Aclimatando Baudelaire

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Aclimatando Baudelaire Q LO RIA C A RN EIRO DO A M A R A L

H) C A P E S

A N N / feiJUME

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Amaral, Gloria Carneiro do Aclimatando Baudelaire / Gloria Carneiro do Amaral. São Paulo : ANNABLUME, 1996. - (Parcours) Bibliografia. 1. Baudelaire, Charles, 1821-1867 - Crítica e interpretação I. Título. II. Série. 96-0785

CDD 841.09

índices para catálogo sistemático:

1. Poesia: Literatura francesa: História e crítica 841.09

ISBN 85-85596-52-2 ACLIMATANDO BAUDELAIRE

Gloria Carneiro do Amaral

COLEÇÃO PARCOURS

Gilberto Pinheiro Passos Gloria Carneiro do Amaral Véronique Dahlet Ia edição: maio de 1996 © Gloria Carneiro do Amaral REVISÃO: Dida Bessana PROJETO GRÁFICO: Aida Cassiano ILUSTRAÇÃO DA CAPA: Autoretrato em bico de pena ANNABLUME editora. comunicação Rua Ferreira de Araújo, 359 CEP 05428-000 São Paulo . SP . Brasil Tel e Fax. (011) 212.6764

Ninguém me ama Ninguém me quer Ninguém me chama deB a u d e l a i r e. Autoparódia de Antonio Maria.

SUMÁRIO

ADVERTÊNCIA AO LEITOR

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CAPÍTULO I SITUANDO BAUDELAIRE

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CAPÍTULO II CO M M ENT O N E S T LU QUAND O N A D U GÉNIE SER OU NÃO SER BAUDELAIRIANO TRADUÇÕES: ALAVANCA INICIAL CRÍTICA

27 29 34 41

CAPÍTULO III ERA DA LIRA VARIEGADA

53

CAPÍTULO IV CARVALHO JÚN IO R PARISINA E SEU AUTOR “PROFISSÃO DE FÉ” SOBRE A OTOMANA AZUL

67 69 73 82

CAPÍTULO V TEÓFILO DIAS FANFARRONADAS E FANFARRAS NÉVOAS E SOMBRAS EM UNÍSSONO NOVOS VÔOS DO ALBATROZ ENTRE NUVENS E PERFUMES

99 101 111 116 121

DE REPENTE, UM GATO! NA SENDA DA ESFINGE “A MATILHA” CAPÍTULO VI FONTOURA XAVIER DE POETA SALTIMBANCO A DÂNDI DIPLOMATA HISTRIONICES BAUDELAIRIANAS MORTE E EROTISMO

133 135 144 149 151 158 163

CAPÍTULO VII VICENTE DE CARVALHO BAUDELAIRIANO POR UM LAPSO

175 177

CAPÍTULO VIII WENCESLAU DE QUEIROZ O “BAUDELAIRE PAULISTANO” GARRULICES LIMON, LODO, LIA SATANICES

197 199 203 206 214

CAPÍTULO IX C R U Z E SOUSA O EMPAREDADO SERPENTEANDO ENTRE POÉTICAS DE DESTERRO AO RIO DE JANEIRO D O N CHARLES AU X ENFERS ESTESIAS DO ASSINAIADO

231 233 242 258 263 272

CAPÍTULO X E OS LEITORES DE BAUDELAIRE VIVIAM NO BRASIL

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BIBLIOGRAFIA

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A D VER TÊN CIA AO L E IT O R

Este trabalho foi concebido como tese de doutoramento apresentada no Curso de Língua e Litera­ tura Lrancesa da Universidade de São Paulo em junho de 1989. Tanto a data quanto a finalidade devem ser levadas em conta na sua leitura. Minha intenção era fazer uma sé­ rie de alterações. Percebi, paulatinamente, que introduzir certo tipo de alteração seria enveredar por um novo traba­ lho, aquele que eu faria atualmente. Preferi então carimbar-lhe a data no frontispício sem remover-lhe a patina. O germe da pesquisa foi o ensaio “Os primeiros baudelairianos no Brasil”, de Antonio Cândido, do qual tomei conhecimento na sua primeira versão de 1973, como separata da revista alemã Studia Ibérica, onde fora publica­ do. Trata da repercussão da obra dos nossos poetas Teófilo Dias, Carvalho Júnior e Pontoura Xavier, atuantes nos decênios de 70 e 80 do século passado, e estuda a função estética e histórica da influência do poeta francês neste período. A partir deste ensaio e da sua bibliografia, um vas­ to leque se abriu para um estudo da repercussão da poesia de Baudelaire no Brasil. Limitei-me, por isso, aos três últi­ mos decênios do século XIX, em que esta se apresenta mais concentrada. Como só há ensaios e capítulos sobre o as­ sunto, para que se possa ter uma visão de conjunto inte9

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grei ao trabalho o levantamento do material mais significa­ tivo sobre a presença de Baudelaire na poesia brasileira, tanto na crítica da época quanto na contemporânea. Trata-se de um material disperso, em geral de difícil acesso, freqüentem ente esquecido e literalm ente empoeirado. Por isso o acesso às obras pode tomar ares de uma aventura bibliográfica. Fazer um trabalho sobre lite­ ratura do século XIX significa, antes de mais nada, percor­ rer fichários de bibliotecas, sofrer decepções, insistir com bibliotecárias, pois fichário e acervo nem sempre coinci­ dem no Brasil. E sobretudo, contar com a boa vontade e a generosidade de bibliófilos. Q uando comecei o trabalho, percorri os “sebos” da cidade, na ingenuidade de encontrar alguns dos livros procurados. Logo percebi que o corpus do meu trabalho estava quase todo entronizado na Secção de Obras Raras da Biblioteca Municipal. Quando estava. Aos poucos, con­ segui, graças a muita busca e sorte, obter exemplares ou cópias xerografadas das obras. Menciono estes fatos pois, em alguns momentos, ter em mãos um volume chegou a parecer uma dificuldade intransponível. Os trabalhos, em geral, começam com agradecimen­ tos que dizem: “colaboração sem a qual este trabalho não seria possível”. No meu caso, a frase pode até ser entendi­ da literalmente: a análise dos traços baudelairianos na poe­ sia de Vicente de Carvalho e mesmo a sua inclusão neste traba­ lho só foi possível porque tive a oportunidade de consultar, numa biblioteca particular, a I a edição de Ardentias, inexistente na Secção de Obras Raras da Biblioteca Municipal. Sou, por isso, infinitamente grata a todos os que me abriram as portas de suas bibliotecas e me cederam, com comovente generosidade, preciosos volumes. Incorporo, pois, estes agradecimentos ao trabalho: 10

ADVERTÊNCIA AO LEITOR

Ao sr. Israel de Souza Lima, simpatia baiana insta­ lada no coração da Paulicéia; Ao sr. José Mindlin, que, com discrição guarda sua inestimável biblioteca, cuja batuta encontra-se entre as mãos eficientes de Cristina Antunes e com generosidade a colo­ ca à disposição de pesquisadores; Ao sr. Nelson Meirelles Reis, amigo de saudosa memória, que tirava obras raras do bolso do colete; Ao sr. Erich Gemeinder, pelo presente de Rezas do Diabo-, Ao sr. Libânio Calil, que gentilmente emprestoume um álbum de recortes de jornais do arquivo da família de Teófilo Dias. Ficam também os agradecimentos a Leyla PerroneMoisés, pela sempre presente e competente orientação, e às minhas duas primeiras leitoras, Sandra Nitrini e Diva Damato, pelas observações elucidadoras que se incorpo­ raram ao trabalho. E a todos os colegas e amigos, às vezes leitores mais recentes, pela ajuda e pelo apoio que, das formas mais va­ riadas — da referência bibliográfica, da recepção eficiente nas bibliotecas, da datilografia impecável ao mero gesto de carinho —me chegaram, em momentos importantes e opor­ tunos, na ciranda da vida.

CAPÍTULO I SITUANDO BAUDELAIRE

“Baudelaire foi universal e, ao mesmo tempo, perma­ neceu limitado por um modismo que ele próprio ajudou a criar. Dissociar o permanente do efêmero, distinguir o homem da sua influência e, finalmente, separá-lo das associações feitas por aqueles poetas ingleses que inicialmente o admiraram não é tarefa das mais cômodas. Sua própria amplitude cria dificulda­ des, pois ela induz o crítico partidário, mesmo nos dias de hoje, a reconhecer em Baudelaire o patrono de suas próprias crenças”, nos diz T. S. Eliot. A obra de Baudelaire exerce um compreensível efeito magnético. Além do crítico americano, outros nomes ilustres da poesia e da literatura - Hugo, Gauthier, Valéry, Eluard, Sartre, Proust —não conseguem passar-lhe ao largo e nem deixar de registrar o seu Baudelaire. Isto sem mencionar o amplo, variado —e competente —espectro da crítica especializada diante do qual qualquer menção se torna lacunosa. Assim, se Eliot achava que falar do poeta francês não era tarefa cômoda, em situação mais incômoda ainda certamente se acha quem se vê compelido a falar dele no início de um estudo sobre a repercussão de sua obra no Brasil. Tentando escapar a uma retomada didática e sentindo hercúlea a tarefa de um ensaio —e talvez deslocada na natureza deste trabalho —procurei apenas introduzir sua obra em função de uma leitura parcial (inclusive em relação à escolha de textos) e deformante que dele fizeram alguns poetas brasileiros no período de 1870 a 1900 e que constitui o objeto de interesse deste trabalho. E mostrar, também, nestas rápidas pinceladas, a leitura de Baudelaire a que me con­ duziu o próprio trabalho. 15

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Desde 1857, As Flores do Mal causamfrisson. E à menção do nome de Charles Baudelaire, pensa-se de imediato no poeta. Mas, embora sua produção não seja extensa, sobretudo considerando-se que, durante toda a vida, ele se dedicou exclusivamente a escrever, o conjunto de sua obra é muito diversificado. As artes plásticas constituíram-se em interesse constan­ te: goüt permanent depuis l ’enfance de toutes les représentations plastiques. Pode ser até algum gene paterno, pois seu pai, JosephFrançois Baudelaire, era pintor amador, tido, aliás, pelo filho, na conta de “um detestável artista”. Talvez Baudelaire, tenha escrito mais linhas sobre pintura do que sobre literatura: os textos sobre os três salões, sobre a exposição universal de 1855, sobre Delacroix e, claro, “Le peintre de la vie moderne”, um dos mais lidos atualmente. Sobre literatura, os textos fundamentais em torno da obra de Edgar Allan Poe, sobre Gautier, Victor Hugo, Flaubert, que ele discretamente intitula de “reflexões sobre alguns dos meus contemporâneos”, sem esquecer as notas tão instigantes sobre As ligações perigosas, esse livro que “queima como o gelo”. Sobre música, “Richard Wagner e Tannhâuser à Paris”, que o compositor agradeceu comovido por ter despertado tais impressões num espírito superior como o de Baudelaire. Acrescente-se os poemas em prosa, os Paradis artificieis e De 1’essence du rire para formar o bloco essencial de sua obra. No centro desse universo, estendendo suas irradiações para todos os outros textos, situam-se As Flores do Mal. Se, no meio de século XIX, as opiniões sobre As Flores do M al se dividiam, no nosso fim de milênio, mesmo sem escolhê-lo para poeta de cabeceira, ninguém poderá negar-lhe o trono de poeta da modernidade. A trajetória ascendente de Baudelaire reflete-se inclusive no espaço convencional e institucional dos manuais de literatura franceses, nos quais a receptividade a As Flores do M al foi sem­ pre progressiva. Roger Fayolle nos fornece dados estatísticos a esse respeito. Num levantamento, que em geral toma por base 16

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oito manuais, de 1880 a 1940, Baudelaire, de míseros 0,3% e 36° lugar, passou, a partir de 1920, a 9,3% e 2o lugar, perdendo só para Victor Hugo. Mas o frisson mudou de tom e de cor ao longo do tem­ po. O primeiro, seguindo o rastro do romantisme noir, foi como assinala Mario Praz, o do Baudelaire satânico.(1) E com isto o autor acertara seu alvo, já que se propusera a extraire la beauté du Mal. O primeiro comentário sobre As Flores do M al 2. fazer história é o de Victor Hugo: Vous dotez le ciei de l ’a rt d'on ne sait quel rayon macabre. Vous créez unfrisson nouveau (Carta de 06/ 10/1859). A citação corre mundo pela metade, pois em geral citase só a segunda parte. Retém-se o fisson, esquece-se o sopro que o causa. Victor Hugo tinha consciência de estar diante de uma poesia capaz de criar uma nova emoção. Embora não a definisse com precisão, percebemos que se trata de uma iluminação associa­ da ao macabro. Provavelmente pensava em poemas em que a amada é entrevista como uma figura em putrefação, como “Une charogne”, “Remords posthum e”, “Le vam pire”, “Les métamorphoses d’un vampire” que conservam até hoje intacto 1. “Ma il 'frisson nouveau’ che in lui sentirono i contemporanei non va ricercato in quelle poesie che piii ci piace di leggere oggi; in Baudelaire dell’età che fu sua fu il Baudelaire satanico, che raccoglieva in un scelto mazzetto le orchidee piú strane, le aroidee piu mostruose delia selvaggia flora tropicale dei romantismo francese. Quello che videro i contemporanei fu il poeta che era andato a cercare la sua inspirazione - son parole dei Sainte-Beuve- a 1’extremité du Kamtchatka littéraire’ per costruire il suo curioso chiosco, la ‘Folie Baudelaire’”. La Carne, la M orte eilD iavolo nella letteratura romantica. Florença, Sansoni, 1976, p. 115-6.

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seu estranho poder de sedução e de repulsa. E que teriam susci­ tado as críticas que consideravam a obra uma littérature de charnier et d ’abattoir. Ou outros que, como “La fontaine de sang” e “Une martyre”, fazem jorrar sangue em quase todos os versos. Mas se quantificarmos, não é essa a tônica do livro. E nem se inserem nesta rubra perspectiva a espiritualidade azulada de “La Mort des amants” ou a rósea melancolia de “Causerie”; nem mesmo a brancura flamejante de “L’Aube spirituelle” ou a ternura pálida e cálida de “Le Balcon”. Com o advento do Simbolismo, “Une charogne” cede espaço a “Correspondances”, talvez o mais antológico dos seus poemas, e Baudelaire é o primeiro a ser citado quando se fala em estética simbolista. Além desse poema, que expõe uma cer­ ta filosofia simbolista, inspirada em Swedenborg, o livro apre­ senta poemas como “Harmonie du Soir”, que se desenvolve no mais puro clima simbolista, como nos mostra a bela análise de Anna Balakian.® Identifica-se também Baudelaire ao poeta da arte pela arte, da busca da forma perfeita, o que pode ser ilustrado pelo seu próprio apuro formal, além de poemas como “La Beauté”. Sem deixar de lado ainda o tédio e o spleen românticos, flores destacadas do buquê desde o poema que é dirigido ao leitor. E... “enfin Benjamin vint” e Baudelaire torna-se para a contemporaneidade o poeta da modernidade, “o lírico do apo­ geu do capitalismo”. Os poemas de “Tableaux parisiens”, cujo conjunto só figura a partir da edição de 1867, e sua pungente visão da urbes passam a ser aqueles que maior ressonância en­ contram na alma moderna.

2. BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo, Perspectiva, 1985.

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Se a apreensão dessa diversidade é possível n'As Flores do Mal, impõe-se também, de forma vigorosa a impressão de es­ tarmos diante de um conjunto, aliás reivindicação fundamental de Baudelaire ao seu leitor:

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Le seul éloge que je sollicite pour ce livre est quon reconnaisse quilnestpas unpur album etq u ila un commencement et une fin. Nas notas e conselhos para seu advogado, por ocasião do processo, o poeta afirma que a terrible moralitédo seu livro vem de um julgamento do conjunto; e afirma, logo a seguir, que somente dessa perspectiva um livro pode ser julgado. Esse pedido, relativo às poesias, mostra-se igualmente eficiente quando se lê, de forma global, a produção baudelairiana. A leitura dos poemas em prosa de Spleen de Paris, tão diversificados, deixa no leitor a impressão de estar diante de um mesmo bloco. E não falo só dos primeiros, concebidos e escri­ tos com o espírito de formar um pendant para As Flores do M al e que têm, inclusive, a mesma temática, como “Un hemisphère dans une chevelure” ou “Linvitation du voyage”. Falo de ou­ tros, norteados com freqüência por um espírito narrativo como “Le Gâteau”, poema de 1862 que pouca atenção tem desperta­ do. O narrador (ou o poeta?) diz estar viajando, descreve a magnificência da paisagem e começa a comer um pedaço de pão quando aparece uma criança maltrapilha e faminta; ele lhe ofe­ rece um pedaço e logo aparecem outras; as crianças se engalfinham lutando pelo pão, que termina por esfacelar-se em migalhas. A reflexão final é a amarga constatação da guerra fratricida da so­ brevivência. As crianças maltrapilhas, que lutam com violência, lite­ ralmente, por uma migalha de pão, são parentes próximas da galeria de velhas, velhos e mendigos de “Tableaux Parisiens”, da 19

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“família de olhos” que observa o café iluminado em “Les Yeux des Pauvres”, pelo misto de ternura e crueza com que são descri­ tos. Por outro lado, é curioso observar a descrição do cená­ rio. Lendo-a com atenção, constatamos como presenças concre­ tas de uma paisagem algumas nuvens, uma montanha e um pequeno lago, escuro e imóvel. Uma generalidade na beleza do quadro: un pays superbe. Expressão cunhada já em 1857 para designar esse pays de Cocagne, igualmente vago e sedutor, perdi­ do em geografia incerta, “Oriente do Ocidente”, “China da Europa”, geografia apenas do exótico. A imprecisão aqui é tal que o leitor sequer consegue perceber em que hemisfério se en­ contra o observador. O que se imprime é a magnificência da paisagem, em desenho quase abstrato de traços cósmicos essen­ ciais, céu e terra. Em lugar de um espaço geográfico, delineia-se a introspecção e a análise das sensações, numa linguagem familiar para o leitor d 'As Flores-, Et je me souviens que cette sensation solennelle et rare, causée par un grand mouvement parfaitement silencieux, me remplissait d ’une joie mêlée de peur. Bref, je me sentais, grâce à l ’enthousiasmante beauté dont fetais environné, en parfaite paix avec moimême et avec Funivers. Exemplos como este podem se multiplicar, se compa­ rarmos descrições de cenário e de mulheres, reflexões metafísicas e devaneios. E Baudelaire, que aspirava ao miracle d ’une prose poétique, musicale sans rythme et sans rime, que expressasse to­ dos os estados do espírito humano, lirismo, devaneio e sobres­ saltos, consegue uma extraordinária homogeneidade escriturai em toda a sua obra, seja ela poesia, prosa poética, ou crítica. Porque ao leitor d' As Flores do Mal também não passa despercebido o parentesco entre os cortejos fúnebres de “Spleen” 20

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e os comboios de feridos e de mantimentos dos quadros de guerra de Constantin Guys, descritos em “Le peintre de la vie moderne”. Embora a atenção contemporânea se volte mais concentradamente para o conceito de modernidade, que Baudelaire formula, usando como pretexto a pintura de Constantin Guys. E poderiamos continuar a estabelecer esse parentesco escriturai entre a obra poética e os textos de crítica. Ao comentar, por exemplo, uns estudos de Eugène Boudin, em “Salon de 1859”, Baudelaire parece estar descre­ vendo sua própria poesia, em que podemos ler o que ele diz ver nesses estudos: ...tous ces nuages aux formes fantastiques et lumineuses, ces ténèbres chaotiques, ces immensités vertes et roses, suspendues et ajoutées les unes aux autres, cesfournaises béantes, cesfirmaments de satin noir ou violet, fripé, roulé ou déchiré, ces horizons en deuil, ruisselants de métal fondu, toutes ces profondeurs, toutes ces splendeurs. A estrofe de “Les Phares” sobre Delacroix resume a impressão que causa em Baudelaire sua pintura, também analisada em prosa. Em “Exposition Universelle 1855”, ele retoma a estrofe e acrescenta-lhe uma explicação cromática: o vermelho do sangue, o verde dos bosques, complementar do vermelho. Mas um lac hantéde mauvais anges também é un hymne terrible composé en honneur de la fatalité et de Virrémédiable douleur, a sucessão de “desolação, massacres, incêndios” que Baudelaire declara ver nos quadros de Delacroix, no texto exclusivamente consagrado ao pintor. E Delacroix, como Poe, não foi para Baudelaire somen­ te fonte de prazer estético. Ambos forneceram também ele­ mentos para fundamentar sua reflexão estética. Vários conceitos 21

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fundamentais lhes deve Baudelaire, que nisso funcionou antropofagicamente, sem o menor pudor de declarar a extensão — às vezes surpreendente —de idéias alheias que incorporava. Mas vestindo-as de tal modo à sua feição particular que fluem com toda naturalidade no seu texto e incorporam-se à sua teoria. Tudo o que rodeia o poeta pode se tornar objeto de reflexão. De rêverie, palavra corrente na obra de Baudelaire e cujo significado é para ele muito particular. Não se trata de um devaneio sentimental e egótico, mas justamente de um estado de reflexão em que mergulha o poeta diante do cosmos. E o reverso positivo da negatividade do Tédio: ... une espêce d ’énergie qui jaillit de l'ennui et de la rêverie (p. 151).(3) O espaço em que se encontra o poeta pode propiciar esse estado: une chambre qui ressemble à une rêverie. Um neologismo é até criado para exprimir a relação do espaço com a rêverie-. um rêvoir, boudoir para divagar. O homem das multidões, o homem da modernidade passeia pela cidade em estado de rêverie-. ...quelles bizarreries ne trouve-t-on pas dans une grande ville, quand on sait sepromener et regarder? (p. 181). Os navios ancorados que, indolentes e indiferentes, ba­ lançam seus mastros são meios de transporte eficazes para consi­ derações metafísicas sobre uma questão da relevância da felici­ dade. A obra de arte pode ter a mesma função:

3. As indicações de página ao lado das citações são da edição de Obras Completas indicada na bibliografia.

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...il marrivera souvent d ’apprécier un tableau uniquementpar la somme d ’idées ou de rêveries quil apportera dans mon esprit (p. 363). O objeto de reflexão pode ser transformado em mero pretexto. Como é o caso exemplar da obra de Constantin Guys em “Le peintre de la vie moderne”, proposta como um tema central, que acaba praticamente sendo um mero suporte da conceituação da modernidade. A obra de Baudelaire se formula através de um enunciador incisivo e constantemente presente, que se constitui em unidade integradora. A afirmativa do começo de “De 1’essence du rire” pode se estender para o resto da obra: Ces réflexions étaient devenus pour moi une espèce d obsession; j ’ai voulu me soulager. A obra de Baudelaire parece mesmo um imenso e incontido desabafo, uma necessidade premente de expressão de um ser humano procurando seu lugar no cosmos. Mesmo o riso passa por essa lente: ..de rire est satanique, il est donc profondément humain (p. 373). Para Marcei Ruff, o destino do ser humano é tão funda­ mental na sua obra que é a essa linhagem que filia os seus suces­ sores: Les véritables successeurs de Baudelaire sont ceux qui dans leur oeuvre ont mis directement en question leur destin et leur condition d ’homme. 23

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O ser humano para Baudelaire apresenta-se em estado de constante dilaceramento que provém da consciência de uma natureza dupla, que aspira ao infinito, sentindo-se sempre puxa­ da para baixo: ...il y a dans tout homme, à toute heure, deux postulations simultânées, l ’une vers Dieu, Vautre vers Satan. 1’invocation à Dieu, ou spiritualité, est un désir de monter en grade; celle de Satan, ou animalité, est une joie de descendre. Essa postulação encontra-se no cerne do pensamento baudelairiano e é incessantemente reformulada. Às vezes de for­ ma direta como em “Les paradis artificieis”: Hélas! les vices de Vhomme, sipleins d ’horreur qu’on les suppose, contiennent la preuve de son goüt de l ’infini (p. 568). Ou articulando-se em outras duplicidades, em diferen­ tes níveis: a mulher satânica e angelical; beleza e fealdade; ...la suffisante clarté et la délicieuse obscurité de Vharmonie (p. 149). Assim dividido, o ser humano tem seu olhar voltado para uma busca incessante de unidade, da analogie universelle, que se traduz em integração cósmica, ... toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles (car dans la grandeur de la rêverie, le moi se perd vitel) (p. 149).

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e é condição indispensável da arte: ...lapremiere condition pourfaire un art sain est la croyance à 1’unité intégrale. Nessa perspectiva, poder-se-ia ler o soneto das “Correspondances” como uma síntese da concepção estética de Baudelaire. A Natureza é um dicionário que o artista deve manipu­ lar para descobrir suas analogias profundas, tocando Uimmense clavier des correspondances, traduzidas numa linguagem mística, numa sorcellerie évocatoire para que poesia, pintura e música se respondam em eco encantatório na alma humana.

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C A PÍTU LO II COM M ENT O N E ST LU QUAND ONA D U G ÉN IE4>

4. Alusão a um título do próprio Baudelaire: “Comment on paie ses dettes quand on a du génie”. E uma crônica em que ele conta a história de um escritor que propõe dois artigos ao seu editor por um bom preço e por outro, muito mais irrisório, encomenda-os a outra pessoa.

SER OU NÃO SER BAUDELAIRLA.NO De que critério poderiamos lançar mão para definir o que seria um baudelairiano no Brasil entre 1870 e 1900? Alberto de Oliveira, tido como paradigma parnasiano, tem epígrafe de Baudelaire, em poemas hugoanos.(5)67Seria necessário estudá-lo, mesmo que fosse para concluir so­ bre seu reduzido interesse pelo universo poético baudelairiano? Augusto de Lima traduz Baudelaire; sua poesia se ressentiría disso? Affonso Ávila aventa a hipótese de que Sousândrade, em sua estada européia, tenha lido Baudelaire, antes de 1857, em revistas.® Eugênio Gomes, em “Alberto de Oliveira e o Simbolis­ mo”,® sem analisá-la mais detidamente, dá como certa a influên5. Refiro-me à epígrafe do poema “Longe... mais longe ainda!”: “N ’importe oü! N ’importe oü! pourvu que ce soit hors de ce monde!” São as palavras finais do poema em prosa “Any where out of the world”, traduzidas por Baudelaire, em 1865, e extraídas deThomas Wood. 6. “Durante o período de sua formação universitária em Paris, que, segundo a síntese biográfica incluída na Revisão, se desdobrou em duas etapas, não teria o brasileiro tomado conhecimento de poemas que, desde 1845, Baudelaire vinha publicando na imprensa literária parisiense, apresentando-os mesmo sob o título já coletivo de Les Fleurs du Mal no número de 1° de junho de 1855 da Revue des Deux Mondes?” (O poeta e a consciência crítica. 2a ed., São Paulo, Summus, 1978, p. 36.) 7. In \ __ Visões e revisões. Rio, MEC e INL, 1958. p. 95-100.

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A C1 l . MM A M H ) B U ' D F l A I R i ■

cia de Baudelaire na obra de Alberto Oliveira, reconhecida pelo próprio poeta, em entrevista a Múcio Leão. Mais ainda: as mulheres de bronze ou mármore da poesia de Bilac seriam um traço baudelairiano do nosso tão antológico poeta parnasiano. Concluída a pesquisa, eu mesma poderia apontar ainda alguns nomes que seria interessante estudar. Por exemplo, o de Raimundo Correia que, freqüentando o mesmo grupo que Teófilo Dias, tem, em sua primeira fase, poemas que descrevem a figura feminina, seguindo uma linha muito teofiliana e carvalhina, dos quais alguns estão indicados em notas. Considerando-se epígrafes, traduções e suspeitas, pro­ vavelmente ninguém estaria isento de uma relação - pelo me­ nos de passagem - com a obra de Baudelaire. A relação de baudelairianos desses 30 anos de poesia continua, portanto, em aberto, pois talvez seja mais ampla do que os seis que figuram neste trabalho. A própria cultura francesa impregnava o ar cotidiano dos literatos brasileiros do século passado: todos falavam fran­ cês, liam francês, tomavam a França como modelo literário e existencial. O comércio inundava-se de artigos franceses e circu­ lavam os livros importados.® Outras literaturas eram assimila­ das por traduções francesas, como mostram estudos sobre o byronismo brasileiro.® Num certo sentido, é quase chavão falar da impregnação da cultura francesa no nosso século XIX, que Wilson Martins classifica como “um grande galicismo”.89(10) 8. Neste sentido, é bastante amplo o levantamento feito por M. Letícia Guedes Alcoforado, em sua tese de doutoramento: As marcas da França nos romances de Adolfo Caminha (1982), no capítulo “O século XIX brasileiro e a França”. 9. Cf. BARBOZA, Onédia C. de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo, Ática, 1974. 10. H istória da inteligência brasileira. 2~ ed., São Paulo, Cultrix, 1977, v. 2, p. 471.

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COMMENT ON E S T L U QUAND ON A D U CÉN IE

Aliás, o fenômeno não é só brasileiro: Portugal, nosso primeiro modelo cultural, afrancesa seus hábitos, sua literatura e até sua política: a Comuna de Paris repercute em Lisboa, por tentativas de ramificação da Internacional e das primeiras gre­ ves, em 1871. Depois da ligação Coimbra—Paris pela estrada de ferro (1864), o acesso à França tornara-se mais fácil. A chamada “geração de 70” procura sair do provincianismo lendo os autores franceses. O artigo de Eça de Queirós, “O francesismo”,(n) é um depoimento sobre sua formação, que o mergulhou na língua e na cultura francesa até o último fio de cabelo. A sua fórmula — “Portugal é um país traduzido do francês em vernáculo” - é a versão portuguesa do clamor de Mário de Andrade, que ecoa ainda no nosso século: São Paulo! comoção da minha vida ... Galicismo a berrar nos desertos da América! Em termos brasileiros, o afrancesamento representava também a emancipação da Metrópole para a Nação que recen­ temente dera seu grito de liberdade. Com esta invasão da cultura francesa, não devem cau­ sar estranheza os ecos de uma obra do porte d 'As Flores do M al na poesia brasileira desse período. Um trabalho sobre sua pene­ tração em nosso país coloca o pesquisador em face de um vasto material de trabalho, proporcional à presença avassaladora do poeta francês. Jamil A. Haddad, no prefácio à sua tradução d 'As Flores do Mal, faz uma observação que entendi muito bem por tê-la vivenciado:

1 1 .0 francesismo. p. 384.

.. Ú ltim as páginas. Porto, Lello e Irmãos, s.d.

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Precedendo a tradução, o que de melhor, que um rápido escorço, em torno da influência de Baudelaire no Brasil? Capítulo que à primeira impressão se nos revelou restrito, mas cujo trato demonstrou ser de muitas perspectivas. Assunto muito mais para um li­ vro do que para um prefácioP2) E que aspectos poderiamos apontar nessa assimilação da poesia baudelairiana? Procurei privilegiar aqueles que, de uma certa forma, já estavam preparados pela nossa tradição poética e como nela se inseriram, contribuindo para novas direções ou solidificando tendências. Inúmeras vezes, a influência de Baudelaire sobre este ou aquele poeta é mencionada como ób­ via e poucas vezes é demonstrada passo a passo. E foi isso que procurei fazer em geral: mostrar, diretamente nos textos, como a poética de Baudelaire se fazia presente e as deformações que sofria; em outras palavras, ocupei-me da leitura que cada poeta dela fez e seus reflexos em sua própria poética. O caminho que se revelou mais frutífero foi o da com­ paração dos aspectos temáticos dos poemas. O estudo temático, advertem os teóricos, apresenta dois riscos: por um lado, pode-se privilegiar o estudo dos temas às expensas do procedimento; por outro, pode-se reduzir a multiplicidade e a riqueza da obra influenciadora. Numa certa medida, estas restrições encontram-se ate­ nuadas pelo fato do corpus deste trabalho ser constituído, em geral, por autores secundários, que já operam, na sua leitura, uma redução da obra do poeta francês, extraindo do universo multifacetado de Baudelaire os aspectos que lhes convinham. Aliás, Jean Starobinski estabelece uma ligação entre o método temático e os poetas secundários, reconhecendo a im­ portância dos minores no rastrear de um tema: 12. São Paulo, Max Limonad, 1981, p. 7.

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COMMENT ON EST LU QUAND ON A DU GÉNIE

Si l ’on veut suivre dans le détail Vexpansion dun thème{...) rien nobligeà octroyer auxgrandsauteurs et aux oeuvres réussies une situation privilégiée, les minores et les minuscules auront également droit à notre considération.(n) Parte da dificuldade que encontrei no levantamento do material atesta o desinteresse pelo autor menor e a concentração das pesquisas em torno dos principais nomes da literatura, enfoque que pode deixar de lado elos importantes. O monumental levantamento que Andrade Muricy fez do Simbolismo mudou a visão que se tinha desta estética no Brasil, encarada antes como a manifestação de um reduzido número de poetas. Na introdução, o crítico insiste no ter­ mo “panorama”, pois antologia implica seleção, a critério do organizador, evidentemente; e havia, no caso, intenção de preservar a fisionomia do movimento e pôr a salvo um vasto material. Boa parte dessa introdução é, assim, uma defesa do estudo dos nomes secundários. Andrade Muricy transcreve a opinião de sete auto­ res, nacionais e estrangeiros, para fundamentar sua posi­ ção de incluir os autores menores; e entre eles, Paul vanTieghen, ao qual recorre na qualidade de comparatista. O crítico francês ressalta a função de elo ou de iniciadores de modas literárias dos poetas secundários, cuja obra reflete-se, muitas vezes, na de autores de primeira plana.(14) É o caso deTeófilo Dias em relação a Cruz 13. AozABrunel, P. etalii. Q u ’e st-cequela littérãturecomparée? Paris, Armand Colin, 1983, p. 117. 14. “E lendo autores de menor envergadura, e outros até completamente obscuros, que se descobre tudo o que é comum a eles e aos maiores (...) Tais autores de 2a ou 3a ordem, esses minores e esses m in im i, dos quais a história literária nacional ou comparada põe todo o cuidado em não des­ denhar, adquirem em literatura geral um particular interesse. Alguns dentre eles, que mal têm lugar na história da literatura de sua pátria, foram causa

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e Sousa. O poeta maranhense e sua obra, como veículo de formas e de temas, tiveram seu momento de relevância na história lite­ rária. A minha relação de baudelairianos não pretende reabilitar nomes; apenas mostrar como estes autores revelam aspectos sig­ nificativos de um momento literário e seu papel na nossa história literária. O poeta que parece secundário para nós pode ter sido importante para seus coevos e é, por causa disso, imitado. TRADUÇÕES: ALAVANCA INICIAL O primeiro registro da leitura d 'As Flores do Mal no Brasil são traduções, o que não causa espanto pois traduzir era moda no século XIX. Não há poeta que se preze que não tenha traduzido seus autores preferidos. A mais antiga até agora recuperada é de 1871: “Le Poison”, traduzido por Luís Delfino, inédita até a publicação do seu fac-símile, acompanhada de um pequeno artigo, no Jornal do Comércio, em 25/12/1934, sob os auspícios de Félix Pacheco, diretor gerente do jornal na ocasião. Catorze anos, portanto, após a publicação do livro de Baudelaire na França.(15) do nascimento e do desenvolvimento de tendências, de modas às quais os maiores não se mostraram refratários. Outros, menos importantes ainda, não exerceram, por assim dizer, nenhuma ação; porém receberam as influên­ cias estrangeiras com tanto mais docilidade quanto lhes faltava forte origi­ nalidade. Os seus escritos são testemunhos excelentes das correntes de seu tempo, lembrando esses rochedos que, colocados na superfície das geleiras, permitem pela sua deslocação verificar o movimento lento e infalível da massa que os arrasta.” A p u d M m ic y , J. C. de Andrade. Panorama do movimento simbolista. Brasília, M E C eIN L , 1973, p. 31. 15. Recentemente, tomei conhecimento pelo prof. Paulo Franchetti de um episódio da vida de Fagundes Varela que nos levaria a crer quezlr Flores do M a le tiím lidas antes de 1871 no Brasil. E bem possível. Mas como o

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CO M M EN T ON E S T LU QUAND ON A D U G ÉN IE

Luís Delfino, poeta catarinense, tem uma obra variada e copiosa, que reflete as tendências da nossa poesia, do condoreirismo ao simbolismo. Uma enquête de A Semana, de 1885, considerou-o o maior poeta brasileiro vivo. Mas, tendo exercido a medicina a vida toda, a sua obra ficou espalhada pelos jornais e revistas que a publicavam. Só a partir de 1927 seu fi­ lho, Tomás Delfino, começa a reuni-la em volume. Isto explica que esta primeira tradução d 'As Flores do M al tenha ficado inédita até 1934, quando o filho do poeta colocou nas mãos de Félix Pacheco um volume manuscrito de versos - “As minhas noites” - cuja produção está, em geral, da­ tada de 1871. Encontra-se aí a poesia “Um conto de Baudelaire” e a tradução, sem data, de “Le Poison”. Posteriormente, ela foi publicada em O Cristo e a adúltera, em 1941, obra praticamen­ te composta de traduções: Veste o vinho a mais sórdida palhoça De um luxo milagroso; E no oiro de um vapor rubro, que engrossa, Faz surgir mais de um pórtico, que roça, Como um sol, que descamba, um céu nervoso.

biógrafo de Varela não precisa a data do episódio, só podemos supor que foi por volta de 1868. Deixo registrado esse dado e fico, até informação mais precisa, com a data da tradução de Luis Delfino. O episódio conta que Varela trazia consigo o livro e seu interlocutor pediuo emprestado. O poeta, que já estava irritado com o outro, teria dado uma resposta insolente: —“ Não! Não posso emprestar! Não vê que são versos em francês, versos de Baudelaire, Lesfleursdu m a l de Charles de Baudelaire (sic)? e piscando os olhos azuis repetiu: -Versos de Baudelaire, ouviu? Charles de Baudelaire! Não são versos para bode ler...” hv. Azevedo, Vicente de P. V. A vida atormentada de Fagundes Varela. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1966, p. 315.

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Dilata o ópio o ciclo do impossível: Alonga o ilimitado; Afunda o tempo, e o gozo inexcedível; E de um morno prazer, negro, terrível A alma encharca, inda além do que lhe é dado. E nada disto vale o tóxico horrendo, Que teus olhos destilam, Lago amargo, em que cai a alma tremendo; Abismo, em que meus sonhos, que cintilam, Como em verde lagoa, estão bebendo: Não vale nada a baba de tua boca, Que tem prodígio enorme: A í sem pena uma alma se sufoca: A í no olvido esmaia, e inerme toca; E a morte acha-a na lama, em que ela dorme... ” A tradução resultou desajeitada, mas praticamente recu­ pera todos os elementos do poema original, mesmo se os com­ bina de forma diferente como na 3a estrofe, em que “yeux verts” / “lacs” / “goufifres amers” recombinam-se em “Teus olhos” / “lago amargo” / “abismo” / “verde lagoa”. A saliva, filtro em torno do qual gira o poema, transmutase em “baba da tua boca”.Teófilo Dias, em 1882, traduz o mes­ mo poema, substituindo “ta salive qui mord” por “pressão indizível / que morde”, o que, segundo Antonio Candido(l6) teria sido um recuo do tradutor. Nesta ótica, o primeiro tradutor de Baudelaire teria ousado mais. De qualquer forma, podemos registrar dois dados: a introdução do adjetivo “nervoso” inexistente no poema francês e que será muito usado pelos

16. Poesias escolhidas - Teófilo Dias. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1965, nota 2, p. 110.

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C O M M EN T ON E S T L U QUAND ON /I D U CÉN /E

baudelairianos brasileiros e a escolha de um poema centrado numa relação erótica entre a amada e o poeta. A tradução seguinte é de Carlos Ferreira (1844-1913), escritor gaúcho que participou da “Sociedade do Partenon Lite­ rário” e alcançou boa popularidade junto aos contemporâneos. Seu primeiro sucesso foi Rosas loucas, a respeito do qual declara Guilhermino César: O fundo macabro e a linguagem hugoana desse livro afastaram-no do lirismo dulcoroso e lamecha, em cujos arraiais caiu como um petardoP7) A poesia de maior acolhida entre a juventude paulista foi “Baile das Múmias”. Guilhermino César atribui essa reper­ cussão ao parentesco com a poesia de Álvares de Azevedo: Aquelas estrofes atrevidas e apaixonadas, cheirando a cadáver e aflor, eram um produto de certa morgue sen­ timental que lembraria Edgard Poe, não houvesse pa­ rente mais próximo a sugerir ligações e afinidades.17(18) É importante registrar-se que um dos primeiros poetas a se interessar por As Flores do Afo/estaria impregnado pela poe­ sia de Alvares de Azevedo e teria, por meio do macabro, causado impacto entre os românticos. E o chão a partir do qual se come­ ça a fazer a leitura da obra de Baudelaire. Em Alcíones, de 1872, Carlos Ferreira parafraseia “Le Balcon”, sob o título de “Modulações”, classificando o poema como “inspiração de Baudelaire”. Composto de sete estrofes, uma a mais do que “Le Balcon”, retoma, no entanto, a mesma estrutura: estrofes de cinco versos, sendo o I o e o 5o iguais. A 17. H istória literária do Rio Grande do Sul. 2a ed., Porto Alegre, Globo, 1971, p. 216. 18. Op. cit., p. 216.

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dita “inspiração” aproxima-se tanto do poema francês que parece mais uma tradução do que simples inspiração ou paráfrase. Retoma-se a situação, o momento e o espaço: o poeta evoca, ao cair da tarde, à janela, os momentos felizes com a amada. As mudanças mais acentuadas aparecem nas primeiras estrofes: Débil visão divina! Ó minha doce amante, Saudosa inspiração da lúcida poesia! Que é da quadra feliz do afeto delirante D 'aquele imenso amor de imensa melodia, Débil visão divina, ó minha doce amante... À tarde quando o sol morria no horizonte Olhavamos o céu sozinhos na janela... Tinhas o seio em ânsia, a palidez na fo n te E eu cingia-te as mãos, as tuas mãos, ó bela A tarde quando o sol... morria no horizonte. Os vigorosos vocativos que abrem “Le Balcon” - “Mère des souvenirs, maítresses des maítresses” —fragilizam-se na “dé­ bil visão divina”, banalizam-se na “minha doce amante”. Se, no poema francês, a amada catalisa a existência do poeta - “O toi, tous mes plaisirs! ô toi, tous mes devoirs!”, em “Modulações”, seu papel reduz-se ao de convencional musa inspiradora: “Saudosa inspiração da lúcida poesia”. “Le Balcon” concentra-se na repercussão da lembrança amorosa na alma do poeta; “Modulações” procura recuperar as reações femininas e acaba por fazer presente uma pálida e ansiosa musa romântica: Tinhas o seio em ânsia, a palidez na fonte. Nas estrofes seguintes, estamos praticamente diante de uma tradução, excetuando-se o 2o verso da 3a estrofe: Que Tespace estprofond! que le coeur est puissant! 38

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A reflexão metafísica se perde e é substituída pela obser­ vação de uma sensação em plano mais individualizado: O coração palpita e não seprosta enxangue; O aspirar o perfume do sangue amado é conservado e será retomado pelos baudelairianos posteriores; a 3a estrofe in­ troduz “lúbricos abraços”, inexistente no original e que aponta uma sensualização da poesia baudelairiana, a tônica de sua re­ cepção na década de 80. O título do poema “Modulações” alude ao seu ritmo cadenciado, marcado pela repetição do Io e do 5o versos, respei­ tada por Carlos Ferreira. Apesar das várias imitações recupera­ rem métrica e ritmo do modelo francês, não será esta a tendên­ cia marcante dos nossos baudelairianos, que se concentrarão, via de regra, nos aspectos temáticos e nas imagens. Há ainda, em Alcíones, outra marca baudelairiana: uma das epígrafes de um longo poema, “O insone”, é a primeira estrofe de “CIrréparable”: Pouvons-nous étoujfer le vieux, le long Remords, Qui vit, s’agite et se tortille, Et se nourrit de nous comme le ver des morts, Comme de cbêne la chenille? Fora a epígrafe, nada há de baudelairiano nesta obra, em que a morte se faz presente por intermédio de fantasmas sepul­ crais e macilentos. As outras epígrafes - de Álvares de Azevedo, Shakespeare, Musset, Lamartine —indicam, bem como o trata­ mento do tema, a filiação romântica do poema. Em 1874, Regueira Costa faz uma tradução de “Le Jet d’eau” em suas Flores Transplantadas. Félix Pacheco, no referido artigo do Jornal do Comércio, diz ter notícias dessa tradução por 39

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intermédio de Onestaldo de Penafort. J. A. Haddad mencionaa no seu levantamento de 1957. Tavares Bastos a inclui no seu Baudelaire no idioma vernáculo, de 1963, com referência biblio­ gráfica completa e inclusive a paginação. Infelizmente não tive oportunidade de consultá-la.(19)20 O primeiro registro da leitura d'As Flores do Mal no Brasil são estas traduções, daí terem sido examinadas à parte. Nelas já estão expressos alguns dos traços de assimilação da poesia baudelairiana como a escolha da temática erótica e a sensualização do modelo. Atualmente, com o impulso dos estudos lingüísticos, a tradução é encarada de forma científica, como um trabalho de decodificação, que deve ser o mais exato possível. Segundo Roman Jakobson, não se cogita mais da impossibilidade de traduzir, pois todo signo lingüístico é passível de tradução. Mas esta postura é recente e no passado os tradutores deixavam-se levar ao sabor de seus impulsos e gostos. Nesta medida, para a literatura comparada, a tradução pode sersignificativamente reveladora no estudo da difusão da obra de um autor estrangeiro em outra literatura. Podemos até citar dois casos relacionados a Baudelaire, mencionados por P. Brunel em Quest-ce que la littérature comparéd. .