A Sereia e o Desconfiado

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Desconfia o Ensaios Críticos

Paz e Terra

Em sua primeira edição, este livro apa~ receu mutilado porinúme~os - e graves erros tipográficos. Estávamos em 1965, -Roberto. Schwarz era jovem e ficou acabrunhado com as mutilações, que prejudicavam a leitun~ da sua coletânea de ensaios. Compreendi perfeitamente o acabrunhamento: eu era o "orelhador" do volume, tinha lido os ensaios antes deles terem sido estropiados. E felizmente as minhas· limitações não me impediram de perceber que eles constituíam "'uma pode.; rosa manifestação da renovação e do avanço da nossa crítica literária.''· Na época-, eu ainda não conhecia pessoalmente o Roberto. Fiquei impressiona~ do com a vasta soma de conhecimentos de que ele dispunha. Lendo os seus ensaios, contudo, "saquei" que não estava diante de um erudito. Escrevi: "No trabalho de Roberto Schwarz não há lugar para o saber ocioso: as aquisições do seu pensamento, assimiladas a ele, cor.stituein-lhe o próprio ser espiritual; as conquistas do seu conhecimento são logo utilizadas pela consciência e plasmam a sua cultura, quer dizer, o seu modo de conceber o mundo e de agir sobre. ele". O estilo. desta observação era, talvez, um pouco pernó~ico. Mas o cémteúdo dela era correto. Vt:rifiquei na prática que tinha acertado (coisa que, diga-se de pass1:1gem, não me acontece com a desejável

Coleção LITERATURA E TEORIA LITERÁRIA vol. 37 Direção de Antonio Callado Anto.nio Candido

Ficha catalográtfoa CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S428s

Schwarz, Roberto. A Sereia e o desconfiado / Roberto Schwarz. - 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (Coleção Literatura e teoria literária; v. 37) I. Ensaios brasileiros I. Título II. Série

79-0603

EDITORA PAZ E TERRA Conselho Editorial: Antonio Candido. Çelso Furtado . F'ernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso

CDD - 869.94 CDU - 869.0(81)-4

Roberto Schwarz

SEREIA E O DESCONFIADO Ensaios críticos

2• edição

Paz e Terra

Copyright © by Roberto Schwarz

Capa: Mario Roberto Corrêa da Silva

Di~eitos desta edição adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua André Cavalcanti, 86 Fátima - Rio de Janeiro, RJ Tel.: 244-0448 Rua Carijós, 128 Lapa - São Paulo, SP Tel.: 263-4539

1981 Impresso no Brasil Printed in Brazil

A

ANATOL RosENFELD

e à memória de meu pai, JOHANN. SCHWARZ

NOTA Os ensaios sobre literatura estrangeira, excetuado o que trata de Kafka, são versão mais ou menos refundida de trabalhos feitos durante uma estada escolar na Universidade de Yale. Por menos que eu me prendesse aos originais, não consegui livrar a .prosa do andamento esquemático e forçado comum em traduções. Os estucjos sobre literatura brasileira foram publicados no Suplemento Literário de· O Estado de São Paulo. ·

SUMARIO

O psicologismo na poética de Mário de Andrade l~G ( 13

O Ate11eu l~Go A estrutura de Cha11aan l % ( Grande-Sertão: a fala l ':lGC:, Grande-Sertão e Dr. Fauslus 1~G o Perto do Coração Selvagem \ ~Slj Uma barata é uma barata é uma barata l%\ Para a fisionomia de Os Demônio.flêfcebeque irá dizer, que suas impressões, seu amor, seu ser mais íntimo irão se condensar em palavra; o que lhe sai dà bôca é um doce murmurar de sílabas desconexas, linguagem puramente expressiva, elementar, anterior à possibilidade de comunicar. A solução oposta, por sua vez, redução da inteligência de Joana ao núcleo, sua total inserção no _mundo das coisas, no mar, nos pequenos processos minuciosos, esta direção .também não poderá dominar: Joana permanece, lúcida. Uma Joana, a que se conhece e interpreta, habita as antecâmaras da poesia, da objetivação do espírito. A outra, deseja-se qual pedra rolando, qual montanha, quer-se desfeita em processos elen:ientares que a introduzam no mundo primário da causalidade simples; pré-humana. Alheia .a qualquer solução, propondo apena!; continuar, resta a consciência final: '' ... de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo nôvo". A serem corretas as relações que apontamos entre a figura de Joana e a concepção geral do romance, narrativa. e psicológica, o livro contém uma falha grave de perspectiva: nalguns pontos, a visão interior usada para mostrar Joana é usada também i:~ara mostrar outras personagen~. gue se tornam..então irremediàvelmente semellfüntes ·à figura princi_pal; ao que esta, por sua vêz:de1xa·êle ter· um ·1ano·narraÜvo es ecificamente seu. Para além ·do·· .d.etalhe~êntict· enfrêfaiitõ; ãê.üín livro que se impõe. !,L~jluminadpr.uefl~~~(Utúí.s.tiçJl_soJ~r~-ª'-Ç9.!1~ diç~~ humai:i.!: como queria G. Benn.

··esta!os·"aTàniê"

(1959)

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UMA BARATA É UMA BARATA É UMA BARATA .

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Como faz~r de fragmentos uma história vibrante? (KAFKA, Diários, 20.4.1916)

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DIFÍCIL organizar um tr~balho sobre A· Metamorfose. episódios desta novela, assim como das outras que Kafka, escreveu, reduzem-se rapidamente a uma temática invariáY.el. Quem quisesse estabelecer-fües o sentido, passo a passo, diria a mesma coisa até cansar. Não cabe, portanto, b comentário tra• .dicional, tecido ao longo da trama e. terminado. com ela. O desdobramento realista. da vida, cm que a situação engendra a situação e a última refaz as anteriores, não tem sentido em Kafka. Umas. poucas páginas de leitura cerrada bastam a uma inter• pretação quase plena de sua obra. Quem tenha lidp um episódio leu todos - e ainda assim duvido que, visto algum, deixe de devorar os demais. Esta estrutura sôlta, de recorrências que não prendem pela necessidade mas pelo fascínio, pode ser formalizada:. o todo estf presenfo, imediato;·eni suas partes, que mais o representam que articulam. A_fabi!_lação,é mais acid.::ntal que a realista, pois seus eventos· são equivalentes e permutáveis; e mais . essencial, pois os passos são plenamente· significativos em sua independência. Não pára aqui, entretanto, a monotonia da :p.ovela. Se a impressão fantasmal que nos deixa faz que examinemos a textura, o modo de contar,· veremos repeticla,

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também ~qui, a mesma experiência. Desta conJ!stêncfa }lbsoluta de vida e palavra, em que o tempo e os atos não/fazem violência à linguagem mas antes aceitam a sua imag~que nela coagulou, nasce um homem que sofre o seu produto: regrado pelas significações que criou, não tem como escapar ao seu horror.

l. A consciência na platéia Um belo dia Gregor Samsa, herói da novela, acorda transformado em barata ( traduzimos assim para conservar a violência do alemão Ungeziefer, inseto daninho) . A metamorfose em bicho não seria coisa' nova na literatura, contanto que reversível, ou, ao menos, justa . A de Kafka distingue-se por não ser nem uma nem outra coisa. A bêsta, quando amada, volta a s~r príncipe e desposa a bela desprendida. Gregor, a barata, não é amado por ninguém, não volta a ser o pobre caixeiro-viajante que havia sido, e o desprendimento dos outros, embora apareça, é fruto somente de sua imaginação. O conto de fadas e A Metamorfose coincidem, com sinais trocados, na oposição ao romance do século x1x: o destino arrasta a personagem, cujos atos pouco importam. No caso da carochinha, ou do romance pré-psicológico, a providência divina retifica a injustiça iniciàl e faz tudo acabar bem, mesmo contra os inúmeros pecadilhos de percurso - basta lembrar Tom Jones. Em Kafka, pelo contrário, o curso sôbre-humano ratifica a atrocidade do princípio: o caso começa mal e acaba pior. A consciência individual não participa ativamente na criação de seu destino, nem, mais remotamente, da História humana que a expulsou e agora arrasta como objeto. ' O destino de Gregor selou-se pela transformação, não há como desfazê-lo. Se ontem fui patife, amanhã, com:·· esfôrço, poderei ser valente; é de seqüências como esta que irá se compor uma biografia humana e, mais mediatamente, a História humana. Se Samsa acordou barata, ao contrário, não há nada que_ possa fazer pelo seu amanhã de homem. A nova aparência é uma barreira absoluta, contra a qual os atos são ineficazes . Não se. trat~, por exemplo, de melancolia, que dê contexto amargo à atividade mas possa resolver-se através dela - originando His1tória, destino do homem; é muito mais que um contexto interior; é um cenário materiàl, objetivamente dado, que aliena radicalente qualquer prática humana que nele se intente. Uma des-

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graça, diz Guerither Anders 4, semelhante à-de nascer pobre - o futuro define-se arites do princípio - só que ainda maior. O único ato de homem, voltar a sê-lo, é inalcançável. A situação é de formiga no meio de uma lagoa infinita, pura figuração do desespero. Sua agitação não tem· significado prático algum, não engendra . !listória, pois as suas intenções não se inscrevem no exterior de maneira a modificá-lo e renovar-se; refletem, entretanto, sobre o proprio corpo,que pode cansar, ferir-se e morrer. O ato, no limite da impotência, torna-se imagem de si mesmo para uma platéia de terceiros; o gesto exprime o significado que não pôde realizar. Os impulsos profundos de Gregor, humanos, ficando aquém da prática modificadora,.são condenados à identidade eterna, inarticulados pois nada articulam, exteriorizados por maneira vária e acidental. O mundo sem nexo interno tem sentido somente para quem o vê - a falta de sentido é significativa - não para quem o vive. O entrave absoluto (o corpo do inseto, o castelo inatingível ou o prÕ~ cesso descõnhecido) não afeta apenas Gregor, mas também seús familiares e demais personagens de várias outras obras de Kafka é a referência de todos os gestos; a sua presença infecciona o mundo. Não podendo ser articulada e modificada por uma finalidade prática, a ausência de sentido desarvora o homem, faz que todos pareçam frangos behavorista·s num circuito de estímulo e tesposta, inconstantes e teimosos, míopes e excitáveis. A consciência de um mundo sem sentido prático é arbitrária, .fiandeira de significados que não atingem o real. Ao acordar, Gregor espanta-se com seu corpo nôvo. Em lugar de revoltar-se contra a transformação espia o quarto, fica melancólico, esperneia um pouco, pensa na vida. A seqüência não nasce de um propósito de Samsa, mas faz-se ao sabor das associações • O processo· culmina quando a barata fala pela primeira vez à familia; sua própria voz aparece-lhe, inesperada; exterior e estranha: "Oregor · assustou quando ouviu a resposta, ·seguramente dada por sua voz antiga, à qual se misturava, entretanto como vindo de baixo, um pipílo incoercível, doloroso, que 'só no primeiro momento deixava às palavras a. sua nitidez,· para destruí-las em seu eco, de. maneira que não se podia saber se haviam sido. bem ouvidas". · · Gregor não é prôpriamente sujeito de sua ação, mas sofre-a na forma do espanto: ouve a sua própria voz, tornada estranha 4

G. ANDERS, Kafka pro und contra (L. H. Beck, München, 1951). As observações dêste livro foram nosso ponto de partida; tentamos estabelecer a sua .coerência interna.

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por um insidioso pipilo que a destrói. O pipilo, que vem de mais fundo, anuia a voz, domínio consciente. As entranhas destroem a interioridade. Não se trata do encontro de uma interioridade mais legítima que desmascarasse outra superf.icial, mas simplesmente da substituição dela por algo mais primitivo, que a expulsa da cena, da História, para deixá-la na platéia. Samsa ouve sua voz de ·barata com seus ouvidos humanos: a. conspiência, embora permaneça humana, é destituída de poder; a presença corpórea, prática, esta se animalizou . Impulsiona@ por JJma fôrça que está nele mas é alheia à sua humanidade, Gregor, ignorante e impotente, experimenta seu interior como fôrça física, motor de sua morte . São as imagens do fascismo 1que se anunciam: Eichmann defende-se com ser um burocrata consciencioso, ~eni responsabilidade pela natureza de sua ocupa• \ção, que lhe aparece como um dado absoluto.

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2. A destruiçao da temporalidade históri~a . O correlato da consciência alienada que descrevemos seria a temporalidade mecânica: a interioridade passiva depende, em sua organização, .de um processei exterior, objetivo (relógio, por exemplo) . Embora depauperada, esta postura .da consciência é. u.m limite possível da temporalidade humana. Em Kafka há ·mais. Vimos que lª--consciêncià de Gregor não é apenas coisi- . ficada, como· também atravessada por um impulso escuro, um pipilo destruído~ Esta mesma composição . encontramos no tempo, que não só é despido de sua fqrça criadorn como tem algo de inumano. Uma providência má faz por danar os homens já de si impotentes, semelhante à força estrangeira que apontamos como argueiro na consciência. No texto: Gregor, passada a melancolia inicial, gostaria de dormir. Só sabe fazê-lo deitado sobre o flanco direito, o que agora é impossível dada a conformação de sua casca. O destino de suas tentativas, sua História; está prefigurado. Os atos lutam contra o impossível, tentam fórmar um todo com êle e modificá-lo, imprimindo-lhe seu ritmo. Falham, dada a própria essência de sua empresa. O es'forço que visava o todo retomba sôbre a sua origem, resulta numa temporalização parcial, de desgaste da barata. Mesmo esta é mecânica, pois nenhumà das cem tentativas de deitar sobre o flanco tem mais· sucesso do que a outra; tôdas são um começo radical, não articulam progresso ou retrocesso, i.é, História, nem a interioridade de que provêm. Esta pàssa a funcionar como exterioridade, não dura mas registra o número das tentativas . Gregor

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pára quieto quando aparece uma dor estranha, Seu próprio corpo funciona como coisa e determina o cessar da atividade; tanto poderia fazê:..lo após a 94.ª como :antes da 107;ª vez. Tempo e consciência perd.em juntos a sua humanidade. O tempo píecânico é · de impotência humana, mas é de nosso mundo. (Supõe causalidade e seria, por natureza, newro: sua eqüidade ce~ria mal e bem aqs homens. Não é o caso de A Metamorfose, onde o bem, quando aparece, é aparência, 'engano de Gregor. A novela ri.ão começa num dia qualquer,_!!las no da transformação de Samsa em barata. f:ste é o começ9_P-or excelência das obras de Kafka: a desgraça irrompe -no mundo; ·o mais é purgá-la. Instaura-se uma duração mítica, de. expiação das culpas desconhecidas. O tempo da atividade humana perde ·sua autonomia, .reduzido a desenhar o padrão prefigurado. _O mito sobrepõe-se à História, fataliza sua vítima e retira-se nQYamente; é um quisto de viol~cia que se desfaz com a mortiLdo esc_olhido. Basta lembrar o fim de O V eredit~. em que o trânsito se toma intenso sobre a ponte tãó logo Georg, o agraciado pela desgraça, dela se atira. Também em A Metamorfose a morte de Gregor restabelece a vida: sua família sai da casa sombria para o dia ensolarado, o futuro toma-se de súbito promissor, e os pais percebem, com gósto, · a filha distendendo o corpo jovem ·que breve. merecerá marido. · ____ ,-::-Quisemos descrever, até l'.Lqui, duas temporalidades: uma, fátua e mecânica, de Gregor que não organiza seus atos; outra; mítica e maligna, que irá destruí-lo seja qual fôr a sua atiiüde. Para• ilustrar esta duplicidade, G. Anders imagina um relógio cujo .ponteiro de segundos fôsse frenético enquanto o das horas fica parado. f:ste símile, embo.ra e;xponha a desproporção dos dois níveis que apontamos, dá uma idéia falsa de sua relação. Basta-se com supor inócua a agitação em face da essêpcia humana, que permaneceria sempre idêntica. A imagem -deveria ser outra: um relógio cujo ponteiro de segundos é movidó pelos homens enquanto o dias horas -· essencial - é movido por uma potência estranha e má. _ Esquematicamente: o tempo mecânico é de rigorosa sucessão causal; o. tempo da ati\lidade humana surge da submissão da causalidade a um nexo de sentido; o tempo do mito despreza o encadeamento dos fatos - a possibilidade humana de agir, portanto -·- bastando-se com impor-lhes um padrão. Não tem importância saber se B nasceu de A, nem como o fêz. Importante é que se sucedam, para completar o emblema. f: desta perspectiva que se narra A Metamorfose. Após uma página de 63

devaneios de Gregor, sabe-se que ele os tinha enquanto encostava à cabeça à porta; por vezes, de cansaço, batia nela ao que .o pai, não se- sabe em qual pancada, emudece. Depois retoma a conversa, e Gregor- descobre, facilmente pois o pai . se repete muito, que a situação econômica não era má, etc. etc. A sucessão. dos eventos não se faz com inserção temporal e fatual rigorosa - de onde nasceria a História com seu caráter único,· sabe-se· apenas que Y seguiu-se a X, o que faz um sentido exemplar, geral, negação desta seqüência que perde a importância; a História do homem é escrita fora dele. É bem virdade que dentro de cada imagem (Sainsa meditando, por exemplo) a duração aparece perfeita; o que ela não faz é articular ·os quadros descontinuidade que lhe• toma a existência e a transforma em imagem de si mesma. · A dwée .articulada é engano humano, o tempo verdadeiro, contínuo, é ditado pelos passos que transformaram Gregor em barata e o conduzem com segurança para a morte. Por ter conteúdos prefigurados, o tempo mítico não guarda lugar para a liberdade. Com seu primeirQ passo estão dados também os outros, sua coexistência tem algo de espacial, são permutáveis entre si. Toma-se inteligível, assim, a curiosa obser-. vação de que · Kafka inverte os .processos: a acusação pre_cede . à culpa, o casal vai para a cama antes, por assim dizer~· de se ter conhecido ( G. Anders) . De modó mais geral, o resultado de um ato precede a sua realização. Gregor, que não vê a mãe. desde que sé transformou, deseja muito vê-la. ·Diz o texto que. 9nto de vist\ a verdade aparece como destruição. Se as mulheres fizessem o que· querem -·-. virassem perdidas ,.;_ -a sociedade puritana desap·areceria. Satisfação pessoal.· e liberdade ·estão 141 ·

ligadas_, assim, à ruptura do sistema. Estas contradições, e.orno já mostramos, penetram a estrutura da percepção. Torna-se fácil compreender o nexo entre o diabo interior, subjugàdo, e a sua existência Jépida nas franjas da povoação, nas florestas. A vastidão geográfica à volta do vilarejo encarna a possibilidade prática de escapar à repressão, ao terror estabelecido. Dando corpo à tentação, a paisagem aberta transforma-se ela mesma no Tentador. Uma vez mais encontramos na textura narrativa a unidade de sujeito e objeto, agora mais explícita: a liberdade interior, a liberdade social, e a relação feliz com a natureza externa, são o mesmo problema. A dialética de culpa e verdade confirma-se na bela cena subseqüente, do aparecimento de Hester. Note-se como promove, por seu próprio movimento, o julgamento dos puritanos que vieram julgar. Os muitos sinônimos e análogos de austeridade, o clima da prosa, são afetados pela passagem que citamos e pelo trecho que citaremos adiante. Propunham, de início, a imagem de uma compostura estrita mas justi+icada; agora, roídos por dentro, degradara~se em aparência falsa. O som oco seria a sua verdade literária. Na medida em que o seu uso denotar, ainda, respeito, como se nada houvesse ac.ontecido, encontramos a falha central de A Letra Escarlata: não absorver os signifi.:. cados que criou. · Quando sai da prisão, na -soleira· da porta, Hester repele o meirinho cuja mão estava em seu ombro. Uma série de -imagens marca a distância que a separa da ·povoação. ·Com "natural dignidade" · ela . sai para o ''ar aberto", "como que por sua própria e· livre vontade". Ereta, "plenamente exposta em face da multidão", ela ·"não oculta uma certa marca, bordada ou presa em seu vestido". Mesmo o seu rubor - "ardente" é radioso. _As imagens gloriosas de sua exposição pública prosseguem, e culminam quando é descrito o luxo com que está bordado o seu estigma, a letra A, de adúltera. Integridade artís-. tica- e humana objetificam-s.e na letra escarlata, que nega a opressão puritana. "As suas vestes, que seguramente ela costurara na cela para a ocasião, modeladas segundo a sua própria fantasia, pareciam exprimir, pela peculiaridade selvagem e pinturesca, a atitude de seu espírito, o seu desespero impudente. " Note-se a ligação entre_ "fantasia" e "desespero impudente". Do ponto de vista de Hester, entretanto, da heroína, é precisamente a impudência do desespero que permite a descoberta da fantasia. Imaginação, qualidade artística, a verdade mais íntima do caráter, podem viver somente nas franjas do purita~ 142

nismo, e como sua negação. Agora que incorporou o pecado à sua figura pública, Hester é a primeira pessoa veraz no po:voado, espé~ie de afronta viva para os demais pecadores, secretos, cuja mentirada se torna manifesta quando a encontram. As palavras claras e luminosas, mobilizadas pela visão de liberdade que governa o episódio, acabam por criticar não apenas a hipocrisia dos puritanos, mas a própria noção de pecado. A "dignidade natural" e a ''.livre vontade" de Hester são incompatíveis com a idéia puritana de pecado, que não concederia verdade descritiva a nenhuma das duas, - mas são estas duas que o leitor do romance vê . A própria representação literária de llester desmoraliza -os conceitos repressivos. Hawthorne, no entanto, desob'ede_cerá as regras do que escreveu. Persistirá em cbamár Hester de·pecadora, em dizer "desmedidas" as suas razões libertárias. Como Bradford; Hawtboine tomará o razoável por racional, e não saberá desdobrar ou ver o que Hester anuncia. A insuficiência do narrador em face de seu assunto aparece, pela primeira vez, na descrição de Hester, no pelourinho. Protestando contra a exigência puritana, de penitenciar publica.. mente, diz: "Não pode haver, assim creio, violação mais flagrante contra a nossa natureza comum .- quaisquer que sejam os delitos do -indivíduo - mais .flagrante do que proibir ao culpado escon,der a sua face por vergonha; como era da essência deste castigo fazê-lo". Palavras razoáveis e humanitárias, como de 1!so, não estão à altura dos problemas que enfrentam. O narrador não percebe a integridade da concepção puritana; COIDO não percebe as· implicações radic:ais no orgulho de Hester. ,Numa comunidade verdadeira não há lugar· para vergonhas privadas; forçando o condenado a reconhecer: o sentido social do que fêz, o grupo quer transformá-lo em membro responsável. Inversamente,. a exigência da absorção pública dos ·próprios atos é o tributo aJto à responsabilidade individual: todos. os· comportamentos aparecem como a:Itemativas · concretas, ~ · horizonte da possívl}l generalização ·social dá-lhes significado e · peso máximos. Em lugar da discrição pudica exigida pelo nar:qidqr, cuja delicadeza o livra de levar a sério.·os sentimentos do acusado, o pastor puritano lança ao rosto de Hester ~'à. vilé.za negra de seu pecado": quer forç~-la ~ reconJ,.ecer racit;malmente ·o· mal que fez, e asstime o risco,. assim, de ser vencido no argumento. Aceitar o pudor .como categoria válida é reconhecer· tegftinio o 'biato 'entre aparência e existência real. Houvesse ·um .retiro discreto para H~ster, ela ficaria escondida ·até que amainassem as· .dificuldades, e seu conflito .não ·saü;ia . da esfera pessoal.

Dims

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A integridade e racionalidade do experimento puritano depende precisamente desta "falta de consideração", que poderia ser chamada também de veracidade. Por ora, examinemos a viabilidade dêste propósito, tal• como aparece no livro. A sociedade dos religiosos e justos, em que ~s culpas todas são igualmente confessadas e julgadas, faz sentido apenas se for, no todo, uma instituição sem mentira. A expiação ganha substância moral somente se o pecado for singular, uma exceção em meio dia virtude comunitária, ou se for exposto juntamente com todos os demais pecados. Entretanto, já nas primeiras páginas sabemos que Hester não está sozinha; entre os senhores lacônicos da povoação, também calado, está o pai de Pearl, a sua filha ilegítima; às .mulheres invejam o pecado de Hester, e só não incorrem nele por medo ao pelourinho; Roger Chillingworth, o marido enganado de Hester, busca uma sinistra vingança pessoal. Estes pecados todos valem-se da cobertura da decência. Mesmo o santo pastor Dimmesdale provará menos que perfeito; é o pai da criança. Os seus puríssimos sermões dominicais provocam delíquios na audiência feminina; devem a sua eficácia à voz um pouco trêmula do pastor, que envolve os ditos sagrados no movimento da paixão reprimida e dos anseios inconfessados. As suas palavras encontram guarida em todos os cdrnções da comunidade, como se fossem anjos - acolhida que não devem à castidade. Vale dizer: a santa aparência comunitária .oculta os pecados individuais e secretos, que formam a generalidade·real no povoado. A comunidade dos justcis é falsa, e seu aspe.ct.o virtuoso e racional é mera tirania . Assim, a povoação não podê saber a verdade inteira a respeito de si mesma, a não ser que se destrua. O pecado é geral, mas oculto, e a virtude é. proclamada, mas inexistente: como convivem os puritanos? A integridade de sua existência, incluídos, nela, os pecados individuais e secretos, não pode ser comunicada: ( cada qual acredita ser o único pecador gravíssimo) ; a mútua comunicação é feita pelo nexo mentiroso da religiosidade externa,· que não participa da esfera em que individualmente as personagens se definem. Não são unidos pelas afirmações comuns, mas pela mentira comum.· Assumindo o seu pecado, Hester 'dá o primeiro passo em direção de uma nova comunidade; aceitando-se inteira, ela toma a perspectiva de uma vida social sem mentira, racional. Denuncia a irracionalidade· que o puritanismo cristalizara com nome de pecado, esvaziando, pelo exemplo, a noção. Esta revolução não cresce, não se transforma' em nível conceituai _do ró-

mance; não obstante, ela é o .horizonte efetivo de várias cenas, a que dá um claro alento de esperança. Em Hester e Dimmesdale aparecem duas maneiras de mobilizar a existência integral dos indivídoos, para além da existência que o consenso social lhes reconhece. O pastor encarna com intensidade extrema a mentira comum, dando arrepios sagrados .à repressão, e mobilizando o que de preferência deveria ficar quieto. A eficácia dos sermões é paradoxal: proibindo titilam, pela voz doce do pastor, as áreas proibidas; movimentam, sem consciência, as faculdades todas dos paroquianos: a consci~cia, boa, e o prazer, em versão mental e negativa. É a encarnação do povoado, tal qual é. Hester, por outro lado, expulsa, tem uma perspectiva radical: o pecado não tem substância. Generalizada a sua atitude, o povoado seria outro e racional. Há uma terceira posição, importante, que combina saber e conservantismo. Chillingworth, o cientista, compreende a repressão, mas não está livre dela; é a pior combinação que o sistema pode produzir. O seu saber é poder, mas contra os ingênuos. O objeto de sua ciência é o flanco exposto do próximo, comum de todos na sociedade puritana. Visa, nas pessoas, o que não seja livre, que se possa manipular e conquistar contra a sua vontade; fome, desejo, medo, o incontrolável em suma. Reciprocamente, Chillingworth é possível somente em regime repressivo, enquanto a necessidade individual, atuante, não for consciente e publicamente reconhecida. o· próprio Chillingworth é parte vitimada do sistema, pois não faz mais do que preencher uma possibilidade objetiva. "Foi tudo uma lúgubre necessidade". A seqüência inexorável data, em seu dizer, do primeiro passo falso de Hester Prinne. Pode ter .razão, no que refere à singularidade de seu destino pessoal; o começo da problemática, entretanto, é anterior, liga-se à constituição repressiva de sua sociedade. Neste sentido, é preciso reconhecer que o mundo desregulado precede a existência individual, à maneira de uni pecado originário, a ser expiado . Note-se, contudo, que ao longe da av,entura de Hester a culpa primitiva aparece numa luz puramente humana, transformada, assim, num estado de coisas histórico e .mutável. Resumindo: o gxvpo repressivo não é livre, pois não reconhece a sua própria natureza, enredado, assim, nas suas contradições. No interior deste quadro, o livro desenvolve três posições que ultrapassam o consenso limitado da populaç~o, tocando os puritanos na raiz de sua ~xistência. Procuramos esboçá-Ias. Estas três atitudes possíveis .não são, entretanto, equi145

valentes .. As pos1çoes de Dimmesdale e Chillingworth, com-. prazendo-se ou manipulando a repressão, não levam para fora do sistema, pois têm como segura a noção do pecado natural, eterno, opaco. O trajeto de Hester, pelo contrário, revela a natureza humana do pecado, transitória pois, deixando ~ vista a limitação .das outras dúas posições. Tornando transparênte o que era opaco, humano o que era natural, a sua perspectiva rompe a necessidade do sistema, dando-lhe um grau mais alto de inteligibilidade. O seu ponto d~ vista é privilegiado c01.· res~ peito à -verdade interior do romance. Empiricamente, as três posições são viáveis (até certo ponto). Em literatura, quando a tarefa é desenvolver o alcance maior de uma situação, a perspectiva de Hester é melhor. Não percebê-lo, como ·Hawthorne não percebe, é ficar aquém do alento possível ao romance. Apresentamos, até aqui, a noção puritana de natureza, que é contraditória, o método Iite.rário de A Le'tra Escarlata, e a descrição •da estrutura social dos pudtanos, contraditória também, tais como aparecem nos primeiros capítulos· do livro. Combinada a técnica literária às contradições do puritanismo, é fácil entrever a forma interior do romance, implícita nesse princípio. O romance não vai realizá,.Ja. Mostraremos que esta limitação é da mesma ordem da de Bradford; a mesma ind~isão entre o raçional e o que seja fato, a mesma simpatia por um, seguida pela adesão ao outro. O todo social, no princípio de A Letra Escarlata, apresenta-se de modo bem abstrato, como procuramos indicar. Às várias personagens correspondem. propósitos diversos, largamente ex- . postos. Hester, em particular, especula detalhadamente sobre o · que deva fazer. Há longas passagens escritas inteiramente nó condicional, suposições sobre o curso provável dos acontecimentos. Neste domínio hipotético, todos os raciocínios são mais ou menos equivalentes. Enquanto a trama não toma vulto, a unidade das várias posições antagôniGas, entrelaçadas pela . situação, não aparece; as noções não ganham, peso concreto. Quando se encarnam, quando saem do condicional como acontece no drama de idéias, há progresso. Inscritas num conflito prático, elas põem à mostra a sua articulação mútua, a lógica de seu convívio, já que apenas uma das várias pode-se tornar real a cada vez. O desdobramento das idéias através do con-. flitiô prático o núcleo dramático de tantos romances - é um procedimento disciplinador. Levar adiante um conflito ideológico no interior de uma situação concreta requer aprofundamento, que seja pela mera variação consistente e a bem da 146

simples continuidade literária. As peripécias da ação dãó con• texto nbvo às noções, e forçam o escritor a repensar o seu mundo. · Em A Letra Escarlata, entretanto, quase não há peripécias desta espécie. Somente umas poucas partes fazem valer o procedimento dramático (não pensamos em diálogo apenas, mas em desdobramento de conflito), e estas partes ressaltam visi• velmente, por sua qualidade. Vários dos momentos cruciais para o romance, tal como sabemos dele, estão ausentes, prejudicando a plenitude do argumento. Exemplo: Se Hawthome apre• sentasse a gênese dos pensamentos libertários de Hester - alinientada na reflexão sobre a sua marginalidade presente e sobre a· sociedade que a expulsara - não tombaria, ou seria inais difícil que tombasse, nas pífias afirmações finais sôbre a permanência do pecado. Fosse mais cerrada a trama, e exigiria análises mais rigorosas no curso do livro, que desgastariam de vez a noção da culpa originária; ou, quando menos, dariam argumentos melhores à concepção puritana. Como exemplo dessa espécie de arbí!rio por insuficiência, lembramos o princípio do capítulo xvm, Um Jorro de Sol. Após descrever a libertação moral de Hester, através da experiência de Vergonha, Desespero e Solidão, diz o narrador: ". . . e fizeram-na forte, embora houvesse muito descaminho em seu ensinamento". O que significa "descaminho'' aqui? Após gastar duzentas pá~inas para mostrar como é impossível pensar no interior do sistema puritano, e que somente a distância permite vê-lo em seus traços irracionais, Hawthome decide que muita liberdade e razão têm também os seus inccnvenientes, e bota um par de qualificações restritivas em se11 livro. Na medida em que o narrador não se prende à lógica do texto, os seus j;.1ízos de valor tornam-se arbitrários; correspondem, de fato, à atitude indecisa de Dimmesdale, que é logicamente derrotado no interior do próprio romance. A limitação de uma das personagens é incorporada à estrutura do livro. Um erro desta natureza não pode ser explicado nos têrmos do texto, que não o requer. Aponta para a biografia do romancista: a liberdade (mas qual?) havia levado, em seu tempo, da sociedade teocrática ao comercialismo deslavado, que é dos lemas centrais da literatura norte-americana do século XIX. Daí a liberdade ser má coisa~ Como em Bradford, ainda uma vez, a questão de facto é substituída à de jure. O exemplo mais forte desta falta de vigor dialético encon-. tra-se nos atos finais da Dimmesdale. Primeiro passo, a bela cena em que encontra Hester na mata. Assistimos ao rena.s,-

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cimento da feminidade dela, da coragem dele, e mais generi• camente da vida. A glória destes momentos é irresistível. Não obstante, logo a seguir, vem a surpresa. Vindo da floresta, onde remoçou, Dimmesdale marcha em direção do povoado. A caminho passa pela experiência insólita da dupla personalidade, correspondente à vida dúplice que levara até então. A descrição psicológica é brilhante. "A cada passo vinha-lhe a incitação de fazer algo estranho, selvagem, maldoso ou que seja, desejo iritencional e involuntário a um tempo; a despeito dêle mesmo, embora nascendo de um eu mais profundo que aquele oposto ao impulso". As sugestões "selvagens e maldosas" provam cômicas, e ligam-se de modo claramente negativo e libertador à sua santa hipocrisia passada. Sabendo o que deve saber de sua congregação e de si mesmo, nada mais apropriado que mostrar a língua às velhotas no caminho, ou dizer inconveniências às suas castíssimas admiradoras. A esta cena já precedera outra, de bom humor-negro clerical, quando Dimmesdale, para penitência, subira secretamente ao pelourinho, protegido pela noite; em lugar dos pensamentos elevados e compungidos que fora procurar, imagina a procissão dos respeitáveis puritanos, em camisola e embasbacados, vindos à rua para admirar o seu pastor. Pois estes atos, prenúncios de lucidez no pastor, são logo atribuídos a Satã. Por que riríamos deles, não fosse por sua adequação? Há mais conseqüência neles que nas palavras patéticas e chinfrins proferidas pelo padre no seu leito de morte. É preciso reconhecer, entretanto, que Hawthome faz bem quando não cura a alma do pastor - tiraria o pêso mutilador à experiência precedente - embora faça mal ao deixar que subsistam como válidos, os seus raciocínios sobre a culpa humana. ' Esvaziada por seu fecho tímido, A Letra Escarlata permite duas leituras, ambas insatisfatórias em face dos conflitos que o romance propusera. Uma, próxima do tom final do livro, restaura a objetividade do pecado, e acreditaria que Dimmesdale "havia feito a barganha ruim•. Tentado por um sonho de felicidade, ele cedera por escolha deliberada, como nunca o fizera antes, ao que sabia ser uma culpa mortal". A interpretação não é segura, pois o texto permanece hàbilmente no interior da perspectiva de Dimmesdale, de modo que poderia tudo ser ilusão pessoal; se fôr correta, e a felicidade permanecer prêsa à culpa como dantes (penso no que ensina o romance, e não na cabeça do pastor, dentro da qual isso é mais que provável), o livro não· terá absorvido as significações que produziu, surgidas ao longo do trajeto de sua heroína. Se, por outro lado, a re148

. núncia de Dimmesdale for vista como fracasso pessoal - versão mais em acôrdo coni o movimento e a textura do romance - o livro não terá levado adiante, com suficiente vigor, as impli~ cações da vitória de Hester. As noções de pecado, natureza e sociedade não se transfurmaram na medida proposta e solicitada pelo próprio livro. Há conflito permanente entre a textura da percepção puritana, entretecida na linguagem, indicando a natu• reza repressiva do sistema social, e a religiosa aparência de justiça e razão. Se não é resolvido em têrmos da. trama, como não pode sê-lo, pois Hawthorne guarda uma certa fidefü;lade ao curso real da história dos EEUU, deveria resolver-se pela crescente consciência crítica do narrador: os fatos continuam aqueles, mas ao longo dêles, quando menos, ficamos mais inteligentes. Seria natural, para um método abstrato eomo o de A Letra Escarlata, que o livro terminasse por um esquema valorativo transformado. A inversão daria força, também, à padronização metafórica do mundo, que descrevemos a propósito da percepção puritana. Se não leva a cabo o seu curso lógico, o romance vira tautologla; · um pecado é um pecado. A_ textura cambiante da prosa, com suas implicações críticas: e euforizantes, visualizando, passo a ·passo, submissão e revolta, perde a força . quando se perde a alternativa real, de que se alimentava; fica achatada, tem algo de exercício formal. Embora estufada de intenções e símbolos, com visíveis ambições de Shakespeare, a prosa não cresce muito, e o romance elaboradíssimo acaba sem alcançar a grandeza que estava à porta.

(1963)

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RETRATO DE UMA SENHORA· (OMÉTODO_D·E_HENRY JAMES) A

MORRJS DICKSTEIN

A

EXPLICAÇÃO da beleza experime~tada mobiliza e 1equinta os conceitos, exigidos pela síntese nova de nossa imaginação. Dar as· ·razões do enfado enriquece nienos. Como assunto, a falta do senso unificador da beleza é pobre; comprova-se na descoberta de inconsistências, cujo critério é um senso esquemático da unidade. Ficamos no interior de nossos conóeitos, já que o romance ideal, em cuja perspectiva o real aparece falho, é nossa construção. Não encontramos a vida renovada nas noções do romance que não apraz; pelo contrário, iremos corrigi-las com nossa experiência passada. A critica negativa diverte, mas é aU:tocitação . Pode ser útil à política literária, delineia o campo, mas não tem contribuição própria.

* James deixa a sensação do incompleto, a par de sua finura . A lacuna é consistente, em estilo, trama, concepção, dos caracteres e da sociedade, a ponto de entrever-se nela unia virtude: seria a representação dramática, em ato, da precariedade com que apreendemos o sentido de situações humanas. Kafka seria o exemplo: não sabe o suficiente sobre os mecanismo~ do . 151

mundo; a insuficiência, mais a perplexidade e principalmente o medo que causa, será o assunto de sua prosa. O mundo inte• Iigível e digno de ser contado, base do romance clássico, é posto em dúvida; sua impossibilidade é o tema da ficção pósrealista. A falta de importância e de transparência, entretanto, é um estado· negativo, que precisa se apresentar como tal para ser verdadeiro. Não deve perder a referência contrária, positiva - mesmo que apenas implícita, em forma de' horizonte, de anseio - através da qual se evidencia o prejuízo e dano da vida negativa; quando a perde, torna-se auto-indulgência tagarela, falta-de-importância desimportante. A referência à plenitude ausente; o senso de distância, portanto, é da essi!ncia desta ficção. Pode expressar-se no ódio pelo assunto, na estranheza em face dele, na dúvida, - todas são formas de narrar que fazem justiça à falta de sentido enquanto falta. Se desaparece a distância, a representação do incompleto fica incompleta. A integridade do significado, a sua imanência plena, é mais que o atributo de uma escola literária, do Realismo; como presença ou como ausência presente e sensível, é o fundamento da com• preensão. Em face dela, a posição de James é ambígua, como a lógica de seu livro irá mostrar.

* A estrutura social implicada .no Retrato de uma Senhora é complexa: aristocratas, um industrial americano; americanos aposentados, vivendo em retiro confortável na Europa; uma . bela senhora, sem dinheiro ou escrúpulos, ambiciosa para a sua filhinha bastarda; um esteta; e finalmente a moça americana, transformada em herdeira de repente, figura, pois, da vida digna de ser romanceada e vivida. Basta um relance para sugerir categorias e conflitos expressivos da composição deste grupo: a democracia americana e as tradições européias; elei.;ão para a vida e exclusão dela, por herança ou pela falta de dinheiro; a qua• !idade pessoal, ligada ou oposta ao trabalho 011 ao lazer; conven• ções sociais vistas como limitação e como objeto estético; as implicações morais da sorte e da esperteza, e assim por diante. A leitura do livro, entretanto, mostrará que nenhi~ma. destas noções evolve com rigor, - embora estejam todas presentes numa oportunidade ou noutra. Elas, e com elas as situações de que fazem parte, rião alcançam o grau de definição. e crise em que os significados cristalizam. Seria o caso de dizer, então, que a estrutura social é apenas incidente, inessencial para o livro? 152

Se for assim, James .estaria interessado numa forma de psicologia que nada tem a ver com as posições sociais, presentes no romance como recurso mero para dar variedade a uma população. Repensemos e• livro, nesta linha, despido de tudo que seja social, como S•! todas as relações, nêle, fossem exclusivamente pessoais, solúveis em termos de psicologia individual. O resultado não dará conta do texto . As personagens e os atos parecem definir-se pela relação com dinheiro, tradição e assim por diante, - contradizendo o nosso primeiro argumento. Chegamos a um paradoxo: 3.S relações sociais são periféricas e essenciais n um tempo. Dizer que o livro é sem valor, por falta de um .mínimo de coerência interna, é falso diante de nossa experiência; o Retrato é uma peça extremamente elaborada. Precisamos de uma segunda resposta, capaz de interpretar o paradoxo. O que significa, então, defrontar-se com determinações sociais, e fazer como se não existissem? Na vida real e superficialmente, será inconsciência, generosidade, esperteza. No texto literário, onde tudo é construção, gesto inténcional, a pergunta será mais tenaz. Se o paradoxo não é apenas contradição, falha, deve haver sentido em construir determinações sociais como que para não lhes reconhecer validade. A estrutura social, enquanto desrespeitada, é essencial ao livro. Tê-la como determinação para ignorá-la é encenar o gesto da liberdade aparente; o seu correlato é a consciência impotente, que se sabe sem fundamento. Se estamos certos, estas duas atitudes permeiam os grandes momentos do romance, cuja fisionomia determinam. Estes modos de falsidade e impotência resgatam a parcialidade do mundo em James,)mpedem que ela seja mera falha; dão verdade à representação falseada. Instilam corrosivo nas proclamações da vitla interior, que se quer independente das determinações objetivas. Pela precariedade que introduzem no tom narrativo, estes modos devem garantir uma crítica sustentada do próprio conteúdo da narração. Embora o façam ......;. e aqui a ambigüidade - não têm a fôrça e penetração necessárias. A tagarelice grã-fina, sutil e negligente, soa falsa, é verdade; mas acaba por impor-se ao tema: dinheiro e posições sociais são como que realmente secu'ldários, apêndices naturais de tanta finura. As cenas da consciência impotente, por outro lado, não têm também a profundidade necessária para esclarecer a teia das relações humanas que o livro mobiliz0u. James não satisfaz a sua e:tàlento, amenidade, atrás de seu bom gênio, sua facilidade, .~t( conhecimento da vida, o seu egoísmo espreitava como se.tw,J1te.:num . : .,.

mos

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canteiro de flores" (visto por Isabel). "Ele tinha: sempre um ôlhQ para o efeito, e seus efeitos eiani profundamente calculados. Não eram produzidos com meios vulgares, mas o motivo era· tão vulgar quanto era grande a arte. Cercar o seu interior com uma espécie de santidade invejosa, tantalizar a sociedade pelo senso de exclusão, fazer crer a sua casa diferente de qualquer outra. . . com pretensão de cuidar apenas de valores intrínsecos, Osmond vivia-exclusivamente para o mundo" (visto por Ralph)~ 22 Como se combinam a inferiorização artificiosa do próximo, o bom gênio e a amenidade? a facilidade e o calculismo? a cultura e a vulgaridade? o desinteresse com seu contrário? Também a beleza da vida de Osmond é associada ao vazio. Como en• tender estas contradições? Seria injusto para• com nossa expe• riência. do livro dizer 1Simplesmente que os lados maus contrabalançam e anulam os bons. Osmond permanece belo, apesar do que sabemos dele. Entretanto, se não queremos reduzi-lo a um lado, ao mal ou ao bem, como compreender a sua unidade? Nos termos desenvolvidos pefo romance, esta contradição é última, sem explicação. Resta apenas dizer que Osmond é a1SSim mesmo. Ele quer ser estilizado e vazio, cultivado e de mente estreita. Uma vez que estás categorias não parecem ligar-se através de necessidades objetivas, só podem estar unidas por um ato da vontade subjetiva; somos levados· a uma psicologia monstruosa. Em medida menor, o mesmo acontece a Isabel, quanto a seu interêsse pelo desinteresse; como se ela fosse maníaca, já que razões reais_ não aparecem. (Esta· sobrecarga da vontade, quando não é intencional, como não é em James, podo ser derivada do método de omitir a ação em favor da evocação. Nu~á situação ativa seria impossível, digamos, ganhar dinheiro e ter estilo a um tempo; escofüer um seria toinar para complemento a negação do outro. Para a visão retrospectiva, entretanto, que não vê a necessidade das alternativas, pois não tem a experiência das impossibilidades práticas, o homem é o con.;. junto estático de seus atributos, que convivem soltos lado a lado; as condições objetivas são incorporadas ao s:ujeito - há hipertrofia da vontade). Mesmo as análises de Ralph, as mais vivas do livro, consideram Osmond somente pelo lado subjetivo: finge ser isto, mas é aquilo. Ninguém pergunta das condições objetivas em que ser isto é impossível mas desejável, em que o seu compor22

Op. cit.-, II, pág. 144.

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tamento faça sentido. Como deve -ser o mundo para que os seus cálculos tenham efeito? O cultivo dos valôres intrínsecos pode tantalizar somente quem viva a vida indiferente. 2-3 O desinterêsse pode surpreender apenas quando o mundo é interesseiro. Colecionar é notável quando à volta as pessoas compram e vendem. Especializar-se em conservar a integridade tem sentido quando conservá-la se tomou especialidade. 8 preciso acrescentar, ainda, que a questão não é de estilo em geral, já que o fino lord Warburton, rival de Osm.ond junto a Isabel, seguramente o tem; o estilo precisa ser pessoal. Chegamos,. parece, à figura utópica do século XIX, o artista: cioso de seus direitoo individuais, como .qualquer bur~ guês, mas isento da vida para o mercado. De tão interessado no que faz, é dito pessoa desinteressada. Conforme o mercado se espraia, mais e mais áreas da vida têm formulado o seu valot em têrmos extrínsecos, de dinheiro, ao passo que o ·artista se tocna figura mais e mais utópica: o homem cuja profissão é guandar fidelidade a si mesmo, e à "honra das coisas" ( 0smond). Assim, quanto mais mercável a vida, menos materiais oferecerá ao artista, a qUem r:!Sta exprimir a sua integridade de sentimento pela negação do mundo desonrado. Flaubert é o exemplo. Por outro lado, é pre;:iso lembrar que também o ar~ tista vive no mundo e no mercado. Se não vive de renda ou sinecura, o seu negócio é a beleza de· sua alma. Sua chance como o séú risco são maiores. ô estipêndio para fins. de autenticidade é certamente um privilégio, já que os outros homens passam dez horas de seu dia negando-se no trabalho. Não obstante, a identidade de pessoa e trabalho, que é privilégio do artista nà sociedade mercantil, é também o seu risco maior. Por :não fazer ressalva ao seu trabalho, como a faz quem faz o que detesta, o artista coloca no mercado a sua própria pessoa, encarnada em seu trabalho. Desonestidade artística, portanto, tem conseqüências integrais: transforma em mercadoria o eu profundo. O po~ limento vendável apresenta-se como integridade - rigor art~ sanal pode representar desgosto pela produção extrínseca, para o mercado - mas é a confirmação mais radical da ordem que pretende negar. Não abre perspectivas. A esperteza está em 1epetir a sua audiência, bem que em clave elegante, antes mes~ mo que ela fale. Estas noções, parece-me, clarificam a figura de .Osmond. Estabelecem o nexo inteligível, de mútua exclusão entre bele:za Cf. nossa descrição do gesto narrativo: tantaliza por exclusão e inclusão; promessa de profundidade e omissão dos argumentos.

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e vida social, estilo e trabalho, interêsse e integridade_. Mais .i;cncricamente, tudo que seja mercável, que exista sem razã9 própria e imediata, apare_ce como. desprezível. Fora dês're con-· texto comercial, o anseio de Isabel pelo 4~sinterêsse não teria· ~cntido. No ·contexto, entretanto, é pleq'âinente significativo,:7 na má-fé dos requintados; que dispõem.i#esquiSla delas que irá produzir a obra melhor. Guido não busca, pois, um mundo em que esteja superado. o seu conflito; basta-se com procurar uma fase de sua vida, ou uma· postura, em que não seja· atingido pela contradição, que entretanto deve ser nítida e vigorosa, e deve lambiscá~lo sempre. Busca a repetição inofensiva, mas não a superação. A possibilidade infantil de alinhar com os dois ·1ados da contradição, de não optar entre os queridos, é a sua inveja. f; o que tenta recuperar pela redução do mundo à dimensão visual: reduzido, o mundo volta a ser pleno; menos é mais, pois imagens não se negam ativamente, mesmo se contraditórias podem coe-' xistir. A destruição está· no nível dos feitos vivos, da lógica das situações. . Guiido prefere ver apenas . Ora, a isenção. em meio. de contradições é coisa de eremita ou é privilégio. Em princípio, o mundo poderia deixar de lado quem não se ocupa dele. Guido, entretanto, se abstém a partir de uma posição de força, de cineasta. O mundo vem a sua procura em lu~·ar de abandoná-lo. Há privilégio, mesmo que o privilégio fino de não respeitar, ao menos visualmente, privilégios sociais ou. r.-ormas repressivas. A postura contempl'ativa - os olhos buscam seu prazer .onde ele esteja_ - pressupõe uma república satisfatória, que não existe. P,rova é que ao corpo não se permite a poligamia ativa e farta permitida aos olhos, cujo democratismo natural, cuja capacidade imediata de interêsse e simpatia nfio, derrubam, por sua vez, as difeienças sociais. Os olhos são progressistas enquanto o corpo obedece ainda uma legislação retrógrada. A 196

postura -1e Guido é ambígua; vacila entre crítica e complacência, pois se ·nasceu de uma retirada, 110 retiro passa mais ou menos bem e gosta do espetáculo de que se retirou. A evasão nadá resolve, mas assinala um impasse e um anseio que são reais . É resistência simbólica, embora tortuosa e humorística; uma consciência misturada, ciente de que seus conflitos insuperáveis não são insuperáveis, além de não contarem muito. ~

A busca da imagem justa é central ao filme, é preciso interpretá-la. · É tema através das obsessões visuais de Guido, e pressuposto técnico do enredo, já que se deve criar a ilusão de uma experiência imediata e rica, inacessível à reprodução artística. 8½ é de uma beleza visual assombrosa. As imagens que apresenta, perseguidas por Guido, irradiam felicidade e melancolia de mistura, - a sua riqueza é a presença mais imediata para quem vê, ·mas é, também, a mais intangível ao conceito, pois não se liga diretamente à trama e ao diálogo, embora ~eja o seu contexto essencial. A imogeni feliz é uma utopia cifrada. Guido e 8½, cada um a seu modo, convergem na busca dela: fazer que as pesso~ apareçam segundo a sua natureza,· dar-lhes razão até que floresçam desinibidas. As imagens tocadas de poesia são empostadas, as figuras parecem ser propositalmente o que são. Esta a chave de seu alento. Em suas visões, Ou.ido como que bolina as figuras, para suscitá-las a desabrochar. Lembramos a. cena de Carla, no terraço do balneário. Quando nota a espôsc, ao pé de Gui:do, a amante suburbana se amplia em intuições .:le_ cosmopolitismo, encena um esplendoroso ritual de 'Cliscrição; família apesar das peles excessivas, atemorizada pela situação, mas envaidecida também, um pouco alucinada pelo balneário grã-fino e sobretudo achando sublime o sacdfício de ser t ma senhora sozinha no parque, esconde-se bem visível a um canto. A cena prossegue na fantasia de Guido, que atrás de seus óculos escuros visualiza Carla cantando, generosa, esticada e comovida como uma girafa que uivasse à lua, infeliz mas feliz porque. amada à distância, solitária e fustigada como um violinista de opereta. A visão realiza o que a realidade suscita. Pela empostação acentuada, o que seria temor irrefletido é transformado em e~tratégfa consciente. Encenando a si mesma; Carla não é mais o seu próprio limite vulgar; a sua vulgâridade é uma estilização graciosa que ela houve por bem escolher. O romantismo de radionovela, exaltado mas prudente, de Margarida Gauthier deritro dos limites do praticáve.I, torna-se ironia 197

em meio das dificuldades dominadas. A euforia da imagem, sua desenvoltu!"a utópica, vem da facilidade ostensiva no interior dos envolvimentos sociais. .. . ·A imaginação de Guido pw Carla a salvo das contradições reais e das limitações do bom-senso, é um palco em que ela não responde pelo que faz. Nesse contexto o sentimentalismo imbecil da imagem - de que adianta a cantoria modesta e maravilhosa, quando em frente está a esposa, bufando passa por uma transformação surpreendente: no mundo irreal, onde não se torna abjeta pela humilhação a que corresponde, a vontade de agradar traduz apenas vontade de ser e de fazer feliz. Liberados de sua conseqüência prática pela fantasia, os dóis lados da contradição se tornam positivos, não pedem a mútua exclu'são. Carla sente-se sublime e escusa simultâneamente, o que em imagem é duas vêzes bom: uma porque é justo s.atisfazer e s·atisfazer-se, e outra porque é divertido burlar instituições hostis. Numa como noutra ·agitam-se veleidades válidas. Na realidade, entretanto, que é da~esposa e das leis, e forçosa, dá-se o inverso: porque satisfaz os caprichos seus e de Guida, Carla será mais puta do que sublime; e também na discrição haveria menos cumplicidade feliz que receio e ferida; Luísa, a espôsa, fulmina Carla, a amante. Os ansei0s contraditórios, que eram felizes um .a um, compõem. a pessoa machuca.d.a quando se enfeixam na sua conseqüência prática. Dar a Carla. o. que é de Carla, ainda que ela não o possa sustentar - reside :Iiisso a beleza da imagem - é não dar a Luísa o que é dela; e viceversa. Não é possível dar razão às duas, salvo em imagem, pois alimentam-se da mútua negação. Já se vê que a· felicidade está nas visões isoladas, boas por si, e que no enredo, na dimensão 9as conseqüência9 e da responsabilidade, está o desastre. Guida tem um fraco pela fraqueza .. Vê nela o desejo que não será remido, que não é força . por força das circunstâncias. O amor do instante é o temor da sua continuação. A imagem abriga, possibilidades que o enredo desconhece, e resiste a· ser enquadrada nele; está para ele, que dispõe dela, como a veleidade pessoal para a marcha da sociedade: é uma célula subversiva, cuja [iqueza, sem préstimo para a trama, respira lamento e protesto contra .a simplicidade compulsória do que lhe sucederá. Poderia ser o ponto de partida de um entrecho novo, de um mundo que fizesse justiça ao que o entrecho velho descartava. Construída contra o enredo hostil, a imagem feliz é o germe imaginário de outra ordem de coisas. A perfeição refllli sobre a existência, e incita à esperança; na



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atmosfera fantástica do filme, a felicidade poderia alastrar como uma coceira. Daí a fôrça espantosa dessas imagens. Guida, entretanto, não quer revolucionar o mundo, nem imaginàriai:nente. Quer curar certas dores, mas não para sempre nem por completo, pois perderia o prazer da cura. Daí a melancolia patife que acompanha as suas revolu~ezinhas visuais; não são coisa séria. E há outra tristeza também, essa irremissível e peíSada: Guiclo quer felizes as suas personagens, mas aqui e agora, sem ·que se tranajormem, pois transformadas não seriam mais as que quer bem. Não quer revolução, quer redenção. Quer que as personagens sejam mas não sejam como são: felizes, estariam livres de sua contradição, e não seriam quem são agora; sendo como.são, não seriam felizes. O percurso é contraditório: para dar felicidade é preciso suspender a contradição que infe.• licita, o que suspende, entanto, a individualidade por amor da qual fora suspensa a contradição. Na perspectiva de Guidb a imagem feliz. não é verdadeira, e a i.Iµagcm verdadeira é infeliz. Em termos de lógica dramática: não é Luísa inteira quem escorraça Carla, nem séria o contrário. Para combater, as rivais deveriam especializar-se uma em ser amante e a outra em ser esposa, com prejuízo do mais que pudessem dar. O impasse institucional pesa sôbre a imagem, as figuras não podem coexistir com ·plenitude se respeitam o seu contexto social. Retidas pela contemplação,· entretanto,, transbordam. Transbordando, sugerem novos enredos ou destinos- mais ricos. Mas. Guida acolhe as sugestões só pefa metade; para o diretor personalista, o papel da_fantasia é ambíguo: deve recuperar a integridad~ que a vida prejudica, mas niio importa se além ou se aquém do corJflito. O anseio de plenitude é menor que a fobia pela tristeza da imperfeição visual. O critério não está nas eXIgências do mundo, mas na serenidade do cineasta. Há duas vias, portanto, na composição da imagem feliz: uma, triunfal, em que a personagem supera o que a limita, chegando à inteireza; na outra, humilhante para o objeto, a veleidade pessoal é ajustada à situação real de modo a não diferir dela, anulada portanto. Nos dois casos, antagônicos, resulta harmonia para a contemplação. No retiro visual à benevolência mais generosa e a crueldade não se excluem. A felicidade e o acêrto das imagens provêm d'e sua irrealidade .. Negam, sublimam, superam conflitos reais, deixam entrever a .liberdade no corpo mesmo de quem está preso. A reàlid~de if!.feliz é a sua referência, fora da qual não têm sentido. 199

Não têm autonomia. Para desespero de Guido não compõem uma história, embora sejam parte da história de um diretor que através delas não consegue compor uma história. O melhor exemplo é Cláudia. Ao criticar o roteiro de Guida, o literato magriço afirma que ela é o mais bolorento dos clichês bolorentos que perfazem o filme futuro; e tem razão . Entretanto, ela é das imagens belíssimas do filme presente. Como explicar? Tomada por si ,só, de fato, ela seria uma fada boba. Mas o seu corntexto é a fantasia de Guida, lev~mente combalido e canastrão, recuperando o fígado nas termas: Vista através de nervos cansados, a sua imagem branca de enfermeira das almas e do corpo é medicinal. O copo d'água, vindo de suas mãos, é como a fonte da vida nova. Seu passo é leve e constante como a doçura estática de seu sorriso. Ah constância sem esforço. O corpo é cheio mas os pés são suaves, descalços sôbre a relva. Oh peso que nã9 fere . .Cláudia avança como quem bebe a brisa, as mãos um pouco atrasadas deixam supor que irá voar. Ah, sonho, não voe já. Precisa ser vista duas vêzes: como a garça alvinitente e chôcha, ragazza crescida entre objetos de antica belle::.a, pureza e solução no filme de Guido, e como a contra-imagem silencio.; : e lenitiva da desordem, das olheiras, do ruído. E a presença d,~ Guida que dá vida ao chavão. Cláudia não pode contracenar, não tem continuidade no mundo imaginário; a sua substância é o instante de Guido. Ela é como um poema seu. Mas poemas não compõem u·m romance. Tomar o partido da incoei:ência, da imagem contra o enrêdo, do instante contra a sua conseqüência, é tomar o lado da irresponsabilidade; mas é o lado, também, das veleidades inibidas ou espezinhadas pela coerência que esteja no poder. Esta ambigüidade é o limite de Guida, seu fracasso como diretor, seu inte1 esse como personagem. Não há realismo em siia atitude, pois a coerência irá prevalecer; mas há sentido em sua derrota. Resulta uma atmosfera elegíaca, de lamentação das felicidades possíveis, das possibilidades que a situação deixa mas não deixa medrar. Paradoxalmente, a impotência de Guido transmite, pela irritação que nos causa, o senso pr_eciso de que a ordenação da vida está obsoleta; consciência e meios materiais, parece tudo à mão para modificá-la.

* A imagem feliz, construída para curativo pessoal, nasce de uma operação simples: transforma em opção o que é destino,

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em disfarce o que é cicatriz, e faz que desapareça, assim, a mall'ca da coerção social. Anula a diferença entre o prop6sito e a existência. Cria um mundo feliz e fraterno, cuja finalidade é fazer bem a Guido, não incomodá-lo. :8 como uma república socialista de que ele fosse o rei. As imagens de paz são imagens de violência, pois cancelam o próximo para pacificá-lo. A fantasia· da dança reconciliada entre a esposa e a amante é um exemplo; dá prazer a Guido, mas é possível somente porque Luísa foi esvaziada. A generosidade de Guido é generosa com ele mesmo, e brutal com as personagens. A disparidade entre carinho e impertinência culmina quando Guido transfomia a · mulher numa linda criadinha azafamada, que prepara ·o seu banho .e escova o chão de seu harém. As conciliações tôdas são feitas a comando, por força da onipotência imaginária de Guido; não solucionam nada, não passam pelo interior das personagens. e de seus conflitos. Não é à-toa que a grande pacificação final se faz numa ciranda. Os pais e· o filho, os padres e a rumbeira, a mulher e a amante, os atôres e seu diretor, todos dão a mão numa dança fraterna, sem que entanto se resolvesse, entre eles, uma só diferença. A imagem da farândola pacificada tem três lados: para Guido ela é feliz, pois suspende as suas contradições mais doídas e permite uma conciliação, ilusória, pelo transbordamento sentimental; para as personagens é um ultraje, pois o próprio de cada qual é posto de lado, a bem da paz de Guida; para o espectador é comovente e irritante, pois embora atenda a uma dor real, não leva para além dela, - pela ilusão que cria fecha um círculo de reincidência. Guido passa pelo que passa sem aprender, no final está no mesmo ponto em que começou. Quer, por força, tomar éontradições como se fossem harmonia, reter o mundo tal e qual; para nada perder nada supera, para não mentir a si mesmo, ou mesmo a Carla e Luísa, mente aos três .. Guido anda em círculo. O horizonte de 8½ e do e~pectador, entretanto, não é o, seu, é maior. Daí não ser trágico o conflito, que tem mais de inércia que de necessidade. A inércia de Guido, contudo, . desperta uma reação muito forte, aparentemente desproporcional. Também Carla é casada, também Luísa tem um flerte. Não obstante, a situação das duas é incomparável à de Guido, cuja complacência nos atinge e escandaliza como coisa decisiva. Por que razão? m1,bitualmente, encontrar uma solução privada e seoreta para impasses coletivos, por isso mesmo ·inevitáveis, é sinal de saber viver. Salvo quando a solução pessoal pode ter alcance público, suspendendo o· impasse 201

que tomava _necessário· ô engenho e o segredo individuais. Deixar .de publicá-la passa ·então a conformismo, e mais, passa a ridícula, pois produz uma prudência já desnecessária. Embora seja palpável à experiência, o anacronismo nos impasses de Guido é difícil de localizar. Por que não serão válidas as obsessões de um homem, os seus compromissos entre a mulher e a amante? Qual o contexto que lhes tira o pêso? Guido niio é simplemzente um homem,· é um cineasta. O cinema, com a atmosfera que o envolve, introduz uma constelação prática para a qual os conflitos burgueses são letra morta ..Por forte que seja o senso disso, isso não é fácil de comprovar, pois trata. se do horizonte efetivo, mas nunca explicitado, de 8½ e de no.rsa cultura. As visagens do mundo. nôvo mal e mal se entrevêem, embora sempre o bastante para tornar pungente e obsoleta a permanência do mundo velho. Não nos interessa, aqui, o argumento abstrato contra a sociedade individualista; procuramos as imagens e situações cuja mera presença, no filme, bastou para tingir de caduco os empenhos de Guido. Em seu passeio pelas termas, o cineasta vê uma sucessão vertiginosa de faces extraordinárias, imperiosas e originais. A seqüência não se deve apenas à perspicácia de seu olhar treinado, que sabe ver, mas ao. exibicionismo que a sua profissão suscita. Daí a vida se àceilerar e empostar à sua volta. Vislumbrada por todos na atenção do diretor, a câmara de cinema representa um estágio nôvo da. técnica, faz pressentir modalidades novas de convívio. Mobiliza impulsos como aquêle que faz um torcedor saltar, para que os telespectadores da cidade tomem conhecimento d'e sua cara. Não' que ele se ache bonito, mas quer ser visto. A câmara de cinema tem um poder curioso, que é preciso interpretar: desperta orgulho nas pessoas, de·serem quem são. 60 Diante do ôlho impessoal, ao mesmo tempo que universal pelo alcance, mostram-se trejeitos e intimidades que normalmente se escondem com cuidado. O que é vergonha ou handicap visto pot poucos, ganha dignidade de patrimônio nacional quando o público são todos. O que é flanco exposto numâ perspectiva particularista e antagônica, é peculiaridade pessoal, ousadia, traço curioso no acervo humano tão logo o ponto de vista seja coletivo. É como sé as pessoas dissessem: vejam que verruga mais interessante essa minha, ou, espiem como é feio o 50 "1\ industrialização capitalista do cinem111 barra o direito que tem o homem contemporâneo de se. ver reproduzido". WALTER BENJ'AMIN, A. obra de arte ao tempo de sua reprodução técnica.

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meu pé, ou, olhem só como sou górdo ou magricelo. Já se vê que o cinema atiça, em escala total, a, liberação que Guido empreende com requinte, como prova de talento pessoal e em favor de quem lhe é caro. O alcance da técnica escapa a Guido, que dispensa como benevolênci