Ad Sorores Quatuor. Os Quatro Discursos de Lacan [1a. edição]
 9788587727350

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MD Magno

Ad Sorores Quatuor Os Quatro Discursos de Lacan

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MD Magno

AD SORORES QUATUOR OS QUATRO DISCURSOS

Seminário 1978

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é uma editora da

Presidente Rosane Araujo Diretor Aristides Alonso Copyright 2007 © MD Magno Preparação do texto Patrícia Netto A. Coelho Potiguara Mendes da Silveira Jr. Nelma Medeiros Editoração Eletrônica e Produção Gráfica NovaMente Editora Editado por Rosane Araujo Aristides Alonso

...etc.

Estudos Transitivos do Contemporâneo

M176a Magno, M.D. 1938 Ad sorores quatuor: seminário 1978 / M.D. Magno. – Rio de Janeiro: NovaMente, 2007. 276 p ; 16 x 23 cm. ISBN – 978-85-87727-35-0 1. Psicanálise – Discursos, ensaios, conferências. I. Título. CDD-150.195 Direitos de edição reservados à: Rua Sericita, 391 - Jacarepaguá 22763-260 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Telefax: (55 21) 2445-3177 www.novamente.org.br

Sumário

1. TRADIÇÃO FREUDIANA (OU A ATRA DICÇÃO FREUDIANA) Entendimento d’Os quatro discursos como arquitetura – Exame da noção de tradição a partir do exemplo pitagórico – Princípio do Logos sagrado no pensamento pitagórico – Vigor da razão áurea na história 9

2. MAIS GOZAR: NÃO MAIS-GOZAR Entendimento da lógica do objeto a a partir do número de ouro – Objeto a: nodalização de R, S e I – Discussão sobre o paradoxo de Russell – Mais-valia e mais-gozar – Constituição do sujeito a partir do traço unário – Significante como alteridade radical – S1 e S2 : relação fundamental – Leclaire: inconsciente é condição da linguagem x Lacan: linguagem é condição do inconsciente – Não há interpretação em psicanálise. 29

3. LUGARES, LETRAS, BARRAS, TRAÇOS Análise de um poema de Fernando Pessoa – Esclarecimentos sobre o conceito de Outro em psicanálise – Traço unário como condição de identificação – Estatuto do saber e processo psicanalítico – Relação entre sexualidade e falta – Estrutura alienante do sujeito – Quatro elementos fundamentais da ordem discursiva: S1, S2, $ e a – Questões sobre verdade em psicanálise. 55

4. ESTRUTURAS E POSIÇÕES Discurso e suas formações de base – Articulação entre os elementos fundamentais do discurso – Nodulamento borromeano e função do sintoma – Sintoma como posicionamento discursivo – Modo de produção discursiva: agente, verdade, outro, produção – Rotação das posições: discursos do mestre, da histérica, do analista e do universitário. 77

5. A QUADRILHA Sintoma como Nome do Pai (metáfora paterna) – Exame dos discursos do senhor, da histérica, do analista e do universitário – Discussão sobre passe em psicanálise – Senso Contra Censo: equivalência entre passe e ato poético – Estatuto da matemização em psicanálise – Psicanálise não é hermenêutica. 103

6. TOPOLOGIA DO ESPELHO Investigação sobre o espelho – Espelho é banda de Moebius – Entendimento da análise a partir do modelo óptico de Lacan – Estrutura do espelho e lógica do significante – Questões sobre instituição, transferência e interpretação 123

7. SEXUAÇÃO E ANATOMIA Discussão com Serge Leclaire a propósito do feminino – Retomada da lógica da sexuação de Lacan a partir das fórmulas quânticas – Questionamento da relação entre anatomia e sexuação em Leclaire – Proposição de esquema sobre gozo masculino, gozo feminino e gozo dos anjos. 151

8. GIRATÓRIO DOS DISCURSOS Especificidade do discurso do analista – Esclarecimento sobre ato e interpretação – Conseqüência da lógica da sexuação: “os homens não existem, a não ser como discurso” – Questões sobre a função do analista. 175

9. GOZO, PRAZER E TRANSFERÊNCIA Discussão sobre gozo e sua relação com prazer – Exame da interdição do incesto a partir do registro simbólico – Função paterna e produção de limite – Ordem pictórica é hiper-verbal – Gozo e prazer no regime da transferência – Vigência psicótica do falante 193

10. PRAZER, GOZO, ETC. Comentário sobre o seminário Para uma teoria del complejo de Edipo, de Serge Leclaire – Desejo e princípio do prazer a partir da lógica do significante – Constituição da função materna – Binômio Lei/Desejo – Questões sobre pulsão, gozo e verdade. 209

11. ESCREVIDÃO Intervenção de Betty Milan sobre Sebastião do Rio de Janeiro, de MD Magno – Relação entre obra de arte e psicanálise – Com-sideração da obra de arte: atingimento do $entido – Sublimação e fetiche na obra de arte – Crítica ao libertarismo de Deleuze e Guattari. 229

12. HIÂNCIA Função da hiância nos construtos teóricos da psicanálise – Função lógica e topológica do não-todo – Tópica freudiana como tentativa de construção topológica – Jogos transferenciais não são interpretação – Formação de analista. 245

13. FÁLIA Falha ôntica do falante: Fália – Requisição do impossível e faz-de-conta a partir do conto Nada e a nossa condição, de Guimarães Rosa – Partição da sexuação difere da ordem imaginária. 259

ENSINO DE MD MAGNO 271

Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)

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TRADIÇÃO FREUDIANA

(OU ATRA DICÇÃO FREUDIANA)

É importante abordarmos o tema dos Quatro Discursos, pois os textos de Lacan que tratam fundamentalmente dele ainda não estão publicados para o grande público. No entanto, esse produto lacaniano já tem avassalado muita gente, inclusive tem produzido efeitos sobejamente publicados em várias áreas. Dizem mesmo que a palavra nova chamada Nova Filosofia e os ditos “novos filósofos” teriam saído do já famoso seminário sobre ‘Os quatro discursos’, como é conhecido, embora seu título seja L’Envers de la Psychanalyse, O Avesso da Psicanálise. O seminário foi proferido em 1969-70. Em dezembro de 69, Lacan tenta falar para os estudantes em Vincennes, aqueles saídos da chamada Revolução de Maio de 68: eles não quiseram escutá-lo, embora ele falasse. Mas, após toda a comoção, foi exatamente ao seminário de Lacan que os estudantes regressaram para, afinal, ouvir o que tinha a dizer a respeito dos discursos. No campo da chamada Nova Filosofia parece que esse seminário é apontado, pelo menos, como responsável por uma reformulação grande nas visadas, sobretudo, dos marxistas, revolucionários de então, de 68. O que é necessário para abordarmos um pouco os discursos está espalhado por tantos seminários, que é difícil coligir. Há o famoso seminário sobre A Relação de Objeto, que recategoriza esta questão dentro do campo psicanalítico. Há também o seminário onde se coloca a relação entre o Outro

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simbólico e o outro imaginário, intitulado De um outro ao Outro. Afora uma porção de retomadas do conceito espalhadas noutros seminários. E já começam a aparecer tantos textos influenciados direta ou indiretamente pelos chamados quatro discursos que, como sempre aconteceu com os seminários de Lacan, começamos a ouvir, ler, estudar seus efeitos sem ter a menor noção dos significantes iniciais. No momento em que estamos diante do problema mal tratado, mal posto e até agora (graças a Deus!) insolucionado do que é a psicanálise entre os outros discursos, me pareceu ser da maior indicação retomarmos aqui a questão dos discursos. O que, como veremos, é muito difícil, dada a tendência e o esforço rigoroso de Lacan em escrever esses discursos, o que para ele significa produzir seus matemas. E isto, ao mesmo tempo, se presta a um rigor extremamente elaborado, como também ao delírio mais desregrado. Algo que tem acontecido freqüentemente sobre esses discursos, pois mesmo dentro do campo fechado da Escola Freudiana de Paris delira-se a granel a respeito dos matemas da psicanálise. Por isso, digo que é muito difícil e que vamos tentar, durante um período longo e espaçado, fazer uma primeira abordagem dos discursos em Lacan. *

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Daí chamarmos este Seminário nosso Ad Sorores Quatuor. Como sabem, o número 4 em Lacan é muito importante. Veremos por quê. Esse título, tomei-o de um livro originalmente em alemão. Um tal de Paul Frischauer escreveu uma coisa chamada Knaurs Sittensgeschichte der Welt, traduzido em francês com o título Archéologie de la Séxualité (Paris, Stock, s/d, 384p.). Um volume grosso, em diversos sentidos, onde ele tenta, numa abordagem algo historicista ou histericista, se quisermos, dar conta dos avatares da sexualidade por esses vãos cronológicos chamados eras culturais, fazendo a arqueologia dessas eras no que diz respeito à sexualidade. Portanto, arqueologia do que já era, um levantamento de fatos sexuais, das manifestações artísticas sobre a

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prática sexual na era de cada cultura, desde a pré-história até nossos dias, supõe o autor. Na página 322 da tradução francesa, fui encontrar algo muito interessante, uma peça da arqueologia tirada da Roma antiga que era uma tabuleta. Isso até me fez lembrar um poema de Fernando Pessoa, A Tabacaria. Uma tabuleta que tem a ver com tabaco, mas não é bem de uma tabacaria, porque era uma tabuleta de anúncio à porta de uma casa de prostituição. E na tabuleta estava escrito: Ad Sorores IIII, Às Quatro Irmãs. Devia se tratar, portanto, de quatro irmãs num exercício profissional, como quem diz “Aos Três Irmãos”, uma loja que houve no Rio e onde também se vendia alguma coisa. Hojendia não se faz mais publicidade como antigamente... Por exemplo, na TV com suas tabuletas luminosas não se faz anúncio direto da sua prostituição. A tabuleta tinha este título escrito, Ad Sorores IIII, com quatro pauzinhos e acima o desenho de três mulheres nuas, mais ou menos enlaçadas, abraçadas como “as três graças” e mais uma, meio de lado, envolvida e velada por um manto.

Ad Sorores IIII. Pergamonmuseum, Berlim

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Todos conhecem as três graças da mitologia greco-romana que se chamavam Aglaia, Talia e Eufrósina, deusas que representavam o dom de agradar. E ela, a velada, a quarta das irmãs daquela tabuleta, será que é desagrado ou desgraça? As três nuas se enlaçavam carinhosamente tendo a quarta ao lado, sentada, e a única ligação é um toque, de mão, sobre o joelho de uma das três, a graça da direita. Na ordem romana, as prostitutas – numa ordem diferente daquela em que as hetairas gregas gozavam, pelo menos, de respeito e certa honra e fama – eram mais para o pior, pois contavam mais com o lado negativo dos valores sociais. E eram, com muita precisão, nomeadas como aquelas que ganhavam com seus corpos, quae corpore merent, meretrizes. Portanto, que ganhavam com o dom da sua graça, quer dizer, elas eram ou são aquelas que vivem de graça. Aliás, talvez por isso sejam chamadas de “vida fácil”. Ora, que graça! Atentemos bem para a palavra graça. Graça, de quem dizia Guimarães Rosa, num dos prefácios de Tutaméia, que nem será sem razão que a palavra graça guarde o sentido de gracejo, de dom sobrenatural, de atrativo. Assim também, como não disse ele, no sentido de nome, como quando dizemos “qual é a graça?” Há também o sentido, segundo Aurélio, de intimidade, de privança, no sentido de privar de alguma coisa, de privada, quem sabe, ou de dom divino. E é possível que pudéssemos bem traduzir em português com a palavra graça, sobretudo nesse contexto tão aberto, o termo Witz que Freud utilizou para falar de certa graça e que chamamos de chiste. Imaginem um texto de Freud chamado A graça e sua relação com o Outro, O chiste e sua relação com o inconsciente. Nesse chiste, toda essa graça é exatamente onde se pode perder a graça, como se diz em português, ou seja, é o tropeço, a mancada que estatui o Witz. Na topada que se reconhece de chofre contra a dureza indissoluta, indissolvível do real que faz graça, de graça, e que grassa mesmo no mais gracioso dos discursos, onde se acrescenta mais um verbo para a graça, até no gratuito. Quae corpore merent, os que vivem de seus corpos. Estas graças ou desgraças, tanto faz, se in-corporam em discursos e através deles, mais ou

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menos, elas grassam. É por essas graças que vamos tentar abordar, depois de Lacan, com muito desconforto, esta incorporação dos discursos. E é desta incorporação discursiva que tudo se pró-institui, dependendo deste ou daquele corpo, isto é, deste ou daquele discurso quae corpore merent, discursos que vivem de seus corpos. E é de graça, como vamos ver, de pura graça. E como se incorporam esses discursos? Qual é a razão, digamos, dessa incorporação? Falar da incorporação dos discursos seria dar razão, conseguirse a razão desse discurso, ou seja, conseguir descrever a fatura desses discursos, saber como se erige o construto de cada um deles, saber qual é sua arquitetura. Afinal de contas, é isso que quer dizer, ou sempre quis dizer, a Arquitetura: a razão dos construtos. Assim, é por esta via, de arquitetura, que Lacan vai promover a, digamos, arqueologia dele. Que não é aquela Archéologie, mas sim a arqueologia da sexualidade, uma vez que não há algo de mais sério para o falante – o parlêtre como diz ele e que traduzi por falesser –, o falesser seccionado. Então, trata-se de uma arqueologia da secção ou do Sexão, se quiserem. *

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Vamos falar um pouco de arquitetura para ver se, dentro desta série, conseguimos entrar no que gosto de chamar de a tradição lacaniana. Tradição, este nome precisa ser pensado porque, dos pré-socráticos até Freud, é na mais rigorosa tradição que se persegue este curso. Um práfrente chamado Schönberg, que, uma vez perguntado como conseguia fazer toda aquela novidade, a música serial, disse: – “Muito fácil, é só se manter estritamente dentro da tradição”. Poucas vezes nos damos conta disso e vamos mostrar que é exatamente o que Lacan faz – serial quer dizer a sério, como o Outro. Então, é na mais rigorosa tradição que se faz o percurso que vai dar na psicanálise. E já que falamos em partir de arquitetura, podemos dizer que vamos de Dédalo a Ícaro, pai e filho. Desde um labirinto de pedra do arquiteto até o vôo

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fracassado, como a arquitetura, do analista, perseguindo-se nesse caminho a mesma graça, o mesmíssimo ornamento, do arabesco entalhado ao adorno emprestado a uma espádua sem penas, como uma asa, que é aquilo que orna Ícaro – como se titulou o recado francês do campo freudiano: ce qui orne Icare, Ornicar? Esse adorno que – enfeites, um arabesco – se sobrepõe e, ao mesmo tempo, se destaca, pertinente e impertinente, um ornamento que é para mais ou para menos. Esse ou é que faz a questão, mas que não se escreve, senão na irracionalidade do número imaginário. Todos sabem que um número imaginário se exprime por -1, e esse número imaginário podemos levá-lo até à metáfora da “asa caída” ou do “falo tombado”, como um resto perene. Sempre se tentou dar conta de algum modo do número imaginário, dessa sobra, e de seus avatares. Basta lembrar da fundamental tradição ocidental de tentativa de dar conta dele, a chamada tradição pitagórica, que Lacan recolhe de outro modo, que avassala toda a história do Ocidente, aliás, o que para muitos talvez não esteja muito claro. Essa tradição busca, digamos, dar conta da essência do ouro, isso está dito nos textos gregos, ou da sua rosa, da sua pedra ou do seu tesouro ou tesão (ou o que valha), ou da sua tesoura, como quiserem – porque há uma amputação e um resto, meio raro. Pretendeu-se dar conta – atenção para o termo dar conta –, quer dizer, “pegar” o número na sua repetição. Número este que teve mesmo o apelido de número de ouro, que escapole e não se apara ou não separa, senão por esse corte, ou fenda, ou talho, ou brecha, ou rasgo, buraco que parece ser a sua essência. Número de quem sabe dar o valor do ente. Eu disse valor do ente, expressando o que aqui em nossa fala vai se colocar como hontologia, que é de Lacan, que nada tem a ver com o ontos do grego, que não é teoria alguma do ente enquanto ser, mas uma teoria que faz uma hontologia. No francês, honte quer dizer vergonha e é assim que Lacan chama sua hontologia, nome da vergonha. Essa vergonha que só nos envergonha quando a perdemos, quer dizer, quando nos damos por achados. Isto é o que se chama “perder a vergonha”, tentar dizer a brecha. Quando nos damos por achados queremos que “a verdade se dane” ou que se “dome”.

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Trata-se de dar conta desse número, dessa conta – e a palavra conta vale também em grão de real que pode estar em qualquer rosário –, dessa rosa de ouro ou número de ouro. Assim, é desse número que Lacan vai re-partir, vai partir de novo em busca da razão do ser falante, quer dizer da pró-porção da sua conta, da relação do seu discurso. Aviso que nenhum desses termos está sendo repetido gratuitamente, a não ser pela sua graça própria, ou seja, é sobre esses termos que as coisas vão girar. É a partir de uma relação fundamental que Lacan vai “dar conta” do que se passa no campo do discurso. Estávamos falando da tradição matemática, pitagórica. Sabemos que Pitágoras, chamado de Samos, nome da localidade onde nasceu por volta de 570 a.C., conseguiu inventar um certo número. Aliás, ele inventou mais do que isso, pois todos conhecem o famigerado teorema de Pitágoras: o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Dizem que no dia que achou esse teorema matou 100 bois para festejar – não sei se 100 é com c ou com s, pois na seita pitagórica todos eram vegetarianos. Pitágoras é contemporâneo de Buda, de Zoroastro, de Confúcio, de Lao-Tsé, afora os outros milhões. Uma época espantosa, onde, de repente, parece que em todas as culturas se pretendeu dar conta do caminho, pelo menos era o que dizia Lao-Tsé com seu Tao Té King; ou “sair em busca da lei”, pelo menos era o que dizia Confúcio; afora toda a promessa de salvação que conseguimos encontrar tanto em Zoroastro como em Buda. Assim, essa preocupação é radical nesse momento e não é por acaso que todos esses discursos aparecem. Dentro da tradição matemática grega e pitagórica, talvez valesse a pena lerem para a próxima vez algo, nem que seja um verbete de dicionário, sobre Pitágoras e saberem que ele queria encontrar a razão de tudo, do universo inclusive – razão significando a segurança do número. A tradição pitagórica matemática tentava, com o discurso, empolgar a relação entre o homem e o universo, quer dizer, na tradição ainda mitológica da Grécia, dar conta da passagem do caos ao cosmos, a passagem da zorra à ordem. Pitágoras pretende construir com isso uma teoria da harmonia das esferas. Vê-se aí toda a

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concepção idealista do que ficou conhecido mais tarde como o campo euclidiano: a esfera em sua completude ou as esferas em suas relações que deveriam ser harmônicas. Platão escreveu um diálogo chamado Timeu – que parecia um pouco esdrúxulo dentro de sua obra, pois é extremamente pitagoricizante –, onde tenta empolgar a alma do mundo e discernir o universo. Em Platão, reencontramos a tradução pitagórica – e não é de graça que ela vai passar por toda a cultura ocidental, inclusive por dentro da Igreja. Tratava-se de harmonizar ou encontrar a razão entre o macrocosmo e o microcosmo, estabelecer a relação precisa entre o micro (homem) e o macro (universo) e sair do caos para encontrar a ordem na cosmologia, ou “cosmogonia” que fosse. Buscava-se, portanto, uma lei que desse conta dessa relação, lei essa entendida, no discurso pitagórico, como lei do número. Não foi pouca coisa o movimento pitagórico, como veremos, desde seu nascimento até hoje. Pitágoras chegou a reinar sobre uma grande quantidade de discípulos, pois tinha, inclusive, poder político muito grande, de tal influência que, a um certo momento, as forças contrárias tiveram que avançar sobre os pitagóricos e dizimá-los. Assim, foram todos trucidados num momento de paroxismo político – sobraram uns dois ou três que fugiram e foram levar o recado a outras bandas. Há certo autor que diz mesmo que Pitágoras conseguiu constituir um “fascismo esotérico”. Resta-nos, depois, pensar o que pode ser um fascismo esotérico no campo pitagórico e onde ele remanesce. Na tentativa de dar conta, por uma lei do número, da harmonia universal, Pitágoras supunha a possibilidade de conquistar e dizer o nome sagrado, Ieros Logos, a palavra sagrada, se quiserem. E a lei do Ieros Logos era de que “as coisas não são mais do que aparências do número”, ou seja, as manifestações do número através de todos os avatares não eram mais do que as aparências dessa manifestação primeira, ou melhor, dessa não-manifestação primeira. Logos em grego, todos sabem, quer dizer razão, raciocínio, relação, a palavra por excelência. Logos no latim vai dar o termo verbo, “vai dar” quer dizer vai se encontrar, mas não há relação alguma. O verbo tem também as mesmas

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acepções no latim, além do sentido de inteligência divina, inteligência criadora. E Pitágoras queria encontrar o número divino que qualificasse – notem que ele não pôs a palavra quantidade – a ordem do universo. Veremos surgir aí, pelo menos escrito, o conceito mais geral de Relação. Relação entre dois objetos ou entre duas grandezas, que no campo do discurso pitagórico se chamava schesis (), termo que tem a ver com esquizo. A relação, que se chama aí de qualitativa, é como uma relação de dupla, de tripla ou de quádrupla quantificação, digamos, entre duas grandezas ou entre duas coisas. Ele chamava a isso relação propriamente dita e o importante é que aí se escreve e se matematiza essa relação. Uma letra sobre outra e lá vamos nós encontrar, outra vez, uma letra sobre outra no algoritmo saussureano. É sempre uma letra sobre outra, não saímos até hoje dessa tradição. A relação a/b passa a ser a medida da grandeza a, se tomarmos a grandeza b como unidade de comparação. Se a grandeza b é a unidade de comparação, a relação a/b lhe dá a medida da grandeza a, tendo por b sua unidade de comparação. Afinal, é isto que fazemos quando dividimos qualquer quantidade por outra: a de baixo passa a ser a unidade de comparação da repetição da grandeza de cima, o termo mais genérico de relação. É a isto que eles chamavam Logos. Ora, Sausurre não fez o mesmo? Ao dar conta da linguagem ele disse que se tratava de um matema, de um algoritmo, da relação de uma letra sobre outra. De Euclides até os platônicos em geral, vamos encontrar vigorando esse tipo de enunciado. A relação, a schesis de Pitágoras, é a relação qualitativa no que concerne à dimensão entre duas grandezas homogêneas, diferenciada do que chamavam de proporção. Todos conhecem isso dos velhos tempos da escola secundária. A Proporção () era analogia. Schesis e analogia: relação e proporção. A proporção sendo a equivalência das relações. Ou seja, escreve-se isto também. Se duas relações se equivalem, temos uma proporção. Quer dizer, dessa schesis, da participação de a/b equivalente a outra schesis, temos o que chamavam de analogia, a proporção, como equivalência das relações:

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Eles chamavam ao que está escrito acima, onde temos quatro letras diversas, de proporção disjunta. Deste modo, a partição de uma relação tinha que ser qualitativamente, diziam eles, da mesma grandeza – notem como estão embananados entre a relação grandeza e qualidade – que a outra relação. Essa relação constitui, nessa escrita, a projeção, no plano da matemática, da operação elementar do juízo. Ou seja, dentro do Logos. Juízo algum se produz no campo desse discurso fora da operação elementar que é a relação de uma letra sobre outra, como inscritível no campo da matemática. E eles consideravam essa operação elementar do juízo como dando conta da percepção exata das relações entre as coisas e as idéias. Estamos aí aproximadamente em 500 anos a.C. Quando as duas grandezas, ou seja, as duas relações, postas em equivalência, apresentavam seus termos intermediários repetidos e havendo igualdade (b=c), eles diziam que se tratava, não de uma proporção disjunta, mas de uma proporção contínua: a está para b, assim como b está para c. Isso deu muito pano para manga, pois, além das razões serem equivalentes, o termo que faz a partição do primeiro é aquele que sofre a partição pelo terceiro na mesma ordem de grandeza. E esse negócio ficou conhecido naquele tempo como o nome de secção de ouro.

Geometricamente, no caso de uma linha a, ela é dividida de tal modo que a parte menor c está para a parte maior b, assim como a parte maior está para o todo.

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Euclides chamava a esse modo de fazer a partição numa proporção contínua de média e extrema razão, a qual era considerada já, tanto geométrica quanto algebricamente, como uma partição assimétrica, como ela é de fato. Mas é também a mais lógica, diziam eles, das partições e a mais importante, por causa da repetição no campo da matemática e no campo da estética. Tanto é que o número áureo vai dar, durante um longo percurso, a razão da beleza. Trata-se de duas grandezas e a soma delas está para a parte maior, assim como essa parte maior está para a parte menor.

Então, isso é chamado de número de ouro, secção de ouro, média e extrema razão. E se queria que desse conta da razão universal, da relação entre o microcosmo, ou seja, o homem, e o macrocosmo, o universo. Trata-se de literalmente entusiasmar. E eles não estavam muito longe disso. Esta proporção mais tarde foi chamada de proporção divina. Certo monge bolonhês chamado Luca Pacioli, de Bordo, famigeradamente conhecido dos arquitetos, escreveu um livro que ninguém lê mas cita, chamado De Divina Proportione, publicado em 1509 com ilustrações de Leonardo da Vinci. Não quer me parecer, de modo algum, que Luca Pacioli conseguisse ser algum geômetra ou mesmo um artista importante. Simplesmente é que, no momento de emergência do Renascimento italiano, ele consegue nesse volume resumir a tradição pitagórica que vigorará com muita força no Renascimento, como já tinha vigorado desde Pitágoras – vai revigorar-se, digamos assim. Maismente porque ali se retomava, no sentido da cosa mentale de Leonardo da Vinci, o que se perdera talvez em acessos religiosos durante a Idade Média, onde havia a vigoração constante disso. O que se está escrevendo aí, no revigoramento da divina proporção, e que tem uma história extremamente em ebulição durante todo esse tempo, até esse momento e depois, é do mesmo naipe ou da mesma ordem, da mesma geometria que Pitágoras instituiu no que chamava a sua

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teoria da harmonia musical. Tratava-se de estabelecer a harmonia do universo, sua alma. O número cujas manifestações punha tudo sob a ordem do Logos Sagrado, o Ieros Logos, e a música que naquele tempo significava o conjunto, a aglomeração de todas as artes, não podiam dizer de outro modo senão dentro da proporção áurea, senão do Logos sagrado. E aí vamos ver como tudo está sob a mesma régua, a mesma lei escrita nesse tempo. Também Kepler, quando consegue desfazer a esfericidade que reinava em todo pensamento idealista sobre a construção do universo dito material, ou seja, da astronomia. É a partir desta concepção de simetria que vai constituir a possibilidade de uma escrita, de um defasamento, de uma declinação constante nos movimentos dos astros. Com isso, faz a grande revolução da astronomia, que não é exatamente a revolução de Copérnico. Também a tratadística arquitetônica que vai se basear sobre o famoso tratado de Vitruvio, De Arquitetura, se assenta sobre esse número que diria a razão universal. E seus avatares vão caminhar até hoje, infelizmente do mesmo modo imaginário, nas mãos de Le Corbusier. Prefiro até dizer que o substituto contemporâneo da grande arquitetura tradicional – arquitetura não é a arte de fazer casinhas, mas a arte de escrever as leis – não é Le Corbusier, mas Freud, que teve um Lacan para ser seu geômetra. Afinal de contas, metaforicamente e não, há que dizer que a psicanálise é a arquitetura do falante. Esse nome que acabei de dizer, simetria, é preciso fazer um pouco de limpeza em seu sentido. Parece que há uma fé delirante que vai fechar a simetria, a qual não quer dizer absolutamente duas coisas que se contrabalançam em idêntico peso, ou mesmo a igualdade de braços da balança. Simetros, do grego, significa a possibilidade de encontrar, como lá pensava encontrar Pitágoras, uma grandeza que ordenasse o universo, ou seja, a suposição de que a relação macro-microcosmo estivesse ordenada pela mesma grandeza, que sobre ela se repetiria sempre. Como quem pega um metro e aplica equânime e equivalentemente sobre o universo e reconhece que esse metro é padrão universal. Disso aí trataria alguma simetria no pensamento clássico. *

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Tradição Freudiana (ou a atra dicção freudiana)

A chamada escola pitagórica, a própria seita pitagórica, girava em torno dessa matematização do universo e, substancialmente, em torno do número de ouro, da razão divina, a qual se procurava por todos os cantos e recantos, e que era por seu conhecimento a fundamentadora da tradição, ou seja, da tradução, da transmissão, da iniciação, se não da traição mesma, que, aliás, é a mesma palavra. Eis aonde, depois, iremos pensar a diferença entre o iniciático e a possibilidade de transmissibilidade que não seja iniciática. Quando citei há pouco aquele autor que propunha chamar a escola pitagórica de um fascismo esotérico, não posso encontrar outra justificativa para esse título senão os modelos iniciáticos, fraternalizantes, harmonizantes dessa escola, e não a sua busca de razão. Teremos oportunidade de ver que a psicanálise não se coaduna com iniciação alguma, no que pese as sociedades internacionais iniciáticas. Também, nem por não pertencer a algum campo iniciático ela perde a razão, como querem outras partições iniciáticas, se não religiosas, que, às vezes de modo indevido, usam o nome de indivíduos que não são absolutamente imbecis, como Karl Marx. Dizem até que o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro tem vocações iniciáticas, portanto fascistas, mas não somos nós que nos chamamos de camaradas ou companheiros, como se chamavam os membros das formações pitagóricas. Aqui, sabemos que essa irmandade é periclitante, se não inexistente. E nem estamos fazendo votos por ela, mas procurando a medida do sujeito, e não dos camaradas. Vejamos de onde veio essa camaradagem. No processo iniciático da escola pitagórica, a valia, a entrada, o ticket iniciatório, era o conhecimento da geometria: a vocação para ser geômetra e o chamado à lei do número. As pessoas mudavam mesmo de graduação mediante a possibilidade de escrever e descrever os grandes teoremas. O que ficava muito mais bonito quando se tratava de algo que expusesse, com muita repetição, muito serialmente a grandeza áurea. Por isso, encontramos uma série de manifestações achadas, teoremizadas para o número áureo. Todos se lembram disso lá da escola secundária: como dividir um segmento de reta, dizíamos então, em média e extrema razão. Esse tipo de partição é algo que foi difícil de ser

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achado e que se apresenta em belíssimos teoremas, de uma harmonia tal que entusiasmava a empolgação dos pitagóricos. Conhecemos o famoso retângulo áureo: quando temos um retângulo cujos lados estão na razão áurea, se continuarmos dividindo os lados maiores sucessivamente em razão áurea, teremos uma série que podemos considerar, pelo menos teoricamente, infinita, de retângulos áureos, cujo contorno vai nos dar uma curva que, se não é idêntica, é extremamente próxima da espiral logarítmica – algo também importante, porque se trata do relacionamento entre duas séries.

Estavam lá os moços chegando perto das coisas. Conhecemos também as emergências poligonais do número de ouro: os teoremas em que a parece encantadoramente a relação áurea numa repetição contínua, sobretudo no pentágono regular, no tetrágono regular, nas relações entre os lados dessas figuras, assim como o cálculo numerológico, digamos assim, das relações entre as grandezas euclidianas dos poliedros. A possibilidade de construir matematicamente os poliedros não se deu muito fácil e é exatamente isso que Leonardo da Vinci desenha no tratado de Pacioli sobre a divina proporção, os dificílimos poliedros de então. Ora, existem várias divindades geométricas no pensamento pitagórico, e pode-se dizer que a mais valiosa dentre elas teria sido exatamente o pentágono, que persegue a civilização ocidental há tanto tempo. No chamado pentágono

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regular a relação entre o raio, o círculo e o lado é uma relação áurea. E se, dentro de um pentágono regular, traçarmos um pentágono do tipo estrelado, que é aquele construído pelas diagonais, teremos repetida a infinita relação chamada áurea, mesmo porque cada um dos lados do pentágono estrelado corta o outro lado dentro da razão áurea.

Vejam que estamos em plena sinfonia, ou seja, aquilo que do outro lado era chamado de simetria. É esta a idéia que temos que ter de simetria: a sinfonia de uma grandeza regente. Essa figura se tornou adorada como um grande símbolo de Logos Sagrado, e vai se repetir de então até nosso tempo. Isto ficou nas mãos de todos nós, qualquer folha de papel que se preze mantém as proporções áureas em seus lados, segundo as artes gráficas. Os arquitetos não fazem uma fachada sem pensar, en passant, na relação áurea. Uma janela que seja, é preferida na relação áurea. O engraçado é que, ao falarmos da proporção contínua, a que estaria na razão áurea, estamos falando de uma analogia. Diz Aristóteles a seguinte frase: “Porém, a maior coisa de todas é, de longe, ser o mestre da metáfora. É a única coisa que não se pode aprender dos outros, pois uma boa metáfora implica a percepção intuitiva da semelhança nas coisas dessemelhantes” (Poética, livro XXII). Ao que ele estava fazendo reforço senão à razão áurea da metáfora? Está aí instituída a metáfora como uma proporção áurea. Não é dentro de outro espírito que, na vocação do amor cortês, Dante Alighieri diz a sua régua do universo, quando fala em “l’amore qui muove il sole e l’altre stelle”. Isso que certa tradição chama a sua Opera Magna, quer dizer, sua obra alquímica, que é encontrar o número da regência do universo.

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Por que metemos obra alquímica nesse meio? Sejam quais forem os avatares místico-mítico-religiosos ou crendices, etc., que aconteçam durante todo esse percurso, é na mesmíssima tradição pitagórica que tudo isso se movimenta. Vai aparecer nos judeus, regulando seu movimento cabalístico. Lembrem da figura de Hermes Trismegisto e sua operação de regulação de todas as relações universais no pensamento cabalístico. No campo da alquimia, seja o que for que qualquer Jung possa ver de fantástico, ainda era a regulação matêmica dos pitagóricos que regulava aquelas produções. Na Gnose, como movimento contestatório dentro do cristianismo, retomava-se o pensamento pitagórico. A Gnose, aliás, embora destruída, deixou seus traços no campo do catolicismo e das igrejas cristãs em geral. Vemos isso ser retomado, sobretudo, no campo da maçonaria medieval das grandes ordens, guildas, dos arquitetos chamados então de pedreiros – nome mais bonito –, que constituíam toda a ordem social de sua transmissão sobre confrarias organizadas estritamente nos moldes pitagóricos, tendo mesmo o reconhecimento recíproco assentado sobre a escrita de uma figura qualquer que recomendasse a instituição do número de ouro. Basta lermos as paredes das catedrais góticas para reconhecer, ainda que por vezes aparecendo fantasticamente, o escrito matemático desse número que regula toda a ordem de pensamento medieval. Depois, a maçonaria, deixando de se referir no plano da arquitetura de construção – já se sabe, desde Heidegger, que a casa do homem é a linguagem –, veio dar a outra maçonaria chamada especulativa que, em sua decadência, ainda se regula por vocações pitagóricas. Temos os chamados rosacruzes, em cujo papo podemos talvez encontrar até um Descartes, também na mesma tradição, embora manifestamente decadente. Estou chamando de decadente tudo aquilo que saltou do reconhecimento da matemática, que ali está inclusa, para a produção do fantástico, para as fantasias – isso que analistas, às vezes, querem chamar de fantasma – dos que lidavam com essas grandezas. Não é outra coisa que encontramos na ordem beneditina, na ordem jesuítica, na ordem dos templários que foram exterminados exatamente porque conseguiram um poderio tão grande quanto o de Pitágoras e sua escola. Então, vejam que a tradição atravessou séculos e séculos, mesmo que embuçada às vezes sob fantasias.

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Na tradição do tarô, por exemplo, esse número se apresenta como capaz de reunir o alto e o baixo, id quod inferius sicut quod superius (o que está em baixo é o mesmo que está em cima). Ou como diria o zen: “Uma estrada que sobe é a mesma que desce”. Aliás, foi o que disse Freud na introdução de sua primeira abordagem de vulto do Inconsciente, Traumdeutung, onde podemos ler a citação já demais conhecida: Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo (se não posso atingir os deuses supremos, moverei as águas do inferno). É a tradição mefistofélica, se não hermética, que nada tem a ver com o iniciático, nem com o hermético, no sentido que tem hoje, nem com o esotérico, muito menos com o fascista. Pelo contrário, é a abertura ou mesmo a ruptura dessa vocação iniciatória que vai ser promovida na psicanálise. No entanto, faço questão de dizer que está dentro da mesmíssima tradição, pois o novo é reconsiderar a tradição. Ora, todos sabem que Freud declarou que não estava construindo a psicanálise sobre as conquistas da ciência de seu tempo, mas buscando exatamente aquilo que tinha sido por ela abandonado. Era um tanto ridículo naquele tempo falar-se em sonho com impostação científica ou especulativa. *

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Então, desenvolvido o teorema da média e extrema razão de modo estritamente euclidiano, o que encontramos – e que está em qualquer manual de matemática secundária – é exatamente o desdobramento daquela proporção: a está para b, assim como b está para c.

Desdobramento que deu, reduzido a uma equação de segundo grau, o valor que muitos chamam de número fi (), que são as duas raízes da equação de segundo

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grau. Este ± 1 causa espécie, que os calculistas efetuam na base de 1, 618... e 0,618... para:

Mas vamos verificar que algo estranho acontece: esse número se infinitiza numa proporção que mantém, em sua escrita, o desdobramento repetitivo da mesma proporção, digamos assim. Um certo Leonardo de Pisa, mais conhecido com o nome de Fibonacci – que existiu a partir de 1180, considerado um dos maiores matemáticos de sua época, supõe-se mesmo que foi quem introduziu o algarismo arábico na Europa –, de tanto trabalhar com a vocação euclidiana e pitagórica, acabou inventando uma série de números esteada sobre a razão áurea que ficou com o nome de série de Fibonacci (o que também está em qualquer livro de matemática). Ele observou que, se fizéssemos uma série de números cuja progressão consistisse em que cada número fosse a soma dos dois anteriores, deveríamos encontrar em qualquer momento da série a proporção áurea. Ou seja, se tivermos o número 1 e, depois, o número 1 repetido, podemos somá-lo ao número anterior e teremos 2, o próximo a + 1 e teremos 3. Depois, teremos 3+2 = 5, 5+3 = 8, e assim por diante. Cada número é a soma dos dois anteriores, e a relação entre cada número e o anterior tende sempre, aproximada ou assintoticamente, para o número , o número de ouro.

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Isso causou espécie em toda a história do Ocidente. Por que a redundância dos processos seriais? Por que o surgimento da própria proporcionalidade da significância, digamos, no caso, a metáfora? Por que a repetição serial através da história, organizando os princípios mesmos de toda a tradição ocidental, reconhecível até nas tradições não-ocidentais? Ora, durante muito tempo se supôs imaginariamente que essa grandeza quantificada, mesmo que Pitágoras falasse em qualificação da grandeza, remetesse a um Ieros Logos imagético que ordenaria o universo macro e microcósmico. Daí vemos o reboliço no Renascimento em torno do corpo humano, a tentativa de descrever geometricamente a aparência anatômica do homem, os chamados homens vitruvianos. Todos os grandes arquitetos, matemáticos e artistas tentaram construir, na exata proporcionalidade do número de ouro, cada detalhe do corpo. Assim como as análises arquitetônicas da cultura grega procuram demonstrar por sob as deformações geométricas, geometricamente instituídas, a ênfase, no caso da coluna grega, de uma inclinação dos parâmetros laterais do frontão das ordens em geral. E reencontramos em todas as ordens arquitetônicas da Grécia a repetição dessa razão áurea. Tudo isso se corporifica, quer dizer, se incorpora, se sintomatiza na vocação imagética, ou melhor, imaginária, de atribuir um tipo modular – não é à toa que Le Corbusier chama de Modulor seu tratado – de aparência qualificada por uma quantificação áurea. Considerem os tratados de todas as ciências e artes e verificarão em todo esse percurso a redundância da vocação áurea. Dito de outro modo, uma vez que as formas simbólicas são mais formas que simbólicas, nesse percurso, por mais imaginarizada que seja a questão, é o simbólico que corre por baixo. Assim, podemos reencontrar em toda a tarefa pitagórica, e em todos os avatares da manifestação pitagórica dos discursos através dos tempos, a tentativa de ultrapassar a ordem imaginária no sentido de se escrever, de trazer para o plano do simbólico, esta razão. É claro que freqüentemente se recai no imaginário. Basta ver, por exemplo, a tentativa bastante ambígua do Renascimento de normativizar a figura do corpo humano pela vocação simbólica do número de ouro. O Renascimento não retoma algo

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que ficara abandonado, mas sim retoma, em seu modo de cosa mentale, algo que sempre esteve em vigor e que havia passado para um modo fantasioso e imaginário. E o que vamos mostrar aqui, tentando pensar os tais discursos, é em que ordem discursiva cada coisa dessas se coloca. Essa repetição, por mais que se imaginarize, que se rebata de novo sobre o imaginário das construções formais, parece estar exigindo a consideração do simbólico. Assim, no vigor das formas constituídas sobre essa numerologia, digamos assim, há uma insistência de emergência do simbólico. O simples fato de se tentar a escrita de algum modo já é abandonar o imaginário para se recorrer ao simbólico na organização do processo.

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MAIS-GOZAR: NÃO MAIS GOZAR

Depende daquele que passa Que eu seja túmulo ou tesouro Que eu fale ou me cale. Isto só depende de você, amigo, Não entre sem desejo.

Este trecho do poema de Paul Valéry está gravado num dos frontispícios do Palácio de Chaillot. Ocorreu-me remetê-lo a nosso trabalho na medida em que o que se faz aqui exclui todo convencimento. Não se trata de convencer, mas de dispor a algum desejo que não necessite de convencimento. *

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Quando terminei nosso encontro passado fiz alusão a certo texto, e por isso houve quem achasse que devesse correr a ler Mário de Andrade e seu Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Claro que se deve lê-lo, até se ler todo Macunaíma. Há mesmo quem suponha, a partir de uma filmografia, que isto exprima alguma realidade brasileira (está-se procurando pela realidade

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brasileira), embora não sei se ela está em Macunaíma. De qualquer forma, houve um equívoco que não deixou de ser provocado, quando se supôs que se devia ler Macunaíma. Se o equívoco ajudou a lê-lo, tanto melhor, sobretudo para se saber, de algum modo, aquilo que Macunaíma exprime com o seu “Ai! Que preguiça!”, esse “não querer saber de nada” que, quando é considerado, nos faz produzir o saber. Há uma tônica interessante em Macunaíma que é um desejo de sono, que ele exprime com “Ai! Que preguiça!”, que é estritamente o mesmo desejo expresso pelo sonho, quer dizer, certa realidade. Desejo que faz Macunaíma dormir a toda hora, mesmo na hora de dormir com alguém – ele “não quer saber” nem mesmo no meio da foda –, enfim ele dorme no meio da dormida. Como já escrevi em algum lugar, “a psicanálise é a ciência do phoder”. Escrevi isto com ph, que na química tem um sentido muito interessante de potencial hidrogeniônico de uma solução. Potencial, em meu jogo de palavras com phoder, seria uma espécie de pulsional homogeinihomine: é o poder que fica escandido e barrado por esse h, (de homem, quer dizer, falante) – todos sabemos que Freud decretou que a Pulsão é macha. Dois corpos em conjunção fazem H dessa barragem, isto é, dessa impossibilidade de, como diz Lacan no Seminário Encore, “to fuck” (dito em inglês, que em francês não tem a mesma força): justamente “se diz que a coisa não vai” (Le Séminare. Livre XX: Encore. Paris: Seuil,1975. p.33). Interessante em Macunaíma, que equivocamos, é que se trata de dormir em todos os sentidos de poder escandir esse dormir e a impossibilidade de foder escandir o poder, suturá-lo para além dessa escansão. Sempre resta entre as duas barras verticais do H da escansão do homem, um resto, um pequeno traço, digamos horizontal, que poderia metaforizar nesse momento a sobra constante. Resto que, como falamos da outra vez, poderia ser nomeado na história dessa perseguição como número de ouro e descreveria o objeto a. *

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Mais-gozar: não mais gozar

O que vimos na proporcionalidade do número de ouro – evocado enquanto tentativa de escrição, ou seja, de decantação no regime simbólico desse resíduo constante – é um resto que não resulta numa infinitização, no sentido de uma diminuição constante do resto, de seu encurtamento constante e quantitativo que tenderia, suponhamos, convergentemente para um zero. Não se trata disso, mesmo que consideremos a comparatividade que fizemos entre duas séries, através da razão dessas duas séries sobrepostas (série áurea, sobre a qual procuro a série das relações entre os termos sucessivos). O que se verificaria no reconhecimento da série (da razão) entre os termos sucessivos é que o número requerido é sempre aquele número de ouro, fi (). Não se trata, nessa convergência, da aproximação de um ponto marcado, digamos por zero, cuja distância no percurso se tornasse sucessivamente menor ou maior. Digamos que o ponto fosse infinito, e não zero. Trata-se de que, na razão estabelecida (escrita) no número de ouro, o resto é constante, ou seja, a razão entre os termos sucessivos é sempre um número . Isso significa que a convergência do que estamos tratando não é de aproximação de um ponto quantitativamente demarcado, geometricamente situado, mas de um posicionamento topologicamente indicável e sempre constante em sua estrutura e em sua razão. Ou seja, se o número  é constante na proporcionalidade, estamos tratando é desse resto constante, da topologia dessa constância cuja convergência não acrescenta nem diminui. A metáfora disso poderia ser a proporcionalidade da morte entre dois sujeitos de idades extremamente diversas: um velho e um jovem. Diríamos, na pragmaticidade do cotidiano, que o mais velho estaria mais perto da morte, a qual, afastada do mais jovem, lhe possibilitaria a esperança de uma vida. Entretanto, no regime da fala e no regime da produção, a partir de ser falante, a morte é eqüidistante de qualquer sujeito, na medida em que ela é escansão de seu desejo, situando o objeto desejado, igualmente dimensionado. Isso para apontar que o regime embora não seja sem utilidade. Começamos pelo número arqui-tetonicamente posturado, através de toda a história do Ocidente, como o regulador, enquanto causa, dos movimentos

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do falante. Assim, sem nenhum rigor lógico, mas apenas como um artifício de aproximação, vou situar um pequeno teatro (lógico) para que possamos repensar esta sobra. A experiência parece apontar, assim como as fenomenologias parecem exprimir constantemente, que objeto algum considerado por um sujeito consegue se manter em sua identidade. Ou seja, há uma oscilação constante entre a tendência à identificação do objeto com ele próprio e a tendência à não identificação, ainda que num momento de distração, de mancada, de equivocação, em que este objeto discorda de si mesmo. Se considerássemos dois objetos, repetindo a mesma oscilação, poderíamos dizer que, diante desse objeto, minha indicação de sua identidade oscila entre reconhecimento de que: o objeto a é si-mesmo; o objeto b é simesmo; o objeto a difere do objeto b; o objeto a difere de si mesmo; o objeto b difere de si mesmo; e, no plano da identificação do objeto a si mesmo (aa), no momento em que o objeto b, supostamente idêntico a si mesmo (bb), empastado nessa identidade, daria ab. Então, fixado na identidade, não se veria não-identidade. Estaríamos aí – e isto é falso, pois não poderia ser falado –, se lá estivesse, no regime do Real: algo empastado, impossível de ser diferenciado, impossível também de não estar lá, nessa dureza de indiferenciação. Ou seja:

Poderíamos tomar o objeto a, considerá-lo idêntico a si mesmo, aprisionálo em sua identidade própria, específica, e poderíamos tomar o objeto b aprisionado também em sua identidade e querer que a se apresentasse diferente de b (ab). Entretanto, oscilo constantemente a ponto de, mesmo partindo da consideração de que a é diferente de b, poder equivocar o objeto b, assim

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como o objeto a em relação a si mesmo. E cairíamos no regime do paradoxo, do absurdo, ou melhor, estaríamos no regime do Imaginário:

Aqui, estaríamos no regime do Simbólico:

Tudo isso é falso, pois apenas estou fazendo um artifício para mostrar, e não para demonstrar. É como se pudéssemos escrever uma identificação plena, em todos os elementos, ao mesmo tempo em que pudéssemos diferenciar um elemento do outro ou que equivocássemos, num terceiro regime, o elemento em relação a si mesmo. Poderíamos também, não seriamente, apenas como mostração, falar da loucura do real e emprestar o nome de Parmênides para este brinquedo; como poderíamos falar da loucura do simbólico e emprestar o nome de Heráclito para essa não-identidade constante de tudo a si mesmo; como poderíamos falar da loucura do imaginário e invocar a Filosofia. Acontece que, seja como for, fica a questão pré-socrática por excelência em nossa posição ocidental, do escape constante do objeto a si mesmo e da diferenciação sucessiva sem possibilidade de identificação constante de um objeto. Se pudéssemos fazer alguma passagem (não muito rigorosa) para a estrutura – ou seja, para aquilo que já tratamos diversas vezes: o nó não relacional de real, simbólico e imaginário –, teríamos que partir, como faz Lacan, do real dessa estrutura. Real este que se determina, e à estrutura também, por essa convergência numa impossibilidade de não sobrar o resto.

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Nesta nodalização (de real, simbólico e imaginário), é na gravitação de um não-centro que está constantemente o resto que chamamos, seguindo Lacan, de objeto a, o qual, como podemos ver, não é nem real nem simbólico nem imaginário exclusivamente, porque é e real e simbólico e imaginário. Objeto paradoxal por excelência: enquanto pertinente ao registro do Real, é pura dureza, indizível; no que, pertinente ao regime do Imaginário, se substitui constantemente a si mesmo e se projeta imaginariamente sobre determinados objetos substitutivos, metonímicos, que se diferenciam claramente um do outro; mas, enquanto afetado pelo registro do Simbólico, jamais coincide consigo mesmo e vive no regime desse paradoxo. Esse objeto não pode apresentar imagem de si mesmo porque, embora esteja também gravitando no regime do Imaginário, pertence ao regime do Simbólico, portanto não é especularizável, não se vê no espelho, mas nem por isso deixa de poder arcar com o Imaginário; difere de si mesmo e nem por isso deixa de ser impossível, de certa forma; difere constantemente de si mesmo e nem por isso é significante puro, mas é objeto. É na afetação do significante que ele passa a esta ordem paradoxal. E nosso percurso parte do regime do

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significante e de sua afetação. Nessa afetação do Simbólico é que o falante apresenta sua especificidade – não que ele seja necessariamente o único a ser afetado pelo simbólico, mas é aquele que não pode não ser afetado por ele a cada tempo, que não pode não equivocar. Ora, nesta afetação do simbólico – do real e do entrelaçamento dos registros – surge o objeto paradoxal, assim como surge a afetação da incompletude do significante, de seu reviramento como corte puro – de que também já temos tratado. *

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Fazendo um pequeno salto, vou colocar um probleminha, muito conhecido, que está nos livros sobre teoria dos conjuntos. Numa cidade, existe um barbeiro que faz a barba de todas as pessoas que não fazem sua própria barba. Quem faz a barba do barbeiro? É um modo simplificado de apresentar o chamado paradoxo de Russell e foi o ponto de não fechamento do sistema lógico de Gottlob Frege e dos Principia Mathematica – de Bertrand Russell e Alfred North Whitehead –, obra que tenta, de uma vez por todas, estabelecer fundamentos lógicos, sólidos e definitivos, para a matemática através da teoria dos conjuntos. Russell esbarra, em última instância, na questão do conjunto de todos os conjuntos que não incluem a si mesmos. Um conjunto é sempre conjunto de subconjuntos, na medida em que se pode considerar seus elementos como conjuntos. Mas esse conjunto, que inclui vários conjuntos, inclui a si mesmo? Isto é um problema grave que põe em questão toda a lógica moderna de Frege e que Russell e Whitehead tentam, em vão, nos Principia Mathematica, solucionar por completo. Apenas para espacializar a compreensão, como pode o traço de circunscrição, o que organiza o conjunto, incluir-se a si mesmo dentro do conjunto? Então, há uma franja, uma borda, um limite, que não se inclui no conjunto desse conjunto. E se pensarmos nos vários conjuntos que não contêm a si mesmos, que fazem parte de certo conjunto, este conjunto, de que fazem parte enquanto conjuntos que não se incluem a si mesmos, inclui a si mesmo?

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Vejam que não é questão de dizer que ele não inclui a si mesmo, como fingi interpretar aquela borda. Se raciocinarmos um pouco, veremos que a resposta é indecidível, como demonstrou Gödel em seu teorema da incompletude sintática da formalização da axiomática aritmética. No regime de um cálculo puramente formal (algorítmico), no interior de um sistema axiomático, qualquer resposta demonstra-se radicalmente indecidível posto que suscita sua oposta. Se o barbeiro, único dentro de uma cidade, faz a barba de todos que não fazem a própria barba, se ele não fizer a própria barba, quem faz a barba dele? Ele, porque faz a barba de todos aqueles que não fazem a própria barba. Entretanto, se ele resolver fazer a própria barba, ele não faz a própria barba, porque faz a barba de todos aqueles que não fazem a própria barba. Estamos diante de uma questão irrespondível, dentro do campo fechado dessa lógica e foi onde os Principia Mathematica tiveram que dar de cara com o real. Esta questão de um possível catálogo que fosse um catálogo de todos os catálogos que não incluem a si mesmos, não inclui nem deixa de incluir, muito pelo contrário. Se inclui outros catálogos, por isso mesmo não os inclui, e se não os inclui, por isso mesmo os inclui. Então, não é questão de dizer que esta borda espacializada não pertence ao conjunto. Ao contrário, o conjunto dos conjuntos não pertinentes a si mesmos pertence a si mesmo quando não pertence a si mesmo, e não pertence a si mesmo exatamente quando pertence a si mesmo. Embora não acreditem, já disse que a psicanálise é arte de fazer nem-nem: nem uma resposta, nem outra. Isto está em pleno acordo com o que disse de começo, quando coloquei um h no meio do poder. Neste caso também há o paradoxo: se pode, é porque não pode; se não pode, é porque pode. Isso quer dizer que, nesse jogo de esconde-esconde, se supuséssemos a possibilidade de orientar o percurso para este ponto, é o outro que surge; assim como, se orientarmos para o outro, é o primeiro que aparece. *

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Daí que Lacan vai partir para tratar daquilo que muitos pensam que ele não trata: o discurso de Marx. Todos sabem que Marx conseguiu fazer a crítica da economia política e do capitalismo a partir do desvelamento da lógica fundamental do capitalismo segundo o conceito de mais-valia. Ele descobre que há um jogo de esconde-esconde no modo capitalista de produção, que se situa no que se escamoteia entre o valor de uso de um produto e seu valor de troca. Posso ter muitos sacos de feijão para comê-los, ou posso tê-los guardados para suportar um símbolo que me permita uma relação social de troca. É a mesma coisa que trocar a mãe, ou seja, a mesma coisa que a interdição do incesto. O valor de uso de uma mulher nada tem a ver com seu valor de troca e a interdição do incesto vai portar sobre alguma coisa que escapole entre esses dois valores. Na dialética entre o valor de uso e o valor de troca, o que Marx aponta como crítica da lógica do capitalismo? Exatamente o valor não pago que aparece no fruto do trabalho daquele que trabalha, que costumamos chamar de trabalhador, que aparece no valor de uso do fruto desse trabalho – o verdadeiro preço do fruto desse trabalho. O que Marx demonstra é que, do ponto de vista da lógica capitalista, a coisa foi paga (justamente), no entanto sobra um resto, um lucro. O que Lacan aponta, que em Freud já se articula para além e para aquém da mais-valia de Marx, é a vigência produzida necessariamente pela subsunção do falante à ordem simbólica, o aparecimento necessário do resto ou sobra que já situamos antes como sendo o objeto a, essa constância de convergência. O que acontece, então, é que a mais-valia, a partir da relação valor de troca / valor de uso, não incidirá apenas sobre o trabalho ou sobre o objeto produzido por um trabalho, mas, sobretudo, pela imposição simbólica, pelo vigor e pela vigência, no campo do saber, do mesmo escamoteamento indefectível para o falante. Se pensarmos com rigor, veremos que o saber não tem proprietário, pois é algo que só tem valor de uso em sua estrutura radical. Na medida em que passa a ter valor de troca, que saber ele vale? Qual é a relação que existe na intersubjetividade para com o saber? Um saber só o é

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na medida em que é valor de uso, entretanto na relação intersubjetiva ele é apoderado, roubado, ou seja, sofre o regime da apropriação (regime da propriedade) que, todos sabem, tem nascimento no roubo. Um trabalho dito de saber, um trabalho de ciência, no que é posturado numa intersubjetividade, é apoderável, isto é, produz algo da espécie, algo da homologia – Lacan não fez analogia alguma – da mais-valia, na medida em que sofre inscrição como valor de troca, que é apoderável, roubável por algum senhor ao escravo que o produz. E esse trabalho de produção de um saber a partir do momento que é trocado – pois o saber não depende necessariamente de um trabalho, de uma afetação –, quando se atribui um trabalho ao saber, é um saber que se situa num valor de troca. Do mesmo modo, há aí um trabalho não pago, embora seja pago de modo absolutamente justo, em relação à consistência do mercado intersubjetivo. Isto, dentro do funcionamento do sujeito capitalista, aquele que está na lógica da apropriação do resto na relação valor de uso / valor de troca. O trabalho não pago é, em Marx, a mais-valia. Trabalho este que é fruto dos meios de articulação, dos meios de produção, se quiserem, e que constitui o discurso capitalista e sua própria lógica. Como disse, do lado do saber (e isto nada tem a ver com o trabalho), a propriedade intelectual, a rigor, não existe. Existe, sim, a apropriação do trabalho intelectual, ou seja, a possibilidade de tirar, de um outro, um saber – modo esse que faz o começo da propriedade em qualquer regime de apropriação. Também no trabalho intelectual (apropriação do saber = roubo) há preço de saber, enquanto esse saber é pago ao seu verdadeiro preço (valor de troca), segundo as normas que se constituem no mercado da ciência. No entanto, este saber apropriado, enquanto saber que vai funcionar qua saber, ou seja, em seu valor de uso, é obtido de graça, por nada. Isto porque é no regime de apropriação da troca que ele recebe o justo valor, mas um saber, enquanto saber, que passa a ter valor de uso, foi obtido de graça. Sabemos que os sistemas valorizam, no contexto de valor de uso, a posição do professor, do mestre, daquele que ensina. Exatamente porque se

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paga a transmissão do saber, paga-se o valor de troca. Mas o saber, uma vez adquirido, como se diz, “não tem preço”, do mesmo modo como quando se diz que uma obra de arte “não tem preço”. É claro que ela tem preço no mercado, enquanto valor de troca, mas alguma coisa não é paga, pois é obtida de graça – o poeta a entrega de graça mesmo quando é regiamente pago. É articulado ao regime de todo e qualquer saber – não apenas no regime das trocas de objeto sob essa ordem dual de valor de uso / valor de troca –, ou seja, da essencialidade do saber enquanto marca proliferante, que Lacan situa o que chama de objeto a e, ao invés de chamar de mais-valia (que em francês é plus-value), vai chamar de plus-de-jouir. É difícil traduzir. Costumo chamar de mais-gozar, mas não significa exatamente isso, pois o termo em francês quer dizer “mais gozar”, como “gozar a mais”, ou quer dizer “não mais gozar”, “acabou o gozo”. Eis a equivocação do mais-gozar. Mais-gozar porque, no campo freudiano, não se trata de outra coisa senão do gozo, que é o requerido e o interditado. É o interditado no regime do simbólico, pois há uma renúncia radical ao gozo, que é estruturante da possibilidade do sujeito em sua fala. Veremos adiante que isso está no vórtice mesmo de toda possibilidade de fala enquanto regime mesmo do recalcamento originário, sobre o qual Freud coloca o núcleo de atração de toda possibilidade de recalque. Assim, há um recalque originário que faz parte da estrutura, que nada tem a ver com alguma repressão externa. Ele faz parte necessariamente, na medida em que se refere à estrutura. No recalcamento originário é que vige a renúncia ao gozo, que tem a ver com o regime do mais-gozar, ou seja, com o regime que institui o objeto a. “O gozo só se ordena, e não se ordena de outro modo, e só se estabelece, não se estabelece de outro modo, como gozo procurado e perverso”, diz Lacan. Assim, não há possibilidade de gozo a não ser a partir da estrutura onde o recalque originário, enquanto modelo da renúncia, propôs o objeto a, o seu paradoxo. Só há possibilidade de gozo na gravitação desse objeto, que é propiciada pela renúncia. Logo, só há gozo enquanto perseguição desse objeto, mas tal perseguição jamais escapa do regime da perversão.

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Lacan diz que o mal-estar na cultura é um mais-gozar, um plus-dejouir, obtido pela renúncia ao gozo, justamente (com justeza, com justiça) sendo respeitado o princípio do valor do saber de que falávamos antes. Paga-se pela aquisição de um saber, digamos, um saber gozar no caso, e goza-se de graça, em pura perda. Paga-se pelo poema e se o ganha de graça. Nessa ordem paradoxal é que está situada a divergência – ia dizer uma coisa espantosa: divergência-convergente – entre o que se paga enquanto valor de troca e o que se ganha de graça quando o valor é de uso. E o modo como cada um sofre em sua relação com o gozo, que não se dá senão perseguido e perverso, na medida em que o gozo só consegue inserção pela função do mais-gozar, pela função do objeto a. E a maneira como cada um sofre essa relação é o que chamamos sintoma. Haja vista que não há manifestação que não seja sintomática: toda manifestação, quer ela se considere como tal ou não, é procura de gozo, mediante o mais-gozar, ou seja, mediante a renúncia processada sobre um recalcamento originário que exige a topologia desse objeto para seu seguimento. Entretanto, na relação com o gozo, cada um sofre de um sintoma específico. Um saber sempre é pago segundo seu verdadeiro preço. Isto quer dizer que, se ele é posto numa relação intersubjetiva, enquanto valor de troca, o pagamento é verdadeiro, porém é abaixo do valor, pois não se paga o valor de uso desse saber. *

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Como vêem, estou paulatinamente preparando a concepção dos elementos de escrita que vão compor a ordem dos discursos em Lacan. Assim, não estou ainda abordando diretamente o seminário sobre os discursos, e sim tentando preparar a concepção dos elementos que serão postos em jogo. Situemos, então, a relação fundamental, que é onde vamos encontrar a estrutura do recalque originário. Sabemos que Lacan destaca algo que jamais foi lido, e foi abandonado no texto de Freud, que é o traço unário (Einzigerzug).

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Segundo ele, as pessoas pularam por cima, não quiseram ler, mas Freud deixa claro que não há possibilidade de pensar alguma identificação a partir de uma fenomenologia de aparências, pois toda identificação não se dá para além da marca de um traço distintivo, se formos falar em termos lingüísticos. Assim, é por um traço distintivo, que se marca sobre alguma coisa a ponto de anotar, que vou estabelecer a possibilidade de identificação. Não vou fazer uma preleção sobre os processos de identificação, mas apenas situá-los (se quisermos, de maneira simplificada e bastante falsa, podemos fazer referência àquele brinquedo que fiz sobre os objetos, na seção anterior). Lacan apresenta a prova do traço unário na pura marca – encontrada nos achados pré-históricos sobre o osso de um animal –, absolutamente não figurativa, de uma série de tracinhos – os pauzinhos com os quais as crianças contam as coisas –, que não fazem senão marcar o mesmo traço repetidamente, que identifica certo evento, daí nascendo toda possibilidade de se pensar, cardinal como ordinalmente, qualquer possibilidade de número. Então, isso que ficou abandonado no texto freudiano, mas que na verdade constitui seu núcleo, é o que ele vai apontar como sendo a marca originária, ou seja, uma primeira marca, um significante primeiro. E não há outra identificação, a chamada identificação do sujeito, senão enquanto marca, enquanto significante. Vimos tal significante quando um ou vários caçadores pré-históricos juntos, num evento extremamente complexo, caçam um bisonte e fazem uma marca, e de outra vez fazem outra marca. O que tem a ver esse traço figuralmente, imaginariamente, com os bisontes e com os eventos? Nada além de ser traço distintivo da vez. Assim como, para eu me ser – me que nada tem a ver com o ego (o eu, le moi) –, não posso fazer mais do que referência a uma marca distintiva que nada tem a ver com figurações ou expressões, mas que está lá, no regime do inconsciente, recebido de fora, de outrem, nesse confronto intersubjetivo como marca distintiva de eu é, não de eu sou. A diferença é que eu sou se refere freqüentemente a uma formação imaginária egóica, euóica. No traço distintivo, então, Lacan situa um significante primeiro que não pode, sozinho, situar sujeito algum. É o que chama signifiant-maître, que posso

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ler também como m’être, significante mestre ou significante “ser eu”, um Senhor significante ou um significante ser eu. Acontece que, se esse significante é posto de outra parte, vindo marcar a possibilidade de referenciação de um sujeito, ali não surge o sujeito a não ser que este significante que o representa o represente para outro significante, como na repetição das vezes da caçada como tracinho sobre o osso. Um tracinho isolado não se representa a si mesmo, não posso supor que ali haja presença de sujeito, a não ser que surja sua repetição. Se encontrássemos aqui no quadro negro um tracinho, poderíamos supor que se tratasse apenas de um acidente, pois ele nada representa, nem a si mesmo. Mas no que se repete, faço a suposição de alguma “intencionalidade” de representar a vez de alguma coisa que se repete. Portanto, não posso supor algum sujeito que tivesse posto ali os tracinhos a não ser na repetição deles, ou seja, supor que um sujeito ali se representou como intencionalidade de repetição de marca de tracinho para tracinho. É isto que Lacan quer dizer com: “o sujeito é aquilo que um significante representa para outro significante, e não para outro sujeito”. E um significante, giratoriamente, é apenas aquilo que representa um sujeito para outro significante. Não há como sair disso, a definição é circular. O sujeito é impegável, posso reconhecê-lo, defini-lo como representado de um significante para outro, assim como, ao perguntar: “o que é um significante?”, não posso dizer mais do que: “é aquilo que representa o sujeito para outro significante”. Se ele estivesse sozinho, não seria significante nem insignificante, pois insignificante o significante o é. Ou como diz uma piada brasileira: “insigne-ficante”. Ora, o que vai acontecer é que, se o traço unário, enquanto repetição de um traço, é traço de sujeito, posso reconhecer ou supor, pela repetição dos tracinhos pré-históricos, uma “intencionalidade” de um sujeito, uma vigência de sujeito, entre um tracinho e outro – e se posso fazer esta suposição é porque o sujeito ali se dividiu. Neste ponto, acontece que, se não posso situar sujeito algum senão na repetição, como representado de um significante para outro – pois não é para mim que o sujeito se representa, e sim entre um significante e outro, por isso posso supô-lo representado lá e mais nada –, ele é apresentado como

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representado numa alteridade constante: ele é alterofilista – sem h –, não pára de fazer a ginástica da representação, sem o que ele não comparece à sua própria ausência. Ora, não há constituição possível de saber a não ser com o surgimento de um significante segundo que represente o sujeito para o significante anterior. Um significante sozinho não é significante, embora não seja insignificante, não comparece como tal. Na repetição do traço é que ele se constitui como significante no que, de um para outro, representa um sujeito. E é nessa relação – Lacan chama o signifiant maître de S1 –, de representação de um significante para outro, que o sujeito aparece como a escansão, representado de um para outro. Como só pode haver produção de saber a partir de um primeiro significante no regime da representação de um significante para outro, podemos aqui estabelecer a série, por mais infinita que seja, dos n significantes, bastando haver o segundo para que se constitua a ordem do saber.

Ou seja, é no interstício que está a renúncia a gozar enquanto tal. Ela, em sua pureza de significante-mestre, significante ser, está no regime do recalque originário como aquilo sem o que o saber – qualquer saber, para além e para aquém da mais-valia de Marx – não se constitui. É no interstício que o sujeito vai aparecer como escansão, e é daí que vai cair sempre uma sobra, aquela que se representa na proporcionalidade constante – já no regime topológico – e que nos dá a constância do objeto perdido, o objeto a cadente. Na própria constituição do sujeito, em função do traço unário – que, por não ter uma configuração imaginária que o complete, vai marcá-lo mediante

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a repetição –, é o real da estrutura (a impossibilidade de fechar a identidade do que quer que seja) que possibilita a identificação somente pelo traço ou marca, que, no confronto com outros elementos, vai se repetir como diverso de si mesmo. Trata-se de uma alteridade radical, em que significante algum se repete, a não ser no processo da repetição do significante. No entanto, isso não quer dizer que a repetição o repete identicamente a si mesmo, pois só há repetição em sua diferença. Eis o paradoxo de Russell de que falei antes. O significante é alteridade pura, é aquele que, no que surge, se é idêntico a si mesmo, é diferente de si mesmo, e se é diferente de si mesmo é idêntico a si mesmo. A reversão, que já lhes apresentei várias vezes na banda de Moebius, não permite que ele se represente a si mesmo, ou seja, que seja um conjunto que se inclua como elemento. A identificação sobre um significante primeiro, a marca primeira, mesmo que a concebêssemos como um conjunto de elementos fundadores de um traço, ela não se inclui a si mesma como marca. Ela marca para o outro, mas não para si mesma, pois só é reconhecível quando olha para o espelho, e não quando olha para si mesma. Será o S1 reconhecível quando olho para S2? Não, pois também está no regime de alteridade, em que sobra um resto que é pago a menos, seu saber. E ainda que possamos pagar o preço correto dessa passagem pelo recalque originário, há um saber que resta não pago, que é a experiência do surgimento do sujeito: o sujeito não tem preço. Na alteridade radical do significante, no que representa o sujeito para outro significante, poderia apresentar uma série de significantes até a representação do S. Dissemos que não se trata de uma infinitização no sentido quantitativo da série, e sim de um reviramento em que o conjunto não comporta a si mesmo e, portanto, tem uma resposta paradoxal: qualquer série que seja construída, o que está em jogo é a alteridade radical da própria situação de cada significante. É aí que Lacan coloca o regime do Outro, representado por A, que não é senão a alteridade radical nos conjuntos sucessivos de conjuntos que não se comportam a si mesmos.

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Quando Lacan fala no Outro, está situando o regime de alteridade radical do surgimento significante, a cada momento. Não se trata de aritmética, enquanto um saber absoluto, do qual nos aproximaríamos sucessivamente por um trabalho de saber, o que seria hegeliano. É algo que vigora a cada momento do surgimento significante e que não tem tamanho, digamos assim. Do mesmo modo, o objeto a não é o Outro maior ou menor porque o aproximei mais ou menos; ele é sempre, radicalmente, o mesmo Outro, pois não cresce nem diminui por aproximação alguma: é um Outro radicalmente Outro. Aqueles moços, se soubessem disso, deixavam qualquer um votar... Trata-se de uma aproximação constante, como aquela que não fica resolvida no paradoxo dito de Aquiles e a Tartaruga. Será que ele é bastante paradoxal ou sonha com uma aproximação infinitesimal? Não estamos tratando aqui de infinitesimal algum, pois não há aproximação possível, dado que o espraiamento da série não é possível. O Outro continua radicalmente Outro, continua radicalmente o que Lacan chama tesouro de significantes. Se quisermos uma metáfora quantitativa, que nada vale no caso, poderemos dizer que é como se fosse alguma cobra de vidro que perdesse constantemente um pedaço de seu corpo e se mantivesse do mesmo tamanho. O que não quer dizer que ele seja inteiro, pois se o fosse estaria esnobando os outros significantes. Então, há uma falta significante no Outro, tanto é que, por mais que se puxe de dentro do tesouro do Outro, ele sempre está lá do mesmo tamanho e com a mesma falta. Aliás, eliminemos esse negócio de “mesmo tamanho”, pois só foi

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mencionado para ser compreendido. Ele continua sendo o mesmo Outro ou o Outro mesmo com sua falta.  Pergunta – Se abandonamos a idéia do infinitesimal, estamos refutando a própria idéia de limite. Quando apresentei a questão do paradoxo, da franja e do limite, disse que estava espacializando e chamei a atenção para mostrar que não se tratava daquilo, que era uma franja e disse que ela não pertence. Mas se pensarmos na ordem de não pertinência do conjunto a si mesmo, verificaremos que nenhuma resposta exclui a outra. Pelo contrário, suscita a resposta contrária. Foi nesse momento que tentei saltar da idéia de limite para a de radicalidade do Outro, de alteridade radical. Isto que ficou como embaraço na lógica matemática é o que a lógica do significante vai saltar por cima para tentar dizer qual é a lógica que pode dar suporte a qualquer lógica. A lógica do significante não é a lógica lógica, pelo contrário, é aquela que daria suporte a qualquer lógica lógica. É pela eliminação ou pela colocação num horizonte sossegado desse paradoxo que posso pensar toda lógica de Russell, por exemplo. É pela eliminação do paradoxo da indecidibilidade que está na axiomática de qualquer matemática que posso fazêla, essa matemática. Talvez estejamos nos aproximando mais, de um ponto de vista lógico, de pensar que isto que parece uma agressão às ciências humanas, à filosofia, à matemática, etc., do ponto de vista da psicanálise se demonstra cada vez com mais clareza. Esses outros discursos funcionam a partir de um escamoteamento lógico. Eles têm que expulsar o sujeito, que é a prova constante da indecidibilidade. É preciso configurar o sujeito num cogito tipicamente cartesiano, dar uma configuração ao “penso, logo sou” como 1+1, para que seja possível uma matemática, uma filosofia. É por isso que Lacan disse que Hegel foi o último dos filósofos, foi o último que disse que era possível o atingimento sintético de um saber absoluto, ou seja, a compreensão do Outro. É por isso que ele disse que a psicanálise nada tem a ver com a filosofia, com a chamada lógica

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conhecida, ou com as ciências. Trata-se de um discurso radicalmente Outro. Não quer dizer que não tenha seus limites ou que também não seja sintomático. Trata-se de saber como se articula esse discurso. É aí que podemos pensar como pode o sujeito colocar-se também como significante. Lembram-se do nó borromeano, em que dois aros estão ligados sem relação um com o outro? Se pensarmos que o traço unário, enquanto tal, é pensável como coalescência por um conjunto de elementos, podemos escrever, como fez Lacan:

Temos aí S, S, S, na coalescência de um S2, ou seja, fazendo a relação com S2, e a alteridade radical do lado de fora. Posso supor que, já no significante unário, S1, compreendido como cadeia significante, haja um significante entre esses dois, S, representando o significante alfa para o significante gama. O sujeito se apresenta como significante na medida em que é representado de um significante para o outro. Então, vamos surpreender aí a possibilidade de o sujeito se apresentar como significante. Quando olho para a série de tracinhos, nenhum me tira a suposição de um sujeito que vige representado entre um significante e outro, ou seja, da possibilidade de tomar esse sujeito como significante que se representa de um

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significante para outro. E significante entre um e outro traço é a escansão que lá não está traçada, mas que é traço de escansão. Como disse, é um pensamento sempre circular: a lógica da psicanálise, em vez de uma linha reta, que propõe infinitizações, vai mostrar a circularidade dos processos lógicos. Temos aí, então, a chamada relação fundamental por Lacan: a relação de exigência de representação de um significante S1 para um significante S2, para que surja o sujeito como representado. Essa representação, essa relação fundamental, é renúncia ao gozo, é postura de um objeto constante e perdido como mediador possível do gozo perdido, abandonado. Não há possibilidade de se urgir o gozo para o ser falante a não ser pelo desfiladeiro do mais-gozar. Não há revolução alguma, por mais que mude as ordens de troca, que possa eliminar o mais-gozar, que possa excluir o roubo. Sem saber disto, podemos ter a suposição de que basta reordenar as coisas para o homem deixar de ser explorado pelo homem e a coisa ficar ao contrário, como diz Lacan. Em vez de o homem ser explorado pelo homem, ele passa a ser o homem explorado pelo homem. *

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Por que disse que hoje iria falar sobre Máquina-Ímã? Não falei Macunaíma, e sim Máquina-Ímã, o erói sem nenhum caráter. É o jogo de Eros que está nessa Máquina-Ímã, o objeto a, aquela grandeza constante que está lá fazendo com que o objeto morra e ressuscite, fazendo com que se possa dizer de cada vez: “O rei está morto! Viva o rei!” Aliás, não há outra cura, segundo a psicanálise, senão o reconhecimento dessa máquina-ímã, ou seja, a possibilidade da ressuscitação do objeto, “rei morto / rei posto”, como a vigência do desejo. Já que nos equivocamos, tanto eu dando o título, como vocês o ouvindo – o que é muito importante e abandonado freqüentemente na chamada “formação analítica” –, que não se equivoque o que é dito com o barato literário de Mário de Andrade, que, de modo algum, deixa de apontar para o objeto a... Para terminar, citarei o próprio Mário de Andrade em Macunaíma. No período final

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do texto, diz o narrador: “...e eu fiquei para vos contar a História. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de” Máquina-Ímã, o erói de nossa gente. Só que Mário de Andrade termina dizendo que “tem mais não”, e a gente tem que terminar aqui dizendo: tem mais sim! Da próxima vez, falarei sobre certas rãs que coaxam em Pessoa. *

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 P – Parece que, para Leclaire, existiria um elemento não significante pré-existente ao inconsciente. Quando Lacan quer afirmar que “a linguagem é condição do Inconsciente”, Leclaire quer dizer o contrário: “o inconsciente é condição da linguagem”. Evidentemente, Leclaire está errado. Depois que damos uma mancada dessas não podemos voltar atrás. O que quer dizer “a linguagem é condição do inconsciente”? A esse tempo Lacan falava de uma coisa chamada linguagem. Hojendia, diz que a linguagem não existe (“Le langage, ça n’existe pas”). No entanto, o que chamava ele com o nome linguagem? Não é preciso jogar fora o que disse, pois estava chamando algo muito preciso: linguagem. Era exatamente a submissão do falante ao “ser falante”, ao fato de ser falante (estou colocando superficialmente, temos que retomar os textos do Congresso de Bonneval para ir mais a fundo). Leclaire coloca que existe, pronto, fabricado num fiat qualquer, um inconsciente, a partir do qual a linguagem vai se produzir. Lacan já havia colocado que sua hontologia, a lógica da vergonha, é vergonha da falha, pois o que há de ontológico é a falha. Ele não chama de linguagem senão a essa falha, esse buraco, e devemos chamar de língua, ou alíngua, todo conteúdo, todo produto, com o qual se quer arrolhar esse buraco. Não existe condição de pensar o processo de Leclaire, a existência de um inconsciente que seria condição de uma linguagem. O que se constata é

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que existe isso que posso chamar de linguagem, ser falante enquanto tal e, por isso, e por se ser falante é que o recalcamento original vai se dar na produção de um saber. O ser falante, aquilo que é a única coisa que poderia chamar de linguagem, é que produz, nesse recalcamento, os processos do inconsciente, e não o contrário. Por que há inconsciente? Porque há recalque originário. Por que há o recalque originário? Porque uma marca significante vem pressionada pelo tesouro que lá está, sem historial algum antes disto, vem pressionada por fatos de linguagem. Caso contrário, tenho que inventar um inconsciente que nasce de alguma estrutura natural, ou coisa assim, que começa a produzir fala. Não há inconsciente originário, mas apenas uma brecha originária. E daí, o processo de entrada de significante vai estruturar o recalcamento e vai estruturar o inconsciente. Se não, teríamos que pensar uma máquina chamada inconsciente que nasce sozinha, e tudo que bate lá é transformado em produto de fala.  P – Retomando esta questão da “linguagem estruturada a partir do inconsciente” e do “inconsciente estruturado a partir da linguagem”, Derrida diz que o inconsciente estaria estruturado não como linguagem, mas como escrita. Que tipo de diferença teórica há entre Derrida e Lacan? A rigor, não há diferença teórica. Simplesmente, ele se apropriou da idéia de escrita que Lacan havia colocado num seminário, onde mostra que não há condição de estabelecimento do significante para fora da escrita – e é a partir desse ponto que Derrida começa a fazer filosofemas. O significante para Lacan é alguma coisa que se inscreve, está lá sua marca, e é na escrita que ele se coloca, ou seja, o significante é o que se escreve e se inscreve. Para entender melhor, teríamos que tentar abordar o modo como Lacan apresenta o surgimento do significante. Retornando ao traço unário de Freud, há um objeto, e não são figurações ou formas que vão estabelecer a diferença que está lá, inclusive, no jogo do fort-da. O que marca o carretel enquanto presente e ausente? É o significante da diferença entre presença e ausência. O que marca, na diferença sexual, a diferença entre macho e fêmea? Não é o pênis, mas presença e ausência. É a

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marca que se faz que é significante, e esse significante é talho e traço de castração. É apenas a marca dessa escansão que posso tirar. Evidentemente que alguma coisa eu traço, inscrevo, posso escrever esse surgimento entre seu surgimento e sua ausência, é apenas um traço que está no regime do simbólico. Posso ter mil figurações no regime do imaginário para abordar esse objeto, mas, porque sou afetado pelo simbólico, o objeto se estranha a si mesmo, tornase diferente de si mesmo. E só tenho esse traço unário como marca de seu surgimento e de seu desaparecimento, de sua identificação e de sua estranheza. O que resta como significante dessa experiência, digamos, perceptiva? Algo que percebo, no sentido de percepção, que não trago para a escrita, para minha marca, a não ser como apagamento desse objeto, enquanto imagem. Lacan, brincando com a língua francesa, diz que “c’est l’éffaçon”. É a maneira e o apagamento da configuração que vou articular com um traço qualquer e, ao articular essa escolha de alguns traços diferenciais, vou articular com um traço de caráter menor ainda e depois vou escrever esse traço menor. Nesse momento é que estabeleço o significante como escritura pura. Vou fazer uma imagem meio forçada. Tomemos um boi da pré-história, um bisonte, para parecer mais original, embora não o seja. Já que existe o boi Ápis, vamos supor que chame o boi A. Fiz o apagamento da imagem, distingui alguns traços e, em minha relação corpo a corpo com esse objeto, fonologizei A a tal ponto que posso, um belo dia, colocar aquilo de cabeça para baixo, por exemplo, e escrever. Eis a inscrição do significante:

A Isto é que Freud veio mostrar como traço distintivo, traço perceptivo. Eles podem até se formalizar, digamos assim, numa analogia com o imaginário, mas há um momento em que analogia alguma é necessária mais, pois vira um traço, uma letra. Qual é a relação da letra A com o boi? O que tem a ver o nome do boi com o próprio? Nada, não há processo de significado algum. Há uma

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coalescência e um valor de uso, uma prática que vai me dar simplesmente a possibilidade de significância, e não de significado. Trata-se da língua em uso. Mas a língua em si, qualquer língua, que sentido tem? Nenhum, só há sentido de uso. Ela porta o sentido do significante, que é puro não-senso, pura escansão, uma série de facadas no ar. Ajustada sobre determinado uso, é concebida como um valor de troca e, dentro daquele uso, faço algo. No regime da lógica do significante, não vamos cair nas aparências da significação. É por cair nessas aparências que existe a chamada intertrepação, essa coisa que “analista” faz: o sujeito fala e o outro interpreta, fazendo ponto de basta onde não há, explicando qual é a significação do que ele está dizendo. Mas não há significação de espécie alguma. Pode haver um sentido, o que é muito diferente, pois podemos permitir que o sujeito percorra a série para dar de cara com o primeiro significante, S1 – o que é o processo da cura –, para saber que traço está sendo representado de um significante para outro significante. Isto, não para apagar o traço, mas para fazer com que ele fale plenamente. Por isso, a psicanálise nada tem a ver com a psicologia nem com alguma terapêutica de ajustamento das significações da vida de alguém. O que alguém está fazendo não tem sentido de espécie alguma, apenas está amarrado em determinada significação sobre a qual faço insistir um devir hermeneuta. A psicanálise não é uma hermenêutica, é uma hermenáutica: viaja até lá. Então, quando faço a chamada interpretação explicativa, estou dando de presente para o sujeito a minha deliração. E por que a minha há de ser melhor que a dele? Posso urgir reconhecimentos de prisões discursivas, de fala, aonde o sujeito possa verificar que está amarrado aqui ou ali, mas isso não é interpretação. Uma interpretação, como diz Lacan, é absolutamente ortodoxa, é a “opinião correta”, que é aquela que diz a verdade do fenômeno que apresenta o significante produtor da série. Mas os “analistas” acham que têm que sentar e ficar interpretando, ao invés de urgir o jogo mediante o qual o sujeito não vai ter paz. Interpretar é produzir a paz do analisando: isto é isto. E, em vez de acrescentar o conflito para ele poder caminhar, dou a paz, explico que é mamãe...

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que é papai... Confunde-se isso com o jogo de tomar o significante, as séries colocadas do sujeito, para pressionar – Lacan chama isso de le forçage, o acossamento – como se tivéssemos caçando, como se precisássemos imprensar a caça num canto para ela achar a saída. Isso não é interpretação. Posso usar materiais do que o analisando está falando, mas não estou interpretando coisa alguma, só forçando a barra. Mas leram Freud errado e, quando ele forçava a barra, diziam que estava interpretando: “Freud explica”. Freud não explica coisíssima alguma e jamais explicou. Nunca encontrei nos livros de Freud explicação para caso algum. Mostrar, por exemplo, a lógica do Signorelli é explicar alguma coisa? Só mostrou que alguém produziu aquele jogo lógico: metáfora e metonímia. O que isto explica? Nada. Na Interpretação dos Sonhos, ele vai descobrir qual é a lógica que está articulando o significante. Mas o zen já disse há muito tempo que quando apontamos para a Lua, o bobo olha para o dedo. Como Freud teve que burlar o sonho, mostrar todas as articulações para sacar dali a Lua, todo mundo ficou olhando para o dedo dele, para o anedótico do sonho que não vale nada. Qual analista, que se preza, que não sente arrepios se o sujeito conta um sonho e ele não explica imediatamente? A situação já está de tal modo que é extremamente difícil um analista não ser o rei dos babacas diante do analisando quando ele realmente interpreta um sonho. Depois que a psicanálise virou folclore, o cliente vai para casa e sonha para ficar embromando a sessão. Ele já sabe o jogo, ele conta o sonho e o analista explica. Ele não tem que dizer a verdade, pois fica tapeando o analista com o sonho durante dez anos. E vemos como isso funciona quando o analisando pergunta: “o que você acha que este sonho significa?”. Eu digo: “não sei!” Lacan disse claramente não ser possível manter essa técnica idiota de psicanálise que se mantém aí quando o cliente maneja melhor a técnica que o analista. Sobretudo, se é uma boa histérica que não perde uma. Coloquem Hegel no divã para ver o que ele faz... nos embroma o resto da vida, inventando o saber absoluto. Aí vem o tolo e diz que “para analisar Hegel tem que ser um analista excepcional”. Não, porque Hegel também é babaca. É só não querermos bancar o mais babaca que ele.

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 P – Qual é o Outro da Psicanálise? Ao discurso psicanalítico essa questão não se coloca, pois o discurso psicanalítico é o único que surgiu ou que já parte da radicalidade do Outro. Podemos perguntar qual é o Outro do discurso da histérica, que é exatamente o Outro cuja alteridade ela quer extinguir. Mas o discurso psicanalítico não aceita essa questão porque parte dela: da alteridade radical. Se perguntássemos qual é o Outro do discurso psicanalítico, estaríamos fazendo o que não é possível: instituindo a existência d’A Mulher, como Outro do Outro. Com o que, acabei de dizer, não sei até que ponto e com que validade, que o discurso psicanalítico visa a instituição do Outro radical, quer dizer, do feminino puro, porque seria a forma não ingênua do discurso místico.  P – Retomando o paradoxo do barbeiro, responder a esse tipo de pergunta seria descobrir qual o barbeiro que faz a barba de si mesmo por não fazer a barba de si mesmo. Essa é exatamente a postura do discurso psicanalítico. A questão não se coloca, não tem pertinência, porque teríamos que arranjar um Outro mais radical que o Outro em sua alteridade, para poder responder a isto. O discurso psicanalítico não é invenção de Freud, embora o tenha escrito, mas é um discurso antigo que sempre existiu. Lacan demonstra no Banquete de Platão a vigência do discurso psicanalítico na fala de Sócrates, que age como um perfeito psicanalista. Freud foi aquele que escreveu o discurso psicanalítico, o qual pode estar em vigor onde está insuspeitado. Por isso é que não se formam psicanalistas com golpes universitários, com sociedades de prebendas, títulos, etc.

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LUGARES, LETRAS, BARRAS, TRAÇOS Hoje, trataremos de poucas coisas, mas fundamentais para o entendimento da formulação do discurso, que virá da próxima vez. Como disse, vamos considerar “certas rãs que coaxam em Pessoa”. É claro que se trata de Fernando Pessoa, em suas Novas Poesias Inéditas (Lisboa: Ática, 1973), que aliás não constam nas Poesias Completas da editora Aguilar. Na página 79, ele nos dá um poema sem título, apenas com a data de 13 de agosto de 1933 – não sei se terá sido alguma sexta-feira, pouco importa, no caso, para a insistência de destino que soa no poema: Todas as cousas que há neste mundo Têm uma história, Excepto estas rãs que coaxam no fundo Da minha memória. Qualquer lugar neste mundo tem Um onde estar, Salvo este charco de onde me vem Esse coaxar. Ergue-se em mim uma lua falsa Sobre juncais

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E o charco emerge, que o lugar realça Menos e mais. Sempre quis me parecer que Fernando Pessoa tivesse sido bastante lacaniano, antes de Lacan: “Todas as coisas que há neste mundo / têm uma história / exceto estas rãs que coaxam no fundo / da minha memória”. Claro que a questão, em não sendo de história, é de estrutura. Pensem o que pensam os “cientistas da história”, a estrutura não se reporta à história. É possível sim, que as produções da história se reportem à estrutura. Então, essas rãs, que coaxam no fundo do que Pessoa quer chamar de memória, ou seja, nãoesquecimento, não têm uma história, como as coisas do mundo. “Qualquer lugar neste mundo tem / um lugar onde estar”, ou seja, um lugar, digamos, geograficamente conhecido, salvo “este charco, de onde me vem / esse coaxar”, o lugar das rãs, portanto, que coaxam sem esquecimento, no fundo do não-esquecimento. O lugar dessas rãs, esse fundo de memória, que ele coloca como o charco de onde vem esse coaxar, é um não-lugar, atopia do Inconsciente, se não utopia. “Ergue-se em mim uma lua falsa”, seja, um significante que se ergue “sobre juncais”, sobre alguma emergência. Do charco. Lá de onde vem o coaxar indestrutível, não esquecido, das rãs em Pessoa, emerge, diz ele, do charco. E o luar, dessa lua falsa, realça “menos e mais”. Notem que não é nem menos nem mais, mas menos e mais. A lua falsa que, enquanto significante, lá se ergue fazendo realçar menos e mais o charco que emerge pelos juncais é falsa, na medida em que ela não é senão representante da representação. Na medida em que é algo que está no lugar do que devia ser – interessante que ele põe a imagem da lua, cuja luz é sempre reflexo de algum sol. Vejam que estou colhendo o testemunho de um poeta que consegue, de algum modo, dizer o que lá se passa – lá na praça das rãs, no charco. Lá, é absolutamente fora e é apreensível como fora, embora sua topologia, congruente com a banda de Moebius, não imponha nem dentro nem fora. Mas é apreensível como fora, por exemplo, para o sujeito emergente, para o infans que entra na

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linguagem, pois é de fora que vem. Não há Inconsciente algum lá dentro: Inconsciente é lá fora. O Inconsciente não é profundidade. Pessoa fala do fundo da memória, que tem a espessura, em todos os sentidos que quiserem, mesmo a grossura da aparência do sintoma, e não a real superficialidade do Inconsciente. Estou tomando este testemunho para me reportar ao que há lá. E o poema continua: Onde, em que vida, de que maneira Fui o que lembro Por este coaxar das rãs na esteira Do que deslembro? Nada. Um silêncio entre juncos dorme. Coaxam ao fim De uma alma antiga que tenho enorme As rãs sem mim. Ele teria posto esses juncais como emergência que vem junto com a do charco. “Coaxam ao fim / de uma alma antiga que tenho enorme / as rãs sem mim”. É o cúmulo da lucidez e é claro que a alma é metáfora, “que tenho enorme / as rãs sem mim”. As rãs sem mim são as rãs que estão aí, estão na estrutura do Inconsciente e estariam coaxando mesmo sem mim, sem construção figurativa alguma que pudesse chamar de mim – mim reflexivo, que é posição egóica de eu e não posição subjetiva. O sujeito suporta que as rãs coaxem “sem mim”, quem não suporta isto é o ego. O coaxar sem mim, que coaxaria ao fim dessa alma enorme, remete à estrutura mesma do Inconsciente, em suas formações, como lugar do recalcado, do externamente recalcado, como lugar do saber, de onde retiro o que há para elaborar e para engolir, e apresenta a alienação fundamental, irrecuperável. Isto apesar dos conceitos ditos políticos, marxistas talvez, de alienação – que

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Lacan vem retomar – que existe no falante, alienação radical que há na relação fundamental que estamos colocando desde a primeira seção deste Seminário. Alienação que põe o sujeito como radicalmente dividido. Alienação que vige entre o significante unário, aquele que apontamos como advindo de um traço unário que se marca como pura diferença, e a intervenção desse significante no campo do saber, ou seja, nas cadeias que lá estão, nas formações do Inconsciente, lá, no lugar aonde os códigos se instalam, à disposição faltosa do sujeito. *

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Quero aproveitar a oportunidade para tomar um texto publicado com o título de Ciclo de Palestras do Congresso dito Brasileiro de Psicopatologia Infanto-Juvenil (realizado no Rio de Janeiro, 14-18 abril 1976), texto que teria sido palestra de Eduardo Mascarenhas, onde se lê: “O desejo do homem é o desejo do grande Outro, insiste incansavelmente Lacan, tanto nos seus Escritos quanto nos seus Séminaires, o grande Outro é a ordem da cultura, é a séde do código e o lugar da linguagem”. Isto me parece criar uma grande confusão na leitura de Lacan, pois o grande Outro não é a ordem da cultura, absolutamente. Pode ser um defeito de redação, não sei. Mas é preciso chamar a atenção para isto, já que textos assim começam a correr e criam grande confusão, indefinindo a contribuição de Lacan em relação às contribuições como a de Lévi-Strauss e de outros estruturalistas. O Outro, esse que o autor aí está chamando de “grande Outro”, é lugar do código, e não o código que é o lugar do grande Outro, como alguns pensam. O Outro é faltoso. Se o desejo do homem é o desejo do Outro é porque o Outro não é completo, há falta – e isto é fundamental na teoria. Qualquer representante do Outro, digamos, a mãe da criança, no que diz, entrega à criança cadeias significantes e, no entanto, faz passar nessa mesma fala o desejo que lá está inscrito nesse tal grande Outro, desejo esse de que a criança não pode dar conta. A criança se pergunta: “Ela me diz tudo isso, mas o quê ela quer?” Justo

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porque no Outro já há falta, ou seja, porque no Outro o desejo vigora, vai-se propiciar, para o sujeito, a emergência desse mesmo desejo, que é o dito desejo do Outro. Trata-se de uma resposta, de desejo a desejo, de falta para falta, mesmo que a relação inter-subjetiva tente dar conta da falta nessa relação. “De lá” – continua Mascarenhas – “extrai o homem todas as representações que oferecem direção e conteúdo aos seus desejos”. É possível, sim, que as cadeias se apanhem, mais ou menos pré-fabricadas, do lado do código, mas não podemos esquecer que elas vêm faltosas. “Como essas representações contém em si mesmas as aspirações predominantes da cultura, o desejo do homem, porque é conteudizado e estruturado pelas representações sempre tendenciosas, é, até certo ponto, o desejo de sua comunidade”. Isto é confundir completamente desejo com demanda. O que encontramos apontadas são demandas ready-made, pois o desejo do Outro está do lado da falta. Quando lanço mão, na cultura, dos ready-made das expressões ditas desejantes, não estou fazendo mais do que dar resposta à demanda do Outro, e não a seu desejo. Por exemplo, ao desejo das ideologias vigentes, pois é evidente que há um desejo nas ideologias vigentes, só que, disso, elas não sabem... “Por isso, dissemos que o sujeito humano não era” – continua ele –, “como o concebe a teoria das séries complementares, transformado pela cultura, mas era, isto sim, constituído pela cultura”. O sujeito não é constituído pela cultura, está havendo uma confusão com a ordem simbólica de Lévi-Strauss. É um pouco forçado dizer que é constituído pela cultura, pois, de fato, o sujeito é constituído pela alienação radical da relação fundamental – que vem do Outro e que vai propiciar, do lado de S2, a alienação que estabelece a cisão. “Para Freud, fundador de um saber verdadeiramente revolucionário, como nos demonstra Lacan, o homem sendo um animal simbólico, não possui qualquer ética ou moral inata, não possui qualquer sistema, conjunto de valores, não competindo assim discussões sobre a sua índole. Simplesmente porque é da índole do homem não possuir nenhuma índole” – neste ponto já não sei mais o que seja índole –, “estando toda a sua estruturação na dependência do sistema de representações que o atravessa, da trama dos discursos que o constitui.

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Sendo o desejo do homem o desejo desse grande Outro, todos os conteúdos de suas aspirações, sejam éticas, estéticas ou sentimentais, estão determinados pela linguagem circundante, o produtor da ordem da cultura, a massa das significações onde vive”. É outra vez confundir desejo com demanda. O desejo está fundamentado naquilo que é incompreensível, incomplementável, do que vem das cadeias tiradas do Outro. E não, como pensa o autor, um desejo determinado por alguma linguagem circundante, que não seria, no caso, linguagem, mas falas circundantes. As falas circundantes, estas sim, vão determinar formações mais ou menos fixadas. Vão, pelo contrário, dar respostas às demandas do sujeito, o qual vai se utilizar dessas respostas para responder à demanda do Outro. O que Lacan e Freud colocam como a estrutura do desejo não é absolutamente desejo de coisa alguma. Desejo de alguma coisa já não é desejo, mas cristalização de demanda, de pedido, de enunciado. Aí vem a questão mais grave, que tinha que aparecer nesse momento: “Mas se o homem é constituído por esse grande Outro, que é a ordem da cultura” – repete ele –, “onde então ficariam as marcas da nossa individualidade, o ser das nossas diferenças, o espaço da nossa originalidade?” Devo chamar a atenção para o fato de que este parágrafo está absolutamente aprisionado pelo imaginário do Ego. Trata-se de uma questão psicológica, não psicanalítica, pois esta pergunta não cabe ao psicanalista. Não se trata de desvendar a individualidade de ninguém. Aliás, é exatamente o que se trata de dissolver. Essa individualidade me parece mal nomeada aqui, pois seria isso que chamam de ego ou eu imaginário. Conceber que o Outro é a ordem da cultura põe mesmo essa pergunta absurda. Como se coalesce, do ponto de vista das estruturas imaginárias do eu, uma originalidade? Ela não pode existir. Se é determinada por uma ordem de cultura, onde vai entrar algo aí para constituir alguma individualidade? A psicanálise não é a psicologia e não está preocupada com devolver ao sujeito a sua individualidade. O que existe mesmo é a irredutibilidade do sintoma. E se há individualidade, só pode ser a sintomática de base.

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“Para Lacan, os efeitos do processo primário” – continua Eduardo – “sobre o processo secundário, na possibilidade da reorganização lingüística do sistema inconsciente sobre o sistema pré-consciente-consciente, na ação libertadora da metáfora e da metonímia sobre a linearidade dos discursos vigentes” – o autor supõe que está apresentando como vai aparecer esta originalidade – “na transgressividade poética dos processos de condensação e deslocamento, descritos por Freud, sobre a racionalidade racionalista dos códigos lingüísticos da cultura, na capacidade de transgressão à gramática vigente do mundo, na capacidade de sobrepujamento à lógica oficial, por espaço à individualidade e à originalidade humanas... Por isso dissemos que não competia à linguagem transformar o homem, competia ao homem transformar a linguagem”. Aí já não entendo mais, pois a postura que ele está emprestando para Lacan e Freud é uma postura de revolucionário. A psicanálise pode ser subversiva, mas não é, de modo algum, revolucionária. Lacan diz mesmo que revolução só tem um conceito, que é aquele dado por Euclides aos sólidos de revolução: girar e cair no mesmo lugar. Não há a menor possibilidade de pensar, no campo psicanalítico, a questão da transgressão. Aliás, nada melhor que o discurso psicanalítico para apontar que a transgressão não há, já que a transgressão radical seria a transgressão do incesto. E o incesto não é proibido para que possamos transgredir, ele é proibido, porque é impossível. Logo a transgressão não há, já que seria a possibilidade de transgredir a Lei. Podemos transgredir enunciados legais, mas isto não é transgressão da Lei, dado que a Lei tem a dupla face de interdição e de desejo. Assim, o desejo não é uma estrutura solta da dimensão da Lei, pois o impossível percorre a base do discurso psicanalítico e só há desejo porque há o real e porque há o impossível. Então, nessa postura, não se trata senão do discurso da histérica. Ou seja, do ponto de vista da produção discursiva que lá está, trata-se da tentativa de chegar ao acoplamento dos sujeitos. Assim como, do ponto de vista da postura política, é a tentativa de politizar, na exterioridade, o discurso psicanalítico, cuja postura política não é exatamente esta.

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“Cumpre aqui, com o máximo cuidado” – o próprio autor pede cuidado – , “diferenciar-se com clareza a ação transgressiva ao código da atitude de recusa de submissão a esse mesmo código”. O desejo não é submissível ou subsumível a código algum, pois corresponde, exatamente, ao que falta no código. “Desde uma perspectiva lacaniana, quem não ingressa na ordem da cultura, quem não se deixa embeber pela gramática vigente, ou quem, pelo contrário, se reduzir à ordem da cultura ou se degradar até à condição de identidade com a gramática vigente, um e outro não poderão verdadeiramente transgredi-la e não possuirão, por conseqüência, originalidade ou criação. Serão apenas psicóticos”. Também não entendo, já que ninguém mais que o psicótico está absolutamente adscrito, subscrito e expressa diretamente a função do Outro. O que não quer dizer que ele esteja, de modo algum, submetido ao código. Mas significa simplesmente que o Outro fala diretamente, ou quase, e que não há distanciamento disso para o psicótico, aquele que fala a verdade a respeito do Outro. A grande reviravolta que Lacan faz não é perguntar o que é o psicótico – porque isto é evidente, ele é aquele que fala diretamente a partir do Outro –, é sim de perguntar por que nós outros não percebemos que, ao falarmos, somos falados. Por que nós outros supomos ser esse indivíduo desde onde há origem de nossa fala? Eis a questão com a qual Lacan revira a psiquiatria: o espantoso não é que haja o psicótico, mas que haja nós outros. Coisa que não se sabe bem explicar. “Para Lacan” – continuando – “a saúde é um delicado entrelugar. Um fino equilíbrio entre a rebeldia e a sujeição, entre a soberania paranóica e a dependência melancólica. Alguma coisa exterior a todas as formas de relação senhor-escravo”. Não há absolutamente isto em Lacan, ele não procura propiciar saúde alguma. Saúde é um problema médico, adscrito ao discurso nitidamente ideológico da medicina. Existe, sim, um entrelugar que é um outro lugar, mas não há procura de saúde alguma, nenhum fino equilíbrio entre a rebeldia e a sujeição – apesar dos novos filósofos, apesar de tudo isso que está acontecendo na Nova Filosofia. Muito pelo contrário, a constituição de um rebelde não garante alguma vigência de desejo. Pode sim garantir uma vigência sintomática. E por falar em sujeição, é em última instância a sujeição radical, não a alguma ordem

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da cultura que fosse a Outra, mas à diferença a partir do traço unário, do significante sê-lo, à diferença pura, que instauraria alguma libertação. Felizmente, o texto termina dizendo: “...deixemos, por isso, falar Lacan” – citando um trecho de Propos sur la Causalité Psychique que já utilizei várias vezes e gosto de repetir –, “pois o risco da loucura se mede pelo atrativo mesmo das identificações nas quais o homem engaja, ao mesmo tempo, a sua verdade, o seu ser. Longe, portanto, de ser a loucura o fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência. Longe de ser para a liberdade um insulto, ela segue seu movimento como uma sombra. O ser do homem não somente não pode ser compreendido sem a loucura, mas ele não seria o ser do homem se não levasse em si a loucura como limite de sua liberdade”. A loucura como limite da liberdade fica adscrita à constitutividade, à estrutura mesma do falante no que ele porta essa falha aberta em sua essência. Tudo isso é para tentar estabelecer a diferença radical do discurso de Freud e Lacan, e conceber, como vimos da vez anterior, o Outro como o lugar onde está situado, no sentido do situs da topologia, o tesouro dos significantes, as cadeias que lá estão. Isto não é, de modo algum, supor que o Outro está fechado numa completude que se chamaria a cultura. Sem conceber bem isto, não se pode entender o que está propondo Lacan como leitura de Freud. *

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O que já mostrei um pouco foi como se estabelece o que Lacan chama relação fundamental. Há um Outro, incompleto, que ele chama de Inconsciente. A “relação” significante se faz de significante para significante, representando o sujeito nessa passagem e, de certa forma, se não é para pensar em termos de infinitização, pensemos em termos do que Lacan chama de riqueza, de tesouro dos significantes, embora o Outro esteja sempre furado. De lá sempre é possível vir alguma coisa, mas essa coisa não vem senão como algo que faz furo também, pois vem como significante. A falta é constante.

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Retomemos a idéia de traço unário colocada da outra vez. Mostrei como Lacan situa a identificação, tirada de algo que não se leu em Freud, da qual se passou por cima o tempo todo. Freud chama de Einzigerzug, traço unário, dizendo que as identificações não são feitas com alguma gestalt, com alguma configuração apresentada por um outro, mas com um traço. Freud retorna a isto freqüentemente quando, por exemplo, comenta a tosse repetitiva de uma cliente como um traço que a remete à identificação que teria feito com o pai. Ela não se identificou com o pai enquanto configuração, mas se utilizou para esta identificação de um traço, pois é claro que um pai não é uma tosse. O pai imaginário também não era uma tosse. Um traço foi tomado e isto explica o que é esse traço que a cada identificação é tomado. Lacan mostra que, para Freud, a criança toma um traço para sua identificação. Há um significante primeiro, que se pode chamar de significante originário, que será o traço identificatório. Como sozinho não quer dizer nada, não é representação de nada, o traço vai intervir no saber, no campo que está articulado e que vai, de algum modo, chegar à criança. O representante, para a emergência do sujeito na criança, terá que ser um significante unário, traço unário a representar o sujeito para um outro significante. Esse outro significante, assim como o primeiro, só pode ter vindo de um lugar, do Outro, pois não há de onde retirar significantes a não ser do Outro.

Como vemos no lado direito do esquema acima, alguma coisa vai cair como primeiro traço, unário e identificatório, que não pode representar o sujeito a não ser para um outro significante. Esse outro significante, como S2, S3, S4...Sn, pode representar o saber, ou seja, a regionalidade do Outro que o representa.

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Regionalidade é um termo péssimo, pois o Outro não é algo espacial nem quantitativo. O modo de aparecimento do Outro não é senão saber, que lá está constituído como resto. Por isso Lacan, para articular a ordem discursiva, abre mão de escrever o Outro (A) porque, se ali está o Saber, está o Outro representado. Se houver dois significantes, um representando o sujeito para o outro, lá estará representada a série que vem, porque um significante certamente representará o sujeito para o outro significante, e assim por diante. Uma vez a relação fundamental estabelecida, não é preciso pensar em n+k significantes que constituiriam a compleição do Outro. Basta haver um. Por isso Lacan o chama S1, o significante mestre, significante sê-lo (signifiant maître, que também se pode escutar como m’être), e o saber (S2). Saber não é aí configuração sapiente ou discurso exarado, mas é o encaminhamento das séries que estão no campo do Outro. Fundamental é que se pode mostrar onde encontrar o que se chama de recalque originário (o Urverdrängung, que Freud diz que é o ponto de atração de todas as possibilidades de recalque): exatamente em S2, que é o significante recalcado. É o criador da paixão fundamental do homem, como a chama Lacan, que é a ignorância. Por isso, a psicanálise trata de curar a ignorância, e não a imbecilidade. Ela tenta fazer com que o sujeito se despregue – não há outra idéia de libertação – desse saber que não se sabe para poder regressar à sua diferença radical, absoluta, que é o desejo do analista. Não há analista e nada que empreste posição ao analista, enquanto tal, senão seu desejo. E qual é o desejo do analista? É o desejo de estabelecer a diferença absoluta, ou seja, de propiciar, em sua função, pelo discurso psicanalítico, o retorno ao significante unário, o que não é ser coisa alguma. Por isso, Lacan diz não existir psicanálise a não ser a que chamam de “psicanálise didática”. Se a análise o é, se o desejo do analista está em vigor, se a intervenção vem no sentido de propiciar o destaque da diferença, de passagem, no percurso, os sintomas podem se desmontar. Os sintomas de que se queixa o paciente serão “dissolvidos” no percurso, mas isto é apenas o movimento do processo analítico. Então, não existe análise a não ser “didática”, aquela em

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que o sujeito vai caminhar radicalmente para o encontro da diferença absoluta, para o encontro do momento em que ele pode ser eu. Ora, só pode ser eu quem não diz só eu, mas quem diz tu. Não se trata do eu de Dona Anna Freud, nem do reforço de algum ego ou de algum objeto que o sujeito construiu para chamar de si mesmo, e sim do retorno à diferença absoluta aonde uma posição de mestria – que não é necessariamente o Discurso do Senhor – faz com que ele faça a coisa funcionar. E quando fazemos a coisa funcionar não dizemos eu, mas tu. É imperativo. Quando esteve em Nova York, em 1975, Lacan disse que não se deve levar muito longe uma análise para que o paciente não se torne psicótico. Ao analista sim, compete a aproximação rigorosa dessa psicose. Por isso, Lacan diz: “Moi, je suis un psychotique”. Quanto ao rigor, seu percurso não escamoteia a perseguição da diferença absoluta. Assim, quando o sujeito se liberta em sua sintomática, o que faz o analista é deixá-lo ir, se assim quiser, a não ser que ele insista e resolva passar para o outro lado, pular o divã. Alguma originalidade pode surgir (não do sujeito, mas) no discurso, uma vez que há intervenção do significante unário. Uma coisa, é encontrarmos a individualidade, a originalidade do sujeito, outra, é o achado da diferença radical e absoluta. Isto é o estilo, o que não quer dizer campeonato na ordem da cultura, concurso de poesias... *

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O que mostramos, desde o discurso pitagórico, é o que se passa na relação fundamental de S1 para S2, entre o significante mestre e o saber, entre o traço unário e as formações do Outro. Assim, o que está em vigor nessa relação é a morte, ou seja, a vida. A primeira morte com que pensamos nos defrontar seria a morte morrida, mas há uma segunda morte que, de modo algum, vem em segundo lugar, porque é em S1 que vigora. É exatamente o que Freud, em Além do Princípio do Prazer, chama de Pulsão de Morte, em contraposição ao princípio do prazer. Antes que qualquer morte real atinja o sujeito, ele já foi atingido por essa morte.

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Lacan coloca a estrutura da falta, que é de ordem simbólica, como tendo uma base real na sexualidade que, no caso, não é libido. Essa estrutura da própria reprodução sexuada, diferentemente da ameba, que na verdade não passa por morte alguma, inclui a falta. Vamos precisar de A e B num acoplamento qualquer para produzir C, cuja vida resulta desse acoplamento, onde a falta de um ao outro já está posta e onde a morte desses elementos está proposta na própria reprodução, no próprio surgimento do terceiro. É a isto que Freud chama de sexualidade e que faço questão de escrever como Sexão. O que há no falante? O surgimento, num registro simbólico, do real da sexuação, do real da Sexão. Real impossível nos dois sentidos: de ser escrito em sua relação e de não estar lá, sempre. Se a Sexão vai vigorar enquanto Sexão mortal, onde está a morte entre A e B? Está no regime da falta: A falta a B, assim como B falta a A para qualquer manutenção de reprodução. Não há metáfora, pois isto se reescreve no campo simbólico (como, aliás, tudo se reescreve em real, simbólico e imaginário). Assim, o que fica seccionado, o que é sexual, é o sujeito alienado entre S1 e S2. O Sexão vigora nessa representação. Lacan mostra que isso é a estrutura alienante do sujeito: “a bolsa ou a vida?” Nesta relação, temos o que chama vel da alienação. Em latim, vel significa mais ou / ou, ou isto / ou aquilo, mas Lacan vai encarecer outro sentido do termo – que, aliás, é título de uma revista de lacanianos da Itália –, o de nem um / nem outro: fazer nem-nem. No entanto, esse nem-nem não é sumiço, mas quer dizer que nem um / nem outro servem, completam. A psicanálise faz sempre nem-nem.

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Diz Lacan: “a bolsa ou a vida?” Ora, na dialética do senhor e do escravo, se escolhemos a bolsa, perdemos a vida; no entanto, se escolhemos a vida, perdemos a bolsa. De um lado, escolhemos perder a bolsa e a vida, não serve; de outro, escolhemos uma vida écornée, como diz ele – embora não tenhamos o termo, uma significação aproximada seria a de uma vida mutilada, decepada. Nesta dialética está representada a relação fundamental. Lacan, para escapar da histeria de Hegel – que tenta estabelecer uma série que lhe dê tantas sínteses que se possa chegar a uma equilibração no campo do saber absoluto –, mostra, como anti-hegeliano (evidentemente depois de Hegel), que a alienação do escravo é da mesma ordem que a do senhor. Difere apenas porque ao escravo a proposta é: “a liberdade ou a vida?” Se escolhe a vida, perde a liberdade, e se escolhe a liberdade, perde um pouco da vida. Do lado do senhor, é o momento do terror, porque a pergunta é: “a liberdade ou a morte?” Para conseguir a liberdade, o senhor tem que escolher a morte, que não é senão ser absolutamente livre, poder s’être, être maître, poder recuperar a renúncia que está em vigor na relação fundamental entre S1 e S2. Da vez anterior, apontei que Lacan coloca o objeto a como o mediador do desejo humano e chamei de Máquina-Imã. A mediação passa por uma renúncia a ser, momento paradoxal que Lacan indica em Édipo em Colona quando Édipo diz: “É agora, quando não sou mais nada nem ninguém, que consigo ser um homem?” Eis o momento de terror em que, atravessando todo o processo de retorno ao significante mestre, lá não se chega, radicalmente, senão por uma renúncia: é o desejo que agora fala, não a demanda. Assim, tal renúncia é a estrutura mesma da mediação do desejo. Por que Freud falou de análise inacabada, infinita? Que metáfora está ele fazendo? Faltou-lhe uma topologia para dizer isto, como a da banda de Moebius no reviramento. O retorno não é impossível porque permite girar e, se permite girar os discursos, coisa que veremos adiante, é atingido de algum modo. Não se trata de linearidade mediante a qual chegaria à satisfação absoluta em me ser. É, sim, que, justo no que se atinge a posição de ser-se, o giratório é possível. Gira porque não se quer ser mais nada, renuncia-se ao ser.

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Quando alguém quer saber, não é; quem é, não quer saber. Esquecemos de pensar isto que é tão simples. A demanda de saber é uma falta-a-ser e se pudéssemos ser, não iríamos querer saber de nada. Por isso é que caímos tão facilmente no discurso do senhor: o senhor não quer saber de nada, só quer que a coisa funcione. Só podemos escapar do discurso do senhor pelo avesso, pelo discurso da psicanálise. Lacan diz que, em seu seminário, está fazendo a análise de seu “não querer saber de nada disso”. Eu, estou aqui, e quando estou falando, espero que haja analista sentado por aí, pois também estarei certamente fazendo a análise do meu “não querer saber de nada disto”. Não vamos atribuir ao analista psicose alguma, mas podemos dizer que a estrutura é de psicose, pois ninguém melhor que o psicótico dá testemunho do modo de saber, de agir, de falar do Outro. Quando cito Lacan, sou eu que não sou psicótico. Quando Lacan fala, ele é psicótico. Como bom neurótico, cito Lacan, ponho um enunciado e remeto à autoridade dele. Mas quando ele prolifera o discurso que tem a proliferar, em deriva pelas tramas do Outro, ele está num regime que em certo sentido posso chamar de psicótico. Eu é que sou deslumbrado de supor que Lacan seja a origem, a fonte do que ele diz. Mas ele está dizendo ali o quê? O meu desejo, uma vez que para ele sou também parte do Outro. Isto acaba com o mito do autor. O que é um autor? Não é uma pessoa, evidentemente. É um significante, insigne-ficante. Preso ao discurso imaginário, fico querendo o autor concreto, em carne e osso, mas não existe este autor. Existe um sujeito que é loucomovido pelo Outro e dejeta, faz obra, fica obrando... A invocação das musas é absolutamente verdadeira. O sujeito é inspirado. Por isso, é perfeitamente anti-universitário, poético, no sentido clássico, quando Lacan, ou qualquer um de nós, que se não é igual a ele, pelo menos o imita, vai fazer um seminário e diz: “Eu hoje não estou inspirado, vou falar bobagem”. Qual o professor universitário que fala inspirado, que não sabe dar aula, que não sabe o que vai dizer? Todos sabem e sempre dão aulas, sempre preparados, o que é completamente diferente do sujeito estar inspirado, estar

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co-movido, pelo Outro. Já começam a aparecer as primeiras diferenças discursivas. O professor universitário sempre sabe o que vai dizer, sempre tem uma resposta, até quando diz: “não sei, vou pesquisar”. Não se faz filosofia? Está lá o discurso do senhor. Não estávamos habituados a pensar na existência de um discurso psicanalítico, não que ele tivesse sido inventado por Freud, não que não existisse antes de Freud, mas é que não era pensado como tal. Quando Lacan diz que encontramos no texto de Platão a invenção da transferência como conceito, que encontramos em Sócrates uma postura de analista, está dizendo que o discurso psicanalítico sempre houve. Não tinha sido escrito, mas havia sido formulado, pois perpassava a filosofia, o discurso da histérica e o discurso do mestre. O que Lacan mostra é que – estou adiantando um pouco –, mesmo na passagem de um discurso para outro, seja qual for esse discurso, está em vigor o discurso psicanalítico. Na passagem da filosofia para a história, alguma coisa faz vácuo, por exemplo. *

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Estávamos na relação fundamental, que é para ficar esclarecida hoje. Vimos que a Sexão está na dependência da alienação fundamental do sujeito, que também vai ser encontrada entre o ser e o sentido. Se fico com o sentido, como quem fica com a vida, entrego a bolsa, tenho um sentido mutilado. Se prefiro ser, perco o sentido, perco a vida e fico com uma bolsa rica. É nesse momento que vai ser jogado o terror, a renúncia absoluta, que Lacan vai colocar como posição de mestre. A renúncia absoluta ao sentido – foi o que tentei mostrar sobre a obra de arte em Senso Contra Censo – vai colocar a operação de ser. De ser o quê? Absolutamente sem sentido e ser para nada. No entanto, isto prolifera. A obra de arte está no regime da renúncia ao sentido, renúncia à vida, ou seja, está no regime da liberdade. Renunciar à vida não é suicidar-se, pois só pode renunciar à vida quem está vivo.

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O que está em vigor na relação fundamental? Outro dia alguém me perguntava se não poderia pensar na tetrax pitagórica. Dentro da psicanálise, não diria que nada tem a ver com a tetrax pitagórica, pois algo na psicanálise, na tradição, corresponderia à subversão disso: os quatro elementos fundamentais da ordem discursiva. Essa relação fundamental entre um significante primeiro e o saber, ou seja, entre dois significantes que representam, um para o outro, o sujeito enquanto Sexão, partição, alienação e divisão entre essas duas posições. O que sempre se perde nesta Sexão? Temos que nos remeter ao número de ouro. Nessa alienação radical algo se separa e cai. Por isso, Lacan chama de separação. É aquilo que não é nem isto nem aquilo, muito pelo contrário, é o regime da interseção entre a bolsa e a vida, entre ser e sentido: o objeto a.

Esse é o objeto que o sujeito perde constantemente, ou melhor, o objeto que perde o sujeito. A barra que atravessa o $ do sujeito é o traço do tiro; o a,

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ao cair, nos rasga, nos cinde. Aí está o objeto fundamentalmente perdido de Freud, absolutamente lógico. A constituição desse objeto está na dependência de uma lógica, a do significante, onde vige o sujeito como partição, como mero representado e dividido, alienado e cindido entre as duas posições e perdido daquilo que poderia resolver o problema: o objeto a como interseção paradoxal. Quando dizemos “a bolsa ou a vida”, estamos no regime lógico e temos que escolher. Escolha-se o que escolher, estamos alienados a essa escolha, pois de qualquer maneira perdemos: se ficarmos com a vida, ficamos com a vida meio mutilada. A liberdade ou a vida? Se escolhermos a liberdade, escolhemos a morte; e escolhendo a vida, escolhemos uma vida sem liberdade. A perda é constante em qualquer das escolhas. É o regime da alienação, que, em Marx, vai aparecer sempre dentro do discurso do mestre, do discurso do senhor, e que aqui está mostrado como estrutural, como anterior e fora de qualquer discurso apontado. O que Marx chama de mais-valia é o que Lacan coloca como objeto a no discurso do mestre. Marx situa a mais-valia dentro do discurso do mestre, ou seja, na relação senhor / escravo. Lacan parte daí, da relação senhor / escravo em Hegel, aponta o lugar da mais-valia de Marx e mostra que o objeto da mais-valia é estrutural, elemento fundamental anterior a qualquer formação discursiva, que chama de mais-gozar. O termo em francês é extremamente ambíguo: plus-de-jouir, que significa ao mesmo tempo algo a mais a ser gozado e algo que não se goza mais. Significa simplesmente que se trata de algo perdido e que é preciso recuperar. Não há movimento de desejo senão na perseguição do algo-a-mais-agozar e que sempre está perdido. Trata-se de pulsão de morte, em que toda formação de prazer, toda formação discursiva, é sintomática como barreira ao gozo, renúncia a gozar, pois o gozo é morte. Gozar é morrer. Se pudéssemos investir no campo do gozo, estaríamos no regime da pulsão de morte, mas há barreiras à morte, limitações ao gozo, que pertencem ao chamado princípio do prazer. Barreiras à morte: o mecanismo de repetição é um mecanismo mortal. Não há sujeito apreensível senão na partição entre dois significantes. Trata-se do que Lacan chama de “desvanecimento do sujeito”, aquilo que Ernest

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Jones chamara afânise. O sujeito freqüentemente se desvanece nessa alienação, nesse processo da representação e busca da cura e do sentido. Onde vai ele aparecer em sua radicalidade? Na presença da morte, onde aparece como um ser de morte, pois no que estou procurando o sentido, no que estou engajado na cadeia significante, é o sujeito que se desvanece. Retornar ao surgimento do traço unário é algo que faz o sujeito emergir, repete o momento dessa emergência, pois o sujeito estava perdido nas configurações a serem interpretadas, ou seja, nas significações. Então, há que dialetizar, dissolver as configurações para que o sujeito retorne à sua diferença absoluta e, no retorno, reencontre seu momento de emergência enquanto sujeito, partido e alienado. No entanto, o sujeito não é a série das cadeias, mas é emergência mortal. Trata-se, no caso do sujeito, de uma estrutura absolutamente lógica, pois há alguma coisa que está no regime da interseção, alguma coisa que não é possível ser apreendida porque a escolha permanece e a oscilação vai permanecer dialetizável. E este objeto a é perdido e paradoxal, já que não é apreensível nem de um lado nem do outro, mas é algo que cinde o sujeito nessa alienação. O sujeito está lá como letra dessa Sexão; o objeto está lá como letra dessa perda. Então, em qualquer representação de significante para significante, há algo que se perde e algo que se pretende recuperar e isto está presente na série. O movimento do desejo não há senão mediado por este objeto. Por isso, Lacan disse que desejo é pura metonímia. Eis senão quando, o sujeito se estabelece, abandona a metonímia por um instante e se enquista na metáfora, ou seja, no sintoma. Sintoma do quê? Não de qualquer coisa, mas de se sofrer da alienação, porque ela pretende abolir o sentido e nem por isso deixa de ser sintomática: sintoma de sujeito. E mesmo o discurso psicanalítico é um sintoma. No que diz respeito ao saber, ele é aquela montoeira, aquele tesouro. A novidade da psicanálise, como veremos adiante, é posturar o saber no lugar da verdade, para dali poder sacar o que tem para sacar. *

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Por hoje, gostaria que ficássemos com as letras fundamentais com que Lacan vai articular os discursos: S1, S2, $ e a. A relação fundamental de um significante para outro significante apresenta o momento de alienação, de onde emerge o sujeito cindido e de onde aparece o objeto cadente, que é o que vai cindir o sujeito. Aí já se estabelecem quatro letras e pelo menos duas barras. Se lembrarem da proporção de que falamos, x / a = a / b, veremos que ali a coisa está suturada numa proporcionalidade. O que Lacan faz é justamente mostrar que isso vigora na estrutura da lógica do significante: quatro letras e pelo menos quatro lugares e duas barras. Nos quatro lugares, quatro letras vão girar e é das posições que as quatro letras vão tomar sobre os quatro lugares que Lacan mostra todas as possibilidades discursivas. A novidade do discurso analítico, a diferença radical que tem em posição de eixo com relação ao discurso do senhor é exatamente que ele coloca o saber no lugar da verdade. É a partir do que foi tomado do Outro que está a verdade. Qual é a nossa verdade? Tomamos emprestado de fora, do Outro. Mas o discurso psicanalítico coloca o saber no lugar da verdade para conseguir outra coisa. Em outros discursos o saber está em outros lugares, por exemplo, no discurso da universidade, está no lugar do produtor – não confundam a verdade com o real, pois a verdade é um enunciado, um dito. Pode-se dizer que o sintoma diz a verdade, e que nele a verdade fala. Esta foi a grande descoberta de Freud: ao afirmar que o sintoma está dizendo a verdade, em vez de calá-lo, ousou que devemos escutá-lo. Se dermos a palavra a ele, poderemos ouvir a verdade. A verdade não existe, se existisse, a histérica ficaria feliz porque existiria também a relação sexual e A Mulher, logo Hegel teria construído o saber absoluto. Por isso, Lacan pode apontar a sublimidade histérica de Hegel: tentar demonstrar a possibilidade de um saber absoluto não é senão dizer que A Verdade existe, que existe o Outro sexo, A Mulher. Não existe espécie Mulher, existe espécie Homem dividida entre homens e mulheres, mas se posturássemos o Outro radical como existente, isto seria a Outra espécie da nossa.

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A verdade perseguida por Hegel não existe e a verdade psicanalítica existe, ela é dita, podemos apontar para ela, só que ela perde todo interesse no que é dita. Digamos que ela é dita para se perder e se dissolver. Não existe verdade a não ser dentro do dito e quando supomos que haja mentira em alguma parte é porque achamos que poderíamos ter dito a verdade. Além do mais, para o discurso psicanalítico, a mentira não existe, pois é um modo de dizer a verdade. E se fosse possível pensar numa verdade absoluta, isto significaria nos apoderarmos do objeto a e dizermos o real, seria a construção do silêncio definitivo e absoluto. O que a psicanálise vem dizer é que A verdade não existe pelo simples fato de que, uma vez que a representação põe sempre a perda, há sempre uma renúncia a gozar para poder desenvolver a cadeia e jamais teremos a completude. Preso na ordem discursiva, diz-se a verdade lá, aquela que pode ser dita, por exemplo, o surgimento da verdade do analisando. E qual é a verdade do analisando? Que ele é absolutamente insignificante. Só que ele não acha, pois achado isto, seria reduzir-se à diferença absoluta, que não é eu algum. Não estou falando de diferentes, mas sim da diferença absoluta. Esteja onde esteja, é sempre a mesma diferença. Se falássemos de diferentes, viraríamos igreja. Por isso Lacan diz que a psicanálise não é uma religião e criou a comoção do chamado passe, pois a formação do analista na Internacional é um ato puramente acadêmico, que não quer dizer absolutamente nada e é por isso que há tantos analistas... garantidos, quero eu dizer. *

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Já num outro poema, de 15 de setembro do mesmo ano, Pessoa termina assim, depois de falar de um prazer morto: Não sei: a nau do sonho não tem porto E é inútil querer.

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Se isto não tem sentido, as rãs coaxam O sentido que tem. Vou ver se acho nos charcos onde as acham Se afinal sou alguém. Um outro testemunho. Um testemunha o Outro.

01/JUN

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ESTRUTURAS E POSIÇÕES Teremos muita repetição até nos aproximar da abordagem do discurso feita por Lacan. Antes do seminário L’Envers de la Psychanalyse, já havia referências à existência de um discurso sem palavras (un discours sans parole), um discurso sem fala, conforme o uso lingüístico costumeiro do francês, com seu duplo sentido para parole. Assim, para nos aproximar dessa idéia tal como foi matemizada por Lacan, é preciso desconectar a noção de discurso da noção de fala, de proferimento de palavras. Isto não quer dizer que o discurso estaria na independência de qualquer coisa que pudéssemos chamar linguagem, mas nem só de palavras ou de fala vive o discurso. Então, podemos pensar o que seja um discurso sem fala (ou sem palavras), embora articulado no campo de algo que se pudesse trocar por linguagem. O “discurso sem fala” seria a compreensão do discurso como estrutura, portanto necessária e necessitada de algo que pudesse ultrapassar, e de muito, a simples fala, pois esta é algo mais ou menos ocasional. E subsiste em certas relações fundamentais que, diz Lacan, literalmente não poderiam ocorrer sem ser instaurado, pelo instrumento da linguagem, certo número de relações estáveis no interior das quais se pode inscrever algo que vai bem mais longe e é bem mais vasto do que o que está nas enunciações efetivas. O que Lacan propõe são certas relações fundamentais, estáveis entre si, onde se pode inscrever a ordem discursiva para além do que está no enunciado proferido ou nas enunciações efetivamente trazidas e concebidas como surgimento dos

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enunciados. Isto porque não há necessidade alguma dessas enunciações para que nossa conduta – cuidado com este termo! –, nossos procedimentos, enfim, os atos que realizamos eventualmente, se inscrevam no quadro de certos enunciados primordiais que configuram, já que estamos falando de forma, certas aparições no discurso. Lacan, por exemplo, chama o surgimento da instância do supereu como dependendo do que no processo psicanalítico aparece como uma exigência de formação, de conformação do discurso. *

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Das outras vezes, vimos que, na relação fundamental, entre o significante primeiro (S1, significante mestre ou o significante sê-lo) e o saber (S2, enquanto segundo significante), emerge o Sujeito ($). Emergência esta que está exatamente subdita à substituição que aqui foi feita do S2 pelo Outro (A).

Mas o Outro não precisa ser pensado na ordem discursiva enquanto tal, podendo ser substituído na formulação da relação fundamental pelo simples aparecimento de um significante que remete à série de significantes da cadeia e que constitui, em sua intricação, o Saber. Lacan está chamando saber a alguma coisa que é instância de intricamento da cadeia significante já surgida no Outro. Portanto, não precisamos fazer referência direta ao Outro em sua abertura, pois, ao colocarmos um segundo significante do Outro, já acrescentamos que ele está se representando serialmente em toda ordem do saber. Na verdade, o saber, como significante segundo, é o de que está farto o inconsciente freudiano. É preciso prestar atenção para esta virada, se não, nos confundimos. O Outro, radicalmente Outro, como lugar de códigos, lugar das cadeias

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significantes, pode ser representado no nível da formulação pelo surgimento de um significante que remeta diretamente a outro. Basta apresentarmos a letra de um significante do Outro para que o Outro seja representado, o que vem puxar a cadeia significante inteira, pois ele está ali como representante de algo que remete a toda a série. Esta é a noção de significante representante de alguma coisa. Então, S2 está ali representando a bateria significante, a bateria dos significantes que já são encontrados ali. É o que Lacan se pergunta quando tematiza o que seja o discurso e sua matemização, que evidentemente deve ser sobre o discurso enquanto aquilo que é estatuto mesmo do enunciado. Vejam que entramos no regime das possibilidades do enunciado, ou seja, no modo como se apresenta a enunciação, mediante enunciações, mediante aparecimentos de enunciados. Ao lidar com enunciados, podemos situar nos enunciados multíparos e proliferantes certas relações fundamentais estáveis que nos dêem um aparelho escrito, quer dizer, desconteudizado, para podermos destrinchar e situar esses enunciados.  Pergunta – Enunciado seria algo equivalente a esses discursos? Quando, em outros campos que não o freudiano, nos referimos a discursos, estamos nos referindo, sobretudo, a enunciados aprontados e não a essas formulações. Isto é algo que salta aos olhos quando damos atenção aos modos de abordagem do discurso anteriores à teoria de Lacan. É aí que vemos as chamadas ciências humanas. Quando se fala, por exemplo, dos discursos da psicologia, da sociologia e coisas dessa ordem, são todos enunciados diversos do mesmo discurso. Lacan não quer, mediante a análise dos elementos de conteúdo, destrinchar as diferenças dos enunciados, e sim matemizar, formular as relações estáveis e fundamentais que percorrem esses enunciados para neles destacar seu modo de articulação. Então, como esses elementos e relações se situam sobre determinado modo de produção discursiva? Há certo modo de produção discursiva no qual os elementos e as relações se situam de modo diferente. O modo de produção do discurso da psicologia diferirá do modo de produção do discurso da sociologia

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ou da economia? A grande importância do trabalho de Lacan é retirar-se desses modos e fazer o que sempre pediu que a psicanálise fizesse: matemizar, abstrair, desconteudizar, apresentar formulações que não exigissem conteúdos. Isto, para não ficarmos perdidos na conteudização dos discursos ao estabelecer diferenças discursivas. Fazendo uma metáfora mais ou menos válida, seria como se, dentre cálculos aparentemente diversos pelos conteúdos que os compõem, pudéssemos destrinchar a pertinência de determinado movimento calculante à equação de segundo grau, por exemplo. Ora, se consideramos uma equação de segundo grau, podem estar presentes em seu modo de articulação abstrato, matêmico, muitos tipos de cálculo, muitos surgimentos, mas trata-se de saber reduzi-los todos à sua – o nome certo seria este – formação de base. Um discurso sem palavras, então, quer dizer que, se a matemização dos discursos é possível e verdadeira, ele se demonstra capaz de produzir efeitos, mesmo quando nada se enuncia no nível da fala e das palavras. Esta é a grande virada de Lacan. Por isso, surgiram os chamados novos filósofos, em torno de e contra a filosofia. Isto porque aqui vai-se tratar de algo que está prolixamente tratado no campo da filosofia, sem aderir a ele. Ao contrário, desmonta a ordem do campo filosófico. Lacan faz uma intervenção no pensamento filosófico no que pode mostrar, no campo do que aí se estuda como história, como política, relações que não são ditas e não são estabelecidas, digamos assim, para fazer uma comparação com o que Foucault quer operar em sua Arqueologia do Saber, uma análise (não epistêmica) do que não precisa estar escrito, mas que aparece nas configurações institucionais, nas práticas. No caso de Lacan, também não seria uma epistemologia, pois é justamente a posição epistêmica da filosofia que ele critica. Então, através do discurso psicanalítico, Lacan mostra que esses surgimentos – usando um termo ruim – na história são passíveis de ser reduzidos a configurações fundamentais, que são possibilidades discursivas matemizadas e sem conteúdo. São as fórmulas possíveis das configurações discursivas. Portanto, temos enunciados e é preciso procurar seu estatuto para além e para fora de seus conteúdos. Por que, como e autorizado em quê? Se Lacan

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toma a psicanálise, enquanto descoberta e criação de Freud, como capacitada a demonstrar – desculpem outra importação, mas é apenas didático – a estrutura elementar da fala, do aparelho psíquico, e se o falante funciona assim, seus efeitos, suas manifestações, ou seja, os enunciados que ele produz, estarão na dependência dessa estrutura mínima. Falávamos de uma estrutura mínima como surgimento de um significante, ou seja, da importação de uma marca vinda do Outro; de um traço unário que vai se tornar o primeiro significante em seu relacionamento com o saber e as cadeias significantes que lá estão; do surgimento de um sujeito que é interstício, apenas representável de um significante para outro significante. Ora, se nessa relação podemos apresentar uma perda, que é o objeto a, temos uma estrutura mínima de fundação e de surgimento do sujeito dentro da ordem significante. Então, se isso é verdadeiro, há que supor que todas as produções de enunciado, ou seja, todas as enunciações – sempre que falar no plural, significa: produções de enunciado (não se trata d’A Enunciação, mas de enunciações) –, estarão se colocando na dependência do modo como esses elementos, em sua relação fundamental, articulam-se uns com os outros e de quais posições ocupam. É algo com a simplicidade da geometria elementar de Euclides, só que topológico. *

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Uma vez demonstrados os elementos fundamentais e demonstrada a relação fundamental que há entre eles, como se articulam, se posicionam, de modo a dar tal discurso e não outro? Uma vez defrontado com o enunciado, qual é seu estatuto, no sentido de estrutura mínima da relação significante, da relação fundamental? Do ponto de vista da concepção do discurso como estatuto do enunciado, o S1 como primeiro significante, fundado pelo traço unário de que já falamos, é aquele que deve ser visto como intervindo sobre uma bateria significante. Lacan chama a atenção para o fato de que a bateria significante que compõe S2, e que está no campo do Outro, não pode ser tomada como dispersa, pois já é uma rede intricada do que podemos chamar de saber. Isto, ainda que quiséssemos colocar no plural, os saberes.

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Estou tentando agora dar os elementos sobre os quais vamos pensar. Temos que ficar atentos para levantar os modos como as coisas se intricam dentro de cada matema, os modos como os matemas se intricam um no outro, e os matemas girando e se intricando no discurso proferido. Não vamos cair no logro, em que até os mais aproximados alunos de Lacan caem freqüentemente, de supor que certa combinatória pode proliferar sozinha. Daí, começar-se a fazer matemas desvairadamente – o que é blefe. É um cuidado necessário, pois esse aparelho, que é topológico e exige uma marcação de posições a cada discurso abordado, pode, por deliração, parecer que funciona sozinho. É preciso, portanto, abordar os discursos com muita cautela, de modo a poder estar certificado numa prática de que tal matema corresponde mesmo ao discurso que supomos que corresponde. Lacan só apresentou quatro discursos, disse que há outros, mas não disse quais. Sem este cuidado, pode virar horóscopo e nada na teoria que Lacan construiu nos permite ficar brincando com as letrinhas. Só mediante sucessivos estudos, poderemos dar conta melhor da quantidade imensa de coisas que ele trouxe. E mesmo tudo isso ainda está muito precário, en passant. É um trabalho longo. Como disse, a marca do traço unário é um traço identificatório, colhido num determinado momento e é sobre essa identificação primeira que vai se estatuir o significante primeiro. Ora, marcado esse significante, que vai representar o sujeito para outro significante, quer dizer, vai representá-lo para o saber, aparecerá a intervenção de que Lacan está falando. Não esquecer que os indivíduos, digamos, vivos e falantes, são necessariamente concebíveis como diferentes e o traço unário é apanhado em configurações as mais diversas e marcado de modos os mais específicos. Então, a partir do traço primeiro, da possibilidade primeira de significância e, através da tomada desse traço como significante na relação do sujeito emergente com o saber, o que vai aparecer é uma intervenção radicalmente nova. Cada sujeito que surge intervém no campo do saber, pois basta que seja representado como sujeito de seu significante primeiro para o significante segundo, o saber, que está posta a intervenção de um traço unário e diferencial no campo do saber.

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Poderíamos dizer que qualquer sujeito que tomasse a palavra radicalmente assentado em sua marca diferencial teria necessariamente que criar estilo, ou seja, intervenção no campo do saber. É isso que reconhecemos num poeta quando apresenta seu estilo. “O estilo é o homem”, diria Buffon – e é como Lacan começa os Écrits, onde aceita isto, desde que seja o homem a quem nos dirigimos ou a quem se dirige esse discurso ou essa marca. Assim, há a intervenção do primeiro significante no campo do saber, campo que já é em si trançado, tecido e nada dispersivo. Aí está o famoso Sujeito, que é suposto na medida exata em que ele representa o traço específico a distinguir. Nesse momento, poderíamos fazer referência ao indivíduo vivo que vai se distinguir, entrar em significância, ser significante por seu traço primeiro que marca, mas que não é da ordem do estatuto do saber. Vou dizer uma aparente barbaridade – apenas uma importação lateral (e toda vez que somos didáticos fazemos besteira) –, é como se tivesse estatuído a noção de ruído: o sujeito faz ruído no saber, quer dizer, intervém como diferença específica nesse saber que está tecido.  P – O traço é a própria constituição do sujeito? Isto não é pensável, pois a emergência de sujeito é a representação do significante primeiro para o segundo. O traço faz uma espécie de lente, mediante a qual o saber pode aparecer. A intervenção é sempre mediante essa lente. Todas essas coisas são equalizadas nesse momento: o S2 não é senão o saber; o qual não é senão o gozo do Outro; e o Outro, como sabem, é o lugar do saber, do código, ou seja, aquilo que podemos chamar de inconsciente. Não se pode pensar de modo algum no que Hegel prometeu: uma totalização do saber, a completação do Outro. Não há completação possível no Outro, porque há uma falha nele que corresponde à própria divisão do sujeito entre o traço unário e o saber. Mas a atividade do Outro em sua extensionalidade, na repetição que coloca, é o princípio mesmo do gozo, a derivação constante que não se limita e que não pode chegar noutra coisa senão no que Freud chamou pulsão de morte. O princípio de morte é o gozo, essa movimentação, enquanto não estancada, do Outro. Notem que é exatamente aí que vai funcionar a ordem lacaniana. E o princípio do prazer, descoberto bem antes do princípio de morte,

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não é senão aquilo que vem barrar o gozo, que vem impossibilitar ao falante o gozo em sua plenitude de morte. Dito de outro modo, vem proibir que o gozo se dê a não ser pelo regime da parciarização do objeto a. Esta é a estrutura da economia libidinal. O saber, enquanto regionalidade constituída dentro do Outro, não quer senão barrar, limitar o gozo e, ao fazer isto, significa que se salva a vida, ou seja, evita-se a queda incessante dentro das proliferações do Outro. Assim, a deliração plena do campo do Outro seria a vigência do princípio de morte. O que vai operar entre S1 e S2, esse lugar onde se representa o sujeito? Uma certa perda, pois na relação fundamental há o regime reconhecível, mesmo empiricamente, de uma entropia em que sempre uma perda se coloca. Ora, essa perda está na dependência do que Lacan matemizou, algebrizou, como objeto a, que já vimos anteriormente. Nessa perda, que expressa a intervenção do primeiro significante no campo do saber, nesse regime do desejo que é um tropeçamento constante atrás de um objeto perdido (por isso fundamentalmente irrecuperável e deslizante), há uma falta a gozar. Assim, o movimento na série seria o movimento mortal do gozo, mas há uma perda constante que, equacionada nesse entrelaçamento, vai colocar em funcionamento o princípio do prazer, ou seja, vai possibilitar que a falta a gozar possa, no regime do desejo, ser gozo (mesmo em falta). Vamos nos reportar às duas seções anteriores, quando mostrei que não há possibilidade de percorrer o regime do gozo a não ser mediante o objeto que é sempre constituído no regime mesmo da renúncia a gozar, já que essa renúncia não é total, mas parcial. Daí a idéia de objeto parcial. Apesar da inocência de alguns teóricos da psicanálise, não é parcial porque seja parte de um todo ou parte do corpo, mas sim porque só representa parcialmente a estrutura de que faz parte, e não porque seja pedaço de alguma outra coisa. Portanto, no movimento do gozo em falta, ele representa parcial e parciariamente a própria estrutura do movimento do gozo. Assim, a renúncia a gozar não exclui a totalidade do gozo, pois é mediante ela que se goza um pouco – como o instrumento de um gozo que barra e limita a função da morte, ao mesmo tempo que faz prosseguir

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nessa mesma função, sendo as duas coisas conectadas e entrelaçadas. O gozo é possível quando se corre e percorre o deslizamento do objeto, mas exatamente aí, por causa mesmo do objeto, é que o gozo é perdido. Ele representa parcialmente o que se goza (em falta), ou seja, aquilo que falta (a gozar), e é dessa relação que nasce a estrutura do desejo como estrutura da Lei: o desejo deseja o desejo. Assim, o gozo é possível mediante a renúncia, parcial e parciária, dos dois lados. Esta é a instância da falta na estrutura do pensamento de Freud. Ora, a perda radical e original, o objeto fundamentalmente perdido, está situada na estrutura mesma da castração. É nesse ponto que vigora o teorema da castração, que não é senão a necessidade de Lei, que está em jogo no regime da perda parcial, como vimos na vez anterior a respeito do esquema da alienação. Deseja-se o desejo, o gozo é requerido, mas é impossível enquanto totalidade e possível apenas mediante a metonimização constante da perda.  P – Édipo cego em Colona demonstra isso com o reconhecimento, através de uma renúncia a ver, da intervenção do gozo. É exatamente a intervenção da Lei, aquele momento em que está em jogo a Lei e o desejo. Tanto é que Édipo em Colona é imediatamente recuperado pelo Outro, uma vez que aceitou a castração e concebeu a perda.  P – Esta castração seria um outro tipo de produção de enunciado, de produção discursiva? Não outro tipo de produção de enunciado, porque já estava em jogo antes, simplesmente ele não assumiu. Assim, não é que a castração não estivesse em jogo, pois não assumir a amputação é amputar-se plenamente.  P – Não se teria que criar um outro conceito para poder dizer do enunciado que está no vigor dessa parcialização? Pois o que aparece no enunciado é exatamente aquilo que não conseguimos recuperar, a vigência do movimento do sujeito em sua parcialização. Você está supondo que poderíamos produzir enunciado sem essa perda? Não existe enunciado onde a perda não esteja inscrita. Não confundir isto com a imaginarização de querer supor que a perda não está no enunciado, pois a entropia está comendo em todo surgimento. Acontece que nesse gozar (mais-

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gozar), a falta a gozar que está em jogo foi aparentemente suturada e estamos já na ordem discursiva, no discurso que segura o enunciado.  P – A recuperação de Édipo se deu em parte porque a posição dele, através da cegueira, chega a certo tipo de totalização, na medida em que passa a ter um acesso mais direto à divindade, que lhe permite apreender melhor um Real que não através da visão. O que é desvelar esse Real senão desvelar o impossível, dar de cara com a pedra, com a dureza real do Deus? Serge Leclaire escreveu um livro que tem esse título: Démasquer le réel: un essai sur l’objet en psychanalyse (Paris: Seuil, 1971, 187p). Édipo é o teatro montado da castração, a dramatização do que ocorre aí e por isso podemos relativizar Édipo à vontade, pois ele surge necessariamente onde a Lei está inscrita, ou seja, onde a perda está colocada, onde o movimento da relação significante se coloca, onde o significante aparece. Esta é a Lei. A Lei é o desejo. Não confundir a Lei, que está aí vigendo no teorema mesmo da castração, com os surgimentos legiferantes no campo da legislação, que, no entanto, só existem na dependência disto. Por isso, Lacan diz que é estrutural, e não abre mão de dizer que basta deitar o sujeito no divã que ele começa a falar de Édipo. É o teatro que ele tem para dizer a Lei, não há outro. Édipo não é mais do que um mito de referência no pensamento de Freud, pois o que ele está querendo mostrar é a estrutura da castração – e certamente a estrutura edipiana vai aparecer sempre. Ora, quando dizem que há um Édipo africano diferente do Édipo grego, isto é simplesmente mudar de palco, procurar outra companhia de teatro para ler a mesma peça. Afinal, não é a castração que é edipiana, é Édipo que só vigora no teorema da castração. E mesmo falar em castração já é metaforizar, articular o falo sobre a diferença peniana. O que vai se impor até no estabelecimento da diferença do “tem pênis / não tem pênis” é exatamente a estrutura da diferença e a dissimetria essencial. Não há simetria alguma porque falta: uma mulher com pênis jamais será um homem, assim como um homem sem pênis jamais será uma mulher.

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Então, o gozo está permitido no campo mesmo de sua interdição, ou seja, o desejo funciona como Lei e a Lei funciona como desejo, e só se pode gozar pelo mecanismo fundamentador da própria perda. Qualquer gozo conseguido nada tem a ver com alguma transgressão da Lei. Todas as idéias de transgressão podem estar no campo da luta discursiva, mas não no campo da estrutura, onde não há transgressão, mas simplesmente deslizamento no movimento do objeto a. O que seria pensável como transgressão só pode ser obediência à Lei, pois não se transgride a Lei de modo algum. Pode-se tapar os olhos e não querer pensar na Lei, mas qualquer gozo conseguido é legal. É muito legal! Assim, do movimento de perda fica um bônus, um gozo tirado da falta a gozar. Há também aí em jogo um trabalho a mais, que está na dependência do desejo. Uma vez que falta-a-gozar, é preciso um movimento, pois não há trabalho a não ser na ordem significante em função do mais-gozar. A natureza não trabalha, ela é. Nós não somos, faltamos a ser. Então há mais trabalho, mais movimento nas cadeias significantes, em função do mais-gozar: querer gozar a mais e ficar na falta de gozar. Esta é a mais-valia de Marx. Ele sacou muito bem de onde saía o lucro: de um mais-trabalho que vai desaparecer no movimento do desejo. Para se gozar a mais na perda, na falta a gozar, paga-se caro por isso: trabalha-se. E o trabalho pode ser escamoteado no discurso da dominação porque tem que ser pago... naturalmente, por aquele que goza. E não há quem goze mais do que o escravo, ou seja, aquele que se encaminha dentro da série. A partir desses elementos – S1, S2, $ e a –, temos a relação fundamental. O traço unário surgido, importado, marcado a partir de alguma coisa que já foi tirada do Outro (que não está neste regime, porque é uma marca), vai se tornar significante no que essa marca se representa para outro significante que está no Outro diante do saber. Quando S1 se relaciona com S2, ele não cola, e, sim, representa alguma coisa para o segundo. Nesta representação aparece a perda. E essa repetição é o que há de mortal. Nela, algo vai se desvanecendo, pois a entropia come o tempo todo. O significante primeiro se repete no segundo, mas não é o mesmo, ou seja, não é idêntico ao segundo e não tem identidade formal

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possível. O que há é apenas a idéia de repetição. Alguma coisa se perde, há a brecha, fundada pelo objeto perdido, a qual rompe a estrutura, perde-se um pedaço, e vai dar na emergência do sujeito, aquilo que se representa de um para o outro. Aí está a novidade, pois Freud não cai no cartesianismo de querer segurar o sujeito e mostrá-lo. Simplesmente demonstra que ele se representa e não aparece senão como ruptura ou corte. Como Freud não tinha medo da loucura, conseguiu dizer essas coisas, bem ou mal... Então, temos a elementaridade básica que possibilita o movimento do desejo, ou seja, o movimento da Lei, ou seja, a possibilidade de se proferir o discurso, um movimento da enunciação. Temos um significante primeiro (S1) como marca distintiva, traço unário, e o saber (S2) como as cadeias significantes que lá jazem. Desta relação, há ruptura pelo objeto a cadente como perda fundamental e, por isso, há emergência do sujeito aí cindido. Foi isto que Lacan conseguiu arrumar algebricamente ao escrever e apresentar as letras fundamentais. Em toda manifestação de sujeito, de falante, o que está em jogo sempre é essa marca fundamental representada para o saber, representada para outro significante, e, nessa estrutura, necessariamente, há ruptura, que é emergência do sujeito pelo objeto cadente, que é mais-gozar e falta-a-gozar. Lembrem-se de que plus de jouir pode ser traduzido por gozar a mais ou falta a gozar, aquilo que não tem mais a gozar. Portanto, temos o objeto paradoxal, porque causa o desejo, pede gozo a mais, e, como cadente, é gozo a menos: exatamente o a diferente de si mesmo. E nessa estrutura do objeto como diferente de si mesmo está representada a cisão do sujeito: S1 diferente de S2, no que é idêntico, no que é marca repetitiva. Daqui para a frente vamos nos enrascar nesses nomes e letras. Lacan tenta arrumar esses, digamos, elementos fundamentais do falante em lugares que possibilitem a formação, a formulização do discurso psíquico. *

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Darei um salto agora. Vamos para outra região para ver se entendemos melhor. O que talvez não tenham visto ainda é que, se regressarmos à estrutura,

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de que não falei ainda aqui neste Seminário, mas já falei em outros lugares, estaremos lembrados de que Lacan apresentou como estrutura a relação RealSimbólico-Imaginário. Ora, se estivéssemos na vigência da intricação borromeana de RSI, seria a própria folia (pode até fazer um pouco de assonância com a folie, do francês), ou seja, seria o próprio gozo. A coisa vai na direção da morte, mas algo vem barrar, situar, possibilitar que isso fale. E o próprio surgimento da fala, da possibilidade de se falar, vem de um golpe que vai ser dado nesta estrutura, que vai desencadeá-la para reencadeá-la de outro modo. É isto que Lacan mostra em Freud quando apresenta a instância do surgimento do falo. Freud pode não o ter desenhado ou topologizado, mas está claro que pôde escutar na fala da histérica o que amarrava os registros para ela, ou seja, aquilo que lhe dava garantia de transar real, simbólico e imaginário: o sintoma. Ao falante, não é dado gozar. Seu gozo é proibido, interditado, interdito, está nas entrelinhas: há sempre um escorregão no meio. É-se falante na medida em que alguma coisa – e aí voltamos ao Édipo – vai introduzir o significante como representação do sujeito para outro significante. Algo vai intervir como marca e como diferença. (Lembrem-se de que não é preciso historicizar. O fato de apresentarmos uma coisa depois da outra não significa que venha depois). Então, nessa estrutura de marcação, o que está em jogo é o movimento da própria castração. É certa intervenção – que vem da ordem do saber no momento em que o significante, por se marcar, por sua vez intervém no saber – de algo que aponta a perda e põe a Lei. E quem intervém no momento do Édipo é o pai, segundo o anedotário, o teatro ou a cena, como quiserem. O pai que vem cortar relações com o Outro, com a mãe, o saber. Mas Lacan retirou esse pai imaginarizado para mostrar que se trata do Nome do Pai, assim chamado porque não há pai algum em jogo, nem real, nem imaginário: o pai é simbólico. O que é, afinal de contas, o Nome do Pai? É o sintoma que aparece aí como Lei, como desejo, na medida em que a metáfora paterna remete ao que há de menos provável e puramente simbólico, que é exatamente a instância paterna e até real. Como diz Lacan, não há outro pai real senão o espermatozóide,

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o qual não se controla muito bem: pelo menos até hoje parece incontrolável por metáfora. O Nome do Pai é, pois, o surgimento de algo que vem re-modular a estrutura. É o trauma. O chamado traumatismo originário é isso começar a falar, ou seja, a estrutura entrar no regime da fala, poder receber – e não há aprendizagem alguma aí – o golpe, a batida, que transmitirá exatamente alíngua, a fundamentação sintomática da entrada na ordem da fala. Vejam como a coisa vai se especificando. Na marcação, na intervenção do traço unário – que, por sua vez, foi retirado do Outro, pois não havia outro lugar de onde retirá-lo –, na intervenção dessa marca diferencial no campo do próprio saber, no surgimento do sujeito, na queda do objeto a, o que se está instituindo aí é a intervenção do Nome do Pai (Lei/Desejo) mediante a constituição sintomática, que é o momento de fundação d’alíngua. A linguagem não existe, o que existe é um sintoma chamado alíngua, que é a montagem retirada do Outro, mas com a intervenção deste. Portanto, cada sujeito fala uma alíngua, pois não há referência de língua para sujeito algum a não ser a referência de sua sintomática. A lingüística pode encontrar semelhanças imaginárias, articulações lógicas, etc., mas como fundação, a língua é sintoma específico e não há outra referência. Como alguns de vocês viram, foi a brincadeira que fiz ao pedir a alguém que estava na sala de aula na Escola de Artes Visuais do Parque Lage que mordesse a língua. Não podemos morder a língua sem o verbo morder, simplesmente pelo fato de sermos falantes. Aí, temos a concretude dessa sintomática, pois, inclusive, dói... Então, na representação do traço unário como primeiro significante para o saber – não esquecer de que o traço unário não pode não ser da ordem do próprio saber, do Outro –, mediante a perda fundamental, funda-se o sujeito. O que é a Lei aí? Ora, é que há o desejo, há a gozar, há mais a gozar como perda, ou seja, há menos a gozar. Assim, o que está em vigor é a fundação mesma da possibilidade de representação de significante para significante, que está no jogo da Lei, que é a fundação do sintoma, da postura do traço diferencial nesse campo que é o Nome do Pai. Sintoma, no sentido mais concreto, pois não há nada que mais exponha real, simbólico e imaginário do que o sintoma. O

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sintoma se apresenta: no campo do real, vale o corpo; no campo do imaginário, cria fantasia (ou fantasma, como dizem); e no simbólico, articulado a letras. Nessa articulação aí é onde se situa a metáfora paterna, a Lei e o desejo, tudo com a mesma configuração. Dividir esses nomes é simplesmente apontar, no desenvolvimento da teoria, os posicionamentos, mas tudo é estrutural. Por isso que eu dizia ao aluno: “Morde a língua!” Não falamos com a língua? E quando dizemos “a língua”, estamos falando da língua incorporada, sintomatizada. Se mordermos a língua, começamos a falar com dificuldade, ou dói... A língua é um sintoma, por isso não há possibilidade de tradução. Como verter um sintoma em outro? Ora, a especificidade da língua demonstra essa diferença sintomática.

Falávamos, então, de um nó borromeano a três (RSI). É exatamente o golpe, o traumatismo da fundação, do posicionamento do Outro fundando a marca, e, portanto, exigindo a intervenção desta marca, que vai nos dar o nó. (Mais tarde voltaremos a estas nodulações). Nesse momento, é como se a nodulação borromeana fosse rompida e tivesse que ser recuperada. Suponhamos que tirássemos a nodulação, o que teríamos? Teríamos real, simbólico e imaginário separados, e não entrelaçados. Então, se colocarmos um em cima do outro e fizermos uma pilha de imaginário, real e simbólico, como poderemos, para dar a topologia completa da coisa, recuperar o nó mediante um quarto elo, que vai

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fazer esses três se amarrarem do mesmo modo que estavam antes? Se Lacan topologiza concretamente com o nó desenhado acima – os três elos estão completamente separados –, é o quarto elo, o Sintoma ( da figura abaixo, que dá um passeio de tal modo entre eles que os amarra exatíssimamente do mesmo modo, borromeanamente:

Assim, mediante um artifício de recorte, Lacan mostra que, em torno do simbólico, vai-se constituir um quarto elemento que possibilita a mesma amarração. Ele passa por cima do que está em cima, entrelaçando-se sucessivamente, e por baixo dos que estão em baixo. Isto é o sintoma. Notem que ele passa duas vezes por cima do real, duas vezes por cima do simbólico e quatro vezes por cima do imaginário, sendo que uma das passagens é bem por dentro da região do objeto a. Ou seja, finge que tudo é: real, simbólico e imaginário e ainda tangencia o objeto a. E está amarrando borromeanamente, pois qualquer um desses que seja cortado desmonta todos os outros. Essa topologia toda, aliás, fica para um dia pensarmos melhor, pois está indo longe demais em Lacan e cada vez entendemos menos. Aí, então, topologicamente apresentada, teríamos a entronização da ordem significante (da fala, da possibilidade da enunciação) mediante a introdução do sintoma, o qual vai apresentar-se de modos os mais diversos possíveis. *

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Uma vez, então, situada a instância paterna, que se apresenta sintomaticamente, serão possíveis as mais diversas colocações da relação fundamental, cujos quatro elementos em jogo vão se posicionar de formas diferentes nas modalidades de produção dos discursos, ou seja, dos sintomas. Lacan deu uma passada na psicanálise que abrange a proliferação discursiva, que é o que querem chamar de mundo: a multidão dos sintomas, o imundo. Ou seja, aquilo que a psicanálise equacionou como sintoma – e que Marx antes de Freud já equacionara com sintoma –, Lacan vai agora mostrar que é exatamente aquilo que se diz. Assim, os discursos possíveis são os modos de produção sintomática. Daí vermos claramente que, se o surgimento da fala está na dependência da emergência sintomática, não existe possibilidade de abolir o sintoma. Isto tem a ver com o que se chama análise finita e infinita – não é infinita do ponto de vista histórico, apenas não há abolição do sintoma – e com a sublimação, pois é a pulsão, se não o jogo mesmo desses elementos, em torno de algo que se repete como objeto a. E ninguém faz sublimação e exterminação do jogo pulsional. Muito pelo contrário, a sublimação é feita não contra, mas com a pulsão. Sublimação é pulsão bem dita (nos dois sentidos), ou seja, é bem dizer e bendizer a pulsão. Lacan, quando fez isto, inventou a quadratura do círculo: há um círculo que não faz mais do que girar e girar, no entanto, topologicamente, apresenta sua quadratura. Os quatro elementos que estão em jogo na estrutura fundamental do surgimento do sujeito vão se posicionar na ordem sintomática, ou seja, no surgimento dos discursos. É isto que vai decidir o que estamos chamando de discursos em contraposição ao que chamam assim com referência a conteúdos. Trata-se, para Lacan, de apontar lugares para esses elementos e procurar situálos de modo a poder matemizar os discursos. É aí que pode começar o delírio de quem não pensa com rigor...  P – O sintoma tem que estar referido a um desses posicionamentos? O sintoma surge no próprio momento da relação fundamental. Um golpe qualquer atinge a estrutura e exige que ela se rearrume como sintoma, mas esses elementos não têm como surgir assim, referidos a RSI, portanto já surgem de dentro de uma ordem sintomática.

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 P – Como podemos ter a singularidade do sintoma no reconhecimento, por ora, de quatro discursos? Vamos fazer de conta que só existam quatro discursos, apesar de Lacan já ter dito que há mais. Os quatro matemas diriam dos discursos, ou seja, qual discurso está em jogo, e este discurso é um sintoma. Então, se consideramos um sujeito, o sintoma estará dito, ou seja, enunciado dentro de tal discurso, mas a marca ou o traço diferencial é dele. Ele entra na jogada mediante um sintoma, mas não esqueçamos que, a cada sujeito, podemos supor um traço diferencial, só que indiferenciável talvez, pois é significante, e não significado. Não se pode re-historicizar e supor que se achou um significado de base, pois isto entra como significante e pode permitir, por significante que é, escrever a letra que, em algebrização, simplesmente se desconecta de todo conteúdo no campo da formulação. Acontece – e aí está o limite de todo saber, da psicanálise, de tudo – que esse significante é traço distintivo. Não podemos dizer o nome daquela cor, daquela tonalidade, mas ela lá está. É como se o indivíduo abrisse mão de uma possível e eventual diferença significada para entrar na ordem do significante e na ordem do discurso. Só que ele não abriu mão de nada, pois não há nada a significar, é pura marca. Mas não podemos esquecer que, sem falar em personalidade ou individualidade, aquele indivíduo vivo foi atingido de determinado modo, então isso nos lança num paradoxo terrível: ele é diferente e, por isso, igual. Cada um é diferente, mas, por ser falante, essa diferença aparece como significante, e não como significado. É um traço, e nada mais. Foi isto que Freud trouxe e que a psicologia não entende de jeito algum, pois quer achar o significado de base do sujeito, quando, porque é falante, foi destituído da diferença exatamente pela diferença. A marca surge como significante, não tem significado algum, no máximo efeitos de significado. Como surge como significante, entra no jogo articulado da cadeia significante como significante. Falar de personalidade ou caráter é cair num imaginário qualquer. Há uns delirantes na psicologia que ficam procurando o caráter, fazendo cálculos fatoriais para achar a característica da pessoa, mas esta característica é significante, logo, no jogo da cadeia significante,

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poderá significar qualquer coisa. É verdade que também vai aprisionar em algum ponto, aí vindo o tal mito individual do neurótico, a história do sujeito, etc., coisas que é preciso desfazer no trabalho analítico para o sujeito dar de cara com o fato de que ele é significante, o que é o máximo de insignificância.  P – Como se pode falar na predominância de um registro? Num certo momento, o indivíduo está aprisionado por determinado sintoma. Ou ele não tem mil maneiras de cair “historicamente” neste ou naquele campo sintomático? O sujeito está aprisionado num campo discursivo, sintomático. Estou lhes falando há uma hora e meia e já devo ter passado por vários campos sintomáticos, só que não foi pontuado. Quando Lacan lê o Banquete, de Platão, e aponta Sócrates enunciando o discurso psicanalítico, ele está mostrando isso. O sujeito, em sua vida ou mesmo em momentos breves, pode passar por várias ordens sintomáticas. Não atribuam substancialidade ao discurso. A histérica teria obrigação moral de ser histérica o tempo todo? Ela não pode ser analista? A histérica não é histérica o tempo todo. Se o fosse, Hegel não seria filósofo. O analista não pode ser analista o tempo todo, embora seja o que pensam ditos analistas que se formam por aí. Eles se formaram, logo são analistas: substancialmente analistas. Não sei como conseguem... Estamos no regime de atribuir a coisificação de um sintoma a uma personalidade, mas isto é psicologia pura e acaba situando, substancializando o sintoma. Mas o que Lacan mostra é que o sintoma é posicionamento discursivo. Se não fosse assim, o sujeito não saía jamais da histeria, por exemplo, pois seria substancialmente histérico. Aí, recairíamos em Lombroso. O sujeito está aprisionado. Vamos à história do analisando, àquela mitologia toda que nos narra, mas só para ver em que aprisionamento discursivo, em que repetição ele está. A pergunta é: repetirá ele o tempo todo? Se o fizesse, para que serviria a escuta analítica? É preciso escutar justamente porque ele não repete o tempo todo, mas, de repente, repete, e, se estivermos com atenção, ouvimos. Com atenção, quer dizer com desatenção para tudo que diz e só com atenção para a repetição. É por isso que Lacan diz que a interpretação psicanalítica é o avesso de tudo que pensamos que seja interpretação. O

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analisando – que é, antes de tudo, um trouxa – está nos falando e pensando que estamos trabalhando intelectualmente toda sua historinha. Não estamos dando a mínima para aquilo, pois não importa. Ele tem um trato conosco de falar o que pintar e, às vezes, pensa que estamos interpretando. Só que, quando fazemos um comentário qualquer, é pura rasteira para ver se ele cai lá na repetição do sintoma. *

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Como dizia, então, Lacan apresenta os lugares sobre os quais podem incidir os elementos da estrutura. É o que estou didaticamente chamando de modo de produção discursiva. Ele apresenta quatro lugares fundamentais em todo discurso, em todo sintoma, sobre os quais os elementos vão se situar. Notem que é o giratório de uma estrutura sobre si mesma. E a relação dos quatro lugares está explicitada na sintomática de um discurso que já conhecemos, que explicitou esse modo de produção, que é o Discurso do Senhor, tal como mostrado por Hegel na dialética do senhor e do escravo. Lacan mostra que existe um lugar fundamental do discurso que é o lugar da Verdade, o qual é subjacente, e como que recalcado, ao lugar de Agente do discurso. Agente não é o sujeito falante, mas o elemento que põe o discurso em ação. E a posição de agente, cuja verdade está sob ele, suportando sua ação, dando-lhe suporte, faz agir um outro que não o agente. E qual é a intencionalidade na ação do agente sobre um outro suportado por sua verdade? Fazer alguma Produção. Então, Lacan retira toda a trabalheira hegeliana da relação de dominação, da dialética do senhor e do escravo – que não é necessariamente de dois sujeitos, pois pode ser intra-subjetiva (como é) –, e levanta a estrutura do Discurso do Senhor: algo age fazendo, por sua mera ação, sua mera catalisação, outra instância trabalhar para produzir algo. Mas este algo que age, o faz esteado numa verdade que tem que ser necessariamente da ordem do saber.

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Estou apenas apresentando os lugares dos elementos. Falarei melhor da próxima vez, mas repito que estes lugares são introduzidos a partir do Discurso do Senhor, o que já inclui a relação dialética senhor-escravo, tal como encontrada por Hegel, onde há um agente. Quer dizer, o desejo se postura aí, e isto faz um outro trabalhar. Esse outro é o trabalho mesmo, e não o sujeito trabalhante, operário (caso em que seria a dialética do discurso capitalista). Estamos, então, no Discurso do Senhor, que faz o próprio trabalho funcionar enquanto produtor de um produto, enquanto dá como resultado uma produção. E há uma verdade que suporta a posição do agente, a postura do desejo:

Vejam que aí está a relação fundamental do primeiro significante (S1) para o saber (S2). Como sabem, o primeiro significante se chama significante senhor, significante mestre, ou sê-lo; o a se chama mais-gozar; e o $ se chama sujeito. Então, na relação fundamental, S1  S2, a verdade que suporta o surgimento de S1, ou seja, o que emerge da relação fundamental, não é senão o sujeito enquanto dividido, cindido por essa relação. Lembro também que, embora tenha relações com a questão do número de ouro que coloquei na primeira seção do Seminário, este esquema, topologicamente, não tem igualdade ou proporção alguma. Trata-se de um jogo de lugares em que se situa topologicamente a vizinhança desses pontos em colocações diversas. Portanto, não há quantificação. O regime fundamental é de -1, um número imaginário, inescritível, desse traço unário. A relação fundamental S1  S2 representa o que é pura escansão, emergência do sujeito. A verdade que aí está é a verdade dessa cisão, suportando o surgimento de um primeiro significante, que, surgido, poderá se representar

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junto a um outro significante. O que se produz como resto – nos dois sentidos, de algo que se perde e de algo que sobra (e por isso é mais-gozar nos dois sentidos que coloquei) –, como cadente dessa relação é o mais-gozar, o objeto a. Vimos, então, acima, a estrutura e aqui a temos posicionada já em discurso, que podemos balizar em Hegel como o Discurso do Senhor, que é o posicionamento de sua diferença específica no lugar do desejo como agente fazendo trabalhar o outro. O trabalho que há nesse discurso é do saber, do campo do Outro, para produzir a mais-valia enquanto mais-gozar. Ora, isto aí é de morrer de rir, ou de chorar, pois o que quer a sintomática chamada Discurso do Senhor é suturar essa coisa, apossar-se realmente do mais-gozar, da mais-valia. Mas acontece que está em jogo aí uma impossibilidade, já que o significante mestre não pode fazer trabalhar o trabalho e apoderar-se da mais-valia por inteiro. Isto porque, também para ele, a mais-valia é maisgozar. Ou seja, sua verdade é que ele também só tem emergência por causa de uma cisão, também há perda, como Hegel demonstrou. O escravo, por sua vez, está do lado do saber. Quem goza mesmo, ao contrário do que pensam certos discursos, é o escravo. Só há gozo do lado do saber, que é onde está o escravo. O senhor, este, não quer saber de nada, só quer que o negócio funcione. Ele rouba o saber do escravo, mas não quer saber. Por isso, Lacan diz que a tal pulsão de saber, o desejo de saber, não leva a saber algum. Não há desejo de saber como tal, ou seja, não há desejo de saber como saber, e desejar o saber é querer apoderar-se da mais-valia, do mais-gozar. O desejo de saber nada tem a ver com o saber. Saber é o que se tira dele. Há uma relação desta questão com a autenticidade – palavra tão desmoralizada hoje – do percurso. Ou se está, ou não se está no saber. Se desejamos saber, não podemos desejar o saber porque não sabemos que saber é. Só quem está no saber é que sabe. Assim, desejar o saber é desejar o lucro que o saber poderia dar se o explorássemos, se o escravizássemos. A pedagogia é que se regala com a imbecilidade de suscitar o desejo de saber do outro, mas, na verdade, a tal motivação pedagógica é o sujeito começar a desejar exatamente o que nada tem a ver com o saber. O sujeito não deseja saber, e sim deseja os

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efeitos produtivos desse saber. Pode ser que, de tanto desejar os efeitos, eventualmente caia na região do saber, mas não há garantia de espécie alguma. Está aí a Universidade para provar que não faz nada disso, não suscita saber de ninguém, só suscita diploma. *

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Como vimos, então, Lacan constitui sobre os quatro lugares que apresentamos o que chamou, no seminário L’Envers de la psychanalyse, de Quatro Discursos. Ele parte do Discurso do Senhor, maître, e mostra a rotatividade dos discursos, coisa que já havia introduzido no texto de 1962, Kant avec Sade, publicado nos Écrits. Escreve ele lá que está fazendo a rotação de seu esquema em Z. É uma rotação não imaginária, mudando o posicionamento e os lugares do esquema. Foi a primeira vez que ele chegou perto disso e retoma neste seminário. Como estamos no campo da topologia, a relação é a mesma, mas, mudando os lugares, aparece outra configuração. Notem que Lacan separa a parte conteudística da parte formalizada. Se mudar a posição, muda a configuração e todos os efeitos. Nos efeitos, já entramos em outra instância, que é onde se incluem os conteúdos. Como a estrutura fundamental permanece, isso se posiciona, se formaliza, toma forma, topologicamente, de acordo com a posição relativa, de acordo com os lugares que ocupa. Aí, estamos no regime da fundação dos discursos, ainda não se tocou em conteúdos. É sobre os posicionamentos que os conteúdos vão entrar. O agente, o outro, a produção e a verdade recolhem o sujeito, o objeto a, o saber e o significante mestre. É a rotatividade da própria estrutura sobre si mesma. Topologicamente, vamos dizer que estivesse inscrito num certo lugar, depois sofre uma torção e, de acordo com essa torção, as configurações, os posicionamentos, as deformações aparecem. Só há rotatividade de posições, onde discurso algum, nem mesmo o Analítico, é metadiscurso de outro. O Discurso Analítico é apenas um discurso e, por isso, mantém sua ordem sintomática. Portanto, a análise é impossível.

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Freud disse com todas as letras que era impossível governar, educar e psicanalisar. Só não disse um dos discursos que vai aparecer aqui: fazer-se desejar é impossível, que é o desejo da histérica. Então, por rotação, vão surgir os quatro lugares e as letras sobre esses lugares. Os lugares – do agente, do outro, da produção e da verdade – são os mesmos, não mudam. São as letras que vão trocar de lugar e fundar a sintomática. Basta começar a fazer o balé aí:

Temos, então, os Quatro Discursos: do Mestre, da Histérica, do Analista e da Universidade (Discurso da Universidade e discurso pedagógico são a mesma coisa). Vejam que há uma relação de plena inversão entre o primeiro e o terceiro discurso: o Discurso do Mestre é o avesso do Discurso do Psicanalista. Assim como o Discurso da Universidade é o avesso do Discurso da Histérica. No discurso psicanalítico, a verdade está posicionada no lugar devido. O que aí está no lugar da verdade é o saber. Não foi esta a questão que Freud se colocou diante da histérica: quem sabe a verdade senão o Outro? Quando o analisando supõe que o analista sabe, é mera suposição dele. Evidentemente, num certo momento, o analista vai dar uma de mestre e roubar o analisando no saber que ele tem. Aí, passa para o lugar do analista e coloca esse saber no lugar da verdade. Mas é preciso, para que a análise comece, que o analisando, em sua babaquice fundamental – não porque ele seja o único babaca, pois todos os discursos são babacas –, coloque o analista na posição de quem sabe. Não há outra suposição para começar uma análise. É quando esta suposição é

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feita que a transferência aparece. Foi este o grande golpe de Freud: ele era o sujeito suposto saber, Dr. Freud.  P – Os discursos são todos impossíveis? Não é que sejam impossíveis de serem proferidos, e sim que esbarram e sempre estão jogando com o impossível. Ocorre que o impossível nem sempre aparece como tal. Por causa da rotatividade dos lugares, a histérica, por exemplo, jamais, de dentro de seu discurso, vai supor a impossibilidade. Ela dirá que é impotência, que “não conseguimos ainda, porque não temos todos os elementos”. É a impotência de Hegel de precisar de toda a história para fechar o saber absoluto. Ele não diz que é impossível, e sim que vai fechar no terminal da história. É o discurso da psicologia quando diz que o sujeito descobriu mais uma coisa, que vai poder ajustar todo mundo, só ainda não tem toda a potência. É o discurso da ciência em geral, que tem muito a ver com o da histérica, pois está sempre supondo que é possível totalizar o saber sobre seu objeto, só que tem certas impotências. Isso, aliás, está na frase do cotidiano: “O homem não descobriu ainda, mas vai descobrir”. Vai descobrir que ele não consegue. A única coisa a descobrir é que é impossível. Não há nada mais a descobrir.

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A QUADRILHA O momento é oportuno para fazermos uma primeira entrada na giratória dos discursos e para esclarecer, sobretudo, pontos das seções anteriores que ficaram mal compreendidos. Aqui estão os quatro discursos tais como escritos por Lacan, o que eu chamaria de a quadrilha, em todos os sentidos, mesmo porque ela se dança:

A partir da relação fundamental, da intervenção do significante unário (S1) no meio e no campo do saber (S2), vai aparecer a relação a quatro que mostrei da outra vez: a cadência, o tombamento do objeto a e a cisão do sujeito ($) como representado partido entre um significante e outro. É essa, digamos, a estrutura elementar da ordem discursiva, sua relação fundamental.

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Falando de lugares, temos: o agente do discurso, a verdade que o suporta, o outro, aquele que trabalha para a produção desse discurso, e a produção, aquilo que o discurso produz ou tenta produzir. O desejo no discurso está posturado pelo agente, e podemos chamar a isso, segundo Lacan, de dominante do discurso. O sentido é um pouco ambíguo, na medida em que, no Discurso do Senhor, é lugar da mestria, do significante primeiro, e no sentido musical também da dominante de uma tonalidade. Não se trata aí do sentido de dominação, mas do sentido de correspondência àquilo que, no Discurso do Senhor, é o significante mestre. Como coloquei da vez anterior, não podemos esquecer que, nesse regime da ordem discursiva, estamos em cheio no campo da sintomática, no sintoma. As possibilidades de produção de enunciado se dariam sobre essa constelação de discursos, os quais são, por si, isoladamente, constelações ou elementos primeiros. Assim, as possibilidades discursivas se prendem ao posicionamento que os elementos têm na constelação dos lugares. E isto é estar na produção do enunciado, na dependência do sintoma. A rigor, não há possibilidade de pensar um discurso que não seja pertinente à ordem sintomática, embora nem toda produção sintomática seja da mesma ordem. Sintoma significa, no regime originário da estrutura sintomática, o que Lacan chamou Nome do Pai ou metáfora paterna. Temos duas maneiras de ler o sintagma “metáfora paterna”: o Nome do Pai como metáfora do pai, e também como metáfora-pai. O modo de produção da metáfora é sintomático. A metáfora é o sintoma, assim como a metonímia é desejo. O relanceamento de elemento para elemento, de objeto para objeto, a passagem mesmo de significante para significante não é senão a metonímia, ou seja, o movimento do desejo. Entretanto, nada se diz na pura ordem metonímica. Não há como isolar a metonímia da metáfora em qualquer ordem de dizer. Esta bidimensionalidade e sua superfície – da diz-menção ou diz-mansão – é articulada sempre em dois eixos: metáforometonímico. No campo da alíngua o que vige é o sintoma. A língua materna é aquela que diz o Nome do Pai. Ou seja, não há produção de língua fora da ordem sintomática. Alíngua do sujeito é língua mãe na medida em que transmite o Nome do Pai e que diz fundamentalmente o sintoma.

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Essas pequenas correlações, que poderão ser feitas depois em outro nível, inclusive comparando com a lingüística, etc., são necessárias para compreendermos o que está se passando na articulação de Lacan. Como mostrei da outra vez sobre o nó borromeano a três, não é possível que ele fale enquanto estrutura fundamental sem que se marque o privilégio de um significante primeiro, fundador portanto de sintoma. A estrutura não fala a não ser pelo recalque originário, onde o que tem surgimento é a ordem sintomática. Não fosse isso, chegaríamos a qualquer coisa sonhada (com todos os sentidos de sonho) pela pseudopsicanálise que pretende ter o mesmo discurso da ciência e achar A Verdade do discurso. Só que esse A é barrado, não existe.  Pergunta – Pode-se fazer novos sintomas em cima dessa estrutura sintomática? Topologicamente, nada existe no nó borromeano a três que qualifique algum dos elos. É preciso marcar um nó, colori-lo para fazer isso, pois eles não têm algo que os distinga. Embora sejam registros diversos, nada os distingue elementarmente. Com a soltura da cadeia, o que vai recuperá-la borromeanamente é um quarto elo, sintomático, que entrelaça os três elos separados. Ora, isso vai surgir no campo do trauma e do recalcamento como alguma marca. A partir dessa marcação, desse Nome do Pai, que aí entra como metáfora, o sintoma, o quarto elo, no fundo, faz metáfora do nó. Ao fazer assim, possibilita-se metaforização e daí para a frente nada se fala a não ser no regime da metáfora. De cada vez que se fala, que salta, está-se metonimizando. Se pudéssemos imaginar o impossível da fala de um nó borromeano a três, seria a fala absolutamente louca, biruta, pois não constitui língua. Não existe esse negócio chamado “linguagem”. Quando Lacan diz que o inconsciente funciona “como uma linguagem”, é mera suposição de que sua sintaxe corresponda de algum modo a essas coisas que aparecem como línguas, como articulações. Mas não existe a linguagem, existem sim línguas e uma sintaxe do caso: as coisas se articulam. Há uma sintaxe de base e, mediante a entronização do Nome do Pai, mediante o surgimento do sintoma, do significante

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primeiro, etc., vão aparecer línguas. Por que cada língua é intraduzível na outra? Porque é um sintoma específico. Então, traduzir é metaforizar sempre. A relação não há. A psicanálise não promove nenhuma teoria da comunicação. É preciso esclarecer bem estes pontos, se não, recaímos no pensamento metalingüístico, na suposição de que há A linguagem, que há a teoria da língua, etc. O que a psicanálise vem demonstrar é que isso não existe. Nesse ponto, está perfeitamente de acordo com Wittgenstein, que demonstra que nada acontece fora do dito, do enunciado. *

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Lacan, então, trata do posicionamento dos elementos que pôde escrever, ao dar letras numa matemização básica sobre os lugares do modo de produção dos discursos. O que é o agente? Sobre que verdade ele se apóia? O que ele faz trabalhar? Para produzir o quê? São todas questões que se referem a esse modo de produção, que, embora não seja da mesma ordem quantitativa, tem a ver com o pitagorismo da média e extrema razão. Se pudéssemos tirar o sinal de igualdade para evitar a quantitatividade ali posta, estaríamos tentando a média e extrema razão da ordem discursiva. Retirando-se o quantitativo, podemos pensar apenas na tópica, na topologia do processo. Daí, ele vai construir a ordem giratória sobre os lugares no modo de produção para mostrar que os mesmos elementos, em sua relação fundamental, constituem toda e qualquer possibilidade discursiva. O que acontece é uma troca de lugares, onde as coisas todas se rearticulam. E, segundo essa orientação, não se trata de ler os discursos, como disse da outra vez, segundo os enunciados, as aparências de sua diversificação, mas, sobretudo, de poder perceber em todas as manifestações, até sem palavras, onde estão os elementos situados nesses lugares e no modo de produção. Lacan começa com o Discurso do Senhor e a dialética do senhor e do escravo. Como está evidenciado na fórmula, escreve-se este discurso pela colocação do significante primeiro, o significante mestre – direi sempre

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significante mestre, pois não temos uma palavra que signifique ao mesmo tempo mestre, senhor, dono e “ser-me” –, aquele da fundação, da possibilidade da fala do sujeito segundo uma ordem sintomática. É, pois, o significante mestre que vai ocupar o lugar do agente e dar a dominante da entonação da cançãozinha do senhor. Ele se apresenta para fazer trabalhar o saber. Nada indica que o saber se saiba. Ele é apenas saber, mas não se sabe como tal e vai trabalhar sob a égide do senhor, do significante mestre, para produzir o mais-gozar enquanto aquilo que cai como resto, ou seja, algo que falta a gozar e que, portanto, é requisitado como mais gozo. É no Discurso do Senhor que o a, como mais-gozar, toma a posição exata da mais-valia do discurso de Marx. Ou seja, o que em Marx é mais-valia, no Discurso do Mestre é mais-gozar. Todos já pediram, eu mesmo pedi pessoalmente, para Lacan escrever o discurso do capitalista, que até citou, mas não quis escrevê-lo, porque acha que a possibilidade de escrever o discurso do capitalista é a de escrever o discurso do mestre moderno, como ele chama.  P – [Pergunta sobre o capitalismo, tal como desenvolvida no Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari]. Tudo que Deleuze colocou em Anti-Édipo saiu direto dos seminários de Lacan. Quando ele coloca o discurso do esquizofrênico, quer saltar fora da ordem discursiva, que é sintomática, e vai por um rizoma, como chama. O que simplesmente não entendo é como Deleuze vai estabelecer um discurso que possa estar fora da ordem sintomática.  P – A metáfora paterna acontece em cada discurso especificamente? Sim, e o próprio discurso, enquanto produção, é metáfora também.  P – Então, continuamos sob o antagonismo de micro e macro? Não há micro e macro. Se houvesse, teríamos quantificação. Considerem um holograma, se o cortamos ao meio, ele continua do mesmo tamanho, se o partimos novamente ao meio, a quarta parte fica do mesmo tamanho do inteiro. Então, não pode haver micro e macro, porque a estrutura é hologramática. Quer dizer, a lei de composição coloca que o somatório não faz todo e que a parte continua tão faltosa quanto a inteireza da foto, digamos assim.

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 P – Esta aproximação entre o discurso do capitalismo e o discurso do mestre não é arbitrária? Todo capitalismo é arbitrário na medida em que é preciso o Discurso do Senhor para fazer essa arbitração. A casca de banana é exatamente essa: saber em que momento caímos no outro discurso, dado que não falamos dentro de um registro sabendo o tempo todo o registro em que estamos. E de tanto girarmos na quadrilha, a idiotice desponta de novo, pois isso aqui não é promessa de salvação alguma. O Discurso do Senhor vai nos apresentar, primeiro, que não é preciso absolutamente que o senhor imponha ao escravo para que ele se escravize, basta que ele seja senhor (e quando falo em senhor, não me refiro apenas à dialética intersubjetiva ou interclasses, pois na fala de um sujeito isolado está esse mecanismo em vigor). Ou seja, basta que se faça sinal de mestria para que o escravo comece a trabalhar. Antes de tudo, há o consentimento do escravo. Segundo, supõe-se que o privilégio do gozo é do senhor, mas quem goza é o escravo. O senhor não sabe de nada e nem quer saber, pois não é de seu interesse saber. É um engodo em que se cai freqüentemente na dialética do senhor e do escravo supor que o senhor queira saber. O que ele quer é que a coisa funcione, portanto, quer se apoderar, roubar ao escravo o resultado desse saber. O desejo de saber nada tem a ver com o saber, é diretamente desejo de apropriação do mais-gozar. O desejo de saber não leva ao saber, o que leva é a escravização. Assim, o desejo de saber, se existisse alguma pulsão epistemológica ou epistemofílica, seria a pulsão de apropriação do resultado da episteme produzida no saber do escravo. O gozo é função, privilégio do escravo. E uma episteme, desde que foi elaborada no discurso grego, não é senão certa técnica artesanal do escravo que é apropriada pelo senhor. A transmissão de um saber de escravo para senhor não é necessariamente uma relação ao saber, mas apropriação para usufruir do maisgozar. São os príncipes da cultura, os que estão na universidade, etc. Quando, por exemplo, ouvimos falar em interesse nacional do desenvolvimento da cultura, da ciência, isso é conversa para boi dormir, pois, do ponto de vista do senhor, só

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interessa o mais-gozar que vai sair daí. Para falar português correto, o que se quer é o lucro. Assim, o desejo de saber, que nada tem a ver com o saber, apenas faz motivar o Discurso do Senhor na tentativa de produzir mais-valia. Ele não motiva a produção do escravo. E, segundo esse mecanismo, o senhor só sabe que quer, mas não sabe o que quer. Se soubesse, seria escravo. Ocorre que a simples aparição do significante mestre no lugar do agente, sem forçar nada nem ninguém, se faz trabalhar o saber no lugar do outro (o outro do significante mestre) para produzir o mais-gozar, não consegue suturar esse discurso. Isto pela simples razão de que a queda, a perda constante a recuperar-se na mais-valia, ela própria faz cindir aquilo que suporta a verdade do senhor. Ou seja, o sujeito enquanto cindido é o que está por baixo da ação do significante mestre no Discurso do Senhor, impossibilitando que a relação fundamental funcione em sua completude. Por isso, Freud disse que governar é impossível. Se fosse possível, se a verdade do senhor não fosse a cisão do sujeito, ele poderia simplesmente excluir a verdade – e o senhor freqüentemente se apresenta ocultando a verdade – e faria trabalhar o escravo, o outro, para a produção de seu lucro. No entanto, há algo que retira o lucro do senhor e que não está em nenhuma revolta do escravo, e sim na própria estrutura desse discurso: a verdade, que aí está oculta, de que o sujeito mediante o qual se exprime esse discurso é um sujeito partido. Esta é a constante operação do senhor para tentar recuperar o objeto a enquanto produção, ou seja, enquanto mais-valia, mais-gozar. *

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A seguir, Lacan apresenta o Discurso da Histérica. Sempre coloco a histérica no feminino – em francês, a coisa funciona melhor: hystérique é neutro –, pois afinal não podemos esquecer da história da histérica na psicanálise. Nesse discurso, as coisas sofreram uma rotação: são os mesmos elementos apenas posicionados um quarto de círculo depois. Temos aí, no lugar do agente, do desejo, o sujeito; no lugar do outro, o que trabalha para produzir é o significante mestre; o produto é o saber; e a verdade que suporta o agente é o objeto a.

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Mudada a situação dos elementos, eles não têm mais a mesma postura que tinham no outro discurso. O sujeito no lugar do agente no Discurso da Histérica é aquilo sobre o que ele se esteia: o sintoma. O sujeito histérico é o sintoma que age, que domina, no sentido de dominante da tonalidade histérica, o modo discursivo fazendo trabalhar o que a histérica não sabe que é – que ela é –, a sua única possibilidade de mestria: não querer saber. A histérica quer saber das coisas, ninguém quer saber mais das coisas do que ela. Basta perguntar a Hegel. Então, o trabalho vai ser a agitação do significante mestre, que está ocultado. O que vai se produzir na fala da histérica? Todos que deitam no divã são histéricos. Se não são, terão que ficar, pois a psicanálise é a histerização do sujeito. Então, no começo de qualquer análise, trata-se de produzir uma histérica que fala e, no que fala, produz saber inconsciente. Os remanejamentos são outra coisa. Ela vai se defrontar com o Discurso do Analista, que lhe é, digamos, simétrico (especularmente por um dos eixos) e não avesso (o avesso do Discurso do Psicanalista é o Discurso do Senhor). A histérica, portanto, a partir de seu sintoma como agente da produção, vai falar fazendo trabalhar o S1 para poder produzir o saber. Acontece que a histérica também faz um rebaixamento da verdade, ocultada sob a primeira barra. No lugar da verdade está alguma coisa que não pode, digamos, confessar e, por isso, ela não supõe que, em seu discurso, haja a mesma impossibilidade que existe evidenciada no Discurso do Senhor, na medida em que este não consegue governar, e que ela faz aparecer como impotência. A histérica é aquela que supõe que não possa suturar o discurso, não porque seja impossível, mas porque ela é impotente no momento para isso. Isso é algo muito próximo do discurso da ciência, pois, no dia em que se souber tudo, a ciência fechará seu cerco. O que há de suposição histérica no discurso da ciência é que é possível saber... Só que ainda não se descobriu tudo, é uma impotência. Mas não se trata de impotência, é a impossibilidade mesmo que está vigorando em todos os discursos. Tanto é verdade que Freud se esqueceu deste discurso quando fez a teoria psicanalítica. Ao dizer que governar, educar e psicanalisar são tarefas

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impossíveis, fez referência aos discursos do Senhor, do Analista e da Universidade, mas não à impossibilidade existente no Discurso da Histérica, que é: fazer-se desejar. Esta é a verdade que a histérica tem ocultada sob a barra. A verdade do funcionamento de seu sintoma, fazendo agir o significante mestre para a produção de um saber, é simplesmente o objeto a, que ela quer ser. O Discurso da Histérica, às vezes, tem resultados catastróficos, pois, fazerse desejar sendo impossível, resulta em movimentos bruscos: supondo que é impotência, ela muda de praça e vai se fazer desejar em outro lugar... até quebrar a cara no Discurso do Analista. Vemos isto na ciência, na relação analítica e na relação passional. Adiantarei algo um pouco brusco. Podemos perguntar se a idéia de corte epistemológico, de Gaston Bachelard, não seria esse movimento saltitante da histérica. A histeria de Hegel completou a possibilidade de um saber absoluto, mas, às vezes, é possível que a histérica apresente uma espécie de autoprojetarse, de defenestração da relação, de tal maneira que supõe que, ao fazer um corte e cair noutro discurso (que é o mesmo), está agora na possibilidade de conseguir. Bachelard diz com todas as letras que determinada recondução da ciência regionaliza a anterior. Então, pode-se aí continuar sonhando o sonho da impotência. Ou seja, continuo com minha cautela, mas pergunto se não há aí uma sonhação de impotência. Uma sonhação diferente da de Hegel que foi muito mais radical, pois disse a impotência sonhando diretamente com o saber absoluto. Ele tenta reduzir a impotência, mediante o movimento de tese e antítese, a uma síntese totalizante, histórica, quer dizer, histérica. E não estou falando do discurso científico, que Lacan tampouco escreveu, embora o tenham solicitado que fizesse, mas disse que é quase o Discurso da Histérica. *

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Mais um quarto de volta e vai surgir como avesso, como reviramento do Discurso do Senhor, o Discurso do Analista, que seria a vez de colocar como agente, nesse modo de produção, o mais-gozar, o objeto a. Daí que o

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analista tem que fingir ser objeto a, o que é absolutamente diverso e nada tem a ver com fingir ser significante primeiro como está no discurso da chamada psicanálise annafreudista, e outras, onde se pede como término da análise a identificação do analisando com o analista. Se isto ocorresse, seria dizer qual é o sintoma campeão. Faz-se um duelo para ver quem ganha: se o do analista ganhar, o outro estará analisado. Ao contrário, no Discurso do Analista, o que toma o lugar de agente é o objeto irrecuperável, o objeto perdido, o qual, por perdido, não se sabe qual é. Portanto, o analista não pode evidentemente suportar esse lugar. Se pudesse, transformaria o objeto em significante de si mesmo e passaria ao Discurso do Senhor. Não podendo, ele não faz mais do que sentar, digamos assim, no lugar do objeto. Basta conseguir isto que faz trabalhar o sujeito enquanto divisão, enquanto sintomática que está no discurso do analisando. Isto, na tentativa de produzir o que, no Discurso da Histérica, está trabalhando e que não é sabido, ou seja, o significante fundador daquele sujeito. Mas o analista só pode fazer trabalhar o sujeito porque conta com a verdade. Por isso, o fundamento da psicanálise é ético. Contar com a verdade para produzir o significante primeiro é contar ambiguamente com o saber: o saber ser analista, no caso do analista, mas, sobretudo, contar com que a verdade percorra o saber que está sendo produzido na fala da histérica. Notem que é uma rotação radicalmente avessa à do Discurso do Senhor, no qual a verdade que está oculta é a partição do sujeito. No Discurso do Analista, o que está no lugar da verdade é o saber que lá se produz, assim como o saber ouvir o saber, ou seja, saber suportar esse lugar insuportável. Foi este o golpe de Freud: quando deixou de ser senhor dentro do gabinete, tornou-se analista. Isto aconteceu quando desconfiou que o Discurso da Histérica portava a verdade, que a intenção da livre associação era a de falar qualquer coisa, não importa qual, porque a verdade está lá. Uma vez que se está dizendo a verdade e ela é o saber que está sendo lá surgido, este saber só vai se apresentar no lugar da verdade na medida em que o objeto a se posture. Com isso, vai funcionar a partição do sujeito enquanto sintoma, de modo a poder-se regredir.

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O processo é regressivo, o que nada tem a ver com virar feto, embora haja psicanálise espiritista em que a pessoa começa a se contorcer, quer dizer, o imaginário todo da história ocidental o faz virar feto. Não existe outro feto a não ser o primeiro significante. Isto é que é a regressão: retornar ao desvelamento do primeiro significante, pois então vai-se reconhecer sua significação. E qual é esta significação? Nenhuma, tanto que é um significante. Foi o que Freud inventou: a histerização do discurso possibilita a psicanálise. Afinal de contas, o que vamos fazer na análise? Saber, segundo a tônica do Discurso da Histérica. Ela está querendo saber e supondo que o analista sabe o que ela está querendo saber. Só que ele não sabe. Se soubesse, seria psicanalhista. Faço questão deste termo – um psicanalha – porque é o que Lacan chama de canalha, aquele que supõe poder ser o Outro. Ainda que ocupe a posição de objeto a, nem por isso o analista supõe ser o Outro. A psicanálhise com lh é aquela que, bem observado o que ela pensa que diz, vêse que está colocando o analista na posição do Outro, ao qual o analisando deve se identificar. Aliás, a coisa está de tal modo psicologizada que a menor mancada do analista no processamento da análise torna o ambiente psicológico, psicanalhístico. Não se pode escapar disso hoje, pois o analisando é especialista em folclore psicanalítico, a ponto de perguntar se isto ou aquilo é seu “Édipo”. Então, a relação se tornando de característica psicologizante, ele começa a articular o pedido dos pedidos, a grande demanda, de que o analista seja o senhor, seja canalha. Entretanto, é impossível a completação da produção, pois o Discurso Psicanalítico, como qualquer outro, sofre da mesma impossibilidade. Daí Freud ter dito que é impossível psicanalisar. Ora, quando diz isto, não quer dizer que não valha a pena psicanalisar ou que não funcione, e sim que é impossível a terminação de uma análise. Por isso, Lacan diz que só existe análise didática, se é que esse termo abominável serve. Quero supor que não pode existir outra análise porque a aproximação do primeiro significante é infinitesimada pela própria partição do trabalhador desse discurso, a cisão do sujeito. Sobretudo, essa abordagem é infinitesimal porque, de dentro da própria possibilidade

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discursiva, a não ser o silêncio absoluto e escansivo do analista, pode parecer com o surgimento do primeiro significante como buraco: é um significante que não significa coisíssima alguma... Interpretar não é senão ajuntar-se com a verdade do saber, ou seja, com o saber da verdade. Daí Lacan apontar o regime ambíguo da interpretação que fica entre a citação, ou seja, o remetimento à autoridade, à autoria, e a intervenção escansiva dos cortes produzida pelo regime mesmo do saber psicanalítico. O que é a citação? Quando cito Lacan, estou remetendo à autoridade dele. Quando cito o analisando, estou remetendo ao que ele disse. A interpretação que não remete ao que o analisando de algum modo diz é hermenêutica e, portanto, não é interpretação, e sim intertrepação. Interpretação em psicanálise é o avesso de tudo que possamos pensar como interpretação em outros campos. A interpretação hermenêutica é a produção histericizante sobre enunciados, ao passo que a interpretação analítica só faz citar o discurso do analisando: remeter à autoridade do próprio saber que está dizendo a verdade, ou fazer buraco, fazer calo nesse discurso. Não confundir esta interpretação com os jogos intersubjetivos que fazem parte da transferência. Temos que negacear ou negociar, se quiserem, pois isso é do jogo da transferência.  P – A interpretação psicanalítica se diferenciaria da hermenêutica por remeter à produção do Outro? Ela cita o que está dito no saber do analisando colocando aquilo como verdade e intervém sobre essa verdade a partir do manejo que é o saber psicanalítico. Esta intervenção não é mitológica, ela intervém no jogo como escansão daquele próprio discurso. Se o analista fosse dizer coisas como “agora é o Édipo”, ele próprio não precisava ser analisado ou ter experimentado o que é ser analisado. Ninguém faz análise brincando de fazer teoria, embora até possamos fazer um belo trabalho teórico sobre um caso, mas depois. No momento da análise, brincamos de ser o objeto a, não filósofo, nem histérica, e menos ainda universitário. No entanto, as pessoas querem por força que o que o analista diz tenha sentido, quando o que tem sentido é o discurso do analisando.

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 P – Mas a antropologia também remete ao discurso do outro, da outra cultura. E você supõe que seja do mesmo modo? Eis uma questão interessante. O etnólogo de campo faz o mesmo trabalho que faz o analista? No final das contas, quando o etnólogo acaba de fazer sua recensão, ele empresta um sentido e um significado àquela cultura.  P – Não se trata de verdade aí? É bom lembrar que a palavra verdade não é mais do que lugar. E quando o etnólogo se refere à verdade da cultura que observa, o que está colocando no lugar dessa verdade? *

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Vejamos agora o que Lacan quis chamar de Discurso Universitário. Pode também ter o nome de Pedagógico, mas a grande burocracia de nossa época é o Discurso Universitário, que é campeão inclusive no chamado Oriente, na Rússia, por exemplo. Desculpem-me a preferência, mas acho este o mais engraçado de todos. A universidade coloca como agente desejante o saber, mas o saber, quando troca de lugar, já não é o mesmo. O saber que está no lugar da verdade no discurso psicanalítico é um saber que não se sabe, em todos os sentidos. Não é este o saber que a universidade coloca no lugar de agente. Ao contrário, é um saber muito sabido. Então, a universidade agarra aquele saber e o coloca como agente de seu discurso tentando fazer trabalhar o desejado, quase que fazendo deste desejado o próprio real, a própria natureza, etc. Isto, na esperança – a mais indecente que possamos imaginar – de produzir um sujeito. É o sujeito universitário, que somos nós todos. Evidentemente, esse sujeito não pode ser mais do que o sintoma mesmo da universidade. Então, a universidade trabalha na esperança de produzir um sujeito. Só que, para isso, ela tem que recalcar sob a barra, no lugar da verdade, de onde está sendo tirada a possibilidade de o saber colocar-se como agente. A verdade que se oculta no discurso da universidade é determinada mestria, o significante maître.

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 P – Você está nomeando o discurso da universidade como um processo delirante. Ao ocultar o ser que seria a verdade que suporta o saber universitário, tenta-se fazer trabalhar o objeto para produzir sujeitos. Em suma, aí está todo o discurso da pedagogia. Por isso, Freud também teve que dizer que educar é impossível. Ao Discurso Universitário, a impossibilidade não parece impossibilidade, e sim impotência. Dizem os pedagogos: “Já fizemos de tudo para esse menino dar certo!” – e começam a inventar discursos para cercar esse objeto, que tem que trabalhar para dar certo. Esse objeto aí pode ser pensado como o filhote mesmo, o filho da mãe. A pedagogia faz trabalhar esse indivíduo, digamos assim, posicionado como objeto a, objeto de desejo, para produzir o sujeito que ela quer produzir. Evidentemente, esse sujeito está completamente desenhado, é o design da pedagogia. Assistimos ao furor pedagógico dos pedagogos modernos em fazer o diabo com currículos e o que mais for preciso para ele dar certo. A universidade cerca de todos os lados para produzir o sujeito certo, para produzir certo sujeito. Acontece que a coisa se apresenta imediatamente como impotência, pois o que está requisitando esse certo sujeito é a verdade, o significante ser-eu que está agüentando o agente como saber. A verdade que está oculta é que este significante já está desenhado. Mas é impossível fazer com que um saber faça trabalhar o objeto impegável para produzir um sujeito que se arremede a determinado sintoma, que se identifique com determinado sintoma. Assim, o que está no lugar da verdade no Discurso Universitário só pode ser reconhecido como tal quando posturado no lugar do produto do Discurso Psicanalítico, e que faz fracassar o que a universidade quer produzir. Então, ela não produz mais do que cretinos, e não sujeitos. É a fábrica da cretinização. A pessoa cai nesse discurso e, se acredita, pensa que é mesmo o sujeito que a universidade produziu. Então, deixa de ser filho da mãe e passa a ser filho do pai imaginário. Estamos aí diante do discurso burocrático. Mesmo no que seria o Discurso do Senhor hoje, onde não há a impostação do Discurso Universitário? Talvez em lugar algum. A ordem ministerial, a ordem bancária, etc., são da ordem do discurso pedagógico. A própria ordem jurídica – e Pierre Legendre denunciou isto –

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perde força de mestria para recair como ordem publicitária no discurso pedagógico. O próprio discurso médico, que é nitidamente Discurso do Senhor, em seu modo de manipulação, apresenta-se como discurso pedagógico, ou seja, esteia-se no discurso pedagógico para poder reinar um pouco. “Quem não se comunica se trumbica” – temos que tomar todas as vacinas, segundo o Sujismundo, para que a ordem médica reine... *

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Como vimos, a ordem dos discursos é circular. Lacan chama de quadrípode. Podemos girar para a frente ou para trás. Com um quarto de volta para trás no Discurso da Universidade, caímos no Discurso do Analista. Com um quarto de volta para a frente, caímos no Discurso do Senhor, e não há nada de imaginário nesse quarto de volta. Repetindo o que lhes disse antes, Lacan já tinha tentado mostrar isto pela primeira vez quando escreveu Kant avec Sade, onde faz uma revirada de 45 graus no Esquema em Z. Embora ali a coisa não esteja muito esclarecida, não é apenas uma aparência imaginária para metaforizar algo. Lá já há a escrita das letras sobre os lugares. O quarto de volta aqui é apenas porque, se acompanharmos, vemos que gira. Mas o que importa é a escrita dos elementos sobre os lugares. O quarto de volta surge numa simples mudança na fala. Como podemos surpreender num discurso, numa fala longa, os momentos em que a coisa gira, em que os elementos passam de um lugar para outro?  P – Quando se fala em rotação de um quarto de volta na passagem do mestre para a histérica ou para universitário, não há uma seqüenciação? Quero supor que sim, mas é algo em aberto. Muitos estão discutindo isto e cada qual berrando mais do que o outro. De meu ponto de vista, é um pouco difícil pensar um salto brusco. Então, quero supor que o sujeito percorre, vai dando voltas seqüenciadas, mas ainda não estou garantindo.  P – [Pergunta sobre a psicose]

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Quando Lacan diz que não há outra análise a não ser a didática, quero supor que, porque a análise é infinita, das duas uma: ou levamos a análise tão longe que caímos fora do discurso, no regime da psicose, ou pulamos a tempo, saltamos fora. Na verdade, o fim da análise é quando o sujeito sarta fora. Não confundir isto com o “defenestrar-se” de que falei acima. Não há outro modo de saltar fora a não ser ficando dentro. Porque a coisa sofre a torção uniface, saltar fora da análise é cair nela, é virar analista. Pode-se parar uma análise a qualquer momento porque não está mais sendo útil. O sujeito aprendeu sobre seus sintomas, está numa boa e só voltará se ficar mais doido. Mas se estamos no processo da psicanálise, ou o rigor analítico é levado a tal ponto que vamos entrar no rigor psicótico – e, por isso, saltar da posição de analisando para a de analista é, de certo modo, poder arcar com esse rigor psicótico –, ou saltamos fora. Por isso, Lacan se pergunta como teorizar o passe. Ninguém teorizou, nem ele. Como teorizar esse salto, esse momento em que o sujeito salta? Isto não quer dizer que é o momento em que o sujeito começa a praticar a psicanálise enquanto analista. A Escola Freudiana de Paris está cheia de analistas, mas só três tiveram passe.  P – Isso parece iniciático. Se o processo fosse iniciático, seria exatamente como é na Sociedade Internacional de Psicanálise. Desde que entremos em todos os rituais, que façamos juramento de ser analistas, então seremos analistas. Por outro lado, ninguém sabe o que é o passe ainda, pois não foi teorizado, nem escrito, nem mesmo descrito. Simplesmente Lacan inventou um modo, cheio de processos, de supor que houve passe. Só que ninguém passa. Que eu saiba só três, de repente, foram achados passados. A teoria está em processo e Lacan supõe que alguém vai escrever a fórmula do passe, como ele escreveu a dos discursos. Todos tentam, mas é uma deliração imensa. Até eu. Foi o caminho que tentei começar naquele escrito que saiu com o título Senso Contra Censo: da Obra de Arte etc. (Rio de Janeiro: Colégio Freudiano/Tempo Brasileiro, 1977). Alguns pensaram que estou falando de estética, mas, a partir da obra de arte, estou tentando pensar o que poderia ser o passe. De uma coisa

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(não) tenho certeza: a obra de arte conseguida é passe, mas não do escritor, do pintor, do artista, e sim da obra. A obra passa, vira analista. Se pudéssemos fazer como Freud, portar-se como analisando diante da obra de arte, talvez achássemos na obra a estrutura do passe. Quero supor que ato poético e passe (ou seja, ato psicanalítico) são a mesma coisa; que obra de arte conseguida e passe são a mesma coisa.  P – Mas na obra de arte existe um suporte material para garantir e, no caso do analista, não. Como não? Carne não é suporte material? Letra não é material? Corpo não é material? Tanto é que, na histérica, comparecem sintomas mais do que materiais. Concretos, substanciais, às vezes. *

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O que Freud criou com o nome Psicanálise nada tem a ver com os discursos que estão afogando o Discurso Psicanalítico, nem mesmo com os chamados psicanalíticos, psiquiátricos, psicológicos, etc. São discursos universitários, de mestria, de histeria, tentando não deixar aparecer como produto o significante mestre. As ordens médica, psiquiátrica e psicológica vivem da deliração emprestada a um desses discursos, num modo de não deixar aparecer o chamado paciente. Cada um tem seu delírio próprio de dizer que o sujeito está bom porque seu comportamento está assim ou assado, quando, de fato, são todas posturas bem comportadas.  P – Segundo que ordenação se produzem essas formulações? Está-se no regime da escrita, no regime da repetição do modo mesmo de produção do traço unário. Por isso, Lacan exige a matemização. Aquilo que não se decanta em escrita permanece conteudizado. Assim, quando estava falando sobre aquelas escritas, eu não estava mais do que falando sobre elas. Quando fazemos um traço sobre um papel, o que colocamos ali? Para responder a isto, temos que entrar, não na literatura, mas no que chamo de granerastia, que é o que Lacan contrapõe à literatura como radical na escrita.

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Como uma letra se decanta? Não podemos escrever o significante puro, então o inscrevemos incorporado, como letra. E nada nos diz que, ao escrevermos os matemas, saímos da órbita do sintoma. Quando o sintoma se escreve enquanto letra, para onde vai seu sentido? Foi o que tentei dizer sobre a obra de arte. Se ela consegue d’escrever essa letra, que sentido tem ela? É o problema de Maurice Blanchot, por exemplo, que nos fala do abismo da folha em branco, que reabismamos com uma letra. Mas que sentido tem a letra em si? Nenhum. Lacan pede o matema para retirar o significado, a significação e escapar ao sentido. Não é ter todos, mas escapar a todos os sentidos. Quando falei do Discurso Psicanalítico, disse que ele, enquanto matemizado, escapa a tudo que disse. O que não significa que haja algum inefável, algum indizível, mas apenas um traço. Evidentemente, quando procuro escrever as fórmulas, não estou no Discurso Psicanalítico e nem é de dentro dele que Lacan as escreve. Mas no que essa escrita, escriturada a partir de um discurso, assentada num discurso que não é o Discurso Psicanalítico, consegue d’escrever a letra do impossível, já mostrou a falência da formulação. Essas fórmulas, embora do mesmo tipo, não são uma escrita da mesma ordem de uma fórmula de Einstein, por exemplo. Quando este escreve sua fórmula de energia, ela costuma ser lida como algo fechado, porque deu conta. Mas, exatamente porque ela é escrita, escapa ao discurso que se faz em torno dela. Vamos brincar de hermenêutica. Quantas interpretações podemos fazer da Bíblia enquanto texto escrito? Quantas quisermos. As interpretações da Bíblia são interpretações fundadas num certo discurso. Borges explica isso com muita clareza.  P – Não haveria a possibilidade de uma análise da letra? Evidentemente que não. A letra nos faz interpretar, mas ela não é interpretável. É o que tento dizer no Senso Contra Censo. Se a obra de arte d’escreve, rasga esse traço, ficamos falando feito idiota na frente dela, como analisando. Daí as hermenêuticas, as críticas, as histórias da arte, as estéticas, como dizem, se assentarem num discurso qualquer e falarem dos

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acontecimentos, dos entrelaçamentos dos materiais, das formas, etc., que estão lá dentro. Mas do mesmo modo que o analisando, levado extremamente dentro do discurso psicanalítico, vai cair na produção de um significante que não significa coisíssima alguma, a não ser a si mesmo, a obra terá o mesmo processo. Do mesmo modo, então, que o analisando, levado a extremo, cai no rigor psicótico ou no salto para a posição de analista, a obra também. Lacan fez um belo seminário, Le Sinthome, sobre Joyce, o qual, segundo ele, dá a abstração do sintoma. O que se lê em Finnegans Wake? Não há nada para ler, pois ele escreve um letrão: riverrun. E até figurativamente faz isso: começa pelo rabo e termina pela boca, ou vice-versa...  P – Você pode retomar a questão do tornar-se analista? Lacan vai demonstrar a vigência do Discurso Psicanalítico no Banquete de Platão. Então, não é por ser analista ou analisando que se está no Discurso Psicanalítico. Não há iniciação nesse campo. Eis senão quando, sem querer, estamos na vigência do Discurso Psicanalítico e nem notamos.  P – Penso em Ernest Jones escrevendo sobre Hamlet e não vejo como se poderia fazer uma interpretação escapando ao próprio círculo hermenêutico. Talvez você não tenha notado a diferença no modo como Lacan trata A Carta Roubada ou como Freud trata Michelangelo do modo como Jones trata Hamlet. Não encontramos nem em Lacan nem em Freud uma tentativa de interpretar a obra. Encontramos nos dois uma pergunta à obra a respeito do que possa ser a psicanálise. Isto é o que foi mal entendido pela chamada psicocrítica. Lacan nunca fez o que a princesa Marie Bonaparte fez ao interpretar Edgar Allan Poe. Ao contrário, ele perguntou ao texto A Carta Roubada o que é um significante. A psicanálise veta que se interprete a obra de arte, mas não proíbe que se interprete qualquer coisa diante da obra de arte. No caso de Édipo, Freud simplesmente recorreu ao texto de Sófocles para tentar explicar, em cena, o que é a castração. Que culpa tem ele de que ditos analistas queiram repetir a encenação do Édipo cada vez que alguém deita no divã? A psicanálise cura de neurose, mas não de imbecilidade. Há

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analista que não conseguiu perceber que o recurso à cena é no sentido de metaforizar o ato. Deleuze diz muito bem que quando o sujeito deita no divã, tem que passar pelo cenário edipiano, tem que brincar igualzinho Édipo brincou. Mas o texto dele é outro, só a estrutura é que é a mesma. A castração, sim, está lá, o texto não. Malinowski não foi atrás da mente primitiva para demonstrar que há lugares onde não há complexo de Édipo? Ou seja, fez o mesmo que certos analistas fazem, que é perguntar se eles costumavam encenar Sófocles. Aliás, foi isto que aconteceu na Revolução de 64, quando quiseram prender Sófocles, pois havia uma peça “subversiva” dele em cena. Se quisessem encontrá-lo, bastava perguntar a certos analistas. Eles deviam saber onde ele morava...

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Topologia do espelho

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TOPOLOGIA DO ESPELHO Hoje, por dois motivos, farei uma pausa na falação sobre os Quatro Discursos. Primeiro, ao visitar um grupo de estudo que se realiza duas vezes por mês aqui, às quintas-feiras, verifiquei que é preciso acrescentar subsídios que me pareceram urgentes para o trabalho de cada um e também para a compreensão da seqüência do que venho apresentando. O segundo motivo é a presença, no Rio, de Serge Leclaire, que tem dito coisas, numa metaforização tal que talvez faça com que as pessoas tenham algumas questões teóricas sobre o que está sendo dito. Pretendo, pois, desenvolver algo que pode ajudar nos dois casos: trazer subsídios ao entendimento dos Quatro Discursos e, ao mesmo tempo, esclarecer certas coisas que Leclaire está dizendo. Talvez alguns aqui estejam acompanhando seus seminários, ou tenham assistido sua conferência. De qualquer forma, vai servir para nós, desde que não seja como fofoca política internacional ou local da Escola Freudiana de Paris. Isto não está me interessando, e sim o que é estritamente teórico. *

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Quero conversar um pouco sobre a Topologia do Espelho. Ela é fundamental desde o famoso texto sobre o Estádio do Espelho, que, pode-se dizer, é a primeira intervenção de Lacan no campo da psicanálise. E também é

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da mesma ordem da concepção de significante em Lacan, diferentemente de Lévi-Strauss, Saussure, etc. Vamos, então, retornar à configuração imaginária que Lacan mostrou naquele texto para assentar sobre ela o acontecimento da formação de Eu, e tentar refletir um pouco, sobretudo de um modo topológico, a respeito do que seja um espelho. Se conseguirmos entender o que é o espelho, conseguiremos entender o que é o significante, o sujeito... Todos sabem que o espelho está no centro da “transa” psicanalítica. Transa é como chamo a relação analista-analisando, que Leclaire está chamando de “ce qu’on fait”, o que se faz na análise. Ele usa o verbo faire, mas em português podemos usar o verbo transar que é melhor. Qual é a transação dentro da psicanálise? O que é um espelho? Vamos começar fazendo referência a que Lacan, n’O Estádio do Espelho, aponta que há que repensar a fundação de uma possibilidade de entrada na postura de Eu, de Eu enquanto sujeito, quer do enunciado, quer da enunciação. Há que pensar no imaginário que sustenta, que dá uma espécie de primeira garantia a esse momento de configuração. Ele vai buscar esta garantia na etologia. Ou seja, a criança, diante do espelho, a partir do momento em que consegue – e isto num regime estritamente imaginário como qualquer animal, qualquer bicho – supor que a figura que está do outro lado do espelho, digamos assim, é quem ela possa chamar de Eu, ela poderá também, numa estrutura que é da mesma combinatória da estrutura edipiana e da estrutura da castração, fundar a possibilidade de chamar-se Eu. Naquilo que a criança vê no espelho, ela não pode ver nada que lhe dê condições de chamar-se Eu até o momento em que, por uma impregnância – no sentido gestáltico: uma pregnância da imagem – e por uma repetição, vê que há uma correspondência de movimentos. A pregnância é do lado de cá, evidentemente. Só vai passar para o lado de lá porque, sem saber o que se passa do lado do espelho, a criança faz um movimento e, na pregnância do reconhecimento desse movimento, vê repetindo naquela imagem o comando que ela fez e que não pode ver como integralidade do lado de cá. Comando, no sentido gestáltico. É puramente animal: como o cachorro mexe o rabo, o rabo mexe do outro lado. É a colagem de uma imagem sobre a outra, o que nada tem

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a ver com o campo da psicanálise, pois qualquer bicho faz isto, mas Lacan mostra que, para a criança, há uma dissimetria nessa relação imaginária. Posso, no logro, colar diretamente sobre a relação imaginária. Ou seja, como não posso ter a configuração do lado de cá, suponho que esta configuração é aquela que toma pregnância do lado de lá, pois configuro de longe. Mas há uma terceira pessoa – as imagens são duas, uma do lado de cá e outra do lado de lá – que vai dar uma asserção, como que uma garantia de que realmente se trata de você. É com a palavra, com o verbo, que ela vai cobrir a dissimetria. Cobrir a dissimetria no sentido de que a imagem que apreendo do lado do espelho não tem absolutamente garantia alguma de ser a imagem que está do lado de cá, mesmo quando ela obedece aos comandos dos movimentos da imagem do lado de cá. Isto porque não havia a pregnância desta imagem do lado de cá a não ser pela configuração da imagem do lado de lá, que, não me dando garantia, pede a garantia de um terceiro para dizer que é a mesma. Repetindo, o lado de cá não tem a menor garantia. Faço movimentos e parece que esses movimentos se comandam, logo, deve haver uma correspondência ponto a ponto entre as duas imagens. Mas não tenho garantias, pois só apreendo o que está do lado de cá no que vejo o lado de lá. A única garantia que tenho já é um salto outro. É um terceiro que vai dizer: “É sim!” Mas isto não quer dizer nada como garantia, porque há uma brecha, há o testemunho de um terceiro. Não foi, então, o testemunho de um lado de cá, não foi o reconhecimento de uma sobreposição ponto a ponto, e sim o reconhecimento de um terceiro de que, talvez, aquela coisa esteja encaixando. Tentarei mostrar-lhes agora a topologia desse fenômeno para verem que realmente não encaixa. Já lhes mostrei isto outras vezes – no Seminário sobre Marcel Duchamp, por exemplo –, mas vou arrumar melhor. Quando alguém se defronta com o espelho, o que acontece? A coisa mais direta a acontecer é que esse alguém não vê o espelho. Tanto não vê que nem conseguimos pensar nisso. Quando é que vemos o espelho? O espelho é um acontecimento, a escrita de uma lógica tal que, quando estou diante dele, ele me propõe um imaginário reproduzido. Basta ler os poemas de Borges, consultar

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artistas plásticos ou ler Guimarães Rosa, num trabalho especificamente sobre isto, para ver que quando me defronto com o espelho, imediatamente ele me captura e me cativa de um ponto de vista imaginário. É como diz o zen: “Toda vez que se aponta para a lua, o tolo olha para o dedo”. É exatamente o fenômeno que acontece: o espelho, no que se mostra, não o vejo – é outra imagem que ele reproduz, nunca ele mesmo. Então, vamos pensar no fenômeno, grave, de quando se pode ver o espelho, e não a imagem que ele nos apresenta. O que é o espelho? Esta reflexão está no centro de pensar o que é o sujeito, o significante, etc. Quando me defronto com o espelho, vejo uma figura que, depois da fase do espelho, já suponho ser a minha. Quer dizer, é o logro mais idiota que existe porque suponho ser eu aquela figura que está lá. Mas não tenho garantia, pois sempre há uma estranheza: se começo a considerar aquela imagem, questionando, ela começa a produzir certa angústia. A imagem não me suporta, não me dá garantia. De onde vem essa estranheza? Se você olhar para o espelho, mesmo não vendo o espelho, ou seja, olhando para a imagem que ele lhe apresenta, que você supõe corresponder ponto a ponto à imagem que está do lado de cá, que você supõe ter através daquela outra que está do lado de lá, e se você quiser considerar-se, fazer uma pesquisa, uma observação daquela imagem para saber como você é, você começa a cair num abismo terrível. Borges fez a imagem do labirinto, que eu chamaria o labirinto de vidro. O que está em jogo aí é o olhar que invade essa relação imaginária buscando a composição da imagem que está do lado de cá, através da imagem que está do lado de lá, buscando a composição de si mesmo, buscando a composição do olhar. No que quero compor essa suposta fonte de olhar que invade aquela imagem querendo saber o que ela é, estou rebuscando a respeito do olhar que invade para atingir aquele objeto. Suponhamos que eu seja a primeira figura – o que é mera estratégia, pois, na verdade, não sei quem sou diante do espelho –, no que observo a segunda figura, aquela que está projetada do outro lado, tentando saber quem ela é, ou seja, quem sou, o que é esse olhar que observa, vou encontrar, eis senão quando, o olhar daquela figura fazendo sobre mim o mesmo que estou tentando fazer sobre ela, ou algo parecido,

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me observando. No que me defronto com esse olhar, imediatamente fiz um deslocamento da própria posição do que possa ser o espelho entre as duas figuras. Na medida em que olho para o espelho e me defronto com aquela figura, atravessei o espelho no que olho para ele, defronto-me com a figura e esqueço do espelho. Mas há algo que faz lembrar do espelho. É quando me defronto com o olhar que, do lado do espelho, também se requisita, ou seja, quer saber quem ele é na figura que, talvez, esteja do lado de cá. Não sei se está, apenas suponho que seja aquela que está lá. Então, o olhar que me invade do outro lado do espelho e que me escruta, acaba se transformando, para mim, também, em relação especular. Ou seja, ponho um espelho não no lugar onde o espelho estava, e sim no lugar onde está o olhar. E quando esses dois olhares, ou pelo menos um que estou supondo observar, se encontram, o jogo reflexivo se dá entre eles. Assim, no que lá naquela imagem existe o olhar que tento escrutar, vou fazer a mesma lógica que faço quando olho para o espelho tentando observar a figura que está lá. Não estou falando do olho da imagem, e sim do olhar – aquela coisa que torna a perguntar, torna a refletir a reflexão do espelho, que se impõe como reflexão, como atitude reflexiva sobre minha figura. Quando me defronto com aquele olhar, topo de novo com o espelho: o espelho está deslocado, passou a cair agora sobre a figura do outro lado, ou seja, no lugar do olhar que aquela figura endereça para mim. Se ele caiu lá adiante, o espelho se desloca e, no que se desloca, no que aquela figura também me olha com aquele olhar e devolvo esse olhar, também caio na posição de espelho. Isto vai exigir, já que naquele olhar coloquei um espelho, uma imagem refletida por esse espelho, que está no lugar daquele olhar. Funda-se, então, uma terceira posição de imagem, ou seja, o espelho mudou de lugar. Mas, no que muda de lugar, o olhar continua a perguntar, rebate cada uma das novas segundas posições para outra terceira, quarta, quinta e sexta posição, e faz um infinito tal que me propõe um desvanecimento que também angustia, porque é o real desabando para os dois lados. E infinitizo a coisa. Vejam o esquema do espelho (E) abaixo: no lado 1, a posição da primeira imagem (a), e no lado 2, a da segunda (b). No que o olhar voltou para o lado 1,

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isso já vai se refletir em 2. No que passou para 2, já vai se refletir adiante, e no que isto olha para a ou para b, já passa a ficar adiante. Cria-se, então, uma série de espirais, e o sujeito desiste. No terceiro tempo lógico ele desiste e sai do espelho, pois é terrível. Pinta a angústia e o sujeito desiste de enfrentar.

Mas, se em vez de desistir eu fizer uma meia trava no processo: por exemplo, a partir da terceira posição no espelho, esta imagem que suponho refletir aí, no que você enfrenta este olhar que o olha como você o olha, vai projetar a busca para adiante desse olhar, para atrás do espelho. Não estou dizendo que você veja isso como ótica geométrica, e sim que a lógica que o espelho vai lhe propor é a de que, quando você se defronta com aquele olhar e que ele não lhe diz nada porque o devolve para cá, ele coloca lá uma posição de espelho e cá outra posição de espelho. Então, a coisa se abisma para os dois lados. Sua lógica me propõe que o lugar desse olhar esteja para atrás daquilo e para atrás de mim. No terceiro momento, já criou o infinito. Como vêem, estou

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tentando uma lógica da coisa, para depois colocar em cima da questão do Eu, do sujeito. Então, se na terceira vez já me abismo, se der meia trava e começar a pensar, posso supor que, se a lógica me abismou para os dois lados, posso talvez abismar para a frente, quer dizer, fazer um movimento de retorno: tomar o terceiro olhar, reduzir ao segundo e tentar reduzir ao primeiro – num esforço lógico violento. Encontramos uma descrição maravilhosa disto no conto de Guimarães Rosa, em Primeiras Estórias, intitulado O Espelho. É metafórico, mas aí se vê como ele tenta trabalhar a angústia diante do espelho e o momento de visão do espelho. Posso, então, tentar retornar. Se fizer esse movimento de retorno e, rigorosamente, tentar levá-lo avante, vou pular da terceira posição, que é qualquer lado, para a segunda, e da segunda tentar recair na primeira. Recair na primeira é atravessar da segunda imagem para a primeira, é ficar nessa travessia. Então, aí necessariamente vou dar de cara com a superfície do espelho. Ou seja, não vou ter outra explicação para aquele fenômeno todo – o que está no senso comum, aliás – senão de que se trata de um espelho: dou de cara com a dureza da superfície do espelho. Isto está em Lewis Carroll, que, no processo da Alice, tenta fazer, tenta explicar essa travessia. Trata-se de passar para o outro lado do espelho para explicar que o importante não é o que está do outro lado, e sim a travessia – dar de cara com o real que o espelho me propõe em sua superfície, que não é, absolutamente, nenhum vidro (vidro é vidro, transparente). O real do espelho é proposto pela lógica do espelho. Não posso dizer que o espelho está no vidro, pois espelho não precisa de vidro. Posso fazer uma superfície de aço e ela ser um espelho límpido. Mas tampouco o aço é o espelho. O espelho é a competência refletora, digamos assim, que não está na substância do objeto refletor: é uma relação com meu aparelho de visão e com o que faz a minha estrutura com a lógica dessa reflexão. O espelho é apenas isso, não tem dureza própria. Sua dureza é aquela que ele escreve como lógica de reflexão. No entanto, ele me propõe o real, porque dou de cara com essa dureza lógica – e não há outra dureza a não ser a lógica. Portanto, se tento o movimento de retorno, darei de cara com o espelho. Mas fiz esse movimento todo para mostrar, na relação angustiante com o

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espelho, o retorno ao confronto com o real. Não o real-espelho, mas o real-doespelho, o real que o espelho propõe. Não tenho outra saída a não ser tentar explicar o que é o espelho em sua topologia, não para pegar o real, mas para poder ficar no regime dessa lógica mínima que, afinal de contas, é aquilo que me propõe, me indica o lugar do real. *

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Vamos agora esquecer a angústia que está aí, considerar um espelho e, digamos, duas imagens definitivas diante dele: a primeira, 1, e a segunda, 2. Não direi como a ótica geométrica, objeto real e imagem, pois não sei o que está do lado de cá: é uma imagem, talvez.

O que me acontece entre essas duas imagens, tanto de um ponto de vista da ótica geométrica, cartesiana, como da topologia? Do ponto de vista da ótica geométrica, sabemos que suas leis são quantitativas: o objeto está aqui para o espelho, logo há uma simetria eqüidistante em relação ao espelho plano. E há, também, uma correspondência biunívoca, ponto a ponto, nessa reflexão. Ou seja, se eu supuser que esta parede que está diante de mim é um espelho, se chegar perto e me colar com ela, posso fazer uma correspondência ponto a ponto da mão que está aqui com a mão que está lá. Mas que diabo é essa simetria em eqüidistância

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e essa correspondência ponto a ponto da ótica geométrica? Quando pensamos em termos do que aprendemos como geometria euclidiana, como ótica geométrica, a coisa parece ser simplória e funcionar muito bem. Mas quando tentamos pensar quais as relações não só de configuração, e sim de lógica de passagem de uma imagem para outra, sem cair na pregnância e na ilusão que o espelho nos dá à primeira vista, a coisa fica um pouco complicada. Já vimos vários artistas fazerem isso. Foi o que Marcel Duchamp tentou com o Grand Verre: explicar não como ótica geométrica, mas como fenômeno de correspondência no regime de uma imagem que nos desse uma simetria, alguma coisa que, junta, pudesse completar ponto a ponto, como duas metades da esfera, da laranja, etc. Então, quando se pensa a lógica desse fenômeno diante do espelho, vê-se que não dá certo. Lembrem-se que, diante de um espelho, se levanto meu braço, até prova em contrário, a outra imagem também levanta o braço. Faz o movimento correspondente, no qual acredito desde a minha ultrapassagem da fase do espelho. Apesar da entrada do significante, sou capturado por esse imaginário e creio que aquela imagem corresponde – inclusive pelo testemunho de outrem – à imagem que está aqui. Vejo uma correspondência direta, biunívoca, ponto a ponto entre essas duas imagens. Mas ela existe paralelamente como está ali? Observem que quando levanto meu braço esquerdo diante do espelho, o braço que a imagem levanta é o direito dela. Se eu, esquecido de que ela levanta um outro braço, fizesse uma notação com o sinal + ou –, por exemplo, o que aconteceria entre as duas imagens? Quando estou do lado de cá, poderia supor o tempo todo que deveria notar a representação com o mesmo sinal. Ou com o sinal contrário, quando observo que o braço que ela levanta é outro. Então, se estou na premissa de que quando levanto o braço esquerdo a outra imagem levanta o direito, posso notar sinais contrários. Mas se observarmos o conjunto, a relação de duas imagens no espelho, perceberemos que há uma maneira de notar o mesmo sinal. Por exemplo, estamos na rua, encontramos duas pessoas conversando uma de frente para a outra, situação semelhante a alguém diante do espelho, e perguntamos: “Sabem onde fica o Shopping Center?” Façamos de conta que as duas saibam, queiram indicar corretamente e,

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ao mesmo tempo, façam o mesmo gesto, dizendo: “Fica lá”. Acontece que, se um está de frente para o outro, vão apontar para o Shopping Center, um com o braço esquerdo e o outro com o direito. Exatamente como acontece no espelho. Como apontaram para o mesmo lugar, para o mesmo lado, faz sentido para nós. Se fôssemos observar que cada um está apontando com um braço diferente, diríamos: “É uma loucura!” Mas supomos estar sendo bem informados na medida em que damos o mesmo sinal não à posição do braço deles, mas à posição da indicação deles. Aí podemos marcar o mesmo sinal. Mas será que, como faz o antropólogo, basta fazer esta distinção de braços, ou de mesmo lado, para resolver a questão? Ou a estranheza permanece? Imaginemos que os dois respondessem de outra forma, isto é, na mesma posição em que estavam antes, um apontasse com o braço esquerdo e outro com o direito. Então, ou estariam nos gozando, ou não sabiam, ou nos defrontaríamos com o absurdo: como o Shopping Center fica ao mesmo tempo para dois lados opostos? Evidentemente, o senso comum dirá que estão enganados, ou que não sabem. Isto, para não pensar na hipótese do absurdo que pinta. Mas o que quero lhes mostrar é que, se as duas imagens que estão diante do espelho nos apontam para o mesmo lado, o espelho nos aponta para os dois lados ao mesmo tempo – não as imagens, mas o espelho que está entre elas.

Como pode se dar isso? É porque nunca vemos o espelho. Enquanto não nos defrontamos com o significante, vemos a imagem no espelho, mas não

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o espelho. É a metáfora que faz Guimarães Rosa em seu conto quando diz que, depois de muito se exercitar, um dia olhou e não viu nada. Ou seja, viu o espelho. Por que estou dizendo que o espelho, e não as imagens que reproduz, aponta para os dois lados ao mesmo tempo? Se considerar o que suponho ser a simetria das duas imagens no espelho procurando achar agora a situação dessas duas imagens, não apenas como dois triângulos simétricos entre si, digamos, isósceles, e simétricos em relação ao espelho, verei que sempre caio no logro de supor que, se rebater os dois triângulos um sobre o outro e usar o espelho como charneira, eles encaixam bonitinho. Mas só encaixam no imaginário da geometria cartesiana e em meu imaginário, que é cartesiano, e não em sua lógica de constituição.

Por que não encaixam? Do ponto de vista puramente euclidiano, posso dizer que há um encaixe na superposição de minha mão direita sobre minha mão esquerda, as imagens batem uma na outra. Mas não posso dizer que esta mão tem o mesmo estatuto da outra, ou que haja alguma relação de correspondência biunívoca entre as duas. Isto porque, se chegar defronte ao espelho, agora não mais no logro desse triângulo, mas com minha figura diante dele, e ver que este braço encaixa perfeitamente na outra imagem, estou esquecendo que, se quiser transpor este braço para o lado de lá, quer dizer, para o lugar onde suponho ver a imagem dele, tenho que fazer dois movimentos estranhíssimos, e não um simples rebatimento.

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Tomemos a seta 1, e vamos torná-la sua própria imagem, 2. Para isso, terei que girá-la para ela ficar na posição x. E depois, tenho que rebatê-la para 2. Não é o movimento da geometria euclidiana que tenho que fazer para buscar coincidir meu braço esquerdo com o direito do outro, pois este é direito, e não esquerdo. É o que lhes mostrei como a luva de borracha em outro Seminário. Uma luva de borracha no espelho tem por imagem a própria luva pelo avesso, e não uma correspondência ponto a ponto geometral. Virar a luva pelo avesso é a mesma coisa que trazê-la na mesma posição, e depois revertê-la. Mas esse revertimento é radical, sou eu que o está tornando imagético. O espelho é meu avesso, ou melhor, a imagem do espelho é meu avesso. Por isso, Deleuze, referindo-se a Artaud, pode dizer que o corpo não tem órgãos. Se tivesse, aparecia uma porção de tripas lá dentro! A anatomia tem órgãos, o corpo não. Quando ele vira pelo avesso, em minha lógica de apreensão, penso que é o mesmo. Tento apreender minha imagem, e a apreendo pelo avesso. Mas, como ela rebate para o outro lado, pelo olhar, a própria apreensão, torno a virar pelo avesso. O que estou dizendo com isto? Que o espelho é uma banda de Moebius. O espelho, e não a imagem. Quando me espelho, caio do mesmo lado, revertido. Este é o fundamento de qualquer dialética. A lógica do espelho – para quem fala, é claro – se propõe como uma banda de Moebius. Por isso,

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Lewis Carroll pode fazer Alice passar para o outro lado, que é o mesmo. Mas, para ir ao outro lado, tenho que dar com os cornos no espelho, ou seja, sacar que o significante que o espelho é – topologicamente, uma banda de Moebius – propõe imediatamente o real como impossível atravessamento. O atravessamento só se dá na estrutura lógica de sua escrita, e não no real do atravessamento, pois o real do espelho me quebra a cara. O real da parede não é nenhuma materialidade ou substancialidade conhecida da parede. É, sim, uma impossibilidade de eu atravessá-la. Amanhã, pode alguém inventar uma máquina que nos faça passar através dela. Não estamos livres disto. Mas, por enquanto, o real da parede é impossibilidade de atravessar.  Pergunta – Mas, mesmo que essa natureza seja uma impossibilidade, a própria ficção coloca a angústia de não se poder voltar... Mesmo que pudesse voltar, tenho que dar um nome a essa travessia. E, dado o nome, já não segurei nenhum real nessa passagem.  P – Esse nome pode ser a 2 a que Lacan alude no Seminário 2? A 2 joga na infinitização de que falei. É infinitização para os dois lados, e, se a escrevo para cá, topo com uma coisa dura e intransponível. Intransponível só pelo fato de que, naquela lógica, toda vez que atravesso, caio do mesmo lado. Então, é impossível atravessar. A Travessia é isso. *

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Então, na transa lógica entre as duas imagens, vamos encontrar o mesmo movimento do que acontece com a psicanálise. Se lerem o Seminário 1, de Jacques Lacan, verão que ele mostra com um aparelho comum, um modelo de ótica geométrica, o que aconteceria numa análise. Na página 312 da edição francesa, temos desenhados, à esquerda, um espelho côncavo, A, ao centro, um espelho plano, e, à direita, outro espelho côncavo, B. Como sabem, o espelho côncavo produz uma imagem que é chamada de real porque não se produz atrás ou na superfície do espelho, mas à sua frente:

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Diz Lacan que o que acontece na análise, para fazer uma metáfora simplória, no caso da ótica geométrica, é como se tivéssemos, do lado esquerdo, o percurso do analisando. Vamos supor que a imagem real se desse em O. O analisando, que não está nesse lugar, faz a suposição de ter uma imagem real construída aí. É o que se chama eu-ideal (Ideal-Ich). Ele faz a suposição de ter uma imagem própria constituída em algum lugar, mas acontece que o que ele mais desconhece é a imagem que supõe ter. Quer dizer, ele denega os elementos que, num passado recalcado, constituíram sua imagem real, que ele desconhece, mas que está lá funcionando. Ele tenta apreender que imagem é esta a partir de um ponto qualquer, C, entre o espelho e a imagem real que ele produz, O. É isto que ele vai procurar na análise. Então, há um espelho plano e, do lado direito, outro espelho côncavo. A quem recorre o analisando para poder descobrir sua imagem? Ao analista, que está em B. No que recorre ao analista, este vai fazer certos truques de maneira que, quando aquele vê, da posição qualquer em que estiver, sua imagem no espelho da esquerda, a imagem virtual vai se constituir como imagem real no espelho da direita, que estaria no lugar do analista. O’ é uma imagem real produzida pelo espelho côncavo, B. Refletida no espelho plano, ela se torna imagem virtual desta imagem real, O. Mas, para o espelho côncavo, B, ela é sua imagem real. A babaquice do analisando é essa suposição de saber entregue

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ao analista. Ele vai ao analista supondo que este possa ser aquele espelho côncavo, do outro lado, produtor da imagem real que, para ele, possa ser imagem virtual de sua própria imagem real. Ele supõe que o analista possa fazer isso. Mas é tão evidente que o analista não sabe, que ele vive da suposição que o outro faz de que ele sabe, que, se considerarmos o espelho plano, aquilo da direita não é senão o reflexo da esquerda. Toda esta região não é senão o reflexo da outra. No entanto, é o método que há. Então, ele começa falando e pintando umas imagens para o analista que vão, sucessivamente, se aproximando da imagem real, O, quer dizer, aquela que o constituiu como eu-ideal. Mas ele só pôde fazer este percurso porque estava no campo do desconhecimento dessa imagem, estava agindo sem conhecer esta imagem, esta postura de ego, como dizem os analistas. Como faz ele esse percurso de vários pontinhos aproximando-se de O? O analista lhe dando rasteiras, driblando-o do lado de cá. Ou seja, ele apresenta um ponto à esquerda e o analista resiste em aceitar que seja a imagem verdadeira, dialetiza a imagem pintada. Essa imagem é dialetizada, quer dizer, não recebe resposta – se o analista dissesse: “Já entendi!”, o analisando jamais sairia dessa posição –, o analista não entende, faz silêncio, dribla o sujeito pela incompreensão. Não compreende, ou seja, exige que se diga de novo a imagem. E ela vem deformada. Quando vem deformada, pula de lugar. O que aconteceu? A exigência do analista é empurrar, driblar a imagem. O sujeito pintou com uma imagem, ele faz silêncio, a imagem escorrega, passa para outro ponto mais perto de O. Se ele aceitasse a imagem, ficava-se no mesmo ponto. Mas ele dribla outra vez e a imagem vai se acercando de uma constituição. Chega um momento em que, com muita rasteira que se dê, a imagem não se move mais, ou não se move substancialmente. Então, deve ser aquela. Isso é que é o Tempo na análise. Isso é que é a Transferência, essa paixão narcísica que não se aceita como narcísica, pois o lado do analista não aceita o narcisismo. O analista depõe o Poder – falaremos disso adiante. Ao poder que lhe é dado de dar respostas e carimbar o outro, ele renuncia. No que renuncia, o outro cai do lugar. Responder a demanda é um ato de poder, e não

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respondê-la é não ter poder para dizer se é ou não. Então, o sujeito vai deslizando pelo logro, pelo drible analítico. Suponhamos que ele possa chegar em O. Aí vemos que isso se processa como uma verdadeira espiral e que Lacan apresenta essa imagem apenas para mostrar como a função da análise, ou seja, da transferência trabalhada analiticamente, é fazer o sujeito cair de seu lugar de O – na correspondência de O e O’ – e encontrar a imagem ortodoxa, verdadeira, aquela que ele tem e desconhece. A metáfora da ótica geométrica é de que se constitui uma imagem real – aí está a brincadeira que Lacan fez. Suponho que meu real seja essa imagem que se constituiu num dado momento e que tomo como minha. Suponho que eu sou eu, ou seja, aquele ego que nomeio, mas que desconheço, pois, no processo de recalcamento, perdi os elementos construtores desse ego imaginário. Mas é imaginário puro. Ou seja, sou agido por uma imagem cuja composição desconheço. Se não conheço sua composição, não terei como ver que ela é puro nó de significantes. O primeiro trabalho da análise – e último, digamos – é fazer o sujeito dar de cara com esse ego, quer dizer, passar a não denegar mais. Isto porque o desconhecimento dele não é ignorância, e sim denegação. Não é que ele seja ignorante da sua imagem, e sim que denega que sua imagem seja imagem. Ele fica em volta, circulando a imagem. É um saber que não se sabe. E o analista vai tentar fazer o sujeito ver onde? Onde ele pode ver, que só pode ser do lado da direita. Como sabemos, só se pode olhar para o próprio rabo mediante o rabo alheio. Sempre foi assim. A frase não é “eu olha para meu próprio rabo”, e sim “macaco olha teu rabo”. Ou seja, se alguém não mandá-lo olhar o rabo mediante a posição de rabo em que alguém está, ele jamais verá o rabo. Não tem outra coisa na cara dele a não ser o rabo, e, por isso, ele não vê. *

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Lacan, então, mostrou que é vendo a imagem real como imagem virtual, porque outro está lá refletido, que o analisando pode vir à sua posição de imagem

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real. E Lacan pára aí nesse momento de seu seminário e, que eu me lembre, não trabalhou mais de outro modo o esquema dos espelhos. Vou agora continuálo pelo que ele disse depois. Diz Lacan que o progresso da análise é a tentativa de aproximar cada vez mais O e O’, o que pode ser lido de dois modos. Primeiro, é que sempre – e foi aí que Freud escreveu sobre a análise infinita, interminável – vai ficar uma defasagem entre essas duas posturas. O ponto O não será, talvez, nitidamente encontrável, pois haverá sempre uma dissimetria entre as duas figuras. Mas podemos ler de outro modo essa aproximação entre O e O’. Geralmente, párase aí, em que o sujeito constituiu, quer dizer, atingiu sua própria imagem, deixou de denegá-la. Terminou a análise? Não! Pode-se mandá-lo ir embora em qualquer ponto em que esteja perto disto, se ele estiver a fim de ir. Está numa boa, foi-se o sintoma que mais o aborrecia, tchau! Mas não terminou nenhuma análise. Depois, Lacan disse que, na verdade, só existe um tipo de análise, é a análise didática, aquela que leva o analisando a analista. As outras são, no percurso, o sujeito parar em algum lugar. Isto porque o logro – que é o fundamento de toda crença – da suposição do analisando é de que o analista esteja em B, mas não está. O analista só pôde fingir lá estar porque não estava. E o detalhe muito importante aí é que, no momento da suposição, estou num regime de poder. Quando digo que alguém é meu analista, estou delegando poderes a esse alguém, estou supondo que ele vai assumir esse poder. Ou seja, estou no logro de supor uma simetria entre a ignorância e o saber. Mas o que a psicanálise veio mostrar é que o saber é a projeção da ignorância, é sua imagem virtual do outro lado. Se o analista, enquanto pessoa – aparência física, nome, título, posição numa escola, numa sociedade, ou indicação de fulano ou de sicrano – parece estar em B, ele, enquanto analista, no momento da análise, produzindo o ato analítico, não está lá. Se estivesse, seria psicólogo, professor, ou mamãe. Então, se o ato analítico não está ali, onde está? O ato analítico, o momento da interpretação, é exatamente o ato de colocar o espelho na frente do analisando. Por que o analista é o sujeito suposto saber? Suposto por quem? Pela ignorância do analisando. E o que o analista vai provar é que não pode arcar

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com esta posição. Não é, por questões teóricas, ele dizer: “não posso”, é preciso provar no movimento, no processo. E o que vai acontecer se a análise for levada adiante, para além da mera exposição do O enquanto O’? Será o desfazimento da letra que essa imagem porta em significantes, in-significantes. É chegar à in-significância do significante. Se quiserem, é chegar ao dignificante. Esta é a diferença que há entre o significante de Lacan e o de Saussure e outros. Para estes, é significante, para Lacan, é dignificante. É a Ética da psicanálise: empurrar para tentar chegar ao lugar do espelho que cria todo esse sentido, mas não o é. Ele o cria como efeito. Mas é puro não-senso. Em outro momento pensaremos a questão do Passe analítico, mas é aí que está a travessia. Por isso, Lacan diz que a psicanálise só é psicanálise quando é didática, quando atravessa. Se tento essa aproximação, vou dar de cara com o espelho. Quando dou de cara com o espelho, porque ele é banda de Moebius, volto ao mesmo lado e fico eternamente nessa travessia, de dar de cara com o espelho. É, portanto, passar para o lugar do analista, que não é em B, como supõe o analisando, e sim no espelho, no centro do esquema de Lacan. Isso é que é chamado de “neutralidade analítica”, “posição silenciosa”, “insignificante”, “merdificante”, “dejetada” do analista, e é por isso que ele pode se colocar como objeto a. Ele se coloca num lugar onde não há especularização possível. O objeto a não é especularizável, não tem imagem no espelho. Aliás, nem o espelho tem imagem no espelho. Não se enganem com o labirinto que suponho existir quando eu me coloco entre dois espelhos, que é imaginário, pois um espelho diante do outro não reflete nada. E o passe, nessa topologia, não é senão conseguir sacar no percurso que é possível apenas refletir, sem responder. Ou seja, provocar a mesma angústia que sinto quando estou sozinho diante do espelho. Mas só que agora ela é empurrada, não desisto e saio correndo, não denego. O analista continua o processo. Alivia aqui, quebra o galho ali, mas insiste no empurrão. Insiste em ser espelho diante do analisando. Este lhe pede para parar, para tirar o espelho daí. O analista diz: “Tá bom, eu tiro” – e o coloca de novo. Vejam, então, que a topologia unilátera da superfície do espelho no que funciona, no que produz efeitos, os efeitos são partidos, são biláteros. É o que já

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lhes mostrei bastante como funcionalidade da banda de Moebius. No que, como unilátera, opera sobre si mesma, produz partição bilátera, mas ela é unilátera. O corte é unilátero e, quando opera uma coisa, apresenta coisas cortadas. Então eu, que sou tolo, porque vivo na denegação, preso nessa imagem que quero desconhecer, fico supondo o tempo todo que, se sou isto, logo há aquilo. Mas quando Lacan diz que sou onde não estou e estou onde não sou, criticando, segundo Freud, Descartes, está mostrando que não tenho outro estatuto, outra garantia subjetiva senão a do corte, do espelho. Nada do resto é garantido. Só aparece como efeito. Lembrem-se da criança de que falei no começo. Que garantia tem ela para segurar aquela imagem? A garantia unilátera, indecidível, desorientada, não orientada absolutamente, da superfície do espelho. Ela só tem a garantia de que, radicalmente, ela é espelho. Qual é o logro em que cai Narciso antes de ser castrado? A psicanálise é a castração de Narciso. Antes de ser castrado, ele cai constantemente no logro de que a outra cara, sua outra cara, sua carametade, que vê do outro lado da superfície do lago, seja garantia de que ele é, do lado de cá, como simétrico. E ele só vai poder ser castrado quando perceber que não tem outra garantia senão a superfície do lago, como estrutura de sua posição subjetiva, ou seja, estrutura significante, ou seja, insignificante, puro corte, que quando opera produz muitas divisões, muitos discursos, mas que, em si, seu estatuto fundamental, não é partição, não é o estatuto das partições, das partituras, é o estatuto do corte. Esta é a grande novidade e a diferença entre a psicanálise e qualquer outro discurso até hoje escrito. É que simplesmente só existe a Sexão, logo não existe o sexo. Ou seja, qualquer sexo que pinte, em função da operação da Sexão é efeito da Sexão. Que efeito? Não sei. *

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Estou insistindo nisto em função do que Serge Leclaire coloca ao tratar da questão do que acontece numa análise. Muitas pessoas me pareceram ficar meio deslocadas com o que ele disse.

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É preciso ter claro que as definições lacanianas são circulares, são sempre rigorosamente presas à mesma ordem topológica. A concepção da topologia do espelho nos dá ao mesmo tempo a concepção do que seja o significante, o corte refletor e reflexivo entre uma coisa e outra, e o lugar do sujeito, que é esse corte entre um significante e outro. Olhem o deslocamento do espelho aí: o abismo onde se propõe o sujeito. Quando o espelho se desloca naquilo em que o significante é cortante, e o sujeito é corte, é escansão, estou apontando para o sujeito no interstício do significante. E só posso apontar para o significante na passagem de um para outro, pois o significante em si não é nada, é aquilo que representa o sujeito para outro significante. E o que é o sujeito? É aquilo que é representado de um significante para outro. E o que é o significante? É aquilo que representa o sujeito... O que é o significante? É o outro. O que é o sujeito? É o outro. É como disse Rimbaud: “Je est un autre”, eu é um outro. Este é o sujeito que chamo de Eu com a mesma palavra que chamo aquilo que penso que é o ego meu. Esta é a confusão do enunciado e da enunciação, pois não apreendemos a imagem a não ser pensando no espelho, e não apreendemos o espelho a não ser pensando na imagem. E quando pensamos na imagem, ela, pelo olhar, troca de lugar para o lugar do espelho e começa a escandir adiante. O significante, então, faz recortes e propõe o sujeito. O sujeito escande as passagens e propõe o significante. É esta circularidade que não me dá nenhuma substancialidade numa definição, a não ser escansões. Assim, vemos que a psicanálise não vigora na ordem do poder. Não estou dizendo que as sociedades psicanalíticas não sejam poderosas, mas isto é outra coisa. Lembram-se do quadro de René Magritte, A Reprodução Interdita? É o retrato de um fulano de costas diante de um espelho. Achamos engraçado porque, na imagem, ele também está de costas. É chistoso, temos que rir. É um chiste bem feito, mas é rigorosamente pensar o espelho segundo a topologia que vimos. Na verdade, se o espelho reproduzisse o que diz a óptica geométrica – minha simetria absoluta –, quando estivesse diante dele, eu me veria de costas. Vejam que o que ele faz no quadro é uma gozação com o cartesianismo. Já Marcel Duchamp vai mais longe em seu Grand Verre, pois tenta perguntar o

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que é a diferença sexual. Ele, aliás, apresenta isso no decorrer de uma série de trabalhos, como vimos no Seminário do ano passado: o molde macho, o molde fêmea, os coletes, o retrato de travesti, etc. Mas no Grand Verre é onde tenta teorizar isso (antes de lhe dar a grande configuração final no Étant donnés). Ele colocou o campo dos celibatários e o campo da mariée – o campo dos homens e, talvez, A mulher, o Outro sexo. E o que põe entre os dois, e ainda inscreve aqueles objetinhos da travessia? Um espelho. Ele nos engana porque constrói a obra sobre um vidro e coloca uma barreira: de um lado, o campo da máquina celibatária, do outro, o campo da mariée. A barreira é que é o espelho – e ele tenta uma travessia pelo espelho. Mas ele me engana porque faz a obra em cima de um vidro que tem certa competência refletora, e posso pensar que o espelho é isso. E é. Ele coloca o espelho aí para mostrar que não se é senão espelho, e para mostrar que o outro lado não existe. Isto é indicado em várias coisas, sobretudo no même do título, La Mariée Mise à Nu par ses Célibataires, Même, a noiva despida por seus celibatários, mesma. Vejam que ele diz que même, que a coisa mesma, começa a mesmar: você atravessa e cai do mesmo lado. É porque há o significante que Lacan diz que A mulher não existe. Não é que mulheres não existam. Mulheres são sintomas que andam por aí. A mulher não existe porque, se existe o significante, se o homem fala, não existe o outro sexo. Então, se as imagens no espelho são radicalmente dissimétricas – mesmo se fizermos a reversibilidade, mesmo que tenham uma coincidência, elas mantêm sua dissimetria –, toda vez que algum falante se coloca diante do espelho, o que está no lugar da imagem é outro. Em qualquer posição do falante numa relação imaginária, automaticamente, ou seja, pela incidência do significante, ele está tratando com outro-sexo, seja qual for o sexo com que ele esteja tratando. A dissimetria implica que, se eu resolver transar comigo mesmo, não conseguirei, pois minha imagem no espelho é outro-sexo, ou foi operada pela Sexão, tornouse dissimétrica. Só falei do outro sexo para esclarecer, porque é simplesmente Outro, sexo – foi seccionado de outro modo. Como o espelho enquanto banda de Moebius, superfície unilátera, é absolutamente heterogêneo a toda e qualquer

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formação de efeito – quando a faca corta, o corte é heterogêneo logicamente às bandas que ele parte: o corte é unilátero, a partitura é bilátera naquele momento –, há uma heterologia. A lógica do espelho é hetero-lógica em relação à lógica do espelhado, uma é bilátera e a outra unilátera. Mas enquanto estiver aprisionado no regime do imaginário, só vendo a bilateralidade, suponho poder encontrar na corporeidade aparente de uma pessoa o indício de que é do outro sexo, mas eu é que sou idiota. Por isso, a fisiologia, a biologia, a psicologia e todas essas gias – já lhes disse que “gia” no nordeste é sapo – ficam fazendo um esforço terrível para segurar quantitativamente as marcas e os indícios de que se trata de tal sexo, e não de tal outro. E não conseguem, pois só podem fazer isto articulando no campo da linguagem. E o significante subverte toda e qualquer sexualidade. Como diz Freud, a sexualidade do homem é a essência da estrutura psíquica enquanto sexualidade louca. Ou seja, toda aparência de sexo é outra, por isso não existe o outro sexo, A mulher não existe. O gênero é homem. No imaginário, postura-se a possibilidade de surgimento de um outro gênero, o gênero mulher. É a confusão, por exemplo, que existe na luta das mulheres do Women’s Lib. Ao exigirem igualdade de condições, elas como que exigem que se reconheça que existe um gênero do mesmo valor chamado mulher, mas as mulheres só servem quando são homens. A revolução feminina e o reconhecimento de uma ética de igualdade só poderão ocorrer quando as mulheres perceberem que são homens, passarem para o mesmo lado. Enquanto estão em campos opostos, é pura fantasia. Isto quer dizer – e quando Lacan diz isso o pessoal se arrepia – que a sexualidade humana só pode ser homo-sexual. O que não significa que as pessoas devam, obrigatoriamente, transar isso que se chama “perversão homossexual”, e sim que um homem diante de uma mulher, um homem diante de um homem, uma mulher diante de uma mulher estão sempre transando com o outro sexo, ou seja, com o mesmo. Toda prática sexual do homem é, pois, homossexual, cai sempre do mesmo lado, seja qual for o objeto. Ninguém come ninguém por inteiro. Come um pedacinho aqui, um pedacinho ali, come objetos parciais... Toda prática sexual está no regime do

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significante, portanto cai na partição do mesmo modo, na mesma heteronomia, heterologia do significante, rebatendo tudo para o mesmo lado, como partido. E porque é partido, faz partido – faz partido para tentar fechar. Mas basta ser partido, não é preciso fazer partido, pois recai do mesmo lado. Isto é que é a homossexualidade. Não existe outra. O que chamam de prática homossexual é perversão em determinados brinquedos aqui e ali, como qualquer prática sexual, aliás. Não existe prática erótica, gastronômica, ou qualquer outra, que não seja perversa. Está-se condenado a isto. Nem por isso, no que se qualifica uma perversão sexual, que aborrece o sujeito, podemos deixar de tentar a cura daquela instância perversa, e não da homossexualidade, pois esta não tem cura. Se curar, o sujeito acaba, não é sujeito. Ou seja, o aprisionamento num feitiço perverso pode causar embaraço ao sujeito, mas não necessariamente, pois não se tem outro regime para articular a relação de objeto a não ser o perverso. Por isso, os perversos não são aborrecidos feito os neuróticos. Eles só ficam aborrecidos quando os fazem ser neuróticos pela pressão do outro lado. Nenhum perverso procura analista para curar perversão. Procura para curar a neurose que tem por causa da perseguição contra a perversão. Se deixá-lo ficar em sua perversão, ele está numa boa... Por isso, a perversão é o avesso da neurose, como diz Freud. E, como diz Lacan, a neurose é uma perversão que não deu certo. O que tampouco é o comício para dizer: “Vamos ser perversos!” Não adianta, porque já é. Não é a apologia da perversão, e sim o reconhecimento dela. Quando alguém brande a frase “vamos ser perversos” é porque é neurótico. Se fosse perverso, não diria isto. *

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Vimos, então, como está tudo misturado na mesma relação. Espero ter acrescentado algum entendimento melhor à questão do significante, para continuar nossas conversas e o trabalho de estudo de vocês. Vi que o pessoal não estava percebendo a diferença radical do significante em Lacan, que é pura escansão do

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sentido. Onde o significante funciona, ele subverte o sentido. Por isso é que existe metáfora e metonímia. Agiu o significante, cai-se na metáfora e na metonímia. O aprisionamento num sintoma é aprisionamento da cadeia significante. É querer que a cadeia não seja significante. É pegar os pontos de basta, os points de capiton, e querer congelá-los. Disso é que sofre o neurótico, que tem um congelamento de significantes num recanto que insiste em ficar congelado naquela ordem, não fazendo metáfora nem metonímia. Não se trata absolutamente de destruir o sintoma do analisando – se não, o destruímos –, trata-se de desfazer o sintoma em seus significantes e deixar os significantes lá. Está aí rebatida a questão de psicanálise e poder, que não é nada disso que a patota esquerdista fica querendo resolver com golpes de institucionalidade. Nenhuma escola, nem a de Lacan, nenhuma sociedade psicanalítica representa o que é a psicanálise. Representa simplesmente uma instituição que, de um modo ou de outro, tenta ajuntar uma porção de gente que pensa que é psicanalista para fazer algum trabalho. O discurso psicanalítico não é a Escola Freudiana de Paris, como não é a Internacional de Psicanálise. Esta é a política radical da psicanálise, que me parece ultrapassar qualquer virulência política em qualquer discurso já pronunciado. Isto porque subverte toda e qualquer arregimentação significante congelada, toda e qualquer tentativa de imposição ideológica. Acontece que existe uma moça-velha chamada Anna Freud que não entendeu nada do que o pai estava dizendo e transformou isto numa situação de poder. Transformou a tal ponto que, não satisfeita com sustentar rigorosamente a tal sociedade psicanalítica e produzir aquilo que ela pensa que é um analista, ainda por cima aconselha que o analista deva congelar e reforçar a imagem do desconhecimento do analisando. É conseguir dizer o contrário do que Freud trouxe. Será que filho é avesso do pai? Como disse Leclaire em sua conferência, é porque não há imagem de pai que ela se defrontou com o pai como mãe. E quem conhece a mulher de Freud, sabe de quem se está falando.  P – No Seminário 2, Lacan refere-se função simbólica, como o único registro onde pode funcionar a análise. Ao falar em significante, você está falando disso também?

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Lacan diz literalmente, não me lembro em que seminário, que a escuta analítica é tentar dar a tudo que se apresenta de significante uma outra interpretação. Isto significa que, quando o analisando fala, o significante que ele põe, para ele, é significado, e se você dialetiza e dá outra interpretação, você faz escorregar.  P – Isso que é forçage? Forçage porque é forçado. A interpretação analítica não é achar oque-quis-dizer o analisando. Isto é bobagem. Não é o sujeito contar um sonho para se descobrir o que aquilo é, pois não é coisa alguma. Mas há que saber escutar no regime que Freud escutou para achar pontos em que, lá adiante, vaise dar uma rasteira para aquilo deixar de ser o que ele pensou que fosse. Sempre é outra coisa. Até hoje, porque Freud tentou mostrar a lógica do que vigora num sonho, chegando a um ponto de achamento plausível, todos os imbecis lêem a Traumdeutung pensando que ele descobriu um método de dizer que o sonho de alguém foi exatamente aquilo. Ele jamais disse essa asneira, e sim que o processo se monta metafórica e metonimicamente. Por isso mesmo não se pode chegar ao fim da análise de um sonho. É o tal umbigo do sonho, que se chama: espelho, significante. Justo porque o significante vigora, posso permanecer de tal maneira na interpretação de um sonho que chegarei a dar qualquer interpretação, e ser válida. Mas é preciso que eu dê a interpretação correta quando ouço. Qual é a correta? É aquela que empurra um pouco, portanto é plausível. Mas todo analista, que supõe que o seja porque recebeu um diploma da Internacional, não pode ouvir um sonho sem interpretar. Ele fica com coceira, pensa que não é analista se não produzir uma interpretação. Mas, às vezes, há momentos em que a grande interpretação é alguém contar o sonho, porque sabe que você é analista e deve estar paquerando o sonho dele, e simplesmente dizermos que “não interessou”. Se o folclore psicanalítico está na rua, o analisando já vem interpretando. Você vai interpretar mais para quê?  P – O desejo desse sonho seria desejo de ser interpretado? A coisa mais difícil hoje em dia é alguém contar um sonho e você não interpretar. Aí você caiu, deu a resposta. Ela está lá fora. Lacan diz que o

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analisando de hoje não é o mesmo do tempo de Freud, ele vem com um saber psicanalítico que derruba qualquer analista. Ele já vem no barato. Se interpretar, destruí toda possibilidade de análise. Fiz a hermenêutica que ele já estava fazendo há muito tempo. Ele já estava deslocando. Irei eu deslocar esse deslocamento dele? Não. Ele vai quebrar a cara.  P – A interpretação correta é fazer vigorar o significante? A escuta é necessária, é séria, não é nenhum araque, pois só se pode fazer vigorar o significante na medida em que aquela narrativa faz sentido. Ou seja, é preciso que você perceba o sentido e o empurre para o lado. Se não, a interpretação não faz sentido como empurrão.  [Pergunta sobre a Medusa] Freud escreveu um trabalho sobre a Medusa, interpretando como “ato apotropeico”, a exposição de falo. O falo, para a psicanálise, chama-se: espelho. O espelho é o lugar do falo, do significante, do sujeito, do analista, é o ponto da travessia. Como sabem, a Medusa é aquela figura da mitologia com serpentes em vez de cabelos, uma proliferação fálica do ponto de vista do imaginário na cabeça. Qualquer um que se defronte com ela se petrifica, vira uma estátua de pedra. Só um herói, Perseu, consegue acabar com aquele poder ao colocar seu escudo polido na frente dela. Ela, ao se ver refletida, se petrifica. Tudo que se disse de sério e de decente na arte, no pensamento, na mitologia, recai nessas coisas. Retomando o Estádio do Espelho, a Medusa é o primeiro momento, aquele em que, diante do espelho, a criança se petrifica numa imagem para poder chamar-se de alguma coisa. E Perseu é aquele que põe o espelho pela segunda vez. É o analista. Ele vence a Medusa porque lhe apresenta seu (dela) verdadeiro rosto: nenhum. O heroísmo de Perseu foi dizer que o espelho é o espelho. Se investirmos o olhar no espelho, ficamos petrificados, caímos na imagem. É preciso reconsiderar o que acontece nesse aprisionamento para poder ver o espelho, e não a imagem que ele nos mostra. Então, o que há a fazer é tornar-se espelho, aprender sua lógica. Do mesmo modo, a transferência petrifica. Não há análise sem transferência, mas há que analisar a transferência porque é a maior de

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todas as defesas e resistências que existem na análise. O sujeito olha para o analista, que está tentando ficar no lugar do espelho, vê a imagem, e se petrifica na paixão narcísica pelo analista. E como você pode fazer análise com alguém por quem você está apaixonado? Não pode. É preciso analisar a paixão para, depois, deixar de ser paixão. Não há análise sem amor de transferência, o qual estraga qualquer análise.  P – Serge Leclaire, em sua última conferência, disse que, na falta de representação do pai, o homem passou a fabricar A mulher... ...porque não soube fabricar o homem.  P – Então, o que sobrou foi a estátua da mulher. Não havendo estátua do pai, na vigência disso para o que Leclaire inventou um nome muito bonito, a Social Incestocracia, que soa como a ordem nazista, ou seja, por falta de vigor do discurso psicanalítico, estão todos admirando a estátua materna. Qual será a função do discurso psicanalítico aí? A invenção da estátua do homem. O homem não é a mãe, é isto que a psicanálise veio dizer. O Ocidente inteiro, a filosofia em toda sua história, repetiu que o homem é a mãe. Só se for a mãe deles. E quando a psicanálise vem posturar a função mortal da falta de imagem paterna... Aliás, aí está algo que me esqueci de dizer hoje, que, no lugar do espelho, é onde se inscreve o Nome do Pai – e isso não tem imagem. O espelho não tem imagem, o que a tem é o que se põe diante dele. Não tem imagem paterna. Você, em sua história, vem de uma cena primária, de uma cena de sua fundação, na qual reconhece a imagem materna, mas não a paterna. Esta não tem imagem. Como você não tem outra história, então sabe que é fundado como um certo ser. E como não sabe inventar o ser do homem, isto que se chama ser humano, você faz a estátua da mãe, que também não é A mulher (mãe nada tem a ver com mulher). A mulher não existe. Se existisse, você veria o rosto do pai, ele teria imagem. Se tivesse condições de, na precisão não imaginária, escrever uma lógica, um outro sexo do homem, do gênero humano, você teria a configuração d’A mulher. Você fecharia o circuito, não haveria brecha, não haveria mais significante, portanto, o pai teria um rosto. Qual? A mulher. É o mesmo rosto que tem A verdade. Se A verdade fosse inscritível,

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seria mulher. Se pudesse dizer A verdade, você encontraria A mulher, que não existe. O místico é quem transa nessa ordem.  [Pergunta inaudível] É a letra do sujeito, seu estilo, só que ele desconhece. Ele tem que se defrontar com sua figura. Essa figura foi fundada por um encadeamento significante que é congelado. Esse encadeamento significante é o que Lacan chama de letra, que é uma amarração significante que está presa ali. O tal do seu estilo, que você desconhecia, que o fazia agir uma porção de sintomas e que você denegava, você terá a chance de chegar agora e ver de perto. Isto é a possibilidade da cura, da travessia. Não é nada mais que uma porção de significantes, que não quer dizer absolutamente nada.

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SEXUAÇÃO E ANATOMIA A presença de Serge Leclaire sintomatizou a todos. Que bom! Não há como falar em discurso com esse problema no ar e com os efeitos que tenho visto, os mais estranhos, em regiões internas e externas a nós. É preciso, talvez, fazer um acordo, ou um desacordo, que, pelo menos, fale bem sobre a questão. Sabemos, por mais mestria que se finja colocar na situação de estar proferindo coisas, que a postura é sempre de analisando. Felizmente, pois me deixa à vontade para desenvolver um discurso como me parece poder ser desenvolvido. Então, coloco um ponto de interrogação prévio a cada frase que disser hoje. Não estou dando resposta, pois acho que ninguém sabe, muito menos eu. Por isso, preciso manter a interrogação. Há questões que me parecem cruciais. Por exemplo, a de falar em discurso masculino e discurso feminino – que é algo que corre no ambiente da Escola Freudiana de Paris, ainda que na tangente. Então, para discutirmos melhor, gostaria que lessem os seguintes livros: de Luce Irigaray: Speculum. De l’autre femme (Paris: Minuit, 1974) e Ce sexe qui n’en est pas un (Paris: Minuit, 1977); de Moustapha Safouan, La sexualité féminine dans la doctrine freudienne (Paris: Seuil, 1976), que já saiu em português; de Eugénie Lemoine-Luccioni, Le partage des femmes (Paris: Seuil, 1976); de Michelle Montrelay, L’ombre et le nom. Sur la féminité (Paris: Minuit, 1977). Leclaire abordou a questão do feminino em On tue un enfant. Essai sur le narcissisme primaire et la pulsion de mort (Paris: Seuil, 1975). Além disso, depois da publicação em dois números (1 e 2) sucessivos na Ornicar?,

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chegou o livro de Jean-Claude Milner, L’Amour de la langue (Paris: Seuil, 1978), que não deixa de estar tratando da mesma questão, a qual está abalando e é motivo de cisão na Escola Freudiana. E há um livro que parece que Lacan detesta, de um aluno dele, François Roustang, que, se não trata da mesma questão, trata da explosão da Escola, Un destin si funeste (Paris: Minuit, 1977). Recomendo estas leituras para sabermos o que está ocorrendo lá, pois, de repente – e mesmo eu estando informado um pouco, tenho evitado tratar disso até agora, já que aqui não é Paris –, essas “invasões” francesas acabam necessariamente trazendo o problema para cá. Nós que não vivemos a possibilidade de entrar no discurso lacaniano ou em seus efeitos, já estamos topando com essa explosão, que é algo que tem jeito de acontecer lá, mas que não cabe aqui, onde ainda não há nada para explodir. *

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O convite que me parece que Leclaire fez aqui em público é o de se recorrer às mulheres, quer dizer, do modo como ele está trabalhando com grupos femininos ligados a Luce Irigaray. Tudo bem, acho que temos que recorrer às mulheres, é claro: elas são feitas para recorrermos a elas. Mas é preciso retomar os textos de Lacan, pois o que Leclaire nos trouxe é a mesma problemática apresentada no Seminário 20, que foi pouco trabalhado aqui entre nós, embora, como publicação, seja antigo, anterior à do Seminário 2. Então, não me consta que Leclaire dissesse algo que Lacan já não tivesse dito no Seminário 20. Mas parece que ele tem uma prática – que ele quis chamar de estratégia – que requestiona isso, juntamente com o questionamento que ele próprio faz de Lacan. Existem vários Lacans na cabeça dessa gente: o teórico, o analista, o diretor da Escola Freudiana, Monsieur le directeur, que muitos contestam, mas que está lá para isso... Não posso, por exemplo, entender Leclaire declarar no jornal que Lacan devia ter a coragem de acabar com a Escola. Ora, essa coragem depende dos discípulos, e não dele. Lacan teria que ser retalhado pelos alunos, e não acabar com a Escola, o que seria um ato de mestria, de dominação. A coragem

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tem que ser dos alunos. Se ele desfundar o que fundou, tira a chance de as pessoas dilacerarem o pai, de algum modo. Acho que ele faz muito bem em bater o pé e manter a instituição. Se não, ninguém chia. Mas, quanto à questão das mulheres, como há um grupo aqui que estudou On tue un enfant, talvez seja bom retornar ao texto. Não há nada nesse texto de Leclaire que não seja bonito ou que me pareça errado ou divergente de Lacan. Mesmo porque está na coleção dele. Quero supor que Lacan publicaria desvios em sua coleção, mas não contradições. Como disse, acho que consigo entender tudo que disse Leclaire, sobretudo quando faço reportagem ao Seminário 20 – seminário entendemos menos, pois vai mais longe e é mais complicado. Só há uma questão que preciso retomar. Aliás, por colocá-la, alguns pensaram que eu estava contra a posição de Leclaire, mas nada tenho contra ou a favor, muito pelo contrário, simplesmente tenho a questão. Muitas pessoas que citam Lacan e partem de seu trabalho, mesmo que para contestá-lo, sempre retomam a parte central onde ele demonstra e afirma que A Mulher não existe. A própria Luce Irigaray, nesse texto, Ce sexe qui n’en est pas un, que é comentário de seu livro anterior, mostra que não há comum no sexo e retoma, concordando, o que disse Lacan. Portanto, aqueles que não leram o Seminário 20, Encore, dado o sintoma que pintou, deveriam fazê-lo. E também ler um texto mais difícil, chamado L’Étourdit, publicado em Scilicet 4 (Paris: Seuil, 1973), além de Radiophonie, publicado em Scilicet 2/3 (Paris: Seuil, 1970) e Télévision (Paris: Seuil, 1974), que são momentos em que trata da questão do feminino. Quando Lacan, no Seminário 20, divide os seres sexuados, falantes, em dois campos, que chama de Homens e Mulheres, é preciso sempre lembrar que estas duas palavras são significantes. Eugenie Lemoine-Luccioni, no livro que citei há pouco, diz que não podemos esquecer que, quando Lacan usa palavras, ele usa significantes. Então, quando escreve “Homens” e “Mulheres” no gráfico da partilha da sexuação, da divisão dos sexuados em campos diferentes, está usando significantes do mesmo modo que, nos Écrits, em A instância da letra no inconsciente, colocou duas portas absolutamente idênticas

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com os significantes “homens” e “mulheres” em cima. A diferença aí só se estipula a partir do simbólico, ou seja, da diferença do vazio que existe entre as duas portas, pois não há nenhuma pregnância de significado. Por mais concessões que Lacan possa fazer ao imaginário, ele deixa algo muito claro na seguinte citação (que acho bastante sintomático não estar no livro de Luce Irigaray): “A todo ser falante, como se formula expressamente na teoria freudiana, é permitido, qualquer que ele seja, que ele seja ou não provido dos atributos da masculinidade – atributos que restam a determinar – inscrever-se nesta parte” – ele está falando, aí nesse caso, das mulheres. “Se ele se inscreve nela, ele não permitirá nenhuma universalidade, será não-todo (pas-tout), no que tem a opção de se colocar na x ou de não estar nela” (Le Séminaire. Livre XX: Encore, p. 74). Em outro momento, Lacan torna a apontar para a posição feminina e se refere, para chamar atenção sobre o caso, às jaculações místicas de Santa Teresa e de São João da Cruz – e inclusive coloca seus Écrits como pertencentes a essa ordem de discurso, ou seja, ao campo do feminino (Le Séminaire. Livre XX: Encore, p. 71). O que quer dizer isso? Será possível colocar a questão de discurso masculino e discurso feminino? Em caso afirmativo, qual é o referencial para essa diferença? Como disse, só uma coisa me põe questão no livro de Leclaire, onde ele já coloca todas as posturas que nos apresentou, onde se há de encontrar as aberturas que está fazendo no movimento de mulheres, etc. Questiono o momento em que ele passa, um pouco de tangente, e usando certas aspas nos lugares adequados, pela questão da possível determinação anatômica da sexualidade. Diz Leclaire: “Correlativamente a uma evidente determinação anatômica, o sexo se caracteriza, portanto, como um modo de entrada no discurso”. Em outras partes, ele fala de certo natural – “podendo aí reverter para cada um a dominância ‘natural’ do discurso de seu sexo” [On tue un enfant. Paris: Seuil, 1975, p. 39]. Em suma, coloquei esta questão a ele, que disse que não queria discussões acadêmicas. A anatomia é uma coisa plenamente acadêmica... A tônica do livro de Leclaire – e como ele nada disse aqui de diferente, está valendo – é de, repetidamente, apontar para o falo como referente de

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alguma possível castração, como referente de uma possibilidade de diferença sexual, ou seja, de alguma heterologia sexual a partir da heteronomia fundamental do falo. Tudo bem, isso é puro Lacan. Vejam, por exemplo, p.32-3: o pênis é “ao mesmo tempo, diferença e signo da diferença, sexo e signo visível da diferença do sexo. Temos que levar em conta, enfim e, sobretudo, que a relação da qual ele é um dos agentes não pode se formalizar de modo algum, a não ser reduzindoo a uma copulação reprodutora, na medida em que o gozo não entra em nenhuma ordem senão inconsciente. O falo, referente da ordem inconsciente, não pode ser apanhado num conceito. [...] É a mesma coisa que dizer que não existe nem imagem, nem texto do falo: só o encontramos pelo gozo do corpo e no risco do amor. Seu único conceito é inconsciente: é a castração”. Não há nisso nada que extrapole estritamente o que é a teoria lacaniana. Mas, em certo momento do livro, ele coloca que a mulher tem uma relação imediata com o falo. No Rio, ele disse que ela tinha uma relação imediata com o real, embora tenha colocado tudo dependente do falo e tenha escrito no quadro o , que, para mim, se chama significante primordial conforme Lacan usa. Ou seja, é significante, e qualquer significante não teria entrada, assentamento possível na ordem inconsciente a não ser que fosse produto de recalque. Estou falando em significante como pertencente ao campo do inconsciente, e nenhum significante teria possibilidade de recalque se não tivesse o imã, como diz Freud, de um recalque originário que o empuxasse. E o tal recalque originário é algo que jamais será desrecalcado. O falo é, pois, significante primordial, puro buraco, sem sentido, que empresta não-sentido e sentido ao mesmo tempo ao sujeito. Leclaire diz isso com todas as letras, mas também diz: “...a fase ‘fálica’ da menina se inscreve, no momento de seu declínio, numa série homogênea de experiências de perdas, separações e faltas, e acha lugar naturalmente, por assim dizer, na estrutura do inconsciente regida pela castração. Tal encadeamento da experiência, condicionado pelos dados da anatomia, dispõe” – atenção, pois isto é grave – “a mulher a uma relação imediata com a operação da castração. Por este fato, ela mantém o mesmo nível de relação para com a operação de recalque originário e só investe um pouco a operação do recalque secundário (o recalque propriamente dito); as representações conscientemente rejeitadas

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que constituem o recalque no inconsciente ‘secundário’ são de menor importância para ela do que os representantes do inconsciente ‘primário’, aquele do recalque originário” (p. 37). Acho que ele está absolutamente certo, só não sei o que é essa mulher de que ele está falando. Não podemos entender o que ele diz se pensarmos que as mulheres são isso que chamamos de mulheres. Entendo que sejam as mulheres de que fala Lacan e que parece serem as mesmas de que ele fala. Isto porque posso ler assim o texto inteiro. Minha única questão é: que relação estarão estabelecendo os autores psicanalíticos, como Leclaire e Irigaray, entre o anatômico e o simbólico? * * * Lacan, falando dos místicos, mostra a posição feminina de São João da Cruz, que, aliás, é a “tia” de Santa Teresa. Ele também mostra, como participando dessa feminidade, um místico como Angelus Silesius, que apresenta um texto mais da ordem da perversão do que do feminino. Ou seja, ele está apontando para um lugar onde supõe aparecer o que chama de feminino – o que é formulizado assim:

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Ele começa da mesma questão de sempre, da postura freudiana de que só existe libido masculina – e esse masculino não quer dizer homem, isto é, quem tem pênis. É a velha história da diferença sexual, da presença e da ausência e do surgimento do falo como significante. Qualquer pessoa que siga a referência a um falo, enquanto significante primordial, já acolheu em seu discurso a questão da transformação da diferença sexual visível, imaginária ou anatômica, em significante da diferença. Ou seja, se fazemos referência ao falo, estamos na ordem do significante primordial, da diferença, pois é o falo que faz a partição. Vou fazer certas distinções para nos entendermos. Quando disser relação ao sexo, quero dizer o que Lacan chama de le rapport au sexe; quando disser relação sexual, vou me referir a relation sexuelle, que é o que se fala no cotidiano como relações sexuais, transas; e como Lacan também diz que le rapport sexuel n’existe pas, traduzo neste caso por relação dos sexos. Assim, é relação ao sexo a relação que qualquer sexo tem à Sexão, ao falo que parte as posições, que é um corte, o significante puro que parte tudo que toca. Esta relação ao sexo, enquanto relação à Sexão, é a mesma para qualquer sexo. Relação sexual são as transas, os intercursos que existem entre os sexos. É algo que corre ou ocorre entre eles. Mas quanto à relação entre os sexuados, entre as duas únicas posições que ele aponta como as possíveis de um sujeito cair em sua relação unária e única ao sexo, Lacan diz que não existe relação, rapport. Ou seja, o que não há é a relação dos sexos. Não há relação entre um sexo e outro nos dois campos da fórmula, só há relações sexuais. Dito de outro modo, não há sobreposição de duas coisas simétricas, que teriam correspondência imaginária ponto a ponto, pois estão subditas ao simbólico, que é dissimétrico. Lacan tenta, então, escrever a Lógica da Sexuação. Ele começa colocando: “Todos os homens” (x). Ou seja, começa com o que chama de l’hommosexuel, escrito com dois m para mostrar que se trata da espécie homem (homme). Mostra aí que há diferença entre a homossexualidade perversa e a condição homossexual do homem, que, esta, tem relação ao sexo, à única

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Sexão. A relação ao sexo é única. Por isso, diz ele, o estatuto do homem é de homossexual. Assim, nessa lógica, como pode aparecer a heterossexualidade? Esta é a questão trazida por Leclaire, que quer construir uma sociedade heterossexual, pois nossa sociedade, segundo ele, seria homossexual, como diz Lacan. Assim, o hommosexuel, em sua relação ao sexo, repartiu-se em dois campos: um, chamado Homem; e outro, chamado Mulher. Lacan diz que o Homem existe e A Mulher não existe porque o falo é o referente único da relação ao sexo. Ele é o significante primordial fundador da diferença sexual no simbólico, e foi fundado como significante na perplexidade da diferença que a criança encontrou no momento de entrada na ordem significante. Então, se o falo é o único significante de referência do falante, há que supor que todo falante satisfaz a condição fálica. Pode-se, pois, escrever a fórmula, x.x, que está lá significando isso: para todo falante (x) a função fálica (x) é satisfeita. Portanto, se é gente, falou, satisfaz a função fálica, seja homem ou mulher. Mas, diz Lacan, não há possibilidade lógica de pensar um para-todo que satisfaça a função fálica, a não ser que se limite o todo com algo que extrapola a função fálica. Se temos determinado conjunto que podemos nomear como todo, é preciso, logicamente, supor que exista pelo menos um (x) que não satisfaz essa condição (~x). Ou seja, é a exceção que (não confirma, mas) dá garantias à regra. Não posso pensar logicamente num totum se não ponho como limite a esse totum algo que não o satisfaz, que lhe é externo. Então, para pensar que todo falante satisfaz a função fálica, tenho que pensar que existe pelo menos um, ainda que suposto, que não satisfaz. Este é o limite dessa expressão, a qual não é pensável sem este limite. É nesse ponto que entra a chamada função paterna. Por isso, o pai só pode ser pensado enquanto morto. É a suposição da existência de pelo menos um que não satisfaz a função fálica, que Freud pintou como sendo o mito do assassinato do pai da horda primitiva. Este, miticamente, como limite lógico dessa função, não passou pela satisfação da função fálica. Lá é dito miticamente porque o (~x) é uma exigência lógica para se pensar o para-todo (x).

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No entanto, segundo Lacan, existem alguns falantes para os quais isso se articula de um modo outro. Ele, então, diz algo que é indizível na lógica até hoje, pois seria absurdo na cabeça dos matemáticos colocar a negação sobre o quantificador universal (~x). Ele funda a expressão que chama le pas-tout, que traduzo como não-todo. Isso não é pensável em termos de pura escrita matemática, mas vamos ver como ele se sai. Existem falantes que não se colocam como todo, que nos impedem de falar um para-todo em relação a eles. Portanto, não posso falar A Mulher do mesmo modo que digo O Homem como coletivo, pois, quando digo O Homem, estou me referindo a uma função que é para todo homem. No caso da mulher, estou designando uma função que não é para-todo. Assim temos: ~x.x. Ou seja, não-todo falante é função fálica. É possível pensar desse modo, desde que se negue a exceção. Quando, na seqüência, Lacan coloca (~x.~x), está colocando a negativa também sobre o quantificador existencial quanto à função fálica. Assim, ao invés de estar dizendo que existe pelo menos um que não satisfaz, como no caso do Homem, diz que não existe nenhum que não satisfaz. Então, se retiramos o limite, o todo se rompe e isso é logicamente pensável. Retomando, se temos o limite, ou seja, se há pelo menos um que não é função fálica, podemos falar que para-todo é, pois há um que não é nos garantindo como exceção. Mas se negamos a exceção, o um fica negado: não é um todo, e isso se rompe. Lacan, portanto, diz que alguns falantes, não todos, em relação aos quais não posso dizer todo, ficam dentro dessa estrutura lógica, que ele chama de campo das mulheres. Quando se fala do homem, pode-se dizer “todo-homem”. Por exemplo: “todo homem é mortal”. É claro que esta frase é uma besteira, mas mesmo assim não se pode dizer “toda mulher é mortal”, pois não existe toda-mulher. No máximo, pode-se dizer que certa mulher é mortal... Isto é algo que Lacan só pode demonstrar na parte de baixo de seu esquema, onde há um problema sério. Sem nenhum privilégio, apenas para colocar do lado do para-todo, escreve-se aí o sujeito em sua partição ($), como corte que é, originário, e, abaixo, escreve-se o falo () como significante primordial. Ou seja, o referencial daqueles que são todo, é um referencial de

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falo, portanto de sujeito. O importante talvez seja o referencial fálico que coloca o referencial sujeito. Então, o movimento de desejo desse sujeito atinge outro sujeito? Não, ele atinge um objeto. O sujeito procura um objeto a, que está notado do lado direito. Nesse procurar é onde se coloca a fórmula da fantasia: $a. E não há realidade que se estabeleça a não ser na relação do sujeito para com o objeto a: funda-se uma fantasia que é a tentativa de criação de realidade, e é mediante essa fantasia que se dá a relação que o sujeito tem com o real. Continuando, diz Lacan que qualquer um que caia do lado Mulher terá uma relação partida, será um ser dividido em sua relação significante. Não se trata da simples divisão do sujeito, que está em todos, e sim de que, em seus movimentos de referência, será um ser partido, que não pode se inteirar e que não pode dizer “O” ou “A”. Dizer que existe esse ser falante – que existe pelo menos um, ou que vemos existentes por aí – é dizer que se relaciona com o falo, mas não-todo: relaciona-se, por um lado, com o falo, e, por outro, com o Outro, ou seja, com o significante do Outro enquanto faltoso: S ( A ). Como sabem, o Outro não é inteiro, não faz uma completude, tem uma falta. Assim, para me situar como significante unário, ser-me, significante na minha referência com o saber, há que estabelecer uma relação com o significante do Outro enquanto faltoso. Então, há uns seres, falantes, que caem na posição de se verem divididos em sua relação a quê? Ao gozo. Como gozam os seres falantes, no sentido mais pleno e mais geral de gozo? Como abordar o gozo do ser falante? Aqueles que estão do lado do todo, no esquema, gozam de objetos a, o que é diferente de fazer gozar o objeto a. É o falo que fazem gozar. É a isto que Lacan chama de gozo fálico. Embora não coloque no esquema, Lacan nomeia (Le Séminaire. Livre XX: Encore, p.74) como indecente, como inde-senso (indé-sens), como reticente, como reti-senso (réti-sens), a postura absolutamente sem sentido do falo que não se pode tocar, e sim apenas representar para cada sujeito pelo significante primeiro (S1). Trata-se, pois, na posição de falo no esquema, de S1. Quem colocou o sinal de idêntico () lá, fui eu, pois não temos o falo como referente escritível, enunciado, só temos o S1. É quanto a esse ponto que quero

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pensar diferente. Lacan diz que é enquanto significante mestre, enquanto primeiro significante de sua referência, que o chamado Homem está no gozo fálico. Gozo este que ele chama de gozo do idiota, aquele que só se refere à ordem da masturbação, ou seja, aquele que goza sozinho: de tanto sacolejar, ele goza em sua gozação extremamente particular de significante unário. Lacan fala, por exemplo, da postura de Sade como a do idiota sublime, que goza mesmo. Isto no sentido grego de ídios, ‘mesmidade’, e no sentido do même, de Duchamp, de que lhes falei na seção anterior. É o tal gozo fálico. Mas há gente que não goza só assim, ou não goza todo assim. Por isso, Lacan coloca aquele que está no lado Mulher – que não é todo e não chega a fazer um bando – como tendo relação ao gozo fálico, ou seja, goza falicamente, sim, e que, portanto, é homem também, faz parte da estrutura da homossexualidade do falante, goza de falo para falo, cada um gozando sozinho. Mas há um gozo a mais, que mulheres – ou supostas mulheres, segundo Freud – dizem que têm, mas que não sabem dizer o que é. Daí é que proliferam tolices sobre tecido posterior do útero, tolices corporais para saber onde está esse gozo. Ora, ele não passa pelo corpo, e sim pela fala. Por ter afirmado isto, diz Lacan: “Vão dizer que acredito em Deus, quando acredito no gozo das mulheres como algo a mais. Não estou fazendo ressurgir Deus, embora não haja outro Deus senão aquele que está jogado do lado Mulher”. Tanto é que Santa Teresa está gozando divinamente, como se diz, na estátua de Bernini. Posso, então, dizer que todo homem é função fálica, no que goza falicamente e só aborda o Outro como objeto a. Trata-se dos objetos parciais que são comidos. Portanto, ninguém pode “comer” uma mulher, pois ela não é toda. Ou seja, no sentido machão da coisa, fálico, só se comem os pedaços de objetos a que qualquer sujeito apresente. Mas o ser que está do lado Mulher no esquema, como disse há pouco, tem uma relação fálica, portanto, participa do gozo fálico, pode ser homossexual, o que não significa transar com alguém do mesmo corpo, e sim transar no nível do falo. Por isso, Leclaire denunciou que as relações sexuais no Ocidente são homossexuais, são fálicas, não importa com quem se esteja. Foi isto que ele quis dizer quando afirmou que o Ocidente

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é homossexual: só transa no nível fálico. A prova disso está na Barra da Tijuca, aqui no Rio, cheia de motéis... Assim, aquele que está desse lado, além de gozar falicamente, tem um gozo a mais, do qual não se consegue falar, mas do qual alguns dão testemunho. Só encontramos um testemunho mais garantidor nas entrelinhas, no inter-dito de certos discursos, como de Santa Teresa e de São João da Cruz. Falo dos místicos porque é para eles que Lacan aponta. *

*

*

Minha questão continua de pé: qual é a relação disso com a anatomia? Para responder, é preciso, em algum lugar, fazer um discurso que dê a chance de pensar que há uma taxa grande de correlação – e aí entramos na estatística, o que é perigoso –, como dizem os psicólogos, entre os não-portadores de pênis e os que caem do lado Mulher. É o que estou tentando questionar em Leclaire e Irigaray, pois para me fundar na anatomia, de algum modo, preciso crer que haja essa taxa de correlação. E simplesmente declaro que não faço a menor idéia da existência disso. Se Leclaire faz, deve nos mostrar. Diz ele em seu livro: “Correlativamente a uma evidente determinação anatômica, o sexo se caracteriza como um modo de entrada no discurso” (p. 39). É esse “evidente” que precisa ser demonstrado, pois não vejo evidência alguma nessa correlação anatômica, uma vez que o anatômico, demonstradamente, participa intensamente do imaginário.  Pergunta – Se o falo se estabelece simbolicamente por referência à perplexidade anatômica, Irigaray não estaria pensando que o campo do não-todo fosse anatomizado como o vaginal, como uma mecânica dos fluidos? Não discordo dela, trata-se de fluido, de dinâmica. Está demonstrado no texto de Santa Teresa. Mas minha questão continua: se há um rebatimento imaginário do que é simbólico, ou seja, se aquilo que se questionou a partir da apreensão visual se tornou, como única saída, simbólico – pois só tenho

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referência ao sexo como referência simbólica e única (homo-sexual) –, e, no entanto, por uma referência unária ao sexo, encontro (não a partição, a Sexão, mas) partidos, sexuados postos diferentemente, o que isso tem a ver, necessariamente, com a anatomia? Posso supor que haja um rebatimento imaginário, que é o discurso. O próprio Leclaire diz: “Contra a função de recalque do discurso do homem, o protesto das mulheres não é sem fundamento quando denuncia sua tendência hegemônica. Mas trata-se do discurso do recalque, discurso de poder, incontestavelmente: o contrário do discurso dito falocêntrico” – ele respeita o discurso falocêntrico –, “que só poderia consistir no reconhecimento da castração” (p. 39). Notem que ele está de acordo com Lacan. O discurso é falocêntrico, pois só por este movimento, ou seja, numa relação ao sexo, posso reconhecer a castração. Ele está aí querendo falar contra as feministas, que não querem reconhecer o falocentrismo da coisa, que querem denunciar (e devem) a hegemonia desse discurso. Concordo com isso, pois posso supor que a hegemonia desse discurso se deu porque o Ocidente vem rebatendo incessantemente a diferença sexual sobre a diferença anatômica e exigindo que os homens sejam homens e as mulheres sejam mulheres. Ou seja, exigindo que quem tem pênis seja homem e que quem tem não-pênis seja mulher. E isto só pode ser um rebatimento do imaginário, mas no momento em que ele pede uma distinção anatômica como determinante, ele também está caindo sobre o mesmo imaginário. A não ser que recaia em algum psicologismo de dizer que há uma correlação entre os corpos sem pênis e a pertinência ao campo da Mulher. Haverá ou não? Freud disse que a anatomia é o destino. Mas qual destino? Ele não disse. Evidentemente, porto uma diferença corporal, porto uma diferença no campo de minha construção discursiva, mas para onde? Esta é a minha questão. Posso até supor que os seres que não portam pênis ficam com uma facilidade, quer dizer, com um caminho mais aberto, para cair do lado das mulheres, mas isso tem que ser demonstrado. Não posso, de modo algum, dizer que as mulheres, assim chamadas em nossa sociedade, ou seja, os seres que não portam pênis, estão do lado do feminino. Por isso, a única coisa que considerei

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perigosa na presença de Leclaire no Rio foi ele chamar as mulheres, que não tenho a menor idéia de quem sejam. Sobretudo, se elas têm a potencialidade de serem mulheres, mas se tornaram mães. Mulheres grávidas são homens, têm uma rolha, uma completude. Leclaire, aliás, criticou isto muito bem, pois não se trata de reduzir a mulher à função de mãe, ou de esposa, coisas que arrolham, refalicizam sua postura. Minha questão é que, para um público que não está transando esse discurso, tentar capturar as mulheres pela aparência anatômica é ajudar o imaginário desse público. O falante não é falante no nível da diferença anatômica, há que instalar o significante. Se o sujeito se põe diante da diferença anatômica e é com ela que ele se assusta, das duas, uma: ou se funda a teoria de que há dois significantes originários, e aí tomamos garantias na anatomia; ou se funda a teoria de que há um significante originário, e aí a anatomia começa a ficar louca. O momento de entrada do significante enlouquece a possível marcação significada da pregnância anatômica. No que faço do falo o referente de uma castração, o referente, no simbólico, de toda e qualquer possibilidade de cadeia significante, todo imaginário estará, de uma vez por todas, infectado de simbólico. É preciso conceber que, no máximo, pode-se tentar demonstrar – e, que eu saiba, não foi demonstrado – que, por não se ter pênis, cai-se mais facilmente na posição feminina. Leclaire disse também que a mulher tem um filho, uma criança real. Não entendo como possa ser isto. Ou sou estúpido, ou não me demonstraram. Concordo que haja um sujeito num corpo, que haja um real, que é a impossibilidade de escrever certa postura dele. Mas a produção, a própria criança, quando recai no campo do simbólico, vai ser indicada como falo, não na medida em que é real, mas na medida em que se reimaginariza porque é falicamente posturável. E depois que a criança saiu, a mulher continua lascada. Aí, abriu-se a rolha...  P – Mas fica a possibilidade de produção de outro real. Quer dizer que a proveta é mulher? Estamos no século do bebê de proveta, e, se me permitem, posso dizer que está acabando o bebê de boceta... Repito que não estou dizendo que saiba a resposta, mas não podemos continuar tratando assim essas questões.

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Tentarei agora apresentar um esquema. Retorno ao significante e ao falo como única referência da partição. Lembrem-se de que já falei do significante, do significado, do retorno em banda de Moebius para a ordem significante, etc. Então, no nível do lado que se convencionou chamar de Masculino, ficamos no campo da diferença. Mas quero colocar esta diferença com o sentido de algo que é diferente em sua própria batida. O que me parece é que a referência fálica do que chamam discurso masculino é a referência ao significante primeiro (S1), aquele que vem no lugar do falo. Retomando, se há um sujeito, seu referente é o significante unário, que é a única coisa a que a psicanálise pode levar o sujeito a chegar. Como diz Lacan, a psicanálise não pode produzir mais do que o significante unário, o signifiant maître, ou seja, a coalescência significante mediante a qual o sujeito se designa. Então, o gozo fálico do discurso masculino – se é que isto existe, o discurso masculino – se apresenta como referente ao significante mestre. Daí, talvez, a possibilidade de fazer uma correlação disso com o Discurso do Senhor. Daí, a tal pregnância de dominação no Ocidente. Estou conjeturando, abrindo vias. Ao passo que o Feminino, embora faça a mesma referência, não se inteira, é não-todo no gozo fálico, pois goza para cá e para lá, goza a mais. Não goza todo no Masculino. Goza tudo que lá está e mais. Então, pergunta Lacan, por que ele se apresenta com um gozo em ex-sexo? Ou seja, faz com que sua relação de gozo extrapole a relação fálica e tenha uma relação de gozo com o Outro? Mas o que é o Outro? É nada mais nada menos do que a alteridade, a alteração, o alter do significante. Por isso, Leclaire talvez possa dizer que há uma relação imediata – e não sei se devo dizer que é imediata – do significante qua significante. Ou seja, posso colocar no lugar disso o falo propriamente dito, enquanto alteridade do significante, e não o S1. Farei uma imagem que não é muito boa, mas talvez sirva para explicar o que estou pensando. Tomemos o significante como uniface, como banda de Moebius, e tomemos o falo como significante primordial, como borda de um

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furo. Então, estou dizendo que há o mesmo, a mesmidade, na repetição desse significante enquanto si-mesmo, ou seja, na masturbação significante. Leclaire, aliás, diz uma frase excelente: “...o sujeito, ponto de não-senso tanto quanto de sentido” (p. 84). Isto é que é importante, pois o sujeito – o corte que escande entre significante e significante, e que é a própria estrutura de corte que o significante é – é o ponto onde estão paradoxalmente embolados sentido e nãosenso. Então, digamos que esse mesmo é o significante enquanto sentido. Ora, a atitude masturbatória do discurso masculino é a tentativa de repetição do sentido do significante, ou seja, do que no significante põe sentido. Mas como o significante tem, no mesmo ponto, a possibilidade de sentido e de não-senso, a alteridade constante que o significante se coloca é a referência ao falo. Como se o S1, mesmo sendo significante, repetisse sempre seu sentido, ao passo que ele não tem outra referência na estrutura senão o falo, que lhe dá sentido e lhe tira sentido. Trata-se aí do gozo da alteridade do significante. É o não-senso. Quero, então, supor que existam seres que, por modo lógico de inscrição, em sua relação ao sexo, se referenciam ao sentido do significante; e seres que se vêem partidos entre o sentido e o não-senso. Isto simplesmente porque não posso supor seres que se vejam todos do lado feminino. Existem seres que gozam com o sentido e seres que gozam com o sentido e com o extra-senso caindo no não-senso. Mas não pode haver seres que só gozem no extra-senso como não-senso, pois todo falante é função fálica. Ele pode ser função fálica como não-todo, mas não pode ser não-função fálica, pois a não-função fálica é apenas a suposição limitante disso onde ele está. Então, quando digo todo homem, englobei tudo que fala macho e tudo que fala fêmea, mas dentro desse campo há não-todo aquele que fala macho e fala fêmea. Por isso, Lacan barra o A d’A Mulher (La) – “não existe A Mulher” –, pois não existe um ser que tenha referencial outro que não o fálico. Mas existe um ser que posso dizer barrando o A porque ele tem o referencial fálico e o outro. Minha questão continua, pois não se pode confundir a repartição com a anatomia, até que me provem o contrário. Aliás, Lacan repete isto em vários textos. Por exemplo, quando fala de São João da Cruz, diz que nada impede

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que um sujeito portador de pênis “escolha” – se é que há escolha aí – o feminino. Nada impede também que existam mulheres fálicas, seres sem pênis que não participam do excesso de gozo. Tampouco há impedimento de que exista homossexualidade dos dois lados, isto é, que se caia na perversão masturbatória do mesmo falo, ou que dois seres do mesmo corpo anatômico gozem do lado Mulher, sendo macho ou fêmea. Meu receio é de cairmos na estatística, a não ser que se demonstre que algo na estrutura da castração dos seres que não têm pênis os propicie ou os facilite para essa via. Coisa que não entra na minha cabeça, não porque seja a favor ou contra, mas porque não entendo. Aceito quando Freud diz que a anatomia é o destino, pois vai-se portar aquela relação com o corpo para sempre, e vai-se ter que dar conta dela na ordem significante. Mas para onde? Para qual lado? A anatomia não vai obrigar alguém a cair neste ou naquele lado, mas será o destino que o sujeito vai carregar. E não me venham falar das perdas sucessivas das mulheres no nível anatômico! Se não, terei que considerar como mulher qualquer sujeito que tenha sofrido um desastre e amputou braços e pernas, o que é uma perda muito violenta. *

*

*

Leclaire deixa claro que, na medida em que o discurso dominante reforça alguma possibilidade de o sujeito projetar o falo sobre o pênis, ele impera de tal modo que mesmo aqueles que não querem projetar, acabam se sentindo obrigados. Não são só as mulheres que sofrem disso.  P – Aí é a diferença anatômica articulada com o falo... Ela pode se articular, o que é diferente de ter que se articular. Podemos, talvez, encontrar por aí a via de demonstração de uma facilitação qualquer, mas nem disso temos garantias, pois não vimos demonstrado. Certamente, pode haver demonstrações no campo da cultura, pois aí tudo é tão evidente que chega até a ser marcado como cor – azul ou rosa –, mas, segundo a montagem significante, não há evidência, há que demonstrar. Não podemos cair na evidência anatômica, pois podemos estar cometendo um erro de nível o mais imaginário,

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como, por exemplo, o erro embriológico, hormonal, cromossômico. Se é menino, tem uma excrescência, depois vê-se que não é... Como saímos dessa? Não temos garantia de espécie alguma. A única garantia é a referência ao falo como partição, e saber que, por ter referência ao falo, há uma diferença sexual. Há sexos diferentes, o que nada tem a ver com comportamentos sexuais, com perversões, etc. Há uma diferença sexual. Qual? Lacan disse que há homens e mulheres. Quem são estes e quem são aqueles? Isso vai passar pela fala. E, por não haver relação sexual, diz Lacan, terão que suprir a falta de relação dos sexos – como traduzi o rapport sexuel – com o que se chama de Amor, que é vocação de relação subjetiva. E se há amor, quem está certo é Fernando Pessoa: toda vez que se ama, o objeto amado pertence ao outro sexo – seja qual for seu sexo próprio. Ele funciona como outro. O que é diferente da prática da perversão sexual de escolher um pênis, um peito, pois isso é outro brinquedo. Estou falando de amor, de relação subjetiva, que constitui necessariamente a alteridade do outro, e isto é diferente da prática masturbatória de comer os objetos a. No amor, trata-se da alteração pelo significante. A relação amorosa altera, quer dizer, tenta gozar do outro, e não deglutir os objetos a do outro. Atenção, pois não é a mesma coisa que a paixão pelo objeto a. Pensa-se freqüentemente que esta paixão é que é amor. Estou falando do amor, ou seja, da relação que põe o sujeito na ordem do desejo. O interesse é pelo sujeito. Não resta no movimento pulsional em torno de um objeto a, mas requer o vigor subjetivo do Outro. Lacan diz com todas as letras que le désir de l’homme est le désir de l’Autre. Então, requerer o vigor subjetivo do Outro é estar interessado no outro como sujeito, como movimento falante, que prolifera no discurso. * * * Como lhes disse, tentei um esquema que não estou garantindo, mas vou colocar para continuarmos pensando.

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Vejam que faço uma interseção, no sentido matemático, de dois conjuntos. Chamo o conjunto da esquerda de Homem (H). Coloco aí o S1 como representante do falo. No da direita, coloco o gozo outro – o S( A ), significante do Outro – que essa gente aí tem. No meio, está A Mulher, que vige na intersecção. Como não há A Mulher, estou figurando algo meio absurdo, La, pois em cada ponto da intersecção ela está partida entre os dois conjuntos. Ela pertence ao conjunto da esquerda, mas tem algo a mais. Portanto, está partida em cada ponto entre a pertinência aos dois conjuntos. Ou seja, quem cai no lado da Mulher, tem o gozo a mais. Por isso, fica dividida entre os dois gozos. Chamo, então, a interseção de Mulher (M) e escrevo o La barrado, pois é nãotodo em cada momento, em cada ponto, está partida entre os dois. Ela vive na alteridade, faz referência ao Outro, que é referência fálica, mas é ao falo enquanto não-senso, e não enquanto S1. Ou seja, ela se refere a seu S1 e à alteridade que o S1 promove no que se relaciona com o falo. É isto que Leclaire quis dizer com relação “imediata” com o falo, mas não posso dizer que seja imediata, pois é significante. Lacan escreveu o falo no conjunto da esquerda, mas é o falo enquanto gozo fálico, enquanto sentido, enquanto o que tem sentido nesse gozo. À direita, o sentido se perde, se altera, passa para outra coisa de que ninguém sabe falar. Ora, se do lado esquerdo está o Homem e na interseção está a Mulher, do lado direito moram os Anjos (A). As mulheres são partidas entre os homens e os anjos. Bernini viu isto com clareza em sua escultura de Santa Teresa, onde temos uma mulher gozando entre os dois momentos. A seta na mão do anjo é o

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falo enquanto S1 apontando para ela. E se ela goza do gozo fálico que a indica como significante unário, que é indicação de que ela está lá como falo, como masturbatório, por outro lado, ela tem uma relação com o outro angélico, ela excede. É como se dissesse: “O falo enquanto S1 é o que penso que sou, no entanto, gozo a mais, pois também gozo do lado do Anjo”. Os anjos, diz Lacan, têm um sorriso besta. Por minha vez, digo que os homens têm um gozo idiota. E as mulheres? As mulheres têm um gozo alegre. Isto é não ficar triste por gozar apenas falicamente. “Depois do coito, o animal é triste”, diziam os antigos. Mas não as mulheres, aquelas que conseguem ser. Por quê? Alguma coisa excede. O gozo masturbatório cai imediatamente e é entristecedor, mas o excesso é o fundador da Alegria. Chamo alegria, pois, para mim, o ato poético é isso. As mulheres – e não quem não tem pênis – são os poetas. A obra de arte tenta produzir o Feminino, mas só finge fazer isto, pois não pode escrever A Mulher, e sim produzir uma tentativa de ser uma mulher. Ou seja, como diz Augusto dos Anjos, produzir alegria, apesar de tudo. É, portanto, por esta via que tento equacionar. Por isso, não posso dizer, como faz Luce Irigaray, que é preciso dar a palavra às mulheres. Isto, no sentido de fazer grupos de mulheres, não portadoras de pênis, começarem a tomar a palavra. Concordo plenamente que o Ocidente está tomado pelo discurso fálico. Tanto é que os poetas nunca foram ouvidos, mas sempre tentaram dizer e produzir – coisa que tentei dizer como piada na palestra de Leclaire e o pessoal não entendeu – um pouco de silêncio, em vez de falar pelos cotovelos. O abuso do Ocidente foi endereçar o significante fálico para a representação penial da arte pré-histórica, da arte grega, etc., quando o importante é entender a diferença entre o sentido e o não-senso. A partição sexual fundamental é esta, a qual é produzida a partir do falo: no que empresta sentido, ao mesmo tempo desfaz o sentido. Assim, gozar falicamente, é gozar na posição idiota da masturbação que vai no mesmo sentido. E o feminino não é o avesso disto, e sim diferença disto. Ele cai para outro, o que não é o outro lado do espelho, pois lá só pode estar o avesso do que está do lado de cá. Cai-se no espelho, como tentei demonstrar na seção anterior. Irigaray e Leclaire, em seus livros, falam da travessia do espelho. Mas a travessia do espelho é a travessia, a vigência do

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espelho. Não é preciso, portanto, inventar speculum algum para escapar do espelho plano, pois este é fálico enquanto produtor tanto de não-senso quanto de sentido. Leclaire me disse, aqui nesta mesma sala, estar contra o imperialismo do significante. Fiquei perdido, pois ele escreveu o falo no quadro. Se está chamando o significante apenas de S1, concordo, também estou contra o imperialismo do significante. Mas se o falo é significante, não posso mais ficar contra. Como, para mim o falo é significante, não se trata de imperialismo, e sim de que estamos sujeitos ao significante. E tomá-lo como significante nos impede de supor que um ser falante, porque não possui pênis, vai conseguir escapar do significante mais facilmente do que outros, ou mesmo necessariamente – isso não foi demonstrado. Quem me tem dado testemunho é, aqui e ali, algo que posso chamar de poeta, ou seja, o produtor de ato poético, aquele que faz o que Lacan diz que é o único lugar onde um homem pode encontrar uma mulher. Não é na relação sexual, mas na psicose. Não a psicose como patologia, mas aquela que está denunciada como foraclusão do Nome do Pai: um distanciamento, um desbordamento do Todo, um excesso, o qual, até certo ponto, pode-se dizer que é constitutivo inclusive do real. Por isso, Lacan diz que as mulheres são loucas. Muitos já disseram isto delas e também dos místicos e poetas. Mas que folia é essa (pois não quero traduzir por loucura)? Eles não são loucos, eles vivem na folia do real. Não se trata, portanto, de patologia, e sim de poder vigorar fálica e angelicamente. É ficar no meio, entre o masturbatório e o angélico. A patologia deve ser efeito discursivo de alguma coisa que age sobre a possibilidade de saltar para o Outro. Então, talvez Deleuze tenha razão quando, de certo modo, diz que não é o salto, mas a coibição do salto. Para ele, o esquizofrênico não é aquele que não ia deslizar, e sim aquele que se proibiu de deslizar e ia deslizar. * * * Retornemos aos Anjos. Eles não podem gozar falicamente. Por isso, têm aquela cara de besta. Por outro lado, eles não falam. Trata-se, pois, de um

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gozo besta. Lembrem-se que bête, em francês, quer dizer também ‘animal’. Marcel Duchamp viu isto com clareza. Se a Mariée, desnudada pelos celibatários, masturbadores, mesma (do verbo mesmar) no conjunto da esquerda (H), ela mesma no regime do rebate no conjunto da direita (A). Ela tem que mesmar, pois a imagem do outro lado do espelho, quando passa para cá, começa a mesmar. Mas pelo simples fato de atravessar o espelho – que não é a superfície da Mariée, e sim aquilo que chamam le vêtement de la Mariée –, ela já entrou no desnudamento, ou seja, passou pelo espelho. Então, se, por um lado, a Mariée mise à nu par ses célibataires, même, por outro, a Mariée vêtue (habillée) par ses célibataires, autre. É preciso manter o vestido da noiva, pois só ele faz a outragem, se não o ultraje. Ou seja, as mulheres são vestidas, exatamente como Dionísio. Podemos até olhar pelo buraco da fechadura para dar uma espiada. Foi o que Duchamp fez, mas há um aparelho. Então, se o sintoma trazido pela presença de Leclaire continuar, podemos trabalhar estas questões, já que estamos tratando dos Quatro Discursos e estáse falando de discurso do homem e discurso da mulher... Na verdade, o que Lacan colocou é algo tão subversivo quanto a postura freudiana. Muito mais subversivo, como afirma Lemoine-Luccioni em seu livro, Le Partage des Femmes, do que, como ela mesma cita, Luce Irigaray. Nisto ela me parece mais cautelosa que Irigaray e Leclaire. Isto porque, na referência ao sexo e ao falo temos dois campos, mas se ambos independem da anatomia, o que é ser heterossexual? Ou seja, o que é construir uma sociedade heterossexual, esta que Leclaire está pregando por aí? Estou certo de que nossa sociedade é homo, pois só goza no H e, o mais que pode, proíbe que se goze do lado feminino. Não que não se goze, mas não se quer ouvir o gozo aí. De novo, pergunto: o que seria a possibilidade de ser heterossexual, digamos, na cama? É fazer papai e mamãe? Não, pois aí estamos no regime da produção edipiana: o pai está comendo a mãe, e não há relação heterossexual. Qualquer relação corporal de quaisquer sujeitos em que esteja incluída a relação da alteração é heterossexual. Por isso, Lacan diz que “heterossexual é aquele que ama as mulheres”, e não aquele que promete alguma relação com o que não pode ter relação.

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Penso se Gustave Courbet não tinha razão ao dizer que a verdadeira relação heterossexual é a de duas mulheres. Não importa se têm ou deixam de ter pênis, pois a verdadeira relação heterossexual só pode ser entre dois elementos do lado feminino. Assim, fundar uma sociedade heterossexual seria fundar uma sociedade onde todos gozam como mulher. E Courbet foi tão xingado por insistentemente representar isso em sua obra. Ele representou com corpos femininos, mas são os únicos momentos da pintura realista, que ele estava fundando, em que parece haver um gozo a mais. Isto encucou os críticos. Já em Paul Delvaux, que foi mencionado aí por vocês, reconheço os objetos perversos, mas o feminino não pinta. Isto, para mim, pois pode ser que esteja lá. Estes são objetos a, como vemos, por exemplo, no banquete onde Baltasar Gracián descreve a divina ceia, a deglutição de Cristo, como um bracinho maravilhoso, uma perninha... (El Comulgatorio, Meditación XI). Mas Santa Teresa e São João da Cruz falam daquele negócio a mais, para além de todas as deglutições de objetos a, de todas as masturbações, e de todos os gozos fálicos. Vejam que estou tentando juntar o que quis chamar de obra de arte – ou seja, a perda dos sentidos – com o gozo feminino. Por isso, não existe A Obra de arte, e sim obras de arte. Assim como existem mulheres. São poucas, mas existem. No entanto, ao dizer tudo isso, talvez por não ter demonstração, o próprio Lacan também oscila. Em certo momento, pegamos seu texto em flagrante dizendo que “deve ser pelo menos metade, se seguirmos a diferença anatômica...” É possível – não estou dizendo que seja impossível – que a falta de pênis propicie uma facilitação para o lado feminino, mas não temos demonstração disto. Ou seja, nada impede que essa mesma falta coloque pessoas para o lado dos homens. Assim como nada impede que a presença de pênis as coloque para o lado das mulheres. Então, se for possível, peço que Leclaire, para fazer sua revolução, me demonstre que correlação existe entre a ausência de pênis no corpo e a facilidade de cair no feminino. Isso não é evidente e, para mim, precisa ser demonstrado, se é que pode ser. E mais, aquele negócio que Luce Irigaray coloca como relação tátil da mulher com seu próprio corpo não

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me convence. Quando fala dos lábios da mulher – naturalmente, está falando dos grandes lábios, e não dos da boca –, que não precisam de nada no meio para roçar um no outro, ela se esquece de que o homem tem prepúcio. Mesmo que os judeus o tirem, dá-se um jeitinho de roçar em algo do próprio corpo. Ora, tocar o próprio corpo inclui os mais diversos enganos e delírios. Taí Duchamp que não me deixa mentir, quando tirou o molde de uma vagina e fez seu objetdard. E não me venham com essa de que o menino “pega” no pênis, pois quem disse que não se pega na vagina? Aquilo é concreto. Vejam, então, que isso tem que ser articulado. Lacan diz que não se pode falar das mulheres, pois não se pode falar daquele não-todo, mas de uma mulher, pode-se falar. E como se fala!

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GIRATÓRIO DOS DISCURSOS Nosso interesse é apontar a especificidade do Discurso do Analista, sua diferença. Segundo o modo de escrita dos matemas dos discursos, o que se opera é uma decalagem, um quarto de volta de um discurso para o outro. Sobre os quatro lugares, os discursos, os significantes, as letras de cada elemento giram, mudando toda a estrutura de posicionamento do modo de produção discursiva. O que acontece na virada, no giratório das letras sobre os lugares? O que está indicado como modo de giro, na verdade, é a operação de reversão. O título dado por Lacan ao seminário que tratava disso é: O Avesso da Psicanálise. Notem que é o avesso, e não a revolução, pois o giratório não é mero movimento revolucionário de vira-vira, e sim o encaminhamento de um discurso para o outro, encontrando seu avesso no discurso oposto, numa simetria, digamos, por um ponto. Assim, o Discurso do Analista aparece sendo avesso ao Discurso do Senhor, mas mostrar o avesso do discurso nada resolve. Não caiamos, portanto, no logro de achar que apresentar o avesso explique alguma coisa, caso em que estaríamos fazendo psicologia. Mais uma vez, ao contrário do que se repete, é preciso repetir que Freud não explica nada. Explicar, aliás, seria produzir uma aparência que viesse no lugar da verdade que os discursos portam, é claro que expressa como fantasia. A postura dos elementos no Discurso da Psicanálise, se fazem produzir algo diferente do que se produz nos discursos outros, não os explica nem se explica. Não se trata, pois, de conseguir a explicação do que vai nos discursos, e sim apenas de apontar seu modo de produção, suas regências:

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quem é o agente fundamental do discurso? sobre que verdade se apóia? que outro faz trabalhar? para produzir o quê? Explicar um discurso por outro, mesmo que fosse o caso para o Discurso Analítico, seria acreditar no que a psicanálise veio mostrar que não há, a metalinguagem. Vamos tirar a esperança de explicar qualquer coisa, pois seria acreditar no logro por excelência de que existe um discurso capaz de dar conta de todos os discursos. Isso pertence ao delírio que está mais perto, aparentemente no jogo societário, da psicanálise, que é a psicologia enquanto discurso entre o histérico e o científico. É a deliração de supor (ou fingir) que se sabe o que lá acontece. O que o Discurso Psicanalítico propicia é um modo de produção outro que faz surgir a verdade em sua coagulação, digamos, particular de cada sujeito. Assim, o que se consegue com o deslocamento feito dos elementos é dar conta do que se põe em ato, em qualquer ato – por exemplo, dentro do modo do Discurso do Senhor –, como efeito no modo de produção da postura do significante responsável pela particularidade de cada sujeito no lugar do agente. Isto é muito sério, pois se alguém se dá conta de que o significante que promove seus efeitos discursivos é o S1 que o suporta, este significante, uma vez encontrado, pode ser daí por diante tomado por significante, e, assim sendo, mesmo que caia, digamos, na postura do Discurso do Senhor, não escamotearia mais a cisão do sujeito como verdade desse discurso. Se o Discurso da Psicanálise como avesso do Discurso do Senhor não o explica nem se explica, pelo menos o subverte, quer dizer, denuncia que o Discurso do Senhor é um discurso que escamoteia a dialética que está em todo enunciado da verdade. Neste ponto, Lacan chega a citar Wittgenstein que dizia que o que quer que se enuncie ou é verdadeiro ou é falso, do ponto de vista do arranjo dos enunciados. E enunciar isto é algo forçosamente verdadeiro, pois não há outra opção: ou é verdadeiro ou é falso. Mas no que se enuncia verdadeiramente que qualquer coisa que se enuncie ou é verdadeira ou é falsa, o que aconteceu é que o sentido foi anulado. É o paradoxo de toda lógica, e como a psicanálise não o escamoteia, ou seja, não escolhe a face verdadeira ou a falsa, mas enuncia que isto ou é verdadeiro ou é falso, ao enunciar isso está dizendo absolutamente o

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verdadeiro sem falso, pois o falso disso é o silêncio radical que se torna verdadeiro, quer dizer, recai no paradoxo. Assim, está pondo em periclitância toda e qualquer possibilidade de sentido, o que nada tem a ver com acumular os sentidos, pois está na razão oposta do que poderia enunciar qualquer imaginário, como na literatura junguiana, de coincidência dos sentidos opostos, de coincidentia oppositorum. Não é que os sentidos se completem, e sim que se anulam: não é nem um nem outro. É preciso manter isto em mente, se não, recaímos no imaginário do andrógino. *

*

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Somente na anulação do sentido pode se dar o Ato. Não estou falando de passagem ao ato, embora certos marxistas brasileiros – para não citar o nome de Carlos Henrique Escobar, que me colocou isto como argumento num (des)Encontro de que participei outro dia – insistam em dizer que a psicanálise não serve para nada porque não admite a passagem ao ato. Ora, a passagem ao ato de que se fala numa análise é quando o sujeito, ao invés de dialetizar o sentido, representa teatralmente um sentido. E isto não é um ato, é uma encenação, a não ser que seja um primeiro ato teatral, sempre faltando outro ato. Quando, na análise, tentase intervir contra a passagem ao ato é contra a representação em cena de um sentido capturado supostamente pelo sujeito e colocado como sendo aquilo que deve ser feito. Assim, quando é o sentido que entra em desfalecimento pela intervenção da interpretação correta, ortodoxa, é o sentido que se perde. Então, não há sentido a ser representado em cena, mas há alguma coisa a se agir. Ao contrário do que dizia meu amigo Escobar, a psicanálise exige o Ato, mas como ato falho, ou seja, o único ato verdadeiramente bem sucedido. Em qualquer ato que vem pelo desfalecimento do sentido há algo que lhe escapa, que são as possibilidades de sentidos que têm os efeitos desse ato, pois ele não sabia o sentido que tem. Ele era uma mancada e por isso acertou. As ações ideológicas são ações de representação de determinado sentido na cena do mundo. Os Atos não são ações de representação ideológica

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porque não são feitos a partir de sentido algum, e sim na escansão do nãosenso. Por isso, é tão difícil pensar a possibilidade de um ato na representatividade que tem o mundo contemporâneo como embate de ideologias. Isto porque quase não vemos ato, mas só ações representando sentidos. O ato poético, o ato analítico, em qualquer campo, até no campo da política, seria um ato, um ato falho. Por isso, ele tem sucesso: começa a produzir efeitos que não estavam contabilizados no momento do ato, ou seja, não pode se responsabilizar por seus efeitos. O ato é irresponsável – a responsabilidade pertence à moral da ideologia, e não à ética do ato. Lembrem-se que, há pouco, eu disse que, dado um enunciado, ou é verdadeiro ou é falso, e não que o enunciado é verdadeiro ou falso. Se separarmos os enunciados em verdadeiros e falsos, já estamos na falsidade da ideologia. Esta é a subversão lógica de Wittgenstein: dado qualquer enunciado, só posso dizer uma verdade a seu respeito, que ou é verdadeiro ou é falso, e mais nada. Dizer que é verdadeiro ou – vírgula, dois pontos, uma porção de espaços – é falso, não vale, pois estarei necessariamente no falso. Só estou no verdadeiro quando digo que é ou verdadeiro ou falso. Isto porque o ou pertence ao regime da alienação do vel, que já lhes mostrei. Então, como o ato falho pertence à mesma lógica do chiste, que não tem pé nem cabeça, dele só posso dizer que é ou verdadeiro ou falso. Ou seja, como ele pertence ao regime da verdade, dele não posso dizer que aqui está o pé e lá está a cabeça, mas apenas concomitantemente que é ou verdadeiro ou falso. Por que a interpretação no campo da psicanálise pode ser demonstrada como ortodoxa? Quando digo que a interpretação deve ser correta num regime de ortodoxia, deve-se supor que eu esteja apontando para um enunciado verdadeiro, e não para um enunciado que é ou verdadeiro ou falso. Estou dizendo que há um enunciado verdadeiro, de cuja aparência temos que cuidar. E se a interpretação é correta, só-depois ela produz a emergência da escansão. Por quê? Considerem o esquema do espelho, de Lacan – (O) e (O’) –, que mostrei na seção 6. A cada vez que o sujeito constitui uma imagem na fala, num daqueles pontos que vai chegando perto de (O), e que essa imagem é interpretada, o que

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significa interpretá-la? Significa que vai-se indicar o enigma, e não aprontar um enunciado: o que se quer indicar é o momento de enunciação ainda vigente na cristalização daquela imagem provisória. O sujeito, na verdade, não constitui essa imagem ali pronta para nós, mas cerca o enigma com aquela cristalização de imagem. Se, do lado de cá, apontamos, ou seja, acrescentamos alguma coisa mediante o que o sujeito vai constituir essa cristalização, é como se essa interpretação fosse um nome provisório para o enigma, pois só podemos farejar o enigma no sujeito. Então, interpretar é produzir um nome para o enigma, de tal maneira que esse nome sirva para coalescer aquela imagem, mas que ele próprio seja enigmático, quer dizer, que corresponda à dimensão da enunciação. Isto nada tem a ver com construir uma interpretação de tipo anedótico. Como diz Lacan, a coisa mais idiota do mundo é meter o Édipo no meio de uma análise, pois apresenta-se uma figurinha pronta, ao invés de dar alguma coisa, digamos, a palavra que falta. Se, no movimento da enunciação, empresta-se a palavra que falta, o sujeito faz uma coalescência. A interpretação ortodoxa é, pois, encaixar com a figurinha que ele queria montar naquele momento. E isto não depende de o sujeito dizer que encaixou. Aliás, muito freqüentemente, quando entramos com algo aparentemente intempestivo, ele diz que não entendeu, que não encaixou. Esta é a interpretação correta. Dias depois, vemos que ela já mudou de figura, pois o sujeito não consegue mais dar o cristalzinho que dava na véspera, pois já se deformou. Isto porque foi enigmático.  Pergunta – Esse é o significante? É um significante novo que, de algum modo, é inserível naquela série dele, mas que também funcione como significante, isto é, que seja enigmático. Por ser enigmático, ao mesmo tempo que parece coalescer uma figurinha, um momento de imagem, ele joga para a frente: reconstitui toda a imagem, pede outra imagem. Ele próprio, para ser trabalhado na série, muda o texto. Uma pequena bobagem, um pequeno empurrão no meio de uma massa de falação, nos deixa sacar que a figurinha ali está. Apontamos para ali, mas o apontar é enigmático, ainda que o sujeito, em sua costumeira imbecilidade, olhe para o

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dedo. Isto não tem a menor importância, pois é um direcionamento que dá uma coalescência aparente de sentido, mas que, na verdade, não tem sentido definitivo. Então, o sujeito é empurrado para a frente e tenta constituir outra vez aquela imagem toda... A interpretação é, portanto, ortodoxa no que coincide com a enunciação do sujeito num momento dado. Ela lhe dá texto, deixando-o, ainda que momentaneamente, na doce ilusão de que arrumou a figura, o enunciado. Mas como, na interpretação, ele é o enigma, estou dizendo que ou é falso ou é verdadeiro. Então, ele cai para a frente. O caminho é no sentido de fazê-lo chocar com o não-senso, com o chiste, com a piada radical, que é o espelho, o qual está em vigor na interpretação, pois ela é o posicionamento do modo do espelho.  P – Qual a diferença que há entre isso e a operação do paradoxo do lógico? A diferença é o que Wittgenstein denuncia no discurso da filosofia, que tenta a artimanha de ganhar a mais-valia de uma verdade chamada de verdade – verdadeiro ou falso (e dizer que é falso, deve ser verdade) –, pois coloca como agente alguma coisa já apontada de saída e que não porta o paradoxo. *

*

*

Quem está situado como agente no Discurso do Analista? Um buraco chamado objeto a, um desobjeto, o olhar. Lembrem da metáfora que fiz sobre se olhar o espelho criando o abismo das figuras, ou seja, tornando cada imagem um novo espelho. Olho para a outra imagem, quero coalescer aquela imagem como a minha imagem, quer dizer, quero a interpretação correta. Então, vou buscar sob aquela imagem o que sou como imagem, e, se estou no vigor da ortodoxia – i.e., da interpretação correta –, além de supor que a imagem está constituída, continuo a investir sobre ela o olhar no que observo que ela investe olhar. E olhos contra os olhos, não se encontra senão o buraco da pupila. Com o que, sobra um resto dessa operação que é o olhar, o buraco que remete as coisas para adiante. Esse buraco é a interpretação correta de uma imagem. É,

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portanto, tentar coalescer a imagem até dar com os olhos. Guimarães Rosa diz isto bonito no conto O Espelho. No momento em que a imagem se coalesce, mas fica o enigma dos olhos contra os olhos, remeto a imagem para mais adiante, e torno a tentar reconstituir a imagem de outro modo. Isto porque sobra um resto, ou melhor, aparece a falta.  P – Na produção discursiva dentro de uma análise, não há certeza de encadeamento, pois ele altera. Altera de uma vez para outra, só-depois, e não durante o momento. Se o Senhor se olha no espelho, fica muito contente com ganhar a sua imagem como se fosse objeto a. Isto porque ele faz tudo, menos olhar nos olhos, menos ver que há um buraco, que sua verdade é a cisão do sujeito. O agente – notem o absurdo que vou dizer – do olhar dele não é um olhar, já é uma figura puramente geométrica. O agente do olhar do Analista é um olhar, e não uma figura.  P – Por isso é fácil o Discurso do Mestre entrar no Discurso Universitário. Sobretudo, se ele dá para trás, é onde ele cai diretamente. Não podendo colocar-se como autoridade, como autor, a universidade coloca um saber e pensa que está produzindo um sujeito tapado, sem cisão. O que faz o analista? O analista, ele é que é o desejante. Ele se faz de objeto do que é a suposição de saber, do sujeito que sabe. Encontramos freqüentemente no analisando a desconfiança do saber do analista, mas nem por isso, quando está em transferência, a suposição deixa de estar lá. O que ele supõe realmente que o analista sabe? A postura dele como sujeito. Isto porque o analista é colocado como objeto de desejo do analisando. É colocado assim, porque é desejante, porque não é reconhecível de cada vez que é olhado como analista: ele faz buraco, desobjeto. Sobretudo, na postura sexual do analista. Qual é o sexo de analista? Ele é a-sexuado, objeto a. (Pessoas que não entendem isto pensam que ele é brocha). Ele, freqüentemente, participa da postura do feminino como desobjeto. Por isso, pode ser desejado por qualquer discurso de sexualidade. Ele até pode ser fisicamente horrível, mas, porque funciona como analista, é a-sexuado, o analisando sempre dá um jeitinho de encaixá-lo no lugar do desejo. Tanto é que, se procurarmos as produções

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fantasmáticas do analisando, verificaremos que nada têm a ver com as aparências do analista. O analisando deu um jeitinho de colocá-lo como objeto, pois o analista funcionou como tal, ou seja, não foi pegável. O analista faz vácuo, quer dizer, chupa, aspira o sujeito, projeta-o para cima. É la latouse, como diz Lacan para rimar com ventouse, ventosa. É o Ato analítico, a manutenção do buraco naquele lugar, que faz o sujeito ir sendo aspirado de lugar para lugar, de passo para passo. Se o analista cai na tolice de responder, sem teatro, a essa queda que o analisando pensa ter por ele, bloqueia o processo. Mas com teatro, pode e deve. Aliás, outro dia, uma analisanda que estava pirada, com paixonite, pensando estar apaixonada por mim, me dizia que lhe disseram que eu acabava com isso num mês e, então, me pediu que não fizesse isto, se não, ela tentaria se suicidar. Disse-lhe que não ia fazer uma coisa dessas. É claro que fiz...  P – Essa posição de vácuo não é a que está na figura de Sócrates no Banquete, de Platão? Sócrates era o chamado ‘horrorível’, mas paquerado, sobretudo, pelo mais importante, que era Alcebíades. Lacan, no seminário sobre A Transferência, chama atenção para o fato de que ele faz vácuo e dá a interpretação correta ao apontar para a imbecilidade de Agaton. Era a debilidade mental de Agaton fantasiada de beleza maravilhosa que Alcebíades queria paquerar na beleza vazia de Sócrates. Claramente, no texto, Agaton é um débil mental, mas é lindo. Então, Alcebíades, para denunciar sua paixão pela figura de Agaton, onde não encontra beleza alguma no nível do discurso, enuncia Sócrates – o qual diz que não se trata disso, e sim daquilo, o que é a interpretação correta. A beleza aparente de Agaton é correspondente à beleza vazia, discursiva, de Sócrates. Alcebíades pensa que é ali, e Sócrates diz que é lá. Tanto era lá que Sócrates também estava paquerando Agaton. Ou seja, estava desejando outra coisa. “Não vem que não tem!”, diria ele para Alcebíades. *

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Se fizermos a referência dessa posição ao discurso da sexuação, como acompanhar o que Lacan diz: “O homem, o macho, o viril, é uma criação de discurso. As mulheres são menos fechadas do que seus parceiros nesse ciclo dos discursos”? O que quer ele dizer com isso, que é mais ou menos espantoso? Que não existe alguma coisa apontada como esse “o” homem, “o” macho, “o” masculino, senão como produção de discurso. E dizer que as mulheres são menos fechadas não significa que não sejam fechadas, e sim que também participam da macheza. Então, se, diante de cada enunciado, posso dizer que ele é ou verdadeiro ou falso, enunciando com isso uma verdade, onde pode estar o verdadeiro a não ser fora de qualquer proposição? Na medida em que, para trancar a figuração, digamos, do masculino, para poder apresentá-la, só posso fazê-lo dentro de um discurso – que se postura como enunciado, mesmo que o desejo o percorra –, é preciso alguma coisa que sobre, que se solte desse enunciado de discurso para portar o verdadeiro. E, na realidade, as mulheres estariam mais perto disso, pelo menos por uma banda. “Menos fechadas” significa que, por um lado, elas estariam mais perto dessa loucura. Mas como posso constituir o discurso do homem, do macho, do viril? Apenas se negar a pelo menos um a função fálica, não é? Com isso, dou garantia ao discurso de ele ser remanejado do lado esquerdo da fórmula e trancar o enunciado. Já no discurso da direita, que Lacan chama da Mulher (que não existe), posso constituir uma partição entre o falo e outra coisa – ou seja, a alteridade mesma do falo, que, à esquerda, é escamoteada pela negação a pelo menos um – pela negação de que existe algum, isto é, não existe nenhum que não seja função fálica. Com isso, ela participa da loucura da abertura desse discurso que está furado. Ou seja, ela participa do que chamei de buraco da pupila do olho. É a menina do olho, que, de certa forma, participa da psicose, que é a posição do analista. Então, elas podem ser tomadas, como o é o analista, como objeto de desejo, e podem, como diz Lacan, funcionar como sintoma dos homens. Isto porque aquilo corre, escapa, é doido. Donde, tiro uma conclusão. Lacan nunca disse isto, nem sei se estou correto, mas vou arriscar. Já foi demonstrado que O Homem existe e que A

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Mulher não existe, mas as mulheres existem nessa partição. Desconfio, então, seriamente que, seguindo essa lógica com rigor até o fim, posso provar que os homens não existem, a não ser como discurso. Como só posso constituir um homem com apoio num discurso que o constitua baseado na negação de um elemento na sua função fálica, O Homem existe, mas “os homens” não garanto. Vejam que toda vez que quero chamar algum sujeito de homem, refiro-me a um discurso que dá garantias a ele de sua macheza. E toda vez que quero chamar uma mulher de mulher, posso fazer isto se ela funciona como tal, e não preciso de discurso algum. Pelo contrário, é na loucura do discurso que ela se apresenta como tal, absolutamente particular. Em compensação, A Mulher não existe, quer dizer, não existe discurso que garanta que seja mulher. Nunca vi Lacan enunciar que os homens não existem, mas ele diz com todas as letras que “o homem, o macho, o viril é uma criação do discurso”. Ou seja, fora da criação do discurso, não posso apontar para um homem. Eles se chamam de “um homem” – do que, aliás, as mulheres participam – na medida em que fazem referência a um discurso que só se garante pela limitação que está na fórmula: há pelo menos um que nega a função fálica. “Mas se o indivíduo cai na alteridade do significante, ele surge como objeto a de algum modo, como o analista surge, portanto, ele pode ficar partido; e nessa partição, em cada momento, o resto, o que sobra da felicidade fálica, é uma alteração particular”. Por isso, contra a aparência feminina de que falava Serge Leclaire, insisto na manutenção da significância do falo. É por negar a função fálica (x~x) que se limita a alteridade do falo dentro do discurso masculino. Mas no feminino, onde ela não é barrada, pois não existe nenhum que não seja (~x~x), ela se torna falo alterado. É o mesmo significante, e não preciso fugir da ordem significante nem me projetar em alguma anatomia para pensar isso. Por incrível que seja, se levarmos muito longe o raciocínio que me pareceu, pelo menos, ser trazido no papo de Leclaire, talvez cheguemos à conclusão de que, diferentemente do começo da psicanálise, quando as mulheres analistas reclamavam de Freud por este dar a impressão de que analista era tudo homem – e ele até brincava dizendo isso mesmo –, só as mulheres em nível anatômico

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poderiam ser analistas, e os homens não. Schreber tinha certeza disso, tanto é que, em sua paranóia, havia um processo de viração, de reviramento para o feminino, que nada tinha de homossexual. Ele queria revirar para o feminino, o que lhe dava alucinação corporal: via tetas, queria se ver sendo trepado por um macho, etc. Ora, não é isso que faz o analista no nível da postura discursiva, sem nenhuma anatomia? É claro que o imaginário funciona, quer dizer, as mulheres, pelo fato de darem aparência de serem mulheres, talvez sejam mais facilmente captáveis como aquele objeto. Aparentemente! Outro dia fui ver um show de travestis, e durante alguns minutos não sabia realmente se era macho ou fêmea, embora tudo indicasse ao meu imaginário que se tratava de mulheres.  P – Lacan diz que a questão não é haver o psicótico, a questão é haver nós outros. Há alguma relação com isso? O espantoso não é que haja a região de reconhecimento de que é do Outro que vem o meu desejo pronto, e sim que os neuróticos suponham que o desejo vem deles. Não estou dizendo que os homens sejam neuróticos, e sim que o neurótico pensa que é homem, o que é muito diferente. Todos nós temos experiência o bastante para notar que os machinhos da vida vivem fazendo um esforço desgraçado para provar que são mesmo. Eles ficam se virando num discurso que lhes garanta que são machos. As mulheres não ficam fazendo força para provar que são mulheres, a não ser que não o sejam. Observem que, quando entram no discurso masculino, ficam veadas: têm que provar por alguma coisa feminina que são mulheres. Mas este feminino é aquele exorcizado pelo discurso masculino, para dizer que ele é macho. Acho óbvio que, quando estão na folia da alteridade, elas não têm que demonstrar nada. O negócio é meio doido mesmo.  P – Nesse sentido, a lingüística seria um discurso masculino? Jean-Claude Milner quer dizer que não. Para ele, na medida em que seja lingüística lacaniana, a lingüística porta essa relação com o real. Mas, se falamos da lingüística tout court, o que vemos é o discurso do macho, o discurso do Presidente da República... No entanto, se a língua que chamamos de materna – acho eu que porque olhamos pela via do masculino – é reconhecida em sua alteridade constante, ela é feminina. Não há nada mais feminino do que uma

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língua para além de sua gramática. O masculino é a gramática, aquilo que, numa língua, quer provar que ela é uma língua. É “um” língua, se quiserem. * * * A postura do Discurso Psicanalítico como avesso do Discurso do Senhor é necessariamente, portanto, o avesso da mestria, da dominação. Daí que, no regime da prática, a coisa mais difícil é conseguir surpreender a diferença no Discurso de Mestria em namoro com o Discurso da Histeria. Há um romance entre os dois. A histérica não é o escravo. Este é algo que está dentro do Discurso do Senhor como S2 na posição do outro que trabalha para ele. A histérica não se escraviza a senhor algum, ela mantém uma distância do aprisionamento do senhor para se fazer desejar por ele de modo a reinar sobre ele. Como diz Lacan, ela reina e ele não governa. Aliás, de modo geral, o que estava chamando de feminino nada tem a ver com a histérica. Talvez, em nossa sociedade, chamemos de mulheres aquilo que se apresenta como histeria. Elas não nos apresentam uma diferença, mas uma luta discursiva de imperatrizes e governadores. Contra a dominação do senhor, ela apresenta a construção do objeto desejável, obrigando-o a desejá-la.  P – Como n’A carta roubada, a rainha e o ministro. Evidentemente que o ministro era uma histérica. Ele reproduz o ciclo da rainha: quer se apropriar do objeto do desejo do rei para que ele reine sobre o rei e o rei não possa governá-lo. É a mesma operação da rainha que é repetida adiante. Mas não é deste feminino que estamos falando, isto é histeria. Então, o Discurso do Analista em sua produção, ao contrário do que se faz em psicologia, cai fora de toda mestria. A histérica freqüentemente pede ao analista para ele ser senhor. Ela quer um senhor não para se escravizar a ele, mas para ficar naquela de empurrar para lá, empurrar para cá... No que ele se nega a ser senhor, tira o corpo fora e faz vazio, ela é que tem que dar um passo à frente.  P – [Pergunta sobre o jazz]

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Tenho a desconfiança de que o jazz é feminino e se parece muito com a psicanálise, quer dizer, tem o mesmo tipo de estrutura. Uma análise é um jazz. Busca achar a interpretação verdadeira, quer dizer, a nota que se encaixa em duas séries que estão paralelas e que parecem desconexas. Isto nada tem a ver com orgasmo ou com nenhuma felicidade fálica. Quando a nota encaixa, só há um jeito: começar outro jazz. Diz Lacan que o analista deve se colocar em oposição a toda vontade, pelo menos confessa, de mestria, de dominação. É “pelo menos confessa”, ainda que tenha que dissimulá-la, pois não é fácil a ninguém se colocar como objeto a – simplesmente é impossível. Não é que seja difícil ou doloroso, é impossível sentar na posição do analista, pois o que mais acontece é que, a todo momento, resvala-se para a posição de mestria. A todo momento, faz-se uma sacação: –”Deve ser isso assim-assim”. O “ainda que tenha que dissimular” é que, justamente quando se acha que é isso, cai-se fora disso. Mas o que vemos freqüentemente pela invasão psicologizante da psicanálise é ter-se um brilho de mestria e jogar uma porrada chamada “intertrepação” em cima do sujeito. Aliás, acontecem coisas as mais espantosas na psicologia. Conheço uma pessoa, cujo filho é nitidamente esquizofrênico e que, segundo o psicólogo, tem “parada afetiva”. É uma espécie de parada cardíaca que dá no afeto... Na verdade, não há algo chamado “afeto” que possamos colocar como entidade particular. Os afetos são efeitos de uma produção discursiva. De que alguém sofre senão do discurso em que está embutido? Ele está afetado por esse discurso.  P – Lacan, como analista, não exerce uma dominação sobre os analisandos? Pelo menos, alguns relatos parecem indicar isso. É um problema muito complicado. Entramos aí na questão da análise terminada e interminada. Quando se inventa um ritual de passe numa instituição, a pessoa vai embora do analista porque o ritual a mandou embora: –”Agora você está formado, não precisa mais fazer análise”. Mas, na medida em que o ritual não se apresente, quando o sujeito pode realmente mandar às favas o analista? Ou seja, deixar de ser histérico diante dele? De que vale a acusação a Lacan de ele histericizar o pessoal da Escola? Não é recíproco o sentimento?

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 P – O domínio é mútuo? Não posso acreditar que esses analisandos tenham domínio sobre ele, e sim que exijam que ele seja mestre para reinar sobre ele. Ou seja, continuam exigindo mestria dele. Isto porque é muito difícil se desembaraçar de alguém que realmente está na posição de analista, pois o desejo vai em frente e aquele objeto não se perde com facilidade. Acho que a questão mais honesta é: quantos sujeitos suportam essa posição, realmente passam? Vejam, então, que o fato de dissimular com algum truque o momento em que se cai na postura de mestre numa análise, não quer dizer que, quando se consegue a posição de analista, estejamos em simulação. Isto porque o analista não existe, não é possível. Lacan diz algo muito interessante, que “a verdade vem a galope, num galope tal que, logo que atravessa nosso campo, já partiu para outro lado”. Por isso, o analista é impossível, e nem por isso deixa de acontecer sua posição, mesmo à revelia do sujeito que está sentado naquele lugar. O sujeito pode se munir de saberes, de aparatos, de técnicas, sentar-se na postura de analista, mas é o outro que está supondo porque está votando naquilo. Ele próprio não consegue sentar ali. Eis senão quando, surge a travessia, mas ela passa a galope: já caiu do outro lado do espelho, que é a mesma coisa do lado de cá. A única coisa que justifica a psicanálise são esses momentos em que a verdade passa. Mas como estamos impregnados na debilidade mental da psicologia, de supor que se deve configurar a verdade, a grande maioria das intervenções não é intervenção de coisa alguma, e sim produção de retratinhos de bolso para se dar ao analisando. Estamos, portanto, no regime da coisa mais radical da produção do falante – e tocar a enunciação é algo que passa a galope. É muito difícil e cada vez será mais difícil falar disso na contemporaneidade, pois estamos cercados por todos os lados por produções bem construídas em discursos outros que nos convencem – le con vaincu, como diz Lacan: o babaca vencido – o dia inteiro de seu retrato. Isto, nas ciências humanas, na televisão, na pedagogia, em todo lugar. É o sujeito convicto, e até aquele que entra em análise fica pedindo que lhe dêem essa configuração, pois está acostumado a conviver com ela. É o que

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faz o psicólogo: ajustamentos. O sujeito está com certa imagem e vai ao psicólogo fazer uma reforma, mudar sua decoração para ficar numa boa, de casa nova, etc. Psicologia é instituto de beleza mental. Trata-se de design. Saca-se qual é a da pessoa, onde o negócio não está funcionando e diz-se para ele trocar de discurso, dar um jeitinho para cá, outro para lá... Há até uma novela na televisão, em que uma psicóloga fica aconselhando as pessoas.  P – É a questão da profissão, que se tipifica aí. Basta acontecer de se desenhar a profissão de analista para que todo sujeito decente deixe de ser.  P – Mas estão tentando o regulamento da profissão... Regulamenta-se a profissão de poeta, por exemplo. O primeiro que escrever um poema, será um cretino! Não há mais profissão marginal para se ter neste país? Lavador de carro, está regulamentado? Wittgenstein teve a brilhante idéia de deixar de ser professor universitário e vender pipoca. E ainda houve um tempo em que ele era jardineiro num convento. Ele era um dos professores mais brilhantes de Cambridge, mas, de vez em quando, se tocava e ia arranjar uma profissão decente para ver se equilibrava as coisas.  P – Lacan lembra que se a psicanálise pudesse fazer alguma relação, seria com as chamadas Artes Liberais. Uma vez, lá na Escola Freudiana, comentando com Daniel Sibony sobre a questão da regulamentação da profissão no Brasil, ele me falou que tinha uma idéia já formada sobre isso. Deve-se procurar um fulano que, por exemplo, seja um excelente sapateiro. Aí está um bom cara para se ser analista. Isto é que deve decidir. É muito difícil, hoje, enfrentar o Discurso Universitário. É o “mestre” moderno, com a garantia cínica de não posturar nenhum S1 como agente. É “o” saber como agente. Quando falamos frente a frente com um professor universitário, às vezes temos medo de que nos morda. Ele tem uma coalescência de saber da qual não pode se afastar, pois aquilo é verdadeiro, e, insistindo muito, crê que é capaz até de me educar, de me transformar em alguém sério. O que se escamoteia aí é, no lugar da verdade, a postura do S1, do ser-ele do

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professor: “Eu, em minha maturbaçãozinha pessoal, é que estou dizendo que o saber é que está agindo”. Não há coisa que mais se pareça com o débil mental do que o Discurso Pedagógico. No discurso da dominação, ainda posso desconfiar de que a verdade que está oculta, ou seja, o sujeito partido, esteja sendo escamoteada. Então, aquilo é recalcado para eu falar no meu império, na minha dominação. Mas no tal “mestre” moderno, que participa da debilidade mental, o S1 não está sendo apenas escamoteado. No Discurso do Senhor a única diferença em colocarmos o Sujeito ($) em sua cisão no lugar da verdade, é que, como verdade cindida, ele se faz lembrar, embora possa ser recalcado para baixo da barra. Já o S1 não traz nenhuma lembrança de partição, sobretudo quando, como no caso do Discurso Universitário, é denegado como significante. O universitário é o mestre mais violento que já apareceu na face da terra, e tanto faz ser russo ou americano, ele é o mesmo. É o mais violento, porque, na dialética do senhor com o escravo, ambos sacam que o senhor está escamoteando isso na medida em que sua garantia é portar isso, ou seja, é arriscar a morte. O senhor se arrisca a morrer para ganhar aquilo, arrisca a se partir ao meio para ser o imperador. O “mestre” moderno, este, não arrisca nada, apenas se garante sobre um significantezinho que supõe ser significado e, a partição, ele quer coalescer como resultado: o sujeito não será cindido, será inteiro, será aquele que ele vai produzir.  P – Talvez certa dimensão do que se chama política esteja justamente nisso. A luta contra qualquer dominação, hoje, não se dá no regime do Discurso do Senhor, e sim no Discurso Universitário. Cacá Diegues, há algum tempo, em entrevista ao Jornal do Brasil, foi muito inteligente ao nomear as “patrulhas ideológicas”. Fingem que estão na luta contra a dominação, no entanto, pertencem a esse discurso. É uma briga de senhores. Então, a esquerda – que, antigamente, era “festiva”, mas que agora chamo de “caga-regra” – fica na postura de patrulha ideológica dizendo: –”Vocês estão fora do saber, o saber não é esse”. Isto, igualzinho ao professor universitário, ao pedagogo. O senhor, sabíamos que era o dominador. Ele o era porque queria e se arriscava para isso. Mas o “mestre” moderno não se arrisca, resta garantido num certo saber que é o

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agente... e ele nada tem com isso, só cumpre “a” ordem: –”Ordis é ordis!” É parecido com o que Pierre Legendre aponta como o lugar da burocracia.  P – A religião não está perto disso? Na Escola Freudiana, Pierre Chemama quis demonstrar que o discurso do obsessivo é o Discurso Universitário. Ninguém gostou porque a demonstração foi muito ruim, mas o discurso obsessivo deve estar por aí, perto. É o discurso religioso que é obsessivo. A rigor, não sei se há muita diferença entre me referir ao saber da escritura como conteúdo, como enunciado significado, e me referir ao saber escrito, dito, a que se refere o discurso pedagógico. Lacan diz que o marxismo é uma religião. O discurso universitário está solto pela rua...  P – Haveria diferença no método, pois o discurso de Marx estaria na ordem do Discurso do Mestre. O efeito do marxismo é que virou uma pedagogia. Estou falando do marxismo, e não de Marx – que não era burro –, desse marxismo que se coalesceu como uma religião que provavelmente tem como suporte o discurso pedagógico. É aquele papo sobre um grupo de intelectuais, de artistas, etc., que faz coisas para “conscientizar o proletariado”. Ora, isso é pedagogia: vão lá ensinar como eles devem pensar. Conscientizar significa: –”Vocês estão pensando errado, têm que pensar assim!” É uma luta de discursos pedagógicos. E é claro que estão pensando errado mesmo...  P – Quem desempenha esse papel é o humanismo, de fazer algo “em nome de”. Trata-se de salvar o homem. Não sei para quê!  P – Nem que seja violento, mas isso não importa, pois a violência não entra em jogo, o importante é salvar o homem. Vejam, por exemplo, os escamoteamentos violentos que se fazem nas propagandas da história. Hitler era um fdp que matou seis milhões de judeus... mas esqueceu de matar o resto. De propósito, é claro, pois se matasse todos, como existiria o nazismo? Então, já que não matou todos os judeus, ainda há nazistas. Não nos espanta essa dialética? Eles estão aí de novo andando de solidéu, se candidatando às Câmaras de Vereadores ou Deputados, etc., para

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poder levantar espigão, o que dá muito dinheiro. E isto não é anti-coisa alguma, é a dialética da coisa. Como pode existir um discurso sem o outro? Até Hitler sacava isso, porque deixava tudo na reserva. Os nazistas são racistas, e os judeus não? Branco é racista, e crioulo não? Não dá para entender. Isto é que é o escamoteamento ideológico.

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GOZO, PRAZER E TRANSFERÊNCIA Ao invés de desenvolver algum tema novo, hoje, como me foi solicitado, responderei a perguntas sobre o que tratamos até agora. Estou à disposição de vocês.  Pergunta – Serge Leclaire, em seus seminários de 1969, situa a função do pai como interditória em relação à mãe, esta sendo definida ao mesmo tempo como o corpo biológico, nutriz, e o erógeno. Falando do limite entre prazer e gozo, diz ele que o gozo ocorre quando a criança consegue tomar o corpo da mãe como objeto a, rompendo o limite do biológico e do erógeno. O gozo seria, do lado do corpo erógeno, o equivalente à morte do lado do corpo biológico. E a criança que rompe o limite passaria o resto da vida tentando construir mundos, ou seja, impor-se limites, pois o gozo é alguma coisa de insuportável. A função do pai, ao proibir o acesso ao gozo, vai possibilitar o acesso ao desejo e ao prazer. O proibido estaria, então, fechando o círculo onde a pessoa se tornaria sujeito de um desejo e poderia ter acesso ao prazer. Que diferença, então, haveria entre gozo e prazer?  P – Pergunto se o momento fecundo da transferência, seu ponto morto, em que aparece com todo seu peso numa análise, tem referência ao gozo. Como não conheço o texto, vou tomar o que foi relatado na pergunta, sem responsabilizar Leclaire diretamente. Na parte final, parece haver algo estranho em relação à função interditória do pai e o desejo, mas vamos lá.

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Lembro que tudo que colocar aqui como resposta será precário e parcial, pois, nos tratamentos de Lacan, a questão do gozo, jouissance, é algo central e é manejada nos mais diversos contextos, além de se referir a registros diversos no campo lacaniano. Trata-se, pois, de saber como se pode, em base de registros ou outra coisa, discernir o que é prazer e o que é gozo. Há também a outra questão de saber se podemos afirmar que o que é chamado de ponto morto no momento de transferência é referenciável ao gozo. Se pensarmos um pouco, veremos que, ao tratar da questão do gozo, estamos mexendo na ordem paradoxal do significante. *

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Podem estar certos de que os autores não sabem articular bem a questão do gozo e do prazer, embora, nos textos, possa parecer muito clara. Todos devem se lembrar, por exemplo, de um livro de Roland Barthes, Le plaisir du texte (Paris: Édition du Seuil, 1973), já publicado em português, onde, baseado justamente no seminário de Lacan, ele tenta fazer a distinção entre textes de plaisir e textes de jouissance, textos de prazer e textos de gozo. Distinção que absolutamente não é feita no texto dele, Barthes. Tentarei encaminhar o que entendi do que coloca Lacan em relação a esses dois termos, prazer e gozo. Ele não utiliza o termo jouissance num único registro. No corpo mesmo do nó borromeano, que indica o entrelaçamento dos três registros, real, simbólico e imaginário, ele o utiliza, pelo menos, duas vezes: como jouissance phallique (gozo fálico) e como jouissance de l’Autre (gozo do Outro). Quanto a este, às vezes ele diz que é o gozo do corpo do Outro, no que o próprio corpo é Outro, considerado em sua alteridade. Vejo nos textos e tratamentos dos termos lacanianos o grande perigo de se reportar as distinções topológicas que Lacan faz constantemente a imagens, ainda que metaforicamente bem construídas. Ou seja, quanto às precisões topológicas que ele tenta estabelecer no corpo do ensino, procuram-se distinções, exemplos didáticos, representações de imagens e metáforas que confundem a abstração

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que ele terá feito para situar a questão. Parece-me que, sem usar sartreanamente o termo, há um processamento progressivo e um processamento regressivo nisso tudo. Se, por um lado, é da experiência intersubjetiva do cotidiano ou da prática analítica que posso me garantir dos construtos lógicos ou topológicos em que eu queira esclarecer cada questão, por outro, é preciso também, depois desses construtos mais ou menos ou precisamente elaborados, partir deles para recolocar a experiência pelo menos tentando retirá-la de seu jargão cotidiano. E o que quer me parecer é que há certo afã de transmissão da psicanálise, ou da teoria psicanalítica, que pode piorar o que foi conseguido como construto lógico. Cada vez que o sujeito coloca certos tipos de questões que querem abordar os comportamentos cotidianos, ele se arrisca a deteriorar o construto em sua elaboração custosa, a partir naturalmente da experiência, mas que, justo por sua elaboração custosa, não deve regressar com a brutalidade da exemplificação cotidiana. Não estou a priori me colocando contra o que é situado nos textos, mas confesso que estou um pouco perplexo com esse tipo de tratamento dado às funções do pai e da mãe, que me parece, se não errôneo, pelo menos no perigo de cair nos ouvidos como algo psicologizante. Não estou dizendo que Leclaire seja um psicólogo, mas isto me dá certo mal-estar para tratar do tema. Digo isso porque estamos aí no campo da manipulação de significantes, de letras, de escritas do pensamento psicanalítico que se organizam em conjuntos, determinando certa topologia discursiva, e que, ao menor rebatimento sobre uma imagem ou sobre um enunciado fechado, perde toda a razão de ser, ou corre o perigo de deteriorar o conseguido. De qualquer modo, a relação entre prazer e gozo é uma questão delicada, na medida em que, mesmo no corpo da teoria, é difícil estabelecer o momento da diferença. Trata-se evidentemente de uma questão de diferença. Então, como seria tratada a diferença no campo do prazer e no campo do gozo? Leclaire, em outro texto, acho que em Psychanalyser, no que fala da letra, coloca encontros, às vezes, de pequenos objetos parciais no corpo a corpo, mostrando esse limiar, essa borda de toque. Dá o exemplo de um beijo, de

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língua no dente e coisas dessa ordem, ou seja, dois limiares de borda produzindo o prazer do contato. Mas a questão é muito delicada, pois se o gozo, a partir do que foi relatado do texto de Leclaire, é a ruptura de um limite, resta saber em que sentido. O que é ruptura do limite senão o atingimento desse limite enquanto tal, isto é, o percurso mesmo do limite? A questão é de uma grande ambigüidade e, sobretudo, de uma tendência a expor, o que me parece ser o correto no campo teórico, o paradoxal que vige no gozo.  P – [Pergunta sobre a Lei e o incesto]. É claro que o tema deve ser abordado por esse lado, pois estamos na vigência da Lei. Mas que diabo é o incesto? Se a Lei é proposição de interdição e de desejo, concomitantemente, ela tem a ver com o prazer e com o gozo. É no regime da própria Lei que posso estatuir a relação prazer e gozo e, portanto, o pretenso universal cultural que se chama interdição do incesto aí estaria em jogo. No entanto, como o processo é lógico, me parece figurativo demais colocar o corpo erógeno da mãe, fracionado em seus objetos parciais, como o lugar da ultrapassagem da interdição. O incesto é nada mais nada menos do que o enunciado da sua interdição. Onde não aparecesse um enunciado interditor do incesto, o incesto não seria colocado. Então, não existe pensar o incesto a não ser no campo de sua interdição. Como o quê, então, é colocada a interdição do incesto? Não precisamos, para isso, nem perguntar a Lacan, e sim a quem Lacan perguntou: Espinosa. Quando este foi expulso da sinagoga, do mesmo modo, aliás, que Lacan da Internacional de Psicanálise, uma das coisas que estava em jogo com muita veemência era a questão da interdição do incesto, não enunciada desse modo, mas enunciada sobre a mordida que Adão tivera dado na maçã, no texto bíblico. Se não é toda a questão, pode ser considerada como aquela que representaria todo o processo racionalista de Espinosa sobre as religiões. Ele diz algo muito importante: é a ignorância de Adão que o faz supor que o enunciado de Lei, pronunciado pelo Senhor, seja um enunciado de punição. A frase que diz “não comerás do fruto do bem e do mal”, no texto bíblico e em outros desenvolvimentos segundo a análise de Espinosa, se refere aos efeitos que teria Adão do

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deglutimento do pedaço mordido da maçã. É a ignorância desses efeitos que faz Adão supor que se trata de uma interdição que, não respeitada, merece punição. Na verdade, a relação de Lacan, e pode-se dizer de Freud, com a interdição do incesto é da mesma ordem desse discurso que funciona como corpo estranho no campo do pensamento ocidental em geral, filosófico, teológico, etc. Ele é um pouco lateral, tem a ver com os estóicos, com o próprio Espinosa, gente desse tipo, uns seres estranhos no planeta ocidental, pois vem mostrar o paradoxo que está em vigor no momento mesmo da enunciação de uma interdição dessa ordem. O que é a interdição do incesto? Lacan lembrou que o incesto é interdito, e esse tracinho situa a questão como de ignorância, de imprudência, ou de crime que merece punição. Enunciar o incesto – como disse há pouco, não haveria a questão do incesto se não houvesse o enunciado de sua proibição –, simplesmente já é colocar a impossibilidade de algo, já é tentar dizer o impossível que vigora ali, já é endereçar para o real. Posso configurar imaginariamente o termo de modos os mais diversos. A interdição do incesto é certo tipo de relação que não está como prescrita, como realizável no campo social – e este é o mito da antropologia de campo mais barata. Não está prescrita e, pelo contrário, está “defendida” – desculpe-me utilizar este termo com aparência francesa –, defende-se isso, no sentido da defesa do goleiro: dali não passa. Mas ficar nesse registro da figuração antropológica é recair num modo de aparecimento da interdição do incesto. Em lugar algum, mesmo na Antropologia Estrutural, de Lévi-Strauss, está dito que seja proibida a prática sexual entre os proibidos socialmente de se considerarem em aliança por casamento. Vocês já pensaram que se a interdição do incesto fosse figurada como interdição de uma prática corporal, ela seria de tal maneira coberta pelo discurso dominante que não haveria como burlá-la? Se houvesse, como referente concreto dessa lei, algo que fosse apreensível, seria fácil fazer com que isso não fosse burlado. Mas a interdição do incesto no corpo social só é apreensível no nível da deposição simbólica, por escrito em nossa cultura, de uma relação. Então, não confundir as práticas imaginárias com as articulações simbólicas. A interdição do incesto,

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no campo da cultura – pois, no neolítico em que vivemos, as coisas se rebatem sobre o corpo social enquanto imaginário de uma cultura, e isto está preso a discurso, digamos, no regime do prazer –, faz com que confundamos os dois registros. O que a interdição do incesto, como mostrou Espinosa – e mesmo Wittgenstein na crítica aos Principia Mathematica, de Russell, ou em sua demonstração da impossibilidade de metalinguagem, a que Lacan se refere –, diz nas entrelinhas, entre-diz, é que o incesto não há, ou seja, não é possível. Não há outro modo de circular o incesto a não ser como representação, num sistema simbólico qualquer, do impossível enquanto real, ou melhor, do real enquanto impossível. Chamo a interdição do incesto, na prática social, de, assim como o Édipo, teatralização de uma relação fundamental. É a teatralização do recalque originário, se não, da foraclusão originária que funda o próprio real. Não é possível todo tipo de articulação: não é possível articular-se a ponto de dizer toda a verdade, ou seja, o real não é dizível.  P – Leclaire situa o momento do sentimento dessa interdição, aos cinco anos de idade, na fase edípica... Fico tremendo quando ouço essas coisas, pois, honestamente, não posso me submeter à psicologia evolutiva. Dizer isso é muito perigoso. Não nego que, no campo de determinada cultura, esse momento seja adequado para alguém apreender a figuração tal como ela se apresenta nessa cultura, mas tratar a coisa por esse lado me parece absurdo. Daqui a pouco, estaremos fazendo de Lacan, um mestre da psicologia evolutiva e da pedagogia... Posso conceber que, nas figurações de uma cultura, essas coisas são representadas deste ou daquele modo e que se propicie, em determinados momentos, aos sujeitos serem apreendidos, ou que se exija deles que sejam apreendidos por essas configurações. Isso é o que está no regime do prazer daquela cultura. É o regime da “satisfação” de determinado modelo que jubila, digamos, de se repetir em sua aparência, em seu modo de aparecimento. Assim como um sujeito pode ficar serenado pelo encontro com uma configuração que tenha uma analogia qualquer com sua configuração egóica e essa analogia se remeter ao prazer, do

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mesmo modo, as configurações culturais, que se comportam como objetos – isto é, algo da mesma natureza que os egos, os chamados eus –, também podem propiciar o prazer de estar no mesmo tipo de jubilação que o indivíduo encontra no reconhecimento provisório de sua imagem no espelho. O prazer tem relação com o conjunto, com a série significante que está arrolada dentro de determinado campo limitado, de determinado conjunto. *

*

*

Para mostrar o que penso da relação prazer e gozo, remeto-me de novo à elipse da relação Significante/significado (S/s) que já apresentei:

Situei em cima o significante (S) e, embaixo, uma série, uma cadeia significante qualquer, que é a única coisa que posso ter como significado possível de um significante dado (s’... s””). Se, por exemplo, abrirmos o dicionário, encontraremos uma palavra, um conjunto de sons articulados, que já pertence à estrutura de conjunto, e, adiante, teremos um enunciado um pouco mais longo da palavra dizendo qual é seu significado. Evidentemente, não é um significado, e sim a tentativa de emprestar significância àquela palavra mediante uma cadeia que a toma como seu significante. Não tenho outra possibilidade de relação Significante/significado (S/s) senão a de tomar um significante e dizer que ele é o “nome” daquela outra série significante. E isto não é senão dizer que esse significante é o nome da borda que lá está desenhada, a qual, a rigor, não tem nome. A barra está aí e Lacan acentua sua função justamente para mostrar que o que está em cima nada tem a ver com o que está embaixo. Ou seja, há um ato arbitrário de dizer que o que arrola o limite do conjunto é chamado com

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o nome daquele outro significante. Não posso, então, pensar a relação entre prazer e gozo a não ser no jogo da diferença entre dentro e fora, o qual só é distingüível miticamente. Isso quer dizer que só posso pensar o prazer como um manter-se no limite dessa significação como se ela não extrapolasse pela própria borda que apresenta. Ao passo que o gozo, se fosse possível, seria a extrapolação, ou seja, seria vigorar na alteridade dessa borda mesma. Trata-se do que já expliquei quando coloquei O Homem e A (barrado) Mulher, de Lacan, e disse que o significante fálico, enquanto gozo fálico, pode se remeter ao significante como arrolamento. Ao passo que, do outro lado, no que é o objeto a que está em jogo, pode ser referido o mesmo significante enquanto sua função de alteração, de alteridade, que Lacan chama gozo do Outro. Lembrem-se que o que está do lado esquerdo da fórmula, Lacan chama de gozo fálico, e não de prazer. Mas não posso supor, provisoriamente pelo menos, a distinção entre prazer e gozo, a não ser no paradoxo desse limite, dessa borda. Mesmo o prazer, a rigor, não pode ser mantido, pois, se há uma falta é preciso uma função de não-querer-saber (méconnaissance, como chama Lacan, e que significa mais que desconhecimento) para poder supor a vigência do prazer. Isto porque, no próprio regime do prazer, o querer-saber do prazer já remete à virulência do gozo, gozo este inatingível. É o que Lacan diz por duas vezes. Em Télévision: “a quem joga com o cristal da língua... um ganso sempre come o sexo” (p. 71-72). E em outro lugar: “o gozo é inatingível a quem fala como tal” – ou seja, enquanto falante, o gozo é inatingível e insustentável. No entanto, é essa função do gozo que pode fazer surgir a questão da alteridade do significante. Lembrem-se que a metáfora que fiz da elipse, quando falei em Nome do Pai – e aí vem a questão da função paterna –, foi de um risco de circunscrição. A palavra risco com dois sentidos: de traçado de uma borda e de correr o risco. É o risco que, ao mesmo tempo, arrola e omite: produz a elipse, o ato paterno. Isto é a função paterna, produtora de metáfora, ou seja, é metáfora, na medida em que arbitrariamente faz a passagem do significante ao significado: nomeia o conjunto com um significante qualquer. O risco, que é metafórico no que coalesce

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aquele significante sob a égide de um outro significante, ele é metonímico pelo simples ato de correr o risco, ou seja, de riscar a elipse. Aí é que vai a relação desejo-sintoma, como Lacan coloca. Enquanto metáfora, o ato produz sintoma; enquanto ato de traçado da borda, de salto metonímico, está no regime do desejo. É um ato único, e não posso distinguir, a não ser teórica e operacionalmente, a metáfora da metonímia. Posso restar, em desconhecimento, no fechamento metafórico, e gostaria – e é o que faço para meu uso – de me referir à função metafórica como de prazer e à função metonímica como de gozo. Vejam, então, como, na verdade, o gozo não pode ser dito, não pode ser realmente atingido. Isto porque, quando produzo alteração, quando quero a diferença, quando salto de uma metáfora para outra, de um sintoma para outro, preciso estar no regime do traçado da borda, ou seja, preciso estar na tendência ao gozo. No entanto, se ele se propusesse como gozo absoluto, como alteridade pura, entraria em deslocamento sem ancoragem significante alguma. Então, não diria nada, pois, de cada salto que dou, acabo arrolando outro conjunto.  P – O interdito é o limite? O interdito está no texto, em suas entrelinhas: o texto inter-diz. Barthes faz um esforço terrível para mostrar o que é um texto de gozo e um texto de prazer. A meu ver, não consegue, pois como situar a questão do inter-dito no texto? Como texto? Mas o texto, por outro lado, diz... mas não tudo. Em suas entrelinhas há buracos, que inter-dizem o que não é dito, ou seja, a falha do texto. E a leitura de um texto também é uma produção. Ela é de efeitos de significante, pois ninguém lê significante, e sim seus efeitos. Fico me perguntando se, quando queremos uma distinção entre prazer e gozo, não estamos querendo uma distinção que seja clara a ponto de ser estúpida, pois é no interstício das duas coisas que tudo se promove. Resumindo, então, a relação entre prazer e gozo me parece dever ser pensada nas duas faces, digamos, da diferença. A diferença enquanto movimento de diferenciação, enquanto ruptura, passagem para outra coisa, ou seja, no campo do gozo; e enquanto remissão à particularidade de determinado sujeito, ou seja, no regime do prazer.

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Como vimos, a função paterna é o processo de estar sempre a correr o risco, estar sempre retraçando o risco: re-circunscrevendo. Porém, confesso que não faço a menor idéia do que pudesse ser a função materna, a não ser como discurso, como enunciado pronto a respeito de uma funcionalidade no corpo mesmo do discurso, do dito. Então, que diabo é o “corpo da mãe”? Já tive o desprazer de estar num grupo de “lacanianos” aqui no Brasil, onde certa analista de crianças apresentara um trabalho até muito bonito, com muitos desenhos de criança, quando levantou-se uma outra, de tipo Kristevalacaniana, e passou a contestar o tipo de abordagem – que, agora, não me lembro mais qual era – que eu fazia dos desenhos. Dizia ela que não poderíamos considerar o desenho a partir da ordem significante verbalizada, já que não só a criança não estaria jogando nesse nível, como o desenho em si seria uma atividade plástica pré-verbal. Isto é algo impensável depois da existência de Lacan, e sobretudo por quem se diz lacaniano e fatura com isso. Em seu seminário de 1976/77, que tem o interessante título L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, Lacan disse demonstrativamente que não é pensável nenhuma ordem pictórica ou plástica pré-verbal, mas somente hiper-verbal. Fiquei muito satisfeito, sobretudo depois do trabalho que tive com minha tese sobre a obra de arte (Senso Contra Censo: da obra de arte, etc.) e também com o seminário sobre Marcel Duchamp (Marchando ao Céu). Portanto, ao falante não é dada a pureza de poder ser grosseiramente pré-verbal. A atividade pictórica só pode ser hiper-verbal: coalescência em significantes muitas vezes arbitrados pelo pintor a partir de uma confluência complicada de cadeias significantes. Algum dia, poderemos tomar um quadro e analisá-lo segundo essa perspectiva. É evidente que uma obra de arte é hiper-verbal. Se acompanharmos o processo de um pintor, sobretudo, se pedimos seu depoimento quando pensa e diz o que está fazendo, ele pode não dizer com essas palavras, mas mostrará nitidamente como há uma grande produção discursiva verbalizada que ele coalesce, digamos, numa pincelada. Uma

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pincelada não é algo que o sujeito depõe sobre o quadro na independência da ordem significante e da ordem verbal. Pelo contrário, é a resultante, no sentido de coalescência, de uma grande quantidade de enunciados. A cor, a textura, etc., são uma produção discursiva, um conjunto de relações que ele depõe como pincelada, a qual está submetida a toda uma ordem verbal, mesmo que não possa dizê-la toda. Ele não precisa ter a consciência disso, mas basta ler os pintores para vermos o quanto de elaboração fizeram para dar um tipo de pincelada em cima do quadro. É um típico comportamento senhorial, de filósofo, supor que existe um bando de débeis mentais chamados artistas que não tomam contato com essas coisas complicadas que são as estruturas verbais e que “instintivamente” colorem as coisas. Isso é muito idiota. Ou seremos tão ingênuos a ponto de pensar que Lacan, porque escreve e diz tudo o que diz, está dizendo tudo, que fez a coalescência do que diz? Como, se não sabe o que está dizendo? É o afã de dominação de tudo que se passa no Outro que vem exigir que se diga toda a verdade a respeito de determinado acontecimento. Isso é discurso jurídico: “...dizer toda a verdade, nada mais que a verdade...” – e que não cabe no campo que denuncia a existência do Inconsciente. É preciso procurar o máximo de abstração desses elementos todos para poder remeter a um escrito. Daí a impertinência de Lacan em exigir a escrita, a postura do matema. Isto, para pararmos de ficar com essas configuraçõezinhas. Tenho, portanto, um pouco de receio do que acontece quando lançamos mão de certas configurações redundantes – no nível jornalístico mesmo da coisa – no campo da cultura, ou de várias culturas, para pensar com essas “categorias” que não levam a nada. Para isso, existem as diferenças de registros: uma mãe imaginariamente colocada, um pai imaginariamente colocado. Mas como tratar, de registro em registro, esses objetos? Acho que mesmo Leclaire, nas conferências que deu aqui, foi bastante claro ao mostrar a pregnância discursiva, na cultura ocidental, do discurso materno, que de certa forma ele igualou ao discurso do masculino. *

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Vamos, agora, às questões do que vigora no momento mesmo da transferência como ponto morto, e que remissão isso faria ao gozo. O momento da transferência é embaraçoso na medida em que, sem ele, não há análise possível, e, com ele, a análise se torna extremamente complicada, embargada. Este é o paradoxo da transferência, pois sem atualização da realidade do Inconsciente não há análise. Lacan deixou claro que, aqui e agora, neste momento, o Inconsciente se atualiza, acontece tal como está funcionando no direcionamento do desejo inconsciente. Daí, todo o movimento de aparência passional no momento da transferência. Não se trata, de modo algum, de rememorar fatos do passado, e sim do que re-acontece aqui e agora como realidade (sexual) do Inconsciente. No que re-acontece, é condição sine qua non da possibilidade de análise e é o embargo dessa condição. Nada atrapalha mais do que a transferência. No entanto, sem ela não é possível a análise, e fica essa espécie de ponto morto: há que recomeçar dali outra vez. Então, prazer ou gozo? – eis a questão. Observem que, na dependência do deslocamento que se possa fazer – e aí está talvez o interesse da interpretação – no sentido do gozo, ou seja, da remissão ao desejo do analisando, é que há assunção desse desejo; ao mesmo tempo que, no fechamento mesmo da transferência, é que o analisando quer estar no prazer dessa atualização da realidade do Inconsciente. Daí Lacan insistir na diferença entre a hipnose e a análise. O que faz a hipnose? Oferece em resposta alguma coisa como objeto a, mas que é devolvido ao sujeito e no qual ele se fecha. Freud abandona a hipnose porque, de algum modo, pôde sacar que o que devia fazer era retirar o objeto, era portar-se como objeto a que resvala, que não fecha, ou seja, que não dá resposta ao pedido de manutenção da ordem prazerosa do analisando. Portanto, é o momento também da maior ambigüidade, o ponto morto entre essas duas situações, de prazer e de gozo. O que está em jogo é o desejo do analista, pois é nesse momento que ele pode funcionar, digamos, como esteio da interpretação. E qual é o desejo do analista? Estabelecer diferença. Lacan, no Seminário 11, mostra que o desejo do analista é o de colocar a diferença absoluta, o que significa vigorar no regime

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da alteridade, do significante. É claro que, para o chamado analisando, a diferença absoluta aparece como S1, ou seja, como significante de sua referência, como surgimento de sua letra, que faz diferença para com todos os outros significantes, mas ele faz muito mais diferença como significante do que como tal significante. No entanto, diz Lacan, a psicanálise não pode fazer mais do que levar o sujeito ao S1, sem saber e nem ter nada a ver com o que o sujeito vai fazer disso. Do contrário, ela passaria a preconizar comportamentos como um sistema moral ou uma religião, e não uma ética. S1 é o único lugar onde pode vigorar qualquer idéia de liberdade. Não vejo como pensar liberdade a não ser no vigor de sua referência significante como significante, sobre a qual nada tem império, nem mesmo o discurso psicanalítico. O que é um sujeito analisado? Lacan já o disse várias vezes e de modos diversos, pois não se pode dizer tudo a respeito, mas se pode dizer coisas. O sujeito analisado é aquele que, de repente, percebe que o analista está na mesma situação que ele; que só existe um senhor, o Senhor absoluto, chamado A Morte; que ninguém pode se situar em postura de sujeito suposto saber, pois esta suposição é pura babaquice. Mas não adianta apenas chamá-la assim. Como estou informado de que a suposição é babaquice, não quero mais saber disso. Aí, me torno o arqui-babaca. Sou o non-dupe, de Lacan. Les non-dupes errent, como ele diz. Já os dupes também erram, mas do lado certo, digamos, na errância, e não na imbecilidade. A confrontação com alguém situado na posição de analista pode levar o sujeito a cair de sua suposição. Não é a suposição que cai, mas ele que se torna resto, é dejetado dela. E isso não é senão se defrontar com o que há de mortal no gozo. Marx disse que mesmo sofrer é gozar a vida. Portanto, o regime do gozo não é o regime do prazer. Leiam Espinosa e verão que ele sabia que o gozo não é possível. Por isso, inventou uma palavra que me parece mais adequada: Alegria. Trata-se de tentar inventar a alegria, o que não é ficar rindo – e, aliás, nem seriedade é fazer cara feia (isto é prisão-de-ventre) –, mas simplesmente dizer sim. Isto não é ceder ao que aparece, e sim reconhecer o “acidente” – vejam que não estou dizendo “acaso” –, o que acontece à minha revelia. É o que diz Augusto

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dos Anjos em seu Monólogo de uma sombra: “Que a mais alta expressão da dor estética / Consiste essencialmente na alegria”.  P – O ato poético tem a ver com correr o risco... O ato poético é algo que tem a ver com a função paterna, portanto com a Mulher. É aí que vem a diferença.  P – ....mas se o risco for explodido não é o caso de psicose? O risco não é explodido, e sim repetido, apontado. Não se trata de explodir o limite, mas de percorrê-lo. É muito delicado vincular isso à psicose. Lacan foi claro quando disse que uma análise levada até ao extremo só tem como fim a psicose. Ele deu o seu depoimento: Moi, je suis psychotique. Portanto, não é preciso ninguém chamá-lo de psicótico, ele mesmo já o fez. Há coisa mais rigorosa do que uma psicose? Mas alguma pequena diferença há e deve ser destacada. Aliás, um dia essas palavras deverão ser trocadas de lugar, pois assim como Freud apontou para um negócio chamado inconsciente e mostrou sua estrutura, também mostrou que o inconsciente não é propriedade privada do neurótico, nem de fulano ou sicrano, mas é a estrutura da coisa. Então, o que me parece – e estou correndo um risco grave ao dizer isso – é que Lacan está mostrando que existe uma estrutura chamada psicose. No que aprontou o inconsciente, Freud demonstrou os mecanismos da neurose. Digamos que é como se seu problema fosse a neurose. Pois bem, o problema de Lacan é a psicose. Ele veio demonstrar a vigência psicótica do falante. O falante é o ser psicótico. É claro que ele se tranca numa neurose qualquer para não querer saber disso – é seu modo de garantir os prazeres locais. No entanto, isso que chamamos de psicótico talvez seja essa mesma coisa sem referência ao significante que Lacan chama Nome do Pai. É como se fosse a realização do Nome do Pai, sua alucinação. Ou seja, cai no registro do real. Isso é que é a foraclusão do Nome do Pai. É o que lhes mostrei antes e que tento representar dizendo que uma coisa é correr o risco sabendo que é risco, outra, é supor que o risco é real. Mas tudo isso ainda está muito não-sabido, precisa ser desenvolvido. Nós outros, que nos supomos não-alucinados, embora todos sejamos um pouco – sem alucinação, não há constituição do verbo –, talvez imaginemos

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a alucinação como imaginário, como uma imagem. Mas a alucinação é a nãoinserção do significante no simbólico, ele é dejetado para o real. Ao ouvirmos um som, um fonema – por exemplo: /a/ –, na medida em que tem inserção dentro do simbólico, ele tem materialidade, mas não é alucinado porque consegue ser nomeado, ou seja, consegue passar para outro fonema, pode ser metaforizado. No entanto, se não está inscrito como significante, ele fica ecoando sozinho. Isto porque um significante tem a ver com o real, mas está inscrito no registro simbólico. Entretanto, ao apresentar-se como real, ele fala sozinho, ou seja, não pode fazer silêncio. Qual é a diferença entre uma nota musical e isto: ? É que posso ler isto: , retornar à sua materialidade, reproduzir, etc., mas se a nota musical não está inscrita como significante, ela fica soando. Ela só existe em sua materialidade dentro de um campo em que não posso fazer silêncio sobre ela. Não posso tirar a coisa e colocar uma marca em seu lugar. Fica só a coisa. Aí, se passar por perto, ela chia. Ou seja, se as cadeias se endereçarem por ali, ela aparece realmente.  P – Pelo fato de alucinar, diz-se que o psicótico não sonha... Psicótico não sonha? Ou será que ele só sonha? Como vou saber? Um sujeito que não sonha é idêntico ao que só sonha. Qual é a diferença? Ele tem que sonhar alguma coisa para podermos falar de sonho em relação a ele. Se não, não podemos falar.  P – Há uma descontinuidade entre o acordar e o dormir. É como se o fato de acordar fosse a permanência no registro anterior... Isto quer dizer que o sujeito nota que existe um despertar. E isto é algo de que procuramos não nos dar conta, pois o despertar é parecido com o gozo, com o limite. Ele é muito mais mortal do que a realidade e do que o sonho, pois é o momento em que o sentido se perde. O sonho e a realidade se organizam com sentido. O prazer tem sentido, mas o gozo não. É o sentido que se perde. Então, se não há nada, fica uma mera travessia pelo gozo, pelo despertar.

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PRAZER, GOZO, ETC. Continuam implicando comigo a respeito da relação prazer/gozo, Lei/ Desejo, enunciado/enunciação. A questão do discurso parece que exacerbou as outras. Estou com a versão em espanhol do seminário de Leclaire, de que falávamos na seção anterior: Para una teoria del complejo de Edipo: Seminarios de Vincennes (Buenos Aires: Nueva Vision, 1969, 118p.). Não o conhecia, mas agora já li. De começo, fica-se um pouco na dúvida quanto ao que ele vai fazer, mas do meio para o fim, com exceção talvez de uma pequena diferença, está dizendo o mesmo que tenho dito aqui. Como disse, não conhecia o texto, mas nem por isso deixei de colocar a questão do incesto do mesmíssimo modo num texto, algo ficcional, chamado Gerúndio: primeira ementa para uma antropologia do sujeito, que escrevi em 1973 e foi incluído em Senso Contra Censo: da Obra de Arte (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977, p. 157-183). Leclaire coloca a questão da função do pai diferente da mãe de modo interessante. Mas, no que aborda a função da mãe, deixa a coisa um pouco mal definida, pouco clara, só melhorando no final, o que se presta à confusão, ainda que pareça estar dizendo o mesmo que eu. Ele toma a dicotomia prazer/gozo para tratar das funções da mãe e do pai. É a partir daí que gostaria de esclarecer o que estou pensando, que me parece ser a mesma coisa que está no texto dele, com a exceção, repito, da imprecisa definição do que seja o materno.

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No Seminário 11, de 1964, Lacan faz uma distinção breve – que, no entanto, percorre todo o seminário – entre prazer e desejo. Ele não fala em prazer e gozo, pois está preocupado em distinguir o que é princípio de prazer e o movimento do desejo, mas, em última instância, vai se referenciar à mesma coisa. Diz ele: “O prazer é o que limita o porte do quinhão humano – o princípio do prazer é o princípio de homeostase. O desejo encontra seu cerne, sua proporção fixada, seu limite, e é em relação a esse limite que ele se sustenta como tal, franqueando o limiar imposto pelo princípio do prazer” (Le Séminaire Livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973). O que limita o escopo, o vulto do que o homem pode, digamos – o “quinhão”, o que está aí para o humano poder – é o que se refere ao prazer, ao passo que o desejo atravessa, franqueia o limiar que é imposto pelo princípio do prazer. Ora, é a mesma coisa que diz Leclaire, entretanto, ao transferir isso para a função da mãe e para a função do pai, ele faz umas ambigüidades. Não se pode dizer que estejam erradas, mas seu modo de apresentá-las faz com que não se perceba que a coisa é, em si, limiar, portanto, capaz de ser, se não paradoxal, equivocante a todo momento. Retorno ao gráfico que já coloquei aqui para situar o que seja significante e significado, que arrolei como uma série de significantes ou um saber qualquer.

A meu ver, há uma homologia entre todas as passagens que Lacan produz na posturação do sujeito ($) como o que se atravessa entre significante

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e significante, e a própria relação do significante unário (S1), por exemplo, com o saber (S2). Já lhes mostrei que há o corte do sujeito e uma perda do objeto a, uma mais-valia que cai. Então, na relação Significante/significado (S/s), podemos encontrar essa mesma estrutura: o significante está para o significado na mesma razão do sujeito, em sua cisão, em sua alienação entre os dois lados. Há sempre uma perda, na medida em que a série do saber não estava completa. A série dos significantes não é completude alguma, pois se locomove. E o resto, perdido e a recuperar como mais-gozar, é o que vai fazer o movimento perene atrás dele, ou seja, a significação vai ter que ser relanceada. Vejam, então, como diz Lacan, que o psicanalista é alguém que fala sempre a mesma coisa. Ele se repete eternamente porque a estrutura mínima é a mesma, sempre. Apenas, há que abordar as temáticas e os acontecimentos com essa estrutura. O que podemos, então, falar sobre os regimes do prazer e do gozo? Vejamos as dicotomias que sempre surgem como questão aqui. No texto que citei, Lacan falava em: Prazer/Desejo. Na conta de Leclaire, temos: Prazer/ Gozo. E, em Lacan, ainda temos: Lei/Desejo. Vejam que é uma questão de limiares, de habitação dos limites, dos contornos. É aí que nosso raciocínio formado a partir das oposições dentro/fora, esquerdo/direito, mais ou menos definidas, esbarra na vocação revirada pelo avesso do pensamento psicanalítico, de entendimento de que, se há isso, o avesso já está lá como “outra” mesma face da questão. Como as pessoas não se adequam bem a esse tipo de lógica, retornam à questão na tentativa de dicotomizar com toda precisão, mas não conseguem. Caem no psicologismo, onde esse imaginário aparentemente proliferou. Isto, não porque não seja claro, ao contrário, é obscenamente claro, mas não é a mesma lógica das dicotomias marcadas. É a lógica do corte, e não dos cortados. Psicanálise é a lembrança do corte, é a não-foraclusão do corte. Portanto, fica nessa equivocação constante. O que pode ser lei em oposição a desejo, prazer em oposição a gozo, ou gozo em oposição a prazer? Onde estão marcadas estas oposições, estes limites? Vimos, por um lado, que não há ancoragem, como eu quis chamar, no significante, ou seja, um congelamento momentâneo na série de uma cadeia que quero limitada

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e que não quero desenvolver longamente nas possibilidades de metáfora e metonímia que ela nos dá. Por outro, podemos fazer a ancoragem que lhes mostrei na seção anterior e tê-la como referência forçadamente fechada para ser um suposto significado. Isto significa que considero alguns conjuntos de significantes e os amarro, querendo sua repetição como conjunto enclausurado, fechado, sem aberturas e a cujas séries metafórico-metonímicas não quero acrescentar. Ou seja, peço a redundância de um conjunto de significantes. Observem, portanto, que é no regime de um enunciado proposto, mas perfurado, que se coloca a dicotomia de que estamos falando.

Lacan é claro, na citação acima, ao afirmar que o princípio do prazer é simplesmente homeostase. Não se trata de descrição psicológica, física, termodinâmica ou coisa dessa ordem, de algo que acontece no real. É a definição do princípio básico do funcionamento psíquico, ou seja, das ancoragens limitadoras dos significantes – as quais vão aparecer nos discursos da física, da biologia, da psicologia, etc. *

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Vamos agora à tal função da mãe, analisada por Leclaire. Como acho que ele a deixa ambígua e mal definida, não falarei do que ela seja em seu texto, mas me referirei a ela e direi do meu modo. É, pois, a função de que, na verdade, mãe já é metáfora de determinado conjunto de objetos, de significantes, o que quiserem, com o qual determinado sujeito quer se recobrir na repetição desse conjunto porque se mantém numa segurança da ordem do destensionamento. Isto, aliás, é como Freud define o princípio do prazer: é homeostático. Façamos,

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então, de conta que temos como sendo esse significante uma série de círculos concêntricos. É como se jogássemos uma pedrinha numa superfície de água estagnada e obtivéssemos uma série de significantes relacionados uns com os outros:

Falando em termos da matemática mais careta, só de imaginar, por uma inércia sem oposição, que uma pedra jogada num lago produzirá uma série de círculos concêntricos, perdendo os limites no infinito, chegará um momento em que me perco aí. Então, retomar a idéia da significância da série de círculos é me reaproximar do centro e reequilibrar minha dispersão. Como é extremamente tensionante acrescentar todas as séries possíveis, re-conceber e manter uma idéia clara será ficar em certa limitação. Mas essa série significante, seja qual for, terá uma dispersão imensa se, por exemplo, em cada um dos significantes que tem numa fase qualquer, for acrescentada de todas as possibilidades metafórico-metonímicas de uma língua. Por isso, Lacan fala do princípio do prazer como a imposição de um limite. No momento da criação dessa tensão, desse alargamento, ele estabelece a homeostase, o que é regressar e ficar na série pequena, digamos. O que Freud dizia como sendo manter o mínimo de tensão só pode significar isto no nível do significante. Não há, portanto, outra formulação para a idéia de mãe senão essa. É o que está no regime das relações metáfora/metonímia, e sintoma/desejo, que são dicotomias que têm a mesma estrutura, pois, na verdade, o que é materno é o sintomático: base mínima

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para qual vou na tentativa de diminuir a tensão, de manter esta referência mínima ancorada. Portanto, estabeleço a homeostase das séries me ancorando em algo que tenho por garantido, marcado. Isto é da mesma ordem da cristalização metafórica. Quando faço o atravessamento da barra S/s como metáfora, é um atravessamento para dentro. Se suponho um significante (S) para ser o nome do conjunto (s’... s””), a produção de metáfora é ancorar aí dentro do conjunto, é sintomatizar, limitar o significante a essa significação, ou seja, é tentar fingir um significado. É isto que Lacan, retirando da arte da colchoaria, chama de point de capiton, ponto de basta: aquilo que é capaz de dar um basta, se não, a coisa tensiona. O basteamento, capitonnage, do significante é a limitação da série a ser só isso – o que é da ordem do sintomático, do prazer, da Lei. Por ser da ordem da Lei, retornamos à questão da interdição do incesto, que Leclaire tenta abordar. A Lei não é uma proibição no sentido de que tenha sido feita para isso, e sim de que não pode ser outra coisa. Ou seja, não existe enunciado – o dito –, que, por ser enunciado, já não esteja limitado à sua formulação. Ora, isto, e nada mais senão isto, é o que quer dizer interdição do incesto. Ao tentar dizer algo, uma vez que foi dito, referir-se ao dito é referir-se a algo que está legislado, é referir-se a um texto. E referir-se a um texto é falar de algo que é limitativo porque é limitado. É apenas um enunciado, nada mais. Isto é que é ser Lei, seja qual for o texto. Por exemplo, o que Lacan disse é Lei. Ele só pôde dizer aquilo e foi o que disse. Por isso, ele disse que o dito não é o mesmo que dizer. O dizer está no regime do desejo, e o dito no do já enunciado. *

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Lacan critica veementemente a questão da identificação do analisando ao analista, assim como critica toda interpretação que tenta ser hermenêutica, pois agir assim é dar “de presente” uma interpretação fechada, isto é, dar um dito. Não se pode aceitar interpretação alguma, nem a que o analisando está dando, pois ele é quem já dá as interpretações hermenêuticas. Trata-se de

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dialetizar todas as interpretações para que o desejo venha à tona. É claro que vem como certo enunciado de uma fantasia. Mas se a fantasia começa a falar, ela remete para o real. Aí, a pessoa pode se desancorar da mãe. O que é importante saber sobre o sonho, Freud já o dizia, é qual o desejo que o sonho está não dizendo no que diz. E enunciar qual é o desejo é o bastante para que ele não mais o seja, desejo. Este é o drama. O importante em alguém descobrir qual é o desejo que está enunciado em seu prazer é que, ao dizer, ele cai de sua posição de desejo e exige uma posição de desejo, ou seja, procura o gozo. É por isso que ele tem que dizer as demandas, os pedidos, aquilo que vem no lugar do desejo. Isto, para a demanda desabar e só restar o desejo. Lembro a vocês que a psicanálise nada tem para ensinar ou pregar a respeito dos comportamentos, muito menos do comportamento sexual. Se a sexualidade é o núcleo da psicanálise, é sexualidade enquanto estrutura. A psicanálise até hoje não soube dizer nada de novo sobre a sexualidade enquanto comportamento. Para ela, o que há são estruturas e discursos para ler, nada mais.  Pergunta – [Sobre o recalque e o retorno do recalcado]. O recalque é idêntico, eqüipolente, equivalente ao retorno do recalcado. Como podemos descobrir que houve recalque? Por seu retorno. Então, recalque e retorno são a mesma coisa. O que é o recalque? Aquilo que retorna de algum modo, nem que seja no que só pode ser retornado enquanto metáfora – seu modo de produção é que é metafórico. A palavra plena, por exemplo, a que Lacan se refere, é aquela que consegue dizer o retorno, e só pode dizer desse modo próprio do recalcamento. O que estou tentando demolir é a idéia de que sempre queremos que isto seja isto, e aquilo seja aquilo, quando um é o avesso do outro, o que é a grande descoberta lógica de Freud. É mítica, se não for puramente ideológica, essa separação que não se escreve com barra, pois a barra é cinta de Moebius. Vejam que a metáfora que faço para entender o point de capiton a que me referi acima, é de que ele cose com elástico. Como isto não é o significado daquilo, ele não dá um significado, mas arranja

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momentaneamente uma significação que é elástica e, mesmo assim, desliza. O limite que se consegue dar ao conjunto é apenas dizer que fica por ali, e não mais que isso. E isto só enquanto basteamento, enquanto capitonnage, pois o próprio efeito de basteamento acaba requerendo um corte, um salto pelo outro lado, já que sobra um resto, chamado objeto a, que denuncia que aquele limite não é aceitável. Tanto é que o neurótico se apega à maternalidade, digamos, de seu sintoma, mas quer ficar livre dele. Ele procura o analista e diz que não quer mais, mas é ambíguo, ele vai para não ficar livre. É inconcebível no discurso da medicina, por exemplo, que é a metáfora oposta, que alguém procure um médico para não curar a doença, mas no discurso da psicanálise é o que é concebível. Tudo na psicanálise é assim: o sujeito a procura para não ficar curado; faz transferência para não se entregar; paga o analista para ficar devendo... Não podemos operar um minuto no campo da psicanálise com raciocínios da lógica dicotomizada, onde tudo tem duas faces que parecem opostas. Ouçam a expressão bem brasileira: “Não fode, nem sai de cima”. Este é o puro conceito popular do que ocorre na psicanálise. É como a estória da mulher que “dá bola”, mas fica “fazendo doce”. Afinal, deu bola para quê? Na psicanálise, esta é a pergunta, pois vai-se lá para não ir. E, por incrível que pareça, vemos freqüentemente o analisando como que se entregar, digamos, sexualmente, requerer a sexualidade do analista. Mas basta fingir que se cai no papo, para ver que pediu para não dar. Por isso, é preciso manter a distância. Basta aquiescer para não querer mais, e, se não quiser mais, não está acossando o desejo. Ora, ninguém suporta isso no cotidiano: viver na posição de analista, e muito menos de analisando. Todos se viram para sentar e descansar no sintoma, pois qualquer amor já parece um pouquinho de saúde. Como dizia Guimarães Rosa, é um “descanso na loucura”. Quanto a isso, Leclaire, em seu livro, diz que prefere a metáfora da terra à do mar. Certamente porque, em francês, la mer solicita mais. Mas, do ponto de vista da lamúria do analisando, a coisa é muito mais marítima do que terrena: se mantém o sujeito numa boa, do ponto de vista do princípio do prazer, pelo menos o afoga também. Ele sente que está sucumbindo dentro disso.

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Gosto de fazer a metáfora da fazenda, e tenho até um apólogo sobre isso (publicado em Aboque/Abaque. Crestomatia Arcaica. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1974). Imaginem um menininho, cujo pai é daqueles fazendeiros que gostam de subir no morro e dizer ao filho que tudo que está enxergando será dele, pois ele vai lhe dar. A transmissão da paternidade é isso. Mas o que o pai prometeu ao menino? O incesto. É o corpo da mãe que está aí: –”Isso tudo é meu, e você vai herdar”. Então, na fazenda, temos todos os significantes – os bois, as plantações, os terrenos, etc. –, e, lá de cima, a linha do horizonte que o pai traçou com o dedo. O ato paterno é estranhíssimo, pois porta o materno dentro dele. A metáfora paterna constitui o corpo da mãe. A fazenda é o corpo da mãe, mas o ato – o risco – de circunscrição da elipse que arrolou e deixou alguma coisa do lado de fora é apenas um risco. E ele mostra para o garoto o desejo do pai de fazer o traço, o contorno, o qual é ambíguo, é como o mais ou menos da definição que está na frase do pai. Se, por um lado, mostro para o outro meu desejo, por outro, empresto a ele a possibilidade de entrar no desejo sem saber como, pois é uma pura linha, um horizonte. E se me desloco a cavalo para um pouco mais além do ponto onde estava, meu horizonte muda e posso perguntar ao pai se aquilo também é dele. Ele diz que não, que ali termina. Aí, vou querer de novo o horizonte que passa além do que era o corpo materno... A Lei, portanto, vigora nisso que o pai já tem como fazenda. O desejo é o que está do lado de fora. E nem sabemos o que há do lado de fora. Só sabemos que há um risco a traçar em algum lugar que não é o mesmo que foi traçado. Há que arriscar, pois, na verdade, todo legislador é impostor, ainda quando esteja legislando o mais correta e honestamente possível, ou seja, legislando dentro de seu desejo. A única garantia que ele tem da Lei que acabou de enunciar, de seu dito, é seu desejo. Uma vez que disse algo, caiu necessariamente na posição do Discurso do Senhor. Mesmo a psicanálise, quando fala, não deixa de estar participando deste discurso. O psicanalista, na posição de analista, é que escapa. Lacan, quando fala a psicanálise, fala como Senhor também. Isto porque disse e, assim, limitou, traçou um terreno: disse onde termina o campo freudiano. Por isso, a psicanálise não pode virar instituição. Nem

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mesmo pode ser uma escola, pois deixa de ser psicanálise e passa a ser igreja ou coisa parecida. Se constituir aqui um terreno para ser minha fazenda e disser que o campo freudiano termina aí, acabei com a essencialidade do campo freudiano, que é traçar o horizonte, vigorar no regime do desejo, do risco, do traço, da borda. Para estar próximo do pensamento psicanalítico, é preciso, por exemplo, ficar no discurso de Lacan não por mera pirraça, mas para estar no desejo de continuar dizendo. A mera referência ao campo já traçado é vigorar no regime da Lei, apenas. Então, é preciso atravessar esse campo para saber que ele não me serve como campo. Leclaire diz que a interdição do incesto não é senão a colocação da existência do incesto. Já cansei de dizer isto, mas, segundo ele, quando o sujeito avança sobre o corpo da mãe e quer cometer o incesto, ele entra na explosão do contorno. É justo desta metáfora que não gosto, pois acho que confunde. Não vejo nada a criticar no fato de que, se explode o contorno, está no regime do gozo, ou seja, fazendo vigorar o desejo. Mas é preciso desenvolver, pois fica mal entendido na medida em que se fala de “explosão”. Como já lhes disse, o incesto não se comete. Ele não é proibido apenas, é impossível. E agredir desejosamente o campo materno é simplesmente perder a mãe, não é encontrála. Observem que se quiser atravessar com suspensão o campo do regime do prazer, e não apenas me referir centripetamente a esse mundinho de prazer que me equilibra, extravasarei o limite. É o que Lacan diz quanto ao limite ser do prazer, da Lei, mas isto no sentido do que está limitado, pois a borda, a fronteira, é da ordem do paterno. E quando atravesso a fronteira, não preciso dizer que é explodida, e sim que salta de lugar. Isto pela simples razão de que, se me locomovo de minha posição sintomática, o horizonte muda de lugar. Aí, estarei no regime do desejo, do gozo. Mas não pensem que fico aí. O drama é que, se uma vez cometi o ato poético – no sentido do que chamo de ato poético – de deslocar o círculo, a elipse de circunscrição de meus significantes de base, fazendo perder o sentido momentaneamente, logo em seguida caio no sentido de novo e traço outra fazenda. Já é outra, mas nem por isso deixa de ser uma fazenda, um terreno maternalizante de novo.

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Não existe a idéia de alguém se libertar definitivamente do corpo materno. É uma travessia constante. Trata-se de habitar o contorno. Quem está em cima da cerca, está de que lado? Quem está em cima do contorno não tem sentido, mas ninguém é super-homem para viver aí. Aliás, foi o que Lacan desejou a vida inteira ser: o Santo. O que é a santidade? É querer tudo: ou tudo ou nada! É o mais ambicioso de todos, pois quer só ficar na cerca. Lembremse da bolsa de Fortunato, em Sílvia e Bruno, de Lewis Carroll. Fortunato era um preceptor que dizia a seus alunos ser o homem mais rico do mundo, pois tinha uma bolsa que era um gorro-cruzado – sua estrutura era a da cinta de Moebius, sem dentro e fora – e, embora fosse pobre e a bolsa aparentemente vazia, continha o mundo inteiro. Isto é fingir, com um objeto-fetiche, a santidade.  P – [Sobre a psicose]. Lacan diz que, na psicose, a borda está foracluída, que ela pertence ao real. No caso da paranóia, toda vez que o sujeito se aproxima da borda, não pode ficar nela, pois já é real para ele. Então, só lhe resta ficar delirando dentro, na referência a um pai que é real. O limite para ele não é um ato de desejo, é real. Retornando ao exemplo do pai traçando o horizonte, o que vê a criança que está diante desse ato? Vê que há um terreno, mas vê também o desejo de traçar aquilo, digamos, no olhar do outro. Então, ela sabe que é apenas um risco. O risco é simbólico. O pai representou seu desejo ao traçar o risco num ato simbólico, mas qual é a fronteira? Serão pactos, tratados, etc., se não, será a guerra. A fronteira é simbólica, mas para o psicótico foi foracluída, ou seja, pertence ao real. Para ele, ali re-al-men-te, como diz Chacrinha, termina a pátria. Onde é a pátria do poeta? É o lugar onde ele enfia o marco da fronteira: o ato significante, o ato simbólico. O poeta não consegue achar outra pátria, pois, se resolver só morar dentro, será uma pátria muito fechada e ancorada demais, não lhe serve. Enquanto poeta, nenhuma pátria lhe serve, a não ser a borda. *

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Importante é entender que tudo está na mesma estrutura.

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O princípio do prazer quer conter a constância das referências significantes. Por isso, Freud falou em constância. Diante de qualquer coisa que sair daquele discurso, daquela Lei, o sujeito se rebela. O princípio do prazer é bem confortável, pois anda dentro da Lei. E quem se comporta não vai para a cadeia, não é cassado... Então, ficamos numa boa, perdemos a dignificância – como já disse, chamo o significante na psicanálise de Dignificante –, a dignidade e fingimos que somos bichos. A questão trazida por Lacan, e que encontramos na fala de todos que vão ao divã, é a de que ninguém, na verdade, pode se conformar numa lei. Toda lei aponta para um legislador que é abusivo, pois não tem garantia alguma senão seu S1, seu significante sê-lo. Então, viver em sociedade é transar no regime da pátria, da nação, do país, enfim, dentro dessa legislação... É um sintoma transformado em bandeira, em símbolo de desejo. Basta lermos o Arquipélago Gulag, de Soljenitzyn, para ver como determinado sintoma proibido em sua sociedade vira bandeira de desejo, justo por ser proibido no enunciado da lei. Por isso, a psicanálise não pode dizer absolutamente nada a respeito de atitudes políticas, esta ou aquela, de alguém. Há também o caso de atitudes poéticas aparentemente escoradas na bandeira de desejo pintada no rosto, ou seja, que se apresentam com um rosto e que, portanto, são um sintoma, o qual, uma vez dentro da possibilidade da pátria, do terreno, passa a ser o enunciado permitido e, imediatamente, não aceita mais diferença alguma. É a crítica que há a fazer à União Soviética, por exemplo. Não há nada de poético naquilo, mas funcionou como tal quando se tratava de estabelecer uma diferença para com o legislado. Entendam que tudo fica na equivocação. De um lado, o fato de alguém se rebelar porque seu enunciado é proibido nos enunciados da Lei, isto, no conjunto, é manifestação de desejo, mas, por outro lado, nada nos garante que, em si, o seja. O dito pode entrar no discurso como palavra plena, aceitável, mas aí barra os outros discursos, já passa a ser regime materno. Tudo permanece no limiar: uma coisa para cá coloca outra para lá. O que é a mãe? Só pode ser a mulher do pai. Observem que há um genitivo possessivo aí. Ora, todos querem ser mãe, inclusive os homens, ou seja, querem ser o discurso prevalente.

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Neste ponto, Lacan faz a distinção entre amor e paixão. É muito difícil alguém passar ao regime do amor, que é a única saída que há (e isto sem ser cristão). A paixão quer murar o objeto, quer que ele seja estritamente aquilo, parado e possuído ali. E mais, aquele que está apaixonado quer também ser a mesma coisa para o outro. Já o amor, segundo Lacan, não é isso, é estar interessado no sujeito, o que é representá-lo de significante para significante. Então, a maioria das coisas que falamos e chamamos de amor nada tem a ver. Afinal, quem está interessado no sujeito do outro? Por isso, Lacan pergunta: o que é desejo do analista? É o desejo vigorar fora da Lei, fora dos enunciados, único lugar onde o amor é possível. Outro dia, uma analisanda me dizia: –”Estou lhe pedindo para me explodir, para me fazer nascer, ou melhor, para me fazer renascer, pois estou presa, amarrada, afogada”. Vejam a demanda que está na metáfora desta pessoa (que não tem a menor idéia de quem seja Lacan). Ela falava da mãe nesse momento. Acontece que ela é homossexual e vive com outra, a qual confunde constantemente com a mãe, não sabe bem a diferença. As relações inconscientes são para lá e para cá, uma hora é mãe, outra, filha. Há um mês atrás, conta ela que estava na cama fazendo sexo – que ela diz que é “fazer amor” – e, num rompante que não soube explicar, disse para a outra: –”Vou meter meu peru na sua xota”. É espantoso como ela formula o que é o amor, mas de dentro do sintoma. É a fórmula que Lacan dá para o amor: dar o que não se tem. O que não se tem? Liberdade, por exemplo. O que não temos, e mesmo quando estamos nele, não o temos? O ato poético. O Ato. O que não se tem? O objeto, A Coisa, das Ding... Então, ela prometeu dar o que não tinha, pois supôs que a outra estava requerendo. Ela caiu na fórmula do amor. Sabem o que aconteceu? Daí para a frente não consegue fazer o sexo a que estava acostumada sem ficar com muita vergonha. Ela tocou no que Lacan diz que é a Hontologia que a psicanálise pode mostrar: a Vergonhontologia. Mostrou que há uma falha, uma brecha, mas tudo isso só como bandeira de liberdade, por enquanto. No nível do imaginário do corpo, o que disse foi: –”Quero te amar, mas não posso”. Por quê? Isto faz parte da confusão que faz de sua parceira com a mãe. Afinal,

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estamos numa sociedade que fala em amor materno, amor de mãe... Mas o que é isso? A mãe só dá o que tem. Observem a dicotomia que Lacan faz entre Lei e desejo. A metáfora paterna, que é o que constitui o terreno, o corpo da mãe, é portadora da ordem do desejo. Quando o pai mostra o terreno e diz que tudo será do filho, o que está transmitindo? O terreno ou o horizonte? No regime neurótico, nos aferramos às posses do terreno, quando, na verdade, estamos recebendo o horizonte. O que o pai oferece? O incesto. Ele diz que tudo será do filho, como se tivesse cometido o incesto, mas isto é impossível. Por isso, quando Leclaire diz que estamos numa Social Incestocracia, acho ambíguo demais para ser colocado a quem não conhece nada de psicanálise ou de Lacan. Só poderíamos falar em Social Incestocracia na medida da utilização do corpo da mãe: mamar e outras coisas que a mãe tem para dar. Isto porque, no mesmo ato paterno, vai o desejo e o corpo da mãe. Então, é (não errado, mas) perigoso chamar de Social Incestocracia, pois se trata do contrário. Justamente o que não se comete em nossa cultura é o incesto. Pensa-se que ele é proibido por alguém, mas esquecese de que ele deve ser tentado porque é impossível. É a metáfora que faz Antônio Callado, sabendo ou não, no final de Quarup, quando descreve o Brasil como se fosse o corpo de uma daquelas mulheres de seu texto. Trata-se, lá, de avançar sobre aquele corpo e fazê-lo gozar gozando. É exatamente atravessar esse corpo para o outro lado. Édipo cometeu o incesto, ou seja, não conseguiu – mas ele foi lá para isso. Entender mal a interdição do incesto é supor que a Lei não é portadora de desejo. A mãe é proibida. Pronto! Não se pensa mais nisso?! Não! É proibida para não se pensar em outra coisa. Ela só desaparece quando atravessada. Se não, qual era a graça? Então, retornando: prazer, desejo ou gozo? É preciso entender o significante como banda de Moebius. No que o percorro, passo para o mesmo lado, mas revirando Lei/Desejo. Lei é o enunciado. Todo enunciado é Lei. Pode não colar, mas é. Quando Lacan diz que o ato poético, a produção do poema, é por excelência a produção de metáfora, pode parecer espantoso, pois estamos vendo que a metáfora está do lado do sintoma, da Lei, do prazer. Mas

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não é a metáfora que é a poesia, e sim sua produção. Quando fazemos o risco, fazemos o terreno. Assim, quando Freud produz o campo freudiano, faz um ato poético, mas, infelizmente, teve uma filha que acredita que é o terreno... Vejamos agora o nível ético. O incesto só aparece como interdição – é claro, se não, não se pensava nisso –, mas, quando há a interdição do incesto, o que está-se dizendo? Que deve ou não ser cometido? Cometer o incesto não é dormir com a senhora sua mãe. Na verdade, o fundamento ético só pode estar no seguinte: o incesto é proibido, logo devo cometê-lo, se não, não percebo que ele é impossível. Isto porque, ao cometê-lo como dever de ir lá – wo Es war, soll Ich werden –, vou encontrar o desejo, vou traçar de novo o limite, produzir metáfora. Por isso, achei perigosa a nomeação de Social Incestocracia. Todos que não estão curtindo este tipo de discurso que lhes apresento aqui vão entender como uma referência ao enunciado da Lei. Penso que, em nossa cultura, não se vigora na Lei da interdição do incesto, mas se crê em seu enunciado, o que é muito diferente. O que caracteriza a cultura ocidental é que o enunciado “a mãe é proibida” é lido como se não tivesse outra face. Com isso, vive-se no logro do enunciado. Vigorar na Lei é saber que ela foi enunciada, ou seja, que há uma enunciação por trás, e que, se chegou a ser enunciada, é porque é um ato de mestria, que é necessariamente de impostura. *

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Gostaria que colocassem questões. Assim, poderemos deslanchar para outra coisa.  P – [Sobre a energética freudiana e a pulsão de morte]. Em dado momento de seu texto, Freud disse que não se tratava nem de percepção nem de consciência, e sim de uma marca intermediária entre as duas. Na época, foi o nome que arranjou para dar ao significante, pois não sabia como chamar aquilo. Então, quando falava das marcas às quais vai se referir o movimento energético, não falava de percepções ou de configurações – que chamamos de representações, Vorstellungen –, e sim que eram as marcas

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a que isso se referia. Ou seja, Freud estava falando de significante. A metáfora “energia” não é senão uma cadeia de significantes. Quanto à pulsão de morte, a metáfora que fiz de infinito foi, como disse, careta, dentro do discurso de uma física completamente ultrapassada. Não é preciso pensar em infinito, basta pensar onde vigora a pulsão de morte: no corte, na borda. No exemplo do garoto com o pai, no que ele se refere ao corpo da fazenda, ao terreno e quer manter aquilo, está no regime do prazer. Mas na referência que faz ao ato de circunscrição dessa terra, está na pulsão de morte. Mesmo porque, apenasmente referindo ao registro do Discurso do Senhor, que modo discursivo terá dado a esse pai fazendeiro a possibilidade de marcar esse registro? Fosse dele ou de algum antepassado, o ato de apropriação é um ato de senhor, que, portanto, quer arriscar morrer para escravizar e colocar dentro de seu risco. Lembrem-se da dialética do senhor e do escravo: em algum momento, só o risco da morte pôde demarcar aquilo. O senhor não impõe o Desejo, mas o seu (dele) desejo, aquele que ele referencia como S1 em sua história particular. No que arrisca a morte para impor seu desejo, também vai a lição do desejo, tanto é que um outro também poderá dizer: –”Então, também posso me arriscar”. É aí que o filho recebe a marca paterna, no que ganha de lambuja o corpo da mãe. Ninguém pode dizer que ele não o ganha, pois, se não pode transar com a mãe – o que é uma questão meramente local –, ele não faz outra coisa senão viver do corpo dela, do trabalho dela. E isto no regime do prazer. Mas ao falar em gozar do corpo da mãe – e vejam aí como a metáfora fálica parece ser o gozo radical, embora não o seja –, no regime imaginário, supõe-se que copular com a mãe seria entrar no regime do gozo, ou seja, ultrapassá-la. O orgasmo, no nível biológico e imaginário, é da ordem do prazer, é a função homeostática, é o chamado relaxamento, distensão. O gozo é de outra ordem, é do regime da Morte, da Verdade, da Mulher, que não existe. Esta é a distinção que Lacan faz entre o gozo estritamente fálico e o gozo do Outro, que extrapola. Lacan diz que, no feminino, há o acrescentamento de um gozo a mais. O orgasmo pode ser representado cartesianamente por uma curva que sobe e

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desce, ou seja, torna homeostático. No caso do Tantra, por exemplo, é como se, num modelo qualquer adscrito à carne, tentasse produzir uma assíntota do gozo, uma curva que tende a tangenciar outra, sem jamais encontrá-la. O Tantra tenta não chegar ao orgasmo, não deixar que ele aconteça. Segundo sua dica religiosa, o que eles querem é anular o prazer, ou seja, manter de pé o desejo de alguma forma – literalmente de pé, aliás. Lacan diz que “a quem fala o gozo é impossível”, mas é possível empurrar o limite do gozo para mais adiante. Isto significa algo da mesma ordem de fazer uma assíntota, pois, na relatividade das duas curvas, qual está sendo empurrada? É a mesma coisa que ampliar o limite, porque, quando cometo o ato poético, que é uma intencionalidade de incesto, não posso fazer mais, pois, se fizesse, cairia em outra elipse. Então, o gozo não se deu. O que fiz foi outra metáfora: no que fiz metonímia. Se o gozo fosse possível, acabariam metáfora e metonímia. Seria o Nirvana absoluto, que é o que o budismo pretende alcançar. A única metáfora que temos para isso é a Morte, da qual não se sabe dizer coisa alguma, pois ninguém que supomos – mera suposição – ter passado por ela pôde nem mesmo talvez ter acesso a isso, quanto mais nos dizer depois. É claro que há uns modos delirantes de testemunho. Fulano morreu e os espíritas colhem umas falas do lado de cá e dizem ter vindo de lá. Há uma porção de depoimentos das mortes, mas, quando examinamos bem, vemos que não há morte alguma, pois funciona como se estivesse do lado de cá. Só temos a suposição de morte, pois, no regime do significante do lado de cá, enterramos o sujeito como um significante, um S1, um resto unário. E esse resto, porque está lá e já percorreu aqui, continua criando muito problema do lado de cá.  P – Lacan reverte o dito de Dostoievski ao colocar que, se Deus está morto, nada mais é permitido. Então, se Deus está vivo, tudo é permitido? Não necessariamente. Fiz a seguinte brincadeira num texto: “Ele está muito vivo”. Não sei se Ele está vivo, mas muito vivo está. O que Lacan está mostrando é que não há outra forma de situar isso que se tratou como Deus a não ser na onividência do Outro: estamos cercados de significantes, estamos cercados pelo Outro. Então, o que chamam Deus é não sacar que Deus é

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inconsciente, ou seja, é o Outro. Então, segundo Lacan, ser ateu não é dizer que Deus não existe, e sim que Deus é inconsciente. Por isso, Lacan é ateu. Se há o Outro, ou seja, se Ele está muito vivo, tudo é permitido. Então, se o Outro há, o incesto é permitido – só que ele é impossível. Isto porque enunciar corretamente o incesto é dizer o impossível do incesto, o real que vige no incesto e que é impossível de ser tocado. Mas como é impossível dizer o impossível do incesto, acaba-se dizendo um pedaço, uma região, uma banalidade que se chama Lei, que é sempre proibitiva, limitatória. Então, fazer vigorar a Lei é sabê-la no regime do limite, e não crer que o enunciado seja totalizante. É o que os estudantes escreveram nos muros de Paris em maio de 68 e que Leclaire coloca como epígrafe de um de seus livros: Soyez réalistes: demandez l’impossible! – Sejam realistas, peçam o impossível! Isto é que é Lei, pois quando pedimos, exigimos, demandamos o impossível, não fazemos mais do que um pedido, um enunciado, no entanto, continuamos pedindo. Cuidar de seu próprio desejo é querer o impossível... o impossível de realizar o desejo.  P – [Sobre a censura e a verdade]. A censura é produzida pela verdade. A censura não censura a verdade, é a verdade que censura. Como vamos dizer uma verdade do tipo “o rei está nu”? Isto não se diz, pois é verdade. Dizer a verdade é exibir o Discurso do Senhor, tirar suas calças em público. Quando, em análise, dizemos a verdade, ficamos sem calça. É uma vergonha, pois dissemos a verdade que nos comanda. Por que a censura corta alguma coisa? Porque é verdade. Se fosse evidentemente mentira, não precisaria cortar, pois todos saberiam que é mentira. Mas como vige uma verdade lá, há que cortar. Foi isto que Freud denunciou como censura. Por que o analisando não pode dizer a verdade? Porque é verdade. Se não, poderia dizer. Então, por estar lá, a verdade censura o dito. No entanto, o inconsciente produz marotagens como o ato falho, etc., em que a verdade se diz nas entrelinhas. Ou seja, se inter-diz: diz como legislação proibitiva de dizêla. É o momento da Verneinung que também participa disso. Se disser “vou falar o que não sou”, aí falarei com muita franqueza no nível intelectual. Lacan diz que não há paradoxo na frase “eu minto”. Pode-se dizê-la perfeitamente.

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Se afirmo que tudo que acabei de dizer é mentira, estou dizendo uma grande verdade, logo é impossível deixar de dizer a verdade. Podemos não saber lê-la, mas basta falarmos, para dizer a verdade. Eu é que sou trouxa, me engano: – “Nunca esperei isso de você!” Só porque sou babaca. Se soubesse ler, esperaria...

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ESCREVIDÃO Interrompo a seqüência do que estávamos tratando para aproveitar a oportunidade de tomar novo contato com Betty Milan, a quem passo a palavra: – Isto posto, vou falar dele, Magno, através de seu livro Sebastião do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Colégio Freudiano/Tempo Brasileiro, 1978). É um livro de poemas que acaba de ser lançado e que me intrigou muito, pois nele temos a tentativa de retomar um projeto de Fernando Pessoa: “...um pequeno livro que percorre o círculo do fenômeno amoroso. E percorre-o num ciclo, a que poderei chamar de imperial. Assim, temos: (1) Grécia, Antinous; (2) Roma, Epithalamium; (3) Cristandade, Prayer to a Woman’s Body; (4) Império Moderno, Pan-Eros; (5) Quinto Império, Anteros” (Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1969, p. 587). Tratava-se, para Pessoa, de resumir a questão do amor através deste Ciclo Imperial dos Cinco Impérios. O livro, portanto, é a retomada deste projeto que, curiosamente, mas não sem razão, se faz através do texto que o autor nos diz ser de um outro. No caso, um certo J.M., que é escolhido pela sua paixão de M.J. Assim, é escolhido pela especularidade através da qual ele vive sua relação amorosa, e, sendo projeto e texto de um outro, o livro vai se estruturar para dizer não o amor de J.M. para M.J., mas o amor de Eraste a Eromeno. Isto, obviamente, porque se trata do Primeiro Ciclo Imperial, o da Grécia. Ou seja, o livro é o início de um projeto – com mais quatro textos a serem escritos – e se encaminha para o fim,

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onde se lê: “Para OUTRO: No que, sem ti, à beira-letra, tresobrigado a meviver, em pura escrevidão, grafando um chiste” (Sebastião, p. 121). O que me intriga é que o texto, através do amor entre os amantes – e fundamentalmente o amor é impossível de ser Um, de ser o amor da semelhança –, tematiza um outro amor, que seria o amor do Outro. Amor próprio a isso que o autor chama Escrevidão. Lembro aqui que é na medida mesmo em que o Um se sustenta através da essência do significante, e que o amor é o desejo impossível de ser Um, que Lacan diz que o amor é o evento de um dito. Não fosse um dito, o amor não existiria. Ele é impossível de todo jeito, com ou sem dito, mas, sem dito, não existiria. Lacan também correlaciona três termos: o Um, o ser e a fruição. Vemos aí a razão da impossibilidade de ser Um, a saber, que o amor supõe a fruição, que esta supõe o sexo, e que, quanto ao sexo, há dois (que não fazem Um). Pareceu-me interessante mostrar que o texto de Magno tematiza o amor da semelhança – i.e., o amor dos amantes, o amor de Eraste a Eromeno – para dizer o Outro amor, o amor do Outro, e que o suporte do amor da semelhança é a identificação. Quer dizer, o suporte do amor é a vivência especular do outro que se espelha em mim no ato mesmo em que me espelho nele. Se tomarmos a formulação mais geral de Lacan, em que diz que o amor é o desejo impossível de ser Um, o Outro de que se trata na Escrevidão é o Um. Ou seja, a Escrevidão tem como referência o que Magno, em Senso Contra Censo: da Obra de Arte (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978), havia grafado como: $entido da obra. Ele quer dizer que o Outro, que é a razão da Escrevidão, é o Um enquanto sentido: o sentido inalcansável que a escrita busca, enquanto onipotência do sentido, ou sentido da onipotência, e que engendra todos os outros sentidos no ato através do qual o sujeito, dizendo-se no processo, designa a própria falta. O sentido inviável seria, portanto, o motor da Escrevidão, que nada mais é do que o percurso do sujeito, o qual é o percurso do impossível, pois o sujeito se eclipsa no ato mesmo através do qual ele se diz ou existe. Sujeito é o que está entre dois, e, ao existir no significante que o diz, ele se eclipsa, é como aquilo que se pesca na “pesca milagrosa”, de que fala Clarice

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Lispector, a pesca da palavra. Leio o texto de Clarice: “Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se, com alívio, jogar a palavra fora, mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva, então, é ler ‘distraidamente’”. O que salva a leitura é, de certa forma, a mesma distração que fica implícita no processo analítico. Isto, quando a leitura é efetivamente de pescar a não palavra, ou seja, de produzir entre as linhas, entre dois significantes, um sujeito – o que é o caso da escrita poética. E para terminar esta breve introdução – que foi o que me propus a fazer para suscitar uma discussão –, gostaria de contar uma estória que me foi narrada por um pintor, e cujo interesse é mostrar que em todo processo artístico é do mesmo amor do Outro, enquanto amor da falta, que se trata. O pintor se chama Babinski, um paisagista que só pinta árvores. Quando, em certa ocasião, perguntei em que momento ele conseguia efetivamente apreender a árvore e pintá-la, respondeu-me que era no momento em que a árvore sabia dele como ele sabia dela. Ou seja, era no momento em que se produzia a reciprocidade que o garantia do amor da árvore. Espontaneamente, também me disse que seu processo era aterrador, pois se dava conta de que o que mais lhe faltava na existência real eram as pessoas, que nunca apareciam em sua obra de arte, o que era muito estranho, pois precisamente a obra deveria ser a forma de resolver a questão, de encontrar uma solução. Perguntei-lhe se a obra, na medida mesma em que esta falta não se realiza nela, não seria a forma de resolver a questão. A resposta foi positiva, o que me faz pensar que em todo e qualquer processo artístico há um percurso subjetivo, enquanto percurso do impossível, no qual o que se visa é exacerbar a falta. Daí talvez a razão de Lacan dizer que teria sido melhor analista se fosse mais poeta. Coloco, então, ao Magno a questão: se a arte, como a análise, supõe o amor (embora o analista só opere a partir da posição da transferência); se a arte, como a análise, supõe o sujeito suposto saber (pois, assim como o analista é o sujeito suposto saber, a árvore ou uma palavra é suposta saber); se na arte,

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como na análise, trata-se do percurso do sujeito enquanto percurso do impossível – onde estaria a diferença entre os dois processos? MD MAGNO – É exatamente a pergunta que me faço. Começo a resposta pela frase do pintor citado. Como pode uma árvore saber dele? Como pode uma árvore posturar-se como sujeito capaz de amor, esse amor entre ele e a árvore? Não podemos cair imediatamente na inocência de humanizar a árvore. Então, que árvore é essa que passa ao quadro como capaz de saber dele? Para referendar, cito um outro pintor que prezo muito, chamado Eduardo Sued, que, ao explicar quando um quadro se resolve para ele, diz: “O quadro passa para trás”. O que pode significar isto? A árvore, enquanto árvore que passou para a tela, ou para qualquer grafia que faça com que ela, árvore, saiba do pintor, é o que tento tematizar no livro Senso Contra Censo como sendo o saber suposto sujeito. No que se decanta sobre uma superfície de inscrição, uma árvore enquanto saber operado, necessariamente lançado no campo do Outro, é saber suponível do suposto sujeito. É nessa revirada que tento encontrar a diferença à qual Betty se refere: revirada do saber suposto sujeito a um sujeito suposto saber suponível no sujeito que é suposto no saber – na circularidade que vai poder acontecer como o momento de produção da obra de arte. Com isto, quero dizer que o que se poderia talvez distinguir como Obra é o fingimento – usando a palavra de Fernando Pessoa no sentido de mímese, que é o cerne mesmo de qualquer poiesis – de uma textura lógica, um traçamento de tal ordem em que o saber suposto sujeito lá colocado perde, para o sujeito diante da obra, os sentidos nela exarados, e, por isso, passa a sujeito suposto saber. Ou seja, porque o sentido se perde e não posso encontrar mais meu percurso senão como percurso do impossível, a obra só pode se situar no lugar do analista. Portanto, obra de arte não é analisável. Seus materiais, como Freud fez com Michelangelo, Leonardo da Vinci, etc., podem ser considerados enquanto construções fantasiásticas, enquanto fantasias. O miolo, o coração da obra seria a perda do sentido em que o sujeito emerge como no percurso do impossível.

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Mas qual é a diferença entre a obra e a psicanálise? Não tenho condição de dizer disso senão que é uma pergunta que me faço, e que até agora não tenho encontrado diferença alguma. Retiradas as posturas, os ambientes, quer me parecer que a obra de arte designa, desenha, inscreve o mesmo percurso de impossível que acontece na análise. Se o discurso psicanalítico, qua discurso psicanalítico, pode ser matemizado, isto, na mesma postura lógica, me faz pensar que ele pode ser escrito na deposição que faz o poeta quando constrói a obra. É, então, também um modo de inscrição do discurso psicanalítico. Para demonstrar isto, venho trabalhando Guimarães Rosa, onde encontro tal situação com nitidez. Grande Sertão: Veredas, por exemplo, faz depoimento da travessia; da cura; da passagem de analisando a analista; da psicanálise; do percurso impossível do sujeito; esbarrando finalmente numa letra que, por alçada ali a esse $entido que é a absoluta falta de sentido, atinge o que Lacan apontou em Joyce como sendo o ser alçado à potência de linguagem, ou seja, a não ter nenhum sentido, ao sentido puro, ao significante qua significante. Então, quero crer que o que acontece numa análise acontece na obra, o que não é garantir que aconteça no artista, o suposto fazedor da obra. A obra conseguida tem a mesma estrutura da análise. *

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 BM – Por que a identidade entre a escrita poética e a matemização do discurso analítico? Eu diria que há homologia.  BM – Mas você funda numa homologia a afirmação de que a obra está na posição do analista? Não. Fundo na suspeição que tenho de que, se percorrermos (não como analista, mas) fazendo o que chamo a com-sideração da obra – o acompanhamento dos sentidos que ela vai exarando até chegar ao não-sentido da obra –, encontraremos o mesmo tipo de coisa. Então, para fazer a homologia, digo que se o discurso psicanalítico é escritível, ele é inscritível na mesma lógica

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como obra. Uma obra apresenta, em fim, uma letra que é posturada em significante, é insignificante, ou seja, é a perda de sentido na pura escrita de um significante que é a que se resume a obra. Esse significante sem sentido, ou com potencialidade de não-senso, pode ser nada mais nada menos do que o S1 a que chega a análise – e é só até onde ela pode chegar – reconhecido como pura letra, portanto, sem sentido. Isto é do mesmo escopo que a psicanálise.  P – É a obra de arte que faz o percurso analítico, e não o autor? Nada garante que ele também não faça. De quem é a travessia? Só posso garantir que é da obra. Não posso dizer que a travessia que está d’escrita rigorosamente no Grande Sertão seja a do Sr. Guimarães Rosa, mas tampouco posso garantir que não seja. O Discurso Psicanalítico não foi criado por Freud.  BM – Não haveria, na obra, uma coalescência do percurso na letra, o que não ocorreria na situação analítica, onde, diz Freud, a análise é interminável? Parece que você está dizendo que a obra, no que escreve a letra, estanca. Mas a interminalidade da análise é da mesma postura, da mesma ordem lógica que a interminalidade da obra. Se a letra se posiciona num significante puro – que não o é, pois escreve uma letra e faz perder o sentido na sideração dela para que apareça o fingimento de sentido inatingível –, o que a obra está fingindo que nos dá nessa letra? O modo de surgimento mesmo do significante, ou seja, aquilo que revira para outro lado, que é interminável. Não é que a obra me dê uma travessia feita, mas me põe na travessia. E travessia não é obra acabada, é travessia. Então, se a obra puder ser situada no lugar do analista é porque a travessia lá se repete, incessantemente. Lembre-se de que o que está no matema da psicanálise, que Lacan escreveu, é que a psicanálise é impossível e, no entanto, se repete nessa travessia do impossível.  P – Em que consiste a interminalidade da travessia na obra? Consiste no momento em que ela toma a mesma postura do analista, ou seja, daquele que – e tive a felicidade de construir esta frase para Lacan – está na comemoração de uma sublimação. E comemoração é algo que se repete. Repito que, até hoje, não consegui encontrar diferença para essas duas coisas.

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 BM – Entretanto, é preciso levar em conta que, na perspectiva de Lacan, a análise não é interminável. Se o fosse, ele não teria introduzido a noção de fantasia fundamental. O que é o interminável de que estamos falando? Se a análise só existe quando de analisando se passa a analista, ela terminou, ou seja, caiu na travessia, ou seja, na interminalidade da travessia, e não da análise. Eu não disse que a análise é interminável em seu processo. É como a obra, terminável: o autor pára e a acaba. Mas, exatamente, é como obra que ela é interminável, se infinitiza. E é exatamente como analista terminal, digamos assim, que ele perde o fim, revira para o mesmo lado. Achada a fantasia fundamental, verificase, se é que a análise termina, que ela não tem sentido. Fazendo uma comparação com que, como diz Lacan, de um órgão, pode-se fazer o que quiser, da fantasia fundamental também. Resta uma questão. Diante da obra, se o que chamei de público – i.e., qualquer sujeito que se postura diante da obra – se porta necessariamente como analisando, se é que a obra se porta como analista, em que momento poderia eventualmente essa posturação público-obra ser considerada uma análise?  BM – A suposição da escrita é de uma subjetivação da leitura, que passa a ser escuta. Mas e o testemunho? Pois é o Outro que está em jogo na análise e na obra. Não posso jogar com nenhuma identificação com o analista, pois é disso exatamente que não se trata. Mas onde está o testemunho? Na verdade, nisso que Lacan chama de análise acabada, o testemunho aparece como dizer na fala do analisando, e não na fala do analista. Mas, como disse, o Outro está lá nos dois casos...  BM – Mas, no caso da análise, o Outro enquanto alteridade absoluta, enquanto sentido de nenhum sentido, é personificado no analista... ...o qual se apresenta como dejeto.  BM – Como dejeto falante. Esse testemunho efetivamente falante, que não existe na obra.

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Mas vira voz, pura voz. Esta é uma questão que me parece absolutamente não abordada.  BM – O analista pontua. Quem, na relação entre o leitor e a obra, pontua? Foi o que tentei mostrar, citando mesmo Lacan, ao afirmar que a obra, no final, é uma pontuação sem texto. A questão é: que acidente rege o surgimento da pontuação na análise e que acidente pode reger o surgimento da pontuação diante da obra? Isto deve ser pensado a partir do chamado tempo lógico. O de que apenas desconfio, para ser precipitado, é que, sem garantia alguma de qualificar isso, posso fazer a suposição de que uma análise se dê diante de uma obra. Para o que procuro o testemunho do próprio Freud, sobre o qual se discute a interminabilidade de sua análise. Então, se posso supor que, na obra, existe uma pontuação sem texto, o que impede, enquanto analisando diante da obra, de ser pontuado eventualmente por ela? Não vamos supor que toda análise seja bem sucedida, nem diante do analista. A rigor, o término como fantasia fundamental, só podemos dizer que ela é fundamental na medida em que é tradução da fantasia fundamental que não aparece. Se não, Lacan não escreveria S1 para o término da análise. No fim da análise, vai-se inventar a fantasia fundamental. Ela é um construto. Caso contrário, cairíamos na crença: “Eureka! Achei a fantasia fundamental”.  BM – Na verdade, a fantasia fundamental só pode ser dita em relação à situação analítica. Ela não é a fantasia fundamental que me determinou enquanto sujeito, pois, para supor isto, eu teria que supor que o significante tem uma significação única, que existe uma relação biunívoca quanto à significação. A fantasia fundamental é o construto fantasmático que determinou meu processo analítico. É efetivamente um construto do analisando. Quer dizer, no momento em que o analisando apreende a fantasia fundamental, ele, na situação analítica, passa a ocupar a posição do analista. Ele é quem passa a fazer os construtos. Eu diria que é, afinal de contas, a psicanálise como sintoma desse analisando. É quando ele troca qualquer sintoma pelo sintoma que se chama psicanálise.

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 P – Essa fantasia poderia ser construída diante da obra? Esta é a suspeita que se tem. Quem foi o analista de Sócrates para ele ser tão bom analista? Se Lacan não disse que ele foi tão bom, disse que foi pas mal...  BM – Acho que aí a passagem foi um pouco rápida. Parece-me precipitado afirmar que, ao chegar à fantasia fundamental – ou seja, à fantasia que estrutura a análise, e que, em última instância, se diz através da fantasia que governa a própria escolha do analista –, haja uma passagem necessária da análise para um sintoma, haja a troca desse sintoma pelo sintoma que é ser analista. É possível chegar à fantasia fundamental sem se tornar analista. Trata-se da troca do S1 por sua postura significante. Não é a descrição de um S1, mas a perda de seu sentido. É quando S1 é em-si. E, nesse caso, não há saída, o sintoma é (não ser, mas) estar capaz de cair na posição de analista. * * *  P – No caso do paisagista que você citou, a obra poderia ser considerada um fetiche?  BM – Não. Parece-me que, em sua obra, ele faz, como a pulsão, o contorno do objeto a, que é o objeto suporte de seu desejo, que é a pessoa, e não pode aparecer senão metaforizada lá na obra sob a forma de árvore. Não é de fetichização que se trata, pois, na fetichização, trata-se da realização do próprio desejo como Lei. A falha é subtraída do processo. O fetichista ama o outro sem falha. O pintor ama o quadro ao qual falta aquilo que lhe falta. Quanto à pergunta sobre o fetiche, eu tentaria pensar uma pequena diferença. Por que não? Não há tabula rasa alguma a que chegue um processo analítico, de obra ou de análise. O que existe é que isso a que se chega não deixa também de ser outras coisas, e não que seja só outra coisa. Não é que aquilo seja um fetiche e ponto, mas por que não?

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 P – [Questão sobre: o Leonardo, de Freud]. Esta questão é da maior seriedade. Não estou considerando que Freud tenha feito uma análise de Leonardo da Vinci ou de sua obra, e sim que, pelo menos, desenhou os elementos da fantasia que supôs achar. Mas, passando para outro lado, se a obra é conseguida, se a análise é conseguida, e se há homologia entre as duas, a questão é séria porque postula que, diante da obra, o prazer é possível. Com isso, retomamos a relação entre prazer e gozo que eu tentava desenvolver da vez anterior. Se o prazer é possível diante da obra, o é porque essa árvore, eventualmente, pode participar da posição de fetiche.  BM – Isto é problemático, pois não podemos esquecer que, na perspectiva freudiana, o fetiche é o símbolo do falo. E que o falo de que se trata para a psicanálise é o falo da mãe, ou seja, precisamente aquele que não pode engendrar nenhuma ilusão no sentido de que se o tem. Então, nesse caso, a obra seria, se fosse fetiche, a realização da supressão da diferença dos sexos. Mas, pelo contrário, na medida em que produz um sujeito, o que ela faz é produzir uma sexuação através de seu discurso. A obra é sexuada, se produz o sujeito. Ela produz sexuação, não sendo sexuada, sendo objeto a. Vou recorrer a um esquema, pois fica mais fácil para mim:

Este é um círculo de Euler, que chamo de elipse por causa da ambigüidade da palavra (significa ocultar e, ao mesmo tempo, arrolar alguma coisa). Então, tenho n cadeias de significantes com possibilidade de sentido, onde vai-se esbarrar na falta de sentido que estou tentando auscultar na obra, o que é a mesma coisa que a significantização, ou seja, a dignificância, como

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chamo, de S1. Aí na borda é que a alteridade se promove. Notem que arrolei um conjunto e omiti o resto. Se a obra finge isto é porque é apenas significante. Mas no que é significante, arrola e omite também. Por isso, é fingimento. E a função paterna de castração e de sexuação é função de borda, ou seja, no que finge ser capaz de sexuação, finge ser a-sexuada, pois nada é a-sexuado a não ser por metonímia, exceto o objeto a, que é impegável. Donde, posso dizer que é possível, diante da mais pura obra, o sujeito encontrar o fetiche ou a coalescência neurótica. Por que não? De outra forma, eu teria dito que a análise e a obra são possíveis. Donde, o manejo que o poeta pode fazer é entretecer isso numa lógica tal que o sentido se perca constantemente, e não que ele não se ache de vez em quando. A importância é que ele se perca. No entanto, posso achar e ficar numa boa. Com isso, quero dizer que a fantasia fundamental encontrada e que posso subscrever a S1, ela nem por isso deixa de ser particularidade narrável.  BM – Então, qual é a relação entre a obra enquanto sintoma ou fetiche e o processo que a produz, que é o processo de sublimação? O processo de sublimação não produziria um objeto conforme esse processo, e sim um objeto que é sintomático, e este sintoma seria o fetiche? O fetiche é da natureza do sintoma, digamos assim. Pode a psicanálise desmanchar o sintoma de base, o fantasma fundamental do sujeito? Não. Ela pode simplesmente apontar sua borda como momento de sexuação. Do contrário, acabaríamos com a particularidade de cada sujeito, e a psicanálise não é a ciência do geral, e sim do estritamente particular. Como diz Lacan, não é que o sujeito vá ser desmanchado disso, mas ele pode s’en passer, ele pode passar sem isso.  BM – Ele diz isto quando aponta que a análise é um processo pelo qual assumo meu sintoma. E assumir o sintoma é saber que ele não tem a menor significação.  BM – Acho problemático afirmar que, no termo de um processo de sublimação, possamos encontrar um fetiche.

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Por retorno, podemos. Se, ao término do processo analítico, pode-se, na d’escrição do fantasma fundamental, encontrar o fetiche que ele foi, digamos assim, ou mesmo se utilizar dele como feitiço – prefiro este termo, que é da língua portuguesa –, por que não na obra? Já que o que todas as obras teriam seria a chegada ao significante, à sexuação.  BM – Nesta sublimação, que é uma decifração, podem emergir o feitiço e o sintoma, mas a obra de arte, em sua totalidade, não pode ser considerada como um feitiço. Ela só pode ser considerada, de algum modo, metonímia do feitiço universal, o objeto a. Dizer isto pode parecer herético, no entanto, é metonímia, se não, pegava o objeto a. E se é metonímia, é alguma metonímia.  BM – Isto fica claro no exemplo do pintor que diz que, na verdade, pinta o que não aparece: as pessoas. Este é o objeto a, que aparece metonimizado na obra. Estamos aí diante de Cila e Caríbdes, os dois paredões em que podemos esbarrar nesse tipo de repetição: ou considerar a análise como algo que chega a uma tabula rasa, o que seria o analista eterno, seria analista o tempo todo; ou considerar simplesmente que o sujeito ficou numa boa porque sacou qual é a inscrição do significante primeiro, sem torná-lo in-significante. Isto porque tornálo in-significante é torná-lo significante, ou seja, ele poder entrar em qualquer uma, em qualquer texto, pois não tem sentido algum – mas isto é muita pretensão. Por isso, a análise é impossível. *

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Antes de escrever o matema do Discurso Psicanalítico, Lacan disse que a essência da teoria psicanalítica é o discurso sem palavras. Isto me parece que está no próprio matema. É como os elementos se posturam nos modos de produção discursiva. É só esta a diferença que há.  BM – Ao lado desta afirmação da essência da psicanálise como processo sem palavras, há outra afirmação dele mais recente: a análise é

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intransmissível precisamente porque não foi possível reduzi-la a seus matemas, ou seja, a essa essência sem palavras. Na verdade, essa é a impossibilidade real da psicanálise. Por isso, é preciso fazê-la vigorar através de um discurso. Vejam a gravidade que tem a afirmação de que a análise não se transmite. Ou seja, de que ninguém pega esse bonde emprestado. E mais, de que ninguém diz que o outro é analista. Pode-se dizer que o outro não é analista, ou seja, querer des-supor seu saber, des-supor o sujeito suposto saber, mas não se pode dizer que é sujeito que sabe, mas só que é sujeito suposto saber. Há um modo de produção que está escrito nos matemas e que não é possível de ser escrito, que Lacan só pode escrever como coisa provisória, como possibilidade da língua. O que estou chamando de modo de produção é a relação dos lugares e não dos elementos que estão nos lugares: a verdade, o saber, o produtor e o produto. Mas este modo de produção é impossível. Quando surpreendemos um Deleuze & Guattari partindo para outra, não é por não terem visto isso.  BM – Penso que quando Félix Guattari, por exemplo, diz que o real, o real absoluto, e o Outro como alteridade absoluta são formas de mistificação da teoria lacaniana, é porque, da perspectiva dele, tanto o Outro quanto o $entido e o real são apreendidos de uma forma reificada, como se fossem positividades. Isto, quando o sentido de que se trata aqui é o sentido que não é nenhum sentido, e o Outro, é o Outro radical, aquele que escapa a todos os outros. Ou seja, Guattari dá significação a figuras topológicas, ele as imaginariza. Vamos supor que houvesse um S1, um S2 e sua seqüência até SZ. Então, esquematicamente, o percurso da análise seria um retorno, não linear, uma queda no S1 e o reconhecimento de que esse S1 d’escrito não tem onde encontrar sentido. Não é que não tenha sentido para o sujeito, ele tem, mas trata-se de que não há como encontrar sentido para si, como S1. Quer dizer, numa relação com o Outro, ele se vê sem sentido como alteridade pura. Não é que ele, o sujeito, não tenha seu sentido, S1, e sim que é onde ele pode reconhecer que o

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S1 não encontra sentido em parte alguma. Mas ele até poderá dar sentido a isso, justo porque encontrou sua falta de sentido. Ele pode dar muitos sentidos, mas não todos. Vejo, portanto, algo um pouco mais pernicioso no texto de Guattari e Deleuze. Para eles, o que positiviza o Outro, o objeto a, o sujeito, é não terem relação falante, quer dizer, de significação, com esses elementos pois só encontram esse S1 com sentido e para trás nada tendo sentido. Então, dizem eles: “Viva a liberdade!” Ou seja: “Para que fazer análise? Cada um que pegue seu sintoma e guerreie com ele daqui para lá!” Já a postura lacaniana é de dizer que assim não há liberdade. Só há liberdade quando posso fazer o que for preciso, mas não tudo, a partir do encontro com a falta de sentido. Até se pode fazer o que quiser, mas a psicanálise não diz o que se deve fazer, pois não é política. Aí está uma diferença radical, pois é sublimação enquanto renúncia. Ou seja, posso renunciar porque isso não tem sentido.  BM – É o nível de distinção que é preciso fazer entre poder e autoridade. Se “a cada um, seu sintoma”, se não existe uma barra sobre o A – ou seja, se existe uma garantia da verdade –, se o não-senso não existe, o discurso que se produz, o discurso libertário, é um discurso de poder. O que ele afirma é determinada significação de S1, que é a verdade desse discurso que se produz enquanto discurso dogmático. No caso de Lacan, o discurso não pode ser dogmático, na medida em que o S1, ao qual fica suposto o sujeito, tem como referência o lugar da palavra como lugar que torna a palavra ambígua. Isto porque não há verdade em última instância. O que há é uma meia-verdade se dizendo através da mentira. Esse ponto é capital para distinguir um discurso dogmático, que não é próprio apenas dos discursos políticos, mas também de certos discursos psicanalíticos. Sobretudo, discursos que, em nome desse libertarismo, fazem supor que são contrários ao behaviorismo, mas que, em última instância, são apenas discursos behavioristas que visam à modificação das condutas trazendo palavras de ordem, até mesmo aquelas de um sindicato.

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Esta postura é tanto mais dogmática quanto reforça qualquer regime de crença, isto é, reforça esse significante em seu sentido de tal maneira que ele entra em série sem se dar conta de que perde o sentido em sua origem, no momento de coalescência do sintoma. Com o que, ele pode ser fagocitado por qualquer S1 outro: de metáfora em metáfora, pode-se fagocitar isso e fazer um império. Então, vejo uma grande balela nesse libertarismo. Fagocita e hipnotiza a grande massa para o S1 prezado. O que é diferente de muitos sujeitos poderem, apenas estrategicamente, se juntar numa prática política eventual, na qual não crêem, mas que funciona.  BM – Alteridade absoluta é a garantia de que não há garantia absoluta. O regime é religioso: só posso entrar numa coalescência de massa para uma prática política porque creio nela e ela pinta um sintoma que serve para mim. Ao passo que posso entrar numa prática de massa, exercer função política, etc., sem crença alguma, simplesmente por uma questão estratégica de momento – da qual posso abrir mão depois. Isto é muito mais radical. É o chamado Macunaíma: o Erói (sem h) sem nenhum caráter. O que não significa deixar de ter palavra. Muito pelo contrário, quem está na liberdade de não ter sentido é que pode ter palavra, pois não tem outra coisa. Quer dizer, pode e precisa ter palavra, pode e precisa fazer parte. O Outro não dá a palavra, só dá o sintoma. É a ética estóica retomada pelo cristianismo que Lacan apontou como sendo a ética da psicanálise: Seja feita a vossa vontade! Isto não se diz para ninguém, pois é para o Outro.

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HIÂNCIA Do ponto de vista estritamente teórico, Lacan articula os discursos de maneira sempre circular, mantendo a mesma estrutura a cada conceituação. Mas mesmo na matemização dos quatro discursos, é no impossível – impossível este situado em algum ponto da passagem de um lugar discursivo para outro – ao discurso de formular-se na totalidade de uma fala que desse conta do universal – universal este que Lacan barrou no feminino e que vai estar articulado em cada um dos casos – que a hiância vai aparecer. É preciso lembrar que o que Lacan chama de Outro, ele o escreve de um modo, digamos, referencial ao mais genérico da alteridade, e que o Outro não é pensado como alteridade escritível de modo fechado:

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A escrita da partição do discurso d’A (La) Mulher, que não existe, está entre o significante faltoso do Outro e a posição do sujeito referenciado ao falo. É a escrita do significante de uma falta no Outro na medida que esse Outro sofre da mesma hiância que se representa na postura de sujeito de significante para significante. Quando Lacan diz que “A Mulher não existe”, o sentido lógico é que, do lado da Mulher, não existe nenhum que não seja função fálica (~x ~x). Isto, como uma designação íntima à psicose. Diz ele que um homem só encontra uma mulher na psicose... Enquanto que a função fálica, referenciável ao significante unário, S1, estatui o discurso do homem, ou seja, do falante enquanto referenciado à função fálica, no discurso d’A Mulher, que não existe, como acabei de dizer, não existiria nenhum que não fosse função fálica. Isto é mostrar que o Outro – ao contrário de todos os sistemas englobados por um círculo de Euler, no caso da teoria dos conjuntos – é vazado. A hiância é, pois, a estrutura mesma do Outro. Logo, A não existe, é não-todo, é furado. Por isso, A Mulher não existe. Não há possibilidade de totalizá-la, pois o que temos é, do lado esquerdo na fórmula, a Mulher enquanto Homem falante e, do lado direito, o que seria a alteridade radical do feminino. O que mais não existe nesse feminino que seja da mesma ordem de hiância que A Mulher? A Linguagem ou A Língua. Se procurarmos a estrutura da língua – e está aí Chomsky que não nos deixa mentir –, cairemos nessa hiância, como ele caiu. Do mesmo modo, A Verdade, ou seja, o enunciado que diria a enunciação, também não é possível, pois recai na hiância. E o que tem a ver a Causa com a hiância? Esta brecha é posturada no pensamento de Lacan como o ôntico, e não o ontológico. Assim, o que é radicalmente remissível a qualquer função de ser para o falante é a hiância. Por causa dela, há uma perda de mais-gozar, de um objeto inapreensível, o qual, como referência da hiância, passa a ser causa de todo e qualquer movimento na ordem metonímica dos significantes. Nesse ponto surge uma questão muito interessante, que é o porquê de certas viradas lá na Escola Freudiana de Paris. Todos se lembram da questão de Serge Leclaire, no Congresso de Bonneval, invertendo perigosamente a formulação lacaniana, ao afirmar que o inconsciente é condição da linguagem.

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Lacan rebateu com sua fórmula de que a linguagem é condição do inconsciente. Então, diante desta questão e diante da não nomeação de uma totalidade no feminino – enquanto A Mulher, A Verdade, A Linguagem – como podemos pensar isso? Por que a inaceitabilidade, dentro da coerência do discurso de Lacan, da reversão promovida por Leclaire?  Pergunta – A formulação de Leclaire quer conceber o inconsciente como um Todo. O que, em última instância, seria encontrar o inconsciente como ôntico. Acontece que o inconsciente se manifesta nessa falta e se manifesta correndo atrás de algo. Do quê? Desde que Leclaire disse isso e nunca pôde demonstrar plausivelmente, muitas coisas se embananaram, inclusive o tipo de questão que ele trouxe ao Brasil. Sua postura em relação ao feminino me parece sempre, em última instância – e por mais que se pergunte, ele ou escapa ou remete à mesma coisa –, uma referência ao biológico, coisa que não cabe na teoria. Há tempo, Lacan disse que a linguagem é condição do inconsciente. Ultimamente, tem dito claramente que A Linguagem não existe, como dissera que A Mulher e A Verdade não existem. Então, qual é a condição do inconsciente em sua postura? É o ôntico da hiância. Há inconsciente por necessidade de fechar a hiância. Inverter isto é dizer que existe uma rolha ôntica, se não ontológica, que fecha para abrir depois. Por isso, o necessário na articulação de Leclaire não me convence. O sujeito fala porque tem inconsciente ou tem inconsciente porque fala? É claro que não vamos fazer esta seqüência idiota, pois o processo é circular. Mas o que é ôntico no nível lógico? O ôntico é haver um buraco, estar faltando. A repetição do buraco, da falta sobre si mesma, é que dá como processo o recalcamento, o qual é o modo de produção do inconsciente. Por isso, Lacan bate o pé diante da questão. No que Leclaire faz essa revirada – e tentando, me parece, um pouco desesperadamente, dar conta do que tentou promover –, pode chegar ao tipo de abordagem que faz da postura masculino/feminino no campo do social, por exemplo, de que falou para nós. E, no modo como falou, dá um romance muito apropriável.

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O importante é que, a cada ponto da articulação de Lacan, a hiância comanda os construtos teóricos. Assim, as funções de Lei, de causa, de falta no Outro, de lalangue, alíngua – enquanto reviramento sobre si mesma como sintoma, uma vez que não consegue ser A linguagem –, e as questões do Outro sexo, que só pode ser alteridade pura, e da Verdade, que, de cada vez que fala, vira enunciado e portanto não se diz, estas funções e questões é que comandam toda a estrutura do pensamento lacaniano. Daí eu ter perguntado a Leclaire se ele acreditava – pois se trata de crença mesmo – na possibilidade de uma sociedade heterossexual. Ele disse que sim, e fiquei espantadíssimo. Acreditar em heterossexualidade é uma questão lógica, mas acreditar numa sociedade heterossexual seria a mesma coisa que dizer que se acredita numa sociedade de analistas, um bando de loucos. Os analistas só podem se referir ao Discurso Analítico, e não a alguma institucionalidade, que, mesmo existindo, é apenas discursiva, ou seja, montada num discurso que, se não é o do Analista, é o do Senhor na interação com os discursos que eventualmente estejam estruturando o social. Uma sociedade heterossexual é uma sociedade heterológica, isto é, multifária a ponto de não poder se estatuir. Isto, ao mesmo tempo que, como disse a um jornalista, ele reclama da falta de coragem de Lacan em fechar a Escola Freudiana – a qual tem sido a coisa mais parecida que existe com uma sociedade heterossexual. Não consigo, portanto, entender a postura de Leclaire, pois ela se reverte sobre si mesma o tempo todo. Acho que sua grande mancada foi quando situou a frase sobre o inconsciente como condição de linguagem. De lá para cá, ele tem tido que dar conta disso de qualquer maneira, sem conseguir. O que me preocupa não é nem isso, pois Lacan já respondeu e, de certo modo, eliminou a questão, mas são os efeitos em suas práticas posteriores. Por exemplo, quanto ao movimento das mulheres. O que é isto? Movimento de pessoas que não têm pênis? Não entendo, pois não posso de modo algum confundir a aparência anatômica de uma vulva com a hiância, a não ser no imaginário – e mesmo isto é algo que foi articulado em regime simbólico. Então, nos textos dele, há uma oscilação entre falar as mesmas coisas que Lacan e, ao demonstrar, cair para o lado errado em relação ao discurso de Lacan.

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Uma vez que é a partir da construção do inconsciente como uma linguagem – isto é, na hiância, na impossibilidade de pensar o universo do discurso, o universo da alteridade (A Mulher, A Verdade, etc.) –, o essencial é que é a hiância que regula todo o percurso do pensamento psicanalítico. Do contrário, é recair em pensamento de tipo filosófico, e a psicanálise fica sem razão de existir, pois estaria fora de seu discurso próprio. Ou Lacan, depois de Freud, apontou a hiância como a heteronomia reguladora, enquanto falo significante (e não falo adscrito a uma sintomática particular, ao S1 de alguém), e a psicanálise existe, ou Lacan nada disse e a psicanálise não tem razão de existir, pois seria cambiável por qualquer outro tipo de discurso. Por isso, Lacan mantém a questão perene durante seus trinta anos de fala: –”O que é a psicanálise?” Não posso estar arrolhando conceitualmente o que está em falta na teoria. Isto pode ser uma estratégia política, mas não é psicanálise. Se a teoria falta, falta. Faça-se! Consiga-se! Ache-se! *

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 P – Se a alucinação é pensada como a falta de simbolização da cena primária, como se fosse um real não simbolizado, como poderia se dar a formação do imaginário no sujeito que tem um contato tão imediato com o real? O que é alguém alucinar um dedo cortado? Dizemos que o não simbolizado caiu no real. Mas como ele se apresenta? Imaginariamente. Há um jogo ternário. A alucinação de um dedo cortado é promovida e comovida na falta de simbolização caindo no real, mas o modo de aparecimento é construto imaginário. Como Freud não sabia dizer a queda no real, falava que era um sentimento de realidade, o que é algo que não quer dizer nada. O que não foi simbolizado? A diferença, que só se pode escrever, e não conceituar (no sentido que Zenão dá ao conceito: “pegar”). Não posso fazer mais do que inscrevê-la, ainda que seja como traço unário, como diferença pura. Isto é simbolizar a diferença. Não simbolizada, ela recorre ao real. Mas, pergunto novamente,

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recorrer ao real é aparecer como um dedo cortado? Por que não o nariz? É um elemento qualquer imaginarizável no nível de reflexão corporal, e o sujeito depõe aquele objeto. E isto já é algo estranho na estrutura da teoria. Observem bem o fenômeno: não simbolizado, caiu no real, foi foracluído. Ser foracluído é não existir? Não, pois mesmo o que é foracluído funciona em apegos de cadeia significante. Se não, caímos nos radicalismos de fazer setorizações – que nunca mais retornam e, daí a pouco, teremos uma gramática e uma geografia dos acontecimentos do Inconsciente e viramos psicólogos. Ser foracluído significa que teria (ou terá) tido possibilidade de ter entrada na cadeia significante. Se não, não poderíamos jamais pensar na possibilidade de cura da psicose. Isto porque, no campo do Outro, a coisa está simbolizada. O sujeito foracluiu de seu registro simbólico, mas ela está lá simbolizada em algum lugar e se promete e se promove como real porque não é aceita como símbolo. Ou seja, nas cadeias, foi foracluída do simbólico, mas não do Inconsciente. Acabei de falar algo de que ninguém reclamou e que é, talvez, incompatível com o que Lacan disse. Se o Inconsciente depende do simbólico puro e o foracluído do simbólico cai no real, como algo pode ser foracluído do simbólico e viger dentro do Inconsciente? Como sair dessa topologia? Não estou dizendo que não possamos, só estou perguntando como. Se não, olhamos para um psicótico e pensamos que lhe falta um parafuso, como dizem. Se falta, então não há jeito. Mas quando digo “falta um parafuso”, falei que parafuso há, faltoso. Vejam que não há escapatória do conceito de significante. Não vamos cair na bobagem de supor que o sujeito cuspiu fora do simbólico alguma coisa e que, portanto, aquilo se perdeu para além do horizonte do objeto a. Como pode ser foracluído um significante que não é significante? Só se pode falar em foraclusão no regime de encadeamento simbólico do sujeito em questão. Por exemplo, a legislação vigente diz que “o desconhecimento da lei não implica inocência”. Então, o sujeito é suposto conhecer a lei porque ela está em algum lugar do campo do Outro, funcionando encadeadamente com as séries significantes. Se um elemento seu qualquer está foracluído como significante, nem por isso ele deixa de estar, digamos, imantado nas cadeias que não estão

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foracluídas. Tanto é que ele procura onde se ajustar, onde se assentar, recaindo no campo do real e pintando como imaginário. Pensar a foraclusão como alguma coisa fora, é pensá-la como algo fora do regime do Outro, mas não há coisa mais fora do que o Outro. Vamos mais longe. Se digo “A Mulher não existe”, posso, tal qual o personagem português de Guimarães Rosa, perguntar: como não existe, se estou falando dela? Neste ponto, a lógica corriqueira, a mais aristotélica, não pode aceitar a negação sobre o quantificador universal: não-todo é função fálica (~x.x). Não pode aceitar porque o não-todo, no sentido da lógica corriqueira, seria apontar uma inexistência radical, uma não tangenciabilidade pela fala. Todavia, se posso dizer “não-todo”, já o estou colocando em regime de significante. Então, por que A Mulher não existe? Ela é não-todo enquanto alteridade, pura borda de significante, não-senso. Lacan jamais barrou a palavra “Mulher”. Barrou o quantificador universal (~). Vejam que nem foi apagado, pois quando se diz de um ponto com pretensão de universalidade, estamos nos referindo a algo que é dividido em si e que se altera a cada passo. Então, não se pode falar em universal de ponto algum de nossa fala. Isto, do mesmo modo que os lingüistas se perdem na tentativa de conquistar A Linguagem. Se A Linguagem é condição do inconsciente e ela não existe, então o que é condição do inconsciente não existe. Quer dizer, não existe porque não pode assumir existência de enunciado. Não pode ser enunciado, logo, não tem existência. Qual é a existência da enunciação? É seu semi-aparecer no enunciado. A verdade se semi-diz. Não podendo dizer a falha, a hiância, digo algo no lugar dela. Por isso, Lacan diz que não há fala fora da metáfora, querendo também dizer que não há fora da metonímia. Voltando à nossa construção inicial sobre o sintoma, só se pode falar em termos de sintoma porque não se pode falar daquilo que chamei de folia originária (Lacan não tem responsabilidade nisto). Como aquilo não pode ser dito, pois o paradoxo não se diz, diz-se alguma coisa no lugar: metaforiza-se. Isto é que é dizer que a linguagem é condição do inconsciente. Ou seja, que a hiância é condição da metáfora, que a enunciação é condição do enunciado.

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Se formos traduzir deste modo, o que Leclaire nos diz é que o enunciado é condição da enunciação. Até poderíamos dizer que a criança cai num campo de enunciados, onde ela percebe – e agora já estou saindo da postura que seria a de Leclaire – um desejo que corre e, por isso, ela recai numa enunciação a partir dos enunciados. No entanto, falo com os cachorros e eles não têm enunciação. Qual é a diferença? Por que o cachorro não fala comigo, por mais que eu fale com ele? Aliás, estou dizendo algo que não é correto, pois não é que o cachorro não fale, que não tenha um modo qualquer de falar comigo, e sim que ele não fala a partir de uma enunciação, não faz equivocação. Portanto, a diferença é que ele não se engana. Ele, sim, é produto de enunciado. O ideal do Discurso Universitário é que todos tenham o enunciado como condição de tudo. É a felicidade absoluta do Senhor contemporâneo. Basta ver que a Universidade fala, fala, despeja regra e todos começam a falar. Quando, na formulação do Discurso Universitário, pretende-se produzir um sujeito x, um sujeito previamente nomeado, está-se supondo que, numa acumulação de enunciados, venhamos a produzir um falante naquela ordem de enunciados. O que a Universidade deseja eliminar? A enunciação. É até estranho dizer que ela deseja, pois se deseja eliminar a enunciação, não quer saber do desejo. Ela não pode nem desejar. A fala de Leclaire, embora não seja bem isso o que quer dizer, seu modo de dizer promove uma verdadeira festa de diferenças imaginárias. A última dele é, quando lhe fazemos uma pergunta, dizer que não quer discussões acadêmicas... *

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 P – Você pode falar um pouco sobre a diferença que Lacan faz entre Ego e Moi? Quando Lacan cita os ingleses, fala ainda em ego. Ele está simplesmente usando a palavra que o discurso que critica usa. Não é que não possamos traduzir moi por ego, mas não há necessidade. O ego é um objeto construído, seja no pensamento deles, seja no de Lacan. A diferença é que Lacan não admite que se possa assentar a psicanálise sobre relações de ego, “de ego à

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ego” (de iguais a iguais). Ele não quer usar a palavra ego porque, em francês, pode utilizar o Je e o moi. Je, como shifter que promove o campo da enunciação, o campo da escansão, como o Eu, em português. E moi, como referência a um objeto construído para me substituir, para substituir a posição que cada sujeito tem na posição subjetiva. Observem que a tópica freudiana – ego, id, superego – é uma tentativa de construção topológica inconseguida. Freud faz uma construção mais ou menos euclidiana e diz que é isso, mas não é isso. Lacan se vale de conhecimentos da matemática contemporânea, da lingüística, etc., para mostrar que podemos pensar uma região sistêmica que se objetifica como o objeto – e é isto que está chamando de moi –, que, metaforicamente, é o objeto “transacional” do sujeito, o objeto de suas transações. Não estou falando do objeto transicional, de Winnicott, e sim do ego como objeto, como rolha, supositório, e não como suposição. Na introdução de Lire le Capital, Louis Althusser explica que teria aprendido com Lacan o que é uma leitura. Foi a leitura lacaniana de Freud que ele transpôs para fazer a leitura althusseriana de Marx. Em vários momentos, Lacan aponta que lê em Freud o que Freud escreveu, e não o que disse. Ele procura pelo suporte mínimo, a lógica mínima de cada construção que Freud apresenta com determinada metáfora. Com isso, ele se diz estritamente freudiano e diz que não se trata de tomar as metáforas e ficar nelas. Ele quer saber qual o modo de construção das metáforas, pois tem a mesma neutralidade durante todo o percurso do pensamento de Freud. A tentativa de produzir um texto, um enunciado, mediante armadura de uma tópica, mostra que Freud não era estúpido, que tinha inteligência para não se amarrar a regionalismos euclidianos de superfície, e, apesar da construção euclidiana que fez, começar a entrecruzar para mostrar as relações de – ainda que sem o nome ou a matemática (e falar em tópica já é muito aí) – topologização, de elasticidade dos fenômenos. Daí que, quando procuramos fazer uma fronteira em qualquer das tópicas de Freud, ela se perde. Por isso, não sei como as pessoas conseguem falar das tópicas como se estivessem definidas. Na textualidade, as fronteiras se perdem.

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Trata-se, na tópica freudiana, de uma questão de posição. Aliás, quando Lacan coloca real, simbólico e imaginário também é uma questão de posição, de um em referência a outro e tudo sendo articulado em nível significante, pois, na nodulação, o valor é o mesmo. Como o real não se diz, quando o descrevo topologicamente no nó borromeano, reduzo-o à ordem significante, que é a que tenho para poder fazer a articulação. No fundo, vigora a suposição, já que o real só pode ser suposto por ser impossível de ser dito. Então, ele vai como ficção. Como vêem, a coisa é elástica. Por isso, não se pode fazer paralelismos indevidos. Aí, viraria geometria euclidiana, geografia ou psicologia. É preciso entender que isso é o Outro e que a questão é o modo de inscrição no registro. Em cada momento da fala, onde os registros são inseríveis? Não estamos num açougue cortando carne, dividindo o boi nas partes devidas. Uma metáfora boa que me ocorre é a da professora primária que coloca sobre a mesa três laranjas e diz “uma laranja mais duas laranjas igual a três laranjas” – e o aluno nunca mais ficará bom disso, pois três laranjas são quatro, e a única coisa que ele percebeu é que não se contam laranjas, e sim as vezes que se aponta o objeto. Por isso, gostamos daquela estorinha do garoto que diz: –”Tenho quatro irmãos: João, José, Joaquim e eu”. Já notaram que ninguém segura uma laranja? Dizemos “eu seguro uma laranja”, mas isto é diferente de segurar uma laranja. Não conseguir passar para o incerto da escansão subjetiva, que faz o aprisionamento, que nada tem de real, é puramente imaginário. Para contar uma, duas, três laranjas, como faz a professora, tenho que me supor uma laranja. Então, me identifico imaginariamente com a laranja, isto é, ponho o significante “laranja” de lado e me espelho na laranja. Por isso, alguns acharam que fui grosseiro com o rapaz da revista Veja, outro dia. Ele me perguntou o que eu fazia e respondi que “fazer” era um verbo. Jamais daremos conta de “chupar uma laranja”, por exemplo, a não ser dizendo esta frase. O real é impossível de ser dito justo por isso. Fazemos metáforas, uma porção de verbos, mas quando nos defrontamos com o real da laranja, ele é tudo que não conseguimos dizer sobre a laranja. Quando conto laranjas, escapou o real da laranja. Ou seja, estou na escansão do sujeito, há sempre mais um. Daí, a psicanálise não ser uma filosofia.

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Se olhamos, não vemos. Quando vemos, deixamos de olhar. Sempre vai por tabela. Por isso, a própria interpretação é a mais errada quando atinge o alvo. A suposição do analista de ter encontrado a interpretação correta e lançá-la sobre o sujeito é o maior ato de resistência que existe. Atira-se ao lado. O analista é aquele que nunca acerta na mosca, pois quando acerta lá, errou o alvo inteiro. Qualquer suposição de acertar na mosca é resistência do analista e é Discurso do Senhor, discurso de dominação. Isto, ainda que fosse a interpretação correta, pois a interpretação mais correta vem da fala do analisando, vem nela. Estamos cercados pela pretensão dos psicanalistas (não de serem sujeitos supostos saber, mas) de serem sujeitos que sabem. Como me disse Félix Guattari sobre certo analista, que ele era “sujeito suposto conhecer”, uma coisa assim estranhíssima. A questão da hiância, trazida por vocês hoje, abriu para todos os lados de que falamos. É uma questão fundamental tanto na teoria quanto na prática.  P – Como poderíamos situar a noção freudiana de construção face ao que você acabou de dizer quanto à interpretação correta aparecer na fala do analisando? Freud fala da construção – ficcional sempre, com os materiais fornecidos – do analista e da reconstrução do analisando, mas, nesse paralelismo entre a ficção do analista e a do analisando, não podemos esquecer de um detalhe chamado transferência, se é que se está em análise. Transferência não é algo que o analisando tem em relação ao analista, e sim algo que corre aí no meio. É recíproco, ou não existe. Todo amor, em última instância, é uma loucura a dois, no sentido em que, como vemos nas relações amorosas que se dizem, acaba fazendo um discurso só. É claro que o analista não vai ficar amoroso, no sentido comum do termo, por cada analisando, mas há o projeto transferencial e há o que queremos supor que seja uma escuta preparada – no sentido em que John Cage fala de “piano preparado” –, ou seja, uma instrumentalidade tipo jazz, ou algo dessa ordem, formada como câmera auditiva de maneira que ele pode

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entrar no jogo transferencial, fazer essa loucura a dois a cada momento, mas com distanciamento. Então, a dupla ficção não é aí. Não vamos, como o psicólogo, pensar que, quando o sujeito fala meia dúzia de coisas, logo vai ao fichário e tira uma interpretação do bolso. Esta é uma relação compreensiva que escolhe o material a partir de uma dominância, de uma dominação do mestre que está ouvindo. O analista vai escutar muito sem nada entender. Afinal, como poderia o analista entender o analisando? Não pode. Se entendesse, não precisava ficar fazendo análise, explicava logo. Estar entendendo nada é estar na condição de entender tudo, como o homem do jazz fica: ele não está sacando nada, mas, de repente, entra na música e sabe o som. A grande dualidade não é, portanto, a partição da ficção do analista, de um lado, e a do analisando, de outro. É, sim, a partição das ficções que serão construídas com os materiais elaborados do lado do analista – as construções –, agrupando (não interpretações, mas) possibilidades de interpretação no sentido, quem sabe, de uma reconstrução. Reconstrução do quê? Existe um negócio chamado recalque originário, que foi o fundamento de tudo. Na linguagem que estamos usando aqui, onde encontramos inscrição para ele? Ele não é um recalque qualquer, de qualquer coisa, e sim um recalque historicizado só-depois, après-coup, e que vai ter que ser reconstruído. Isto significa que vou reencontrar aquela figura? Não! Se foi recalcada, não está lá. Então, é no movimento pregresso do sujeito, de regresso por essas cadeias ficcionais, nos empuxos, nos jogos transferenciais – que não são interpretação, pois, a rigor, uma análise inteira só tem uma interpretação, que é o momento da reconstrução –, nos jogos de esconde-esconde, de logro de namoro, de romance, que é preciso fazer entender que são rasteiras para o sujeito dizer, reconstruir. Os maus ouvidos de formação analítica estão sempre pensando que tudo que o analista diz é interpretação. Não é. De vez em quando, pinta uma interpretação – que já tinha sido dita pelo analisando. O analista só tem a escuta para ressaltá-la. O resto é o judô para que o material venha, as articulações comecem a se produzir. Então, temos a manipulação da transferência que, de vez em quando, permite ressaltar uma interpretação, muito rara.

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Então, se a análise quer chegar a algum fim, trata-se da reconstrução do que não pode ser reconstruído. É a arqueologia, a reconstrução de um objeto original que não existe mais e do qual tenho apenas documentos, registros, fotos, imagens, marcas, etc. Esse objeto será reconstruído e o sujeito se presenteia de volta com um esboço de sua fantasia original. No entanto, isso foi recalcado no momento do surgimento do sintoma, o qual já é metáfora, logo, aquilo é o que nunca foi entendido antes de o sujeito ter colocado a metáfora no lugar daquilo.  P – [Sobre a construção e a repetição] A medida do processo é a repetição. Como diz Freud, não tem importância não pegar na primeira vez, pois surgirá de novo. Isto, mesmo que haja “analista” que seja o repetidor, que pensa que analista é psicólogo. O que faz o bom professor? Repete, repete até as crianças saberem. O analista que não analisa faz a mesma coisa, fica repetindo até o sujeito se convencer. Por isso, Lacan diz que o próprio da psicanálise não é convencer (convaincre, con ou pas). Estamos diante da situação a mais paradoxal, mais insustentável que existe: um sujeito procura um analista que ele supõe saber, não por alguma informação, mas simplesmente porque ele (analisando), em sua estrutura lógica mínima, porta a suposição de saber do sujeito e empresta ao analista esta suposição de saber para poder se estruturar. Mas o analista não sabe, pois quem sabe é quem foi perguntar. O analista pode ter um savoir-faire, que, no caso, é um saber-escutar as repetições, saber escandir no momento das repetições e no momento dos logros. E o analisando vai achando porque está lá. O que o sujeito supõe que o analista sabe? O analista é sujeito suposto saber o quê? Não é preciso o “o quê”. Ele é apenas suposto saber: sujeito suposto S2 diante do qual S1 pode surgir. *

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Se existir algo que possa ser chamado de formação psicanalítica, há que pensar no que Lacan diz sobre o analista ter que ser um letrado. Isto quer dizer que, para ele poder melhor receber a postura de S2, de saber, que o

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analisando supõe nele, tem que estar na máxima possibilidade de percorrer saber, o que, em sentido psicanalítico, não é quantificação de informações, e sim a disposição de percorrer os significantes. Ele é sujeito suposto furado. Uma vez, fiz uma metáfora para o próprio Lacan dizendo como era seu ouvido. Quem já viu os filmes dos irmãos Marx, lembra-se de Harpo, que é mudo, escuta tudo, faz música e tem o ouvido furado: enfia um lenço na orelha de um lado e puxa pela do outro. Um dia, descobri que o ouvido de Lacan era furado, ou seja, você fala aqui e ele escuta com o lado de fora – isto é que é estar na posição de sujeito suposto saber. Os ouvidos furados são os ressoadores de Helmholtz, que recolhem o som. Então, quando o Outro é ressoador, tudo ressoa. Isso é que é a tal “escuta flutuante”, aquela que não faz escolha – só que ninguém fica nela.

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FÁLIA Início com a audição de Cálice, de Chico Buarque.

Ad Sorores Quatuor foi o título que demos a este curso. Qual é o porquê deste nome – Às Quatro Irmãs –, no feminino, quando, na verdade, se tratam de Discursos? A causa deste feminino é do que, para encerrar nosso encontro deste ano, quero falar, retornando ao começo suposto de tudo. Por causa dela, da falha ôntica do falante, onde cabe toda a causa desse falante, como a-bjeto ou objeto a. A falha que tento colocar seria como se fosse, se o fosse, o feminino do falo. É a Fália. Já disse várias vezes que a fala não é o feminino do falo, e sim o que vem em seu lugar. A Fália, sim, é o falo enquanto outragem. É como passo a chamar a alteridade radical do significante, no caso, o significante falo. É a revirada, em contrabanda, da borda que constitui o significante como corte. É a lembrança da outragem, do ultraje do significante, que vige no falo como significante das possibilidades significantes (segundo a definição que Lacan dá ao falo como significante). A Fália – da qual não se pode falar por inteiro, pois é não-toda, participa da mesma lógica d’A Mulher, d’A Verdade e d’A Morte, que não existem por inteiro – é radicalmente subversiva. Seja qual for o discurso que queira controlá-la, fica necessariamente subvertido por ela. Qualquer semiologia se desmorona pela consideração da Fália, pois só se sustém em seu esquecimento, em sua expulsão, em sua foraclusão.

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Interessante é que é no cômico, às vezes de mais baixo teor, onde encontramos a inserção da lembrança da Fália. Outro dia, por um acidente temporal, assisti na televisão ao trecho de um programa, que parece muito idiota, chamado Os Trapalhões, de Renato Aragão, com o qual me surpreendi. Perguntavam ao personagem sobre quem havia telefonado. Ele responde que não sabia. “Como não sabe”, retrucou o outro, “os homens têm voz grossa e as mulheres têm voz fina?!” E ele devolve: “A voz não era tão grossa quanto a da Maria Alcina, nem tão fina quanto a do Ney Matogrosso”. O que está em jogo nessa semiologia do interlocutor – tentando, por uma dada quantificação sonora, surpreender qual seria o significado – e que seria angustiante, se não fosse de se rir, é a sexualidade, a Sexão como nuclear ao falante e, portanto, como nuclear à psicanálise. Coisa de que nos esquecemos e de que Lacan sempre nos lembra: a sexualidade é nuclear no campo da psicanálise. Não estamos sendo reichianos por isto (e talvez o que mais falte ou o que menos apareça radicalmente no discurso de Reich seja a Sexão). *

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Como falar da Fália que constitui a Sexão? “Pai, afasta de mim este cálice!” – foi a frase tomada. É, na equivocação do termo, o “Afasta de mim esse Cale-se!” pedido ao pai. É uma demanda. Se fizermos uma referência ao Nome do Pai, será na medida da atuação da função paterna que o “cale-se!” poderá ser afastado. Entretanto, no afastamento possível desse “cale-se”, é o dizer que fica impossibilitado em sua totalidade. Aí está o paradoxo fundamental do falante. O pedido a uma função paterna que afaste esse “cale-se!” é o ser submisso, o vigorar sob o regime da Lei, portanto, do desejo, e poder afastar adiadamente o “cale-se!”; ao mesmo tempo, que é não poder dizê-lo todo, bebê-lo até o fim e talvez até encontrá-lo enquanto “cálice”. Está aí a Demanda do Santo Graal para demonstrar isso. Que vaso é esse que não fala outra coisa senão “cale-se!”? O Nome do Pai como função limite aparece, não se pode afastar decisiva e definitivamente o cálice, embora

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qualquer abuso – que é sempre legiferante – que diga respeito ao “cale-se!” seja abuso sobre o desejo, no que a verdade só pode ser semi-dita, mas pode estar no movimento de dizer-se. A demanda, o pedido de afastar o “cale-se!”, é a exigência mais próxima da estrutura radical do desejo. A grande representante disto é a histérica, no que tanto fala, em produção de saber, tentando afastar o “cale-se!” que ela sonha poder completar numa fala absolutamente plena, se não mesmo esgotar o “cale-se!”. Que se afaste de mim esse “cale-se!” é o pedido: que a Fália possa ser dita. Mas isto é impossível. Por isso, o impossível é requerido. Requerer o impossível como tal é vigorar, sabendo do impossível, na verdade da fala plena, da palavra cheia. Ou seja, é conseguir fazer de conta como invenção do possível, e não como articulação que se recobre de imaginário. Invenção esta que vigora como obra de arte, como estilo, quando acontece. Já lhes disse que considero da mesma ordem a produção da obra de arte e a abordagem da Fália. Guimarães Rosa, em Primeiras Estórias, apresenta um texto intitulado Nada e a nossa condição, onde há um certo personagem chamado Tio Man’Antônio, “um homem, de mais excelência que presença, que podia ter sido o velho rei ou o príncipe mais moço”, e que tinha uma “fazenda, cuja sede distava de qualquer outra talvez mesmo dez léguas”. Esse homem é apresentado como alguém que sobe aos cimos e desce às profundidades, como “o Rei-dos-Montes ou o Rei-das-Grotas” e que tem para si a idéia de que “só estamos vivendo os futuros antanhos”. “Olhava, com a seu nem ciente amor, distantemente, fundos e cumes”. Este homem perde seu objeto a num falecimento e, diante disso, constitui uma reorganização “por inteiro” de sua fazenda e institui o faz-de-conta simbólico em sua impostação em todas as suas manifestações. Diz Rosa que ele era “intrágico”, “transitório”. Apenas dizia “faça-se de conta”, mais ou menos como que assumindo uma posição que pudesse indicar a função paterna. Esse faz-de-conta não é absolutamente redutível à função imaginária do teatro, por exemplo, mas é, evidentemente pelo texto, a pertinência da função simbólica constantemente substituindo, num faz-de-conta rigoroso, o que não pode ser apreendido na fala. É quando o sintoma

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se reconhece estatuído sobre a ordem significante, assim como todo o imaginário musical que trouxemos, por sintomático, não deixa de remeter à sua base significante. O transitoriante Tio Man’Antonio “de seu, nada conservara, a não ser a antiga, forme e enorme casa, naquela eminência arejada, edifício de prospecto decoroso e espaçoso: e de onde o tamanho do mundo se fazia maior, transclaro, sempre com um fundo de engano, em seus ocultos fundamentos. Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter; fazia-se, a si mesmo, de conta. Aos outros – amasse-os – não os compreendesse”. (...) “sempre majestade”. De repente, morre esse homem. “Deu – o indeciso passo, o que não se pode seguir em idéia. Morreu, como se por um furo de agulha um fio. Morreu; fez de conta. Neste ponto, acharam-no, na rede, no quarto menor, sozinho de amigo ou amor – transitoriador – príncipe e só, criatura do mundo”. E mais do que isso, do mesmo modo como terminara a tragédia edipiana em Colona, por alguma determinação que não se sabe, após esta morte a casa se incendeia: “A obrigação cumprida à justa, à noitinha incendiou-se de repente a Casa, que desaparecia”, como se “a montanha inteira ardesse”. Era uma luz que “traspassava a noite”. (...) “Ele – que como que no Destinado se convertera”. Destinado esse que me parece o Édipo. Aliás, não há outro sentido para Édipo senão seu fim em Colona, mais do que o brinquedo teatral da cama de Jocasta. *

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O faz-de-conta rigorosamente posto é da natureza do chiste, ou seja, da natureza da Morte. O chiste, que Lacan define como o dito sem pé nem cabeça, e que, no entanto, dá conta, empresta sentido (embora não o tendo) ao que não tem sentido: o homem. Assim, paradoxalmente, o que dá sentido ao homem é seu sintoma. Isto é, o que vem no lugar daquela que não existe, A Morte, A Verdade, A Mulher. O que dá sentido ao homem é uma mulher, pois, se A Mulher não existe, não existem as mulheres, existem mulheres ou uma mulher como sintoma que vem cobrir a Fália. Mas o que é uma mulher se até

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Caetano Veloso pode dizer: “Eu sou apenas uma mulher”? Mas o que quer uma mulher? Che vuoi? Foi a pergunta que Freud deixou em suspenso. O vulgo dá sempre a resposta, pois pensa que sabe o que é e o que quer uma mulher. E para falar vulgar e brutalmente como o vulgo (que somos nós), uma mulher quer pica, o que não é absolutamente verdadeiro. Aqueles que são médicos sabem de uma anedota constante na história da medicina diante dos chamados ataques pitiáticos, os piti. Eles têm uma fórmula que, de modo geral, é dita em latim: penis normalis dosim repetatur (pênis ereto em doses regulares), ou: clister de corpos cavernosos. É interessante ver como se rebate redundante e abusivamente por sob o imaginário o que é de uma ordem inteiramente outra. Como se não existissem as virgens por opção e as santas por, digamos, verdadeira afeminação. Daí a suposição, que só não é falsa às vezes imaginariamente, da inveja do pênis, que é uma questão que precisa ser retomada. Penisneid, o que é isto? Quiçá funcione só no regime imaginário. A sexualidade não se confunde com as práticas ditas sexuais. Recomendo-lhes o artigo de Charles Melman, Que veut une femme? (Revista Ornicar? 15, Été 1978, p. 31s.), onde o autor destaca o que vigora de fundamental na pergunta de Freud, à qual Lacan deu resposta nas fórmulas quânticas da sexuação. O que quer uma mulher?, diz Melman, é, em última instância, “um traço distintivo que marcasse sua pertinência a uma classe” (p. 32). Isto porque, sendo não-toda, como mostramos no discurso de Lacan, ela não faz classe. Aliás, todos sabem que as mulheres não têm classe, nem no discurso de Marx... Não há um traço distintivo que pudesse superar a alteridade radical de sua referência. Só no discurso de projeção fálica, que promete a metalinguagem, se poderia, tanto ao gosto feminista quanto ao gosto machista, produzir a classificação das mulheres. Mas, dizendo isto, não respondemos o que seja uma mulher, e sim o que ela quer. É espantoso ver, até em discípulos de Lacan, a constante confusão da partição da sexuação com a ordem imaginária do corpo e do discurso biológico. Em contraposição ao que se tem visto nesse campo, nesse modo de portar-se no discurso – como, por exemplo, me pareceu, não posso garantir que seja, na

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fala de Serge Leclaire –, é que indico o artigo de Melman, que faz uma leitura bastante adequada das fórmulas da sexuação lacaniana. Diz ele: “...é claro que, por estar situado do lado do Outro, não se priva, de modo algum, da aferência fálica, e que só se pode mesmo apegar-se mais a ela” – ou seja, apegar-se a esse pedido de traço distintivo, que o vulgo chama de pica – “àqueles que não deixam de tê-la” – que é a fórmula do masculino – “correspondem aquelas que não deixam de sê-la”. E continua ele de modo interessante: “A única loucura do transexualista é crer que ele o seja”. Coisa que nem as mulheres crêem. Não deixam de ser, mas não acreditam ser. *

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O que se retira da algebrização precisa que Lacan nos deu nas fórmulas quânticas é que a estrutura da divisão da sexuação é a mesma estrutura da linguagem, isto é, a mesma estrutura da inserção do falante na ordem do significante. Sob a égide do significante ou se é um ou se é outro, embora nem um nem outro esteja marcado por algum traço que se inclua numa ordem de significado. Está, sim, marcado por um traço distintivo que se marca para todo falante, seja qual for seu sexo, como homem, e que deixa de se marcar para todo falante, ou seja, para todo homem que se refira à Fália, ao significante de que há uma falha no Outro, que é o que significa o S ( A ). É isto que estou chamando de Fália. Não poderia Lacan chamar assim em francês, quem pode fazê-lo somos nós em português. A Fália é o feminino do Falo, é o próprio Falo no que é significante, e não significado, no que é marca distintiva do falante e postura de impossível, ou seja, o que requer a Alteridade. O que Lacan chama de Os Idiotas, Os Masturbadores, coloca-se do lado do discurso da referência fantasmática que promove todo e qualquer objeto à sua fantasia, $a. Mas aqueles falantes, aqueles homens que são mulheres, independentemente de sua estrutura corporal, além da referência fálica, têm uma referência suplementar (e não complementar), um excesso (que costumo dizer que é um ex-sexo) que escapole da referência fálica. E não há para o ser

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falante outra referência do que lhe é ôntico senão a referência do Ex-sexo, referência da Fália, aquilo que no Falo é radicalmente significante. Não há posturação de objeto sexual sem outrificação, outragem, ultraje do objeto. Daí que os jogos dos movimentos feministas e outros me parecem recair constantemente no discurso masculino. Não há nada mais masculino do que o movimento feminista. Como diz Charles Melman, a aferência fálica, ao invés de ser retirada, pode mesmo ser aumentada. Não existe heterossexualidade possível senão no regime da outrificação, da alteração do objeto sexual. A outrificação em sua alteridade radical é a divisão que o sujeito possa exercer em seu movimento em direção ao objeto, retirando-o da postura de objeto a e colocando-o na postura do Outro. Se o artigo que afirma o universal “A Mulher não existe” fica barrado, (La), é porque esta alteração não promove senão alteração e não promove nenhuma marca de alteração. A estampilha fálica, como diz Melman, pode ser retomada de modos os mais diversos, como na maternidade, na produção da criança – que ainda não entendi porque Leclaire a constituiu como o real do feminino –, na fetichização, no enfeitiçamento de objetos que são equivalentes penianos, no enfeitiçamento do próprio pênis, que absolutamente não é o falo (simbólico). E está claro no texto freudiano de constituição do primado do falo no processo de diferenciação sexual que o pênis não chega a ser nem mesmo o falo imaginário. Onde se põe, então, a diferença? Nenhum discurso biológico, anatômico, figurativista, pictórico pode constituir a diferença sexual sobre aparências imaginárias. Não estaremos, a respeito das teorias produzidas sobre a questão da diferença sexual, recaindo no mesmo engano – e isto é grave depois de Lacan ter equacionado claramente – em que se caiu a respeito de Édipo e da famosa interdição do incesto? Ouvimos muitas perguntas que partem deste engano. Existe um Malinowski, por exemplo, para demonstrar a tolice de procurar pelo Édipo nas estruturas antropológicas em pesquisas de campo e dizer que não o encontrou porque não encontrou o teatrinho figurativo de seu aparecimento. E existe ainda quem faça a pergunta sobre o Édipo da criança que não tem mãe

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ou não tem pai, como se a figuração de cena valesse pela estrutura. Entretanto, faço outra pergunta, a qual Melman não deixa tangencialmente de responder belamente: E a cena primitiva? Como pode surgir a diferença sexual sem a visão da cena primitiva? Em vários casos, esta cena, descrita por Freud, era dependente de certa postura de voyeur diante de uma cena primitiva de coito tipo papai-e-mamãe. E se não há essa visão? Se a criança está num ambiente que podemos chamar de monossexual, onde está a cena primitiva? A diferença não vai aparecer? Como será equacionada a diferença sexual nesse caso? É uma pergunta tão ingênua, por não se rememorar a estrutura, quanto aquela que desconfia da existência do Édipo onde não haja o teatrinho edipiano da metáfora sofoclesiana. Mas a pergunta é grave, pois, se garantirmos estruturalmente que a diferença surge em qualquer cena, estaremos dizendo que a diferença sexual não se postura de modo algum sobre aparências anatômicas. Ou seja, qualquer sexo é outro. Desafio, portanto, qualquer analista – pois, quanto a isto, outros não me interessam no momento – a demonstrar, por exemplo, que o corpo de um outro, qualquer que seja este corpo, não seja necessariamente de Outro sexo, no nível das construções inconscientes do sujeito. O que já está equacionado nas fórmulas lacanianas subverte radical, decisiva e definitivamente, talvez, toda e qualquer ideologia das práticas sexuais, da direita e da esquerda, de frente e de trás, de onde quiserem. O que pode ser uma cena primitiva do ponto de vista estrutural diante da alteridade radical do corpo de outrem? Com o que até o narcisismo exigirá ser pensado estruturalmente, e não do ponto de vista figural. Mesmo na fábula de Narciso quem ele procura dentro da água se chama sua irmã gêmea. Narciso no espelho é de Outro sexo. Marcel Duchamp já demonstrou isto com rigorosa geometria: La mariée mise à nu par ses célibataires, même. Se existe uma dialética da privação em contraste com a não-privação suposta do outro lado, teríamos, no primeiro caso, as chamadas mulheres, porque não têm pênis, e, no segundo caso, os chamados homens, porque o têm. No entanto, a estrutura da castração vai alterar radicalmente inclusive a privação que está do lado do real, e somente no simbólico estas coisas se articularão. E

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não há sujeito que dê conta, tendo pênis ou não, da pertinência ou impertinência desse trambolho – é Lacan que chama assim quando fala dos místicos: há apenas algo que é um trambolho entre as pernas –, mas nem por isso se deixa de articular o discurso na ordem da alteridade. Coloco a questão da sexualidade como central, pois os discursos que fazem a foraclusão da Fália, que eliminam a postura do que seria o feminino (se o fosse), querem constituir uma ordem em que o significante unário daquele que fala funcione a partir da mestria de seu discurso, do S1, esquecendo que, como sintoma, não tem referência senão ao falo significante... *

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...o Dom Quixote ândrico que se apresenta na postura masculina atrás de Dulcinéia. Mas Quixote é o chiste perambulante ou o “transitoriador”, e não é senão a metáfora da Ética da Psicanálise, ou seja, como a demanda do Santo Graal, da demanda de um impossível. Essa Ética da Psicanálise, do dever de ir lá onde se estava, não difere em nada da Ética do Ato, como representante lídimo deste Ato. Costumo citar sempre o Ato Poético, aquele que faz de conta – como diz Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor” – no rigor do faz-deconta, no rigor do impossível. Ele faz de conta que pode, como diz também o mesmo que citei musicalmente de início, Chico Buarque, “fazer uma flor brotar do impossível chão”. Final com a audição da música Sonho Impossível, com Maria Bethânia. (Composição de J. Darion / M. Leigh. Versão: Chico Buarque / Rui Guerra).

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SOBRE O AUTOR

MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias): Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938. PSICANALISTA. Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicólogo Clínico. Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação – pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil). Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan. Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica). Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psicanálise). Criador e Orientador de , Centro de Estudos e Pesquisas, Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise. Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvolvimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) em Falatórios e Oficinas Clínicas, realizados na sede da UniverCidadeDeDeus e publicados regularmente.

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ENSINO DE MD MAGNO

MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p. 2. 1976/77: Marchando ao Céu Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito. 3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa 3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p. 4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p. 5. 1979: O Pato Lógico 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 252 p. 6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p.

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7. 1981: Psicanálise & Polética Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real, 1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 498 p. 8. 1982: A Música 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p. 9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 264 p. 10. 1984: Escólios Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985. 11. 1985: Grande Ser Tão Veredas Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p. 12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p. 15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p.

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16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001. 520 p., 2 vols. 17. 1991: Est’Ética da Psicanálise (Parte 2) Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002. 392 p., 2 vols. 18. 1992: Pedagogia Freudiana Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p. 19. 1993: A Natureza do Vínculo Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p. 20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 310 p. 21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 264 p. 22. 1996: “Psychopathia Sexualis” Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p. 23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p. 24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da Comunicação Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p. 25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 224 p.

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26. 2000: “Arte da Fuga” Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 28. 2002: Psicanálise: Arreligião Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p. 29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p. 30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão Proferido na UniverCidadeDeDeus [a sair]. 31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p. 32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p. 33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 210 p. 34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento [a sair] 35. 2009: Clownagens [a sair]

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Formato 16 x 23 cm Mancha 12 x 19 cm Tipologia Times New Roman e Amerigo BT Corpo 11,0 | 16,5 Número de Páginas 276

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