A Vida no Antigo Egipto
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SABER

DOMINIQUE VALBELLE

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Tomando como ponto de partida os resultados nliinln:. i:nm .is mais recen tes explorações arqueológicas do urbanismo do vale dn Nilo, nsta nhni contribui para um melhor conhecimento de um dos mais velhoi povos do mundo civilizado e da sua história desde o inicio do Antigo ImpAno (7700 i. C.) até ao fim do Novo Império (1088 a. C.). Através da abordagem de temas tão variadoí 1:01110: a nilralílicacfto social, a organização política e institucional, .is .n:iivnl.nl, n vnlii liinilínr e quotidiana, os usos e costumes, a alimentício, i minlilididi t ciiliiini, a autora elabora um magnífico fri!si:n iln h|i|iin .miMin nim-mnlu ,nr, intmr. uma visão clara e sucinta à llvnk: - n i relação directa com certos serviços efectuados por conta do rei: escolta e protecção, assim como a execução das suas ordens. O «Palácio/Domínio Real» (pr-nsw) é uma instituição rujo papel essencialmente económico é directaiu« n t . - c o n t r o l a d o pelo monarca. Em particular, constitui i i i n . ) l o n i e privilegiada i lê doações cm benefício de funi l . M , < > ! • • . ou ( ! • • |>.ii i u nl.iivs, i i i i i n conic:.io muitas vezes I n i u i i i i n . M I i . l i « i i i . - . i i . l M H | i i i i " ; i mu numero importante > l i n li 1.1 . M I ' f . c .il)',ims c i v i s , sobretudo na província. l" nus mii;i destas palavras se escreve pelo seu | i i o | > i i n ulii>£>i'uniíi, representando um edifício (ch). l ' ( « l ia, contudo, não materializar a habitação usual do rei, tuas .sim uma construção intermédia entre um pavilli.io >: uma capela utilizada pelo soberano de forma m.ic; ou menos virtual, por ocasião de cerimónias, em ( • i i i i i ( u l a r as dos jubileus. Porém, uma alusão a um «lesses pavilhões, chamado «lótus de Isési», numa carta do rói ao arquitecto Senedjem-ib sugere, talvez, instalações de envergadura. Desempenhava ainda uma função económica em relação à Residência. O «Interior» (hnw), geralmente traduzido por «Residência», ultrapassa largamente esta simples noção, assim como a sua influência ultrapassa a de um Ministério do Interior. Abrange um organismo e, ao mesmo tempo, um conjunto de construções. Esta entidade económica de primeiro plano comportava uma administração dependente, como o Domínio Real, do monarca. Possui bens específicos, rebanhos, propriedades, pessoal. Dispõe de um arquivo e de celeiros. Desempenha simultaneamente um papel de agente centralizador na

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produção dos domínios e, em particular, dos domínios funerários, e de agente distribuidor no abastecimento das fundações e seu pessoal. Exerce, assim, uma função de controlo e de equilíbrio na gestão económica do país. Desta rápida análise distinguem-se três missões principais: • A residência e a manutenção da família real, • O cumprimento de rituais monárquicos, • A sede do governo. Estas três missões cumprem-se em locais próximos mas distintos, como mostram ainda sem ambuiguidade, no fim da xvm dinastia, os vestígios do centro da capital de Amenófis IV, Amarna. Conhecem-se muitos outros complexos palacianos de todas as épocas, mas poucos são suficientemente diferenciados para testemunharem as várias funções enunciadas. De resto, não é impossível que, quando a residência do soberano se afastou de um dos dois grandes centros administrativos do país, Mênfis e Tebas, como no Império Médio ou na época dos Rameses, as instituições governamentais tenham continuado a funcionar. A corte, pelo contrário, acompanha o monarca, e os altos funcionários que a compõem só a abandonam para realizar tarefas que lhes são confiadas. Mesmo os responsáveis provinciais, nos períodos de poder autoritário, mandam construir sepulturas numa necrópole próxima do túmulo real. As estruturas institucionais modificaram-se com o tempo e a sua importância relativa variou. O léxico, por vezes, evoluiu. Mas, muitos elementos constitutivos das disposições primitivas continuam a ser utilizados. Assim, conhecem-se as contas dos pães entregues na Residência, em Mênfis, datadas do ano 2 de Séthi I, As instituições reais, civis ou militares e as fundações religiosas ou funerárias dos sucessivos soberanos, em todo o país, empregam pessoal abundante e variado,

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Plano de situação dos edifícios

Amarna. i. 2'ahicio, harém do norte, harém do sul e alojamento do pés:,oul.— a. liua Eeal. — 3. Ponte ligando a casa do rei aos bairros das luulhcrr.s. — i. Casa do rei. — 5. Arquivos. — 6. Armazéns. — 7. Negócios K:;trani; deus do Sol. Não sendo possível observar uma verdadeira rotura em relação às figurações tradicionais do • .impo, verifica-se a introdução de importantes cambiantes. Grandes quadros repletos de pequenas cenas rela' miadas umas com as outras num plano de conjunto dnR propriedades, restituem, com uma precisão minuciosa, cada parcela e os seus elementos característicos, • i ' l ; i cabana de camponês, cada sebe no lugar certo. A literatura, por sua vez, dá-nos uma ideia bastante • |ni:mática dos camponeses. Há um conto que reprentn um quadro pastoral quase universal: ••!''.r:i uma vez, diz-se, dois irmãos filhos da mesma mãe e do mo pai: Tromi era o nome do mais velho e Bata, o do mais >•' r I n i p i i tinha uma casa e era casado e o irmão vivia com ele

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Fig. 9. — Uma cabana no país de Pount; cena do templo de Hatcbepsotit, em Deir el-Bahari.

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CAPÍTULO V A VIDA PRIVADA Muitas vezes obrigado a afastar-se do lar para desempenhar as tarefas que lhe são confiadas, o Egípcio, alto funcionário ou obscuro trabalhador manual, é muito dedicado aos seus, à cidade e ao país. De resto, estabelece pouca distinção entre meio familiar, meio social e meio profissional. Os colegas são muitas vezes o pai, os filhos, os irmãos ou os cunhados, e também os vizinhos e os amigos. Não é raro habitar numa casa destinada aos que desempenhem as suas funções, situada num bairro onde residem também os seus parceiros. Se é explorador agrícola e constrói ele próprio a sua casa, esta é animada por pessoas que partilham a sua vida de todos os dias e quase se tornam parte da família. Embora tenham chegado até nós informações pontuais sobre a vida privada de pessoas pertencentes a diversas categorias sociais, pelos mais variados processos, quis o acaso que fosse uma comunidade operária a que nos legou um quadro mais completo, em todos os aspectos. Esta servirá, pois, como tema de referência ou de comparação, de confronto com dados exteriores de que possamos dispor. I — A família A família no sentido lato, os ascendentes, os descendentes e os colaterais, constitui, para o Egípcio, um quadro tranquilizador que expõe com orgulho nos monumentos funerários e religiosos, embora não conheça

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nenhum termo especial para a designar. Dispõe, porém, de uma designação para todas as pessoas que moram na mesma casa. Seja qual for a força dos laços que muitas vezes unem o filho ao pai, é dever do pai incitar os filhos a fundar um lar desde jovens, isto é, a construírem uma casa, ou a repará-la se esta lhes. for fornecida pelo empregador, e a escolherem uma mulher. A sociedade tende, pois, para a divisão da família em núcleos mais restritos. Estes núcleos compõem-se dos pais, dos filhos e dos parentes a seu cargo: uma mãe viúva, irmãos e irmãs órfãos de pai e demasiado jovens para serem casados, etc. Estes novos núcleos familiares estão, portanto, abertos aos membros isolados da família e, em particular, às mulheres sozinhas ou repudiadas. O bem-estar dos progenitores é uma obrigação moral dos filhos, cuja dedicação pode ser encorajada, como nos nossos dias, pela perspectiva de uma herança. Na verdade, é conhecido um testamento que priva vários descendentes da sua parte da herança. Em certas épocas, as sepulturas constituem a última ocasião de reunir os membros cie uma família, desta vez definitivamente. Assim, chegamos a encontrar cerca de vinte múmias amontoadas na mesma sepultura, no tempo dos Rameses, mas a raridade das inumações ainda intactas aquando da chegada dos arqueólogos, não permite tirar conclusões dos casos examinados. Sabe-se, porém, que em outras épocas o túmulo estava reservado apenas ao casal, excluindo mesmo os filhos de tenra idade, inumados em cemitérios diferentes. No Egipto faraónico, o casamento não parece ser sancionado por um rito religioso ou por um acto jurídico. Não- é conhecido nenhum contrato de casamento anterior à Primeira Época, ao contrário do que acontece com o divórcio, que necessita de um apontamento sobre a repartição dos bens pelo casal: cada um fica com o que tinha quando se casou e os bens adquiridos são divididos pelos dois: dois terços para o homem

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e um terço para a mulher. O casamento, que não parece ser motivo para nenhuma festa familiar, era precedido, como no Egipto moderno, pela entrega de uma espécie de dote pelo pretendente, que esperava, assim, obter a concordância do pai da noiva. A união é, então, concretizada pela coabitação do casal. Ao contrário do que acontece com a família real, no interior da qual a poligamia e as relações consanguíneas se justificam pela constante preocupação de uma transmissão legítima do poder faraónico, estas práticas nunca foram aprovadas pelas classes abastadas, nem pelos meios mais modestos, que condenam e punem adultérios e violações. Por outro lado, a separação do casal é frequente, sobretudo entre os indigentes e o novo casamento em caso de viuvez ou de divórcio constitui uma regra. O celibato é considerado um comportamento associai. A homossexualidade só é evocada em contextos mitológicos, o que não permite apreciar a atitude da sociedade egípcia a este respeito. Esta, sem mostrar uma complacência acentuada pela expressão da sexualidade, parece condenar os falsos pudores. Um erotismo requintado, precursor do que floresce no Cântico dos Cânticos ou na poesia árabe, está bem patente nos Cantos de Amor:

afecto. Mas, os escultores e os pintores raramente se afastam de um repertório de atitudes convencionais, com excepção dos períodos amarniano e dos Rameses, que conservaram algumas cenas íntimas da família real, eivadas de uma comovedora espontaneidade, mais próxima da nossa sensibilidade. A literatura romanesca, por seu lado, dedica-se mais à ilustração do ciúme e do adultério do que da ternura ou da paixão. Por sua vez, relatórios oficiais e textos jurídicos dão conta dos agravos, das disputas e das discussões que agitavam os lares da época, e mesmo o harém real, local privilegiado de intrigas e rivalidades. A correspondência real ou fictícia também realça as relações harmoniosas, ou até amorosas, como se pode ver nesta carta dirigida por um escriba à sua defunta mulher:

«[...] A ti dediquei o meu coração. Por ti faço o que ele desejar, Quanto estou deitada nos teus braços; O desejo que sinto de o fazer, É o brilho dos meus olhos [...].»

As famílias egípcias tinham geralmente muitos filhos mas estes não parecem tão numerosos em casa — dois em média—, devido à elevada mortalidade infantil e porque, desde muito cedo, eram confiados a escolas ou colocados em locais de aprendizagem de um ofício. Quando os pais se separavam, os documentos referentes ao divórcio nunca mencionavam quem assegurava a educação dos filhos, embora estes sejam confiados ao pai em todos os casos que se conhecem. Contudo, é provável que os recém-nascidos ficassem com as mães, pelo menos durante alguns anos. Mas, o assunto nunca é ventilado e, visivelmente, não oferecia dificuldades. Por outro lado, a esterilidade de um casal constitui

(Tradução francesa de P. Posener-Kriéger, op. cit., p. 76.)

Desenhos, estátuas e um papiro pudicamente classificado de «erótico» traduzem essencialmente uma ingénua e alegre obscenidade. As relações conjugais exprimem-se, na maior parte das vezes, na iconografia, sob a forma de respeitoso

«Oh! venerável sepultura de Osíris, a cantora de AmonAkhtay, que repousa em ti! Ouve-me e transmite [esta] mensagem. Pergunta-lhe, já que estás junto dela: "Como te sentes? Onde estás?". Dir-lhe-ás: "Que pena Akhtay não se encontrar vivai". Assim se exprime o teu irmão, o teu companheiro. Que dor por ti, tão bela, sem igual. Em ti, não havia nada de feio. Chamo todo o tempo por ti, responde [àquele] que te chama [...].»

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tema de viva preocupação para os infelizes assim atingidos pela sorte. Quando as orações e as dádivas às divindades em causa não surtiam mais efeito do que os esforços dos médicos e dos feiticeiros, eram obrigados a canalizar a sua afeição para filhos de terceiros. Ignoramos, porém, se, de um ponto de vista legal, se trata de uma espécie de tutela ou de uma verdadeira adopção.

II — A casa Já por diversas vezes tivemos ocasião de referir a construção e o aspecto geral das habitações em meio urbano e em meio rural, a sua atribuição a título profissional, ou de considerar o seu valor. Resta-nos observá-las na sua verdadeira função, como cenário da vida privada. Somos levados a classificá-las em duas grandes categorias: as grandes residências e as quintas que reúnem, em volta do núcleo familiar, toda uma população de empregados, por um lado, e as modestas cabanas em que vive a família em sentido restrito, por outro lado. Como ignoramos qual o plano de uma exploração agrícola média, do alojamento dos trabalhadores manuais e dos criados relativamente ao dos patrões, a maneira como se desenrolavam as refeições e as relações que todas estas populações mantinham entre si, somos forçados a recorrer, para ilustrar a primeira categoria, ao plano das residências da cidade da pirâmide de Sesóstris II, ao das residências dos altos funcionários da capital de Amenófis IV e às cenas íntimas dos túmulos do Novo Império. As casas de Illahoun, que cobrem, cada uma delas, uma superfície de 2400 m2, são constituídas por sectores suficientemente distintos para que se torne possível, à primeira vista, atribuir-lhes as respectivas funções: cozinhas e armazéns possuem mmtas vezes uma entrada de serviço e comunicam por uma só porta com um vestíbulo que serve o pátio, com pórtico, para

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o qual se abrem os diversos aposentos privados da casa, claramente separados uns dos outros; os estábulos têm ainda outro acesso. Das 70 divisões que formam este conjunto, cerca de um terço é ocupado por dependências, e o resto reparte-se por pátios interiores que parecem exercer uma função de locais de transição, de encontro e de recepção, uma entrada com quatro colunas que devia servir de escritório do dono da casa e pequenos grupos de quartos. As residências de Amarna são relativamente menos espaçosas — 1200 m2 em média — embora os diferentes corpos de edifícios que as compõem se distribuem pelo interior de um grande jardim cercado — de 2000 a 4000 m2. Não faltam elementos de prestígio —pórticos, rampas de acesso, átrios, vestíbulos, áreas de recepção —, nem de conforto — as casas de banho fazem a sua aparição. A habitação principal, que compreende sempre corpos distintos, mas menos nitidamente isolados uns dos outros, está completamente separada, desta vez, dos sectores domésticos — cozinhas, armazéns c estábulos —, situados junto da cerca, nas traseiras da casa e dos silos que, por sua vez, se expõem ao olhar dos visitantes. Uma capela, rodeada de um pequeno jardim, possui uma entrada particular monumental e um acesso, mais discreto, à residência. Muitas pinturas mostram cenas de banquetes abrilhantados por conceitos que reúnem a família, ou cenas mais íntimas de mulheres em sessões de higiene, sendo objecto de cuidados por parte das criadas.

Conhecemos ainda melhor a organização de uma casa operária e a vida que aí se processa, graças aos vestígios arqueológicos, etnográficos e epigráficos da aldeia de Deir el-Médineh. Ocupando uma superfície que oscila entre 40 e 120 m2, apresentam-se habitualmente como uma enfiada de compartimentos de dimensões variáveis, todos eles situados no rés-do-chão. O primeiro, junto à ruela, apenas recebe luz da porta da entrada; destinado ao culto dos antepassados e dos deuses ou génios protectores da fecundidade e do parto, comportava um altar convenientemente decorado, esteias e bustos de deuses do lar. O segundo, situado ao nível da ruela, mais espaçoso e mais alto do que o primeiro, era iluminado por janelas altas dotadas de grades, possuía uma coluna central, escoras de pedra junto às janelas e, muitas vezes, portas secretas recordando o patrono da aldeia. Amenófis I e a mãe, Ahmés Nefertari, e ainda dipinti variados. E a sala-de-estar, aquela em que se recebia, onde se tomavam as refeições e certamente, como as casas dos actuais

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feias, onde se dormia de noite. Um ou dois retiros ocupavam o espaço deixado livre pela escada que conduzia ao telhado, em terraço, e ao corredor que conduzia à cozinha, por vezes completada, para arrumação dos géneros, por um silo ou uma cave; a cozinha, equipada com um forno para pão, com almofarizes, nos quais as mulheres ao serviço das famílias da aldeia vinham pilar os cereais, com masseiras e reservatórios de água, era descoberta. Para além dos ordenamentos próprios de^cada compartimento e de alguns nichos nas paredes, continham um mobiliário modesto de madeira ou de pedra — bancos, cadeiras, camas, baús —, de palha —esteiras, cestos—, cerâmica e panos. Era provavelmente neste recinto fechado que se desenrolava uma boa parte do dia das mulheres da aldeia e dos seus filhos recém-nascidos. Contudo, deviam visitar-se umas às outras e conversar, junto ao fogão, sobre os últimos mexericos da terra.

III — O meio envolvente Para alérn da família e de todos os residentes em sua casa, o Egípcio estabelecia certamente laços de vizinhança ou de amizade com outras pessoas, como demonstram inequivocamente certos indícios, se bem que raros. Abre-se pouco, todavia, quanto à sua vida social, que parece desenvolver-se sobretudo em volta do mundo profissional. Mas, há circunstâncias que o podem subtrair ao universo familiar: as grandes festas religiosas e as manifestações oficiais da realeza nas quais, por vezes, se encontram pessoas de todos os meios, a guerra, as viagens em que o Egípcio se confronta com costumes e mentalidades que o desconcertam, mas nas quais sabe estabelecer relações cordiais com os interlocutores ocasionais, e também os mercados, que põem em confronto negociantes de todas as origens com as populações autóctones. Mas, ignora-se completamente se estes contactos conduzem, por vezes, a relações regulares ou se são apenas epifenómenos. As raras actividades extraprofissionais do Egípcio, justas desportivas, caça, pesca, responsabilidades municipais, práticas religiosas e demonstrações de convívio desenrolam-se no ,

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estrito quadro da aldeia, do bairro ou, quando muito, da região. As fontes de que dispomos são praticamente omissas quanto a estes temas, que só raramente surgem figurados e que, mesmo neste caso, só excepcionalmente comportam algumas indicações sobre o contexto, a identidade dos protagonistas e o significado real das situações evocadas. Quanto aos testemunhos epistolares, não contentes por aludirem sibilinamente a temas conhecidos apenas pelos correspondentes, o que é normal nas cartas, mas limita o seu interesse documental, misturam assuntos pessoais e assuntos profissionais, o destinatário, uma esposa, um parente, um homem de confiança, clispondo-se a resolver toda a espécie de problemas: a vida privada parece ter sido muito mais pública do que hoje se poderia admitir. Por fim, é a escolha das pessoas que o Egípcio pretende que figurem nos seus monumentos que mais nos diz sobre as suas afinidades electivas. Alguns mostravam preferência pelos seus superiores, outros por simples amigos, outros ainda por fiéis servidores, consoante o seu carácter e a natureza das relações que mantinha, de facto, com uns c outros. Mas, mais uma vez, as informações são escassas e, em muitos casos, convencionais. Assim, teremos de restringir o estudo unicamente à comunidade de Deír el-Médineh que, como é evidente, não nos pode dar conta de outros meios sociais. Para além do trabalho propriamente dito e das relações com as autoridades da região, que parecem ocupar durante muito tempo os homens da aldeia, visivelmente bem informados sobre a actualidade e as suas consequências sobre a existência, estes sacrificam-se bastante às exigências da vida comunitária. Se os chefes têm por missão zelar pela distribuição equitativa das rações, pelo bom funcionamento dos serviços comunitários — abastecimento de água, distribuição correcta do trabalho dos escravos por cada lar, etc. — e assegurar a calma no

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trabalho e na aldeia por meio de medidas preventivas, com a ajuda do guarda, dos porteiros e dos polícias do Túmulo ou, se necessário, convocando o tribunal local, todos, incluindo as mulheres, participam quotidianamente no cumprimento destas tarefas. Encarregam-se da distribuição dos géneros alimentícios, emprestam ou alugam burros para esta mesma distribuição ou, respeitando o juramento feito ao entrarem para a equipa, denunciam os comportamentos delituosos que surpreendem, ou são jurados, se for caso disso. Toda esta gestão e estas tentativas, mais ou menos desajeitadas, de manter uma disciplina indispensável num meio submetido às tentações que constituem as sepulturas reais e o seu conteúdo não se passam sem dificuldades, e turbulências frequentes agitam este pequeno grupo logo que uma personalidade um pouco mais forte do que as outras procura exprimir-se. As festividades locais e as devoções colectivas são outras tantas ocasiões quotidianas de reunião dos aldeões, assim como a atribuição de uma concessão no cemitério e a consequente procura da entrada perdida da antiga sepultura que aí se encontra, ou os trabalhos de construção do novo túmulo, que reúnem os amigos dispostos a dar uma ajuda. Embora as relações entre os aldeões constituam o essencial dos seus contactos sociais, estes homens e estas mulheres não vivem totalmente fechados sobre si mesmos. Para além das visitas que fazem aos membros da família disseminados pela região, ou das que deles recebem, por ocasião de nascimentos e funerais, vão muitas vezes às aldeias ou templos vizinhos, ao mercado situado à beira do rio, ou mesmo à outra margem, para tratar de assuntos, isto é, para fazer um pouco de mercado negro ou algum negócio, como testemunham os contratos que legalizam estas operações e algumas cartas referentes aos termos da encomenda, às instruções de execução, ou às recriminações que se seguem à entrega da mercadoria. Alguns homens da

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aldeia, em particular os chefes, e as respectivas mulheres, usam títulos religiosos honoríficos que os unem aos cultos dos santuários da região, participando muito provavelmente nos serviços celebrados, em especial por ocasião de cerimónias particulares ou das festas do deus, como cantores, por exemplo.

IV — As devoções Os actos piedosos ocupam um lugar importante na vida quotidiana do Egípcio, quer seja rei, cortesão ou homem do povo. Habitante de um país rico em divindades, privilegia, em primeiro lugar, os deuses da sua cidade, que honra de maneira diferente conforme a sua situação social. Faraó, construirá templos através de todo o Egipto, recheando-os de riquezas; nobre, mandará erguer uma pequena capela, um nicho, uma esteia ou simplesmente uma estátua; mais modesto, quotizar-se-á com outros para proceder do mesmo modo. Poderá ainda desempenhar uma função sacerdotal num santuário próximo onde cumprirá regularmente os seus deveres religiosos. Longe da sua cidade, recorda os seus deuses, mas entrega-se à protecção dos deuses locais e pode mesmo ocupar cargos honoríficos junto deles. São sobretudo cartas que nos transmitem estas práticas, muitas vezes proclamadas em grajfití, e o seu autor nunca entra em pormenores sobre o assunto sem primeiro colocar o correspondente sob a protecção dos deuses da cidade que o recebe, o que nos informa simultaneamente sobre o local de emissão do documento. As grandes festas do calendário e aquelas em que as divindades de uma região se visitam, em viagens de barco que se prolongam por procissões de santuário em santuário, dão origem a feriados em que a população da região veste os melhores fatos a fim de participar ou assistir. Estas festas processam-se ao longo do ano,

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à razão de várias por Lua. São festas epónimas dos meses, muitas vezes relacionadas com as estações — as cheias, as colheitas, etc. —, que veneram os laços que unem os deuses entre si, ou apresentam um carácter funerário e comemoram um episódio da vida de Osíris. Outras, ainda, perpetuam a memória dos reis defuntos mais populares no dia do aniversário da sua coroação ou da sua morte. Estas devoções colectivas não se processam de maneira uniforme. Umas deslocam multidões, outras celebram-se localmente, tanto nas grandes metrópoles como nas mais pequenas povoações. Algumas dão lugar a rituais adaptados, libações, sacrifícios ou oferendas, outras consistem em ágapes. No âmbito mais restrito do bairro ou da aldeia, o povo multiplica as imagens piedosas e transforma cada uma delas no suporte específico de uma crença particular. Junta-lhes ainda os animais sagrados destas divindades, as insígnias, os emblemas. Atribui poderes sobrenaturais a elementos da paisagem, como os picos de Tebas, ora serpente, ora leoa, e votados ao silêncio. Acolhe igualmente com entusiasmo cultos originários de todo o Egipto e dos países vizinhos, veiculados por prisioneiros estrangeiros, operários e artesãos enviados de um estaleiro para outro. Este panteão popular e as devoções que com ele se prendem assumem formas esquemáticas como as esteias de orelhas, destinadas a transmitir melhor as orações dos crentes. Forma-se um pequeno clero ern volta destes ícones e dos símbolos que geram e constroem-se edifícios sagrados em sua honra. Recebem regularmente oferendas, animais engordados para serem sacrificados, cerveja expressamente fabricada. Os devotos reúnem-se em celebrações privadas. Os mais venerados são levados em procissão e tornam-se oráculos. Estas manifestações secundárias da religião, que devem muito à magia, também se praticam na periferia dos grandes santuários: oráculos, oni-

Fig. 10. — Emblema da deusa Anoukis, proveniente de Deir el-Médineh, Museu do Louvre (cliché Chuzeville).

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romancia, astrologia, venda de feitiços são subprodutos correntes destes locais sagrados. Mas, a religião, sob todas as suas formas, não se reduz a templos e capelas. Mesmo em casa, pinturas, esteias e estatuetas atraem para o lar a benevolência dos deuses, dos génios e dos defuntos. Os gestos de devoção individual ou familiar não são raros. A conservação do culto dos mortos constitui, evidentemente, a manifestação mais banal, mas as peregrinações à cidade de Abidos, junto de Osíris, o príncipe dos Ocidentais — dos mortos — tornam-se correntes a partir do Império Médio.

V — O lazer O rei aborrece-se. Para o distrair, os filhos contam-Ihe, cada um por sua vez, os prodígios acontecidos no tempo dos antepassados. É o encadeamento escolhido pelo autor dos contos do papiro Westcar para introduzir as suas histórias. Uma delas refere-se ao fundador da ni dinastia, Senéfru, que já nesse tempo carecia de diversões. O seu mago, precursor dos nossos produtores de revistas parisienses, não foi apanhado desprevenido: «Que Sua Majestade se dirija para o lago do palácio — vida, saúde, força. Manda equipar uma barca com todas as jovens bonitas que se encontrem no palácio. O coração de Sua Majestade divertir-se-á ao vê-las remar, para cima e para baixo [...].»

A ideia seduziu o monarca: «Vou certamente organizar um passeio aquático. Tragam-me vinte remos de ébano com incrustações de ouro e cabo de sândalo (?) enfeitado de ouro fino. E tragam-me vinte mulheres, bonitas de corpo e de peito, de cabelos entrançados e que ainda não tenham tido filhos. E tragam-me ainda vinte cortes de tecido arrendado para entregar às mulheres, depois de se despirem.» (Segundo G. Lefebvre, op. cit., p. 78.)

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Os soberanos do Novo Império, por seu lado, entregavam-se mais à arte da caça, que praticavam nos desertos do Egipto e mesmo na Núbia. A caça e a pesca são simultaneamente um desporto e a expressão simbólica da vitória do Faraó, e dos súbditos, sobre as forças do mal. Processam-se, ainda, nos pântanos do Fayum ou do delta: aí, já não se trata de leões, nem de órix nem de búfalos, perseguidos e crivados de flechas, mas de crocodilos e hipopótamos, apanhados a arpão, de caça marinha pescada à rede, como peixes, ou atingida em pleno voo com a ajuda de uma arma de arremesso. Os combates desportivos também tinham os seus adeptos. Luta e jogos de competição eram alvo de atenções e os feitos de Amenófis II no tiro ao arco foram considerados dignos da construção de uma esteia destinada a comemorá-los. A dança, bem como a música e o canto, têm muitas vezes uma conotação religiosa, mesmo quando se exprimem num quadro profano. Contudo, os concertos serviam de complemento requintado dos banquetes, tão apreciados pelos Egípcios, a julgar pelos relevos e pinturas dos túmulos e pelos instrumentos de música que acompanhavam os restos mortais de operários, mesmo dos mais modestos, que viveram na xvin dinastia. O teatro limitava-se a dramas mitológicos e não parece ter saído dos recintos sagrados, ao contrário do que aconteceu com outros géneros literários: contos, epopeias míticas, fábulas, máximas e composições poéticas lidos ou recitados em público. Os jogos de sociedade existem desde as épocas mais remotas e alguns deles eram colocados na sepultura com o único fim de distrair o morto. Havia o jogo da serpente e outros jogos de dados e piões semelhantes aos actuais. Figuram, de resto, nas vinhetas do Livro dos Mortos. A invenção de palavras cruzadas literárias constituía uma maneira de passar o tempo mais intelectual. Mas todos estes jogos,

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espectáculos, actividades físicas, artísticas ou eruditas embora revelem recursos do corpo e do espírito, representam sobretudo excelentes pretextos para que o Egípcio exerça o seu passatempo favorito que, através de textos de todas as épocas e em todos os meios, parece residir em discussões e comentários animados e intermináveis.

CAPÍTULO VI AS MODALIDADES DO QUOTIDIANO

I — A alimentação Se a função nutriente do Faraó — «as suas palavras criam alimento» — é suficiente para mostrar a importância que o Egípcio atribuía à alimentação na vida quotidiana, as provisões previstas por ocasião da chegada do soberano e do seu exército garantem-lhe largamente a satisfação das suas necessidades: uma lista de géneros alimentícios encomendados num destes momentos nada fica a dever às que se elaboravam em honra do Rei de França ao regressar de uma campanha militar. Em primeiro lugar, recorre-se aos cesteiros para prepararem 10 tabuleiros, 500 cestos e 100 coroas para a decoração floral. iDevem estar expostos nunca menos de 30 000 pães e bolos diversos. Seguem-se 300 cestos de carne seca, e vísceras, leite, creme, 50 gansos, fruta, legumes e carvão para fazer lume. Mais adiante, aconselha-se mel, pepino, alfarroba e alho francês e resume-se o essencial: pão, cerveja, carne e bolos. Em seguida, a enumeração prossegue com óleos, carne de vaca, aves, toda a espécie de peixes, pombos, leite, creme, novamente legumes, uma qualidade especial de cerveja, vinho, etc. Aconselha-se vivamente o requinte na apresentação das iguarias e no serviço: baixela de ouro e prata, os mais belos escravos equipados para a ocasião, etc. Não estamos muito longe dos banquetes romanos, símbolo da decadência. Por outro lado, ignoramos as circunstâncias deste acolhimento e a qualidade do anfitrião que o organiza.

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O Egipto dispunha de alimentos de toda a espécie e, se importa do estrangeiro, é porque se pode oferecer esse luxo, luxo que parece abranger, em diversos graus, a maior parte das categorias sociais, uma vez que se encontram etiquetas de jarros de vinho e de recipientes de óleo estrangeiros mesmo nas aldeias dos operários do Faraó. De testo, talvez se trate de presentes oferecidos pelo próprio Faraó por ocasião de jubileus, por exemplo. A base da alimentação é o pão e a cerveja, fabricados respectivamente com frumento e cevada. A distinção entre pães e bolos não é muito nítida e, entre as dezenas de variedades existentes, algumas eram contempladas com a adição de leite, tâmaras ou mel. Assim, encontram-se algumas espécies de cerveja, e outras bebidas fermentadas, à base de tâmaras, como por exemplo a seremet. Quanto ao vinho, embora a sua preparação seja um tema apreciado por pintores e escultores, é essencialmente uma bebida servida em festas. Se as carnes não entram nas ementas quotidianas, os Egípcios nem por isso deixam de as consumir mais do que durante muito tempo se pensou, como mostram estudos recentes. Este consumo não se limitava à carne de vaca, de caça e às aves de capoeira que ornamentam sobretudo os altares dos deuses e as mesas dos mortais: incluía igualmente cabras, carneiros e porcos, mais baratos e abundantes nas aldeias. Mas, era sobretudo o peixe, tão comum no Nilo, no Mediterrâneo e no Mar Vermelho, que se encontrava em todas as mesas. Tanto a carne como o peixe, quando não se comiam frescos, podiam ser secos ou conservados. De acordo com os tabus próprios das divindades de cada região, certos animais eram localmente protegidos ou proscritos. O Egipto cultivava um grande número de legumes e de plantas aromáticas e toda a espécie de frutos, como se pode ver nas figurações e nos restos recolhidos de túmulos e habitações. O leite e os lacticínios encontram-se presentes mas não parecem fazer parte do con-

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sumo corrente, enquanto as gorduras animais e vegetais são indiferentemente utilizadas. Todos estes produtos nos foram transmitidos por imagens, pelo nome e pelos vestígios que a secura excepcional do clima por vezes preservou até hoje, mas os hábitos culinários que presidiam à sua preparação mantêm-se herméticos a ponto de ser legítimo perguntaise, para além de alguns princípios elementares de cozedura, se pode verdadeiramente falar de culinária. Na verdade, é visível, por vezes, nas paredes dos túmulos, o acto de grelhar uma ave, assar um pedaço de carne de vaca ou cozer algumas pecas com osso. Mas, nada mais, a carne nunca é preparada, os legumes nunca são cortados em pedacinhos, às rodelas. Não é conhecida a mais elementar receita de cozinha, de pastelaria ou de molho. Os textos que louvam os méritos de uma mesa ou comentam uma refeição referem-se ao cerimonial ou à disposição dos alimentos, mas nunca aos talentos do dono ou da dona de casa. Talvez a cozinha não fosse objecto de transmissão oral. A curiosidade gastronómica dos Franceses não pode ser satisfeita. Porém, os banquetes, mesmo num contexto familiar, parecem momentos privilegiados da vida dos Egípcios e as atenções de que os rodeiam — flores, cones cie perfume, concertos — são comparáveis aos nossos arranjos florais, candelabros e ambientes musicais. Não se pense, contudo, que anfitriões e convidados se sentavam alegremente à volta de uma grande mesa, ou se sentavam em almofadas em volta de um tabuleiro. As figurações mostram-nos sentados lado a lado em cadeiras ou banquinhos, não muito longe de aparadores carregados de manjares, e servidos por um grande número de criados, enquanto músicos e cantores os distraíam. Ao contrário do que acontece com estes, vivos e graciosos, os convivas parecem demasiado ocupados em aspirar o aroma da flor de lótus que têm na mão e em equilibrar, sobre a peruca, o cone de gordura aromática que derrete len-

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tamente para poderem comer ou conversar à vontade com os vizinhos. Na verdade, exigimos a cenas rituais de carácter funerário, a refeição do defunto e da esposa, venerados por alguns íntimos, que nos restituam o clima dos jantares profanos, momentaneamente iludidos pela abundância das iguarias, pela graciosidade dos criados, pelo encanto da música. Pensávamos encontrar uma alegre companhia e deparamos com uma celebração fúnebre.

II — A saúde O Egípcio inclui a saúde nos três votos de cortesia mais frequentemente formulados, logo a seguir à vida e à boa forma, que distingue da ausência de doença. O que sabemos do seu regime alimentar médio joga sobretudo a favor do equilíbrio alimentar: cereais, produtos frescos, consistindo em peixe, legumes verdes e féculas, fruta, assim como carne e, ocasionalmente, produtos lácteos. É verdade que, por vezes, se revelam carências, mas estas não resultam de erros alimentares generalizados. Embora alguns períodos de fome, provocada por cheias demasiado fracas ou demasiado violentas, tenham atingido o país por diversas vezes ao longo da sua história, nada nos diz que os pobres sofressem de fome habitualmente. Quanto à obesidade que caracteriza, na iconografia, toda a classe dos funcionários de uma categoria mais ou menos elevada, ela é provavelmente sinal de uma alimentação demasiado abundante e da ausência de exercício. Não pode, portanto, verificar-se no corpo do Faraó, cujos feitos desportivos asseguram um aspecto fundamental do seu poder: a força física. Os antropólogos e os paleopatologistas verificaram, nos corpos que tiveram oportunidade de examinar, um certo número de doenças, parasitoses, deformidades, fracturas e intervenções cirúrgicas mais

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ou menos radicais, etc., que contribuem para nos informar sobre a higiene, os riscos corridos e os remédios fornecidos. A partir da xvm dinastia, encontram-se instalações sanitárias mais ou menos rudimentares nas habitações. Pode tratar-se, como na casa do mestre de obras que mandou construir o templo funerário de Tutmés IV, em Tebas, de um suporte, alto e em forma de tubo mais aberto em baixo e de algumas tinas de cerâmica dispostas num compartimento destinado às abluções, de uma latrina como a do mobiliário do chefe da equipa Khâ, em Deir el-Méclineh, ou de verdadeiras casas de banho, com esgoto, como em Amarna. Contudo, existem complicadas redes de canalização nos templos desde o Império Antigo e um sistema de esgotos permitia a evacuação das águas sujas no Império Médio, na fortaleza de Bouhen, na Segunda Catarata: é provável, pois, embora não tenham sido assinalados nas ruínas de Kahun, que ordenamentos semelhantes já se encontrassem presentes em palácios do Antigo e do Médio Império. A lavagem da roupa, muitas vezes representada nas paredes dos túmulos, faz-se nas margens dos cursos de água, em grandes tinas de barro. Vassouras usadas, encontradas nas habitações, mesmo modestas, testemunham o zelo das donas de casa e das crianças, enquanto o grande número de camadas de cal que ainda hoje se podem contar nas paredes das casas mostram o desejo de asseio e saneamento. Apesar destas práticas de higiene e do uso de produtos desinfectantes, como o natrão para a pele e a galena para os olhos, os Egípcios adoeciam. Recorriam, então, ao médico, ao sacerdote de Sekmet ou ao encantador de escorpiões, isto é, ao feiticeiro. Na maior parte das vezes, para maior segurança, combinavam-se os dois métodos. Conhecemos a medicina egípcia através de uma dezena de papiros médicos que contêm tratados — tratado do coração e dos seus vasos, SABER 214 — 8

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identificados e só muito raramente existe alguma semelhança entre o vestuário de linho fino, plissado e transparente que homens e mulheres usam com elegância nas pinturas, nos baixos-relevos e nas estátuas de certas épocas e os testemunhos mais ou menos grosseiros que chegaram até nós. A nudez não é encarada como nas nossas civilizações modernas. É própria da infância. Quanto aos adultos, o homem encontra-se muitas vezes de tronco nu, vestido com uma tanga curta quando executa um trabalho manual, ou com uma tanga mais comprida nos outros casos, e a mulher usa, muitas vezes, uma saia vaporosa de alças largas que deixam ver o peito; de resto, o corpo apresenta-se frequentemente coberto com véus transparentes que o valorizam; as criadas, por vezes, limitam-se a ocultar o sexo. Como roupa interior, o homem usa uma pequena tanga triangular; não conhecemos peças de roupa interior feminina. Os operários do Túmulo recebiam, como outras categorias de funcionários, vestuário de trabalho: túnicas (mss) e tangas curtas (rwdw), tangas compridas ou grandes xailes (d3iw) para os chefes. Na corte de Séti I, em Mênfis, as mulheres-escravas são dotadas destas duas primeiras categorias de vestuário e a terceira aparece no guarda-roupa das damas. O carácter unissexo dos fatos mais simples é compreensível: a maior parte limita-se a cortes de tecido de linho de dimensões variadas que podem usar-se de acordo com as situações e as modas; a única verdadeira peça de vestuário que o Egípcio parece ter conhecido é a túnica. Existiam, contudo, vários modelos, como mostram claramente as representações: curtas ou compridas, amplas ou justas. Os exemplares conservados dividem-se em dois grupos. O primeiro compreende peças de um só corte, em que o decote foi aberto e os lados cosidos, deixando uma abertura para os braços. O segundo abrange várias peças de vestuário semelhantes aos actuais

tratado das doenças do estômago, tratado de patologia externa e de cirurgia óssea, etc. — e de colecções de receitas classificadas por capítulos — olhos, ouvidos...—, que ora referem remédios caseiros, ora de feiticeiros. Estes métodos, para nós contraditórios, eram então considerados pelos médicos, e pelos doentes, perfeitamente compatíveis, ou mesmo complementares. Apesar das intervenções exigidas pelos costumes e pelos embalsamamentos, os Egípcios não pareciam possuir um conhecimento muito desenvolvido da anatomia do corpo humano. Por outro lado, a ginecologia e a obstetrícia preocupavam muito os médicos, que descrevem doenças, deformidades e remédios. As inflamações oculares, os traumatismos de toda a ordem e as perturbações da digestão, juntamente com as várias espécies de febres, são os males mais frequentes. Desde o Antigo Império que se conhecem médicos. Seja qual for o seu título e a sua função, recebem uma formação mais ou menos científica ou mágico-religiosa nas Casas de Vida e nos templos e tratam ao mesmo tempo a manifestação dos males por meio de poções, unguentos, fricções, etc., e as causas — um gesto que despertou a raiva de uma divindade, por exemplo — por meio de encantamentos, do uso de um amuleto adaptado à situação ou de um ex-voto ao deus enfurecido.

III — O vestuário Para definir as diferentes maneiras de vestir dos Egípcios, dispomos de várias categorias de documentos: o próprio vestuário, quando conservado, as listas destinadas a controlar a lavagem da roupa, a distribuição de vestuário, ou a sua menção em contratos, e a iconografia. Estas três fontes, a priori complementares, não encaixam, muitas vezes, umas nas outras. Poucos nomes de tecidos e de peças de vestuário foram correctamente

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vestidos: compõem-se de um encaixe feito de um pequeno rectângulo de tecido em que foi recortado o decote, de duas mangas, e de uma saia, formando uma peça única. Um casaco com mangas parece concebido segundo o mesmo princípio. O enxoval do rei Tutankhamon compreendia ainda luvas. O vestuário dos particulares apresenta, por vezes, pregas ou presilhas, como ornamento, e fragmentos arrendados, confeccionados segundo a técnica do macramê recordam, entre outras coisas, o vestuário das remadoras de Senefru; mas, até agora, os tecidos mais ricos foram encontrados nos túmulos reais: os enfeites que os embelezam podem ser tecidos, pintados, bordados; as orlas são embainhadas, franjadas ou enfeitadas com galões de um só tom ou multicores. Por fim, vêem-se imitações de peles, feitas de linho em tecidos cuja utilização é mal conhecida, embora tenha chegado até nós uma imitação pintada de pele de leopardo do sacerdote sem datando do período greco-romano. Os restos de vestuário que o clima excepcional do Egipto conservou distribuem-se por toda a história do país, desde as primeiras dinastias. Com raras excepções, foram os tecidos mais fortes, menos delicados, portanto, que resistiram, transmitindo-nos uma imagem muito incompleta do vestuário egípcio. Importantes variações introduzidas em modelos à primeira vista pouco numerosos, sobretudo graças ao emprego de diferentes tramas e às variações dos plissados, testemunham uma fantasia inventiva. Felizmente, as representações estão de acordo com os vestígios encontrados. Se confirmam tendências estáveis na maneira de vestir, revelam modas no vestuário festivo, o interesse dos Egípcios pelos tecidos coloridos vindos do estrangeiro, a partir do Império Médio, as diferenças entre o vestuário das damas e das criadas, quando estas estão vestidas, ou os fatos especiais reservados às divindades e a certos sacerdotes. Quanto às sandálias, fabricadas segundo um modelo único de

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biqueira curva e presilha passando entre os dois primeiros dedos, eram feitas de fibras vegetais entrançadas, assim como de couro natural ou pintado de branco, com excepção das sandálias de Tutankhamon, impróprias para a marcha.

IV — A higiene e os adornos A higiene da estátua do rei defunto ou do deus e aquela a que os sacerdotes procedem antes de penetrarem nos sectores mais sagrados dos templos são o protótipo dos cuidados corporais usuais: abluções, purificação da boca por meio de natrão, corte da barba, depilações, fricções com óleos e unguentos perfumados e fumigações de incenso. A existência de barbeiros, de cabeleireiros, de manicuras, pedicuras e esteticistas entre os criados e criadas de sua majestade ou dos cortesãos mostram bem os cuidados que os Egípcios dedicam ao seu aspecto. Uma aparência desalinhada atrai o desprezo dos outros. Práticas quotidianas de higiene e tratamentos de rejuvenescimento ou cie beleza chegaram até nós através das representações que, embora raramente propondo verdadeiras cenas de higiene, valorizam o resultado obtido, pelos objectos de higiene encontrados nos túmulos e em habitações e, sobretudo, pelas receitas preconizadas que figuram em tratados médicos. Umas destinam-se a purificar o hálito, outras a embelezar o rosto, a eliminar as sardas ou sinais desengraçados, outras, ainda, procuram lutar contra a calvície ou colaborar no rejuvenescimento do paciente. Os métodos utilizados vão de fumigações aromatizadas com madeira de olíbano e resina de terebinto até à preparação de unguentos utilizando mel, natrão vermelho e sal, com adição, ou não, de pó de alabastro, ou uma decoração de feno-grego.

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Os produtos de maquilhagem visíveis nas pinturas repartem-se por duas categorias: os que se destinam a realçar a beleza dos olhos, à base de colírio de antimónio, de malaquite ou de galena, e os que dão cor à tez. As matérias utilizadas são trituradas em almofarizes especiais, e depois misturadas com óleos ou cremes, conservadas em pequenos boiões de pedra dura ou de vidro, antes de serem recolhidas, provavelmente com lindas colheres esculpidas, no momento da aplicação. Os estojos de maquilhagem compreendem um frasco e estiletes. Lâminas e pinças figuram entre os acessórios femininos e masculinos. Quanto aos perfumes, conhecemo-los melhor através dos textos gravados nos laboratórios sagrados dos templos do que através das menções profanas, embora se encontrem muitos frasquinhos nos equipamentos funerários conservados. O cabelo constitui um elemento fundamental de adorno. Assim, tanto os homens como as mulheres lhe dedicam uma atenção especial, como testemunham os pentes, os ferros de frisar, os alfinetes e, sobretudo, as perucas. De facto, se os homens usam o crânio rapado ou o cabelo muito curto, ou ainda uma longa peruca, várias cabeleiras femininas feitas de cabelo e de fios de lã entrançados em conjunto conservaram-se perfeitamente até aos nossos dias. Por fim, o Egípcio, quando se veste a rigor, não deixa de completar a sua aparência com a ajuda de jóias florais, de fantasia ou preciosas: grinaldas de lótus, colares, alfinetes de peito, brincos, anéis, pulseiras, etc. Para alcançar o gracioso efeito que as imagens nos transmitem, dispõem do olhar das aias ou dos familiares mais próximos e dos reflexos um tanto confusos que os espelhos de bronze cuidadosamente polidos lhes devolvem. Fig. 11. — Peruca de Méryt proveniente de Deir el-Médineh, Museu Egípcio de Turim (cliché Museu de Turim).

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CONCLUSÃO Em todos os períodos da sua história, o Egipto lançou um olhar lúcido sobre o país, o governo, os costumes e as mentalidades da época que atravessava. Estas reflexões, ora optimistas, ora desencantadas, exprimem-se através de alguns escritos de elevado nível moral e de uma subtileza de espírito que os aproximam do pensamento filosófico. Os relatos sobre a concepção do mundo, que podemos ler nas paredes dos templos ou nos monumentos deles provenientes, são elaborações teológicas que sintetizam e explicam, por diversos artifícios materiais, mitológicos e filológicos, fenómenos científicos e abstracções. As colectâneas de preceitos morais aconselham ou confirmam a maioria das observações que fizemos sobre os costumes e as disposições consideradas justas ou injustas em relação aos superiores, à mulher, ao meio, aos subordinados, aos pobres, aos desonestos, aos violentos ou aos estrangeiros. O Diálogo do Desesperado com a sua Alma, que remonta ao Primeiro Período Intermédio, confronta um pessimista com o seu ser imortal, que ameaça abandoná-lo se ele não gozar a vida: trata-se provavelmente da mais antiga pesquisa introspectiva da história da humanidade. Não é uma composição isolada, mas um ensaio representativo de uma corrente de pensamento suscitada pela ruína contemporânea do país. Mais tarde, no Império Médio e no Novo Império, O Canto do Harpista faz o elogio, nas suas mais antigas versões, da morte e da vida para além do túmulo. Em seguida,

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surgem dúvidas quanto à existência no Além, as quais servem de justificação para exortações de carácter hedonista. Mas, são talvez os versos que expõem a relatividade da condição humana, seja qual for o nível da sociedade em que nos colocarmos, e a natureza efémera das nossas obras mais duradouras que propõem a melhor demonstração de uma reflexão que atingiu a maturidade: «[...] As gerações desfalecem e desaparecem, Outras surgem no seu lugar desde os tempos dos [antepassados, Os deuses que viveram antigamente, E repousam nas pirâmides. Os nobres e os bem-aventurados também, Encontram-se sepultados nos túmulos. Construíram casa cujos vestígios já não existem. Que lhes aconteceu? Escutei as palavras de Irnotep e de liordjedef Que estão citadas em provérbios, E sobrevivem a todas as coisas. Que aconteceu aos locais que lhes pertenciam? As paredes desmoronaram-se, As praças desapareceram^, Como se nunca tivessem existido f... J» (Tradução francesa cio P. Posener-Krléger, op. cif., p. 75.)

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BIBLIOGRAFIA Os imperativos desta colecção não permitem, como é evidente, citai: os numerosos artigos especializados que inspiraram esta breve síntese, nem a totalidade das publicações consultadas sobre determinados pontos. Contudo, importa remeter o leitor mais curioso para algumas grandes obras que se debruçam sobre as estruturas da sociedade egípcia,, para colectâneas de traduções de textos e para estudos iconográficos, colocando os próprios documentos à sua disposição. Respeitando às INSTITUIÇÕES E À SOCIEDADE, consulte-se: D. D. Berliev, La classe laborieuse en Egypte au Moyen Empire (em russo), Moscovo, 1972, e Lês relations sociales en Egypte au Moyen Empire (em russo), Moscovo, 1978; J. Cerny, A Commtmity of 'Workmen at Thebes in the Ramessidc Period, Cairo, 1973, e Valley of the Kings, Cairo, 1973; W. Helck, Untersuchungen zu àen Eeamtentitelm dês Ãgyptischen Alten Reiches, Gliickstadt-Hamburg, 1954. e Zur Wervalttmg dês Mittleren und Newen Reichs, Leyde, 1958; G. Ogden, Tivo aspects of the Royal Palace in the Egyptian Old Kingdom, Colômbia, 1982; P. Posener-Kriéger, Lês archives du temple ftméraire de Néferirkarê-kakái, Cairo, 1976; e D. Valbelle, «Lês ouvriers de Ia Tombe», Deir-el Mèdineh à 1'époque ramesside, Cairo, 1985. l

Sobre os PRODUTOS, SEU PREÇO, FABRICO E UTILIZAÇÃO: W. Helck, Materialien sur Wirtschaftsgescbichte dês Newen Reiches, Wiesbaden, 1961-1969; J. J. Janssen, Commodity Prices from the Ramessid Period, Leyde, 1975; A. Lucas e J. R. Harris, Ancien Egyptian Materials and Industries, 4.* ed., Londres, 1962. Sobre a LITERATURA propriamente dita: G. Lefebvre, Romans et contes égyptiens de l'époque pharaonique, Paris, 1949; M. Lichtheim, Ancient Egiptian Litterature, Los Angeles, 1975-1980, e S. Schott, Lês chants d'amour de l'Egypte ancienne, trad. P. Posener-Kriéger, Paris, 1956,

Sobre a LITERATURA HISTÓRICA OU POLÍTICA:

J. H. Breasted, Ancient Records of Egypt, Nova Iorque, 1906; R. A. Caminos» Late-Egyptian Miscellaniés, Oxford, 1954; A. H. Girdiner, Ancient Egyptian Onomástica, Oxford, 1947; G. Posener, Litterature et politique dam 1'Egypte de Ia XIIC dynastie, Paris, 1969; e A. Roccati, La liltéraure historique sons V Ancien Empire égyptien, Paris, 1982. Sobre a ICONOGRAFIA: P. Montet, Lês scènes de Ia vie privée dans lês tombeaux égyptiens de l'Ancien Empire, Estrasburgo, 1925; c J. Vandier, Manuel d'Archéologie égyptienne, t. IV a VI, Paris, 1964-1978. E, de um modo geral, para uma primeira abordagem, aconselha-se a leitura de G. Posener, S. Sauneron c j. Yoyotte, Dictionnaire de Ia civilisation égyptienne, Paris, 1970, e, para saber em que ponto se encontra o estudo de qualquer tema, Lexikon der Agyptologie, Wiesbaden, 1975-1986.