A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista: o que Não Deve ser Dito
 9788546210664

Table of contents :
Folha de rosto
Dedicatória
Epígrafe
Introdução: além do pânico e do engodo
Apresentação
I. A REVOLUÇÃO DO HAITI – BREVE APRESENTAÇÃO
Cronologia
Lideranças
Vocabulário
Trajetória de liberdade e violência
A impossível matemática da classificação racial
As primeiras Constituições
II. ENTRE BATINAS E REVOLUÇÕES
Raynal, precursor involuntário
Abade Grégoire e os escravos: fraternidade e Luzes
De Pradt: Independência sem Revolução
Batinas brasileiras, ventos atlânticos
O crime do padre Leonardo
III. OS FIOS DE UMA TEIA
Emiliano Mundurucu: que o Haiti seja aqui
A Revolução do Haiti nos primeiros periódicos brasileiros
O livreiro Plancher e a circulação comercial da Revolução
O haitianismo espalha-se e ronda o dr. Meirelles
Uma Sociedade Gregoriana?
Considerações finais
Referências
Página final

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M84r Morel, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil escravista : o que não deve ser dito / Marco Morel. - 1. ed. - Jundiaí, SP : Paco, 2017. Recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Multiplataforma ISBN 978-85-4621-066-4 1. Haiti - História - Revolução, 1791-1804. 2. Escravos - Brasil - História Séc. XIX. I. Título. CDD: 972.94

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Em nome da Rosa.

Cena de combate entre escravos e senhores durante a Revolução Haitiana

“Para escrever a Ata da Independência precisamos da pele de um branco por pergaminho, seu crânio por escrivaninha, seu sangue como tinta e uma baioneta como pluma.” (Boisrond-Tonnere, revolucionário haitiano que redigiu a Ata da Independência do Haiti em 1804)

“Haiti é um farol elevado sobre as Antilhas, em direção ao qual os escravos e seus senhores, os oprimidos e opressores voltam seus olhares, aqueles suspirando, estes rugindo.” (Abade Henri Grégoire em 1824)

“Qual eu imito a Cristóvão Esse Imortal Haitiano, Eia! Imitai ao seu Povo, Ó meu Povo soberano!” (Emiliano Mundurucu, major do Batalhão dos Pardos em proclamação pelas ruas de Recife em 1824)

SUMÁRIO Folha de rosto Dedicatória Epígrafe Introdução: além do pânico e do engodo Apresentação I. A Revolução do Haiti – breve apresentação Cronologia Lideranças Vocabulário Trajetória de liberdade e violência A impossível matemática da classificação racial As primeiras Constituições II. Entre Batinas e Revoluções Raynal, precursor involuntário Abade Grégoire e os escravos: fraternidade e Luzes De Pradt: Independência sem Revolução Batinas brasileiras, ventos atlânticos O crime do padre Leonardo III. Os Fios de uma Teia Emiliano Mundurucu: que o Haiti seja aqui A Revolução do Haiti nos primeiros periódicos brasileiros O livreiro Plancher e a circulação comercial da Revolução O haitianismo espalha-se e ronda o dr. Meirelles Uma Sociedade Gregoriana? Considerações finais Referências Página final

ÍNDICE DE FIGURAS • Cena de combate entre escravos e senhores durante a Revolução Haitiana • Mapa da América Central e do Norte da América do Sul assinalando a posição do Haiti • Mapa do começo do século XIX da Ilha de São Domingos, mostrando a divisão territorial entre as colônias francesa (esquerda) e espanhola • Toussaint Louverture: escravo liberto que se tornou general e principal líder revolucionário • Cena da insurreição de escravos numa fazenda em Saint-Domingue, 1791: queimada de plantações ao fundo • Cerimônia vodu no Bois Caiman em 1791, marcando o início da Revolução Haitiana • Retrato e assinatura de Toussaint Louverture • Dessalines, trabalhador escravizado que se sagrou Imperador • Dessalines, na visão de pintor europeu contemporâneo, com ar feroz e segurando cabeça decepada de uma mulher branca • O trabalhador escravizado e cozinheiro Henri Christophe, um dos líderes revolucionários, sagrou-se Rei após chegar ao poder • André Rigaud, autoidentificado como mulato, foi um dos principais líderes da Revolução do Haiti • Pétion, mulato, combateu e depois se aliou aos escravos e foi presidente da República • Boyer, presidente do Haiti, assinou o acordo com a França, depois de resistir • Divisão sociorracial da população de São Domingos em 1789 • Os “horrores de São Domingos”: militares brancos enforcados em fileira de postes. Negros e mulatos eram tratados do mesmo modo pelos brancos • Mulher créolle e mulata cercada por duas escravas negras na colônia francesa de São Domingos • As 13 “combinações”: classificação racial – colônia francesa de São Domingos • As 128 frações: classificação racial – colônia francesa de São Domingos • Exemplo de combinações a partir do mulato: classificação racial – colônia francesa de São Domingos • Tabuada das misturas para ficar branco • Tabuada das misturas para ficar negro • Primeiras Constituições do Haiti • O abade Grégoire teve atuação decisiva na sessão da Convenção Nacional, Paris, em 4 de fevereiro de 1794, com a participação de escravizados e libertos, quando foi abolida a escravidão nas colônias francesas • O comerciante britânico Rainsford conversa em a lteridade com um militar haitiano na época da Independência • População escrava nas Américas segundo o abade De Pradt • Combate entre trabalhadores escravizados e tropas coloniais na colônia de São Domingos • Tropas formadas por negros nas colônias francesas no Caribe • Folha de rosto de Histoire de la République D’Haïti, de Civique de Gastine, editado por P. Plancher

• Moi libre (“Eu livre”) e Moi libre aussi (“Eu livre também”): legendas da época expressavam, nas imagens alegóricas, a expectativa de setores europeus de que homens e mulheres negros do Haiti poderiam partilhar em liberdade e prosperidade da civilização ocidental. Ambos, na pintura, portam o barrete frígio, símbolo da Revolução Francesa • Dr. Joaquim Cândido Soares Meirelles, pivô do medo da Revolução Haitiana no Rio de Janeiro em 1831 • Cipriano Barata, homem branco e acusado de ser um “malvado haitianista • O médico Jacintho Reis, futuro presidente da Academia Imperial de Medicina, publicou folheto elogiando o abade Grégoire em 1831

INTRODUÇÃO: ALÉM DO PÂNICO E DO ENGODO Em meados da década de 1770, numa igreja do interior da França, um abade chamado Guillaume-Thomas Raynal condenou com veemência a escravidão e o domínio colonial mantidos por seu país em outros territórios – tema, aliás, recorrente entre alguns pensadores do Iluminismo e também em certa tradição cristã. Em tom bíblico e profético, visando o convencimento dos interlocutores, ele predicou, inclusive, o possível surgimento de um Spartacus1 negro em algum ponto das Américas que libertaria a todos, cativos e senhores, dos males da escravidão, conduzindo seus irmãos de infortúnio na luta contra as injustiças em direção a novos céus e novas terras. Quando, duas décadas depois de tal pronunciamento (que foi publicado em livro e parecia inverossímil às pessoas ditas de bom senso), atravessam o oceano as notícias sobre os eventos na colônia caribenha de São Domingos e, sobretudo, a imagem de Toussaint Louverture, um escravizado que, liberto, estava à frente de insurreição de milhares de cativos que se espalhava por todos os cantos – não faltou quem tentasse culpar o religioso pelos acontecimentos que pareciam transformar suas predições em realidade. O próprio Toussaint afirmaria mais tarde ser ele o líder anunciado por Raynal – enquanto, este, negaria a intenção de instigar uma revolta. A Revolução do Haiti (nome da ex-colônia de São Domingos após a Independência) representa uma referência maior na história da humanidade. Por mais que tal afirmação soe ufanista e apologética, ela tem sentido preciso e situado historicamente. Desta revolução resultaram: o primeiro

Estado nacional oriundo de uma insurreição de escravos no mundo; o primeiro país a abolir a escravatura e a segunda Proclamação de Independência, nas Américas. Os protagonistas principais foram os trabalhadores escravizados da “Pérola das Antilhas” que, interligados paradoxalmente à Revolução Francesa, destruíram a escravidão, o domínio colonial, exterminaram a maioria da população branca e as tropas de Napoleão Bonaparte enviadas para combatê-los, derrotando militarmente três potências coloniais, Espanha, Inglaterra e França. Gerou-se, então, o Haiti, nação resultante de um processo insurrecional que se transformou em revolucionário, prolongando-se em longa guerra civil e externa ao mesmo tempo, realizada por cativos, libertos e homens livres (negros, mulatos e raros brancos) que, por esta via, chegaram ao poder, fato único na história. E, aparentemente, o avesso da história do Brasil. Mesmo formando uma grande ilha, São Domingos não estava isolada do mundo, nem seus protagonistas se encontravam isentos de limites e contradições, apesar de grandeza de seu feito. A Revolução se institucionalizou, terminou e passou a ser um elemento de memória histórica e pesquisa historiográfica. A história do Haiti independente e pós-revolucionário está marcada por intervenções de potências estrangeiras e agudas contradições internas que engendraram mais uma sociedade desigual.

Mapa da América Central e do Norte da América do Sul assinalando a posição do Haiti

Mapa do começo do século XIX da Ilha de São Domingos, mostrando a divisão territorial entre as colônias francesa (esquerda) e espanhola

NOTAS

1. Spartacus foi o principal líder da grande rebelião de escravos (Terceira Guerra Servil) na Itália, entre 73 e 71 a.C., colocando em risco o centro do Império Romano. A partir de meados do século XVIII, torna-se figura lendária na literatura ocidental.

APRESENTAÇÃO O objetivo geral deste livro é tratar historicamente de repercussões da Revolução do Haiti (1791–1825) no Brasil escravista (c. 1800–c. 1840), com foco, sobretudo, nos setores não escravizados da sociedade brasileira e em recepções não completamente negativas, ou mesmo positivas, dos eventos caribenhos. O livro, que não segue ordem cronológica, está organizado em três partes. Primeiro, um apanhado (abrégée, como dizem os franceses) histórico da Revolução Haitiana com eventos marcantes, pequenas biografias de lideranças, cronologia e um vocabulário básico, perpassados por interpretações e indagações – itens que me parecem úteis ao leitor brasileiro, em geral, não familiarizado ao tema. No mesmo sentido, elaborei um quadro resumido do perfil político e social das primeiras Constituições haitianas, promulgadas por dirigentes que viveram na condição de escravizados, libertos e livres (mulatos). E incluí rápidos apontamentos sobre um sugestivo sistema de classificação racial publicado em 1796 por Moreau de Saint-Mery, colono em São Domingos, com alguma repercussão no Brasil. Na segunda parte, encontra-se um panorama das primeiras reflexões sobre a Revolução do Haiti através do pensamento político dos abades franceses Raynal, Grégoire e De Pradt. Geradores de perspectivas entrelaçadas e próximas, mas também conflitantes entre si, estes autores foram importantes (mas não únicos) mediadores na percepção da Revolução Haitiana no Brasil. Contemporâneos e agentes históricos dos episódios, expressavam transformações e visões de mundo de sua época, na qual tiveram impacto. Apresento síntese de suas formulações sobre escravidão,

independência nacional, colônias e, particularmente, sobre o Brasil. Encerrando esta parte, aponto fragmentos dos vínculos, diretos ou indiretos, entre os referidos abades, a Revolução do Haiti e figuras variadas (expressivas nesta diversidade) do clero brasileiro. Desde os que se encontravam institucionalmente consolidados na hierarquia da Igreja, como monsenhor Miranda Malheiros, d. Romualdo Seixas e frei Monte Alverne, aos desviantes e mal conhecidos padres Joaquim de Souza Ribeiro e Leonardo Correa da Silva, que demonstraram afinidade com o Haiti no período revolucionário. Em terceiro lugar, os fios de uma teia. Ou seja, as repercussões dos eventos haitianos no Brasil são vistas (através de palavras impressas e rumores falados) pelo foco centrado em personagens brasileiros letrados e não escravizados, cuja maioria, por motivos diferentes, nunca teve destaque na memória e historiografia nacionais. Tais protagonistas exprimem apropriações distintas dos exemplos haitianos e vivenciaram de forma intensa os momentos iniciais da construção política da nação brasileira. Seja envolvendo setores livres e pobres, oprimidos do ponto de vista étnico, social e político (o major da Milícia dos Pardos, Emiliano Mundurucu e outros ainda menos conhecidos) e profissionais liberais e redatores de jornais, brancos ou “pardos” (em destaque o Dr. Joaquim Meirelles e, ainda, Hipólito da Costa, Cipriano Barata e Borges da Fonseca, ao lado de outros). E assinalo a presença do livreiro e editor francês Pierre Plancher, no Rio de Janeiro, como ponto de conexão das relações comerciais e culturais com o Haiti, inclusive, em defesa de sua independência. Tais protagonistas, interligados a outros, compuseram uma teia de palavras e articulações não (totalmente) hostis ao multifacetado exemplo haitiano, com frequência elogiado e apontado como positivo – o que não significa que fossem todos abolicionistas, nem que defendessem abertamente os escravos como agentes históricos ou a forma de governo

republicana. Eram, predominantemente, antiescravistas, antirracistas e emancipacionistas, isto é, pregavam uma ampliação dos direitos de cidadania e emancipação gradual da escravidão (com exceção de Mundurucu e outros de perfil semelhante, como o padre Leonardo que, em determinados contextos, apontaram para uma abolição mais imediata do trabalho escravo). Tinham percepção complexa e com nuances da Revolução Haitiana (que não era vista pejorativamente pelos “horrores” ou “coisa de escravo”) e das questões e mediações que a envolviam no Brasil: não a rejeitavam em bloco, nem faziam dela um espantalho. Ao final do volume, traço sintéticas considerações finais, para retomar as principais questões e conclusões apresentadas, explicitando a conformação de um determinado modelo haitiano de repercussão no Brasil. E, encerrando, listo fontes documentais e bibliografia utilizadas (destacando, nesta, os trabalhos específicos sobre a Revolução do Haiti), além de apresentar índices iconográfico e das tabelas. O livro baseia-se em fontes documentais diversas: imprensas (periódica e folhetos) brasileira, francesa e haitiana do período; textos da época (livros e avulsos) sobre os episódios, muitas vezes escritos por protagonistas diretos, incluindo textos dos três abades franceses aqui estudados; papéis oficiais e repertórios biobibliográficos. Baseei-me em documentação do período (c. 1791–c. 1840) situada, em sua maioria, em arquivos brasileiros, franceses e norte-americanos (algumas disponíveis pela internet, cf. indicações), incluindo as que me foram generosamente indicadas por colegas e amigos historiadores, cujos agradecimentos aparecem nas respectivas citações. Entre tais papéis estão registros oficiais, manifestos, tentativas de controle ou de subversão, mas também eventualmente a dimensão oral registrada, aprisionada e, ao mesmo tempo, expressa de escravizados e não escravizados. Utilizei historiografia atual sobre o assunto ou relacionada, especialmente de língua francesa, inglesa,

espanhola e portuguesa (numa tentativa de superar a fragmentação de áreas linguísticas que algumas vezes caracteriza a historiografia sobre o Caribe e a escravidão), englobando escritos de perspectivas teóricas heterogêneas, do marxismo à história cultural, da história atlântica da escravidão à história política – todos contribuindo, de algum modo, para o conhecimento de tema tão abrangente e complexo. E busco reafirmar, assim, a coerência da história enquanto disciplina, apesar das heterogeneidades, numa perspectiva de superar a fragmentação.

MINHA RELAÇÃO COM O TEMA Por que redigi este livro? A Revolução do Haiti sempre me despertou curiosidade e interesse, seja por sua relevância e originalidade, seja pela camada de silêncio e desconhecimento que envolve tal assunto no Brasil, salvo alguns especialistas e referências esparsas. Convivo com o tema e suas questões há cerca de três décadas, variando o grau de imersão. Ainda durante a ditadura civil-militar, em 1983, enviei carta ao historiador Nélson Werneck Sodré solicitando referências bibliográficas sobre o assunto. Do alto de meus 23 anos, recebi a resposta em caligrafia elegante que lembrava o modo pausado de falar do veterano escritor, jornalista, militar e pensador marxista. Ele indicava-me, entre outros, o recém-publicado livro de Eugene Genovese, Da Rebelião à Revolução, mas confirmei a ausência de publicações no Brasil. Dois anos depois, cometi um incipiente artigo no Jornal do País, de Neiva Moreira e editado por Ivan Alves: “O exemplo haitiano teve ligação com a História do Brasil” (23/05/1985). Eram contatos com os companheiros de lutas da geração de meu avô Edmar, autor, entre outros livros, de Vendaval da Liberdade (Dragão do Mar) sobre a participação de amplos setores da sociedade no diferenciado processo abolicionista no Ceará e A Revolta da Chibata,

focando a rebelião de marinheiros nas águas da Guanabara em 1910, uma 2

das fontes de inspiração para minha pesquisa . Apresentei comunicação no Congresso Mundial do Bicentenário da Revolução Francesa, na Sorbonne, em 1989, onde afirmei que o impacto da Revolução do Haiti fora maior que o da Revolução Francesa no Brasil. Era, então, uma hipótese de trabalho3. Participei deste evento (coordenado pelo historiador Michel Vovelle durante governo de François Mitterand) pelo convite de minha orientadora de mestrado, Célia Freire d’Aquino Fonseca, e foi minha primeira participação em um encontro acadêmico internacional. Quando podia, esporadicamente, pesquisava, colhia materiais, textos e indicações, inclusive durante estadia na França, onde tive a oportunidade de conversar sobre a temática nos anos 1990 com François-Xavier Guerra (meu orientador no doutorado e destacado historiador da política dos países ibero-americanos), que assinalou a importância do exemplo haitiano no contexto das Independências na América espanhola e a referência do pensamento do abade De Pradt, sugerindo conexões com o Brasil. Já no começo do século XXI, levei adiante o interesse, até então disperso, e resolvi “colocar no papel” o que tinha acumulado. E fiz a seguir outras pesquisas, a partir do diálogo estimulante (e decisivo para a continuidade deste trabalho) com Flávio dos Santos Gomes, importante historiador brasileiro sobre a escravidão, quando publicamos artigo conjunto em 20054. João José Reis, Flávio Gomes e eu chegamos, durante algum tempo, a ensaiar um trabalho a seis mãos sobre o tema, que não foi adiante, infelizmente – mas a experiência enriqueceu meu conhecimento e alimentou a motivação. Espero não os decepcionar com este trabalho individual. Devo dizer que as diferentes abordagens desenvolvidas por estes e outros historiadores brasileiros, como Luís Mott, Rafael Marquese, Célia M. Azevedo, Sidney Chalhoub, Luiz Geraldo Silva e Marcus de Carvalho,

além de autores mais recentes, só fizeram contribuir para minha compreensão do assunto, justamente por suas complexidades e diversificações. Em meados de 2004, o trabalho já se achava traçado em linhas gerais e parcialmente redigido numa versão inicial, com pesquisas em andamento. Realizei sistematicamente, até 2017, leituras e pesquisas que trouxeram elementos documentais e historiográficos decisivos para minhas análises, conclusões e redação final. Recebi Bolsas de Pesquisa para estudar este assunto através do Prociência (2012–2015, Uerj/Faperj) e do CNPq (2014–2017). A leitura crítica e o estímulo dos amigos Mário Theodoro e Luciana Jaccoud foram decisivos para a finalização do trabalho, assim como a presença solidária e amorosa de minha companheira Cristina e de minha filha Ana Paula, sempre criativa. Menção especial ao apoio de Maria Regina de Assis. Do presente texto, que vem a público agora pela primeira vez integralmente, alguns extratos foram publicados5. Cabe assinalar que parte deste trabalho foi elaborada em momento peculiar: a presença militar brasileira no Haiti desde junho de 2004. Embora fuja do recorte temático e do período escolhidos, tal episódio e seus significados compõem o tempo presente do historiador. Ainda que sob o manto discursivo de “ajuda humanitária” e combate ao “caos”, a atuação militar brasileira no país caribenho, com o maior contingente na Minustah (United Nations Stabilization Mission In Haiti), teve, como motivação central, as aspirações do Brasil em obter uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Agindo como força auxiliar dos Estados Unidos (que, junto com a França, participou diretamente da intervenção que depôs o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide), o Brasil ajuda a manter não só uma situação de excepcionalidade institucional como a controlar uma população majoritariamente pobre e miserável. A tentativa de legitimação desta atividade recebeu, inclusive, uma pitada de marketing através da promoção do futebol brasileiro.

Os gastos com projetos governamentais brasileiros visando alguma assistência social ou mesmo eventuais investimentos na economia haitiana são nitidamente inferiores às despesas militares e vêm sendo cortados. Há que assinalar a atuação de apoio de estrangeiros no Haiti, entre os quais a brasileira Zilda Arns: presente no momento do terremoto que matou cerca de 300 mil pessoas e deixou 1,5 milhão de flagelados em 2010, deixou ali a vida em testemunho de solidariedade. Em tal contexto, houve (e ainda há) um contingente expressivo de haitianos buscando refúgio no Brasil, legal ou ilegalmente. Foram recebidos de maneira desigual: algumas vezes tiveram a entrada dificultada ou proibida no país, em outras foram oficialmente bem-vindos, como na decisão do governo federal em setembro de 2015, quando se convocou abertamente a vinda dos haitianos ao país. O que gerou um rumor (ainda existem no século XXI, pelas “redes sociais” e além delas) de que o governo “comunista” (?) estaria formando um exército de 20 mil soldados haitianos no Brasil. Rumor que só pode ser encarado como humor, de mau gosto – expressando mentalidade de longa duração quanto aos rumores de haitianismo no século XIX. Havia 44 mil haitianos formalmente reconhecidos como refugiados no Brasil em fins de 2015, em sua maioria, pobres ou miseráveis e foragidos do furacão de 2010, mas também profissionais qualificados e com formação universitária. Muitos haitianos encontram dificuldades de adaptação diversas e têm que lidar no cotidiano com o preconceito, frequentemente explícito, de parcela da população brasileira. Preconceito reforçado, pois resulta da soma da estranheza aos estrangeiros em geral (sobretudo não europeus) com a discriminação racial, adicionado à crise econômica que aumenta o desemprego. Enfrentar tal xenofobia à brasileira, com tendências fascistas, é um dos desafios para alcançarmos uma sociedade plural, próspera e justa, fazendo com que a presença de haitianos, por caminhos

históricos imprevistos, mas longamente entrelaçados (e camuflados), ajude a nos aproximarmos de um estado de liberdade e felicidade coletiva.

CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS Antes de passar à parte central do livro, considero importante assinalar questões historiográficas e conceituais que perpassam o conjunto do texto e, eventualmente, facilitam a compreensão dos temas aqui tratados. Retomo o já dito páginas atrás: o objetivo deste trabalho é tratar historicamente de repercussões da Revolução Haitiana (1791–1825) no Brasil escravista (c. 1800–c. 1840), com foco, nomeadamente, nos setores não escravizados da sociedade e em recepções não completamente negativas, ou mesmo positivas, dos eventos caribenhos no Brasil. Cabe assinalar que este não é o que se convenciona chamar de um trabalho de história da escravidão (a qual aparece de forma destacada), mas uma história de relações políticas e culturais, envolvendo, está claro, interesses econômicos, hierarquias sociais e o contexto em que se deram. Ou seja, reconhecendo a perspectiva enunciada por Marx (os seres humanos são protagonistas, mas em determinados limites socioeconômicos e ideológicos) e buscando situar os conflitos sociais, porém, privilegiando dimensões e nuances (como as práticas políticas, o exercício do poder, conceitos, ideias, identidades, representações culturais e simbólicas) que o exclusivo determinante econômico estrutural, ou uma historiografia sociocultural sem interligação política efetiva não poderiam captar com amplitude em suas dinâmicas e importância, também, determinantes. Não é, especificamente, uma reconstituição da fortuna literária/intelectual da Revolução Haitiana no Brasil, embora tal dimensão componha parte do estudo. Em outras palavras, o enfoque do trabalho aqui apresentado situa os ecos da Revolução do Haiti nas transformações dos espaços públicos

(políticos e culturais) do Brasil nos anos 1820-18306. Esta é a posição assumida por mim, que não invalida, obviamente, outras perspectivas. A junção de tal ponto de vista com as fontes documentais encontradas e utilizadas resultou na identificação de setores não escravizados e (de algum modo) letrados que não repudiavam totalmente a Revolução do Haiti, expressando publicamente o que consideravam como seus aspectos 7

positivos . Permitindo, assim, a inteligibilidade de outros atores históricos e suas manifestações, além da dicotomia central senhores/escravos = repúdio/repetição à Revolução Haitiana e rompendo, portanto, a percepção de uma rejeição monolítica das genericamente chamadas elites no Brasil sobre o tema na primeira metade do século XIX. Neste período, pelas estimativas demográficas, um terço da população brasileira era composta de 8

pardos livres . Não há dúvidas de que a Revolução do Haiti quebrou a economia agrícola da mais rica colônia francesa no Caribe, gerando momentaneamente, portanto, uma valorização do preço de produtos como cana-de-açúcar e café no mercado internacional, favorecendo durante certo período as regiões produtoras concorrentes. Entre as áreas escravistas que mais se beneficiaram estavam o Brasil, Cuba e Sul dos Estados Unidos. Neste sentido, é possível afirmar que a Revolução Haitiana teve como efeito, no Brasil, o reforço das relações escravistas, conforme já assinalaram historiadores como Herbert S. Klein e B. J. Barickman. Ao mesmo tempo, em complemento, as transformações oriundas das lutas dos trabalhadores escravizados em São Domingos estavam entre os fatores que pressionaram a Grã-Bretanha a abolir o tráfico de escravos em 1807, ou seja, três anos depois da Independência do Haiti, gerando um combate da principal potência marítima europeia contra tal comércio. Como é sabido, o tráfico atlântico continuou no Brasil até cerca de 1850 e a abolição oficial seria a última das Américas. Entretanto, o tema das

repercussões da Revolução Haitiana em terras brasileiras não se esgota nestes aspectos, ainda que fundamentais: o fortalecimento das relações escravistas no início do século XIX e a demora em se efetivar o fim do tráfico e da extinção oficial do escravismo no Brasil. Há um ponto importante para esclarecimento. Qual a definição de “haitianismo”? Este neologismo (com perdão da rima) tem dois principais significados na história do Brasil. Em primeiro lugar, cronologicamente, foi uma expressão de época. Haitianismo (e seus derivados) tinha sentido acusatório e fazia parte da lógica de medo e ocultação: a palavra passou a existir no Brasil no ano marcante de 1831, especialmente na Bahia e no Rio de Janeiro, e não era inocente. Antes do vocábulo, tais inculpações já existiam. Embora repetido à exaustão na imprensa, no Parlamento, em conversas particulares e até em processos judiciais, o termo não chegou a frequentar dicionários. Tinha característica pejorativa: indicava o incitamento à rebelião de escravos, apontava uma iminente ação destruidora e violenta da ordem social e política, de conotações raciais, visando desqualificar adversários, em geral, inocentes de tais acusações. Associava automaticamente republicanismo, antirracismo, crítica da escravidão e abolicionismo, na intenção de enfraquecê-los. Ou seja, pode-se dizer que, nesta linha, haitianismo tinha uma acepção antihaitianista, paradoxalmente. Assumir explicitamente a condição de haitianista no Brasil da primeira metade do século XIX era um crime hediondo, pelas leis e pelos costumes predominantes. Ou seja: ainda que favoráveis a aspectos da Revolução do Haiti, os protagonistas não assumiam tal denominação derivativa, salvo exceções. Não deixa de ser instigante perceber que os mais intensos rumores fantasmagóricos deste gênero surgiram em duas províncias (Bahia e Rio de Janeiro, cf. Parte IV), cujos proprietários de terras e escravos estavam entre os mais beneficiados pela ruína da colônia de São Domingos que gerou um

crescimento da produção agrícola em outras áreas escravistas. Tais proprietários, portanto, tinham interesse em espalhar os rumores que amedrontavam para intimidar, como repressão preventiva e, assim, evitar que tais movimentos “haitianistas” ocorressem no Brasil. Outra significação de haitianismo, desta vez tendencialmente positiva, surge na historiografia brasileira de fins do século XX e começo do XXI: indica a disposição dos protagonistas de seguirem (ou não) o exemplo da Revolução do Haiti. Evidentemente, sem a carga acusatória da época, mas trazendo questões que envolvem, em última instância, qualificações. O nó da questão se desloca. Ultrapassado um século da Abolição oficial da escravidão no Brasil, não é mais o embate direto em torno das transformações (ou não) de uma sociedade escravista, mas, agora, trata-se de empreender esforços interpretativos para dimensionar os sentidos e as heranças do escravismo na sociedade nacional. Os dois significados – o conceito de época e a categoria analítica historiográfica – ainda se mesclam e pode-se considerar que estão fadados a conviverem, nem sempre harmoniosamente. O que os diferencia é justamente a distância (na medida em que se forjaram em épocas, respectivamente, pré e pós-abolição) e os sujeitos enunciadores. O contexto altera o texto. Um sentido era acusatório, o outro pode vir a ser elogioso. No interior do campo historiográfico brasileiro, por sua vez, colocam-se como que duas principais tendências opostas: havia, ou não, haitianistas no Brasil na primeira metade do século XIX e com ênfase, em geral, ou no esvaziamento das referências positivas à experiência haitiana ou, de outro lado, na busca de exemplos de protagonismo dos trabalhadores escravizados. Porém, o tema tem mais nuances e complexidades e não tenho a intenção de analisar aqui tal historiografia. Apenas, me posiciono diante de algumas balizas principais.

Durante cerca de duas décadas, desde início dos anos 1980 até começo do século XXI, a principal – senão única – referência sobre o tema na historiografia brasileira era um curto (mas expressivo e inovador) texto de Luiz Mott, que apontava inclusive a complexidade das repercussões que não se limitavam ao ângulo negativo do episódio. Mott demonstrava 9

repercussões recebidas positivamente . A obra clássica Os Jacobinos Negros, do caribenho (Trinidad) Cyril Lionel Robert James (1901–1989), foi publicada no Brasil em 2000: minuciosa pesquisa e pioneira interpretação marxista da Revolução do Haiti, editada inicialmente em 1938, enfatiza o papel dos escravizados como agentes históricos e tem como pano de fundo os nacionalismos africanos e a discriminação racial nas Américas vividos pelo autor. “O emancipacionismo revolucionário e o nascimento do Haiti” é o título do capítulo 6 do livro de Robin Blackburn, A Queda do Escravismo Colonial 1776–1848, publicado no Brasil em 2002. Mais recentemente apareceram trabalhos acadêmicos (de brasileiros ou traduzidos em português) sobre a Revolução do Haiti, alguns enfocando suas repercussões no Brasil, com abordagens diferenciadas, conforme bibliografia ao final do volume e algumas indicações ao longo do texto. Apesar da relevante contribuição dos textos indicados acima, o tema e a abordagem ainda podem gerar mal-entendidos. À primeira vista, num enfoque apressado, seria possível dizer, por exemplo, que o assunto não existe. Aliás, vem a propósito a reflexão do antropólogo haitiano MichelRolph Trouillot ao afirmar que a própria Revolução Haitiana é percebida 10

amiúde como impensável, isto é, um não acontecimento . Como relacionar experiências históricas tão díspares como a unitária monarquia escravista brasileira e a república construída por ex-escravos? Como aproximar o primeiro país das Américas a abolir o cativeiro, com o último a fazê-lo? Daí ser compreensível constatar que a historiografia brasileira ainda não tratou devidamente do tema, mas o percebeu, com frequência, na perspectiva de

antagonismo e distanciamento de experiências opostas. Ou então compreendido como ideologia, no sentido de mistificação, manipulação, falsificação do real, instrumentalização e termos equivalentes. Parece-me que nem a sociedade brasileira era coerente e sem contradições, nem os resultados políticos e sociais obtidos no Haiti entre 1791 e 1825 podem ser qualificados num viés único. Ou seja, uma experiência histórica multifacetada repercutia numa sociedade também diversificada. Outro pressuposto assumido por mim diz respeito à conformação de um modelo haitiano. No sentido de um modelo político, isto é, de práticas políticas e sociais e referências culturais. Ora, na medida em que a Revolução do Haiti pode ser compreendida como a destruição quase simultânea de domínio colonial e senhorial, conduzida por setores oprimidos do ponto de vista étnico e social (sobretudo, mas não apenas, trabalhadores escravizados, pois se destacaram negros libertos e mulatos livres), gerando Independência e Abolição interligadas e efetivadas por meio violento de guerras e ruptura, tais características se diferenciam do que foi o processo brasileiro de independência e abolição. Logo, se conclui daí que o modelo haitiano não foi aplicado e sequer existiu no Brasil. Tal perspectiva seria promissora se não ignorasse a possibilidade de recepções variadas: releituras, reinterpretações e adaptações, segundo as próprias conveniências e posições dos protagonistas brasileiros, nos respectivos contextos. Ou seja, relações. Penso mais em textos alterados pelos contextos, do que o contrário. Um pequeno alerta conceitual. Não se trata do já desgastado e impreciso recurso da busca de influência (neste caso, do Haiti sobre o Brasil), nem de imitação (do Brasil em relação ao Haiti) que geram o mesmo impasse: impossibilidade de aprofundar o conhecimento, pois tais escolhas são questões mal formuladas que levam ao recorte de um objeto inexistente. Nem de uma história comparada, no sentido de aproximar realidades

estanques ou acompanhar passo a passo os dois processos. Mais do que buscar influências, procurei identificar e compreender as metamorfoses geradas entre a Revolução do Haiti e suas repercussões no Brasil, perpassadas por mediações variadas, com presença nos espaços públicos de expressões políticas, sociais e culturais. A questão de serem (ou não) ideias-fora-do-lugar, debate que marcou o pensamento social no Brasil nos anos 1970/80, me parece ultrapassada, fora 11

do lugar . Como afirmou o historiador britânico Robin Blackburn, o exemplo haitiano não precisaria fornecer, em outras localidades, um exato paralelo que levasse os protagonistas a assumirem conflitos com o objetivo de realizar um terrível banho de sangue. Ao mesmo tempo, prossegue Blackburn, o pressentimento e o conhecimento dos métodos revolucionários e das vitórias obtidas eram fonte de encorajamento que atravessavam fronteiras12. Não houve, portanto, um modelo sólido e imutável que, na tentativa de pousar em terra firme, deveria ser aceito em bloco ou rejeitado. O modelo, heterogêneo, mas delineado, se configura através de vínculos, correlações e percepções – que fazem parte ativa das dinâmicas sociais. Nesta acepção, o modelo político se constitui de um conjunto de referências que, baseado em episódios, personagens, ideias e processos, é percebido e elaborado enquanto representação política e cultural, ganhando, assim, significados e contornos próprios em contextos diversos. É importante insistir: havia mediações culturais e políticas (relacionadas, ainda que sem determinismo linear, a interesses econômicos e sociais) entre a Revolução do Haiti e o Brasil escravista, mediações decisivas para a elaboração do modelo multifacetado e suas metamorfoses. Havia, portanto, mediadores ou intermediários. Pensadores, autores, forças sociais, protagonistas iletrados ou que não pautavam sua atuação na esfera cultural impressa, agentes de interesses econômicos como a expansão política, militar e comercial a partir

das relações capitalistas na Europa, trajetórias individuais, instituições, projetos de nação, relação com governos de outros países, enfim, as próprias variações conjunturais geravam um filtro (nem sempre perceptível) entre os dois polos. Não se trata, pois, de considerar que tudo que aconteceu no Haiti precisaria ter ocorrido (ou tentado) exatamente do mesmo modo no Brasil para se reconhecer a existência de um modelo haitiano13. Ao contrário, tal menção aparece no Brasil na medida em que a Revolução Haitiana foi aqui percebida e representada por diferentes perspectivas e agentes históricos contextualizados, transformando-se, pois, em exemplo e referência, parcialmente positivos e com nuances. Não era falsificação, mas, sim, reelaboração, pois se tornava efetiva força política. Perspectiva que, aliás, costuma ser aplicada a outros marcos históricos, como a Revolução Francesa, o pensamento Ilustrado, os Liberalismos – assim como as revoluções socialistas e nacionalistas do século XX. É importante reiterar que a experiência haitiana não era monolítica e possuiu tendências diferentes e até contraditórias entre si – compreensão que aparece ao longo do livro e é reforçada pela recente historiografia internacional. Do mesmo modo, as recepções e reações a tais eventos e ideias no Brasil colonial e imperial também eram variadas e, até, antagônicas em alguns casos: os registros escritos abrangiam, sobretudo, os setores letrados (apesar da redundância) e não escravizados da sociedade, embora também pudessem transitar pelo universo dos cativos e variassem em cada contexto. Compreender que a circulação de palavras – impressas, manuscritas ou faladas – ultrapassava as fronteiras sociais e nacionais é outro pressuposto importante, derivado de estudos sobre história e imprensa que já empreendi. E tal circularidade, perpassando as diferenças, as alianças e os conflitos políticos e sociais, tornava-se mais intensa em momentos de 14

explosão da palavra pública . A Revolução do Haiti era bem conhecida no

Brasil entre as elites intelectuais e políticas, numa paradoxal mistura de discussão e ocultação. E não apenas entre elas. Analisadas preferencialmente como grande medo propagado aos quatro ventos, fantasma resultante de uma mistura de temor e culpa das elites dominantes, por um lado, e, de outro lado, em consequência e reação a esta perspectiva, como boato, exagero e falsidade, visando reforçar a manutenção do escravismo – as relações e repercussões da Revolução do Haiti no Brasil acabaram elididas e não compreendidas em sua complexidade e diversificação. Tornaram-se elas próprias um não acontecimento. Ambas as visões – o pânico e o engodo – foram as mais perceptíveis e predominantes entre as elites econômicas e políticas: explícitas na consciência dos protagonistas, torna-se às vezes difícil discernir onde começava uma e acabava outra. Este é um ponto firmado, comprovado e facilmente identificável nas fontes documentais da época, bem como na historiografia recente, com trabalhos fundamentados e consistentes, sem contar as referências esparsas em muitos autores, como se pode verificar ao longo do texto e na bibliografia. Mas cristalizar o conhecimento apenas neste enfoque é reproduzir o círculo que leva, em última instância, a perpetuar a ocultação e o desconhecimento, ou seja, a invisibilidade. Como apontado aqui, considero tais imbricações insuficientes para a compreensão do tema e das questões colocadas. O haitianismo, enquanto enunciado de incriminação, compunha parcela do modelo haitiano no Brasil oitocentista. Neste sentido estrito e acusatório, (quase) não havia haitianistas no Brasil da primeira metade do século XIX entre os setores letrados. Mas não se pode ignorar as diversificadas formas de resistência escrava por mais de três séculos como, também, a circulação de tais temas entre os setores pobres livres (e letrados em diferentes graus) da sociedade, gerando fugazes, mas expressivos, relâmpagos de referência explícita ou de

sintonia cronológica à Revolução do Haiti no universo da população pobre e oprimida do ponto de vista étnico e social: cativos, libertos e livres15. O presente trabalho inclui setores letrados e/ou livres entre os que não repudiavam em bloco a Revolução Haitiana. Entre as repercussões completamente negativas, e as positivas, havia nuances, interligações, variações e paradoxos, gerando um modelo ao mesmo tempo delimitado e multifacetado. É usual denominar como Revolução os acontecimentos da colônia francesa de São Domingos que resultaram na Proclamação da Independência do Haiti: desde a época dos eventos, até tendências atuais da historiografia16. Mesmo que os significados do vocábulo tenham mudado ao longo destes dois séculos (e ainda que possa haver objeções quanto a ser um tipo acabado e perfeito de revolução), há muitos elementos que apontam 17

para esse sentido . O caráter de ruptura violenta das estruturas políticas e sociais e dos meios de produção vigentes; homens, mulheres e grupos sociais oprimidos, tornando-se protagonistas principais e ascendendo ao poder; a criação de novos símbolos e referências (e a recriação, ou apropriação, de símbolos antigos) – são argumentos fortes para a definição do perfil revolucionário, no sentido moderno, ainda que em vários momentos alguns dos protagonistas tenham expressado valores tradicionalistas e até não ocidentais. A dimensão revolucionária, pois, perpassa e ultrapassa a dicotomia novo-tradicional e não implica em delimitar um exemplo de perfeição irretocável e sem contradições. Para aceitar tal denominação revolucionária há, portanto, um pressuposto: relativizar a visão messiânica, moralista e anti-histórica que só considera como revolução um tipo ideal, puro, sem contradições e ainda por se realizar, ou irrealizável. Neste sentido, outros processos históricos denominados de revolução, na Era Contemporânea, não estão isentos de paradoxos e, sobretudo, de permanências tradicionais, ambiguidades e

reprodução de outros formatos de desigualdade e dominação. Com o Haiti, não poderia ser diferente. Corre-se, assim, o risco de perder a especificidade e mesmo o significado e amplitude que os episódios e personagens tiveram em sua época, dentro e além dos limites do seu território18. Foi uma Revolução atlântica que viajou pelas Américas e Europas e tocou até territórios no oceano Pacífico. Que a escravidão e o domínio colonial foram abolidos na antiga colônia de São Domingos, ou melhor, abatidos, não há dúvida. Porém, assinala-se a manutenção (ou reinvenção) de valores coloniais e desigualdades no Haiti pós-revolução: a cristalização do pertencimento racial, a preservação da grande propriedade rural com a exploração intensa dos trabalhadores pobres, ex-escravizados; o autoritarismo político e a militarização da política. A implantação de outras formas de controle social e a elaboração de símbolos de distinção e até de nobreza no Haiti pós-independente são alguns dos fatores apontados por estudiosos, relacionados à decisiva inserção na economia internacional em posição subalterna diante de potências como França, Inglaterra e EUA. Uma tendência na recente historiografia haitiana e sobre o Haiti, em contraponto à visão tradicional e ufanista, tem realçado os conflitos internos e as permanências de relações 19

desiguais na sociedade durante e após a Revolução . Porém, não pretendo aqui olhar os acontecimentos de frente para trás, mas, sim, compreendê-los em seus contextos. A Revolução, concebida como movimento histórico, começou, desenvolveu-se e encerrou-se. Aproximando duas categorias conceituais, modelo e Revolução, assinalo outro possível mal-entendido quanto ao caso do Haiti: no sentido do senso comum e da memória histórica, não é geralmente considerado um bom exemplo para nortear valores políticos potencialmente transformadores, na passagem do século XX ao XXI. Seja, entre outros, para os movimentos de valorização da consciência negra e/ou dos que buscam novos caminhos de

libertação do capitalismo e de outras formas de autoritarismo do Estado. Afinal de contas, um processo revolucionário que, em diversos momentos, suscitou conflitos sangrentos entre negros e mulatos e que resultou na reinvenção de outros feitios de dominação, não deveria ser protótipo de memória que gerasse novas esperanças. Daí, gera-se mais um ponto de invisibilidade. A quem interessaria efetivamente lembrar a Revolução do Haiti além das memórias patrióticas haitianas (conflitantes entre si) e dos estudiosos especialistas no tema? O recorte cronológico aqui apresentado (1791–1825) para a Revolução Haitiana tem justificativa. O ano de início da insurreição dos escravos é um motivo sólido para demarcar o ponto de partida, embora alguns autores, sobretudo franceses, apontem 1789 como data inicial, ou ainda as rebeliões de mulatos em 1788. É frequente encerrar este processo em 1804, ano da Proclamação da Independência do Haiti. Tal data, embora importante na medida em que simboliza o início do surgimento formal da nação oriunda da rebelião de escravos, tem um sentido restrito, pois é reconhecido que uma embrionária configuração estatal de tipo autônoma já estava em prática desde 1797, com a chegada de Toussaint Louverture ao poder, ainda que sob a tutela nominal da França, ou seja, durante o período colonial20. E o tratado de reconhecimento da independência imposto pela França e apoiado pelas demais potências, em 1825, com suas brutais consequências sobre o futuro do país, pode ser considerado ponto final no processo revolucionário, ao mesmo tempo em que consolidava as bases desiguais da nova nação, gestadas já desde os primeiros tempos da insurreição. Entre 1804 e 1825, portanto, considero que ainda havia uma Revolução em curso (enfraquecendo-se), que se expressava, inclusive, na diversidade de experiências constitucionais, que podem ser consideradas como projetos pilotos para configuração de uma sociedade nacional.

A designação oficial de Haiti, derivada da língua de grupos indígenas do século XVI, surge em fins de 1803, daí que alguns pesquisadores prefiram utilizar Revolução de São Domingos. De qualquer modo, considero (na trilha de autores que me precederam, como os franceses Yves Bénot, Marcel Dorigny e Bernard Gainot, o anglo-norte-americano David P. Geggus, o norte-americano David B. Davis e a canadense Carolyn Fick) que a Revolução do Haitiana não foi uma ramificação da Francesa (embora a interligação entre ambas seja evidente e intensa pela cronologia e pela relação colônia-metrópole), mas um processo com lógicas, especificidades e dinâmicas próprias. Do lado brasileiro, o recorte cronológico deste livro centrou-se nas 21

primeiras décadas do século XIX, até fins do período Regencial (c. 1840) . Isto é, momento que engloba o desfecho da crise do sistema colonial lusobrasileiro, a Independência e os primeiros passos de configuração de um Estado nacional, com seus embates e (in)definições, bem como a formação da modernidade política liberal e os questionamentos quanto ao trabalho 22

escravo, que se reforçava e ampliava . A Conjuração Baiana (1798), por exemplo, que mereceria um estudo à parte e mais detalhado cotejando-a com as revoluções Francesa e do Haiti, não foi incluída na pesquisa23. Não se trata aqui, pois, de comparação entre as histórias brasileira e haitiana, mas de um trabalho de história do Brasil, situado na Era Contemporânea e, mais particularmente, na Era das Revoluções: o Brasil aparece integrante e integrado a esta história, com aproximações e contrapontos. Ao longo do livro não destaquei discursos fantasmagóricos de repúdio ao Haiti (embora eles apareçam no texto), visíveis nos registros da época no Brasil e em recentes trabalhos historiográficos, mas busquei focar nas referências que não eram (completamente) negativas e, algumas vezes, positivas. Procurei detectar, em meio a um visível oceano de pavores e

repúdio, as tendências relativamente subterrâneas das manifestações de apoio, adesão e elogios a determinados aspectos e personagens da Revolução do Haiti. Afinal, reafirmar que em uma sociedade escravista rejeitava-se a revolução antiescravista é (tomando emprestada uma expressão do historiador István Jancsó gerada em outro contexto) iluminar terrenos já iluminados. Neste sentido, a experiência haitiana foi exceção, não regra, no panorama internacional – e muitos estudiosos têm se dedicado a entender os motivos desta singularidade. Como assinalou o historiador D. Geggus, a revolução do Haiti é inesquecível e inigualável24. Não considerei como repercussão qualquer ação de escravizados, livres ou libertos contra o escravismo, mas, apenas, as referências explícitas à Revolução do Haiti. E cotejar resistências escravas brasileiras com o processo haitiano me parece um caminho promissor, conforme os já citados trabalhos de João Reis e Flávio Gomes, por exemplo. Os principais objetivos deste livro, portanto, são: estudar a história do Brasil, particularmente no que tange à repercussão da Revolução Haitiana; tratar de modo introdutório da história desta Revolução para o leitor brasileiro; mostrar que nem todas as repercussões eram negativas ou imaginárias e que se situavam, também, entre os setores não escravizados da sociedade brasileira; ressaltar que, apesar da invisibilidade historicamente construída, a Revolução do Haiti era bem conhecida no período entre as elites letradas e além delas; identificar intermediários e protagonistas que forjaram um modelo político haitiano multifacetado no Brasil no início do século XIX, através da elaboração de pensamento, debate e ações explicitamente políticos. Destaco e aproximo, como já afirmei, as referências não negativas em torno da Revolução Haitiana. Como pano de fundo, colocam-se a discussão racial e a ampliação do perfil dos agentes históricos na conformação de um Estado, de uma nação e de

identidades nacionais no Brasil, bem como embates para definição dos direitos de cidadania, temas ainda hoje candentes, em reconstrução. Uma concepção cara aos iluministas do século XVIII e para mim ainda atual norteia a elaboração deste livro, isto é, embasa meu ponto de vista: o antirracismo, ou seja, a negação mesma da ideia de raça, em vantagem de se afirmar a unidade do gênero humano e suas diversidades (todos parentes, todos diferentes) – concepção que seria enfraquecida, ao longo dos séculos XIX e XX, pela reafirmação de pretensões científicas, da classificação, hierarquização e cristalização da humanidade em raças, umas tidas como melhores ou superiores, outras como inferiores ou degradadas. Advindo então o uso do pertencimento racial como fonte de legitimação de poder ou contra poder. Como figurar a Revolução do Haiti além dos textos históricos e documentação da época? A narrativa ficcional (que se nutre de ambos) é uma rica possibilidade, na medida em que não anula nem compete com a narrativa historiográfica25. Dentre tais leituras, uma das que mais me fez captar, ou mergulhar, no universo da Revolução do Haiti foi o romance El Reino de este Mundo (1949), do escritor cubano Alejo Carpentier, cujo personagem central é um escravo haitiano, Ti Noel (P’tit Noel, ou Noelzinho, em créolle), que vivencia todas as fases revolucionárias, suas esperanças e contradições – espectador ao mesmo tempo marginal e presente no âmago dos episódios decisivos. A narrativa ficcional, portanto, não se baseia na trajetória dos grandes líderes. O impacto da Revolução do Haiti levou um jovem de 16 anos a escrever em Paris seu primeiro romance (inicialmente uma novela) em 1818: BugJargal. Seu autor, Victor Hugo (1802–1885), célebre, entre outros trabalhos, por Notre-Dame de Paris (O Corcunda de Notre-Dame), que se tornaria abolicionista, só teve oportunidade para publicá-lo em 1826, devido às intensas discussões públicas em torno do reconhecimento da Independência

do Haiti pela França no ano anterior26. A narrativa se desenrola na colônia de São Domingos no segundo semestre de 1791, no âmago da insurreição. O narrador é um jovem colono e militar francês, Léopold D’Auverney, e o personagem que dá título ao livro é Pierrot, um escravizado da fazenda de seu tio e que se torna um dos primeiros líderes rebeldes. A trama é perpassada da ligação amorosa de D’Auverney (e platônica de Pierrot) por sua prima Marie, filha do poderoso e violento senhor de escravos, morto nos primeiros momentos da rebelião. O texto está marcado pela presença do escravizado negro que (mesmo insurreto) auxilia um jovem casal de senhores brancos, algo semelhante ao estereótipo do bom-negro, tema constante da literatura europeia do século XIX sobre o Haiti, a chamada “literatura colonial”. A fortuna literária da Revolução do Haiti é oceânica, sobretudo no século XIX e ainda no XX, e alguns exemplos são citados ao longo do livro; mesmo no XXI foram publicadas obras como La Isla bajo el Mar (A ilha sob o mar), em 2009, de Isabel Allende. A trilogia de romances (1995– 2004) do norte-americano Smartt Bell Madison, obra de fôlego que realiza com eficiência a elaboração de romance histórico, reúne em harmonia personagens históricos aos ficcionais, buscando corporificar os sentimentos e sensações, os sofrimentos, prazeres, medos e ousadias de uma sociedade 27

em plena Revolução . Assisti inúmeras vezes e discuti em sala de aula o clássico Queimada (1969), do cineasta italiano Gillo Pontecorvo, com Marlon Brando no papel principal de agente imperialista britânico que insufla o início da revolta: recriação realista da Revolução do Haiti, bela obra ficcional de tons épicos, mas distante de uma narrativa histórica rigorosa. Qualquer semelhança factual entre o belo filme, de tons vigorosos, e a Revolução do Haiti, é quase mera coincidência. A película alia, de forma criativa, um simétrico esquema explicativo marxista com a livre apresentação e reinvenção de

episódios e personagens, inclusive de Toussaint Louverture, Dessalines, Henri Christophe e Jean-Baptiste Perrier (Goman), que aparecem mesclados como José Dolores. Curiosamente, as tropas escravistas e coloniais, nas cenas de maior truculência, falam em português. Do mesmo modo, a principal música tema, épica, composta por Ennio Moriconne, tem apenas uma palavra no título e na letra: Abolição, também em português. Qual seria o motivo desta escolha do idioma português em determinados momentos de um filme de diretor italiano e falado em inglês, com intervenções em espanhol? Poderia ser uma forma indireta de o cineasta denunciar a ditadura civil-militar brasileira que entrava em uma fase mais repressiva. Ou, quem sabe, a retomada da antiga percepção, já expressa pelo abade Raynal, da degeneração da “raça” portuguesa, que seria, assim, mais embrutecida e incapaz na colonização? De qualquer modo o filme, imperdível, se propõe a traçar um panorama e uma interpretação dos processos de descolonização, abolição e passagem para as relações capitalistas internacionais e imperialistas – tomando por mote a Revolução do Haiti, mas buscando sintetizar as revoluções e contrarrevoluções do Novo Mundo, em um paralelo com o tempo presente do cineasta. O silêncio do passado é eloquente, como assinalou o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot, relacionando poder e produção da história. De impensável, a Revolução do Haiti tornou-se inaceitável. Para o caso do Brasil, uma das chaves de compreensão desta invisibilidade foi explicitada e formulada no calor dos acontecimentos pelo abade De Pradt28. Sobre a Revolução do Haiti, ele fazia duas recomendações a seus contemporâneos, sobretudo aos que estivessem nas sociedades escravistas. Inicialmente, era melhor não falar no assunto, ao menos abertamente ou em público: silenciar, ocultar, abafar e ignorar, para não chamar a atenção do que não deveria ser lembrado. Quando tal postura não fosse possível, quando as manifestações se tornavam visíveis, aí então era o caso de alertar e alarmar

contra os excessos, as violências, os perigos e os horrores de tal experiência. Mal dizer ou maldizer.

Rio de Janeiro, Carnaval de 2017.

NOTAS 2. Morel, Edmar. Vendaval da Liberdade. 3. ed. São Paulo: Global, 1988 {1949}; A Revolta da Chibata. In: Morel, Marco. (org.). 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016 {1959}. 3. Morel, Marco. Les ‘abominables idées françaises’ de la presse brésilienne aux XVIII et XIX siècles. In: Vovelle, Michel (org.). L’Image da la Révolution Française. Londres/Paris: Pergamon Press / Sorbonne, 1989, v. 1, p. 393-399. 4. Trajetórias atlânticas: dois brasileiros no Haiti no início dos oitocentos. In: Pesavento, Sandra (org.). História Cultural – Experiências de Pesquisa. Porto Alegre: UFRGS, 2003, v. 1, p. 37-64. 5. A Revolução do Haiti e o Império do Brasil: intermediações e rumores. Anuario de Estudios Bolivarianos, v. XI, p. 189-212, 2005; O abade Grégoire, o Haiti e o Brasil: repercussões no raiar do século XIX. Almanack Braziliense [on-line], v. 2, p. 1-20, 2005; O Haiti não foi aqui. Nossa História, Rio de Janeiro, v. 11, p. 58-63, 2004; O caminho incerto das Luzes francesas: o abade De Pradt e a Independência brasileira. Almanack [on-line], n. 13, p. 112-129, 2016. Ver também os textos das duas notas anteriores. 6. Sinteticamente, concebo tais espaços públicos como a inter-relação entre: os agentes e mecanismos formadores de opinião pública impressa e das tendências políticas, dos espaços formais ou informais de sociabilidade e dos lugares físicos em que tais expressões se propagavam e podiam transbordar para a oralidade. Cf. Morel, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820–1840). 2. ed. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Para uma abordagem sobre a esfera pública em São Domingos no período que antecede a Revolução, ver Ogle, Gene E. The Trans-Atlantic King and Imperial Public Spheres: everyday politics in pre-revolutionary SaintDomingue, 2009. 7. Sobre este ponto, ver a reflexão de Luiz Geraldo Silva em torno da abrangência das repercussões haitianas no Brasil: El impacto de la revolución de Saint-Domingue y los afrodescendientes libres de Brasil: Esclavitud, libertad, configuración social y perspectiva atlántica (1780–1825). Historia, n. 49, v. i, enero/junio 2016, chamando a atenção para os setores livres da população negra e mulata. 8. Tabela 1.4, Estimativas da População por condição civil, segundo as províncias, 1819-1872, em Estatísticas Históricas do Brasil, Séries Estatísticas Retrospectivas, vol. 3, Séries Econômicas, Demográficas e Sociais 1550 a 1985, Rio de Janeiro: IBGE, 1987. 9. Mott, Luiz R. B. A Revolução dos negros do Haiti e o Brasil. Historia: Questões & Debates, Curitiba, v. 3, n. 4, 1982; republicado seis anos depois em Escravidão, Homossexualidade e Demonologia, São Paulo: Ícone, 1988. 10. Trouillot, Michel-Rolph. Silencing the past Power and the production of history. Beacon Press: Boston, 1995, sobretudo o capítulo 3, An unthinkable history. A Revolução Haitiana “não costuma ser admitida”, assinala o estudo coletivo de Cooper, Frederick; Holt, Tomas C; Scott, Rebeca J. Além da escravidão.

Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 54. 11. Debate assinalado inicialmente, em suas duas vertentes, nos artigos de: Schawrz, Roberto. As ideias fora do lugar. Estudos Cebrap, São Paulo, n. 3, 1973; e Franco, de Maria Sylvia de Carvalho. As ideias estão no lugar. Caderno de Debates, São Paulo, n. 1, 1976. Discuti rapidamente a questão em “As ideias mudam com os lugares...”. 12. Blackburn, Robin. The force of Example, p. 19. 13. Para esta perspectiva da complexidade do modelo haitiano ver também: Thibaud, C. Peurs et désirs d’Haïti dans l’Amérique de Bolivar, Annales. Histoire, Sciences Sociales 2003/2, 58e année; Manigat, Sabine. Le régime de Toussaint Louverture en 1801: un modèle, une exception, 2003. 14. Cf. bibliografia específica sobre a Revolução Haitiana ao final do volume. 15. Ver neste sentido o importante trabalho de Reis, J.; Gomes, F. Repercussions of the Haitian Revolution in Brasil, 1791–1850. In: Geggus, David. The world of Haitian Revolution, p. 284-313. 16. Denominam como Revolução do Haiti historiadores de perspectivas, países e períodos diferentes da segunda metade do século XX e início do XXI, como D. Geggus, C. Fick, E. Genovese, C. L. R. James, M. Dorigny, Y. Bénot, B. Gainot, J. Reis, F. S. Gomes, J. Cauna. J. Ojeda, E. C. Michel, A. Gomez, D. Bechacq, entre vários outros, cf. bibliografia ao final do volume. 17. Para uma síntese de minha compreensão do conceito de Revolução no período estudado ver Morel, O período das Regências, 2003, p. 20-31. 18. Bonacci, Giulia; et al. La Révolution haïtienne au-delá de ses frontières. Paris: Karthala, 2006. 19. Saint-Louis, Vertus. L’assassinat de Dessalines et les limites de la société haïtienne face au marché international, 2003; L’ordonnance de 1825 et la question de l’indemnité, 2003; Casimir, J. Prologue: From Saint-Domingue to Haïti: To Live Again or to Live and Last, 2009. Ver também a reflexão de Fick, Carolyn. La résistance populaire au corps du général Leclerc et au rétablissement de l’esclavage à Saint-Domingue (1802–1804), como também sua obra mais ampla sobre a questão, Haïti. Naissance d’une nation. La Révolution de Saint-Domingue vue d’en bas, 2014. 20. Cf. assinala S. Manigat, 2003. 21. Sobre as repercussões da Revolução do Haiti em fins do século XVIII e início do XIX no Brasil, sobretudo na Amazônia (geograficamente mais próxima do Caribe), entre autoridades e escravos, ver os trabalhos de Gomes, Flávio dos Santos: Experiências transatlânticas e significados locais: ideias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil Escravista, 2002; Em Torno dos Bumerangues: Outras Histórias de Mocambos na Amazônia Colonial, 1995-1996; Nas Fronteiras da Liberdade: Mocambos, Fugitivos e Protesto escravo na Amazônia Colonial, 1996. 22. A definição cronológica e as abordagens desenvolvidas relacionam-se à trajetória acadêmica do autor, a qual, institucionalmente, se expressou em discussões e publicações no âmbito de três projetos coletivos de pesquisa já integrados pelo autor: Brasil: fundação do Estado e da Nação (1750–1850), Projeto Temático financiado pela Fapesp e sediado na USP, sob a coordenação do Prof. István Jancsó, encerrado em 2009; Dimensões da Cidadania no século XIX, do Centro de Estudos dos Oitocentos (CEO) / Pronex, financiado pela Faperj, sob a coordenação do Prof. José Murilo de Carvalho, participação até 2010; e o Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Uerj. 23. Sobre escravidão e Conjuração Baiana, ver: Tavares, L. H. D. Os escravos no 1798, 1993; Morel, Marco. Tensões entre Revolução e escravismo, 1999; Fonseca, R. O. A Conjuração Baiana e os desafios da igualdade, 2016, que abre novas possibilidades de abordagem. 24. Geggus, David. Slavery, war, an Revolution in the Greater Caribbean, 1789–1815, 1997, p. 31.

25. Sobre esta questão remeto especificamente ao artigo de Farge, Arlette. Palavras sem História, História sem Palavras, 2004. 26. Versos extraídos do romance pelo autor foram traduzidos no Brasil do século XIX pelos poetas Gonçalves Dias (Canção de Bug Jargal. O Archivo, periódico da Associação Literária Maranhense, São Luís, n. 1, 28 fev. 1846) e Castro Alves (O canto de Bug Jargal. Os escravos. Rio de Janeiro: Typographia da Escola, 1883). 27. Para um apanhado dos romances e peças teatrais franceses sobre o Haiti no século XIX, ver Hoffmann, L-F. Representations of the Haitian Revolution in French Literature, 2009. Ver também Charara, Y. (org.). Fictions coloniales, 2005. 28. A historiadora A. Ferrer, no artigo A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana, retoma e analisa esta dupla visão negativa das repercussões da Revolução do Haiti. Para o pensamento de De Pradt, ver a Parte II.

I. A REVOLUÇÃO DO HAITI – BREVE APRESENTAÇÃO

Toussaint Louverture: escravo liberto que se tornou general e principal líder revolucionário “Irmãos e amigos. Eu sou Toussaint Louverture; meu nome talvez seja conhecido de vocês. Eu realizo a vingança de minha raça. Quero que a liberdade e a igualdade reinem a São Domingos. Eu trabalho para fazê-la existir. Uni-vos, irmãos, e combatam comigo pela mesma causa. Arranquem comigo as raízes da árvore da escravidão.” Toussaint Louverture, em 1793.

Embora este não seja um livro sobre a Revolução do Haiti, considero importante abri-lo com uma sintética apresentação do episódio, acompanhada de algumas questões que cercam sua compreensão. Para os pesquisadores especializados a iniciativa seria desnecessária – mas creio que poderá ser útil ao leitor brasileiro não habituado à circulação de publicações sobre o assunto. Tenho a esperança de que esta rápida incursão a um universo tão instigante ajude não só a leitura do estudo aqui desenvolvido, mas, justamente por sua rapidez, estimule a busca de outros conhecimentos de período tão marcante e intenso da história da condição humana. Para esta breve Apresentação exponho, na seguinte ordem:

- quadro de cronologia comparada do Haiti, internacional e do Brasil; - curtas biografias das principais lideranças; - um apanhado do vocabulário da época; - trajetória de liberdade e violência: narrativa do contexto histórico do processo revolucionário, com elementos para discussões; - um projeto de classificação racial para a colônia francesa publicado em 1796; - e, finalmente, um quadro resumido das primeiras Constituições do Haiti em Revolução, indicando as tendências de institucionalização das relações sociais, isto é, o perfil sociopolítico da nação que se forjava. Para se dimensionar a ponta do iceberg daqueles eventos, imaginemos a situação do comandante de um navio mercante francês: saído do porto fluvial de Nantes em julho de 1791, sem saber o que se passava do outro lado do Atlântico, cumprindo rota e rotina de tempos remotos e que lhe parecia natural, teve a surpresa de, chegando à Ilha de São Domingos, no porto de Cabo Francês (Cap Français, atual Cabo Haitiano), o principal daquele território, deparar-se com o seguinte quadro, que ele descreve em carta a um correspondente no Velho Mundo: Cabo, 27 de setembro de 1791, Tenho a honra de anunciar minha chegada no dia 18 do corrente. Quisesse Deus que eu estivesse ainda em Nantes a saber o que se passa aqui; vejo-me às vésperas de fazer uma viagem ruinosa, sem nada vender e sem perspectiva de frete. Os negros estão revoltados desde o dia 22 de agosto último: eles queimaram uma parte das planícies do Cabo; duzentos engenhos de açúcar e muitos cafezais foram incendiados; onde eles encontram brancos, eles os massacram; mais de duzentos já foram mortos assim. [...] A cidade está cercada de uma forte paliçada. A maior parte dos negros espalhados em seu interior estão trancados na igreja e distribuídos nos prédios do porto, e está-se às vésperas de degolar a todos, se a salvação do povo e a lei suprema exigirem. É melhor matar homens sem freio do que se expor a morrer. [...]29

Mesmo sem ter consciência da dimensão dos acontecimentos que testemunhava, mais do que circunstância de risco localizada numa ilha do Caribe, o capitão assistia ao prelúdio do século das 30

Abolições , que se encerraria formalmente 96 anos, oito meses e 17 dias depois, com a extinção legal da escravidão no Brasil. Inaugurava-se, também, o processo que desaguaria na segunda Independência das Américas.

Cena da insurreição de escravos numa fazenda em Saint-Domingue, 1791: queimada de plantações ao fundo

Na missiva transparecem o pânico e o ódio, ainda que enquadrados pelas normas da escrita e da polidez, num tom razoável, sem exclamações ou injúrias. Pânico de quem entrevê não apenas a viagem comercial desastrosa, mas ameaça concreta da destruição de bens, propriedades, enfim, todo um modo de vida – medo de ver a própria vida, e de seus semelhantes, dizimadas. Ódio que se manifesta pela naturalidade com que se narra a iminente degola de todos os negros residentes naquela cidade colonial escravista (ainda que não estivessem rebelados), justificada pelos massacres de brancos, que a seu turno se explica pela violência da dominação escravista. Independente de sua escolha, o capitão e comerciante encontrava-se em redemoinho fundo, embate onde virtudes se negam e as leis são refeitas e não valem, lutas de sobrevivência, vida, morte e de violências desencadeadas.

CRONOLOGIA Data

São Domingos / Haiti

Internacional

Brasil

1 Primeiros registros de população indígena, do século grupo Taïno (arawak), que chama o local de Haïti a.C. (montanhoso). 1492

Cristóvão Colombo desembarca e batiza a ilha de Hispaniola. População estimada entre 200 e 300 mil índios.

1500 1502

Chegada dos portugueses no Brasil. O jesuíta Bartolomeu de Las Casas chega em Hispaniola.

Chegam ao Brasil os primeiros jesuítas.

Data

São Domingos / Haiti

1530

Após a Conquista espanhola, sobrevivem 500 índios, quase todos exterminados nos anos seguintes.

Internacional

Brasil

1555

Início da França Antártica, colonização francesa no Rio de Janeiro.

1560

Fim da França Antártica.

1580

Brasil (e demais territórios portugueses) sob domínio da Espanha.

1606

Espanha abandona colonização.

1612

Iniciada a colonização do Maranhão por 500 franceses que fundam São Luís e batizam o empreendimento de França Equinocial.

1615

Fim da França Equinocial, derrotada pelos portugueses.

1630

Primeiras disputas entre espanhóis, franceses e ingleses pelo território. Criação, pela França, da Companhia das Ilhas das Américas.

1635

Termina o domínio da Espanha sobre o Brasil e territórios portugueses.

1640 1665

1685

Início da colonização francesa

Início das plantações de açúcar.

Implantação do “Code Noir” (Código Negro) regulamentando as colônias francesas nas Américas: prevê castigos corporais aos escravos e estratifica a sociedade racialmente. Navios do corsário (autorizado pelo governo francês) Duguay-Trouin invadem e ocupam o Rio de Janeiro e cobram considerável indenização para retirar-se.

1711

1715

Início das plantações de café.

1745 Resistências de escravos lideradas por Mackandal 1758

Mackandal é preso e queimado vivo Decreto de abolição da escravatura em Portugal ibérico, no contexto do “despotismo esclarecido”.

1761

1766

Começa o apogeu da economia escravista e exportadora: São Domingos, “Pérola das Antilhas”.

1769

Abolição da escravatura no território da Pensilvânia.

1770

Publicação de Histoire Philosophique des Deux Indes, do abade Raynal..

1776

Declaração de Independência dos EUA.

Data

São Domingos / Haiti

Internacional

1777

O escravo Toussaint é alforriado e passa a viver do trabalho de uma plantação com doze escravos.

Tratado de Aranjuez determina fronteira entre São Domingos espanhol e francês.

Brasil

Batalhão de Voluntários negros da colônia participa, na Georgia, das tropas francesas que lutam a favor da Independência norte-americana, 1779 contra a Inglaterra. Entre os integrantes, futuros revolucionários haitianos, como Henri Christophe e André Rigaud. 1780

Média anual de 40 mil escravos africanos desembarcam nesta década.

1788

Proprietários da colônia reivindicam participação nos Estados Gerais franceses.

Convocados os Estados Gerais na França por Louis XVI. Fundação da Sociedade dos Amigos dos Negros, em Paris. Eclode a Revolução Francesa. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Assembleia Nacional recebe uma petição por direitos dos “homens livres de cor”.

1789

Proprietários da colônia se articulam para atuar na Assembleia Nacional francesa Revolução Francesa em defesa da escravidão e da aprova criação de uma 1790 colonização. Vicent Ogé, mulato, inicia Assembleia Colonial em movimento pela extensão dos Direitos de benefício dos proprietários (de liberdade. terras e de escravos). Janeiro: rebelião de escravos em Platon, com a participação de Goman. Numa fazenda, 50 cativos 1791 são degolados em represália. Março: Ogé é executado com suplícios em praça pública. Linchamentos de mulatos pelos colonos brancos. 14 de agosto: cerimônia no bosque Caïman, liderada pelo escravo jamaicano Bouckman, prega a insurreição geral dos escravos. 20 de agosto: grupos armados de mulatos derrotam e matam europeus e colonos brancos. 21 de agosto: 1791 insurreição geral dos escravos nas propriedades rurais do Norte da Ilha, destruindo fazendas e matando a população branca. Setembro: mais 100 brancos são mortos por mulatos e dezenas de casas destes são incendiadas.

1792

Continuam os ataques entre brancos e mulatos, e entre negros e brancos, com mortes de todos os lados. Setembro: chega comissão de três agentes da França acompanhados de 6.000 solados para implantar os novos direitos e defender a manutenção da escravidão. Conflitos das tropas europeias com escravos e com colonos brancos.

Maio: Assembleia Nacional francesa concede direitos de cidadania aos mulatos nascidos de pai e mãe livres. Em junho, Louis XVI tenta fugir de Versalhes e é preso em Varennes. Em setembro, a Assembleia revoga os direitos dos mulatos em S. Domingos, devido aos protestos dos colonos. Abril: Assembleia Nacional francesa concede direitos de cidadania iguais aos brancos, negros livres e mulatos. Setembro: Proclamação da República na França.

Descoberta a conspiração conhecida como Conjuração Mineira.

Data

São Domingos / Haiti

Internacional

Brasil

Junho: comissários franceses prometem liberdade aos escravos que se alistarem em suas tropas. Escravos armados se dirigem à cidade de Cap para apoiar os comissários franceses e ali destroem e incendeiam casas e matam brancos. Cerca de Janeiro: morte na guilhotina do 10.000 brancos fogem para os EUA, muitos se rei deposto Louís XVI em estabelecem em Louisiania. Paris.Inglaterra e Espanha Agosto e setembro: comissários proclamam a 1793 declaram guerra à liberdade de todos os escravos, já conquistada na prática. Colonos se aliam à Inglaterra, que invade França.Abolição da escravatura no Upper Canadá e ocupa parte do território e restabelece a escravidão. Outra parte do território está ocupada pela Espanha. O comandante negro Biassou, à frente de tropas de escravos (Toussaint Louverture faz parte do grupo), se alia à Espanha contra os escravistas franceses que ainda governavam. Maio: após a Abolição, Toussaint Louverture, comandando uma tropa de negros, se alia aos franceses e derrota tropas espanholas. A partir daí, 1794 se consolida e amplia a liderança de Toussaint entre os ex-escravos insurgentes que, em três anos, sob sua liderança, reconquistam para a França os territórios que haviam obtido para a Espanha.

4 de fevereiro: Convenção Nacional francesa decreta Abolição da escravatura nas colônias.

1795

Tratado de Baile concede à França a parte espanhola da Ilha, unificando, assim, o território de São Domingos.

1796

Publicação do livro do colono Toussaint é nomeado Governador Geral de São Moreau de Saint-Méry sobre a Domingos e promovido a General pelo Diretório história natural e política de São da Revolução Francesa. Domingos, com um quadro de classificação racial.

Toussaint Louverture consolida um poder autônomo, apesar de formalmente ligado à França. 1797 Comissários franceses enviados para manter o poder são desarticulados e expulsos.

1798

Toussaint obtém pelas armas e diplomacia a retirada da Inglaterra de São Domingos. Novo comissário francês enviado para desarmar os negros é expulso do território.

Conflitos entre negros e mulatos. Tropas de 1799 mulatos, lideradas por Rigaud, derrotam tropas de negros lideradas por Toussaint. As tropas de Toussaint ocupam toda a ilha, que assim se reunifica. Violências contra a população branca restante. Milhares de mulatos liderados por 1800 Rigaud são mortos pelas tropas de Toussaint no Sul. Início do trabalho intensivo para ex-escravos nas plantações e da militarização do poder.

Descoberta no Brasil a conspiração chamada de Conjuração Baiana, com a O bispo Azeredo Coutinho participação de pardos, negros libertos e publica em Londres texto escravos e expressivo grupo das elites defendendo o tráfico e a locais, além de apoio secreto do capitão escravidão no Brasil e da Marinha de Guerra francesa René criticando a Abolição decretada Larcher, enviado às Ilhas Maurícias com na França. o decreto de abolição da escravatura. Projeto malogrado de envio de tropas francesas à Bahia.

Data

1801

São Domingos / Haiti

Internacional

Brasil

Publicação do livro Les Trois Âges Des Colonies, do abade Outorgada a primeira Constituição, autônoma em De Pradt, prevendo as relação à França. independências das colônias nas Américas e a possibilidade de repetição do exemplo haitiano.

Napoleão Bonaparte envia tropas francesas, comandadas pelo general Leclerc, para retomar o controle da colônia, em 3 de fevereiro. O exescravo Christophe, um dos chefes militares negros que se destacou sob as ordens de Toussaint, alia-se aos franceses. Outro comandante negro e ex-escravo, Dessalines, opõe-se aos franceses e encabeça a resistência. Tropas francesas se impõem, Dessalines e 1802 Toussaint entregam as armas. Toussaint é preso e enviado para a França, em 7 de junho. Rigaud é enviado para o mesmo cárcere. Napoleão decreta a volta da escravidão nas colônias francesas, em 20 de maio. Insurreição em 6 de outubro unificando os diversos grupos de negros e mulatos, como os liderados por Dessalines, Christophe e Pétion, contra a volta da escravidão e contra o domínio francês e europeu. 1803

A guerra continua em São Domingos. Derrota militar definitiva dos europeus. Toussaint morre num cárcere francês.

Declaração de guerra entre França e Espanha.

1 de janeiro: Dessalines proclama a Independência do Haiti. Maio: Napoleão proclama-se imperador dos franceses. 1804 Setembro: Dessalines proclama-se imperador do Haiti, com o título de Jacques I. Extermínio dos últimos brancos da Ilha, entre os quais 3 mil franceses. 1805

Outorgada a primeira Constituição após a Independência. Tropas lideradas por Dessalines ocupam todo o Haiti, mas perdem São Domingos.

1806

Fim da aliança interna que possibilitara a Independência do Haiti. A parte Sul da ilha é transformada em República sob a presidência de Pétion. Dessalines é assassinado. Assembleia Constituinte elabora nova Constituição, republicana.

Até 1820, uma onda de movimentos de resistência e sucessivas rebeliões de ex-escravos (inclusive mulheres) contra o trabalho forçado, na parte Sul da ilha, liderados por Jean Baptiste Perrier 1807 (Goman). Combates entre as tropas de Pétion, de mulatos, e as de Christophe, formadas por negros, pelo controle do território. Pétion e Christophe tornam-se, respectivamente, presidentes da República das partes Sul e Norte. 1808

No Rio de Janeiro, soldados milicianos pardos ostentam o retrato de Dessalines no peito.

Inglaterra proíbe o tráfico de escravos.

Entre 1807 e 1816, ocorre uma série de conspirações e rebeliões de escravizados em Salvador (BA) e arredores.

Publicação do livro De la Li érature des Negres, do Chegada da Corte portuguesa ao Brasil. abade Grégoire, com postulados antirracistas e abolicionistas.

Data

São Domingos / Haiti

1810

Continuam combates entre as tropas de Pétion e de Christophe, que aumenta o território sob seu controle. Rigaud retorna da prisão francesa e cria uma efêmera terceira república no território.

1811

Christophe é coroado como rei Henri I. Rigaud morre e Pétion retoma o território presidido por ele.

1812

Christophe descobre uma conspiração contra ele insuflada por Pétion e fuzila os conspiradores.

1815

1816

Internacional

Constituição liberal de Cádiz (Espanha). Restauração da monarquia na França e derrota definitiva de Napoleão. Congresso de Viena reúne as principais potências europeias. Abade Grégoire publica De la Traite et de L’esclavage des Noirs, combatendo as ideias do bispo Azeredo Coutinho.

Brasil é elevado à condição de Reino Unido com Portugal e Algarves.

Abade De Pradt publica Des Colonies et de la Révolution Actuelle de L’Amérique, confirmando em parte suas previsões anteriores.

Levante armado proclama a República em quatro províncias brasileiras – movimento derrotado após três meses.

Simón Bolivar, exilado, é recebido no Haiti por Pétion e se compromete a decretar Abolição simultânea às Independências nas Américas.

1817

Coroação de D. João VI como rei de Portugal, Brasil e Algarves no Rio de Janeiro.

1818

Morre Pétion. Jean-Pierre Boyer, chefe da guarda presidencial, assume o poder.

1820

Christophe, doente, sofre tentativas de golpes para Movimento liberal na Espanha derrubá-lo e suicida-se. Tropas lideradas por e Portugal derrota o Boyer reunificam o território haitiano. absolutismo.

1821

Proclamação da Independência de São Domingos (parte espanhola da Ilha).

Abolição da escravatura na Colômbia. Começam as Cortes de Lisboa com representantes do Brasil. Proclamação da Independência do Brasil no Rio de Janeiro em 12 de outubro de 1822. Coroação de D. Pedro I como imperador do Brasil em 2 de dezembro.

Tropas de Boyer ocupam toda a Ilha que, até 1843, 1822 estará unificada como Haiti, incluindo o atual território de São Domingos. Abolição da escravatura no Chile.

1823

Outorgada a primeira Constituição. Movimento armado proclama a República (Confederação do Equador) em cinco províncias brasileiras, onde o tráfico de escravos é provisoriamente abolido. Tropas de homens pardos lideradas por Mundurucu em Recife dão vivas a Christophe (Henri I). Em Sergipe, pardos e negros dão vivas ao “Rei do Haiti” durante uma festa.

1824

1825

Brasil

Independência do Haiti reconhecida pela França, mediante indenização que será paga até fins do século XIX.

Independência do Brasil reconhecida por Portugal (mediante indenização em libras esterlinas) e pela França.

Data

São Domingos / Haiti

Internacional

Brasil

1826

Implantação do Código Rural regulamenta a concentração da posse da terra e o controle do trabalho.

Congresso do Panamá (sem a participação do Brasil e do Haiti) tenta a unificação panamericana.Abolição da escravatura na Bolívia.

O Parlamento brasileiro começa a funcionar regularmente através do voto censitário e indireto. Tratado entre GrãBretanha e o Brasil na perspectiva de eliminar o tráfico de escravos.

LIDERANÇAS Georges Biassou (?–1801)

Nos primeiros momentos da insurreição de escravizados, agosto de 1791, em São Domingos, foram notadas cinco lideranças mais visíveis no território da Ilha: Bouckman (o primeiro cronologicamente, liderou a reunião vodu no Bosque Caiman), Paul, Jeannot Bullet, Jean François Petecou e Georges Biassou. Três meses depois, só os dois últimos ainda viviam31. Georges Biassou, nascido escravo, foi um dos participantes da cerimônia do Bosque Caiman, evento mítico e histórico ocorrido nas florestas do Norte da ilha e que marcou simbolicamente o início da Revolução do Haiti. Os grupos armados sob seu comando compunham-se de etnias africanas diferentes e, em geral, hostis entre si, mas que se uniam nos momentos de combate, época de acentuada violência, marcada por torturas e extermínios de todos os lados, quando grande parte das fazendas foi destruída, milhares de escravizados mortos e a maior parte da população branca exterminada. Afirmando-se monarquista, Biassou se autointitulou Marechal e Vice-Rei da colônia ao saber da morte de Louis XVI na guilhotina em 1792. Toussaint Louverture ingressa nos combates da Revolução do Haiti como ajudante de campo de Biassou, logo se destacando como liderança militar e política. O ano de 1794 foi decisivo para Biassou: temendo o poder crescente de Toussaint, tramou um atentado (mal-sucedido) contra este; a

França republicana aboliu a escravidão. Aliado à França, Toussaint manda fuzilar Jeannot Bullet. Biassou, apoiado pelos espanhóis, exila-se na Flórida (então colônia da Espanha), onde se torna comandante das milícias de negros e morre antes da Independência do Haiti. Biassou é personagem do romance Adonis, ou Le Bon Nègre, publicado em 1798, de autoria de Jean-Baptiste Picquenard – e que seria adaptado em teatro por Louis-François Guillaume Béraud no mesmo ano32. A obra apareceria em português na forma do romance O Bom Negro. Adonis e Zerbina. Libertadores de D’Herouville. Facto acontecido na revolução da Ilha de São Domingos, publicado em Lisboa, 1840. Biassou é apresentado nestas criações literárias como tirano feroz e sanguinário em contraste ao “bom negro” Adônis, que salvou a vida de seu próprio senhor. Outra liderança inicial do processo revolucionário, Jean François Petecou, foi tema de estudo do historiador mexicano Jorge Ogeda33.

Cerimônia vodu no Bois Caiman em 1791, marcando o início da Revolução Haitiana

Toussaint Louverture (1746–1803)

Retrato e assinatura de Toussaint Louverture

Principal líder político e militar da Revolução do Haiti, seu nome tornou-se símbolo deste processo, embora tenha falecido nove meses antes da Proclamação da Independência. Apelidado de Washington das Colônias e de Bonaparte Negro pelos europeus, devido às suas vitórias políticas e militares. O próprio Toussaint cultivava esta mística e, ao trocar correspondência com o Imperador dos franceses, colocou-se do seguinte modo: “O Primeiro dos Negros ao Primeiro dos Brancos”. O que irritou a Napoleão I. Nascido escravo, suas origens não estão bem comprovadas, mas afirma-se que seu avô paterno, Gaou Guinou, era africano do Daomé (atual Benin) e que seu pai, Hyppolite Gaou, capturado pelos traficantes de escravos, foi vendido à fazenda do conde de Breda, na região Norte da ilha de São Domingos, próxima à cidade de Cabo Francês (atual Cabo Haitiano). Toussaint (ao ser enviado preso para a França, em 1802) afirmou em suas Memórias que seu pai ainda era vivo e com 105 anos – neste caso, teria nascido em 1697 e pertencido às primeiras levas de homens trazidos da África pelos franceses para a Ilha. Toussaint nasceu na mesma propriedade rural, também cativo, recebendo o sobrenome do proprietário, Breda, prática comum nas relações escravistas: François-Dominique Toussaint Breda. Na juventude, Toussaint (que tinha conhecimento de ervas e plantas medicinais) tornou-se protegido do administrador da plantation, Baillon de Libertat, que lhe incentivou a se alfabetizar. Toussaint assumiu o cargo de auxiliar deste capataz, casou-se com uma negra livre e filha de um mulato, Suzanne, com quem teve dois filhos, Isaac e Saint Jean, além de adotar um filho da esposa, Placide, mulato. Consta que deixou vários filhos ilegítimos. Obtendo a alforria aos 30 anos, Toussaint

Breda passa a viver numa terra arrendada, onde explorava o trabalho de 15 escravizados – condição em que viveu durante 12 anos. Após o início da grande insurreição de 1791, Toussaint incorpora-se como médico (manipulador de ervas) aos batalhões de negros rebelados e se torna ajudante de campo dos comandantes Georges Biassou, Jean-François e Jeannot Bullet, também ex-cativos, participando dos massacres de milhares de brancos. Toussaint logo se destacaria como o mais importante chefe militar, comandando inicialmente uma tropa disciplinada de 4 mil homens, a maioria negros que saíam da escravidão, quantidade que chegaria a 20 mil. Recebeu o sobrenome Louverture (A abertura), pois afirmava-se que sua arma, ao disparar, fazia clareiras nas tropas adversárias e, também, porque ele abria caminhos. Lança em 1793 uma proclamação: Irmãos e amigos. Eu sou Toussaint Louverture; meu nome talvez seja conhecido de vocês. Eu realizo a vingança de minha raça. Quero que a liberdade e a igualdade reinem a São Domingos. Eu trabalho para fazê-la existir. Uni-vos, irmãos, e combatam comigo pela mesma causa. Arranquem comigo as raízes da árvore da escravidão.

Sua destreza política e militar era notória: aliou-se aos espanhóis para enfrentar as tropas inglesas e francesas, em seguida, aliou-se aos franceses, expulsando da ilha ingleses e espanhóis. Foi nomeado Governador General Vitalício pela França republicana em 1797: enquanto autoridade máxima do poder colonial na Ilha, ostentava adesão ao catolicismo, ao regime monárquico (embora mais discreta no período republicano) e à supremacia do poder militar. Ele outorgou a primeira Constituição autônoma para o território, em 1801, onde se abolia a escravidão, se garantia o direito de propriedade, proclamava-se a igualdade sem distinção racial e a preeminência da religião católica. E atuava no sentido mal dissimulado de erodir a dominação colonial. Toussaint, ao mesmo tempo em que dominava o francês da Europa, exprimia-se com desenvoltura no parler nègre34, além de portador de saberes medicinais africanos – expressando, pois, um hibridismo cultural e político. Toussaint Louverture sobressaiu-se pela chefia centralizadora: articulava pessoalmente alianças e separações com os agentes das potências europeias e sabia se fazer querido por grande parte da população de trabalhadores escravizados em luta. Descrito como um tipo franzino e pouco imponente em termos físicos, mas dotado de forte carisma e energia, arrebanhava multidão de seguidores e várias vezes enganou interlocutores europeus. Entretanto, foi pego numa cilada por emissários de Napoleão Bonaparte e enviado preso à França. Toussaint Louverture permaneceu encarcerado no Forte Joux, na gélida e montanhosa região de fronteira com a Suíça, quando redigiu um memorial (publicado posteriormente como Memórias) sobre sua atuação para defender-se junto ao governo napoleônico. Sem receber aquecimento e tratamento médico, abatido por profunda depressão, faleceu oito meses depois e antes da Independência do Haiti. No momento de sua detenção, pronunciara frase célebre: “Em me derrubando só abateram em São Domingos o tronco da árvore da liberdade dos negros; ele florirá pelas raízes que são fortes e numerosas.” A figura de Toussaint Louverture tornou-se símbolo maior de Pai da Pátria do Haiti nos séculos XIX e XX, sendo apropriada pelos governos haitianos, inclusive as ditaduras, e seu retrato consta nas repartições públicas, escolas e cerimônias oficiais.

Ao ser levado preso para a França, Toussaint fez-se acompanhar da família. Seus filhos, após sua morte, fixaram residência nesta metrópole europeia. Chama a atenção constatar que os descendentes diretos reconhecidos oficialmente de Toussaint Louverture, na terceira geração, eram brancos, europeus e não mantiveram seu sobrenome35. São numerosas as criações artísticas em torno da figura de Toussaint Louverture, desde o século XIX. Romances, peças teatrais, poemas, pinturas, filmes, sem esquecer dezenas de livros históricos. Um filme televisivo (em dois episódios), Toussaint Louverture, foi lançado em 2012 pela France Télévision: dirigido por Philippe Niang, e teve no papel principal o ator haitiano (e de carreira hollywoodiana) Jymmi Jean-Louis. Trata-se de uma película com impecável reconstituição de época e fiel ao consenso das narrativas historiográficas sobre o personagem: apresenta-o com empatia, não esconde suas contradições e limitações, mas situa sua grandeza histórica, embora acentue o lado “bon nègre” de proximidade com os colonos brancos – que, aliás, está devidamente comprovado pelas análises históricas. Jean-Jacques Dessalines (1758–1806)

Dessalines, trabalhador escravizado que se sagrou Imperador

Nascido escravo, sofreu castigos corporais durante seu cativeiro: proclamou a Independência do Haiti em 1804 e sagrou-se como imperador Jacques I (dezoito anos antes da coroação de Pedro I como imperador do Brasil). É considerado nos relatos de época de europeus entre os mais violentos protagonistas da Revolução do Haiti: comandou, pessoalmente, massacres da população branca e mulata e reprimiu rebeliões de negros ex-escravos em seu governo. Ao mesmo tempo, sua memória é cultuada como um dos Pais da Pátria e serve de referência a propostas de combate ao racismo e pela igualdade social.

Seu local de nascimento dá margens à discussão: para a história oficial no Haiti, ele nasceu numa fazenda da Grande Rivière du Nord (Grann Rivyè dinò em créolle haitiano), região montanhosa onde surgiram as principais rebeliões escravas na ilha caribenha. Segundo outros registros, em geral não francófonos, Dessalines nasceu na costa ocidental da África. Recentes pesquisas apontam que ambas as versões têm sentido: ele teria nascido a bordo do navio negreiro que conduzia sua mãe, grávida, da África para o Novo Mundo. Com a insurreição de 1791, ele se incorpora às tropas sob o comando de Toussaint Louverture e chega ao posto de general. Nos conflitos internos durante a Revolução eclode a guerra civil entre a população negra, liderada por Toussaint, e a população mulata, liderada por André Rigaud. Derrotados os mulatos, os poucos combatentes que escaparam com vida (entre os quais Rigaud) exilaram-se. Entram em cena os generais Henri Christophe e Dessalines que, sob as ordens de Toussaint, percorriam com suas tropas as cidades e campos, chicoteavam publicamente habitantes mulatos, invadiam as casas, matando muitos na hora, inclusive mulheres, crianças, velhos e alguns homens que não haviam participado da guerra. Simultaneamente, Dessalines preservou a vida de muitas famílias brancas no episódio. O mesmo Dessalines, que trazia marcas de castigo físico no corpo, é encarregado de começar a organização do trabalho da população não mais escravizada e da militarização do poder social e político. Em 1802, são ainda as tropas comandadas por Dessalines, entrincheiradas nas colinas de Crête à Pierrot, episódio épico e monumentalizado, que infligem revezes às forças francesas – embora os combatentes haitianos acabem reconhecendo a derrota e seus chefes se entreguem aos colonizadores. Quando chega a notícia do restabelecimento da escravidão nas colônias francesas e da prisão de Toussaint, os chefes negros e mulatos se aliam para uma grande insurreição geral contra a escravidão e o domínio colonial, cabendo a Dessalines o comando supremo do movimento revolucionário. Derrotados os franceses (após os espanhóis e ingleses) em 19 de novembro de 1803, é Dessalines quem proclama a Independência do Haiti em 1 de janeiro de 1804, na cidade de Gonaïves, noroeste da ilha. Entre seus colaboradores próximos estava Boisrond Tonerre, que redigiu a Ata da 36

Independência e, mais tarde, teve seu livro de memórias publicado . Uma das primeiras medidas do novo governante, para prevenir as tentativas de recolonização e escravização, foi exterminar os cerca de 3 mil franceses que ainda restavam no Haiti, embora tenha preservado alguns brancos poloneses e de outras nacionalidades europeias. A Constituição por ele outorgada, em 1805, abolia para sempre a escravidão, mantinha livres todos os habitantes do território, proibia a compra de propriedades por brancos e considerava negros todos os cidadãos do Haiti, não estabelecendo religião oficial e proclamando a liberdade de culto. O autoritarismo do governo Dessalines, proclamado Imperador e Chefe das Forças Armadas vitalício, estendia-se das relações políticas ao trabalho nas grandes plantações, passando pelas agressões contra setores da população por tropas sob seu comando e que incluíam pilhagens e estupros. Inicialmente, ele projetou que o Haiti seria um país literalmente afro-americano: as cidades litorâneas seriam abandonadas, a população se concentraria nas montanhas do interior para se

proteger de invasões e seriam trazidos 500 mil africanos para povoar o território, segundo o historiador Thomas Madiou. Tais intenções não se concretizaram e foram rapidamente abandonadas pelo governante, que se entrelaçou à ação não regulada de comerciantes estrangeiros no Haiti, com destaque para os norte-americanos. Quando, porém, Dessalines procurou beneficiar, sobretudo, integrantes do governo na posse da terra (medida que incomodava a nascente aristocracia fundiária e militar haitiana), ele foi assassinado por um complô do qual participaram Christophe, Rigaud, Pétion, Boyer e Bruno Blanchet – todos futuros presidentes da República. Atraído para uma emboscada na entrada de Port-au-Prince, o imperador Dessalines foi abatido por descargas de tiro de uma tropa militar: em seguida, seu corpo foi linchado, mutilado e os restos arrastados no centro da cidade.

Dessalines, na visão de pintor europeu contemporâneo, com ar feroz e segurando cabeça decepada de uma mulher branca

Uma estátua de Dessalines foi inaugurada em Port-au-Prince em 1910 e, em 1926, erguido um grande mausoléu para ele e Pétion. Há poemas e canções dedicados à sua figura histórica e mitológica, entre os quais o Hino Nacional do Haiti (desde 1904, Centenário da Independência), La Dessalinienne: trata-se de uma marcha militar cuja letra invoca o “País e os Ancestrais”, conclama os habitantes a serem donos do próprio solo e pede que arem a terra com alegria para que os campos frutifiquem. É, a seu modo e talvez a contragosto, uma paradoxal síntese da história da sociedade haitiana. A peça teatral Dessalines ou la passion de l’indépendance ganhou o Prêmio Casa de Las Américas em 1983, publicada em Havana no ano seguinte e encenada no Teatro Municipal Fort-de-France, na

Martinica, em 1994. Seu autor, o martiniquense Vincent Placoly (1946–1992), escritor fecundo, demarcava-se da perspectiva de negritude pan-africana e lutava por uma identidade histórica americana, socialista e revolucionária. A peça exprime uma visão grandiosa e trágica sobre Dessalines, sem ocultar as violências do personagem e seu drama em exterminar a escravidão e não conseguir formular um mundo novo. O romance histórico Dessalines, do suíço Guy Poitry, músico e professor de Literatura francesa, foi publicado em 2007 no Canadá. Henri Christophe (1767–1820)

O trabalhador escravizado e cozinheiro Henri Christophe, um dos líderes revolucionários, sagrou-se Rei após chegar ao poder

Nascido cativo, orgulhava-se em ser “o primeiro monarca coroado do Novo Mundo”. Efetivamente foi o primeiro rei, pois Jean-Jacques Dessalines sagrara-se imperador quatro anos antes. A coroação de Christophe como rei Henri I, na região Norte do Haiti, ocorreu em 1811, sete anos antes da cerimônia equivalente de d. João VI (nascido em Portugal) no Rio de Janeiro. Christophe ficou 14 anos no poder da parte Norte da ilha caribenha, sendo cinco como presidente da República e nove como monarca. Num viés eurocêntrico, a trajetória de Christophe é alvo de incompreensões e desprezo. A nobreza europeia não poupava sarcasmos ao que considerava uma imitação inferior de seus símbolos e instituições. O próprio Louis XVIII (que se recusou a reconhecer a independência da ex-colônia) refere-se em suas memórias à “excelente paródia que um negro de São Domingos fazia do império plebeu de Bonaparte”, acrescentando que acharia graça do fato se não tivesse sido tão afetado por ele. E lamentava: “se esta moda pega, não teremos mais súditos”. O temor de Luís XVIII se explica pela própria trajetória de Christophe.

Filho de escravizados, Henri Christophe nasceu na ilha caribenha de Granada, colônia inglesa. Quando os franceses ocuparam esta ilha em 1779, Christophe foi alforriado por um oficial francês e integrou o Batalhão de Voluntários (negros e mulatos), vindos também de São Domingos, enviado pela França para lutar na Geórgia contra a Inglaterra, a favor da Independência dos EUA – iniciando, assim, na Revolução Americana seu aprendizado militar e político. Logo em seguida, Henri Christophe vai para a cidade do Cabo Francês (Cabo Haitiano), onde, reescravizado, trabalha como mordomo e cozinheiro da hospedaria Albergue da Coroa e também como açougueiro e vendedor de animais para abate, durante uma década e meia, obtendo novamente alforria. Ele não participa da grande insurreição de 1791, mas aparece dois anos depois quando se renova o ímpeto da rebelião e logo se torna um dos oficiais de confiança de Toussaint Louverture, que o promove a general de brigada. Ficou famosa na época sua atitude diante de tropas francesas que chegaram para invadir o território: ao defender Cabo, assediada por forças colonizadoras, Christophe afirmou que destruiria a localidade para não a entregar, promessa que realizou em 1802, incendiando a maior e mais rica cidade do país, da qual só restaram ruínas e cinzas, depois de matar a população branca. Ainda assim, é interessante registrar o testemunho do militar e colono francês, o coronel Malenfant, sobre o complexo perfil do personagem: Cristophe era benquisto pelos mulatos do Norte da Ilha, amigo dos brancos e apresentava “tom e maneiras muito distintas”. Foi um dos principais articuladores da independência em 1804. Na Constituição de 1807, outorgada por ele, a escravidão era abolida para sempre, todos os habitantes do território eram considerados livres, os comerciantes estrangeiros e suas mercadorias ficavam protegidos e a religião católica era a única permitida. O mesmo Christophe, como rei, construiu os maiores monumentos (ainda hoje) do Haiti, como o Palácio de Sans-Souci e a Cidadela La Ferrière. Após um ataque de apoplexia que o deixou parcialmente paralítico, Christophe, diante de um golpe de estado urdido por seus próximos, suicidou-se com um tiro no peito em 1820. Apesar de ter reprimido cruamente rebeliões de cultivadores (antigos escravizados) e de ter sido um dos responsáveis pela introdução do trabalho rural sob controle militar nas fazendas, gerando uma aristocracia política e fundiária, Christophe tornou-se legendário. Seu nome foi uma das bandeiras do pan-africanismo do século XX e nos anos 1960 havia uma Associação de Amigos de Christophe, da qual faziam parte nomes como Pablo Picasso e Alejo Carpentier. Aimé-Cesaire (1913–2008) escreveu a peça La tragédie du roi Christophe em 1963, encenada com repercussão três anos depois no Festival de Artes Negras, em Dakar, Senegal, sob a iniciativa do presidente Leopold Senghor. Cesaire, escritor e homem público martiniquense de dimensão universal, construiu um personagem monumental e trágico, heróico, shakespeariano, que correspondia aos anseios do pan-africanismo dos anos 1950-70, bem como dos movimentos das independências africanas. André Rigaud (1761–1811)

André Rigaud, autoidentificado como mulato, foi um dos principais líderes da Revolução do Haiti

Benoît Joseph André Rigaud, um dos principais líderes dos mulatos na Revolução do Haiti, nasceu na cidade de Cayes, Sul da ilha, filho do oficial de justiça Charles François Rigaud e de uma africana da etnia Arada, Mamzel Rose Bossy. Seu pai teve 13 filhos, sendo oito com sua esposa francesa e cinco com Mamzel Rose. André Rigaud, nascido livre, foi enviado a Bordeaux para aprender o ofício de joalheiro. Retornou às Américas como voluntário das tropas arregimentadas na França para combater pela Independência dos EUA em 1779, ao lado de Henri Christophe e outros que teriam papel destacado nos acontecimentos haitianos. Entusiasta da França, Rigaud percebe a Revolução Francesa como a igualdade entre brancos e gens de couleur, e leva o decreto da Abolição da escravidão ao Sul de São Domingos em 1794. Neste mesmo ano, em nome da República francesa, comanda uma tropa de 2.000 homens mulatos e negros que derrotam as forças britânicas (aliadas aos ultraroyalistes franceses) escravistas na Batalha de Leogane. Rigaud conseguiu escapar do massacre de mulatos, dos quais era líder, efetuado pelas tropas de Toussaint Louverture em 1800 e só retornou 10 anos depois, já com o Haiti independente. Toussaint e Rigaud estiveram presos ao mesmo tempo no Forte Joux, na França, do qual apenas este saiu com vida. Rigaud enfrentou o presidente Alexandre Pétion, também mulato, conseguiu proclamar a secessão de uma parte do território, mas faleceu pouco depois. Alexandre Pétion (1770–1818)

Pétion, mulato, combateu e depois se aliou aos escravos e foi presidente da República

Líder dos mulatos, exerceu a presidência da República do Haiti durante 12 anos, até seu falecimento. Nascido na capital do país, Port-au-Prince, filho de um francês branco e de uma haitiana negra, formou-se na Academia Militar de Paris. Participou dos combates que levaram à expulsão dos ingleses da ilha entre 1794 e 1799. Foi o principal comandante militar da guerra com os negros que veio logo em seguida, sendo responsável pela defesa dos locais diante das tropas de Toussaint, Dessalines e Christophe, que acabaram vitoriosas. Pétion exilou-se na França, de onde retornou em 1802, integrando as tropas do general Leclerc enviadas por Napoleão para recuperar o controle da metrópole sobre o território. Após a prisão de Toussaint, Pétion se alia aos negros na luta comum pela independência e contra a tentativa de Napoleão de reintroduzir a escravidão. Proclamada a Independência do Haiti, Pétion faz oposição a Christophe e a Dessalines, participando da emboscada que assassinou a este. Quando Christophe se torna governante do Norte da ilha, Pétion é eleito presidente da República da região Sul, abrindo uma secessão que só terminaria com sua morte. O governo Pétion foi marcado por uma reforma agrária, quando distribuiu terras de plantações coloniais entre antigos escravos, gerando um campesinato local. Pétion, inicialmente partidário do liberalismo radical e constitucional, acabou por tornar-se presidente vitalício, eliminando o nascente Poder Legislativo do país. Ele acolheu Simón Bolivar como exilado em 1815, dando-lhe apoio de armas e dinheiro para as lutas da independência, pedindo em contrapartida que este proclamasse a abolição da escravatura nas repúblicas da América hispânica. Na Constituição de 1816, outorgada no governo Pétion, estabelecia-se direito de cidadania a africanos ou índios que residissem por pelo menos um ano no Haiti, incentivando, assim, a imigração de negros e indígenas à nação que se

formava, na contramão dos governos Pós-Independências nas Américas. Seu nome eternizou-se como um dos Pais da Pátria, através de monumentos, homenagens e emissões filatélicas. Jean-Pierre Boyer (1776–1850)

Boyer, presidente do Haiti, assinou o acordo com a França, depois de resistir

Integrante das lutas da Revolução desde os primeiros momentos, Boyer, que se identificava como mulato, foi presidente da República do Haiti durante 25 anos (1818–1843). Coube a ele a difícil tarefa de assinar o tratado de reconhecimento da Independência com a França em 1825, cujas consequências foram decisivas para a situação de pobreza e dependência econômica do país nascente, sociedade arrasada após guerras contínuas desde a insurreição de 1791. Assinado sob a ameaça das armas francesas, o tratado foi parcialmente revisto em 1838, ainda sob a articulação de Boyer, que conseguiu redução da dívida de 150 para 90 milhões de francos, no governo do “rei-cidadão” Louis Philippe. Reconhecido como unificador nacional, Boyer reuniu o território haitiano (desmembrado em dois pelo reino de Christophe ao Norte e da República de Pétion ao Sul) e ainda incorporou a parte espanhola (São Domingos) em 1822, governando sobre toda a ilha. Filho de um colono francês e de uma africana da Guiné, Boyer nasceu na capital haitiana no apogeu de prosperidade da “Pérola das Antilhas” e, por coincidência, ano da Independência dos EUA. Ele foi um dos sobreviventes do massacre dos mulatos pelas tropas de Toussaint e Dessalines em 1800, exilando-se na França e retornando com as tropas do general Leclerc dois anos depois. Entusiasta da Revolução Francesa, apoiou a Abolição da escravatura em 1794 e uniu-se às tropas dos negros e mulatos quando Napoleão reintroduziu a escravidão, participando da Proclamação da Independência do Haiti. Boyer fizera oposição a Toussaint Louverture e contribuiu para a queda de Dessalines, tornando-se secretário do presidente Pétion e logo promovido a general. Pétion indicou-o como sucessor. Boyer implementou pesados impostos para viabilizar o pagamento da dívida com a França e reforçou as condições

violentas do trabalho agrícola e, ao mesmo tempo, intensificou a ocidentalização das elites urbanas. Seu governo, após um quarto de século, tornou-se impopular e foi derrubado por uma insurreição, à qual ele se recusou a reagir militarmente: exilou-se na Jamaica e faleceu em Paris. 37

VOCABULÁRIO Vocábulo em créolle haitiano ou francês da França

Tradução (quando cabível) e significado

Ajoupa

Pequena cabana em forma de cone, feita de galhos e coberta de folhas de bananeira ou palmeira; típica habitação da população rural pobre.

Argent de France

Dinheiro da França. Moeda circulante na França e que valia 50% a mais que o meio circulante na colônia.

Argent des colonies

Dinheiro das colônias. Moeda circulante em São Domingos e que era penalizada com as taxas de “moeda colonial”.

Blanc

Branco. Designação genérica dos europeus; aplicava-se também aos colonos de pele branca.

Bois debut

Desmatamento, abater as árvores de um terreno.

Calalou

Prato típico créolle feito à base de folhas de tubérculos/raízes, oriundo da África a adaptado no Caribe.

Carabine

Carabina. Vento forte; potência, força.

Case

Pequena casa, habitação de negros na área rural.

Chemin Carabiné

Caminho “carabinado”. Caminho obstruído, tática usada com frequência durante a insurreição e guerra civil.

Chica

Dança “lúbrica” dos negros.

Colons

Colonos; em geral proprietários de terras e escravos ou administradores estabelecidos na colônia, vinculados aos interesses da metrópole; podiam ser brancos ou gens de couleur.

Commère

Comadre; pacto de amizade que implica em cuidados recíprocos.

Compère

Compadre; pacto de amizade que implica em cuidados recíprocos.

Congo

Negros oriundos de uma região da África; denominação genérica de todos os negros nascidos na África, às vezes hostilizados pelos negros créolles.

Créolle

Crioulo. Qualquer pessoa nascida na colônia, independente da cor da pele.

Cultivateur

Agricultor. No período colonial, denominação dos proprietários de terras e fazendas; após a Independência, passa a ser aplicado aos ex-escravos que permaneciam trabalhando como camponeses.

Ecores

Escarpas montanhosas no litoral marítimo; material acumulado pelo deslizamento de encostas ou represamento de rios.

Fatras

Negro doente ou caduco.

Général

Designação mais comum para o Governador Geral da colônia; posto mais elevado na hierarquia dos chefes militares oriundos das insurreições e da guerra de Independência; título dos primeiros governantes do Haiti.

Gens de couleur

Gentes de cor. Indivíduos livres, nem negros, nem brancos, mas mestiços, mulatos, etc. Eram discriminados juridicamente no período colonial e durante a guerra de Independência travaram combates contra os negros e contra os brancos, aliando-se também a ambos.

Hatte

Haras; local onde se cria cavalos; residências da parte espanhola da Ilha.

Maréchaussée

Grupos de caçadores de escravos fugidos, em geral compostos por negros libertos.

Maron ou Marron

Aquele que habita florestas e bosques; selvagem; fugitivo; em geral aplicado aos cativos que se subtraíam da ordem colonial ou nacional; quilombola.

Morne

Montanha.

Mulâtre

Mestiço de negro com branco; podia designar os homens livres negros ou pardos.

Negrillon

Negrinho.

Obi

Feiticeiro, feitiço.

Ouanga

Feitiço, sortilégio.

Parler nègre

Falar (como) negro. Modo de falar típico dos negros na colônia; linguagem créolle.

Vocábulo em créolle haitiano ou francês da França

Tradução (quando cabível) e significado

Planteur

Denominação genérica dos brancos; agricultor, fazendeiro, proprietário de terra.

Petit blanc

Branquinho; denominação pejorativa aos brancos situados embaixo na hierarquia social e que costumavam ser violentos contra negros e mulatos; mercenários de guerra, capatazes, pequenos funcionários e empregados.

Rechange

Trocar, nova troca. Conjunto de camisa, calça e capa de pano, carregado pelos combatentes durante a guerra.

Rouler

Rolar. Ação dos cilindros dos engenhos ao moer a cana-de-açúcar; diz-se dos engenhos que funcionam.

Sang-Mêlés

Sangues misturados, mestiços. O mesmo que gens de couleur.

Vivres de terre

Víveres da terra. Denominação genérica de víveres (raízes) de subsistência, como batata, mandioca, inhame, etc.

Vivres du pays

Víveres da região. Denominação genérica de víveres de subsistência que não são raízes: bananas, milho, etc. 38

TRAJETÓRIA DE LIBERDADE E VIOLÊNCIA Colonização e Revolução

A ilha batizada por Cristóvão Colombo de Hispaniola, em 1492, tem área de 76.480 km², dos quais cerca da terça parte, 27.750 km² (equivalente ao estado de Alagoas), compõe o Haiti. Colombo, ao desembarcar, encontrara uma população de cerca de 300 mil índios taïnos – quase todos dizimados três décadas depois. A colonização francesa nesta ínsula situada entre o mar do Caribe e o Oceano Atlântico, vizinha de Cuba, inicia-se em meados do século XVII: em 1665 foi nomeado pelo ministro Colbert o primeiro administrador local, Bertrand d’Ogeron. Território que já fora controlado pelos espanhóis e, ainda, cobiçado pelos ingleses. O cultivo da cana-de-açúcar e do café, intensificado nas décadas seguintes à posse francesa, baseava-se no conhecido tripé: agricultura de exportação através do trabalho de escravizados oriundos da África, embora houvesse significativa produção de subsistência. E no resplendor do século das Luzes, por volta de 1766, a Ilha de São Domingos tornara-se a mais próspera das possessões francesas, conhecida como A Pérola das Antilhas. Em 1777, o Tratado de Aranjuez determina a fronteira entre as partes espanhola e francesa da ilha, respectivamente, República Dominicana e o Haiti atuais. Uma rica colônia francesa, isto é, onde os colonos e a metrópole enriqueciam. Gerou-se uma infraestrutura administrativa, com centros urbanos florescentes que encantavam os europeus nos trópicos, entre as quais se destacavam Port-au-Prince e Cabo Francês. Para manter a engrenagem funcionando a todo vapor, em média 40 mil cativos (o equivalente da população considerada branca) vindos da África desembarcaram a cada ano na década de 1780 – verdadeira “africanização” da sociedade que se formava. Juntava-se um sistema particularmente violento no trato com os escravos (mesmo considerando-se a operacionalidade habitual de um sistema escravista) ao comportamento predominante entre proprietários rurais e administradores coloniais, que expressava uma característica da aristocracia francesa: eram socialmente fechados. Baseados não apenas em privilégios e interesses evidentes, mas numa tradição enraizada em costumes, hierarquias, distinções e preconceitos, os grupos dominantes e dirigentes de São Domingos

não se mostravam abertos a incorporar, ainda que seletivamente, indivíduos que tivessem alguma “gota de sangue” africano. Tal fronteira racial marcou a sociedade que ali se constituía. Em meados da década de 1770, havia pequenas e médias fortunas entre libertos e descendentes de escravos já nascidos na colônia, genericamente chamados de gens de couleur – mulatos ou negros livres – dos quais Toussaint Louverture era um exemplo. A estes não era dado direito político e os direitos civis mantinham-se restritos – sem contar a hostilidade cotidiana dos preconceitos. Ou seja, criaram-se condições sociais e econômicas visivelmente entravadas pela organização política. Somando-se estas características (entrada massiva de africanos, riquezas acumuladas, emergente elite negra e “mestiça” discriminada e colonos e dirigentes – que se consideravam – brancos em minoria, violentos e ostensivamente preconceituosos), temos um quadro potencialmente gerador de uma revolução social. O temor, na época, por parte dos defensores da ordem, era que o mesmo poderia ocorrer em outras colônias nas Américas. A população de São Domingos no momento da Revolução Francesa, estimada em 520 mil habitantes e classificada pelos critérios sociorraciais de um de seus colonos, expressa a desigualdade e a desproporção.

Divisão sociorracial da população de São Domingos em 1789 Fonte: Moreau de Saint-Méry, 1796.

E uma crise sem precedentes eclodiria no centro do poder metropolitano, enfraquecendo-o. No dia 14 de julho de 1789, quando a Bastilha (tradicional e lúgubre cárcere em Paris, inclusive de presos de opinião, local notório de torturas e símbolo da tirania, embora em franco desuso naquele momento) foi tomada e derrubada por uma multidão, pelo menos dois personagens ligados a São Domingos estavam diretamente envolvidos. O abade Henri Grégoire, deputado do Clero, presidia nesta data a sessão dos Estados Gerais, que se transformariam em Assembleia Constituinte; e o colono Moreau de Saint-Mery, nascido na Martinica, que acabara de publicar sua monumental obra sobre a ilha de São Domingos (propondo um intrincado sistema de classificação racial para fundamentar a hierarquização das divisões raciais e sociais, cf. Parte I), atuava como um dos mais ardentes demolidores das pedras da Bastilha, incitando a população neste sentido. No ano anterior, Grégoire defendera um projeto para instaurar a igualdade de direitos entre os habitantes livres da Pérola das Antilhas, sem distinção racial, o que, mesmo sem tocar na escravidão, causou verdadeira repulsa e mobilização dos tradicionais grupos de poder locais. Tanto que, no dia

em que eclodiu a insurreição geral dos escravos, em 1791, um dos primeiros gestos dos colonos encurralados na cidade de Cabo Francês foi enforcar publicamente uma escultura em busto deste 39

religioso francês . É tentador – e ainda recorrente – apontar a Revolução Francesa, ou sua “influência”, como causa da Revolução do Haiti. Explicação, aliás, tocada por sutis preconceitos: teriam sido as “ideias” ou o “reflexo dos acontecimentos” que estimularam e, de certo modo, ensinaram os cativos a se rebelarem. Sem as Luzes da metrópole, como os escravizados e colonizados poderiam tomar o destino em suas próprias mãos? Curioso paradoxo: até para se libertar, a colônia necessitaria do condicionamento metropolitano. Tal análise parte de um pressuposto evidente: o enfraquecimento do poder da metrópole facilita a destruição das estruturas coloniais. Mas para que tal ocorra, os agentes históricos são indispensáveis, as ideias não fazem mágicas sozinhas. E ao se compreender de maneira unilateral que somente, ou sobretudo, a “influência” metropolitana é capaz de gerar transformação na sociedade colonial, resvala-se para um ponto de vista eurocêntrico que, convenhamos, contaminou parte da historiografia francesa sobre o tema. Anote-se que o próprio Toussaint Louverture incorporou tal perspectiva, ao afirmar que ele próprio era a encarnação do Spartacus negro apregoada pelo abade Raynal. Uma das bases do conhecimento histórico é a de que não é possível entender uma época, apenas, pela consciência dos protagonistas. Haveria quem se aventure em afirmar, ainda hoje, que a Revolução do Haiti não teria ocorrido se Louverture não houvesse lido Raynal? Os estudos históricos fragilizam-se quando a análise e comprovação documental são substituídas por projeções de tipo patriótica ou de superioridade cultural. Tal tendência (de ascendência primordial e decisiva das “ideias” oriundas da França) encontra, pelo menos, dois questionamentos. Os revolucionários franceses, com exceções, não só deixaram de lado o duplo “problema” da escravidão e da colonização: muitos apoiavam a manutenção de ambas, alguns defendiam de modo hesitante e ambíguo a abolição da primeira e quase nenhum ousava, inicialmente, atacar o domínio colonial. Mas, como já assinalara o historiador C. R. James, foi, ao contrário, a Revolução do Haiti que forçou a Revolução Francesa a levar adiante, efetivar e universalizar a defesa dos propalados 40

direitos do homem (e do cidadão, não esqueçamos) . Quando, finalmente, a França revolucionária resolve abolir a escravidão de suas colônias, em 1794, o escravismo já estava destruído de fato em São Domingos pela ação, revolucionária também, de seus habitantes escravos, libertos e livres. Ou seja: o enfraquecimento do centro de poder da metrópole favoreceu a eclosão de forças potencialmente revolucionárias, já existentes na sociedade escravista colonial da ilha do Caribe. Estas, por sua vez, agiram e interferiram em aspectos importantes da revolução ocorrida na metrópole, cujos rumos, a seu turno, evidentemente transformaram a situação escravista colonial. É mais lógico, portanto, enxergar fatores recíprocos de contatos, repercussões e transformações do que atribuir apenas a um dos polos a predominância da dimensão revolucionária. Considera-se, pois, duas

revoluções, a francesa e a haitiana, entrelaçadas, mas com alcance, dinâmicas, características e objetivos próprios. O segundo questionamento refere-se a uma experiência acumulada de rebeliões e resistências escravas na ilha caribenha, assim como de insatisfação dos libertos e livres, mulatos e negros, além de escassos e isolados brancos (considerados como tal) solidários e que apoiariam ou até participariam da grande insurreição. Já em 1745 ocorrera uma impressionante manifestação coletiva e subterrânea de escravos liderada por Mackandal, cujo resultado foi envenenar sistematicamente famílias inteiras de colonos e também cativos que lhes eram fiéis. Os episódios sucederam-se causando centenas de mortes e deixando a população branca em um verdadeiro terror, elevando a tensão social a um patamar de violência repressiva e minando as bases da sociedade escravista. Tal conspiração, descoberta, foi acompanhada de marronage (fuga para regiões de difícil acesso ou formação de quilombos), desafiou as autoridades coloniais – e, somente em 1758, Mackandal, sacerdote do vodu, foi preso e queimado vivo em praça pública. Na década de 1780 eclodiram rebeliões escravas de curto alcance e invariavelmente reprimidas, seja com execução sumária, violentos castigos corporais ou suplícios públicos – os macabros espetáculos de punição41. Até que ponto o aspecto, digamos, pedagógico destas encenações sanguinolentas (como ressalta M. Foucault,) não pode, além de servir de exemplo e aterrorizar, ter acumulado ressentimentos e acirrado insatisfações contidas, isto é, ser percebido como contraexemplo? Ou seja, ter um efeito bumerangue contrário ao do intencionado pelos “pedagogos do terror”? Está claro, como já foi dito, que as transformações e as disputas no centro de poder metropolitano abriam possibilidade para que ele próprio fosse contestado, modificado – e até destruído enquanto tal. E cada grupo buscou se mobilizar à sua maneira. Os colonos proprietários, desde 1788, reivindicavam eleger deputados para os Estados Gerais, assim como os mulatos e negros livres da colônia queriam ampliar seus espaços socioeconômicos e políticos. As reivindicações dos proprietários acabariam atendidas, mas de forma restrita e, a certa altura, insuficientes: tomaram posse no Parlamento francês seis deputados de São Domingos, dois de Guadalupe e dois da Martinica – todos, aliás, defendendo a manutenção da escravidão e opondo-se aos direitos dos mulatos e negros livres. A própria Assembleia Nacional francesa aprova em 1790 a criação de uma Assembleia Colonial em São Domingos, em benefício dos proprietários, que souberam se articular e impor seus interesses. Esta Assembleia não teve longa duração: em seus primeiros passos contestava a maior parte das decisões oriundas da Revolução Francesa e tendia à Proclamação da Independência; mas alguns dos representantes eleitos, quando estavam a caminho do Parlamento local, foram literalmente pegos pela insurreição dos escravos e massacrados. A situação dos chamados “homens de cor” (mulatos) livres era tensa. Reivindicavam os direitos de cidadania plena e esbarravam na intolerância colonial e racial. No verão de 1790 ocorrem linchamentos de mulatos em várias localidades. Vicent Ogé, um mulato livre, vai a Paris onde tenta

articular ações em favor dos direitos de seus semelhantes e, sem obter resultados efetivos, retorna a São Domingos e começa a organizar um movimento armado. Ogé foi executado em 1791, em praça pública, na roda, suplício que consistia em amarrar o condenado numa espécie de cruz em forma de X, quebrar-lhe os membros com uma maça e, em seguida, atar-lhe o corpo a uma roda, que se fazia girar. Na semana seguinte, em contrapartida, assiste-se a morte e decapitação do coronel Thomas Mauduit, defensor da autoridade monárquica em Port-au-Prince. E no dia 20 de agosto, logo após o início da insurreição dos escravos, grupos armados de mulatos massacraram homens brancos. Até então, os “homens de cor” livres em São Domingos não tendiam a aliar-se com a população negra – escrava ou livre. Buscavam, ao contrário, equipararem-se à condição dos colonos e, por isso, guerreavam ao lado destes. Até este momento os escravos, à sua maneira, também vivenciavam o contexto, percebiam a situação e os conflitos e participavam daquelas lutas, com suas próprias estratégias, em busca de liberdade. Em janeiro de 1791 eclode rebelião de escravos em Platon, com a participação de JeanBaptiste Perrier (Goman), um líder rebelde que continuaria a lutar contra as opressões após a Independência do Haiti. Somente numa fazenda, cinquenta cativos (não rebeldes) são degolados em represália. Os escravizados tornavam-se atores das lutas revolucionárias. No dia 22 de agosto ocorreu a mítica, mas verídica, cerimônia no bosque Caïman. Em meio à floresta, à noite, iluminados por fogueiras, cativos reúnem-se para celebrar e confirmar o que estava por acontecer, depois de reuniões urdidas em segredo e paciência, por lugares diversos da ilha. Em certo momento todas as atenções se concentraram em Bouckman, cativo jamaicano, sacerdote vodu e marron que naquela noite (dizem) chuvosa, declamou: O Bom Deus que fez o sol que nos ilumina lá do alto que levanta o mar e faz rugir o trovão Escutem bem vocês O Bom Deus escondido numa nuvem nos olha Ele vê o que fazem os Brancos O Deus dos Brancos pede o crime O vosso quer o Bem. Mas se o Deus que está tão longe lhes ordena a vingança Ele dirigirá nossos passos Ele nos assistirá Desprezem a imagem do Deus dos Brancos

que tem sede de nossas lágrimas Escutem a liberdade que fala a nosso coração42.

Bouckman convocava (simbólica e efetivamente) todos os escravos para a sublevação geral. Logo nos primeiros embates, ele foi morto pelos colonos que cortaram sua cabeça e a expuseram espetada numa vara na principal Praça de Cabo Francês, o que causou consternação entre os insurretos. O vodu foi um dos principais motores de motivação e coesão que impulsionou o protagonismo dos trabalhadores escravizados, constituindo-se para estes num dos raros espaços de autonomia, como 43

assinalou a historiadora Carolyn Fick . É preciso descartar os estereótipos extravagantes fabricados em tornos destas manifestações para compreendê-las como religião estruturada em bases de cultos africanos de origens diversificadas e sincréticas ao catolicismo, guardando semelhança com os cultos de umbanda e candomblé no Brasil e com a santería cubana44. O vodu era, ao mesmo tempo, modo de expressão e canal de evasão psicológica que ajudava na resistência à vida dura dos trabalhadores e trabalhadoras escravos, interligando-os aos deuses (loas) e, de um modo mais remoto, ao “Bon Dieu” presente na oração guerreira de Bouckman e que não tinha o significado de um Deus poderoso, mas, num sentido amplo, o Destino, conforme assinalaram Pierre Verger e Alfred Métraux em estudo conjunto. Os cativos, graças a tal resistência, dentro das condições históricas específicas em que viviam, passaram à rebelião para mudar suas vidas e, até, à revolução para destruir o sistema social em que viviam. O vodu, portanto, significou a estes trabalhadores escravizados um suporte afetivo que lhes deu força para valorizarem sua condição humana e romperem os mecanismos básicos de opressão. Como alertou C. Fick, a Revolução Haitiana não se caracterizou apenas por seu caráter moderno-contemporâneo no sentido da civilização ocidental e da modernidade política: as tradicionais culturas de origem africana, com predomínio das originárias do Golfo de Benin, foram elementos fundamentais na luta revolucionária. Em novembro de 1791, três meses depois do início da insurreição, fez-se o balanço: cerca de mil brancos mortos; 15 mil escravos dados como desaparecidos; 200 engenhos de açúcar (num total de 793) e 1,2 mil plantações de café (total de 3.120) incendiados e saqueados; canais de irrigação destruídos; gado sacrificado. Alguns fazendeiros conseguiram desmontar suas instalações e embarcar com máquinas e escravos para Cuba ou os Estados Unidos. A maioria se refugiou na cidade do Cabo esperando reforços da França. No apogeu do levante, o céu ficou coberto de fumaça durante 15 dias em todo o Norte da Ilha, devido à queimada nas plantações. De dia, céu cinzento. À noite, os campos pareciam semeados de vulcões. Queimadas. O aspecto do país era estarrecedor: ao longo das estradas e caminhos viam-se fileiras de corpos de soldados e civis brancos enforcados nas árvores, ainda pendurados; prática semelhante ocorria do lado francês, quando as árvores nas rotas até às cidades e fortalezas ostentavam cadáveres pendurados de rebeldes; as paliçadas erguidas pelos insurretos nos campos costumavam ter cabeças de brancos espetadas nas pontas; os proprietários e militares franceses usavam cães de tipo mastim treinados para serem antropófagos (comiam habitualmente carne de corpos de escravizados), causando verdadeira matança entre os combatentes negros, os quais, quando pegos, raramente

sobreviviam: ou eram mortos imediatamente, ou sob longas torturas, quando os corpos eram despedaçados aos poucos, com os prisioneiro ainda vivos; muitos dos brancos capturados pelos rebelados sofriam atrozes castigos: olhos arrancados, corpos cozidos em fogo brando, serrados ao meio. Eram os “horrores de São Domingos”, cujas narrativas tornaram-se famosas mundo a fora. As ferocidades se equivaliam, os procedimentos eram quase os mesmos, causando sofrimentos terríveis em ambos os lados do conflito. Apesar da brutalidade em comum, havia demarcação entre a violência dos opressores e a dos oprimidos: uns lutavam para manter a escravidão, outros, para erradicá-la. Como testemunhou o coronel Malenfant, integrante das tropas francesas que combateram a Revolução do Haiti, negros e mulatos “lutavam com um sangue frio e uma coragem heróica”, muitas vezes desarmados45. A insurreição se transformaria em guerra civil que duraria 12 anos. Parecia o fim dos tempos. As ordens social, econômica e política eram destruídas. Mas o que viria em seu lugar?

Os “horrores de São Domingos”: militares brancos enforcados em fileira de postes. Negros e mulatos eram tratados do mesmo modo pelos brancos

Jogo de alianças e as cores dos revolucionários A guerra civil tornou-se, simultaneamente, combate externo, com a entrada em cena de tropas europeias (francesas, espanholas e inglesas) – e em ambos os casos, guerra de extermínio, embora

tenham ocorrido negociações recíprocas e alianças com alguma frequência. Em termos internos, no período inicial dos embates, havia mulatos que combatiam ao lado e contra os colonos brancos; estes, combatiam negros e atacavam mulatos; e os negros atacavam preferencialmente os brancos (e mulatos aliados). Entre negros e mulatos alternaram-se momentos de aliança e de conflito. Acrescente-se que, a partir de 1792, ocorrem combates entre brancos da colônia e brancos da metrópole, bem como entre monarquistas contrarrevolucionários e republicanos. Na verdade, os brancos da colônia, minoritários, tinham o maior número de adversários, daí a dificuldade de sua sobrevivência como grupo social. Em torno de 1799, eclodem violentos confrontos entre negros e mulatos, a chamada Guerra do Sul: as tropas lideradas por André Rigaud enfrentaram as forças de Toussaint Louverture. Inicialmente os mulatos ganharam batalhas, mas, ao final, o general Jean-Jacques Dessalines, sob as ordens de Toussaint, vence a disputa, matando em combate ou por extermínio entre 5 mil e 10 mil mulatos, segundo fontes da época. Porém, as forças dos negros e dos mulatos se reunificaram entre 1802 e 1804 para fazer frente aos inimigos principais e comuns: a colonização e a ameaça de retorno da escravidão. Foi, assim, uma guerra revolucionária, não uma rebelião localizada contra o cativeiro. Na expressão do historiador norte-americano Eugene Genovese: passaram da rebelião à revolução. E, a partir de 1804, proclamada a Independência, tratava-se de definir os novos donos do poder. Recrudescem os conflitos internos entre negros e mulatos, gerando mortes e separatismo territorial, tendo como pano de fundo, apesar do bloqueio formal imposto à Ilha, a presença econômica massiva, predatória e não regularizada das potências estrangeiras antigas e das emergentes. Convém destacar que o perfil dos grupos revolucionários nesta longa guerra era mais colorido do que seus rótulos de pertencimento: nas tropas onde predominavam negros, havia, com frequência, mulatos entre soldados e em postos de comando – e vice-versa. Alguns poucos brancos foram fuzilados por aderirem à Revolução, sobretudo soldados desertores, mas também figuras como um 46

pároco do interior, um estudante francês jacobino, entre outros desconhecidos . Há o episódio de cerca de cinco mil soldados poloneses levados à força com a expedição do general Leclerc em 1802 que desertaram em massa e se passaram para o lado dos combatentes haitianos: aceitos e incorporados pelo governo Dessalines, deixaram descendentes ainda hoje identificados47. Sem elidir a curiosa exceção de um colono branco, Mallet, proprietário de terras engajado nas tropas revolucionárias e que foi um dos signatários da Ata de Independência do Haiti em 1804. Um esquema explicativo relativamente simples é classificar os integrantes daquela sociedade em três etiquetas sociopolíticas e raciais: • negros/revolucionários/miseráveis socialmente; • mulatos/moderados/remediados financeiramente; • brancos/reacionários/ricos. Rotulação talvez fácil demais48. Há consideráveis nuances, variantes e certas objeções. Esta divisão faz sentido na medida em que o conflito mais importante era entre os escravos e os senhores e

as diferenças sociais e políticas vinham etiquetadas pela identidade racial. O principal motor de transformação foi a luta dos trabalhadores escravizados. Mas a Revolução do Haiti, apesar deste eixo central de confronto, foi multicolorida e, não, conduzida unicamente pelos cativos, embora estes tenham constituído sua principal força e identidade. Ao contrário, pode-se dizer que a condução política, ao final das contas e da Revolução, ficou nas mãos dos negros e mulatos, libertos ou livres já anteriormente a 1791.

Mulher créolle e mulata cercada por duas escravas negras na colônia francesa de São Domingos

Algumas das importantes lideranças negras já eram libertas antes da insurreição, como Henri Christophe, mordomo, cozinheiro e pequeno comerciante. Toussaint Louverture, alforriado, conseguiu amealhar razoável fortuna como médio proprietário rural – perdida em grande parte durante a guerra. Ao ser preso e remetido para a França em 1803, queixando-se de empobrecimento, ele ainda possuía quatro plantações de café, roças de subsistência e um haras (ha e), nos quais trabalhavam cultivadores (ex-escravos) – bens que foram destruídos ou confiscados pelos franceses e pelos primeiros governantes haitianos, gerando posterior disputa judicial com os poucos herdeiros diretos de Toussaint. Louverture não era o único negro em tal situação financeira – embora, evidente, a maioria da população negra da Ilha, escravizada, vivia em condições de exploração. Muitos combatentes mulatos (alguns lutando sob a liderança de Toussaint) não tinham o mesmo cabedal que alguns chefes negros. Sem esquecer os brancos pobres, os petits blancs, pequenos funcionários, empregados de baixa renda e soldados: alguns se tornaram ferozes inimigos dos

revolucionários e outros, ao contrário, aderiram a eles. Além disso, os dirigentes mulatos em geral tinham perfil político mais afinado com a modernidade política (republicanismo, sistema representativo), enquanto as primeiras lideranças negras eram monarquistas, oficialmente católicas e davam limites estreitos à representatividade política. A militarização do poder, o constitucionalismo e o autoritarismo pessoal e estatal perpassavam todas as tendências dos grupos dirigentes da Revolução do Haiti – e pelas Américas nesta época as disposições não foram muito diferentes. Portanto, ainda que tais rótulos de pertencimento político, social e racial fizessem sentido e funcionassem como referência efetiva, eles também encobriam realidades diversificadas. Ou, como sintetizou o historiador haitiano H. Pauléus-Sannon, era “um conflito em que os partidos se confundiam com as classes e as classes com as cores”49. Parece-me mais promissor, portanto, compreender as demarcações não como estritamente raciais, mas, sim, pertencimento a campos sociais e políticos cujas configurações e alianças poderiam ser mutáveis. Ou seja, os campos políticos e sociais nomeados como dos negros, dos mulatos e dos brancos. Junte-se ao perfil pluriétnico dos participantes da Revolução do Haiti uma presença certamente minoritária e de pouca visibilidade, aparentemente isolada e talvez minimizada: os índios. Embora estes sejam dados de forma recorrente como extintos na Ilha já nas primeiras décadas do século XVI, devido à política genocida dos conquistadores espanhóis, sabe-se que integrantes das populações originárias sobreviveram e mantiveram reduzida parcela do território; e indígenas de outras localidades foram para lá. Em seu clássico Histoire de Haiti, publicado em 1847, Thomas Madiou afirma que na década de 1780 ainda havia grupos indígenas “sem sangue misturado” e vivendo sob a chefia de caciques50. Registrou-se em 1791 a ação de uns certos irmãos Page, na localidade de Caimites, Jerémy, que diante da explosão revolucionária assassinaram uma família de brancos. De acordo com um testemunho, estes Page não eram mulatos, mas “sempre foram vistos como descendentes de uma família indígena” e que “estes infelizes estavam talvez animados deste ódio que os últimos de um povo imenso devem naturalmente ter em relação aos europeus”. Ou seja, estariam entre os descendentes diretos da população pré-colombiana da Ilha51. A Tábua das Raças, elaborada pelo colono Moreau de Saint-Méry (v. adiante, A impossível matemática da classificação racial), inclui com relevo as “misturas” indígenas na população, com o alerta de que os índios podiam ser confundidos com os mulatos (t. I, p. 89). A especificidade indígena, segundo o mesmo autor, que escreveu na década de 1780, aparecia em duas maneiras: do ponto de vista físico, os cabelos eram mais lisos e longos ou menos crespos; mas a diferenciação principal era política e cultural, pois na sociedade colonial francesa em São Domingos os indígenas (que viviam e eram reconhecidos como tal) tinham estatuto diferenciado dos negros e mulatos e mais próximo dos brancos, porém, caso se misturassem ao “sangue” negro ou mulato, seus descendentes automaticamente perdiam tais condições e passavam a ser tratados com as mesmas restrições destes dois setores.

Indicativo da presença indígena no período imediato Pós-Independência do Haiti está na Constituição de 1816, outorgada pelo presidente Alexandre Petion e utilizada por seu sucessor, JeanPierre Boyer. Nela constava que africanos, índios e seus descendentes, quando nascidos no exterior, teriam direito de cidadania após um ano de residência no Haiti. O que aponta para um incentivo à imigração ou incorporação de africanos e indígenas (isto é, não europeus) numa sociedade cujo índice de mortandade foi expressivo, após 12 anos de guerras; embora incentivar a vinda de grupos de outros países possa ser visto como tentativa de dissolver uma tradição de resistência criada entre a população pobre oriunda da escravidão e que vivenciara as guerras revolucionárias. Na contramão da maioria dos países americanos recém-independentes, os governantes haitianos não valorizavam a vinda de novos colonos europeus, o que se explica, justamente, pelo trauma e amplitude dos conflitos ainda recentes na especificidade de seu modelo de independência. Mas fica o indicativo: a invisibilidade ou mesmo dissolução da identidade das populações indígenas da ilha de São Domingos parece ter se efetivado de modo mais incisivo a partir da Revolução Haitiana. Fatores se entrelaçavam no processo revolucionário: a presença das tropas europeias na Ilha expressa, por um lado, as tentativas das grandes potências em se beneficiarem da situação indefinida e, por outro, o habilidoso e arriscado jogo de alianças das lideranças revolucionárias locais. Afirmar que a Revolução do Haiti só ocorreu devido ao apoio da Inglaterra que pretendia estender ali seu imperialismo é uma constatação incompleta, imprecisa e que ignora os conflitos e desentendimentos entre as autoridades britânicas e haitianas. Os caminhos foram mais complexos, pois até a “Rainha dos Mares” foi derrotada, ali, em suas pretensões iniciais. Os espanhóis instigaram, inicialmente, a insurreição escrava, para enfraquecer o domínio francês. Em 1793, tal procedimento ocorre às claras: os insurretos e suas lideranças aliam-se formalmente aos espanhóis, recebendo armas, munição e dinheiro. Enquanto isso, os ingleses aliaram-se aos colonos locais. Espanha e Inglaterra haviam decretado guerra à França depois da morte de Luís XVI na guilhotina. A França, para não perder o controle do território, decreta a Abolição da escravatura em 1794 – o que leva as tropas de escravos a fazer meia volta e se juntarem à metrópole: aniquilam os espanhóis, aliados de véspera. Restavam em cena, portanto, os ingleses e os franceses. As tropas revolucionárias, em sua maioria composta por ex-escravos, apoiadas agora pelos franceses, entram em confronto com os ingleses, derrotando-os fragorosamente. E assim restou uma potência em campo, a França. Napoleão Bonaparte, em 1802, decretou a volta da escravidão nas colônias, aliando-se às pressões da burguesia comercial marítima e dos antigos proprietários de terras e escravos que haviam perdido 52

seus bens. Medida que provocou insurreição geral em São Domingos, unindo negros e mulatos . Os franceses foram militarmente derrotados pelas tropas revolucionárias (e pela febre amarela) em 1803, além de atacados pela esquadra inglesa que, interessada em barrar a presença de Bonaparte nas Antilhas, auxilia indiretamente as forças dos insurretos da Ilha, em momento decisivo. As três potências foram, assim, eliminadas do exercício direto do poder militar e político local. Está claro que não foi um processo tão linear e simétrico, mas permeado de avanços, recuos, contradições, ambivalências e traições de todos os lados. E, após a Independência do Haiti, estas e outras potências,

como os Estados Unidos da América, passariam a ter ingerência econômica no território. O comerciante inglês Marcus Rainsford, participante destas movimentações, conviveu com as principais lideranças haitianas e publicou, já em 1802 e 1805, interessantes relatos de viagem (com muitas peripécias) ao Haiti no período da Independência. No final das contas, é pertinente assinalar não apenas as manipulações europeias, mas, também, as manipulações dos negros e mulatos, que se tornaram haitianos. Ou seja, os revolucionários antilhanos receberam, em momentos diferentes, apoio em armas, dinheiro e ação política e militar da Espanha, França e Inglaterra – três potências que acabariam derrotadas por eles no campo militar e político. O insuspeito general Pamphile de Lacroix, um dos comandantes das tropas francesas enviadas por Napoleão na tentativa de recuperar São Domingos, alertou dos perigos para a atitude europeia de “negociar com o furor dos negros”53. Ou seja, as manipulações eram recíprocas – e arriscadas. Sob este ângulo, é sugestivo o episódio da rendição dos ingleses que chegaram a ocupar partes da Ilha em 1798. Depois de intensos combates, as tropas de Toussaint Louverture, aliadas aos franceses, expulsaram as forças britânicas de Port au Prince, mas poupando sobreviventes e permitindo que os derrotados levassem seus armamentos de volta – o que irritou as autoridades francesas. Não satisfeito com o resultado, Toussaint ajustou com o general Maitland, chefe das forças inglesas, uma rendição pomposa em Môle de Saint Nicolas, à beira mar. Armou-se então uma tenda luxuosa para o líder negro que, após usufruir banquete suntuoso e receber presentes em nome do rei da Inglaterra, passou em revista a tropa de 6 mil homens (inclusive as guarnições da esquadra) que desfilaram diante dele. A “Rainha dos Mares” capitulava perante o general que nascera escravo54. E os aliados da “Pátria das Luzes” viam-se a reboque da iniciativa das tropas de negros e mulatos. Toussaint Louverture foi um líder decisivo e de visível talento. Mas um processo desta amplitude não pode ser explicado somente pela ação de um indivíduo, por mais significativa que fosse. Entram aí, no âmbito dos agentes históricos, lideranças secundárias e localizadas e, sobretudo, os milhares de homens e mulheres em armas, as mulheres desempenhando papel decisivo nas áreas rurais e urbanas, enfim, toda uma teia de inteligências e coragens que custaram muitas vidas, mas que obtiveram vitórias e conquistaram o que eles consideravam a liberdade: extinguir o domínio colonial e a escravidão. O aprendizado destas alianças políticas foi, muitas vezes, intenso e doloroso, marcado por decepções e revezes. Seria ingênuo atribuir a uma astúcia maquiavélica e friamente premeditada de um ou dois indivíduos esta alternância de acordos com as potências europeias, que envolviam número considerável de pessoas. Claro que a posição e a experiência levaram as principais lideranças, com o tempo, a terem manejo e perspectiva das táticas e estratégicas políticas – não apenas militares. Um exemplo do significado que poderiam ter as alianças é o caso do general e chefe de brigada Jean-Baptiste Rousselot, mulato, promovido ao posto militar pelo próprio Toussaint. Rousselot recebera deste o apelido “Dommage”, pois, ao vê-lo receber um tiro numa batalha, o líder das tropas revolucionárias usou esta exclamação55.

Dommage, pois, comandava uma brigada de soldados que ocupou a cidade de Jéremy, mas impediu que parte da população branca (sobretudo mulheres, velhos e crianças) fosse exterminada, como acontecia com frequência. Mantendo-se fiel à sua linha política de universalidade dos direitos e unidade da condição humana, ele ganhou a estima e o respeito dos sobreviventes e passou a comandar as tropas no local com relativa tranquilidade. Porém, vítima de intriga de outros chefes militares próximos a ele e que ambicionavam seu cargo, foi denunciado como traidor às autoridades francesas que ainda permaneciam na Ilha em guerra, em 1803, sendo preso e levado a Cabo Francês – onde foi sumariamente julgado e condenado à morte. Os dois carrascos, negros, recusaram-se a enforcá-lo e, assim, Rousselot foi fuzilado e seu corpo arrastado pelas ruas e pregado no centro da Praça Real, onde ficou em exposição por 48 horas. O ódio e o pânico sobrepujavam as estratégias políticas. Ao saber de sua condenação, Dommage, aos prantos, fizera o seguinte desabafo: – Minha morte fará mal aos brancos, mais do que eles pensam, pois ficará provado aos negros e mulatos que os franceses não sabem sequer respeitar seus amigos, nem mesmo os que melhor lhes renderam serviços. Minha morte trágica vai tirar-lhes toda a confiança da parte dos homens de cor, que verão claramente que só podem contar com o ferro e o fogo para evitar o retorno da escravidão56. Compreende-se a aflição de Dommage pela morte iminente, mas também pela decepção: nascido e criado numa sociedade colonial francesa, não estava isento dos valores e padrões deste ambiente, mesmo quando assumia a luta contra a escravidão. A Proclamação dos Direitos do Homem, oriunda da França, poderia ter valor para ele. Juntem-se características pessoais que valorizavam a fraternidade e a unidade da espécie humana, ou seja, contra qualquer discriminação racial. Extrair de suas próprias entranhas o opressor é sempre difícil. Em qualquer época – mesmo em tempos de revolução – as pessoas pensam, sentem e agem baseadas em referências diversas, por vezes contraditórias, marcando identidades políticas híbridas, que se transformam no calor dos acontecimentos – às vezes tarde demais57. De qualquer modo, Dommage não se equivocou em sua predição final. O poder se transforma Quais demandas os escravizados expressavam, por palavras, além de seus eloquentes gestos, nos primeiros tempos da insurreição (segundo semestre de 1791)? Os estudos historiográficos mais consistentes indicam: alegavam lutar em defesa do rei da França. Os relatos escritos destes episódios foram redigidos por homens brancos, no sentido político e racial. Porém, não eram relatos unívocos, pois, em vários casos, registros não oficiais “mostram que os insurgentes estavam construindo uma contra sociedade, na qual os brancos seriam instrumentalizados para servir aos propósitos dos membros da outra raça”, como assinalou o historiador Jeremy Popkin em análise sobre os testemunhos oculares da insurreição de 179158. Há testemunhos de franceses – monarquistas ou não – e de espanhóis indicando que dentre as primeiras manifestações, verbais ou escritas, de cativos, corria a explicação de que tinham se

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levantado em defesa de Louis XVI, preso em Paris porque teria decidido libertar os negros . Outros registros dão conta de que o rei teria decretado, não a abolição, mas o direito ao repouso semanal de três dias para os trabalhadores escravizados – medida que colonos locais pretenderiam sabotar. Um comerciante francês, que se encontrava em São Domingos nos primeiros tempos da insurreição, afirma: escravos rebeldes feitos prisioneiros pelas tropas francesas afirmavam estar lutando em defesa do Rei e do Clero; e arvoravam um estandarte branco (semelhante à bandeira da França monárquica). 60

Perplexo, o negociante indagava: “Quem lhes ensinou estas máximas?”

Relatos como este são

61

constantes . Temos, assim, uma releitura instigante e negativa da Revolução Francesa feita por escravizados do outro lado do Atlântico – embora esta não tenha sido a única motivação expressa. Sem esquecer que as primeiras lideranças dos escravos que se libertavam, como Toussaint Louverture, Jean-Jacques Dessalines e Henri Christophe, eram abertamente adeptas da forma de governo monárquica. Sob este ângulo, a Revolução Francesa era percebida como adversária dos escravizados que iniciavam a luta revolucionária – não como matriz inspiradora. Quando o rei se viu aprisionado em Varennes, em 21 de junho de 1791, passou a ser, literalmente, cativo da Assembleia Nacional, ainda que formalmente mantido na condição de soberano da monarquia constitucional durante três meses, quando foi destituído e, posteriormente, guilhotinado em Paris a 21 de janeiro de 1793. A relação entre os revolucionários franceses (dentre os quais havia desde abolicionistas até ferrenhos proprietários de escravos) e os revolucionários haitianos foi tensa, complexa e paradoxal. A detenção da família real francesa parece ter sido um dos estopins (ou rastilho) da insurreição dos escravizados (ainda que as expectativas abolicionistas ou emancipacionistas atribuídas ao monarca fossem infundadas62), anotando-se a rapidez com que a notícia chegara da metrópole e espalhara-se: exatos dois meses entre a detenção do rei e o levante na Pérola das Antilhas, numa espécie de projeção de empatia entre os escravizados e o longínquo rei colocado no cativeiro. É mais um exemplo da circulação da palavra impressa, manuscrita e falada – e de que os rumores não são simples mentiras, mas podem se converter, em determinadas circunstâncias, em energia mobilizadora de agentes históricos. Apesar destas evidências, rotular os escravizados em rebelião como monarquistas e tradicionalistas, porém, me parece precipitado. Como assinalou o historiador Yves Bénot, ao mesmo tempo em que afirmavam defender a “causa do rei”, os primeiros rebeldes apontavam para objetivos mais amplos. Um destes, Dechaussée (Descalço), detido e interrogado pelo colono Leclerc em agosto de 1791, após falar em defesa do rei Louis XVI, afirmou que o projeto da insurreição era conhecido por todos os negros da colônia: queimar as plantações, degolar os brancos e se apropriarem do país63. Durante o ano de 1792, continua intensa – dramaticamente intensa e violenta – a guerra entre negros e brancos, entre brancos e mulatos (tomados no sentido de campos sociais, políticos e raciais, não num conflito exclusivamente racial, como já assinalei). Em setembro, chegam a São Domingos três comissários enviados pela Convenção Nacional para implantar o direito de igualdade entre brancos, mulatos e negros livres, decretado em abril. Ou seja, mantinha-se o escravismo. Léger-

Félicité Sonthonax, Jean-Antoine Ailhaud e Étienne Polverel, acompanhados, diga-se de passagem, por seis mil soldados. Sonthonax foi o que se destacou como liderança. Tais tropas entraram em confronto, ao mesmo tempo, com os colonos brancos contrários a qualquer alteração em seus privilégios – e com os escravos que lutavam para se libertar. A abolição formal da escravatura acelerava-se. O decreto de igualdade parcial de direitos chegara tarde da França revolucionária. A decalagem entre as instituições constitutivas do Estado e as condições e lutas sociais se aprofundava, especialmente no âmbito dos poderes legislativos. A Assembleia Colonial de São Domingos chegara a decretar, em 12 de maio de 1792, a perenidade da escravidão. A Convenção Nacional, em Paris, rejeitou uma proposta de abolição imediata apresentada em plenário por um grupo de sans-culottes acompanhados de uma negra liberta já idosa: a iniciativa abolicionista foi encaminhada pelo deputado e abade Henri Grégoire e recebeu apoio minoritário de deputados do grupo da Montanha, como Robespierre e Jeanbon Saint-André. Enquanto isso, na prática, não havia mais ordem escravista estabelecida em São Domingos. Inglaterra e Espanha declaram guerra à França, deixando-a isolada de suas colônias. O acompanhamento dos episódios reitera a afirmação de que foi a Revolução do Haiti que efetivou e empurrou a Revolução Francesa para a abolição da escravidão – dissipando a imagem de que as “ideias francesas” iluminaram a colônia unilateralmente. O conflito irrompe entre as tropas coloniais: o general Galbaud, colono, tenta destituir os comissários enviados pela Convenção e, malsucedido, abandona a Ilha com numerosos soldados e outros colonos, em 20 de junho de 1793. No dia seguinte, Sonthonax decreta anistia para todos os escravos revoltados: medida, na verdade, inócua, pois os antigos escravizados já se assenhoravam do território. Tanto que, ao saberem da notícia, tropas de ex-cativos se dirigem à cidade de Cabo Francês para sustentar a medida de Sonthonax e ali incendeiam casas e matam colonos brancos – o que evidentemente não estava nos planos do emissário do governo francês. Cerca de 10 mil colonos, na ocasião, abandonam a Ilha e rumam aos Estados Unidos, onde se estabelecem majoritariamente em Louisiana. Entre 29 de agosto e 27 de setembro de 1793, o mesmo Sonthonax, na condição de representante do governo francês e premido pela avalanche dos acontecimentos, proclama a abolição da escravidão, por partes e sucessivamente, em toda a ilha de São Domingos. No que recebe o imediato apoio de Toussaint Louverture. As mudanças se precipitam. Ao receber a notícia da abolição da escravatura na colônia, a Convenção Nacional, em Paris, decreta a mesma abolição em todas as colônias, em 4 de fevereiro de 1794. Quatro meses depois, quando o decreto abolicionista chega à Ilha do Caribe, os três representantes da Convenção são presos e expulsos de São Domingos, reenviados à França por ordem de Toussaint Louverture – que já não precisava mais deles, nem queria reforçá-los no poder. Espanha e Prússia, derrotadas militarmente pela França, assinam um acordo de paz em 1795, o Tratado de Bâle, que concede à França a parte espanhola da Ilha, unificando, assim, o território da Ilha de São Domingos. Tal unificação ocorreria entre 1795 e 1805 e, posteriormente, entre 1822 e 1843, quando Haiti e São Domingos formaram um mesmo corpo político. Daí muitas referências a Haiti como São Domingos, e vice-versa.

Toussaint Louverture é nomeado Governador Geral de São Domingos e promovido a General pelo Diretório da Revolução Francesa, em 1796. Tornava-se, portanto, a autoridade máxima da colônia, o que só era possível e pensável devido ao processo revolucionário em curso. No mesmo ano, a Inglaterra proíbe o tráfico de escravos. A partir daí consolida-se institucionalmente o poder pessoal de Toussaint no território onde a escravidão fora abolida. Era um poder autônomo, apesar de formalmente ligado à França. Outros comissários franceses enviados em 1797 e 1798 são desarticulados e expulsos. Eliminados os colonizadores e o escravismo, ou seja, destruído o Antigo Regime, a Revolução do Haiti entra em nova fase, não menos violenta, quando se dá o confronto interno entre negros e mulatos. Aqui um rápido parênteses. Neste mesmo contexto, o enviado do governo francês para levar a notícia da abolição da escravatura à colônia das Ilhas Maurício, o capitão Antoine de René Larcher, aportou em 1797 em Salvador, Bahia de Todos os Santos, onde manteve contatos conspiratórios com baianos interessados em proclamar a Independência de Portugal e República: chegaram a elaborar um plano conjunto de apoio militar efetivo da França revolucionária à Bahia, incluindo envio de tropas e um futuro acordo comercial. Tais contatos, direta ou indiretamente, contribuíram para a eclosão do movimento conhecido por Conjuração Baiana, com a participação de pardos livres e negros escravizados. Teria Larcher imaginado que poderia desempenhar, na América Portuguesa, papel equivalente ao do comissário Sonthonax em São Domingos? De qualquer modo, ao chegar nas Ilhas Maurício, Larcher foi preso e remetido de volta pelos colonos que não aceitaram a novidade da metrópole revolucionária: a Abolição da escravatura64. Fechado o parênteses. As tropas de Toussaint ocupam toda a ilha. Violências contra a população branca restante se intensificam. A guerra civil entre negros e mulatos, após vitórias e derrotas recíprocas, termina em 1800, como já foi dito, com milhares de mulatos liderados por André Rigaud mortos pelas tropas de Toussaint, Henri Christophe e Jean-Jacques Dessalines, no Sul. Rigaud escapa com vida. Este é um episódio de memória delicada e sujeito a controvérsias, a chamada Guerra do Sul: há testemunhos de colonos e militares franceses e de mulatos que elevam o número de mortes a 15 mil, enquanto historiadores do século XIX e início do XX, simpatizantes à memória revolucionária haitiana, chegam a negar a existência de tal morticínio. Analisando com acuidade a questão, o historiador Bernard Gainot estuda as políticas de massacre durante a Revolução do Haiti e alerta que, neste caso de conflito entre mulatos e negros, existe uma tendência a ocultar as rivalidades sangrentas que dilaceraram os componentes da formação nacional haitiana65. A violência e amplitude deste confronto, no âmbito de uma guerra civil, estão suficientemente comprovadas em relatos da época. Napoleão Bonaparte envia tropas francesas, comandadas pelo general Charles-Emmanuel Leclerc (seu cunhado, casado com Pauline Bonaparte, sua irmã), que chegam em 3 de fevereiro de 1802 com 20 mil homens, para retomar a autoridade na colônia. O comandante negro e ex-cativo, Dessalines, opõe-se aos franceses e encabeça a resistência. Tropas francesas se impõem, Dessalines e Toussaint depõem as armas. Toussaint é preso num golpe de traição e enviado para a França, em 7 de junho. André Rigaud é remetido para o mesmo cárcere. Napoleão decreta a volta da escravidão nas colônias francesas em 20 de maio de 1802, proibindo também, provisoriamente, a entrada de negros e mulatos

na França. A medida escravocrata gera, como reação, uma insurreição em São Domingos que eclode em 6 de outubro, unificando os diversos grupos de negros e mulatos, como os liderados por Dessalines, Christophe e Pétion, contra a volta da escravidão e contra o domínio francês e europeu. A Revolução se aproxima do clímax. Enquanto combates encarniçados ocorrem em São Domingos, Toussaint Louverture falece num gélido cárcere no Forte Joux, na França, em 7 de abril de 1803. Em 2 de dezembro, as tropas francesas, destroçadas e definitivamente derrotadas, evacuam a Ilha, após a morte do general Leclerc, deixando um saldo estimado em 62 mil mortes de ambos os lados. Tal retirada efetiva das últimas tropas coloniais, derrotadas, foi motivo de celebrações e festas entusiasmadas em todo território, nas ruas e casas, nas montanhas e fazendas. A Independência do Haiti, decidida desde outubro de 1803 pelas principais lideranças de negros e mulatos, é proclamada formalmente em 1º de janeiro de 1804 por Jean-Jacques Dessalines que, em 8 de outubro, se autoproclamará imperador, Jacques Iº, na parte Norte da Ilha (Napoleão autoproclamara-se imperador da França em 18 de maio). Os últimos franceses que ainda habitavam a Ilha, cerca de 3 mil, são exterminados ao longo de toda a antiga 66

colônia de São Domingos . A Revolução Haitiana se aproximava do fim. Nas três primeiras décadas a partir da Independência, vão predominar, no Haiti, governos dirigidos por mulatos, como os de Pétion, Rigaud e Boyer, no Sul ou em todo o país – mesmo com as administrações de Dessalines e Christophe, negros e libertos, ao Norte. A consolidação do Haiti enquanto sociedade nacional sofreu um abalo decisivo em seus primeiros passos: o não reconhecimento pela França, e demais países, de sua independência. Embora tenha sido fator principal de definição da desigualdade social, este empecilho externo veio somar-se às limitações e contradições da própria sociedade haitiana, com a formação de uma aristocracia militar e fundiária que dominaria o poder político, reinventando formas de dominação social. Entre 1814 e 1823, vieram da França cerca de uma dúzia de missões (oficiais ou oficiosas) para tratar do problema, sem resolvê-lo. Problema, aliás, causado pela antiga metrópole, governada pela Restauração monárquica após o fim da Revolução Francesa e do período napoleônico. Havia uma obsessão oficial da monarquia, dos antigos colonos que perderam as terras e escravos e de seus aliados durante 21 anos após a Proclamação da Independência do Haiti: ainda considerá-lo como a colônia de São Domingos e, seus habitantes, como escravos rebelados que deveriam indenizar a qualquer custo os antigos proprietários franceses. Como dizia o escritor francês e visconde René de Chateaubriand, quanto aos ultraconservadores que voltaram ao poder após a Revolução Francesa: eles não aprenderam nada, eles não esqueceram nada. Os governantes haitianos repudiavam corajosamente qualquer tentativa de recolonização ou de reintrodução da escravatura, conforme insistia a antiga metrópole. Uma das proclamações neste sentido, do presidente Alexandre Pétion, foi traduzida e publicada por Hipólito da Costa, no Correio Braziliense: “O Povo do Hayti deseja ser livre e independente. Eu também o desejo. Elles o serão. 67

Elles não precisam de apoio estrangeiro: as suas mesmas forças protegerão a sua liberdade” . A monarquia da Restauração francesa fez todos os esforços a seu alcance para impedir, dificultar e protelar o reconhecimento da Independência do Haiti e, neste sentido, mantinha-se a posição de

Napoleão Bonaparte que reintroduzira a escravidão nas colônias. A França só reconheceu a Independência do Haiti impondo condições esmagadoras. Charles X, recém-empossado no trono e de tendência ultraconservadora (seria deposto cinco anos depois pelo movimento das barricadas das Três Jornadas de Julho de 1830), assinou em 17 de abril de 1825 um decreto “concedendo” a Independência e enviou à antiga colônia uma frota de 14 navios de guerra com ordem de atacar caso o governo haitiano, presidido por Jean-Pierre Boyer, não aceitasse pagar indenização estipulada em 150 milhões de francos, o que equivalia a 10 anos de receitas fiscais do país. O monarca europeu exigia, ainda, redução de 50% dos direitos de alfândega aos produtos exportados para a França. Acossado e após três décadas de conflitos sangrentos, o governo haitiano engoliu a imposição, de consequências trágicas para o futuro do país. O objetivo da indenização foi, ao mesmo tempo, ressarcir antigos proprietários escravistas e, também, impedir que um possível desenvolvimento econômico do Haiti afetasse os negócios das demais colônias que a França mantinha no Caribe (a maioria destas localidades ainda hoje integra o Estado francês, na condição de Departamento ou Território de Além-Mar, os DOM-TOM). Renegociada para 90 milhões de francos em 1838, a dívida foi paga até 1893. Embora, em 1972, a França tenha registrado como “não pago” o empréstimo. E, em 2003, o então presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide reivindicou o reembolso da dívida pela França, talvez numa atitude apenas retórica – mas foi destituído meses depois por tropas norte-americanas, com apoio francês e brasileiro, sob acusações de corrupção. Uma perspectiva analítica inspirada numa espécie de comiseração nacional para o Haiti empobrece a possibilidade de conhecimento da formação histórica daquela sociedade68. A sucessão dos primeiros governos (e suas formas), governantes e das Constituições do Haiti no período Pré e Pós-Independência podem ser considerados, até 1825, integrantes do processo revolucionário, embora em declínio. Desde o apagar do século XVIII se iniciara a organização do trabalho intensivo para ex-escravos nas plantações e a militarização do poder, inclusive após a Abolição oficial em 1794. Os primeiros passos para reerguer a sociedade assolada por oito anos de guerras e insurreições apontam para uma reorganização das formas de dominação e para a manutenção do trabalho agrícola em grandes e médias plantações, controlados, a partir de então, por uma elite militar e política de negros e mulatos oriundos do processo revolucionário, que passariam a se tornar, além de grupos dirigentes, classes dominantes. A Ilha estava isolada sob embargo militar, comercial e político das grandes potências, o que não impedia o comércio informal e efetivo com grupos privados dos Estados Unidos e de países europeus. Comércio, este, sem maiores regras aduaneiras ou controle das remessas e dos lucros. São instituídas fazendas estatais que, progressivamente, se tornariam privadas, gerando uma aristocracia nativa ao mesmo tempo militar e fundiária, efetivando a dominação de negros sobre negros. Na década de 1820 eclodem sequências de movimentos de resistência e rebeliões de ex-escravos (inclusive mulheres) contra o trabalho forçado e os novos donos do poder, antigos revolucionários que passam a reprimir tais manifestações. A marronnage (quilombolas) espalha-se pelo país. Na parte Sul da Ilha, destacam-se as revoltas lideradas por Jean-Baptiste Perrier (apelidado Goman): pioneiro

da insurreição de escravos em 1791 (rebelou-se sete meses antes da insurreição geral), foi alforriado no início dos combates. Após a Proclamação da Independência, Goman está entre os muitos trabalhadores rurais que fogem para as montanhas em resistência às novas formas de trabalho forçado. Entre 1807 e 1820 ele esteve à frente de um território praticamente autônomo, numa formação semelhante à de quilombos, que acabou destroçado pelo governo haitiano. Os antigos escravizados passam a ser chamados de “cultivadores” e os novos patrões “plantadores”: no discurso oficial, deveriam formar “uma só família”. O Código Rural do Haiti, de 1826, regulamentaria a concentração da posse da terra e as formas de controle do trabalho. A escravidão fora abolida e a dimensão revolucionária do processo se apagava. Ou, como afirmou o historiador C. L. R. James, eram sinais da “degeneração revolucionária”69. Cumpre destacar que o Haiti, entre 1804 e 1825, passou por um extenso laboratório de experimentos políticos. Tentativas, aliás, que já se desenvolviam desde o processo revolucionário dos anos 1790. Em termos das Américas, foi uma experiência precursora, cronologicamente, que antecedeu e acompanhou os movimentos liberais europeus dos anos 1820, bem como as demais independências americanas. E que apresentou evidentes diferenças com o processo de independência e consolidação nacional na América do Norte. Neste sentido, parece pertinente afirmar que houve um modelo haitiano de independência, cuja característica principal, mas não única, foi a destruição simultânea do escravismo e da dominação colonial, ruptura realizada de forma violenta. Tal modelo suscitou diversificadas (e intensas) releituras em outros países, no caso do Brasil. Alguns estereótipos impregnam. Descarta-se aqui, por exemplo, a noção de que o Haiti PósIndependência se caracterizou por uma situação unicamente caótica e desenfreada, cuja explicação pode chegar à vitimização e à incapacidade dos negros e escravizados em governar; ou atribuída exclusivamente à dependência econômica externa perpetuada pela França e Estados Unidos. Ou, ainda, simplesmente reproduzir a noção de que tudo o que se passou em termos históricos não foi para valer, limitando-se à imitação, incompleta e caricata, das “verdadeiras” instituições ocidentais modernas. O deboche preconceituoso predominou sobre o Haiti ao longo do século XIX, do ponto de vista eurocêntrico, seguindo-se, nos séculos seguintes, uma espécie de comiseração pela miserabilidade. Ambas visões servindo para escamotear o conhecimento de uma complexa e original trajetória histórica. Se retomarmos a estimativa da população de São Domingos com base na classificação sociorracial feita pelo colono Moreau de Saint-Méry em 1796, vemos que os novos grupos dirigentes do país independente se constituíam a partir de negros e mulatos livres e seus descendentes, ou seja, 5% do total dos habitantes, a menor parcela da sociedade, se levarmos em conta as demais: 8% de brancos e 87% de escravos, às vésperas da insurreição de 1791. Brancos e gens de couleur compunham, portanto, 13%. Dez anos após a Independência, isto é, em 1814, a população do Haiti era estimada pelo abade De Pradt em 820 mil habitantes, evidenciando-se crescimento demográfico de 36% em relação ao período colonial (520 mil em 1796, conforme citado). Porém, a quantidade de brancos e gens de

couleur (mulatos) era de cerca de 30 mil, ou seja, 3,6% do total – o que indicava uma concentração de poder entre estes setores da população com o fim do regime escravista e colonial. Deste modo, eliminados massivamente os brancos, enquanto campo político, social e racial, durante o processo revolucionário, o poder após a Independência passa para as mãos de outra minoria, a dos mulatos e negros livres, isto é, os que já o eram antes de 1791 ou os que ascenderam na hierarquia social durante a ampliação das lutas, antes da Abolição legal em 1794 e da Independência em 1804. Grupos estes que exercem novas formas de controle e domínio, relacionadas à exploração econômica de potências estrangeiras, sobre a maioria da população trabalhadora não mais escravizada. A quantidade dos habitantes anteriormente cativos, após a Abolição e a Independência, formava 83% da população haitiana e conquistou espaços de liberdade, porém, passou a viver sob diferentes modos de coerção e desigualdade. Ou seja, ainda que num sentido figurado, não parece exato dizer que os escravos chegaram ao poder com a Revolução do Haiti. Embora estes estivessem entre os principais protagonistas do processo, como demonstra a obra da historiadora canadense Carolyn Fick que, em perspectiva “vista de baixo”, destaca os movimentos sociais autônomos e suas múltiplas lideranças locais. O que se instala, grosso modo, é a governança de libertos e livres “de cor” sobre a maioria dos antigos escravizados, embora possa haver exceções individuais. Se levarmos em conta apenas o enfoque étnico: instaura-se a dominação de negros e mulatos sobre negros, após a destruição do escravismo colonial que, apesar de rompido de maneira violenta, deixou marcas de permanência nas mentalidades e nas práticas de poder social e político.

A IMPOSSÍVEL MATEMÁTICA DA CLASSIFICAÇÃO RACIAL A delimitação do pertencimento racial foi uma das questões chave para a história da colônia francesa de São Domingos e para o Haiti independente. Um modelo de classificação racial, voltado para a parte francesa da colônia de São Domingos, foi publicado em 1796 por Médéric Louis Élie Moreau de Saint-Méry (1750–1819), colono “mestiço” (nascido na Martinica), proprietário de terras e escravos, erudito jurista, advogado no Parlamento de Paris, atuante na Queda da Bastilha e autor da principal obra de história natural e política da ilha no período70. Ele esteve no epicentro das articulações políticas dos colonos que buscaram defender seus interesses no interior da Revolução Francesa – afinal derrotados pela insurreição dos escravos e pela guerra civil subsequente da qual participaram, também, “homens de cor” livres. Talvez a condição de derrotado tenha obscurecido a repercussão posterior da perspectiva classificatória de Saint-Méry. Pelo menos a repercussão explícita ou direta foi arrefecida, sobretudo na tradição intelectual antropológica e racial, como assinalou o historiador Marcel Dorigny71, mas não necessariamente seus procedimentos intelectuais diante de sociedades escravistas tidas como “mestiças” e “tropicais”, como no caso do Brasil, conforme se verá a seguir. Benjamin Franklin, onze anos antes da declaração da Independência dos Estados Unidos, já havia alertado sobre a importância da classificação racial para a definição das hierarquias sociais nas

colônias europeias do Novo Mundo, mas não aprofundou nem sistematizou as propostas, como Moreau de Saint-Méry se propôs a realizar72. Saint-Méry se contrapunha às doutrinas do direito natural e à universalização dos direitos: justificava a escravidão e a restrição (ou ampliação) de prerrogativas a homens livres através da codificação racial. Criou, assim, um arcabouço que se pretendia científico e que poderia ter bases legais, no sentido de consolidar a divisão entre as diferentes “combinações raciais”. Era uma preocupação institucional típica dos antigos regimes, isto é, dar forma jurídica a um amplo e complexo mosaico populacional, cristalizando e definindo “classes” que, por sua vez, enquadrariam cada uma em pertencimentos pré-definidos. Posição antagônica, portanto, ao princípio da igualdade de direitos, grande trunfo do momento. A seguir os traços essenciais da concepção de Saint-Méry, apresentada aqui em tabelas73. 2. Classificação racial – colônia francesa de São Domingos: Branco Negro Mulato Quarteirão Mestiço Mameluco Quarteronado Sangue-misturado Sacatra Grifo Marabu Índios Orientais As 13 “combinações”: classificação racial – colônia francesa de São Domingos

Fonte: Moreau de Saint-Méry, t. I, p. 86-103.

3. Classificação racial – colônia francesa de São Domingos: Combinação

Porção branca Porção negra

Negro

0

128

Sacatra

16

112

Grifo

32

96

Marabu

48

80

Mulato

64

64

Quarteirão

96

32

Mestiço

112

16

Mameluco

120

8

Quarteronado

124

4

Sangue-Misturado

126

2

Branco

128

0

As 128 frações: classificação racial – colônia francesa de São Domingos Fonte: Moreau de Saint-Méry, t. I, p. 86-103.

4. Classificação racial – colônia francesa de São Domingos Mulato X Branco

Quarteirão

Mulato X Sangue-Misturado Quarteirão Mulato X Quarteronado

Quarteirão

Mulato X Mameluco

Quarteirão

Mulato X Mestiço

Quarteirão

Mulato X Quarteronado

Quarteirão

Mulato X Marabu

Mulato

Mulato X Grifo

Marabu

Mulato X Sacatra

Marabu

Mulato X Negro

Grifo

Exemplo de combinações a partir do mulato: classificação racial – colônia francesa de São Domingos Fonte: Moreau de Saint-Méry, t. I, p. 86-103.

O autor intentava estabelecer de modo sistemático e fundamentado, digamos, científico, o quanto cada ser humano era branco ou negro (as duas categorias fundamentais, segundo ele), chegando ao número exato de 128 frações em que o pertencimento racial poderia se expressar, através de 13 “combinações” básicas. Nesta lógica, o mulato, com 64 porções brancas e 64 negras, estaria na linha divisória, o que justificaria seu estatuto jurídico peculiar. O objetivo último desta paleta de cores era demonstrar quem poderia ser, ou não, considerado branco. E nesse aspecto, é sugestivo ver que o próprio autor criticava o preconceito de outros colonos que não aceitavam incluir neste círculo quem não fosse 100% branco (ou talvez, 128%). Moreau de Saint-Méry fazia o elogio da mestiçagem como fator de aprimoramento da espécie, desde que fosse possível definir quem era mais, ou menos, branco. Vale assinalar: criticava determinado preconceito (mas reforçava outros) e defendia a mestiçagem como caráter definidor e localizador do indivíduo na hierarquia social, tendo como parâmetro a supremacia da “raça” branca, mas levando em conta a complexidade de cores e “misturas” de uma sociedade colonial. Seu critério era a cor da pele (e não o “sangue”, por exemplo) e suas nuances expressavam “cruzamentos” entre pessoas de “cores” diferentes. Tratava-se, na verdade, de redefinir e ampliar o conceito de “branco” e consolidar a definição de raça a partir de suas variantes. Para isso, ele desenvolveu o conceito de “nobreza da pele” que seria, aliás, rebatido pelo abade Grégoire num livro escrito para este fim74. A abordagem de Saint-Méry, em certos momentos, parece a de um artista plástico, pela preocupação em definir matizes das cores e suas sutis variações. Ele baseou-se nos fundamentos teóricos de naturalistas do século XVIII, como

Buffon75 (que buscava justamente pensar e classificar os limites e a unidade do gênero humano, com ênfase na cor da pele), almejando integrá-los às práticas costumeiras e jurídicas da colônia e chegando, assim, nesta mescla de teoria e prática, a um modelo racial. Para o Brasil dos primeiros anos do século XIX é possível detectar, mesmo numa pesquisa inicial, repercussões do pensamento de Moreau de Saint-Méry. Tal debate era travado nos anos iniciais da Independência brasileira, como se percebe, por exemplo, no periódico A Malagueta, redigido por Luís Augusto May (1782–1850), nascido em Portugal e defensor do chamado Partido Brasileiro. May, um dos pioneiros na luta pela Independência do Brasil, criticava “[...] o quadro dos Sonhos que os Novos Fidalgos do Rio de Janeiro fazem para introduzir o Reino das distincçoens, já e já, no Império da Boa Fé e da Simplicidade Natural do Brasil”76. E defendia, na perspectiva da monarquia constitucional e do liberalismo político, que só deveria haver três distinções, isto é, “tres Castas de Cidadoens e de Jerarquia” na sociedade brasileira, a saber: os membros da Família Imperial, a “Aristocracia dos Brancos, e Homens Libertos de Cor, admissíveis ao Civismo” e, finalmente, “o Terceiro Estado (Tiers Etat) isto he Captivos”. E o mesmo escritor público destacava, como argumento: “[...] evitarmos as renhidas questoens de Genealogia, nas quais muito havia de custar a acertar – Quem hé, ou não hé branco; quem he, ou não he Cabôclo; quem hé ou não he Mulato”. Tal perspectiva classificatória, segundo May, encontrava-se em “[...] nosso burlesco Corcundismo do Rio de Janeiro”77. Em síntese, May propunha para a hierarquia da sociedade nacional a existência de três “Castas”: - 1º) família imperial; - 2º) aristocracia independente do critério racial (brancos e “homens de cor” livres); - 3º) escravos (aproximados ao povo, ou Terceiro Estado). Havia, portanto, perspectiva de classificação racial entre setores dos grupos dirigentes da nascente monarquia imperial brasileira (os corcundas, partidários da monarquia absolutista ou do domínio português sobre o Brasil) que se assemelhava à desenvolvida por Moreau de Saint-Méry, mesmo que seu trabalho não fosse citado, ou talvez sequer conhecido. Mas para se definir o quanto cada indivíduo seria branco, mulato ou negro, além da gradação da cor, era necessário conhecer-se a cor da pele ou a classificação dos ascendentes (daí a referida questão de genealogia). Em contrapartida, Luís Augusto May propunha a eliminação do critério racial (inspirado na perspectiva antirracista herdada do Iluminismo de universalidade e diversidade do gênero humano), substituindo-o pela condição civil (livre ou cativo), com exceção da família imperial. Anote-se, ainda, a curiosa concepção de May sobre a exclusão dos escravos da cidadania, ao mesmo tempo em que, ao menos conceitualmente, os considerava parte integrante do corpo político nacional, qualificando-os na categoria de Terceiro Estado e abrindo possibilidade de inseri-los na noção de soberania popular, embora sem explicitar através de quais mecanismos. As ideias de Saint-Méry circulavam e tinham alguma repercussão no Brasil. No texto Taboada das Misturas, que integra a obra Compêndio Histórico-Político dos Princípios da Lavoura do

78

Maranhão , o autor Raimundo José de Souza Gayoso faz uma cópia adaptada e resumida justamente da tabela de Moreau de Saint-Méry, sem citar qualquer fonte (como era comum). Publicada em 1818, a Taboada das Misturas compunha a parte em que Gayoso apresentava o perfil populacional da capitania do Maranhão. Como releitura e transformação do livro original de Saint-Méry, Gayoso desenvolve hierarquias, estratificando a sociedade em classes e aplicando ao momento da crise colonial portuguesa: - 1a classe: os filhos do Reino (Portugal). - 2a classe: nacionais ou descendentes dos filhos do Reino. - 3a classe: geração misturada. Tratava-se de uma tentativa de equacionar a heterogeneidade populacional em uma sociedade (ainda não nacional) em transformação, formulação marcada pela preocupação em reformar e preservar a relações hierarquizadas de antigo regime, ou seja, propósito semelhamte ao de Saint-Méry em São Domingos. Gayoso acentuava a perspectiva de caracterizar um homem branco, ou o caminho “para ficar branco” e, em sentido inverso, “para ficar negro”, levando em conta a estimativa demográfica que registrava cerca de 20% da população maranhense como negra no início dos anos 1820. Mesclava-se, assim, o local de nascimento à cor da pele como fundamento para a definição da cidadania, na perspectiva de Gayoso, tratando-se, pois, de uma apropriação (e não simples repetição) da Tabela do colono francês das Antilhas. Eis a Taboada apresentada por Gayoso: Taboada das Misturas {5} 1 branco com 1 negra produz um mulato =>

metade branco, metade preto

1 branco com 1 mulata produz um quartão => três quartos branco, um quarto negro 1 branco com 1 quartão produz outão

=> sete oitavos branco e um oitavo negro

1 branco com uma outona produz branco =>

inteiramente branco

Tabuada das misturas para ficar branco

Taboada das Misturas {6} 1 negro com uma branca produz mulato =>

metade negro e metade branco

1 negro com uma mulata produz quartão => três quartos negro e 1 quarto branco 1 negro com uma quartão produz outão =>

7 oitavos negro e 1 oitavo branco

1 negro com uma outona produz negro =>

inteiramente negro Tabuada das misturas para ficar negro

Hoje, mais de dois séculos depois, o esforço intelectual e político de Moreau de Saint-Méry e de outros serve como ponto de reflexão para os que acreditam ser possível estabelecer, cientificamente, definições de tipo racial, contrapondo-se à perspectiva de universalização dos direitos, ou seja, uma “globalização” solidária. A classificação aqui apresentada (Saint-Méry e Gayoso) pode ser

compreendida como tentativa extrema e aprofundada de definir o indefinível, de tornar científico o que não se enquadra em rígidas classificações, ou seja, a infinita variedade da mesma espécie humana. Por outro lado, pode-se indagar: em que medida a classificação racial, embora menos detalhada e com sinais invertidos, se consolidou institucionalmente entre a nação haitiana oriunda da Revolução? Até que ponto tais ideias foram superadas ou reelaboradas, mantendo-se um critério racial às avessas, isto é, contra os “brancos”? São apenas tópicos para aprofundamento e reflexão.

AS PRIMEIRAS CONSTITUIÇÕES A riqueza e complexidade política de tentativas, ensaios, avanços e recuos foi considerável e paradoxal, constituindo parte ativa do processo revolucionário haitiano, isto é, de busca da construção de uma nova sociedade. Reitero que seria um empobrecimento considerar tal variedade apenas como “caótica” ou “imitação” das instituições europeias. Proclamação da Independência (a segunda das Américas), seguida de formas de governo republicana e monárquica; esta, imperial ou real. Estado laico ou religioso, alternadamente. Estado seccionado ou unitário, em áreas e momentos diversos. Governantes vitalícios, hereditários, eletivos ou provisórios. Direitos de cidadania baseados na universalidade do gênero humano ou, então, no pertencimento racial; tais direitos exclusivos aos nascidos no território ou, até, estendidos aos que nasceram em outros países, sob determinadas condições. Direitos de propriedade assentado por pertencimentos raciais e/ou de nacionalidade. Ensaios de novas formas de propriedade e relações de trabalho: campesinato, copropriedade, trabalho forçado em grandes plantations, implementação de salários e participação dos trabalhadores nos rendimentos. Surgiram duas tendências em termos de perspectiva de configuração civilizatória de uma sociedade nacional, ainda em 1804, no momento da Independência do Haiti. Jean-Jacques Dessalines almejava esvaziar as cidades litorâneas e concentrar o país no interior, sobretudo nas regiões montanhosas, para se proteger ao mesmo tempo de possíveis invasões da França (ou outra grande potência) e dos respectivos costumes ocidentalizados, como assinalou o historiador Thomas Madiou. Dessalines previu também organizar a imigração de 500 mil africanos para povoar o país que, deste modo, iria adquirir feições distintas tanto na economia quanto na organização política e cultural. Seria, literalmente, uma sociedade afro-americana. Outras lideranças importantes, negros e mulatos, como Christophe e Pétion, não apoiaram tais perspectivas e optaram, ao contrário, pela ocidentalização dos costumes e da economia e os projetos, incipientes, nunca foram adiante. Assinala-se que Christophe, quando rei, construiu a Cidadela Laferrière no interior do país, nas montanhas79. Apesar destas expressivas diferenciações políticas (na medida em que se compreende política como instância de gestão das relações de poder, em um sentido amplo e não apenas institucional) e sociais, havia aspectos demarcados na experiência haitiana que podem ser resumidos, essencialmente, em quatro pontos:

- repúdio à escravidão, sob qualquer forma ou pretexto; - rejeição de retorno à antiga condição colonial; - formação de uma aristocracia social e política negra e mulata; - militarização do exercício do poder civil; - organização e controle das formas de produção (hierarquizadas de modo desigual) na base da coerção armada e ideológica sobre a maioria da força de trabalho. Características de longa duração que marcam a sociedade, acrescidas de outra, interligada a elas: a intervenção econômica e militar de potências estrangeiras. Uma trajetória de liberdade e de violência. Na Revolução Haitiana, os primeiros passos na construção da ordem nacional e de sua inserção na (des)ordem internacional são temas complexos, instigantes – já mereceram (e continuam a merecer) estudos mais aprofundados que não cabem no âmbito deste trabalho, apenas indicativo e, espero, provocativo, no sentido da criação e crítica. O resumo das primeiras Constituições haitianas (cinco promulgadas em 15 anos, num contexto de guerras revolucionárias) permite assinalar o ponto que tinham em comum: o repúdio à escravidão. Outro aspecto unânime: a defesa da propriedade e da agricultura. Concepção Chefe do Forma de Critério de Poder Governo racial Sociedade Executivo Essencialmente 1801 (colônia Proibida no agrícola, Governador Colônia do de São território e trabalhadores e Geral vitalício e Toussaint Império da Igualdade sem Domingos abolida para cultivadores General em Louverture (até França com distinção elabora sempre, formam uma Chefe das 1802). autonomia racial. Constituição junto com a só “família” na Forças administrativa. autônoma). servidão. qual estes são Armadas. os “pais”. Proíbe aos brancos chegarem do exterior como Agricultura proprietários Abolida protegida e Imperador e e senhores e para comércio não Monarquia Chefe de 1805 sempre. Jacques terá entraves. Imperial Supremo da adquirirem (Independência Todos os Dessalines (até O comércio militar, Força Armada, novas proclamada em habitantes 1806). internacional eletiva e não vitalício, propriedades, 1804). do é garantido e hereditária. sagrado e com exceção território protegido pelo inviolável. de colonos são livres. Estado. alemães e poloneses Todos os haitianos são chamados negros. Data de promulgação

Governante Escravidão

Propriedade privada

Religião

Sagrada e inviolável.

Católica, única permitida em culto público.

Sagrada, base da ordem social Não há e protegida religião pelo Estado. reconhecida As pelo Estado propriedades e o culto que eram de público é brancos apenas franceses tolerado. serão confiscadas pelo Estado.

Data de promulgação

Governante Escravidão

Concepção de Sociedade

1806.

Agricultura e Proibida no protegida e o Alexandre território comércio não Pétion(parte Sul nacional e terá entraves. do território). abolida para Cria uma sempre. polícia rural.

1807.

Abolida para Agricultura, Henri sempre e comerciantes Christophe(parte todos os estrangeiros e Norte do residentes suas território) até no mercadorias 1820. território são protegidos nacional pelo governo. são livres.

1816.

Agricultura protegida e prioritária, deve haver confiança e Alexandre Pétion justiça (até 1816) e Jeanrecíprocas Proibida no Pierre Boyer (até entre território e 1843). Estabelece proprietários e abolida para unidade cultivadores. sempre, territorial (Norte Agricultura, e Sul) em 1820. comerciantes estrangeiros e suas mercadorias são protegidos pelo governo.

Forma de Governo

Chefe do Poder Executivo

Critério racial

Propriedade privada

Religião

Proíbe aos brancos chegarem do exterior como Religião proprietários e católica senhores e de oficial e Presidente da adquirirem Sagrada e única República novas inviolável, reconhecida; eleito pelo propriedades, República base da mas cultos Poder com exceção civil. produção e de outras Legislativo dos da ordem religiões com mandato integrantes social. serão de quatro anos. das Forças permitidos Armadas caso nacionais, de apareçam. cargos públicos e os já aceitos no território. Religião católica Sem única República Presidente e referências à reconhecida militar e Generalíssimo, Sob a igualdade pelo depois vitalício. É proteção do nem à governo e Monarquia coroado Rei governo. divisão as demais militar. em 1811. racial. não podem ter culto público. Repete os termos da Constituição de 1806 e acrescenta que a partir de então nenhum branco poderá obter Religião propriedade, católica República direito de Propriedade oficial e civil eletiva e Presidente cidadania e inviolável e outros cultos não vitalício. emprego sagrada. permitidos hereditária. público. nos limites Africanos, da lei. índios e seus descendentes, nascidos no exterior, terão direito de cidadania após um ano de residência no Haiti.

Primeiras Constituições do Haiti Fontes: Moïse, C. Constitutions et Lu es de Pouvoir en Haït; Janvier, L. J. Les constitutions d’Haïti (1801–1885).

Os dirigentes da sociedade haitiana, erigida em nacional, tentavam regular, em termos jurídicos e no âmbito da cidadania, um fator predominante em termos militares e socioeconômicos: a presença das potências europeias e as instáveis alianças que se colocavam até 1825. Assim, a relação com o estrangeiro e a definição de suas atribuições era ponto central. Três das constituições colocam restrições aos “brancos” vindos do exterior (a população “branca” originária das colonizações europeias fora dizimada neste processo) quanto ao direito de cidadania e propriedade, o que apontava para o fortalecimento e consolidação de aristocracias locais, com base política e agrária, de forte viés militar e racialmente identificadas. Tais grupos dominantes e dirigentes não inviabilizavam, nem conseguiriam impedir, a predominância das potências estrangeiras – vide a proteção às propriedades destes, garantida explicitamente em três das Constituições. Esta foi uma das bases do sentido nacional de tais textos reguladores. Anota-se a inovação da Constituição de 1816 no campo da nacionalidade e cidadania: além de manter as restrições aos “brancos”, abre a possibilidade de incorporar africanos e índios, mesmo nascidos no exterior, e seus descendentes. Tal Constituição vigora no período em que se estabelece a integridade territorial do Haiti, sob a forma de governo republicano e presidido por dois “mulatos”. Tal preocupação, indicativa de se buscar um perfil ampliado de cidadania, não limitado ao local de nascimento e nem tanto restrito às elites locais, não teve consequências duradouras na formação da sociedade haitiana. Quanto à forma de governo: destas cinco Constituições do período revolucionário, duas foram monárquicas, duas republicanas e uma com ambas formas. Mas apenas a de 1806 (Pétion) não dava caráter vitalício ao dirigente máximo do Poder Executivo, o qual tinha seu poder militar explícito em três dos textos reguladores. O próprio Pétion seria nomeado presidente civil vitalício dez anos depois. A religião católica – herdada dos colonizadores – prevalece ligada ao Estado (com exceção da Constituição de 1805, governo Dessalines), à exemplo dos textos constitucionais frequentes na Europa e nas Américas que surgiriam nas primeiras décadas do século XIX. Ainda que na época, e até hoje, as religiões de origem africanas sejam visivelmente predominantes entre grande parte da população haitiana. A nascente experiência constitucional do Haiti foi diversificada e cronologicamente pioneira em relação ao mundo ibero-americano. As primeiras constituições liberais da Cádiz (1812), Portugal (1822) e Brasil (1824), por exemplo, são posteriores. Temos aí, em rápido esquema de resumo dos textos constitucionais, uma chave para compreender a sociedade haitiana pós-revolucionária: superada a condição colonial e o sistema de trabalho escravo, permanecia, porém, o predomínio da agricultura e engendrava-se uma ordem social autoritária, hierarquizada, violenta e desigual, com marcas de permanência da escravidão e da grande propriedade, num regime de trabalho transformado e que não poderia ser enquadrado como escravista, embora colocasse em prática formas de controle e sujeição sobre os “cultivadores” (trabalhadores rurais), numa situação de pobreza e miséria80. Havia, pois, contradições e dominações internas no perfil da nova nação (a segunda a se proclamar como tal, nas Américas). O “Estado negro”, se assim é possível chamar, que dava seus primeiros passos num contexto de incertezas e

destruição da ordem até então vigente, pautava-se por recortes de tipo racial contra os “brancos”, ao mesmo tempo em que se regularizava nos padrões culturais da civilização ocidental e acabaria inserido (após embates e tentativas de resistência) numa posição subalterna na ordem capitalista internacional. Foi o fim da Revolução do Haiti, que continuaria vitoriosa nas memórias da nação haitiana, apropriada e transformada com perspectivas diferentes por seus dirigentes como por seus opositores e por grande parte da população.

NOTAS 29. Anônimo. Copie d’une lettre d’un capitaine présentement au Cap-Français, venue par le navire «le Cap-Français», arrivée à Nantes en trente-huit jours, le 15 novembre 1791; adressée à Paris à M. W. Tradução livre do autor. 30. Expressão do historiador francês Yves Bénot, referindo-se à Europa e Américas, em Naissance de Haïti et siècle des abolitions (1793–1888). In: Bénot, Y. La modernité de l’esclavage. Essai sur la servitude au cœur du capitalisme. 2003, p. 210-228. 31. Benot, Y. Les insurgés de 1791 leurs dirigeants et l’idée d’indépendance. In: Bénot, Y. Les Lumières, l’esclavage, la colonisation. 2005b, p. 230-240. 32. Ver Charara, Y. (org.), 2005. 33. Ogeda, J. Tendencias monárquicas en la revolución haitiana: el negro Juan Francisco Petecou bajo las banderas francesa y española, 2005. 34. Sobre o hibridismo cultural e político do personagem, ver os interessantes artigos de Girard, P. Quelle langue parlait Toussaint Louverture? Le mémoire du fort de Joux et les origines du kreyòl haïtien, 2013, e de Cauna, J. Toussaint Louverture entre trois mondes, trois cultures: africaine, créole et gasconne, 2006. 35. Nemours. A. Histoire de la famille et de la descendance de Toussaint Louverture, 2008. 36. Tonerre, Boisrond. Mémoires pour servir à l’histoire d’Haïti, par Boisrond Tonnerre, précédés de différents actes politiques dus à sa plume, 1851. 37. Este vocabulário se baseia nas narrativas e em dois glossários elaborados por protagonistas que vivenciaram e combateram a Revolução do Haiti e publicaram obras que são referências incontornáveis sobre os episódios. Mantive aqui os significados e conotações apresentados por eles: Moreau de Saint Méry, M. L. E. Description topographique, physique, civil, politique et historique de la partie Française de l’isle de Saint Domingue, 1796; Lacroix, Pamphile de. Mémoires pour servir à l’Histoire de la Révolution de Saint-Domingue, 1819. Utilizei também as memórias de Toussaint Louverture. Mémoires du Général Toussaint Louverture écrits par lui même, pouvant servir à l’histoire de sa vie [1853]. É evidente que várias destas palavras não pertenciam apenas ao universo haitiano, embora fossem ali especificamente utilizadas. Não se pretende apresentar aqui um estudo deste vocabulário, que serve como indicação preliminar do ambiente social e cultural em que os protagonistas da Revolução Haitiana se moviam, se expressavam e concebiam as relações em que estavam imersos. 38. O livro de R. Cornevin foi uma das principais referências que utilizei para elaborar o resumo, ao lado de fontes documentais e diversos outros livros sobre história do Haiti citados na bibliografia. 39. Anônimo, Extrait d’une lettre de Saint-Domingue: L’abbé Grégoire fut pendu en effigie et toute l’assemblée nationale fut traitée avec le dernier mépris, p. 3. A proposta de Grégoire fora publicada em 1789: Mémoire en faveur des gens de couleur ou sang-mêlés de Saint Domingue & des autres Îles françoises de l´Amérique, adressé à l´Assemblée Nationale, 1789. 40. James, C. R. L. Os jacobinos negros. Toussaint L´Ouverture e a revolução de São Domingos, 2000. 41. Foucault, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão, 1987. 42. Tradução livre do francês. Segundo o historiador Jean Fouchard, a versão em créolle “é mais emocionante”. Esta prece, publicada pela primeira vez em 1814, passaria a ser adotada oficialmente nas escolas haitianas e, ao longo do século XX, os alunos eram instruídos para recitá-la de cor. 43. Fick, C. Haiti. Naissance d’une nation. La Révolution de Saint-Domingue vue d’en bas, 2014, p. 104-112; 140 e 153. 44. V. o clássico trabalho do antropólogo Alfred Métraux, Haïti. La terre, les hommes les dieux, publicado em 1953 com fotografias de Pierre Verger. Consultar também Olufemi, Abikoye. Voodoo and the Haitian Revolution. 45. Malenfant, L. Des Colonies et particulièrement de celle de Saint-Domingue Mémoire Historique et Politique … (1814), p. 18. 46. Sobre a presença de brancos ao lado dos insurretos, ver Bénot, Yves, 2005(a), p. 237. 47. Rypson, S. Being Poloné in Haiti. Origins, Survivals, Development, and Narrative Production of the Polish Presence in Haiti, 2007. 48. Para uma crítica a esta visão tripartida ver, entre outros, Cauna, J. Images et accueil de la Révolution à Saint-Domingue..., 1989, p. 926. 49. Sannon, H. P. Histoire de Toussaint-Louverture, Port-au-Prince, 1920-1933, 3 vols., v. II, p. 140, citado por James, 2000, p. 213. 50. Madiou, T. Histoire D’Haït, 1847, t. I, p. 32. 51. Suite du Mémoire Historique des dernières Révolutions…, Paris, 1792, p. 9 e 10. D. Geggus (The naming of Haiti, 1997) faz um importante apanhado sobre a questão indígena e do indianismo simbólico na Revolução do Haiti. 52. Ver Bénot, Y.; Dorigny, M. Rétablissement de l’esclavage dans les colonies françaises... 53. “Trafiquer avec la fureur des noirs”. Lacroix, P. De, op. cit., p. 342-347. 54. Lacroix, Pamphile de. Mémoires pour servir à l’Histoire de la Révolution de Saint-Domingue, p. 292. 55. A palavra francesa dommage pode ser traduzida como: que pena! Ou: uma lástima! 56. Tradução livre do francês. Episódio narrado num Apêndice das Mémoires... de Toussaint Louveture, p. 136 e 147.

57. Para o hibridismo político desta época revolucionária, ver François-Xavier Guerra, Modernidad e Independências… 58. Popkins, J. D. Uma revolução racial em perspectiva relatos de testemunhas oculares da Insurreição do Haiti. Varia Historia, v. 24, n. 39, p. 298. 59. Lacroix, op. cit., p. 123. Há outros relatos neste sentido. Destaca-se um conjunto de correspondências de lideranças de escravizados logo no início da insurreição em 1791, compilado e analisado por Bénot, Y. Documents sur l’insurrection des esclaves..., 2005. 60. Anônimo, p. 7. 61. Ver o estudo sobre o revolucionário haitiano Jean-François de Ojeda, 2005. 62. KLOOSTER, W. Le décret d’émancipation imaginaire: monarchisme et esclavage en Amérique du Nord et dans la Caraïbe au temps des révolutions. Annales historiques de la Révolutionfrançaise, 363. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2015. 63. Bénot, Y., 2005(b). 64. Morel, M; Jancsó, I. Novas perspectivas sobre a presença francesa na Bahia em torno de 1798, 2007. 65. Gainot, B. Sur fond de cruelle inhumanité: les politiques du massacre dans la Révolution de Haïti, 2011, p. 5. 66. Uma versão dos haitianos participantes destes episódios (em contraponto à maioria dos relatos historiográficos posteriores) e do ponto de vista do governo Dessalines é apresentada no texto de Juste Chanlatte, publicado em 1824: Histoire de la catastrophe de SaintDomingue avec la correspondance des généraux Leclerc,... Henry Christophe,... Hardy, Vilton, etc.,... publiées par A.-J.-B. Bouvet de Cressé. 67. Cf. Parte III do presente livro. 68. Ver uma crítica à visão do Haiti como “calamidade negra” em F. Cooper e outros, p. 54-55. 69. James, op. cit., p. 255. Ver as análises de Fick, 2014; e, também, Laviña, J. Trabajo y postemancipación en Haití. 70. Moreau de Saint Méry, M. L. E. Description topographique, physique, civil, politique et historique de la partie Française de l’isle de Saint Domingue. 2 t. Philadelphie: 1796. Edição utilizada: Publications de la Société Française d’Histoire d’Outre-Mer, 2004. 71. Dorigny. M. Moreau de Saint-Méry. Un révolutionnaire théoricien de l’esclavage colonial et du “préjugé de couleur”, 2004. 72. Franklin, Benjamin. Observations concerning the increase of mankind, peopling of countries, & c, 1755. 73. Tradução dos termos feita livremente por mim. 74. Grégoire, Abbé Henri. De la noblesse de la peau ou Du prejugé des blancs contre la couleur des Africains et celle de leurs descendants noirs et sang-mêlés. Paris: Éditions Jerôme Millon, 1996 {1826}. 75. Buffon, G. L. L. Histoire Naturelle de l’Homme. Variétés de l’espèce humaine, 1749. 76. Malagueta Extraordinária, Rio de Janeiro, n. 2, 5 jul. 1823. 77. Ibidem. 78. Gayoso, Raimundo J. de S. Compêndio Histórico Político dos princípios da lavoura do Maranhão, 1970 {1818}, p. 119-120. Agradeço esta indicação e remessa da “Taboada das Misturas” ao historiador André Machado, que a utilizou em trabalho apresentado no âmbito do Projeto Temático Brasil: formação do Estado e da Nação (USP – 2003–2009). 79. Madiou, T. Histoire D’Haïti, t. III, livros 38 e 39. 80. Para uma reflexão a partir do Brasil sobre os traços de longa duração histórica na sociedade haitiana na linha do pensamento político e jurídico, ver Dalberto, G. Governando o Haiti: colonialidade, controle e resistência subalterna, 2014

II. ENTRE BATINAS E REVOLUÇÕES

O abade Grégoire teve atuação decisiva na sessão da Convenção Nacional, Paris, em 4 de fevereiro de 1794, com a participação de escravizados e libertos, quando foi abolida a escravidão nas colônias francesas A libertação existe, pois, em germe na escravidão, como a independência na colonização. Reúnam escravos em número infinitamente superior a seus senhores e vocês os terão livres; do mesmo modo, fazendo grandes colônias, vocês as fazem independentes. (Abade De Pradt, em 1817)

Foram intensas as relações entre a Revolução Francesa e a Revolução do Haiti, por motivos evidentes, como o fato de que a ilha de São Domingos era considerada a Pérola das Antilhas entre as colônias francesas, e que a insurreição dos escravos que desaguou na destruição, ao mesmo tempo, da escravidão e da dominação colonial naquelas paragens foi cronologicamente entrelaçada ao processo revolucionário francês, trazendo

à tona suas mais agudas contradições e limites no tocante às ideias de liberdade e igualdade81. Descarta-se a dicotomia historiográfica que ora tende a valorizar a “influência” do processo francês sobre o Haiti, ora, ao contrário, os acontecimentos haitianos sobre a França. As repercussões destas revoluções se entrecruzavam dos dois lados do Atlântico e se espalhavam, por sua vez, a outras localidades. Ambas, portanto, faziam parte da chamada Era das Revoluções, na medida em que consideramos a Revolução Francesa num sentido estrito, específico de uma nação – embora saibamos que suas dimensões e repercussões tenham sido amplas, marcando o início da Era Contemporânea. Para nos aproximarmos um pouco de aspectos desta questão vasta, traremos aqui uma abordagem inicial sobre a obra e o papel de três abades franceses que, situados no epicentro da metrópole colonial em plena Revolução Francesa, relacionaram-se com a Revolução do Haiti, do ponto de vista intelectual e político, ao mesmo tempo em que tratavam em seus escritos das condições da América portuguesa e do Brasil independente. Na sequência, apresentamos as mesmas questões discutidas por variadas tendências do clero brasileiro e trazendo à tona, inclusive, vínculos diretos e indiretos com os três abades franceses em questão e diferentes modos de percepção sobre a Revolução do Haiti e suas repercussões. O abade Raynal, tomado na época como um dos “pais” da Revolução Francesa, autor de um best-seller como Histoire Philosophique des deux Indes, chegou a ser considerado também (de maneira polêmica) um precursor da insurreição de escravos das colônias francesa e espanhola na ilha de São Domingos, no Caribe, na medida em que, duas décadas antes que ela ocorresse, fez duras críticas à escravidão e à dominação europeia e indicou mesmo o possível surgimento do um Spartacus negro para libertar o Novo Mundo. O abade Grégoire, um dos mais destacados e atuantes

revolucionários na França entre 1789 e 1799, contemporâneo portanto da Revolução do Haiti, apoiou a independência deste país e acompanhou intensamente as experiências de governo dos ex-escravos que assumiram o poder. E o abade De Pradt, realizando uma interpretação liberal da Revolução Francesa nas primeiras décadas do século XIX, foi um dos que formulou politicamente a rejeição do haitianismo, na perspectiva de um paradigma negativo. Três abades e duas revoluções, cujas conexões espraiavam-se pelos continentes europeu e americano. Desse modo, veremos como estes três abades participaram da fundação de linhas interpretativas que, surgidas desde o calor dos acontecimentos, de alguma maneira persistem ainda nos dias atuais, tendo incorporado, é claro, outros elementos, abordagens e informações. E além do desenho das principais linhas interpretativas sobre a Revolução do Haiti e suas repercussões, estas formulações forjaram memória histórica sobre o tema e ajudaram a enquadrar e a reproduzir atitudes, comportamentos políticos e, por conseguinte, apoios, repressões e definições diante do dilema crucial lançado pela Revolução do Haiti às sociedades escravistas. Estamos, pois, no âmbito das reflexões, das atitudes e dos movimentos antirracistas e anticoloniais de fins do século XVIII, e da relação da Revolução Francesa com o que os franceses passaram a chamar de “problema colonial” e, ao mesmo tempo, com a escravidão. Da “previsão” de Raynal, passando pelo apoio crítico, entusiasmado e sofrido de Grégoire e chegando à ambivalência entre execração e valorização por De Pradt, temos três momentos e três posições distintas sobre a Revolução Haitiana (e que influenciavam sobremaneira a perspectiva francesa), das quais procuraremos apresentar, a seguir, as principais características e dilemas. O que era um abade? Tal título era diversificado na França em fins do século XVIII. Originalmente dado aos chefes das abadias (ou mosteiros) de ordens religiosas, seu significado e função se ampliaram com o tempo.

Havia vários tipos de abades, inclusive membros do clero secular: os chefes de determinada paróquia com os respectivos cônegos e padres, aqueles que encabeçavam uma paróquia que havia sido bispado, alguns cardeais, os abades regulares, os abades comanditários, os que eram nomeados pelo rei, entre outros. De modo geral, a figura do abade se destacava da maioria do clero, seja pela atividade intelectual ou pela projeção política, constituindo como que figura de peso intermediário entre padres e bispos82. Os três abades dos quais nos ocupamos aqui, portanto, não eram chefes de ordens religiosas ou de mosteiros, mas se incluíam nas diferentes classificações que tal título adquiriu na vida eclesiástica, política e intelectual. Durante a Ilustração setecentista e sobretudo com a Revolução Francesa (convém não as confundir, apesar das ligações existentes), o Clero, em seus níveis de hierarquia, esteve atravessado pelas contradições das sociedades em que viviam. Eram, como se sabe, homens que dominavam o saber letrado, mas que nem por isso ficavam isentos das marcas complexas e contraditórias das sociedades de Antigo Regime, inclusive partilhando de 83

diferentes aspirações sociais e formulações intelectuais . Tal situação ganhou contornos marcantes durante a crise do Absolutismo e a Revolução Francesa, quando, de um lado, centenas de religiosos identificavam-se profundamente com o Antigo Regime e com a Aristocracia, sendo conhecidos as profanações de igrejas e os massacres de clérigos cometidos pelos revolucionários, do mesmo modo que a mobilização religiosa da população camponesa em atividades contrarrevolucionárias, como no caso de Vendéia. De outro lado, são expressivas e frequentes as adesões de setores do Clero à Revolução Francesa, já durante os Estados Gerais, quando membros das três ordens (Nobreza, Clero e Povo) em que se dividia juridicamente a sociedade engrossaram as fileiras do Terceiro Estado. São bastante citados os casos envolvendo o chamado Clero constitucional, composto por aqueles que

comungavam com muitas das premissas liberais e mesmo revolucionárias 84

daqueles tempos . Acreditando resumir o essencial na definição do perfil específico dos abades, o escritor francês Cousin d’Avalon, autor em 1820 de um livro sobre o abade De Pradt, assim se exprimiu {tradução livre}85: Nós temos mais de cem abades que, em vez de rezar missa, celebrar as vésperas e instruir os fiéis, acham muito mais lucrativo e divertido dissertar a torto e a direito sobre os interesses dos príncipes e dos povos. Esses Senhores se auto erigiram em pequenos Grotius86 modernos e, do fundo de seus gabinetes, ditam lições ao universo. Eles conhecem tudo, sabem tudo, eles não ignoram nada, exceto de tudo que se relaciona com seus deveres.

E, numa tacada mais direta, acrescenta: “Entre estes abades, distingue-se o Senhor abade de Pradt”. A ironia do publicista francês contém uma dose de bom senso. Mas para se compreender o papel dos três abades citados aqui é preciso levar em conta, ainda, as multifacetadas ideias sobre raça, diversidade e unidade da espécie humana tão debatidas pelos pensadores da Ilustração ao longo do século XVIII, ideias que não eram monolíticas, onde não faltavam afirmações de cunho antirracista, num entrelaçar mesclado de embate e identificações entre Luzes, expansão da civilização europeia, domínio colonial, tráfico de escravos, escravidão e concepções de liberdade. Tais formulações tiveram, nestes três homens políticos e religiosos, uma de suas expressões mais reconhecidas e difundidas em sua época.

RAYNAL, PRECURSOR INVOLUNTÁRIO

A monumental Histoire Philosophique et Politique des Etablissements et du Commerce des Européens dans les Deux Indes (1770), de GuillaumeThomas Raynal (1713–1796), trazia críticas não só às monarquias absolutistas, mas, sobretudo, às violências da expansão europeia nas duas Índias, isto é, à ocidente e à oriente da Europa. Este livro foi importante porque instaurou um dos pontos de partida do que viria a se chamar a “teoria colonial”, abordando as relações entre “metrópoles” ou reinos da Europa e das “colônias” ou territórios de além-mar. O autor tinha como princípio central a certeza de que os dois hemisférios romperiam seus laços de maneira irrevogável (Livro IX). Ele apoiava a independência das Américas, inspirado pelo exemplo da independência das colônias inglesas na América do Norte. Defensor da noção de Soberania dos Povos dos Novos Mundos (o que não era novidade na Igreja do século XVIII), o abade Raynal condenava a

escravidão, considerada regime “bárbaro” de trabalho. É verdade que condenava tanto o cativeiro dos africanos quanto dos índios. Mas parecia particularmente entusiasmado pelo papel libertador e até messiânico que os Nègres poderiam representar para a História (Livro IX). E, ao mesmo tempo, mostrava um toque de decepção frente ao comportamento dos índios, colocados por ele numa escala inferior do “progresso humano” (Livro X). Esta espécie de “preferência” por índios ou negros, alternadamente, como potencialmente libertadores uns e menos capazes outros, encontra-se em diversos autores dos séculos XIX e XX. O Brasil, isto é, a América portuguesa, foi tema das reflexões do abade Raynal, no Livro IX. O autor pede o fim da Inquisição e do monopólio comercial português. E afirma energicamente que os problemas desta “América Meridional” se deviam na maior parte à “má colonização” dos portugueses, chegando a qualificar estes de “raça degenerada”. O desprezo em relação aos portugueses será reassumido de maneira recorrente nas manifestações antilusitanas após a independência brasileira87. Ao mesmo tempo, Raynal antevia que a formação, pela Coroa lusitana, de quadros administrativos e intelectuais entre as elites nascidas na América portuguesa traria profundas alterações nas relações entre as sociedades portuguesas dos dois Hemisférios. O abade Raynal foi também, como se sabe, um dos inspiradores da Revolução Francesa, aclamado como um de seus mentores intelectuais, embora sua atitude, depois de 1791, foi de criticar os “excessos” da Assembleia Nacional, vendo aí o risco de um novo 88

despotismo . No tocante ao fim da escravidão no Novo Mundo, Raynal, do alto de seu protesto lúcido e indignado, ao mesmo tempo racionalista e cristão, após detalhadas análises econômicas e históricas, escreveu o seguinte trecho, de tons proféticos, próprio, aliás, da linguagem bíblica:

Se somente o interesse tem direitos sobre sua alma, nações da Europa, escutemme ainda. Seus escravos não precisam nem de sua generosidade, nem de seus conselhos, para romper o jugo sacrílego que os oprime. A natureza fala mais alto que a filosofia e o interesse. Já se estabeleceram duas colônias de negros fugitivos, que os tratados e a força colocam ao abrigo de vossos atentados. Estes relâmpagos anunciam a tempestade e só falta aos negros um chefe corajoso o bastante para conduzi-los à vingança e à carnificina. Onde está esse grande homem que a natureza deve a seus filhos humilhados, oprimidos, atormentados? Onde está ele? Ele aparecerá, sem dúvida, ele se mostrará, ele levantará o estandarte sagrado da liberdade. Este sinal venerável reunirá em torno dele seus companheiros de infortúnio. Mais impetuosos que as correntezas, eles deixarão espalhadas as marcas que não se apagam de seu justo ressentimento. Espanhóis, portugueses, ingleses, franceses, holandeses, todos os seus tiranos se tornarão a presa do ferro e da chama. Os campos americanos se embebedarão ao contato de um sangue que eles esperavam há muito tempo, e as ossadas de tantos desafortunados enterradas durante três séculos estremecerão de alegria. O Velho Mundo unirá seus aplausos ao Novo. Por toda parte será abençoado o nome do herói que terá restabelecido os direitos da espécie humana, por toda parte se erguerão troféus a sua glória.89

Tal passagem, publicada vinte e um anos antes do início da insurreição dos escravos em São Domingos, causaria sérios contratempos a seu autor – que, aliás, negaria apoio à mesma insurreição, buscando desvincular seu nome de tal episódio e condenando o uso da violência. Entretanto, parte da historiografia francesa (como foi assinalado mesmo por historiadores franceses) costuma atribuir prioridade às influências das ideias iluministas e à Revolução Francesa entre as origens da Revolução do Haiti (contrariando, aliás, a própria previsão de Raynal sobre a inutilidade dos conselhos e generosidades dos colonizadores). Chegando mesmo, vários autores, a explicar as causas deste movimento, e até o surgimento da liderança de Toussaint Louverture, a uma suposta leitura que este teria feito, quando jovem, do trecho do abade Raynal. Legenda devidamente questionada por outro historiador francês, que mostra a evidente fragilidade de tal asserção, carregada, aliás, de boa dose de etnocentrismo, ao qual os historiadores não estão imunes90.

Raynal, na verdade, ao se debruçar sobre a escravidão do Novo Mundo, e mais particularmente sobre as colônias francesas, projetou com acuidade um cenário que, mesmo a seu contragosto, esteve bem próximo do que acabou por se realizar. As reflexões deste abade faziam parte de um contexto marcado pela relação entre a expansão da civilização europeia e a discussão sobre a origem e desigualdade entre os homens, tão caras ao Iluminismo, discussão que envolveu nomes como Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Diderot, Condorcet e outros.

ABADE GRÉGOIRE E OS ESCRAVOS: FRATERNIDADE E LUZES

Henri Grégoire (1750–1831) ficou conhecido como defensor dos direitos dos judeus, dos negros, dos mulatos e dos habitantes das colônias. E até o fim de sua vida este revolucionário francês foi fiel a tais convicções, que incluíam, também, a necessidade de civilizar e esclarecer a todos os povos, nos moldes europeus e cristãos91. Dos três abades estudados aqui, mostrou-se aquele de comprometimento mais próximo à Revolução do Haiti, apoiando-a claramente. O abbé Grégoire foi uma das figuras maiores da Revolução Francesa, assim como Mirabeau, Danton, Robespierre e mais alguns. Tornou-se o principal líder do Clero (uma das três ordens, ao lado da Nobreza e Povo que compunham a sociedade de Antigo Regime) constitucional, servindo como referência às centenas de clérigos que aderiram ao movimento revolucionário. Bispo de Blois e convencional de 1789, presidia em Paris a sessão que durou 62 horas a partir do dia 14 de julho, quando a Bastilha foi destruída. Esteve à frente da iniciativa de plantar as chamadas Árvores da Liberdade por toda a França, marcando simbolicamente o triunfo revolucionário. Ativo na concepção de novas instituições e na modernização nacional, agiu na criação dos museus nacionais e na tentativa de eliminar os patois regionais e fortalecer a unidade da língua francesa. Destacou-se também nas tendências galicanas (separação do Vaticano e do Papa) da Igreja Católica francesa. Esteve entre os regicidas, isto é, os que votaram pela morte do rei Louis XVI na guilhotina. Durante o período do Diretório e do Império, o bispo de Blois foi deputado, senador, membro fundador do Institut de France e agraciado com a Legião de Honra e o título de conde. Grégoire teve atuação marcante na Revolução do Haiti, desde a inicial defesa dos direitos dos mulatos livres antes da insurreição de 1791 até o reconhecimento da independência da antiga colônia mais de três décadas depois. Sua presença na primeira Abolição da escravatura francesa em 1794

mostrou-se decisiva. Apoiador explícito do processo revolucionário haitiano, sua postura desassombrada valeu-lhe isolamento e perseguições na França, sobretudo durante a Restauração. Quando Napoleão Bonaparte reestabeleceu a escravidão nas colônias francesas em 1802, Grégoire publicou como resposta intelectual, em 1808, o livro De la Li érature des Nègres ou Recherches sur leurs Facultés Intellectuelles, leurs Qualités Morales et leur Li érature; Suivies de Notices sur la Vie et les Ouvrages des Nègres qui se sont Distingués dans 92

les Sciences, les Le res et les Arts,

onde, aprofundando a via aberta pelos

autores enciclopedistas e Ilustrados, sustentava que as “insuficiências dos negros” resultavam da condição em que viviam e não de atavismo racial. Esta obra, que procurava exaltar a Ilustração dos negros ao longo da história, é uma expressão erudita das atividades da Sociedade dos Amigos dos Negros, criada em Paris em 1788 pelo abade Brissot, da qual o autor foi um dos membros93. Em suas páginas, o abade Grégoire usa a expressão “escravidão colonial”, para criticar tal instituição. Logo no início do livro, à guisa de dedicatória e homenagem, Grégoire faz longa lista dos abolicionistas franceses e ingleses, incluindo também alguns nomes de negros e mestiços (sang-mêlés), de norte-americanos, alemães, dinamarqueses, suecos, holandeses, italianos e um espanhol. Lamenta, em seguida, a ausência de outros espanhóis e mesmo de qualquer português nesta lista, pois estes, a seu conhecimento, não consideravam que os negros fizessem parte da grande famille du genre humain (p. X). Como exemplo, o abade Grégoire passa a criticar as posições do bispo José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho por sua defesa da escravidão e do tráfico (citado mais adiante). Esta seria uma obsessão do abade durante décadas: procurar um “homem de cor” falante de português (inclusive do

Brasil) que tivesse desenvolvido e publicado atividades intelectuais. Mais adiante, como se verá, ele teve sua curiosidade satisfeita. Na conclusão do livro De la li erature des Negres..., Grégoire explicita o que seria um dos pontos chave de seu pensamento sobre o assunto: a configuração do modelo haitiano, sua efetiva possibilidade de propagação, e o que considerava como a inexorável libertação dos escravos para o restante das Américas. Esse continente americano, asilo da liberdade, se encaminha para uma ordem de coisas que será comum com as Antilhas, e da qual todas as potências não poderão parar o curso. Os Negros reintegrados em seus direitos, pela marcha irresistível dos acontecimentos, serão dispensados de todo reconhecimento diante desses colonos, aos quais teria sido igualmente fácil e útil de se fazerem amados.94

Em outras palavras: a Revolução Haitiana abrira uma nova etapa para a história da humanidade. Ou seja, o caminho para o fim da escravidão poderia ser gradual, feito a partir da compreensão e concessões dos colonos e proprietários, ou poderia ser violento e brusco, como ocorrera em São Domingos. Escrevendo tal texto quatro anos após a Proclamação da Independência do Haiti, o abade Grégoire voltava, também, a falar do Brasil, afirmando que a Abolição da escravidão em São Domingos fora o elemento irreversível que traria o fim do sistema colonial (expressão sua) e da escravidão nas demais partes das Américas, assinalando que no Brasil, nas Bahamas e na Jamaica já havia experiências bem-sucedidas de trabalho por empreitada. Ou seja, balizava o exemplo haitiano como fator que parecia irreversível para o caminho do progresso da humanidade em geral e do continente americano em particular, acenando ao mesmo tempo com o fim da dominação colonial e da escravidão. Restava saber, segundo ele, se o fim da escravidão se daria pelo modelo haitiano ou de forma gradual e progressiva. Tal preocupação de Grégoire reforça a densidade da repercussão da

Revolução do Haiti (apontada por ele como paradigma positivo, diante da persistência do escravismo e intransigência dos senhores) que aparecia como um fator que – amedrontando ou trazendo esperanças – marcava as referências da época, entre amplos setores das sociedades americanas e europeias. No tocante à Revolução do Haiti, ficou conhecido o texto no qual Grégoire, em 1791, afirmou textualmente (pouco tempo antes do início da insurreição dos escravos em São Domingos): “[...] que um dia nas costas das Antilhas o sol só iluminará homens livres e que os raios do astro que espalha a luz não cairão mais sobre ferros e escravos”95. Tal asserção causou verdadeira ira entre os setores colonialistas e escravistas da sociedade francesa, que passaram a associar o abade Grégoire aos fatos ocorridos na ilha de São Domingos. Mesmo explicando que dirigira tais palavras impressas apenas aos mulatos e negros livres, e reiterando que era, a princípio, a favor da extinção gradual do trabalho escravo (e não através de uma ruptura, do mesmo modo, aliás, que seus colegas da Sociedade dos Amigos dos Negros), Grégoire não renegaria aquela afirmação, pelo contrário, continuaria a lembrá-la pelo resto da vida, atribuindo a responsabilidade do ocorrido nas Antilhas francesas às intransigências e violências dos grandes proprietários e seus representantes96. A maneira mais eloquente com que o abade Grégoire demonstrou não repúdio, mas solidariedade e adesão ao Haiti independente e ao exercício do poder por ex-escravos, ainda no calor dos acontecimentos, pode ser acompanhada através das relações que ele estabeleceu, mantendo-se na França, com a ex-colônia francesa, sobre a qual ele afirmava sem meias palavras: “Haiti é um farol elevado sobre as Antilhas, em direção ao qual os escravos e seus senhores, os oprimidos e opressores voltam seus olhares, aqueles suspirando, estes rugindo”97.

Já no período em que Toussaint Louverture era o chefe de fato de São Domingos (entre 1797 e 1802), Grégoire estabeleceu contato direto com ele, visando colaborar com os antigos trabalhadores escravizados e suas lideranças que agora assumiam o poder. Uma das dificuldades era a obtenção de religiosos para se instalarem na ilha caribenha. Toussaint, que tinha formação católica, solicitou a Grégoire auxílio para a organização da Igreja em São Domingos, dizimada ou dispersa após a insurreição. Toussaint instara para que se obtivesse um bispo e três padres: o próprio Grégoire não se dispôs a ir, mas aceitou ser intermediário e, após buscas infrutíferas, não conseguiu nenhum clérigo desejoso de se instalar nas Antilhas em Revolução. Mas tentando suprir esta falta, o abade Grégoire fez sucessivos envios à Toussaint, através de abolicionistas, comerciantes, militares, viajantes, entre outros, de livros e impressos. Que publicações eram essas que Grégoire fez chegar a São Domingos abolicionista? Segundo suas próprias palavras: Esses livros eram obras de piedade e de educação bem escolhidas e exemplares das que eu havia publicado sobretudo em favor dos Africanos, como, entre outras, o escrito sobre La traite et l’esclavage des noirs et des Blancs par un ami des hommes de toutes les couleurs e recentemente o Manuel de piété à l’usage des hommes de couleur.98

Ou seja, o ex-bispo de Blois colocava-se solidário com a luta pelo fim da escravidão no Haiti (e também com o exercício do poder pelos antigos cativos após o fim do escravismo) e fundamentava tal solidariedade a partir de uma ótica cristã e iluminista, empenhando-se para que a nova situação se estabelecesse dentro dos padrões civilizatórios e religiosos ocidentais, através do estímulo das Luzes, da educação e da prática do catolicismo. É significativo ver a linha de coerência do abade Grégoire (que lhe custou perseguições e ostracismo na França) contra o preconceito racial e escravidão e, em seguida, também de solidariedade aos escravos rebelados,

bem como de apoio efetivo ao Haiti independente, embasado em sua visão de mundo fundada sobre a fraternidade revolucionária e cristã, imersa naquele contexto histórico. Grégoire estabeleceu, assim, contatos com os principais líderes da Revolução do Haiti, relações que nem sempre eram fáceis, seja pela distância geográfica ou das comunicações, mas também por distâncias políticas e culturais. Em relação a Henri Christophe, por exemplo, este abade francês criticou duramente sua opção pelo regime monárquico, o que não impediu que este governante haitiano mandasse comprar em Londres 200 exemplares do livro De la Li erature des Nègres, em 1814, para serem distribuídos pelo país, ao mesmo tempo em que fez inserir trechos deste livro em publicações impressas no Haiti. Grégoire correspondeu-se também com os dirigentes do governo de Jean-Pierre Boyer, que o convidou para ser bispo do Haiti em 1818, convite novamente recusado pelo abade, que alegou sua idade avançada. Mesmo assim, Boyer colocou na sala de governo um retrato de Grégoire, a quem ele comparava, em grandeza e importância, a frei Bartolomeu de Las Casas99. Nesse período, o abade Grégoire estabeleceu significativa correspondência epistolar com membros da nova elite haitiana, e colaborou na imprensa francesa, combatendo os preconceitos raciais, defendendo a causa dos negros e mulatos. Entretanto, quando os governantes haitianos, na mesma época, conseguiram estabelecer um tratado de reconhecimento da independência com a França em 1825 (durante a Restauração monárquica), o retrato de Grégoire foi logo retirado do gabinete presidencial de Boyer para não desagradar o governo da antiga metrópole, gesto que deixou o abade vivamente magoado: “Adeus, Haiti!”, escreveu ele, comparando o novo país a um filho que vai para o mundo e dá as costas aos pais100. Nos anos 1820, seus últimos de vida, Grégoire manteria e daria contornos mais nítidos a seu combate contra diferentes formas de

preconceito e, ainda, pela possibilidade de exportação do modelo haitiano. No livro De la Noblesse de la Peau ou du Préjugé des Blancs contre la Couleur des Africains et Celle de leurs Descendents Noirs et Sang-Mêlés, de 1826, dividido em sete capítulos, constam algumas dessas ideias101. Ele faz referência, por exemplo, à Santa Aliança dos Povos (cap. VII, p. 111), numa

contraposição

clara

à

internacionalização

das

dominações

aristocráticas, monárquicas e europeias centradas na Santa Aliança102. Alerta para a possibilidade de que, com a manutenção dos rigores da escravidão em várias partes das Américas, surja em cada colônia ou país um Spartacus, um Toussaint Louverture (cap. 5, p. 88) que, à frente dos escravos, tomariam pela força aquilo que lhes era negado pelo direito. E tal possibilidade se reforçava na medida em que: “A Revolução Haitiana, pelo fato apenas de sua existência, terá talvez uma grande influência sobre o destino dos Africanos no novo mundo” (cap. V, p. 81). Raynal também conclamara por um possível Spartacus para o Novo Mundo, mas tratou de negar uma referência explícita a Toussaint Louverture, mostrando-se arredio à insurreição dos escravos que começou em 1791. Grégoire retomava a comparação oriunda da frase dita premonitória de Raynal para reafirmar positivamente a identificação Spartacus/Toussaint Louverture. Fica evidente, pois, a caracterização do exemplo e do modelo haitiano, que gerara, segundo Grégoire, um evento fundador, portanto irreversível, cujas repercussões poderiam se alastrar e gerar consequências concretas, de acordo com as condições de cada localidade. Mesmo sem discutir, nesse escrito, as contradições internas do Haiti pós-independência, ele apontava para a força de sua significação externa, isto é, internacional, na composição daquilo que ele enxergava como a Santa Aliança dos Povos. Ao mesmo tempo, Grégoire dirigia tais palavras como tentativa de convencer os proprietários e as autoridades a empreenderem, de forma gradual, o fim do tráfico e da escravidão.

Ainda no mesmo livro, o abade Grégoire invoca o exemplo esclarecedor e virtuoso de pensadores católicos em territórios escravistas, citando, entre outros, o padre Antonio Vieira (cap. VI, p. 102). E retoma sua afirmação de que nos domínios espanhóis e portugueses nas Américas, apesar da enorme quantidade de escravos, estes não tinham uma sorte tão dura. Explicando tal característica por dois fatores: o espírito religioso, que incentivou atividades de educação e de liberdade (alforria); e, como consequência, assinala a existência de negros e mulatos, naquelas localidades, que eram advogados, militares, médicos, padres e até bispos (cap. III, p. 55). Vemos aí um conjunto de três questões, a saber: o preconceito racial, a miscigenação e uma espécie de democratização racial da sociedade. São questões que, embora próximas e relacionadas, têm suas lógicas e ritmos próprios e não se confundem necessariamente, como assinala o historiador David Brion Davis103. Neste caso, particularmente para o Brasil, Grégoire parece concluir, a partir de uma visível miscigenação já acentuada no começo do século XIX, pela ausência de desigualdades mais acentuadas e até pelo enfraquecimento do preconceito racial. Concluindo o livro, no qual desenvolveu e criticou a noção de nobreza da pele, Grégoire aponta para a outra nobreza, que considera a verdadeira: a da virtude, atributo de homens de todas as cores (cap. VII, p. 116). Os contatos de Grégoire com o Brasil serão tratados na Parte III.

DE PRADT: INDEPENDÊNCIA SEM REVOLUÇÃO

Dominique-Georges-Frédéric De Pradt (1759–1837), de uma geração posterior à de Raynal, é considerado também um crítico das proposições deste, sempre tratando do mesmo assunto, isto é, as teorias das independências do Novo Mundo. Pradt era considerado ao mesmo tempo como discípulo e demolidor de Raynal, pode-se dizer que este era mais próximo dos filósofos iluministas do século XVIII enquanto aquele estava mais em sintonia com os liberalismos do início do século XIX. Um formulou suas ideias antes da Revolução Francesa e o outro, depois104. Além disso, Pradt criticava diretamente as proposições do abade Grégoire, como se verá a seguir. O abade De Pradt foi uma das principais referências intelectuais de legitimação da Independência do Brasil para os protagonistas que

105

participaram do processo entre 1821 e 1822 e mesmo posteriormente . Dois exemplos. Nos catálogos da Livraria Plancher do Rio de Janeiro em 1827 encontravam-se dois títulos escritos pelo abade De Pradt: La France, l’émigration et les colons e L’Europe et l’Amérique en 1822 et 1823, ambos de 1824. E na biblioteca do deputado baiano Antonio Pereira Rebouças (1798–1880) havia três títulos: o mesmo La France, l’émigration et les colons; Pièces relatives a Saint-Domingue et, a l’Amerique, mises en ordre par M. De Pradt (uma coletânea de documentos sobre a Revolução Haitiana, sobre a qual o autor fazia algumas considerações elogiosas, prevendo em 1818 que o Haiti poderia se tornar uma nação próspera, conforme se verá adiante); De la Révolution actuelle de l’Espagne et de ses suítes, 1820). Com sua teoria das “três idades das colônias”, o abade De Pradt pregava a emancipação preparada em comum acordo entre os reinados europeus e seus territórios de outros continentes, proposição estampada num livro que começou a ser redigido em 1787 (mas publicado entre 1801 e 1802), Les Trois Ages des Colonies ou de leur État Passé, Présent et à Venir. Ou seja, utilizando-se de uma metáfora biológica para entender relações históricas, o autor afirmava que as colônias, num processo de desenvolvimento semelhante ao dos seres humanos, teriam seu nascimento vinculado às mães-pátrias, em seguida começariam a amadurecer e, naturalmente, separar-se-iam dos pais, obtendo sua autonomia. Modelo independentista, aliás, que acabaria em certa medida aplicado no Brasil de 1822. Pradt reprovava o abade Raynal por ter favorecido os “excessos” da violência revolucionária, sobretudo no caso da Revolução do Haiti, devido à condenação da escravidão e da valorização da resistência dos africanos. O exemplo, ou melhor, o contraexemplo dos escravos da colônia de São

Domingos era uma obsessão nos escritos De Pradt – o que constitui outro ponto em comum com as elites brasileiras. Em seus livros posteriores, o abade De Pradt (que chegou a ser capelão de Napoleão Bonaparte) buscava atualizar e acompanhar historicamente o desenrolar das independências americanas. Tratava, claro, da chamada questão colonial que, no seu sentido contemporâneo, era desconhecida e só começa a ser elaborada após a “revolução” da América do Norte. E a polêmica Pradt e Raynal, no fundo, delineava como que dois modelos independentistas: um valorizando a soberania popular, prevendo a ruptura dos laços com as metrópoles e chegando até a abolição da escravidão, e outro trilhando a via de reformas graduais sem maiores rupturas das ordens política e social. Modelos, no caso, constituídos mais pela reelaboração dos receptores em diferentes contextos do que pela elaboração intencional dos autores. Ainda no livro sobre a Europa e a América em 1822 e 1823, Pradt abordava uma das últimas novidades do momento, a Independência brasileira. A singularidade do que ele chamava de “revolução” no Brasil não escapava à sua observação: ele a vê como provocada pela chegada da Corte portuguesa em 1808 e “completada” pela volta do rei a Portugal em 1821. A questão, para ele, apresentava-se de início como uma espécie de disputa entre dois Reinos portugueses, o ibérico e o americano, para saber qual dos dois de fato era a metrópole. A Independência do Brasil, ainda segundo De Pradt, é consequência “necessária” do jogo geopolítico, porque o “movimento” das independências da América de língua espanhola influenciou também o Brasil. No tocante à escravidão e, particularmente, da Revolução do Haiti, o pensamento do abade De Pradt se demarca em vários aspectos dos abades Raynal e Grégoire, apesar de haver pontos de interseção entre eles. Diferencia-se, em primeiro lugar, pela ausência, em De Pradt, de qualquer

preocupação teológica, religiosa ou moral em seu discurso sobre o tema, que apresenta assim uma dose considerável de pragmatismo e de conservadorismo (no sentido de conservação das relações sociais tais como elas se apresentam). Por um lado, De Pradt apontava um caráter quase natural à escravidão, como no trecho a seguir, escrito 13 anos depois da Independência do Haiti: O trabalho dos Negros é, pois, indispensável ás colônias, ele é o ser necessário destas paragens. Desde que havia colônias, foi preciso escolher entre duas coisas, os Negros ou seu abandono. Não se pode imaginar São Domingos sem Negros, do mesmo modo que Beance ou Brie {regiões da França}sem carroças.106

Colocava, deste modo, uma visão coisificada da escravidão e do escravo, comparado aos tradicionais e habituais utensílios de trabalho, além de justificar sua existência pela prosperidade econômica das colônias. Por outro lado, é instigante perceber como essa visão “naturalizada” tinha, para o mesmo autor, outros desdobramentos, que justamente contrariavam os interesses mais conservadores dos proprietários e traficantes de escravos daquele momento: A libertação existe, pois, em germe na escravidão, como a independência na colonização. Reúnam escravos em número infinitamente superior a seus senhores e vocês os terão livres; do mesmo modo, fazendo grandes colônias, vocês as fazem independentes.107

Ou seja, numa concepção dialética, haveria como que uma superação natural, gerada pela evolução irreversível do processo histórico, compreendendo, assim, a escravidão e a dominação colonial como intrinsecamente ligadas e, ao mesmo tempo, portadoras de suas próprias contradições: na medida em que se desenvolviam e se ampliavam, geravam sua própria destruição. Tal postulação elaborada por De Pradt (autor, como foi dito, da metáfora biológica das três idades das colônias), aliás, seria retomada e redirecionada pelo pensamento marxista já no século XIX,

como é sabido. E aquela ligação com poucas mediações entre fim do escravismo e do domínio colonial parecia ser uma consequência teórica do impacto causado pela Revolução do Haiti. Ao mesmo tempo, é interessante perceber como De Pradt criticava seus predecessores nesta discussão, os abades Raynal e Grégoire: A natureza é mais antiga que os amigos dos negros e não necessita de seus socorros para se fazer sentir e para agir. Pensam que Toussaint-Louverture e Christophe tiveram necessidade de estudar na escola de Raynal? Por mim, eu apostaria bem que seu nome e suas obras jamais chegaram até eles.108

Retomava, desse modo, as ideias do próprio Raynal sobre a inutilidade dos conselhos dos colonizadores aos escravos, mas para criticá-lo, atingindo, no mesmo ataque, as Sociedades dos Amigos dos Negros, das quais Grégoire e outros eram filiados. Quanto a Grégoire, o abade De Pradt seria ainda mais contundente, embora sem citá-lo nominalmente: [...] afastando tudo que ajuntaram em torno dessa questão uma multidão de ociosos ou de declamadores, sobre a legitimidade da escravidão, sobre as faculdades comparativas do Negro e do Europeu e mil outras chateações da mesma espécie [...].109

De um lado, De Pradt aludia à expressão “faculdades intelectuais” contida no título do livro do abade Grégoire sobre a literatura dos negros e, de outro, criticava também os defensores da legitimidade da escravidão. Estamos aí no campo do liberalismo político da primeira metade dos Oitocentos, que surge na perspectiva de ser um justo equilíbrio que recusava o binômio revolução-contrarrevolução. Isto é, de não retornar ao Antigo Regime absolutista, ou ao antigo sistema colonial, de garantir as novas independências nacionais e a modernização das sociedades, mas evitando o aprofundamento dos “horrores” das revoluções. Desse modo, De Pradt, na esteira de Montesquieu e De Bonald (autores citados por ele), apontava para uma solução paliativa e não abrupta para a questão, para ele

acoplada, do fim da colonização e da escravidão. Estava, pois, semeado o campo para a condenação ao modelo e ao exemplo haitianos, sem, entretanto, significar uma defesa irrestrita e intransigente da escravidão, ao mesmo tempo em que buscava preservar os interesses dos proprietários e comerciantes de escravos e convencê-los da necessidade de planejarem o fim do escravismo, antes que tal ocorresse fora de seus planos. A visão do abade De Pradt sobre a Revolução do Haiti era ambivalente, o que pode ser explicado, em parte, por seu pragmatismo. Se, por um lado, apresentava os trabalhadores escravizados como meros instrumentos de produção, por outro lado (em determinados contextos) valorizou o protagonismo de negros e mulatos na construção de uma nova sociedade. Expressando ideários diversos e simultâneos, este abade francês não rejeitava em bloco a Revolução Haitiana, da mesma forma que vários de seus contemporâneos. O abade De Pradt chamara Toussaint Louverture de “Washington das colônias” em seu livro sobre as três idades das colônias publicado em 1801–1802, quando o líder da Revolução Haitiana era vivo110. Na medida em que a Revolução Haitiana avançava e a Independência se consolidava, De Pradt, sempre pragmático, passa a não só reconhecer, mas a defender a legitimidade e a eficiência do governo exercido por negros e mulatos. Considerava “fanatismo” a ideia de que, sem os brancos, os negros não seriam “capazes de pensar, de agir, de trabalhar, de cultivar seus 111

espíritos e seus campos...” . E o abade elogiava o governo revolucionário: “É bom que se saiba que tudo mudou em S. Domingos, homens e coisas; é bom que se saiba que os últimos 20 anos equivalem a 20 séculos para os melhoramentos morais e políticos que se fazem notar entre os negros”112. O abade De Pradt fazia então um prognóstico otimista da sociedade que poderia resultar da Revolução Haitiana:

A liberdade do negro, sua passagem ao estado de família, os cuidados dispensados às mães durante a amamentação e a gravidez, uma alimentação menos medida pelo interesse do senhor que pelo do consumidor, a abundância e o bom mercado de subsistências, os salários obtidos pelas tropas e pelos operários que hoje trabalham por conta própria. [...] Em alguns anos S. Domingos, trabalhado por mãos livres e interessadas no sucesso do trabalho, ultrapassará o antigo S. Domingos.113

As afirmações do abade francês comprovam como a Revolução do Haiti alterou o campo de referências políticas e intelectuais da época, tornando possível o que era até então impensável do ponto de vista da civilização ocidental europeia: a capacidade dos negros em se autogovernar, cuja 114

negação era um dos fundamentos ideológicos da escravidão . Em 1818, data da publicação do texto acima, a percepção otimista de pensadores liberais europeus quanto à sociedade haitiana revela que havia uma expectativa de que ela poderia ser uma experiência piloto para comprovar os benefícios do capitalismo sobre o escravismo. Este poderia ser o resultado do abolicionismo. Tal acepção foi desenvolvida, sobretudo, por pensadores liberais franceses em relação aos primeiros governos “mulatos” do Haiti, mas estendia-se também aos negros, embora com menos ênfase. O viajante naturalista e botânico inglês Joseph Banks (que acompanhara o capitão Cook em sua primeira viagem ao Oceano Pacífico), na mesma linha, afirmara em 1815 que, se fosse mais jovem, desejaria ir ao Haiti para conhecer de perto o destino de seres humanos que emergiam da escravidão e caminhavam para a perfeição civilizatória115.

O comerciante britânico Rainsford conversa em a lteridade com um militar haitiano na época da Independência

No entanto, após o reconhecimento da Independência do Haiti pela França em 1825, com a antiga metrópole impondo condições ruinosas para e economia da nação recém-independente, inviabilizava-se o sonho, percebida como viável até então, de uma sociedade mais próspera, no âmbito capitalista, oriunda da escravidão e comandada por antigos escravizados negros e mulatos. Ainda assim, ao longo do século XIX, a experiência haitiana continuaria sendo uma referência cultural e histórica positiva sobre a capacidade dos negros em governar. O Brasil será um Haiti?

A associação entre o Brasil e a ilha de São Domingos foi também colocada por De Pradt, à sua maneira. Dirigindo-se aos proprietários, argumentava: Vocês laboram seus campos de tigres e, mais dia menos dia, vocês não serão devorados? Vocês transportam a Guiné às colônias, e mais dia menos dia elas não buscarão se tornar senhoras, por sua vez? [...] A Virginia, a Carolina, o Brasil, São Domingos, estão no mesmo caso; o último já cumpriu seu destino, os outros têm experimentado, nos últimos vinte anos, tentativas repetidas de insurreição, todas marcadas pelo mesmo selo, um batismo de sangue para os senhores, uma libertação geral para os escravos.116

No caso do Brasil, esse texto, escrito em 1817, parecia levar em conta, possivelmente, a série de insurreições de escravos ocorridas na Bahia no início do século, bem como, certamente, a recente República de 1817 que abrangeu quatro capitanias do Norte, e que foi também objeto das atenções do abade De Pradt. De Pradt discutiria ainda um tema recorrente entre setores da sociedade francesa da Restauração, ou seja, a possibilidade de retomada da ilha de São Domingos, fator que retardou por duas décadas o reconhecimento, pela França, da Independência do Haiti. Após pesar calculadamente os prós e contras desta perspectiva de recolonização, ele acabaria se manifestando contrário a ela, não por princípios humanitários, políticos ou religiosos, mas por considerar que seria uma empreitada de reconquista muito dispendiosa, cujas possibilidades de êxito seriam reduzidas por um fator incontornável: “a ilha de São Domingos com 25 anos de revolução necessitaria de uma 117

grande e dispendiosa vigilância” . E passa a citar exemplos de como todos os chefes políticos e militares forjados durante a Revolução do Haiti, como Toussaint, Pétion, Christophe e outros, fossem negros ou mulatos, sempre se mostraram intransigentes contra o retorno da escravidão e do poder político e territorial dos brancos. Em vez de planejarem destronar o Rei Christophe, alertava ironicamente a seus conterrâneos europeus, seria mais

fácil destituir o Rei do Congo. E se os brancos voltassem a ter algum direito no Haiti, eles seriam lá tratados “como os Negros”, segundo De Pradt. Em seguida, para comprovar seus argumentos e preocupações, o mesmo autor publica uma tabela demográfica comparativa, com os seguintes dados 118

referentes à população escrava

Antilhas

1.600.000

Brasil

1.500.000

América espanhola

600.000

EUA

1.377.000

:

População escrava nas Américas segundo o abade De Pradt

Reforçando suas colocações anteriores, De Pradt parecia crer que, no Brasil (ou em alguma parte dele), haveria condições mais propícias para o possível surgimento de um “novo Haiti”: reforçando a visão providencialista e progressista (no sentido de um progresso inelutável) do fim da dominação colonial e da escravidão nas Américas, havia de específico no Brasil a extensão territorial difícil de ser inteiramente controlada, a riqueza produzida durante a colonização e o grande número de escravizados. Avaliação diferente, portanto, da que fora feita por Grégoire, segundo o qual o sistema escravista luso-brasileiro teria mecanismos de amortecimento dos conflitos e desigualdades, que impediriam a repetição da experiência haitiana, como se verá adiante. Entretanto, um dos pontos que me parece mais expressivo nas reflexões do abade De Pradt é quando ele formula os caminhos para se combater as possíveis repercussões positivas da Revolução do Haiti, assinalando as maneiras de evitar sua propagação, como modo de defesa contra sublevações escravas ou contestações da ordem escravista vindas de outros

setores da sociedade. Deste modo, De Pradt ajuda a fundar e a consolidar um discurso e uma atitude frente à Revolução do Haiti que se desenha cerca de duas décadas depois do início deste movimento, não mais como reação escravista unívoca e irrestrita, ou pregação revolucionária e abolicionista. Tais discursos e atitudes (que previam uma emancipação gradual e evolutiva da escravidão) se assentariam, basicamente, sobre dois eixos: a rejeição da repetição dos “horrores” de São Domingos e a ocultação da densidade e das múltiplas possibilidades de seu exemplo histórico. Quanto ao primeiro ponto, temos o seguinte trecho, como exemplo: O mundo está repleto da narrativa apavorante das cenas fúnebres que ensanguentaram, desolaram e finalmente subtraíram São Domingos à sua feliz metrópole. Lá, a insurreição está sobre o trono, os excessos que se seguiram foram os que se devia esperar da fúria desencadeada de quinhentos mil escravos.119

Com relação ao segundo ponto, vale destacar esta citação: É preciso acrescentar que a escravidão é por si mesma uma coisa tão perversa que é tão perigoso falar do remédio quando do próprio mal; que é um estado tão violento que desde que se fala de aliviar o peso das correntes, corre-se o risco de vê-las rompidas e transformadas, por mãos ferozes e irritadas, em instrumentos de destruição.120

Os dois eixos indicados pelo abade De Pradt quanto às repercussões da Revolução do Haiti poderiam ser sintetizados como: o maldito e o não dito. De Pradt explicita as formas de silêncio, ocultação e, ao mesmo tempo, de execração, que lhe pareciam mais eficazes para fazer com que a contestação à ordem escravista não saísse do controle de seus beneficiários, para que tal ordem pudesse ser transformada sim, mas sem ruptura e, sobretudo, fora da iniciativa dos escravos e sem a hegemonia do discurso abolicionista. Esta lição que ele apontou, a do não falar e de amaldiçoar, foi uma das que mais vingou na sociedade brasileira oitocentista em relação ao tema da Revolução do Haiti e do fim da escravidão.

A incipiente imprensa haitiana, por sua vez, acompanhava de modo intermitente os acontecimentos do Brasil. Como no caso da Gaze e politique et commerciale d’Haiti, publicada a partir do primeiro aniversário da Independência, em 1805, na cidade do Cabo Francês (Cap). Era órgão oficioso do governo Jean-Jacques Dessalines, editado e de propriedade de Pierre Roux, mas subvencionado pelas autoridades públicas. Em março de 1805, o periódico, sempre atento à movimentação das grandes potências no Atlântico, em meio às guerras napoleônicas, apontava que a tendência de Portugal era “cair numa insignificância absoluta”, depois que se tornara mero intermediário do comércio entre a Grã-Bretanha e o Brasil. Em tal contexto, segue o texto, “os estabelecimentos portugueses na América”, do 121

rio Amazonas ao rio Prata, ficarão em mãos do comércio britânico . Notese que não há, no jornal haitiano, nenhuma perspectiva quanto a uma possível Independência do Brasil, mas, uma troca de metrópoles que, por sua vez, teria o efeito de enfraquecer a presença francesa no Atlântico – o que era bem-visto pelo governo do Haiti recém-independente em relação à sua antiga metrópole. Quatro meses depois da notícia acima, a Gaze e haitiana (conhecida também por Gaze e du Cap, devido à localização) retomava o tema, afirmando que recebera informações diretas e atualizadas de Lisboa que apontavam um estreitamento da relação de Portugal com a Grã-Bretanha e a tendência da Corte lusa se transferir para o Brasil (o que ocorreria 31 meses depois). O redator do periódico opinava que tal solução seria melhor para os portugueses do que “ficar sob o controle da França” (a invasão francesa no território luso ocorreria às vésperas da evasão da Corte para o Brasil). E acrescentava o jornal haitiano: “[...] estabelecendo seu governo no Brasil, os portugueses ficariam fora do alcance de seus turbulentos vizinhos e poderiam, em pouco tempo, formar uma nação mais potente do que 122

qualquer outra atualmente existente”

.

A avaliação da Gazette do governo Dessalines tinha pontos em comum e diferenças com o pensamento do abade De Pradt. Aquela, via com bons olhos a transferência do governo português para a América, como o abade também. Mas este via em tal gesto a efetivação da Independência do Brasil, enquanto que o periódico oficial do Haiti (lembramos, o segundo país a proclamar a Independência nas Américas) não colocava tal perspectiva. A atenção principal do então “Império Negro” era enfraquecer a antiga metrópole, recém-derrotada nos campos de batalha. Não havia preocupação do governo haitiano em “exportar” a Revolução para o Brasil, mas, sim, a de exportar produtos para os Estados Unidos e demais países neutros. De qualquer modo, vemos como as notícias sobre o Brasil, dentro do circuito atlântico, passavam também pelo Haiti que dava seus primeiros passos na institucionalização da ordem nacional. Ainda em dezembro de 1806, a Gaze e haitiana voltava a se referir a uma iminente transferência da Corte portuguesa ao Brasil, que seria efetivada pela ida de Lord Vincent comandando uma esquadra britânica que se dirigiu ao rio Tejo, notícia 123

baseada em “muitas correspondências” que chegavam ao Haiti . As correspondências manuscritas (ou faladas) compunham o circuito transatlântico entre Haiti, Europa e Brasil. Quanto ao abade De Pradt, relato sugestivo veio de John Armitage em sua História do Brasil. Testemunha ocular e fino analista dos episódios e personagens no Rio de Janeiro entre 1808 e 1831, o comerciante e escritor inglês reafirmou que, após o decreto de liberdade de imprensa assinado em 2 de março de 1821 por d. João VI, houve proliferação inédita de impressos em terras brasileiras, sobretudo na capital: “Felizmente, para o progresso do bem público, os escritos do Abade De Pradt sobre a polícia colonial124 paravam nas mãos dos principais condutores da opinião pública na Cidade do Rio de Janeiro”125.

Armitage observou, ainda na mesma obra, diferença sutil, mas importante, pois as “palavras proféticas” do autor francês “eram repetidas com ardente entusiasmo por todos os partidistas da independência, nas suas conversações, nos seus escritos e nas suas sociedades maçônicas. Enquanto que “iguais princípios, ainda que cautamente enunciados, por vezes apareciam nos novos jornais”. “Foi ele o primeiro”, insistia Armitage em relação a De Pradt, quem enunciou a separação do Brasil de Portugal. Vemos, assim, a figura do abade De Pradt surgir destacada no âmago do processo de Independência no Brasil. Porém, com menos ênfase nos periódicos impressos (sobre os quais o controle governamental era maior, mais factível) e de modo mais “ardente” na transmissão oral, nos encontros pessoais e públicos, nas associações mais ou menos secretas, nos papéis manuscritos ou em impressos avulsos. Armitage, representante da casa de comércio britânica Philips, Wood & Cª, não era propriamente um francófilo, não teria interesse em realçar a importância do abade francês, cujas obras na Europa, como destaca o próprio historiador, “haviam caído em desconceito”. Através do pensamento destes três abades (Raynal, Grégoire e De Pradt) vimos que a rejeição à Revolução do Haiti não era um dado natural, nem foi a única posição que surgiu inicialmente entre o pensamento ilustrado de setores das elites culturais europeias, inclusive as católicas. Estes três autores, apesar de marcantes diferenças entre si, tinham como ponto comum (a partir de uma concepção de evolução do progresso humano típica dos séculos XVIII e XIX) a percepção de que a escravidão caminhava inexoravelmente para a extinção – e o que os diferenciava era, sobretudo, a definição do ritmo, dos meios e dos agentes de tal processo. Embora esta perspectiva ilustrada de crítica da escravidão fosse evidentemente anterior à Revolução do Haiti, é inegável que esta deu a tais postulados um novo sentido, isto é, uma concretude histórica, com

referências palpáveis e datadas, com rostos e gestos, redimensionando as reflexões, cenários e propostas. Obrigando, portanto, a recomposição das referências teóricas sobre o tema. Daí que uma das respostas encontradas foi o próprio discurso de satanização da Revolução Haitiana e de realce de suas violências, que se tornaram objeto de vigorosa elaboração e propagação, enquanto memória histórica e também como linha de interpretação do passado. Discurso que foi eficazmente construído e reelaborado em locais geográficos e sociais nos quais ele podia trazer algum benefício a seus propagadores. Por esses motivos, é possível entender porque a lição de não falar e de amaldiçoar a Revolução do Haiti vingou no Brasil, com permanências que chegam aos dias de hoje.

BATINAS BRASILEIRAS, VENTOS ATLÂNTICOS As ideias dos abades Raynal, Grégoire e De Pradt sobre escravidão, embora peculiares e diferentes entre si, pertenciam a um fundo comum marcado pela Ilustração e suas heranças, pelo impacto das Revoluções Francesa e do Haiti e, ainda, pela emergência do liberalismo constitucional Pós-Revolução Francesa. Logo, não é de se estranhar que tais postulados tivessem pontos em comum com parcela do clero brasileiro da primeira metade do século XIX. E não apenas com o clero de tendência constitucional e revolucionária presente em várias províncias do Norte (como então se dizia) nos movimentos insurrecionais de 1817 e 1824126. Estes três abades franceses, homens de Igreja, relacionaram-se com o Brasil, direta ou indiretamente. Trata-se de um tema ainda a ser melhor estudado e está claro que entre os membros da Igreja havia defensores intransigentes da escravidão. Ainda assim, exemplos de aproximação do pensamento destes três abades com o clero no Brasil podem ser assinalados até em personagens e espaços onde poderia parecer pouco provável de serem detectados, como nos casos de monsenhor Miranda, de frei Monte

Alverne e do arcebispo d. Romualdo Seixas. Mesmo que não se possa falar sempre, em senso estrito, de influências unívocas do pensamento dos abades franceses sobre o clero brasileiro, havia um campo político e intelectual com áreas de interseção de ambos os lados do Atlântico127. E é justamente na figura do abade Grégoire que se encontram pistas desta aproximação. As correspondências do monsenhor Miranda É certo, pois, que personalidades como o abade Grégoire acompanhavam periodicamente o que se passava no Brasil e nas Américas em geral: para isso, cultivavam seus contatos. Exemplar neste sentido foi a correspondência e amizade que Grégoire mantinha com um destacado integrante do clero luso-brasileiro, monsenhor Pedro Machado Miranda Malheiro (1780–1838), mais conhecido como monsenhor Miranda, que ganhou notoriedade por ter sido Inspetor da Colônia de Suíços de Nova Friburgo (RJ) nos governos de d. João VI e d. Pedro I. Monsenhor Miranda teve cargos de relevo. Formado em Coimbra, foi Desembargador do Paço e da Mesa de Consciência e Ordem (1810), Chanceler Mor do Reino do Brasil (1817), além de responsável pela colônia de suíços católicos em Nova Friburgo, da qual foi um dos principais implantadores. Após a Independência, adotou a nacionalidade brasileira e tornou-se Chanceler Mor do Império e ministro do Supremo Tribunal de Justiça em 1828, falecendo no Rio de Janeiro em 1839. Além dos cargos oficiais, monsenhor Miranda destacou-se em outras áreas. Combatente militar contra as tropas francesas na invasão da península ibérica em 1808, comandou o Batalhão de Voluntários de Nossa Senhora de Oliveira. As narrativas destas guerras destacam sua presença ativa. Tornou-se desde então ligado a d. João VI e, quando do retorno deste do Brasil para Portugal em 1821, acompanhou-o na comitiva e foi um dos

que teve seu nome na lista dos que se viram proibidos de desembarcar em Portugal, por ordem das Cortes de Lisboa. Estabeleceu-se, então, definitivamente no Brasil onde revelou-se, nas duas primeiras décadas do século XIX, um dos principais defensores da vinda de colonos europeus, através de textos e de ações administrativas. Naquele contexto, a defesa da imigração europeia equivalia à busca de alternativa, ainda que paulatina, ao trabalho do escravo africano – o que indica, também, aproximação com as propostas do abade De Pradt e de outros autores da época. Apesar de diferenças de posições políticas, monsenhor Miranda tinha em comum com o abade Grégoire a imersão naqueles tempos da era das revoluções, além da defesa do progresso e da civilização europeia, através, entre outros pontos, da propagação da ciência e da valorização da cultura francesa. Ambos pertenciam à ampla esfera internacional da República das Letras, marcada, ainda, pelos postulados do Iluminismo, entre as quais a crença no progresso da humanidade e das sociedades e a defesa da universalidade do gênero humano, ultrapassando as divisões raciais e sociais. Tais posições, aliadas à fé cristã e à existência de um transnacional 128

círculo de contatos , justificam a ligação e correspondência que mantiveram, ainda que intermitente, por pelo menos duas décadas – e da qual foi possível encontrar extratos em duas cartas do próprio Grégoire 129

dirigidas ao monsenhor Miranda em 1815 e 1820 . A primeira carta, datada de Paris na véspera do Natal de 1815 e com quatro páginas, tivera como portador nada menos que Joachim Le Breton (1760–1819), chefe da chamada Missão Artística Francesa que chegou ao Brasil em 1816, trazendo, como se sabe, expressivos nomes da vida artística como Jean-Baptiste Debret, Nicolas Taunay, Grandjean de Montigny, entre outros. Le Breton chegara a entrar na carreira religiosa, abandonando-a, porém, durante a Revolução Francesa, da qual foi ativo participante, exercendo cargos na área cultural. Le Breton e Grégoire eram membros do

Institut de France, no qual conviviam harmoniosamente, embora Grégoire, como já foi dito, acabaria excluído desta agremiação por suas posições políticas. A segunda carta, escrita também de Paris, datada de 18 de julho de 1820 (remetida em 24 de julho de 1821), com três páginas, possivelmente ficou mais de um ano aguardando portador confiável, que não aparece identificado. Nestas duas missivas consta que o abade Grégoire remetia seus livros ao Brasil e que recebia, na França, livros em português. Ao mesmo tempo, o abade francês, conhecido defensor da Revolução do Haiti, reafirmava seus pontos de vista que lhe custavam perseguições e indagava da existência de homens de letras negros e mulatos no Brasil. As palavras de Grégoire apontam neste sentido. Após destacar que os laços de amizade entre ambos se mantinham há 20 anos (carta de 1820) e sobreviviam às distâncias, o clérigo francês afirmava: Depois de nosso último encontro, Monsenhor, alguns séculos se passaram, pois as revoluções ocorridas nos dois mundos, os eventos acumulados, as tempestades que atravessamos bastam para preencher períodos de séculos; pessoalmente passei por provações que, quando se enfrenta corajosamente os abusos, quando não se sabe (como tantos outros e, digo com dor, como tantos eclesiásticos) transigir com os abusos e dar à sua consciência e aos princípios uma leveza mundana, nos vemos às voltas com todos os furores da calúnia e à raiva das perseguições. Após cerca de quarenta anos, sempre numa luta constante, defendi os oprimidos de toda cor, de toda {ilegível}, judeus, negros, mestiços, combati o Despotismo, o feudalismo e a Inquisição.

No mesmo trecho, Grégoire reconhece que de suas atividades acumulou “nuvens de inimigos”. Na carta anterior, de 1815, o abade francês já ressaltara: [...] mas os sofrimentos, as vicissitudes das coisas humanas, as perseguições de todo gênero, os ultrajes, não mudaram e Deus ajudando não mudarão jamais nossos princípios e nossos sentimentos, religião, virtude, amizade, Literatura, esses diversos objetos aos quais nossos espíritos {ilegível}.

Em outras palavras, o abade Grégoire abria-se em sua correspondência brasileira, reafirmando seus princípios e realçando os pontos em comum que encontrara com esse monsenhor luso-brasileiro igualmente tocado pelas Luzes da Ilustração, embora atuando em contexto bastante diverso das lides revolucionárias de seu colega francês. Monsenhor Miranda Malheiro encarava a colonização suíça (e de outras nacionalidades europeias, em minoria) na região serrana de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, como uma espécie de posto avançado da civilização europeia em território escravista. Note-se, neste sentido, que os colonos suíços e outros europeus não ibéricos não só mantiveram, como ampliaram o uso do trabalho escravo na região130. É sugestivo destacar que nas duas cartas Grégoire tratava da remessa de 131

seus livros ao Brasil – o que evidencia seu esforço neste sentido . Na correspondência de 1815 informa que enviara por Le Breton sua última obra, da qual acabara de sair tradução inglesa. Talvez por prudência, o título não fosse citado na missiva, mas neste ano Grégoire publicara apenas De la Traite et de L’Esclavage des Noirs et des Blancs; Par un Ami des Hommes de Toutes les Couleurs, Paris: Impr. de Egron, 1815, cuja tradução inglesa sairia no mesmo ano em Londres, editada por J. Conder. Ou seja, é possível constatar que na bagagem da chamada Missão Artística Francesa vieram também, ainda que precavidamente, textos como este candente libelo contra o tráfico e a escravidão. Do mesmo modo, na carta de 1820, Grégoire informava que enviava vários de seus escritos pelo Correio para monsenhor Miranda e pedia particular atenção e leitura crítica de um livro onde defendia a liberdade e pluralidade de culto: Essai Historique sur les Libertés de L’Église Gallicane et des Autres Églises de la Catholicité, Pendant les Deux Derniers Siècles (Paris: Censeur, 1818), especialmente do capítulo referente à Igreja em

Portugal, para o qual Grégoire solicitava a Miranda contribuição para correções de futuras edições. É interessante outro ponto em comum encontrado pelo abade francês com seu interlocutor luso-brasileiro, ao apoiar o que considera a “sábia decisão do Governo Brasileiro” de não restabelecer a Companhia de Jesus em suas terras. De qualquer modo, sabese que a Igreja católica romana permaneceria ligada ao Estado brasileiro até a Proclamação da República. Na primeira carta, o abade Grégoire assinalava que solicitara a Le Breton “[...] recolher para mim informações sobre escritores negros e mulatos e de procurar suas biografias”, mantendo, pois, sua preocupação de completar o quadro iniciado em seu famoso lvro, De la li érature des Nègres... E pedia a monsenhor Miranda para que o ajudasse nestas pesquisas – embora não se saiba se ambos tenham tido tempo ou interesse em responder a Grégoire. Le Breton, envolvido nas disputas cortesãs lusobrasileiras, acabaria falecendo doente e desestimulado em sua residência na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, três anos após desembarcar nos Trópicos. Monsenhor Miranda continuaria a galgar postos públicos, em meio a um contexto onde a simples menção ao nome do abade Grégoire viraria grave acusação política e até judicial no Brasil escravista – como veremos adiante. Entretanto, pode-se compreender tal solicitação do abade francês a partir de sua própria obra, pois seu já citado trabalho, De la li érature des Nègres... (1808) se compunha de uma ampla coletânea de biografias e notícias críticas de homens negros que se destacaram pelo talento ou cultura ao longo dos tempos em diversos países. No mesmo livro, como já foi assinalado, Grégoire lamentava a ausência de nomes do mundo luso e brasileiro – e podemos perceber que, mais de uma década depois, ele ainda continuava em busca de tais dados para enriquecer suas teorias antirracistas.

As repercussões e reinterpretações, no Brasil da primeira metade dos Oitocentos, das ideias de nomes como os abades Raynal ou Grégoire, mesmo que não fossem maioria no Parlamento nem guiassem os atos governamentais, podiam ganhar leitores e receptores favoráveis nas igrejas e conventos que, por sua vez, serviriam de intermediários com outros setores da população, através inclusive da propagação oral (os sermões), tocando, assim, homens e mulheres oprimidos do ponto de vista étnico e social. Os caminhos das repercussões da Revolução do Haiti no Brasil poderiam ser intermediados, sinuosos e surpreendentes. Ainda assim, há que se levar em conta as diferenças que os contextos podem causar nos textos. O bispo d. Romualdo Seixas explicitou suas leituras do abade Grégoire, escudado em sua posição governista e conservadora; frei Monte Alverne mostra sintonia com aspectos importantes do ideário deste abade francês, mas sem explicitar suas prováveis e evidentes leituras; quanto a monsenhor Miranda, não sabemos se respondeu às cartas de seu confrade francês. É provável que sim, pois a Révue Encyclopédique, editada em Paris e na qual Grégoire colaborava assiduamente, publicou, em 1822, notícias sobre a colônia de Nova Friburgo, coordenada por monsenhor Miranda e 132

apontada como exemplo de esforço civilizatório no Brasil . Mesmo com tais confluências, é sugestivo assinalar que havia uma diferença entre os postulados dos três religiosos brasileiros (Romualdo, Miranda e Monte Alverne) citados a seguir e os do abade Grégoire: aqueles condenavam a escravidão e expressavam os princípios da Iluminismo, certo, mas descolados do abolicionismo e da ideia e da práxis de revolução. Os caminhos da Revolução do Haiti em direção ao Brasil, inclusive no âmbito da Igreja, podiam ser imprevistos e insondáveis. D. Romualdo e frei Monte Alverne: Iluminismo e crítica da escravidão

D. Romualdo Antonio de Seixas (1787–1860), bispo, parlamentar e primeiro Primaz do Brasil, em pronunciamento na Assembleia Geral Legislativa do Império, em 1827, ao defender o Tratado com a Inglaterra, defendia também a abolição imediata do tráfico de escravos. Ao desenvolver seus argumentos, na sessão de 5 de julho, ele refutava o uso da religião católica como fonte de legitimidade para o trabalho escravo: Para colorar o crime invocão-se as Leis da humanidade atrozmente supplantada, assim como já se tem invocado sacrilegamente o Sagrado Nome da Religião, com o pretexto de converter os Africanos, como se huma Religião Celestial, e Divina, huma Religião que proclama os primitivos direitos do homem, que o restituio à sua dignidade [...].133

É de se notar que, ao retirar das atribuições da religião o papel de dar fundamento ao comércio de escravos, o arcebispo brasileiro invocava os primitivos direitos humanos, o que pode ser lido num registro do jusnaturalismo, mas que era pronunciado, também, no contexto PósRevolução Francesa, quando a expressão direitos humanos estava carregada de uma série de conotações vinculadas à cidadania e igualdade de direitos. Entretanto, nesse ponto, o arcebispo brasileiro parece se demarcar do ponto de vista teórico do pensamento dos três abades franceses aqui estudados, na medida em que não adota a perspectiva iluminista, de que a escravidão será inelutavelmente superada pela evolução do progresso humano. Embora falando em direitos do homem em princípios do século XIX, ele busca os fundamentos de tal asserção nas origens do cristianismo e no Direito das Gentes. O que pode significar, em termos de matrizes teóricas, uma posição ambígua ou híbrida entre referências mais tradicionais com a perspectiva moderna das liberdades. D. Romualdo era parte integrante e atuante dos grupos políticos dirigentes e, mesmo, cortesãos. Além de deputado, foi Arcebispo da Bahia e Metropolitano do Brasil, marquês de Santa Cruz e nomeado para o Conselho do Imperador. Ele passa a denunciar, no mesmo pronunciamento,

o tratamento que os traficantes davam aos cativos: “[...] elles tratão como bestas de carga, olhando unicamente para o producto de seu trabalho”. Isto é, contra a desumanização do escravo e sua condição de mercadoria. Sendo, nesse ponto, mais crítico em relação aos valores morais e humanitários negados pela escravidão do que, por exemplo, o abade De Pradt, que deixava de lado tal aspecto e naturalizava a escravidão de modo pragmático. Vale notar que, por outro lado, d. Romualdo não tocava na abolição da escravidão propriamente, mas no tráfico (tema do recém firmado acordo entre a Grã-Bretanha e o Brasil) embora o questionamento do regime de trabalho estivesse implícito: não falava em prazo para o fim da escravidão, mas defendia a gradual incorporação do índio como mão de obra livre e a vinda de colonos europeus para trabalharem na agricultura. Criticando a escravidão e defendendo a liberdade, d. Romualdo passa a acentuar a questão dos vícios e da imoralidade que ele via presentes em tal instituição: Sempre estive persuadido que a palavra escravidão desperta as ideias de todos os vícios, e crimes; assim como que o doce nome da liberdade desperta as sensações e as ideias de todas as virtudes. [...] sempre lastimei finalmente a sorte dos tenros meninos Brasileiros que, nascendo e vivendo entre os escravos, recebem desde os seus primeiros annos as funestas impressões dos contagiosos exemplos desses seres degenerados.

Tal pronunciamento pode ser compreendido em diferentes leituras. Em primeiro lugar, está claro, pela contraposição entre liberdade e escravidão, tratando esta não no sentido do despotismo político, mas do regime de trabalho. Isto é, naquilo que Montesquieu qualificava de escravidão civil. Ao mesmo tempo, ele enxergava os escravos como “seres degenerados” e, ainda que atribuindo tal degeneração às violências do escravismo, acentuava o papel dos trabalhadores escravizados como agentes corruptores da moral e da sociedade – o que, aliás, era frequente nos discursos da época que propugnavam uma condenação moral do escravismo. A ideia de uma

regeneração como necessidade prévia para a liberdade dos escravos foi uma constante no pensamento do abade Grégoire. Seria mera coincidência, ou fruto do vocabulário comum da época, esta proximidade, em alguns pontos, entre as ideias de d. Romualdo e do abade Grégoire no tocante à escravidão? Seria o Primaz do Brasil leitor do abade revolucionário francês? A resposta vem uma semana após o pronunciamento sobre o tráfico de escravos: na sessão de 12 de julho da Assembleia Geral, o arcebispo da Bahia citaria diretamente (e de forma elogiosa) as posições de seu confrade francês, ao discutir a relação entre o poder da Igreja e a soberania de cada nação. Acusado pelo deputado Cândido de Deus e Silva de renunciar ao “uso da Razão” por defender as prerrogativas do Papa, d. Romualdo argumenta: Mas se ainda me resta alguma luz, ou vislumbre de raciocínio, responderei que nessa judiciosa renuncia do exercício da razão se achão felizmente alguns Escriptores mui illuminados, e entre outros hum, que não he suspeito, o Abade Gregoire, nos seus Ensaios sobre as liberdades da Igreja Gallicana, que deve ser conhecido pelos illustres Membros desta Camara; pois he a um delles, que devo a sua leitura.134

Ao evocar os postulados de Grégoire sobre a extensão do poder do Papa e qualificá-lo de “mui illuminado”, o Primaz do Brasil, ao mesmo tempo, afirmava que o revolucionário francês deveria ser conhecido de todos – deixando entrever, por detrás do silêncio habitual sobre o abade e suas ideias no Brasil, um evidente conhecimento destas e de seu autor. Usava assim d. Romualdo de ironia para com os deputados opositores e, manejando sua erudição, citava em causa própria, como recurso de autoridade, um personagem que apresentava proposições mais radicais do que os próprios integrantes da oposição. No tocante à escravidão, podemos constatar que estas posições de d. Romualdo, autoridade máxima da Igreja em terras brasileiras, não foram as que predominaram nos Poderes Legislativo e Executivo do Brasil daquele

momento, embora elas tivessem outros defensores. Mas o ponto de vista do arcebispo da Bahia ajuda a compreender a abolição do tráfico atlântico de escravos pela Assembleia dos Deputados em novembro de 1831 – embora tenha sido, até 1850, uma lei mal cumprida. É prudente levar em conta, ainda, que em outros pronunciamentos o mesmo arcebispo batalhava frontalmente contra toda espécie de desestabilização da ordem, rebeliões, insurreições, etc., servindo como exemplo seus sermões contra a Cabanagem paraense ou a Sabinada baiana, por exemplo. Sob esse ponto de vista, d. Romualdo era avesso a qualquer simpatia pelo exemplo haitiano. Por outro lado, seu posicionamento sobre a escravidão e o tráfico, naquele contexto, aproximava-se do pensamento dos setores intelectuais, inclusive católicos, que, sob o impacto histórico da Revolução do Haiti, reformulavam suas concepções, configurando uma crise de legitimidade das justificativas do trabalho escravo. E neste sentido as palavras do abade Grégoire, impregnadas pela defesa da Revolução do Haiti, atravessavam o oceano, ainda que sujeitas a releituras e recortes, metamorfoses e mediações. D. Romualdo Seixas teve uma prematura e longa carreira cortesã. Foi um dos defensores mais enfáticos da doutrina do direito divino dos reis. Nomeado Cônego da Sé do Pará (sua província natal) aos 19 anos, antes mesmo de se ordenar sacerdote. Nos conflitos políticos e armados pela Independência do Brasil, ficou do lado de Portugal, mas passou a viver em harmonia com o novo Império, sempre fiel à dinastia Bragança. Ao mesmo tempo, d. Romualdo foi um pensador vigoroso, com personalidade própria; teve influência e receptividade entre o clero brasileiro135. O sermão que frei Francisco do Monte Alverne (1783–1858) pregou aos membros da irmandade de Santo Elesbão e Santa Ifigênia serve como amostra de ideias e posições de parte do clero brasileiro diante da escravidão136. Num exercício comparativo, constatamos que, ainda que sem

a mesma contundência abolicionista ou republicana, e usando metáforas e alusões, é instigante perceber certa sincronia de Monte Alverne, franciscano e pregador da Capela Imperial no Rio de Janeiro, com as proposições do abade Henri Grégoire, que, entretanto, não é citado. Neste sermão, o frade da Ordem Menor Monte Alverne proferiu as seguintes palavras: Que estímulo para estes homens, que a religião chama seus filhos, e que uma parte de seus irmãos retém como escravos, poder sacudir seus pulsos apertados de algemas, e invocar estes protetores, que parecem tocar mais de perto sua condição por a conformidade de sua cor, e que advogam sua causa junto do Todo-poderoso!137

Convém assinalar o público ao qual se dirigia o sermão: mulheres e homens negros, livres ou libertos, do Rio de Janeiro do início dos Oitocentos. No trecho acima, como em seus demais discursos, o pregador franciscano não procura justificar a escravidão ou resignar os homens à sua condição. Ao contrário, ele fala em estímulo para que se quebrem algemas, tratando-os, pois, como protagonistas, inclusive para que advoguem sua causa, ainda que no âmbito da justiça divina. Além de assinalar: os que praticam a devoção destes dois santos identificam-se pela condição étnica. Em seguida, reforça suas críticas à escravidão do seguinte modo: Vós que todos os dias insultais o Cristianismo, lede a história do seu estabelecimento, segui sua marcha, observai seus progressos; estudai a moral do Evangelho e as maravilhas da civilização, que ele só efetuou; e depois vinde blasfemar de uma crença, que arrancou a espécie humana da escravidão e da barbaridade.

Dirigindo-se neste trecho aos que possuíam escravos ou defendiam a escravidão, o pregador utilizava-se de um aparato conceitual típico da Ilustração, através da valorização do progresso e da civilização, em 138

contraponto à barbárie e escravidão . Nestes argumentos, Monte Alverne não destoava das críticas feitas por Grégoire ao bispo Azeredo Coutinho em

seu livro De la li erature des Negres... e num folheto de 1798, como se verá a seguir. Frei Monte Alverne tratava da escravidão enquanto condição servil de trabalho e sujeição racial (e não no sentido do despotismo político). Ao alertar para os recentes progressos do cristianismo, está implícita, pois, alusão a uma corrente renovadora da Igreja, sobretudo do ponto de vista social e político, que se acentua após a Ilustração Setecentista e a Revolução Francesa – embora, mais uma vez, não haja aqui menção explícita. Ele apontava, pois, para a noção de que a marcha inelutável do progresso e o espírito do cristianismo se incompatibilizavam com o trabalho escravo. Alinhavando, em seu discurso, a proximidade simbólica entre os dois santos venerados e seus seguidores daquele momento, o franciscano brasileiro afirmava: Heróis privilegiados, gênios sublimes, que honrastes a humanidade com as vossas lides gloriosas, vede aqueles que vêm hoje cobrir de votos o altar, em que vos colocou a perseverança mais provada. Imprimi em sua alma os grandes princípios, que atenuam a desigualdade das condições chamando todos os homens ao me smo fim.

Mais uma vez o orador destaca a atuação dos fiéis – no caso, os negros e negras no Brasil escravista –, na medida em que é graças a eles que o culto a tais santos permanece, associado, aliás, aos grandes princípios da humanidade. Qualificando-os como gênios e heróis, embora numa linguagem hermética, Monte Alverne se coloca, mais uma vez, em sintonia com os postulados defendidos por Grégoire em seu livro De la li érature des Nègres..., no qual a inferioridade de condição dos negros é atribuída à situação de opressão em que vivem, não à condição racial. Em seguida, o franciscano brasileiro destaca o papel que o cristianismo poderia ter para atenuar as desigualdades decorrentes da escravidão – mesma tecla em que bateria o abade Grégoire ao se referir especificamente ao Brasil, como já foi visto.

Falando ainda dos seguidores de Santo Elesbão e Santa Ifigênia, o pregador continuava: Reconheçam eles na sublimidade da moral cristã, que os tem civilizado, a fonte desta liberdade, que só se encontra no equilíbrio das nossas faculdades, e na prática da justiça. [...]. Possamos penetrar-nos da excelência desta Religião, que descobriu a fonte da verdadeira nobreza.

A ideia de que a civilização cristã é o caminho para superação da escravidão e da barbárie, a valorização das faculdades intelectuais de todos (sem excluir, portanto, os negros), o realce da prática da justiça sob este ponto de vista e, sobretudo, a valorização da verdadeira nobreza (que 139

segundo Grégoire era a da virtude, não a da cor da pele ), permite uma interessante (e, até certo ponto, inusitada) aproximação das posições públicas deste pregador brasileiro com os postulados do abade Grégoire – e que significava em sentido mais amplo uma adesão comum aos princípios gerais do Iluminismo no âmbito do clero. Não se tratava, pois, de exemplos mais conhecidos de pensamento liberal e crítico, como o do clero pernambucano, paraibano ou cearense envolvido nos movimentos de 1817 e 1824, mas das posições de um pregador do Rio de Janeiro e com espaço privilegiado na Corte. Embora o caso do franciscano Monte Alverne tenha sua peculiaridade, na medida em que ele nunca ocupou cargos parlamentares ou funções diretamente políticas, ao contrário de outros clérigos do período, possuía, pois, certa autonomia intelectual, condicionada, está claro, pela sociedade da época. Estes condicionamentos, ou limites, decorrentes das relações sociais estabelecidas e do próprio enraizamento cultural da escravidão, bem como do peso demarcatório do ambiente político do Rio de Janeiro (com seu caráter de centralização política e controle social), fazia com que as referências mais diretas a autores e posições identificadas como republicanas ou abolicionistas fossem eliminadas. Entretanto, pode-se

perceber, pela comparação acima, que muitas destas ideias, ainda que despojadas dos “perigosos” rótulos e não acompanhadas de uma efetiva ação política, eram adotadas e propagadas sob o véu de uma linguagem indireta. Ainda que pregando um Iluminismo sem conotações revolucionárias, Monte Alverne usava das prerrogativas de sua relativa autonomia intelectual para aproximar-se das posições antiescravistas e antirracistas que marcavam importantes autores das Luzes. Orador sacro de marcante influência, com autoridade moral perante à Igreja e mesmo diante dos governos monárquicos (real e imperial), Monte Alverne foi professor de filosofia, presbítero da Ordem dos Frades Menores e nomeado Pregador Real em 1816, posto que manteve na Capela Imperial. O frade franciscano fez a oração fúnebre da imperatriz Leopoldina em 1826: ficou também conhecido o sermão que pronunciou diante de D. Pedro I com alusões críticas ao relacionamento extraconjugal deste com a marquesa de Santos. Cego em 1836, Monte Alverne passou a viver no isolamento, encerrando a atividade pública de orador sacro até falecer em 1858. Abriu exceção em 1854 por solicitação de d. Pedro II, que pediu para presenciar um de seus famosos sermões, que assim começou: “É tarde! É muito tarde...”. O escritor Gonçalves de Magalhães considerou Monte 140

Alverne um dos precursores do Romantismo no Brasil . O clero brasileiro mereceu atenção do abade Grégoire também através de críticas. Um dos alvos principais foi o bispo José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho (1742–1821)141, chamado de “inimigo da humanidade” que “desnaturava as Santas Escrituras” por seu apoio ao tráfico e à escravidão. Também o brasileiro padre Leonardo da Silva (cf. se verá adiante), autor do Discurso historico-refutatorio-politico... critica explicitamente as mesmas ideias publicadas por Azeredo Coutinho na Analyse sur la justice du commerce du rachat des esclaves de la côte d’Afrique, editada em Londres, 1798. Não apenas neste ponto as

proposições do padre Leonardo combinam com as do abade Grégoire, mas também na preocupação em demonstrar exemplos históricos, desde a Antiguidade, de homens negros que se destacaram por suas atividades nas ciências, artes e política (ver De la li érature des Négres..., publicado por Grégoire em 1808). D. Azeredo Coutinho foi importante pensador de Economia e fundador em 1800 do Seminário de Olinda, que propagava a Ilustração. Deste modo, a defesa do escravismo pelo bispo Azeredo Coutinho se desnaturaliza em seu próprio contexto, já que era contestada abertamente por contemporâneos e não eram ideias unívocas que caracterizariam as elites letradas daquela época. Além da repercussão ou de certa proximidade de algumas ideias e concepções gerais, pode-se dizer que o abade Grégoire acompanhou de perto e até relacionou-se com figuras importantes do clero brasileiro. Às vezes negativamente, em contraponto. O fundador do Seminário de Olinda recebeu críticas contundentes de Grégoire: De nossos dias somente, através de aplicações forçadas, um português, desnaturando as Sagradas Escrituras, tentou justificar a escravidão colonial, tão diferente daquilo que, entre os hebreus, era quase um trabalho doméstico; mas a publicação de Azeredo passou da loja do livreiro para a o rio do esquecimento.142

Avaliação do bispo francês que, aliás, não passaria despercebida por 143

Inocêncio Silva em seu repertório biobliográfico , mas que parece ter sido ignorada diante da obra dita “reformista” do bispo luso-brasileiro, cuja defesa da escravidão de certo modo fica naturalizada dentro do que seria o contexto cultural e social da época – sem levar em conta, portanto, as discussões que então se travavam em torno da escravidão, da economia política e da questão racial. Posições que não eram homogêneas nem no âmbito dos pensadores católicos, como se pode ver por estes exemplos do

abade Grégoire, de d. Romualdo Seixas e de frei Monte Alverne. Encerrando o trecho sobre Azeredo Coutinho, Grégoire afirma: “Os amigos da escravidão são necessariamente os inimigos da humanidade”. Entretanto, a seguir, o mesmo Grégoire faz sugestivas e rápidas considerações sobre as relações raciais e sociais nos “estabelecimentos portugueses e espanhóis” nas Américas, afirmando que aí os negros são considerados como irmãos e que a religião tem o papel de suavizar as violências e contrastes. O que entra em contradição com sua afirmação anterior, de que os portugueses não consideravam os negros como seres humanos. De qualquer modo, a América portuguesa (e depois o Brasil) não ocupará local destacado nas preocupações de Grégoire, embora se encontre dentro de seu foco de interesse.

O CRIME DO PADRE LEONARDO A busca do abade Grégoire por homens de letras negros ou pardos no Brasil, empreendida desde fins do século XVIII, não foi em vão. O próprio revolucionário francês deu notícias de um père Léonard, homme de couleur (padre Leonardo, homem de cor), atribuindo-lhe a publicação de um texto anônimo e crítico à escravidão no Rio de Janeiro em 1825. De fato, trata-se de um escrito antirracista e antiescravista, embora indefinido quanto a propostas e prazos para a extinção do tráfico atlântico e do próprio cativeiro, aos quais seu autor critica veementemente144. O Discurso Historico-Refutatorio-Politico sobre a Carta do Leitor Effectivo que Reprova a Abolição da Escravatura no Brasil / Dada à Luz por um Viajante de Paizes Coloniaes é um texto erudito e prolixo, com ênfase na história recente da escravidão vista a partir da África portuguesa e com posições ousadas e fora do tom hegemônico entre as elites políticas e letradas no Brasil pós-independente. Foi publicado no contexto das discussões sobre o

Tratado entre a Grã-Bretanha e o Brasil prevendo a extinção do tráfico de escravos. Mas quem seria este clérigo de couleur que trazia a público ideias de tal conteúdo (sob o sugestivo disfarce de “viajante dos países coloniais”) na capital do império brasileiro três anos após a Independência? Seu nome completo: Leonardo Correa da Silva. Citado por poucos historiadores, em episódios pontuais do período colonial, se constitui numa figura instigante e 145

ainda mal conhecida . Considero a autoria do folheto em questão estabelecida a partir do cotejo com três fontes documentais: a reiterada identificação feita pelo abade Grégoire (talvez sem medir as consequências desta sinalização); uma denúncia escrita contra o padre Leonardo Correa da Silva por Bernardo José 146

da Gama (futuro visconde de Goiana) em 1810

; e, ainda, uma carta

assinada pelo próprio clérigo ao príncipe d. João em 1814147. Nestes dois últimos documentos há vários pontos que coincidem com o folheto: aspectos biográficos, viagens realizadas pelo personagem e, também, suas ideias políticas e sociais (que serão brevemente apresentadas a seguir). Em resenha na Revue Encyclopédique, Grégoire registrou o recebimento do texto (impresso em português) cujo título traduziu livremente: Discours Historique et Politique pour servir de réfutation à une le re qui condamnait l’abolition de l’esclavage des nègres au Brésil, publié par un voyageur dans les pays coloniaux. Rio de Janeiro, 1825, in 8º, 74 p148. O abade assinalou que a obra trazia informações “sobre Negros das possessões Portuguesas que se distinguiram por suas virtudes e seus talentos” – algo que o próprio Grégoire procurara, mas não encontrara um só exemplo, quando publicou seu clássico De la Li érature des Nègres..., em 1808, como já foi visto. E passa a elogiar e incluir no rol dos negros “com virtudes e talentos” o autor do folheto: “bem que ele tenha guardado o anonimato, sabe-se que é o

reverendo Leonardo, padre, homem de cor”. A resenha está firmada por “G.”, que era como o abade Grégoire (assíduo colaborador da publicação dirigida por Hyppolite Carnot e Pierre Leroux) assinava alguns de seus escritos. O clérigo francês elogiava “os princípios expressos” no texto como “sábios e luminosos”, na medida em que o autor “refutava com energia um inimigo da liberdade africana” (referia-se ao bispo Azeredo Coutinho) e se mostrava ao mesmo tempo “amigo de todas as liberdades”. Grégoire fazia sua avaliação da qualidade da obra, que continha “uma certa variedade de conhecimentos literários e de ideias luminosas” que anunciavam “um espírito judicioso, desenvolvido por bons estudos”. O mesmo abade, no contundente livro De la Noblesse de la Peau ou Du Prejugé des Blancs Contre la Couleur des Africains et Celle de leurs Descendants Noirs et Sang-Mêlés, de 1826, reiterava a identificação do padre Leonardo149. O conhecimento de Grégoire em Paris revelava-se mais eficiente do que o das autoridades brasileiras da época e, diga-se de passagem, de posteriores levantamentos bibliográficos e de fontes documentais que ainda não haviam esclarecido a autoria do referido texto. Evidencia-se, pois, uma subterrânea rede de contatos antiescravistas entre Europa e Brasil nos anos 1820, período em que as monarquias francesa (Restauração) e brasileira (primeiro Reinado) conservavam o tráfico e o trabalho escravo, embora com pesos diferentes em cada sociedade. Sobre a Revolução do Haiti O padre Leonardo não criticava a Revolução do Haiti e até se pode dizer que tinha por ela uma simpatia mal disfarçada150. Num breve retrospecto histórico, ele entendia a Revolução Haitiana, em seu início, como “huma luta de Escravos, pela maior parte Africanos” contra seus senhores, que habitualmente saíam vencedores. Ou seja, um conflito social, uma luta de classes, na acepção desenvolvida na época. Mas atribuía à violência dos

proprietários a continuidade do conflito, enquanto que os escravos “não poderam jamais apagar naqueles corações os dezejos da independência e da vingança, que repetiram muitas vezes, até que finalmente a conseguiram com ignominia de seus tyrannos opressores” (p. XII). Na visão do padre Leonardo, os cativos foram além de revoltas e o que se viu foram “escravos tornados livres em multidão revolucionária”. E ressaltava que eram “oriundos das nações mais fortes, e valentes, entre os negros d’África” e que após estarem “acostumados às doçuras da liberdade e aos commodos de proprietários e de funcionários públicos, não estavam próprios para retornar ao antigo cativeiro” (p. 50). Ao mesmo tempo, padre Leonardo referia-se às “desastrozas scenas da Ilha de S. Domingos” (p. 6), que eram por ele atribuídas, em reiteradas passagens, à violência dos colonos e das forças militares francesas, às quais os escravizados reagiam de forma legítima como resposta à tirania. Ainda na perspectiva do padre Leonardo, o estopim revolucionário foi a presença dos comissários da Revolução Francesa na Ilha, como Sonthonax e 151

Labeau , aos quais ele responsabiliza por terem ensinado aos escravizados “a arte de assassinar os proprietários e roubar seus imensos cabedais”, tratando por isso os referidos comissários de “monstros” (p. 49-50). Anotese que o autor, identificado como pardo, não faz referências expressivas aos mulatos que foram agentes importantes do processo haitiano. Ele enxerga como principal o conflito escravos X senhores/colonização. Ou seja, na perspectiva do padre Leonardo, os escravos passaram da rebelião à revolução – e inculpava a violência da colonização (e da Revolução) francesa por tais acontecimentos. Reconhecia, pois, os trabalhadores escravizados negros como agentes históricos revolucionários em luta contra opressão e tirania, segundo seu próprio vocabulário. Este talvez seja o principal motivo do anonimato da publicação de 1825 no Rio de Janeiro: falar do que não deveria ser dito, escrever sobre tema delicado e

explosivo que, embora largamente conhecido pelas elites letradas da época e por outros setores da população, era habitualmente elidido e, sobretudo, tratado sem a habitual execração das “barbáries” cometidas pelos cativos. Temos aqui um discurso desviante da maior parte dos grupos dominantes e dirigentes do Brasil quanto à Revolução do Haiti, embora o padre Leonardo em nenhum momento tenha se declarado partidário da abolição imediata do escravismo, nem da forma de governo republicana. Da mesma forma, silencia sobre a derrotada Confederação do Equador, cujos integrantes, entre os quais vários padres, foram fuzilados pelas tropas imperiais entre fins de 1824 e começo de 1825, quando o texto foi publicado. O padre Leonardo Correa era caracterizado como “homem revoltoso e corrido de todas as partes”, conforme apreciação do pernambucano Bernardo José da Gama, juiz de fora em São Luís e futuro visconde de Goiana, em relatório sobre as “desordens” ocorridas no Maranhão em 1810152. Já nesta época, padre Leonardo estivera preso em São Luís, enviado para o Rio de Janeiro, dali para Bahia e depois Pernambuco (“e em todas estas partes, espancado por intrigante e fallador”). Em seguida, refugiou-se em Havana (Cuba) onde tentou “sublevar o Governo contra sua Capital” e viu-se novamente preso ali “por muito tempo”, sendo transferido para o presídio da Ilha Ferrol (Peru, costa do Pacífico) do qual fugiu, retornando ao Maranhão. Já estivera detido em Benguela (Angola), local aonde eram remetidos degredados pela Coroa portuguesa. A crer nesta trajetória registrada por Gama, então atuando na capital maranhense, a mobilidade de padre Leonardo tinha âmbito intercontinental e transoceânico: circulava entre as capitanias do Brasil, em território português na África, no Caribe e, sabe-se também, na Inglaterra e Portugal. Em que consistiram as ocorrências no Maranhão em 1810 que causaram este novo encarceramento? Gama relacionou, em seu inquérito como juiz de fora, doze acusações (devidamente comprovadas, segundo ele) nas quais

predominavam casos de corrupção e irregularidades administrativas, ou seja, manipulações políticas e financeiras através da máquina governamental. Mas o “estrondo”, igualmente relacionado por Gama, dizia respeito a “repetidas questões de liberdade, desordem e assassínio” que partiam de escravos e indígenas. O padre Leonardo era tido, direta ou indiretamente, como responsável ou incentivador de tais ações. A prisão de dois proprietários de terras e escravos, Joaquim Ferreira Maia e Raimundo José Mendes, “sem motivo, sem culpa formada e nem mesmo prova” era tributada à influência do clérigo sobre a administração local da capitania. Ao mesmo tempo, afirmava Gama, partiu dele a ordem formalizada a todos as guarnições militares maranhenses de não tomarem medidas contra escravos: estavam proibidas de auxiliar a Justiça neste aspecto e não podiam “prender, nem espancar escravo algum, ainda que o achassem armado e em desordem”. Cercear senhores, jogando contra eles o aparato governamental, que deixava liberdade de movimento aos escravos: eis o crime mais grave imputado ao padre Leonardo. O juiz de fora se indignava pela “cega proteção que se prestava aos mesmos escravos contra seus senhores”. E dava exemplos. Um “mulato” chamado José contra seu senhor Antonio da Costa Pacheco; “outro mulato”, Amaro, contra os citados senhores Joaquim Ferreira e Raimundo José, que se encontravam detidos; “outro mulato”, Mello, contra seu proprietário, o capitão-mor Francisco Raimundo da Cunha, além de outros casos semelhantes153. Com relação aos índios, haveria postura semelhante do governo da capitania, sempre supostamente influenciado pelo padre Leonardo. Diante do “clamor geral” das “Câmaras e Povos” pelas “invasões dos Gentios [índios]”, o capitão-general d. José de Menezes passou a desativar alguns destacamentos e destituir comandantes: este enfraquecimento das forças repressivas, prossegue Bernardo da Gama, facilitou uma situação na qual os

“mesmos Gentios [índios] combinavam-se com os escravos levantados contra seus Senhores”. Resultou de tal aliança entre cativos e povos indígenas rebelados o assassinato de famílias inteiras de proprietários, residências arrasadas, colheitas e paióis destruídos, segundo o mesmo Gama. Mais de trinta fazendas foram devastadas, afirmou Gama, num quadro que lembrava, ainda que em proporções bem menores, a insurreição dos escravos na ilha de São Domingos em 1791. A “carnagem” no Maranhão só foi interrompida quando o governo provisório, após a destituição de d. José Fernandes, tomou medidas repressivas154. Portanto, os citados episódios no Maranhão entre 1810 e 1811 envolviam práticas de transgressão, mas de natureza diversa das simplesmente administrativas ou de querelas políticas locais. Tocavam de perto o capitão-general, d. José Thomas de Menezes, do qual padre Leonardo era capelão, homem de confiança e, segundo os adversários, protegido. O governante foi destituído e enviado para o Rio de Janeiro a fim de fornecer explicações sobre “acontecimentos que tanto estrondo tem feito na Capitania do Maranhão”, nas palavras de Bernardo da Gama155. Abriuse, inclusive, um processo no Desembargo do Paço. Estas eram acusações. Qual a posição do acusado, o padre Leonardo Correa da Silva, quanto às populações indígenas e dos escravizados de origem africana? Em 1814, detido no mosteiro de São Bento, a cavaleiro da baía da Guanabara, ele redigiu do próprio punho uma defesa e um requerimento, encaminhados ao príncipe Regente d. João, no Palácio do Rio de Janeiro156. Tal documento ajuda a compreender o universo de referências no qual padre Leonardo transitava. Numa caligrafia esmerada e desenhada em capricho, fazia citações em latim e referia-se a autores como Berredo e o padre Antonio Vieira. Nota-se que os Anais de Berredo, como eram conhecidos, traziam amplas referências às populações indígenas do Maranhão e às guerras que

enfrentaram no período colonial: o texto seria recuperado por Gonçalves Dias durante o Romantismo, como exemplo de valorização do elemento indígena e denúncia contra as violências que sofriam do colonizador. Ao escrever, em 1849, a Introdução para a reedição dos Annaes Historicos do Estado do Maranhão, clássico da narrativa histórica do século XVIII de autoria de Bernardo Pereira de Berredo, o maranhense Antônio Gonçalves Dias redige, na verdade, um manifesto com seu ponto de vista sobre a dimensão dos índios na escrita da história e na afirmação de uma identidade 157

brasileira . Coloca-se, portanto, uma comparação entre as atitudes do padre Leonardo sobre os índios, no raiar dos Oitocentos, e a concepção que viria a ser desenvolvida no âmbito do Romantismo (em uma de suas vertentes) e da modernidade política no Brasil, três décadas depois. Quanto ao padre Antonio Vieira, são conhecidos seus sermões e escritos em favor da “liberdade dos índios”. Ainda assim, no seu requerimento e na defesa, o padre Leonardo referia-se às questões diretamente políticas ou administrativas, omitindo-se quanto aos escravos e índios. São os ditos e não ditos. Porém, no Discurso histórico-refutatorio, a posição do padre Leonardo Correa em relação aos índios, sob anonimato, é explícita. Ele condena, por exemplo, a guerra declarada aos Botocudos por d. João em 1808 (e ainda vigente em 1825), que reintroduziu o direito à escravidão destes indígenas, como ato de tirania e desrespeito à lei e incompatível com a civilização (p. 46)158. Quanto aos escravizados de origem africana (foco principal do texto), são recorrentes as condenações ao “Commercio da escravatura da Costa d’Africa” e mesmo referências favoráveis à “extinção da escravatura” (p. 32), embora sem propostas concretas a este respeito. Ainda assim, as posições do autor são sugestivas quando se referem à “religião dos negros” e ao “conhecimento que eles tem da gente branca” (p. 54), revelando uma tendência de alteridade que não era comum em princípios do século XIX. E

criticava a noção de que os africanos possuiriam “essa rudez, essa moleza” atribuídas pelo pensamento escravocrata no Brasil (p. 17), o que ainda aqui coloca padre Leonardo em sintonia com a afirmativa de que a inferioridade dos negros derivava da condição social em que viviam como escravizados, não pela ausência de “faculdades intelectuais”, conforme a citada obra do abade Grégoire de 1808. Mas se a influência de Grégoire é a mais marcante, ela não está explícita: em nenhuma parte o clérigo francês é citado no texto do padre Leonardo da Silva. Já os abades Raynal e De Pradt são mencionados pelo clérigo brasileiro, em termos bastante elogiosos. O escrito se baseia em autores clássicos, como Pufendorf e Montesquieu, além de textos teológicos católicos. Percebe-se, também, pela leitura, que fora redigido em 1823, no contexto da Assembleia Constituinte, mas só publicado dois anos depois, com acréscimos, tendo por estopim um artigo que saiu no Diário do Governo em 22 de abril de 1825, no Rio de Janeiro; e trouxe repercussões, como a resposta do escritor, deputado e general Raimundo da Cunha Mattos, mas foge ao objetivo do presente trabalho se alongar nestes aspectos. O posicionamento de padre Leonardo Correa diante de índios e escravos não se dava no campo simbólico ou alegórico, mas relacionava-se aos sujeitos históricos contemporâneos. Anote-se que na Constituição de 1816 da República do Haiti, sob a presidência do mulato Alexandre Pétion, nenhum branco poderia obter propriedade, direito de cidadania e emprego público. Toda pessoa nascida no território da República era livre. Africanos, índios e seus descendentes nascidos no exterior teriam direito de cidadania após um ano de residência no Haiti. As ideias e atitudes do padre Leonardo, portanto, compunham o contexto da Era das Revoluções em determinadas vertentes, ainda que minoritárias no Brasil. Atribuir caráter extemporâneo ou extravagante às suas concepções seria ignorar a complexidade e a

radicalidade dos conflitos e dos horizontes de transformação social da época. Outro ponto do pensamento antirracista aparece quando padre Leonardo reclama, de forma veemente, contra o preconceito racial que afirma estar sofrendo, inclusive da parte do vice-rei do Brasil em 1814, marquês de Aguiar (aliás, d. Fernando José de Portugal, capitão-general da Bahia que reprimiu a conspiração de 1798), quando este cita a cor da pele antecedendo seu nome: “tratando da Cor do Suplicante” ao referir-se a “hum clerigo pardo que he capellão do Governador e Capitão General”, assinalava o próprio padre Leonardo. O antirracismo (que não era predominante entre os setores letrados da população brasileira, onde se manifestava uma visão filantrópica de crítica à escravidão), era um ponto marcante no ideário do abade Grégoire, como já foi visto. Já o padre Leonardo considerava filantropia uma palavra “que anda muito em voga na boca dos perversos e tyrannos da moda” (p. 1, 1825). Ou seja, a filantropia, concebida como movimento dos que possuem em relação aos que não possuem (Luzes, cultura, educação, recursos, etc.) estabelece uma relação de poder. No Brasil dos anos 1820–1840, a iniciativa filantrópica foi o principal motor das tendências associativas, gerando instituições e grupamentos. Filantropia distinguia-se tanto da tradicional caridade cristã quanto da moderna fraternidade revolucionária159. O padre Leonardo Correa da Silva tinha sua concepção sobre as Revoluções: “Ellas erigem thronos, augmentam Estados, lançam fora os usurpadores, esmagam os Tyrannos e finalmente são o campo das coroas que os infelizes semearam e que os afortunados colheram” (p. 48, 1825). Ou seja, as compreendia como movimentos que geravam transformações políticas e destruição de situações de tirania. E assinalava logo a seguir a “abolição da escravatura” ocorrida durante a Revolução

Francesa, em 1794, justificando-a como recurso utilizado pela França para guarnecer suas colônias das invasões das potências europeias rivais. Estamos diante de uma delicada operação discursiva, ou pedagogia política, onde o interdito abolicionismo se infiltra discretamente em meio a assuntos outros. Mas ficou dito e escrito pelo padre Leonardo: Abolição = Revolução. Trazendo a Era das Revoluções para o contexto luso-brasileiro, em seu requerimento dirigido a d. João em 1814, o padre Leonardo demonstra estar bem informado sobre as conspirações e contestações do período. Refere-se à “República Bahiense”, isto é, à chamada Conjuração Baiana descoberta em 1798, define o século XIX como “século Napoleônico” e faz alusões ambíguas à maçonaria. Arrisca-se a lembrar de recentes tiranicídios, patíbulos e cativeiros de monarcas, em alusão à Revolução Francesa. Tal requerimento enviado a d. João foi considerado intolerável pelo marquês de Aguiar, “pela desenvoltura de suas palavras e comportamento e pelas indecentes e ousadas frases que escrevera”. Ordenava ainda o vice-rei que o Intendente de Polícia, Paulo Fernandes Viana, repreendesse o padre Leonardo, ameaçando-o com degredo para uma das colônias portuguesas160. No registro de seu acusador Bernardo José da Gama, o padre Leonardo, quando confinado no mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, afirmou ser “perseguidor e perseguido dos Grandes”, lisonjeando-se de nunca ter sido condenado. E acrescentou o futuro visconde de Goiana: o clérigo “ultimamente se jacta de achar-se apenas recolhido a hum honroso Convento, por falar a verdade contra os Aristocratas, o que não o assusta de 161

modo algum” . A ousadia do padre Leonardo Correa da Silva é tão instigante quanto sua capacidade de sobrevivência numa sociedade escravista e monárquica. Ele foi um dos homens que, oprimido do ponto de vista racial e político,

não só obteve o sacerdócio como deixou traços de atuação contra tais escravidões, no sentido polissêmico então recorrente, a partir da referência de Montesquieu (escravidão política, familiar ou civil). O personagem criou espaços de atuação pública em dissonância com os poderes vigentes no período de passagem da América portuguesa para o Brasil independente. Sua mobilidade pelas capitanias e continentes, às vezes forçada, reverberou em contatos, como demonstram as palavras impressas pelo abade Grégoire. Seria padre Leonardo filho ilegítimo de algum importante personagem lusobrasileiro com mulher negra ou parda, como era comum na época? Tal condição, se averiguada, poderia explicar seu perfil híbrido, na dupla e paradoxal condição de pertencer à elite letrada e de se identificar com os negros escravizados e índios, circulando entre estes mundos e sem perder vínculo com setores dos grupos de poder político, econômico e cultural, entrando, ao mesmo tempo, em conflito com estes, mas sem receber, aparentemente, outros castigos de coerção física além das reprimendas verbais, prisões e degredos. O padre Leonardo Correa da Silva é um representante mal conhecido do pensamento radical no Brasil do período. E é curioso anotar seu aparente isolamento. Até onde percebi, sua atuação não foi afinada com a dos liberais Exaltados que se constituíram como tendência política ao longo das décadas de 1820-30162. E nem conheço, até o momento, referências recíprocas que o aproximasse do clero de Pernambuco e províncias adjacentes nas rebeliões de 1817 e 1824. Joaquim Ribeiro, outro padre transfronteiriço Temos, no padre Joaquim de Souza Ribeiro, outro personagem do clero brasileiro mal conhecido e que esteve no Haiti durante o período revolucionário. Trata-se de personagem cercado de polêmicas e com uma trajetória ao mesmo tempo extraordinária e obscura, repleta de narrativas de

viagens internacionais, prisões e perseguições, além de acusações de roubo, de ações sediciosas e uma dose de megalomania163. Este clérigo (nascido supostamente na Bahia em meados do século XVIII e formado na Universidade de Coimbra em 1788) afirmava ter morado por dois anos em São Domingos (Haiti), onde se tornara bispo. Chegou lá depois de transferido de prisões europeias (Portugal, Roma e Espanha), cumpriu pena numa fortaleza em Havana, mas obteve liberdade na Jamaica, quando o navio em que viajava parou em São Domingos. O padre Ribeiro informou que, por convite de dirigentes e “do povo da Ilha”, ali permaneceu por dois anos, com o objetivo de “instruir nos objetos da religião”. É verdade que um dos principais desafios do Haiti, cuja maioria dos governantes se proclamava católica, foi obter padres para suas igrejas durante e após a Revolução – e mesmo o abade Grégoire, convidado, não aceitou, nem conseguiu indicar um nome. O padre Ribeiro afirmava ter participado da “cerimônia de sagração do Rei Negro”. Contou ainda, em seus interrogatórios, que se viu acusado de roubar ornamentos e prata na Igreja. O mesmo rei negro teria mandado publicar em periódicos nos EUA que “dava cinco mil cruzados a quem lhe apresentasse a cabeça do padre português que tinha fugido”. O padre Joaquim Ribeiro garantiu que foi bem recebido pelo governador André Rigor (sic), referindo-se certamente a André Rigaud, general e chefe político, mulato, que comandou a ocupação da parte Sul da ilha nos primeiros tempos da Revolução. Souza Ribeiro alegou que em São Domingos “demorou-se em consequência por dois anos estabelecendo igrejas, arranjando paramentos, vasos sagrados, até que o dito governador [foi] suplantado nos revezes da guerra civil pelo General Toussaint Louverture”. A delimitação cronológica da presença do padre Ribeiro no Haiti é difícil de estabelecer. A derrota de Rigaud pelas tropas de Toussaint

Louverture ocorreu em 1800; a coroação de Jean-Jacques Dessalines como imperador realizou-se em 1804 e a de Christophe, como rei, em 1811 – o que, em qualquer opção, supera os dois anos que alega ter permanecido em São Domingos, aonde teria tentado retornar, sem sucesso. Em 1814, depois de ficar na Espanha, o padre Joaquim Ribeiro decide voltar ao Brasil e, de Barbados, foi em direção ao Grão-Pará. Passando por Caiena (capital da Guiana Francesa, então ocupada por Portugal), foi detido e interrogado pelo administrador luso-brasileiro da Guiana, João Severiano Maciel da Costa (futuro marquês de Queluz e um dos redatores da Constituição brasileira de 1824). Este acusou-o de ter conversas com escravos na Guiana no intuito de fomentar sedições. Maciel considerou o padre Ribeiro como mais um dos “energúmenos filantropos” e que vendia “blasfêmias em moral e política”. Ao mesmo tempo, qualificava-o de “impostor” e “bem conhecido em Portugal por seus crimes e extravagâncias”. Enviado preso para o Rio de Janeiro em 1815, o padre Ribeiro acabou solto por falta de provas. Há semelhança de perfil, aproximações políticas e interseções cronológicas e geográficas entre os dois padres citados aqui, Leonardo e Joaquim Ribeiro, embora não se conheça, até o momento, vínculo direto entre ambos, que vivenciaram em períodos e roteiros entrecruzados a mesma Era das Revoluções.

NOTAS 81. Há muitas publicações sobre as relações entre Revolução Francesa e escravidão, cf. indicações na Bibliografia ao final do volume. Sobre a temática específica deste capítulo, ver o artigo de Bénot, Y. La recéption de l’Indépendance Noire de Haïti en France, de l’abbé De Pradt (1801) à l’abbé Grégoire (1827). In: Bénot, 2005, p. 264-272. 82. Cf. verbete “Abbé” da Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné (1751–1772). 83. François Furet. A constituição civil do clero. In Furet, F. (dir.). Dicionário Crítico da revolução Francesa, p. 537-545. 84. Ver os interessantes ensaios de Alberto Soboul, Os Curés Rouges, de 1793 e de Walter Markov. Curés Patriotes e Sans-Culottes no Ano II. In: Krantz, Frederick (org.). A Outra História: Ideologia e Protesto Popular nos séculos XVII a XIX, 1990, p. 164-190.

85. D’Avalon, Cousin. Pradtiana ou Recueil des pensées. 86. Hugo Grotius [Grócio] (1583–1645), humanista, diplomata e jurista, figura maior na filosofia, teoria política e direito, formulou as primeiras bases do direito internacional moderno. 87. Para uma discussão sobre as independências e o caso do Brasil na obra de Raynal, ver os prefácios de Luciano Figueiredo e Oswando Munteal, e o de Berenice Cavalcante, respectivamente, às edições em português de A Revolução na América (1993) e O Estabelecimento dos Portugueses no Brasil (1998), trechos da Histoire Philosophique et politique des établissemens & du commerce des Européens dans les deux Indes, traduzidos e comentados no Brasil em fins do século XX. 88. Para biografia e análise da obra de Raynal: comentários críticos de Yves Benot à reedição de Raynal (1981), Womack (1972) e Regueiro (1979). 89. Tradução livre do trecho de Raynal, p. 221 apud Thibau, J. Le temps de Saint-Domingue. L’esclavage et la Révolution Française, 1989, p. 38. 90. Cornevin e J. Thibaud, op. cit. 91. Para a trajetória biográfica (política e intelectual) do personagem, ver, entre outros:. Chopelin, C. & P. L’obscurantisme et le Lumières. Itinéraire de l’abbé Grégoire, évêque révolutionnaire, 2013. 92. Tradução livre do título: “Da literatura dos Negros ou Pesquisas sobre suas faculdades intelectuais, suas qualidades Morais e sua literatura; seguidas de Notícias sobre a vida e as obras dos negros que se distinguiram nas Ciências, Letras e Artes”. 93. Para história, ideário e principais personagens da Sociedade dos Amigos dos Negros, de Paris, durante a Revolução Francesa, ver: Gainot, B. e Dorigny, M. La société des Amis des Noirs, 1788-1799. Contribution à l’histoire de l’abolition de l’esclavage, 1998. 94. Grégoire, H. De la littérature des Nègres ou Recherches sur leurs facultés intellectuelles, leurs qualités Morales et leur littérature; suivies de Notices sur la vie et les ouvrages des nègres qui se sont distingués dans les Sciences, les Lettres et les Arts, p. XI, p. 282-3. 95. Grégoire, H. Lettre aux citoyens de couleur et Nègres libres, 1791, p. 12 apud Grégoire, p. 281. 96. A mesma questão fora abordada por H. Grégoire em outros pronunciamentos, como Mémoire en faveur des gens de couleur ou sang-mêlés de St.-Domingue, & des autres iles françoises de l’Amérique, adressé à l’Assemblée Nationale.

Paris: Belin, 1789. 97. Tradução livre do trecho de Grégoire, H. De la liberte de conscience et de culte à Haïti. Paris: Baudouin, 1824, p. 42. 98. Tradução livre do trecho de Grégoire, H. Observations sur la constitution du Nord d’Haiti et sur les opinions qu’on s’est formées en France de ce gouvernement. In: Bénot, Yves; Dorigny, Marcel (dir.). Grégoire et la cause des Noirs, p. 151. 99. Frei Bartolomeu de las Casas (1484–1566): frade dominicano espanhol, cronista, teólogo, bispo de Chiapas (México) e conhecido como defensor dos direitos dos indígenas. É considerado o primeiro sacerdote ordenado na América. 100. Sobre a relação entre Grégoire e o Haiti recém-independente, ver o trabalho de Alyssa G. Sepinwall, Grégoire et Haïti: un héritage compliqué, de onde retiramos as informações deste parágrafo. 101. Grégoire, 1996 {1826}. Os trechos citados foram livremente traduzidos. 102. A Santa Aliança foi uma coligação entre governos monárquicos europeus (Rússia, Áustria e Prússia, sem a Inglaterra) criada em 1815, logo após a derrota de Napoleão Bonaparte, para se contraporem às tendências revolucionárias. 103. Davis, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental, 2001. 104. Devo ao historiador François-Xavier Guerra a indicação sobre a importância e o posicionamento de De Pradt quanto à Revolução do Haiti. Uma versão parcial e alterada deste capítulo está publicada

em: Morel, 2016, p. 112-129. 105. Morel, 2016. 106. De Pradt, Abbé. Des colonies et de la revolution actuelle de l’Amérique. Paris: Bechet/Agron, 1817, v. I, p. 259-260. Os trechos do abade De Pradt foram livremente traduzidos do original em francês. 107. Ibidem. 108. Ibidem, p. 264. 109. Ibidem, p. 271. 110. Idem, 1802, t. II, p. 103. 111. Idem, 1818, p. III-IV. A denominação do Haiti como São Domingos ainda era comum na data da publicação do texto, na medida em que a França ainda não reconhecera a Independência da antiga colônia. 112. Ibidem, p. V. 113. Ibidem, p. 12 e 20. 114. Trouillot, 1995; Pedro A. C. Hernández. La Revolución Haitiana. Una respuesta cultural a Francia y Occidente, 2007. 115. Citado em Seymour Drescher, 2001, p. 11. 116. De Pradt, Abbé. Des colonies et de la revolution actuelle de l’Amérique. Paris: Bechet/Agron, 1818, v. II, p. 268. 117. Ibidem, p. 296. 118. O objetivo aqui é demonstrar em que bases o referido autor elaborou suas teorias e não atualizar, em termos historiográficos, as estimativas demográficas da população escrava nas Américas. 119. Ibidem, p. 291. 120. Ibidem, p. 271. 121. Gazette politique et commerciale d’Haïti, n. 15, p. 60, 21 mar. 1805. Tradução livre. 122. Idem, n. 30, p. 119, 04/07/1805. Tradução livre. 123. Idem, n. 47, p. 1, 04/12/1806. Tradução livre. 124. A tradução mais adequada parece ser: política colonial. 125. Armitage, John. História do Brasil. 3. ed. In: Egas, Eugênio; Garcia, Jr. (orgs.). Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1965 [1836]. Capítulo IV, p. 63. A 1ª edição está disponível em: . Acesso em: 14 set. 2015. 126. Sobre a participação política parlamentar do clero brasileiro na primeira metade do século XIX, ver Souza, Françoise. Do Altar à Tribuna: Os Padres Políticos na Formação do Estado Nacional Brasileiro (1823–1841), 2010. 127. Curioso caso de um padre nascido no Brasil que teria exercido seu ministério no Haiti no início do século XIX foi estudado por Gomes, Flávio dos Santos. Trajetórias atlânticas: dois brasileiros no Haiti, 2006. 128. Sepínwal, 2010. 129. “2 Cartas do Abbade Gregório, antigo Bispo de Blois, escriptas ao Monsenhor Miranda pedindo-lhe, em huma dellas, notícias biographicas de escriptores pretos e pardos”. Arquivo Nacional (RJ) – Diversos SDH–Cx 1226, Pac 2, doc 24. Documentos classificados em Colonização de Nova Friburgo. Trechos destas duas cartas originalmente em francês estão livremente traduzidos a seguir. Agradeço a indicação destes documentos ao historiador Flávio dos Santos Gomes. 130. Sobre esta experiência ver o livro de Nicoulin, M. A gênese de Nova Friburgo. Emigração e colonização suíça no Brasil 1817–1827, que não está isento de uma pitada de eurocentrismo.

131. É sugestivo verificar que não há livros do abade Grégoire sobre a escravidão nos mais importantes acervos públicos do Rio de Janeiro, mas apenas poucas publicações que se referem à religião, como na Fundação Biblioteca Nacional (De la liberté de conscience et de culte a Haïti..., de 1824), e Real Gabinete Português de Leitura (quatro títulos diferentes sobre religião), ou mesmo nenhum livro do autor no Arquivo Nacional e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nas bibliotecas da Universidade de São Paulo (USP) encontra-se uma cópia eletrônica da tradução em inglês do livro sobre o tráfico de escravos de 1815, com acesso restrito. Como já dizia o historiador francês Marc Bloch, os acervos se constituem historicamente e não são inocentes. 132. Révue Encyclopédique, t. 15, 1822. Sobre esta publicação ver na Parte III, “O crime do padre Leonardo” e Parte IV, “PierrePlancher e o apoio de franceses à Independência do Haiti”. 133. D. Romualdo Antonio Seixas, Discurso sobre o Tratado para a abolição do tráfico da escravatura, 5 de julho de 1827. In: Collecção das Obras do Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Romualdo Antonio de Seixas. Pernambuco: Typographia de Santos & Companhia, 1839, t. III, p. 75-85. As citações a seguir do mesmo autor são da mesma fonte. 134. D. Romualdo Antonio Seixas, 2º Discurso, em que sustenta as suas opiniões, 12 de julho de 1827. In: Collecção das Obras do Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Romualdo Antonio de Seixas. Pernambuco: Typographia de Santos & Companhia, 1839, t. III, p. 110-111. Agradeço a indicação deste pronunciamento à historiadora Françoise Jean de Oliveira Souza. 135. Souza, 2010. 136. A Capela de Santa Ifigênia, construída em 1747, na então Rua dos Ferradores, Centro do Rio de Janeiro, pertencia a uma “confraria de pretos minas” e de “pouca fortuna”, isto é, à Irmandade de Santa Ifigênia e de Santo Elesbão, cf. Santos, padre Luiz Gonçalves dos (Padre Perereca), Memórias para servir à História do Reino do Brasil, t. I, p. 57 e 128. 137. Panegyrico de Santo Elesbão e Santa Iphigenia. In: Alverne, Frei Francisco do Monte. Obras Oratorias. Rio de Janeiro: Laemmert, 1854, t. III, p. 158-159 (referência válida para os trechos citados a seguir do mesmo sermão). Os sermões de Monte Alverne foram proferidos entre 1811 e 1836, embora só publicados, em sua maioria, em 1853–54. 138. Sobre os argumentos morais e cristãos contra a escravidão nesta época, ver a conhecida obra de Davis, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental, 2001. 139. Grégoire, 1826. 140. Sobre frei Monte Alverne, ver Duran, Maria Renata C. Frei Francisco do Monte Alverne, pregador imperial: roteiro para um novo estudo, 2004. Consultar também os verbetes biográficos de Macedo, J. Manoel. Anno Biographico Brasileiro, 1876; e de Silva, Innocencio, Diccionario Bibliographhico. 141. Sobre Azeredo Coutinho há considerável literatura. Cantarino, V. N. A razão e a ordem: o Bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho e a defesa ilustrada do antigo regime português (17421821); Braz, F. D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho: Um Bispo ilustrado em Pernambuco; Schultz, K. A Crise do Império e a Questão da Escravidão: Portugal e Brasil, c.1700-c.1820; Marquese, R. Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660–1860; Neves, Guilherme P. das. E Receberá Mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular no Brasil, 1808-1828, e Guardar mais silêncio do que falar: Azeredo Coutinho, Ribeiro dos Santos e a escravidão. 142. Tradução livre do trecho de Grégoire, De la li érature..., p. XI. 143. Verbete sobre José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho, Diccionario Innocencio, vol. IV, letra J. 144. Discurso historico-refutatorio-politico sobre a carta do leitor effectivo que reprova a abolição da escravatura no Brasil / dada à luz por um Viajante de Paizes Coloniaes. Rio de Janeiro: Officina de Silva Porto e Cia., 1825, cujo exemplar consultado encontra-se na Fundação Biblioteca Nacional.

145. Villalta, Luiz Carlos. Libertinagens e livros libertinos no mundo luso‐brasileiro (1740–1802). In: Algranti, Leila Mezan; Megiani, Ana Paula (orgs.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI‐XIX). São Paulo: Alameda, 2009, p. 523‐563. Schultz, Kirsten. Versalhes Tropical – Império, monarquia e a Corte Real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808– 1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 172-173. 146. Gama, Bernardo José da. Apontamentos sobre os cinco réus do Maranhão: Elias Aniceto Martins Vidigal, o padre Leonardo Corrêa da Silva, Miguel Inácio dos Santos Freire e Bruce, João Paulo das Chagas, e Raimundo João de Moraes Rego, 1810 [1811]. Manuscrito, FBN. 147. Documentos C 359 e C 3105.7, datados de 1814, Manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional (RJ). Agradeço ao historiador Luís Carlos Villalta a indicação destes documentos, bem como a remessa de seu texto sobre o tema. 148. Revue Encyclopédique, Paris, t. XXIX, p. 741-742, jan. 1826. Tradução livre dos trechos citados a seguir. 149. Grégoire, 1826, p. 47. 150. As referências a seguir são do Discurso historico-refutatorio-politico politico sobre a carta do leitor effectivo que reprova a abolição da escravatura no Brasil / dada à luz por um Viajante de Paizes Coloniaes.

151. Os três comissários franceses que decretaram a Abolição da escravidão em São Domingos, 1793, foram Léger Félicité Sonthonax, Étienne Polverel e Antoine Ailhaud. Talvez o padre Leonardo tenha confundido o nome do general francês Lavaux, participante destes episódios. 152. Gama, 1810. 153. Ibidem. 154. Ibidem. 155. Gama, op. cit. 156. Documentos C 359 e C 3105.7, datados de 1814, Divisão de Manuscritos da FBN. 157. Dias, A. G. Introdução aos Annaes Históricos do Maranhão por Berredo. In: Berredo, Bernardo Pereira de. Annaes Históricos do Estado do Maranhão..., 1849. A edição original é de Lisboa, 1749. Há uma reedição de 1988 feita pela Tipo Editor. 158. Sobre a declaração de guerra aos Botocudos em 1808 v. Morel, M. Apontamentos sobre a questão indígena e o mosaico da população brasileira em 1808, 2008. 159. Ver Morel, 2016. 160. Conflitos entre o Intendente de Polícia do Rio de Janeiro e padre Leonardo Correa no início da década de 1810 são citados por Schultz, Kirsten. Versalhes Tropical: Império, monarquia e a Corte Real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808–1821, 2008, p. 172-173. A autora refere-se à documentação do Arquivo Nacional do Brasil (RJ). Agradeço esta indicação ao historiador Marcello Basile. 161. Gama, op. cit. 162. Cf. Morel, As transformações...,2016, Capítulo 3, sobre a configuração das tendências políticas. 163. Baseio-me, sobre este personagem, no trabalho do historiador Gomes, Flávio dos Santos, Trajetórias atlânticas: dois brasileiros no Haiti, 2006.

III. OS FIOS DE UMA TEIA

Combate entre trabalhadores escravizados e tropas coloniais na colônia de São Domingos

“A França quis dominar a Ilha de São Domingos: perdeu 40 mil soldados e largou finalmente a Ilha a seus valorosos habitantes.” Cipriano Barata em 1822.

EMILIANO MUNDURUCU: QUE O HAITI SEJA AQUI

Tropas formadas por negros nas colônias francesas no Caribe

Poucos personagens encarnaram no Brasil a proximidade com o exemplo da Revolução do Haiti como Emiliano Felipe Benício 164

Mundurucu . Quem foi e o que fez? Figura histórica ao mesmo tempo instigante e mal conhecida, Emiliano Mundurucu, major do Batalhão dos Bravos da Pátria (Batalhão dos Pardos) em Recife durante a Confederação do Equador (1824), teve sua vida ligada à Era das Revoluções. Seu nome aparece no âmago das lutas republicanas, contra a escravidão e o preconceito racial nos anos 1810-30, não apenas no Brasil, mas em outras partes das Américas, num contexto marcado por transformações políticas, embates sociais e confrontos militares.

É, sobretudo, em torno de um episódio em Recife, no âmbito da experiência republicana da Confederação do Equador, que o nome de Mundurucu se projeta em fugazes, porém marcantes, registros na historiografia, quando são atribuídas a ele (ou ao batalhão que comandava) as seguintes quadras cantadas pelas ruas no dia 22 de junho de 1824: Qual eu imito a Cristóvão Esse Imortal Haitiano, Eia! Imitai ao seu Povo, Ó meu Povo soberano!165

O contexto do texto: o porto da capital pernambucana estava bloqueado desde abril do mesmo ano pelas forças navais comandadas pelo capitão John Taylor (mercenário de guerra inglês contratado por d. Pedro I), em represália à formação de um governo regional de tendências federalistas e que não aceitava se submeter incondicionalmente ao governo central que vinha de proclamar a Independência imperial do Brasil. Depois de negociações infrutíferas, o militar britânico informou a 11 de junho que o bloqueio seria suspenso, mas não concretizou logo a promessa. Ao contrário, as tropas sitiantes atacaram de surpresa o prédio do registro do porto e mataram a sangue frio os funcionários. Como resposta à protelação e ao ataque inesperado (e sem esperar autorização do próprio governo rebelde de Manoel de Carvalho Paes de Andrade), a tropa comandada por Mundurucu projeta revidar em terra às forças navais do Império. Esta movimentação não foi espontânea, nem fruto de arroubo, mas uma conspiração planejada no cerne da Confederação do Equador. Segundo Pereira da Costa, houve inicialmente uma reunião convocada pelo grupo de Mundurucu e aberta, segundo o mesmo autor, à “geral população dos homens de cor”, militares e civis166. Foram convocados especificamente outros grupamentos de milicianos, como o Batalhão dos Homens Pretos,

liderado pelo major Agostinho Bezerra Cavalcanti e outros dois batalhões, um de pretos e outros de pardos, além de civis. Na reunião, os objetivos ficaram mais claramente expostos: revidar o ataque das tropas imperiais seria o primeiro passo, seguido do ataque ao comércio europeu nos bairros centrais de Recife e do massacre dos referidos negociantes e da população branca abastada. Houve, então, desacordo, um racha. O major Agostinho Bezerra discordou com veemência da proposta, ao saber do alcance que ela teria no ataque aos negociantes europeus e aos “caiados” (brancos) em geral. Bezerra retirou-se do encontro acompanhado pelos homens de seu batalhão e por alguns pardos. Mas mesmo com este afastamento de uma parte, a conspiração seguiu. Foi então impressa uma proclamação de Mundurucu para ser espalhada pela cidade conclamando abertamente à população interessada em participar da iniciativa, além dos versos citados acima, que eram cantados, numa intenção, assim, de se propagar pela oralidade. Houve, portanto, uma reunião mais ampla (possivelmente precedida de outras mais restritas), seguida da propagação pela palavra impressa e cantada. E os rebeldes partiram para a ação direta. Devidamente armados e municiados, os participantes saíram a pé e a cavalo do quartel do hospício, onde estavam acantonados. Quando finalmente os militares pardos caminham em direção aos estabelecimentos comerciais europeus, em meio a gritos e cantorias, aparece na altura do bairro Santo Antonio o Batalhão dos Homens Pretos, liderado pelo major Agostinho Bezerra Cavalcanti. Este, contrário a tal investida, busca convencer os atacantes a desistirem do intento. Ocorrem longas conversações e discussões acaloradas e, ao final, sem violências, os homens armados se dispersam não realizando o projetado ataque. Ocorreu, portanto, uma divisão entre os batalhões dos pardos e dos negros quanto a seguir o caminho revolucionário haitiano naquele momento e lugar.

Mundurucu e Agostinho Bezerra não se enfrentaram militarmente, mantendo, assim, certa unidade. Entretanto, a tentativa de ataque ao comércio internacional e à população caiada, ainda que não concretizada, causou verdadeiro pânico nos habitantes (considerados) brancos da capital pernambucana, cujo impacto seria lembrado com frêmito ainda na década de 1830, como se verá adiante. No epicentro do Norte açucareiro, em plena crise da Independência do Brasil, apareceu, assim, a referência a Henri Christophe, o trabalhador escravizado que se tornara um dos principais líderes revolucionários em São Domingos. Hábil general comandante de tropas e conhecido por, paradoxalmente, efetivar alianças e realizar massacres contra brancos: depois da insurreição, Christophe governara a parte Norte do Haiti durante 14 anos e falecera quatro anos antes do pronunciamento acima em Pernambuco. Talvez tenha sido chamado de “imortal” justamente porque Mundurucu e os demais rebeldes sabiam de seu falecimento. Emiliano Mundurucu defendia a forma de governo republicana. Já Henri Christophe exerceu o poder no Haiti durante cinco anos como presidente da República e nove como monarca. Como foi visto, proclamara-se rei em 1811, distribuindo títulos de nobreza, construindo palácios, enfim, buscando erigir uma Corte civilizada na concepção europeia – opção que levou o abade Grégoire (apoiador enfático da Revolução Haitiana) a fazer-lhe duras críticas167. As cenas projetadas por Mundurucu e seu grupo seriam semelhantes às que ocorreram no Cabo Haitiano vinte e dois anos antes (e em tantos outros lugares durante a Revolução Haitiana) sob a liderança de Christophe. Ataque às forças britânicas e aos brancos em geral. Houve intenção proclamada de seguir o exemplo revolucionário haitiano. A diferença de contextos era evidente, inclusive para os protagonistas: mesmo que não tenha consumado nem o ataque ao comércio luso e britânico, um massacre

de brancos, nem participado da extinção da escravidão (que não estavam, aliás, a seu alcance) na capital pernambucana, Emiliano Mundurucu, ao optar pela forma de governo republicana, formulava referências políticas diferenciadas de Christophe, mas ancoradas, ambas, numa perspectiva social e política de combate ao predomínio das grandes potências europeias, de hostilidade aos brancos e de combate à escravidão. O essencial neste caso, me parece, é a tentativa, ainda que malograda, de transformação de sociedade pela via haitiana naquele Recife de 1824. A polissemia não invalida o modelo, mas, ao contrário, o caracteriza. República com liberdade dos negros, segundo o refrão conservador da época, o qual, neste caso, estava adequado. O temor não era inventado e correspondia a uma movimentação coletiva. Como explicar o surgimento de tal expressão no Brasil naquele momento? Não me parece que seja algo isolado, restritamente individual ou extemporâneo. Em primeiro lugar, porque as notícias sobre a Revolução do Haiti circulavam nitidamente na América portuguesa e no Reino do Brasil. Havia, também, espaços de manifestações públicas em transformação e uma das bases desta modificação era, justamente, a atuação das camadas pobres, que já aparecera na província de Pernambuco sete anos antes, isto é, durante a República de 1817. Os momentos de quebra ou enfraquecimento do poder político estabelecido facilitam a emergência e a agência das camadas oprimidas. Estas, não se detinham sempre no temor dos proprietários nem nos limites de atuação dos líderes rebelados que assumiram, temporariamente, o governo local. Há, nos documentos, a marca da presença destes setores da população na cena pública, ainda que sem 168

legitimidade para tal, segundo os padrões dominantes . Os tiroteios nas ruas, a palavra “revolução” andando de boca em boca, ocasionou uma liberação de atitudes e expressão de ressentimentos e resistências que dificilmente poderiam vir à tona em outras ocasiões. Uma

liberação da palavra pública. A diversidade aflora com a eclosão das Revoluções. Por isso, os registros indicam que em Recife e Olinda, em 1817 e 1824, passou a ser comum escravos se mostrarem insolentes ou respondões a seus senhores, mendigos dizerem desaforos às senhoras caridosas, mulatos e negros (livres ou libertos) começarem a se expandir e verbalizar a possibilidade de ocuparem mais espaço naquela sociedade, etc. Eram vozes, gestos, palavras ou gritos que circulavam pela cidade, ameaçando alterar o sentido da rebelião em curso. Convém assinalar que a Confederação do Equador suspendeu, pela primeira vez em território brasileiro, o tráfico atlântico de escravos – posição afinada com o capitalismo britânico naquele momento. E ocorre neste contexto uma presença significativa de setores oprimidos do ponto de vista étnico ou social, no interior da revolta, por meio da atuação militar, seja em milícias ou regimentos. Neste ambiente emergiu o haitianismo literal em torno do Batalhão de Pardos do major Emiliano Mundurucu. Um pasquim anônimo (pregado nos muros e ruas com cera de abelha) na cidade de Laranjeiras, Sergipe, alertava ao comandante das Armas da província, no mesmo ano de 1824, sobre um jantar no qual se fizeram três brindes: à extinção de “tudo quanto é do Reino [Portugal]”, os chamados Marotos, ou seja, a eliminação dos portugueses; ao extermínio de “tudo quanto é Branco do Brasil”, chamados de “caiporas”; e à “igualdade de sangue e de direitos”169. Narra-se no mesmo papel que durante o encontro: “Um menino R..., irmão de outro bom menino, fez muitos elogios ao Rei de Haiti, e porque não o entendiam, falou mais claro: São Domingos, o Grande São Domingos”. Afirma-se aqui uma referência ao modelo haitiano que, além do exemplo de soberania nacional (contra os portugueses, dois anos após a Independência do Brasil), incorporava os elementos raciais e o uso da violência para se conquistar tais direitos, inclusive com extermínio da

população branca. Foram palavras que não se concretizaram em ação. Mas que indicam a existência de uma leitura positiva da Revolução do Haiti em seus principais – e mais candentes – aspectos. Note-se que a denúncia sobre tal jantar (ao que se saiba não comprovada) ocorre em Sergipe no momento em que, em outras províncias do Norte, eclodia a Confederação do Equador. Uma trajetória na Era das Revoluções Sobre Mundurucu recolhi fragmentos biográficos, buscando, ao mesmo tempo, situá-lo no contexto mais amplo (no qual estava imerso de pontacabeça), apontando para significativas questões que sua trajetória suscita no âmbito da análise histórica e da compreensão de dilemas cruciais da Era Contemporânea e, mais particularmente, na formação nacional brasileira. A mais completa informação biográfica que se conhece sobre Emiliano Benício foi redigida por ele próprio: um folheto de três páginas impresso em Caracas, 1826170. Agregam-se a ela referências de seus contemporâneos, como Frei Caneca, Natividade Saldanha e outros, além de citações pontuais na imprensa nos anos 1830. Posteriormente, o historiador 171

V. Chacon dedicou-lhe parte de um livro sobre outro personagem . Seu nome não aparece em tradicionais repertórios biobibliográficos, como os de Sacramento Blake, Inocêncio Silva, J. Manoel de Macedo, Sisson ou Pereira da Costa (este, especificamente de personagens pernambucanos) e, mesmo aqui, os silêncios são significantes: Emiliano não fazia parte da junção entre elites políticas e culturais tão característica dos grupos dirigentes do século XIX172. Mas era um homem que possuía domínio de leitura e escrita e, na condição de militar, tinha acesso às armas de fogo. Constituía-se num típico protagonista popular, desses que em geral não extrapolam o anonimato. Sua presença nos registros históricos deve-se, justamente, à ultrapassagem de certos limites.

A trajetória de Mundurucu consubstancia relações entre o Brasil, a Revolução do Haiti e as lutas pela Independência na América espanhola, dimensões internacionais expressas em seus deslocamentos e posições políticas. Sua identidade étnica, também associada à categoria jurídica e social, o caracterizava como pardo, o que o colocava no amplo contingente que, em princípios do século XIX, compunha um terço da população 173

brasileira, por estimativa: os pardos livres . Ele próprio afirmava ter tido educação “desde os primeiros anos” e instrução militar, o que aponta para que tenha nascido livre e filho de pai envolvido com atividade militar. As diferentes milícias formadas por homens negros ou pardos eram tradicionais no período colonial e já haviam se destacado desde o século XVII na Restauração contra os holandeses em Pernambuco, terra à qual se refere como “minha província”, ou seja, era pernambucano e, mais do que isso, tinha a localidade como sua pátria de pertencimento. O sobrenome Mundurucu deriva do grupo indígena da região amazônica que, entre fins do século XVIII e início do XIX, desenvolveu vigorosa investida guerreira e expansionista tanto contra outros grupos, como em 174

hostilidade aos colonizadores, merecendo a fama de “índios bravos” . Seria ele descendente direto destes índios ou adotara o sobrenome como reforço de uma identidade de tipo patriótica? A segunda escolha parece mais plausível, já que a incorporação de sobrenomes indígenas (como também de plantas e animais nativos) ocorreu de forma expressiva no contexto da Independência no Brasil, numa tendência de afirmação de 175

novas identidades culturais e políticas . Mesmo na colônia francesa de São Domingos, a denominação escolhida para país independente pelos protagonistas (negros e pardos) foi Haiti, toponímia utilizada pelos Tainos

que ocupavam parte expressiva do território da ilha quando os europeus 176

desembarcaram no final do século XV . Expressava-se, assim, um indigenismo patriótico de caráter revolucionário e assumido por negros e pardos que se libertaram da escravidão. Era como se, para se livrarem do estigma da identificação negros/escravos e se contraporem à identidade branca/europeia, os revolucionários haitianos escolheram a solução indígena para legitimar um pertencimento autóctone. Em contrapartida, viu-se no mesmo período um indigenismo patriótico de tipo imperial, quando o Príncipe Regente D. Pedro, ao entrar para a maçonaria às vésperas de se tornar imperador do Brasil, assumira o codinome Guatemozin, último “imperador” do México derrotado pelos Conquistadores espanhóis. Neste caso, a opção do jovem monarca foi ainda mais evasiva, pois buscou inspiração nos indígenas fora do território brasileiro e domínio luso (ao qual ele próprio pertencia). Neste mesmo período ocorreram gestos semelhantes, como do baiano e mulato Francisco Gomes Brandão, que passa a assinar Francisco Gê Acaiaba Montezuma e seria o futuro visconde de Jequitinhonha. Ou ainda o major Joaquim Antonio de Macedo (pertencente aos liberais Exaltados) que, no Rio de Janeiro, incorporou o sobrenome Tupinambá. De qualquer modo, a simbologia indigenista, característica de afirmações identitárias brasileiras no período da Independência, não se apresentava de modo unívoco, mas atravessada pelos conflitos sociais e políticos. No texto autobiográfico, Mundurucu afirma ter participado da República de 1817 em Recife, quando tinha o posto de alferes e ajudante de ordens: “meu coração exultou de júbilo e fui dos primeiros que concorreram a 177

levantar o pendão da liberdade” . Sabe-se que o episódio de 1817 eclodiu a partir de conflitos nos quartéis e teve significativa adesão de setores do clero e das tropas. Em seguida, num trecho de compreensão ambígua, ele

indica que esteve preso (ou pelo menos bem próximo e solidário com os presos) com a derrocada do movimento. Seja como for, Emiliano Benício não foi figura destacada neste momento: participou e assistiu como personagem quase anônimo, engrossando as fileiras dos rebeldes. Embora a historiografia sobre o episódio seja, em alguns casos, marcada por ufanismo regionalista ou por martirológio de personagens considerados importantes, estudos recentes assinalam expressiva quantidade de pobres e pardos que, 178

além de envolvidos, foram presos nesta rebelião . O movimento de 1817 mereceu citações sugestivas no Le Télégraphe, periódico oficial do governo republicano de Alexandre Pétion, no Haiti. Conforme notícia transcrita cerca de dois meses após a Proclamação da República em Recife, os “Independentes”, como se referia o texto, haviam formado um governo provisório e expulsado as autoridades lusas. Um complemento em nota afirma então que o Brasil declarara sua independência e a Corte Real portuguesa solicitara à Esquadra Britânica proteção para retornar à Europa! A informação otimista baseava-se numa carta enviada de Barbados para Port-au-Prince no dia 10 de abril. Era usual a imprensa do período, em todos os países, utilizar-se de correspondências pessoais e relatos orais. As palavras manuscritas e impressas se entrelaçavam entre Haiti e Brasil para canalizar anseios e embates 179

políticos . Dois meses depois da notícia acima, estava evidente que o Brasil não declarara a independência, mas o jornal haitiano não disfarçava a torcida para que esta se concretizasse. Em texto sobre o bloqueio ao porto de Recife, Le Télégraphe afirmava que as autoridades portuguesas não teriam condições de mantê-lo, pois “a Revolução havia eclodido em Pernambuco” 180

e Portugal não deveria mais interferir no comércio local . Terminando o ano de 1817, o periódico haitiano informava então que uma segunda revolta

havia ocorrido em Pernambuco e que a capital voltara ao controle dos rebeldes181. Estavam em jogo os embates políticos contra os Antigos Regimes monárquicos e escravocratas nas Américas e, nesta linha, contava mais a guerra de palavras e posições do que uma informação supostamente neutra ou exata. Eram os rumores impressos. É interessante observar que estes mesmos números do periódico haitiano que davam notícias do Brasil traziam também referências sobre as lutas republicanas nas Américas. O aviso da Proclamação da República em Pernambuco era ladeado por “notícias do General Bolívar”: “os Patriotas” tinham se apossado de Caracas, La Guaíra e outras cidades. A crítica ao bloqueio de Recife era associada à queixa que a Espanha acabara de fazer à Grã-Bretanha quanto à invasão de Montevidéu pelas tropas monárquicas portuguesas, que assim pretenderiam se apossar de toda a América hispânica. E a notícia de uma suposta segunda rebelião em Pernambuco era precedida de informações sobre os combates às tropas monarquistas e coloniais espanholas no México. Temos, assim, a partir da perspectiva haitiana, a inserção do Brasil nas Américas daquele momento histórico 182

marcado por iniciativas de rupturas em relação às metrópoles . Emiliano Mundurucu, como se verá a seguir, foi um dos personagens brasileiros que realizou esta trajetória republicana nas Américas. Mesmo após a repressão à República de 1817, as referências à Revolução do Haiti persistiam em Recife, inclusive pela palavra falada, como demonstra o diálogo registrado em 1818 entre o capitão do Regimento dos Pardos do Recife, José Barbosa, com seu genro Joaquim dos 183

Santos . Emiliano Mundurucu participou também, entre os grupos armados que combateram o governo do Capitão-General Luís do Rego em 1820: formaram um governo paralelo na cidade de Goiana, movimentação, aliás,

que contou com visível participação de pessoas pobres, inclusive negras e pardas. Nos episódios finais da Confederação do Equador (1824), Frei Caneca cita Mundurucu três vezes no Itinerário em que narra a tentativa dos rebeldes de manterem o movimento nos sertões, em busca de consolidar a república no Ceará, após a derrota da Confederação na capital 184

pernambucana . Numa delas, quando informa que um dos chefes militares da rebelião abandonara a empreitada comunicando a decisão através de “um oficio ao Major Emiliano Felipe Benício Munducuru” que, portanto, continuava nas fileiras e em posto de comando. Quando foram afinal detidos pelas tropas imperiais, o frade carmelita registra que o major Lamenha, chefe das forças legalistas, colocou à parte os que considerava serem “os cabeças” do grupo, 20 homens, entre os quais o presidente temporário da Paraíba, Félix Antônio Ferreira de Albuquerque, três frades, um padre, quatro capitães e, também, Emiliano. Informação confirmada em ofício do próprio major Lamenha, quando, na lista que elaborou dos detidos, incluiu “Emiliano Felipe Benício, major graduado de milícias de Pernambuco”. Vale assinalar que Frei Caneca alinhava-se com a perspectiva antirracista do período e afirmara: “já está à porta o tempo de muito nos honrarmos do sangue africano”185. Frase dita quando apresentava informalmente sua própria genealogia, numa polêmica com adversário político e no contexto em que se buscava definir o perfil da sociedade nacional brasileira no momento da Independência. De fato, Mundurucu era tratado, por seus contemporâneos, como personagem destacado na Confederação do Equador. É, igualmente, Frei Caneca quem dá notícias da sua fuga, nos arredores de Goiana (reduto de liberais Exaltados e oposicionistas), e de outros sete companheiros:

Aí pernoitamos e sobre a madrugada querendo-nos aprontar para seguirmos a viagem, demos por falta de alguns companheiros nossos, o presidente temporário Felix, Antônio, o capitão França, o Emiliano, Veras, o Monte, o Vieira e Frei João de Santa Miquelina.186

Após a evasão, certamente com lances de aventura, Emiliano Benício Mundurucu viajou pelas Américas e foi até o Haiti. Acompanhemos sua trajetória. Mundurucu acabou julgado à revelia pela Comissão Militar estabelecida em Pernambuco após a derrocada da Confederação do Equador. Assim como Natividade Saldanha e Paes de Andrade, também foragidos, foi condenado à morte, sob acusação de ser “um monstro de iniquidade, desenfreado e perturbador” e, destacadamente, por ter planejado saquear o comércio da capital pernambucana. Além disso, a sentença considerava-o banido do território brasileiro, onde, caso retornasse, deveria ser preso e imediatamente levado à forca, no local em que se encontrasse. E qualquer pessoa teria permissão para matá-lo, sem merecer por isso penalidade187. Entre as Repúblicas nas Américas No texto que publica em Caracas, Emiliano Mundurucu não faz nenhuma referência explícita à escravidão enquanto regime de trabalho. Suas preocupações – pelo menos as publicadas – giram na galáxia do liberalismo Exaltado e republicano: despotismo X liberdade e, com mais clareza, monarquia X república. Falava das “algemas do despotismo” ao referir-se aos presos de 1817, associando este movimento republicano à liberdade. Entretanto, Mundurucu se caracterizava, no interior deste heterogêneo grupo dos Exaltados brasileiros, pela opção republicana. Chamava d. Pedro I, que ainda governava em 1826, de “pérfido Imperador do Brasil” e, do mesmo modo, afirmava que “nem os reis, nem seus sectários, têm boa fé”188.

Na primeira metade do XIX, a palavra escravidão era polissêmica. Havia a escravidão política (entendida como despotismo, à maneira de Montesquieu), mas também a escravidão civil, isto é, a posse de um ser humano por outro, além da escravidão familiar (a preponderância de um chefe na família)189. Mas no caso aqui tratado, de Mundurucu, havia tendência a se imbricar as duas primeiras acepções da palavra, na medida em que se correlaciona as práticas políticas do personagem com os significados dos vocábulos utilizados. O Congresso do Panamá ocorreu no ano da publicação do Manifesto de Mundurucu (1826), como tentativa de aglutinar os países recémindependentes numa perspectiva pan-americana, sob a coordenação de Simon Bolívar. Compareceram a este encontro representantes do Peru, México, Confederação Centro-Americana (dividida em meia dúzia de países) e Grã-Colômbia (atuais Venezuela, Colômbia e Equador). Os objetivos, entretanto, não foram alcançados, como se sabe190. É interessante marcar que o Haiti foi excluído do evento. O governo do Brasil foi convidado, mas não aceitou. Acabaram ficando de fora estes países que representariam os dois “extremos”, a saber, república abolicionista e monarquia escravista. As repúblicas de origem hispano-americanas, apesar da retórica revolucionária, pareciam querer se colocar numa espécie de juste milieu político. No contexto em que tais afirmações foram feitas, publicadas e assinadas havia, portanto, considerável hostilidade entre as repúblicas hispânicas e a América portuguesa que se tornara independente mantendo a monarquia. Mundurucu visava, com a publicação desse texto, se apresentar e ser aceito entre as tropas republicanas sob o comando do general José Antônio Paez: “Famosos republicanos, bravos soldados que haveis ganhado e sustentado a liberdade, vejam aqui um republicano, mas vejam aqui vosso irmão de 191

armas”

. Mesmo que, no interior da Confederação do Equador em

Pernambuco, a opção pela forma de governo republicana tenha gerado ambiguidades ou controvérsias, Mundurucu, de sua parte, afirmava-a de maneira explícita, na Grã-Colômbia, do mesmo modo, aliás, que afirmara no Brasil onde consta que, ao ser preso, ele teria “blasfemado e vociferado 192

os mais feios vitupérios contra Sua Majestade Imperial” . Ou seja, suas posições, em diferentes locais e contextos, demonstram convicções republicanas. Sem esquecer que se referia à “República do Ceará” quando caminhava de Pernambuco para essa localidade, onde 193

ocorreu grande adesão à Confederação do Equador . Entretanto, a questão da escravidão, embora não externada no seu texto, entra por algumas brechas, onde o não dito é eloquente. Suas viagens revelam um verdadeiro roteiro abolicionista. Como já assinalava o abade Grégoire (em livro publicado no mesmo ano de 1826), quatro repúblicas americanas já haviam abolido o tráfico e a própria escravidão naquela data: Grã-Colômbia (cuja capital era justamente Caracas), México, Rio de La Plata e Guatemala, sem contar o Haiti194. É conhecido o episódio em que Simon Bolívar foi acolhido como exilado no Haiti, em 1815, pelo presidente Alexandre Pétion, que forneceu ao líder latino-americano armas e recursos para continuar a luta pela independência na América do Sul. Em contrapartida, Bolívar se comprometeu a abolir o trabalho escravo nas novas nações, o que não pode cumprir ao pé da letra. Na verdade, as repúblicas hispano-americanas passaram a ter um comportamento ambíguo e até hostil em relação ao Haiti, na tentativa de não contrariarem as metrópoles europeias durante e negociação de suas respectivas independências195. Ao fazer o elogio (sem, entretanto, citar o nome) de Manoel de Carvalho Paes de Andrade, o presidente da província de Pernambuco que se transformara em presidente da efêmera Confederação do Equador, Emiliano

afirma que este, no início de seu governo provincial, desconsiderava as leis imperiais brasileiras, mas que “de público fingia obedece-las”. Isto é, uma decalagem entre discursos e atitudes. Embora, como se sabe, o governo da Confederação do Equador tenha suspendido provisoriamente o tráfico de escravos em Pernambuco, fazendo com que tal suspensão vigorasse oficialmente pela primeira vez no Brasil196. Ora, não poderia haver o mesmo tipo de dissimulação política no próprio Mundurucu no tocante ao tema candente como o trabalho escravo? Afinal, após ganhar notoriedade pelas exclamações de cunho haitianista nas ruas de Recife, Emiliano Felipe Benício Mundurucu foi parar, assim que teve oportunidade, no Haiti. É o que ele narra, ainda que com laconismo, ao falar de sua fuga das tropas imperiais nos sertões do Brasil: [...] depois de estar oculto algum tempo me transportei para Boston. Desta cidade, onde encontrei não vulgar acolhimento, passei a São Domingos: voltei outra vez a Boston e ultimamente cheguei a Puerto Cabello onde, não menos que em Boston, fui muito bem recebido.197

Naquele momento, toda a Ilha de São Domingos estava unificada sob o Haiti, governado por Jean-Pierre Boyer, daí a denominação. Por que a referência tão fugaz ao Haiti, quase silenciosa, da parte de Mundurucu? Lanço duas suposições: por prudência, para não se expor e tornar pública sua ida à “República Negra”; decepção com o que por lá encontrou. Ou, quem sabe, ambas motivações? A costa atlântica norte-americana integrava rotas internacionais de articulação política vinculada ao republicanismo desde meados do século XVIII: maçonarias, sociedades secretas, grupos de exilados ou conspiradores. Ponto de confluência entre Europas e Américas, com destaque para a chamada conexão Filadélfia. Era também espaço de contato entre libertos e escravos fugidos.

A rota da Filadélfia fora seguida pelos exilados da repressão à República pernambucana de 1817, como José Inácio de Abreu e Lima, Antônio Gonçalves da Cruz (Cabugá), Joaquim Pires Ferreira, José Carlos Mayrink da Silva Ferrão e outros198. Sete anos depois, também o líder do malogrado episódio em Pernambuco, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, se estabeleceria por lá, casando-se com uma norte-americana. Emiliano Mundurucu, em sua passagem nos Estados Unidos, também se casou e com uma mulher negra – daí talvez sua afirmação de que obteve “não vulgar acolhimento” em Boston. Ele estava enraizado nesta ampla e heterogênea comunidade atlântica, inclusive por laços afetivos. O acolhimento parece ter resultado em matrimônio. Seu casamento está indicado da seguinte maneira por um contemporâneo: “Major Emiliano (Major dos Pardos) Este indivíduo era malquisto na Província, escapou por os Estados Unidos, onde casou com 199

uma mulher de sua cor.” Assim, trilhando roteiro já conhecido de correligionários, após a derrota da Confederação do Equador Mundurucu tomou, em algum ponto do litoral norte da América do Sul, o caminho marítimo que o deixou em Boston. Entretanto, não permaneceu nos Estados Unidos e sugestivamente foi para São Domingos ou Haiti. Depois, retorna a Boston e de lá, atravessando o Caribe, chega a Caracas, aparentemente só e “em estado miserável”, segundo o escritor pernambucano Natividade Saldanha, secretário de governo durante a Confederação do Equador, também exilado, que o acolhe 200

e sustenta . Aliás, Emiliano Benício recebe também apoio para publicar seu manifesto: o texto foi impresso graças ao patrocínio de certo Arriaga, provavelmente um patriota republicano que se sensibilizou com a saga do pernambucano201.

É de se notar, no testemunho de Mundurucu, uma sutileza que compõe outro não dito do texto: ele afirma que foi bem recebido apenas em Boston e na Grã-Colômbia. E no Haiti? Este silêncio pode ser lido de várias maneiras. Emiliano não execrava publicamente a revolução haitiana, como era recorrente no pensamento liberal da primeira metade dos Oitocentos, onde a recusa dos chamados extremos (absolutismo e insurreição de 202

escravos) era de bom tom para os que defendiam as liberdades modernas . Havia como que um rastro de denúncias que seguiam os acusados de haitianismo, não só no Brasil. É plausível apontar o que levou Emiliano Benício, entre tantas possibilidades de escolha, a dirigir-se ao Haiti: o interesse pelo exemplo, isto é, República com liberdade dos escravos, onde setores da população oprimidos do ponto de vista étnico e social passam a assumir o poder político e econômico. Mas resta perguntar: porque teria voltado tão rápido? Na Venezuela (que então integrava a Grã-Colômbia) gestava-se, na ocasião, uma tendência republicana de caráter étnico entre os setores mais pobres e mestiços da população. A categoria “pardo” também se evidenciava no sistema de classificação sociorracial daquele contexto hispânico. Não foram poucos os rumores e denúncias sobre motins com a participação de pardos, muitos dos quais veteranos das guerras de independência. Veiculavam crenças num igualitarismo influenciadas tanto pelo republicanismo como pelo jacobinismo203. A conjuntura caribenha na qual Mundurucu se inseria era complexa. No caso específico do Haiti, pode-se afirmar que o ímpeto revolucionário, vivido de forma intensa e violenta desde sua eclosão em 1791, trilhava caminhos tortuosos na década de 1820. Entre 1821 e 1844 esteve restabelecida a união territorial entre o Haiti e o restante da ilha chamada de São Domingos – daí a unificação também dos nomes neste período. Quando se falava em Haiti ou São Domingos, tratava-se do mesmo

país. O presidente desta nação quando Mundurucu chegou lá era Jean-Pierre Boyer, que sucedia, assim, nomes legendários como os ex-escravos Toussaint L’Ouverture, Dessalines e Christophe (o Cristóvão citado na canção ouvida em Recife). O governo de Boyer estava marcado por sérias dificuldades e contradições, na busca de estabilizar e construir uma Nação e um Estado nacional saído de sangrentas guerras externas e internas, com saldo de dezenas de milhares de mortos e economia arrasada ao longo de três décadas. Ele assinara o desigual acordo de reconhecimento do país por sua antiga metrópole, a França, cujo Tratado implicava num pagamento de indenização astronômica pela perda da chamada Pérola das Antilhas, dívida que ficaria sendo coberta até fins do século XIX. O objetivo principal da administração haitiana passa a ser produzir para diminuir o endividamento, o que leva Boyer a incluir, no Código Rural de 1826 (seguindo, aliás, iniciativas de Toussaint L’Ouverture na Constituição de 1801), cláusula obrigando todos os plantadores e trabalhadores rurais a servirem pelo menos durante três anos em propriedades estatais, severamente vigiadas pelas forças militares. Estas medidas levaram a fugas massivas de trabalhadores para as montanhas, numa atitude de resistência. Situação que chegou a ser chamada de neocolonialista por historiadores204. Ao mesmo tempo, o governo haitiano estimulava a grande propriedade como forma de ampliar a produção exportadora, tendência que se reforçava com a distribuição de terras beneficiando quadros militares e líderes que se destacaram nas lutas contra os brancos e europeus, gerando, assim, grupos restritos e privilegiados pela concentração de terras e do poder político, burocrático e militar, deixando marcas de longa duração na sociedade haitiana. Diante deste cenário, a trajetória internacionalista, solitária, ousada e épica do pardo pernambucano ganha um sentido. É possível compreender

porque Emiliano Mundurucu não ficou muito tempo em São Domingos: pode-se dizer que, se estava adiantado nas reivindicações sociais e políticas no âmbito da monarquia escravista brasileira, Mundurucu não pode embarcar na malograda união republicana latino-americana e, sobretudo, chegou atrasado à Revolução do Haiti. A memória das “infernais pretensões” Ao contrário do que supôs o historiador Vamireh Chacon, durante bom tempo o único a se ocupar do personagem, Emiliano Mundurucu não 205

morreu em combate nas campanhas bolivarianas e seu retorno à terra natal seria novamente cercado de controvérsias e tensões. Uma das primeiras medidas do governo das Regências em 1831 (após a saída do poder de d. Pedro I e dos grupos ligados à repressão dos movimentos que contestaram o governo imperial) foi decretar anistia para os presos e condenados por crimes políticos. Contemplado pela lei de anistia, Mundurucu teve direito a reincorporação no cargo de major e a receber do governo pernambucano vencimentos retroativos do período, com exceção do tempo em que esteve fora do país, benefício confirmado em decreto do governo regencial de 25 de abril de 1836. Voltando aos tempos tempestuosos da Confederação do Equador, verifica-se uma trágica ironia: com a derrota do movimento, a repressão abatera-se com força implacável. O major do Batalhão dos Pretos, Agostinho Bezerra, viu-se condenado à morte pela Comissão Militar. Os principais comerciantes e dirigentes políticos de Recife pediram que a pena não fosse executada, a Comissão Militar suspendeu a condenação e enviou carta a d. Pedro I que manteve a pena capital e ainda ameaçou os que hesitassem. Agostinho Bezerra, que esvaziara a tentativa de haitianização liderada por Mundurucu e seu grupo, acabou morto pelas tropas imperiais

enquanto Mundurucu, igualmente condenado, mas em fuga, escapou da sentença e voltaria à Pernambuco. A atuação de Mundurucu não seria esquecida em Recife. Ainda no primeiro Reinado, o periódico O Cruzeiro recordaria das “infernaes 206

pretenções do segundo Calabar, o pardo Emiliano” , associado, portanto, ao personagem histórico então considerado como símbolo de traição à causa brasileira, por ter se aliado aos holandeses, contra os portugueses, durante as guerras do século XVII em Pernambuco. Mas a “traição”, no caso, era de outra ordem. A pecha de haitianista não desaparecera e ainda estava viva na memória local, treze anos após a exaltação pública a Henri Christophe e as referências positivas ao exemplo haitiano. Os ressentimentos contra Mundurucu vêm à tona quando ele é nomeado pelo governo central (o Regente era Diogo Feijó), em princípios de 1837, comandante da Fortaleza do Brum, a principal praça de guerra de Recife. A reação é tamanha, pela imprensa, da parte das autoridades locais e dos comerciantes, que ele acaba impedido de assumir o posto e até se retira da cidade para, em seguida, escrever texto em sua própria defesa, arrolando testemunhas a seu favor e 207

negando as acusações . Uma correspondência anônima, porém publicada em destaque, no Diário de Pernambuco, afirmava que os atos de Mundurucu em 1824 tiveram: um caráter tão ominoso, e deixaram tão profunda sensação nos ânimos de todos os homens, que o seu Comando na Fortaleza do Brum era um fundado motivo de sustos e sobressaltos; ninguém se julgava seguro em seu sono e a desordem se pintava na imaginação de todos com a mais horrenda e turva catadura. ... os espíritos estremeceram e o clamor foi geral quando se viu desembarcar o Sr. Emiliano para comandar tão importante fortaleza.208

Tudo estava (não) dito. Confirmava-se, pela ocultação explícita, o haitianismo de Mundurucu em 1824. Na citação acima, se evitava mencionar a causa de tal repulsa, como se fosse tema considerado tão perigoso que não deveria ser nem mesmo enunciado, bastando lembrá-lo aos que já o conheciam. O tema da Revolução do Haiti, portanto, vem marcado por este misto de rejeição e, sempre que possível, ocultação – diante da memória de personagens e eventos que, do Caribe a Pernambuco, evocassem tentativas de que o Haiti fosse aqui. Ainda assim, a mesma correspondência, assinada por “Um que era amigo do governo”, apontava pistas que evidenciam o que se colocava em jogo. A nomeação de Mundurucu para o posto militar importante estava: [...] dando combustão aos espíritos, dando lugar a que renasça das cinzas uma intriga, que muito convinha não suscitar mais, porque há indivíduos que nenhum outro mérito alegam senão a cor, como se essa devesse ser um privilégio para obterem empregos, para os quais nem suas habilitações, nem o conceito que merece do publico de modo algum os qualificam.209

O que convinha abafar, portanto, era a contestação à discriminação racial e à escravidão, referenciada na Revolução do Haiti e personificada em Emiliano Benício. É sugestivo perceber, aliás, como as páginas do Diário de Pernambuco que publicaram essas palavras estavam repletas de anúncios de compra, venda e fuga de escravos, ocupando boa parte de seu espaço impresso210. O mais importante não nos parece ser verificar se Mundurucu negava ou mantinha sua posição tempos depois nas Regências, embora esses argumentos componham a trama dos conflitos e disputas daquela sociedade. O que importa no caso de Emiliano Mundurucu, nas acusações e repercussões, é ver como o exemplo haitiano – com o seu sentido de igualitarismo – ainda quando não mencionado explicitamente, ocupava o

cerne das preocupações, sobretudo porque em 1824 fora trazido à cena pública e ao debate político de forma não pejorativa ou acusatória. Tal exemplo, ainda que fugaz, não deveria ser lembrado e nem poderia ser esquecido. A figura histórica de Emiliano Felipe Benício Mundurucu não precisa ser monumentalizada em argamassa homogênea de ferro, mármore ou ébano. Nem, ao contrário, cercada por desconstruções e desmistificações (que seriam curiosas, pois dirigidas a alguém que nunca foi personagem prestigiado em seu tempo ou na historiografia, isto é, não chegou a ser “construído”). Sem muito esforço será provável encontrar em sua trajetória eventuais contradições e limitações diante do escravismo na ordem vigente. Mas, mesmo ser ter a perfeição invicta de um super-homem revolucionário, ele encarnou ao lado de outros companheiros de armas, em determinado local e momento, uma das mais nítidas e contundentes repercussões positivas registradas da Revolução do Haiti no Brasil escravista. Década de 1840: o medo continua Uma década depois deste episódio da rejeição a Emiliano Mundurucu, na mesma cidade de Recife, houve o caso do pastor protestante negro Agostinho José Pereira, que alfabetizava negros e pregava contra o catolicismo na década de 1840. Chamado de “Divino Mestre” por seus seguidores, foi preso, sob suspeita de fomentar levantes. Acharam com ele uma Bíblia onde passagens sobre liberdade estavam grifadas e, com sua mulher, uns versos, o “ABC”, em que citava o Haiti. Seu advogado foi Antonio Borges da Fonseca (redator de jornais, conhecido liberal Exaltado e um dos líderes da Revolta Praieira), que também dava aulas na cidade 211

pelo Método Lancaster, mais comumente chamado de ABC . Ou seja, há indícios de uma pedagogia política entre setores oprimidos do ponto de vista étnico e racial de Recife naquele momento, usando o Haiti

como uma das referências – o que provavelmente estimulou a preocupação das autoridades, levando a uma atitude repressiva contra Agostinho José Pereira. Este, aliás, no interrogatório, reconheceu que participara, também na capital pernambucana, da Confederação do Equador, como miliciano. Isto é, transitou pelo mesmo ambiente e momento em que Emiliano Mundurucu e seu batalhão de milicianos deram vivas públicos a Christophe e pode, até, ter servido no mesmo Batalhão dos Pardos que este comandava. No interrogatório de 1846, Agostinho Pereira atribuiu sua participação na Confederação do Equador ao fato de que estava sob as ordens de seu comandante, cujo nome omite. Por outro lado, o advogado de Agostinho, Borges da Fonseca, conhecia com detalhes a história da Revolução do Haiti, tendo mesmo, alguns anos antes, escrito na imprensa texto elogioso a Toussaint Louverture, conforme consta em outra parte deste livro. O mesmo Agostinho admitiu, na ocasião, ter conhecido Sabino Alves Vieira, o líder da Sabinada na Bahia em 1837, também implicado em outras acusações de haitianismo. Ao que parece, Agostinho Pereira não partiu para a, digamos, ação direta antiescravista em 1846, mas representava positivamente o exemplo da Revolução Haitiana. Durante a Confederação do Equador 22 anos antes, no entanto, será possível descartar a tentativa de ocorrência de tal ação da parte de Agostinho? A questão fica em aberto. E no ano de 1845, só que em Minas Gerais, aparecia outra apreciação positiva ao Haiti como modelo de soberania nacional: Finalmente, não ha hum só ponto até ao próprio seio das Antilhas onde a liberdade não arvorasse o seu estandarte. A Ilha de S. Domingos, tão notável, tão rica, por tanto tempo rainha das colônias de todo o globo e hum dos thesouros da França, depois de ter partilhado no principio da revolução todas as convulsões de sua metrópole, conseguio em fim ao travéz do sangue e do fogo hum governo regular; e hoje existe com o título de Republica de Haiti.212

Ou seja, “sangue e o fogo” da Revolução Haitiana aparecem aqui como geradores de um resultado, ao final das contas, positivo. Está claro que tal periódico, impresso numa “tipografia imperial” (oficiosa), não pregava ou praticava um haitianismo literal, tal como o estereótipo da época, de República com liberdade de escravos. Mas, ao mesmo tempo, não exorcizava os “horrores” fantasmagóricos e assinalava o exemplo do “estandarte da liberdade”. Há que se levar em conta referências intelectuais que circulavam na época. O conhecido abolicionista francês Victor Schoelcher publicara em 1842 Des Colonies Françaises, Abolition Immédiate de L’Esclavage e, no ano seguinte, Colonies Étrangères et Haiti. Résultats de L’Émancipation Anglaise, com abordagem favorável à Revolução do Haiti e à liderança de Toussaint Louverture, além de fazer duras críticas à colonização europeia. Não é impossível que tais obras tenham circulado pelo Brasil. Há exemplares guardados na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Deste modo, temos aqui a expressão de setores da sociedade brasileira daquela época – que não eram escravizados e incluíam homens pardos e brancos – para os quais o exemplo da Revolução do Haiti não era rejeitado em bloco, nem satanizado ou exagerado, mas compunha positivamente o universo de referências políticas e culturais. A posição de Munducuru não era isolada. Apesar do peso da repressão que gerava o não dito, flagrantes favoráveis a aspectos da Revolução Haitiana eram registrados no Brasil da primeira metade dos Oitocentos. Na mesma tendência, soldados de milícias ostentavam, já em 1805, retrato de Jean-Jacques Dessalines no peito, no Rio de Janeiro, como se verá adiante. Trocando em miúdos, para o major Emiliano Mundurucu, para o capitão José Barbosa, o militar José dos Santos, o menino R. em Sergipe, o advogado Borges da Fonseca, bem como para o pastor Agostinho José Pereira e sua mulher, além de outros (anônimos, desconhecidos ou mal

conhecidos) na primeira metade do século XIX no Brasil, o exemplo reinterpretado da Revolução do Haiti não representava medo, mas esperança.

A REVOLUÇÃO DO HAITI NOS PRIMEIROS PERIÓDICOS BRASILEIROS As palavras manuscritas, impressas e faladas circulavam próximas no começo do século XIX. Mais do que isso, mesclavam-se. Claro que cada uma tinha esfera própria e limites sociais demarcados, mas possuíam constantes pontos de encontro, mesmo sem alterar a ordem social vigente. As diferentes formas de circulação das palavras não ficavam (nem poderiam) isoladas umas das outras, mesmo que nem todas as pessoas tivessem acesso às várias possibilidades de apresentação. Ainda mais numa sociedade como a brasileira, com marcante tradição oral, escassa experiência letrada e recente produção de imprensa. A letra saída da tipografia mergulhava num mar de oralidade (vozes, rumores e conversas), salpicado de manuscritos. E foi através de palavras que o exemplo da Revolução do Haiti chegou, se propagou e foi reinterpretado no Brasil. O mais instigante é que tais expressões surgiam por determinados personagens: ficavam em evidência, submergiam e reapareciam no cenário da discussão sobre o modelo haitiano no Brasil escravista. Personagens distantes geograficamente entre si, mas que se interligavam nas teias de uma mesma trama, formando um grupo involuntário, reduzido e expressivo. É interessante registrar que, antes mesmo dos primeiros jornais lusobrasileiros – Correio Braziliense e Gazeta do Rio de Janeiro – as notícias da Revolução do Haiti chegavam, mais rapidamente, pela transmissão oral entre setores pobres e livres da população, negros e pardos. No Rio de Janeiro, em 1805 (portanto, três anos antes do surgimento da imprensa no Brasil), houve o seguinte registro policial:

O Ouvidor do Crime mandara arrancar dos peitos de alguns cabras e crioulos forros, o retrato de Desalines [sic], Imperador dos Negros da Ilha de São Domingos. E o que é mais notável era que estes mesmos negros estavam empregados nas tropas da Milícia do Rio de Janeiro, onde manobravam habilmente a artilharia.213

Ou seja, tal episódio de exibição pública de adesão à figura de JeanJacques Dessalines, que declarara a Independência do Haiti em janeiro de 1804 e se coroara imperador em setembro do mesmo ano – já circulava pela capital do território brasileiro e escravista poucos meses depois. E de forma iconográfica, extrapolava a palavra impressa. É plausível, pois, que tais informações tenham chegado pela transmissão oral, por via marítima, mas também baseada em papéis (manuscritos ou impressos) e símbolos visuais. E a rápida adesão dos milicianos no Rio de Janeiro mostra que eles já acompanhavam os acontecimentos e seus significados anteriormente. Evidencia-se a circulação das palavras faladas, manuscritas, impressas ou de símbolos desenhados. Desde os começos da imprensa periódica no Brasil, as notícias das ações dos ex-escravos da antiga colônia de São Domingos aqui embarcavam em letra de forma. Há, no Correio Braziliense (redigido por Hipólito da Costa [1774–1823] em Londres entre 1808 e 1822) poucas, mas interessantes referências ao Haiti e que não se situam na tendência de execrar ou espalhar explicitamente os “horrores” da violência. Hipólito varia da ocultação ao reconhecimento da Revolução Haitiana como exemplo de soberania nacional e de crítica ao expansionismo francês. Quanto à ocultação, um trecho eloquente: “Temos, por obvias razoens, 214

omitido falar das colonias Francezas em S. Domingos” . A razão e a obviedade são justificativas para o não dito que assim, paradoxalmente, acaba dito e escrito, em meias palavras. Ocultava-se o que já estava conhecido, não faria sentido ocultar o desconhecido. Mas a tentativa de omissão nem sempre prevalecia.

Num conjunto de transcrições de documentos (as transcrições nunca são inocentes), o jornal luso-brasileiro destaca uma troca de correspondência de 1816 entre o rei da França, Luis XVIII e o presidente do Haiti, Alexandre Pétion, em torno das negociações para o reconhecimento da independência 215

da antiga colônia francesa . Inicialmente o Correio publica dois textos do monarca europeu: um propondo o fim do tráfico de trabalhadores escravizados nas colônias francesas; e outro em que propõe um tipo de acordo no qual o Haiti voltaria a ser subordinado à França, mas com grau maior de autonomia, preservando-se, a princípio, as autoridades constituídas e transformando o presidente da República em Governador Geral, mantendo-se a abolição da escravidão e impedindo o retorno de antigos proprietários. Ao fim do texto, o jornal publica a resposta do presidente haitiano: “O Povo do Hayti deseja ser livre e independente. Eu também o desejo. Elles o serão. Elles não precisam de apoio estrangeiro: as suas mesmas forças protegerão a sua liberdade”. Hipólito da Costa, em geral tão opinativo, não faz comentários. Em seguida, o mesmo Correio Braziliense passa a transcrever em duas páginas uma Proclamação do Presidente do Haiti dirigida “ao Povo e ao Exército” na qual os termos da proposta de Luis XVIII são rechaçados de maneira enfática. Alguns trechos da proclamação: Não existe um só Haytiano, cuja alma seja sufficientemente tibia, para consentir em retrogadar no caminho em que nossa gloria nos tem avançado: os nossos deveres estão marcados: a natureza lhes deo nascimento, ella nos tem creado iguaes aos outros homens: nós os manteremos contra todos aquelles, que se atreverem a conceber o criminoso desejo de nos subjugarem. Elles acharão nestas praias somente cinzas mixturadas com o sangue, a espada e um clima vingador. [...] A authoridade depende de vossa vontade; e he a vossa vontade serdes livres e independentes: vós o sereis; e nós daremos o terrível exemplo ao

Universo, de nos enterrarmos debaixo das ruínas de nossa Patria, antes do que voltar à escravidão, ainda debaixo de sua forma mais modificada.

Note-se que as ameaças de guerra e de profusão de sangue não são mero jogo de palavras, mas uma realidade vivida então há um quarto de século entre a população da ilha de São Domingos. Ao mesmo tempo, tal proclamação acentua os habitantes do Haiti (na sua maioria ex-escravos, libertos e seus descendentes imediatos) como agentes históricos, responsáveis pela própria condição de serem livres e independentes, isto é, no tocante à escravidão e, também, à independência nacional. Rejeitava-se ao mesmo tempo a dominação colonial e o escravismo que, como se vê, ainda permaneciam nas intenções oficiais da França sob a monarquia restaurada, doze anos após a Proclamação de Independência do Haiti. Curioso paradoxo daquele momento: a França ainda abrigava, em seu território europeu, consideráveis tropas estrangeiras de ocupação, que relutavam em abandonar o país após a derrota de Napoleão Bonaparte (e seu rápido retorno) em 1814 e 1815. Enquanto que, no Haiti, todas as tropas europeias haviam sido derrotadas e expulsas do território. Isso tornava a posição francesa mais frágil em suas pretensões no Caribe. Percebe-se, portanto, que nestas páginas do Correio Braziliense o Haiti é citado como exemplo de defesa da soberania nacional e de combate à escravidão, que também era condenada pelo jornal, seguindo neste ponto a posição emancipacionista britânica e seus interesses de expansão 216

comercial . Não se deve ignorar, ao mesmo tempo, as relações que a República do Haiti estabelecera com a Inglaterra e que constavam das páginas do mesmo jornal. O acordo comercial entre estes dois países, assinado em 1814, estabelecia a tarifa preferencial de 5% para os produtos importados da Inglaterra nas alfândegas haitianas, enquanto que os demais países 217

deveriam pagar 10%

. Ou seja, uma diferença de 100% e com taxas bem

rebaixadas, já que Portugal, no Tratado de 1810, cobrava tarifa preferencial de 15% sobre os produtos britânicos (contra 16% dos demais países), medida que foi bastante criticada na época por ferir interesses lusobrasileiros. Tais iniciativas mostram o preço alto que o Haiti, ainda uma economia essencialmente exportadora, teve que pagar pela sua independência e para não ser esmagado pelas potências europeias – medidas que teriam consequências na permanência de relações sociais marcadas pela desigualdade, após a Independência. Mesmo que interessasse ao Correio Braziliense divulgar posições antifrancesas e pró-britânicas, isto permitiu que, nas páginas deste periódico, o Haiti aparecesse como exemplo positivo e não maldito ou omitido. Modelo de afirmação das modernas soberanias nacionais, face ao absolutismo e à dominação colonial do Velho Mundo. Convém assinalar que tais citações foram feitas no período em que o ex-escravo Christophe governava a parte norte da ilha caribenha, como rei Henri I, e Alexandre Pétion, homem mulato, governava a parte Sul como presidente da República. A Gazeta do Rio de Janeiro, órgão financiado pela Corte portuguesa no Rio de Janeiro desde 1808, também traz inúmeras referências e transcrições 218

sobre o Haiti, como assinalou a historiadora Soraya Matos de Freitas . Muitas vezes, são notícias detalhadas sobre os conflitos internos da ilha do Caribe, destacando personagens como Christophe, Rigaud e Pétion – que assim aparecem como protagonistas conhecidos pelos leitores no Brasil. Não se encontra, igualmente, a narrativa dos “horrores” ocorridos durante a Revolução Haitiana, nem os alertas contra o risco de que tais episódios se repetissem nas terras brasileiras. Mas como a Gazeta, neste período, privilegiava as transcrições de outros periódicos, sobretudo europeus, as notícias selecionadas pelo jornal seguiam duas linhas. Inicialmente, tratavase de fustigar a França de Napoleão Bonaparte, que guerreara e ocupara

Portugal, aliado da Inglaterra. Neste sentido, destacavam-se citações de derrotas militares francesas, inclusive em São Domingos. Posteriormente, a partir da Restauração monárquica na França (1814– 1815), a mesma Gazeta passa a enfatizar as propostas de recolonização oriunda dos antigos colonos e dos setores mais tradicionalistas da monarquia constitucional e autoritária, dedicando dois números inteiros à 219

“questão” do Haiti . Mas aí já não se tratava de exorcizar o fantasma da revolução dos escravos, mas, sim, buscar um novo padrão de relacionamento político e econômico que beneficiasse uma das potências europeias – embora o repúdio à Revolução do Haiti estivesse implícito nestas transcrições, que continham também as perspectivas de ataque militar e volta do controle da ex-”Pérola das Antilhas” pela “Pátria das Luzes”. Ao mesmo tempo em que circulava no papel impresso, as palavras pronunciadas sobre a Revolução do Haiti no Reino do Brasil transitavam por setores que iam além das elites intelectuais. O historiador Luiz Geraldo Silva analisa o testemunho de um espião enviado do Rio de Janeiro a Pernambuco, no qual este relatou a conversa que teve, em 15 de janeiro de 1818, com o Capitão do Regimento dos Pardos do Recife, José do O. Barbosa, e com seu genro, forriel (abaixo de sargento) do mesmo regimento, Joaquim dos Santos: [...] se informaram de mim mesmo, sabendo que eu estivera nas Antilhas, da maneira que vivem os rebeldes de S. Domingos. Eu lhes disse que muito mal; e acrescentei: “tudo quanto fizeram os franceses seus senhores, eles têm estragado e arruinado e se os ingleses não os patrocinassem, já há muito os tinha levado o demônio”. Objetaram-me com ar de mofa: “então só os brancos sabem conservar?” [...].

Percebe-se aqui um tipo de recepção da Revolução do Haiti que, na linha da proclamação de Emiliano Munducuru, toca no cerne do preconceito racial como forma de desqualificar o exercício do poder pelos

negros. Esse tipo de raciocínio – analisa Luiz Geraldo – para os acontecimentos daquela conjuntura, levou o senhor S. a afirmar em fevereiro de 1818 que Barbosa e seu genro revelavam a “vontade de verem o Brasil qual São Domingos”, o que, no terreno do desejo faz sentido, mas no âmbito da prática política de tais personagens é um evidente exagero220. Chama a atenção no diálogo acima o verbo “conservar”, usado pelo militar pernambucano e pardo para qualificar o governo dos ex-escravos no Haiti. Tal verbo tinha conotação distinta da atual e indicava, sobretudo, o ato de manter íntegro e saudável. No Dicionário de Moraes e Silva, edição de 1813, conservar aparece definido como fazer durar ileso, sem corrupção física, quebra ou detrimento; ou, ainda, guardar, ter em seu poder inteiro. Curiosamente, a palavra conservo, como substantivo, indicava os escravos 221

do mesmo senhor, isto é, os co-servos . Deste modo, situada em seu contexto, a defesa do “conservar”, presente nesta discussão política captada em 1818, indicava a preocupação e mesmo a defesa da capacidade e possibilidade dos “homens de cor” exercerem o governo e fazerem durar o poder em suas mãos. O modelo do Haiti estava presente no cotidiano destes homens das camadas pobres de Pernambuco, servindo de autoafirmação de suas identidades. A incapacidade dos negros em governar foi, justamente, um dos estereótipos mais associados à Revolução do Haiti, sobretudo após a Independência. E, por isso mesmo, tornou-se um dos principais argumentos nas tentativas de desmoralização da experiência haitiana e suas lideranças. Este preconceito estava em voga de forma marcante no momento do diálogo entre os dois milicianos em Pernambuco, que correspondia justamente ao período em que a monarquia restaurada na França, inconformada com a perda da antiga colônia, ainda ensaiava sua reconquista. Pode-se compreender o questionamento do capitão dos pardos

de Recife como uma resposta a tal campanha, orquestrada a partir da França e que, a seu modo, percorria os mares em impressos e vozes. O próprio Toussaint Louverture, ao ser preso (16 anos antes desta conversa em Recife) em São Domingos, destituído do cargo de Governador General e levado para a França, onde faleceria meses depois, chamou a atenção para este ponto (tradução livre): Se não precisavam mais de meus serviços, e queriam me substituir, não deveriam ter agido comigo como agiam em todos os tempos em relação aos generais brancos franceses? [...] Sem dúvida devo este desprezo à minha cor. Mas minha cor impediu de servir minha pátria com zelo e fidelidade? A cor de meu corpo prejudica minha honra e minha coragem? [...] Tudo isso estava ligado à minha perdição, para me enfraquecer e me destruir, porque sou negro e ignorante e não devo constar entre os soldados da República? 222

Em seguida, o mesmo Toussaint faria, num estilo de memorial, o elogio de suas principais realizações quando governou a ilha de São Domingos – texto escrito num cárcere, em tom de amargura e quase desespero de quem estava “enterrado vivo” e, pouco depois, seria inumado no ossuário comum do cemitério do Forte de Joux, na fronteira da Suíça com a França. A incapacidade dos negros em conservar, ou seja, governar com estabilidade, seria desmentida pelas experiências da fase Pós-Independência haitiana – na qual a moldagem das instituições, as violências, mudanças de governo e mesmo controle da população trabalhadora não destoaria, em seus traços gerais, das realidades americanas da época. Ainda assim, o racismo como teoria sistematicamente elaborada e contrapondo-se à ideia de unidade do gênero humano, ganharia fôlego e chegaria ao apogeu ao longo do século XIX, acompanhando a nova expansão colonialista e imperialista, com destaque para o continente africano.

No momento crítico da separação política do Brasil de Portugal, outubro de 1822, a ação dos ex-escravos da colônia francesa de São Domingos veio à tona no jornal Reverbero Constitucional Fluminense. O periódico transcreveu, ao longo de vários números, o ensaio “Solução sobre a Questão do Direito na Emancipação da América”, de autoria do cubano Joaquim Infante que, em certa altura, ao defender as independências no continente, afirma: A Hespanha por fim se arruinará inutilmente com semelhante empenho de reconquistar a America, bastante para convencer-se desta verdade o caso recente da França com a parte da Ilha de S. Domingos, que foi sua, e teve de ceder à gente de cor que a deffendia, depois de perder cem mil homens pouco mais ou menos, e gastar immensas somas estabelecendo por fim com aquelles habitantes, relações mercantis uteis a ambos os povos.

Às vésperas, portanto, da aclamação de d. Pedro como imperador do Brasil, aparecia num dos principais jornais do Rio de Janeiro esta afirmação sobre a Revolução do Haiti, sem repúdio ou preconceito. E mais sugestivo foi o comentário, em forma de nota, feito a este trecho por um dos redatores do periódico (Joaquim Gonçalves Ledo ou Januário da Cunha Barbosa): Não tomará Portugal esta doctrina? De nada lhe servirão as lições da História? De nada a experiência dos males alheios? Apparentando huna ignorancia que não tem das coizas, e da opinião do Brasil, fazem os últimos esforços para nos enviarem tropas, e reduzir-nos como já dizem seos Deputados à escravidão!...223

Ou seja, ainda aqui, a Revolução do Haiti aparece como referência de conquista da soberania nacional, segundo os redatores do jornal carioca – ou seja, um modelo a ser seguido, elidindo-se a abolição do trabalho escravo. Utilizava-se o termo “escravidão” em seu sentido político, de domínio de um povo sobre outro, ou de uma nação sobre outra – não necessariamente ligado à escravidão civil, isto é, ao regime de trabalho forçado e à posse de um ser humano sobre outro.

Outra referência, num tom mais alto, a dois países que já haviam proclamado a Independência nas Américas (Estados Unidos e Haiti) aparece no mesmo contexto de crise da união luso-brasileira, em discurso de Cipriano Barata (1762–1838), deputado pela Bahia nas Cortes de Lisboa, também no momento da separação do Brasil de Portugal em 1822. Os Ingleses quiseram domar e perseguiram os Americanos da parte do norte e depois de perderem mais de 50 mil homens e esgotarem todos os estratagemas da guerra, sucumbiram apesar do seu poder, deixando os nobres contendores com as bandeiras da liberdade desenroladas. França quis dominar a Ilha de São Domingos: perdeu 40 mil soldados e largou finalmente a Ilha a seus valorosos habitantes.224

Deste modo, a ação política dos escravos e libertos não é repudiada, mas valorizada (“valorosos habitantes”) e associada à independência norteamericana – ambas, pois, compondo um modelo independentista baseado na guerra e ruptura com a metrópole. Note-se que este pronunciamento é do segundo semestre de 1822, quando já se articulava e se oficializaria a Independência do Brasil de Portugal: a Revolução do Haiti emergia, também, como exemplo positivo de afirmação da soberania nacional neste debate. Cipriano redigiu, entre 1823 e 1835, o conhecido periódico Sentinella da Liberdade, em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, publicação matriz de várias com mesmo título que existiram em diferentes províncias do Brasil225. A afirmação de Cipriano Barata não expressava um arroubo retórico de tipo patriótico, mas uma concepção, ou melhor dizendo, um projeto de sociedade nacional de perfil mais abrangente do que aquele que seria constituído pelos novos grupos dirigentes que se consolidariam. Ainda neste parlamento luso-brasileiro, Barata fez outro pronunciamento: Os mulatos, Sr. Presidente, cabras, crioulos, os índios, os mamelucos e mestiços são gentes nossas, são portugueses e cidadãos muito honrados e valorosos. [...]

Além disso temos também os negros da Costa da Mina, Angola etc. A falta de cuidado nestes artigos pode fazer grande mal, porque toda gente de cor no Brasil clamaria que lhes queiram tirar os direitos de cidadãos e de voto.226

A declaração acima tem um inequívoco caráter antirracista e negava, portanto, o principal fundamento ideológico do trabalho escravo – que aparecia criticado de maneira implícita através do paradoxo na defesa do direito de cidadania aos negros africanos no Brasil escravista. Em outras palavras: a abrangência da cidadania não deveria ser limitada por pertencimento racial. Desta forma, o conceito de povo em Cipriano Barata, fosse para o Haiti ou Brasil, não deveria ser restrito pela discriminação racial e incluía mulatos, índios, mamelucos e também negros nascidos no Brasil e na África. Ainda nas Cortes de Lisboa, em 1822, o paulista Antonio Carlos de Andrada fez referência ao Haiti: Levanto-me para contestar alguns factos avançados pelo Sr. Borges Carneiro. He verdade que a Nação, que tem admittido o commercio livre era toda a sua extensão he a America, mas ella não tem recuado era prosperidade, antes pelo contrario tem avançado muito. E o mesmo tem succedido a Hayti, que só com este auxilio tem resistido a todos os males produzidos pela anarchia e por uma guerra assoladora.227

Mesmo destacando a guerra e “anarquia”, Antonio Carlos assinalava o Haiti como exemplo a ser seguido quanto a liberdade de comércio e prosperidade, não apenas como experiência histórica a ser repudiada. Ainda que possa se apontar que foi justamente esta “liberdade de comércio”, ou seja, a presença avassaladora e não devidamente regrada do comércio das grandes potências no Haiti recém-independente, uma das causas principais do prolongamento da situação social e econômica precária da nova nação caribenha. Tanto no posicionamento de Hipólito da Costa quanto nos de Gonçalves Ledo e Cipriano Barata, figuras importantes na primeira geração de homens

públicos e da imprensa brasileira (mas com projetos de nação e posições políticas diferentes), a referência ao processo haitiano aparece como modelo da moderna soberania nacional – não preferencialmente espantalho ou terror. Assinala-se, assim, a multiplicidade de percepções sobre a Revolução do Haiti. Tal posição não seria estranha aos ataques que surgiriam no Brasil às posições políticas mais críticas no liberalismo, sobretudo o liberalismo Exaltado. Nove anos depois deste pronunciamento, Barata seria preso sob acusação de ser um “malvado haitianista”, como se verá adiante. Ao longo do primeiro Reinado (1822–1831) o tema da Revolução do Haiti permaneceria nas páginas impressas de periódicos brasileiros. E, através destas, pode-se ver como permeava a vida de setores diversos da população. No periódico carioca Astréa, identificado ao liberalismo Moderado e publicado entre 1826 e 1832 (fez oposição aos governos do primeiro Reinado e apoiou as Regências), havia espaço para se falar do Haiti de maneira não pejorativa. Redigido pelo deputado Joaquim Vieira Souto, inseriu em sua primeira página o seguinte texto: Os Francezes aventureiros, de que abundam esta Cidade, não podendo mais perseguir e tyrannizar os naturaes da Republica do Haity, que foram seus escravos ou elotas {sic}, voltaram suas pretenções contra os Cidadãos do Brazil onde encontraram Brazileiros degenerados, que lh’as promovam ou por tímidos, ou por avaros, ou por injustos [...].228

O exemplo e as discussões sobre a Revolução haitiana perpassavam o cotidiano de moradores da capital da monarquia americana. Ainda que o texto em forma de carta, assinado com pseudônimo “Os Inquilinos Perseguidos dos Lobos e Francezes”, se referisse a um episódio pontual de disputa entre locatários e inquilinos da capital imperial brasileira – ele expressa determinado ponto de vista sobre a história recente do Haiti. Contrapunha os brasileiros tímidos, injustos e degenerados aos habitantes da ilha caribenha que derrotaram os franceses. A Revolução Haitiana

aparece a protagonistas brasileiros do período da Independência, mais uma vez, como exemplo de afirmação de soberania nacional.

O LIVREIRO PLANCHER E A CIRCULAÇÃO COMERCIAL DA REVOLUÇÃO

Folha de rosto de Histoire de la République D’Haïti, de Civique de Gastine, editado por P. Plancher

Outro sugestivo – e a princípio surpreendente – exemplo de ausência de hostilidade em relação ao Haiti aparece, já depois da separação do Brasil de Portugal, através do francês Pierre Plancher, principal livreiro e editor (tipógrafo) do Rio de Janeiro nos anos imediatos à Independência, além de redator e proprietário de periódicos. Era dono da Typographia e Livraria Plancher, mais tarde acrescida do nome Seignot (sobrenome de sua esposa e

do enteado). Estampando em seus impressos no primeiro Reinado a condição de Impressor de Sua Majestade Imperial, o empreendimento comercial de Plancher, de caráter privado, era oficioso. Sempre assumia a defesa (e atacava os adversários) dos governos brasileiro (Pedro I e Regências) e francês (Luís XVIII, Carlos X e Luís Felipe)229. Rastreando os traços deste livreiro, integrante de uma rede internacional de comércio francês, percebem-se outros fios das teias que interrelacionavam o Brasil escravista, a França da monarquia restaurada e a Revolução do Haiti. Plancher combateu de modo enfático, em 1824, o movimento republicano da Confederação do Equador (que chegou a abolir o tráfico atlântico de escravos), nas Províncias do Norte brasileiro: apoiou as forças repressivas a este movimento e publicou acusações e cruéis ataques contra os rebeldes derrotados, no seu jornal Spectador Brasileiro. Entretanto, neste mesmo ano, uma curiosa exceção foi aberta em tal postura áulica, pelo menos em relação à França: Plancher apoiou a Independência do Haiti, lamentando a demora da monarquia francesa em aceitá-la, duas décadas depois de proclamada. Afirmou que tal reconhecimento era “desejado pela universalidade dos Francezes, com excepção de um certo numero de antigos Senhores de engenho, ou de roça de S. Domingos bem conhecidos pela 230

extravagancia de suas ideas e tenacidade de seu egoismo” . O livreiro francês, que publicava constantes anúncios de venda de escravos nas páginas de seus periódicos (entre os quais o Jornal do Commercio), não poderia ser considerado um abolicionista – e mesmo a perspectiva de emancipação gradual do trabalho escravo não estava entre suas prioridades. Ainda assim, ele se referia ao “Presidente Boyer da Republica do Haïti”, reconhecendo-lhe, portanto, tal condição – embora tendo o cuidado de acrescentar o antigo nome colonial (São Domingos), entre parênteses. E, ao relatar as recentes negociações em Paris,

fracassadas, entre três comissários haitianos e o governo francês, Plancher publica, na íntegra, a proposta clara e direta feita pelos haitianos ao governo da monarquia restaurada na França para que chegassem a um acordo. Eis o trecho inicial: “A Ilha do Haiti (alias, S. Domingos) forma um Estado livre e Independente. Renuncia a França a qualquer direito de Soberania sobre a 231

porção da dita Ilha de que era possuidora em 1789” . A tomada de posição do governo haitiano, presidido por Jean-Pierre Boyer (que participara das lutas do processo revolucionário com ampla presença dos escravizados em armas), aparecia assim estampada na capital do Império escravocrata das Américas, sem reparos. O governo francês repudiou tal proposta. O periódico publicou também as contrapropostas da monarquia francesa (repelidas pelos negociadores haitianos), entre as quais estavam a abolição da escravidão (já abolida oficialmente no Haiti há três décadas) e a permanência das atuais autoridades, desde que subordinadas à França – o presidente da República teria o título de Governador Geral e passaria, após o mandato em exercício, a ser nomeado pelo rei da França. Os antigos proprietários rurais poderiam retornar à ilha (desde que respeitassem as leis vigentes) e teriam garantido seus direitos de propriedade. E o “Francez Brazileiro” – como Plancher assinava alguns artigos – se mostrava simpático à proposta dos haitianos e crítico à reação dos governantes franceses. E acrescentava em tom de alerta: “O certo he que o Governo do Haiti não dorme e se está preparando para o peor”, calculando que “a força do Exercito de linha he de 20 para 25 mil homens bastante bem equipados. A força da Milicia será de 60 mil homens”. Registra-se, assim, sem repúdio e com apoio, a publicação das reivindicações dos governantes haitianos e a consequente discussão ou alusão pública de temas em torno da Revolução do Haiti: direito à resistência em defesa da soberania nacional, forma de governo, direito de

propriedade, legitimidade dos trabalhadores escravizados de se rebelarem e assumirem o poder criando uma ordem nacional e pegando em armas para defendê-la – assuntos propalados a partir das palavras impressas num jornal oficioso. Quem pensaria em acusar de haitianista este impressor europeu que recebera a Proteção Imperial de d. Pedro I? O que estava em jogo com a Independência do Haiti não era mais uma revolução, mas o período pós-revolucionário, ou seja, definir o perfil e o lugar da nação que se constituía. Pierre Plancher era exímio no comércio político da cultura e participava de ampla rede comercial de livreiros e impressores francófonos, sendo um destacado representante de tais 232

interesses no Brasil . Tal articulação passava pelos estabelecimentos comerciais no Haiti. Ou seja, a preocupação de Plancher centrava-se na inserção da República do Haiti na ordem internacional capitalista e o papel da França, enquanto potência, nesta nova fase. As resistências tradicionalistas e localizadas, encasteladas no governo monárquico, prejudicavam os interesses mercantis franceses, na perspectiva de Plancher, que era a do liberalismo econômico e político. O livreiro estava em sintonia a um conjunto de intelectuais liberais franceses (entre os quais abade De Pradt, Benjamin Constant e Civique De Gastine) que encarou, em determinado contexto, a possibilidade de a experiência haitiana ser uma espécie de laboratório político no qual, rompida a escravidão, negros e mulatos livres poderiam edificar uma sociedade razoavelmente próspera. Expectativa que seria interrompida com a inserção mais que subalterna do Haiti no âmbito internacional com o modo de imposição do reconhecimento da Independência pela França monárquica em 1825. A este respeito, convém assinalar que o presidente dos EUA, John Adams, chegou a estabelecer relações comerciais com o governo de Toussaint Louverture em 1799, com o apoio de setores da sociedade norte-

americana, que visavam os lucros a serem obtidos com esta inclusão. Tal medida foi bastante contestada e seria cancelada no ano seguinte pelo novo 233

presidente, Thomas Jefferson . Pierre Plancher, como foi dito, defendia a independência do Haiti e, não, a Revolução – embora aquela tenha sido oriunda desta. Ou seja, pleiteava o reconhecimento da condição nacional haitiana e sua consequente inserção no mercado mundial de forma subordinada ao comércio das grandes potências (especialmente a França), mas em condições para desenvolver um mercado interno e estruturas administrativas que a tornassem um mercado atraente e substancial. Neste ponto, demarcava-se não só das elites dirigentes francesas da monarquia restaurada, mas, também, da maior parte dos grupos dirigentes e socialmente dominantes do Brasil monárquico e escravocrata. O tráfico atlântico de escravos vigorava na França e no Brasil naquele momento. Anote-se que as ligações comerciais de Plancher não eram estritamente livrescas. E não só porque vendia o lendário (e eficiente) purgativo Le Roy, lembrado até por Machado de Assis décadas depois: ele integrou-se aos grupos dirigentes (políticos) e dominantes (econômicos) brasileiros. Tornou-se sócio do engenho de açúcar Brajahimerindipe (Ubatuba/SP), em 1828, administrado pelo negociante francês Henrique Riedy. Era uma companhia por ações e teve como subscritores os seguintes nomes, além do livreiro: José Clemente Pereira, os baianos Joaquim Pires Carvalho de Albuquerque (visconde do Pirajá), Miguel Calmon Du Pin e Almeida (marquês de Abrantes) e Antônio Luís Pereira da Cunha (marquês de Inhambupe); o fazendeiro e traficante de escravos João Rodrigues Pereira de Almeida (barão de Ubá), estabelecido no Vale do Paraíba fluminense; Francisco de Assis Mascarenhas, marquês de São João de Palma e 234

destacado integrante da Casa Imperial brasileira e outros . Ou seja, o Plancher fidalgo volveu-se coproprietário de uma plantation escravista em

associação com alguns notables brasileiros, o que reforça a ideia da modernidade capitalista da escravidão, assinalada, entre outros, pelo 235

historiador Yves Bénot

.

As revoluções no papel Vários livros e folhetos sobre a Revolução do Haiti haviam sido publicados por Pierre Plancher, ainda na França (de onde saíra em 1824) – entre os quais alguns relevantes e polêmicos. Era matéria com a qual estava familiarizado e, ainda aqui, sem repúdio total, mas com a objetividade de um comerciante. Publicara, por exemplo, textos do abade Grégoire, de Civique de Gastine e outros defendendo alguns líderes da Revolução Haitiana. A indicação destas publicações se constitui num elemento significativo desta triangulação Haiti – França – Brasil e a figura de Plancher como intermediário cultural. De um modo geral, a temática das revoluções prevalecia nas prateleiras da rua do Ouvidor (onde Plancher mantinha sua livraria, nos nº 307 e depois nº 95), principal centro de comércio na cidade imperial brasileira. Num catálogo de 317 títulos em 1827, a maior parcela era de História e de Política (44%), da qual 59% tratavam de revoluções, sobretudo a Francesa236. A perspectiva predominante em tais publicações – em sintonia com o mercado editorial pós-revolucionário – era a tentativa de reelaborar as memórias e histórias das revoluções, num sentido conservador, no âmbito da modernidade política. O martirológio da nobreza diante dos sanguinários revolucionários, os sofrimentos de Maria Antonieta antes da guilhotina, relatos de jacobinos arrependidos, compunham um conjunto de imagens coerentes de repúdio e superação da Revolução Francesa. O que estava em jogo: como organizar as sociedades nacionais e superar a Era das Revoluções? Tema central para os países recém-independentes nas Américas. As obras editadas por Plancher sobre a Revolução do Haiti,

sintomaticamente, não constavam de seu catálogo divulgado no Brasil (o que não quer dizer que não fossem vendidas). A censura prévia à circulação de impressos estava abolida desde 1821, mas há regras não escritas que têm força coerciva, ainda mais num tema tabu em terras brasileiras oitocentistas. Que livros foram estes e quais seus autores? A obra mais importante publicada por Pierre Plancher sobre o tema foi Histoire de la République d’Haïti ou S. Domingue, L’Esclavage et les Colons, por Civique de Gastine (que já era conhecido como autor de La Liberté des Peuples, 1818), em 1819. Tratava-se de uma publicação antiescravista e anticolonial, francamente favorável à Revolução Haitiana. O livro era vendido na loja de Plancher em Paris, rue Poupée nº 7, e, 237

também, “[...] em São Domingos em todos os mercadores de novidades” . Ou seja, havia um elo também entre os livreiros no Haiti e os congêneres estabelecidos na França. Aliás, os “mercadores de novidades” estabelecidos no Haiti não vendiam apenas livros, o que caracterizava em qualquer país os comerciantes sob esta designação. A dimensão comercial se apresentava, ela própria, em polissemia: as ideias e valores que circulavam através dos produtos vendidos. O autor do trabalho, Civique de Gastine [ou Desgastines, ou De Gastine] (1793–1822), jovem intelectual francês admirador de Robespierre e que apoiava o reconhecimento da Independência haitiana na França, seguindo (e aprofundando) as argumentações dos abades Grégoire e De Pradt. Gastine, também colaborador da Revue Encyclopédique, elaborou uma teoria do fim das colônias que passava pela defesa simultânea da Independência e da Abolição, sem demoras e mediações, e, sobretudo, sem indenizações. Gastine baseava-se nos princípios dos Direitos do Homem e unidade da espécie humana oriunda das Luzes do século XVIII – não em considerações pragmáticas e circunstanciais que levam às mais diversas mediações e concessões. Grégoire era abolicionista, mas hesitava diante da questão

colonial como instância civilizadora, enquanto De Pradt, independentista, pregava emancipação lenta e negociada do trabalho escravo. Gastine foi um precursor isolado de tais ideias na defesa simultânea da Independência e 238

Abolição nas colônias, como assinalou o historiador Yves Benot . A valorização dos governantes negros e mulatos do Haiti, com a afirmação veemente de suas capacidades de governar, marcava o livro de Gastine, bem como a defesa ao direito dos escravizados em se rebelarem contra a opressão, na esteira do direito de resistência à tirania no sentido da soberania nacional. A visão de Civique de Gastine, expressa no vocabulário hegemônico do liberalismo constitucional, condenava ao mesmo tempo o escravismo e o colonialismo. Era uma visão crítica, de radicalidade democrática, ou que radicalizava a democracia levando ao pé da letra o emblema da liberdade, igualdade e fraternidade, mas dentro de perspectivas teóricas e práticas de seu tempo histórico, como não poderia deixar de ser. Patriota francês e internacionalista, defendia a universalização sem distinções dos Direitos do Homem e do Cidadão no raiar do século XIX. A coerência com que criticava as instituições vigentes francesas e sua adesão à Independência do Haiti, que compreendia como modelo de realização ampliada dos Direitos do Homem, ocasionou perseguições na França monárquica que se recusava a reconhecer tal autonomia e tais direitos. E o autor exilou-se, tornando-se morador do Haiti em 1820, onde teve acolhida entusiasmada. Porém, dois anos depois, faleceu doente, aos 29 anos, e foi sepultado como herói nacional. Seu cortejo fúnebre, com honras militares, foi acompanhado pelas principais autoridades da República. Na saudação em despedida, o juiz do Tribunal de Cassação de Port-au-Prince, Pierre André, comparou Gastine ao abade Grégoire, a 239

Benjamin Franklin e a Benjamin Constant

.

Para nos determos ainda sobre a figura de Civique de Gastine, assinalamos sua leitura no Brasil no processo de Independência. Longos trechos do seu livro La liberté des peuples..., de 1818, são transcritos em várias edições do Correio do Rio de Janeiro, redigido por João Soares Lisboa em 1822, conforme indicou a historiadora Cristiane Camacho dos Santos (2010). A partir da edição nº 15, de 26 de abril, e nos números consecutivos, Soares Lisboa traduz (acreditamos que pela primeira e única vez) para o português Da Liberdade dos Povos, e dos Direitos dos Monarchas Chamados a Governallos. Com a seguinte justificativa: Para instrucção daquelles de nossos Leitores que não tem conhecimento de linguagens estrangeiras, traduzimos os seguintes pensamentos de Gastine, judicioso Escriptor, cujas preciosas produções de hum sublime gênio são pouco conhecidas, segundo pensamos, no Brasil.

Era a fase final da crise do Antigo Regime colonial no Brasil, ainda institucionalmente um Reino português. O mesmo periódico transcrevia os debates nas Cortes de Lisboa e a aproximação crescente do príncipe d. Pedro com a “causa brasileira”. Em fins de abril, pouco mais de três meses antes do Manifesto de Agosto (que antecederia a formalização da Independência do Brasil em 12 de outubro do mesmo ano), a compilação de um livro que marcava uma das posições mais contundentes em defesa da soberania nacional e dos povos, não era casual, nem inocente. Ainda que Soares Lisboa tivesse o cuidado de acrescentar em sua justificativa: “lembrando-se que reformar não he destruir.” Nestas transcrições traduzidas de Civique de Gastine, não há referências à escravidão que, aliás, não constam do livro em questão. João Soares Lisboa, nascido em Portugal, comerciante, foi um dos pioneiros na luta pela Independência do Brasil e, também, um dos precursores do ideário radical dos liberais Exaltados. Preso no Rio de Janeiro pelas autoridades monárquicas após a Independência e deportado,

conseguiu escapar do navio em Pernambuco, onde aderiu à luta armada da Confederação do Equador, na tentativa de mudar os rumos centralizadores da sociedade nacional que se formava. Sua morte teve tons épicos: tombou de arma em punho lutando contra as tropas do novo império escravista e foi enterrado no campo de batalha, acompanhado de um sermão de corpo presente pronunciado por Frei Caneca – que seria executado pelas mesmas autoridades imperiais meses depois240. Pierre Plancher, um dos editores franceses de Civique de Gastine, tinha posição exemplar quanto ao liberalismo econômico e inequívoca a favor da Independência do Haiti. E, ao mesmo tempo, combateu politicamente João Soares Lisboa no Brasil. Não há aí incoerência. Ou seja, tratava-se da defesa simultânea do liberalismo econômico, do poder do império escravista americano e dos interesses mercantis das grandes potências europeias. Mas no tocante ao liberalismo político (que não é mero reflexo da economia, embora estreitamente vinculado a esta), não tanto a postura pessoal do livreiro, mas a de autores que ele publicava, colocava nos espaços públicos de discussão uma posição mais aberta a algumas possibilidades emanadas da Revolução do Haiti, inclusive a crítica à escravidão, defesa da universalização dos Direitos do Homem e apoio ao protagonismo político dos revolucionários haitianos. E incluem-se aí as tendências socialmente mais radicais do liberalismo político, no caso de Civique De Gastine. Outra tendência editorial de Plancher neste domínio foi a publicação de obras resultantes do que alguns contemporâneos chamavam de “partido dos mulatos” haitianos na França, em detrimento dos primeiros governantes haitianos negros e ex-escravos, como Dessalines e Christophe. Ainda aqui, assinala-se não um repúdio total à Revolução Haitiana, mas o apoio a um destes setores.

A mais eloquente destas publicações foi Christophe et les ultras, ou les Deux n’en font qu’un; matériaux pour l’histoire de Saint-Domingue (1820). O próprio título era expressivo: a comparação entre o governo de um ex-escravo negro ao dos ultras, nome pelo qual eram conhecidos os monarquistas europeus mais conservadores, tradicionalistas e reacionários da época, incluindo os Emigrados da Revolução Francesa. Trata-se de afirmar uma posição intermediária típica do juste milieu, ou seja, o repúdio aos chamados extremos. Ou, como formularia um dos principais ideólogos do liberalismo político, François Guizot, o distanciamento tanto do absolutismo monárquico quanto da soberania popular, vistas, ambas, como forma de tirania. A moderação do propalado meio-termo implicava na 241

defesa de uma soberania da Razão . O conteúdo do citado folheto é um conjunto pouco fundamentado e de linguagem raivosa nos ataques à figura de Henri Christophe – ressaltando violências contra a população branca, traições aos próprios correligionários, roubos, torturas, assassinatos, etc. Alguns dos episódios narrados estão comprovados historicamente, mas o texto é marcadamente parcial e nem sempre indica de onde extraía as afirmações de tom retumbante. Não chegou a ser uma antibiografia, mas, sobretudo um circunstancial texto de encomenda. A polêmica em torno da questão da Independência do Haiti gerou a publicação de alguns folhetos pela tipografia de Plancher, todos em defesa dos mulatos (enquanto tendência política, como já foi indicado na Parte I). Convém lembrar que tais debates ocorriam no período em que o novo país estava seccionado em dois: o Reino “negro” de Henri Christophe (1807– 1820) ao Norte e a República “mulata” de Alexandre Pétion (1807–1818) e Jean-Pierre Boyer (1818–1843) ao Sul. Deste modo, os grupos que participaram da Revolução do Haiti buscavam apoio para seus respectivos interesses entre as potências europeias. Enquanto o governo “mulato” do

Sul procurava estreitar os laços com a França, o governo “negro” ao Norte, escaldado com a antiga metrópole, tendia a se aproximar da Inglaterra. Daí, não é difícil entender a maior visibilidade do chamado lobby mulato na França, que acabou vitorioso em suas demandas naquele contexto: a reunificação do país ocorreria em 1822, sob a República. Plancher editara também um folheto de sete páginas, Extrait d’une le re de S. Domingue (1819), no qual um negociante de Port-au-Prince, capital da ilha caribenha, dirigia carta a um correspondente em Paris, ambos anônimos, lamentando os prejuízos causados ao comércio (exportação e importação) pela situação da parte Norte da ilha. Tal comerciante mostravase aliado do presidente Jean-Pierre Boyer, afirmando que “nosso país está na mais profunda segurança”. E atacava Henri Christophe: “o bárbaro Cristhophe não cessa de ultrajar a humanidade, continuando a exercer seus atos de crueldade sobre os brancos, particularmente sobre os franceses que 242

têm a infelicidade de cair em seu poder” . Ainda aqui não se tratava de uma condenação em bloco da Revolução do Haiti, mas de apoiar uma tendência (república presidida por um mulato), em detrimento da outra (monarquia dirigida por um negro), evidenciando, mais uma vez, a heterogeneidade de tal movimento e de suas repercussões. Elaborava-se história e memória sobre a Revolução, mas não de maneira monolítica e homogênea. Na mesma linha e no mesmo ano, Plancher publica outro folheto: De Saint-Domingue, observations sur un article inséré dans le “Constitutionnel”, le 31 août 1819, de P. P. P. Duluc, com 16 páginas. Ambas as publicações se vendiam também, segundo anunciava, “em todos os Mercadores de Novidades” no Haiti e traziam publicidade da obra de Civique de Gastine sobre a Revolução Haitiana. Acrescente-se outro veio editorial de Plancher em torno da Revolução do Haiti, a saber, a publicação de textos de autores como os abades Grégoire e De Pradt. O mesmo Plancher publicara, em 1821 (quando seu

estabelecimento se situava no Quai Saint Michel), um livro elogioso ao abade Grégoire: Grégoireana, ou Résumé Général de La Conduite, deas Actions et des Écrits de M. le Comte Henri Grégoire. Tratava-se de uma coletânea crítica organizada por Cousin d’Avallon, autor de uma longa série de “anas”, isto é, de livros em pequeno formato (in 16) contendo resumo da vida e obra de escritores célebres contemporâneos, além de trechos de seus escritos e um retrato em frontispício. Embora negasse a pretensão de apologia de Grégoire, Avallon fazia uma incondicional defesa das atitudes e ideias do abade, sobretudo no campo especificamente político, passando rapidamente pela escravidão, mas ainda aqui sem críticas. Já o livro Pradtiana, ou Recueil des Pensées, Réflexions et Opinions Politiques de M. L’Abbé de Pradt,... Entremêlé de Quelques Anecdotes... et Précédé d’une Notice Biographique..., da mesma coleção (“ana”), autor e editor, trazia um tom menos respeitoso quanto ao personagem enfocado. As “anedotas” predominam sobre os “pensamentos, reflexões e opiniões políticas” e o objetivo parecia ser desmoralizar o clérigo e homem público francês, trazendo à tona suas contradições pessoais no ambiente político. Percebe-se, portanto, que Pierre Plancher, além do negócio específico das letras, situava-se como integrante do fluxo de comércios (na amplitude do termo) internacionais – sendo, assim, um defensor do liberalismo econômico e político, suas ideias e interesses. O que implicava, igualmente, na defesa da soberania das novas nações, inclusive o Brasil, cuja Independência, em 1824, também ainda não fora reconhecida pela França, que aguardava a decisão de Portugal, num gesto de solidariedade entre metrópoles. Aliás, o Spectador Brasileiro (n. 44, 11/10/1824), periódico impresso e redigido por Plancher no Rio de Janeiro, publicou o manifesto anônimo Votos dos Bons Francezes rezidentes no Imperio, mostrando as vantagens de que seu país natal reconhecesse as Independências brasileira e haitiana – o

que só ocorreria no ano seguinte, em 1825. A defesa da soberania nacional era colocada sob a mesma perspectiva. Plancher praticava seu comércio político da cultura. Ao lado da relativização (não era colocado em destaque) do propalado discurso de medo, ocultação ou repúdio em relação ao Haiti (os “horrores” eram atribuídos à liderança de Henri Christophe), havia, ao contrário, a defesa de alguns agentes históricos do processo revolucionário haitiano e de sua autodeterminação nacional – da qual a ex-colônia francesa se tornara um dos paradigmas, um modelo. De modo semelhante a Hipólito da Costa que, em seu Correio Braziliense, defendia tais posições liberais, mas na órbita dos interesses ingleses, Plancher se empenhava em fortalecer a França como potência comercial, neste novo quadro mundial marcado pelas Independências americanas. E tal perspectiva esbarrava na permanência de valores tradicionalistas, políticos e econômicos, aos quais ainda se apegava à monarquia francesa restaurada. Apenas, havia aí uma metamorfose semântica sutil, mas expressiva. Não se falava mais em Revolução, porém, na República do Haiti. Não tanto pela forma de governo, mas, sim, na perspectiva de uma sociedade que se organizasse em uma estrutura nacional de tipo liberal e que se integrasse aos padrões da civilização ocidental. Ou seja, reconhecer e integrar tais povos e territórios na órbita da modernidade política, isto é, dos liberalismos, o que implicava na recusa simultânea aos padrões do Antigo Regime e às rupturas revolucionárias, em defesa da estabilização de uma ordem nacional, com inserção na economia mundial marcada pela presença de potências em disputa. Curiosamente, enquanto os liberais procuravam encerrar a Revolução do Haiti, eram os representantes das tradicionais monarquias europeias (além da França, também Espanha, Portugal e Áustria) que, reacionários diante dos novos tempos, atuavam involuntariamente para mantê-la viva pelos

conflitos e ameaças. Porém, como é sabido, em 1825, Carlos X, ainda sob o manto da flor de lis do Antigo Regime, reconheceu as Independências do Haiti e do Brasil no mesmo ano, mesma atitude tomada nesta data por d. João VI quanto ao antigo Reino do Brasil. A Révue Encyclopédique, o Haiti e o Brasil As posições do livreiro francês, estabelecido na capital do império americano, identificavam-se com as expressas na parisiense Révue Encyclopédique243. O Haiti era tema constante na revista que tinha entre seus colaboradores os economistas Jean-Charles Sismondi, Jean Baptiste Say e Adolphe Blanqui, o abade Grégoire, Benjamin Constant, Lanjuinnais, entre outros, a maioria autores de livros vendidos por Plancher e alguns até editados por ele, como Grégoire e Constant. A posição da Révue Encyclopédique, em relação ao Haiti, era pelo reconhecimento da Independência, para que se pudesse ativar o comércio com a antiga Pérola das Antilhas, que deveria se consolidar como nação nos moldes do liberalismo moderno, inclusive com a escravidão já superada. Tema frequente nas páginas da revista era a crítica aos fisiologistas, corrente de pensamento que buscava dar legitimidade às diferenças raciais e ao racismo, através de análises das características físicas 244

dos indivíduos, classificando-os em raças

. Um artigo na Révue

Encyclopédique chega mesmo a afirmar que o governo haitiano “poderia servir de modelo aos da Velha Europa”245.

Moi libre (“Eu livre”) e Moi libre aussi (“Eu livre também”): legendas da época expressavam, nas imagens alegóricas, a expectativa de setores europeus de que homens e mulheres negros do Haiti poderiam partilhar em liberdade e prosperidade da civilização ocidental. Ambos, na pintura, portam o barrete frígio, símbolo da Revolução Francesa

Benjamin Constant, aliás, escreveu uma resenha na Révue (fevereiro de 1826) sobre a questão das raças. O autor da célebre obra Cours de Politque Constitutionnelle... (editada por Plancher em 1818 e que seria uma das fontes de inspiração para a Constituição brasileira de 1824) critica o uso político da noção de raça e cita como exemplo os “Negros do Haiti” que “se tornaram legisladores bem razoáveis, guerreiros bem disciplinados, homens 246

de Estado tão hábeis e tão polidos quanto nossos diplomatas” . Constant se opunha ao uso das teorias das raças como “um novo pretexto de desigualdade e opressão”. Mas, ao mesmo tempo, deixava uma porta aberta para o racismo, na medida em que delegava aos fisiologistas o estudo e definição das características da espécie humana. Em todo o caso, para este

importante pensador liberal do começo do século XIX, bastante lido pelas primeiras elites brasileiras, os negros haitianos eram exemplo de inteligência e do uso da razão na organização e exercício da política247. Constant compartilhava, assim, a expectativa de que o Haiti pósindependente poderia ser o ensaio de uma sociedade pós-colonial bemsucedida no âmbito do mercado capitalista internacional, subordinado e interligado à França, mas de modo autônomo que permitiria um certo desenvolvimento interno da ex-colônia. Uma espécie de capitalismo utópico, que seria malogrado. A Révue Encyclopédique (na qual o abade Grégoire assinou a curta resenha sobre o texto anônimo, atribuindo-o ao padre Leonardo, conforme Parte II), publicou algumas referências sugestivas sobre o Brasil – embora não fosse seu principal foco de interesse. Editada em Paris entre 1819 e 1831, tratava-se de publicação mensal com artigos, notícias nacionais e internacionais e resenhas de publicações. A linha deste periódico, como já foi dito, era a defesa dos liberalismos econômico e político (livre comércio e liberdade de expressão), das soberanias nacionais e do antirracismo, além de combater a escravidão (variando de um emancipacionismo gradual à abolição imediata), embora as posições diante da colonização europeia fossem variadas e, às vezes, ambíguas entre os que escreviam na Révue. Era, portanto, órgão de oposição à monarquia restaurada após a Revolução Francesa, dirigido a um público que se poderia chamar de cultivé, englobando, também, além do âmbito intelectual, homens de negócios e lideranças políticas. A resenha de livros recém-publicados sobre o Brasil mantinha-se atualizada na Révue: as viagens de Maximiliano Wied-Neuwied e John Luccock, os estudos de Wilhelm Eschwege, Ferdinand Denis e Spix e Martius mereceram registros, do mesmo modo, notícias sobre a comunidade francófona do outro lado do Atlântico, como a publicação do jornal Estrela

Brasileira no Rio de Janeiro entre 1823 e 1824, “redigido por um francês”. Tratava-se de Jean-Baptiste de Loy, cuja publicação era vendida na livraria de Pierre Plancher, na Rua do Ouvidor. A nota da Révue Encyclopédique sobre o periódico traz indisfarçável ponta de ironia: assinalava que no Brasil os dias do ano eram marcados pelas efemérides dos santos, “como se fazia na França dos séculos XI e XII”. A Révue cita texto de José Bonifácio de Andrada e Silva sobre a escravidão. Traz notícias sobre a colônia suíça estabelecida em Nova Friburgo, interior da província do Rio de Janeiro, cuja direção estava a cargo de monsenhor Miranda248. Este, longe de ser revolucionário, se correspondia com o abade Grégoire. Uma nota é particularmente instigante: aponta a existência de uma escola no Rio de Janeiro, mantida por um francês (não identificado), apenas para crianças negras249. Assim como no caso do padre Leonardo, mais uma vez insinua-se uma rede de contatos internacionais de cunho antirracista, ainda que limitada e mal conhecida, que dava sinal no Brasil dos primeiros anos do século XIX – em alguns casos com a presença de Pierre Plancher como agente intermediário do comércio político da cultura.

O HAITIANISMO ESPALHA-SE E RONDA O DR. MEIRELLES

Dr. Joaquim Cândido Soares Meirelles, pivô do medo da Revolução Haitiana no Rio de Janeiro em 1831

As repercussões da Revolução do Haiti no Brasil da primeira metade do século XIX tiveram nos papéis impressos um veículo importante, inclusive na imprensa periódica. Havia uma questão de fundo na edificação de uma sociedade nacional após a independência política do Brasil: qual seria o perfil desta sociedade? O resultado que se conhece não estava predestinado pela Providência, como afirmaram enfáticos alguns historiadores dos séculos XIX e XX. O estado-a-que-chegamos foi fruto de embates ainda num período de indefinições. A expressão haitianismo surge no Brasil com a crise da abdicação de d. Pedro I em 1831, conforme afirmei na Introdução. Este contexto não se caracterizou, apenas, por um conflito estritamente político, mas significou o ponto de partida de uma verdadeira explosão da palavra pública como expressão de embates sociais que viriam a marcar os nove anos seguintes

do período das Regências. Crescimento quantitativo e qualitativo da imprensa, das associações públicas e secretas e, também, das rebeliões em diversas províncias e de manifestações verbais mais visíveis das camadas pobres (livres e escravos) pelas ruas dos centros urbanos e pelas áreas rurais. Em poucos momentos da história do Brasil a sociedade rebelou-se e 250

revelou-se com tal intensidade . Diante deste quadro – em geral taxado de confuso, caótico e tumultuado pela historiografia mais conservadora – não só os caminhos de efetivação da nação e do Estado ficaram abalados, como a própria escravidão foi questionada, seja pela presença mais visível dos escravos neste ambiente de tensões, como pelos embates políticos que resultaram na proibição formal, ainda em novembro de 1831, do tráfico atlântico de escravos. Deste modo, pode-se entender o surgimento e os usos da expressão haitianismo e seus derivados como reação dos setores que defendiam a manutenção do tráfico atlântico e da escravidão, diante dos que contestavam o “infame comércio” e questionavam, ainda que de forma reformista ou moral, o trabalho escravo. Embora houvesse também posturas favoráveis à pluralidade da Revolução do Haiti, conforme já dito (e ainda por dizer). Uma dimensão mais ampla pode se expressar em trajetória individual. É neste contexto que surge a série de casos envolvendo o cirurgião Joaquim Cândido Soares Meirelles (1797–1868), visto (e assumido) como mulato. Ao enfrentar o racismo num episódio em seu ambiente de trabalho cotidiano, ele acabou por desencadear (involuntariamente e a contragosto) uma complexa trama que manteve acesa a memória da Revolução do Haiti, espalhando-se em diversos pontos do Brasil, inclusive na capital imperial, palavras transitando entre a oralidade e o impresso. Há um ponto para ressaltar: já não se tratava mais de acompanhar e discutir soluções para a já encerrada Revolução do Haiti, mas de moldar sua

memória, adaptá-la ao presente. A esta altura, a sociedade haitiana, com suas especificidades, tinha governantes cuja perspectiva de elaboração de uma ordem nacional, em seus moldes gerais, era semelhante à dos demais países americanos, no sentido da ocidentalização dos costumes, instituições e do controle da força de trabalho para inserção na economia capitalista internacional. As repercussões da Revolução do Haiti, portanto, passavam por metamorfoses, resultantes de mediações várias: de tempo, de contexto histórico, de local e das perspectivas dos protagonistas que as moldavam conforme seus interesses. A figura de Cândido Meirelles esteve no cerne das discussões e rumores em torno da Revolução do Haiti e suas repercussões no Brasil dos anos 1830. Qualificado de “cirurgião mulato” pelo conde Edouard Pontois, embaixador francês no Rio de Janeiro, o doutor Meirelles (como era conhecido) costuma ser mais lembrado por sua atuação científica destacada – foi fundador e principal animador da Sociedade de Medicina, depois Academia Imperial de Medicina, e é considerado como um dos introdutores dos modernos tratamentos de doença mental no país, além de ter sido médico pessoal de d. Pedro II, defensor ferrenho da alopatia contra a homeopatia e ter recebido a homenagem póstuma de Patrono do Serviço de Saúde da Marinha nacional. Entretanto, o mesmo Meirelles viu-se frequentemente associado às acusações de haitianismo, ao abade Grégoire e, ainda, às polêmicas em torno do preconceito racial. O doutor Meirelles foi naquele momento um dos fios mais visíveis de uma teia de palavras e atitudes que interligava diferentes personagens e catalisava o tema da Revolução do Haiti, interligando pessoas distantes num mesmo enredo. ♦♦♦♦♦

Dois jornais em Pernambuco discutiram o exemplo histórico da Revolução do Haiti em 1829, associando os personagens da ilha de São Domingos à situação brasileira251. O que desencadeou tal discussão? Um simples gesto cotidiano de indignação de Meirelles contra a discriminação racial no hospital onde trabalhava, a tradicional Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. A capital do império brasileiro ficou alarmada com os rumores de um possível levante de tipo haitiano que estaria para eclodir, organizado por uma suposta Sociedade Gregoriana secreta (isto é, inspirada no abade Grégoire), em julho de 1831, como se verá adiante em mais detalhe. A origem deste pânico foi uma discussão do doutor Meirelles com um colega de trabalho – aliás, outro “cirurgião mulato”. A partir, portanto, da trajetória de um personagem, é possível trazer à tona uma série de questionamentos e situações. Certa manhã, o doutor Joaquim Cândido Soares de Meirelles chega à enfermaria onde atuava e vê os doentes trocados de lugar. Foi então alertado pelo enfermeiro que a direção do hospital determinara a separação dos doentes negros dos brancos. Contrariado, ele recomenda ao enfermeiro que desconheça tal determinação e que passe a alocar os pacientes segundo suas condições de saúde, não pela cor da pele. O enfermeiro recusa, explicando que recebera ordens expressas. “Trato eu com o mesmo disvelo e caridade todos os doentes quer sejão brancos, ou pretos, ou mulatos livres ou escravos? (....) ao pé do Medico todos os homens são iguaes”, indignava-se Meirelles, conforme seu próprio relato252. Era uma atitude nitidamente inspirada nos valores iluministas de universalidade do gênero humano e crítica da classificação de tipo racial. Ele foi então procurar o Provedor da instituição, Domingos José Teixeira, que lhe propôs a divisão entre doentes livres e escravos. Meirelles concordou nesse ponto (“Eu lhe disse que nada me parecia mais justo”), mas o Cirurgião Mor, identificado como Moura, não concordou e insistiu na

divisão entre negros de um lado e brancos de outro. A batalha contra o preconceito racial continuava a ser travada, através de palavras e no interior das instituições estabelecidas. Meirelles afirma que não se deu por vencido: Eu repliquei, dizendo que era uma divizão odioza, e que mesmo íamos alterar a Constituição, que não reconhece cores, mas sim direitos; e que se fosse para minha repartição um escravo tão branco ou mais do que o seu Snr., eu o metteria entre os escravos; e um preto livre, o collocaria entre os brancos, porque os livres são iguaes diante da Lei.253

No dia seguinte, continuavam brancos de um lado e negros de outro: [o] que era o oposto do que se tinha convencionado no dia antecedente, reprehendi o infermeiro, e este desculpou-se, dizendo que os superiores assim tinham ordenado. Affligi-me com isso, e lhe disse que distribuísse os doentes para onde houvessem camas vagas com a única differença de condição, até que eu falasse ao Snr. Provedor sobre isso.

Meirelles voltou a falar com o Provedor e este determinou que, “por enquanto”, a divisão racial seria mantida. Note-se que a demanda de Meirelles era contrária à segregação racial – e que ele, reconhecendo a divisão juridicamente estabelecida entre livres e escravos, acatava esta, sem explicitar uma crítica direta neste ponto. O incidente, que não extrapolava as tensões cotidianas de uma sociedade escravista, mostra ao mesmo tempo como as instituições não eram monolíticas, mas permeadas de disputas e contradições. E o que para uns poderia aparecer como limites do liberalismo constitucional (a existência da escravidão), para outros era justamente uma possibilidade, ou brecha, de contestação de um dos fundamentos desta ordem escravista (o preconceito racial). Tratava-se, pois, de uma atitude antirracista. Curiosamente, a crítica pública a Meirelles sobre este episódio partiu não de um defensor do racismo ou da escravidão, mas de alguém que o acusava de compactuar com o preconceito. Eram os rumores, compostos de intrigas, uma das possantes armas retóricas nas lutas políticas: espalhavam-

se afirmações infundadas, gerando dúvidas e confusões sobre determinados personagens e episódios. Uma carta assinada com o pseudônimo de Inimigo das diferenças de cor, publicada no jornal Astréa (órgão de oposição a d. Pedro I), trouxe à tona o ocorrido na enfermaria da Santa Casa254. O missivista anônimo escrevera o que lhe contara um “crioulo forro”, de Minas Gerais, que fora se tratar no referido hospital e retirou-se de lá em protesto, pois fora feita a separação entre brancos e negros nas enfermarias e leitos: [...] forão ao Hospital uns homens de comenda, e andarão lá trocando os doentes de umas camas para outras, dizendo que tudo quanto era branco devia ficar para uma banda, e preto para outra, uns disião que era bom ficar os escravos sós, e os livres sós; porém outros disserão, que uma vez que erão pretos, ficassem todos juntos.

O autor da carta reclamava de tal tratamento citando a Constituição de 1824, afirmava que todo homem livre é cidadão e a lei é igual para todos e não estabelece diferenças de cor entre os cidadãos – mesmo argumento, aliás, utilizado por Meirelles. Advertia, pois, contra a execução de um escândalo [...] e muito mais admirado fiquei quando o creoulo me certificou que estava na repartição do Doutor Meirelles, que se passa por muito Constitucional, amigo da Lei, e da igualdade do homem; e gozando dessa fama publica [...].

Foi, a partir desta denúncia, que Joaquim Cândido Meirelles veio a público: confirmou o que o “crioulo forro” denunciara, tornou público que discordava da decisão da Santa Casa e afirmou concordar com as posições do missivista anônimo quanto à igualdade racial, mas lamentava e protestava por ter sido injustamente acusado de pactuar com o preconceito o que, segundo ele, feria sua reputação e honra. Estas eram suas aflições, em torno do racismo. Pode-se, assim, assinalar que, no âmbito do liberalismo constitucional, havia espaço para contradições e vertentes diferentes, inclusive no tocante às formas de opressão.

Está claro que a atuação de Meirelles não se pautava pela via de uma insurreição armada de escravos, nem pela abolição imediata do regime de trabalho, mas pelo inconformismo, dentro das normas jurídicas vigentes, diante do preconceito racial. Ao mesmo tempo, buscava ampliar e efetivar o alcance e eficácia das leis na questão da igualdade de direitos. E tal posição seria suficiente para gerar em torno dele a “fama pública” e suas consequências. Tal gesto, ainda que comedido, teria outras ressonâncias num país escravista. Foram apenas alguns diálogos travados em torno do respeito à Constituição vigente, mas que tocaram em ponto sensível, enfim, de alguma maneira levantaram o véu daquilo que não deveria ser dito nem lembrado, isto é, o peso da dominação racial e social e a possibilidade destes oprimidos se rebelarem. A repercussão gerada pelo ocorrido na enfermaria do hospital carioca e publicada no jornal da mesma cidade não pararia por aí e chegaria até à discussão da Revolução do Haiti. Comentando a correspondência do “Inimigo das diferenças de cor” (reproduzida no jornal Astréa) a publicação O Cruzeiro: Jornal Político, Literário e Mercantil, de Recife, redigido pelo vigário Francisco Ferreira Barreto, alertaria: [...] de pençado temos deixado de falar sobre ella, pelo perigo que isto corre; mas estando seguros por informações cathegoricas (sem ser as do Sr. May) que os anarquistas d`aqui acenados por anarquistas de lá, vão agora discutir esta matéria para ganharem o partido do numero, já que perderão, e para sempre, o do bom senso, e vamos insetar a matéria com todos os resguardos, que ella pede, e que a prudência aconcelha.255

Em outras palavras: o que não deveria se dizer fora pronunciado, era preciso então maldizer. É de se remarcar a contraposição que este redator faz entre o partido do número e o do bom senso, o que, no vocabulário político da época, marcado, entre outros parâmetros, pelo liberalismo francês da Restauração, indicava o antagonismo entre a soberania popular (a maioria) e a chamada soberania da razão (ou da moderação), tão cara a

François Guizot e outros pensadores políticos256. Era diferença central entre os liberais Moderados e os Exaltados. No mesmo número o redator do periódico recifense faria, aliás, o elogio das instituições liberais norteamericanas que, segundo ele, eram perfeitamente compatíveis com a escravidão. Passando então a execrar o exemplo haitiano, o vigário Barreto, redator de O Cruzeiro desenvolve o assunto em dois parágrafos: Os homens de casta no nosso território são em hum numero muitas vezes superior ao dos brancos: isto he, elles tem toda a força phisica; entregar-lheshemos também a pequena moral, que nos cabe em sorte, já tão enfraquecida? Lancemos hum golpe de vista sobre a Guiné Americana (o Haiti) poucas pretenções ao principio, protestos de adesão à causa do Estado, mas estes protestos se desvanecerão a proporção, que a força negra se augmentava, e a desgraçada Colonia Franceza acabou por ser hum Estado de negros. Poderia-mos desejar outro tanto para o Brazil?

Lançava-se, assim, o espectro da “força negra” que parecia ameaçar o Brasil, tendo como base o exemplo haitiano. A linha de argumentação seguia quase literalmente a mesma que fora desenvolvida pelo abade De Pradt: recomendação de prudência e omissão diante do tema e, em seguida, execração dos horrores da Ilha de São Domingos, além da comparação com o Brasil, acentuando a possibilidade de algo semelhante ocorrer aqui devido à extensão territorial e grande número de escravizados. O mesmo redator d’O Cruzeiro afirma ser contra a escravidão, mas defende uma extinção lenta e gradual e, visando, como está claro, combater politicamente os setores da sociedade que, mesmo não sendo escravos, poderiam apontar para uma ampliação dos direitos de cidadania que incluísse setores oprimidos do ponto de vista étnico e social, sem falar da perspectiva mais nítida de abolição do tráfico ou da escravidão. Tanto que as baterias do mesmo jornal se voltavam contra os integrantes da recente (fora derrotada cinco anos antes) Confederação do Equador, que

era lida pelo viés da Revolução do Haiti. Comparando personagens da Restauração de Pernambuco dos holandeses no século XVII com os da Confederação do Equador, dizia: Hum {Henrique}Dias seria ninguém a par de hum Agostinho {Bezerra}. Ambos dirião – Somos livres – mas a palavra liberdade na boca daquelle pintava a Idea do amor a Deos, ao Soberano, e a lei: era o incitamento para a defesa da religião, da honra, e dos bens que se achavam em perigo. Na boca do Agostinho significaria a Idea da desordem, do erro, do crime, e seria o agilhão para perturbar tudo o que se achava em bom andamento, e legal. Nem se nos aprezente o dia 22 de Julho em que ele pareceo procurar o socego desta Província, indo de encontro as infernaes pretenções do segundo Calabar, o pardo Emiliano. O comportamento submisso que no principio da revolução teve o negro Christovão do Haiti, Petion e outros, nos ensina a temer a hypocrisia dessa gente que nada arriscão para ganharem tudo.257

Mais um personagem retorna à narrativa da teia. O redator acima tocava em outro ponto candente e, ao que parece, ainda vivo na memória dos contemporâneos: o dia em que o Batalhão dos Pardos, comandado pelo já citado major Emiliano Felipe Benicio Mundurucu, louvara pelas ruas da capital pernambucana o exemplo de Henri Christophe, do Haiti, pedindo que o “povo soberano” imitasse o povo haitiano e, também, como já foi visto, quando o major do Batalhão dos Pretos, Agostinho Bezerra, refreara a atuação do grupo de Mundurucu, impedindo o confronto com os comerciantes europeus e com boa parte da população considerada branca. Mundurucu, embora não citado nominalmente, está claro, era o “Calabar”, o que na mentalidade da época indicava traidor – e nisso o clérigo que redigia O Cruzeiro não julgava necessário insistir. Mas o que chama atenção é que o escritor do periódico passa a atacar a figura de Agostinho Bezerra, que, inicialmente condenado à morte após a derrota da Confederação do Equador, teve sua pena suspensa por pedido dos comerciantes e de personagens importantes da cidade, mas que acabou executado por ordem direta de d. Pedro I. Agostinho, já na época, tornou-se

uma das figuras do martirológio da oposição republicana ou Exaltada. E aí entrava a comparação com personagens da Revolução do Haiti que serviam, assim, de paradigma, neste caso negativo. Nessa linha, surge a referência ao “comportamento submisso” de Christophe na fase inicial da Revolução – que correspondia, aliás, ao momento em que este esteve aliado aos franceses, após a Abolição da escravidão pela Revolução Francesa. Interessante inclusive que, numa nota de pé de página, o redator cita trechos de documentos de correspondências trocadas entre “o General Christovão e Petion Presidente do Haiti” com as autoridades francesas, em que ambos prometiam lealdade a estas. Mas não diz a data de tais correspondências que, entretanto, só podem ter sido trocadas antes da Proclamação da Independência do Haiti, quando estava ainda em jogo o fim da escravidão. Pétion não era ainda presidente e Christophe era general de uma Força Armada que, pelo menos formalmente, estava subordinada à República francesa. Era difícil para os contemporâneos (como ainda hoje) acompanhar o caleidoscópio da Revolução Haitiana. Mas o paradigma da Revolução Haitiana podia também ser positivo no Brasil da época, não só em proclamações pelas ruas, mas através da palavra impressa. Levando adiante o fio desta teia, o redator Antonio Borges da Fonseca (1808–1872), que então publicava a Abelha Pernambucana, sai em defesa dos personagens do Haiti e da Confederação do Equador, polemizando (com sua peculiar ortografia fonética e nacionalista) com o número 108 d’O Cruzeiro. E nem diga o cruzeiro para menoscabar o Agostinho, que o comportamento submiso do Cristovam do Aiti, Petion e outros, nos ensina a temer a ipocrizia desa gente que nada arriscam para tudo ganhar; porque com isto prova: que ou inteiramente inora a istoria da revolução de S. Domingos, ou é um perverso caluniador que desfigura os fatos para o inverter.258

Ignorar a história da Revolução do Haiti era visto como inadmissível, o que mostra como tal assunto, apesar de pouco publicitado, circulava com assiduidade entre os grupos letrados brasileiros da época da Independência. Borges da Fonseca passa a citar em seu jornal um longo extrato entre aspas, isto é, extraído de um livro, com elogios abertos à Toussaint Louverture: “Toussaint, homem extraordinário, nasido na costa da África, se-elevou pelos seus talentos, caráter e firmeza a ser o xefe da colônia, que ele so queria conservar para entregar de novo a Fransa em um estado florente”. O trecho sobre Toussaint é extrato da obra do coronel Malenfant259. Tratava-se de um antigo militar e colono francês da Ilha de São Domingos que simpatizava e respeitava os ex-escravos: convidado para participar da expedição do general Leclerc (enviado por Napoleão para tentar destruir a Revolução do Haiti e retomar o território para a França), recusou-se e desaconselhou a empreitada, prevendo seu fracasso – que, como se sabe, ocorreu. Malenfant tornou-se, a partir daí, um defensor do reconhecimento da Independência do Haiti pela França, considerando legítima a nação oriunda da insurreição dos escravos. Borges da Fonseca, pelas letras de Malenfant, culpa os europeus pelas violências e volta a elogiar a “extraordinária” figura de Toussaint Louverture: Os abitantes brancos da colonia quazi todos morreram vitimas do ressentimento dos negros, e alguns também foram cruelmente despojados, e té mortos por ordem dos xefes fransezes! Todos xoraram por Toussaint.

E Borges conclui: “Com estes novos e verídicos dados desida O Cruzeiro quem foram os maos, e qual a gente ipocrita”. A linha argumentativa de Borges da Fonseca não seguia o receituário traçado pelo abade De Pradt. Ao contrário, ele trata com respeito e elogios os personagens da Revolução do Haiti (que não é vista, portanto, como paradigma negativo) e não acena com o espectro do medo, nem do haitianismo Oitocentista. Configura-se, assim, na imprensa brasileira da

primeira metade do século XIX, durante o primeiro Reinado, um espaço de discussão sobre a Revolução Haitiana, onde não existiam apenas visões negativas. Ao contrário, o redator da Abelha Pernambucana traz para a cena pública, através da palavra impressa, uma análise histórica que revelava a complexidade e a diversidade de experiências da Revolução do Haiti, evitando visões simplistas ou pré-concebidas. A conclusão que Borges da Fonseca (reconhecido em sua época como homem branco, segundo vários testemunhos) aponta, a partir das citações por ele escolhidas, é a de que os “maos” e os “ipocritas” não foram os escravos rebelados. Retomando a polêmica com o vigário Barreto (o qual, aliás, também trazia detalhes históricos mais circunstanciados sobre a Revolução do Haiti, não se limitava a execrá-la), Borges da Fonseca desenvolveria um longo trecho onde refletiria sobre a possibilidade de se repetirem no Brasil os mesmos acontecimentos da ilha de São Domingos: O Redator do Cruzeiro quer fazer medo aos Brazileiros com tutus, como se faz às crianças com o lubis-homem; e por isso rediculamente empenha-se em provar a influensia que os omens de cor tem no Brazil, e comparando o Brazil com S. Domingos diz: – Poderíamos dezejar outro tanto no Brazil? Ou teríamos a simplicidade de crer, que os negros ali fossem mais abeis, que os d`aqui, ou nós mais instruídos que os francezes? – Forte birra é a dos absolutistas e cativos em quererem fazer do Brazil S. Domingos. Ninguém no Brazil dezeja ver as senas praticadas em S. Domingos; e ninguém a que as tema. Sabemos todos quanto são baixos e submissos os omens de cor ca entre nós; sabemos qual o seu grau de luz, comparativamente aos do Aiti naquela época, e de mais sabemos que aqueles do Aiti si tal obraram, foi por influensia do governo inglez, e mesmo pelo dos fransezes, que menos sinseros do que convinham ser procuraram a sua ruína. E no Brazil acazo o governo inglez atrever-se-a a tanto? Não de serto. Logo donde vem a similhansa entre as sircunstansias do Brazil e S. Domingos? [...] O resto do artigo prova, que O Cruzeiro, como se frustraram os seus planos de absolutismo por esta vez, indoideseu, e esta a imajinar aerias revolusões similhantes a de S. Domingos, quando os omens de cor forem sábios, e isto é, d`aqui a 100 ou 200 anos, quando a Nasão Brazileira já se axar superior a todas as Nasões do Universo. Forte lástima.260

O trecho acima, que respondia ao número 138 d’O Cruzeiro (a quem acusa de estar a serviço de José Clemente Pereira, que ocupava interinamente o Ministério da Guerra), tem alguns eixos centrais de argumentação quanto à possível repetição de uma Revolução como a de São Domingos no Brasil, que poderíamos sintetizar e reescrever do seguinte modo: - acentuar o medo de um “novo Haiti” é uma estratégia de repressão vinda dos “absolutistas”; - ninguém deseja repetir as cenas de violência ocorridas na antiga colônia francesa; - no Brasil, não há condições de um “novo Haiti”, isto é, de uma insurreição de escravos que chegasse a assumir o poder; - esta ausência de condições se caracteriza, quanto a seus possíveis protagonistas, pela “falta de luzes” e “submissão” dos negros no Brasil; - a explicação central para o ocorrido na antiga colônia francesa estaria, além do maior grau de Luzes dos negros e ex-escravos, na atuação violenta e equivocada dos franceses e, sobretudo, na ação direta da Inglaterra no Caribe. Ou seja, a interpretação catastrofista de que o Brasil repetiria o Haiti era tutu261 de lobisomem: o redator buscava desconstruí-la. Havia, portanto, outras interpretações na época. Borges da Fonseca remetia a origem dos rumores haitianistas para o campo dos confrontos políticos, isto é, aos que chamava de absolutistas brasileiros – em geral denominação aplicada, após a Independência, aos partidários do poder autoritário de d. Pedro I, aos que defendiam a manutenção do poder centralizado e centrado em figuras do “Antigo Regime” enfim, ao campo político identificado como “português” naquele momento. Nesta linha, o incremento do medo de um novo Haiti estaria associado às tentativas de dominação política, isto é, à escravidão política (despotismo), não à escravidão civil (regime de trabalho). Note-se

que, além de não repudiar ou desmerecer, Borges da Fonseca assinala, como qualidade, a superioridade das luzes dos negros (cativos), mulatos e libertos na Revolução Haitiana. O redator da Abelha Pernambucana, na verdade, parece estar preocupado em esvaziar, ou desmistificar, o Grande Medo que habitualmente se propagava quanto aos acontecimentos na ilha de São Domingos e, por conseguinte, na satanização das críticas à escravidão no Brasil. Além de não reforçar esta retórica do medo, e de tratar com simpatia Toussaint Louverture, Borges da Fonseca procura distanciar as condições culturais e políticas da população negra de São Domingos e do Haiti com as dos negros no Brasil, taxando estes, como foi visto, de baixos e submissos. Por fim, ele destaca também o tipo de interferência das potências europeias no Caribe que eram, como afirma, diferentes das formas que tal presença assumia no Brasil. Trata-se, portanto, de uma espécie de antídoto contra o temor do haitianismo, que incluía, em sua argumentação, uma visão depreciativa dos negros no Brasil, mas sem desvalorizar os protagonistas da Revolução Haitiana. Mais adiante, o mesmo Borges da Fonseca voltaria a invocar o exemplo haitiano, positivamente, no âmbito das Américas, comparando com a situação brasileira: “S. Domingos e o México, ensinaram ao Brazil, que se quizer ter e conservar a sua Monarquia, deve sercal-a de uma Constituisão bem feixada e defeza, e a eisperiencia é por nós”262. A linha argumentativa parece ser a mesma dos já citados Cipriano Barata e Hipólito da Costa: não se invoca os habituais horrores de São Domingos e, ao mesmo tempo, se remete a discussão para o campo das questões políticas, no caso, do constitucionalismo liberal. O exemplo do Haiti, acoplado aqui ao do México, é sinalizado como experiência histórica para a sociedade brasileira recém-independente, ou seja, um modelo de conquista da soberania nacional para servir de referência e, não, copiado

literalmente. Naquela altura, tanto México quanto Haiti haviam passado por malogradas experiências monárquicas. E Borges da Fonseca (que viria a fundar no ano seguinte o jornal O Republico) alertava para a importância de se seguir os preceitos constitucionais e da modernidade política de forma íntegra e coerente – o que, na perspectiva deste redator, não sinalizava a abolição imediata da escravidão, mas sim seu enfraquecimento através da ampliação dos direitos civis, de cidadania, a um contingente mais expressivo da população, sem distinção racial. Era, ao mesmo tempo, emancipacionismo gradual e um republicanismo implícito, mas definido263. Antonio Borges da Fonseca, redator da Abelha Pernambucana, teria pela frente longa e sofrida trajetória política. Seria uma das figuras centrais da Noite das Garrafadas que levaram à abdicação de d. Pedro I, logo passaria à oposição nas Regências, tornar-se-ia um dos líderes da Revolta Praieira em Pernambuco, 1848, assumindo, pessoalmente, um ideário socialista, passaria por várias prisões, inspiraria o poema “Ao Povo no Poder”, de Castro Alves, combateria o Segundo Reinado e a Guerra do Paraguai e faleceria em 1872. E foi, também, advogado de um “pastor cismático”, em Recife, acusado de haitianismo, como já visto. Borges também realizou, em diferentes momentos, alianças e contatos com setores dos grupos dirigentes da vida política, entre os quais Evaristo da Veiga e, anos mais tarde, o senador e ministro Nabuco de Araújo. Este foi o primeiro trajeto percorrido pelos gestos e palavras do dr. Meirelles a partir de uma enfermaria da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, seguindo para Pernambuco e remetendo-se ao Haiti. O debate sobre a Revolução Haitiana circulava, no mesmo período, não somente pelas palavras impressas, mas também nas vozes da população pobre, sobretudo negros e pardos. Circulando em jornais do Rio de Janeiro e Pernambuco, aparecia também nas falas de uma comemoração na cidade de Laranjeiras, em Sergipe. Um pasquim anônimo (pregado nos muros e

ruas com cera de abelha) alertava ao Comandante das Armas da província, em 1824, sobre um jantar no qual se fizeram três brindes: à extinção de “tudo quanto é do Reino [Portugal]”, os chamados Marotos, ou seja, a eliminação dos portugueses; ao extermínio de “tudo quanto é Branco do 264

Brasil”, chamados de “caiporas”; e à “igualdade de sangue e de direitos” . Narra-se no mesmo papel que durante o encontro “Um menino R..., irmão de outro bom menino, fez muitos elogios ao Rei de Haiti, e porque não o entendiam, falou mais claro: São Domingos, o Grande São Domingos”. Mais um fragmento de oralidade captado no papel, ajudando a compor um mosaico de recepções da Revolução Haitiana no Brasil e que sempre estará incompleto, mas, ainda assim, sobressaiu do silêncio e expressou-se. Afirma-se aqui uma referência ao modelo haitiano que, além do exemplo de soberania nacional (contra os portugueses, dois anos após a Independência do Brasil), incorporava os elementos raciais e o uso da violência para se conquistar tais direitos, inclusive com extermínio da população branca. Foram palavras que não se concretizaram em ação, mas que indicam a existência de uma leitura positiva da Revolução do Haiti em seus principais – e mais candentes – aspectos. Note-se, como já foi citado, que a denúncia sobre tal jantar ocorre em Sergipe no mesmo momento que, em outras províncias do Norte, eclodia a Confederação do Equador, que trouxe à tona a proclamação de Emiliano Munducuru exaltando o rei Christophe. 265

UMA SOCIEDADE GREGORIANA?

Cipriano Barata, homem branco e acusado de ser um “malvado haitianista”

Retomemos agora o fio da teia de repercussões da Revolução Haitiana que, da divisão entre negros e brancos nos leitos de um hospital carioca, foi até Pernambuco e fez reverberar os acontecimentos do Caribe e seus personagens no Brasil oitocentista, recém-independente e escravista. Eram recentes os traumas da contestação política, luta armada e tomada do poder pela Confederação do Equador, em 1824, na qual o major Munducuru dera vivas ao povo haitiano. O foco das atenções acabou voltando, mais uma vez, para o doutor Joaquim Cândido Soares Meirelles, que parecia assim estigmatizado com o assunto. Em torno dele ocorreu um rumor generalizado e forte – um Grande Medo – na capital do Império sobre uma possível articulação inspirada na Revolução do Haiti (levante de escravos para abolição da escravidão de forma violenta, conforme a releitura do momento), três meses após a abdicação de d. Pedro I e do início das Regências.

Assinala-se, em maio de 1831, pouco antes da propagação de tal rumor, registro da polícia do Rio de Janeiro sobre a presença de dois “pretos de São Domingos” na cidade. O Desembargador Encarregado da Polícia na capital, Antonio Ferreira Barreto Pedroso, informa ao ministro da Justiça ter ordenado ao Comandante da Polícia a prisão de ambos. Um deles, Pedro Valentim, foi localizado na Hospedaria das Três Bandeiras e encarcerado. O outro, que seria um clérigo, “foi visto ontem na rua dos Latoeiros, em meio de muitos pretos, não sendo, porém, encontrado quando foi mandado prender”266. O historiador Luís Mott, que pesquisou o assunto, não encontrou nenhum outro registro sobre os dois personagens apontados como haitianos. Note-se que, um mês após a abdicação de d. Pedro I, havia clima de tensão e conflitos políticos, sociais e raciais nas principais cidades do Brasil, início de uma gama de protestos, motins e de rebeliões que ganharam amplitude durante o período Regencial267. Outro haitiano, de nome Moiro, foi localizado e preso no Rio de Janeiro em 1835268. Circulando pelo interior da província fluminense, Moiro foi acusado de incitar os trabalhadores escravizados a se rebelarem nas vilas de Bananal, Areias, Barra Mansa e São João Marcos e de que já contaria com sete mil homens para o projeto. Detido, o haitiano curiosamente não negou as conversas que mantinha, mas afirmou que eram apenas brincadeiras. De qualquer modo, o haitiano, chamado de “cafre”269 pelas autoridades, foi expulso do país. A respeito do rumor que trouxe medo e preocupações espalhados no epicentro do poder imperial brasileiro entre junho e agosto de 1831, sua extensão pode ser dimensionada pelo fato do representante diplomático francês no Brasil, Edouard Pontois, notificar a Paris como acontecimento marcante naqueles dias a disputa entre “deux chirurgiens mulâtres” (dois cirurgiões mulatos) que havia “excité vivement” (agitado intensamente) a

270

população do Rio de Janeiro . O nome do abade Grégoire também apareceria desta vez, citado pelo diplomata francês e associado à figura de Meirelles como inspirador de uma possível “Sociedade Gregoriana”, isto é, de uma associação de cunho abolicionista. Quanto ao impacto deste mesmo rumor, o próprio Meirelles relataria, com visível constrangimento e contrariedade: “Um boato corre, há dias, pela Cidade que tem enchido a huns de pavor, e a outros de indignação, em cujo último numero me colloco”271. A existência de uma associação deste tipo naquele lugar e momento me parece pouco provável. Porém, mais do que averiguar a veracidade de tais afirmações, importa-nos aqui tratá-la em sua positividade, isto é, como um rumor que ocorreu e repercutiu logo após um episódio de ruptura política, procurando compreender seus significados e usos naquele contexto, bem como personagens e questões envolvidas. Este novo episódio, de tons escandalosos, começou com uma intrincada desavença pessoal envolvendo ciúmes, intrigas e o renome político de dois cirurgiões da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro: Meirelles e Joaquim José da Silva, os “dois cirurgiões mulatos” indicados pelo diplomata francês. Em síntese, este se sentiu ofendido por comentários desairosos que aquele teria feito a seu respeito, em conversa informal na casa do então regente e senador Nicolau Vergueiro, questionando sua bravura e sua participação efetiva nos acontecimentos de 7 de abril daquele ano, que resultaram na abdicação de d. Pedro I. Sentindo-se atingido pelos comentários de Meirelles, o mesmo Joaquim José da Silva passou a espalhar para outras pessoas a seguinte informação, segundo narra Meirelles: Então explicou elle {Joaquim da Silva} que eu era chefe de uma sociedade secreta, que tinha por fim o assacinato dos brancos, e o crusamento das raças; e que elle sendo convidado para essa sociedade, foi, porém a ouvir o plano, opposse e não quiz fazer parte delle. [...] e depois de mais de 20 pessoas lhe me

disseram – creia que o Silva o atassalha por toda a parte, e quando alguém quer duvidar, elle até ameaça, dizendo – não quer crer, pois quando lhe doer a pelle, então sentirão.272

Meirelles nega estas e todas as acusações de seu colega de trabalho e o chama de malvado, caluniador e tartufo, além de lamentar o “rancor e o ódio” que o movia. É de se notar que a acusação, transformada em rumor público, compunha-se de três pontos: - formação de uma sociedade secreta; - assassinato de brancos; - cruzamento de “raças”. Estes itens, portanto, tinham caráter de incriminação. Nesta ocasião, Meirelles responderia apenas aos dois primeiros pontos, que envolviam crime, mas retomaria a discussão sobre a chamada miscigenação (não era formalmente crime, mas atingia os costumes de determinada parcela da população) em outra oportunidade, como veremos adiante. Aqui se coloca a polissemia da palavra sociedade: mais do que associação, estava em jogo um modelo de organização nacional e da formação de um povo a partir da diversidade de condições étnicas e sociais. No fundo, a questão central pode ser traduzida: uma sociedade gregoriana, isto é, uma sociedade miscigenada e apontando para o fim da desigualdade racial. Identificar as propostas iluministas, revolucionárias e abolicionistas do abade Grégoire ao assassinato de brancos e cruzamento das “raças” era uma forma de combater, satanizando, um projeto (no sentido amplo) de sociedade nacional baseada na incorporação das “raças” e não em segregação institucionalmente expressa. Havia, portanto, perpassando a sociedade brasileira, uma tendência segregacionista no período Pós-

Independência, que se manifestava de maneira intensa, como no exemplo deste episódio. O que inicialmente era um rumor, transmitido pela oralidade, acabou se cristalizando no papel impresso, publicado por iniciativa de Meirelles, que assim tentava desarmar a intriga e a trama273. Meirelles então enviou carta ao “Amigo e Collega” Joaquim José da Silva, em 3 de junho de 1831, fazendo-lhe quatro perguntas, para esclarecer as imputações. A réplica de Silva (transcrita no impresso feito por Meirelles) contém as perguntas e respostas, além de aumentar e detalhar as acusações. Eis trechos da carta de Joaquim José da Silva para Meirelles: Recebi hoje 3 de Junho de 1831, huma carta, e na qual me diz que para credito meu, e seu convinha que eu declarasse: 1 º em que circulo club ou ajuntamento propoz o assassinato dos brancos, e a necessidade de cruzamento das raças; 2 º quaes as pessoas, que se achavão presentes, e as que o impugnarão; 3 º qual o objecto da reunião, e quem a convocou, e para que fim; 4 º finalmente que fim tem essa associação, de que (diz) somos membros, ou por acaso nos achamos ahi. Posto que julgue que lhe há-de ser desagradável ouvir verdades duras, para o satisfazer, e para que não perigue o seu credito, responder-lhe-ei, que quanto ao 1 º não fui convidado em club, etc., mas para huma sociedade, que trabalhava segundo o plano do Abade Gregoire, com quem me disse conversara muito em França, e que sabia bem como isso se fazia: este convite me fez na rua dos Inválidos em huma coixeira onde nos recolhemos do Sol, e para não ser ouvido: se o plano de Gregoire he para o assassinato dos brancos, e crusamento das raças, o meu Collega o dirá, pois segundo me disse, com elle conversara, e sabia274. Quanto ao 2 º bem sabe o meu Collega que nos achávamos sós, e ninguém o impugnou. Quanto ao 3 º não me dizendo, quem a convocou aqui, dice-me (declarando-me alguns sócios da de cá) que Barata e Sabino a tinhão ido estabelecer na Bahia, e que brevemente o Bahiano mudaria de linguagem acerca do objecto; e fim está dito no 1 º, isto he do Abade Gregoire.

E temos aqui a figura do abade Grégoire que sai da penumbra dos não ditos e é citada no âmago de uma disputa que repercutia de maneira intensa na capital da monarquia escravocrata nas Américas. O que mostra que as postulações desse clérigo francês sobre escravidão, Haiti e preconceito

racial eram conhecidas e difundidas, e não apenas por impressos, mas através de conversas, pelos rumores e pela oralidade. A acusação de formar uma sociedade secreta era sensível naquele contexto, pois, como é sabido, o afastamento do monarca do poder gerou, nos dois primeiros anos da Regência no Brasil, ampliação das formas de participação política. O crescimento do movimento associativo gerou entidades diversificadas como as filantrópicas, patrióticas, explicitamente políticas, maçônicas, culturais, corporativas, mutualistas, de estrangeiros, etc., algumas públicas, outras reservadas, outras secretas. Ao mesmo tempo, este surto associativo foi acompanhado de temor e tentativa de controle, por parte das autoridades275. O acusador envolvia ainda dois personagens conhecidos da vida política brasileira, os cirurgiões baianos Cipriano Barata e Francisco Sabino Álvares, o qual, seis anos depois, estaria à frente da rebelião em Salvador que levaria seu nome, a Sabinada. É interessante destacar, entretanto, que Barata e Sabino eram adversários pessoais, em função de disputas políticas na Bahia, sendo que este encabeçara um manifesto contra Barata que, por sua vez, atribuía a Sabino a responsabilidade de ser um dos que havia tramado por sua detenção. Meirelles também chamaria atenção sobre este ponto, alertando sobre a divergência que tornaria difícil a convivência de ambos numa associação, ainda mais secreta. Também o deputado baiano Antonio Pereira Rebouças, “pardo”, seria acusado de pertencer à Sociedade Gregoriana276. Rebouças, que nunca foi haitianista, conhecia, porém, o tema. No inventário de sua biblioteca particular há dois títulos sobre o assunto: uma Histoire de Haïti em dois volumes da qual não é possível identificar a edição, e outra obra anotada 277

como Pradt Saint Domingue

. A única publicação do abade De Pradt

com esta localidade no título foi Pièces relatives a Saint-Domingue et, a

l’Amerique, mises en ordre par M. De Pradt, isto é, uma compilação comentada de peças documentais sobre a Revolução Haitiana, publicada em 1818. Como o veterano Cipriano Barata entra nesta teia? Aqui se abre um parêntese da narrativa para responder a tal questão – que amplia o leque das repercussões da Revolução do Haiti para a Bahia. Cipriano Barata já estivera detido na repressão à Conjuração Baiana de 1798, vista, em geral, como um movimento exclusivamente de “pardos”, embora tal visão seja repensada por estudos recentes278. Na ocasião, fora denunciado ao Santo Ofício por fazer “pregações incendiárias” aos “rústicos povos”. Um grande rumor – destes de abalar os espíritos, como se dizia então – reverberou em Salvador dias antes da notícia da abdicação de d. Pedro I chegar à Bahia em 1831279. As ruas da capital baiana foram tomadas por manifestantes, a maioria pobres, muitos negros e pardos, no episódio que ficaria conhecido como Mata Marotos, quando estabelecimentos comerciantes de portugueses foram atacados e alguns de seus proprietários mortos. Era a reverberação baiana do Grande Medo, acompanhada por ação direta. Daí resultou a “revolução” local de 4 de abril, quando foram depostos o Comandante das Armas e o Presidente da Província. No dia 13, várias lojas comerciais, sobretudo de portugueses, foram saqueadas e negociantes assassinados pela população enfurecida. Chamado pelas autoridades, Cipriano Barata mesclou-se à multidão e conseguiu acalmá-la, cessando provisoriamente as manifestações. Mas o prestígio de Barata junto a esta “plebe” acabou deixando inseguros os comerciantes e as autoridades280. O episódio concretizou-se na acusação a Cipriano Barata (visto e assumido como branco) de articular uma tentativa de haitianismo que, neste caso, significava para os acusadores, uma revolução para proclamar a república com levante de escravos. Convém assinalar esta reformulação do

exemplo da Revolução do Haiti na qual, como é sabido, a insurreição dos escravos resultou, no princípio, na adoção da forma de governo monárquica. Cipriano, ainda em abril de 1831, foi preso e remetido para o Rio de Janeiro, onde publicou textos negando as acusações, retrucando-as e procurando explicar os interesses e personagens responsáveis pelo rumor, que causou pânico na cidade já tão marcada por insurreições escravas nos anos anteriores. Além do embate estritamente sociopolítico, o rumor englobava uma dimensão delicada, quanto aos costumes e relações familiares. Barata repudiou de forma vigorosa as imputações de haitianismo, lembrando inclusive que fazia parte do rumor um aspecto familiar: corria pela cidade (como se dizia na época) a afirmação de que ele queria obrigar uma de suas filhas a se casar com um homem negro e como ela tivesse recusado, teria sido assassinada pelo próprio pai281. Lamentando tais “asneiras e desaforos”, Cipriano aponta como a miscigenação era tratada de forma criminal ou escandalosa. O casamento “entre as raças”, visto como violência, é novamente ressaltado, no mesmo período e contexto históricos, na Bahia e no Rio de Janeiro, com repercussão em outras províncias. É a questão de fundo: a temível “sociedade gregoriana”, relida como “sociedade miscigenada” e sem desigualdade racial. Na explosão da palavra pública que sucedeu a abolição de d. Pedro I (ausência da figura central do poder), a sociedade brasileira passou por crises e questionamentos intensos. A chamada questão racial foi um deles, ganhando destaque não apenas nos círculos de letrados. Era ponto sensível na definição dos rumos nacionais então em fase de aguda disputa. Havia, portanto, em termos esquemáticos, os defensores do segregacionismo e os da miscigenação, embora não formassem necessariamente correntes de opinião estabilizadas e definidas naquele momento.

Em seguida, defendendo-se, Cipriano contra-ataca e afirma que a política de insuflar insurreições escravas partia de autoridades do período colonial: O Conde dos Arcos excitou, animou, e ensinou clandestinamente os Negros da Costa, Aussás, Nagôs, e outras nações, a fugirem levantados por duas vezes; porém não queria que os Milicianos os matassem: apesar disso morreram mais de 300 Escravos nos conflitos.282

Como é sabido, ocorreram rebeliões de escravos aussás e nagôs em Salvador e no Recôncavo baiano em 1807, 1808, 1809, 1813 e 1814, sucessivamente. O conde dos Arcos, vice-rei do Brasil entre 1807 e 1810, governou a Bahia entre 1810 e 1817. No mesmo texto, redigido nos cárceres cariocas, Barata reitera tais denúncias, afirmando que insuflar rebeliões escravas era uma forma de manter e prolongar a escravidão, ampliando-se o medo que justificava e legitimava a repressão sobre os cativos e impedia o debate crítico sobre a própria escravidão e o racismo por parte de outros setores da sociedade. Anote-se que tais tentativas de autoridades de incentivar revoltas escravas como forma de aumentar a repressão e o medo foram detectadas logo no início da Revolução do Haiti, da parte de oficiais militares royalistes franceses e espanhóis283. Cipriano Barata apontaria nominalmente um grupo político baiano que pretendia destruir sua candidatura a deputado, encabeçado pelo já deputado Antonio Pereira Rebouças284, como responsável pela fabricação e divulgação deste rumor que o acusava de haitianista, e que teria culminado com episódio curioso: o relojoeiro José Marcelino dos Santos se fantasiou de Cipriano Barata, com longos cabelos artificiais e realizou pregações incendiárias aos escravos em Salvador285. Testemunhas depuseram posteriormente, desmentindo esta farsa da cabeleira “haitianista” de um imitador de Cipriano Barata (que por esta época ostentava longas mechas brancas), mas o pânico já se espalhara e Cipriano fora encarcerado.

Estas acusações foram tema de várias publicações da época e, após três anos de embates judiciais e políticos, Barata conseguiria provar inocência e desmentir formalmente seus acusadores. Entretanto, o episódio foi pretexto para que Cipriano explicitasse suas posições: era pela extinção gradual da escravidão no prazo de quatro décadas (isto é, até os anos 1870), pelo fim imediato do tráfico atlântico de cativos e pregava o republicanismo de forma implícita, além de defender direitos políticos e civis ampliados para os setores da população que incluíam negros e mulatos, livres e libertos. Posição, aliás, equivalente à do abade Grégoire na fase inicial da Revolução Francesa e anterior à Revolução do Haiti, entre 1789 e 1791286. Como já foi visto, Barata não apresentava os acontecimentos da ex-colônia francesa pintado com as tintas do horror, execração ou pânico – e nas Cortes de Lisboa fizera pronunciamento referindo-se aos “valorosos habitantes” de São Domingos, nome pelo qual encontrava-se a ilha unificada naquele momento. As investidas contra Cipriano, o qual na mesma época atacava o predomínio britânico na economia brasileira (e para isso vestia-se com roupas de algodão fabricado na Bahia), o tinham em conta de “malvado 287

haitiano” e “pai dos Negros”, conforme jornais do período . Em outros termos, percebe-se que por ter uma posição crítica diante da escravidão, do imperialismo britânico e por defender a cidadania de setores livres oprimidos, Cipriano Barata viu-se mesclado à pecha de haitianismo e, ao mesmo tempo, ele próprio devolvia tal acusação para seus adversários políticos, acusando-os de “fabricar” levantes de escravos. Ainda que não defendesse uma insurreição sangrenta comandada por cativos para Proclamação da República, como afirmavam seus detratores, nem pretendesse eliminar a população branca da qual fazia parte, Cipriano pautava-se pela adesão a um determinado modelo haitiano aqui estudado – posição que era, aliás, compartilhada por outros homens livres e

considerados brancos no Brasil escravista. Tal modelo, para Cipriano Barata, passava pela defesa das soberanias nacional e popular, pelo protagonismo da população em armas (incluindo mulatos livres e negros libertos), pela ruptura com as estruturas políticas herdadas da metrópole, pela luta contra o preconceito racial, pela ampliação da cidadania a setores oprimidos da população livre e pela condenação ao trabalho escravo. O conceito de “povo” em Cipriano Barata apontava para um recorte social e pluriétnico, englobando as populações livres pobres, artesãos, profissionais liberais, numa linha antiaristocrata que se contradizia com o estabelecimento de um império monárquico e escravista. “Um carpina e pedreiro que edificam casas são mais úteis e necessários do que um Conde”, afirmava o líder político e redator baiano. Barata também demandava o direito de cidadania para mulatos, cabras, crioulos, índios, mamelucos e mestiços e, até, para “toda gente de cor no Brasil”288. Fechado o já longo “parêntese” sobre Cipriano Barata, retoma-se o fio da meada em relação à suposta Sociedade Gregoriana no Rio de Janeiro. Após as acusações de Joaquim José da Silva, Meirelles tomou a providência de enviar cartas às três pessoas citadas na denúncia, pedindo que se pronunciassem publicamente. Perguntava aos três se o conheciam, se já haviam se reunido com ele e se faziam, juntos, parte de alguma associação secreta. Cipriano Barata foi o único a responder: preso pelos motivos citados (“malvado haitianista”) na Fortaleza de Villegaignon, situada numa ilha na baía da Guanabara, remete carta datada de 16 de junho 1831, na qual se diz “pasmado” com o pedido. Afirma então com toda polidez que não conhece Meirelles, nem é seu amigo, nunca conversou com ele, e ignora qualquer tipo de sociedade secreta. A resposta de Francisco Sabino às questões formuladas por Meirelles ainda não viera da Bahia e por isso não consta do impresso (o folheto

Exposição da Intriga feita pelo cirurgião formado... fora redigido em 23 de julho). A questão, candente, parecia se espalhar com a rapidez de um rastilho de pólvora, ganhando asas na reverberação e levando o doutor Meirelles a se defender por todos os lados. Tanto que ele publica carta na Aurora Fluminense, então o jornal mais influente e redigido por Evaristo da Veiga, refutando a seguinte ramificação dos rumores: “[...] que eu mandei imprimir quatro mil exemplares da História do Haiti para se distribuir pelos Africanos (não sei se mesmo em Francez, ou a tradução, que valerá o 289

mesmo)” . Note-se a ironia defensiva de Meirelles, indicando o analfabetismo dos escravos e, implicitamente, a decorrente impossibilidade de compreensão de tais episódios históricos pelos cativos, segundo ele. Sabe-se hoje em dia que o analfabetismo não era generalizado entre os trabalhadores escravizados, sobretudo no meio urbano. A história recente do Haiti era percebida pelos acusadores, mais uma vez, como elemento potencialmente ameaçador da ordem estabelecida – aspecto que Meirelles procura desconstruir. Ainda que a afirmação fosse provavelmente infundada, seria uma alusão à já citada obra com este título, de Civique de Gastine, editada por Pierre Plancher, livreiro na capital brasileira? No começo dos anos 1830 já existiam publicadas várias histórias da Revolução Haitiana em francês e inglês. O abade Grégoire enviava seus livros ao Haiti e ao Brasil (e aos quatro cantos do mundo). O religioso francês remetera algumas de suas obras ao próprio Toussaint Louverture; Christophe mandou comprar 500 exemplares do livro De La Li érature des Nègres... para serem distribuídos no país. O mesmo abade já enviara seus livros ao Brasil através da vinda da chamada Missão Artística Francesa290. A acusação contra Meirelles pode ter sido

inspirada por tais intercâmbios entre a França e a ex-colônia, provavelmente conhecidos pelos redatores brasileiros. Ao abade Grégoire, Meirelles escreveu carta, datada de 8 de junho 1831, perguntando se lhe conhecia ou havia visto, frequentado, se participava de alguma associação secreta da qual o abade seria chefe ou membro. Vale transcrever aqui trecho da missiva enviada pelo médico mineiro: Sr. Abade Grégoire, Como tenho o direito de suppor em vós todas as qualidades de homem de bem, peço-vos que me acuseis recepção desta carta por meio dos jornaes de Paris, fazendo inscril-a, assim como vossa resposta [...].

Relaciona em seguida as questões. E assina com fórmula de polidez: “Vosso mui humilde e obediente servo, Soares de Meirelles, Doutor em Medicina, e em Cirurgia pela Faculdade de Medicina de Paris”. Entretanto, o abade Grégoire nunca receberia a carta, pois falecera em Paris a 27 de maio de 1831. A viagem naval entre Rio de Janeiro e Paris naquela época durava de 45 a 60 dias. Meirelles explica que já havia remetido a carta, tendo-a mostrado antes a várias pessoas, quando leu no Diário do Governo “a noticia da morte daquelle respeitável ancião, antigo patriarcha da liberdade. Eu quando lhe escrevi, não podia prever que estaria morto; porém a confiança, com que escrevi, dá bem a entender que não temia a resposta.” E realmente o Diário do Governo de 13 de julho de 1831, jornal oficial das Regências, anunciava a morte do: [...] célebre Abade Gregoire, que teve huma enfermidade mui dolorosa, e cujo fallecimento deo causa a huma polemica entre o Arcebispo de Paris, o Ministro da Instrução Publica, e mesmo o Presidente do Conselho dos Ministros, acerca do enterramento.

O periódico não fazia os elogios fúnebres habituais na retórica da época. Limitava-se a um ambivalente “célebre”. É de se notar, em contraste, no

caso de Meirelles, a maneira como ele se refere ao abade Grégoire, chamando-o de homem de bem, respeitável ancião e patriarca da liberdade – o que não era linguagem corrente no Brasil daquela época quanto ao personagem em questão, um abolicionista explícito. Tratava-se, como já foi dito, de um dos mais conhecidos integrantes da Revolução Francesa, que presidia a Assembleia Nacional no dia 14 de julho de 1789, que não escondia seu apoio e admiração pela Revolução do Haiti e pelo governo de ex-escravos, e que combatia de maneira aberta a escravidão e o preconceito racial. Entretanto, Meirelles não esclarece se conheceu ou não pessoalmente o abade Grégoire. Tal encontro não era impossível, e até mesmo provável, pois este cirurgião brasileiro formara-se em Medicina pela Universidade de Paris, onde esteve em pelo menos duas ocasiões, 1817 e 1825 (mesmo período em que Grégoire encontrava-se na capital francesa) e fundara, em 1829, a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, que se transformaria na Academia Imperial de Medicina. O abade era receptivo às visitas de pessoas oriundas das Américas, inclusive haitianos, para ficar a par da situação dos países sobre os quais escrevia sem nunca ter viajado até eles. Sua residência era um local de passagem e encontro para exilados e viajantes das Américas. De qualquer maneira, como foi visto, o médico brasileiro compartilhava o ponto de vista do abade Grégoire sobre o preconceito racial – mas daí a um complô do tipo haitiano há uma distância considerável. Mas, sem dúvida, Joaquim Meirelles seguiu o exemplo do velho revolucionário francês em outro domínio, o da propagação da sociabilidade científica e da filantropia. Retoma-se, pois, a dimensão polissêmica de sociedade, no sentido de associação. Além de criador destacado das agremiações já citadas, Meirelles pertencia também à Academia Philomatica, à Academia de Ciências de Nápoles e à Sociedade Defensora

da Liberdade e Independência Nacional e era maçom. Com a maioridade de d. Pedro II, envolveu-se na rebelião dos liberais de Minas Gerais em 1842, foi preso e deportado. Em seguida, Meirelles parece ter transformado sua atuação na cena política e se tornado um intelectual imperial: foi nomeado médico da Imperial Câmara e membro do Conselho de sua Majestade O Imperador, além de receber condecorações como as Ordens da Rosa, do Cruzeiro e de São Bento de Aviz. Ele seria um dos pioneiros no tratamento das doenças mentais no Brasil no Hospital D. Pedro II. Seu filho, Soares de Meirelles, seguiu também a carreira médica e um de seus netos, também chamado Soares de Meirelles, seria o discreto patrono do poeta Cruz e Sousa, já no início do século XX. De algum modo, Joaquim Cândido Soares de Meirelles conseguira, com eficácia e obstinação, romper o cerco que se erguera contra ele, por ser mulato e antirracista. Chegou, inclusive, a apresentar um brasão de família, depois de ter recebido as comendas da Ordem de Cristo, do Cruzeiro e de Avis – atitude, aliás, semelhante à de Henri Christophe quando se tornou rei no Haiti e criou uma nobreza titulada local. Quanto à filantropia, é o cunhado de Meirelles, Jacintho Reis, quem esclarece a iniciativa que deu origem ao rumor da Sociedade Gregoriana em 1831291. O Dr. Meirelles, diante da quantidade de crianças e jovens negros e pardos que, por falta de opção, acabavam servindo de instrumento para violências de grupos políticos, mobilizou-se para criar uma escola gratuita para este setor da população, procurando lideranças políticas e comerciais para este fim. Ou seja, uma associação de caráter filantrópico que promovesse a educação dos menores negros e pardos na capital do Império. Esta era a verdadeira Sociedade Gregoriana, afirmava Jacintho Reis, outro homem pardo e cirurgião que, no Brasil do início dos anos 1830, não poupava elogios à figura do abade Grégoire, inclusive destacando suas

iniciativas em favor dos negros e mulatos livres no início da Revolução Francesa292.

O médico Jacintho Reis, futuro presidente da Academia Imperial de Medicina, publicou folheto elogiando o abade Grégoire em 1831

É sugestivo assinalar a epígrafe que Meirelles usou no folheto ao se defender da acusação de haitianismo quando, de maneira lúcida, escolheu uma frase das Máximas de Carlet: “Il faut bien mépriser la calomnie, mais 293

il ne faut pas moins rechercher les causes qui ont pu y donner lieu” . Entre junho e outubro do mesmo ano de 1831, diversos jornais do liberalismo Moderado (como Aurora Fluminense e Americano, que naquele momento deixavam de fazer oposição e passavam à situação oficial) alimentaram uma polêmica associando à Irmandade Nossa Senhora da Lampadosa, composta por homens negros e pardos no Rio de Janeiro, à

Revolução do Haiti, colocando, na mesma acusação, os jornais do liberalismo Exaltado, sobretudo o Nova Luz Brasileira, de Ezequiel Correa dos Santos. A história da Revolução do Haiti esteve em voga de maneira insistente, com réplicas, tréplicas e acusações recíprocas294. Usado contra liberais Exaltados que eram críticos da escravidão, como os citados Ezequiel, Cipriano Barata e Borges da Fonseca, acusados indistintamente de “haitianistas”, o vocábulo assinalava a tendência de abolição imediata da escravidão de modo violento, acompanhada da Proclamação da República e do extermínio da população branca (ou qualificada como tal). Eram, nestes casos, acusações infundadas que visavam acuar e intimidar personagens da cena pública que, efetivamente, se posicionavam pela extinção gradual da escravidão e a favor da forma de governo republicana, mas tratavam tais assuntos de modo cauteloso e não pretendiam, naquele momento, uma ação direta e imediata para alterar a forma de governo, nem buscavam alianças com os escravos, pelo menos na capital do Império295. Alguns meses depois do episódio do rumor de haitianismo (que ocorrera no início do segundo semestre de 1831), Joaquim Cândido Soares Meirelles lançaria o jornal Sentinella da Liberdade no Rio de Janeiro que, mesmo sem sua assinatura, foi identificado por outros protagonistas como de sua autoria, ou responsabilidade. Também seu conteúdo é bem semelhante na linguagem e com as preocupações, posições e vocabulário de Meirelles publicados em outros momentos. Era um periódico que, pelo título e pelo ideário, vinculou-se ao circuito político dos liberais Exaltados daquele contexto, cuja expressão pública principal era Cipriano Barata, criador do primeiro jornal com título 296

Sentinella da Liberdade no Brasil

. Cipriano Barata encontrava-se ainda

preso e um dos motivos iniciais do periódico lançado por Meirelles era ser

“uma nova Sentinella”. Se ambos os cirurgiões – o baiano e o mineiro – não se conheciam meses antes, agora com certeza tinham contato. Tanto que a Sentinella carioca proferiu veementes defesas de Barata e não menos enfáticos protestos por sua detenção. A questão racial foi um dos temas tratados no jornal Sentinella da Liberdade no Rio de Janeiro e vê-se que Meirelles levou adiante a discussão surgida de maneira agressiva e mal resolvida no rumoroso episódio do chamado haitianismo gregoriano. Por isso, este periódico retoma, justamente, os dois temas levantados na ocasião como objetivos da suposta sociedade gregoriana: haitianismo e miscigenação. O jornal de Meirelles fez a defesa da ação política dos mulatos no episódio da abdicação de d. Pedro I e criticou outro periódico, Aurora Fluminense, de Evaristo da Veiga a respeito da questão racial: Assim, a força militar, que entrou na revolução, a excepção dos officiaes, era composta de mulatos, a maior parte dos paizanos igualmente era de mulatos; logo a força physica, que fez a revolução de 7 de Abril foi essa classe, que existe condenada ao despreso, e que a Aurora ignora, e pede provas de tão negra asserção.297

Note-se que, durante as Regências, ter participado dos episódios do 7 de abril era motivo de orgulho e honra patriótica, além de possibilitar posição estratégica e destacada na nova situação política, inclusive para a obtenção de cargos públicos, pois tais protagonistas eram vistos como defensores da 298

liberdade e consolidadores da Independência nacional . Meirelles, portanto, advogava tal prerrogativa para os mulatos que lutaram de armas na mão. E passa a citar, como exemplo positivo de homens mulatos naquela sociedade, membros de irmandades religiosas, como as Ordens Terceiras de Nossa Senhora da Conceição e de Nossa Senhora da Boa Morte que, tradicionalmente, não eram identificadas como entidades de negros ou pardos. Isso bastou para que os integrantes de tais irmandades resolvessem

processá-lo. Mais um mal-entendido envolvendo sua figura! O redator passa então a assumir-se como mulato e reforça a defesa desta condição: Porem para acalmar essa cólera, em que ficarão, he preciso, que esses Srs se convenção, primeiramente, (como já dissemos) que somos – Mulato, – e que isso não he cousa indigna, nem infame; e em segundo lugar, que saibão, que a palavra – Mulato – Mula us, derivada de mulus tem sido empregada pelos naturalistas para designar os indivíduos da espécie humana, gerados de huma raça branca ou europea, com outra dos pretos. A palavra – Pardo – com que não se escandalisão, quando se emprega tratando dos homens de côr, não tem nenhum sentido e não designa cousa alguma com precisão: nós ouvimos todos os dias dizer-se sobre casaca parda, calças pardas, chapeo pardo, etc., e ninguém diz sobre casaca mulata, chapeo mulato, etc. Se se toma, que he injuria dizer-se, que F. he mulato, porque não será injuria dizer-se que F. he branco?299

Meirelles fazia, pois, a defesa da “mistura das raças”, um dos pontos da acusação durante o rumor de haitianismo e da Sociedade Gregoriana meses antes. Assinale-se que a defesa dos “casamentos inter-raciais” foi uma das bandeiras do abade Grégoire nos anos 1820300. Este afirmava que a “mistura das raças” geraria seres humanos aperfeiçoados, contrapondo-se, assim, à tendência predominante de segregação nos meios políticos e intelectuais na Europa e, também, no Brasil. Havia, pois, este ponto de contato entre as posições de Meirelles e o conhecido revolucionário francês. Esta seria outra vertente da acusação de haitianismo, embora, no Haiti, hostilidades e conflitos violentos entre negros, brancos e mulatos tenham sido marca do processo revolucionário, não a “mistura”, embora esta também ocorresse. Destaca-se, ainda, na citação do jornal acima, a distinção entre os rótulos de pardo e mulato, quando o redator se posiciona em defesa desta última denominação e contra a outra, pardo, que era, aliás, juridicamente reconhecida e estabelecida na sociedade, desde os tempos coloniais. O protagonismo de mulatos livres e armados, realçados por Meirelles para o 7 de abril de 1831 brasileiro, fora um dos componentes básicos da

Revolução do Haiti. Em seguida, no mesmo número do jornal, Meirelles denuncia e condena com veemência maus tratos e torturas de uma senhora contra sua escrava na Rua de São Pedro – cita várias vezes o abade De Pradt (para questões políticas, sem referência à escravidão) e volta a fazer o elogio de Cipriano Barata, ainda preso. Mais instigante, porém, é o comentário que insere em seu jornal, respondendo a uma correspondência, sobre a relação entre violência e virtudes republicanas: Ainda que VM não queira, Washington será tido pelos presentes e vindouros, como o mais austero republicano; e com tudo para conseguir a Independência e liberdade de sua terra, fuzilou e enforcou muita gente, e a história não fala dele como de hum perverso.301

Em tal comentário fica implícita uma questão. Os Estados Unidos, como se sabe, foram o primeiro país da América a proclamar a Independência – e era frequentemente aplaudido no Brasil como exemplo civilizado de soberania e progresso nacional. O segundo país a proclamar a Independência foi o Haiti – ambos com modelo republicano, ao fim do processo, apesar do Haiti ter passado por experiências monárquicas e abolido logo no começo a escravidão. Meirelles não estaria propondo, ainda que indiretamente (a subliminar pedagogia política da imprensa), uma reflexão sobre a violência, normalmente associada ao exemplo haitiano e à ideia de revolução? Ou seja: o que se imputava ao Haiti, como barbárie, havia também ocorrido no civilizado EUA. Sua linha argumentativa era clara: se os EUA fizeram uma guerra com muitas mortes para se tornarem livres e independentes, seu líder, George Washington, foi, portanto, responsável por estas mortes, e se constituíram numa república virtuosa, porque não...? Mas o argumento ficou incompleto, a referência ao Haiti e Toussaint Louverture apenas implícita.

Aliás, o abade De Pradt já chamara Toussaint Louverture de “Washington das colônias” em seu livro matriz sobre as três idades das colônias e esta pode ter sido uma fonte de inspiração para o redator do periódico carioca302. A questão do Haiti e de suas repercussões no Brasil seria colocada de maneira mais direta pelo redator da Sentinella da Liberdade do Rio de Janeiro nos seguintes termos: O Sr Jose Bonifácio de Andrada e Silva, o mais humano e melhor de coração de todos os irmãos fez hum discurso para ser recitado na Assembléa Constituinte, discurso, que corre impresso, no qual depois de haver ardente, e philantropicamente sustentando a causa dos pretos escravos [...] O Sr João Baptista de Queirós, branco, dize na Nova Luz e no Jurujuba, que os homens de côr erão perseguidos, mettidos em masmorras, etc. Não houve alarma na Cidade; e não houve circulares aos Juizes de Paz para embaraçar a circulação do haytianismo. [...] O Sr. Feijó fez hum Código em beneficio dos escravos, faz nelle brilhar os santos princípios da Religião, de Moral, e de humanidade, não he proclamado haityanno, não he tido por republicano do Haity! [...] Hum mulato advoga a causa de outro mulato, não ousa mesmo fallar em seus pais, se os teve pretos, e o que se faz? Insurreisão, às armas! Os negros se movem, às armas! Contra os haityanos!... Ah! Perfídia! Ah! Perversidade!303

Meirelles procura desarticular, desse modo, a verdadeira satanização que se fazia em torno da Revolução do Haiti, mas sem relacioná-la como movimento exclusivo de escravos, mas sim envolvendo os mulatos livres. Cita, como exemplos de postura crítica diante da escravidão, numa perspectiva gradualista, os projetos desenvolvidos por José Bonifácio (chamado de irmão, alusão ao pertencimento maçônico de ambos?) para a Assembleia Constituinte de 1823, a postura crítica de jornais cariocas como Nova Luz Brazileira e Jurujuba dos Farroupilhas (identificados aos liberais Exaltados) quanto ao preconceito racial e mesmo a posição emancipacionista, isto é, de eliminação gradativa do trabalho escravo

através de reformas jurídicas e institucionais, apontada pelo padre Diogo Feijó, quando ministro da Justiça. Meirelles passa, então, a tocar no cerne da acusação de haitianismo: o que se tentava barrar era o reconhecimento dos mulatos, e negros, como cidadãos, como agentes políticos. O haitianismo, portanto, era exemplo negativo, ou seja, uma fórmula encontrada para desqualificar e encurralar politicamente negros e mulatos que buscavam atuar na cena pública. Relacionava-se a Independência e a Abolição realizadas por iniciativa de escravos e libertos com um alto grau de violência, daí o haitianismo. A estratégia de Meirelles era a de dissociar a violência da abolição da escravidão e dos preconceitos. Em nenhum momento Joaquim Meirelles reproduz as denúncias e as imagens negativas da Revolução Haitiana, para condenar os “horrores”, repudiar os escravos como agentes históricos, etc., pois justamente ele buscava afirmar visão positiva sobre tal processo. Entretanto, os conflitos e confrontos envolvendo as repercussões da Revolução do Haiti e a figura de Joaquim Cândido Soares Meirelles não pararam por aí. Um dos ataques partiria justamente do jornal O Sete de Abril, redigido ou inspirado diretamente por outro mineiro, Bernardo Pereira de Vasconcelos que era, aliás, um dos mais notórios defensores do tráfico e da escravidão, realizando tal defesa publicamente, no Parlamento, como também por suas ações políticas. É neste jornal que vem a público, de maneira irônica, a ligação do doutor Meirelles com o jornal Sentinella da Liberdade no Rio de Janeiro: A Sentinela não é do Snr. Meireles: este Snr. apenas dá as idéias para esse jornal. Ou antes, a Sentinela nos seus diferentes números, he a paráfrase do discurso que o Snr Meireles recitou naquele Jury, em que se defendeo guapamente das acusaçõens de haytianismo. Todos dali sahirão convencidos da verdade dos factos; e o credito do Snr Meireles ficou desde então estabelecido entre os homens que pertendem redusir os partidos á uma só cor. A Sentinela não he do Snr Meireles [...].304

Vemos, deste modo, que ocorreu um processo judicial – provavelmente em decorrência da polêmica em torno da suposta sociedade gregoriana e seus efeitos – no qual Meirelles defendeu-se e foi absolvido. Entretanto, o redator d’O Sete de Abril se mostra descrente quanto à inocência do acusado, o que é uma forma de incriminá-lo novamente. Mas a contundência e ironia aumentam de tom, no mesmo jornal, que publica uma nota intitulada de “Anúncio”, com o seguinte teor: Um Mineiro que se retira para a sua Província offerece-se ao Sr Dr Meirelles para conduzir, e espalhar n`aquella Província a obra da revolução do Hayti. O mesmo Sr. Dr. Meirelles, quando quiser publicar as suas reflexõens sobre a correcção Gregoriana, terá a bondade de annuncial-o, por que há quem queira desviar-se de algum engano, illustrando-o da delicadesa da intenção. O mesmo Mineiro condusirá as Sentinellas para se não estraviarem no Correio.305

Retornam, em palavra impressa, dois anos depois de terem circulado pelas ruas do Rio de Janeiro, os rumores sobre a história da Revolução do Haiti e a suposta conspiração inspirada no ideário do abade Grégoire. Não se deve descartar que tal tentativa de desmoralização poderia estar ligada a questões eleitorais de Minas Gerais onde ambos – Vasconcelos e Meirelles – tinham bases políticas. Mas aquele era um contexto em que, convém lembrar, o tráfico de escravos fora interditado oficialmente, mas a grande pressão escravista acabou por anular esta lei, tornando-a letra morta, apesar dos embates políticos então travados. Pode-se entender, assim, estes rumores, orais e impressos, como parte integrante da reação pró-escravidão, num momento em que, esta de alguma maneira, era discutida a tentativa de eliminação do tráfico transatlântico com a África. Tamanho foi o impacto dos rumores em torno da existência de uma Sociedade Gregoriana no capital do Império que 17 anos após o início destas vozes públicas, isto é, em 1848, o presidente da província fluminense, diante da insistência de notícias sobre uma possível insurreição de cativos, afirmou textualmente que:

[...] uma tão criminosa combinação, caso exista, pode ser filha ou de inspirações próprias, ou de sugestões tramadas por alguma Sociedade Gregoriana ou agentes do princípio abolicionista da escravidão, [ou] outra qualquer influência estrangeira.306

Em 1840, o folheto acusatório do cirurgião Joaquim José Silva contra 307

Meirelles fora reeditado . Deste modo, cristalizara-se no vocabulário e na memória coletiva daqueles tempos o nome do abade Grégoire e o renome da Revolução Haitiana. Desfiar os fios desta trama, pois, era tarefa complexa e que envolvia questões e interesses mais amplos, enraizados, que passavam pela memória histórica em torno da Revolução do Haiti, cuja recepção e reelaboração era um campo de embates sensível no Brasil, tornando-se um exemplo e modelo político palpável, com ingerência efetiva, não fruto de manipulações e invenções descoladas das relações sociais estabelecidas. Os rumores têm chão histórico: são formulados, propagados e recebidos pela ação humana. Desmanchar as relações escravistas e suas permanências nas “mentalidades de longa duração” (para retomar a expressão do historiador francês Fernand Braudel) era um desafio ainda mais complexo. Vale assinalar que ao longo de toda a polêmica, e mesmo pressionado e colocando-se na defensiva, Joaquim Cândido Meirelles (e seu cunhado Jacintho Torres), além de sempre elogiar o abade Grégoire e suas ideias, em nenhuma ocasião em seus vários escritos alardeou os “horrores” da Revolução do Haiti, nem execrou tal exemplo, embora tenha predominantemente se calado sobre ele, ou feito alusões. Percebe-se, assim, que o modelo político haitiano, mesmo visto como referência positiva, ou não negativa, era polissêmico, com metamorfoses causadas pela posição social, visão de mundo e pelos diferentes meios utilizados em sua propagação, bem como em sintonia aos contextos mais, ou menos, propícios a que tais manifestações se tornassem públicas. O protagonismo político dos mulatos em armas numa sociedade escravista era

um dos pontos de menção à experiência do Haiti revolucionário, compondo ingredientes decisivos nos debates e embates em torno dos rumos da sociedade brasileira. A suspeita da existência de uma secreta (e bastante falada) Sociedade Gregoriana no Rio de Janeiro e na Bahia no raiar dos anos 1830 tinha tom incriminador e acusatório, seja no sentido estrito (uma associação, um agrupamento com este nome ou inspiração), seja mais amplamente como a perspectiva de uma sociedade nacional que viria a ser baseada em determinados postulados antirracistas associados ao abade francês, embora os acusados em questão, ao mesmo tempo em que negavam a existência de tal agremiação, não repudiavam os ideais do abade Grégoire. Se invertemos o sentido inicial de “sociedade gregoriana” para um significado positivo, prospectivo e utópico, de certo modo a sociedade brasileira tornou-se, parcialmente, uma “sociedade gregoriana”, na medida em que a miscigenação ou o “casamento entre raças” não é legalmente criminalizado e ocorre em grandes proporções, a desigualdade racial é explicitamente combatida e o trabalho escravo foi formalmente abolido. Mas ainda assim a permanência e reinvenção do racismo e da desigualdade social fazem com que o Brasil não tenha se transformado, no sentido puro do termo, numa sociedade gregoriana ainda no século XXI. Aliás, a própria França não está livre de tais contradições. Os personagens brasileiros em questão, homens letrados nas quatro primeiras décadas do século XIX, não eram haitianistas no sentido acusatório da época, de que estariam favoráveis à imediata Proclamação da República simultânea à Abolição e com massacre de brancos. Mas podemos considerá-los haitianistas na perspectiva de que a Revolução do Haiti, multifacetada, era percebida também como exemplo antirracista e de afirmação das soberanias nacional e popular, apontando para o fim do trabalho escravo. Este foi um tipo de repercussão frequente, constituindo,

assim, no Brasil recém-independente, um modelo político gerado indiretamente pela ação dos trabalhadores escravizados, libertos e livres na ilha caribenha.

NOTAS 164. A grafia do nome variava na documentação da época: Mundurucu, Mundrucu, Munduruku, Mundruku, Mandacuru, etc. Optei por unificar a grafia em Mundurucu. Sem contar quando ele era chamado apenas pelos prenomes: Emiliano, Benício, Felipe Benício, Emiliano Benício, etc. 165. Costa, F. A. Pereira da. Anais Pernambucanos, Vol. IX (1824–1833), p. 41-43; 59-61. O autor escreveu em princípio do século XX (faleceu em 1923), sem citar a fonte de onde copiou esta quadra: afirma que ela fora distribuída em papel impresso que, entretanto, não se guardou até nossos dias, nem ele pode consultá-lo diretamente no original. Para a narrativa deste episódio baseio-me neste autor que escreveu o até hoje principal e mais antigo relato conhecido, a partir do qual se baseiam os demais. Utilizo também Ulysses Brandão (1924), Barbosa Lima Sobrinho (1979) e Glacyra L. Leite (1989) para a Confederação do Equador. 166. Costa, op. cit., p. 60. 167. Bénot, Yves. Grégoire contre Christophe: un manuscrit inédit, 2000. 168. Ver, a este respeito, os trabalhos dos historiadores Dênis Bernardes, Marcus. J. Carvalho e Flávio G. Cabral. 169. Mott, 1982, p. 7-8. 170. Manifiesto que hace a la Nación Colombiana Emiliano Felipe Beinicio Mundrucu, Mayor Comandante del Segundo Batallón de Cazadores de la División Republicana de Pernambuco, dirigido al respetable publico y Ejercito de la Republica de Colombia. Bajo los auspicios del Sr. Arriaga, residente en Puertocabello,

Caracas: Imprenta de Tomas Antero, 1826. Códice LR-0227 M-FICHA, Div. de Libros Raros, Biblioteca Nacional de Venezuela. Agradeço à professora Carole Leal Curiel e ao Lic. Mário Di Giácomo a gentileza pela cópia digital e remessa deste documento. As citações foram aqui traduzidas livremente para o português. Este documento acha-se transcrito como anexo em Chacon, V. (1983), cf. nota seguinte. 171. Saldanha, José Natividade. Da confederação do Equador à Grã-Colômbia. Escritos Políticos e Manifesto de Mundrucu. Análise e tradução de Vamireh Chacon. Brasília: Senado Federal, 1983. O manifesto (cf. nota anterior) é transcrito e traduzido nas p. 194-199 e os comentários do organizador são sucintos e descritivos. 172. Blake, A. S. Diccionario Bibliográfico Brazileiro; Silva, Innocencio; Aranha, B. Diccionario Bibliographico Portuguez; Costa, F. A. Pereira da. Dicionário biográfico de pernambucanos célebres; Macedo, Anno Biographico Brasileiro; Sisson, S. A. Galeria dos brasileiros illustres. 173. IBGE. Estatísticas Históricas…, Tabela 1.4, 1987. 174. Ganharam notoriedade exótica pelo hábito de mumificarem cabeças de inimigos. Ainda hoje este grupo étnico mantém uma postura de combatividade em defesa de suas terras e vidas. 175. Quanto à adoção de nomes patrióticos no Brasil em 1821 e 1822, ver Morel (2009). Para o período revolucionário francês: Billy, P-H. Des prénons révolutionnaires en France. 176. Sobre a escolha da designação de Haiti, ver o consistente estudo de Geggus, D. The naming of Haiti, 1997. 177. Manifiesto..., op. cit., p. 1.

178. D. Bernardes (2006) cita 21 exemplos de punidos em 1817 considerados negros e pardos, inclusive mulheres. 179. Le Télégraphe, Port-au-Prince, n. XIX, ano XIV, p. 1, 11 maio 1817. 180. Idem, n. XXVII, ano XIV, p. 1, 6 jul. 1817. “[...] la Révolution a éclaté à Fernambouc {sic} [...]”. 181. Idem, n. L, ano XIV, p. 1, 14 dez. 1817. 182. Para a correlação do Brasil na América no processo de Independência, ver Pimenta, J. P. G. A Independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808–1822), 2015. 183. Ver neste livro, A Revolução do Haiti nos primeiros periódicos brasileiros. 184. “Itinerário que fez Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, saindo de Pernambuco a 16 de setembro de 1824, para a Província do Ceará Grande”, em Obras Políticas e Litterarias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, p. 114, 132 e 85. 185. Folheto “O Caçador atirando À Arara Pernambucana em que se transformou o Rei dos Ratos José Fernandes Gama”, publicado em torno de 1823 e transcrito nas Obras Políticas e Litterarias, de Frei Caneca, p. 283. 186. Itinerário que fez Frei Joaquim do Amor Divino Caneca..., op. cit., p. 134. 187. Cf. Biographia de José da Natividade Saldanha pelo Comendador Antônio Joaquim de Mello, p. 217, 222, 223 e 226 apud Chacon, op. cit., p. 40-42. 188. Manifiesto..., op. cit., p. 3 e 4. 189. Montesquieu, autor cujas ideias eram peças chaves no universo cultural das elites letradas, designava três tipos de escravidão: política, civil e doméstica, Do Espírito das Leis. Vol. I, livros XV a XVII. 190. Santos, Luis C. V. G. O Império e as Repúblicas do Pacífico. As relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia (1822–1889), 2002. 191. Manifiesto..., op. cit, p. 4. 192. Cf. Biographia de José da Natividade..., op. cit.. 193. Manifiesto..., op. cit., p. 4. 194. Grégoire, 1826, p. 85. 195. Ardila, D. Gutiérrez. Colombia y Haití: historia de un desencontro (1819–1831), 2011. 196. Cf. Leite, G. L. Pernambuco 1824: a Confederação do Equador, p. 110. O decreto vem transcrito em Brandão, Ulysses C. S. A Confederação do Equador, p. 211. 197. Manifiesto..., op. cit., p. 4. 198. Chacon, Abreu e Lima General de Bolívar, p. 57. 199. Manoel Joaquim de Menezes, manuscrito, Historia medica Brasileira e da revolução de Pernambuco em 1824 que foi causa da dissolução da Constituinte. Agradeço a indicação e transcrição desta fonte à historiadora Silvia Carla Pereira Fonseca. 200. Cf. Chacon, op. cit., p. 123. 201. Cf. consta do título do Manifiesto..., p. 1. 202. Cf. por exemplo o livro Cristophe et les ultras, ou les Deux n’en font qu’un; matériaux pour l’histoire de SaintDomingue (editado por Pierre Plancher em Paris, 1820), que equipara os ultramonarquistas contrarrevolucionários a Henri Christophe e aos escravos revolucionários. 203. Ver: Helg, Aline. A Fragmented Majoraty: Free ‘Off all colors’, indians and slaves in Caribbean Colombia during the Haitian Revolution, p. 157-175; e Lasso, Marixa. Haiti as an Image of Popular Republicanism in Caribbean Colombia: Cartagena Province (1811–1828), p. 176-192. In: Geggus,

David P. (ed.). The Impact of the Haitian Revolution in the Atlantic World. University of Sout Carolina Press, 2002. Agradeço estas referências ao historiador Flávio Gomes. 204. Cornevin, R. Haiti, 1993, p. 47. 205. Chacon, op. cit., p. 123. 206. O Cruzeiro: Jornal Político, Literário e Mercantil. Recife: Typographia do Cruzeiro, 1829, n. 108, 22 set. 1829. 207. Diário de Pernambuco, edições de 20, 23 e 27 de fevereiro de 1837. V. “Resposta do Major Emílio Felipe Benicio Mundurucu a um artigo no Diário de Pernambuco (Recife) de 20/02/1837”, manuscrito no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, citado por Carvalho, Marcus J. M. de. Liberdade, rotinas e rupturas do escravismo, p. 197, nota 7. 208. Diário de Pernambuco, Recife, 23 mar. 1837. 209. Ibidem. 210. Tema já tratado em antigos estudos, como os de Freyre, Gilberto. O Escravo nos Anúncios de Jornal do Tempo do Império, 1934; Renault, Delso. O Rio Antigo nos Anúncios de Jornais (1984) [1969]. 211. Episódio estudado por Carvalho, Marcus J. M. de. “Que crime é ser cismático?” As transgressões de um pastor negro no Recife patriarcal, 1846. 1999. 212. O Recreador Mineiro. Periódico Litterario. Ouro Preto: Typographia Imperial de B. X. Pinto de Sousa, t. 1º, 1º jan. 1845, p. 151. 213. Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), Caixa 2, Brasil-Diversos (1799–1824) apud Mott, 1988, p. 5. 214. Correio Braziliense, 1815, p. 128. 215. Termos offerecidos pelos Comissários de S. M. C. Luis XVIII ao General Petion apud Correio Braziliense ou Armazém Literario, Londres, L. Thompson, v. XVIII, jan./jun. 1817, p. 146-148 (edição facsimilar, org. Alberto Dines, Brasília/São Paulo: Correio Braziliense/Imprensa Oficial, 2002). 216. Sobre a posição de Hipólito da Costa diante da escravidão, ver Morel, M. Entre estrela e satélite. In: Dines, Alberto (org.). Hipólito José da Costa e o Correio Braziliense, v. XXX, t. 1, Estudos. São Paulo/Brasília: Correio Braziliense/Imprensa Oficial do Estado de SP, 2002, p. 296-305. 217. República de Hayti. Decreto reduzindo a 5 por cento o direito de importação sobre as mercadorias de manufactura Ingleza apud Correio Braziliense, v. XIV, p. 43, 1815. 218. Freitas, S. M. de. Nas entrelinhas da Revolução: o dito e o não dito nas páginas do Correio Braziliense e na Gazeta do Rio de Janeiro sobre a Revolução Haitiana (1808–1817). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, UERJ. 219. Edições de 17/08/1814 e 22/04/1815. 220. Cf. Anônimo. Memórias Históricas da revolução de Pernambuco. D. H., v. CVII, p. 230-265, citado em Silva, Luiz Geraldo. Aspirações barrocas e radicalismo ilustrado. Raça e nação em Pernambuco no tempo da Independência (1817–1823). In: Jancsó, Jancsó (org.). Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005, p. 915-934. 221. Silva, Antonio Moraes e. Diccionario de Língua Portuguesa, 2 vol., 1922 [1813]. 222. Mémoires du Général Toussaint-Louverture, de Toussaint Louverture, p. 246-250. “Si on n’avait plus besoin de mes services, et qu’on eut voulu me remplacer, n’aurait-on pas dû agir avec moi comme on a agi dans tous le temps à l’égard des généraux blancs français ? [...] Sans doute je dois cette méprise à ma couleur. Mais ma couleur a-t-elle empêché de servir ma patrie avec zèle et fidélité ? La couleur de mon corps nuit-elle à mon honneur et mon courage ? [...] Tout cela a été bien combiné à ma perte, pour m’anéantir et me détruire, parce que je suis noir et ignorant, et je ne dois pas compter au nombre des soldats de la République”.

223. Reverbero Constitucional Fluminense, 2° vol. Rio de Janeiro: Typographia de Silva Porto, n. 20, 8 out. 1822, p. 248-249. 224. Diário das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, Lisboa, 1821–1822, Sessão de 20 jul. 1822, fl. 883-884. Transcrito em: Barata, C. Sentinela da Liberdade e outros escritos (1821–1835). In: Morel, M. (org.). São Paulo: Edusp, 2008, p. 96. 225. Morel, M. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade, Salvador: Academia de Letras da Bahia/Assembleia Legislativa, 2000. Barata, op. cit., 2008 226. Sessão de 13 ago. 1822, trecho transcrito em Barata, op. cit., p. 104. 227. Sessão de 9 abr. 1822. 228. Astréa, Rio de Janeiro: Typographia da Astrea, n. 296, 21 jun. 1828. 229. Sobre Pierre Plancher, ver Morel, As transformações..., 2016, Capítulo 1. 230. O Spectador Brasileiro, Rio de Janeiro: Typographia de Plancher, n. 64, 29 nov. 1824, p. 2 e 3. 231. Ibidem. 232. Para uma lista dos impressores francófonos dos quais Plancher vendia livros e impressos no Brasil, ver Morel. As transformações..., 2016, p. 31-33. 233. Cf. Gómez, A. Le spectre da la Révolution Noire. L’impact de la Révolution Haïtienne dans le monde Atlantique, 1790–1886, 2013, p. 190-191. 234. Jornal do Commercio (RJ), 14 fev. 1828, p. 1 e 2, 13 fev. 1828. Agradeço esta referência ao historiador Carlos Gabriel Guimarães. 235. Benót, 2003. 236. Cf. Capítulo 1 de meu trabalho As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820–1840). 2. ed. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. 237. “[...] à Saint-Domingue, chez tous les marchands de nouveautés”. 238. Benot, 2005, p. 269-270. 239. Le Télégraphe–Gazette Officielle, Port-au-Prince, n. XXV, 16 jun. 1822. 240. Sobre João Soares Lisboa, ver N. W. Sodré (1999), R. Leite (2000) e I. Lustosa (2000). 241. Rosanvallon, P. Le moment Guizot, 1992. 242. “le barbare Christophe ne cesse d’outrager l’humanité en continuant d’exercer ses actes de cruauté sur les blancs, particulièrement sur les Français qui ont le malheur de tomber à son pouvoir”. Anônimo. Extrait d’une lettre à Saint-Domingue…, p. 3. 243. Publicação já citada na Parte III deste trabalho, O crime do padre Leonardo. 244. Sobre o perfil da Révue Encyclopedique e sua posição sobre o Haiti, ver o interessante estudo de Yves Benot (2005, p. 273-283). 245. Edição de maio de 1822, p. 373 apud Benot, 2005, p. 281. 246. Ibidem, p. 282. 247. Sobre o pensamento politico do personagem, ver Hebding, R. Benjamin Constant. Le Libéralisme tourmenté, 2009 248. Cf. “Batinas brasileiras, ventos atlânticos”, Parte III do presente livro. 249. Revue Encyclopédique…, t. 5, 1820, p. 264. 250. Morel, M. O período das Regências, 2003; e Transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820–1840), 2016. 251. O Cruzeiro e Abelha pernambucana, citados a seguir. Agradeço à historiadora Sílvia Carla de Brito Fonseca a indicação destas fontes. 252. Astréa, n. 475, 24 set. 1829. 253. Ibidem.

254. Ibidem, n. 474, 22 set. 1829. 255. O Cruzeiro: Jornal Político, Literário e Mercantil. Pernambuco: Typographia do Cruzeiro, n. 138, 20 out. 1829. 256. Rosanvalon, op. cit. 257. O Cruzeiro: Jornal Político, Literário e Mercantil, n. 108, 22 set. 1829. 258. Abelha Pernambucana, n. 50, 1º out. 1829. 259. O livro que Borges da Fonseca citava era: Des Colonies, et particulièrement de celle de Saint-Domingue, mémoire historique et politique. Par le colonel Malenfant: Paris: Audibert, 1814. Malenfant colaborou também na clássica obra do general Pamphille de la Croix sobre a história da Revolução do Haiti. 260. Abelha Pernambucana, n. 58, 10 nov. 1829. 261. Tutu: do quimbondo, monstro imaginário com que se faz medo às crianças. [Sin.: bichopapão, bitu, boitatá, coca, cuca, imba, papagente e (bras.) manjaléu, mumuca, papafigo, tutu.]; pessoa ou objeto com que se procura atemorizar alguém, cf. Novo Dicionário Aurélio. 262. Abelha Pernambucana, n. 109, 7 maio 1830. 263. A questão do republicanismo no Brasil do período foi analisada por Fonseca, Silvia Carla Pereira de Brito. A ideia de República no Império do Brasil: Rio de Janeiro e Pernambuco (1824–1834). 2004. Tese (Doutorado em História) – IFCS/UFRJ. 264. Mott, 1982, p. 7-8. 265. O primeiro, e um dos poucos autores, a se ocupar mais detidamente deste episódio foi José Vieira Fazenda, notável antiquário, cronista e pesquisador: “Sociedade Gregoriana”, em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, 4ª série. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1927, p. 285-302. 266. Mott, 1982, p. 61. 267. Morel, 2003. 268. Cf. Gomes, Flávio. Histórias de Quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX, 1995, p. 261. 269. Cafre: homem rude, bárbaro, desumano, cf. o Diccionario Moraes e Silva, de 1813. Em termos etnológicos, trata-se de indivíduo de uma população africana banta, afim dos zulus, não muçulmana, do Sudeste da África. 270. Correspondance Politique du Brésil, despacho de 23 ago. 1831, vol. 13. 271. Exposição da Intriga feita pelo cirurgião formado Joaquim José da Silva ao Doutor Joaquim Cândido Soares de Meirelles. Rio de Janeiro: Typographia de Gueffier, 1831. 272. Ibidem. 273. Os envolvidos diretamente nesta trama publicaram três folhetos. Além do escrito por Meirelles (cf. nota anterior), temos: Silva, Joaquim José da. O cirurgião formado Joaquim José da Silva ao Público. Rio de Janeiro: Typ. Gueffier, 1831 (houve uma segunda edição em 1840, cf. Fazenda, Vieira, op. cit, p. 285); Reis, Jacintho. Reflexões às calumnias tecidas pelo cirurgião formado Joaquim José da Silva. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1831 – ambos citados na obra de Vieira Fazenda, que informa ser este último autor cunhado de Meirelles e, também, cirurgião. 274. Nota de Meirelles nesse ponto: “Que sois covarde e vil calumniador”. 275. Morel, 2016 e a Parte III do presente livro. 276. Grinberg, K. O fiador dos brasileiros, p. 81. 277. Ibidem, p. 394 e 398. 278. Jancsó, I. Na Bahia contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798, 1996 279. Para melhor compreensão dos rumores – geração, expansão e recepção do ponto de vista da psicologia social, ver as instigantes análises de Pichon-Rivière, E. Psicología de la vida cotidiana. Agradeço

a indicação a Cristina Massadar Morel. 280. Sobre os episódios, na Bahia, que antecederam a abdicação de d. Pedro I, ver Tavares, L. H. D. Da sedição de 1798 à Revolta de 1824 na Bahia, 2003; e sobre a participação de Cipriano Barata, ver Morel, M. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade, 2008; e Barata, C. Sentinela da Liberdade e outros escritos, 2008. 281. Cipriano José Barata de Almeida. Relação abreviada dos meus sofrimentos e sucessos, desde o embarque a 4 de maio até a chegada a 26 do mesmo mês à esta Capital do Rio de Janeiro, etc., etc. Rio de Janeiro: 1831, doc. Manuscrito, Arquivo do IHGB. Publicado em C. Barata. Sentinela da Liberdade e outros escritos, 2008, p. 701-706. 282. Manifesto que ao respeitável público apresenta o cidadão Cipriano José Barata de Almeida sobre a sua súbita, tirana prisão na Bahia, remessa violenta para esta Corte, onde se acha inda preso. Com várias idéias úteis ao Brasil inteiro. Rio de Janeiro: Tipografia de Torres, 1831. Publicado em Barata, C. Sentinela da Liberdade e outros escritos, 2008, p. 733-744. 283. Benot, 2005. 284. As acusações de Cipriano a Rebouças estão detalhadas em DESENGANO AO PÚBLICO Ou Exposição Dos Motivos Da Minha Arbitrária Prisão Na Província da Bahia. Rio de Janeiro: Tipografia de Lessa e Pereira, 1831, bem como no Manifesto que ao respeitável público..., op. cit. Publicados em Barata, C. Sentinela da Liberdade e outros escritos..., p. 707-732; 733-744. 285. Exposição da tramóia e falsidades que contra mim, João Primo, o Major reformado José Joaquim Leite, o Barão de Itaparica e outros, jurarão as testemunhas, subordinadas pelos membros do infame Clube do Gravatá, aristocratas o Capitão Gabizo, e outros moderados fingidos da Bahia, etc. etc.

Rio de Janeiro: Tipografia de Gueffier, 1831. Publicado em Barata, C. Sentinela da Liberdade e outros escritos, 2008, p. 745-761. 286. Cf. Sepinewall, A. G. L’abbé Grégoire et la Révolution Français. Les origines de l’universalisme moderne, 2008, p. 146. 287. Nova Sentinela da Liberdade na Guarita do Forte de São Pedro na Bahia de Todos os Santos. Salvador, n. 13, 3 jul. 1831. Apud Morel, 2008, p. 259. A redação deste periódico é equivocadamente atribuída a Cipriano Barata: na verdade foi uma publicação para defendê-lo. Sobre este episódio envolvendo Cipriano e as repercussões da Revolução Haitiana no período, ver Morel, 2008, Parte III. 288. Sobre o conceito de povo para Cipriano Barata ver Morel, 2001, op cit., p. 340-360; p. 126. 289. Aurora Fluminense, Suplemento ao n. 496, 17 jun. 1831. 290. Cf. Parte II, “O abade Grégoire e os escravos: fraternidade e Luzes”. 291. Jacintho Rodrigues Pereira Reis, cirurgião formado pela Escola Médico Cirúrgica do Rio de Janeiro em 1831, era irmão da esposa de Meirelles, Rita Maria Pereira Reis, e foi presidente da Academia Imperial de Medicina. Faleceu em 1882, com 114 anos. 292. Reis, op. cit., 1931 apud Vieira Fazenda, p. 300. Aliás, o próprio Vieira Fazenda, neste artigo redigido em 1908, também tece elogios ao abade revolucionário. 293. Tradução livre: “É preciso bem desprezar a calúnia, mas é preciso também buscar as causas que permitiram que ela ocorresse”. 294. Agradeço esta informação ao historiador Flávio dos Santos Gomes. 295. Sobre as posições políticas e sociais dos liberais Exaltados e Moderados, ver Morel, As transformações…, 2016, Parte I; Basile, M. Ezequiel Correa dos Santos – um jacobino na Corte imperial. Rio de Janeiro: FGV, 2001. 296. C. Barata, 2008. 297. Sentinella da Liberdade no Rio de Janeiro, n. 8, (sem indicação de dia e mês), 1832. 298. Quanto a imagem positiva do 7 de abril como data fundadora da nacionalidade, ver Francisco da Veiga. O Primeiro Reinado estudado à luz da sciencia. A Revolução de 7 de Abril de 1831 justificada pelo

Direito e pela História, 1877. 299. Sentinella da Liberdade no Rio de Janeiro, n. 8, (sem indicação de dia e mês), 1832. 300. Cf. Sepinewall, L’abbé Grégoire et la Révolution Française, 2008, p. 145. 301. Sentinella da Liberdade no Rio de Janeiro, n. 13, (sem indicação de dia e mês), 1832. 302. De Pradt, Abade. Les trois âges des colonies ou de leur état passé, présent et à venir, 1802, t. II, p. 103. 303. Sentinella da Liberdade no Rio de Janeiro, (sem indicação de dia e mês), 1832, transcrito em C. Barata (2008). 304. O Sete d’Abril, n. 8, 26 jan. 1833. 305. Ibidem. 306. Cf. Flávio Gomes, 1995, p. 262. 307. Cf. Fazenda, op. cit., 4ª série, p. 285.

CONSIDERAÇÕES FINAIS É possível dividir, para simplificação da narrativa, a sociedade brasileira no início do século XIX em três principais parcelas, quanto às repercussões da Revolução Haitiana: escravizados, não escravizados e os grupos dirigentes e dominantes. Cada qual com suas heterogeneidades e paradoxos. O foco principal deste trabalho, como já foi dito na Introdução, é sobre o segundo grupo, que abrange desde libertos até pequenos proprietários de bens (inclusive escravos), passando pelas diversas classificações raciais, mas com ênfase nos mulatos (pardos) e brancos; com a presença de expressivos setores letrados, como clérigos, militares (milicianos), cirurgiões, bacharéis e redatores de periódicos. Recoloca-se, portanto, a abrangência social das repercussões não hostis da Revolução Haitiana que não eram “apenas”, pejorativamente, “coisa de escravos”, nem se limitavam a um recorte racial, embora incluíssem a ambos. As repercussões dos eventos e personagens da ilha caribenha entre os trabalhadores escravizados no Brasil ocorreram, está claro, mas os registros, detectáveis em fragmentos, ainda não chegam a ser suficientes para consolidar um conjunto de conhecimentos históricos com tendências bem delineadas. Acredito mesmo que nunca saberemos com clareza as dimensões destas circulações de ideias e informações sobre as lutas na colônia de São Domingos e no Haiti independente, com seus efeitos variados entre os cativos brasileiros, pela escassez de fontes documentais que captassem tais fagulhas, fogueiras e queimadas em referência direta com a Revolução Haitiana. Quanto à chamada classe senhorial e seus aliados e integrantes políticos e culturais, predominou (conforme já é conhecido e analisado por

expressivos trabalhos historiográficos) o exorcismo da Revolução do Haiti pelo medo, pela elaboração de espantalhos e por medidas coercitivas sobre a população escravizada e além dela. E, também, colocou-se um emancipacionismo reformista retórico e cauteloso entre setores de tais grupos, no início do XIX. A análise em torno dos multifacetados grupos não escravizados no Brasil, com ênfase nas repercussões não totalmente negativas (ou até positivas), se formulou, justamente, a partir da conformação caleidoscópica da própria Revolução Haitiana. Nesta, o conflito senhores X escravos foi predominante em diversos momentos, era mesmo sua principal base e sentido, mas tal embate foi com frequência suplantado (inclusive após a Abolição oficial em 1793-1794): uma diversidade considerável de situações, protagonistas e interesses agregou-se e até sobrepôs-se a ele. Na demarcação deste enfoque constrói-se historicamente o modelo das repercussões não hostis da Revolução do Haiti no Brasil dos anos 1800– 1840, que pode ser considerado em quatro faces que apareceram ao longo do livro: - soberania nacional - soberania popular - antirracismo - crítica à escravidão A valorização do exemplo haitiano (a segunda Independência das Américas) como afirmação bem-sucedida de soberania nacional aparecia com desenvoltura em pronunciamentos parlamentares (nas Cortes de Lisboa e nas legislaturas brasileiras consecutivas, para as quais ainda falta uma pesquisa exaustiva) e na imprensa periódica de diversas tendências políticas (desde Hipólito da Costa até jornais dos anos 1840, passando pelo livreiro Pierre Plancher): desvinculava-se de uma expectativa abolicionista ou até

de qualquer discussão sobre o escravismo, o que, justamente, facilitava sua explanação. A perspectiva de soberania popular, ainda que marcada pelas fronteiras de uma sociedade escravista, expressava-se nas ações de Emiliano Mundurucu e nas pregações de Cipriano Barata e Borges da Fonseca, por exemplo. Não se tratava de conceber “povo” no viés dos cidadãos ativos da “boa sociedade”, nem na sublevação direta dos cativos. Mas, sim, na definição de um amplo recorte balizado pela perspectiva dos não escravizados que estavam abaixo na hierarquia social e perpassado pelas categorizações raciais e suas opressões, mas indo além destas – grupos com perspectiva e tentativas de ação política mais contundente diante da ordem estabelecida, radicalizando a modernidade política em direção de transformações sociais. Quanto à referência ao Haiti como espaço onde os “homens de cor” sabiam e podiam governar a sociedade na órbita da civilização ocidental (presente na pauta de pensadores liberais franceses como Benjamin Constant e Civique De Gastine), tratava-se de um ponto que mobilizava as sensibilidades da população mulata (parda) na ampliação efetiva de seus direitos políticos e civis e na ascensão social, contra os preconceitos legais ou consuetudinários. Constituía-se num embasamento aos postulados antirracistas, como os do cirurgião Joaquim Cândido Meirelles, entre outros. E, por fim, a crítica à escravidão, mais ou menos implícita, expressavase nas preocupações de elementos conservadores do clero, como o bispo Romualdo Seixas e frei Monte Alverne, ou rebeldes e desviantes, como o padre Leonardo Correa – expressões de um Iluminismo Oitocentista e pósrevolucionário de convívio incômodo com o escravismo e que, cotejadas à experiência haitiana e seus defensores, apresentam similitudes.

Como ressaltou o historiador Robin Blackburn, o exemplo estimula, mesmo que não imitado ou repetido. Re-conhecer tal aceitação em partes da Revolução Haitiana no começo do século XIX brasileiro implica em admitir que houve uma disseminação do tema entre variados setores da sociedade. Divulgação que, pelos circuitos da palavra impressa, manuscrita ou falada, percorria inusitadas trilhas: não se limitava a um restrito círculo social e se contrapunha à forte tendência de ocultação e/ou desqualificação. Apesar do contraponto, não se eliminavam mutuamente, mas conviviam e se entrelaçavam, num embate simbólico de consequências efetivas. Nas entrelinhas dos esconjuros e silêncios contra a devastadora “revolta de escravos”, fica claro que era impossível, no Brasil do período, desconhecêla, seus episódios, personagens, sua marca no cenário internacional. Exemplo desta convivência está na correspondência epistolar entre o revolucionário abade Grégoire atormentado pelas perseguições na Europa da monarquia restaurada e o moderado iluminista monsenhor Miranda Malheiro que andava as voltas com a colonização suíça em Nova Friburgo (RJ), na expectativa de uma linha de frente civilizadora na sociedade escravista. Os três abades franceses aqui estudados eram igualmente importantes e notórios no âmbito do pensamento político e seus debates, inclusive no Brasil: De Pradt, por sua premonitória teoria da Independência negociada e precoce indicação de quebra do pacto luso-brasileiro; Grégoire, pela crítica contundente e desnaturalização da escravidão naquele contexto; Raynal, pela leitura que acentuava as condenações às metrópoles europeias no germinar dos processos de afirmação nacional. Tais assertivas de Grégoire e De Pradt traziam desconforto às elites letradas brasileiras comprometidas com a formação do Estado e de uma Nação. Pelos intrincados caminhos do tempo e da memória são, sobretudo, as formulações de Raynal que permanecem com mais visibilidade no repertório historiográfico brasileiro.

Seria a história do Brasil, da Independência e da Abolição, o extremo oposto do caso haitiano, onde os escravos, num processo de ruptura, destruíram as classes dominantes e tomaram o poder? A aparente dicotomia tem suas nuances, como já foi visto. Mesmo que palavras impressas e faladas pudessem estar, de algum modo, interligadas por formas de comunicação escrita e oral, que se entrecruzavam e alimentavam-se mutuamente, percebe-se um diferencial. Na imprensa, materializada em papel e de autoria identificável, as referências positivas, ou não hostis, à Revolução do Haiti, seguiam na linha da defesa da soberania nacional, do antirracismo e da crítica, implícita ou explícita, à escravidão, sem se pregar uma abolição imediata. Já nas falas, captadas pelo registro de autoridades ou reproduzidas em papéis anônimos, as expressões apareciam numa dimensão contestadora à ordem social estabelecida (ainda que diversas vezes tenham ficado nos limites da palavra e não passado à ação direta). Vale reter a afirmativa do historiador David Geggus para quem a Revolução do Haiti foi inigualável e inesquecível. O protagonismo dos trabalhadores escravizados foi decisivo na Revolução do Haiti, embora não se possa dizer com exatidão que eles tenham chegado ao poder com ela, coletivamente. Entre as lideranças prevaleciam libertos e livres, negros e mulatos – que desde o início foram se distinguindo socialmente das multidões que representavam (a difícil questão da representatividade). A inadequação institucional entre o corpo político nacional que se formava e as identidades culturais africanizadas (que ainda hoje impregnam a sociedade haitiana) foram marcantes, por exemplo. Considero esclarecedora a abordagem da historiadora Carolyn Fick que entende a luta da população escravizada enquanto movimento social autônomo e vindo a partir de baixo, constituindo-se no principal e decisivo motor da Revolução Haitiana. Sem esquecer, no final das contas, que as

potências europeias estiveram presentes tanto na formação nacional no Brasil quanto no Haiti, impondo pesadas consequências socioeconômicas na especificidade de cada situação nacional. Mas a compreensão histórica da sociedade brasileira tem, entre outras, uma diferença nítida com a Revolução do Haiti. Nesta, indivíduos até então escravizados, ou libertos e livres, negros e mulatos, passaram a exercer o poder político e social mantendo suas identidades não brancas: deixavam de ser vítimas, tornavam-se libertadores, mas também algozes e opressores. Gerava-se, assim, uma estranha alteridade na percepção habitual do passado das sociedades escravistas das Américas. As movimentações da Revolução Haitiana, desde o início, buscaram destruir fisicamente as propriedades e os proprietários de terras e escravos, e aniquilar a quase totalidade da população branca, mas não desmantelaram de fato a teia administrativa estabelecida. E os abalos na estrutura fundiária não foram suficientes para subvertê-la, apesar de mudanças. A (des)ordem colonial, aparentemente tranquila, foi reconstruída e refeita enquanto (des)ordem nacional, esta sim, visivelmente intranquila. Ao invés de ocupar o Estado, pode-se enunciar, ao contrário, que tal movimento revolucionário foi ocupado por este – o que, aliás, é recorrente em outras experiências 308

históricas . E a mudança da cor da pele efetivada com os novos dirigentes não foi suficiente para estabelecer uma situação de justiça social. Seria então o caso de indagar, levando em conta manifestações da época: e se os trabalhadores escravizados que formaram movimentos sociais autônomos no âmago da colônia francesa de São Domingos, dentro dos padrões de seu tempo, sobretudo os marrons (quilombolas), não tivessem se constituído em Estado nacional moderno civilizado e ocidentalizado, mas, sim, na direção de uma sociedade sem Estado? A Revolução do Haiti traz a marca do improvável, do impossível e do

impensável. Desconstruir o silêncio do passado é uma trilha, ainda que enviesada, para projetos futuros.

NOTAS 308. Ver a reflexão de E. Viveiros de Castro no Epílogo de Öcalan, Abdullah. Confederalismo Democrático. In: Morel, Ana Paula M. (org.). Cf. também a clássica obra de antropologia política, La Société contra l’État, de P. Clastres.

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NOTAS 309. As obras consultadas em Gallica, acervo digital da Bibliothèque Nationale de France François Mitterand, , são assinaladas com um “G” ao final da referência. As obras consultadas no Brown Digital Repository, da Brown University Library, estão assinaladas com BU. Os documentos do acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, são seguidos da sigla FBN. Os documentos digitalizados da Biblioteca Brasiliana Mindlin, da USP, aparecem com BBM.

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