se dirigirem a uma elucidação de valores já pressentidos. Elas vão brotar da escrita: "Eu poderia fazer minha mão correr (sobre o papel) deixando na sua esteira marcas cheias de sentido" - e também da leitura:"Q papel dera algo, simplesmente graças ao fato de que o havíamos fixado com o 0Ihar".40 Depois, a alegria de aprender a ler na escola.Algunsaprendem a ler repetindo em conjunto os sons escritos no quadro: Aquelas turmas eram belas como um espetáculo e como um jogo [...] no rosto da professora espalhava-se progressivamente a satisfação de ouvir de todas as bocas o som exato, um coral do qual desfrutávamos com avidez.41

A primeira

experiência

de uma grande alegria estética:

[...] uma impressão de felicidade, a felicidade de estar ali, com outras crianças, em companhia daquela senhora: ela desenhava no quadro-negro pássaros e flores [e a criancinha] compreende que as mãos podem representar coisas mais belas que as coisas. Mais belas oudiferentes.42 Desde a escola maternal, o contato com pinturas belíssimas, os primeiros confrontos com as experiências esclarecedoras; caso contrário, não há razão para que a alegria apareça em seguida. Ela será sempre postergada para mais tarde, para aquele momento misterioso em que os jovens serão capazes de compreender e de sentir ... como os velhos Uma alegria assim se situa na escala final dos esforços, é o ápice a ser atingido, mas também é a base, o fundamento, a pedra de toque das aquisições escolares iniciais, a partir do momento em que os alunos sintam a que ponto seus progressos na leitura, e depois em múltiplos ensaios e na compreensão, podem enriquecer suas vidas. A palavra "primário" é uma palavra magnífica. Ela indica o caráter primeiro, essencial, aquele sem o qual não se passa e que passa antes de tudo. O trigo é primário. O vinho é primário. Não o bolo. Não o vinho espumante. (Os professores dão) o pão e o vinho da cultura.43

IIL ALGUNS

OUTROS EXEMPLOS DEALEGRIA PROPORCIONADA PEIA OBRA-PRIMA: APRENDER NA GRANDEZA;APRENDER

A GRANDEZA

continuidade. Nesse sentido, aprender uma língua é manejá-Ia no seu uso mais corrente como instrumento de comunicação. A escola, porém, deve ser também ruptura, choque, irrupção do admirável que quebra os hábitos e as rotinas. Uma escola que soubesse estabelecer essa dialética da continuidade e da ruptura não poderia convencer também os alunos que ela surpreende no primeiro instante? Nesse sentido, aprender uma língua é captá-Ia na sua grandeza. Há um tipo de alegria que só se atinge se se capta a língua "na sua mais elevada forma de beleza, na forma poderosa de sua mais extrema paixão... nos poetas, naqueles que criam a língua e a aperfeiçoam".44 É nos grandes autores que "a palavra assume seu pleno valor [porque ela é depositária] dos pensamentos de um valor maior". 45 Um exemplo de aprendizado de grandeza cultural e na grandeza cultural, ainda mais notável porque a criança é pequena. Por volta dos 7, 8 anos, François Jacob escreve de uma maneira bastante medíocre; para ajudá-lo a progredir, mostram-lhe não modelos escolares, mas "reproduções de bicosde-pena de grandes pintores, Rembrandt, Dürer, Goya"; assim fazem-no apreender "como inclinar a curva de um traço, modular sua espessura ou seu grão".46 A partir das conquistas estéticas, ele passa a uma espécie de generalização gráfica na ação cotidiana: "tudo o que se podia extrair de um traço da pena". É sob a ação desses grandes modelos, aproximados dele pelo comentário e pelo gesto, que sua escrita melhorou. Grandeza dos professores, de certos professores: Meus educadores eram pessoas de valor. Dois deles, na verdade, tinham grandeza. É bom que no meio de pessoas honestas a escola o coloque, um belo dia, diante de grandes figuras. A marca delas ficará em você.47

Falou-se muito que o ensino deveria se preocupar com as coisas usuais, habituais, familiares - coisas que não confundissem demasiado, em particular, as crianças mais "desfavorecidas". Decerto, por um lado, a escola precisa acionar essa

Penso em Victor Hugo, o discípulo, dizendo aos seu exprofessor: "Sem o senhor, eu teria crescido pequeno".148 Finalmente, este texto meio convencido, meio irônico de Giraudoux:

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Da mesma forma que em geografia, para estudar a menor montanha, desenhávamos sempre ao seu lado o contorno do Himalaia, medíamos assim, em sua maior escala, Prometeu para a audácia, Bayard para a honra, cada homem, cada sentimento] ...] eu conhecia heróis demais para que houvesse para mim algo além das belezas ou feiúras heróicas.t? Com esta recaída tão característica que casa o monumental com as falhas do 'cotidiano: "Suave coisa, mal esclarecida no estudo, que sublima uma criança que lê". ' A grandeza é aqui vinculada a pessoas, a figuras ernblemáticas, sejam elas da Antiguidade ou pertencentes a nossa história, sejam elas legendárias ou históricas. Esses personagens, evidentemente idealizados, reduzidos às suas qualidades puras, podiam primeiro ser abordados de. maneira anedótica, depois de um modo cada vez mais aprofundado, até figurarem nas grandes obras literárias. "Minha" escola gostaria de reencontrar heróis, adaptados à vida' e às aspirações de hoje, ao mesmo tempo próximos dos alunos e abrindo caminho entre eles a cotoveladas, Ousaria mesmo citar Sully-Prudhomme, cujas alusões pomposas quase não serão 'compreendidas hoje, o que indica a necessidade de mudar de registro, mantendo um mesmo nível: Se a alegria do céu raramente ilumina Teus austeros claustros que não têm horizonte Um pouco do grande Zéfiro que sopra em Salarnina Mistura um salubre aroma ao ar dos teus pulmões. Grandeza, reconhecimento aos mestres que lhe permitiram ter acesso a ela e efetuara ruptura. Mas são os alunos, os jovens, que acenam para as armadilhas da esperteza. O estilo e o pensamento de Cavanna se harmonizam perfeitamente com isso. Ele se dirige aos seus professores dos últimos anos da escola primária:

Vocês me abriram os olhos e iluminaram o interior da minha mente] ...] vocês me fizeram saborear o elevado prazer de aprender e este outro, mil vezes mais deslumbrante, de compreender] ...lVocês me afastaram dos caminhos sombrios e tentadores, ou melhor, me ensinaram neste Universo a saborear as seduções turvas saindo delas ileso.50

Obra-prima '-

riscos e ridiculos

A tensão para a grandeza só tem efeitos benéficos, a Rocha Tarpeia do derrisório está próxima do Capitólio. Certos alunos que querem transpor os grandes personagens de outrora para o mundo de hoje ameaçam cair numa mistura indistinta de bravura e infantil idade. Às vezes, uma simples sobreposição de antigos discursos heróicos aos pequenos incidentes da vida diária -. a paródia é sempre consciente? Projetos a um só tempo grandiosos e bizarros onde o desejo de comandar ambiciona inscrever-se nas perspectivas históricas célebres: um sonha encontrar o tesouro, o ideal e o poder dos albigenses'", outro se vê recriando o Império Romano na sua unidade e na unidade de sua língua: o latim - e ele mesmo figuraria entre os donos do mundo. 52 Corre-se um grande risco de fazer um pastiche dos heróis e também dos autores. Apresentar o grandioso aos alunos pode trazer decepções para o professor que acreditou um pouco depressa demais que já fora bem-sucedido e tomou seu desejo de promover a estética pela realidade do gosto dos jovens. Um professor mostra reproduções da Capela Sistina: Creio que algo como uma confusa admiração desperta enfim neles. Eles estão boquiabertos, meio embaraçados; eis que, inesperada e surpreendente na calma inabitual, uma voz pronuncia com convicção: "Oh! que belas nádegas!"53.

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Mas pode ser muito pior: diante das grandes obras, de grandes exemplos de vida, o jovem não corre o risco de se sentir muito superado, humilhado, massacrado, indigno do que se espera dele? Essas vitórias ideais não vão impedi-Io de ser ele mesmo, de dar sua opinião, sua modesta opinião? O perigo está, por conseguinte, em faz~-lo tender para prazeres simplórios onde todo o mundo estará lado a lado e cantará em uníssono. "Minha" escola espera que os alunos sintam como a obra-prima lhes proporciona força e desejo de se aproximar dela. Ela não sujeita, não reduz ao silêncio: ao contrário, é ela que ajuda cada um a saber por onde vai ... sua via. Isso pressupõe professores capazes de insuflar vida à dialética continuidade-ruptura. A aposta da "minha" escola, dada a necessidade de percorrer a continuidade, é que de tanto percorrer a continuidade o aluno se decida e fique cara a cara com a obra-prima. Na nossa sociedade, a juventude é que se devota à cultura, a cultura é a sua atividade. O pior seria que ela se envergonhasse da cultura, pois isso implicaria dependência e falta de dinheiro. O conservantismo não gosta da alegria, nem do desejo de alegria, por menos política que seja a aparência da alegria. A ambição final de meu tema se localiza na relação entre a alegria sentida pelos jovens na escola e o esforço dos homens para introduzir alegria em todas as vidas. Evidentemente, espero que essa alegria cultural escolar, quer dizer, descoberta na escola e pela escola, se irradie para a existência inteira. Uma sociedade que se preocupa pouco com a alegria dos adultos não é muito capaz de conduzir suas crianças à alegria. A alegria, termo comum de esforços através das idades ...

3. Henri Michaux,

Déplacements, Dégagements, 1985.

4. Annie Ernaux, Les Armoires vicies, 1974, p.147. 5. Robert Kanters, À perte de vue, 1981, p. 36. 6. Jutes Roy, Étranger pour mes freres, 1982, P: 58. 7. G. E. Clancier, Un jeune homme au secret, 1989, p. 58. 8. Joseph Zobel, La Rue Cases-Negras, 1974, p.179. 9. Louis Guilloux, Le Pain des rêues, 1942, P: 63. 10. Michelet , Ma feunesse, L. lI, capo VI, 1884, póstumo. 11. B. Cremieux, t» premier de Ia classe, 1921, p. 39. 12. Victor Hugo, William Shakepeare, 2a parte, L. IV, 1864. 13. Tendriakov, Leprixdesjours, 1976, P: 196. 14. Renan, Souuenirs d'enfonce a de jeunesse, 1883, capo Il. 15. Jules Roy, Étranger pour mes frêres, 1982, p. 58. 16. F. James, De l'âge divinà l'âge ingrat, 1921, P: 58. 17. Marcel Pagnol, Le Tempsdesamours, 1977, p. 6. 18. Antoine de Saint-Éxupery, Pilote de guerre, 1942, X. 19. Maurice Sachs, Le Sabbat, 1979, rv: 20. Augustin Thierry, prefácio ao Récits des temps mérovingiens, 1840; Les Martyrs, L. VI. 21. Lavisse, Souvenirs, 1912, p. 228. 22. Jean Paulhac, Les Bons Éleves, 1955, p. 32 (trata-se de alunos que se preparam para a Escola Politécnica). 23. jean jaures, Discours à Ia distribution des prix au Iycéesd'Alb4 1888. 24. Henri Bosco, Pascalet, 1958. 25. R. Rudigoz, [aumal d'un écriuain, 1961, P: 124. 26. 27. 28. 29.

Albert Einstein, Autoportralt; 1980. Hermann Broch, La Grandeur incormue, 1968, P: 78. Bertrand Russel, I, Autobiograpbie, 1967, P: 36. Sthendal, Vie de Henri Brulard, capo 34, escrito em 1835,

1a edição datada de 1890. Tendriakov, Le printemps s'amuse, 1977, capo 13.

NoI:4.S

30. 31. 32. 33.

1. Marcel Proust, Swann, La Pléiade, I, p. 384. 2. Memmi, La Statue de sel, 2a parte, capo Il, 1966.

34. Butor, Le Voyageurà Ia roue, 1979, P: 36. 35. A. Lanoux, La Classe du matin, 1949, P: 255. 36. Yukawa, L'itinéraire d'un physiden japonais, 1982, P: 89.

182

Albert Einstein, Autoportrait, 1980, P: 15. Max Planck, Auiobiograpbie sdentifique, 1960. W. Heisenberg citado em H. Cuny, Sauants du monde entier, 1966.

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37. Lautréamont, Les Chants de Maldoror, 1874,2° canto, estrofe 10. 38. Musil, Les Désarrois de l'éleve Tõrless, 1960, p. 34 (em alemão, 1906). 39. Wiechert, Des Forêts et des Hommes, 1950, p. 33. 40. Merle Hodge, Crick, crock; V; 1970. 41. Joseph Zobel, La Rue Cases-Négres, 1974, p. 95. 42. Georges Jean, La Passion d'enseigner, 1985, p. 5I. 43. Giraudoux, Littérature; 1941. 44. Stephan Zweig, La Confusion des sentiments, 1929, p. 37. 45. Joyce, Stephen le héros, em inglês 1908, trad. fr. de 1948,p. 28. 46. François Jacob, La Statue intérieure, 1987. 47. Henri Bosco, LeJardin des trinitaires, 1966, p. 150. 48. Victor Hugo, QJtatre-Vinff-Treize, 1874, L 7°, V. 49. Giraudoux, Simon lepathétique, 1926, cap.I, 50. Cavanna, Les Ritals, 1978, p. 4I. 51. Cf. B. Crernieux, Le premier de Ia classe, 1921. 52. Cf. Valéry-Larbaud, Fermina Marquez, 1911. 53. jeanne Galzy, La Femme chez les garçons, 1942, p. 63.

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TERCEIRA PARTE

1 GENERALIZAR, UNIVERSALlZAR A ALEGRIA ESCOLAR

Apesar de tudo, existem casos atestados ou pelo menos descritos, evocados de alegria na escola; portanto, concluímos que esta' não é impossível. Meu problema é ampliá-Ias. Se me esforço para compreender as alegrias escolares sentidas por alguns e sei muito bem que são, na maior parte das vezes, casos privilegiados - não é para reservá-Ias a eles, mas, ao contrário, para aprender com eles como ajudar os outros. Saber que essas alegrias existem, proclamar que elas existem, entender como foram vivenciadas por este ou por aquele, tudo isso não pode constituir um apoio para os professores, os pais e, sobretudo, para os alunos? Em que condições a alegria de um jovem Einstein, de uma jovem Nathalie Sarraute, em que condições pode ser proposta para a massa dos alunos? Que essas alegrias se instalem plenamente na totalidade dos bons alunos e dos alunos medianos; que se propaguem em direção àqueles que são os menos bem colocados na sociedade, na escola. Não se pode deixar de voltar ao problema da dernocratização da escola. Em relação a um tema tão vasto e tão repetidamente tratado 1, sublinhei apenas alguns aspectos: aqueles talvez que posso ilustrar com exemplos literários. Certamente é uma ilusão colocar a escola como que determinando, pelo progresso da instrução, o progresso social-

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ou, pelo menos, passando a ser o foco principal dos movimentos progressistas. Mas é fácil demais, sob o pretexto de denunciar essa ilusão, deixar todo o peso de um lado só e afirmar que a escola se reduz à "reprodução", tendo por finalidade única preparar os alunos para sua futura profissão, numa resignada continuidade da situação dos pais; ela já não teria nada a ver com os valores de justiça, de democracia. Perceberemos melhor o real papel da escola a partir das atitudes da sociedade, constituídas em relação aos educadores - sobretudo a "boa sociedade": Não somos funcionários como os outros. A burguesia não se engana a respeito ao nos menosprezar como ela faz, pois adivinha muito bem que nossos exercícios, por mais modestos que sejam, estão a serviço de um ideal humano que a ameaça.ê

as instituições não-igualitárias de uma sociedade não-igualitária, a escola é sem dúvida a menos não-igualitária ou, digamos, uma das menos não-igualitárias pois, apesar de tudo, é o lugar onde jovens muito diferentes têm alguma chance de conviver, de se conhecerem, de serem governados por princípios iguais para todos. Comparemos as mesmas situações numa empresa. A escola é o espelho, a resultante, talvez também uma das causas de nossa sociedade não-igualitária, também um dos lugares essenciais onde se desenvolvem os movimentos e as lutas que perpassam essa sociedade para que ela triunfe sobre a desigualdade. É esse caráter dialético qae faz da escola um palco onde as coisas mudam (multiplicidade, à primeira vista, irracional), as situações jamais se fixam, pois o que está em jogo movese entre as forças que lutam pela proeminência na sociedade.

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Os riscos do elitismo

exercício escolar certamente não basta, mas pode, se outros elementos favoráveis se conjugam a ele, levar a uma reflexão crítica, a uma conscientização. São inegáveis os conluios entre a escola e as classes dominantes, entre as ideologias difundidas pela escola e as ideologias das classes dominantes em determinada época (o colonialismo). Mas a burguesia nunca sentiu a escola como um aliado seguro - ou melhor, sempre a considerou como um aliado extremamente incerto; caso contrário, ela teria prolongado o tempo de escolaridade, coberto o país de construções escolares e reservado aos educadores tratamentos privilegiados e, principalmente, consideração e honrarias. Pois bem, ocorreu o contrário, e os momentos em que o movimento popular levou a melhor sobre as estruturas estabelecidas é que corresponderam aos avanços da escola, à sua valorização e à valorização dos professores. A partir daí, percebemos todas as possibilidades que a escola encerra - desde que a inovação da sociedade a associe a seu movimento progressista. A escola é não-igualitária

e segregativa; mas, dentre todas

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Sei muito bem que muitos dos meus argumentos poderiam ser facilmente tachados de elitistas: a alegria cultural parece ser um luxo reservado àqueles a quem não falta nenhuma das satisfações básicas e é ainda muito mais difícil de atingir com alunos que vivem em condições difíceis. Da obra-prima, conseguem extrair grupos restritos de indivíduos que estão, estatisticamente, situados em um determinado lado da escala social. Daí nasce a opinião corrente de que se se deseja democratizar a escola, devido ao grande número de alunos que ela recebe, logo, ao grande número de alunos explorados, de alunos "diferentes", de alunos fracassados - não se pode ir até a obraprima: é preciso se contentar em ficar nas zonas medianas, tanto na eÉlha das poesias quanto na demonstração dos teoremas. Dando um passo à frente, declarar que as obras-primas têm por função permitir à "elite" social estabelecida reconhecer-se e separar-se do vulgar. Em aula, a obra-prima teria por função supervalorizar os bons e arrasar os demais.

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Naturalmente,eu ficaria desolado se meu trabalho fosse visto por esse ângulo, Uma observação preliminar: não se pretende chamar de elitista a flsica contemporânea pela razão de que pouquíssimás pessoas a compreendem e podem extrair alegria dessa compreensão. Quero afirmar que a escola não pode renunciar à obraprima, nem mesmo com a. intenção aparentemente generosa de não desfavorecer os desfavorecidos. Sem dúvida, seremos levados a propor caminhos diferentes, a nos apoiarmos em patamares intermediários diferentes, a ger~r, na imensa reserva das produções, escolhas diferentes, mas são precisamente esses resultados que todos precisam atingir. "Democratizar" a obra-prima, generalizar as alegrias que ela provoca. Será que as crianças exploradas são necessária e definitivamente impermeáveis à obra-prima? Não há dúvida de que muitos se mostraram, até agora, reticentes aos apelos da cultura escolar. No entanto esses apelos não eram suficientemente convincentes - e também as condições de vida impostas a tantos jovens não os prepararam para ouvir esses apelos. Quero afirmar que a cultura e as obras-primas podem se dirigir a todos e proporcionar alegria a todos. Isso representa uma imensa luta a ser empreendida, na escola e fora da escola, no impulso do movimento social, associando-a ao impulso do movimento social. Essa não é uma utopia generosa que bastaria proclamar para ficarmos com a consciência tranqüila.

À espera de "palmadas" Popularizar a alegria escolar não me parece- uma tarefa impossível, quaisquer que sejam as dificuldades com as quais ela se choca quando em contato com os fatos. Primeiramente, em relação ao público: Bettelheim mostra de maneira muito perspicaz que as crianças que ele chama de "subprivilegiadas",

sem dúvida para não usar o termo exploradas, são as mais ligadas ao presente, as mais desejosas de satisfação no presente." Os pais "burgueses" ensinam aos seus filhos que o futuro os compensará amplamente pelos esforços e mesmo pelos sacrifícios que o presente, em particular o presente da escola, exige deles. Mas essas crianças não ficam de todo convencidas, a partir da experiência dos pais e das pessoas que lhes são mais próximas, de que a seqüência da vida seja destinada a proporcionar-lhes grandes alegrias. Elas vivem num mundo de penúria, não há bastante, ou melhor, corre-se o risco de não haver bastante - bastante alimento, repouso e respeito para elas. Daí a sensação de que o que não se obtém imediatamente, muito provavelmente não se terá jamais. Assim, estão à p rocura do que lhes possa trazet satisfações tangíveis, aqui e agora, a elas e ao grupo dos pares que desempenham um papel tão importante. Bettelheim parece pensar que essas atitudes só trazem prejuízo ao progresso educativo. Quanto a mim, creio que as exigências desses alunos podem tornar-se um apoio para seu desenvolvimento pessoal e uma contribuição capital a uma escola que colocar em primeiro plano a alegria que somente o presente pode proporcionar - sem renunciar, aliás, à criação de um equilíbrio entre a preparação para o fUturo e o respeito pelo passado. Em seguida, em relação à própria cultura: os alunos "proletários" podem contar com um tipo de alegria escolar que, em última instância, pareceria reservada a eles quase especificamente: ~ esperança de não serem mais dominados, de serem menos duramente dominados, de lutar melhor contra as dominações, A cena se passa no século XIX: o pai sabe muito bem que seu filho será pedreiro como ele próprio, mas antes (o que é uma novidade nesse meio) irá à escola. Um amigo faz a seguinte objeção: Você acha que ele subirá mais agilmente na escada quando souber ler e escrever?Mão destra para a pena não con-

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tinua boa para a colher de pedreiro [...] Ninguém na sua casa nunca soube ler assim como na nossa, e não foi isso que nos impediu de comer o suficiente." E o pai responde: Quem sabe ler e escrever é como Se tivesse mais olhos e ouvidos do que os outros [...] A questão não é somente comer para matar a fome, e sim servir-se de sua inteligência para não viver como animais [...] de outro modo, aqueles que têm instrução, bons ou maus, levam os ignorantes no cabresto. Em outro livro, para crianças, encontramos sagem. Um aluno de 6a série diz:

esta bela pas-

Entendo por que é necessário aprender o francês: para não cometer erros de grafia quando se datilografam cartas para o patrão. Entendo por que é preciso aprender matemática: para não cometer erros nas contas da patrão. Mas não entendo por que é preciso aprender história, . Um adulto lhe responde: "É preciso aprender história para entender como o seu patrão se tornou seu patrão".5 De tanto mostrar os limites da escola, de ficar mostrando quase que tão-somente os limites da escola, arriscamo-nos a esquecer como ela pode ajudar o povo a se conscientizar do papel que representa e do papel que deve representar. O que não significa, absolutamente, que estejamos satisfeitos com a escola como ela é, nem que contemos mecanicamente com a escola como ela é para atingir semelhantes fins. Pensemos no estudo da história. Augustin Thierry escreve: "A parte mais numerosa e mais esquecida da nação merece reviver na história'" - e é essa história que ele desejaria compor. Desse modo, o conhecimento da história poderia se popularizar; a alegria escolar da história poderia se generalizar. Para que os alunos possam extrair alegria de uma matéria ensi-

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nada, é preciso que, de uma maneira ou de outra, eles se reconheçam nela; para que os conteúdos ensinados despertem ressonâncias diretas no conjunto dos alunos, a escola deve propor temas que valorizem o conjunto dos homens, o papel das massas, suas provações e também suas conquistas; enfim, a vida do povo, numa perspectiva capaz de apoiar sua ação. A história do longo. esforço pelo qual esse grande operário, o povo, era após era, pôde construir-se a si mesmo. Nenhum pobre trabalhador, se refizer mentalmente o caminho dos nossos pais e o seguir, sucumbirá. Ele será sustentado e engrandecido pela grande alma, vendo-a em suas lutas, chocando-se, caindo muitas vezes, muitas vezes se levantando, mas sempre inspirado por uma coragem indomável e por uma jovem esperança,"

Tudo isso requer a renovação dos conteúdos inculcados, a qual projetaria toda a luz sobre a imensa presença dos "desgraduados"; seria possível chegar a uma inversão dos problemas do fracasso cultural, do fracasso escolar: as classes sociais que teriam mais interesse em aprender, que desenvolveriam mais interesse em aprender, em suma, que manifestariam "mais avidez'" em aprender são as mais insatisfeitas com o estado de coisas existente, a começar pelos filhos dos mais explorados, aqueles que atualmente tanto receamos receber em nossa classe.

As fecundas contradições da cultura Um passo adiante: a cultura, a despeito de certas aparências, dirige-se bem mais aos explorados do que aos mais favorecidos. Ou melhor, a cultura constitui um conjunto extraordinariamente contraditório: não há dúvida de que muitos dos elementos da cultura são a expressão satisfeita e cômoda dos modos de vida e de pensamento das classes dominantes, mas

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nunca faltam os dados originados das lutas contra a infelicidade, lutas passadas, lutas a serem preparadas. Conjunto contraditório, portanto, trabalhado por um dinamismo - tratando-se pois de favorecer esse dinamismo, de inserir-se nesse dinamismo. Renovação dos conteúdos; nem todas as obras-primas são opostas ao povo, contrárias aos seus interesses, impermeáveis aos seus gostos. Ou antes, raríssimas são as obras-primas que pregam a resignação dos explorados à exploração. As grandes obras têm, na maior parte das vezes, um alcance progressista. Elas ajudam, podem ajudar e devem ajudar as massas na sua conscientização. Contudo, certas interpretações feitas pela ideologia dominante, certa apresentação, pelos meios de comunicação e, freqüentemente, também pela escola, infelizmente, empenham-se em torná-Ias inofensivas. A tarefa consiste em devolver-lhes a conrundência. Nem aceitar a cultura tal como ela é oferecida atualmente pelo mercado, nem sonhar com produções virgens de todo o peso conservador, mas usar todos os recursos, todas as possibilidades democráticas já incluídas na maior parte das correntes culturais já existentes. Ressaltar esse movimento de superação, essa ambição de superação que caracteriza as grandes realizações da cultura, sem dúvida porque ela é a marca dos grandes momentos da realidade: "A cultura demole, recusa e arruína, reergue, reconstrói ... mostrar, na revolução, a mais antiga das tradições" .9 A maioria das revoluções começou se apropriando - e até o fim ~ do saber constituído; e assim conseguiram superá-lo e rlnesmo transformá-lo:

Não há dúvida de que atravessar os elementos conservadores de uma ideologia para deles extrair ousadias progressistas não está ao alcance dos indivíduos enquanto tais, mas pressupõe que eles possam se apoiar em movimentos progressistas já existentes, em doutrinas progressistas já bastante fortes para sustentar as buscas pessoais - e para arrastar consigo a escola. A luta pela alegria da cultura é a mesma luta para generalizar e universalizar a alegria da cultura. Em geral, hoje, as pessoas cultas não estão mais felizes com sua condição; tem-se mesmo a impressão de que o conhecimento, a ciência, a instrução aumentam "o mal e a dor"." Mas como ser feliz com uma cultura que não se dirige ao coletivo dos homens, que não visa promover o coletivo dos homens?

No'E4S 1. Georges Snyders, École, Classes e Lutte de classes. 2. Renê Jean Clot, Le Bleu d'outre-tombe, 1956, p. 35. 3. Bruno Bettelheim, Survivre, trad. fr. de 1979. 4. G. Nigremont, [eanton (publicado em 1967, mas inspirado, dentre outros, em Martin Nadaud). 5. Sophie Morgenstern, IA Sixiéme, 1984, p. 84. 6. Augustin Thierry, Lettres sur l'histoire, Carta I, 1827. 7. Micheler, Nos fils, 1, V, capo u, 1869. 8. Brecht, Écrits sur le théâtre, I, p. 263. 9. Guehenno, Conversion à l'humain, 1931, p. 177. 10. Robert Merle, Derriere Ia uitre, 1974, p. 708. 11. Émile Zola, Vérité, L. II, 1, 1903.

o saber é sempre o saber [...] Marx defendeu uma tese de filosofia na Universidade de Berlim, Lênin prestou exames de direito na Universidade de São Petersburgo; Trotsky, em dessa; Mao era bibliotecário-assistente na Universidade, de Pequim; Fidel Castro é doutor em direito.P

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2 ALGUMAS BREVES PALAVRAS, PARA FINALIZAR

"Minha" escola tem a pretensiosa ambição de buscar para e com seus alunos uma cultura que una os termos essenciais humanidade e progresso.

r. Em

seu sentido mais global, a cultura é o esforço para não admitir como fatal e inelutável, e menos ainda como benéfico, o esmagamento dos mais fracos. Enquanto a natureza é terrível, atrozmente desigual, a cultura é o esforço de apaziguar a luta pela vida. Diminuir a violência, as agressões, a miséria - e isso é a infra-estrutura indispensável para que se possam expandir as liberdades individuais e coletivas. Alegria de que os homens sejam homens. Assim, a cultura; é impulso, tensão, exigência, ação da qual todos os homens são chamados a participar. As obras "culturais", as obras-primas "culturais" constituem apenas um aspecto da cultura, mas são o aspecto ao qual a escola está mais bem adaptada. A rejeição da cultura, como o nazismo, em nome do misticismo imediato do sangue e da raça, encaminha-se inelutavelmente para o culto da força "natural", da luta; logo, para a exaltação da guerra, para a desigualdade entre os homens: exclusões, racismo. Temos assim uma dupla fonte de não-alegria, apesar dos acessos de orgulho exacerbado. Não existem duas culturas, uma racista e uma não-racista, mas cultura ou rejeição da cultura.

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lI. A cultura é o que me arranca de mim mesmo, um quesrionamento sobre o meu lugar no mundo; tento me situar em relação ao tempo, aos lugares e ao futuro que precisa ser criado. Mas a cultura também me prende a mim, me revela a mim mesmo. Compreender melhor, apreender melhor os outros e me compreender melhor e apreender melhor a mim mesmo: dois movimentos complementares e, sem dúvida, indissociáveis. É precisamente pelo "prazer de descobrir as distâncias e as diferenças" que atingimos o "prazer que nos proporciona o que está próximo de nós e nos é próprio";' Receio que minha insignificante pessoa seja asfixiada em meio a tantas realidades diferentes - e, no entanto, eu me reencontro, eu me encontro assim e isso pode, de maneira muito eficaz, ser um prazer.

liL Uma cultura que seja um esforço para integrar meus próprios esforços aos mais vastos impulsos do movimento humano. A cultura é o que pode permitir essa integração a conjuntos; e esses conjuntos podem ser colocados como tais a não ser pela c~ltura? Passar de algumas pessoas que conhecemos e que lamamos à idéia abstrata de humanidade - abstrata ea mais viva, a mais positiva que existe -, quando a cultura nos auxilia suficientemente nisso. Uma cultura que faça da minha participação na humanidade não simplesmente um fato a ser aceito, mas uma tarefa a ser promovida, e qae chegue mesmo a dizer que eu sou essa participação: "Um homem nunca está só; um homem é todas as relações; sua nobreza é a nobreza dessas relações'',2 Assim, portanto, minha liberdade poderia não se definir por separação das liberdades dos outros e ainda menos por oposição: o que eu posso de maneira válida me propor realizar não encontrarei apenas, essencialmente na minha consciência solitária, mas também na minha relação com tarefas e esperan-

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ças comuns. Minha história, a história e a história dos outros muitas vezes se contrariam; mas elas poderiam se fecundar. Posso entrever que as oposições entre mim e o outro, entre meus interesses e a manutenção do coletivo, entre meus desejos e as leis da sociedade, entre o indivíduo e a coletividade essas oposições nas quais nos debatemos todos - talvez não sejam a última palavra da história ou a infelicidade definitiva. IV Por isso mesmo, o que se acredita ser a "natureza" de cada homem se modifica no mais profundo dele mesmo na medida em que ele toma parte na modificação do conjunto das relações que o opõem e o unem a seus contempodneos. É preciso ampliar para o conjunto do mundo essa convicção do transformável no homem: transformável pelos esforços humanos, transformável no bom sentido, pois já em via de transformação, podendo e devendo ser efetuado. Captar o mundo na sua mobilidade: precisamente porque é contraditório é que o mundo é instável, não-definitivo,' mutável. Nossa situação, nosso modo de vida, o que parece "natural" e, portanto, imutável; vamos ao exemplo mais cruel, a guerra e o caráter inevitável das guerras: na verdade, isso é simplesmente familiar, isso sempre foi assim, a primeira reação é a de pensar que isso é evidente. A cultura da "minha" escola vai desvendar o caráter "insólito... provisório ... histórico" da realidade e, assim, a cultura poderá nos revelar "o prazer de gozar das possibilidades de renovações." Duas afirmações fundamentais, pensando, portanto, mais particularmente na guerra: "É intolerável... é preciso que isso acabe" e "tem de haver uma saída". Essas duas afirmações se confortam, na medida em que outra vida, outro modo de vida parecem possíveis e na medida em que· essa vida, esse modo de vida não serão mais suportáveis. É admitir não somente que o mundo dá oportunidade à nossa intervenção - não está fora da nossa esfera de controle

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Por outro lado, nas instituições "há continuidade ... das comunidades da Idade Média ao regime dos sindicatos e dos partidos'l.? O fato de existirem "constantes da civilização", e mesmo que num certo sentido "as formas de ontem e de hoje

[sejam] contemporâneas", não significa, em absoluto, negação da história, imobilidade. Significa isto sim que se pode superar as aparências caóticas captando ao mesmo tempo a parcela de mobilidade das formas sociais e o modo como elas se ligam umas às outras. Nosso mundo parece justificado e não-arbitrário, ele constitui portanto um alicerce confiável para nossos esforços rumo ao mundo de amanhã. Não existe escolha, de modo algum, entre uma ascensão direta, irresistível, à qual bastaria se entregar, e o caos. Gosto deste texto pedagógico, cujo conteúdo não ficou obsoleto: na classe, "a gente fica sensível, desamparado, pouco importa; inseguro, azar seu, o futuro em formação, cheio de amor e de clareza"." Zola, cuja simplicidade os belos espíritos reprovavam, diz no entanto: "Cada progresso teve que ser conquistado por séculos de luta. Cada passo à frente da humanidade exigiu torrentes de sangue e de lágrimas", mas continua: "Cremo-nos vencidos e muito caminhamos, encontramo-nos perto da meta"? Quando na escola primária jacques Duelos vê "os heróis caindo finalmente sob os golpes das potências do mal, mas deixando atrás deles um rastro de luz". 8 A cultura da "minha" escola visa despertar e fortalecer nos alunos a alegria de participar do progresso. Há necessidade da cultura para fazer os jovens compreenderem que eles são chamados a prolongar um movimento preexistente do real e que oferece um lastro à sua ação. Não se trata de reassegurar, mas de assegurar a cultura, para ficar sabendo que, no passado, a vida dos homens, a marcha do mundo não registrou somente fracassos, mas também lutas e avanços: através de um melhor conhecimento da história, eles saberão que "nos tempos mais difíceis, a justiça e mesmo a liberdade nunca deixaram de ter defensores"." E, no presente, fazer os jovens compreenderem que sua época não é pior que as outras, masque está repleta de possibi-

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(o que já afirmei em relação à cultura em geral) - mas também que o mundo traz em si as forças capazes de fazê-Ia progredir, que já o fizeram progredir, portanto, que podemos confiar nele para prolongar esse movimento. Acredito profundamente que essa é a luta dos mais explorados, dos mais desprovidos, de todos aqueles que, caso não lutassem mais, cairiam muito em breve novamente em estado de escravidão. Hoje, esses explorados são os que passam fome nos países onde há fome - e também nos demais.

Progresso A maior alegria cultural é sentir-se participante de um movimento de autoprogresso, do progresso da sua comunidade, do progresso do mundo. Essa é também a a pedra de toque da cultura própria da "minha" escola, ou melhor, das culturas, pois esse progresso pode ser concebido e promovido de muitas maneiras distintas. Sem dúvida, é necessário que a cultura consiga uma profundida.de capaz de atingir encadeamentos que, por isso mesmo, façam sentido. Por um lado, no plano diretamente cultural: Como eu aprendi na escola, os gregos da Antiguidade, e mais particularmente Pitágoras e Eudides, já possuíam o conhecimento que eu acreditava estar descobrindo. Mas isso não diminuiu o meu zelo, pelo contrário. 4 Unir-se a uma cultura que nos supera no tempo, que tem origem numa época muito anterior à nossa, que perdurará depois de nós, logo, nos prolongará - e extrair alegria disso.

lidades, de promessas; seus pais, a geração anterior, não fez tudo, nem tudo conseguiu, e é por isso que sua tarefa não é fácil nem impossível. A cultura, para pensar que o que obtivemos marca as primeiras etapas -- devendo-se prolongá-Ias: Outros que virão depois de nós Mais pacientes, mais tenazes ... Eles terão como apoio O canto que foi cantado Quando foi a nossa vez. Sei que tudo à minha volta é vontade . 10 D·e Ir mais. 1onge, dee vi viver mais.

Sozinho, contando somente com minhas próprias forças, eu ficaria desesperado: necessito da cultura porque necessito incessantemente de razões para ter confiança. "Minha" escola s6 existe se houver progresso possível e, portanto, já real da humanidade. Se, depois de séculos e séculos, os homens nada fizeram de válido, que esperança racional de aperfeiçoamento pode subsistir? As coisas não podem surgir bruscamente do nada. O essencial do materialismo dialético talvez seja a presença e a ação .do que está para ser construido no seio do que existe: "Não chamamos comunismo a um estado que deve ser criado nem a um ideal pelo qual a realidade deveria ser regida, mas ao movimento real que abole o estado atual".u Por certo, há recuos e perdas catastróficas, No entanto, não me conformo com aqueles que dizem que o esforço rumo ao progresso é belo por si s6. Assim, a estrada e o trajeto seriam mais preciosos que o ponto de chegada. Seria necessário afirmar, face à hist6ria, um "balanço globalmente positivo"? A confiança no futuro é a junção de provas da razão e de algo como que uma crença, visto que o futuro 'não pode ser mostrado, e menos ainda demonstrado. Tal crença se fortalece na medida em que se reforça a unidade entre o racional e o 202

afetivo; ela é, no sentido mais elevado do termo, poética: "Neste novo que nos é trazido pelo poeta, há uma abertura para o futuro que é irredutível".J2

Fatalidade dos cataclismos? Todas as evocações do progresso, da alegria do progresso chocam-se, em nossos dias, com um obstáculo fundamental: o imenso desenvolvimento dos conhecimentos científicos e das realizações técnicas não proporcionou à condição humana um aperfeiçoamento equivalente e sim, muitas vezes, uma regressão, chegando à barbárie e, sem parar, à ameaça das grandes instabilidades. Resta questionar as condições nas quais esse desenvolvimento científico e técnico foi efetuado. Walter Benjamin se teria equivocado ao sustentar que, tomando como motor o lucro, chegou-se muito menos a uma valorização do que a uma exploração do mundo que converge para a exploração do homem? Além do domínio da natureza, o problema consiste em que seja elaborado o "domínio da relação entre a natureza e a humanidade",13 E Walter Benjamin não pensa que essa inflexão possa ser conquistada senão às custas de uma "interrupção revolucionária" . O sentimento do progresso se encontra na ponta da reflexão política, e quando um pai olha para o filho recém-nascido, tão desprotegido, ele "pensa que aquela criança terá uma vida melhor, mais justa que a sua. É uma esperança, é um compromisso" .14 A escola pode assumir um âmbito progressista, a alegria de não ficar emparedada na ordem estabelecida, na desordem estabelecida, Eu diria, quase sem querer fazer política, que basta estender o nível de exigências até não mais aceitar a contradição entre as palavras e as coisas, entre as invocações à 203