Ah! As Belas Lições [Psicologia ed.] 8571371032, 9788571371033

Reúne 15 textos escritos entre 1978 e 1993, que envolvem a tal ponto o leitor em seus questionamentos, dificuldades, des

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Portuguese Brazilian Pages [268] Year 1995

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Ah! As Belas Lições [Psicologia ed.]
 8571371032, 9788571371033

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1ÇÕES /

...e prazeroso, para Radmila Zygouris, seu ofício de analista. Ela gosta do que faz. Gosta de ser analista, e por meio de seus textos, linha após linha, a experiência analítica volta a ser uma bela aventura, uma viagem, travessia do deserto - digamos - que vale a pena ser tentada, pois grandes são as chances de se sair diferente de como se entrou. Aventura que, como ela não cessa de lembrar, é vivida a dois, no encontro, razão pela qual é importante o analista poder falar sobre o que faz. Caterina Koltai

Texto das orelhas das capa e sobrecapa: Radmila Zygouris é uma psicanalista francesa de origem iugoslava. Foi membro da Escola Freudiana de Paris até sua dissolução por Lacan em 1978). Durante esse período, foi co-fundadora de uma das mais interessantes revistas de psicanálise, o UOrdinaire du Psychanalysthe, publicada em Paris entre 1973 e 1978. A revista caracterizou-se por publicar textos não-assinados por seus autores, com o objetivo de criar um espaço no qual a palavra pudesse circular livremente. Atualmente, a autora participa do grupo Ateliers de Psychanalyse, do qual é um dos membros fundadores. Em seus trabalhos, envolve a tal ponto o leitor em seus questionamentos, dificuldades, descobertas, que por momentos se tem a impressão de estar lendo, não um árduo texto de psicanálise, mas um bom "policial", em que se está ansioso por saber como o "caso" vai terminar. Falando em "caso", a autora chama a atenção para o fato de que o analista não leva vantagem alguma em brincar de médico, onde o "caso" seria, apenas, o paciente, e lembra que em psicanálise é importante nunca se esquecer de que o tratamento se funda numa relação intersubjetiva na qual o analista também se deixar afetar. Ao longo dos textos o leitor poderá acompanhá-la na descrição de como se deixou afetar pela fala do analisando, sentindo, por vezes, tédio, raiva, impaciência, exasperação, chegando a ficar fora de si, mostrando os limites da dita escola benevolente. Todo analista já viveu isso, só que ela usa dizê-lo. Ousa se expor, e se o faz, certamente não é por exibicionismo, e sim porque considera eticamente indispensável falar sobre aquilo que, efetivamente, acontece na clínica de cada um. Romper o silêncio, no que diz respeito às práticas privadas, tornar público as dificuldades da clínica, as novas demandas, é em sua opinião urgente e necessário. É por isso que, dando o exemplo, vem a público dizer o que ela faz, sabendo no entanto que nem sempre o que faz coincide com aquilo que julga dever fazer. Ao bom leitor não será difícil reencontrar as marcas deixadas por Freud, evidentemente, mas também por Ferenczi, Lacan, Winnicott, Searles, e alguns outros. O texto de Radmila é escrito em francês, que não é sua língua materna, e foi traduzido para o português por alguém, cuja língua materna não é o português. Textos e tradução são atravessados pelo Danúbio. Só espero que o leitor possa curti-lo ao ritmo de valsa, ao som do Danúbio Azul. Caterina Koltai

Equipe de Realização C apa D e ta lh e d a ra p a T ra d u çã o R e v isã o T écnica Revisão

P r o je to G rá fic o P ro d u ç ã o D iv u lg a ç ã o D ir e ç ã o E x e c u tiv a E d ito r e s

Ediura Rios M iró Caierina Koltai G io v jn n a Bartucci Dany AI-Behy Kanaan M o n ic a Magalhães Seineman A raide Sanchcs Fernanda G lória Gomes M o n ica Magalhães Seineman M ano el Tosta B crlinck M a ria C ristina Rios Magalhães

A h! A s(BeLAS Tradugáo de Caterina Koltai

escuta

RADMILA ZYGOURIS

£j IC Ó E S /

Obv autor (£i by Editora Ivscutnpan aodiçÂoomlíngua portuguesa l-»octis'â°: outubro do W5

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (CSmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Zvgouris, Radmila Ah! As belas lições! / Radmtla Zygouris ; tradução de Caterina Koltai —São Taulo : Editora Escuta, 1995. Bibliografia. 1. Psicanálise

J. Título.

ISBN. S5.7137.KKV2

95-4398

CDD-616.8917 NLM-WM460 Índices para catálogo sistemático:

1. Psicanálise : Medicina 616.8917

Editora Escuta Lida. R. Dr. Homem de Mello, 351 05007-001 Sâo Paulo. SP Tel.: (011)65-8950/262-8345 Tclelax: (011) 864-4442 / 256-3236 1995

Sumário Apresentação, Caterina Koltai

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Sobreviver à criança e à morte O instante seguinte

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O esperma do diabo

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Se non è vero, è ben trovato Zkna palavra que falta

15

83

95

O espreitador do amanhecer 113 i?ata Morgana

125

A alma gêmea ou o duplo domesticado 139 A vergonha de si /déias lunáticas

159 173

Ah! As belas lições!

181

©D diva à poltrona: o passo do guévidon y^ora do si

197

0 o lh a r se lv a g e m

215

^Sortilégios da cen a tra u m á tica J^ p rès-co u p

251

229

191

Apresentação Terminada a tradução, me encontro diante desta pá­ gina em branco que, como bem lembra a autora, faz so­ frer. Como passar do singular ao plural e, já que me coube, também, a apresentação, dividir, um pouco, com o leitor o que significou trabalhar os textos de Radmila Zygouris. Por onde começar? Pela autora, seus textos, ou o que sig­ nificou traduzi-los? Comecemos pela autora. Radmila Zygouris é uma psicanalista francesa de origem iugoslava. Foi membro da Escola Freudiana de Paris até sua dissolução por Lacan em 1978. Durante esse período, foi co-fundadora de uma das mais interessantes revistas de psicanálise, o L'orditjaire du psychanalyste, publicada em Paris entre 1973 e 1978. A revista caracterizou-se por publicar textos não-assinados por seus autores, com o objetivo de criar um espaço no quai a palavra pudesse circular livremente. Na opinião de seus fundadores, o anonimato era visto como algo libertá­ rio, razão pela qual solicitava-se aos autores que, ao depo­ sitarem seus textos, deixassem o nome na chapelaria. Como está dito no último número, mais que uma simples revis­ ta, o L'ordinaire foi um lugar de acolhimento para pala­ vras que não puderam ser ditas ou que, não tendo recebi­ do resposta, tiveram de ser escritas. Bastante diferente,

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Ah!

belas lições!

portanto, de Scüicct, sua contemporânea, fundada por Lacan, na qual, salvo os dele, os artigos também vinham sem assinatura. Oferecia-se a quem nela quisesse publicar a possibilidade de divulgar suas idéias sob o nome dc Lacan. Atualmente, a autora participa do grupo AteUcrs de psychanalysc, do qual é um dos membros fundadores. Ah! As belas lições! reúne quinze textos da autora es­ critos entre 1978 e 1993, originalmente publicados em di­ ferentes revistas de língua francesa, sendo que dois já são conhecidos do leitor brasileiro: "O olhar selvagem", (Per­ curso, 1993) e "Instante seguinte" (Cadernos dc Psicanálise, 1984). O que todos esses textos têm em comum? Antes de mais nada, um estilo. E é aquí que minha dificuldade começa. Como defini-lo? A primeira palavra que me vem à mente é "generoso", "generosidade". Os textos de Radmila Zygouris são "acolhedores" como sua clínica. Se nesta, sabe, como ninguém, acolher esse estrangeiro que é o paciente ao vir procurar o analista, e seu sofrimento, seus textos "acolhem" pela escrita bem-humorada (carac­ terística essa, convenhamos, bastante rara nos escritos psicanalíticos), e as saudáveis risadas que provocam no lei­ tor, além de serem bonitos. Foge, e nos ensina a fugir, dos chavões, boa militante que é do "Movimento pela Liberta­ ção das Palavras". Isso posto, não gostaria de utilizar este espaço, nem para resumir o livro, nem para falar do percurso da auto­ ra, uma vez que no último texto, que ela intitulou de Aprèscoitp, ela mesma o faz. Resta-me, pois, tentar dizer algo dos efeitos do trabalho de tradução sobre mim. Antes de mais nada, foi uma experiência muito pra­ zerosa, porque prazeroso é para ela, se assim posso formulá-lo, seu ofício de analista. Radmila Zygouris gosta do que faz. Gosta de ser analista, e por meio de seus textos, linha após linha, a experiência analítica volta a ser

Apresentação

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uma bela aventura, uma viagem, travessia do deserto digamos - que vale a pena ser tentada, pois grandes são as chances de se sair diferente de como se entrou. Aven­ tura que, como ela não cessa de lembrar, é vivida a dois, no encontro de duas subjetividades: a do analisando e a do analista, razão pela qual é importante o analista poder falar sobre o que faz. Prazeroso, também, porque envolve a tal ponto o lei­ tor em seus questionamentos, dificuldades, descobertas, que por momentos se tem a impressão de se estar lendo, não um árduo texto de psicanálise, mas sim um bom "po­ licial", em que se está ansioso por saber como o "caso" vai terminar. Falando em "caso", a autora chama a aten­ ção para o fato de que o analista não leva vantagem alguma em brincar de médico, onde o "caso" seria, ape­ nas, o paciente, e lembra que em psicanálise é importante nunca se esquecer que o tratamento se funda numa rela­ ção inter-subjetiva, na qual o analista também se deixa afetar. Ao longo dos textos, o leitor poderá acompanhá-la na descrição de como se deixou afetar pela fala do anali­ sando, sentindo, por vezes, tédio, raiva, impaciência, exas­ peração, chegando a ficar fora de si, mostrando os limites da dita escuta benevolente. Todo analista já viveu isso, só que ela ousa dizê-lo. Ousa se expor, e se o faz, certamente não é por exibicionismo, e sim porque considera eticamente indis­ pensável, falar sobre aquilo que, efetivamente, acontece na clínica de cada um. Romper o silêncio, no que diz respei­ to às práticas privadas, tornar público as dificuldades da clínica, as novas demandas, é em sua opinião urgente e necessário. É por isso que, dando o exemplo, vem a públi­ co dizer o que ela faz, sabendo no entanto que nem sem­ pre o que faz coincide com aquilo que julga dever fazer. Prazeroso, ainda, porque ao lê-la alargamos nossas fronteiras e nos tornamos menos guerreiros. Deddidamen-

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Alt! Afi bela* li(òc U^vcs'

Podemos nos perguntar qual pode ser o efeito do encontro com a morte real na infância, o no que se trans­ formam essas lembranças de uma época da vida que rapi­ damente será recoberta pela chamada amnésia intantil. E ainda que essas lembranças subsistam, são submetidas às deformações proprias ao imaginário da criança/ a seu modo de ver o mundo, àquilo que escuta dos adultos. Pois o que predomina, ao contrário do que sc afirma ge­ ralmente, não é a diferença dos sexos, é a diferença criança-adiilto. A garotinha continuou, frequentemente, a ouvir falar de morte porto dela, já que essa entrara em sua vida não somente pela morte de um ser próximo, mas porque eram tempos de guerra e em torno dela se falava sempre desta. A morte estava presente em todas as conversas dos adul­ tos, ainda que não se dirigissem a ela. Nem sempre enten­ dia o que eles diziam, porém de uma coisa tinha certeza: os adultos tinham medo. A caminho da escola via, às vezes, homens enforca­ dos nos postes. Sobre esses mortos nada lhe diziam, ape­ nas que não olhasse para eles. Ouviu dizer que se tratava de resistentes e que era "para servir de exemplo"... Não sabia que exemplo: por vezes lhe apontavam alguém como exemplo, mas seguramente não se tratava dos mes­ mos. Tudo isso, no entanto, acabava por fazer parte da vida cotidiana, esses cadáveres de estrangeiros. Sua avó lhe dizia às vezes: "Caso interroguem você, não diga nada daquilo que escuta". Como ela poderia, entretanto, dizer algo que não lhe haviam dito? Os adul­ tos não lhe falavam dessas coisas, assim ela também não lhes falaria sobre isso. Era como se fosse proibido. Razão pela qual achou sua avó meio bobinha. Entre crianças, aí sim, falavam sobre esses estrangei­ ros ao vilarejo, sòbre esses mortos para os quais inventa­ vam nomes e que integravam a suas histórias e brincadei-

Sobrciñvcr

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ras. Entre crianças brincavam disso tudo, quando os adul­ tos não os observavam. Sua avó um dia também disse: "Eu me pergunto como vamos sobreviver se isso continuar assim”. Ela ti­ nha certeza que saberia sobreviver, mesmo que sua avó não o soubesse. Ela encenava isso com as outras crianças. Em suas brincadeiras tinham sobrevivido porque esta­ vam juntas. Essa era a grande sacada deles: bastava per­ manecerem juntos. Eram o que chamamos de contemporáneos. Crianças cujos pais tinham os mesmos medos, a mesma guerra. Uma das atividades principais da criança é a brinca­ deira. E as crianças brincam de matar e morrer, tanto quanto de médico ou de papai e mamãe. Brincam de guerra, brincam de ser adultos... à moda deles. Com suas brincadeiras repetem o que vêm, mas também antecipam os acontecimentos da vida em função de seus desejos. "Quando crescer, abandonarei você e irei para bem, bem longe...”, ou então, "Quando crescer, você virá comigo em todos os lugares, você se sentará atrás..." Convém, no entanto, distinguir a morte de um próxi­ mo, mãe ou pai, da morte de um desconhecido. Enquanto a morte de um familiar raramente pode ser eliminada do discurso dos sobreviventes que cercam a criança, a morte do estrangeiro geralmente é silenciada, a não ser quando se torna objeto de algum comentário ofi­ cial e legal. Como se aquilo que acontece fora do recinto familiar não lhe dissesse respeito. Não se fala de política com as crianças, em geral, ignora-se a existência daquilo que é exterior à família. Não se diz a elas que alguns morrem pelos outros ou, então, são mortos por outros, que não se morre apenas de doença, velhice ou guerra encarada como simples fatalidade. O fato de que se pode morrer, digamos ativamente, ou se engajar até a morte, está recoberto por um tabu tão forte quanto as palavras que dizem respeito ao sexo, uma

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vez que aqui também se trata, e de modo ainda menos dizível, de desejo... E mais, uma gnrotinha não deve brincar de guerra, como se nao tosse atingida por ela. F, em todo caso, o que desejam os adultos. A menininha que brinca "'de mamãe" os faz acreditar, por antecipação, que ela já é a sua ma­ mãe, e deve ser poupada desse saber. Ela deve poupá-los do espetáculo de uma mãezinhn que brinca de matar e morrer. Assim, no que diz respeito a ela, não conheceremos suas representações guerreiras! A mulher e o homem, o externo e o interno à família, a criança e o adulto, os limites dos territórios... outras tantas passagens, fronteiras, zonas mudas onde não dá para estacionar, e que se atravessa em sonho, brincando, ou arriscando algo... mas nunca sem sutilmente mudar de língua, deixando na passagem alguns fragmentos da lín­ gua de origem, aquela que, sem palavras, era um lugar a dois, território primeiro de vida, onde a diferença era sonhava-se - negligenciável e sem riscos. Assim, somos todos poliglotas sem saber, pois para cada interior, há seu exterior ou alhures. Fara a criança, o estrangeiro é uma das figuras possí­ veis de todos os alhures. A figura do estrangeiro permite que o outro se represente por intermédio de traços ainda não inventariados. O fora, o nome... ainda não encontra­ do, apenas um ser vivo, nem pai nem mãe, adulto segura­ mente, uma identidade para todos os possíveis. E seu sexo? Outro, ainda que sob a aparência do mesmo. Então, por um breve instante, o do encontro, se encobre o eterno retorno do mesmo, a pulsão de morte cede lugar aos peri­ gos da vida. Dessa forma, no espaço de um sonho, a cri­ ança pode acreditar que crescer é mudar, que um dia en­ contrará um outro, completamente outro, nem pai nem mãe, assim fazendo a inestimável economia de nem por isso se considerar órfã, rica e liberada de todo assassinato.

Sobreviver

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Encore enfant, j'admirais Je forçat intrai-table sur qui se referme toujours le bagne: je visitais les auberges et les garnis qu'il aurait sacrés par son séjour, je voyais avec son idée le ciel bleue et le travail fleuri de la campagne: je flairais sa fatalité dans les villes. Il avait plus de force qu'un saint, plus de bon sens qu'un voyageur - et lui, lui seul, pour témoin de sa gloire et de sa raison.1

O estrangeiro fascina a criança, a atrai, lhe dá medo. Dele, ousa esperar o que não pode pedir a nenhum de seus familiares. Ele lembra a ela o exterior que está sem­ pre por ser conquistado, uma vez que essa conquista é sinal de liberdade e de vida. Essa liberdade que, desde a mais tenra idade, ela terá de subtrair à atração toda-poderosa exercida pelo corpo materno. Separar-se Dela é a pri­ meira tentativa de sobreviver. Isso começa cedo. Pode se chamar de diferentes maneiras. Nesse empreendimento, a criança encontrará ou não um cúmplice, para se expatriar Dela sem sucumbir à perda do Dois primordial que for­ maram um dia. Ela e o mesmo da criança, cuja separa­ ção começa na hora do nascimento e, por vezes, nun­ ca acaba. A angústia e a lembrança do mais ou menos de toda separação. A angústia provém da espera do retorno e nào da perda. Assim o luto pela morte realmente advinda é diferente (nem sempre; pode justamente acontecer que não a aceitemos) da an­ gústia de separação. "Até já" é justamente o que a 1. Arthur Rivnbaud, U»f saison cu eufer. "Ainda criança, eu «admi­ rava o condenado intratável ao qual se infligia sempre os trabalhos forçados: eu visitava os albergues e os quartos de aluguel que ele teria sacramentado em sua estadi«i, eu via com seus olhos o céu azul c as flores do campo, eu farejava sua presença nas cidades. Ele tinha mais força que um santo, mais bom senso que um viajante - e ele, somente ele, enquanto testemunha de sua própria glória e razão". (Trad. livre.)

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morte proíbe e a religião e o amor autorizam. E a gente se desgasta em imaginar o inimaginável de um 'nunca mais", imagem impossível de um retor­ no imaginado, diferido ao absurdo. "Até já" ... aí tudo recomeça... Até já se encena com a mãe. A separação Dela c esta dor que é a vida, que se imagina, se representa c se sonha.2 Dela à criança, o espaço se preencherá aos poucos: de objetos Dela, de objetos da criança, "seu carretel", o outro, os outros, o pai, os pais, o estrangeiro, o conceito, o grafo, um sonho de descoberta feliz... Mas como, a partir dos primeiros objetos, reencon­ trar os seres, como deixar esse território sem tentar a mor­ te? Como fazer a experiência da separação a não ser brin­ cando, marcando o caminho de um possível retorno? Salvo os objetos, o pai poderia ser o estrangeiro mais próximo. Como figura humana, faz laço com o Dois inici­ al, ao mesmo tempo em que o rompe. E em relação ao Dois o primeiro corpo estrangeiro. Outros poderão vir se interpor entre os dois, mas não é qualquer um que pode ao mesmo tempo romper o laço, ainda que representando o traço. Não é pai qualquer homem da mãe, nem todo genitor; não é cúmplice possível da criança aquele cuja relação com o exterior está barrada por uma espécie de ser que muitas vezes ele próprio chama de MINHAMULHER e que não passa do papel carbono da mãe, a sua e a da criança. Nesses casos, nesse último ponto de cumplicida­ de salvadora contra a onipotência desse corpo exagerada­ mente familiar e de seus cuidados inevitáveis, só o estran­ geiro poderá vir abrir o recinto materno para um mundo no qual nem todas as línguas terão de ser necessariamen­ te maternas. Essa mãe não foi muito evocada na obra de Freud, que logo de início apresentou a criança, não em sua espe­ 2. "Sépnration d'elle", L'onHiuiire iiu psi/chanalyste, 7, p. 64.

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cificidade de criança, e sim como menino ou menina, ins­ critos em relações privilegiadas segundo o sexo, seja com a mãe seja com o pai. Para tanto, serviu-se do mito de Édipo. Aí operou um salto assimilando Jocasta a uma mãe provedora, o que ela nunca foi para Édipo. Jocasta é uma mulher que no mito ocupa um outro lugar que não o da mãe que cuida. Ela não criou Édipo. Ela se situa onde se encenam entremeados, os desejos sexuais e de potên­ cia. Trata-se, desde o início, de uma mãe deslocada, nãofamiliar, quase estrangeira... O destino de Édipo se decide fora do recinto familiar de sua infância. É a mãe da pe­ quena infância, a que dispensa os cuidados maternos, cujo corpo e rosto terão de ser esquecidos, deslocados, perdidos, para que o próprio incesto possa se efetivar com todo seu peso de destino, por sua vez cruzado no meio da estrada. A mãe que tem todo o poder sobre o corpo deve ser perdida a partir de um luto que coloca a questão da pró­ pria morte do sujeito. Ora, na obra de Freud o separar-se da mãe não é encarado sob essa ótica, é encarado com base em uma problemática de perda de objetos parciais e no caso da menina, de um laço sexual privilegiado com o pai. A morte na vida do sujeito é essencialmente tratada a partir da morte do pai. Mas será que, quanto a essa ques­ tão, é possível separar, facilmente, teoria e avanço pessoal de uma análise? Crença provisória da criancinha na onipotên­ cia da mãe, mágica que faz "crescer". A criançabrinquedo terá, um dia, brinquedos que lhe possi­ bilitarão abandonar tal crença.3

E mais adiante nesse mesmo texto: Se a mãe tem o poder de dar vida e acesso ao gozo, é porque pode vir a retomá-los: poder inveja3. "Pouvoir-mère", L/ordinoire du pai/chminli/ste, 11, p. 17.

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M as lições!

cio pelos mochos, quo constituem o recinto materno cm motriz para o 'campo", lugar do "cuidado" obrigatório o do corpo entregue...4

Não é por acaso que a questão da morte e da psica­ nálise me veio à mente a partir da história de uma garotinha e de sua avó... "Diga, vovó, o que é a morte?" Ques­ tão colocada àquela que sobreviveu à sua criança, sua descendência, coisa insólita, uuheiinUche Mutter. Àquela que, sem querer, transgrediu uma lei, e, em função disso, saiba, talvez, dizer ã criança o inimaginável para ela. A outra vertente do "Pai, por que me abandonaste?" seria, quem sabe, "Criança, por que você me abando­ nou?", Questão essa que não foi verdadeiramente aborda­ da na obra freudiana, nem mesmo pelo sonho, tamanho seu cuidado em evitar esse Unheinilichkeit que lhe viria da mãe. Durante toda sua vida temeu que ela lhe sobrevivesse. Esse inimaginável o é menos para Ela (supondo que ela não seja mais a criança não-separada Dela) que para a criança, que do lugar que ocupa não pode concebê-lo. Ela, definitivamente em falta dela criança. A morte só pode ser imaginada e encenada do lugar de um outro, mas esse outro não pode ser Ela, enquanto o próprio sujeito estiver preso no território do Dois originá­ rio; o que não o impede de se tornar adulto e até psicana­ lista... É perfeitamente possível elaborar o tema da morte do pai permanecendo colado a Ela. Quando os psicanalistas escrevem, supõe-se que seus escritos pertençam, por algum milagre, à pura teoria, ao puro simbólico... com a condição de que brinquem su­ ficientemente distantes do corpo a ser perdido. Recomeço com o carretel: "Um sonho de descoberta, o grafo, o conceito, o estrangeiro, os pais, o pai, os outros, o outro, 'seu carretel', objetos dele, objetos dela." Stop. 4. Ibidem, p. 17.

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Ela toda: não. Objetos parciais, seio: sim. Winnicott parece ter conseguido brincar um pouco mais longe, e é justamente disso que alguns o acusam, criticando-o de ter permanecido (paradoxo) na zona malvista do imaginário. Perigo do imaginário quando se quer fabricar símbolo psicanalítico em nome de um pai. É aí, e não mais adiante que o carrete! tem de parar. A psicanálise não é, como, bem-sabido, uma história conta­ da por crianças... assim como a guerra é uma história de adultos. Brincar, leva a estabelecer relações grupais: a brincadeira pode ser uma forma de comunicação em psicoterapia e, em última instância, diria que a psicanálise se desenvolveu como forma muito es­ pecializada de brincadeira, posta a serviço da co­ municação consigo próprio e com os demais. O que é natural, ê o brincar, c o fenômeno muito sofisticado do século XX, c a psicanálise.5

As crianças brincam de morrer, as crianças brincam de guerra, de papai e mamãe, de médico. Para algumas de suas brincadeiras, existe em psicanálise um espaço ''simbólico" no qual isto pode se repetir e fazer sentido para o analista e SUATEORIA (como MINHAMULHER). Ou­ tras não encontram aí acolhimento. SUATEORIA não as ha­ via previsto. A morte fora dos muros, a guerra, o luto pelo estrangeiro não encontram aí seu lugar. Esse exterior mortífero que ainda hoje é audível, com a condição do analista não estar preso na repetição mortal de uma teoria avalizada, no qual por um tempo, seu tempo, sua primei­ ra guerra, Freud estabelecera o limite entre o normal e o patológico dos lutos que não precisou fazer. Toda uma geração de analisandos, que foram crianças durante a 5. D. W. Winnicott, jctt ct reatilê.

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Ah! .As 1‘t'fiis

f

guerva, brincai am "td )isso" e viveram st*m relação direta com o m undo dos adultos sous mud os e a morte am ea­ çando o interior. l: nós. analistas, ('nron.imos, o repetimos, tudo isso com eles. por ve/es sem saber, em silêncio, "s a ­ bendo que não existe lugar algum onde depositar a queixa"/ M as bem antes de nós Vroud, durante uma outra guerra, observou uma criancinha que brincava... Tratavase, nem preciso di/er. de um menino. Tm l c,20 data que representa um momento de vira­ da tanto na teoria psicanahtica quanto na pratica de sua transm issão," Freud publica "A lem do princípio do pra­ zer", no qual elabora a noção de compulsão ã repetição, apoiando-se numa brincadeira de crianças que "encena" a separação da mãe. Neste artigo ele se interroga sobre a estranha repeti­ ção, nos sonhos e na vida dos neuróticos, de acontecim en­ tos desagradáveis e, mais particularm ente, traumáticos. Aborda o tema pov m eio dos traumatismos de guerra, para rapidam ente abandoná-los e se ater num exemplo m uito diferente. P rop onh o agora qu e aban d on em os esse som ­ brio e sinistro tem a da neu rose traum ática e que e stu d e m o s o fu n cio n a m e n to p síq u ico b a se a d o s om u m a d as ativ id ad es n orm ais as m ais precoces. R etiro -m e ás b rin ca d eira s infantis.

A criança que observa e cujo jogo relata é seu neto, filho de sua filha Sofia. O jogo consistia em fazer desapa­ recer, reaparecer um carretel, significante da mãe ausen­ te, depois presente. A criança, segundo Freud, controlava por m eio desse jogo a angústia e o rancor provocados

. nf.

M

Alt! A s M a s liçflcs!

A criança c a guerra são, portanto, para o homem adulto os dois lembretes da própria morte. O inconsciente não conhece o tempo, é atemporal, mas conhece as datas c é na infância que se formam os pensamentos datados, pelo medo, as vertigens, o vazio e a palavra dos adultos. Dic Wiedcrhohmg ist die Probe der Jetztcn Vortellung. Aqui nós não traduzimos. Mudança de linguagem visível, pouco sutil. Pode, também, ser um vazio, uma fronteira, uma zona muda... ou uma irritação para o leitor. "Nunca mais", "nunca mais", "nunca mais", verti­ gens de uma brincadeira de criança que já encena sua própria morte. Sob a incitação de uma velha senhora. Basta ter cotejado, apenas uma vez, a morte, para já se ser um sobrevivente. O inconsciente não conhece o tempo, está no presente, o antes e o depois reünem-se, aí, num estra­ nho saber. Fort-Da, Fort-Da, Fort-Da, um garotinho o encena para que um velho possa, por sua vez, começar a aprender. Vertigem, quando as palavras repetidas se esvaziam de sentido... Garotinha e avó, garotinho e avô, de que estranhos casais nasce um saber... "Crie o vazio em si mesma", esse é o conselho de todos os místicos, os ünicos a, seriamente, terem se inte­ ressado pela morte. E alguns poetas: Comme ça te paraîtra drôle, quand je n'y serai plus, ce par quoi tu as passé. Quand tu n'auras plus mes bras sous ton cou, ni mon coeur pour t'y reposer ni cette bouche sur tes yeux. Parce qu'il faudra que je m'en aille, très loin un jour. Puis il faut que j'en aide d'autres: c'est mon devoir. Quoique ce ne soit guère ragoûtant... chere âme...

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Tout de suite je me présentais, lui parti, en proie au vertige, précipitée dans l'ombre la plus affreuse; la mort. Je lui faisais promettre qu'il ne me lâcherait pas. Il l'a fait vingt fois, cette promesse d'amant. C'est aussi frivole que moi lui disant: "Je te comprends".1-' Vertigem... Vazio... e em contrapartida esse pleno e derrisório "Eu te compreendo". E, no entanto, pode acon­ tecer que compreendamos, mas não a qualquer hora. Em novembro de 1912, Freud em presença de Jung, seu discípulo e rival amado, tem uma espécie de crise de angústia tomado de vertigens e de um mal-estar. Referese a eles por diversas vezes em cartas a Ferenczi, que lhe pede que analise esse sintoma. Numa carta de 9 de dezembro de 1912, diz ter analisa­ do as causas de seu acesso de vertigem ( Schwindelanfall),u e acrescenta: Todos esses acessos apontam para a impor­ tância de ter sido testemunha da morte numa ida­ de precoce. (No meu caso, um irmão morto muito jovem quando eu tinha pouco mais de um ano.) A atmosfera da guerra domina nossa vida cotidiana...134 13. Arthur Rimbaud, "Uépoux infernal", in Une saisoit en enfer. "Como isso te parecerá curioso, quando eu não estiver mais aqui, tudo aquilo pelo qual você passou. Quando você não terá mais meus braços em torno de teu pescoço, nem meu coração para repousar sobre ele, nem essa boca sobre teus olhos. Porque será preciso que eu parta, para muito longe, um dia. Precisarei ajudar outros: é meu dever. Ainda que não seja muito excitante... querida alma... Assim que pressentia tua partida, era tomada pela vertigem, precipitada na sombra mais terrí­ vel: a morte. Eu te fazia prometer que não me abandonaria. Ele a fez vinte vezes, essa promessa de amante. É tão frívolo quanto eu te di­ zendo: "Eu te compreendo". (Trad. livre.) 14. Sdiiiiddeii/aí/: acesso de vertigem. Sduuíndd: significa verti­ gem, mas também mentir;, a outra tradução seria, então*, acesso de mentira...

3b

Ah! /\> belas limões

I rata-se da morte de m'u jovem irmãv> Iulivi>, lieqüentemente interpretada como mmiJ o a origem do inte­ resso de I:reud polo "duplo”, o Poppelgangi'yt origem do sentimento de estranho. Freud é, pois. desde muito cedo um sobrevivente, no ver uma mãe, a sua, em loto por uma criança pequena. O luto por uma criança era justamente aquilo que Freud não queria, mais uma vez, lhe impor, pela própria morte. O que pode ele ressentir quando do desaparecimen­ to desse irmão tão próximo a ele em idade, justamente numa idade em que reina a onipotência da mãe? Crença provisória da criança na onipotência materna, mágica que faz "crescer"... Quantas vezes Freud sustentou que a relação mãe-filho era a mais isenta de ódio e ambivalência... Teria ele podido sequer sonhar que ela pudesse matar seu me­ nino? Em todo caso, o pensamento insuportável, para Freud, era imaginar sua mãe sentindo falta de seu filho, o que não teria sido para ela a primeira vez, seria uma repe­ tição. Vertigem de Freud perante a idéia da morte de um outro próximo, quase ele mesmo... um irmão, esse perso­ nagem evocado para dizer que diante da morte real da mãe (a do menino do carretel e a sua própria), ela, a crian­ ça, não sofre, porque existe o outro, esse caçula mais ve­ lho, que já está morto. A vida de Freud, sua obra, sua correspondência, o que sabemos de suas afeições e de sua própria morte é, hoje em dia, por diversas razões, interpretado como per­ tencendo a seu saber consciente ou inconsciente, como fazendo parte de um conjunto no qual cada um vem de­ sembaraçar os fios, segundo a própria trajetória. E esse conjunto que forma a herança de Freud, seu verdadeiro testamento. Decididamente, não é mais plausível manter separados, como pertencendo a registros totalmente dis­ tintos, de um lado, sua teoria explícita, a que está escrita em seus escritos oficiais e, do outro, as experiências de

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sua vida, seus amores e lutos, assim como suas preferên­ cias por certos discípulos e suas rupturas com outros. Se­ guir os ensinamentos freudianos significa, justamente, não se ater ao que foram as clivagens entre o oficial de sua teoria e o privado de sua evolução pessoal. Caso a teoria analítica remetesse apenas à prática dos "casos'' e vice-versa, sem nenhuma relação possível com a própria vida de seu autor, isso significaria introduzir em sua transmissão a repetição e a reprodução, tal qual, dos re­ calques, clivagens e desconhecimentos históricos de um outro, retomando de maneira a-histórica, por nossa conta, aquilo que foi para ele a diferença criança/adulto, privado/público ou vida/trabalho. Foi ele próprio quem traçou a via desse percurso, já que se serviu dos próprios sonhos e da própria vida para a elaboração de suas construções teóricas. Não podia, no entanto, escrever e se ler como um outro. De modo que, hoje em dia, está oferecido à devoração pública, leitura imaginária, à qual apenas seu corpo vivo poderia fazer obstáculo. E, no entanto, se assim o é, o é com sua cumpli­ cidade. Poderia ele ter previsto o despedaçamento cotidia­ no do qual seria objeto graças à sobrevivência não apenas de sua obra escrita, mas também da transmissão oral de suas palavras, atos e silêncios? Freud sabia que sua obra, sua descoberta, o imortalizaria, mas não podia prever de que modo lhe sobreviveria, pois um analista não tem como prever os limites de sua transmissão, por sua pró­ pria natureza essencialmente oral. De fato, o que seria um campo freudiano que fosse redutível ao escrito... recinto controlável num fantasma cientificista? Um puro conjun­ to de escritos remetendo a outros escritos... O corpo, o destino do corpo e de suas pulsões,15 será que precisam 15: Termo um tanto quanto em desuso... quando não explícita­ mente desacreditado por tudo aquilo que a psicanálise comporta de "jovens doutores" totalmente estruturalistas.

3J?

Ah! As hr/íis liçõrs.1

ser, necessariamente, excluídos de uma obra que se origi­ na, não apenas de outros escritos, como da história de seu autor, de sua infancia, sonhos e fantasias? Freud deixou atrás de si uma obra escrita e psicana­ listas, que por sua vez escreveram e viveram estranhas aventuras de amor e transferencia. Quando se escreve é por capítulos estanques. Necessidade da escrita. Cada texto tem suas falhas, suas aberturas e brechas para o exterior, o alhures de cada texto particular. De um capítu­ lo ao outro, quando não no interior de um mesmo texto (nota sobre a morte de sua filha), as relações nem sempre são aparentes, urdidas nos acontecimentos da vida e no indizível do momento. O escrito, dessa forma arrancado do sonho, do corpo, sempre tende à demonstração, à coe­ rência, uma vez que a ordem da linguagem constitui uma barreira entre a palavra do corpo, do espírito e a palavra escrita amarrada pela sintaxe a outras palavras de um inventário aparentemente patente. Mas, reconduzida pía­ mente ao inventário explícitamente proposto, SUATEORIA só pode se repetir de forma mortífera. As bocas permaneceram fechadas por muito tempo. Respeito pela pessoa, quem sabe, mas, também, tempo do luto. De uns anos para cá seus pacientes, seus alunos, escrevem, não apenas o que fizeram desde sempre, sobre a análise em geral, mas sobre suas próprias análises e encontro com Freud. Por outro lado, sabemos que longos anos de sua vida foram marcados pela doença e que so­ freu e lutou contra a lenta evolução de um câncer do pala­ to, que no final já o impedia de falar. Entre os que conheceram Freud e acabaram por es­ crever, temos Max Schur, seu amigo e médico particular. Em seu livro Freud. Vida e agonia, publicado após a morte do autor, podemos acompanhar a descrição dos últimos momentos da vida de Freud. Eis algumas citações:

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A doença seguia seu curso inexoravelmente. A pele da face gangrenou a ponto de formar um buraco que deixava o câncer visível a olho nu. O resultado foi que a dor diminuiu - mais exatamen­ te, toda a região se tornou um pouco mais acessível as aplicações de ortofórmio mas o cheiro piorou. Foi preciso recobrir o leito de Freud com uma tela para protegê-lo das moscas atraídas pelo cheiro..,

Freud assiste à sua própria decomposição e não faz nada para acabar com a vida, mesmo sabendo que não tinha mais nenhuma esperança. Schur prossegue: Enquanto isso a guerra havia começado... Freud lia os jornais e se dava perfeitamente conta da importância dos acontecimentos. Mas já estava "longe". A indiferença que já testemunhara quando da crise de Munique se acentuou ainda mais. Um dia que, no rádio, ouvíramos falar na velha idéia de que essa guerra seria a última e que eu lhe perguntei se acreditava nisso, apenas me respondeu: "Minha última guerra!" Quando começaram os primeiros alertas aé­ reos, transportamos a cama da Freud para a parte "segura" da casa. Acompanhou com certo interesse as medidas tomadas para pòr seus objetos de arte e manuscritos a salvo...

A doença e o sofrimento isolam, cortam do mundo, mas ainda persiste certo interesse por seus "objetos". Ob­ jetos de arte e manuscritos, seu exterior imediato. Dela a ele, o espaço será preenchido aos poucos: ob­ jetos Dela, objetos dele, "seu carretel", o outro, os outros, o pai, os pais, o estrangeiro... E ainda Schur: A fase derradeira começou quando até ler tornou-se difícil. Freud não lia ao acaso, escolhia cuidadosamente seus livros em sua biblioteca. O último livro que leu foi Peau de chagrin, de Balzac. Ao terminá-lo, comentou num tom distanciado:

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Ah! A> M j>h\tVs'

"oro justnmontc o livro do qual prensava; ía1.1 do encolhimento da morto por inanição |...]" Na época, não tondo ainda lido nom Pcau rfc chagnn, nein a correspondência do Freud, desco­ nhecia tanto o .sentido protundo dessa frase, quan­ to o porque delo tê-la pronunciado. O tema da pole que encolho faz eco ã sua carta de 1S%, na qual escrevera a respeito de seu pai moribundo: " ele (...] vem encolhendo regular­ mente ate (...) uma data fatal". O inconsciente é im o r ta l disse Freud. Conserva todas as lembran­ ças. Como ó estranho que tenha escolhido ler justamente esse livro antos de escrever a palavra "fim" em sua própria história.

Os objetos estão a salvo, o último livro escolhido foi lido.,. Freud encena sua mestria até o fim. A figura do pai parece se profilar, já bem no final, por intermédio de um livro, a figura materna parece aparentemente ausente. Salvo os objetos, 0 pai é o estrangeiro mais próximo. Como figura humana, ao mesmo tempo que faz laço com elas duas, o rompí’... Schur prossegue, terminando o livro: \To dia se g u in te, 21 d e se tem b ro , en q u an to esta v a se n ta d o à su a ca b e ce ira , F reu d p eg o u m in h a m ã o e d isse: "Uber Schur, Sie erinnern sich wohl auf

unser erstes Gespräch. Sic haben mit damais vesprochen mich nicht im Stiche zu lassen wenn es soweit ist. Das ist jetzt nur noch Quälerei und hat keinen Sinn mehr/' ["M e u ca ro S c h u r, v o cê se lem b ra d e n o ssa p rim e i­ ra co n v ersa . N a o ca siã o , v o cê m e p ro m eteu n ã o m e a b a n d o n a r q u a n d o ch e g a sse m in h a ho ra. A g o ra é a p e n a s to rtu ra e n ad a tem m a is se n tid o ."] A cen ei-lh e q u e n ã o m e h a v ia e sq u e cid o de m in h a p ro m essa. A liv ia d o , su sp iro u e, m a n ten d o m in h a m ão na su a , d isse: " Ich danke Jh/iem" ("R u lhe a g ra d e ç o "]. E a p ó s um m o m en to d e h esita çã o a cre sce n to u : "Sagen Sie es der Anna" .["F a le d isso a A n a ".) N ão h a v ia n isso tu d o o m en o r sinal de sen-

Sobrcwvcr

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timentalismo ou pieguice cm relação a !

c sua questão sobre a direção do olhar. IV (Mido parto o olhar o qual o sou alvo. O duplo, do forma alguma, o um parente, um familiar, ó um outro que reenvia aquele que olha à visão de si próprio não como uma imagem já vista, mas com o um olhar quo seria invertido. Ido é visto de onde ele proprio se vê. como nas histórias do terror quando a imagem de si próprio sai do espelho o se torna animada. O precursor do espelho, e o rosto da mãe. O quo en xerg a o b eb ê q u a n d o d irigo sou olhar para o rosto da m ão? tie ra lm en lc, aquilo quo vô, o olo próprio. 1 m ou tros tormo>, a mão olha o bobo o aquilo quo sou rosto expressa está em rela­ ção dirota com aq u ilo que ela vê.2"

A lu cin asse a si m esm o por m eio de um outro real ou alucinar um outro real em sua própria imagem é aqui­ lo que se chama de experiência psicótica, mas que reenvia de tato a uma experiência já vivenciada (por todos) do Dois sem terceiro, sem objetos de separação. Por outro lado, é frequente ouvirm os o relato desse gênero de expe­ riências com o sendo acom panhadas de angústia de m or­ te. Morte do adulto que a vive, pois só se tornou adulto interpondo entre Ela e ele objetos e os outros. UtihehiiÜche Mutíer, o mesmo repetido em dois olhares que formam apenas um, em duas direções equivalentes. X o suicídio trata-se de um que mata o outro, um e outro sendo o mesmo. O estrangeiro, que vem aí auxiliar no sim ulacro do suicídio - morte pedida ao outro pro­ tege a mãe real como suporte, ainda e sempre possível do mesmo, e evita o aparecim ento ou retorno do horror. O que caracteriza o sinistro é o eterno retorno do mesmo, desse algo ainda não nom eado que volta ao m esm o lugar. A em ergência do real onde escapa a qualquer p o ssib ili- 20

20. D. W. Wmnicntt, o¡> cit

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datle de jogo imaginário, H a coKa encontrada como nova, já estando, no entanto, lá. Ainda que conhecida e reconhecida na repetição, a impressão de estranhe/.a per­ siste e escapa a qualquer possibilidade de familiarização, ou deslocamento qualquer. Algo de semelhante ocorre, mesmo que de modo mais fugidio, na crise amorosa ou, mais exatamente, na catástrofe amorosa que se resolve momentaneamente hipnóticamente - por um mágico "Eu te amo" ou "Eu te compreendo", grito travestido de palavra. É algo que também pode ser vivido numa sessão de análise sob a condição de que o analista possa se permitir sentir um momento de inquietante estranheza, até de horror e per­ da de sua identidade simbólica, e se, neste momento, não tiver no lugar do corpo um substituto de memória que pode ser SUATEORIA, ainda que essa fale destas coisas. Isso porque, em tais momentos, a teoria só pode funcio­ nar como filtro para que apenas as palavras sejam ouvi­ das e não os gritos. As palavras escondem a violência do grito, as palavras introduzem as diferenças, ao passo que o grito abole toda diferença e precipita um no outro. Isso na impossibilidade de fazer trabalhar os olhares, seus cruzamentos, na abolição de sua diferença, de poder se ver um no outro, pois Freud imaginou o cenário analí­ tico de modo a excluir justamente o olhar e o fascínio da figura do outro como possível espelho de si próprio. Seria então, como por vezes é, o apagamento das diferenças, a catástrofe, a possibilidade de emergência do duplo (lado do analista), do Dois de retorno... O analista, segundo SUATEORIA deve permanecer um estrangeiro familiar, fa­ miliarizado, que nem viverá nem permitira ao outro viver a experiência do encontro com o estrangeiro absoluto, o mesmo de si, de onde o alcançaria seu próprio olhar no resplandecer quase mortal de um real não-separado. Ex­ periência limite da morte que pode ser feita por um vivo.

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Ah/ As ¡H'fns ílçiVs

A evocação da morte real de Sofia, a mãe da criança que brinca de Forf-Da, pode fazer crer, ainda que de modo pouco razoável o seguramente supersticioso, que a brincadeira de seu filho representava um desejo de morte - isto a titulo de hipótese - que se teria realizado. Onipo­ tência do desejo... no qual inconscientemente todos nós acreditamos. Poder que sc inverte, poder da criança sobre a mãe.. Mas, aqui, a criança, é preciso reafirmá-lo, é o au­ tor da teoria, aquele que "compreendeu" a criança e que inseriu essa pequena nota de rodapé, indicando desse modo que a brincadeira acabou, de fato, e que a criança não sofre. Fort-da, fort-da, Fort-da, eu-fort(e), você-dá, Freud- • fort(e), Schur-dá, caso um se vá e morra, o outro pode, deve, permanecer vivo. O que parece constituir como que um obstáculo para Freud, é "a tristeza da mãe", ou então seu vazio (seu vazio do Dois para ele) imaginado do lugar da criança, já que é isso que parece marcar a diferença adulto/criança nesse texto. A questão que, então, se coloca é: de que lugar o cenário da análise foi imaginado e, de modo mais geral, de que lugar e para barrar qual angústia se enuncia certas teorias ou teorizações analíticas. Trata-se de um sonho infantil ou de uma necessidade do analista acreditar, cus­ te o que custar, que deve se representar como adulto para manter seu lugar? Não julgando possível manter-se nele caso se esvaneçam as diferenças, que não são sexuais, e sim simples diferenças, se nele puder reviver a criança da mãe real. A psicanálise deve a esse preço ser uma história de adultos... Podemos inclusive nos perguntar se a freqüência de suicídios no decorrer de uma análise - e principal­ mente em final de análise -, fato que alguns analistas parecem aceitar com "pesar", mas como sendo uma fatali­

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dade, não pode ser imputado à postura arrebatada de adultos e à utilização de SUATFORIA (nem que seja a "m i­ nha"), como instância recalcadora de seu medo perante o horror de uma experiência nova, anulando suas identifi­ cações secundárias e todas as diferenças liic e ntme com o outro, o paciente, o semelhante. A criança sonha, brinca, de um exterior de onde Fia esteja excluída para repetir a seu modo o cenário de sua morte. Mas esse não é um sonho de criança na infância, pois a criança em questão deve ser procurada no adulto. É o adulto que encobre esta criança, que em seu tempo de criança não pode se separar Dela. E, é na morte violenta, a morte sofrida ou infligida por um outro, que esse cenário se apresenta com melhor visibilidade. No entanto, isto só se encena e re-encena à condição que Ela permaneça na sombra, que Ela permaneça na parte - não nomeada - e não identificada do outro (ou de si mesmo), caso contrá­ rio a representação se interrompe, e o sinistro corre o ris­ co de irromper no próprio interior do cenário montado, cuja função é justamente a de conjurar o medo desse horror. Do médico... ao estrangeiro sem nome... ao discurso psicanalítico que não se fantasia em puro enunciado de adulto... a distância é longa. Mas já se com eça a descon­ fiar que nem todo escrito "teórico" de analista deve ser necessariamente creditado na conta de uma elaboração simbólica na qual iríamos colher ciência sem falhas, seja qual for o voto de seu autor e seja qual for sua forma, ainda que seja das mais desencarnadas: essa última não passando de uma tentativa magistral de esquecer e fazer esquecer aquilo que já é do já esquecido. Não sei que distância é possível manter, que liberda­ de pode-se tomar com a coerência interna a todo escrito que se pretende transmissível... ou teórico. Mas a apela­ ção de "teoria" em psicanálise, será que não indica, antes

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Ah! As bdtis hçòcs!

de mais nada, a existencia de um ''praticável"21 comum a alguns contemporâneos? "Praticável" deve ser entendido aqui na própria definição dada pelo Littre: "Tormo do de­ coração do teatro. Porta, janela praticável que não é ape­ nas figurada, e pWa qitnl realmente $e pode pa^ar. "(Grifo meu.) Cosi aqui, com fio branco, meu texto a outros textos que me di/em alguma coisa. Corpos estrangeiros a este, dos quais me servi, para que no interior do meu, o outro e o mesmo se separem, e talvez uní dia possam tornar-se visíveis para mim. Dessa maneira, viajei um pouco de uma geração a ou­ tra, de uma guerra a outra... e à próxima. Será ela diferente?

21. Tenrui utilizado por Jacques Nassif, ainda que num sentido diferente.

O instante seguinte* Des-encadeamentos É corriqueiro ver por ocasião de um enterro, pessoas tomadas por um ataque de riso. Nervoso... é o que dizem. Sem dúvida... E algo mais: em cada um de nós dormita uma viúva-alegre. E nem é preciso que "o morto" tenha sido um marido odioso do qual finalmente teríamos con­ seguido nos livrar. Pode se tratar de um ser verdadeira­ mente querido cuja morte é dolorosamente ressentida. Isso não impede que, nos dias seguintes, a pessoa enluta­ da experimente um estado de grande erotização. Concisamente essa frase ouvida: "O cadáver estava ao lado e fiz amor com um quase desconhecido..." Des-encadeamento das pulsões, desencadeamento da vida e de Eros, antes mesmo que o verdadeiro trabalho de luto se instale. Por mais querido que seja o outro, o morto, foi ele quem morreu... e não eu... Palavras, frases indizíveis, im­ pensáveis e que... colocamos em ato. Furtivamente, com culpa. É o tropeçar, o zombar da morte. E o luto, por mais intenso que seja, não é a mortalha do ser em sua totalidade. * Texto originalmente publicado em Caderno de Psicanálise, 3(4), Instituto cie Psicanálise da Sociedade de Psicologia Clínica do Rio de Janeiro, 1984.

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Ah! A< bchs ü\õcs

A vida ó som escrúpulos quando ela está reduzida ao estado puro da vida, ao estado de pulsões dcs-encadeadas. E a morte de vim outro próximo - amado - pode justa­ mente ta/ev subsistir apenas a vida em estado bruto. As­ sim como pode fazer surgir sentimentos extra-ordinários por ocasião de uma ruptura. Uma mulher acaba de perder brutalmente seu filho pequeno. Ela vem me ver há muito tempo... devido a difi­ culdades pessoais. A perda da criança é brutal, inespera­ da. Ela está siderada de dor. Eu a olho: está resplandecen­ te de beleza. Descncadeiam-se, nela, sentimentos violen­ tos e de grande nobreza: ela quer agir, salvar outras crian­ ças... nunca, antes, fora tão criativa, tão inteligente. Isto durou uma semana ou duas. Após o que se abateu o ver­ dadeiro luto: ela encolheu, ela envelheceu e apareceu em seu rosto a marca indelével da desgraça que a atingira. A morte pode, pois, ter dois efeitos paradoxais: •De um lado, libera as pulsões que estavam investidas em representações estruturadas com a figura do vivo, o qual, uma vez morto, deve desaparecer de cena. A rees­ truturação dessas representações é o verdadeiro trabalho de luto. Mas, entre esse momento e o da depreciação pulsional, pode se dar uma espécie de ruptura, um des­ encadeamento pulsional em que fazemos coisas não usuais, momento em que a vida irrompe com violência, sem levar em conta a moral. •O outro efeito da morte pode parecer o inverso desse, mas também repousa sobre a desorganização: a única coisa que para o espírito humano é incontornável em seu mistério é justamente a morte. Ora, não cessamos de querer contornar esse pensamento na vida cotidiana. A morte de um próximo, de um ser amado, apaga por um instante toda mesquinhez, faz recuar as preocupações e opiniões preconcebidas do cotidiano, o jugo dos necessi­ tados... vindo à luz o homem metafísico. A própria ques-

O msfftMft seguinte

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tão do sentido da vida não tem como deixar de se colo­ car... questão que, para muitos, apenas a proximidade da morte torna aguda e não subvertida pela preocupação cotidiana do utilitário. A morte faz cessar por um instan­ te a procura do útil. Entre as pulsões liberadas e a questão perante a qual o próprio grito permanece mudo, não há frequentemente nenhuma ligação, aberturas do psiquismo. Ainda mais que, hoje em dia, não sabemos mais mui­ to bem o que fazer dos mortos. O que fazer dos cadáveres. Sinistras as cerimônias religiosas, quando não possuí­ mos mais nenhuma crença. Sinistra a ausência de cerimônia. Enterros leigos, en­ terros furtivos. Nós nos livramos dos mortos. Faltam-nos festas funerárias capazes de se encarre­ gar da vida deixada vaga, das libidos desorganizadas, das pulsões desconectadas pela perda, dos espíritos à procura de uma representação unificadora e portadora de subli­ mações aceitáveis. Cada vez mais, em nossas inevitáveis decadências, se não reencontramos a festa que celebra o morto e a mor­ te, que permite a uns chorar, a outros se pensar e se proje­ tar a si próprio como morto, cada vez mais, por desespero treparemos ao lado dos túmulos. Esta é a crise de uma civilização: quando as palavras começam a faltar, quando os gestos sc tom am insignifi­ cantes para representar a morte aos sobreviventes. Falo daquilo que se convencionou chamar de morte "natural". Somente as catástrofes suscitam, ainda, pala­ vras e gestos... mas tornaram-se tão numerosas... que aí também um certo silêncio não tardam. Só nos restam dis­ cursos políticos destinados a nos fazer aceitar a morte violenta, a morte não-natural.

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Ah! As Mas hçòcs

Será que e preciso ser soldado, guerreiro, morto de fome, prisioneiro... para poder morrer? Será que só pode­ mos discursar aos mortos no limite do anonimato: os que morreram pelos outros? Trata-se aí de disçursoS de tem­ pos de crise e mais: dc discursos de guerra que não se apresentam enquanto tal. Ora, uma civilização pode enterrar seus mortos um a um: assim como se morre um a um. Então mais fortes ainda serão os des-encadeamentos... Não falarei aqui do preço de alguns desses des­ encadeamentos que pude ouvir. Nem dessas tristezas, excessivamentc bem-dominadas, por um filho morto por uma nobre causa... nem das sinistras conseqüências des­ ses enterros furtivos. Túmulos, latas-de-lixo do humano. Este é o conteúdo de análises freqüentemente muito longas... quando esses sobre-viventes têm como pagar uma análise... Mas nenhum analista, nenhuma análise, nenhuma quantidade de analistas poderão fazer frente aos efeitos da inexistência de cerimônias funerárias, nem à implosão das representações coletivas da morte singular privada e responsável. Esta é nossa decadência, e a psicanálise só pode acompanhar. Falo daquilo que eu observo aqui, na França. Quem sabe é diferente no Brasil? Espero que os bra­ sileiros, possam, já que é grande seu interesse pela psica­ nálise, não tomar a psicanálise por panaceia universal, nem por pensadora de leis, caso essa palavra seja impor­ tada daqui pela própria psicanálise. Os psicanalistas ape­ nas constatam, às vezes reparam, com muita dificuldade, alguns estragos. Até quando? Uma vez que eles próprios estão assujeitados à mesma decadência, à mesma indigên­ cia imaginária. E a questão se coloca:

O instante seguinte

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— Que valor têm as teorias - psicanalíticas no presente caso - produzidas num mundo, numa co­ letividade, numa sociedade que não sabe mais o que fazer de seus mortos? Qualquer pensamento proveniente de uma terra, não é por si só suspeito?

Pensamentos provenientes de psiquismos que já se sabem cadáveres mal-enterrados.

O esperma do Diabo L'inimitié qui règle nos rapports Ne nous retiendra point d'aimer.* Saint-John Perse, Amers

A carta de amor: Pathos Ela sonhava com mares, com o oceano, com ondas gigantes, o Atlântico, o Adriático, o Mediterrâneo, o Ocea­ no Índico, o Negro, Vermelho, Branco, Morto, todos os mares da Terra. Diante desses dilúvios, eu perdia meu latim. Na lín­ gua de seus sonhos, sua língua materna, mãe não rimava com mar*12 e a lua estava no masculino. Eu me desprendia das gramáticas. O elemento líquido, seja qual for a língua, se interpreta, ao que parece, no feminino. Fizemos, pois, os exercícios necessários... e ela continuava sonhando * T exto o rig in a lm en te p u b lica d o em N o u v elle R ev u e de Psychanalyse, La Chose Sexuelle, 1984. 1. A inimizade que regulamenta nossas relações Não nos impedirá de amar. (Trad. livre.) 2. Em francês, mer (mar) e mère (mãe), jogo de palavra que em português nâo se mantém. (N. da T.)

M

Ah! As

/íçcV s ’

c o m o o c e a n o , c o m o M ed ite rrâ n e o , c o m o A tlântico, co m ns o n d a s g ig a n tes. T o d a s essa s á g u a s su b lim e s o c a la m ito ­ sa s. p e r tu r b a d o r a s , a a s s a lt a v a m n o ite a p ó s n oite.

Quando estou diante do mar, sinto uma perturbarão prolunda... depois mc acostumo e sin­ to o prazer mais anódino cm me banhar, eni apro­ veitar... mas minha perturbação é algo mais, é ou­ tra coisa... como os sinais anunciadores do a m o r .

Dois estados descontínuos perante uma mesma coi­ sa: a perturbação tingida dc angústia, conto os sinais anunciadores do amor; depois o prazer mais anódino de aproveitar; domesticação da coisa. . Contudo, o que fazer com isso? E se, em vez de desa­ lojar o conteúdo latente, o seio, a mãe, o esperma, em vez de perseguir o significante, o desejo inconsciente, em vez de encorajar as associações, se, em vez disso tudo, eu me deixasse levar unicamente pela beleza de seus sonhos? Pois todos eles tinham isso em comum: eram belos. E se eu ouvisse apenas a beleza? Será que estaria desmerecen­ do a psicanálise? E ela, será que se tomaria uma malanalisada? Assim como se diz... Horrível comparação, de fato. Mas o que fazer perante minhas próprias associa­ ções? Os pensamentos parasitas indicam às vezes o cami­ nho mais seguro. Então, me deixei levar pela beleza de seus sonhos. Eram belos, feitos para seduzir. E, aos pou­ cos, ela me levou aonde, sem dúvida, eu tinha de ir. Um dia, me deparei com a força nua de uma presen­ ça. A perturbação. Imbricamento de pulsões, todas as re­ presentações postas no prego. Encontro com o real, bura­ co negro da análise, sequência muda da qual é preciso dizer algumas palavras, ainda que poucas, para iniciar um necessário retorno em direção às palavras, representa­ ções, ao pensamento. Mais presente do que isso, impossí­ vel. Trabalho de domesticação recomendada. Na borda do outro, cujo encontro é emergência pulsional, isso pressiona (es drãngt), isso força, isso abre um

() esperma ib diabo

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d ifícil c a m i n h o c m d ir e ç ã o à lin g u a g e m , à s im a g e n s , nos p en sam en to s;

isso c a lc a -re ca lca

Uinin^t-vercirtin^t) c o m

u m m e s m o m o v im e n t o n co isa a se r c o m u n ic a d a p ara n ão a fu n d a r na im p lo s ã o d o s referen tes m ais co tid ian o s. C o m u n ic a r c u ste o q u e cu star, esse e stra n h o esta d o q u e cria u m e n c o n tr o , e s ta d o d e p u ls õ e s im b ric a d a s , q u e as p e s s o a s qu e eu,

n o rm a is

freq ü en tem en te

cham am

de

am or,

p o r h o ra , s ó p o s s o d e s ig n a r c o m a p a la v ra d ela: a

p e rtu rb a ç ã o . O u tr o s p a r a d e s ig n a r isso d iz e m - m a s será q u e d e fato s a b e m o s o q u e d iz e m os o u tro s ?

bem , ou­

tros d iz e m : a C o is a se x u a l.

Eis por que, Papai-Mamãe, eis por que nem o Pai nem a Mãe me eram de serventia alguma para entender a mensagem das ondas, pois diga-se o que quiser, eles são distribuídos segundo o sexo: uma, a Mulher; o outro, o Homem; e pouco importa que se glose ao infinito sobre quem é que manda. As grandes ondas, os beira-mares, a beleza das coisas suscitam esse estranho sentimento, essa perturbação que faz disparar o coração, e, quando isso assume figura humana, pode se acompanhar de excitação sexual, mas onde a excitação sexual sozinha não basta para fazer dizer: "Essa presença aí e nenhuma outra". A Coisa sexual não tem sexo. A Coisa sexual está entre os corpos. Orgão flutuante, como a atenção assim chamada. Não é nem de um nem do outro, mas o encan­ to, a atração de um pelo outro. Atração que se solda repe­ titivamente pela separação dos corpos. Nem que seja no momento após o amor. Ela é, pois, metáfora tanto da atra­ ção quanto da separação. A Coisa sexual é o entredois, de seres em estado de encontro. Mais tarde, convém nomear um pouquinho esses estados e essas coisas, suas qualida. des de fusão, de confusão, de recobrimcnto, de encravamento, suas possibilidades de distinção, sua separabilidade, suas anatomias. É preciso nomear, já que não somos amebas. E que temos tendência a viver a dois, a três, que tendemos a nos juntar em agrupamentos maio-

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Alt! .As ÍWrts liçòct1

res, comunidades, quando não constituir uma massa. Sob qual égide armar a barraca? Nesse difícil omprendimento, os psicanalistas su­ põem que a mulher possa di/er alguma coisa sobre essa impossível permanência da confusão, do encontro sexual, do gozo sempre prometido a um fim, do qual a mulher no dizer dos psicanalistas - se queixaria de mais bom grado que os homens. "O que quer a mulher?"... costu­ mam eles dizer. Ela, que não disse muita coisa sobre os outros agrupamentos, que não transformou em lei seu desejo quanto à arte e ao modo de desfilar em massa. Mal-estar na civilização... Unbehagcn... qual é a tua língua materna? Mas enquanto sc trata de ser apenas dois em cena, mãe-criança, mulher-homem, então os psicanalistas, a começar pelo próprio Freud, mantiveram a estranha ilu­ são (permanência da potência materna?) de que suas queixas e sofrimentos contêm a última palavra do fim dos amores. Como explicar, então, o interesse que os psicanalis­ tas, ainda que humanos, na maioria das vezes homens e pretensamente científicos, têm pela mulher? Aquilo que ela diz ou não tem como dizer, àquilo que seu corpo con­ ta das infelicidades arcaicas da espécie e do sexo, àquilo que seu corpo sempre somatiza de um saber impensável. Assim eles têm cavilhado ao corp o a certeza que a mulher-paciente saberá fazer avançar sua questão, onde talvez baste ouvir os poetas... Por que cometer essa imprudência extrema e acres­ centar à Coisa, provocando a perturbação, o termo "sexual"? Seria unicamente porque os humanos são sexuados e ima­ turos de nascença? E que uma vida inteira é, para alguns, insuficiente para destrinchar o teu do meu: desamores parciais que só podem se dizer pelas palavras de amor? Palavras sempre imperfeitas para restituir a parte de car­ ne de todo encontro no qual se representa a Coisa sexual. E o Verbo se fez carne. Bobagem. Em psicanálise a came deve se fazer verbo... e o livro ser assinado. Acredi-

O es p erm a d o d ia b o

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to que o comitê de redação da Nouvelle Revue de Psychnuatyse pirou... Comitê de essência inteiramente masculina. Constância, aguenta o tranco! Será preciso, mais cedo ou mais tarde, extrair alguns conceitos de nossas gavetas... A libido, a diferença sexual, a repetição, a pulsão de morte, darão conta do recado. Senão, como falar disso, se não se é poeta, e tentar escrever o para além da carta de amor? Cada vez que psicanalistas tentaram, isso deu lugar a formulações ex­ travagantes. Freud dizia que a libido era de essência mas­ culina. Lacan afirmava que a relação sexual não existe. Isso lhes valeu montanhas de incompreensão, ódios não compreendidos. E de nada serviu para resolver a questão da Coisa sexual, salvo o esforço que fizeram para encontrar algumas novas combinações de palavras. E isso escrever. Constância - é assim que a chamarei - continuava sonhando com mares. O idílio se rompia: as águas pláci­ das, as ondas transparentes se transformavam em ondas negras ameaçando tragá-la, aniquilá-la. Mãe arcaica? O gozo contemplativo se transformava em desejo violento e maléfico. Passagem discreta do amor para a morte. Breve evocação de seu laço. E depois, esse próprio mar, massa gigante de vida, representava também os dois estados ex­ tremos descritos nas histéricas: o êxtase e o transe. Gozo contemplativo e desejos convulsivos, retorno de um desti­ natário desconhecido. Duas maneiras clássicas de se estar fora de si, vítima de uma perturbação não imputável a um outro separado de si, não imputável a um apelo sexual localizável. Con­ fusão pulsional, confusões psíquicas. Delícia de estar fora de si, entregue ao outro imenso e seguro; devastação do exílio do estado primordial. Mas Constância não era um bebê. Falava perfeitamente de seus estados presentes, cor­ po de mulher adulta, desejos, emoções de mulher adulta de meu tempo, não redutíveis a uma bem-sucedida repe-

(■>4

Ah! /Is befos !i\V(y!

tição do um tempo ancestral. Que lugar con ceder a esse d e s r e g r a m e n t o criando um espumo novo onde nasce Eros

proveniente da imperfeição da Coisa repelida uma ve/, após a outra? Distancia entre a satisfação procurada e a satisfação obtida, entre uma sexualidade infantil e um erotism o adulto, Erotismo adulto que, também, o datável. Se bastasse ta/er amor para dar cont.i da C oisa s e ­ xual, nunca as bruxas teriam vindo ao mundo, jamais a histérica teria fascinado Freud a esse ponto. Chama-lo-ei Constante. Ao longo de toda sua vida de analista insistira sobre o prim ado da Coisa sexual. Injunção? Idéia fixa? Dem anda? Encarte contendo as indicações? Não: Cons­ tante. C o n s ta n te perturbado perante o outro. E antes de tudo perante a histérica. Constante perturbação da histérica. Constante se interroga: Sc somente conseguisse saber por que, em suas contissòos, as bruxas nunca deixam dc decla­ rar que o esperma do diabo é frio.-1 Ide interroga seu amigo, Tcurer Wilhclnt... que não consegue... salvo lhe dizer de vez em quando: “Fuma um pouco m enos... Não seja tão nervoso..." A pulsão de m orte já está lá imbricada no sexual. S erão p reciso m ais vinte an os para d esim bricá-Ia e nom eá-la. O esperm a do diabo é frio com o a morte, o que deveria ser vida é aí designado como cadáver no ventre de uma mulher. O esperm a do diabo não produzirá bebês diabos. Até o ato sexual comporta sua vertente de nega­ ção da vida. O esperm a frio é a presença material do dia­ bólico 2io ato sexual, ich hm der Geist des stets verneint...*4 Descontinuidade do sexual como pulsão de vida. Contigüidade da m orte e de vida numa mesma seqüência. \ Sigmund Freud, Carta a Fliess de 24, 1.1897, m Mnssrtijcr ih* !n psycJMjrnli/sr, Paris, PUF, p. (S. 4 . Motíslótoles "Sou o espirito que sempre nega", Goethe, IíWS/0.

O esperma do diabo

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Constancia se torna exigente: ela quer que a análise lhe dê a perenidade da perturbação diante do homem que diz amar. Já que, se em seus sonhos ela conhece as delí­ cias e aflições da perturbação, em sua vida diurna nada disso acontece. Tem um marido - que diz amar - e filhos. Seu marido a ama, a deseja moderadamente mas na conti­ nuidade e a honra a intervalos regulares e razoáveis. Ela tem honestos orgasmos e gosta de fazer amor com ele. Eles se entendem bem e se conhecem há vinte anos. Um casal quase invejável. Ela não tem queixas quanto a ele, salvo a falta de perturbação quando ele se aproxima e em sua presença. Ela sabe perfeítamente que pede a lua. Mas a pede assim mesmo. Não fora esse o motivo de sua de­ manda de análise. Durante longos anos sofrera de "somatizações graves". Tudo isso agora já pertencia ao passado. Era desesperadamente normal e essa última exi­ gência dava à sua análise aspectos de luxo. Contudo, não era dessa opinião. Ela demandava veementemente essa coisa a mais, sem a qual a vida não possuía a menor gra­ ça. Ela chegou a duvidar de seu amor por seu marido, e teve, então, aquilo que chamamos aventuras. Todas elas terminavam pelo desaparecimento da perturbação... As emoções do encontro, a espera apaixonada não duravam. Depois? Depois ela ainda preferia seu marido, com quem se dava bem e gozava seguramente. História banal. Tem, no entanto, o mérito de colocar simplesmente, fora de toda patologia grave (nesse período de sua análise), fora mesmo de qualquer problema de frigidez propriamente dito, a questão da falta: a falta de uma falta. Constante fora mais razoável. Ela, às vezes, falava nele e o invejava. Ele também tivera um casamento está­ vel, filhos, férias programadas. Como conseguira? Houve, é verdade, Wilhelm e alguns outros, e ali também isso não durara. Mas houve a psicanálise e... "Ao longo de toda sua vida de analista, havia insistido sobre o primado da coisa sexual".

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Ah! As belas hçòcs! Nno vou irar psicanalista, só para ouvir os outros falarem nisso, ouvir os sonhos de amor, de sexo, de infância... seria realm ente o cúm ulo de m i­ nha miséria.

Eu tinha vontade de mandar Constância a Constan­ te: cie que se virasse... No entanto, não era possível; não eram da mesma época. As senhoras de seu tempo sonha­ vam de outra forma a nostalgia da perturbação. Eu me encontrava bem no meio dos dois, elo no tempo e no discurso. Tive também vontade de mandá-la a Lacan... Chama-lo-ei de Aimé. Aimé tinha a vantagem de ser mais moderno. Eu o lia com freqüência e com grande prazer, ainda que nem sempre concordasse com seus modos de agir. Ele escrevia como se, para ele também, essas coisas fossem familiares. Os escritos de Aimé são, às vezes, tão belos quanto os sonhos de Constância... e igualmente se­ dutores. "\ríío c isso, Eis o grito pelo qual se distingue o gozo obtido do gozo esperado."5(Grifos meus.) Ele falava como Constância. Por que não mandá-la a ele? Eram contemporâneos. Contudo, ela o conhecia bem demais e sabia que ele não teria paciência com ela. Ele teria, dizia ela, interrompido seus sonhos. Ao ouvi-la di­ zer isso, eu me perguntei se Constante, da mesma manei­ ra, não teria - a seu modo - interrompido os sonhos de suas pacientes, também por impaciência. Ela pretendia que pelo menos comigo iria até o fim. Porque sabia me­ nos sobre isso. Ela contava com minha ignorância. Tinha que ser boba até me tornar a sombra, o traço da própria coisa. Nem ela nem o outro nem mesmo o mar, apenas uma margem: limite móvel, praia onde aportar, em seu ritmo. Um dia, finalmente, teve um sonho seco.

5. Jacques Lacan, Encore, Paris, Le Seuil, p. 104.

O (’spcrnin do diabo

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Sem água, sem mar ou ondas... Somente um grande corpo anônimo diante dela, assustador, silencioso, talvez um pouco hostil, que ela não conseguia deixar de olhar. Ele era fascinante e incrivelmente real. A perturbação nela... Ela soube ¡mediatamente que era isso que esses ma­ res, todos, haviam escondido para seus sentidos. "Essa presença e nenhuma outra." Ela se interrogava vagamen­ te sobre seu sexo. Masculino, sem dúvida. O homem vi­ nha por acréscimo. Ela soube, também, que a perturbação - que tanto reivindicara - estava ligada ao medo. "Uma espécie de terror." Angst. Angstneurose? Neurose de terror. Esse cor­ po de homem, dizia ela, era como que maculado por um outro elemento, nunca visto, por um elemento desumano. Ou, quem sabe, morto? Ele era tão real, sua presença tão poderosa, que nenhum macho entre seus conhecidos po­ dia concorrer com ele. Entretanto, não era de virilidade que era potente, era pela simples força de sua presença. Será possível sonhar o real do Falo? Prefiro deixar a Cons­ tante ou Aímé esse tipo de consideração. E a outros, os objetos finalmente reencontrados ou perdidos. E as geo­ grafias dos espaços psíquicos a serem delimitados. E o arcaico, enfim. E as palavras incorporadas e os fantasmas enquistados. O que era, então, esse elemento "desumano"? Certamente algo não-familiar, e, também, um pouco diabólico. Assustador e fascinante ao mesmo tempo. Presente e sub­ traído a qualquer descrição satisfatória. Solicitando o de­ sejo ao mesmo tempo que evocando a morte. Terror perturbação -, não uma história de amor. De Santa Teresa de Ávila extática, às bruxas possuí­ das pelo diabo, passando por formas menores de histeria, o objeto do qual gozam, nomeável, ou escapando a qual­ quer nomeação habitual, é, em todos os casos, raramente representado pelo honesto pai de família. O outro domes-

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/4W As bclns lições!

ticado. O elemento estranho, desumano, do sonho "seco" assinala a presença de algo irredutí\*el ao nuindo familiar, ao mundo das identificações possíveis. I:, no entanto, cia o sonha, o representa. O que ela representa, desta forma, é uma doscontinuidade, uma tenda de seu próprio pensa­ mento. É aí que retomo a questão de Constante: por que as bruxas dizem que "o esperma do diabo é frio"? A pulsão de morte contém algo de diabólico, nos diz Constante. A repetição não é explicitamente diabólica. Por onde isso pode se conjugar? A cópula com o diabo é uma encenação eficaz dc algo que preocupa Constante. Ou a perturbação? Senão, por que teria se detido nisso? O que o preocupa no momento no qual interroga seu amigo, ele não pode enunciá-lo de outro modo. Bem mais tarde, quando terá elaborado e extraído de seu psiquismo suas próprias representações que dizem respeito à ligação ou à falta dela, a dicotomia, entre o sexual, pulsões de vida, e a compulsão à repetição: quando terá nomeado a pulsão de morte, cessará de se servir de histórias de cópula, entre bruxas e diabos, e não precisará mais sustentar seu ques­ tionamento por meio de ilustrações arcaicas. No entanto, o diabo reaparecerá, mesmo após a no­ meação da pulsão de morte. Dessa vez, sem a mulher. Em 1923, Freud escreve: "Um caso de possessão demoníaca no século Não há mais cópula, mas o diabo deve ajudar um pintor a vencer sua impotência criadora. Freud designa o diabo com a figura do pai morto. O que ele continua não podendo designar de outra forma se não em termos ilustrativos, numa metáfora diabólica? Alguns di­ rão que não pode acusar seu próprio pai. Sem dúvida, me parece, contudo, insuficiente parar por aí. O diabo, de copulador infame com bruxas e possuídas, passa ao esta-6 6. G allim ard.

T r a d u ç ã o f r a n c e s a Essais de psychanalyse appliquée , P a r is ,

O c's/JíTww lio diabo

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do de procurador da capacidade de criação artística do homem. É esse o aspecto que mais me interessa. O diabo no lugar da potencia: sexual, depois criadora. Ora, num lado mais imediato, teria bastado atribuir esse lugar à fi­ gura do. Pai; num lado mais profundo, parece cjue o diabo tinha um algo a mais a transmitir, que a figura familiar e sublime do Pai não permitia. . Em outros termos: o diabo autoriza pensar algo que a idéia de Pai censura. Então, talvez, não se trate, absolu­ tamente, da problemática do Pai, ainda que odiado, desti­ tuído, e, sim, do aspecto "não-pai" do homem. Do Pai representando o pulsional não domesticado - não-familiar. Unheimliches Unbehagen. De fato, como falar do homem sem acossá-lo ao lugar sempre simbólico do Pai, ou o que vem a ser o mesmo, do Filho? Será que não passa disso? Nos escritos psicanalíticos, a mulher teve, diga-se o que quiser, mais sorte, justamente porque a teoria foi es­ crita principalmente por homens, e, para ela, eles ousa­ ram pensar aquilo que para eles era o inconcebível: o se­ xual não tomado na rede das estruturas simbólicas da família. Donde a bruxa, até mesmo a histérica. Volto à bruxa: ela é, ela representa a mulher por ex­ celência num certo imaginário: mulher destituída, mulher do mal, mulher não-familiar, mulher vaginal e não-matricial. A bruxa não é uma mãe, quanto muito uma madras­ ta. Também não é assimilável pura e simplesmente a uma puta: ela é muito mais, tem uma palavra pública, ela diz e maldiz, a bruxa é uma puta metafísica. A histérica, bruxa em miniatura, notória enchedora de saco, sempre moderna, mesmo em seus arcaismos, diz, maldiz e prediz aquilo que a ciência e a arte retiram do sexo; ela traça a via da pesquisa em direção aos objetos sofisticados do amanhã. Bebês de proveta: foi ela quem os sonhou primeiro. Aimé, ainda que muito impaciente para ouvir os sonhos, pressentira isso, até o escrevera,

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Ah! /As belas lições!

mas como isso nào era formalizâvel, seus alunos não se ativeram a isso. Péssimos alunos. Constante erguera o véu da sexualidade infantil, o que representou um escândalo. O mito edípico mantém toda sua eficácia de representação para tudo aquilo que diz respeito à sexualidade infantil, mas se torna uma pri­ são que inibe o pensamento assim que se trata de se apro­ ximar do escandaloso erotismo adulto. A economia PaiMãe-Criança não basta para dar conta da riqueza das so­ luções eróticas amorosas, uma vez ultrapassada a indis­ pensável iniciação que transforma a Criança numa Mãe ou Pai em potencial. Bem, e depois? Será que só é possível gozar se valendo desses lugares? E o que dizer sobre isso sem cair na eterna ameaça da perversão: palavra que sem­ pre designa o lugar no qual o analista que a pronuncia tem medo? Há, no entanto, outras formas de se falar das coisas sexuais, inclusive das mais estranhas. E os próprios perversos não são mais o que eram... Dessa forma, Constância pedia aquilo que Constante de fato não previra: a lua. Ela queria a lua, isto é, um excedente inútil de gozo. Inútil na estratégia familiar de seu casamento, de seus amores passageiros. Será possível adoecer disso? Até tornar-se vítima? O elemento "inumano", morto, do homem do sonho seco me pôs numa pista. Ela me levou ao lugar no qual eu seguramente teria de chegar: a ouvir pela sua boca a quei­ xa da frigidez do macho, a impotência em gozar do Pai procriador, do Pater Famílias, do honesto marido das fa­ mílias, que apesar de suas "aventuras" ela voltava a ques­ tionar, a azucrinar, a molestar, quando este, de fato, tinha apenas uma paixão: se matar trabalhando. O homem seco, o homem de seu sonho, fabulosamente real, que o mar, os mares, as águas, as ondas tinham escondido de seus sentidos, era um homem por acréscimo: pura presen­ ça, portanto sexuado, provocador de perturbação, mas,

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principalmente, principalmente irredutível ao mundo fa­ miliar: ela não me permitiu desviar do bom caminho: nem Pai nem Mãe nem ela mesma. Deixo, então, Constan­ te e sua ciência por um momento: o homem não-pai, exte­ rior à família, o homem inútil. O homem do desejo. Para ela, Constância, e para ele, seu novo companheiro de so­ nho, essa percepção de Bataille: A vítima é um excedente tomado na massa da riqueza útil Ela só pode ser daí extraída para ser consumida sem proveito, conseqüentemente destruída para sempre. Ela é, a partir do momento em que é escolhida, a parte maldita destinada à consumação violenta. Mas, a maldição a arranca à ordem das coisas: ela torna reconhecível sua figura, que passa a partir daí a refletir a intimidade, a an­ gústia, a profundidade dos seres vivos. Nada é mais impressionante que os cuidados com os quais ê cercada.7 (Grifos meus.) Constância não tinha mais necessidade da figura do diabo para sonhar o hom em não-pai.

Ela envolvia essa imagem tão nova e perturbadora com os maiores cuidados, assim como certos homens cer­ cam de cuidados a própria idéia da mulher. Justamente a idéia, que não se incarna nem em suas mães nem em suas irmãs nem em suas esposas, mas, às vezes, numa transeun­ te, caso esta permaneça suficientemente à distância para conseguir permanecer, por certo tempo, nova o bastante para não se dissipar no cortejo das lembranças familiares, por demais familiares.8 Para manter fora da água a pulsão de morte imbricada à vida, rosto novo, desencontro afinal com a repetição manifesta. 7. Georges Bataille, La part maudite. 8. Nietzsche, em Le gai savoir, já falava da ação à distância das mulheres; texto comentado por Jacques Derrida, em Éperons, Gonthier.

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Ah! As belas lições! _f

E, sem dúvida, por isso que Constância punha tama­ nha violência em não querer "familiarizar" por nenhum traço, nenhuma lembrança, nenhum retorno em direção ao passado, sua criatura de sonho. Ela tornava pensável a própria noção de futuro. Resistências? Tendo, deliberadamente, feito a esco­ lha de escutar a beleza desses sonhos, por que eu resistia tanto em ouvir o que eles poderiam transmitir quanto ao desejo de algo novo? Ela tentava usar palavras sem grandiloqüência para expressar sua procura da lua. As­ sim, so muito raramente falava de amor ou paixão. Afir­ mava amar seu marido, ter tido algumas paixões, todas elas passageiras, porque bem-acolhidas, o que lhe permi­ tira vivê-las até o fim, sem o drama das proibições ou situações impossíveis, que às vezes eternizam as paixões para além de seu verdeiro tempo de vida. Não queria ser nem Isolda nem Julieta, simplesmen­ te Constância. A perturbação era o umbigo do amor que a une ao corpo do sexo. Nem êxtase nem transe, e, sim, a percepção de uma desordem no interior de coisas já orde­ nadas. Por que um corpo tem um sexo e um sexo não poderia ter corpo? Se abandonarmos por um instante o necessário e uti­ litário casal Pai-Mãe, reprodutivo e produtor de valores sociais, se nos afastarmos um pouquinho, teremos de ad­ mitir que a Coisa sexual não entra na ordem das coisas. Que ela não é útil nem à reprodução (a pulsão sexual parcial bastaria) nem à manutenção nem à restauração do lugar do Pai. Ela é a parte maldita da relação entre os sexos, sejam quais forem as anatomias em presença. As crianças percebem a "perturbação" tanto quanto os adultos, contu­ do não têm de arcar com corpos reprodutores, nem com o papel de produtores. Ao assimilar a escuta do coito pa­ rental a uma cena de violência que faz surgir o terror, não estariam elas dizendo a verdade?

O esperma do diabo

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Isto é, a parte maldita, parte mal-dita, diabólica, par­ te inútil, extraída da riqueza útil. Unbehagen, perante o luxo dessa parte da análise de Constância. TerrorUnbehagen: casamento impossível. Constância representa o desejo de um - digamos homem. Ser de sonho, presença tão densa, feita de restos inúteis e magníficos de presenças reais enterradas sem palavras, sem representações legitimadas, que não encon­ traram lugar algum nas repetições "negociadas" de sua vida cotidiana. Montagem de restos - parte maldita (que ela envolve de cuidados), silenciosa, de uma série de exci­ tações que não puderam se inscrever nem como objetos perdidos nem como desejos enunciáveis pelo outro, nem mesmo por algumas palavras. Esse resto de homem, resto de luxo, transformado em necessidade, presença muda, é percebido por ela como o mais desejável dos objetos, assim como o mais novo. E, de fato, era novo, já que ninguém o representava. Como ela pode, no entanto, sonhá-lo? De fato, aquilo que ela representa, aquilo que ela sonha, a imagem, não passa nunca do representável: um corpo de homem, o sexo re­ catado. Nada de muito especial. Mas aquilo que ela diz a respeito: sua impressão, sua perturbação, seu sentimento, não figuram na imagem retratada. São simplesmente res­ postas novas de seu ser para uma imagem nela mesma anódina. Mistério do sonho. Qual é o contorno, quais são os limites do sonho? Onde termina a imagem, onde come­ ça a interpretação do sonhador? Esse homem de sonho parece simplesmente dizer que de seu corpo, de sua pre­ sença, emana um silêncio particular. Silêncio imbricado do desejável e do desejo. Ela, sonhadora, lhe imputa o desejo de um amor mal-dito. Intervalo do silêncio no qual ela cria o novo. Nenhum sinal visível para o outro está aí para legitimar o que ela diz. Ela é a primeira a dizê-lo. Portanto, ela não diz, ela interpreta. Ela o representa

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Ah! As M as /ipVsí

mudo, ola fala por cie. Tudo que ela podo, que mo pedo, ó não reduzido a algo já dado. Não há, pois, uma totalidade de sonho que esteja representada, ola representa um ho­ mem que ela faz sev a seu bel-prazer. Curiosamente, ela não fala de amor. Fia tenta o impossível, criar um curtocircuito nas palavras-categorias para aceder ao mais sin­ gular do encontro com um homem em suspenso. Figura a ser inventada, a dc um homem feito de suas palavras, de restos nào-simbolizados, nem simbolizáveis pelo saber constituído, homem totalmente novo, ainda não represen­ tado para seus pais, ascendentes, ideais legítimos. Ho­ mem não repertoriado como Pai possível. Em que termos falar dele, em qual vocabulário, em qual ciência procurar os “Nomes do Pai“ do Homem nãopai? Na ciência do riso. “Aquilo que não anda“ para Constância não é redutível a uma patologia... Assim, ela deu início à sua saída do Pathos.

O pós-Pathos: o escândalo Como, então, não mais se queixar disso e, no entan­ to, designar o lugar no qual isso permanece em suspenso? “Não sou eu, é ele...“ Clássica estratégia da defesa. Entre­ tanto, e se essa defesa já tivesse acontecido? Caso se tra­ tasse agora de dar uma reviravolta? Fazer dizer a Cons­ tância suas somatizações do saber do outro que não tem como ser dito. Constante permaneceu incrivelmente médico para alguns males dos homens. Encarava seus sofrimentos apenas sob o ângulo da patologia da potência sexual: im­ potência, ejaculação precoce, abstinência forçada, mastur­ bação vergonhosa e substitutiva. Mulher frígida em con­ traposição. Em filigrana: o medo da mulher, imediata-

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mente ocultado pela figura da Mãe que ela representava. Um pouco mais longe na paisagem, o Pai, sempre severo. Não era, evidentemente, falso, e continua não sendo, mas é insuficiente para ceder lugar à inútil e inevitável pres­ são Drang - Trieb - , pressão de morte, em qualquer eróti­ ca adulta. Imbricamento das pulsões nas quais a imagem do esperma frio do diabo marca o lugar do conceito. Crian­ ça-cadáver do amor mal-dito, do amor externo à genealo­ gia familiar: esperma frio no ventre da bruxa. Essa nãomãe. Lugar-dito da concepção do Novo. Dito-lugar do escándalo de um amor não-reprodutor, enunciável em nossos dias pela boca de uma mulher incapaz de qual­ quer sublimação conveniente, ainda que com acesso à pala­ vra pública. Será possível imaginar uma descendência de carne rósea a Tristão e Isolda? Romeu e Julieta? Sua descendên­ cia é o próprio selo da morte no amor. Traço tornado possível apenas pela morte real desses casais. Amores do amor de uma morte sexuada, partilhada. Sua descendên­ cia, desgraça das famílias, lugar vazio do gozo incastrável da pulsão de morte no encontro amoroso. Que qualquer um, inclusive Papai e Mamãe tenham, quem sabe, um dia, vivenciado, mas que terminou de outro jeito. Pela reprodução, sempre, pois "eu" estou aí pensando nisso, e na série de repetições "negociadas" chamadas de caros hábitos. Que o resto volte a ser resto, o inútil volte a ser inútil. A sociedade se encarregará tanto do inútil quanto dos restos: Unbehagen. "Meu pai se mata no trabalho... minha mãe se queixa de tudo e de nada...": má repartição... "Minha mãe está melhor desde que começou a trabalhar...": fim da reparti­ ção. A sociedade cuidará deles: os assistidos. A brevidade do encontro não suporta a duração da vida, nem os ciclos de reprodução nem o homem que se mata no trabalho. O imbricamento da pulsão de morte.

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Ah! As helas lições!

frío real, ao sexual, está p resen te por intermitencia, por surpresas. "Mais presente que isso, impossível..." "Do­ mesticação receitada." Onde está, pois, o escándalo da erótica adulta que Constante só consegue formular seja por meio de inter­ pretações edípicas, seja pelo misterio suposto a certas queixas das mulheres? Insatisfação, recalque, conversão na histérica. Ao macho, a impotencia, mas jamais a frigi­ dez. E se, apesar do tudo, se tratasse exatamente disso? O esperma frio. Frio do homem potente? Descontinuidade da pulsão de vida, alternancias suportadas pelos dois sexos... rossuir uma mulher, possuir todas as mulheres, fecundá-las, situa o homem, de imediato, na problemática do Tai. Fai primevo, Pai da lei, Pai fecundador, pai-defamília. O escândalo não residiría na possível disjunção entre potencia e gozo? Sem que, imediatamente, se conotasse isto de feminino. Pois bem, esse escândalo não ficaria nada a dever ao da sexualidade infantil, mas não pode sobrepor-se a este. Ao se falar de gozo masculino fora das manifesta­ ções concretas da virilidade, a via surge, quase sempre, traçada a caminho da perversão ou do masoquismo, o feminino do homem e outras versões bem-conhecidas. A margem é estreita para contar uma outra história. A mulher, não possuindo nenhum equivalente mate­ rializado de potência, está em melhor posição para falar da descontinuidade do gozo sexual, o seu próprio, mas muito provavelmente, também, o do homem. O homem, potente, contudo frígido, põe em cheque a idéia do Pai como mestre do gozo. Desse gozo que não é somente de Eros, mas contém a parte muda da morte que torna instável e descontínua a circulação da Coisa sexual. Constante, no entanto, pensara nisto: lateralmente. Não é, certamente, por acaso que esta questão aparece, não em seus escritos que tratam da sexualidade, mas sim

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ao abordar o "Mal-estar na civilização". Ai distingue as obras de Eros, unificadoras, das de Tanatos, destruidoras, que agrupa essencialmente do lado do sadismo. Não colo­ ca verdadeiramente a questão do gozo da pulsão de mor­ te em sua vertente silenciosa, não agressiva. Nesses parênteses portanto: "(A sede de destruição, virada para dentro, se furta, é verdade, em sua maior parte quando não tingida de erotismo.)"9 A aliança com Eros é, pois, necessária. E mais: "Poderíamos formular nossa concepção atual aproximadamente nos seguintes termos; uma parte de libido participa em toda manifesta­ ção instintiva (eu diria pulsionaí), mas nesta nem tudo é libido" 10. (Grifo meu.) Ora, esta parte de não-libido está presente nas mani­ festações mais unificadoras, como o próprio amor, a saber o desejo sexual do macho, desejo, quanto muito, tingido de erotismo, "pleno" de pura libido. Seria isto facilmente sublímável pelas exigências superegóicas, preço a ser pago à própria Civilização? Esta Civilização em cuja ela­ boração a mulher, não-produtora, teve participação bas­ tante reduzida. Salvo em somatizar, com um certo avanço, um saber impensável e impronunciável pelos machos seus contem­ porâneos. Somatizar sem sublimar, somatizar e permane­ cer separada dos objetos idealizáveis. Somatizar seus pró­ prios desejos recalcados e, ainda por cima, de modo tal, que digam o silêncio do outro lado, solicitando o interesse dos homens de ciência. O macho, cujo falo está em bom estado de funcionamento, que se mata no trabalho e satis­ faz sua mulher, do que poderia se queixar? Justamente: de sua mulher, de seu trabalho e da civilização. Mas e de seu sexo? Que dizer sobre ele, baseando-se na suposição 9. Sigmund Freud, Malaise dans la civilization, Paris, PUF, p. 75. 10. idem, ibidem, p. 76, nota 3.

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Ah! ó s M a s li cães!

de que é satisfatório para ela, de que ele pode transformar uma mulher em mãe? Aparece, então, em primeiro plano essa questão lancinante, "IVfls ioiU das Wcib?" (O que quer a mulher?). Interesse de Constante, interesse de Aimé, interesse que, duvido, tenha sido inspirado, apenas, por altruísmo ou algum desejo de curar... curar de que? Se eles soubessem o que quer a mulher, será que saberiam também algo so­ bre o próprio sofrimento, que só pode adquirir voz pela boca das mulheres? Histéricas, de preferência. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo: a Virgem permanece­ rá muda, quanto a esta questão, quanto à impotência em gozar do Pai, privado de sua parte homem: nem filho nem pai. Ela permanecerá virgem quanto ao saber da fri­ gidez do Pai. E, sobre seu silêncio, virá se edificar uma nova Civilização, berço da ciência. A ciência? A ciência... até a última gargalhada: retorno invertido da mensagem: eis aqui, finalmente, os bebês de proveta. A Virgem Ma­ ria, "Patrono" da inseminação artificial... Revolta da mu­ lher judia. "Eles querem um filho." Eles terão apenas o Filho... A menos que, mais diabólica que as mais diabóli­ cas bruxas, gnóstica mulher do silêncio, você tenha se adiantado não apenas de alguns anos, mas de dois mil? Imaculada Concepção. Será, contudo, que só é possível pensar com conceitos vindos do frio? Os chineses, por exemplo. Sua ciência, antiga mas muito sábia, não se escrevia por meio de conceitos. E hoje em dia, como fazem? Suas metáforas sexuais não são as mesmas: a repetição e a reprodução, a potência sexual do macho, seu gozo e sua fertilidade eram pensáveis, podiam ser agidas separadamente, O taoísmo recomenda ao homem fazer gozar a mulher, e ele próprio gozar sem ejacular. A sacrossanta "detumescência" não era significante de um gozo que tivesse acontecido: significava, apenas, a possi­ bilidade de uma fecundação. "O Imperador", símbolo da

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ordem do Universo e o mais Yang dos homens tinha de aprender (e aprendia junto às mulheres) a arte de fazer amor para ter o máximo de energia vital. Assim, devia fazer gozar, sem ejacular, um grande numero de mulhe­ res - mulheres do Oeste, do Sul, do Leste, do Norte uma vez que era o orgasmo da mulher que lhe dava o máximo de Yang, o máximo de vitalidade masculina. Após o que, de uma só vez, devia penetrar e fecundar a Imperatriz, a mulher do Centro, situada simbolicamente no mesmo lugar que ele, ela que é Uma e representa a mãe. Não me estenderei longamente sobre esses textos, já que todos os podem ler. Aimé os leu. Ele nos dá, apenas, um apanhado suscinto e um pouco grosseiro: No taoísmo por exemplo - vocês não sabem o que é, muito poucos o sabem, mas eu o pratiquei, pratiquei os textos, evidentemente o exemplo é gritante na própria prática do sexo. É preciso reter sua porra para se estar bem.11

Evoco isto para dizer que à disjunção entre gozo e ejaculação, no homem, corresponde na mulher a disjun­ ção entre dar ao homem a energia de seu orgasmo e dar uma criança à Ordem do mundo. No discurso sobre o Amor no Ocidente tudo está confundido. São necessárias histórias de diabos e bruxas para pensar, nem que seja um pouquinho, as disjunções da libido e, conseqüentemente, as do próprio pensamen­ to. Aimé introduziu muito habilmente a diferença entre o pai simbólico, o pai real e o pai imaginário. Isto é útil para expressar algumas diferenças, mas será que só podemos falar do homem e de sua libido não levando muito em consideração o homem não-pai? Como, então, falar sobre seu gozo e seus avatares, em que termos, por quais ima11. Jacques Lncan, op. rit., p. 104.

so

Ah! As Mus /iYíV s /

gens representar a parte de nao-libido de suas manifesta­ ções pulsionais? Somente a nuilher maldita, bruxa ou his­ térica, pode dizer a parte de não-vida imbricada no sexual. A outra, mulher "sadia", estando encarcerada, tanto qu anto o hom em , em seu papel de reprodutora e avalizndora de uma confusão entre a vinda do esperma e o gozo masculino, já que sua palavra - de mulher - é ouvida como palavra de mãe, Mulher matricial, de útero sadio e produtivo. O inútil, a parte maldita, só pode se conceber como significante de mulher louca, doente ou destituída. ' lVí7s irill da> V\Vib?” Pergunta-chavão, mas, também, muito bonita, que apesar de bela, nem por isso é pertinen­ te. Ela e, para o corpu> psicanalítico, o mesmo que os so­ nhos de mar na análise de Constância: uma estética en­ xertada lá onde o saber vacila de fato, maneira de se levar o outro onde, sem dúvida, ele deve chegar - à beira move­ diça dos mares, à emergência de um homem não-pai. O que quer a mulher? Constância se pôs a rir de si própria: não é engraçado querer viver, e viver muito, ao mesmo tempo em que se pede morrer todos os dias de amor'? E tudo isso com um bom marido? Níem êxtase, nem transe. Tornar pelo menos a perturbação amável: "Faça-me rir..." Para viver todos os dias, vida cotidiana, vida doméstica, ela não poderá enfrentar sozinha a parte de não-libido de um homem mudo. O elemento desuma­ no desse grande corpo desejável continuará sendo um so­ nho, um medo não atravessado a dois. Entrevisto. E, no entanto, como uma sonâmbula, ela evoca o tempo anterior à análise, em que seu corpo era doente de estranhos sofri­ mentos. Parecia-lhe que fazia, então, falar um pouco esse grande corpo desejável. Ela quase nem se lembra... tudo mudou tanto desde que ela o viu, viu com seus verdadei­ ros olhos de sonhadora com esse elemento desumano do qual agora conhece o preço a pagar para lhe emprestar a voz. Preço de seu corpo doente. Quanto muito ela tentará

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fazer com que seu marido não se mate no trabalho: "Fume um pouco menos../' Ela partiu. Curada na opinião de todos. Só ela sabia que aquilo que mais ardentemente desejara, a análise, o analista, eu, nós não soubemos...

Para além da carta de amor Será que podemos pretender, ao mesmo tempo, que "o homem vem por acréscimo" e que esta figura de sonho é uma representação, a aproximação mais perfeita do real de um homem não-pai? Não seria uma contradição? Sim, é uma contradição. Há aí, manifesta mente, uma falha, e o que fazer senão utilizá-la? No lugar da falha, da descontinuidade de um substituto de raciocínio, no lugar da contradição podem vir se alojar algumas observações e questões para concluir. Um discurso sem contradições só pode dar conta de acontecimentos do passado, leitura homogênia après-cottp. A referência a uma teoria pode, assim, apagar o que apa­ rece, no presente, como descontinuidade ou contradição, instaurando, antecipadamente, o après-coup da leitura. É muito difícil escapar disso. Ora, toda leitura assim prati­ cada em relação a um sujeito desejante toma o aconteci­ mento presente caduco. O "novo" só pode tomar lugar numa ruptura de sistema. Tratando-se de uma sequência de enunciados, isto aparece como sendo uma contradição, ou elemento não integrável em relação ao sistema de refe­ rências utilizado. Será impertinente colocar a questão da modernidade em psicanálise? E, com base nisso, e não inversamente, o da modernidade no amor? O acasalamento e a reprodu­ ção (último valor seguro a estar se quebrando) são consi­ derados, em função de seu fundamento biológico e fisio-

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Ah} As befos tições!

lógico, como imutáveis, o, apesar das técnicas modernas, pode-se, sem düvida, continuar, ainda por um certo tem­ po, a considerá-los como tal. As expressões do amor, da atração e das repulsas dos corpos, não sendo redutíveis unicamente ao corpo anatômico, a forma, da carta de amor se coloca, esteja ela, ou não, explícitamente presen­ te. A libido e a maneira de negociar as pulsões estão numa relação direta com a carta de amor, assim como a maneira singular pela qual cada um se refere a ela, cons­ ciente ou inconscientemente. A libido e a maneira de negociar as pulsões estão igualmente engajadas, se não mais, na produção das obras de arte. Ora, toda forma de arte atravessa crises, rupturas, modificações e a procura do novo. A partir do século XIX vem se colocar, por acréscimo, a questão da modernidade nas relações com o novo. A libido e as ne­ gociações "civilizadas'" das pulsões nos atos de amor do corpo e das palavras, assim como nos sonhos, será que implicam formas e conteúdos estáveis? Da mesma forma, será que os conceitos, as palavras da psicanálise que tor­ nam pensáveis e comunicáveis para os psicanalistas as expressões fixas ou móveis da libido, têm de ter a imobili­ dade da anatomia? A parte de não-libido - pulsão de morte - imbricada nessas expressões, será que, por ser "muda", tem de ser imutável? Quanto ao conceito, será que, em última instância, tem de ser utilizado como um esperma congelado? Imobi­ lidade devido à presença da morte? Os sintomas das his­ téricas mudaram notoriamente desde as apresentações de Charcot e do próprio Freud. Será que já nos perguntamos seriamente a razão desta modificação? O corpo-sintomasonho da histérica será ainda apanágio das mulheres? E, será que ainda é, e para sempre será, o porta-voz de um escândalo inintegrável para cada época da Coisa sexual em estado de modificação? Paro por aqui, porque esbarro naquilo que já sei: repetição do pathos.

Se

non è vero, è ben trovato* A o s passa-m uros

Será possível hoje, em 1984, escrever como pensa­ mos , como "fazemos" a psicanálise, sem passar pelo ine­ vitável desfile de citações-referências que marcam os pon­ tos de ancoragem de nossas crenças teóricas? O que é certo, é que já não é mais possível escrever "ingenuamente", ainda que estejamos à margem, ainda que libertos de todo credo institucional ou mesmo teórico. Que nos refiramos, explicitamente ou não, a uma escola de pensamento ou que escrevamos aparentemente sem referência a texto algum, na leitura, uma distribuição se faz apesar do autor. Ninguém pode pretender, hoje em dia, estar sozinho na origem do próprio discurso, por mais original ou patético que se pretenda. Agua de mais rolou sob a ponte... palavras demais foram escritas para ter deixado quem quer que seja, caso entre para a roda dos praticantes da psicanálise, virgem das feridas ou cicatrizes provocadas por essas palavras, repetitivamente ouvidas ou lidas. Cicatrizes em nossas * Texto originalmente publicado na revista Pnfio, 1984.

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A h ! A s b ela s tições!

memórias, que cada um de nós, a seu modo, reabre... emblematiza ou cuida. No entanto, bem que desconfiamos que a citação explícita ou camuflada, presente sem que o escritor o saiba e, apesar disso, o sinal que em relação a ela até minha certeza vacila, e indica o branco de meu próprio pensa­ mento. É sobre esse branco, essa incerteza que tomo "no­ tória" pela citação, que se apóia paradoxalmente meu enunciado. Senão, como fazer - tomar meus sentimentos como critérios de verdade? Apenas meus sentimentos? '"Meu pensamento?" Quem pode pensar sozinho? Logo um Mestre, sua palavra, para sustentar esse branco do meu pensamento, esse ponto no qual se origina uma re­ flexão, uma demonstração, ou até uma simples descrição. Como se assim o erro fosse evitado... o fato de ter sido pensado e enunciado por um outro. Como se Freud tives­ se dito a verdade... ou Lacan... ou Winnicott ou Bion... ou qualquer outro situado nesse lugar. Desatino de nossos discursos... desatino inevitável, salvo ao se supor ingênuo ou isento de qualquer marca; desatino inevitável na falta de um lugar no qual situar a coincidência entre a verdade, o real e uma origem. E, no entanto, continuamos fazendo como se esse lugar existisse: crença inevitável para evitar... a pura escri­ ta. Ou nos consideramos ingênuos ou fazemos como se, em ultima instância, esse lugar devesse existir, cujos escritosmestre representariam, então, as provas descontínuas. Em ambos os casos, crença na obra. O obsceno da crença pode, no entanto, se temperar pela confissão da sedução: se non è vero è ben trovato. O que me sobra, dessa forma, senão atormentar inces­ santemente esses fragmentos que me indicam os lugares nos quais meu pensamento se apóia, demonstrar, seg­ mentar, condensar, metaforizar esses discursos que, ainda que não me façam acreditar piamente neles, me seduzem

S e n on è v ero, è ben tr o v a to

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o suficiente para me servir de origem comum com os ou­ tros? Em última instância, escrever é uma tentativa de provar que não somos louco. Como ser crível sem apelar para a crença? É o que explica também os efeitos frequente­ mente impressionantes para nós das interpretações do próprio Freud. É que a resposta que ele dava ao sujeito era a verdadeira palavra, na qual ele pró­ prio se fundamentava, e que, para unir dois sujei­ tos em sua verdade, a palavra exige ser uma verda­ deira palavra tanto para um como para o outro. Eis por que o analista deve aspirar à tal mes­ tria de sua palavra para que seja idêntica a seu ser...1

Digo: isto é bonito, e: se non è vero è ben trovato. Que mais poderia dizer? Que eu acredito que é verdade. Além disso, nenhuma demonstração que se sustente, nenhum real que sirva de prova da verdade. Assim se escreve a psicanálise... E Lacan continua: Já que não precisará pronunciar muitas [pala­ vras] no tratamento, diria mesmo tão poucas que quase se poderia acreditar que não precisasse de nenhuma, para ouvir, cada vez com a ajuda de Deus, apenas, isto é do próprio sujeito, que eh terá levado um tratamento a cabo} o sujeito lhe dizer as próprias palavras nas quais reconhece a lei de seu ser. Isto continua sendo bonito... mas minha crença vaci­ la. Neste ponto preciso, eis que o outro perde seu poder de sedução... não acredito nele, pois tenho à minha dispo-12 1. Jacques Lacan, "Variantes de la cure-type", in p. 359.

2. Sublinhado pelo autor.

écrits, Paris, Seuil,

St

Ah! As belas liçocs!

sição lembranças, algumas experiencias, pensamentos próprios que me desatam da influência desse discurso, e vem se opor ao desenrolar de uma lógica que reconheço ser aquela - subjetiva - de um outro que não eu. Não mais. Saída (Exit). Estarei, por isso, sozinha? Ingênua? Louca? Narcísica? Eis, pelo menos, a cicatriz reconhecida: delimitada sua parte de emblema... E, agora, os cuidados: a pós-cura. Eu esbarro contra isso: "ele terá levado um tratamen­ to a cabo... "A que cabo o analista terá, pois, levado... qual tratamento^ Psicanalítico, evidentemente. Mas isto supõe, sugere, intima a idéia de que existe um final, e apenas um, a uma análise, apenas uma. Um final, com um analis­ ta se concebe, com um pensamento isso se sustenta; e, assim mesmo, nem sempre, já que este final pode ter sido reativado por conflitos antigos, sintomas ou algo inédito. Basta, às vezes, um acontecimento, um acaso advindo ul­ teriormente para que outros conflitos, ou outros sintomas, ou mesmo esse algo inédito permanecido em suspenso, para que outros significantes não postos em circulação apareçam, e tudo deve ser retomado; de outra maneira. De alguns anos para cá, cada vez mais venho aten­ dendo pessoas que já passaram por uma análise, e segun­ do seus próprios termos, tendo-a "terminado". Algumas vezes, tratava-se de pessoas que tiveram duas, três ou mesmo quatro análises. Em certos aspectos, isso pode evocar os problemas que colocam as ditas análises "intermináveis". Estas exis­ tem desde os primórdios da psicanálise. "O Homem dos lobos" é seu representante mais célebre, mas não o único. É difícil estabelecer categorias estanques. Farei tudo para ev itá-las. Que digam os "a n á lise s in te rm in á v e is ", errâncias, ou demandas sempre renovadas, algo persiste: esse algo é a esperança sempre renovada de que a psica-

S e n on ò v e r o , è b en iro v a to

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nálise dará conta de aliviar essas pessoas de seus sofri­ mentos. Quando esse sofrimento é agudo, elas poderão fazer um desvio pelas outras terapias ou pela medicina, quando ele é simplesmente existencial, e, apesar de tudo, banal, é à psicanálise, por meio de seus representantes, os psicanalistas, que virão repetitivamente colocar uma questão. Uma única categoria de analisandos está autorizada a esse recurso sem fim: os próprios psicanalistas. Freud foi o primeiro a julgar conveniente que todo analista vol­ tasse periodicamente ao divã. Isto para o benefício de seu trabalho: nenhum sofrimento particular é exigido. Somente a didática seria interminável... Supõe-se que a terapêutica seja terminável. Lacan propunha uma outra idéia. Reto­ marei isso. De um certo ponto de vista, isto pode parecer o próprio bom-senso. Na realidade, as coisas estão longe de ser tão claras. Na maioria das vezes, os psicanalistas, quando retomam runa análise, o fazem pelas mesmas ra­ zões que qualquer outro "paciente": algo não vai bem... ou algo deixou de ir bem. Que a palavra seja ou não pro­ nunciada, em última instância, é uma terapia que eles pedem. Deixo de lado os casos nos quais uma primeira análi­ se foi interrompida porque "nada mudava", como se cos­ tuma dizer. De imediato, o outro analista é suscetível de ser "melhor"... A idéia de uma análise "terminada" não estivera em jogo. Gostaria, no entanto, de evocar mais particularmente as demandas de uma "outra análise", que vem depois de uma análise "terminada". Isso quer dizer que, num tem­ po, uma cura aconteceu que desembocou num "final de análise", selando, dessa maneira, a crença do analisando, e, com freqüência, também do analista, num final. Salvo alguns raros casos nos quais o analista anterior foi uma franca nulidade - quando não um perfeito

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A h ! A*» b elas liç fc s!

caloteiro, o que deve poder ser verbalizado na maioria das vezes eu podia ouvir os efeitos dc uma análise que acontecera. Em outros termos, a relação desse tipo de ana­ lisando com a análise não c nova, nem uma pura raciona­ lização, e não é absolutamente comparável a alguém que estaria começando uma primeira análise. De modo um tanto quanto conciso: de que tratamen­ to depende essa parte? Parte da vida, mas não completa­ mente, encontro com um outro que não fez história, mas que não deixa de fazer histórias... lembrança encobridora, às vezes até acontecim ento traum ático, de qual sobrecodificação da palavra, repetição de um artefato im­ possível de ser negligenciado, discurso furado por um passado de laboratório cujo destinatário está longe de ser evidente... après-coup, não apenas de uma análise, mas também de uma crença, o que significa ter acreditado... acabar?

Não há necessidade de se cair na armadilha e se con­ siderar sistematicamente melhor analista que o anterior... A tentação é grande, muito freqüentemente... Um raciocínio pode, às vezes, ajudar a combater a própria megalomania: "Não, não sou melhor que o anteri­ or... a demanda de uma 'outra' análise é um tempo lógico de um processo analítico particular..." "O que se faz co­ migo é um elo, seja ele o último, o antepenúltimo, ou o enésimo de uma cadeia que traça um percurso em forma de errância..." Estados de uma psicanálise... Estados da psicanálise... Isso é concebível, isso pode ser um jeito à condição que nenhum analista da cadeia venha bloquear o proces­ so por uma crença em um "final" único, que deve finali­ zar uma análise única, a sua, a boa, a única verdadeira. Isto induz uma idealização da análise, idealização de um tratamento que nesses casos assume valor de tratamentopadrão, deixando como resto inanalisável o que hão

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adveio no interior de seus limites. Limites do analista e limites que impõe o modelo teórico que serviu de referên­ cia ao analista: partilha, por vezes, duvidosa, outras eviden­ te. O analisando, tendo assim "terminado" um tratamentopadrão, pode, no melhor dos casos, pedir não uma outra análise, mas literalmente outra coisa. Comumente, aquilo que parece ser uma forma degradada e desvalorizada da psicanálise, dito, modestamente, uma psicoterapia. "Que a pureza analítica vá para o inferno: trate-me, pois, como você quiser, a linha teórica, decididamente, não é proble­ ma meu..." Ao cabo da análise pura... a psicoterapia! Existem, dessa forma, psicanalistas que, há algum tempo, vêm assumindo uma estranha especialidade: psicoterapeutas de analistas... Psicoterapeutas de tratamentospadrão. O que os sustenta nesta posição? Algumas liber­ dades e uma ética... Teorias, experiências, passado pesso­ al, presença, escuta, palavras, estados psíquicos, neuroses confundidas, vasto repertório não enumerável; selfservice? Nada de impressionante que o self faça retomo. Fim dos menus bem ordenados, desfiles para um Sujeito ter de advir, entrada, prato principal, salada, segundo prato, sobremesa. Self-service: uma desordem. Por que a psicanálise deveria ser poupada da barbárie ambiente? Desordem de mal-estares dos quais umEu é a criança... Dos tempos do esplendor do ensino de Lacan e da fase azul da Escola Freudiana de Paris, nós nos contáva­ mos a edificante história de jovens analistas ou analísandos que não agüentavam mais a besteira de seus analistas do Instituto, ou de outros grupos analíticos, que vinhamem massa - procurar entre os lacanianos da EFP a análise, a verdadeira: lá onde a palavra plena era ouvida e não reduzida pela interpretação da transferência... ném pela rigidez de uma formação para a mediocridade... Um pou­ co mais tarde - mas disso não se falava tão abertamente

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AU! i4s belas lições!

no recinto da Hscola ficava-se sabendo que alguns, cada vez mais numerosos, iam procurar fora do cenáculo dos lacanianos uma análise, uma verdadeira, analistas não doutrinados por um discurso único, os quais teriam con­ seguido manter uma capacidade de invenção própria sem se submeter à teoria infalível de um mestre vivo. Depois chegaram analistas emigrados de diferentes partes do mundo, principalmente da América Latina, que se quei­ xavam das interpretações inabaláveis, de tão sólidas, dos kleinianos, ou das certezas inventariadas dos analistas da AIP. E, enquanto aqui a migração dos lacanianos à procu­ ra de "outras" análises havia começado, eles falavam da baforada de ar puro que para eles representava sua outra análise com um lacaniano, enfim. Assim girava a roda. E ainda gira, mas os lugares trazem, quem sabe, endereços menos legíveis. Alguns, ao me ler, farão sem dúvida um muchocho: eles tiveram um analista, de verdade, desde o começo... Isto existe felizmente, assim como, também, acontece que uma análise termine com um analista, sem desencadear essa procura da "outra" análise. Entretanto, o número dos que conheceram a errância é tão grande que a questão merece, a meu ver, ser colocada. De que necessidade de­ corre, então, essa procura de uma "outra" análise? Várias respostas se apresentam, parciais, mas todas aceitáveis. Em primeiro lugar, a evidência perante um "fracasso": procura de um analista que acertará, onde o anterior fracassou. Raramente, contudo, isso é tão sim­ ples. Em outros casos, nos quais a análise anterior fora "terminada", significa refazer um percurso, um trajeto se­ gundo critérios diferentes. Isto tampouco é simples. En­ fim, podemos, igualmente, glosar sobre a não-finitude da transferência em relação à psicanálise, que não é sobreponível à finitude da transferência a "um" analista. Todas essas questões são debatidas há muito tempo.

Se non c vero, c ben tro v a to

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Há uma outra maneira de se colocar o problema, que consiste em se perguntar se o estado atual da psicanálise não teria algo a ver com esta erráncia. A disparidade teórica da psicanálise é mais ou me­ nos evidente em função da espessura das muralhas insti­ tucionais que protegem, mais ou menos hermeticamente, as ovelhas analisandas dos demais discursos sobre a análise proferidos externamente a ela. Sempre existiram analisandos passa-muros. Em certos momentos da história, esses passa-muros se tomam visíveis pela quantidade. É o que acontece emnossos dias... e certos muros desmoronaram. Não podemos mais continuar ignorando a disparida­ de teórica e continuar falando do discurso da psicanálise como se fosse Um, ou em todo caso como Um homogê­ neo. Não é, desta maneira, mais possível manter a crença de que existe uma psicanálise. A psicanálise é um discurso teórico, uma prática e uma terapêutica. Esses três aspectos não mantêm relações tão homogêneas e necessárias em suas articulações como gostaríamos, às vezes, de acreditar.3As diferentes práticas e teorizações não passam de representantes manifestos das diferenças mudas, das descontinuídades do pensa­ mento e do discurso, tendo um mesmo nome: a psicanáli­ se; tendo um mesmo objeto: o inconsciente. Podemos até afirmar que aquilo que Lacan designara como os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, isto é, o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão, estão presentes, diferentemente dosados, em todas as correntes da psica­ nálise. Certas correntes, escolas, teorias, práticas - chame-se essas diferenças como quiser -, todas essas disparidades 3. Lacan punha em relação quatro discursos, o universitário, o da histérica, do mestre e da psicanálise: falar do discurso da psicanálise a torna una.

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Ah! As belas lições!

constituem, todas juntas, os estados da psicanálise. Esta­ dos da psicanálise, como se diz em física estados da matéria. A í a psicanálise se coloca como forro do próprio psi­ quismo humano. Dito de outro modo: cada estado da psica­ nálise dá conta, apenas parcialmente, do funcionamento psíquico, assim como só é eficaz sobre aspectos seletivos deste. As demandas de "outra" análise devem, então, ser ouvidas como sendo a procura de uma passagem de um estado da psicanálise para um outro, nem melhor nem pior, necessariamente, mas em sentido lato, complemen­ tar (o que não exclui a questão, nem do erro nem do progresso nem do envelhecimento de uma teoria). Passagens de uma posição subjetiva a uma outra, de um lugar imaginário a outro, de um estado psíquico a outro... procura da parte faltante do símbolo... procura obstinada de reencontros do acaso. Para dizer as coisas de modo mais simples: Se nos colocamos do ponto de vista da descontinuidade, por que não poderíamos ser vítimas, ao longo de uma vida, de várias manifestações psíquicas de sofrimento, não ligadas entre elas por uma lógica, cuja sucessão a psicanálise teria de prever? Como podemos, de um pon­ nenhum to de vista somático, ter várias laço aparente entre elas.4 Se nos colocamos do ponto de vista de uma análise trata­ mento-padrão, que prevê de certa forma um trajeto a ser percorrido, queiramos ou não, aparece como modelo subjacente o processo do crescimento biológico, o qual, 4. Atribuo ao leitor um limiar de malevolência tão baixo quanto possível: a de não me acusar rapidamente demais de uma redução a simples terapia... nem de fazer uma separação entre corpo e espírito... Sofrimento psíquico compreende, evidentemente, também as manifes­ tações do corpo... significantes incluídos...

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por sua vez, é previsível, e que percorremos apenas urna vez. Ora, todo tratamento que tem por referencia teórica um criterio de final de análise tem, explícita ou implici­ tamente, por exigencia um "processo" de percurso; tornando-se, dessa forma, indiferente chamar o final desse percurso de "objeto total" ou de "castração simbólica"... Sejam quais forem as precauções então tomadas, uma palavra, e apenas uma, designa a porta de saída. Na "outra análise", essas palavras de saída, esses fi­ nais, num determinado momento imaginados como defi­ nitivos, farão retorno sob diversas formas, eles terão de ser perdidos, no melhor dos casos como se perde uma ilusão, no pior provocando um verdadeiro trabalho de destruição. Posições persecutórias, culpabilidade que en­ gendra não um erro, mas literalmente uma falta. E será preciso inventar outras palavras para falar de si ao outro, para obter outros finais. A própria lembrança dessas pala­ vras pode ser terrível ao ser evocada quando ela pode assumir, por certo tempo, valor de verdade inconteste. A melancolização desse passado nem sempre é fácil de ser superada sem que se reproduza na enésima análise a mesma idealização para se defender da prescrição da primeira. Para terminar, e como exemplo, o caso tão rebatido do "passe", pelo qual alguns analisandos se tomavam ...aqueles que podem testemunhar os proble­ mas cruciais nos pontos iríuos de onde estão para a análise, especialmente na medida em que eles pró­ prios estão a trabalho ou pelos menos a caminho de resolvê-los.5 Se non è vero, è ben trovato... mas... em que termos falar a respeito?1* 5. Jacques Lacan; "Proposição de 9 de outubro 1967", em Sificet, 1 e Anuário da EFP, 1977.

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Ah! As helas lições!

E se, onde esbarra um final de análise (seu final?), ela interrogasse a teoria psicanalítica num "ponto vivo", no qual nenhum dos termos ou dos conceitos estabeleci­ dos pelo discurso de Lacan permitem dar conta? E caso isso se desse num outro "estado da psicanálise"? E, ainda, se "acabar" uma análise fosse justamente não mais estar no enundável daquilo que pode sustentar o pensamento de seu próprio analista? Não se trata, então, de ornar, por pequenos acréscimos pessoais, uma grande obra, seja qual for seu autor. Bem, e se a grande obra não tivesse estritamente nada a dizer sobre o que pode ser o essencial de uma questão? Lá, quem sabe poderíamos falar de "passe"... "Que o medo me passe, oh céus, de não ser mais ouvido pelo meu analista..." Pois não se deve imagi­ nar que seja fácil ouvir em língua ordinária. O inconscien­ te não fala necessariamente como você e eu. O "ponto vivo" deve aí ser ouvido no negativo: o ponto no qual nada mais está vivo para aquele que escuta, no qual mais nada, vindo do analisando, põe em circulação o que o faz pensar, no qual nada há que o faça lembrar das habituais coisinhas que têm por nome psicanálise. Chegado a esse ponto, acontece freqüentemente que o analisando ainda não tenha dito nada de essencial que possa fazer bascular em sua dinâmica própria - e, não sob a influência de um cartaz de saída - seu sofrimento neu­ rótico, para falar apenas nele, em "infelicidade ordinária". ...Desligamento de línguas que fizeram emblema...

U m a

palavra que falta

Um belo dia me faltou uma palavra para designar alguém. Tratava-se da mãe de Freud. Durante anos ele temera morrer antes dela e ela se tomasse... o que mes­ mo? Aqui a palavra falta. Que ela se tomasse viúva, órfã dele? Não, isso não tem como ser dito, a não ser com um grave deslocamento de sentido. Falta, pois, uma palavra .para designar a mãe ou o pai que perdeu um filho, que ' está de luto por seu filho. Naquele dia meus pensamentos tomaram outro rumo, *1 e obliterei com outros conteúdos esse buraco da língua. Mais tarde, em outros momentos, essa palavra me faltou, novamente, para designar alguém na ausência de um nome. Fiz, então, uma pequena pesquisa, procurei em outras línguas e nada encontrei. Não posso garantir que seja assim em todas as línguas, seguramente devem exis­ tir aquelas em que isso possa ser dito, minha pesquisa nem é exaustiva nem se pretende científica, mas essa au-

* Texto originalmente publicado na revista Palio, 6,1986. 1. Cf. Radmila Zygouris, "Sobreviver à criança e à guerra", em Les psychanalystes vous parlent de /a mort, Paris, Tchan, 1979. Também publicado nesta coletânea-

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Ah! ,4s Mas liçtVa!

sência existo, senão em todas as línguas, pelo menos num número considerável delas. Criança/Adulto: será que se trata aí de uma verda­ deira oposição, assim como, digamos, Homem/Mulher? As oposições da língua não são as mesmas do psiquismo ou da psicanálise, que, por sua vez, não são superponíveis. Em psicanálise, alguns falam da "Criança" no "Adulto", esta é uma linguagem ou, mais específicamente, um falar "regional"; outros falam em "Criança imagi­ nária", "lugar simbólico", "mãe real"; que é um outro falar "regional". Mas todas essas línguas, todos esses dialetos, são pensados com base na linguagem "natu­ ral", nas palavras da língua, que, por sua vez, ignora essa palavra pela qual procuro e não acho. Perguntei-me, então, se aquilo que chamamos fan­ tasma, fantasma em relação à criança, como, por exemplo, "Uma criança é espancada" (Freud), "Mata-se uma crian­ ça" (Ledaire), ou uma conceitualização, como em "A criançamorte" (Hassoun), não viria se situar justamente no lugar no qual a linguagem desfalece em nomear? E a própria linguagem sujeita a evoluções, evolução lenta, em relações complexas, nem unívocas nem lineares com a realidade social, será que não se situaria em uma relação em espelho deformante com os fantasmas que preenchem suas lacu­ nas? Os fantasmas teriam, dessa forma, duração histórica, um começo e um fim; sua existência, via linguagem e no buraco desta, se enraizaria necessariamente em uma reali­ dade histórica datável. Claude Hagège2 chama a atenção para a grande esta­ bilidade das línguas e para a lentidão de suas modifica­ ções, insistindo na importância delas.

2. 275-276.

Claude Hagège, L'homme de parole, Paris, Fayard, 1985, pp.

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Como se, mediante a estabilidade que assegu­ ram a seus usuários, as línguas se tivessem moldado de tal maneira, sob o efeito do inconsciente coletivo, que pudessem servir de garantia contra os riscos de uma aventura. A aventura do ser vivo. E para enfren­ tar essa aventura, as línguas humanas, como viáticos, ou herança tutelar da espécie.

Mais adiante, no entanto, acrescenta: Não só as línguas mudam, como constituem os únicos sistemas de signos cujas mudanças são certas, verificadas e certificadas.

Eu poderia parar por aqui, deixando cada um formu­ lar suas próprias conclusões ou hipóteses sobre essas questões. Mas trata-se de escrever. Isso implica um desen­ volvimento, quando não uma demonstração, o que é me pedir demais. É preciso escrever um artigo. E preciso es­ crever um artigo tomando por base uma idéia que tive. Articulemos, pois. Em psicanálise se opõem de bom grado "fantasma" e "realidade". Isto sempre me pareceu tompasse de mágica. E, no entanto, é fundamental poder narrar a realidade. Os fatos. Uma passagem possível entre realidade e fantasma seria a assombração. A assombração vem de algo que efeti­ vamente aconteceu na realidade, mas assumiu autonomia psíquica, tomando-se modalidade de espera de uma reali­ dade futura. E a representação de um medo, dá forma à angústia. Para os pais, a morte de uma criança é da ordem da assombração. Ponte entre o passado e a espera de uma catástrofe futura. Retomo do passado. Intricação do sin­ gular e do coletivo. A palavra que falta é representada pelo fantasma que diz respeito à criança que sofreu um dano. Na realidade, existem, hoje em dia, muitas crianças que morrem de fome no mundo. Morrem em proporções simplesmente assustadoras. Nos países de climas tempe­ rados, tal fato decorre de desgraças mais regionais. Nes-

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Ah! As belas lições!

tes, a mortalidade infantil diminuiu de modo impressionan­ te. Entretanto, a morte de uma criança continua assom­ brando os espíritos em seu sono ou em seus fantasmas. E isso é tanto mais marcante quanto o fato da criança, nessas mesmas sociedades temperadas, tender a se transformar em objeto raro. É o que acontece nas socieda­ des onde simultaneamente reina o discurso da psicanáli­ se. Os psicanalistas se sentem, freqüentemente, incomo­ dados quando se trata de realidade. No entanto, mesmo em nossos climas temperados, em nossas sociedades onde reina a psicanálise, ainda que não morram nas mesmas proporções que em outros lugares, ou antigamente, as crianças são constantemente agredidas por seus próprios pais. Começa a surgir toda uma literatura sobre a criança maltratada. E eu acrescentaria: a criança "rara" e maltra­ tada. Os psicanalistas continuam falando em termos de fantasmas. Os psicanalistas, no entanto, trabalham em ins­ tituições onde têm de tomar partido quanto à realidade da criança "rara", maltratada por seus pais. O que fazem em tais situações? Como pensam sua função? Como escre­ vem a história presente? Nossos atos fazem história, histó­ ria da qual a língua se toma memória, por meio das palavras, das metáforas, dos ditos. A língua ainda não gravou essa palavra que falta: a mãe, o pai, que perdeu um filho. Isso tem uma história no passado, mas aquela que se vai escrever e da qual somos os protagonistas, com quais palavras escrevê-la? No que diz respeito a essa palavra que falta, suas raízes se situam num passado não muito longínquo. A primeira explicação que se impõe é, evidentemente, de ordem histórica. A mortalidade infantil era tamanha numa época ainda recente, e continua assumindo enor­ mes proporções numa grande quantidade de países, que a perda de uma criança não podia se comparar com a perda de um cônjuge, ou com a dos pais. Uma criança não está

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sozinha, não é única, nunca ocupa o lugar de única, mes­ mo para aqueles que têm apenas uma: é sempre possível ter outro filho. Uma criança não ocupa um lugar simbólico na sociedade. É algo da ordem da "criança", em que uma criança equivaleria a outra criança. Até que venha ocupar um lugar na sociedade, um lugar simbólico como esposo, esposa, pai ou mãe. A tristeza causada pela perda de uma criança, ainda que essa morte seja freqüente e faça parte do destino comum, diz respeito a um registro privado e não nomeia os pais em luto por ela. É uma perda que não nomeia aquele que a sofre, não o faz mudar de estatuto, nem na linguagem nem na socie­ dade. Para falar da morte de uma criança, é preciso, a cada vez, referir-se à própria morte, repetir a perda. A língua contorna a falta. Se o aspecto maciço da morte de crianças pequenas explica, em parte, a ausência de palavra para designar as pessoas atingidas por esse luto (assim como também não existem palavras para designar os enlutados da fratria), não me parece absurdo considerar essa razão insuficiente. Na falta de novas palavras, sempre se criam novas ex­ pressões para nomear e designar novas situações, novas entidades, coisas novas. Afinal, houve spoutiniks, bebês de proveta, barrigas de aluguel, doadores de esperma... Mas continua não havendo órfãos de filho. Mesmo que quantitativamente as coisas tenham se transformado, po­ demos, de fato, falar em coisas novas? O infans contínua não falando. A morte do filho para os pais não deixou traços na língua. A língua, memória de nossos atos. Lacan dizia que a Criança não possuía o gozo de seu ato. Os enunciados, que supostamente tratam da estrutu­ ra do fantasma, formulam-se no modelo de "bate-se em uma criança" ou "mata-se uma criança". Mas essas estru­ turas fantasmáticas sempre decorrem de uma realidade.

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Alt! As belas lições!

Uma criança pequena, o infans, é incapaz de matar, bater, violentar, ensinar, educar, governar. Pode apenas morrer, colocando em cheque qualquer ato do qual o adulto é sempre o sujeito. Seria descabido pensar que a morte da criança, caso viesse a se inscrever simbolicamente por uma palavra de luto nomeando os pais, deixaria de evocar na linguagem, e a partir daí em todas as memórias, a impotência do homem diante dessa coisa, sua coisa? Não faz parte da ordem natural das coisas a criança morrer antes daquele e daquela de quem ganhou a vida e que terão de sobreviver a ela. Quando a ordem da nature­ za se inverte, não há palavras. Entretanto, a ordem natu­ ral parece hoje em dia bastante subvertida... Mas não nisso. Sem dúvida alguma, não é bom para a sobrevivência que a língua veicule a memória disso, ainda que ela seja a memória de todos os possíveis, de todas as monstruosi­ dades das quais os humanos são capazes. Para os pais um impossível jaz no fundo da morte da criança. Em Untenvegs zur Sprache (Encaminhamento em direção à palavra), Martin Heidegger comenta o poema "A pala­ vra", de Stefan Georg, que termina com o seguinte verso: "Que nenhuma coisa seja, onde a palavra falhou". Diz Heidegger: "Nenhuma coisa existe, onde a palavra falta". Coisa3 é, aqui, entendida no sentido tradicio­ nal e global, pelo qual se entende alguma coisa em geral, isto é, qualquer coisa, à condição que seja de uma maneira ou de outra. Nesse sentido, até Deus é uma coisa. Só onde se acha a palavra para a coi­ sa, essa coisa é uma coisa ... Nenhuma coisa é, onde a palavra, isto é, o nome falta.4

3. Coisa: das Ding, em alemão. 4. Martin Heidegger, Acheminement vers la parole (Coll. Tel), p. 148.

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O que pensar, pois, desse nome que falta para desig­ nar o pai cm a mãe que perdeu um filho? As palavTas órfão, viúvo, viúva designam alguém em posição passiva diante daquilo que lhe aconteceu. A perda de um ser é marcada pelo ganho de um nome, que fala de sua relação ao falecido. Parricídio, matricídio, infanticídio, fratricídio indicam a morte, cujo agente é aquele que carrega o nome, e a criança pode ser sujeito de um ato, pelo menos do ponto de vista da sintaxe. Na realidade, nós todos sa­ bemos que aqui se trata de crianças "grandes". A ausên­ cia de um nome equivalente ao de órfão, do lado paren­ tal, não permite a este pai ou a mãe ocupar uma posição passiva de vivo perante a morte de seu filho. Penso, justa­ mente, não existir posição passiva de vivo ante tal aconte­ cimento. É essa a "coisa" que falta. Toda morte de criança é assassinato de criança, só isso pode ser dito. E toda morte de criança é, para os pais, invalidação do ato, desamparo, impotência e desordem do mundo. Podem, caso tenham as palavras, e essas não faltam, queixar-se, gritar, acusar, esquecer, fazer outros filhos, mas nenhuma palavra signi­ ficando seu luto e o direito a ele virá inocentá-los, seja perante si mesmos, seja perante os demais. Blanchot, na Écriture du désastre, diz: "Se você ouvir a 'época', se dará conta de que ela lhe diz baixinho para não falar em seu nome, mas sim para se calar em seu nome". É sobre esse fundo de silêncio que a época nos im­ põe, que proponho ouvir aquilo que os psicanalistas enunciaram como fantasma a respeito da criança. Antes de tudo: a eterna oposição realidade / fantasma é um disfarce para não ouvir nem ver aquilo que essa oposição esconde; o entredois, o entre fantasma e realida­ de: a assombração. Isso nos remete a um eterno presente: esse famoso tempo atemporal do inconsciente. E se o inconsciente,

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AU! A$ belas lições*

como a linguagem, não passasse de uma forma particu­ lar da memória? "Rate-se em uma criança", "Mata-se uma criança", não são nada mais que presença, a reali­ zação atual, mas silenciosa, daquilo que se faz, daquilo que foi feito. O fantasma se construiria, então, com base em acontecimentos reais de uma época, acontecimentos calados coletivamente e que cada sujeito realiza por sua conta, mais ou menos intensamente, por sua própria as­ sombração. A barra que separaria realidade e fantasma poderia não ser nada além do silêncio, ou o silêncio de uma histó­ ria... ou a aparente desconexão entre privado e social. O que pode ser dito de outra maneira: o fantasma "ori­ ginário" nunca pode ser a criação de um sujeito particu­ lar, pois toma forma, representação iconográfica em acontecimentos presentes ou passados. Isto me leva a afirmar que não existe memória una, e sim plural em cada um de nós: coleção de inscrições entremeadas de história pessoal, do dito ou não-dito da genealogia, o todo sustentado pela própria história, que forneceria à d istân cia, e de m odo fragm entado, telepático ou mediático (portanto, consciente e inconsciente), representações-alvo ao "afeto" não ligado por um aconteci­ mento imediato. Para ilustrar meu propósito, usarei algumas cita­ ções. Para começar, Philippe Ariès:6 Em primeiro lugar gostaria de chamar a atenção para um fenômeno muito importante e que co­ meça a ser mais bem conhecido: a persistência até o final do século XVII do infanticídio tolerado. Não se tratava de uma prática admitida como a exposição em

5- Philippe Ariès, L’enfant et la vie fam iliale sous VAncien Régime, Paris, Seuil (Coll. Points).

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Roma. O infanticídio era um crime severamente cas­ tigado. Era, no entanto, praticado em segredo, talvez com bastante freqüencia, disfarçado sob a forma de acidentes: as crianças morriam naturalmente sufocadas na cama de seus pais onde dormiam. Nada se fazia para mantê-las com vida ou salvá-las.

E mais adiante, Ariès especifica: O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer sujeitos tão pouco dotados de um ser suficiente, não era confessado, mas também não era considerado ver­ gonhoso. Fazia parte das coisas moralmente neutras condenadas pela ética da Igreja e do Estado, mas pra­ ticadas em segredo, numa semiconsciência, no limiar da vontade, do esquecimento e da falta de jeito. (Grifo meu.)

Segundo Ariès, o sentimento da infância surge so­ mente no século XVII, com o reconhecimento da especifi­ cidade da criança. "Uma criança é espancada", "Mata-se uma criança", "A criança-morte" poderiam ter o mesmo estatuto no psiquismo antes desse período? Continuo com um outro exemplo, uma citação extra­ ída do livro Martin VarchangeP. Trata-se de um estudo de documentos relatando a estranha história de um lavra­ dor, Thomas Ignace Martin, que em 15 de janeiro de 1816 teve uma visão do arcanjo, o qual lhe deu uma mensagem a ser transmitida ao rei Luis XVIII, missão essa levada a cabo pelo lavrador. Não me deterei sobre esse livro, gos­ taria, apenas, de citar uma breve passagem: comentário de Jacques Nassif sobre como e por que o sucesso desse obscuro lavrador que obteve permissão para ver o Rei e lhe transmitir a mensagem a respeito da "Criança":6

6. Philippe Boutry e Jacques Nassif, Conmissance de Vincortsàent, Paris, Gallimard.

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Alt! As bchis lições!

Aries nos ensinou, na ordem do discurso se trata de uma invenção recente (a criança); não me parece, entretanto, excessivo assinalar que essa des­ coberta deve ter sido bastante acelerada pela pre­ sença, na prisão do Templo, de uma "criança-már­ tir"; que eu saiba, a primeira sobre cujo destino urna sociedade inteira pôde se enternecer. Interessa-me menos o enigma histórico do corpo desaparecido ou substituido de Luis XVII que o fato de u m a criança ter sid o e s p a n c a d a " ,’ em vida, e que lágrimas tenham sido vertidas sobre o sofrimento gratuitamente infli­ gido a um inocente.789 Talvez não seja indiferente constatar que foi por meio de um Anjo que Martin foi solicitado a ir ver o Rei, se nos lembrarmos que o anjo foi, comumente, a represen­ tação da criança, e esta, por sua vez, da alma. Cito mais urna vez Ariés: E curioso constatar que a alma deixará de ser representada por uma criança no século XVII quando a criança passará a ser representada por ela mesma, e os retratos de crianças vivas e mortas

se tornarão mais freqüentes.s Eis pois aqui o entredois, o entre realidade e fantas­ ma: a história secreta representada por uma "coisa", no sentido entendido por Heidegger. O Anjo, assim como Deus, é uma coisa, visto que a palavra existe para desig­ nar tal coisa. Mas falta ainda o nome para designar a outra coisa, o adulto em falta, em luto por sua criança morta. É, assim, que na literatura analítica recente tem apa­ recido nomes de coisas, dessas coisas tão pouco realistas 7. Cf-, igualmente, o comentário de José Tran Van, B oletim , 2, As­ sociação dos Ateliers de Psicanálise, comentário sobre uma mesa-redon­ da realizada a respeito desse livro. 8. Ver nota 7. 9. Philippe Aries, op. d t.

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quanto o fantasma e o anjo. Remeto, aqui, às obras de Maria Torok e Nicolas Abraham,101e ao mais recente tra­ balho de Didier Dumas, O anjo e o fantasma,u do qual cito uma breve passagem: Se, no inconsciente individual é a Eros que in­ cumbe o verbo em sua função de ligação, no incons­ ciente genealógico é o Fantasma que, pelo silêncio, realiza senão ligação, pelo menos uma colocação em comum dos inconscientes. De maneira inversa, ao inconsciente individual, em que tanatos efetua sem dizer uma palavra um trabalho de desligamento, no inconsciente genealógico é o Anjo que dissocia os inconscientes dando-se por tarefa fazer ressurgir o Verbo.12

Estranho fenômeno, de fato, esse aparecimento, em nossos dias, dessas metáforas arcaicas, numa comunidade que não se considera particularmente crente... numa épo­ ca na qual nascem bebês de proveta, na qual desponta uma possibilidade de pensar - até então inédita - em crian­ ças quanto muito nascidas de mãe e pai... na qual o bioló­ gico parece se dissociar, viver sua vida... Época recémsaída dos assassinatos industrializados.13

Como fazer para pensar isso conjuntamente? Nessa mesma época, a criança em nossas sociedades industriali­ zadas '"avançadas" adquiriu uma importância extraordi­ nária, uma vez que as pessoas se reproduzem pouco. 10. Maria Torok e Nicolas Abraham, L'ecoree et le noyeait, Paris, Aubier-Flammarion, 1978. (Coll. La Philosophie Actuelle) 11. Didier Dumas, L'auge et h fantôme, introduction à la clinique de Îintpensé généalogique, Paris, Minuit, 1985, p. 36. 12. Cf., igualmente, L'ange de Guy Lardean e Christan ]ambcl, Gras­ set, 1976. (Coll. Figures.) 13. Dw/ogiics avec l'ange: Les quatre messagers. Aubier Montaigne, 1976. Documento recolhido por Gitta MeUaz e apresentado por Claude Mettra,

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Ah! As belas lições!

Isso não impede que essa mesma criança rara seja mal­ tratada, espancada, morta em carne e osso e que isso se torne uma preocupação explícita. Organizam-se coló­ quios, criam-se instituições, surgem novas expressões, como, por exemplo, "famílias letais", "crianças maltra­ tadas" (o que é diferente da criança espancada), e até se isola clínicamente a "síndrome da criança maltratada" (H. Kempa, 1962). Em 1976, foi fundada a Sociedade Internacional para a prevenção dos maus-tratos e negli­ gências para com as crianças (ISPCAN), que organiza um congresso a cada dois anos. Existe, na França, desde 1979, uma "Associação Francesa de Informação e Pes­ quisa sobre a Infância Maltratada" (AFIREM). Recenseiase, e as pessoas se emocionam. Na França, chegou-se a um número anual de aproximadamente 40 000 crianças maltratadas; as estatísticas oficiais fornecem cerca de 50 infanticídios anuais, e trata-se, certamente, de uma subavaliação, visto que aí se tem, apenas, os casos oficial­ mente declarados.14 Evoca-se, sempre, o fator social mais evidente: quanto mais "deserdada" a família, maior a freqüência de maus-tratos exercidos sobre as crianças. Mas, ao mes­ mo tempo, constata-se que as crianças mais maltratadas são as prematuras. Aí mudamos bruscamente de regis­ tro e é a vez da realidade psíquica. A ferida narcísica vem aí explicar aquilo que a miséria, por si só, não expli­ ca. Algo excede a simples realidade social, algo excede o simples fantasma. Esse resto que leva a matar o infans: apesar da época, apesar das novas palavras, apesar do estatuto concedido à criança, apesar da raridade da coi­ sa, apesar do escândalo que representa hoje em dia a morte da criança. 14. P. Strauss, "Les enfants maltraités", in L'enfant dans sa famille.

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Esse resto que inibe os psicanalistas que trabalham em instituições, onde testemunham sevícias reais, a in­ tervir e separar efetivamente a criança de seus pais mortí­ feros. É comum os analistas, na instituição, esperarem que a criança fale, peça, diga. Ela que é antes de tudo silêncio, ainda que aparentemente fale, sem contar aque­ las que efetivamente não falam. Um novo enclausuramento se instaurou:15 o enclausuramento da criança em sua família e, mais particularmente, na díade mãe-crian­ ça. O infans excede o pensável da Criança. O silêncio do vivente ultrapassa qualquer palavra, qualquer pensa­ mento. Se pensarmos unicamente em termos de vivente, onde reside, então, o limite entre o animal e o humano? O inanimado? Quem ousará dizer o gozo louco, fazer calar a voz humana sem palavras, matar a vida desnu­ da? Preencher com a morte desnuda a zona muda da­ quele ou daquela que mata, bate no ser que não fala, não lhe fala, não lhe diz seu próprio silêncio. E isso tanto mais quanto os "deserdados" são freqüentemente, tam­ bém, deserdados pelas palavras... para poderem se pen­ sar a si próprios. O infans desfalece em sua tarefa: a de nos dizer o silêncio de nossa infância enterrada. Ele nos remete, pelas fendas abertas no tempo, ao horror de uma animalidade, ao silêncio da pura morte que viria finalizar a pura vida. Que crédito conceder às palavras sobre a criança que não fala, quando a criança nunca virá legitimar por seu próprio dizer o que dela se pensa? É fato, o pequeno humano vem ao mundo na lingua­ gem, na língua do Outro; mas ninguém tem inscrito em sua memória sua própria palavra, pois esta estava ausen­ te. É uma falta incrível. Como assimilar esses estados tão 15. Após o da escola.

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Ah! A? belas lições!

dissemelhantes quanto a memória do que se ouve e a memória do que se diz? Há, apesar de tudo, uma dife­ rença entre falar e não saber falar. E por demais sim­ plista dizer que, de qualquer modo, a linguagem existe e que desde o momento do nascimento, somos seres de fala: o delírio pós-parto, delírio em ter de ser o intérprete de gritos sem palavras, deixa em pânico certas mães. Exigência assustadora esta de humanizar, da noite para o dia, por meio de um saber sobre o grito, o desamparo, um corpo em estado de dependência absoluta. Isso pode ser excessivo. Excede o possível de algumas mães. Não basta querer ser o intérprete do humano para sê-lo. A mãe do recém-nascido deve interpretar; quando não consegue, então a vontade de fazer calar... Diante disso, muitas vezes me pergunto sobre o sig­ nificado dessas "revivescências" da primeira infância, que acontecem com alguns analistas e nunca com outros. Isto sempre acontece com aqueles que elaboraram uma teoria sobre a primeira infância, que emprestam suas pa­ lavras, que podem emprestar suas palavras a isso. Com base em que o fazem? Baseando-se em quais convicções, em qual memória? Em quais certezas, já que o sujeito dessa palavra nunca virá legitimá-la? Não há um corpus do dizer do infans. Há um corpus do dizer, atribuído à Criança. Trata-se sempre de um sa­ ber suposto. E de provas decorrentes da observação (como em psicologia animal). Disjunção radical no sistema de signos. A não ser que se aceitem dois párias da teoria psicanalítica: a empatia e a telepatia. A não ser que se conceda um estatuto a um modo particular que possamos ter para nos comunicarmos com nós mesmos: para "se pensar" para "se sentir", é preciso ter tido anteriormente acesso ao próprio duplo com o qual teríamos uma rela­ ção empática. É o suficiente para se fazer expulsar de qualquer instituição psicanalítica bem pensante... E se a

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emparia e a telepatia fossem uma capacidade inerente e desconhecida do psiquismo humano? E se a memória que é a língua tivesse milhares de anos de atraso em relação a ela? Assim como a linguagem tinha milhares de anos de atraso em relação ao surgimento de instrumentos huma­ nos? A linguagem é uma memória lenta da espécie humana. Não podemos fundar todo nosso saber somente nessa base. E, no entanto, não há sentimento que não seja incisão do simbólico (da linguagem) sobre o pulsional do afeto. A relação com o infans contém o que ultrapassa o sentimento; este, por sua vez, é sempre um valor, portanto, linguagem. A relação com a criança é, em qualquer sociedade, pensada com base em valores (simbólicos), mas os atos, os impulsos que matam o infans, que o aprisionam nos impensados, nos párias do social, dependem, quem sabe, daquilo que para todo humano causa mais medo, isto é, sua relação indizível consigo mesmo. Esse indizível é o animal humano, o puro vivente. Onde a sociedade humana pode ser destruída pelo nãohumano. Existe uma fronteira, para todo grupo humano, entre o humano e o não-humano. É nessa fronteira que se situa o infans. Macaco, gato, bebê, boneca, ancestral, anjo, fantasma, bebê sábio... EU: "ele se parece com minha mãe, meu pai"; o estrangeiro: "será preciso adotá-lo um dia..." "Por que será que não quer dormir, por que será que não quer comer? Por que grita? Por vezes alguém sabe. Sabe tudo. Assombro respeitoso. Como? Será que se lembra? Que sabe? Já sabia falar? Suas palavras? Já dava nome às coisas? É o anjo? O fantasma? É a criança morta? Ele conhece o nome da coisa... ELE SABE. Aí surge minha desconfiança do saber usurpado. Aí posso apenas citar, calada, porém desrespeitosa: não, nós não comemos no mesmo prato; não se tratava da mesma comida. É um saber incerto: Querem me fazer acreditar em minha in­ fância... em nome da sua infância presumida?

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Ah! As belas lições!

Zona de silêncio. Silêncio próprio a cada um. Silên­ cio de época, também. Sobreposto. Silêncio daquele que não dá nome às coisas. Daquele que carrega todos os no­ mes de uma época. Hoje em dia se constata que, de todos os lutos, o luto pelo filho é o mais difícil, o mais demorado. Seria essa uma novidade? Sem sombra de dúvida, na opinião dos historiadores. Sem dizer que o filho não é redutível à criança pequena, mas que é próprio dos humanos per­ manecer a criança de seus pais para todo o sempre. O que não acontece com os animais. A morte real da crian­ ça vem redobrar o fantasma da criança morta: de "mata-se uma criança". Só há morte de criança enquan­ to assassinato. Recobrimento do silêncio de si pelo silên­ cio do Outro. Uma não lembrança sobre a qual se sobre­ põe uma falta de palavra. O que é, então, esse luto? Zona para sempre muda, que não cessa de tragar qual­ quer palavra que diga respeito à criança, contornando a palavra que falta, o nome que falha. Como sobreviver a esse silêncio da língua? O infans morto é, desse modo, o buraco negro da representação das palavras. Represen­ tação da coisa sem palavras. O enunciador de "a criança-morte" é um enunciador sem nome. Já que a criança morta se chama nin­ guém. Esse enunciador (ou énonceurl) da criança morta não é nada mais que o traço daquilo que Blanchot chamaria, talvez, de "o desespero nômade". É um enunciador sem­ pre em estado de virtualidade. Fenda aberta em direção ao inominável do processo primário - "criança maravi­ lhosa" - da qual fala Leclaire, forma, expressão ainda demasiadamente bela para essa carne de amor e de ódio, "a-sentimentos": a criança sufocada sem querer, por esquecimento ou semiconsciência. Representação li­ mite de si próprio, como coisa sem nome: o que é o limite

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extremo do humano. A mais tênue diferença com o ani­ mal (ou, mais simplesmente, com o simples vivente) se negocia no entredois, no qual nasce o nome, cuja ausên­ cia provoca a loucura. Sentir-se animal é o que mais perturba o humano. Será que não falamos em sofrimen­ to animal, "essa mãe que uivava como uma besta"... justamente quando o nome falha em se ligar aos outros e impossibilita o pensamento de se encaminhar na direção de outro pensamento, com a ilusória serenidade que confere então, apesar da dor, o bom uso da linguagem comum? Para conferir sentido ao animal uivando sem palavras, o infans despossuído de si mesmo, só restaria o recurso ao extraordinário, ao humano lá de cima, anjo ou fantasma, para se opor à besta. Estranhamente, corremos o risco do inumano a cada nascimento, a cada vez se repete o desmoronamen­ to possível da cerca que nos separa do outro mundo, o da natureza. A criança, que não pode nem dizer nem dar nome às coisas, solicita no adulto toda a animalidade, toda a natureza, ignorada, denegada, re­ calcada e, por isso mesmo, desnaturada. Não é o infans que seria mais animal, mas ele o solicita por sua incapa­ cidade em dar nomes, a qual se toma patente quando a Criança morre. O novo endausuramento mãe-criança, apoiado pelas instituições, sempre bem pensantes, apoiado às vezes pela ideologia psicanalítica, não é feito para apaziguar a assom­ bração da morte da criança, nem para fazer evoluir, em direção ao dizível de um sentimento, o pulsional em esta­ do bruto, que reina qual mestre soberano nessa díade quando ela se torna infernal. Quanto muito, teremos pe­ rante a criança sem palavra, ou criança falada (nem que seja falada pela mais recente das teorias psicanalíticas...), portanto silenciosa, uma mãe muda, ou ela própria falada por esse mesmo transistor. Mãe moderna, que não tem

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Ah! As betas lições!

mais a possibilidade de abandonar sua criança na moita, de sufocá-la por acaso, sem muita vergonha; obrigada a dar o seio e a parir sem dor e na alegria, de ver seu sorriso precoce; em suma, de ser feliz, completamente, em estado de não-separação absoluta, onde quanto muito existe um pai, o que evidentemente ó insuficiente para evitar a clau­ sura; esta, evidentemente, é negada por toda uma socie­ dade, que faz de conta que o pai pode bastar, quando não se pode mais jogar fora a criança, quando, na ver­ dade, o pai está aí, como ela, porque queria um filho, ele próprio uma criança curiosa em saber como é uma cri­ ança, o in fan s que ele foi. Então, quando a necessidade de fazer uivar a besta se impõe, a loucura volta e é a mesma, seja qual for a época, a família, o sta tu s social. O estado da língua é o mesmo, o indizível permaneceu indizível, o silêncio do in fan s imutável. A assombração, discurso sem palavras, grande gesto incompreendido, provoca o arrombamento da realidade, mostrando aquilo que chamamos, imprudentemente, de fantasma. E é o mundo ao avesso. Gozo selvagem e crimi­ noso de fazer calar aquilo que não fala, não confessa ne­ nhum segredo e pede perpetuamente para ser decifrado. Coisa muda, uivante, cofre-forte de nossas ignorâncias não confessadas. Assombração de seu próprio silêncio, do esquecimento de si, do mistério da própria carne. As­ sombração da primeira morte, cuja realização pelo corporeal-procriado não dá nome a ninguém. Uma única palavra faltante, onde a coisa existe, e o humano tende ao desmoronamento.

O

espreitador do amanhecer*

Existe toda urna arte para não esperar, para não sen­ tir a falta; um savoir fa ire, às vezes desenvolvido desde muito cedo, do contentamento, um modo de ser normal próximo da perversão: "um isso me basta" nas fronteiras das descargas, susceptível de evitar a espera e de encon­ trar rapidamente num objeto suficientemente ruim equi­ valente ao objeto suficientemente bom para tapar os orifi­ cios da espreita. Como diz Guido Ceronetti: "Um necrófilo moderado pode perfeitamente se contentar com a cama de uma mulher muito frígida"*1. Não sofrer, nun­ ca, com a espera pode ser o ideal de uma sabedoria con­ quistada, a paciencia finalmente encontrada, mas, tam­ bém,. uma necrofilia satisfeita. E totalmente outra a postura do insone. Ele é um especialista da espera e seu objeto não lhe pode ser dado por ninguém. E o seu único criador e, adormecido, ausen­ te de si próprio, ele se toma a obra. O objeto, no presente, não existe para o próprio sujeito. "Eu dormi": o objeto da espera chegou, surpreendeu-o, mas ele não pode gozar dele no presente. He não pode dizer "eu durmo", salvo * Texto originalmente publicado em N.R.P, 24, "L'Attente", 1986. 1. Guido Ceronetti, Le silence du corps, Albin Michel, 1984, p. 37.

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Ah! A$ belas lições

para se queixar de seu estado de vigília. Apenas alguns sonhos acarretam essa certeza, quando nos dizemos no interior do próprio sonho: "Não passa de um sonho." Isto é fato para qualquer um que durma, mas somente o inso­ ne constitui o sono em objeto; de desejo, de falta e, no après-coup, de satisfação ou que, insatisfação. É preciso acrescentar, a todo objeto, a obra específica do tempo de espera, uma vez que esta acaba por criar uma vacância suplementar, um vazio de objeto, mas da própria espera, para além da falta, para além do objeto, quando não a cria integralmente. A espera do insone constitui o sono como objeto, naquele que tem sono fácil, permanece fora da história. Ausente ao encontro, fazendose esperar, ele passa a fazer parte dos incertos objetos do amor. "Na transferência a gente sempre espera", escreve Barthes,2 e o insone entra numa relação de dependência e transferência consigo próprio como outro. Esperar o sono pode ser uma metáfora para todas as esperas nas quais se espera o fim da própria espera, este estado de si. No insone ela é aguda, consciente, recorrente e paradoxal, uma vez que esperar é espreitar, e espreitar é estar em vigília forçada, angustiada, quando os sentidos estão dirigidos para o objeto esperado que, aqui, só pode vir do próprio espreitador. Vã injunção a de dizer ao inso­ ne que não espere, uma vez que só a espera faz dele um insone e não a ausência de sono. A espera se apresenta como neutra de afeto, a pró­ pria palavra não conota em si mesma nenhum sofrimento ou felicidade particulares e, no entanto, basta que dure o suficiente, para se transformar numa infelicidade comple­ ta. O objeto esvanece em detrimento da dor. Mãe, amante,

2. 1977, p. 50.

Roland Barthes, Fragments d'un discours amoureux, Paris, Seuil,

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trem, carta, sono, qualquer acontecimento interno ou ex­ terno vem, então, ocupar aquele mesmo lugar, no qual supostamente deve retomar o primeiro objeto de espera que gerou um trauma e deixou sua marca indelével, terri­ tório magnetizado que atrai qualquer coisa que se aproxi­ ma de seu recinto e desperta a esperança do retomo. A espera não passa de uma modalidade da angústia em contato com os horrores do tempo e da perda. Já que se diz que a angustia pura é "sem objeto", este é, no entanto, sua causa, e ela só cessa com o reconhecimento de seu retomo, quando de incerto este se toma certo. A satisfação e a insatisfação se distribuem apenas no après-coup, e ainda que o objeto "retomado" nunca seja o objeto esperado, a avaliação da distância - na maioria das vezes inconsciente - é o que determina a tonalidade afeti­ va dos reencontros. Uma mulher, para me significar a violênda de seu amor por seu novo amante, me dizia: "Ele me faz falta até quando está presente". Existem histórias de amor que co­ meçam onde outras terminam. A "realidade" do objeto presente, reencontrado, quando esperado, depende em grande parte da capacidade do sujeito em transferir sobre ele a alucinação do objeto ausente. Mas, para o sono, qual seria a realidade do objeto presente? Pois sua presença só é assegurada no après-coup. Segundo a lógica, o insone só deveria esperar o acordar. Sabemos, no entanto, que o objeto de espera, quando faz demasiadamente sofrer, suscita o ódio e fantasmas de destruição. Mas como assassinar aquilo que jaz em mim como possível? Como destruir minha obra não advin­ da, esse sono que tarda e que não posso alucinar por pré-figuração alguma? Fico carente de um assassinato imaginário, de gestos não realizados. Fico com um desejo de matar não satisfeito. Não tendo como me

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Alt! As belas lições

representar essa coisa que espero e que não vem, esse sono sem imagem, e que, pela espera que provoca, usurpa um lugar de objelo, o desejo de assassinato e destruição desse outro, cuja ausência me faz sofrer, se volta contra mim: eu quero morrer.

Esta pode ser a descida ao inferno daquele que espe­ ra de si próprio o objeto imaterial de sua satisfação. A presença é constantemente confundida com a imagem de alguém. Contudo, quando esta vem a faltar por um esta­ do de si, o outro não é representável. O sono, ou qualquer outra modificação de estado psíquico que se constitui e nomeia pela espera, deixa de ser simplesmente uma função ou afeto, podendo vir no lugar de um outro não representado. Em seu lugar, com o correr do tempo, surge o ama­ nhecer. Este pelo menos é certo, chega todos os dias. E, então, que cessa a espera e com ela a angústia. Permane­ cem o cansaço e a insatisfação, o que é outra coisa. Por que, então, quando o sono se furta, em seu lugar, não esperar o amanhecer? Substituir o objeto incerto pelo cer­ to. A sucessão dos dias e das noites, não é justamente aquilo que o universo nos dá como mais garantido? Al­ guns o fazem, nós os chamamos de notívagos. O amanhe­ cer vem, de qualquer modo, encerrar a noite, ainda que passada em claro. Abandonar suas quimeras em proveito do amanhecer, esse real subtraído aos charmes angustian­ tes do acaso. Eis o perfil improvável mas pensável de uma conduta puramente racional que ignoraria a mãe e suas inquietudes, suas idas e vindas imprevisíveis. Pois é preciso que a criança durma, é esse o desejo da mãe e a condição de sua tranqüilidade. Mas, então, será possível dizer quem espera quem? Não me deterei sobre as espe­ ras do recém-nascido e o que acontece com ele quando a ausência excede suas capacidades (Winnicott torna as re­ petições inúteis). Apenas essa breve lembrança das pri-

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meiras esperas, quando o alimento era ela, e o sono tam­ bém. O fora e o dentro confundidos, ela e ele em osmose e telepatía, esse sono que não vem: seria a mãe hipnose? Salvo, desde o inicio, ter tido de se contentar com pouco, e simplesmente conhecer um mundo cinzento; ou, então, se agarrar logo à própria noite, ou ao amanhecer, enquan­ to outros seguros e estáveis não faltarão ao encontro. "Isto me basta": a miséria aceita ou o universo agora e já. Necrófilo moderado ou poeta precoce. Contudo, para o insone nenhuma outra saída que não essa paixão negativa: esperar o sono e se fazer espe­ rar num mesmo movimento, no desespero, na impossibi­ lidade de ter podido se separar a tempo. A separação é prévia ao retorno, principalmente quando a coisa espera­ da vem por si só. O sono é sempre um retomo, no mesmo lugar, como 0 amanhecer, esse horizonte do tempo quan­ do não se dorme. Pois o insone não espera a qualquer hora. Tem suas horas; nem pensar em se deixar surpreen­ der, isto já seria o fim da paixão. E quando isso acontece por puro cansaço, esses momentos de sono não devem ser contabilizados. Ele quer convocar o sono, o quer às suas ordens, ele deve retomar ao lugar esperado. Essa espera apaixonada projeta o sujeito num universo vazio. Os de­ vaneios que pode fazer, esperando o sono, não são um equi­ valente satisfatório da representação do objeto da espera. Eis por que não basta falar apenas da problemática do tempo na espera, ainda que ela seja central. Só rara­ mente se apreende o tempo em estado puro, pois é no espaço que o objeto se toma signo e dá, primeiro, co nsis­ tência ao corpo. Sua espera e a ausência que reacende podem atingir o Eu até o despedaçamento. Eis por que o insone ou qualquer outra pessoa que a espera tortura po ­ dem, às vezes, ser consolados por práticas do corpo, cari­ nhos de preferência, e, na ausência desses, num mundo asseptizado de solidão: o relaxamento. Chamar a atenção

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Ah! As bdas üçõcs

sobre seu corpo para desprendê-lo da espreita de um ou­ tro. Donde o surgimento do odio e das pulsões destruido­ ras na solidão, contra as quais o sujeito luta, polarizando seus sentidos sobre os sinais de fora. Por mais imaterial, evanescente que seja o objeto esco­ lhido, se assume seu estatuto pelo simples fato da espera, permanece marcado pela história que marcou as primeiras manifestações do outro, ao mesmo tempo como diferen­ te de si e como condição de seu próprio sentimento de existência. Já que atrás de toda espera, seja do sono, como também do despertar, há a manifestação de um real, que do horizonte vazio faz imagem, dando vida a nosso olhar, quando não do silêncio da solidão faz baru­ lho, portanto sinal de alguém. Alguma coisa deve ocupar o espaço para nos dar corpo. Os sintomas suscitados por privações sensoriais estão aí para nos lembrar a que ponto o vazio é intolerável para o humano. O paradoxo da espera do sono reside justamente em que é preciso cessar de esperar que o mundo crie um signo para fazê-lo chegar. Deixar desocupado o lugar de objeto, ou do outro, da luz ou do barulho, para que nós mesmos possamos ocupá-lo. Portanto, a necessidade de ter atrás de si o grosso das separações. Para tanto, não seria necessário se amar pelo menos um pouco? O suficiente para que a solidão necessária ao sono não se transforme em sentimento de abandono e espreita de sinais que não vêm. Muitos nunca conseguem dormir sozinhos. Isto é banal. Mas o que pensar daqueles que pretendendo amar de amor temo seus companheiros de cama, permanecem ao seu lado sem dormir? O espaço nessa espera permanece vazio, sem ser preenchido pela alucinação que prefiguraria uma vinda qualquer.3

3. Os soníferos, para além de suas virtudes "químicas", também são substitutos de um objeto concreto que permite prefigurar o sono.

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Não é de se estranhar, assim, que nos estados de­ pressivos a insônia seja freqüente: o sentimento de aban­ dono está sempre presente, seja ele atual ou passado, e o amor de si, bem infeliz. E o conselho, inútil, que se dá aos insones, de não se irritar com a espera, é bem severo, pois de fato, está se dizendo: "Não espere por ninguém". ** *4

"Durante muito tempo me deitei cedo". Insone geni­ al, Proust descreve minuciosamente suas manias para adormecer, seus despertares, e o drama de ir para a cama quando criança. Mas, principalmente, ao longo de toda a obra, ele descreve suas esperas; a de sua mãe, de sua avó, de Albertina. Todas essas esperas são sustentadas por uma outra, mais fundamental, no entanto mais discreta, a do momento de escrever: ele espera a inspiração, para ele, a bem nomeada. Pois se Proust espera os seres amados apaixonadamente, se espera o sono que não chega, ele também espera sem sabê-lo, mas sabendo-o no après-coup, esse momento particular no qual o passado finalmente reconhecido deixa de invadir o presente, e onde finalmen­ te pode nascer o projeto, sua "verdadeira vida". O hori­ zonte não precisa mais ser povoado por figuras familiares para lutar contra a angústia, o futuro se instaura pela pos­ sibilidade de um ato. Poderíamos ler, proposição, quem sabe, herética, na opinião de alguns, toda uma parte da obra como um lon­ go sonho do qual o autor emerge bruscamente no último volume, por acaso, apesar da espera. Não é a inspiração que lhe vem, a que esperava perante a página em branco, mas um momento de sua vida, quando tropeça num pa­ ralelepípedo irregular e que ele reconhece um momento de seu passado. Depois, retornam como as lembranças de

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um sonho à medida que acordamos, outros momentos, desembaraçados das escórias do imaginário, com um agu­ do sentimento de sua verdade. Ele terá vivido, na espera daquilo que encontrará por acaso, esse momento do des­ pertar para si quando saberá, enfim, de que matéria será feita sua obra. "A verdadeira vida, a vida enfim descoberta e escla­ recida, a única vida realmente vivida, é a literatura..."4, que, no entanto, só encontra seu momento lógico graças àquilo que se constituiu na espera de ser reconhecido. Falando daqueles que não obtiveram essa graça, diz: "Mas eles não a vêem, porque não tentam esclarecê-la. E assim seu passado continua atolado por inúmeros clichés que permanecem inúteis, porque a inteligência não os de­ senvolveu"56. Alguém poderia descrever melhor esses momentos fecundos da análise (que, entretanto, podem ser encontra­ dos também sem ela) nos quais uma reviviscência faz fra­ cassar o discurso e suas redundâncias, nos quais a desco­ berta cessa a compulsão em contar sempre a mesma história, que já se conhece de cor, mas que deixa o corpo inerte e o espírito adormecido. Eis o encontro e o final da espera: Não fora procurar os dois paralelepípedos desiguais do pátio onde tropeçara. Mas justamente o modo fortuito, inevitável, pelo qual a sensação fora reencontrada, controlava a verdade do passa­ do que ela ressuscitava, das imagens que ela desenca­ deava, uma vez que sentimos seu esforço em se elevar em direção à luz, que nós sentimos a alegria da reali­ dade reencontrada.*

4. Marcel Proust, Le temps retrouvé, "Folio", p. 257, 5. Ibidem.

6. Idem, ibidem, p. 237.

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Essa elevação em direção à luz é o acordar, a presen­ ça finalmente encontrada, o final da espera. Estar acorda­ do não é apenas a ausência de sono. É um estado psíquico particular. Alguns passam a vida inteira sonolentos sem sabê-lo. Não é necessário se referir ao estado hipnótico da histérica, mas ajuda a compreender. A espera levada ao extremo, apesar da vigilância que ela requer diante dos sinais que se espreita, é uma maneira de estar ausente do mundo e de si próprio no mundo, o Eu, como um todo, submetido ao charme, hipnotizado pelo ausente. Aquele que espera não está aí. Estar acordado é, pois, uma precondição tanto para o sono quanto para a criação, assim como para qualquer exercício de poder sobre si próprio. E preciso estar acordado, e da melhor maneira possível, para poder dizer: "eu dormi", e que isto esteja realmente no passado, ainda que dure apenas um dia; caso contrá­ rio, continua-se esperando. Só se dorme bem se o despertar é de qualidade. Isto pode valer como metáfora, mas é também verdadeiro no sentido mais pragmático da observação. Trabalhos especialmente centrados sobre o estudo da insônia chamam a atenção para a importância da qualida­ de do despertar no tratamento desta. Os insones crônicos - escreve Lucile Garma sentem que seu sono é perturbado pelo despertar e que seu despertar é perturbado pela sonolência. Eles se queixam da ausência de um contraste bem marcado entre os dois estados. Foi isso que me le­ vou a tratar a articulação entre sono e despertar de modo a reforçar a qualidade de um e de outro.7

O reconhecimento do objeto, indispensável para que cesse a espera, só pode acontecer caso este tenha 7. Cf. Lucile Garma, "Sleep wakefulness. Contrast and therapy of insomnia", in Sleep, Stuttgart, Fisher Verlag, 1984, pp. 105-106.

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uma forma suficientemente boa, ou seja, se a distância entre os dois estados psíquicos for claramente perceptí­ vel. ****

A análise, que para muitos é também uma longa espera,8 tem por objeto vago ou preciso, mas sempre desejável - ainda que não se pronuncie a palavra a cura. Quando não é de sintomas precisos, de angústias agudas ou inibições graves, em todo caso a espera que o bem- estar venha do outro. Mas ninguém, a não ser o próprio analisando, pode reconhecer sua "cura". O ana­

lista o traz até esse limite no qual ele pode nomear. O diagnóstico feito pelo médico, seja qual for seu efeito reconfortante, é nesse caso ineficaz para lhe permitir "a alegria do real reencontrado". Cessar de esperar, desta espera fundamental que jaz no coração de todo sofri­ mento neurótico, depende desses momentos em que o tempo do outro não domina mais como mestre absoluto e em que o espaço e seus objetos atuais fazem ofício de despertar. Como diz Proust mais uma vez: ... no presente onde a efetiva perturbação de meus sentidos pelo barulho, contato com a roupa etc., havia acrescentado aos sonhos da imaginação aquilo de que habitualmente são desprovidos, a idéia de existência, e graças a esse subterfúgio, havia permitido a meu ser obter, isolar, imobilizar peio tempo de um clarão - aquilo que não capta ja­ mais: um pouco de tempo em estado puro.9 (Grifos meus.)

8. Cf. Radmila Zygouris, "La rechute" L'imparfait, 5.

9. Marcel Proust, op. cil., p. 229.

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Esse tempo finalmente não alienado pela espera, ao qual se chega pelos sentidos, é isto o se assenhorar de um espaço próprio. O analista, ainda que durante um certo tempo acompanhe o paciente em sua sonolência, para entrar num sonho que não é o seu, é antes de mais nada um "despertador". "Aqui e agora". Já que é possível tropeçar mil vezes contra paralelepípedos desiguais, se não estivermos pre­ sentes, nenhum real estará presente ao encontro. O estra­ nho nesse negocio é que, por vezes, foi preciso esperar por muito tempo para tropeçar, por acaso, sobre o objeto rude que separa a vida em dois: o antes e o depois; e depois gozar do próprio momento, deiscência da história, sua majestade o presente. "Aqui e agora", parece fácil. Mas como é difícil estar aí ao mesmo tempo que o outro. Quantas esquivas em direção ao passado: "para melhor te compreender minha criança". Ou para melhor fugir e, espreitador impeniten­ te, ainda esperar por histórias e histórias, quando os para­ lelepípedos já estão aí.

.¡Tata Morgana* Existem vários tipos de palavras. Palavras da língua: ilusão, amor, esperança, divagação, desilusão, jogo, aca­ so... Palavras para falar: algumas, mais que outras, fazem sonhar. Um dia, alguém, um psicanalista, agarra uma, uma palavra, e escreve em cima, em tomo, embaixo e, dessa maneira, a escora num discurso, a reduz a um saber suposto, a mutila de seus outros atrativos, a disfarça em conceito, a aprisiona. Membro da Associação para a Liberdade das Pala­ vras da Língua (LPL),1me dirijo silenciosamente em dire­ ção à palavra "ilusão"*2. 1 Tomara que eu consiga libertá-la das garras de Freud. Sentir-me-ei mais leve e sairei por aí falando, falan­ do, e por que não, de psicanálise? Ela própria, ele próprio mantidos prisioneiros por todos nós, carcereiros de luxo, carcereiros das palavras. Ilusão vem encadeada a: neurose obsessiva, religião, ciência, civilização, Kultur, Freud, Viena, Futuro. Várias • Texto originalmente publicado na revista Espaces, dedicada ao tema (Tune illusion, des illusions. 1. Em francés LML se diz elle aime elle, ou seja, ela ama ela. (N. da T.) 2. Cf. *.

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Ah! As belas lições!

estratégias são possíveis. Alguns partem sisteinaticamente de Freud ou dc Viena. Pode-se, também, proceder de outra maneira. Contudo, uma palavra precisa de outras palavras para ser pensada. E do jogo da sintaxe. Uma primeira saída já aconteceu: Winnicott deu a essa palavra outros companheiros: a área do jogo, a ilusão como algo necessário à criação, ilusão como espaço de jogo que toma possível a sessão de psicanálise. À ilusão-tempo, ele acrescentou a ilusão-espaço.3 Ilusão-tempo: futuro, negação da perda, miragem dos reencontros do objeto. Ilusão-espaço: alucinação em derrapagem controlada, distância suportável para que a espera não seja pura angústia e, sim, criação de presen­ ças lúdicas, companheiros provisórios e imaginários da ausente, espaço psíquico no qual não se sofre exagerada­ mente de solidão. A perda não é para ser alucinada de modo patológico, apenas um jogo, apenas por um tempo suficientemente longo para que saibamos que somos nós mesmos, por momentos, distintos do outro etc. Apenas se sentir sonhar, alucinar docemente a criatura que se é no presente. Ilusão providencial. Brecha aberta no espa­ ço entre o outro e si mesmo. Brecha aberta no corpo compacto do Outro, no discurso contínuo. Isto pode ser apenas um silêncio, que não é de morte, um branco que sustenta um propósito pessoal.

3. Faço, aqui, uma distinção entre: Ilusão-espaço - alucinação de si, podendo chegar à visão do duplo. Espaço por se referir sempre, em primeiro lugar, ao corpo e à imagem. Ilusão tempo - se refere à perda do objeto, à espera, à angústia. O objeto-ilusão marca o horizonte mas serve apenas para indicar um aspecto temporal da ilusão. Donde "O futuro de uma ilusão": A teoria da psicanálise ocupa o mesmo lugar que a religião em relação à ilusão-espaço. Ela está no lugar em que se situa a espera (cf. Espaces, 9-10, "Indiscrétion de 1'obsolète"), independentemente de suas qualidades de "realidade".

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Branca página para escrever. Escrever-me. Escreverte. Entre os dois: a página. Pode acontecer que a página em branco permaneça em branco, que nela seja impossí­ vel traçar palavras. Página que faz sofrer. E nem é preci­ so ser escritor pua tanto. Todos nós, ao longo da vida, já estivemos perante essa página vazia. Impossível pas­ sar do devaneio íntimo ao pensamento comunicável, compreensível pelo outro. É o que se chama de senti­ mento de solidão. O espaço transicional é esvanecente. Falta a ilusão. Passar do singular ao plural possível, necessita da ilusão. Escrever, me escrever, te escrever, nos escrever­ mos. Acreditar que a mensagem chegará a seu destinatá­ rio, é a ilusão da passagem do me escrever ao te escrever por intermédio do nos escrevermos. É preciso que a men­ sagem possa completar o circuito. É preciso que eu tam­ bém compreenda o que te digo. É aí que se juntam ilusãotempo e ilusão-espaço. À ilusão-espaço proposta por Winnicott, podemos acrescentar uma ilusão-tempo diferente daquela de que fala Freud, não redutível ao erro, à recusa em se pagar o preço da civilização, à negação da castração, à crença reli­ giosa nociva ao espírito científico. À qual os pessimistas modernos acrescentarão a ciência como ilusão, onde Freud situava a religião: responsável por amanhãs sem falta, sempre prometedora do mesmo objeto perdido enfim re­ encontrado: intacto, não marcado pela perda. Há uma ou­ tra ilusão-tempo: tão necessária quanto a ilusão-espaço de Winnicott. Para podermos falar nela é antes preciso dizer que não se trata de um objeto. Não é um objeto ou um conteúdo colocado como perspectiva de um futuro. Tratase sim da maneira de furar o próprio tempo. Ora, só furamos o tempo produzindo uma "ilusão", para marcar um ponto no futuro, uma representação, uma imagem, uma utopia, um projeto. É esta representa-

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Ah! As belas lições!

ção que chamamos, segundo o momento, de "ilusão". Mas aqui a ilusão designa o objeto. Pode ser discutível, verdadeiro ou falso, ilusão ou verdade momentânea. Ele não passa de uma utilidade do ponto de vista psíquico. O que é necessário, indispensável, não é esta ou aquela crença, esta ou aquela posição intelectual diante de um objeto projetado no futuro, é, sim, a capacidade de po­ der projetar o futuro. É poder acreditar no próprio tem­ po que é a necessária ilusão-tempo, sem a qual a criança não pode se desenvolver e sem a qual não é possível se pensar a si próprio. Volto à criança: ao brincar, ela está criando. Ela está num espaço criado por ela mesma, ainda que essa área de jogo só seja aceitável sob a condição de que ela saiba, fundamentada numa experiência anterior, que esse tempo é limitado. (Winnicott fala disso num artigo chamado "A capacidade de estar só".) À condição que ela saiba que sua solidão vai acabar, uma vez que o próprio tempo é criado por ela, assim como o espaço. Que existe, portanto, um "para além" do momento pre­ sente. Isso quer dizer que ela sabe que dessa área é possí­ vel sair. De um ponto de vista mais geral, isto significa que para crescer a criança precisa saber que é criança, por­ tanto diferente do adulto; e se brinca de ser adulto é porque integrou a noção de sua própria transformação em curso. "Quando serei grande..." Existe um marco no horizonte. O mesmo acontece com o adulto: idéias, re­ presentações que se interpõem entre o momento presen­ te e o fim da vida, a morte. São os múltiplos rostos do Outro: sempre ilusões. Ilusões mais ou menos perigosas e, no entanto, indispensáveis diante do irrepresentável que é, para cada um de nós, a própria morte. O deprimido é justamente aquele que não possui mais nenhuma ilusão, a não ser a idéia da morte como

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único indício de um horizonte temporal e espacia!. O jogo com o tempo é uma alucinação, cuja derrapagem é controlada, mais ou menos controlada. Em que medida é mais ilusorio se imaginar adulto, tornando-se mulher ou homem, pai ou mãe... do que bombeiro, tira, presi­ dente da República, Mme. Soleil, 4 o Papa, um profeta... uma estrela de cinema? Haveria uma maior ou menor realidade? Duvido... já que existem aqueles que efetiva­ mente se tornam bombeiros, tiras, Presidentes, Papas, estrelas de cinema e tantas outras coisas mais. Não basta falar em termos de realidade. Em psicanálise pode ser perigosamente redutor pensar em termoquele que se tomou Papa é seguramente mais louco que aquele que se tornou um simples papai? Que os profetas não passam de um bando de malucos? O deslocamento parece se impor a partir da intro­ dução do Simbólico. Isto é evidente. Prefiro, no entanto, abordá-lo a partir do Real. Fata Morgana: miragem no deserto. Ilusão... é o que dizem. Mas não se trata de uma pura projeção, nem de uma criação psíquica singular. Todos, na mesma hora, no mesmo lugar, podem vê-la. Ela não possui realidade, na medida em que o oásis entrevisto não se encontra no lugar visto. O oásis, no entanto, existe, e a ilusão de ótica é um real espacialmente descolado da realidade. Eis, pois, uma ilusão que contém um real. Mas como sabêlo? Como não se considerar louco quando se é um via­ jante do deserto? Ajuda não estar sozinho: ter visto jun­ to com outros, na mesma hora e no mesmo lugar, e depois perante a evidência da miragem, poder dizer algo a respeito.., Continuar o caminho e saber que o oásis existe apesar de tudo. Mais adiante. Em outro lu-

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gar. A miragem. Fata Morgana, Fada,6 marcou por um momento a existência no horizonte do objeto do desejo, para além da constatação de sua não realidade, mantém o privilégio de ter indicado a existência de um horizonte não vazio, e, ainda mais além, ter indicado o real da luz por uma de suas manifestações. Psicanálise, discurso da psicanálise, minha Fata Morgana. Minha esperança é que a psicanálise seja pelo menos tão conectada ao real quanto a Fata. Mas imaginemos a continuação da história... Um viajante do deserto realmente pirado: alguém que alucina. Ele caminha sozinho e tem uma alucinação: ele vê seu duplo, ele se vê. Ali, tampouco, há realidade... Contudo, na alucinação há também um real, "o que não foi simbolizado retoma no real", diz Fata Morgana. Po­ rém, ele não sabe disso. Ele gostaria de saber se é ou não verdade. Ele encontra outros viajantes, e lhes peigunta se eles o vêem, aí diante dele. Eles não o veem. Ele se acha louco. Ele tem a impressão de que sua realidade é outra. Depois eles caminham juntos e todos têm a visão da miragem: Fata Morgana. Eles todos juntos enxergam a mesma coisa. Com a diferença de que ele, ele se vê sobreposto na miragem: ele está no oásis. Ligeira variação de Fata Morgana. Real singu­ lar sobreposto ao que já estava lá. Ele não pode acreditar na diferença entre sua alucinação e a miragem. Derrapagem incontrolável. Sozinho com sua alucina­ ção, poderia, quem sabe, ter conseguido se contro­ lar, no entanto a Fata o derrotou. A miragem coleti­ va, em vez de lhe permitir estabelecer a diferença en-5 5. Pelit Robert: Morgana (a fada). Personagem imaginário do ciclo bretão que aparece nas canções de Merlim e Ogier, o Dinamarquês, como sendo uma fada bondosa c curadora.

Fata Morgana

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tre o real e a realidade, o isolou ainda mais dos outros e de sua própria capacidade de discernimento. É dessa forma que a psicanálise pode ser traumáti­ ca para alguns. Imaginemos agora uma seqüência feliz para a histó­ ria: os viajantes chegam finalmente todos ao oásis-reali­ dade. Uma vez lá, todos falam mais uma vez em sua ilusão comum. Ele, ele encontra alguém que não fez essa viagem. Alguém que sabe que Fata Morgana existe, mas não participou dessa viagem. E também não disse não ter visto o duplo do pirado. Alguém que simplesmente faz outra viagem com ele. Aquela, totalmente singular de sua história, de sua infância, de sua mãe que sonha, sonha em vez de olhar para seu filho. Alguém que o olha e cujo olhar faz espelho e palavra e presença no singular. A análise pode não terminar pela sobreimpressão de uma alucinação sobre uma miragem comum. Se­ ria, de fato, desejável que no final, aquele que não viu Fata Morgana no próprio momento do delírio do pirado possa lhe dizer que isso existe, Fata Morgana. Que toma vez, ele também, a havia encontrado, que o oásis visto por todos como miragem não era o entorno alucinado do duplo. Que Fata não estava no olhar cego de sua mãe, que Fata é um outro real, que não é ele quem a alucinou. Final de uma análise didática. Ele poderá retomar a travessia do deserto com outros, ter o pra­ zer e o riso perante as Fatas Morganas de amanhã. Esse é um ponto delicado. Que seja possível ajudar alguém a reconhecer sua alucinação da ilusão coletiva, na qual há algum real (religião, psicanálise, ciência), é algo que vem se tomando cada vez mais urgente, e clinica­ mente observável a olho nu. Fata Morgana transformada em análise ela própria (a cura), confundida com uma teoria totalizante que ex­ plicaria tudo, inclusive a falta, uma vez que a nomeia.

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Alt! /4s belos lições!

Lamentável contusão entre poder nomear e controlar o processo psíquico. Confusão entre um discurso que ajuda a pensar e ordenar as questões humanas perante o mun­ do, e a cura, como processo, percurso singular de um viajante que não e um livro a ser lido, já escrito, e que não resiste com uma "Resistência", resiste com sua personali­ dade, sua infância, seus amores, seus hábitos vitais, suas carapaças de sobrevivência, coisas vistas e sonhadas, trama de cicatrizes. rerante a densidade de tal fenômeno, a confusão ma­ ciça entre o livro e a carne, o discurso constituído e a palavra emergente, perante a angustiante proteção dos livros sagrados por uma massa de peregrinos, um certo número de analistas - cujo número vem aumentando, o que afinal permite manter as esperanças - se encaminhou em direção àquilo que eu chamara metaforicamente, mas não apenas, de acolhimento, tomou-se a própria urgên­ cia. Aquilo que nós conhecemos da análise instituída em certos casos só pode ser praticada ou encenada em seu nível mínimo. Esse mínimo que fará elo ainda precisa ser explicitado. Isto não pode ser feito apressadamente, nem na correria, pressionado por mandamentos de ontem. Ninguém nos ensinou isto e não está escrito em lugar algum. O ponto delicado consiste em que nós mesmos não nos tomemos também crédulos, sob ares de incredu­ lidade. Cúmulo do mau gosto, do erro, a incredulidade instituída em uma crença. Fata Morgana denegada. Uma vez que isso tende, também, a amarrar e proibir outras viagens, ajudados nisto pelo reconhecimento do pirado, libertado dos peregrinos em êxtase. A partir do momento em que há miragem - e como evitá-la, salvo admitindo que ela ainda existe, como necessidade transitória? há ausência da sombra, ausência de ignorâncias confessáveis: cada qual pode, num momento ou outro, ver a si próprio na miragem. E na ausência da sombra, um silêncio que deixamos de ouvir: os duplos não se falam.

iata Morgana

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A crença nos espreita em todas as esquinas, em todos os arrebatamentos, em todas as descobertas, inclu­ sive na do "acolhimento"..- em função do alívio propor­ cionado pela inteligência diante da opacidade de um sofrimento e a extensão do deserto. Fata Morgana existe desde o momento em que vemos. Como saber disso e praticar, no entanto? É bom que saibamos que isso existe em cada viagem, a cada descanso e que todas as vezes há algo de real em jogo. Somente assim o pirado da história poderá retomar a viagem e se descolar do jugo de seus próprios fantasmas, não tomá-los nem por ver­ dade definitiva nem pelo término de seu vagar, dividin­ do o prazer e o riso com outros, perante as Fatas Morganas inesperadas. Pois é justamente aí que reside a questão: ainda poder rir com outros amanhã... E pelo riso que eu reconheço o verdadeiro viajante. Não consigo acreditar naquilo que me conta um homem sério. "O espírito de seriedade''... será que alguém já não falou nisso? Um louco, mais um pirado. "E preciso que eu também compreenda aquilo que te digo". Eu precisei dessa história para escrever, me escre­ ver, te escrever, nos escrevermos. A página não está mais em branco. Aquilo que eu escrevi, talvez não seja verda­ de, mas é verdade que escrevo. Eu inventei uma história: imaginário. Servi-me da linguagem: simbólico. Há traços sobre as páginas brancas: será que são reais? E o tempo que gastei em traçá-los? Mas onde foi parar a ilusão? Sonhei de modo suficien­ temente denso, levei a sério a sintaxe para crer um pou­ co que penso: alucinação em derrapagem controlada, ilusão-espaço, joguei certo. Pensei ter escrito um artigo de psicanálise: Fata Morgana no horizonte, ilusão-tempo. Escrevermo-nos não é algo tão simples. Escrever-te teria sido mais fácil. Os rostos do Outro não são intercambiáveis a toda hora, mas basta escolher um e te escrever

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Ah! As belos lições!

se torna fácil. Mas nos escrevermos significa ü* até o absurdo singular. O importante é conseguir voltar. Fe­ char o circuito, imaginar que fomos compreendidos. Escrevermo-nos para me escrever. Libertação das Palavras da Língua, LML. Ela aMa Ela. Como é bobo o meu joguinho! Não será preciso, no entanto, chegar ao mais estúpido singular, desatar a pala­ vra, reatá-la á sua historinha, passando pelo momento es­ pecífico de um enunciado ou de uma palavra intraduzível, numa outra língua, homenagem prestada àquela na qual se escreve, para termos o direito de dizer "eu penso"? Mas que estrago, que ameaça para a cientificidade dos conceitos! Exagerou-se, certamente - os lacanianos quan­ to ao jogo de palavras. Acabaram sendo sob encomenda, deixou de ser um jogo, não se tratava mais de um playing, e, sim, de um game bem-ordenado. Mas quando de fato brincamos... E eu quis brincar... Respeito pelo tema...6 Nesses casos se brinca até perder os outros de vista, até perder o Outro. Na borda dessa perda (encenada?) se constitui o horizonte de si, espaço singular. O retom o em direção ao traduzível é a junção entre a miragem e a alucinação: costura no real da língua. Ponto obrigatório de retom o da mensagem para o emissor. Ul­ trapassar esse limite é cair no monólogo esquizóide, per­ manecer aquém, é cair no discurso acadêmico, que pode oscilar entre o lugar-comum e o chavão, passando por algumas descobertas que se afirmam escondidas, sem que o autor o saiba. Assim como não há garantia da verdade, tampouco existe a garantia do falso. A partir do momento em que nos servimos das palavras da Língua, a vacilação é constante. LML (LPL). Esse joguinho é uma ilustração, seguramente desajeitada, mas quem sabe suficiente, para

6. Cf. \

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que eu consiga me explicar sem ter de insistir demasia­ d am en te na ilu são ; e o p on to de e n co n tro , de justaposição, entre um singular (sempre fonte de prazer ou de angústia) e um coletivo, igualmente fictício, ainda que por meio das palavras. Entretanto, o prazer que isso provoca não é necessariamente sinal de verdade. E ape­ nas sinal de que o jogo foi possível. No caso presente com palavras, mas outros jogos são possíveis, com ou­ tros materiais. No jogo das palavras não á necessaria­ mente a palavra "jogo" que importa, e, sim, o próprio jogo, o fato de que alguém pode chegar até aí. Donde as confusões. E muita vigarice naquilo que chamamos de "escuta do significante". A era da Grande Besteira. Con­ fusão de Fata Morgana e de alucinação. Alguns veem no uso de fórmulas, grafos, desenhos, uma garantia contra a ilusão, esquecendo-se que não passam de barreiras imaginárias contra o imaginário inevitável - e bem-vindo - em toda utilização da linguagem. Quando esse jogo é visível (e o era na escrita de Jacques Lacan), isto indica que o autor chegou até esse ponto no qual suas palavras se desataram. A era dà Grande Besteira começou quan­ do outros enxergaram aí um todo. Pela utilização da língua se chega a essa coisa estranha que consiste em tomar visível o duplo alucinado na miragem coletiva. E, quando aquele que enuncia ocupa um lugar específico, faz com que os outros se identifiquem com a sua ilusão pessoal. As palavras de Lacan, de Freud, foram, assim, feitas prisioneiras. Essa é a questão da passagem da representação das coisas à representação das palavras, e, depois da utiliza­ ção dessas mesmas palavras, já que não existem outras, para escrever. Escrever a teoria, escrever a psicanálise. Escrever, nos escrevermos. Ver, nos vermos, se ver aí. Última volta à minha pequena ficção. Imaginemos um final infeliz para a viagem do pirado no deserto. Ima-

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Ah! As belas hções!

ginemos que se trata de um pirado do renome. Encontrando no momento em que vè seu duplo em Fata Morgana os outros viajantes, que de fato veem a mira­ gem, uma vez que essa lem uma existência visível. Ele lhes indica, mas ao indicar, os intima a se enxergarem aí, no lugar onde ele alucina seu duplo. Se a crença em sua palavra for suficiente, eles se enxergarão aí. Servi­ dão voluntaria em vez de jogo. Nenhum real para eles, apenas sugestão. E isto não é difícil quando a viagem é esgotante e grande o desejo de se chegar ao oásis sonha­ do. No final da viagem, nem o pirado nem os outros irão procurar alguém para desatar as duas visões. Para ouvir que cada um pode fazer uma outra viagem, do lado dos olhos de sua mãe, do lado daquilo que ela não viu. E, também, não ouvirão, que Fata Morgana, uma ou­ tra, os espera na próxima viagem; caso viajar ainda seja de seu interesse. Pode acontecer que muitos se instalem. Em Freud para todo o sempre. Em Lacan para todo o sempre. Entre os fantasmas de Freud e os significantes de Lacan, os pequenos conceitos são resistentes. Mas não basta que eu o diga para que eu possa fazêlo facilmente. Em Fata Morgana existe, de fato, u m real, e, em meu duplo, também. Não é o mesmo. Não pronta­ mente o mesmo. Paro por aqui. Toda ficção tem seus lim ites e suas ciladas. Pelo menos sabemos que se trata de uma história inventada. Para brincarmos juntos por um tempinho. Até porque, um dia será preciso dizer até logo a Vie­ na. A seu Futuro. O horizonte mudou. Entre a Ilusão e o Futuro, existia, para Freud naquele momento, a Religião. Será que ele não se enganou de ini­ migo? Ou, será que o inimigo ainda é o mesmo? Quando combatemos um inimigo, ao derrotá-lo, tendemos com freqüência a nos pôr em seu lugar. Será que não foi isso que quase aconteceu com a psicanálise? Razão pela qual;

I'citn M org a n a

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quem sabe, seja interessante evitar os enfrentamentos. O duelo. Qual era mesmo o terceiro teimo? A KuHur. A Cien­ cia, a KuHur e a Ciência. E agora a psicanálise... Curiosamente, nesse debate, nesse duelo, não se le­ vou em conta a política. Nem o Estado. Em nome da civilização podemos combater uma certa ciencia. Mas hoje em di a, será que a psicanálise pode ganhar sem se tornar uma ideologia de Estado? Sern que tenha pelo menos al­ guns ministros sentados à sua mesa? Para combater a religião, Freud queria a psicanálise como ciencia. Não há dúvida que a psicanálise ganhou. Depois a ciencia escapuliu. Para mais longe. Será preciso retomar o duelo? Só para ganhar? Ou para se tomar aliados... Quando colocamos toda nossa energia, toda nossa inteligência, quando nos fantasiamos todos de sol­ dados, é sempre possível ganhar batalhas. Mas a que preço? Combatendo a Religião num combate-duelo, a psicanálise tomou seu lugar. Enfrentando a Ciência, as­ sumiu seu falso esplendor. Tratando do engodo da Polí­ tica, ela cobiça cada vez mais as instâncias estatais. Pode ganhar a cada combate, mas após cada combate volta a ser Fata Morgana não reconhecida. Será que existem apenas as possibilidades de colaborar ou estar em guer­ ra? Discurso contra discurso, poder contra poder, ou com a ajuda do Estado, o prestígio. Não deixa de ser uma lógica estranha... que deve ser procurada no desconforto, inerente a toda posição efêmera que não quer se confessar como tal. A ilusão-espaço e a ilusão-tempo para o singular, por intermédio de um indizível plural, sc juntam em pontos indiscerníveis no presente. Ao qual é preciso acrescentar que vivemos numa sociedade ela-mesma viva, produtora de imagens ávidas de nossas ancoragens singulares.

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Ah! As belas lições! *

E porque m e sinto pouco à v o n tad e para en trar nos gran d es com bates. N ão qu ero m ais sabor de duelos, nem m esm o gritar contra a ciência. C essar o enfrentam ento. E voltar a nos escreverm os. E azar se isso p rod u zir papel em dem asia... Q uem m e dirá, m ais um a vez, m eu duplo na Fata sem nom e, para a qual avanço? A cabarei encontrando em m eu cam inho algum as pessoas que riem ...

alma gêmea ou o duplo domesticado* Em Paris, os castanheiros-da-índia estavam floridos. Ele se recorda disso. Ele queria passear. Ela não queria. Ele não tinha como lhe dizer que era por causa das flores. Uma vergonha mal-definida o impedia de falar na beleza. Ou quem sabe de seu prazer. Aliás, será que teria sido capaz de encontrar as palavras? Ele desejaria que ela compreendesse. Quem era Ela? Eram todas elas quando o que estava em jogo era dar a entender aquilo que, por diversas ra­ zões, não conseguia enunciar claramente. Essa vergonha mal-definida do íntimo. Desnudar o corpo não era nada, mas desnudar a alma, às vezes, era impossível. Sonhava com uma alma gêmea. Mas, eventualmente, poderia tam­ bém ser um homem. Ela não entendia nada. Muito cedo, me dei conta de que era burra, e isso me deixava triste. Muitas vezes me senti totalmente sozinho em sua companhia. Enfim, é disso que lembro... Eu tinha quatro anos quando percebi que, para mim, minha mãe era a própria encarnação da * Texto originalmente publicado na revista Espace, 15, "Le Monde Intérieur", Paris, 1987.

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AU!

M as liçócs!

b o s t o i r n . l :la e s t a v a o t e m p o t o d o p r e s e n t e , p a s s a v a o te m p o c u id a n d o d e m im . te s ta m e n te , E n e m h a­ v i a u m o u t r o qualquer p a r a m e d i s t r a i r . . .

A queixa da incompreensão da mãe, do pai, ou de ambos, o algo banal, sobretudo entre adolescentes. Na maioria das vezes, encontram a solução voltando-se para outros iguais a eles. As amizades e os amores passam a ocupar o lugar do entendimento momentânea ou definiti­ vamente rompido com os adultos. Os laços "verticais" são substituídos pelos laços "horizontais", substituição que raramente evita a experiência de momentos de solidão. O que, lio entanto, é menos banal e não faz parte de uma evolução, digamos, normal dos processos de socialização, é a precocidade do sentimento de solidão e incompreen­ são e, como no fragmento citado, a consciência igualmen­ te precoce de um compartilhar impossível, cuja culpa se­ ria da mãe. No presente caso, tratava-se de sua "besteira", em outros, poderia ser sua frieza ou sua ausência, ou qualquer outro defeito que viria tornar manifesto e ins­ crever na memória o fim de um idílio, quando não a con­ firmação da tristeza por ele nunca ter existido. Muito se escreveu sobre as mães de autistas, as quais se mantêm numa tal proximidade a ponto da própria palavra se tor­ nar impossível. Isso não significa, absolutamente, que te­ nha havido compreensão. Limitar-me-ei, aqui, a um as­ pecto menos dramático, no entanto mais freqüente das primeiras relações. A constatação precoce da "besteira" materna, ou simplesmente do sentimento de que ela não entendia nada (exceto as necessidades estritamente corporais), pro­ voca um enclausuramento precoce do mundo interno da criança, deixando-a carente de trocas imaginárias. Há uma clausura forçada e ortopédica sobre um vazio inter­ no para se preservar de um outro, incapaz de propor me­ táforas a serem compartilhadas. A clausura, em vez de ser

A alma gôinea ou o duplo domesticado

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constitutiva do íntimo, antes mesmo de se tornar caracte­ rística do sujeito, assinala, simplesmente, uma ferida e uma carência. Essa ferida se abrirá tanto mais à dor como a cada encontro com um outro, o qual reproduzirá um abandono e não saberá adivinhar a vergonha da inconfes­ sável nostalgia da partilha. A alma se isola ou se toma vítima do exterior; permanece o corpo, entregue, como um rébus, aos cuidados extremados.1 Até mesmo um ór­ fão poderá, eventualmente, ter mais chances de se apro­ priar de um mundo de sonhos, que poderá ter retirado de uma transeunte cujo acesso não lhe tenha sido barrado por uma mãe por demais real, e sem ter de sofrer da lembrança, consciente ou inconsciente, de uma intimida­ de a que foi forçado. Trata-se, nesses casos, de recalque? Absolutamente! Trata-se, talvez, de um não-lugar, que, em análise, pode vir a se constituir num lugar. A procura pela alma gêmea é a passagem em direção a um outro necessário, prefiguração do semelhante, que nos compreen­ de como nós mesmos gostaríamos de nos compreender, sem precisar recorrer ao dizer. Um outro, imaginariamen­ te idêntico a si mesmo, visto de dentro, cuja intuição par­ ticular é essa Einfiihlung, a qual se refere Freud e só pode ser traduzida em francês por esse termo tão deselegante: "empatia".12 A expressão "alma gêmea" designa a nostalgia deste outro empático, o qual felizmente podemos ser para nós 1. Os termos “compreensão", "empatia" ou, pior, "alma", so­ frem, em certos meios psicanalíticos, um verdadeiro descrédito. A ra­ zão principal se deve a, um belo dia, Lacan ter zombado deles; outra, é por não representarem uma abordagem científica (sic). Mão se avalia, suficientemente, o perigo de deixar “inter-ditos" algumas palavras da língua, que dessa maneira passam «a ser privadas da livre circulação por ordem de um Mestre. Cada vez que posso, eu os utilizo, não por provocação, c sim porque considero se tratar de uma postura ética mínima. 2. Assim como na língua portuguesa. (N. da T.)

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Ah! As belas lições!

mesmos, quando conseguimos nos entender, com base em um saber intimo sobre nós mesmos, saber que é um sentir, e também possibilita a palavra interior. Mas como proceder diante da experiência precoce de uma mãe toda devotada ao mundo do visível? Et la Mèrc, fermant le livre du dovoir, SVn allait sntistàite et très fière, sans voir, Pans les veuv bleus et sous le front d'émincnces l .am e de son enfant livré aux répugnances.3 (A, Rimbaud)

A ausencia é, seguramente, menos perigosa que a besteira presente, pois, mesmo deixando desamparo e va­ zio, não obtura a esperança. Durante muito tempo e para muitos, o mundo interior foi sinónimo de alma, à qual se juntavam, eventualmente,

os entusiasmos do coração. Que esse mundo se povoe de imagens, sonhos ou melodias, que seja rico ou pobre, ou, ainda, que o "isso" impulsione esta ou aquela representa­ ção, trata-se, antes de tudo, de algo da ordem do sentir, de se sentir viver internamente. O cinzento da alma com­ binava perfeitamente com um coração de pedra, assim como um coração de ouro com a grandeza da alma. A cabeça, sede da razão, tinha por função fazer reinar uma certa ordem, de modo que as palavras da língua fossem pronunciadas segundo a sintaxe exigida e os costumes em uso. Já que nem se podia e nem se pode dizer qualquer coisa a qualquer um sem correr o risco de ser considerado louco. Nossas palavras têm de ser bem comportadas, e se por infelicidades são sacudidas, e aventurosamente se­ guem em frente, sem mais nem menos, mais uma vez se 3. E a mãe, fechando o livro do dever, / Ia-se embora satisfeita e muito orgulhosa, sem ver, / nos olhos azuis e sob a testa saliente / a alma de seu filho entregue às repulsas. (Traduçào livre.)

A a lm a g ê m e a o u o d u p lo d o m e s tic a d o

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procurará o ocaso de nossa razão. O tumulto está para aquém e no interior. Sorte dele quando encontra o cami­ nho das lágrimas, gritos, gestos desajeitados. Mas depois, que desamparo, que cansaço, sem falar na solidão, se nin­ guém estiver aí para inventar um relato plausível. O plau­ sível não é a razão, mas introduz razões, por onde pode se esgueirar em silêncio, por meio de palavras de passa­ gem, o íntimo. Muitos analisandos vêm por causa desse tumulto que escapa à razão e ao entendimento. Para não se senti­ rem sozinhos. A "demanda" de análise raramente se for­ mula em termos de tumulto, desprendimento ou mura­ lhas da alma. Faz-se um esforço para fornecer ao médico de plantão algum sintoma que faça sentido para ele. Visto que a questão é esta, central e sempre evitada: o que fazer, como fa2er para se compreender e se fazer compreender? Estabelecer uma relação entre o próprio mundo e o mundo do outro é justamente a aposta em jogo no "compreender". Fazer-se entender é uma necessi­ dade vital no início da vida e continua sendo ao longo de toda ela, ainda que não gritemos mais como um recémnascido, cuja mãe falha em compreender a necessidade do momento. Sabe-se, desde sempre, ou quase sempre, que a sim­ ples razão é insuficiente para abrir um caminho de um ao outro, e só quando o tumulto não é grande demais é pos­ sível, para cada um, ser um e outro. Mas nem sempre e nem o tempo todo. Coração, alma, razão não são conceitos, são metáfo­ ras que indicam pólos, lugares de circulação de imagens, sentimentos e pensamentos, enfim aquilo que faz a con­ sistência do Mundo Interior. Este se constitui progressivamente por intermédio de uma série de separações do mundo exterior. No entanto, só pode se interiorizar na criança à condição de não haver nem fechamento brutal incompreensão ou besteira - nem efração permanente.

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A h ! A s b e la s liç õ e s !

No começo da vida, essa separação é a responsável por marcar a diferença entre o estado de vigília e o sono. Um bebê, cujas necessidades estão satisfeitas, adormece. Seu mundo interior é, antes de mais nada, seu sono. Só suporta a ausência quando satisfeito e adormecido. As raízes do mundo interior são o mundo onírico. Com o que sonham os bebês? Com o seio, a mamadeira, com as co­ res, os cheiros, as sensações táteis... com suas percepções do momento. Pelo menos é o que supomos. O infans nun­ ca nos dirá. Entretanto, podemos supor que seus sonhos são, antes de tudo, feitos de traços de percepção, depois da tensão que se criará progressivamente entre as necessi­ dades orgânicas, sua satisfação e a emergência de deman­ das que excedem a materialidade do objeto da necessida­ de. Essa tensão interna só pode ser preenchida com obje­ tos "criados", sonhados. Tais criações, por sua vez, só se tornam críveis para cie quando estabelecem uma circula­ ção metafórica com outrem. Caso contrário, será o fecha­ mento precoce ou a manutenção excessiva de uma depen­ dência "material" ou um autismo silencioso; ou, ainda, somatizações que, freqüentemente, vêm no lugar de um mundo interior, de um imaginário impossível e bloquea­ do. Uma dor, um eczema ou uma asma podem ser o lu­ gar, por demais real, no qual algo do corpo advém no lugar do imaginário retido, porque sem valor para o ou­ tro. Apenas a dor assinala para alguns seu espaço interior. As tripas no lugar da alma. O mundo interior é, desse modo, assimilável ao imaginário, no entanto, só pode ser vivido pelo sujeito se esse imaginário não for cortado do resto do mundo. Vive-se com seu mundo interno como se vive com os outros, mais ou menos de bem, e sofre-se de seu mundo interno como se sofre do outro que não "com­ preende" ou que não se compreende. Essa "compreen­ são" não pode, assim, em nenhuma hipótese, ser reduzi­ da a uma atividade intelectual ou de pura razão, pois a

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demanda que excede a materialidade do objeto de neces­ sidade é, por sua própria natureza, insensata. O pequenino humano se distingue do pequeno ani­ mal sobretudo por sua insensatez. Em outros termos, pela demanda que excede o útil. Se o seio, metáfora primeira do objeto, é sonhado, alucinado ou representado, é por­ que sua espera cria um vazio suplementar, que o simples leite não poderá preencher. É na tensão da espera que vem se situar, não apenas a simples lembrança de uma mamada ou da sensação do estômago cheio, mas sim uma representação de objeto, uma visualização interna seja do seio ou da mãe, ou do barulho que esta faz ao se aproxi­ mar, ou de seu cheiro, suportes do objeto material e útil à satisfação propriamente dita. O mundo interior é povoado de objetos inúteis. O seio, objeto de início exterior, útil e necessário, toma-se o pedestal do mundo interior, não pela consumação, visto que nunca é consumido, mas por sua capacidade em se transformar em objeto inútil, contu­ do necessário, pela clivagem que sustenta entre a razão da fome e a desrazão do amor. E isso é apenas um começo... já que mais tarde será justamente essa impossibilidade em consumir o outro a causadora da impossível redução da pulsão sexual ao gozo de uma presença. "Minha mãe encarnava para mim a própria besteira." Era uma boa mãe provedora, mas não tinha alma. Impos­ sível lhe pedir os castanheiros floridos, a partilha do inútil. Para isso, é preciso inventar uma alma gêmea. Alguém a quem se atribua a mesma insensatez, com quem se possa trocar ou dividir os indispensáveis objetos inúteis: a bele­ za, a nostalgia do seio, apesar do leite. Se o seio, em sua acepção metafórica, pode ser considerado como o primei­ ro objeto que poderá significar a continuidade entre o ex­ terior c o interior, desdobrando-se em dois objetos hetero­ gêneos, não passa do grau zero do mundo interior, pedes­ tal que irá servir de base às demais representações inter­

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Ah! A$ belas lições!

nas. Contudo, é impossível iniciar sua numeração (fictícia) se não partirmos do zero de todas as séries. Uma vez que sabemos que o Mundo Interior é assujeitado às necessida­ des vitais. N ão se pensa nos castanheiros floridos quando o corpo está em perigo, e - só sendo louco - não se sonha diante de uni tigre esfaimado. Totalmente diferente é a procura de certos místicos, procura de mortificações corporais para sentir, para lite­ ralmente pôr à prova a existência da alma, mas não sem invocar o Outro. Lá, também, se o corpo é maltratado, não é na completa solidão, essa solidão é apenas material e oferece, assim, um lugar ainda maior à presença imate­ rial do outro. O mundo interior se torna lugar de acolhi­ m ento de sua própria imaterialidade, em outros termos, de sua alma. Eis aí dois extremos de uma série possível: numa ponta, o seio material e imaterial, simultaneamente (obje­ to ainda sem rosto); do outro, a alma e seu corresponden­ te de cima, lugar supremo do inútil, da insensatez e do imaterial: deus da face invisível. De Certeau, em L afable mystique, diz: A alma se torna o lugar no qual esta separa­ ção consigo próprio é a mola de uma hospitalidade ora "ascética", ora "mística", que dá lugar ao outro. Não falaríamos se não se tratasse, também, de fazer ouvir as palavras não-ditas. Ora, para os místicos, ainda segundo Certeau, a "alm a" é esse falar interior e o lugar de separação consigo próprio, um lugar de enunciação. "Enunciação do quê? Teresa de Ávila o precisa: da alm a..,"4 Mas esse falar interior é um dito sem palavras.

4. Michel de Certeau, La fable mystique, Paris, Gallimard, 1982, pp. 267-268. (Coll. Tel)

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Não se trata, aqui, de operar uma redução abusiva entre a "alm a" do discurso dos místicos e aquilo que qualquer um de nós pode pretender possuir como Mundo Interno ou vida psíquica, até mesmo como alma laica, das Seelenleben, segundo Freud. Será, no entanto, possível não levar em consideração esse saber singular, quando se aborda a questão sobre o espaço interno e a clivagem pri­ mordial dos objetos de amor? As instituições de Massa5 ordenam as vias do amor e fazem calar o tumulto interno em prol de uma verticalidade aparentemente mais leiga, na qual o dizer interno é de imediato relegado à hora do sono. Os místicos, os apaixonados e os poetas reencon­ tram ou criam as metáforas do singular e da solidão, e renovam com as origens da separação. É possível pensar em outras séries que partam do exterior, se interiorizem e, depois, dêem lugar à procura. Existe, entretanto, um lugar de passagem obrigatória, uma encruzilhada dos desastres, um lugar de mudança brusca de direção, no qual o interior e o exterior podem, para qualquer um, vir a perder seus contornos imaginários que os tomam vivíveis, no qual espreitam os momentos de loucura caso se produza o colapso assustador, no qual o sujeito pode se sentir abandonado, sem lugar, fora de si, fora de lugar, fora do corpo. Essa passagem obrigatória é o rosto do outro. Nem dentro nem fora. Ora, se o seio, metáfora ao mesmo tempo da fome do corpo e da fome de amor pode ser considerado como o ponto zero da interiorização do mundo, a humanização propriamente dita se faz pelo rosto do outro e seu domí­ nio sobre a imagem de si. Se, mais tarde, a criança se reconhece no espelho e vê seu rosto como diferente do rosto do outro, o homem continuará com esse ponto de

5. Freud fala de Massetis&xie: a alma das massas.

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Alt! As betas liçòcs!

fragilidade, que manterá em aberto sua procura do outro, cujo rosto tem o poder de lho dizer em seus momentos de desamparo quem é ele, de se reconhecer em seu seme­ lhante, ou de ser rejeitado no inominável ou na desolação. O rosto do outro é a fronteira entre o Mundo Interior e exterior, bem antes que as "instâncias", segundo Freud, do Eu e do Supereu venham constituir barreiras psíquicas. Porém, o rosto não é redutível à imagem, a seus tra­ ços. É, por sua vez, a expressão de um dentro, o “espelho da alma". O rosto fala e se escuta.fi Por esse motivo não se atribui um rosto aos animais. Ainda que seja visto, não pertence ao simples domínio do visível, exige um outro olhar, aquele que é afetado, antes mesmo de ver, por va­ lores nos quais se juntam a estética e a ética, a beleza, a bondade e as intolerâncias ao que é exageradamente es­ trangeiro. O amor e o ódio podem, assim, nascer à primei­ ra vista, mas isto não exclui que os rostos amados sejam submetidos a uma lenta apropriação e escapem incessan­ temente a ela. O rosto é esse ponto de báscula entre o dentro e o fora, contudo, representa, também, um momento de silên­ cio, cujo significado é, parte a parte, o passado silenciado, excluído do relato, mas que é seu forro, como a palavra interior. Por que será, então, que o encontro do mesmo, do idêntico e, particularmente, do duplo, provoca tamanho horror, tamanho pavor? Mesmo se tratando de uma expe­ riência rara, sua evocação na literatura, ou mesmo medi6. Muitos filósofos abordaram essa questão. Seja Buber em Eu e tu. sejam as belíssimas páginas de Levinas consagradas ao rosto, em Ética e infinito, no qual diz, basicamente: "O rosto é aquilo que não se pode matar, ou pelo menos aquilo cujo sentido consiste em dizer: 'Não matarás' ", ou, ainda, Blanchot em seu diálogo com Levinas. Todos tra­ çam, aqui, a fronteira entre psicanálise e filosofia ao abordarem a temáti­ ca da humanização do homem.

A afina $êm cn on n d u p lo d o m estic a d o

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ante a experiência de outros, é imediatamente compreen­ dida, com o experiência lim ite do estran ho: das Unheimliche. O encontro com o duplo é, antes de tudo, uma expe­ riência de esvaziamento, significando, por isso mesmo, a extrema solidão. Deparar-se apenas com a própria forma significa que o outro não está mais aí como semelhante e, portanto, como responsável pela vida. A alucinação do duplo é a perda do semelhante, único a poder sustentar, como outro, a ilusão e o desejo de se fazer compreender, a necessidade da partilha, da troca entre interior e exterior. O Mundo Interior se reduz, nesses casos, à simples ima­ gem, ao simples visto. O interior se aclara pela inversão do olhar. A morada interior (das Heirn) passa a não mais conter em si o passado, como experiência sempre um pouco misteriosa, que aspira poder se dizer, se represen­ tar para outrem, encontrando-se inteiramente fora de si numa pura forma, idêntica a si mesma e, portanto, total­ mente estranha. Freud diz que a inquietante estranheza é exatamente tudo aquilo que deveria permanecer secreto e escondido e que se manifesta, isto é, tudo aquilo que de­ veria permanecer invisível e se toma visível. A propósito do duplo, referindo-se à obra de Rank, diz também: ... uma vez que o duplo eia, em sua origem, uma garantia contra o desaparecimento do eu, um "desmentido enérgico contra a potência da morte" (Otto Rank), é provável que a alma "imortal" tenha sido o primeiro duplo do corpo.?

Mesmo sendo ateu, Freud nunca deixou de usar a palavra "alm a" para designar a vida psíquica (das Seelenleben); as doenças "mentais" eram designadas como7

7. Sigmund Freud, "I/inquietante etrangeté", Paris, Gallimard, pp. 236 e 237.

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Alt! As' belas lições!

"doenças da alma" (SecUsche Lciden), assim como o doente mental era para ele um doente da alma (der seeelische Kranke).3 O termo "psiquismo", na maioria das vezes, dá con­ ta, perfeitamente, de traduzir a palavra alma no texto de Freud, entretanto, a evicção sistemática da palavra alma nos escritos psicanalíticos, por medo de uma conotação religiosa, impede o recurso a uma série de metáforas, sem as quais não há como dizer muitas coisas, permanecendo como que interditas. Como se o uso da expressão "apare­ lho psíquico" também não fosse uma metáfora; sua única vantagem é que dá a impressão de ser mais científica e desconectar qualquer associação não apenas com o "religio­ so", mas, ainda, com o poético, o que significa um real e inútil empobrecimento da língua. No que diz respeito à vida psíquica, nossos balbucios ainda são tais que não só é prem aturo nos privarmos de todas as metáforas que a língua - principalmente a dos poetas e místicos - nos ofe­ rece, como, inclusive, é pouco prudente, em conseqüência, afastar uma série de experiências subjetivas antes mes­ mo de ter podido acolhê-las. O duplo representa uma regressão tópica a um momento psíquico pré-especular do não-separado. É uma espacialização ilusória e alucina­ da de um dentro, que "normalmente" permanece celado pelo recalque estruturante que representa o necessário fe­ chamento que separa si mesmo do outro, aquele cujo ros­ to foi a parte faltante do próprio corpo antes que o olhar adquirisse sua capacidade de separação e que o simbólico distribuísse a cada um seu lugar (eu diria, seus lugares). Aquele que encontra seu duplo é despossuído de seu mundo interior. Trata-se, propriamente falando, de uma8 8.

Uma obra de Bruno Bettelheim foi consagrada a essa questão: Freurf e a alma humana, com um importante prefácio de Michèle Montrelay.

A a lm a g ê m e a ou o d u p lo d o m estica d o

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experiência diabólica. É preciso, no entanto, evitar a assi­ milação dessa regressão patológica nunca desejada pelo sujeito - que encontra seu duplo sempre por surpresa - às experiências místicas de meditação, nas quais alguns afir­ mam "sair" de seus corpos e se ver do exterior delibera­ damente, sustentados nisso por uma crença e práticas cor­ porais e espirituais. São sustentados nisso por um discur­ so e um trabalho psíquico, que, mesmo escapando a nos­ sas explicações racionais, não são redutíveis a uma simples patologia. Essas "visualizações" são desejadas e represen­ tam o resultado de uma pesquisa. Razão pela qual, não causam pavor, pois fazem parte de um simbólico compar­ tilhado, que toma a experiência pensável conscientemente, mantendo, dessa forma, o fechamento de um interior. Apesar da inversão, do olhar, não há perda nem de sí nem do outro. A partir do momento em que uma experiência por mais extraordinária que seja - é objeto de pensamento, ela é esperada e, conseqüentemente, "criada" pelo sujeito; o que elimina seu caráter de esvaziamento, pavor e soli­ dão. Ao fazer parte de um simbólico, o desdobramento deixa de ser diabólico. Existe uma procura bem diferente, menos mística, mas muito mais cotidiana, a da alma gêmea. Diante do pavor de ver o invisível, a "gemelização" inesperada do corpo, no registro do puro visível, vem se opor à procura de um outro, supostamente todo compreensão, um outro corpo habitado por uma alma gêmea, que vem justamente acalmar esse tumulto interno. A alma gêmea é um duplo interior que se reconforta e se representa no campo do amor, lá onde o duplo exterior é sinônimo de horror e solidão. A alma gêmea pode ou não ser a amante, do mesmo sexo ou de outro: o que impera é o entendimento e a partilha, a "compreensão" finalmente encontrada para além das palavras, ou pelo uso de palavras, que, final-

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Ah!

A * ! v /(7s

hçòcs!

mente, possuem a mesma ressonância interna, lanío para um quanto para o outro. A relação sexual - se acontece vem interromper a circulação dos mundos intemos e o desejo - ao se fazer violento - introduz a diferença onde, com o passar do tempo, a paz das almas gemelares virá se ferir nos avatares dos gozos sexuais. Se o entendimento persiste, é trcqüentemente em detrimento da paixão e da diferença dos sexos usada como insígnia pelos parceiros. Visto que o duplo da alma é um duplo do feminino, quaisquer que sejam os sexos anatômicos em presença.9 Se em trances101a expressão "alma gêmea" dá conta tanto da metáfora da irmã quanto da relação entre alma e alma, o mesmo não acontece com outras línguas; mas o que permanece - e pode ser encontrado em diversos poetas o o termo "irmã", designando essa proximidade do ínti­ mo, do feminino, assim como a relação de horizontalida­ de, em que o duplo lembrava, sob aspectos do idêntico, uma relação de verticalidade. Ainda que de aparência idêntica, o duplo é um mesmo estrangeiro que olha de cima; a irmã, pelo contrário, é um semelhante, cuja com­ preensão empática completa e esclarece as zonas do pró­ prio mundo que permaneceram opacas. Em poesia, os exemplos são múltiplos. Citarei apenas dois. De Baudelaire, os mai> conhecidos: Mon enfant, ma soeur Songe à la douceur

D'aller vivre Ui-bcis." ("L'invitation au voyage") 9. Donde as gozações de Jacques Lacan para as quais M. Montrelay chama a atenção em seu prefácio ao referido livro de Bettelheim; e aquilo que ele diz da alma: “A alma é homossexual". 10. Assim como em português. ( N. da T.) 11. Minha criança, minha irmã / Pense na doçura / De ir viver In longe.

A alma gênnui ou o duplo domesticado

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Ou ainda: Comme deux anges que tortureMa soeur côte h côte nageant, Nous fuirons sans repos ni trêves V ers le p a ra d is d e n o s rro c s'3

("Le vin des amants")

E em Georges Trakl: La soeur folle13 réapparaît dans les cauchemars de quelqu'n. Couchée sous la coudraie, elle joue a\ ce ses étoiles. L'étudiant, peut-être son double, l'observe longtemps par la fenêtre.'*

("Psaume")

Ou ainda: Soeur, toi que j'ai trouvée dans la clairière solitaire...'*

("Printemps de hâme")

Nunca se trata de uma "verdadeira" irmã, e sim da expressão de sua alma sob os traços femininos da mesma geração, promessa de calmaria interior e clareza. Fala-sc à "irmã" como se fala à sua alma, com a certeza comple­ mentar de ser mulher. Mulher-irmã, que teria residido num mesmo lugar materno. Partilha de uma estada ante­ rior à memória, anterior ao uso de uma troca por meio da palavra. Donde a certeza de sua "compreensão", que é clara, e de que suas palavras só podem ser justas. 12. Assim como dois anjos torturados / Minha irmã ao meu lado nadando / nós fugiremos sem descanso nem trégua / Em direção ao paraíso de nossos sonhos. 13. Esses fragmentos de poemas são extraídos de Sonho c loucura. No texto alemão, no entanto, a "irmã louca" é literalmente: a irmã "estrangeira". (Diefremde Schwcstcr.) 14. A IrmS louca reaparece nos pesadelos de alguém / Deitada sob o nveleiral, brinca com suas estrelas. / O estudante, quem sabe seu duplo, o observa longamente pela janela. 15. Irmã, vocô que eu encontrei na clareira solitária...

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AU! A s b ela s liç õ es!

A "irm ã" mantém o vestígio da criança e representa o esboço do semelhante numa série em que o carnal não tem primazia. Assim como, aliás, o anjo foi, até o século XVII, o representante da criança e esta o representante da alma na pintura,10 teríamos, de certo modo, duas séries. Uma carnal, sexual, e necessariamente submetida às proi­ bições: diabo-corpo-adulto (pais); a outra, mais espiritual e repousante; anjo-alma-criança-irmã, esta, ainda que recal­ cando o possível retorno do diabólico, da mãe noturna, do duplo mortífero, já não é mais, no entanto, nem total­ mente inocente nem totalmente imaterial. E a espacialização do passado que o sujeito carrega em si, ou a falsa testemunha de uma relação mãe-criança tranqüila. É evidente que um estudo mais sério e acadêmico ter-me-ia inevitavelmente levado até as portas de Atenas, aos amores de Platão. Entretanto, nos momentos de de­ samparo, não é em direção da memória sábia que nos dirigimos, e sim para o reservatório de metáforas que nos fornece a memória da língua para arrimar, nem que seja um pouquinho, o tumulto intemo por intermédio de um imaginário que faça sentido, quando não fundamento, e estanque a hemorragia de vida, que para muitos podem significar certas solidões, ou a besteira materna precoce­ mente percebida. La onde //d ,Ela,/ só existiria o que ela dá a ver, um corpo sem alma, Ela-Eu, puras imagens bidi­ mensionais sem interior, e sem volume. O duplo, regressão tópica, é, no entanto, um encon­ tro bastante raro. É de estranhar quando se deparar não com ele em cada catástrofe, a cada perda de objeto de amor. Ainda que a "infelicidade", na maioria das vezes, tenda a provocar, pelo menos momentaneamente, reações "regressivas", algo, apesar disso, mantém fechado o cir-16 16. volume.

Cf. Radmila Zygouris, "'Uma palavra que falta", neste mesmo

A alm a pernea oit o duplo dom esticado

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cuito interno. Algo que não pode facilmente ser nomea­ do. Mas que certamente se deve à persistência, a não perda, da noção de outrem. Lugar, mesmo que simbólico, necessariamente sustentado pela crença (sentimental?) num outro como semelhante. Ilusão indispensável à ma­ nutenção do fechamento. Não se trata do conteúdo dessa ilusão, evidentemente nem sempre formulada em termos de alma, irmã, ou compreensão, e sim da capacidade da ilusão, capacidade de criar fora de si um outro vivo com o qual se poderia manter uma correspondência íntima, sem palavras. Em seguida, podem, devem, vir as palavras que só são possíveis a partir dessa premissa de um silêncio que é partilha implícita. Ilusão do "compreender" realizado em pensamento ou ato. Fazer-se compreender para se com­ preender. A representação e a palavra se tomam possíveis com base nessa ilusão fundadora, oposta à solidão extre­ ma que destrói a presença do outro em si. A esperança de uma gemelidade intema (a alma, a irmã) se opõe ao retor­ no do tempo anterior ao rosto do outro, aos rostos não separados, gemelidade dos corpos. A ilusão barra a aluci­ nação, a criação do semelhante a ausência do outro, face imaterial do objeto - teta invisível - a seu retomo real e assustador. A "irmã" mantém adormecida, mantém em "meu" sono a mãe assustadora, não-separada. A "irmã", minha alma, meu semelhante (aqui o possessivo é obriga­ tório), é apaziguadora, onde o "eu "não pode mais ser para Eu um e outro.17 Ela pode ser o outro de si, repre­ sentar a existência do mundo interior invisíveL não redu­ zido à imagem persecutória. Supõe-se que ela compreende valendo-se de um lu­ gar que tranquiliza pela horizontalidade do laço. Não se situa mais "acima", transformando-se no outro, meu se17. o eu. (N. da T.)

Em françês je ("eu") e hwi (Eu), duas palavras diferentes para

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Ah! As belos lições!

melhante. A verticalidade da relação não se encarna, é simbólica como uma ausência aceitável. Que no jargão psicanalítieo se fale dessa verticalidade cm termos de Pai, quer dizer que não sc trata de imediato de um semelhan­ te, que mantém o fora como não-idêntico, e que represen­ ta o simboliza o techamento possível do íntimo. Alguns, mais que outros, sofrem do sentimento de solidão e incompreensão. Isso não quer dizer que não te­ nham tido mãe ou pai, e sim que esse processo de instau­ ração do semelhante não pode se fazer. As razões são sempre diferentes e dependem de histórias singulares; a procura de uma alma gêmea se torna, então, uma paixão aberta ou desconhecida, que domestica o feminino em si, lá onde surge o risco do duplo, o terror noturno de um tempo no qual só se estava separado do outro pelo sono. A mãe do recém-nascido é onírica, e a "irmã" sua passa­ gem metafórica em direção ao semelhante, quando não é ortopedia do outro em si mesmo. É abertura em direção à sombra do dia e residência do íntimo, que a relação sexual deixa em suspenso. X as situações de perigo ou necessidade vital, o mun­ do interior cede lugar ao instinto de sobrevivência, em detrimento do gozo do belo, da nostalgia partilhada e do passado. O presente só suporta a relação do sujeito com seu mundo interior sob a condição de que este não repre­ sente perigo para a vida do corpo. Assim, alguns vivem perpetuamente na espreita e devem incessantemente cor­ tar as comunicações intemas da desrazão, porque perma­ nentemente submetidos a alguma crueldade do presente, que exige o exercício da pura razão. Qualquer acesso ao mundo interior é perigoso, quando o presente exige uma atenção reforçada dirigida ao exterior. Muitas neuroses regridem em tempos de guerra, não apenas porque o hor­ ror está fora, mas também porque, por necessidade de sobrevivência, se trancam os demônios de dentro.

A a lm a g ê m e a o u o d ttp lo d o m e s t ic a d o

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Mas, mesmo não indo até esses extremos, o trabalho intelectual se efetua, para muitos, a partir do fechamento de si a esse outro de si, resto das desrazões de outrora, tempos nem sempre aptos a sublimações confessáveis. Isto não impede a procura de um outro, de um outro como si mesmo, esse outro inconsumível, quer a gente se tranque ou não. A "solidariedade hum ana", por m ais razoável que possa ser em tempos difíceis, não se ancorará nesse m es­ mo lugar, no qual nasce e jaz a teta inútil, p ara além da fome do corpo?

vergonha de si* Quando me ponho a escutar atentam ente, acontece de eu ouvir o inconsolável. É pelo menos assim que cha­ mo essa voz abafada - para aquém das histórias tristes, horríveis ou obscenas - , distante de qualquer anedota, estranha às palavras, familiar aos sonhos. Em ana de luga­ res nos quais toda história parece ter desertado. Triste constatação, para uma prática que se quer antes de tudo instrumentalizada pela linguagem. E, no entanto, o incon­ solável continua mendigando o benefício das palavras. É o que acontece com as histórias de vergonha - algu­ mas apenas dizíveis, outras contadas, às vezes repetidas à exaustão que se ancoram nesse lugar do inconsolável, cujo acesso pede a quem escuta garantias de passagem que nem sempre está em condições de oferecer. "Sinto vergonha dela. Sinto vergonha dele. Sinto ver­ gonha por você." O objeto varia, o sentimento perm anece o mesmo. Estranho sentimento este que não se conjuga como os demais. Nem amor nem ódio, m as nunca sem amor ou ódio, a vergonha tom a ineficiente tanto o espíri­ to quanto o corpo. Pequeno desastre visceral, que resiste

* Texto originalmente publicado em Espaces, 16,1988.

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Ah! As brins lições!

ao esquecimento e clama por um agir que não aconteceu, pois, na maioria das vezes, está relacionada a situa­ ções de impotência. Eis por que, independentemente de qual tenha sido sua causa e qual seja seu objeto, mesmo que tenhamos sentido vergonha por um outro - o que é íreqüentemente o caso trata-se, em última instância, sempre de vergonha de si mesmo. Sinto vergonha. Pode-se invocar as feridas narcísicas, os problemas relacionados ao ideal do Eu e toda espécie de considera­ ções muito sábias e não necessariamente falsas. No en­ tanto, todas essas considerações deixam de lado o fato patente de que a vergonha clama por vingança e que a ausência desta impede aquela de cair no esquecimento. Utilizo propositadamente o termo vingança e não "repa­ ração", este termo mais suave, íreqüentemente utilizado em psicanálise, traz consigo uma dose de hipocrisia ao tentar apagar a violência ligada a esse sentimento. Algumas sociedades, ditas arcaicas, são mais bem equipadas do que a nossa, ao preverem, para situações de ofensas vividas, rituais de reparação que constituem saídas honrosas para uns e outros. Já em nossas socieda­ des, engole-se a vergonha, que não tem como ser repara­ da, uma vez não existir nenhum ritual que se incumba da violência. Toda situação que engendra vergonha é uma situação de violência, real ou simbólica: violência feita ao psiquismo e, em conseqüência da impossibilida­ de de uma resposta eficiente, ao próprio corpo. Há um custo psíquico importante quando uma violência sofrida não recebe "tratamento" imediato, quando o ato de respos­ ta é coibido. E isto sempre acontece nos casos em que per­ dura a vergonha. As feridas narcísicas não se curam sozinhas. Exis­ tem condições para seu tratamento e esquecimento, que uma maneira por demais "clássica" de encarar a psica-

A vergonha d e si

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nálise não permite. Os bons sentimentos, a escuta bene­ volente, que nos protegeriam da violência, não bastam. O fato de se tratar de feridas psíquicas não autoriza a ilusão segundo a qual o consultorio do analista basta para expulsar a vergonha, simplesmente por se falar dela, se no ámbito social nada vier prolongar, por meio de um ato, sua conseqüéncia vital. Pois a vergonha é sempre soci­ al, mesmo quando o cenário no qual tenha sido vivendada diga respeito ao mais íntimo. A vergonha nos deixa de cara no chão. E para cada um a cara é também seu nome. Nesta história, por exemplo, nenhum insulto foi pronunciado, nenhuma humilhação prevista: Os alunos o designam com o olhar. Os olhares se cruzam, mas se evitam. Ele ouve alguém dizer "'Ele é órfão'*. A vergo­ nha o invade. Ele não está triste. Ele talvez os odeie. Ele não sabe muito bem. A solidão o invade. No entanto, são muito gentis com ele. Diz a si mesmo: "Da próxima vez vou me inventar uns pais". Por meio dessa nominação que o distingue dos de­ mais, ele foi destituído da comunidade que formavam. Ninguém quis que isso acontecesse. Mas o simples fato de ter recebido, no lugar de seu nome próprio, um outro nome, que veio usurpar seu lugar, desencadeou a vergo­ nha e um sentimento de humilhação, porque nada pôde fazer para que tal nomeação que o distinguia dos de­ mais não fosse vivida como uma derrota. Dessa forma, "órfão" se tomou um insulto igual a ladrão, mentiroso, ou, em outras circunstâncias "árabe", "negro", "judeu", "cigano" ou qualquer outro nome que, ao designar a diferença, vem ocupar o lugar do nome próprio. Pouco importa, então, que esse nome seja explícitamente pejo­ rativo ou designe uma simples realidade sem desejo ex­ plícito de insulto. Toda nomeação que separa desta for-

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Ah! /Is belas lições!

ma, impõe uma prisão domiciliar àquele que a recebe.1 No presente caso, tratava-se de uma prisão domiciliar na qual a infelicidade estava inscrita em letras douradas. Em outros lermos, isso significa "você não tem o direito de ser outra coisa senão um órfão", e pouco importa se isso provinha de bons sentimentos e que ninguém tivesse realmente pensado nisso. Acrescente-se a isso a real au­ sência da proteção dos pais e o fato de tomar pública uma infelicidade privada. A vergonha é uma infelicida­ de; e a infelicidade privada tomada pública afasta dos demais.

Blanchot diz: O infeliz despenca abaixo de qualquer classe. Ele não é nem patético nem d ep lorável, c apenas rid ícu lo , p ro v o ca a sco , d esp rez o , e le rep resen ta para os d em ais o h orror q u e é p a ra si p ró p rio .1 2

Há sempre um pouco de melodrama nas histórias de orfandade, no entanto todas as vergonhas de criança são um pouco melodramáticas, pois todas transformam essas crianças em órfãos no momento da destituição. Os adul­ tos vivem constantemente sob a mesma insígnia, apenas não o sabem. A impotência da criança é apenas mais patente, mais real, uma vez que não tem como recorrer nem a uma outra comunidade nem à sublimação, nem a uma eventual subversão do insulto, à qual podem ocasionalmente re­ correr os adultos quando um nome vem destituí-los de seu nome próprio. Estes podem pelo menos dizer: Black is beautiful. A criança não possui tal recurso. Exceto o ado1. Tomo emprestado essa expressão de Pierre Delaunay, que a de­ senvolveu de maneira profunda em seu trabalho "As transferências", no quadro do seminário do grupo Bris-Coilage. 2. Maurice Blanchot, "L'expériencelimite", in L'entretien infini, Paris, Gallimard,p.174.

A v ergon ha d e s i

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lescente, ao constituir csses famosos "bandos", que tanto amedrontam nossas sociedades "civis" e, no entanto, são o único recurso à honra para esses órfãos de fato quando não de direito. Quando um adulto não tem como encontrar o caminho em direção a outros insulta­ dos como ele, é porque permaneceu no isolamento pri­ mevo de sua vergonha infantil. Mas, então, como nasce esse sentimento ? Encobrindo a vergonha, existe a angústia. Afeto bá­ sico, digamos, já que funda toda relação de objeto, do primeiro objeto de necessidade ao objeto de amor, quan­ do este corre o risco de ser perdido ou atingido. Essa relação mais ou menos angustiada, mas nunca desprovi­ da de angústia, lançará sombra sobre os laços que posteri­ ormente poderemos estabelecer com outros objetos de amor e, mais particularmente, com aquele que somos para nós mesmos. Podemos, dessa maneira, nos perguntar: em que mo­ mento a vergonha se separa desse medo primeiro da per­ da do outro, da angústia de separação e das angústias pri­ mordiais? O recém-nascido não conhece a vergonha. Parece pouco provável que esta possa ser sentida antes da idade da percepção do julgamento moral do outro. Se já se exer­ ce a função do julgamento entre o "bom" e o "mau", numa idade muito precoce, bem antes da aquisição da linguagem, como, por exemplo, entre o que é bom ou ruim para comer, o julgamento entre o bem e o mal só pode ocorrer a partir da capacidade de perceber o outro, ou a si próprio, como submetido aos qualificativos linguageiros. Acredito que tal percepção seja igualmente contem­ porânea do reconhecimento e uso específico de nomes próprios, assim como da capacidade de mentir. Duas fa­ culdades eminentemente ligadas à linguagem, eminente­ mente humanas. Por mais rudimentar que o saber sobre

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Ah! As bctos lições!

a verdade possa ser no início da vida, tem a ver com a nomeação, não somente de objetos como também de pessoas; com a estabilidade da relação que isso supõe entre o nome e o objeto. Crianças muito pequeninas po­ dem mentir, assim como podem brincar de "faz-de-con­ ta". Mas isso supõe uma relação com a linguagem, na qual possam conscientemente pronunciar uma palavra no lugar de outra, um nome no lugar de outro. Uma criança do apenas dois anos, ao fazer xixi no chão, mesmo já sabendo se controlar, olha para a mãe, ri, mostra a poça e diz: "E água". Primeira mentira, primeira criação linguageira em relação à realidade. Não insistirei sobre o aspecto lúdico, assim como não tentarei saber se a mãe se aproveitou ou não da ocasião para lhe "fazer ver­ gonha". Apenas quero mostrar com isso a relativa preco­ cidade da mentira, correlativa à possibilidade de substi­ tuir conscientemente uma palavra pox outra. Não se trata de um simples jogo de palavras, trata-se sim de uma ten­ tativa de subverter o julgamento do outro. A criança que diz ao adulto: "O que você está vendo não é xixi e sim água", está, na realidade, lhe dizendo: "Não se fie em seu julgamento, sei melhor do que você". A criança, ao fazer isso, tenta inverter o apelo à obediência, ela tenta fazer com que o outro pense o que ela quer. Ela sabe que corre o risco de levar uma bronca, e, mentindo, tenta tomar o falso verdadeiro. Ela entrou no mundo dos valores, do bem e do mal aos olhos do outro, e ela o faz saber. Isso é muito diferente do primeiro julgamento em termos de "bom" e "ruim", quando, por exemplo, a cri­ ança rejeita o seio ou a mamadeira. O bom e o ruim, ainda que precursores do bem e do mal, não pertencem ao mesmo registro. A faculdade de mentir consiste numa capacidade de escapar à punição e, para além desse avatar da vida da criança, ao julgamento negativo do outro sobre si. Trata-se de uma luta contra o abando-

A vergonha de si

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no da mãe, contra o perigo de uma separação insuportá­ vel, contra a exposição do inconsolável. Essa percepção do julgamento é, no entanto, correlativa da própria ca­ pacidade de julgar o outro. É ai que acontecem os despedaçamentos íntimos, quando aquilo que é o bom, ou o objeto amado, é ao mesmo tempo malvisto. Isso pode, também, se chamar de nascimento da ambivalencia. Nesse caso, não se trata ape­ nas da coexistência do amor e do ódio, trata-se de urna confusão entre os dois níveis heterogêneos da relação com o outro. Quando uma mãe "amada-odiada", a qual a criança, mais que tudo, deseja amar, pois é o bom para ela, revela-se ruim aos olhos de um terceiro, é nesse mo­ mento que se desenrolam os sofrimentos íntimos. Os exemplos podem variar ao infinito, mas a confusão entre do "bom" e do "mau", do "ruim" e do "bem" desenca­ deia a imperiosa necessidade para a criança de sair do exdusivo registro do amor-ódio, para preservar sua ligação fundamental pelo poder das palavras. Toma-se impor­ tante argumentar, discutir e mentir sobre as atribuições de valor, perverter os julgamentos, enfim descolar da zona de afeto e dominar pela linguagem e racionalidade, ainda que muito rudimentares, os ataques àquilo que é vital. Tanto a denegação quanto a mentira consciente estão aí para preservar e pôr a salvo a parte secreta de si pró­ prio, que quer continuar amando e, principalmente, quer ser amada em toda impunidade, e isto sejam quais forem os julgamentos em questão. A vergonha nasce nessas mesmas paragens. A capa­ cidade de senti-la me parece ter de se inscrever na lógica temporal de tais diferenciações. Não há vergonha sem a prévia noção de bem e de m a l de verdadeiro e de falso, do segredo, da necessidade deste para preservar seus ob­ jetos de amor. A vergonha decorre da angústia, mas é uma aparição mais tardia no psiquismo da criança, uma

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Ah! As belas lições!

vez que está relacionada ao julgamento c ao exercício já complexo da linguagem. Donde seu aspecto essencial­ mente social. A angústia se encena a dois; ela faz parte da díade mãe-recém-nascido, mas para que haja vergo­ nha é necessário que haja um terceiro conscientemente percebido como tal pela criança. A angústia nasce do medo de perder o objeto ama­ do ou de sua espera devastadora, a vergonha é uma decadência social, ainda que o "social" seja reduzido à sua mais simples expressão: um olhar que julga. Esse olhar pode ser o da própria mãe desde os tempos pri­ mordiais de um aparente idílio, mas que não lhe perten­ ce: esse olhar que julga já é a instância à qual a mãe se submeteu e que a criança percebe como estrangeira ao território original e específico de ambas. Primeira exclusão, primeira expropriação e primeira derrota do bom para si em proveito do bem para o outro. Aí já se traçam os cami­ nhos da violência, assim como as rupturas para os futuros desmoronamentos. Concebe-se que o acesso a tais lugares, a esses mo­ mentos nunca passíveis de serem contados, seja um atravessamento particular que pede ao outro, no caso o analista, aptidões no mínimo singulares, que nenhuma faculdade, nem nenhum discurso aprendido podem ga­ rantir. O que não evita a necessidade de se tentar ver com clareza. Tê-los vivenciado não toma ninguém ne­ cessariamente mais clarividente, porém nunca tê-los co­ nhecido levanta questões no mínimo singulares... E mais particularmente esta: será preciso, no entanto, sonhar com um mundo de onde tal sentimento estivesse ausen­ te? E se, a exemplo da angústia que é um sinal individu­ al, a vergonha fosse, no que diz respeito ao social, um sinal da mesma natureza? Quando sinto vergonha pelo outro, sei que uma violência está sendo cometida. Na situação de vergonha temos, pois, de um lado, violência sofrida, do outro, impotência em reagir. Per-

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manece a questão de saber como ela se apodera do cor­ po. Como um julgamento, pronunciado, sentido ou ima­ ginado, pode provocar não apenas um afeto que eu si­ tuo como derivado da angustia, mas mesmo depois de muitos anos e ao menor sinal de sua evocação, esse de­ sastre visceral, do rubor que invade a face, a umidade da pele, e, para muitos, essa vontade de desaparecer da face da terra? E ainda que todos pareçam concordar com o fato de que a vergonha não se esquece, ou então muito dificilmente é esquecida, é porque ela está inscrita não apenas como uma representação, uma lembrança dolorosa, e sim como experiência traumática inscrita no próprio corpo. Se do lado do afeto em relação ao objeto ela deriva da angústia, há um aspecto pulsional que lhe dá fundamento corporal. Já que nem todas as angústias perduram dessa maneira. Parece-me que a pulsão solici­ tada nas experiências de vergonha é a agressividade em sua vertente mais destruidora. No entanto, nem a an­ gústia nem a agressividade são apanágio exclusivo dos humanos. O animal também apresenta manifestações de angústia e agressividade. Tanto uma quanto a outra, como afeto em estado bruto e pura pulsão, prescindem dos valores linguageiros. Podem ser diretamente relacio­ nadas às situações de perigo e às respostas mais ou m e­ nos eficazes que estas autorizam: são da ordem do ata­ que ou da fuga. O conflito entre essas duas respostas provoca no animal comportamentos que, por antropo­ morfismo, qualificamos de "neuróticas". Ele fica doente. O humano ainda que não adoeça propriamente falando, desmorona, pois seu espaço simbólico de vida fica assim orientado pelos valores que a linguagem instaura. A pul­ são agressiva põe em jogo a integridade do próprio cor­ po e, consequentemente, de sua imagem. Quando o ob­ jeto de amor é atacado por um terceiro, ferido ou sub­ metido pelo insulto, o próprio sujeito é atacado e deve

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Ah! As befos lições!

encontrar uma saída para aquilo que espontaneamente se desencadeia nele no plano mais primário da pulsão agressiva. Esta não pode, no entanto, se expressar nas situações que dão origem à vergonha, uma vez que o sujeito aí se encontra em situação de impotência. Em vez de se dirigir sobre o "inimigo", ela deve encontrar uma outra saída. Para a pulsão essa saída é o próprio corpo. O sujeito é, assim, duplamente atingido: em seu objeto de amor, do qual sempre é apenas parcialmente separa­ do; e em sua capacidade de resposta, sofrendo desse modo a violência da pressão da pulsão contra si próprio - seu corpo, sua face, seu nome. Podemos constatar que nos casos em que houve descarga agressiva endereçada ao destinatário simbólico correto, a vergonha não preci­ sou estar necessariamente presente ao encontro. Caso con­ trário, o humano adoece como o animal, mas à sua manei­ ra: ele soma tiza, como se costuma dizer; principalmente pelo i*ubor no rosto, reação visceral reprimida da raiva, mas localizada de modo tão particular na face. Mostra aquilo que gostaria de esconder. Eis por que, ao falar da vergonha, não basta evocar o afeto, seja a angústia ou seu outro derivado, a culpabi­ lidade, sem evocar a pulsão agressiva, que é a vertente corporal, que leva a agir e, ao permanecer em sofrimen­ to, faz sofrer o próprio corpo. Mesmo que a representa­ ção possa ser recalcada, o afeto deslocado mudar de objeto, a pulsão permanece intacta e volta como real do corpo. Daí decorre, também, a dificuldade do esquecimen­ to e o perigo da ilusão, quando imaginamos poder curar a vergonha aguda apenas com boas palavras, caso nada do pulsional seja satisfeito. Duas saídas se apresentam nesses casos: a primeira, é a vingança, tipo lei de talião, o ato de crueldade, que pode satisfazer a pressão pulsional, e isso desagrada; a

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segunda, mais conforme aos desejos dos analistas, e da sociedade em geral, é a sublimação. Acontece de fato que as pulsões, nos humanos, per­ mitem essa transformação tão particular, assim como a naftalina pode desaparecer em sua materialidade bruta em proveito de uma existência etérea, sublime, cujo lu­ gar seria o espírito. Durante muito tempo me perguntei se isso seria mesmo verdade... Ainda que muitos homens passem a maior parte de seu tempo a trucidar outros, em corpo e espírito, é preciso constatar que alguns são capazes, mes­ mo depois de terem sido feridos, de agir de outra maneira. A questão da sublimação exigiria desenvolvimentos mais sutis que aqueles que posso me permitir aqui. Reto­ mo-a, pois, como hipótese tal qual Freud a introduziu. No entanto, com uma ressalva no que diz respeito à vergonha. Segundo Freud, toda vergonha se originaria na vergonha sexual da criancinha diante do adulto. Pa­ rece-me que aquilo que ele chamava de vergonha muitas vezes não passava do pudor da criança ao descobrir suas emoções sexuais e seu desejo de mantê-las protegi­ das de qualquer ataque. Se o pudor se transforma em vergonha, e parece que teria sido o caso de Freud crian­ ça, é porque o fizeram sentir vergonha nesse lugar de sua pessoa e essa permaneceu ligada para ele em todas as suas experiências ulteriores. Mas aí se trata de um trauma pessoal, em grande parte condicionado pela época e educação em vigor (o que evidentemente ainda acontece com freqüência) e não de uma constante do psiquismo humano. O que, pelo contrário, aparece com maior constância, e não depende dos acasos da educação ou condicionamento, é a necessidade que todo sujeito tem de pertencer ao grupo dos humanos e, conseqüentemente, do meio social no qual vive. Que o desejo de perten­ cer ao grupo de seus semelhantes deriva, de modo geral,

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Ah! As belas lições!

da pulsão de vida, de Eros, c incontestável. Considerado sob esse ponto de vista, aceito o primado sexual, como vetor daquilo que leva em direção à vida, e também como pulsão ligada a todas as outras na tenra idade, desde que estas não sejam reduzidas a histórias de ver­ gonha quanto ao tamanho do pênis ou, mesmo, o pavor provocado pela sua ausência na menina. Essas são histó­ rias particulares de vergonha, como podem ser particu­ lares todas as histórias. Não consigo reduzir a essa pro­ blemática todas as vergonhas ulteriores, sem que eu pró­ pria sinta vergonha perante tais reduções abusivas. Que laço poderia existir, senão social, entre "vergo­ nhas" tão diferentes umas das outras quanto a de: ser de outra origem, de outra cor, ser órfão, ter um sotaque, a vergonha de ser pobre, desempregado, feio, impotente, doente, filho de um pai derrotado, de uma mãe mal arru­ mada etc., enfim, de ser "outro", visto de cima pelos outros? Que laço, senão aquele de correr o risco de ser nomeado como diferente pela instância que detém esse poder e, freqüentemente, os "outros" o detém? Tal deno­ minação reduz o ser a não ser mais nada além disso, acarretando a perda do nome próprio no mesmo instan­ te, a perda da identidade em proveito de um qualificati­ vo, mesmo quando esse designa uma realidade não ver­ gonhosa para si. Toda nomeação faz aquele que é seu objeto correr o risco de ser excluído da comunidade. Que por vezes isso diga respeito ao imaginário não dimi' nui em nada a ferida, que não é imaginária quando toca ao mesmo tempo no real do corpo e no simbolismo do nome próprio. O fato de ter um dia recebido um nome é o que estrutura o humano, tanto em sua relação com os outros quanto com o reconhecimento que tem de si próprio. Mas ter recebido um nome o corta de uma vez por todas do outro. Esse corte que o social mais elementar impõe ao

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pequenino do homem não se faz sem dor. É a primeira perda simbólica, a primeira separação irreversível, ins­ crita pela e na linguagem. No lugar desse nome, sob esse nome, reside o lugar do inconsolável. "Meu nome me separa de ti, mas também graças a ele você pode me cha­ mar." Se a ofensa vier nesse mesmo lugar, então tudo pode desmoronar... "Sinto vergonha". A vergonha de si reside sob toda vergonha que impede responder ao ape­ lo primeiro que é o nome próprio. Esse apelo significa a separação ao mesmo tempo que é sua consolação. O inconsolável é a ausência de qualquer apelo. Não se trata desse EU que seria odiável, mas do ser vivo como um todo, que o nome próprio convoca para a comunidade do outro. Nome, ao mesmo tempo, signo da separação e lu­ gar de uma convocação necessária. Qualquer outra apela­ ção que se substitua sem cuidados, sem prova de amor ou reconhecimento, reduzindo a singularidade em proveito de um apelo que cataloga, no melhor dos casos fragiliza, no pior mata. Donde provavelmente a inquietante impressão pe­ rante aqueles que não conhecem a vergonha e, conseqüentemente, a infligem mais facilmente aos outros. Em toda inocência, ou crueldade... como uma vingança que não diria seu nome. Em qual mundo de esquecimento profundo eles vi­ vem, de qual perpétua boa consciência encontraram a ar­ madura para nunca terem vivenciado essa desorganização do corpo e do espírito? A não ser que suas primeiras experiências tenham deixado uma ferida tão profunda que eles próprios não podem se permitir o luxo do reencon­ tro. O simples fato de pensarem nisso consistiria um risco de desmoronamento. Existem, também, as "boas" catalogações, as boas ocupações: "Sua excelência o presidente", "Sua excelência o ministro", "Doutor", "Professor", "Mestre". Para di­

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Ah! As bchs lições!

zer a verdade, elas visam ao mesmo lugar que o insulto, são simulacros do apelo, só que vindos de baixo, colo­ cando aquele a quem se dirige no alto. O local do incon­ solável fica assim exaltado, nada além disso. Dessa maneira, alguns adultos, que permaneceram "bebês sábios" ressentem por vezes uma certa vergonha em se ouvir chamar assim...

éias lunáticas * La poésie vit d'insomnie perpétuelle

René Char

As noites em claro têm má reputação. Podem, po­ rém, ocasionalmente ter uma graça toda própria: no li­ miar da angústia, no cerne da insônia, pode acontecer que algo bascule, a preocupação com o cansaço do ama­ nhã se esvaneça, a inquieta espera do sono se tome me­ nos insistente, as idéias se sucedam no fervor e a gente esqueça de se espantar diante da constatação de que pen­ sar possa ser algo tão fácil. A lógica se toma mais ligeira, a demonstração evi­ dente e as descobertas se impõem em sua verdade inconteste. Não se teme mais ninguém, o medo desapare­ ceu. Os pensamentos noturnos brilham num estranho esplendor. A mania é, sem dúvida, prima-irmã dessas noites nas quais se torra as meninges como outros torram di-*1 * Texto originalmente publicado em Psychiatrie Française, 1989. 1. A poesia vive de insônia perpétua.

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Ah! As belas lições!

nheiro. Assim, raramente essas idéias deixam rastros. Ao amanhecer elas empalidecem, seu brilho noturno se apa­ ga com a chegada do dia. Seriam elas falsas em função disso? Nada permite afirmá-lo. Tornam-se apenas menos convincentes para o próprio sujeito, o qual, com a ativida­ de diurna, não só perde a exata lembrança, como também sua íntima convicção. Sobra uma pálida recordação, intransmissível tanto ao outro quanto a si mesmo. É, no entanto, público e notório que algumas grandes descober­ tas foram feitas a partir desses momentos de pensamento insone. Nesses casos, o sujeito foi capaz de integrá-las a seu pensamento diurno sem perdas; elas vinham na seqüência de uma interrogação prévia à qual, de certo modo, respondiam; sua memorização, sem dúvida, foi fa­ cilitada por essa continuidade com as questões do dia, sem contar que, freqüentemente, seus autores as fixavam também sobre o papel sem permitir ao sono encontrar meios para atenuar sua vivacidade. Mas não é preciso ir em busca de exemplos célebres. Todos já vivemos essa experiência, e é como momento da psicopatologia da vida cotidiana que esse fenômeno é in­ teressante, ainda que o conteúdo dos pensamentos notur­ nos nem sempre possua a propriedade de subverter as idéias em curso. A questão que se coloca neste caso é a mesma; qual é essa relação outra instaurada entre o sujeito e seu próprio pensamento, esse gozo particular que faz o pensamento alçar vôo com ligeireza e íntima convicção de sua exati­ dão? De onde vem essa súbita facilidade de elaboração e acrescida capacidade de ordenar as idéias? Entendendose que toda descoberta é antes de mais nada processo subjetivo, fruto de uma convicção íntima, e que sua viabi­ lidade e credibilidade para os outros decorrem do traba­ lho que lhe confere sua forma racional ou o viático de um código comum, ainda que seja o da poesia. A descoberta

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só sobrevive pelo trabalho que a consolida para os de­ mais. É o que se chama de demonstração. Se as idéias que iluminam estranhamente a noite são tão particulares, é porque não são da ordem da descoberta fortuita e desinserida; elas são produto de um espírito trabalhador, e são sustentadas por tudo aquilo que caracteriza justa­ mente a racionalidade ou uma elaboração intelectual. A lógica, até mesmo o estilo, não estão ausentes e são justa­ mente eles que, primeiro, se esvanecem com o chegar do dia, perdendo sua credibilidade para o próprio sujeito. Seja qual for o conteúdo do pensamento, descobre-se para si, trabalha-se para o outro. Dessa diferença da rela­ ção entre o próprio pensamento e aquele dos outros, nas­ ce a dificuldade da passagem da noite para o dia. Mesmo quando a lógica não parece ausente do pensamento no­ turno, parece que o outro imaginário, ao qual nos dirigi­ mos, deixou de ser o mesmo com o despontar do dia. Esse outro noturno é mais próximo de si, diria mesmo que é esse si mesmo, em parte aliviado do princípio de realida­ de que, seguramente, nem é o mesmo para todos nem em qualquer circunstância. Citarei dois autores. Para Cioran [há]: D uas form as de espírito: diurnos e noturnos. N ão possuem nem o m esm o m étodo nem a m esm a ética. Em pleno dia nos controlam os; na escuridão, dizem os tudo. A s conseqüências salutares ou de­ sastrosas daquilo que pensa im porta pouco para quem se interroga nas horas em que os outros são tom ados pelo sono. A ssim m edita sobre o infortú­ nio de ter nascido, sem se preocu par com o m al que pode causar a um ou tro ou a si próprio. D e­ pois da m eia-noite com eça a excitação das verda­ des perniciosas. (O inconveniente de ter nascido.)

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A h!

belas lições!

Se parece exagerado íalar cm euforia, tratando-se de Cioran, aparece, mesmo em seu visceral pessimismo, esse elemento de liberdade do qual goza aquele que pensa enquanto os outros dormem... E por mais desolado que Cioran pareça por ter nascido, nem por isso deixa de falar em "excitação", termo adequadíssimo para designar um estado de gozo. O mesmo ocorre com Kafka: Quando, finalmente, se endireitará um pou­ co esse mundo pelo avesso? De dia se vai, se vem, se passeia, a cabeça assada... c à noite, em vez do sono, surgem idéias geniais. (Cnrtns a Milena.)

Essas idéias vêm no lugar do sono, mas também en­ quanto os outros dormem. Eis as duas condições que me parecem caracterizar a em ergência desse modo de pensa­ mento. São condições de liberdade subjetiva. Para pensar verdadeiramente, é preciso se sentir livre. Não é exata­ mente a mesma coisa quando se trata da racionalização que, infelizmente, pode se dar nas piores condições. Até o terror pode ocasionar um a atividade racionalizante, en­ quanto parada e ordenação de um a divagem protetora. O outro dorme, o censor malevolente cede o lugar a um interlocutor imaginário, um si m esm o benevolente2 para com sua própria produção de idéias, na qual se reco­ nhece e pode se am ar em absoluta impunidade. E devido à noite, nem a realização nem a passagem ao ato estão em primeiro plano. Pois, apesar da ausência do sono, esse pensamento que vem tom ar seu lugar evita o recurso à motricidade. Esta não é inibida com o durante o sonho, m as é inatividade, pensa-se em vez de dormir. Pode-se supor que o sujeito esteja aí num a relação mais próxim a de seus processos prim ários que na ativida-

Idéias lunáticas

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dc intelectual diurna. O princípio de realidade é, d e ss e

modo, menos exigente em relação ao princípio de prazer e toda potencialidade do pensamento adulto pode se be­ neficiar da onipotência narcísiea infantil, lúdica e criado­ ra. Esse pensam ento não é, no entanto, irracional com o podem ser as representações oníricas; nem é realista. É, de certa forma, hiper-realista, tanto é verdade que parece rea­ lizável sem obstáculo, e sua forma consegue a adesão do sujeito.

No entanto, na maioria das vezes, esse pensamento é efêmero. O mais irracional dos sonhos pode deixar, quan­ do se acorda, traços mais precisos. Será por ousarmos lembrar, por estarmos protegidos pelo saber de que "tudo não passou de um sonho"? O aspecto pouco razoável da genialidade noturna a torna menos aceitável, pois suas produções, tendo o estatuto de idéias e não de sonhos, não podem ver a luz do dia fora da submissão à razão dos outros, esses pensamentos comuns que regulamentam a comunicação com outrem e, conseqüentemente, consigo próprio, sem que se consiga realmente dar conta da parte imputável ao medo. Pode-se, por outro lado, sob a condi­ ção de prestar-lhes um mínimo de atenção, medir à luz dessas experiências tão comuns, a que ponto o homem "razoável", mesmo bem-adaptado, vive, pensa e se pensa nas e baseado nas idéias de um outro; e a que ponto o amor de sua criação original permanece, apesar de tudo, um gozo oculto. Foi propositadamente que escolhi citar Kafka e Cioran, dois autores sobre os quais o mínimo que se pode dizer é que seus escritos não se caracterizam nem por uma euforia existencial particular nem por uma submis­ são excessiva às idéias recebidas. E, no entanto, é à noite que lhes vêm suas idéias mais livres, vencendo a depres­ são diurna. Afinal, é preciso limites para a depreciação de si próprio, e até para escrever com todo pessimismo é

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Ah! As belas lições!

necessário um pouco de gozo de si. Haveria para todos, assim como para esses grandes pessimistas, a recuperação de uma intimidade perdida, na qual as descobertas notur­ nas seriam reencontros? Metáfora de reencontros de um mundo mais materno, que o pai, sinônimo da ordem e da lei comum do dia, reprimiria em nome da obediência a um princípio de realidade? O sonho, em virtude de seu estatuto extraordinário, permite que a existência de um pensamento pessoal, até extravagante, persista e deixe um traço. “Não passou de um sonho", então tudo é per­ mitido. Contudo, caso essas mesmas idéias abram um ca­ minho no pensamento acordado e atravessem a barreira do dia, então a aposta se toma mais arriscada e implica maiores riscos subjetivos. Não é audacioso quem quer. Ora, o risco não é um simples risco de erro, é risco de loucura. E isso tanto mais quanto não se trata de delírio, já que se mantém a cabeça no lugar e, conseqüentemente, a alternativa de se calar. Às vezes, tais estados se manifestam em pleno dia. Alguns amam a maneira como pensam à noite, e seus amores vão de ruptura em ruptura. O outro nem sempre é viajante da lua, e se toma briguento por ninharias a serviço da lógica diurna. Quem o condenaria? Por al­ guns elos faltantes, pequenas irrupções dos processos se­ cundários, uma negação a mais, uma condensação a me­ nos, um deslocamento mais transparente, e sua vida teria sido mais suportável... Certas sessões de psicanálise se caracterizam, do mesmo modo, por esse fervor afetivo e intelectual. Os pacientes se põem a pensar com toda Uberdade e deixam sua inteligência vagar à vontade, e acontece de na sessão seguinte não reencontrarem mais o brüho de seus pensa­ mentos. É porque o estado psíquico não é mais o mesmo. Era a magia da transferência quando, acreditando amar o analista, o paciente ama finalmente sua própria produção

Id éia s lu n á tic a s

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linguageira e intelectual. É verdade que muitos se lem­ bram com nostalgia da inteligência particular da qual pu­ deram gozar em certos momentos do tratamento. O fim da transferência e do tratamento são, a esse respeito, como a chegada da ordem diurna e, com esta, a aceitação da infelicidade ordinária. As crianças, comumente, têm medo do escuro, e à noite chamam pelo adulto. Para elas, o outro ainda repre­ senta uma proteção. Estranha reviravolta do momento do medo. O adulto se sente mais livre no meio da noite, e pode divagar sem medo. Com a chegada do dia, recalca suas idéias lunáticas mas, contrariamente à criança, des­ conhece seu medo. Isso prova que a criança, mesmo na obscuridade da noite, é mais clarividente que um adulto de dia. Acontece, por vezes, que Pierrô lunar não acorde. De lunar. Pierrô se torna lunático. Toma o metrô para ir a seu trabalho, mas fala sozinho, condenado pelos outros. Com que se drogou, senão com o amor por seus próprios pen­ samentos? Essa manhã, por razões misteriosas, não quis ceder. Acontece, inclusive, que, assustados, seus vizinhos o levem ao Hospital Psiquiátrico, onde outros, chamados de médicos, e tendo feito longos estudos para ter o direito de opinar sobre seu caso, o declaram louco. "Os médicos não parecem estar bem", pensa ele num último sobressalto. Pierrô lunático ficará internado por um certo tempo, tomará neurolépticos e a visão de blusas brancas substi­ tuirá suas manhãs. A seguir, tudo entrará nos eixos. Vol­ tará a ser lunar; um pouco mais triste por dentro, nada de diferente, a vida de antes e o silêncio sobre os "brilhos" íntimos. As blusas têm orelhas... E os médicos mau aspecto... Entre estes, raros são aqueles que nunca conhece­ ram, mesmo pelo tempo de uma noite, o voo de sua inte­ ligência desenfreada. A diferença, por vezes, é mínima. Ela reside no silêncio do esquecimento de suas idéias lu-

ISO

Ah) As belas lições!

náticas e na aceitação do medo do outro que surge com o raiar do dia.

Durmam, desesperados, logo vai scr dia, um dia de inverno. René Char

.% ! As belas lições!* ... l'horloge sonne Em rang por quatre s'il est quatre heures

par six s'il est six heures chacun a ses petits fantômes qui s'en vont à ¡'école...'

Michel Leiris (Damoclès, dans Autres Lancers.)

As práticas da psicanálise se fundamentam de for­ ma mais ou menos explícita numa teoria da cura e se situam necessariamente em relação a Freud. Para ele, o tempo da sessão se referia às condições de trabalho e, também, sem equívoco algum, à questão do pagamento: Atribuo a cada um de meus doentes uma hora disponível de meu dia de trabalho; essa hora lhe pertence e cobro por ela, ainda que ele não a utilize. Essa condição que, em nossa boa sociedade, *2 parece * Texto originalmente publicado em NRP, 41, "L'épreuve du temps", 1990. 1.0 relógio soa / Em fila de quatro se são quatro horas / De seis se são seis horas / Cada qual tem seus pequenos fantasmas / Que vlo para a escola... 2. A tradução de Anne Berman menciona "a boa sociedade", omitindo a palavra "nossa" do texto alemão. "Le début du traitement", in La technique psychanalytique, 1913.

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Alt! As belas lições!

lógica quando se trata de professores de música ou de línguas, pode parecer oxeessivamente rigorosa, quando nào indigna da profissão, ao se tratar de um médico.

Já que Freud não teve um analista a precedê-lo, ins­ pirou-se nos costumes da boa sociedade vienense, assídua clientela de aulas particulares. Som abandonar Freud, que me seja pelo menos per­ mitido sair de Viena. Após um início no qual, como muitos jovens analis­ tas, reproduzi as condições que presidiram minha própria análise, comecei a me questionar quanto à "nossa boa so­ ciedade". A prática de todo analista é, a meu ver, subme­ tida a uma dupla influência: de um lado, suas próprias convicções teóricas, quase sempre subordinadas a restos de mimetismos, seqüências mudas mas ferozes da trans­ missão inconsciente, a qual é feita da reprodução de ges­ tos, entonações, tiques e hábitos corporais provenientes de seu próprio analista; e, do outro, aquelas influências induzidas pelo tipo de "clientela"que lhe é dirigida ou chega até ele em função da transferência que suscita por meio de seus diferentes engajamentos sociais e institucionais. Tempo e dinheiro não se relacionam para todos da mesma forma. Com o passar do tempo, e em função da própria experiência, todo analista acaba modificando, al­ guns mais outros menos, o modelo de sua própria análise (esta, em certos casos, quando reconhecidamente nefasta, pode se erigir como antimodelo), isso se conseguir nego­ ciar, tanto no privado quanto no público, com o peso superegóico exercido pela instituição ou grupo ao qual pertence, verdadeiras forças de censura. Em minha maneira de trabalhar, o que foi determi­ nante, além de minha própria experiência de analisante, foi o fato de vir atendendo, nesses últimos 15 anos, muitos pacientes para os quais sou o segundo, terceiro

Ah! As betas lições!

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ou mesmo quinto analista. Isto me permite entrever os efeitos dessa ou daquela prática. Tento ver, para cada analisando, qual é o tempo de que necessito para ouvi-lo e para que se estabeleça um contato, ou para modificar um ritual herdado da ou das análises anteriores. Isso no interior de um leque, que vai de meia hora a uma hora e meia, momento em que me canso, ou que é meu limite, o que posso dizer ao paciente. Ainda que o tempo possa variar de um analisando a ou­ tro, cada qual dispõe por um longo período de um tempo constante. Quando muda é, na maioria das vezes, no qua­ dro de um remanejamento no ritmo das sessões, da passa­ gem da posição deitada para a sentada ou inversamente. Eis, resumidamente, as considerações sobre as quais me baseio para tanto: 1 . 0 tempo - ou seja, a duração - não pode ser manipu­ lado sem que isso acarrete uma manipulação do espaço... Espaço e tempo são indissociáveis na experiência huma­ na... Cada uma dessas dimensões intervém de um modo privilegiado: a espacial domina onde se manifestam os aspectos pulsionais e corporais, tais como a agressivi­ dade ou as feridas narcísicas primárias; a temporal diz respeito àquilo que, esquematicamente, podemos cha­ mar de relação de objeto, a perda, as modalidades da espera e, portanto, da angústia. Tempo e espaço estando ligados, a modificação de um acarreta necessariamen­ te modificações no outro, em níveis que nem sempre podemos avaliar. Tudo aquilo que diz respeito à rela­ ção com o outro como semelhante, bem antes que o outro se constitua como diferente, está ligado ao ambiente es­ pacial, na maioria das vezes humano, mas também não-humano. 2. Parece-me conveniente explicitar que o psicanalista op­ tou por trabalhar num quadro com regras que limitam

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Ah! As belas lições!

sua ingerência e poder, de forma a não confundir as regras de um funcionamento com o simbólico. Caso contrário, o deslize acontece e o analista se toma pelo re­ presentante da lei. Esta está nos fundamentos de toda sociedade humana e não depende do analista, ainda que sua tarefa consista em tomá-la eficiente para aqueles que, em função de sua história ou estrutura psíquica, façam um uso perverso dela. Mas é algo que depende do tra­ balho psíquico e da palavra e não de uma intervenção muda sobre o tempo do analisando. 3. A variação do tempo da sessão sob a exclusiva autori* dade do analista é um agir sem palavras, que pode ser ressentido, pelo analisando, como puro arbítrio, deixan­ do-o entregue aos im pulsos do psicanalista sem nenhuma regulamentação das expressões inconscien­ tes de sua transferência. Uma duração constante da sessão constitui, certamente, uma barreira frágil, mes­ mo que necessária às interpretações ou projeções de parte a parte. É interessante constatar como tudo isso emperra nos momentos de regressão ou surto. Ora, aquele que se apropria do tempo de um modo que possa parecer ar­ bitrário ao analisando, apropria-se ao mesmo tempo de seu espaço. Certas variações mal-vindas quanto ao tem­ po equivalem a uma agressão ao espaço próprio do analisando, isto é, à sua imagem corporal. 4. Se uma modificação do quadro e do tempo da sessão me parecem úteis, prefiro explicitá-las. Ainda que pos­ sa me enganar, penso ser menos nefasto fazê-lo por meio de um discurso falado, o qual se pode recuperar, do que por uma manipulação do tempo de sessão, que é um agir.

Depois desse exercício de "ensinamento" ao qual acabo de me dedicar, e que poderia ter prolongado, tendo

A h! A s b e h s lições!

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usufruído - e às vezes contestado - as lições de Freud, Lacan, Ferenczi, Searles, Balint e Wirmicott, de meus ana­ listas e de meus contemporâneos, sinto-me no dever de acrescentar as que meus analisandos me dão e, por vezes, me infligem. Elas nem sempre vão no mesmo sentido e são mais fortes que minhas capacidades argumentativas. Para se opor ao que pensa seu analista e demovê-lo daí, á preciso gozar de uma robusta saúde, o que é, felizmente, o caso de muitos deles, que apesar de um grande sofri­ mento resistem à resistência do psicanalista, a seus medos e agarramentos transferenciais, Quando este não á exces­ sivamente rígido ou frágil, pode ouvir o que lhe diz o paciente e mudar; caso contrário, o paciente se esgotará dispensando cuidados intensivos à criança-analista, a me­ nos que seja forte o suficiente, e não demasiado culpado, para deixá-lo. O que penso dever fazer e aquilo que efetivamente faço nem sempre coincidem. Pensar e escrever são coisas que fazemos em condições calmas, enquanto as sessões nem sempre são tranqüilas, pois, para sermos honestos, temos de reconhecer o analista como alguém que também se deixa afetar. Caso contrário, não haveria motivo para conceder um lugar à transferência. Qualquer que seja o fundamento de um quadro espaço-temporal constante, em certos momentos pode parecer derrisório em relação ao insuportável que vem aí se representar. Há violência, contágio de estados emocionais, invasão psíquica, culpabi­ lidade, paixão negativa e positiva, rejeição, medo, cólera e, finalmente, tédio. Nessas horas, queiramos ou não, temos de nos mexer, porque o outro deixou de ser o padente ideal, diante de quem as regras ou ideais do analista "agüentam o tranco"; o tempo da sessão se toma ou curto ou longo demais, enfim escasso, seja ele qual for, e nesses momentos se faz o que se pode. Toda generalização im­ plica, necessariamente, uma posição teórica, que o hábil

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Ah! As belas lições!

uso da retórica torna sempre convincente, e não leva em consideração, de bom grado, os casos a-típicos, aqueles que não se enquadram, provocando um arranhão na imagem "profissional". Decretá-los inanalisáveis consis­ te, frequentemente, num gesto de puro comodismo. Em tais ocasiões pode-se viver seqüências por vezes dramáti­ cas, seja de ruptura irrecuperável, seja, pelo contrário, momentos fecundos, de descoberta, momentos de genia­ lidade a dois. Uma vez que um psicanalista nunca pode ser genial sozinho, precisa da genialidade do outro, o analisando, e vice- versa. Eis o limite da lição: para al­ guns tudo começa onde esta acaba. Isto não se ensina, não se aprende e de modo algum deve ser prescrito, pois se trata de algo impossível, quando não perigoso. Diante da dificuldade de fazer sempre aquilo que dizemos, é possível tentar dizer o que fazemos! Por que será que nessas horas pesa sobre nós a grande suspeita, de que estaríamos promovendo uma clínica sem teoria? A perda desta, ainda que momentânea, parece, para alguns, ainda mais perigosa que a clivagem entre, de um lado, as práticas clandestinas, e, do outro, uma teoria que se sustente. Foi assim que me deixei desalojar de minhas próprias certezas para introduzir variações no tempo da sessão, às vezes apesar de mim mesma, outras, felizmente, de modo pensado. Quase sempre a modificação foi no sentido de um prolongamento do tempo da sessão. Isto em virtude de estar recebendo pacientes que, em suas análises anteriores, tiveram muito pouco tempo, con­ tato, palavras, que, vindo se sobrepor a situações traumá­ ticas da infância, pode desembocar em graves conseqüências somáticas. Nesses casos, há urgência em desdramatizar o momento da separação, deixar de repetir o que já lhes foi imposto, permitindo, por exemplo, que o próprio ana­ lisando ponha fim a uma sessão, sem que isso represente necessariamente uma ruptura. Gostaria de assinalar,

A h! A s belas lições!

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aqui, o caso do célebre obsessivo, que supõe-se curar-se ao ser privado de suas eternas repetições, ao ser posto na rua ao cabo de cinco minutos, mas fica igualmente desorientado quando, de modo inesperado, tem uma sessão muito mais longa que aquela a qual julgava ter direito! Esse fato, além da desorganização e da crescente surpresa que provoca, tem a vantagem de produzir ma­ nifestações "no aqui e agora". Se é vantajoso para o paciente, é seguramente desvantajoso economicamente para o analista! É preciso saber o que se quer. Certos analisandos estão de tal maneira marcados pelos "hábitos" de um analista, seja o das sessões curtas ou longas, em que o dogma deste está sempre em jogo, que muitas vezes me parece indispensável burlar essa marca do outro. Quando me acontece de reduzir delibe­ radamente uma sessão, o que é bastante excepcional, é porque tenho certeza de não se tratar da repetição de um momento de intensa persecutoriedade na transferência. Não sei bem por que, mas para certos analisandos preciso de sessões mais longas que para outros. Frequen­ temente fico sabendo no après-coup. Pois não é apenas a "necessidade" do paciente que exige uma eventual mo­ dulação do tempo. Afinal de contas, o analista, quando surdo, também deve se tratar. Certos pacientes teriam continuado totalmente incompreensíveis para mim, em sua singularidade, se eu não tivesse introduzido modifi­ cações não apenas no tempo de sessão, como também em outras modalidades, como a frequência das sessões ou a posição. Eu os teria reduzido, agarrada a uma úni­ ca regra como a um regulamento, apenas às suas estru­ turas, o que é uma abstração, ou, então, a elementos linguageiros excluídos de um contexto necessário para dar sentido a este ou aquele elemento. Seus afetos, suas representações, seu mundo fantasmático, assim como seu modo de pensamento, teriam permanecido fora de minha capacidade de entendimento.

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Ah! /Is belas lições!

O hábito c para o analista urna das formas princi­ pais de sua própria resistência à psicanálise, sendo que toda a dificuldade consiste justamente em não cair nem num a excessiva rigidez nem na usurpação de um direito fora das regras, sob pretexto de interpretação. Se é ne­ cessário ter uma idéia do que c o enquadre analítico, do qual faz parte a questão do tempo da sessão, este pode se transformar numa camisa-de-força, num empecilho ao encontro e desenvolvimento do tempo subjetivo dos protagonistas. Para que serve uma regra quando em vez de favorecer o advento da subjetividade ela o dificulta? Falar, brincar, rir, tempera, como o mostrou tão bem Winnicott, o aspecto austero da tarefa sem, no entanto, tirar-lhe a seriedade. A referência ao mito edípico não impede de rir, e o trágico não é obrigatório. Acredito que a psicanálise não trata exclusivamente dos processos primários ou das m anifestações do in­ consciente. O trabalho de "desligamento" pode se reve­ lar destruidor se não se levar em conta as modificações que engendra nos processos secundários, basicamente pela ancoragem de novas ligações, sendo que uma de suas manifestações é a capacidade de pensar, basica­ mente de poder se pensar sem análise, assim como po­ der passar para uma elaboração solitária das manifesta­ ções sintomáticas. Isso necessita de um tempo passado "juntos". Se não é desejável se confundir com seu paciente, também não é obrigatório continuar eternos estrangei­ ros, falando durante anos uma língua da qual tanto um quanto o outro só conhecem as palavras, mas da qual não ouvem nem a música nem o valor afetivo. Uma sessão tem, também, sua prosódia. E o analista suas pre­ ferências... já que nunca se é suficientemente bem anali­ sado! Por nada desse mundo eu teria interrompido uma fr a s e de Proust... fosse ela a expressão máxima de seu sintoma. E sua asma? - me dirão vocês. Pois bem, trata­ ria de descolá-lo de sua mãe por outras vias!

Ah ! Ar* bfúas lições!

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Mesmo que seja sempre possível ouvir, escutar não é garantido. O que sei hoje em dia, é que para alguns preciso de mais tempo que para outros, para escutar, falar, mas também para ver, pensar, sentir e pensar nis­ so tudo. O outro, o analisando, é antes de mais nada um estrangeiro, mas existem estrangeiros mais estrangeiros que outros! A época na qual vivemos já o ilustra de modo exemplar. A mínima das éticas é de se conceder o tempo necessário. Esse tempo é, às vezes, um tempo rou­ bado à instituição: aos gozos autorizados pelo trabalho, família, casamento, Estado, previdência social, e, l a s t b u t n o t le a s t , pela aula de psicanálise. Independentemente do tempo da sessão ser curto, longo, fixo ou variável, é sempre aconselhável que, num momento ou no outro, possa ser retom ado pelas duas subjetividades presentes, ambas dotadas de palavra, o que supõe um psicanalista que fala, para que o analisan­ do possa se ouvir dizendo a alguém vivo, em sum a a um semelhante, que chegou a hora dele partir. A ssim com o há dois preços: aquele que se cobra, e pode parecer baixo em relação àquele cobrado por aí, mas pode ser m uito caro para aquele que paga. Aliás, a questão da variabili­ dade do preço, será ela discutida? Eis por que, a m eu ver, uma sessão de psicanálise não é uma aula particular que se oferece "nossa boa sociedade". A tendência natural das instituições psicanalíticas é, no entanto, transformá-la em aula. Exigência do ensino.

(Do divã à poltrona: o passe do guéridon*1 Um divertimento La rude monnaie des rêves sonne à présent sur les dalles du monde.*12 Paul Celan

Outrora, quando crianças, chamávamos essa passa­ gem do divã à poltrona de passe. O Mestre da escola nos ensinara que era assim que se dizia. Esse hábito que consistia em significar que alguém se tornava psicanalista, isto é, que começava a trabalhar como psicanalista, pela designação de uma mudança na postura corporal, nunca deixou de me intrigar. Pior ain­ da: pelos móveis que sustentam o dito corpo.

* Texto originalmente publicado em Vêtre et rebus, 1990. 1. Guêridon, em português, pode ser traduzido por candeeiro, mesa redonda de um pé só, normalmente de tampo de mármores, na qual se põem objetos de luxo. Também é o nome de um personagem da comédia. Optei por não traduzir o termo, pois, como o leitor poderá se dar conta, a manutenção do termo em francês é fundamental para a compreensão do texto. (N. da T.) 2. A rude moeda dos sonhos / Soa no presente / Sobre as lajes do mundo.

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Alt! As belas lições!

O Dicionário etimológico de Bloch o Wartburg dá as seguintes definições para esses móveis: Divã, 1653, no sentido de "estrado para almo­ fadas", referindo-se aos turcos. Anteriormente de­ finido "corte ou conselho", 1558, em referência à Turquia; no século XVIII, "conselho de ministros etc.", e também, "na casa dos notáveis turcos, sala dc recepção, cercada por almofadas". Emprestado do turco íUottnn, que a esses sentidos anteriores, ele próprio tomado de empréstimo do persa diwan. V. alfândega. O sentido de "móvel, espécie de sofá" é encontrado desde 1742. Poltrona.“ Em primeiro lugar faldestoel (stoed da Canção de Roland é talvez um erro do copista), mais tarde foldestiteii, no século XIII, faudeteuil, ain­ da em 1611, contraído em fauteil, 1558. Na Idade Média designa um assento dobrável que servia para os grandes personagens, reis, bispos, senho­ res. Do franaque faldestôl, cí. antigo alemão faltstuol, propr. "assento dobrável" (cf. alemão falten "do­ brar" e Sthul "assento"). Emprestado ao francês por línguas vizinhas: italiano faldistorio, "assento episcopal", espanhol facistol "lutrin", "estante do coro", a pr. faldestôl "poltrona, trono, coro". Hoje em dia espalhado sobre todo o território galo-romano sob a forma e sentido do francês. Levando em conta a etimologia - e só Deus sabe.a que ponto esse recurso à origem das palavras é propalado no discurso dos psicanalistas, por vezes tomando o lugar de qualquer outra forma de raciocínio - pode-se fazer as seguintes constatações:

1. A passagem do divã à poltrona constitui um verdadei­ ro périplo cultura], que vai do mundo persa, depois8 8. O mesmo acontece com n palavra poltrona. Esta, em português, vem do italiano e significava "grande cadeira cómoda" (1813). (N. da T.)

D o d iv ã à poltron a: o p a sse d o g u érid o n

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turco, com seus estrados e almofadas, ao mundo ger­ mânico, depois francês, das cadeiras dobráveis. 2. Trata-se igualmente da passagem de uma postura cor­ poral enlanguescida, mole e de abandono, a uma pos­ tura corporal tônica, controlada e rígida. Para além do aspecto cultural, esta modificação exige um reajusta­ mento considerável da imagem corporal e de suas re­ presentações pessoais e sociais. 3. Enquanto no mundo oriental a troca verbal se fazia so­ bre almofadas, no mundo germânico e, depois, francês, fazia-se sentado sobre duras cadeiras dobráveis. Mas havia uma homogeneidade de posturas entre os convivas. Onde havia almofadas, não havia cadeiras dobráveis e vice-versa. A passagem do divã à poltrona introduz, pois, uma ruptura, uma descontinuidade e uma desar­ monia entre os convivas, isto é, entre os parceiros da troca verbal. Um (o psicanalista) estando sistematica­ mente na cadeira dobrável, o outro (o paciente) sobre um estrado e almofadas. Um, no universo germânico; o outro, no universo turco. Passar de um ao outro equi­ vale, no final das contas, à passagem do Império Oto­ mano ao Império Austro-húngaro. Se nos lembrarmos, por outro lado, que a posição deitada, exigida pelo divã, é uma sobrevivência da prática da hipnose, isso nos deixa perplexos quanto à influência do Império sobre o próprio Freud, sem nos esquecer­ mos que a guerra entre esses dois impérios não estava tão distante, quando da definição destas posturas em­ blemáticas dos corpos para a psicanálise. 4. Um único traço comum permite, no entanto, passar da prática de um móvel para outro, de um universo ao outro: nos dois casos, que se trate de divãs ou poltro­ nas, estes eram reservados aos dignatarios, tanto leigos quanto da igreja. E o povo, será que não possuía móveis? Em todo

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Ah! As belas lições!

caso, não daquela espécie que passa à posteridade por meio de uma função ritual. Donde o seguinte: Proposição dc 1 de abril de 1990:4 Para remediar a esse estado pouco reluzente da imagem da psicanálise que se propõe a ser lei­ go, democrática e acessível a todas as camadas so­ ciais, em vez de proceder à diminuição do ritmo das sessões e dos preços, prejudiciais ao standing da corporação, e, para satisfazer as camadas desfa­ vorecidas da população, eu proponho introduzir um móvel suplementar, cuja presença será tão "em­ blemática e incontomável" quanto o divã-poltrona. Esse móvel será um giiéridon. A definição de Bloch e W artburg é a seguinte: Guéridon, 1650. Nome próprio de um perso­ nagem de uma pilhéria (comédia) de 1614, e que, aproximadamente na mesma data, foi introduzido num balé; a palavra tomou a seguir, rapidamente, o sentido de "canção popular e satírica", 1626 ("Poe­ mas para os guéridons e novas canções"), aplicado fantasiosamente ao pequeno móvel que ainda hoje carrega esse nome, talvez porque, nos balés, Guéridon segurava uma tocha, enquanto os outros bailarinos se beijavam. Esses pequenos móveis ti­ nham, de fato, freqüentemente a forma de uma pessoa, em particular de um mouro. A própria pa­ lavra nasceu, muito provavelmente, de um refrão de canção, composto dos refrões gué e kridon. No novo dispositivo do consultório do psicanalista, o guéridon terá necessariamente de ser colocado entre o divã e a poltrona, o que certos analistas de vanguarda já 4. Brincadeira com o texto "Proposição 9.10.67", de Jacques La­ can, em que este discute a formação do analista. (N. da T.)

D o d iv ã à p o ltr o n a : o p a s s e d o g u é r id o n

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fazem de modo mais ou menos consciente. Tomar-se psi­ canalista será designado então: passar pelo guéridon. Isso trará as seguintes vantagens: 1. Tornar manifestos dois significantes recalcados (ou censurados?), do campo da psicanálise, a saber, o dom e a gttérison (cura), quando não o dom da cura (de Ia giiérison). 2. Designar o próprio processo do se tomar psicanalista por um significante popular e autenticamente francês. A referência ao mouro permitirá uma melhor integra­ ção das novas gerações de outras origens e marcará um desejo de ver a comunidade psicanalítica se abrir para um mundo menos violentamente marcado exclusiva­ mente pelo judeo-cristianismo. 3. Recalcar (ou censurar?) os dois significantes imperiais, "divã" e "poltrona", estrangeiros e politicamente cono­ tados de antagonismos. Uma outra conotação virá ocu­ par esse lugar, ela será, não mais de natureza guerreira, e sim amorosa. A metáfora do Guéridon (candeeiro) dançarino, testemunha de casais que se beijam, ilumi­ nará o primado sexual de qualquer cura. Esse aspecto só será acessível aos analistas no passe do guéridon, que se terão dado o trabalho de olhar o dicionário, o que é o mínimo exigível quanto à pulsão epistemofílica de um candidato à coisa. 4. Os psicanalistas em dificuldade, iniciando sua vigési­ ma análise, poderão se beneficiar das vantagens morais e fiscais da passagem pelo guéridon, divã-poltrona ou poltrona-divã, esta apelação não precisando o sentido da viagem, o que certamente é mais fiel à lógica do inconsciente. Nota: fazer girar os guéridons não será mais reservado aos simples charlatões, e poderá se integrar ao currículo sério de uma psicanálise didática, sob reserva, bem enten­

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dido, de uma aprovação da comissão da IPA. montada para esse fim. Conclusão: o passe do guéridon inscreverá, desse modo, o movimento francês na história da psicanálise in­ ternacional e, mais particularmente, européia, a partir de 1992, como precursora de uma psicanálise popular, ainda que científica, pela própria inscrição em sua apelação da condensação de dois significantes programáticos e uni­ versais. Nota confidencial: contatos discretos já foram toma­ dos com o dr. Lebovid, bem conhecido por sua luta con­ tra os charlatões, que se mostrou sensível à preocupação terapêutica manifesta da proposição. Convém, no entan­ to, se manter prudente quanto à filiação lacaniana sub­ jacente ao projeto, qualquer referência aos próprios ter­ mos de significante e passe podendo ser prejudiciais para ser admitido na IPA. Nem é preciso dizer que a formação terá, conseqüentemente, uma vertente exotérica para o ex­ terior, e uma vertente puramente esotérica para aqueles candidatos que saberão ler nas entrelinhas. Questão: Por que os psicanalistas são tão bobos em público? Resposta: Pode-se contar as peripécias que levam ao sofrimento, quanto ao sofrimento, nada a dizer.

"De repente vi tudo vermelho. Estava fora de mim. Minha mão agiu sozinha, não respondia mais pelos meus atos." Pode ser esta a frase padrão para explicar um mo­ vimento de raiva. No momento da cólera "eu" não responde mais por Eu. No momento da cólera "eu" e Eu*1 se dissociam. A cólera engendra um estado paralelo, um desdobramento do sentimento de unidade corpo-espírito, no qual o que­ rer do sujeito parece fora de questão. A cólera é um estado de crise somatopsíquica. É cha­ mada de cólera vermelha, pois o corpo se agita e o sangue sobe à cabeça. Existe também a cólera em que o sangue não sobe à cabeça, que é fria e é chamada de cólera branca. Seja ela vermelha ou branca (contida), o fato é que ambas podem ser mortíferas. No horizonte de toda cólera perfila-se um assassinato real ou simbólico, representado ou deslocado, no qual o risco de destruição está sempre presente. O outro, aquele que representa o alvo, na maioria das vezes sente medo. * Texto originalmente publicado em Psychiatrie Française, 192, 1991.

1. Em francês duas palavras distintas. Je ("eu") e moi (Eu). (N. da T.)

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O afeto que é o com plem ento da cólera é o medo

Aparentemente, pode-se dizer que a cólera provoca medo no outro. Mas para além das aparências, podemos nos perguntar se a própria cólera não seria um produto do medo ou de um derivado deste, uma situação de desamparo que coloca o sujeito em dificuldade, isto é, em estado de impotência para obter aquilo que deseja. Impotência para obter satisfação, que se transforma em impotência de se refrear. A cólera resulta de uma ameaça narcísica perce­ bida, seja conscientemente, seja em um plano mais sutil, diante da qual ela não passaria de uma resposta psicossomática de ataque a objetos extemos ou projeta­ dos para fora de si. Se o riso e as lágrimas são específicos da raça hu­ mana, a cólera é observável também nos animais. Existe sempre um certo perigo em se referir ao animal, já que a redução antropomórfica é inevitável. Não se pode, no entanto, deixar de relacionar suas manifestações; basta, para tanto, observar o comportamento de raiva no animal quando ameaçado. Referimo-nos da mesma forma ao recém-nascido, que não obtendo satisfação, se debate, grita até ficar vermelho como um pimentão, manifestan­ do desse modo violento seu descontentamento. Nele, de­ samparo e cólera se confundem. Da mesma maneira, uma criança já maiorzinha que, ao brincar meio desajei­ tadamente, erra o alvo e não consegue atingir o objetivo a que se propõe, tanto pode atirar seu brinquedo longe quanto quebrá-lo num ataque de raiva, por seu gesto não ter sido à altura de sua ambição. O objeto (o brinque­ do) é então sacrificado, tomando-se o alvo do ataque. O objeto, ou simplesmente o outro, quando não se submete ao desejo do sujeito, coloca-o em estado de impotência, incorrendo, conseqüentemente, no mesmo risco de destraição.

Fora de si

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Com freqüência tendemos a esquecer esse esquema da impotência situado na origem da cólera, quando so­ mos submetidos à cólera de alguém mais forte do que nós. O espetáculo de um homem adulto e forte avançan­ do sobre uma criança pequena, completamente aterrori­ zada por estar sendo submetida a uma desigualdade física e simbólica, não deve nos fazer esquecer a inferio­ ridade psíquica do adulto totalmente tomado pela raiva. Raiva por não ter conseguido obter do outro exatamente o que queria. Certamente, nem todas as crianças reagem dessa maneira, assim como nem todos os adultos. Costuma-se dizer que há tipos coléricos, temperamentos, caráteres. Como se se tratasse de algo "de nascença". Ainda que aceitemos a existência de uma parte constitu­ tiva quanto às respostas mais ou menos vivas com as quais certos indivíduos reagem às situações desagradá­ veis, nem por isso a cólera como crise repetitiva, violenta e súbita, deixa de ser uma manifestação sintomática de alguns, assim como pode também ser sintomático o com­ portamento de um sujeito que, por pura inibição, seja incapaz de expressar sua cólera. No animal, a ameaça é mais facilmente observável; no humano, os elementos dessa ameaça escapam à observa­ ção direta, pois são comumente de ordem intema, embora intelectualmente reconhecíveis quanto às suas causas. Se me referi à cólera como não específica à espécie humana e, além disso, como uma das modalidades mais precoces de expressão emocional no humano, foi para marcar o caráter primitivo e pré-verbal de sua origem. Tanto o riso (principalmente se é paroxístico e sem causa aparente, como no caso do ataque de riso) quanto o choro são comunicativos. E, surpreendentemente, o bocejo também. Resiste-se a eles em maior ou menor grau, e em função da idade o se//-controle (sic) está mais ou menos bem assegurado. A contaminação emocional prescinde de

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comunicação verbal, podendo se dar mesmo sem ela. Reina na espécie humana, inclusive na idade adulta, mais transitivismo do que gostaríamos de admitir. Es­ quece-se ou se finge não ver que a cólera se transmite dessa mesma forma. Em outros termos, que ela é conta­ giosa. Salvo, no entanto, que é sempre preciso associar à cólera seu complemento orgânico: o medo ou o desam­ paro. Um sujeito tomado pela cólera pode despertar a do outro. Contudo, não é isso que chamo de seu caráter contagioso, e sim o fato de ela se transmitir por meio de sua vertente oculta, diría causal. E antes de mais nada o medo que transita de um ao outro e isto de modo in­ consciente: tanto que ele pode ser perfeitamente desco­ nhecido por aquele que põe em ato a vertente colérica. Certamente o é, menos para aquele que a ela se subme­ te... Diría que apenas um dos pólos é perceptível, mas que a verdadeira entidade da cólera é constituída pela dupla: "cólera-medo". Emprego o termo medo por co­ modidade, pois ele engloba os demais, mas trata-se aqui, também, de impotência e desamparo, suas manifesta­ ções mais primitivas, características de um tempo no qual o desamparo e a cólera se expressavam num mes­ mo e único impulso, no mesmo indivíduo: o recém-nas­ cido. Mais tarde, a dupla se dissocia e cada um dos pólos será projetado ou provocado em parceiros diferen­ tes. Resumindo, podemos nos perguntar se essa dupla não é o esboço daquilo que poderá se desenvolver mais tarde, e apenas em alguns, numa forma mais sofistica­ da: o sadomasoquismo. O sujeito exposto a um paroxismo de cólera perma­ nece surdo à voz da razão. Está fora de si. A linguagem tem pouco poder sobre ele. Aquele contra o qual dirige sua cólera, principalmente quando se trata de uma criancinha, mesmo que um adulto também possa se sentir igualmente aterrorizado, fica siderado e sem defesa. Isso

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porque o medo intenso, o terror, também dissociam. A vítima pode, então, se sentir literalmente hipnotizada. É dessa maneira que crianças, vítimas de tal cólera, quando muito pequenas, não puderam recorrer à nenhuma re­ presentação capaz de barrar a violência sofrida. Nesses casos se tem uma verdadeira divagem psíquica, na qual a cólera sofrida permanecerá enquistada sem represen­ tações, sem sentido. Este fato explica, por exemplo, que crianças submetidas a verdadeiras sevícias por parte de pais violentos e coléricos, poderão, quando adultas, vir a reproduzir tais comportamentos hipnóticamente sobre seus próprios filhos, independentemente da postura crí­ tica consciente que possam ter. Quando se assiste a uma cena dessas entre dois protagonistas, o primeiro tomado por uma cólera violenta, o outro paralisado pelo medo, tem-se a impressão de se estar perante dois seres igual­ mente despossuídos de si próprios. Quanto mais nova for a criança submetida a tais crises, menos representações, palavras, pensamentos críticos, terá à sua disposição para se defender psiquicamente, e maior será o risco de que, posteriormente, venha a reproduzir as cenas vivi­ das, sejam quais forem suas opiniões conscientes. Pois a cólera da qual essas crianças -agora adultas - são víti­ mas não lhes pertence. Estão divididas: de um lado, a criança siderada; de outro, a cólera incorporada do ou­ tro, que reproduzirão, mesmo contra a própria vontade. Quantas vezes não ouvi mães afirmarem que ao baterem em seus filhos era como se estivessem se espancando a si mesmas, agindo como se estivessem num transe. Sua identidade de mãe some, ao mesmo tempo em que se evapora a diferença geracional, em proveito de uma cri­ se, de um estar fora de si, no qual o eu-criança é a insuportável representação. Totalmente diferente pode ser a cólera dirigida con­ tra esse adulto opressivo: vinda em bom momento, pode

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acordar o sujeito de seu marasmo e este poderá dela se apropriar, trazendo-lhe um verdadeiro alívio. É preciso reconhecer que certas cóleras são indispensáveis para reco­ locar alguém na via do próprio desejo, possibilitando-lhe, assim, separar-se de cenas vividas passivamente, sem que estas pudessem ter sido pensadas com um outro afeto que não o medo ou a raiva induzida. N em todas as cóleras são iguais O bjetivam ente, não há cóleras boas ou más

Algumas cóleras são pura repetição destruidora, outras restauram. Entretanto, ter sido vítima de cóle­ ras devastadoras significa, para alguns, uma intrusão psicossomática de pulsões das quais, freqüentemente, não passam do destinatário sem nome. Convém, desse modo, procurar em todo colérico persistente a outra ver­ tente, a do medo e a da impotência. Por outro lado, parece-me importante diferenciar os destinos da cólera e do ódio. Se, no pequenino, num primeiro momento, são indissociáveis, no adulto, pode-se dizer, o ódio alimenta um projeto a longo prazo, en­ quanto a cólera é um processo rápido, uma crise somatopsíquica, que pode deixar um traço mnêmico, uma lembrança, mas que não alimenta projetos. Nesse último caso, não se trata mais, propriamente falando, de cólera, mas da lembrança de suas causas e do estado de ameaça que o sujeito havia vivenciado: os quais partici­ pam, então, da elaboração sublimada de um projeto de ódio. E este irá caracterizar o rancor e a vingança. Nesses casos, pode-se dizer que o ódio é o que resta quando a cólera não se esgotou por si mesma ou quando não encontrou vazão imediata à altura de sua violência. Mas, então, o aspecto somático não está mais presente, a

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pulsão tendo encontrado representações de sublimação. Temos tendência a superestimar o valor ético da sublima­ ção e confundi-la com o bem e o bom. A sublimação é apenas a aceitação da não satisfação imediata de uma pul­ são e sua transformação numa representação. Assim como a cólera, a sublimação em si mesma não é nem boa nem má e pode dar lugar a projetos de ódio perfeitamente monstruosos. Monstruosos ou não, trata-se, no entanto, no plano estritamente psíquico, da sublimação de uma pulsão. A cólera, seja qual for o nível de sua manifestação, individual ou coletiva, é uma crise de impotência narcísica, contra-ataque violento de um ataque frequentemente invisível, no qual a emoção domina, o corpo se substitui ao pensamento, os gestos e os gritos ao discurso. Deve, portanto, ser diferenciada do ódio e do desejo de destrui­ ção como projeto. Não existe projeto de cólera, trata-se de uma onda súbita e pulsional que surpreende o próprio sujeito. O ódio pode alimentar um projeto de fôlego. Ser­ ve-se da razão e de montagens pretensamente radonais. O ódio pode ser disfarçado, uma vez que o gozo do corpo é colocado à distânda. Desse modo, pode alimentar projetos educacionais que se pretendem racionais, como, por exemplo, o sistema educacional do pai de Schreber ou, no plano coletivo, projetos de genocídio friamente prepara­ dos e argumentados. As relações entre o ódio e a cólera são, portanto, complexas. Se nos gritos do recém-nascido esses dois im­ pulsos estão intimamente ligados, é preciso, contudo, constatar que muito rapidamente seus destinos podem se separar. O ódio não é mais totalmente pulsional, é a con­ trapartida do amor, mas pode explodir como cólera ver­ melha caso as condições desta estejam presentes, se o pro­ jeto estiver entravado, se houver reprodução de alguma ameaça, mesmo imaginária. Pelo contrário, nem toda crise de cólera é necessariamente alimentada pelo ódio. É uma

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Ahí As befas lições .f

revolta que nem sempre diz seu nome, cuja finalidade pode ser manipulada. É sobre o que convem nos aprofun­ darmos, se quisermos compreender as explosões de vio­ lência coletiva. Há entre o ódio e a cólera a mesma relação que há rnfrr a necessidade sexual e o amor

O aspecto parcial do objeto e a urgência pulsional que o visa são seus elementos de semelhança. A urgência sexual não pode ser confundida com o amor, ainda que no cerne deste, esta urgência seja a ori­ gem, ainda que no limite daquele, sua repetição seja o farol. Fala-se de cólera para designar expressões afetivas bastante distintas. Eu me limitarei, aqui, a abordar a cóle­ ra "vermelha", aquela que provoca a "crise" somática e violenta. Deixarei, dessa forma, de lado a cólera branca, a que mais facilmente se associa a um "projeto" de ódio, no qual a sublimação pulsional e motriz (freqüentemente de mau augúrio) permite a elaboração imaginária de repre­ sentações que evitam a crise subjetiva imediata. Por meio de uma breve seqüênda clínica, gostaria de ilustrar a emergência inesperada de uma cólera e seu cará­ ter de comunicação intersubjetiva. Se existe um lugar de onde as manifestações diretas da cólera vermelha parecem proscritas, é justamente o lu­ gar do analista, quando ele ou ela estão no exercício de sua função no consultório. Tentarei, aqui, relatar a história infinitamente pouco edificante de uma psicanalista, a saber, eu mesma, que ficou furiosamente fora de si diante de um padente. A sessão começara como tantas outras. Ele estava em análise havia alguns anos e, no início de cada sessão, reto-

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mava de bom grado aquilo que pensara no final da anterior. Naquele dia passara em revista alguns de seus sucessos profissionais dos últimos dias, para dizer que sua vida estava tomando um rumo bastante agradável. Falara, inclusive, de um momento agradável passado com seu filho justamente antes de vir para a sessão. Em seguida, começou a evocar o tempo, que já lhe parecia bem longínquo, no qual se drogava e sua vida era um inferno. Disse a mim mesmo que, no que diz respeito à droga, acredito ser algo acabado para valer. Quase não penso mais nela, chego mesmo a ter dificuldades em entender a que ponto era dependente dela, a que ponto tudo girava em tomo dela. Realmente, creio, acabou, acabou de uma vez por todas.

Depois de um breve silêncio, quase por acaso, acres­ centa: Bom, se meu traficante preferido viesse me oferecer, de graça, uma muito boa, só para passar um momento agradável, quem sabe eu não recusasse...

Não esperei o final de sua frase. Fui tomada pela cólera. Pulei de minha poltrona e, como uma fúria, peguei uma cadeira localizada à frente de minha poltrona e a bati no chão gritando: "Ah!, isso não, não e não". Mantive estritamente o controle suficiente para mandá-lo se levan­ tar do divã, consciente de que a posição deitada o deixava numa situação de inferioridade insuportável perante mi­ nha ira. Avancei sobre a cadeira para não avançar sobre ele, tamanha era minha vontade de sacudi-lo. Tinha se sentado e, lívido, me observava agir e gritar sem pronunciar uma única palavra. A louca, a bêbada, era eu. Eu babava de raiva. Isso jamais me acontecera em situação de trabalho. Após alguns minutos de loucura furiosa, agora mais cal­ ma, sentei-me diante dele e disse: "Você me pôs fora de

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Ah! i4 s fre/ns /ifôrs/

mim". Redundância flagrante... isso ele jâ percebera sozinho! Está aí algo que não cai bem a uma psicanalista no exercício de sua função. Eu marcara brutalmente meus limites de tolerância e de escuta "benevolente". Fui incapaz de esconder a que ponto essa sua frase final me atingira, pois não só anulava tudo que acabara de dizer, como também anulava anos de trabalho conjunto... Será que deveria escrever tudo isso? Entregar-me à malevolência dos colegas? Suscitar comentários malicio­ sos sobre minhas fraquezas? Creio que a questão não é esta e que não levamos vantagem alguma em brincar de médico, ali onde o "tratamento" se funda sobre uma relação inter-subjetiva. Contrariamente ao que acontece em um "estudo de caso" em medicina, acredito que num tratamento psicanalítico é desonesto fazer de conta que o "caso" é unicamente o paciente, responsabilizando-o pela integralidade das manifestações que aí se desenro­ lam, calando o que acontece de forma silenciosa - quan­ do não barulhenta como no presente caso - do lado do terapeuta. Acredito, diante desse acontecimento único, ser preferível tentar entender o que aconteceu a partir do lugar daquele que não deveria ser dado a tais com­ portamentos, pois a surpresa foi tanto maior quanto a cólera mais proibida e inédita. Durante todo o período em que esse paciente de fato se drogara, eu jamais sentira a menor cólera ou afeto de rejeição em relação a ele. Jamais tivera dificuldade em manter meu lugar de analista. Lugar para todo o sempre destinado, pelo menos nos manuais para "jovens analis­ tas", a sustentar a estátua em mármore da benevolência! É inconveniente falar daquilo que a tal estátua profere, sente e faz fora das normas da tal benevolência. Fora das nor­ mas da interpretação em boa e devida forma. Convém, efetivamente, não inundar o paciente com um excesso de manifestações emotivas! E foi justamente o que eu fiz na-

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quela circunstancia. O que é que aconteceu? Ele de fato proferira uma ameaça de destruição de tudo que fora realizado, dito, pensado, em suma, de parte de si mesmo. De fato, sua frase era violenta. Violenta, mais para ele do que para mim. Ou violenta para a dupla que formáva­ mos? Qual Eu tinha bruscamente se dissociado de qual "eu" ? Seria eu redutível aos pais enfezados por não con­ seguirem se fazer obedecer? Por que, então, eu o havia escutado sem reclamar durante esses anos todos em que estivera às voltas com a droga? Não. Foi justamente a denegação de seu dizer precedente, de si próprio, essa furtiva fuga em direção à aceitação daquilo que justamen­ te afirmava não mais aceitar, que me pôs naquele estado. Nem Eu, nem Ele, como indivíduos separados e adultos, mas sim algo diferente, um não-separado que estava lá entre ele e eu, e que se manifestou antes mesmo que eu pudesse pensar qualquer coisa a respeito. Essa destruição verbal e programada, era o dizer de um outro tempo. A seqüênda da história nos dará, quem sabe, a chave. Ele foi embora após uma breve explicação, visivel­ mente abalado, ainda que tenha sido a cadeira a "pagar o pato". Eu estava perplexa. Para ser franca, tenho de con­ fessar que não senti muita "má-conscíênda" em relação a ele e, curiosamente, o que me surpreendeu, nenhuma in­ quietação particular. Apenas continuava sob o efeito da surpresa. Por outro lado, um sentimento de incomodo se apoderava de mim ao pensar em meus colegas analistas. Má-consciência em relação à minha imagem "profissio­ nal". Isso não se faz! Arrepios desagradáveis do meu su­ perego institucional. O laço estabelecido entre nós era tal que, para dizer a verdade, estava praticamente certa de que voltaria, nem que fosse para brigar comigo. Mas não foi isso o que aconteceu. Na sessão seguinte, chegou relaxado e sorridente. Deitou-se no divã e come-

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Ah! As belas lições!

çou a falar imediatamente. Disse-me mais ou menos o seguinte: Imagine que após a última sessão... como a vida é estranha... meu traficante predileto, justa­ mente aquele ao qual me referi, apareceu para me ofe­ recer droga gratuitamente. Apenas para passar a tarde comigo, como nos bons velhos tempos. Pois bem, me pus num estado de cólera impressionante. A sua, per­ to da minha, foi fichinha. Eu o peguei pelo pescoço e o joguei escada abaixo. Estava fora de mim. E di­ zer que ele se considera meu amigo! Mas se você não tivesse ficado naquele estado de cólera, não sei se teria sido capaz de fazê-lo. Foi a primeira vez que fiquei em cólera de fato e sem medo que isso se tor­ nasse público!

Enfim, uma história nada edificante que termina de modo edificante. Mas convém desconfiar desse tipo de história. Teria, sem dúvida, sido preferível que ele pu­ desse recusar a droga gratuita do amigo traficante sem minha cólera precedente. Só então comecei a entender um pouco. A primeira cena adquire sentido com a se­ gunda, na medida em que ele, de certo modo, a previra: sabia que mais cedo ou mais tarde ela aconteceria, foi, talvez, por isso que testara - inconscientemente? - meu grau de cumplicidade em acompanhá-lo em seus cenári­ os masoquistas, cumplicidade que sua mãe jamais lhe havia negado. Esta, em vida, acompanhara, sofrendo, todos seus fracassos, acobertando, amorosa e cegamen­ te, todas as suas transgressões. Morta, quando ainda era um adolescente, ele passou a fazê-la figurar de modo metonímico ou metafórico em todos seus fantasmas ma­ soquistas. No momento em que reagi tão violentamente, nada disso me veio à mente. Justamente por isso, a cena foi realmente arriscada, nada me garantia que eu não o estivesse recolocando numa situação de pura passivida-

F ora d e si

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de. Por muito pouco poderia ter se tomado pelo único alvo de minha cólera, quando na verdade integrara mui­ to bem o fato, melhor do que eu própria, de que minha cólera se dirigia a essa parte dele próprio, incapaz de dizer não, medrosa. Teria sido preferível dar uma inter­ pretação verbal e calma, mas se saí tão violentamente do lugar transferencial ao qual sua repetição me destinava, é porque essa destinação era insuportável, mesmo sem eu saber. Teria eu reagido ao seu medo sem saber? É no après-coup que posso falar da relação com sua mãe como cúmplice incondicional de gozo no sofrimento e submissão à dominação sádica de um pai nocivo. A có­ lera, como momento de "crise" somatopsíquica, é uma resposta-sintoma, ali onde a estabilidade simbólica de uma relação é atingida e faz desfalecer a possibilidade de se pensar. Não pretendo contar, aqui, toda sua história familiar. Apenas que, a partir dessa sessão, ele começou a estabelecer relações com aquilo que vivera na infância. Se pude me "conscientizar" disso apenas após essa ex­ plosão de cólera e em função dela, é porque certas histó­ rias comportam algo de impensável, provocando tensões que se somatizam em doenças ou violências. As vezes, produzem análises intermináveis, nas quais o tédio im­ pera na medida em que o analista não entra, nem de bom grado nem à força, no cenário patógeno, que o faria reagir no "aqui e agora" por afetação direta, isto é, pela instauração de uma transferência invertida. O que é peculiar em certas análises é o fato de o analista poder ser levado a ser, mesmo sem saber, o sujei­ to dissociado em crise, no lugar de seu paciente. Pode acontecer de o analista pôr em ato ou sentir aquilo que um dos protagonistas da cena patógena originária não pode pensar, sentir ou agir. Viver este estado de urgên­ cia, não mais de seu lugar de terapeuta, exterior ao acon­ tecimento, mas de seu interior.

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A h ! A s b e la s liç õ es!

Se gritei, não foi nem do meu lugar de analista nem do da minha individualidade. Como analista, durante anos assisti a sua luta contra a droga. Não foi para ele que gritei "não", e sim à sua submissão. Gritei do próprio lugar do qual nem ele nem sua mãe puderam fazer, am­ bos crianças impotentes. Foi uma saída da cena patógena, na qual, inconscientemente, tentava me trancafiar, assim como o foram seus protagonistas originários. Penso que reagi a um medo desconhecido ante uma inelutável re­ petição. A contaminação acontecera no lugar da comu­ nicação. As estátuas não desmoronam sem motivo para tanto! Poder pensar, separa. O impensado pode, eventual­ mente, fazer reagir nas esferas psíquicas do não-separado. Quando nenhuma saída é imaginável, a cólera opõe forte resistência. A cólera abole as fronteiras entre o "eu" e o "tu". Faz regredir a dupla dos protagonistas. O outro, o "tu" está destinado a desaparecer em sua alteridade, não necessariamente por causa de um ódio, mas porque mani­ festa uma diferença insuportável para o "eu", que só se recupera na vivência corporal e no real da pulsão. A crise somatopsíquica é uma resposta psíquica e concreta a uma situação de ameaça imaginária, da qual o simbólico está ausente. Nenhum sentido se opõe ao desamparo. Trata-se sempre de uma crise de identidade, de uma incapacidade do sujeito para suportar um eu alterado em seu poder unificador. A crise é uma tentativa de cura que fracassa, assim como certos delírios. Mas assim como o delírio, quando ouvido, e reintroduzido como peça significante numa his­ tória insensata, pode não fracassar. Há crises resolutivas, que permitem esclarecer aquilo que se tenta dizer sem ter sido pensado. Com a condição que se lhes possa conferir um sentido em relação a um fantasma, acontecimento ou dano antigo.

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A passagem do singular ao plural é sempre delicada. E, no entanto, a cólera tem isso de particular, o fato de poder ser encontrada tanto no animal quanto no re­ cém- nascido, criança pequena, adulto, indivíduo ou grupo. Se no recém-nascido a dupla cólera-desamparo é intrincada e é difícil falar em vítima, ainda que certas mães possam vir a sê-lo, no adulto cólera e desamparo se dissociam e o outro se toma, muito rapidamente, o suporte do medo, equivalente do desamparo primordial. O outro se toma objeto a ser destruído, ameaça para um eu em estado de impotência. Esse desamparo pri­ mordial, transformado em medo, é a contrapartida obri­ gatória da cólera. A passagem do singular ao coletivo, do "eu" ao "nós", é a passagem de uma impotência pessoal a uma impotência grupai. A restauração do eu se faz pela exclu­ são do objeto, permitindo à imagem reconstruir-se em sua homogeneidade. A restauração do "nós" se faz da mesma forma: a exclusão do corpo estrangeiro é seu preço. Será possível falar de tratamento da cólera? Assim como o medo, ela não é patológica em si. Ambas podem ser respostas perfeitamente adequadas a uma situação. É razoável sentir medo na presença de um tigre esfaimado, assim como convém poder reagir com cólera ante uma grave ofensa. Acontece, no entanto, que alguns venham pedir tratamento em conseqüência de suas manifestações recorrentes e inoportunas. A psicanálise, processo lento por excelência, procura demonstrar suas causas. São, na maioria das vezes, precoces, quando não, primitivas. Evo­ quei, longamente, um de seus aspectos clínicos. Existem terapias de grupo, ditas ativas, nas quais se incita e encoraja os participantes a exteriorizar sua cólera, fazendo-os socar colchões ou travesseiros. Na maioria das vezes, as pessoas se declaram muito aliviadas. Há um efei­ to imediato de catarse. De vez em quando, a cena "re-

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A h ! /Is b ela s lições!

presentada" desata a situação, até porque se trata, de fato, de uma cólera reprimida há muito tempo e que nunca pôde se manifestar perante a pessoa a quem dizia respeito. Notei, no entanto, que esse efeito de alívio não é duradouro. Ainda que, no momento da cólera, se faça de conta que o colchão é um outro em carne e osso, por mais dissociado que se esteja no momento da crise, sabese que o colchão não passa de um colchão e permanece­ rá como tal. Se a pulsão encontra um momento de satis­ fação, e isso acarreta um apaziguamento momentâneo, nem por isso o colchão remete a algum medo, a alguma ameaça de represália pela violência sofrida, e a dupla cólera-medo não tem como se constituir; dupla sem a qual não pode haver uma boa repetição ou representa­ ção daquilo que constitui a mola de qualquer cólera atu­ ada. A vantagem é que se pode bater forte e sem culpa, mas ao suprimir o medo da paisagem interna e externa, a cólera se toma puro jogo imaginário sem um outro vivo, perante o qual o ato pode vir a ter sentido. Numa repetição atuada, é preciso pelo menos um outro que seja afetado, caso contrário não passará de faz-de-conta: e assim andamos de grupo em grupo, alternando alívio momentâneo e satisfação passageira. Para muitos, sem dúvida, é melhor que nada, tamanho o desamparo no qual se encontram. Mas, nesses casos também, terapeu­ tas podem ser capazes de ouvir aquilo que pede para ser restaurado, para além da pura expressão pulsional, em uma relação simbólica com o outro. Contudo, a apologia da cólera, sua manifestação pela simples manifestação, como querem alguns para fa­ zer funcionar seu negócio, não passa de jogo sem apos­ ta de verdade, sem risco subjetivo, sem metáforas que permitam transitar do infantil ao adulto, do singular ao coletivo. Diante da pobreza de laços simbólicos, é o que nossa sociedade pode oferecer de mais triste como suce­ dâneo da revolta individual e de grupo.

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A sociedade, no plano jurídico, propõe um tratamentó muito diferente para a cólera vermelha e para os atos cometidos sob o impulso de urna cólera diferida, sustentando um projeto de ódio. Assim, o castigo do "crime passional" é limitado por circunstancias atenu­ antes. Estar fora de si é percebido como um estado de sofrimento, merecedor de indulgência. O crime cometi­ do com premeditação, o projeto de destruição e de ódio não recebem indulgência alguma. Essa mesma sabedoria não pauta os julgamentos de manifestações coletivas. Assistimos atualmente à manifestação de violências e cóleras por parte de dois grupos sociais bastante dife­ rentes. Um, sujeito de cólera vermelha ou negra, é, em sua maioria, constituído por jovens em estado de desam­ paro, desempregados, imigrantes ou habitantes de peri­ ferias sinistras, todos sem projeto algum de reparação. Vivem em bandos e, periodicamente, partem para o que­ bra-quebra, destruindo tudo o que encontram pela fren­ te. Uma agressão contra um deles, costuma ser a causa da explosão de sua cólera. Cólera coletiva, soma das cóleras individuais de sujeitos não reconhecidos, social­ mente humilhados. Nenhum sonho, nenhuma promessa de "Dia D" vem transformar a raiva impotente em espe­ rança de vingança e reconquista de poder. Apanhados no ato, são geralmente severamente punidos. Nenhuma circunstância atenuante lhes é reconhecida. A própria paixão lhes é negada. Ante eles, um outro grupo age em toda impunida­ de. É que sua cólera é branca. Expressa-se de forma "sublimada": um discurso político que alimenta um pro­ jeto de ódio veio lhe dar forma. Os "bandos" em cólera vermelha, como os skinheads, por exemplo, acabam recu­ perados por promessas nas quais o ódio que sentem en­ contra cenários oníricos e emblemas que lhes permitem

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A h ! A s b e la s liçõ es!

se juntar. Esse grupo clama pela exclusão da cidade, isto é, pela morte -por enquanto simbólica - de tudo o que é "estraiigeiro", de tudo o que se opõe à imagem que que­ rem fazer de seu eu. Tomados um a um, há tantos narci­ sismos agredidos quanto no outro grupo, um a um, cada qual pode estar à procura de uma reparação narcísica. Uni a um, exceto os políticos, e mesmo assim nem todos, expressam a mesma miséria que os do outro grupo, só que aqui ela aparece dissimulada por um discurso agres­ sivo. Um "nós" homogêneo, sem corpo estrangeiro, virá, pretensamente, restaurar cada eu danificado. Não é pre­ ciso estar fora de si quando há perigo em casa, caso um bode expiatório representando o não-eu, facilmente re­ conhecível venha centralizar o medo daquilo que não queremos ser, caso um discurso venha garantir um "en­ tre nós" trancado a sete chaves. A Frente Nacional,2 nome desse grupo, racionaliza sua violência num projeto de ódio e encontra seus parcei­ ros para constituir a dupla hipnótica e eficaz "cóleramedo".

2. Grupo político francês, de extrema direita, que se caracteriza por um discurso xenófobo e racista.

olhar selvagem* A cada instante, um "acaso" m odifica, e uma lem brança encadeia.

Paul Vaiéry

Passei quatro anos sob alta vigilância. Duas vezes por semana, com hora marcada, ela vinha e me impedia de me mover, de falar, de pensar. Um dia, eu me revoltei. Gostaria de contar o momento dessa revolta e suas conseqüências. Nesse texto, "Eu" é uma psicanalista, "ela" uma paciente, a história um fragmento de tratamento. O parti pris de não fazer comentários científicos exige essa expli­ cação, mas, na verdade, eu e ela não fomos sempre tão nitidamente distintas quanto seria necessário segundo a lógica da narração. Embora o Grande Costume do Oci­ dente exija que cada protagonista de uma história seja o único sujeito de sua enunciação, há histórias nas quais um diz o que o outro não pode proferir, e até mesmo algo que um terceiro, não nomeado e ausente, o faz di2er ou* * Texto originalmente publicado na revista Chiinères, ntt14, inver­ no de 91/92. Em português foi publicado pela revista Percurso, ano VI, 11, com tradução de Izildinha Baptista Nogueira e Renato M ezan.

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A h ! A s b e la s tiçõ es!

fazer. Confio na sagacidade do leitor para efetuar as per­ mutações necessárias, sem lhe infligir as costumeiras ex­ cursões teóricas, produtos perecíveis que têm o dom de envelhecer mais depressa do que as histórias que preten­ dem esclarecer. Quando me pediram para escrever uma história clí­ nica, foi sua imagem que se apresentou de imediato. Não sei por quê. Por muito tempo, não havia mais pensado nela. Mais de dez anos após o fim dessa análise, resta-me a lembrança de um filme mudo. Certas imagens dela, de suas roupas, de seus gestos hesitantes, de minha imobilidade. Uma espécie de memória visual boba, crua, novelo de lembranças que vou tentar desenrolar com mi­ nhas palavras de agora. O que me surpreende é a proliferação de imagens e a raridade do verbo. Retomo minhas notas da época. São pobres e confirmam minha memória atual: poucas trans­ crições de frases ditas, mais a descrição de coisas vistas, de situações vividas, e algumas reflexões sobre meu malestar. Filme mudo. No entanto, ela falava. No entanto, tínhamos segui­ do escrupulosamente o ritual da época. Após algumas "entrevistas" preliminares, ela se deitou no divã. Sem dú­ vida, ela se deitou um pouco rápido demais; sem dúvida, aliviava-me não estar exposta a seu olhar inquieto, talvez até inquisidor. Eu queria sobretudo escutar, não ser mais vigiada, não olhar mais. Nada mudou por ela estar deita­ da. A não ser que ela se pôs a escutar, e a espiar com o ouvido, o menor de meus movimentos. Se eu me inclinas­ se alguns centímetros em direção ao divã, ela parava de respirar, tomada de pânico. Dizia: "Tenho medo, você está muito próxima". Se eu me inclinasse um pouco para o outro lado, também era demais: "Eu a sinto tão longe, estou tão sozinha, não tem ninguém aqui, tenho medo". Eu devia ficar reta, nem muito perto nem muito longe -

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questão de centímetros - imóvel, como uma estátua. Seu pânico, se eu não obedecesse imediatamente, era imenso. Tudo lhe dava medo, um medo de cortar a respiração. O menor barulho a fazia sobressaltar, a menor mudança no espaço do meu consultório a inquietava e a mergulhava num silêncio pesado. À menor mudança, o seu universo oscilava. Tudo se tornava, sempre de novo, estranho. A ameaça era onipresente, contagiosa. Nada em particular lhe dava medo, mas tudo, a qualquer momento, podia despertar esse medo que ela dizia antigo. Ela tinha vivido assim até os 35 anos. Fazia esforços cotidianos, às vezes hora a hora, para viver normalmente apesar disto; mas aqui, em minha presença, concentrados sobre meu espaço, seus esforços se multiplicavam. No en­ tanto, sua escolaridade havia sido normal, ela havia feito estudos, havia se casado, tivera dois filhos. Eu me per­ guntava como ela pudera fazer tudo isso com tanta an­ gústia. Quando os filhos cresceram e começaram a sair sozi­ nhos, seu medo aumentou mais ainda. Mas não era um medo particular de que lhes acontecesse alguma coisa. Era seu medo, o de sempre, porém mais forte. Tomava então medicamentos, sem outro resultado que ficar dopada. Mais abaixo o medo continuava. Há muito tem­ po ela tinha pensado na análise, mas não tinha ousado falar disso a seu marido. Foi ele que, finalmente - não agüentando mais vê-la tão mal -, terminou por sugeri-la. Desde nosso primeiro encontro, tive a impressão de que ela estava fantasiada. Fantasiada como pequena se­ nhora bem-comportada, vestida como convidada eterna para um jantar na casa do vice-delegado. Era curioso a que ponto sua aparência, no entanto discreta e insignifi­ cante, tinha o dom de me irritar. E mais particularmente, desde nossa primeira entrevista, o colar de pérolas que ela usava sempre. Naturais ou cultivadas, essas pérolas

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A h ! A s b ela s liçõ es!

me inspiravam a cada vez pensamentos parasitas que me deixavam perplexa. E quanto mais o tempo passava, mais eu me fixava neste pobre colar, que simbolizava a meus olhos toda a sua infelicidade, sem que eu pudesse me ex­ plicar em nada esta impressão. A cada encontro, subia em mim uma onda de intolerância, e frases estúpidas me vi­ nham ao espirito, tais como: "Quando você não usar mais essas infames peroletas, as coisas melhorarão para você, minha filha!" Ou então: "Ainda vou arrancá-las de você!" Eu não dizia palavra, claro, de meus impulsos, mas eles me consternavam. Pequeno delírio íntimo, induzido pelo mais insignificante dos objetos. Eu ansiava pelo dia em que ela viria sem. Ela vinha sempre com. Isso me irritava; eu me achava bem louca. Ela própria não o mencionava nunca. Ele fazia parte de seu traje habitual, como a alian­ ça ou um outro anel. Certamente, na vida comum, eu às vezes fazia alguma coisa em relação a esses emblemas burgueses que são os famosos colares de pérolas; a essas insígnias da feminilidade bem conveniente. Mas daí a me irritar a esse ponto, e com tamanha veemência? Muitas outras pacientes se apresentavam no consultório com esse tipo de colar - jóia, em suma, bastante comum sem que isso me incomodasse. Nela, eu não suportava... Assim que ela entrava, eu só via o colar. Minha irritação silenciosa, suas injunções para que eu permanecesse imóvel, sua vigilância de todo o meu espaço, me impediam de pensar e me tomavam totalmen­ te ineficaz... Era como se eu estivesse presa numa armadi­ lha, da qual não sabia como sair. As idéias me faltavam, amargamente. Mas eu tinha uma, e me agarrava a ela. Há muito tempo os pensamentos parasitas me fasci­ nam. Sei que não se deve expulsá-los muito rápido. Eles são a "chamada" da razão dos sonhos, estranhos à razão do dia. Eu sei, e já o pressentia na época, que se trata de cruzamentos onde pisca um saber de uma outra espécie,

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aquele que só se aprende de si mesmo. Os pensamentos parasitas contam a outra história, aquela que eu não posso ou não devo conhecer. Mas, contrariamente a outras vezes, nas quais de modo mais ou menos rápido eu acabava por ligá-los à face diurna das coisas, neste caso preciso não conseguia emendá-los ao que quer que fosse. Terminei por aceitá-los como se aceita uma gripe. Não tinha escolha. Ela vinha regularmente às sessões. Narrava seus dias, suas lem­ branças..., quando minhas posturas lhe pareciam dóceis o suficiente para que o medo não a submergisse. Mas tam­ bém, aí, nada retinha minha atenção, nada se deixava agarrar. No entanto, sua infância estava presente. Eu não desconfiava a que ponto. Sua infância se resumia a algu­ mas cenas. Sempre as mesmas. Sua mãe saía para traba­ lhar, voltava tarde. Ela ficava muitas vezes sozinha. Quando pequena, fora cuidada por uma babá de quem gostava. Sem mais. O pai só aparecia verdadeiramente nas suas lem­ branças a partir dos seis anos. Atingido então por uma "doença" (não nomeada), ele vivia deitado o dia inteiro e lhe era proibido ir vê-lo no seu quarto. Ficava fechada no quarto ao lado, às vezes em companhia da mulher que cuidava dela, mais tarde sozinha; não devia fazer baru­ lho; seu pai não devia saber que eia estava presente. Eia ignorava por que; movimentava-se pouco; brincava em silêncio. Não se lembrava nem de ter sido feliz, nem de ter sido infeliz; não se lembrava de nenhum sentimento. Ti­ nha sido boa aluna, mas na verdade não tinha tido ami­ gas. Nunca acontecia nada que merecesse ser contado. Todos os dias eram iguais. Formo esse relato com base nas imagens que me fica­ ram dela criança. Ela contava isso ert passant. Contava tudo en passant O medo já estava lá quando era pequena

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Ah! As bdas lições!

desde sempre estivera lá, dizia ela. Não tinha lembranças sem o medo. Adolescente, ela acabou por colocar a palavra ''medo" neste sentimento assustador que a torturava. Ela dizia "medo", não "angústia". Medo de ser observada, medo de fazer barulho. Medo de seu pai; mas ele não era assustador, era somente doente. Seus pais eram bons pais, dizia ela também. Não se queixava. Não lhes falava de seu medo, não podia, era muito estranho. Era muito sem razão. Um acontecimento a marcou neste período de sua infância: uma noite seu pai grita, a mãe se agita, chama uma vizinha, uma ambulância vem, e o leva. Ela vê seu pai partir e vê que ele está chorando. Nenhuma palavra é trocada. Ele morreu pouco depois, sem que ela o tivesse visto. Com essa lembrança ela se emociona. É a única vez. Nas minhas notas escrevi: "Enfim uma verdadeira sessão." Para mim, era então necessário dor fresca? Ela contava outras cenas. Eram sempre cenas mudas. Descrições. Nos seus relatos, os protagonistas não são dotados da palavra. Sua vida atual é regrada como um pentagrama. Sem música. Ela faz tudo o melhor possível, quer dizer bem. Seu marido é bom marido. Ora, ele é engenheiro... Ela acredita que ele a ama. Ela também acredita que a ama. Só eu desconfio. Não me enganava. Mas bico. Ela não sabe muito se o ama. Opa! Uma esperança, pensava eu... Em vão. Esta pista não leva a nada. Eu sou uma ingênua. É incrível, as besteiras que se pode calar. O dogma tinha algo bom... Ela se preocupa com seus filhos, teme por eles. Na realidade, teme por ela mesma, perante eles, e sobretudo perante sua filha. Não sabe por que. Pensa que deve se tratar da morte. Eu também pen­ so, se isso pode se chamar pensar! Ela sabe que deveria pela lógica - morrer antes de sua filha. Não é a morte que ela recusa, mas não sabe o que legar à sua filha. No entan-

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to, é necessário transmitir alguma coisa... Ela rumina so­ bre o pouco que poderá transmitir. Ela prefere quando o pai cuida dos filhos. Então, ela é apenas a filha de seus pais. O que já é bastante difícil. Estranhamente, não se queixa de nada. De tempos em tempos, fala com uma voz infantil: "Eu tenho vontade de morrer." É difícil de acreditar. Tudo é tão opaco que até o sofrimento não desponta mais. Entre­ tanto, eu acredito nela, sem me comover de fato. Como se tudo me viesse de muito longe. Ela tinha delimitado meu lugar em termos de milímetros, e eu a achava longe! En­ carregava-se de maneira eficaz das questões corriqueiras. Sua vida inteira era uma questão corriqueira. Era bem este o drama, no fundo sem histórias. Mas havia sua aná­ lise. Ela acreditava nisso. Dava muita importância. Ela esperava tudo dela. Eu me sentia nula. Mas também acre­ ditava. À espera de um milagre, em suma. Quando ficava sozinha após sua saída, perguntava-me como alguma coi­ sa podia mudar. Sentia que estávamos presas na mesma cena. Os únicos momentos despertos eram devidos à vio­ lência de sua vigilância. Um verdadeiro mirador, essa mulher! Quando ela me lembrava meus "desvios" de con­ duta, sua voz, embora angustiada, se tomava cortante. Mas, enfim, aí ela falava, ela me falava verdadeiramente. Eram momentos muito breves. Eu tinha muito medo de provocá-la. Era melhor se anestesiar. Estranhamente, eu não a detestava. Teria sido possível. Ela me infligia a im­ potência, a imobilidade, o medo. E, no entanto, ela não existia suficientemente para que eu a detestasse. É horrí­ vel confessar isso, mas a verdade obriga. Exceto esses mo­ mentos, esses chamados à imobilidade, repetitivos, mas breves como os apitos de um carcereiro, o tempo era ocupado por relatos insignificantes. Pode-se sempre ten­ tar fabricar significantes artificialmente - o que já na épo­ ca não era o meu género; mas verdadeiramente, mesmo

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Ah! As belos lições!

para meu conforto, mesmo para blefar, ela não dava ma­ téria para... cortar; o fôlego faltava imediatamente. Ela utilizava as palavras como que para não falar, apenas para ser conveniente. Não se fazer notar. Manifes­ tamente, o "caso" acontecia em outro lugar e não naquilo que ela me dava para ouvir. Eu me tomava cada vez mais estúpida. Mas ela tinha o grande poder de me arrastar na sua cena. Eu sabia que ela me passava assim sua forma de infelicidade. Um dia, percebi que começava a me habituar à sua forma de infelicidade. Eu sabia, no entanto, que este hábi­ to era nefasto. Que o hábito para um psicanalista é sem­ pre nefasto. Que é assim que se resiste da melhor maneira às mudanças possíveis. Esse saber não me ajudava em nada. Para me mexer, para sair disso, para tirá-la dessa. Eu estava adaptada como ela ao medo ambiente. A sobre­ vivência nunca é fulgurante. Ao final de quatro anos tínhamos atingido o fundo do poço. Mesmo aqui, para escrever, tenho a impressão de rabiscar para dizer o que não foi pensado, nem sonhado. Sacrifico ao Grande Costume que exige palavras para tudo. Eu conhecia bem - acreditava - sua genealogia, sua vida cotidiana. Seus fantasmas, seus sonhos, eram quase inexistentes. Às vezes, somente devaneios diurnos a leva­ vam a imaginar o momento de sua morte ou da morte de sua mãe. Sem afetividade, apenas como uma curiosidade sem gozo particular. Uma mulher, ela ou sua mãe, estava deitada, a ponto de morrer, e depois isso parava aí. Durante todo esse tempo seu colar me irritava. Eu tinha tomado meu partido. O tempo passava, e nada acontecia. Durante as férias de verão que ocorreram após o quarto ano de sua análise, um amigo que devia deixar a França por um longo período me confiou uma estátua valiosa, que não queria deixar no seu apartamento deso-

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cupado. Coloquei-a num canto de meu consultório. Ela era bastante grande e bela. Podia ser vista quando se en­ trava, mas era invisível do divã. Quando voltei a traba­ lhar, alguns pacientes a notaram; outros, se a viram, não fizeram comentário algum. Quando ela voltou, deitou-se e não disse nada. Um longo momento passou, depois a tortura recomeçou: Há qualquer coisa que mudou aqui. Há uma grande massa negra. Tenho medo. Nunca mais po­ derei ter confiança. Nunca mais poderei estar tranqüila. Como falar ou até pensar quando existe isso?

De repente, não agüentei mais. Não agüentava mais minha imobilidade, sua vigilância, seus medos, minha falta de liberdade. Levantei, aproximei-me do divã, pe­ guei a mão dela, a fiz se levantar, e, segurando ainda sua mão, levei-a até a estátua. E aí eu falei. Falei muito. Falei da estátua, disse que ela não era malévola; que nós não podíamos mais permanecer assim; que eu não queria mais ficar imóvel... Depois, me sentei. Ela não tomou a se deitar; ficou sentada também, os braços pendentes, como que esgotada. Mas sorria, o que era novo. E aí acabou a sessão. Eu temia um pouco a sessão seguinte, mas era tarde demais para me arrepender. Eu não tinha feito "de propó­ sito", como dizem as crianças. E além disso eu não estava de fato arrependida. Ela chegou um pouco agitada, deitou-se e começou a falar imediatamente com uma grande vivacidade. A última vez, quando eu saí daqui, eu estava num estado estranho. Tinha vontade de gritar, de correr. Corri até a estação de metrô, mas isso não bastou, eu corri até a estação seguinte, e até a se­ guinte, talvez eu tenha até gritado um pouco. Quando cheguei em casa, estava um pouco mais calma, estava bem, mas percebi que tinha perdido

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A h ! A s b ela s liç õ es!

meu colar. Ele deve ter se soltado durante a corri­ da. Para mim tanto faz, talvez seja preciso perder alguma coisa para que algo mude verdadeiramen­ te. Tenho a impressão de despertar... Eu fiquei atônita e radiante. Eis, enfim, o colar nomea­ do, e nomeado em sua falta. Em suma, meu desejo estava realizado. Neste ponto do relato, devo acrescentar uma infor­ mação suplementar. Esta análise foi feita em espanhol. Um colega me tinha enviado essa paciente porque eu falo essa língua, e o espanhol era sua língua materna. Seus dois pais eram hispanófonos, apesar de sua mãe ter nasci­ do na França e de seu pai ter chegado muito jovem. Ela quisera fazer sua análise na língua que sempre havia fala­ do na casa dos pais. Seus próprios filhos, mesmo tendo estado na Espanha só para férias curtas, a falavam muito bem. No momento em que disse que havia perdido seu colar, sua língua tropeçou. Em espanhol "colar" se diz collar. Mas ela dissera: He perdido mi callar e "callar" signi­ fica "calar-se". Ela tinha dito, assim, que perdera seu si­ lêncio. Textualmente: "Eu perdi meu calar." De repente, também eu podia parar de me calar com relação ao colar. Perguntei de onde ele vinha. Para minha grande surpresa, ela me disse que não sabia. Que o tinha desde sempre. Desde sua mais tenra infância, ele estava jogado no meio de suas coisas. Foi seu marido que um dia o havia notado, e lhe falara do seu valor. Então, ela come­ çara a usá-lo. Não se lembrava como ele tinha ido parar em suas mãos; falando, espantava-se com sua própria fal­ ta de curiosidade. Usava-o mecanicamente. Mas a^ora ela tinha um outro motivo para visitar a sua mãe além do dever. Após esta visita, ela me contou que sua mãe tinha feito uma cara horrível quando ela lhe perguntara de

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onde vinha o colar. A mãe se limitou a dizer que ele lhe pertencera, mas que ela não gostava dele porque lhe tra­ zia uma lembrança desagradável; que o pusera entre os pertences de sua filha para não mais o ver; que sabia que era um objeto bonito e que ele ficaria bem na sua filha; que, para sua filha, era apenas um colar, nenhuma lem­ brança a ligava a ele. E não desejava falar mais. Conside­ rava que suas lembranças lhe pertenciam; que isso não era da conta de ninguém; que sua filha devia se contentar em ter tido um belo colar, mas que ela ficava, mesmo assim, triste por ele ter sido perdido. Era tudo. Não houve meio de lhe arrancar outras informações. A mãe parecia muito zangada por precisar falar disso. Pela primeira vez ela mostrou um afeto ao falar da mãe. Disse: Es una hija de puta (É uma filha da puta.). Esta grosseria era inteiramente inabitual. Eu me disse que ela nomeava, mesmo assim, sua mãe como filha. Eu pensava - pensava, enfim - em sua avó materna. A avó havia morrido quando ela era pequenina. Não se lembrava dela. Sabia que era uma mulher simples que tinha passa­ do sua vida a fazer faxina e a criar seus filhos. Viera para a França jovem, porque na Espanha não podia ganhar a vida. Tudo isso eu já sabia. Era inútil querer instigá-la a interrogar mais sua mãe; ela dizia que era impossível, que isso a faria morrer. Aliás, ela começava a se sentir muito melhor. Já não estava mais inteiramente tomada pelas coisas corriquei­ ras. Começava a tomar tempo para si mesma. O medo era menos intenso. Era bem mais o temor de que ele eventual­ mente retornasse que a preocupava em alguns momentos. Ela se pôs então a desenhar, depois a pintar. Desde sempre ela gostara de pintar, mas não tinha tido a dispo­ nibilidade para fazê-lo. Continuava a ver sua mãe por obrigação, mas agora uma idéia a tranqüilizava: ela sabia que acontecera alguma coisa na vida de sua mãe. Sentia

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um pouco de compaixão por ela, Um dia, em sonho, ela a viu morta com o colar no pescoço; mas ficou por aí, cada vez mais convencida que não devia forçar sua mãe a fa­ lar, pois a morte poderia ser o preço a pagar por isso. Eu tinha recuperado minha liberdade. Ela não me vigiava mais. Queixava-se cada vez mais de sua vida atual; de seu marido, de seu trabalho. Estava menos im­ pecável no trajar; vinha de jeans. Às vezes, faltava a uma sessão; era para ter mais tempo para si, para pintar. O mundo permanecia silencioso, mas ganhava cores. Ela evocava o sofrimento de seu pai, arrependia-se de não ter jamais ousado abrir a porta enquanto ele estava deita­ do, doente, no quarto ao lado. Saindo de meu consultório, às vezes ela dizia "até logo" para a estátua. A pintura se tornava cada vez mais importante. E depois foi preciso se decidir. Seus filhos cresciam; ter um bom marido pode ser cansativo quando a gente se deixou escolher. Ela deixou seu marido. Não sem sofrimento: ele não tinha jamais imaginado que ela pudesse fazer coisa semelhante. Ele opôs uma resistência vigorosa à separa­ ção, mas ela não tinha medo. Não tinha mais desejo de morrer, mas disse: "Eu vou morrer um dia, é preciso que eu me apresse a viver. O tempo me é contado". Um dia, muito tranqüilamente, ela me anunciou que ela estava concluindo sua análise. "Eu gosto de você, mas você faz parte de meu passado. É preciso que eu a perca, como o colar, para poder correr livre." Ela me enviou cartões postais do mundo inteiro. Eu soube assim que ela se pusera a viajar. Os cartões se espa­ çaram, depois cessaram. Fiquei sem notícias durante mui­ tos anos. Um dia recebi um telefonema: pediu para vir me ver. Quando ela entrou, mal a reconheci. Ela tinha mudado muito. Contou-me que estava morando na Espanha. Tor­ nara-se pintora. Fazia traduções para ganhar um pouco

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de dinheiro. Seus filhos vinham vê-la freqüentemente, mas viviam na França com seu pai. Isso lhe convinha perfeitamente. Esse dia, ela me falou em francês. A sepa­ ração tinha acontecido. Ela queria me rever para me con­ tar o que restava a dizer. Sua mãe havia falecido; mas, durante a doença que precedera sua morte, ela lhe conta­ ra a história do colar. A avó - ou seja, a mãe de sua mãe - trabalhara muito jovem como empregada numa rica família na Espanha. Era trabalhadora, honesta, e gozava da confiança de seus patrões. Um dia aconteceu algo estranho. Ela teve um gesto impossível de controlar. Sob um impulso violento, se apossara de todas as jóias de sua patroa. Não queria usá-las nem vendê-las, só sabia uma coi­ sa: elas lhe agradavam porque eram bonitas de ver. Bri­ lhavam. Era só para as olhar que ela as havia pego. Elas brilhavam diante dos olhos, e a jovem não queria se sepa­ rar delas. O roubo fora descoberto muito rapidamente e, ame­ drontada, ela se acusara. Entregara todas as jóias, exceto o colar de pérolas, que ela guardara, escondendo-o, porque lhe agradava muito. Pelo colar, ela tinha mentido. Mas não acreditaram nela, e sob ameaça de prisão, prometera restituir seu valor. Fizera uma dívida e pagara uma imen­ sa quantia em dinheiro. Foi por isso que ela deixou a Espanha, por causa do medo que soubessem; mas sobre­ tudo porque na França se ganhava mais facilmente di­ nheiro, o que lhe permitira, ao fim da vários anos, reem­ bolsar a dívida. Em tomo dela, ninguém soubera disso. A família que a tinha empregado não tinha finalmente dado queixa, na condição de que ela reembolsasse o colar de pérolas. Já muito velha, antes de morrer, ela havia contado a história à sua filha, dando a esta o colar, fazendo-a pro­ meter guardar segredo e de só contar à sua filha quando sentisse chegar a morte.

^Sortilégios da cena traumática* Nem todo acontecimento dramático é necessaria­ mente traumático. O trauma psíquico possui característi­ cas próprias não redutíveis às marcas deixadas pelas ba­ nais infelicidades da vida. Um mesmo acontecimento pode ser traumático para um sujeito e não passar de uma lembrança dolorosa para outro que tenha encontrado meios de superá-lo e elaborá-lo psiquicamente. D ra m a e tra g é d ia , a d u p la tr a v e s s ia

Mesmo correndo o risco de simplificar meu propósi­ to, direi que o trauma introduz o sujeito na dimensão própria à tragédia, enquanto as demais infelicidades di­ zem respeito ao drama. O assassinato e o incesto perten­ cem de imediato ao campo da tragédia. A mentira, os enganos, as dores sempre singulares, a série de insatisfa­ ções que a vida inflige tecem os dramas cotidianos. Nos tratamentos, na maioria das vezes, começamos tendo acesso ao drama. O trágico pode, no entanto, vir reforçar * Texto originalmente publicado em Bloc Notes de Psychanalyse. 1993.

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Ah! As belas lições!

um drama singular quando atos ou palavras destituem um sujeito de um lugar que lhe caberia de direito, ainda que não tenha havido realização efetiva de incesto ou as­ sassinato. É assim que alguém pode ser destituído de seu lugar de Criança, Pai, Mãe ou membro de uma comunida­ de. O sentido coletivo dado pelos fundamentos míticos das tragédias se abate, então, sobre o acontecimento sin­ gular do drama privado. Permitir a passagem de um es­ paço ao outro é a característica do trabalho do psicanalista. Eis a razão pela qual cada vez que se aborda o esta­ tuto do trauma, quase obrigatoriamente se é levado a re­ fazer a história da psicanálise, sua relação com a história e a forma pela qual cada analista aí se situa. Acredito que essa abordagem, mesmo sendo um pouco esquemática, permitirá ultrapassar a clássica oposi­ ção entre "realidade" e "fantasma", sem negar, no entan­ to, a importância seja de um seja do outro. Não existe experiência humana que não passe pela exigência da figurabilidade. O que escapa a essa condição dificilmente pode ser pensado. "Imagine o que me aconteceu..." Às vezes eu imagi­ no, outras não, sendo necessário anos para que de um ao outro isso ganhe uma figuração e faça sentido Stellen sie sich vor. É a Vorstellung, da qual falava Freud. Em francês se diz representaçãoh A experiência traumática é aquilo que não se representa, ainda que deixe traços mnêmicos indeléveis. As razões para tanto são múltiplas: tanto pode se tratar de uma experiência precoce, na qual a criança não pôde se representar o acontecimento sem que a expe­ riência traumática passasse a fazer parte de suas aquisi­ ções futuras, quanto de experiências mais tardias, que, dada sua imprevisibilidade ou violência, não puderam

1. Como, aliás, também em portugués. (N. da T.)

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encontrar um meio de serem pensadas. O traço mnêmico, no entanto, está ai e atormenta o sujeito, que não tem acesso a representações que possam ser usadas por um outro. Essa memória isolada, marca de um imprevisto, na maioria das vezes vem de fora. Pode, em certas ocasiões, tomar de empréstimo uma pseudofiguração que remete ao fantasma, como fabricação onírica que não faz sentido comum, cuja imagem fixa, absurda e nefasta a cola para todo o sempre ao sentimento de uma experiência vivida. Em todos os casos se tem a negra solidão que acompanha todo trauma e afasta o sujeito, parcial ou totalmente, dos demais, mesmo que se tratem de experiências vividas co­ letivamente. Distinguirei, contudo, o trauma singular, que se situa na esfera do privado, dos traumas coletivos, tais como, por exemplo, a guerra pode engendrar. Apesar de, em ambos os casos, o indivíduo ser sempre atingido em sua singularidade, o tratamento não é o mesmo. Se, no primeiro caso, o quadro "privado" da sessão e a relação com o analista podem bastar para a elaboração do trauma psíquico, em outros, como por exemplo nos traumas en­ gendrados por atrocidades vindas do sodal e do coletivo, nem sempre a psicanálise basta para restaurar o sentido do dano sofrido. Seu reconhecimento exige que se recorra ao mesmo lugar simbólico, isto é, real, no qual o dano se originou. É necessário reatá-lo ao espaço público para que o sujeito possa sair de seu trauma pessoal. A "cena" trau­ mática adquire sentido no après-cottp, por meio de "um outro" ou "outros", representantes dos protagonistas pri­ meiros. Nos limites deste artigo, vou me restringir a uma única faceta das experiências traumáticas, as que foram vividas no espaço da vida dita "privada", mesmo saben­ do que todo acontecimento, seja ele coletivo ou estrita­ mente pessoal, sempre atinge o indivíduo no mais singu­ lar de sua dor. Pode-se dizer, também, que todo sofrimen­ to traumático implica uma "re-inscrição" em uma dimen-

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Ah! As belas lições!

são que ultrapassa o quadro privado - até íntimo - de seu surgimento, pela simples necessidade de seu reconheci­ mento que só pode scr feito por um outro. O que chamarei de "cena", seja ela da realidade ou do fantasma, abre caminho para a figurabilidade necessária. Este é o motivo pelo qual me parece útil revisitar a "cena traumática", uma vez que seu destino na psicanáli­ se é a esse respeito exemplar. Cenas em abism o2 A psicanálise nasceu dos relatos de uma cena e de seus efeitos. Freud transpôs a cena de infância, chamada "cena de sedução", fruto da realidade de suas pacientes histéricas, para o simbolismo de uma tragédia que julga­ va universal, servindo-se, para tanto, do mito de Edipo. Essa passagem de uma cena para outra é o que, de fato, fundou a teoria psicanalítica. Mas essa passagem não se fez aleatoriamente. Uma outra "cena" veio fazer a ponte entre o relato das histéricas e o mito edípico, trata-se da lembrança de uma "cena" da própria infância de Freud. Ao escrever a seu amigo Fliess, Freud conta a lem­ brança de uma cena na qual, por ocasião de uma viagem de trem, viu a "nudez" de sua mãe (carta de 3.10.1897). "Ainda ignoro tudo das cenas sobre as quais Se funda­ menta toda essa história", É a partir desse momento que conclui a sua "neurótica", promove o Édipo e a psicanáli­ se entra numa outra era (carta de 15.10.1897). Há, portan­ to, três cenas presentes: a primeira é a da sedução da 2. Em francês, abítue. Segundo O Robert se trata de um termo de semiologia em que uma obra aparece mostrada no interior da outra que fala nela, tipo relato no relato, filme no filme, pintura na pintura. (N.daT.)

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criança pelo pai, ouvida da boca de suas pacientes; a se­ gunda é a lembrança dele próprio criança e de seu desejo por sua mãe; a terceira se situa em outro nível, o do mito que põe em cena a tragédia edípica, o incesto com a mãe e o assassinato do pai. Passagem do drama à tragédia, cujo pivô é a própria vida do autor. A psicanálise vem ao mundo peia descoberta de uma série de cenas em abismo, começando pelo drama pessoal das transgressões das infâncias vienenses, passando por cenas da vida de Freud, para desembocar em cenas míti­ cas que contam histórias de incestos e assassinatos. O mito de Édipo é o protótipo da tragédia, as histórias con­ tadas pelas pacientes de Freud dizem respeito ao drama pessoal. Há os defensores do drama (a realidade da sedu­ ção) se opondo aos defensores da tragédia (os fantasmas provenientes da estrutura edípica). Que Freud tenha precisa­ do negar a realidade das cenas ouvidas de suas padentes histéricas para poder criar esse novo espaço de pensa­ mento, o do fantasma, não obriga todos os seus descenden­ tes a segui-lo ao pé da letra, repetindo cegamente esse movimento de disjunção entre uma realidade histórica e o fantasma como figuração do lugar psíquico da emergênd a do desejo. Em todo drama vivido na realidade, há a encenação de uma dualidade, seja ela pai-criança, mãe-crian­ ça, mulher-homem ou prisioneiro-torturador. As lem­ branças, os traços, as imagens que o representam, são feri­ das sempre recebidas por um outro, um semelhante. O relato de lembranças íntimas, recentes ou longín­ quas, conscientes ou reconstruídas com base em fragmen­ tos, com a condição de fazerem sentido para um outro no caso o analista - pode vir a tomar lugar na dimensão ternária do trágico. Isto não significa, em absoluto, a re­ dução de todo acontecimento traumático a histórias edípicas ou sexuais, mas significa a possibilidade da restau­ ração de um laço entre uma experiência singular e os fun-

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Ah! As belas lições!

damentos míticos que ordenam as comunidades huma­ nas, que ultrapassam a relação dual. Esse tempo derradei­ ro de uma análise representa o retorno do indivíduo, que a experiência traumática havia tornado estrangeiro a seu próprio tempo e ao dos outros, à comunidade de seus semelhantes. Aqui, convém distinguir as lamentações so­ bre o próprio destino, que ouvimos de nossos pacientes incapazes de se imaginar atores da própria existência, a não ser sob a influência de um passado eternamente pre­ sente, daquilo a que me referia anteriormente como a ne­ cessária inscrição de toda existência na ordem do trágico. Este é o resultado dos mitos fundadores das sociedades humanas, que as tragédias põem em cena e que se distin­ guem das cenas do drama individual por seu caráter simbóli­ co e "desdramatizado", que dá conta das limitações, proi­ bições e leis que regem o conjunto dos humanos de uma dada sociedade. Aceitar o destino comum não é assimilá­ vel à crença em uma implacável maldição. O trauma é sempre trágico, pois invariavelmente destitue o sujeito de seu lugar simbólico, contudo, para "curá-lo", é preciso passar novamente pelo reconheci­ mento do drama singular. Aí reside toda a diferença entre aquilo que cura um membro de uma sociedade individualis­ ta, daquele de uma sociedade onde o indivíduo é insepa­ rável da comunidade. A tragédia grega era uma catarse coletiva. Um homem doente num vilarejo africano é tra­ tado em cerimônias coletivas. Os ocidentais doentes de­ vem sempre passar novamente pela cena privada de sua ferida, ainda que não possam prescindir do espaço comu­ nitário, que embora ausente da sessão, existe pelo sentido que lhe confere a tragédia. Às vezes, como já disse, é preciso também recorrer ao espaço público do coletivo para tornar representável a uma comunidade de huma­ nos aquilo que uma outra comunidade, quando não ela própria, cometeu como assassinato de corpos e almas.

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É falso pretender que Freud tenha negado a impor­ tancia da realidade das cenas. Sua negação dizia respeito a apenas uma: a da sedução sexual da criança por parte do pai no caso de suas pacientes histéricas. Na neurose obsessiva do Homem dos Lobos, ele literalmente se esfal­ fa em tentar reencontrar a cena originária do coito parentai e diz ao leitor: Garanto ao leitor que não sou menos crítico que ele no que diz respeito à admissão de uma tal observação por parte de uma criança e peço-lhe que se junte a mim para provisoriamente acreditar na realidade da cena...3

Na esperança de poder prová-lo definitivamente! Assim como não duvida sequer por um instante da realidade da visão do pênis do cavalo que originou a fo­ bia do Pequeno Hans. Sem falar da neurose traumática de guerra, tema sobre o qual voltou por diversas vezes. Ele duvida do ato sexual, de que a filha, futura mulher histé­ rica, teria sido objeto. Transforma-a em cena de fantas­ ma, na qual a histérica aparece como um sujeito desejante, que desconhece seu próprio desejo. Freud refuta a idéia de um pai sedutor na realidade e da criança como protagonista de uma cena sexual efetiva. Sabemos, hoje em dia, quão difícil era para ele autorizar publicamente tal versão em virtude de sua história pessoal (precisava proteger seu próprio pai), sem contar que não podia se permitir ser o acusador público da boa sociedade vienense de cujas filhas tratava. A diferença entre uma cena fantasiada e uma na qual a criança foi de fato objeto de sevícia por parte do pai se manifestará claramente na forma pela qual o psicanalista será provocado na transferência. O que não quer dizer 3. Sigmund Freud, Le$ àn q psychanah/ses, p. 351.

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Ah! As ¡vías Jjçdrs!

que so exista trauma em casos do sedução, estupro ou violencias reais. Palavras, coisas ouvidas ou vistas podem ser igualmente traumatizantes. Após o período em que a questão do trauma foi mantida afastada, para permitir o trabalho sobre o fan­ tasma, e a realidade traumática foi sistematicamente atri­ buída ao fantasma da histérica, assiste-se atualmente a urna retomada de interesse pela realidade do trauma, incorrendo-se no risco de pecar pelo oposto. Mais particu­ larmente, existe uma tendência em constituir a posição de vítima como garantia de enunciação da verdade. A esse respeito, convém sublinhar a importancia da influên­ cia exercida pela ideologia e certezas teóricas do psicana­ lista, assim como seus próprios traumas não elaborados sobre as produções verbais e oníricas dos analisandos. Queiramos ou não, o reconheçamos ou não, o fato é que a neutralidade do psicanalista não existe.

Entrada em cena do analista Freud salvou a dignidade dos pais vienenses sacrifi­ cando a criança. Ferenczi deu espaço ao drama do sofri­ mento da criança insistindo sobre a necessidade do reco­ nhecimento de suas experiencias traumáticas. Lacan in­ troduziu a diferença entre real e realidade, que permite repensar a questão do trauma em sua relação com a ativi­ dade imaginária e com a simbolização. Infelizmente esta sua contribuição permanece estéril para todos aqueles que, pensando desse modo serem fiéis a ele, julgaram cor­ reto considerar como uma inutilidade o funcionamento do imaginário. Se o psicanalista permanecer preso na ex­ clusiva dimensão da tragédia, limitando suas interven­ ções ao registro do simbólico, dificilmente conseguirá atingir o drama vivido pela criança e, mais particular-

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mente, sua experiência traumática. O retorno à cena, his­ toricamente reconhecível, exige com freqüência que o analista faça sua própria aposta imaginária, preliminar indispensável para unir a criança ao adulto. Caso contrá­ rio, até poderá ouvir, mas ouvir não basta para restaurar a continuidade mínima entre os diferentes momentos psí­ quicos vividos espacial e temporalmente. A ''realidade", como toda lembrança é uma constru­ ção. O trauma é sempre uma irrupção do real, um arrom­ bamento provocado por elementos de uma cena que atin­ gem um sujeito despreparado para pensá-la. Ninguém melhor que Ferenczi para descrever este estado de "co­ moção psíquica", que deixa o sujeito siderado, provocan­ do anestesia e clivagem. Como, então, entrar no mundo do representável e, a partir daí, do pensável se o imaginá­ rio de um outro não vem dar corpo ao relato? O trauma se constitui no après-coup pela repetição. Eis por que um trauma pode esconder outro. Na maioria das vezes será o último da série a dar a "boa forma" aos traumas anteriores, pertencentes a tempos arcaicos, quer do próprio indivíduo, quer de um de seus ancestrais. Nesses casos, não é raro que se ouça evocar a figura do destino. A subjetividade passa, assim, a ser pensada como exclusiva e definitivamente submetida ao registro da tra­ gédia, a possibilidade de um drama sendo imediatamente rejeitada na frieza de uma simbolização impessoal. O trauma sidera e pára o tempo pela clivagem que impõe. E comum se ouvirem histórias nas quais uma pes­ soa, perfeitamente capaz de gestos de sobrevivência adaptados no momento da irrupção do acontecimento, em seguida se separar totalmente dele, como se tivesse acontecido a um outro. A vida parece prosseguir sem grandes emoções. Nada se assemelha mais à vida que a sobrevivência... e, no entanto... Não haverá mais passado, presente ou futuro. O tempo subjetivo deixa de fluir. Essa

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Ah!

belas Uçôcs!

noção de aprcs-conp permite separar aquilo que numa ex­ periência potencialmente traumática constituirá ou não um trauma psíquico. Num caso haverá elaboração psíqui­ ca, ainda que acompanhada da formação de sintomas, com continuidade do tempo subjetivo e inscrição do acontecimento no passado, enquanto, no caso do trauma, o tempo do sujeito pára no tempo e ele continuará viven­ do num tempo atemporal, prisioneiro de uma cena que desconhece, isolado em sua solidão, mesmo que possa relatá-la. Existem traumas precoces inacessíveis à rememora­ ção, fora de qualquer relato. O corpo e os sonhos serão sua via de acesso. A utilização da contribuição oferecida pela possibilidade de o analista vir a ser afetado pelo que ouve, supõe ou sente, lhe permitirá propor com base em seu imaginario, assim solicitado, um relato plausível, a partir do qual um sentido poderá se inserir e constituir a trama de uma história e a saída do jugo da cena vivida mas inassimilável. Em outros casos, a cena é consciente, contada, mas o analisando não consegue se afastar dela, voltando sempre, como que atraído por um poder fasci­ nante, mas doloroso. A cena não tem como passar a fazer parte do passado. Há, também, os chamados "traumas transgeracionais" que se transmitem do inconsciente parental ao in­ consciente da criança- Haja ou não possibilidade de rela­ to, todos eles têm isso em comum: para que o analisando possa sair, "destraumatizado", é preciso que o analista entre em cena. Na maioria das vezes isso acontecerá sem que ele próprio se dê conta. Reconhecê-los, conferir-lhes sentido e palavras é, nesses casos, o próprio trabalho sobre a transferência. O analista será levado a isso pelo paciente, quer queira quer não... Ocupará aí um lugar que nem sempre é aquele que pensa ocupar classicamente. Ferenczí dizia que o analista sempre repete o crime. Acre-

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ditoque seja verdade- Entretanto, é preciso que dê conta de repeti-lo, já que tudo se desenrola na surdina, e pode­ mos tendèr a confundir esse tipo de fenômeno com algu­ ma forma de resistência, quando não de reação terapêuti­ ca negativa. O analista pode, desta maneira, ser levado a pensar, sentir ou dizer, aquilo que do lugar da criança não pode ser pensado, sentido ou dito no momento da sideração. Isso pode dar lugar a um tipo particular de relações que chamo de "transferência invertida". Lacan, no Seminário Os escritos técnicos de Freud, diz: Ferenzci viu magistralmente a importância dessa questão - o que numa análise de adulto faz participar a criança no interior do adulto? A res­ posta é perfeitamente clara - aquilo que é verbali­ zado de modo irruptivo.

Quanto a mim, acrescentaria que a "verbalização irruptiva" não se dá necessariamente pela boca do paciente, pode também se dar pela do analista, com a condição de que ele consinta em abri-la. É o que acontece na maioria das vezes, quando do retomo de elementos da cena trau­ mática no aqui e agora da sessão. Quer o analista fale ou não, o essencial é poder integrá-la no desenrolar do trata­ mento, conferir-lhe sentido, para que o próprio analista possa sair da armadilha da repetição, não recalcando sua própria entrada em cena, encarando-a como uma inútil parasitagem, quando não, falta de neutralidade. Ilustrarei meus propósitos por meio de dois exem­ plos clínicos, mesmo sabendo, e espero que o leitor tam­ bém o saiba, que se pode fazer dizer qualquer coisa a um fragmento clinico. Mas como falar na cena, se no texto não faço aparecer nenhuma? Todo fragmento "clínico" num texto, repete e desloca a série em abismo das cenas fundadoras da psicanálise. Explícitas ou não, há sempre três cenas presentes: a do analisando, a do analista e a do mito.

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Ah! As belas lições!

Transfercncia invertida Uma paciente me conta, após numerosas sessões marcadas por um silêncio incômodo, o porquê dela ter vindo procurar uma análise, sem que o pudesse ter dito anteriormente: trata-se de suas relações incestuosas com seu pai. Evocará, à medida que sua confiança for crescen­ do, cenas repetitivas vividas com seu pai num porão onde, criança, ele a forçava a práticas sexuais, sobre as quais até então jamais falara a ninguém. Isto havia dura­ do vários anos, até sua puberdade, sem que aparentemen­ te o restante da família desconfiasse. Sentia-se aliviada por ter podido falar sobre isso. Ao longo das sessões se­ guintes e durante muitos anos repetirá esse mesmo relato, sempre voltando ao local, evocando os detalhes, sem ja­ mais poder falar de seu pai de outro modo que não seja a partir dessas cenas. Cada vez que mergulha nesses relatos é tomada por uma espécie de excitação difusa, ficando num curioso estado, do qual nada podia dizer. Tudo que lhe acontecia era remetido a essas lembranças do porão, como se esse lugar tivesse sido o único para acolher todas as suas experiências futuras, o único lugar a partir de onde podia pensar sua vida. Quanto a mim, escutava, intervinha, nomeava, mas nada mudava esse estado de coisas. Ela sempre voltava a ele como que fascinada. Um dia não agüentei mais. Eu me senti presa na armadilha desse relato repetitivo que não desembocava em coisa al­ guma. E quase à minha revelia a "verbalização irruptiva" aconteceu. Disse-lhe bruscamente: "Estou cheia desse po­ rão! Não agüento mais". Silêncio, e depois numa voz cal­ ma ela me interpretou: "Foi exatamente o que não pude dizer a meu pai. A senhora disse aquilo que eu não tinha como dizer, sou eu que acabo de falar". Foram preciso anos de repetição para que eu fosse realmente afetada, que não aguentasse mais. Foi preciso que eu formulasse

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com base em um afeto ressentido no "aqui e agora", que me fora imposto por ela, o desejo de acabar de urna vez por todas com essa experiencia, com essa cena que, a par­ tir de então, se tomou analisável e pensável de outra for­ ma e não apenas por sua evocação repetitiva. A paciente perdera finalmente o fascínio pela cena. A seguir houve a emergencia de fantasmas que diziam respeito a seu pai e a seus amantes, todos estupradores em potencial ainda que em um grau menor. Houve a tristeza pela perda do pai da primeira infância, o pai de antes do trauma, e acesso a outros elementos de sua historia, que até aquele mo­ mento, tinham sido barrados pelo fasdnio dessa cena. A própria palavra incesto pronunciada inúmeras vezes, mas que, até então, mais parecia um chapéu que não encontra­ va cabeça de seu tamanho, tomou consistência a partir do momento em que essa lembrança passou a fazer parte do passado. Nem por isso a continuação dessa análise foi fácil. Pôde, porém, seguir outro rumo. Ainda que essa paciente apresentasse uma estrutura histérica, em mo­ mento algum duvidei da realidade das cenas contadas. Que também tenham existido fantasias, ou reconstruções arranjadas, assim como desejo seu por esse pai, não resta a menor dúvida, mas tudo isso só pôde aparecer após a saída da cena do sortilégio. Construção de uma ficção verdadeira Acontece freqüentemente que a lembrança do trau­ ma não esteja presente. Pode ser deduzida da história do paciente, mas nem por isso a questão da saída da repeti­ ção está resolvida. Uma jovem senhora vem me pedir uma análise, ou melhor, ajuda, porque tortura sua criança. É algo insupor­ tável, no entanto, mais forte do que ela, quando tomada

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por essas crises de violencia. O que relata é terrível. Ela é uma torturadora c tem horror de si própria. Nessas horas nada nem ninguém consegue fazê-la parar. É um milagre que a criança ainda esteja com vida. A criança lhe fora temporariamente retirada, mas ela não suportava nem a separação nem sua destituição do papel de mãe, tendo feito várias tentativas de suicídio. Tratava-se de uma jo­ vem inteligente, muito delicada, de um meio bastante in­ telectualizado. De imediato, e para minha própria surpresa, senti uma afeição viva e constante para com essa mãe de hor­ ror. Seguramente, devo ter vislumbrado a criança perdi­ da. Logo me contou que perdera sua mãe com dois anos de idade. Fora educada por tias solteironas com muita delicadeza e cuidados. Seu pai casara de novo, ela o via de vez em quando, contudo suas relações eram distantes. Não tinha lembrança alguma de sua mãe. As tias tinham com freqüência se referido a ela como a uma mulher mei­ ga. Ela própria em criança não apresentara maiores pro­ blemas. Muito cedo sentira vontade de ter filhos. Casada, bem com seu marido, ficara extremamente feliz ao saber que estava grávida de uma menina. Preparara o enxoval com amor e durante a gravidez cantarolava: "Minha filha você andará sobre pétalas de rosa". Porém, não foi assim que as coisas se passaram. Logo após o nascimento, o bebê teve que sofrer uma intervenção cirúrgica, necessá­ ria ainda que sem gravidade. A seguir, teve uma série de doenças. Ela jamais imaginara isso. Nunca imaginara que um bebê pudesse manifestar sinais de infelicidade. Essa mãe, tão amorosa em suas intenções, se transformou em uma torturadora e se pôs a bater na filha assim que ela a escutava chorar. A pequenina se pôs a chorar cada vez mais e, conseqüentemente, apanhava cada vez mais. Ela batia para não escutar os gritos, para que se calasse. Ela queria uma criança feliz. Ela lutara, porém em vão. Até

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que seu marido percebeu e a criança foi colocada a salvo de sua loucura. Tudo desmoronou em seguida. Ela se di­ zia que isso tinha algo a ver com a perda de sua própria mãe. Mas não surtia efeito. Sua capacidade em conter o desamparo da filha era nula. Em análise, vimos que ela não podia sustentar seu lugar de mãe, porque na realida­ de sua filha encarnava literalmente sua relação com a mãe real morta. A infelicidade da criança, suas doenças faziam surgir na paciente a louca angústia da perda. Assim que a criança chorava, a morte real estava presente ao encon­ tro, e nenhuma lembrança vinha estabelecer barreira nem distinção, para imaginar, se imaginar, imaginá-la. Ne­ nhum pensamento eficaz para pensar a diferença entre sua mãe, ela própria e sua filha. Apenas a violência esta­ belecia uma fronteira entre a vida e a morte, correndo o risco de causar a morte. Tudo isso ela o dizia, ela analisa­ va, mas sua violência permanecia intacta assim que ouvia a criança chorar. Um dia, cometi o irreparável. Um dia, eu a esqueci. Uma de suas sessões era no final do meu dia de trabalho. Não sei por que, naquele dia, ao acompanhar o paciente anterior até a porta, pensei que tivesse terminado e não voltei para buscá-la na sala de espera. Uma hora mais tarde, passando, por acaso, pela porta, consternada, me dei conta de meu esquecimento. Ela estava lá: imóvel, encolhida, infeliz e lívida, me esperando. Jamais esquece­ rei dessa imagem de desamparo. Sem saber, eu havia re­ petido o crime. Pedi desculpas, contudo, nada mudou seu sentimento de abandono. "Nada mais será como antes." No entanto, apesar disso, continuou vindo, e eu não sabia mais o que lhe dizer, até que um belo dia ela própria encontrou a saída. Acusando-me uma vez mais de tê-la abandonado, observou que seguramente era assim que deve ter se sentido, após a morte de sua mãe. Eu já lhe havia assinalado isso, mas fora em vão. Ela prosseguiu:

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"Se somente fosse capaz de verdadeiramente reviver esse momento". Propus que tentássemos imaginá-lo juntas, a partir daquilo que vivenciara recentemente. Pouco a pou­ co, com palavras, as suas, nasceu uma cena de ficção, de ficção no que diz respeito à representação, mas não quan­ to ao contexto afetivo. Seu desamparo tinha entrado em sua análise e se repetia comigo. Muito rapidamente, pôde encarar a idéia de recuperar sua filha, a idéia do desam­ paro não a colocava mais no mesmo estado de pânico. Pôde recuperá-la sem que seus choros a tornassem vio­ lenta. Diria que sua relação com sua filha se "destraumatizou", pela dramatização de sua relação transferencial. Meu ato falho foi o desencadeador da possibilidade de uma representação de uma cena traumática, escandindo o tempo num antes e num depois transferível. Essa mãe de horror carregava em si a criança da mãe morta, sem aces­ so ao luto, por falta de representação de si própria e de sua mãe no momento da perda. Ela se serviu de meu ato falho desastrado, mas certamente induzido, para repre­ sentar a perda de sua mãe em uma idade na qual não podia guardar lembranças disponíveis. Sonhos aparece­ ram como que para continuar essa evocação até seu esgo­ tamento. A ficção transferencial vinculou os diferentes momentos psíquicos da criança e do adulto.

Espaço congelado - tempo parado Essas duas histórias, aparentemente muito diferentes uma da outra, me levaram a questionar a necessidade de revisitar a cena do trauma, seja pela invocação repetida, até que uma saída a partir de um lugar presentificado se tome possível, seja a partir de uma construção que inte­ gre o afeto vivido no presente a uma cena que possa ser pensada no passado.

Sortilégios da cena traumática

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A noção subjetiva do tempo está intimamente ligada à de espaço. O tempo não possui representação própria; demanda sempre um recurso à representação espacial. Se­ jam os ritmos do corpo, a sucessão do dia e da noite, as percepções do meio ambiente, não importa, são as anco­ ragens no espaço que dão a noção do tempo. As lembran­ ças de uma cronologia da vida são escandidas por ele­ mentos significativos, inscrições de acontecimentos, que dão o saber íntimo, mas objetivável, de um antes e um depois. Quando uma cena aprisiona alguém em suas ma­ lhas, seja ela real ou fantasiada après-coup, baseando-se em elementos incertos, trata-se sempre de uma captura imaginária espacial. O tempo acaba, então, igualmente imobilizado nos sinais espaciais que são seus represen­ tantes para o sujeito. Evidentemente a vida continua. E a continuidade do sentimento de identidade para o próprio sujeito é garantida mais por suas experiências noturnas que diurnas, quer ele se lembre ou não de seus sonhos ou pesadelos. É na atividade do sonho que se faz a continui­ dade psíquica de cada um de nós, e mais ainda quando a vida psíquica contém em seu seio um fragmento não acessível à diferenciação do tempo (passado, presente, fu­ turo) que escandem os processos secundários da vida consciente acordada. É usual constatar nos sonhos a per­ manência de restos diurnos. Existem, contudo, na vida acordada "restos noturnos" dos quais os sujeitos não têm consciência. Penso que são esses restos, restos noturnos que se manifestam mais particularmente na transferência quando irrompe "a outra cena", quando o analisando ou analista sentem, dizem ou pensam sem sabê-lo de modo "irruptivo", o momento traumático, quando são tomados pelo passado que permaneceu no presente. Restos notur­ nos da memória inconsciente. O real do trauma não pode se prender a uma simbolização direta, se não há contribuição de um imaginário

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compartilhado. Ora o próprio do trauma é o congelamen­ to do imaginário, tornando impossível o sentido, e conscqüentemente a passagem a uma significação linguageira, isto apesar do sujeito falar e até falar do assunto. Um trauma pode ser contado, suposto, evocado, sua significa­ ção pode ser conhecida e, no entanto seu sentido perma­ necerá ausente enquanto subsistir a divagem entre o res­ sentido pulsional, as emoções e as palavras. Clivagem, essa, que não impede nem que se utilizem palavras nem que se seja vítima de explosões pulsionais e nem que se ofereça ao outro o espetáculo de um esvaziamento de afe­ to... Nem mesmo de pontificar sabiamente sobre o trau­ ma... Cada esfera funciona de maneira totalmente separa­ da das demais. Essas três manifestações, das pulsões, dos afetos e das palavras do indivíduo - mesmo quando são necessárias para significar um sofrimento - não o consti­ tuem, no entanto, em sujeito da própria história, nem lhe possibilitam viver sua vida com um passado, um presen­ te e um futuro, enquanto permanecerem clivadas entre si e, consequentemente, também de seu imaginário em ati­ vidade. O relato só adquire sentido se um outro, o desti­ natário, for afetado. Caso o analista permaneça do lado de fora e não endosse, num primeiro momento sem saber, e depois de modo consciente (este é seu trabalho), um dos pólos, um dos elementos significantes da cena traumática, não terá como permitir ao analisando abandoná-la ao passado. Já que, para sair de uma cena traumática, não se pode estar sozinho. É preciso que haja um outro aparelho psíquico, um semelhante, para poder juntar as pulsões, os afetos e as palavras, por seu intermédio e aposta. É óbvio que não se trata aqui de nenhuma posição de pieguice por parte do analista, nem da exigência de chorar em con­ certo com seu paciente. Trata-se, o que nem sempre é evidente, do desbloqueamento de sua atividade psíquica diante do analisando. Isso pode se dar num processo de

S ortilégios d a cen a tra u m á tica

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longo curso, ou no instante de um flash, que será abertura, rasgo, arrombamento mesmo, do muro mortalmente fas­ cinante do trauma e que muito comumente constitui a única área familiar do paciente, sua familia interna, do siderado-seduzido da experiencia de deflagração. A expe­ riencia traumática, seja qual for a idade, e sempre uma experiencia forte. Ra2ão pela qual tem tendencia a ocupar o lugar de cena originária. Ainda que horrorosa, é incons­ cientemente preferível (já que conscientemente o sujeito deseja, na maioria das vezes livrar-se dela), a um outro lugar desconhecido e árido, a não ser que um outro, car­ regado de desejo, se mantenha na soleira da cena para indicar uma saída suportável. A experiência traumática é tão forte quanto a dor, que impede sentir as outras partes do corpo, exceto a do­ lorida. E, no entanto, o trauma anestesia. E certo, aneste­ sia tudo, menos o umbigo do arrombamento, a ferida pelo real: ali o sujeito ainda se sente viver um pouco, familiar a si próprio, nessa estase da vida, tempo parado, sensações, idéias, sentimentos suspensos no instante da deflagração. Nem antes nem depois, o traumatizado se esgota tentando dar vida a um museu de cera. Viverá na espera inconsciente do retomo do trauma, sua única mo­ rada, para aí se reencontrar um pouco e se perder nova­ mente, caso não encontre ninguém para lhe indicar a exis­ tência de um outro lugar. É importante poder desalojar o trauma de sua função usurpada de cena originária, que tende a assumir por meio de suas diferentes manifestações repetitivas. O trau­ ma, experiência psíquica forte, funciona, desse modo, como fundador e motor dos agenciamentos existentes de uma pessoa. O sonho traumático se encontra a meio caminho en­ tre a tentativa de integração psíquica, sempre fracassada, e a passagem ao ato. Seu relato em análise, tão repetitivo

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quanto o próprio sonho, requer igualmente a entrada em cena do analista. Assim, um outro relato pode vir a se constituir, o tempo parado se amarrar ao tempo do outro, e os pensamentos podem se libertar progressivamente do jugo fascinante da dor. A entrada em cena da presença real do analista, as­ sumida como tal, tem como interesse terapêutico o de evitar que o relato se enrole sobre si mesmo, o que quase sempre acontece com as interpretações paradigmáticas. Se a realidade de um trauma, mesmo reconhecida, só recebe por tratamento uma interpretação que vem reco­ brir o acontecimento com uma significação, a saída é pouco provável. Se, ao contrário, o tratamento for de or­ dem sintagmática, o que consiste em dar um sentido sin­ gular, e não já de imediato uma significação geral à cena, seja esta real ou fantasiada, então ela poderá se abrir a outros sentidos pela necessidade de uma nova sintaxe que ligue a descontinuidade dos tempos à continuidade de um relato construído na intersubjetividade. E este o trabalho de construção e elaboração psíquica que não pode ser reescrita solitária do analisando de sua história, mas sim trabalho conjunto. O trauma não elaborado não põde se inscrever no passado, e a interpretação paradig­ mática não introduz a diferença dos tempos subjetivos. Eis por que é importante reinventar a cena, a dois, seja ela a mesma, tomada no tecido da realidade conhecida, seja ela totalmente outra, completamente reescrita a partir de fragmentos de história ou estranhos devaneios. O essencial é, que a partir dessa morada comum, haja um verdadeiro encontro entre o analista e o analisando, apesar da ficção, encontro que, naquele momento, nem um nem o outro apreciarão, pois o real não é amável. Quando lhe é dada a chance, na sombra de seu retomo, pode se tomar o motor de uma atividade imaginária e simbolizante, caso o outro acuse recebimento. "Des-traumatizar", não é igual a des-

S o r tilé g io s d a c e m tr a u m á tic a

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dramatizar, muito pelo contrário, é permitir que um dra­ ma singular seja reconhecido para que possa se inscrever na lógica das tragédias que estruturam nossos mitos fun­ dadores. Onde logicamente se é mais que dois... isto é, são necessários pelo menos três para fazer cidade, e não apenas família, como freqüentemente se tem tendência dizer. Mas se falo em termos de tragédia, não significa que tenhamos necessariamente de chorar. Parece que até o riso encontraria aí sua fonte.

Os artigos aqui reunidos recobrem um período de 15 anos. Ainda que não representem a totalidade daquilo que eu escrevi e publiquei, bastam, no entanto, para tra­ çar um percurso. A maioria desses textos foi escrita em resposta a en­ comendas que me foram feitas pelas revistas nas quais

foram publicados. Mais do que encomendas, termo um tanto quanto áspero, eu prefiro dizer que foram convites para escrever. Razão pela qual lhes sou infinitamente grata. Uma exceção, no entanto, nenhum dos textos publi­ cad os en tre 1970 e 1978 pela revista L 'o rd in a ire du psychanalyste figura na atual coletânea. Esses artigos - não assinados, em função da regra do jogo vigente na revista foram escritos sem que ninguém, salvo eu mesma, tenha me convidado, e isto pela simples razão que eu era um dos dois responsáveis por esta publicação. Se eu mencio­ no este fato aqui, é para dizer que os primeiros artigos

publicados nesta coletânea não são meus primeiros tex­ tos, eles foram precedidos por um certo número de ou­ tr o s , publicados essencialmente no L ' o r d i n a i r e d u psychanalyste, mas também em certo número de publica­ ções médicas. O primeiro artigo, "Sobreviver", que abre esta cole­ tânea, data de 1978. Foi escrito a pedido de Octave Man-

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noni, sendo que en já exercia a psicanálise desde 1967. Esse convite para escrever aconteceu, pois, aproximada.mente dez anos após meu "inicio" como psicanalista. Ainda que não se tratasse propriamente falando de um primeiro texto, uma vez que já havia escrito outros antes, representa um ponto de articulação em relação à vida ins­ titucional da psicanálise em Paris. Ele abre a série posterior L'ordinaire. tendo sido ao mesmo tempo o último publica­ do antes da dissolução da Escola Freudiana de Paris. Não há razão, pois, para estranhar que, nas páginas a seguir, eu me detenha um pouco mais nele, uma vez que sua releitura hoje, evoca, para mim, o fascínio que exercem certas velhas fotografías, em que tentamos adivinhar, nos rostos adolescentes, o lugar que ocuparão as futuras ru­ gas. Eu reencontro, aí, idéias que já estavam presentes em alguns textos do L'ordinaire, principalmente naquele cha­ mado "Separação d'ela", mas contém, antes de mais nada, o germe dos temas que desenvolverei mais tarde, sob os títulos mais diversos, sem que eu estivesse consci­ ente de já tê-los abordado neste texto. É essa a razão pela qual quis que os artigos fossem, aqui, apresentados em ordem cronológica, ainda que evi­ dentemente outras formas de reagrupamentos significati­ vos tivessem sido possíveis. Se é, para mim, reconfortante me dar conta, no aprèscoup, de uma certa continuidade em minhas idéias, é tam­ bém estranho constatar que, qualquer que tenha sido o tema proposto, no melhor dos casos: voltava a meus inte­ resses; no pior: às minhas obsessões... Esta constatação reencontra a questão que eu me co­ loco no que diz respeito a toda escrita em psicanálise: qual é a parte desempenhada pela história pessoal de uns e outros em suas preferências teóricas e nas escolhas dos exemplos clínicos? Não creio que seria mais conveniente para nossa disciplina fazer com que o simples cidadão

A p r è s -c o u p

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acredite que apenas o interesse intelectual guia a pesquisa de um psicanalista- Seria pura mentira... além do que, inútil. De modo algum, eu gostaria de me contentar com uma resposta académica fundamentada num interesse apenas científico. Sem dúvida alguma, a teoria, e sobretu­ do a teoria do Um, permite camuflagens, por vezes muito bem sucedidas, mas recorrer sistematicamente a ela não enriquece necessariamente nosso campo. Existem vários modos de escrever a psicanálise. Há o estilo e o método. Se o estilo pertence a cada um, assim como sua respiração, podemos emitir algumas exigências quanto ao método, quando se trata de psicanálise. É pos­ sível escrever de modo acadêmico coisas belíssimas, mas acredito que quando um analista deseja transmitir sua experiência ou sua reflexão, é forçado a estabelecer um equilíbrio estético e ético entre uma abertura à teorização, isto é uma exigência desta, e o espaço deixado de modo latente ou patente à presença do sujeito, aquele que avan­ ça e se adianta ao escrever. Se alguns psicanalistas pecam por um excesso de academismo, outros sofrem da ausên­ cia de literatura. Se se trata de um puro desejo de escre­ ver, por que se esconder atrás do pretexto da psicanálise? E permitido a todos tentar sua chance no relato subjetivo ou na ficção. Da mesma forma, a incapacidade de cons­ truir um bom relato, uma história, é uma inibição imagi­ nária um tanto quanto tristonha. Permanecer suficientemente próximo da própria subjetividade, sem no entanto invadir a cena com inúteis confidências, e permanecer, ao mesmo tempo, suficiente­ mente lógico para se prestar a uma argumentação contra­ ditória, eis o desafio, do qual, nem sempre, é fácil dar conta. Eu não sei se consegui me aproximar suficiente­ mente desse modelo que me parece ser o mais desejável. Freud permanece sendo inigualável quanto a isso. Ele soube se servir de seus sonhos e de acontecimentos de

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sua vida para ir além de sua pessoa e constituir um saber de valor generalizável, ao mesmo tempo em que escrevia histórias clínicas que se lê com prazer. Que, desse saber fazer, tenha querido fazer ciência, é uma história de época e um desejo compreensível por parte de um pioneiro como ele. Quanto a nós, não precisamos mais provar perante o mundo tal exigência. A preocupação em tornar o saber psicanalítico assim como a experiência clínica transmissíveis coloca a cada um a escolha da forma. Quando digo "saber psicanalítico", é óbvio que não estou me referindo a uma teoria geral. Que se trate de mim mesma ou de um outro qualquer, eu acredito que, em psicanálise, não há teoria que não seja regional, isto é, parcial. O resto é da ordem do logro, do religioso ou da ingenuidade. Isto apesar das tentativas de alguns grandes talentos, de forçar toda reflexão a se referir a um sistema único. Eles, os "fundadores de sistem as" (inclusive Freud), não foram nem um pouco ingênuos, e sim possuí­ dos por essa onipotência que tão freqüentemente acom­ panha o gênio criador. Se a crença deles no valor "único" de seus sistemas lhe era necessária para criar, os que os seguem, e os admiram, não são, no entanto, forçados a manter um mimetismo cego. Eis por que, eu prefiro falar de "teorização" ou, mais simplesmente, de idéias, em vez de teoria. Na França, mais que alhures (quero dizer, mais que nos países anglo-saxões), nós sofremos, voluntariamente, o reinado de um pensamento dominante em ciências hu­ manas. Não havia salvação fora do estruturalismo. A isto acrescentou-se, no domínio particular da psicanálise, o ri­ dículo de um mimetismo do estilo de Lacan, com todas as preciosidades que lhe eram próprias. Permanecerão, disso tudo, algumas idéias fortes. Os sistemas, em minha opi­ nião, são o que em ciências humanas é o mais transitório. Permanecem os relatos, as observações e os pensamentos.

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Desde muito cedo apreciei certas idéias de Lacan, mas sempre resisti aos sistemas. Eu não era a única, nós éra­ mos alguns nessa turma de rebeldes contra os dogmas. Eu penso, eu espero, que isso seja perceptível nesses textos. A escrita precede aquele que escreve. Salvo em executar trabalhos de aluno bem comporta­ do, escrever psicanálise comporta sempre o risco de um desvelamento. Ainda que seja desejável que um escrito de psicanálise siga um desenvolvimento racional, nem por isso, ao pensar estar escrevendo uma coisa, se deixa, sem sabê-lo, de dizer outra. Ao lado do propósito consciente e racionalmente construído, a enunciação contém dobras secretas e invisíveis no momento da escrita. Ela revela après-coup, em filigranas, palavras, pensamentos, lem­ branças, introduzidos como passageiros clandestinos na polissemia dos sonhos. Assim como o sonho, os escritos carregam as marcas de um passado despedaçado, irreco­ nhecível, e tanto quanto o sonho, fazem pressentir - nem que seja pelos temores - configurações de possíveis futuros. Seria, a meu ver, conveniente restituir sua parte de subjetividade a todo escrito psicanalítico, ganhariam, pa­ radoxalmente, em credibilidade didática - principalmente quando seu autor os fantasia em obra de ciência. Isto é feito por Freud, e graças a Freud, mas será que ele foi o único autor de psicanálise a ter uma infância, uma história e um inconsciente presentes em sua obra? E, em todo o caso, senão o único, pelo menos um dos raros psi­ canalistas, a ter tentado não clivar sua experiência e seu pensamento em privado e público, ainda que de modo compreensível não lhe tenha sido possível dizer tudo. Não se trata de confissões, e sim da procura de um méto­ do mais condizente com a psicanálise, que faz com que os psicanalistas, e apenas eles, tenham que levar em conta a parte de subjetividade e inconsciente presentes em todo pensamento.

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De modo um tanto quanto sucinto, eu diria que es­ crevemos com a memória dos afetos desconhecidos. O termo afeto tendo sido posto no índex pelo sistema único, permito-me, no entanto, utilizá-lo. Houve um tempo em que muito púdicamente e um pouco hipocritamente se pensava tudo isso sob a nobre apelação de "desejo do analista". De tanto repetir fórmulas abstratas de aspecto erudito, nós havíamos acabado por nos esquecer que o desejo não é ascético, nem, tampouco, forçosamente mui­ to limpo. Ainda que - felizmente bastante freqüentemente - um psicanalista seja um clínico honesto, acontece, também, de ser um crápula ou um imbecil. Não há pois, razão alguma para ficar pasmo de respeito perante esse tão famoso desejo. Se, pelo contrário, nós pudermos pen­ sar as produções dos psicanalistas em sua relação com os traumas e desconhecimento dos afetos da memória, sem, no entanto, reduzi-las a isso, nem subtraí-las a uma críti­ ca racional, evitaríamos tanto a estupidez das posturas dogmáticas quanto a sedução das crenças infantis. Eis o desejo que formulo para toda leitura. Após esse desvio, abordo meus próprios textos.

No après-coup da leitura do conjunto, três fios, entre tantos outros que os percorrem, me chamaram a atenção. Representam para mim a ligação entre minha própria história e aquilo que pode ser de uma utilidade mais ge­ ral No entanto, em nenhum momento tais fios aparecem em primeiro plano, nem sob a forma de título nem tema abordado integralmente; eles se inserem entre os diferen­ tes assuntos, vão e vêm de um texto ao outro. Resumindo, eu os enumerarei por meio de três duplas de oposiçãoinclusão, passíveis de serem lidas de diferentes maneiras: • a criança no adulto; • o público no privado; • o semelhante no estrangeiro.

Après-coztp

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À primeira vista, essas duplas se apresentam como oposições. Mas não se trata disto: esses termos, opostos em aparência, não são antagônicos no plano psíquico, estão presentes concomitantemente, em relações de inclusão re­ cíproca. Eles assinalam redes complexas, um mosaico he­ terogêneo que segue antes uma lógica cumulativa, do que duplas de oposições do tipo estruturalista. "A criança no adulto" foi introduzido e magistral­ mente descrito por Ferenczi. No momento em que escrevi "Sobreviver", não tenho certeza de já conhecê-lo, mas a partir do momento em que pude ler seus trabalhos, tive a impressão de sabê-lo desde sempre. Volto a isso em meus artigos de modo mais ou menos claro, por várias vezes, e mais particularmente no que diz respeito à criança como enundador desconhecido no interior das próprias teoriza­ ções psicanalíticas. Se os escritos dos psicanalistas não são diretamente imputáveis a suas experiências de adultos, isso não significa, no entanto, que tudo que provém da infânda seja infantil! "O público no privado" se lê por meio do apelo ao espaço público enquanto complemento necessário ao es­ paço privado que é a sessão de psicanálise. Isto se refere, mais particularmente, a tudo aquilo que diz respeito aos traumas proveniente do campo social. Encontro da história pessoal e familiar com a História. Feridas sempre privadas que, por vezes, necessitam de um além da escu­ ta singular do analista para alcançar o apaziguamento de­ sejado. Histórias de humilhações, de vergonhas e de afrontas em que os complexos de papai-mamãe, ainda que elevados à nobre estatura da simbólica edípica, são insuficientes para fazer sentido e cicatriz. "O semelhante no estrangeiro" resume as identifica­ ções horizontais, que eu oponho àquelas que poderiamos chamar de verticais que dizem respeito às instâncias pa­ rentais. O apelo ao estrangeiro existe como salvação ao

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enclausuramcnto familiar c patriótico. Enclausuramento este para o qual contribuiu larga mente uma certa visão da psicanálise, ao reduzir toda e qualquer identificação estruturante à instância paterna e à presença materna. O duplo domesticado pode ser uma das figuras que respon­ de à necessidade de identificação horizontal e permite fazer laço de fratria perante o terror que vem de cima.

A escrita precede aquele que escreve '"Sobreviver à criança e à guerra", me servirá aqui de ilustração clínica da presença dessas três linhas diretoras implicitamente repetidas de texto em texto. Para ser mais explícita, eu terei de dizer algumas palavras de minha história pessoal, me autorizando para tanto de meu caro Sigmund Freud, que não hesitava a se pôr em cena paira as necessidades da demonstração. Após ter escrito este artigo, muitas vezes, me per­ guntei por que me obstinei tanto em falar da morte de Freud, como morte violenta. Eu considerava que toda morte infligida por um outro é morte violenta. Segura­ mente esta lhe fora infligida por um outro, na medida em que ele próprio pedira a seu médico Schur para pôr fim a seus dias quando as dores se tornassem violentas demais. Este pacto fora estabelecido entre os dois homens muito tempo antes do estágio terminal da doença de Freud. Da mesma maneira, por que me impressionara tanto o fato de Freud ter podido, do lugar de avô, entender (o FortDa) aquilo que não pudera entender de seu lugar de pai? E, finalmente, será que eu não tinha um outro modo de dizer, que não por intermédio da história de Freud, a que ponto é difícil para uma criança imaginar sua mãe em luto por ela própria? Este tema voltará mais tarde em "Uma palavra que falta".

Après-coup

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Eu me servi da história de Freud como figura ao mesmo tempo de avô e de filho de uma mãe à qual se sentia no dever de sobreviver, tudo isso tendo a guerra por pano de fundo, para contar, sem que eu mesmo o soubesse, a história de meu próprio avô. Eu sempre soube que meu avô materno morreu em tempos de guerra, que morreu de morte violenta, assassinado por inimigos, mor­ to sem sepultura. Sabia, portanto, que minha mãe perdera ainda jovem seu pai, e minha avó seu marido. Aquilo que não conseguia imaginar é que este avô, quando de sua morte, ainda era um homem jovem que deixava atrás de si uma mãe ainda em vida. Uma mãe fora, pois, informa­ da da morte de seu filho, daquele que, ainda que adulto, continuava sendo sua criança. Assim se escrevia em fili­ grana um fragmento de minha história que eu ignorava. Eu não sabia que essa bisavó ainda estava viva por oca­ sião do assassinato de seu filho. Eu poderia ter pensado nisto. Eu o ignorava, não porque o tivessem escondido de mim, mas simplesmente porque, para mim, um avô tinha de ser necessariamente velho, e ainda que, a rigor, pudes­ se ser um pai, de forma alguma podia ser um filho. Em­ bora já fosse adulta por ocasião da escrita deste artigo, escrevera, parte dele, do lugar da criança, sendo concomi­ tantemente impedida e impelida, por minha própria história, ou pré-história. Trauma familiar, traço deixado em minha linhagem por uma morte violenta, e pelo im­ possível anúncio dessa morte a uma mãe. Naquele mo­ mento, eu era incapaz de imaginar meu avô como criança. Essa é a razão pela qual, sem sabê-lo, eu me servi da história de Freud, pois eu era perfeitamente capaz de pen­ sar tudo isto, por se tratar de uma história outra que não a minha. A criança no adulto estava aí, não apenas pelas minhas referências explícitas, mas sem que eu o soubesse nas dobras de meu próprio texto. Eis aí atalhos que não se restringem às simples asso­ ciações sobre o divã. Neste caso particular havia, ainda, a

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Ah! As belas lições!

necessidade de dizer ou tornar público aquela violência que fora infligida em praça pública, ainda que a ferida permanecesse íntima para sua mãe, sua mulher e seus filhos. Escrever o que não pôde se inscrever, exumar o não enterrado. Eis o segundo fio religado ao primeiro. O terceiro fio também tem seu ponto de partida nes­ te texto "de infância": a noção de semelhante está aí pre­ sente; do enunciado de uma garotinha, "bastava perma­ necermos juntos", ela e seus semelhantes, as outras crian­ ças... até o fascínio que a guerra exerce sobre os homens, e o valor do "todos iguais" no uniforme de soldado, garan­ tia do afastamento da mãe. E depois, finalmente, no apelo feito ao médico Schur para abreviar a vida, esse seme­ lhante que não é nem pai nem mãe e nem filho. O semelhante é o estrangeiro que domesticamos, é o amigo. Se o amor é um tema frequentemente tratado pe­ los analistas, seja por meio do amor sexual, apaixonado, ou do amor-ódio que une a criança a seus pais, a amizade não tem lugar nos escritos psicanalíticos. O semelhante introduz a amizade, a ternura, a solidariedade entre os humanos. Isto nunca é redutível, como tantas vezes ouví, a uma formação reativa secundária à agressividade e ao ódio. Não desconheço nem o ódio nem a agressividade, mas existe esta ligação entre os homens que é apelo e reconhecimento do semelhante, doçura das partilhas não obrigatórias, verdadeira liberdade humana, isto caso ne­ nhum discurso discriminador venha proibir seu exercício. Não continuarei desenvolvendo esses três fios ver­ melhos que percorrem essas páginas. Cada leitor poderá fazê-lo a seu bel-prazer. Há, sem dúvida, outros; esses foram os que chamaram minha atenção e que eu quis extrair da trama dos textos. Só gostaria de acrescentar que levar em conta esses intricamentos que acabo de evocar acarreta conseqüências quanto à prática e à maneira pela qual o analista se situa na transferência.

A p r è s -c o u p

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Saber que todo analista pode, eventualmente, da mesma forma que o analisando que a ele se dirige, carre­ gar dentro de si a criança/ e inclusive ser essa criança, sem que isso se reduza a uma identificação histérica...; saber que no espaço da sessão o privado da escuta singular nem sempre basta para cicatrizar feridas infligidas pelo coletivo e que, às vezes, é preciso um gesto do analista para permitir ao analisando encontrar a saída em direção ao público que lhe convenha...; saber que aquele que es­ cuto é antes de mais nada um semelhante, seja qual for sua proveniência, sua estrutura ou seus sintomas...; eis aí três modos que implicam diferenças fundamentais nas maneiras de praticar a psicanálise. Para concluir, eu gostaria de voltar uma última vez sobre o primeiro escrito da série ''Sobreviver" para dizer que fiquei um tanto quanto assustada pela psicótica clari­ vidência que em 1978 me fez concluir: Dessa maneira viajei um pouco de uma gera­ ção à outra, de uma guerra à outra... e à próxima. Será que ela será diferente?

A escrita nos precede, e por vezes me assusta quan­ do ela se toma enunciadora do saber inconsciente e an­ cestral. Meu avô de quem Freud fora o gêmeo, peio artefato da escrita, morreu durante a Guerra dos Balkans, em 1913. A história da garotinha acontece durante a guerra em 1942, na Iugoslávia. Ela sobreviveu, à infância e à guerra. Hoje, enquanto escrevo essas linhas a guerra está de volta nesta mesma região do mundo. E ainda, alhures e alhures há massacres aos quais as crianças assistem, espectadores impotentes. Eu dedico este trabalho às crianças das guerras, de todas as guerras.

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Ah! As beíns lições!

Eu o dedico, também, aos psicanalistas, que sabem m elhor que os outros, quão difícil é impedir que as víti­ m as se transformem em algozes, e apesar dos sofrimentos vividos, desencorajar a compulsão à repetição de realizar sua obra negra, de geração em geração. Radmila Zygouris 15 de agosto de 1995

L I V R O S P U B L IC A D O S P sican álise, ju d a ís m o : resson ân cias, Rcnalo Mezan (esg.) D o g o z o c ria d o r, Carlos D. Pérez O m anu scrito p er d id o d e F reu d, H. Haydt de S. Mello O p sica n a lista c seu o fício , Conrad Sleín E lem en tos d a in terp retação, Guy Rosolato A p u isã o d e m orte, André Green ct al. P sic a n á lise d e sin tom a s s o c ia is , Sérgio A. Rocíriguez e Manoel Tosta

Berlinck (orgs.) F am ília e d o e n ç a m ental, Isidoro Bcrenstein N arcisism o d e vida, n arcisism o d e m orte, André Green As E rín ias d e um a m ãe, Conrad Stein N otas d e p s ic o lo g ia e p siq u ia tria so cia l, Armando Bauleo T raum a, a m o r e fa n ta s ia , Franklin Goldgrub C lín ica p s ic a n a lític a : estu dos, Pierre Fedida P sica n á lise d a clín ica cotid ian a, Manoel Tosta Berlinck O a c a la n to e o h orror, Ana Lucia C. Jorge A R epresen tação. E n saio p sican alítica, Nicos NicoJaídis O desenvolvim ento kteim an o /. D esenvolvim ento clín ico d e Freud, DonaJd

Meltzer E dipo african o, Marie-Céeile e Edmond Onigues C om u n icação e rep resen ta çã o , Pierre Fédida (org.) E nsaios d e p sica n á lise e sem ió tic a , Miriam Chnaiderman F reu d e o p ro b lem a d o p od er, León Rozitchner M elanie Klein: ev olu ções, Elias M. da Rocha Barros (org.) F ig u rações d o fem in in o, Danièle Brim 14 con ferên cias s o b r e Ja c q u e s L acan , Fani Hisgail (org.) Introdução ct p sican álise, Luis Hornsicin O apren diz d e h istoriad o r e o m estre-feiticeiro, Piera Aulagnier 0 desenvolvim ento klein ian o II. D esenvolvim ento clín ico d e M elanie Klein,

Donald Meltzer Tausk e o a p a relh o d e in flu en ciar na p sico se, Joel Binnan ( org.) A con stru ção d o esp a ç o an alítico, Sergc Viderman Um intérprete em bu sca d e sen tido — I, Piera Aulagnier Um intérprete em bu sca d e sentido — II. Piera Aulagnier T er um talento, ter um sintom a, Deni.se Morei A d ia lética freu d ia n a l: P rática d o m étod o p sica n a lítica, Claude Le Guen O inconsciente: veirias leituras, Felíeia Knobloch (org.) P sicose: uma leitura p sican alítica, C h a im S . K a lz (o r g .) H istória da histeria, Elienne Trillat A rua com o esp a ç o clínico. A com panham ento terap êu tico, Equipe de A.T.

do Hospital-Dia A CASA (org.)

A c lín ica fr e u d ia n a , Isidoro Vegh O titula d a letra, Jean-Luc Nancy c Philippe Laeoue-Laharthe. Q u an do a p rim a v era ch eg ar, M, Masud R. Khan 0 D eu s o d io so . 0 d ia b o am oroso. P sican álise c rep resen ta çã o d o mal, M areio Peter de Souza Leite e Jacques Cazotte As b a s e s d o a m o r m aterno, Margarete Hi Herding, Teresa Pinheiro e Hele­ na Besserman Vi.inna T ra n sferen cias. Abrão Slavutzky D o su jeito à im agem . Uma h istória d o o lh o em F reu d, Hervé Huot O sen tim en to d e id en tid ad e. Nicole Berry' G igan te p e la p r ó p r ia natureza. Emilio Rodrigué F reu d c o hom em d o s ratos, Pairick J. Mahony N om e, fig u r a e m em ória. Pierre Fedida A su p erv isão na p s ic a n á lis e . Conrad Stein et alii. O lu g a r d o s p a i s n a p s ic a n á lis e d e c r ia n ç a s , Ana M aria Sigal de Rosenberg (org.) P e r tu r b a d o r m u ndo novo. H istória, p s ic a n á lis e e s o c ie d a d e con tem p o ­ râ n ea . S B P S P (org.) C id a d ã o s n ã o v ão a o p a r a ís o . AIba Zaluar C a sa l e fa m ília c o m o p a c ien te, Magdalena Ramos (org.) M an car nâü é p e c a d o . Lucien Israel C rô n ic a s cien tífic a s, Anna Veronica Mautner Penure. Celia Eid e Maria Lucia Arroyo A h istérica, n sex o e o m éd ic o , Lucien Israel Of ho d 'água. Arte c lou cu ra cm e x p o s iç ã o , João Frayze-Pereira Vida ba n d id a, Voltaire de Souza Voltaire de Souza, cm Vida b a n d id a , nos traz o n on -sen se da vida, onde o imprevisível esrá sempre presente. A trama de suas histórias conduz ao irracional que sempre surpreende. Suas personagens vivem as armadilhas de seus próprios impulsos e da sexualidade indomável. Sáo figuras diferentes do homem idealizado ou domesticado pelos no­ meados bons costumes e daquele que é bem-sucedido pela socializa­ ção que visa o bem de todos. Vida bandida é o banal e o extraordinário da existência grotesca, no avesso dos ideais. E a vida como ela é. O verniz do com o se gos­ taria que fosse* ou do com o deveria ser, é feito em pedaços. Entre­ tanto, sendo histórias possíveis para muitos neste planeta, trazendo o indomável da sexualidade, o implacável do destino, o imprevisível da vida, tramam o real e o universal à brasileira. E ste é um livro que divertindo provoca também reflexões

Figuras da teoria psicanalítica , Renato Mezan O título deste livro alude à idéia que os quatro textos aqui reuni­ dos procuram ilustrar. Idéia que pode ser assim resumida: os concei­ tos, pertençam à psicanálise ou a qualquer outra disciplina, não têm apenas um caráter denotativo. A hipótese que percorre estes ensaios sugere que, mesmo sob a face abstrata dos conceitos teóricos* continua a pulsar o lado plástico, sensorial, cênico, que ancora as operações do pensamento racional no solo movediço dos processos primários. Através do exame de concei­ tos psicanalfticos como “sedução”, “originário”, “pulsão”, “metapsicologia”, “prazer”, procura-se investigar como se organizam as fanta­ sias policênicas que subjazem em certos momentos da elaboração, nas mãos de autores como Freud, Stein, Le Guen ou Laplanche. Em bu sca d a e s c o la id ea lt Neda Lian Branco Martins A leitura atenta de Em bu sca d a esc o la id ea l me fez reencontrar, nas linhas e entrelinhas, o que venho descobrindo, ano após ano, com meus filhos, seus colegas e professores: uma escola, com suas salas, móveis, funcionários, paisagem, pode ser um pedaço da vida. Uma fatia emocionada e inesquecível. Na verdade, Neda, impregnada de experiência, está intimamente ligada à história da escola no Brasil. Cada uma de suas palavras nos leva à sala de aula onde tudo começa e, penso, nada termina. Final­ mente, na sala de aula que ela nos apresenta, existe espaço suficiente e lugar marcado para o sonho. É preciso mais? Vivina d e Assis A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Tõrok Os propósitos desta obra não podem ser menos do que peculiares e chocantes: “salvar a análise, nos salvar”. É já algo que fere os hábitos da literatura psicanalítica corrente. Uma obra que é ao mesmo tempo uma pesquisa e a história da pesquisa, em que os autores estão confcssadamente implicados. Discípulo de Freud, Husscrl e Ferenczi, Nicolas Abraham se faz her­ deiro; manipula sua herança criando, retomando para si as derradeiras am­ bições dc seus mestres espirituais: explicitar o horizonte genético do fe­ nômeno, chegar às últimas origens da Psyché, estender o método psicanalítico às ciências da natureza.

Ne.sic livro, o leitor verá a parlir elo rigor ela diferenciação entre in­ corporação c introjeção se desenrolar uma pesquisa psicannlíiicn original que passará por algumas cstaçõcs-chavc: o símbolo, a nnassemia, a criploloria e o estabelecimento ele uma mctapsicologia elo segredo c do fan­ tasma. Conceitos que ccrlamcmc serão imprescindíveis para os que alme­ jam continuar lazer a Psicanálise avançar. F abio Landa Signntnd F reu d . O séc u lo da p sica n á lise, Vol I, Emilio Rodrigué S igm u n d F reu d . O séc u lo da p sica n á lise, Vol II, Emilio Rodrigué Signntnd F reu d. O sécu lo d a p sica n á lise, Vol III, Emilio Rodrigué As biografias mudam de lom segundo as épocas, mas no caso de Freud, cada nova biografia acrescentou algo importante, já que o pró­ prio biografado escondeu ou destruiu tudo o que sc referia diretamenle a si próprio. Sou um analista da quarta ou quinta geração. Abrahain foi meu avô. Vi Joncs, um tanto irônico, polemizar a discussão de trabalhos de B ion c Balim . Fui vizinho dc Mrs. Klein, por mais de dois anos. Participei de seminários com Rickman, Glover e Anna Freud e, mais tarde, troquei carias com W innicott. Tom ei chá com Alix Strachey, servido por Mrs. Lindon, a bibliotecária do Instituto Britânico de Psi­ canálise. Do outro lado do Atlântico, na costa da Ego Psychology, tra­ balhei, por mais de três anos, na mesma clínica que David Rappaport e Erik Erikson. Possuo urna poderosa transferência com o passado, mas, junto com isso. sou um franco atirador, um arqueiro, u m fr e e la n c c , alguém que loí um jovem analista do tempo velho e agora é um velho analista do tempo novo. Sigmund Freud. O século da psicanálise é um experiência que lecha 50 anos dc prática analítica. Para um psicanalista, hislorizar Freud significa futucar Freud; significa deitá-lo no divã. Trata-sc de aplicar um instrumental para desvelar a personalidade última do herói. Pre­ tende-se furar sua pele manifesta, escrutar seu corpo biográfico,'pas­ sar o pente fino a procura de piolhos existenciais. Os escritores desse gênero são impiedosos. O biógrafo nato é um sujeito cruel, ávido por anedotas. Eu sou um deles! E m ilio R odrigu é COLEÇÃO — O SEX TO LOBO H ello B ra sil! N oras d e um p sican alista eu ropeu viajan do a o B rasil, ContardoCalligaris

C lín ica d o so cial. E n saios, Luiz Tarlei de Aragao (org.) E xílio c tortura, Muren e Marcelo Viñar E xtrasexo, E n saio so b ra o transexualism o, Catherinc Millot A lcoo lism o, ctelinqíiência, toxicom anía, Uma ou tra fo r m a d e gozar, Char­

les Melman Im igrantes. In cid ên cia s su bjetiv as d a s m u dan ças d e língua e p aís. Char­

les Melman F a n ta sia d e B rasil. A s id e n tific a ç õ e s na b u s c a d a id en tid a d e n a c io n a l.

Octavio Souza M odos d e su bjetiv ação no B rasil e outros escritos, Luis Cláudio Figueiredo A f a c e e o verso. E studos s o b r e o Iw m oerotism o II, Jurandir Freire Costa

COLEÇÃO — ENSAIOS M erkait-P onty. F ilo so fia c o m o c o r p o e existência, Nelson Coelho Jr. c Pau­

lo Sérgio do Carmo O in con scien te c o m o p o tên c ia su bversiva. Alfredo Naffah Neto O p en sam en to ja p o n ê s , Hiroshi Oshima C om u n icação e p sic a n á lise, Jeanne Maric Machado de Freitas C la ric e L isp ector. A p a ix ã o seg u n d o C.L., Berta Waldmann A p u lsâ o an arqu ista, Nathalie Zallzman Escutar, reco rd ar, dizer. E n con tros h eid eg g crian os com a clin ica p sic a naiítica, Luís Claudio Figueiredo Sintom a s o c ia l dom in an te e m o ra liz a ç ã o infantil, Heloísa Fernandez Na so m b ra d a c id a d e , Maria Cristina Rios Magalhães (org.)

COLEÇÃO — TÉLOS E n saios d e clín ica p sican alítica, Frunçois Perrier A fo r m a ç ã o d o p sican alista, Frunçois Perrier A feto e linguagem nos p rim eiro s escrito s d e Freud, Monique Schneider C om o a in terp retação vem a o p sica n a lista , Rene Major (org.)

COLEÇÃO — LINHAS DE FUGA A in ven ção d o p sic o ló g ico . Q uatro sécu los d e su bjetiv a ção (1500 - 1900),

Luís Cláudio Mendonça Figueiredo L im iares d o con ten qm rân eo, Rogério da Costa (org.) A p sic o tera p ia em bu sca de D ioniso, Alfredo Naffah Neto As árv ores d e con h ecim en tos, Pierre Lévy c Michel Aulhier As p tilsõ es, Arthur Hyppólilo de Moura (org.)

C O L E Ç Ã O — T R A N S V E S S IA S O c o r p o cróg cn o. Uma introdução à teoria do com plexo de Édipo, Serge

Leclaire COLEÇÃO — PLETHOS A p a la v ra in sen sa ta . P oesia e psicanálise, Eliane Fonseca C ontratransfcrcncia. A qu estão fundamental d o psicanalista. Suzana Al­ ves Viana P o ética d o erótico, Samira Chalhub A E scola. Um en foqu e fen om en ológ ico, Vitória Helena Cunha Espósito P sican álise, política, ló g ica, Célio Garcia A etern id ad e da m açã. Frcitd e a ética. Flávio Carvalho Ferraz A c a ra c o rosto. E nsaio de G estalt T erap ia, Ana Maria LotYredo P acto Re- Velado. P sicanálise e clandestinidade política, Maria Auxilia­ dora de Almeida Cunha Arantes A p oesia, o m ar e a m ulher: um sá Vinícius, Guaraciaba Micheletti P siquism o hum ano, Marco Aurélio Baggio S em iótica d a can ção. M elodia e letra, LuizTatit A cien tificid ad e da psicanálise, P o p p e r e P eirce, Elisabeth Saporiti A fo r ç a d a rea lid a d e na clínica freu d ian a, Nelson Coelho Junior C o rp o a fecto : o p sic ó lo g o no hospital g era l, Marilia A. Muylaert C rian ças na rua, Ana Carmen Martin dei Collado

ESTE LIVRO FOI COMPOSTO PELO ESTÚDIO ARCÁDIA EM PALATINO CORPO 11. FOTOUTQS DE STAP 6 IMPRESSO NA PARMA C O M PAPEL OFF-SÉT 75G.FORNECIDO POR PÁGI­ N A C O M L \MP £ CARTÁO SUPREMO 250G. FORNECIDO PORPLEXPEL