A política criminal de drogas no Brasil: Estudo criminológico e dogmático da lei n. 11.343/06 [8ª ed.]
 8502638319

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ISBN 978850263832-7

Carvalho, Salo de A política criminal de drogas no Brasil : estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06 – Salo de Carvalho. – 8. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2016. 1. Direito penal - Brasil 2. Drogas - Leis e legislação - Brasil 3. Tóxicos - Leis e legislação - Brasil I. Título. 15-09035 CDU-343.347(81)(094)

Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Lei de drogas : Direito penal 343.347(81)(094) 2. Leis : Drogas : Direito penal 343.347(81)(094)

Direção editorial Flávia Alves Bravin Gerência editorial Thaís de Camargo Rodrigues Gerência de concurso Roberto Navarro Assistência editorial Poliana Soares Albuquerque Coordenação geral Clarissa Boraschi Maria Preparação de originais Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan e Ana Cristina Garcia (coords.) | Liana Ganiko Brito Arte e diagramação Claudirene de Moura Santos Silva | Mônica Landi Revisão de provas Maria de Lourdes Appas Conversão para E-pub Guilherme Henrique Martins Salvador Serviços editoriais Elaine Cristina da Silva | Kelli Priscila Pinto | Tiago Dela Rosa Capa Casa de Ideias / Daniel Rampazzo

Data de fechamento da edição: 17-3-2016

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SUMÁRIO Prefácio (3ª edição) Prefácio (1ª edição) Dos Discursos Enunciados aos Discursos Silenciados: recuperando a dignidade da Política Criminal pelo e para o homem NOTA EXPLICATIVA À 8ª EDIÇÃO introdução 1. A Justificativa 2. O Enfoque Criminológico e Transdisciplinar 3. As Dimensões do Proibicionismo 4. A Estrutura da Investigação Parte I - CONFIGURAÇÕES POLÍTICO‑CRIMINAIS DO MODELO BRASILEIRO DE COMBATE ÀS DROGAS (DA MILITARIZAÇÃO AO DIREITO PENAL DO INIMIGO) 1. O MODELO INTERNACIONAL DE CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS 1.1. As Pesquisas sobre (Criminalização das) Drogas 1.2. Brevíssima Apresentação da Legislação de Drogas no Brasil 1.3. A Transnacionalização do Controle: o Discurso Médico-Jurídico e a Ideologia da Diferenciação

2. A instauração do modelo jurídico-político 2.1. A Adequação Nacional ao Projeto de Transnacionalização 2.2. A Assinatura Latina: A Ideologia de Segurança Nacional 2.3. O Discurso Médico-Jurídico-Político na Lei 6.368/76 2.3.1. A Perspectiva Sanitarista: Tratamento Coercitivo 2.3.2. A Perspectiva Jurídico-Política: Incremento da Repressão 2.3.3. Hiatos de Criminalização: Pequeno Comerciante e Usuário de Drogas 3. A BASE IDEOLÓGICA DA POLÍTICA CRIMINAL DA INTOLERÂNCIA: GERMENS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NA ESTRUTURA PUNITIVA BRASILEIRA 3.1. A Dupla Face do Programa de Defesa Social 3.1.1. A Ideologia da Defesa Social: Características e Principiologia 3.1.2. Variante: os Movimentos de Defesa Social 3.2. A Ideologia de Segurança Nacional e a Militarização do Sistema de Controle Social 3.3. A Política Criminal dos Movimentos de Lei e Ordem 3.4. A Fusão dos Horizontes de Punitividade 4. A ESTRUTURA DE PUNIBILIDADE DA LEI 11.343/06: ANTECEDENTES E ESTATUTO POLÍTICO-CRIMINAL 4.1. A Reforma da Lei 6.368/76

4.2. A Lei do Crime Organizado no Cenário Global da Repressão ao Narcotráfico 4.3. O Regime Integralmente Fechado Plus 4.4. O Controle das Fronteiras Aéreas e a Repressão ao Tráfico Internacional 4.5. O Estatuto Político-Criminal da Lei 11.343/06: Retórica Preventiva, Ênfase Repressiva 5. MAL-ESTAR NA POLÍTICA CRIMINAL CONTEMPORÂNEA: A GUERRA ÀS DROGAS ENTRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO E O ESTADO DE EXCEÇÃO 5.1. Inquisitorialismo, Direito Penal de Emergência e Direito Penal do Inimigo 5.2. A Formulação (Teórica) Contemporânea do Direito Penal do Inimigo 5.3. O Direito Penal do Inimigo como Discurso de Legitimação da Punitividade no Estado de Permanente Exceção 5.4. O Inimigo (Perigoso) como Metarregra Orientadora da Atuação das Agências Penais na América Latina 5.5. Política Criminal de Drogas e Narcisismo Punitivo Parte II - DROGAS E (DES)CRIMINALIZAÇÃO 6. AS POLÍTICAS CRIMINAIS E A CRÍTICA CRIMINOLÓGICA 6.1. Os Discursos Político-Criminais 6.2. A Tensão na Política Criminal Contemporânea: Criminalização versus Descriminalização

6.2.1. Colocação do Problema 6.2.2. Criminologia da Práxis: da Criminologia Crítica às Políticas Criminais Alternativas 7. TENDÊNCIAS POLÍTICO-CRIMINAIS CONTEMPORÂNEAS: CRIMINALIZAÇÃO E DESCODIFICAÇÃO 7.1. Os Discursos Criminalizadores: Lei e Ordem, Tolerância Zero e Esquerda Punitiva153 7.2. Os Efeitos dos Processos Criminalizadores: Descodificação (Própria e Imprópria) e Desregulamentação 8. OS DISCURSOS E AS PRÁTICAS DESCRIMINALIZADORAS 8.1. Descriminalização e Criminologia da Práxis 8.2. Descriminalização: Conceitos 8.3. Descriminalização Legislativa e o Caso do Porte de Drogas para Uso Pessoal na Lei 11.343/06 8.4. Descriminalização Judicial 8.4.1. O Papel do Operador do Direito na Efetivação da Constituição 8.4.2. Descriminalização Judicial e Redução dos Danos Penais193 8.4.3. Descriminalização Judicial: Critérios de Interpretação e Aplicação 8.5. Descriminalização de Fato e Cifras Ocultas da Criminalidade

9. DESCRIMINALIZAÇÃO E POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS 9.1. Programa Descriminalizador: Critérios desde o Abolicionismo, o Direito Penal Mínimo e o Garantismo Penal 9.2. Drogas: Custos da Criminalização e Descriminalização 9.2.1. Custos Individuais: Consumidores e Dependentes 9.2.2. Efeitos nos Sistemas Educacional e Médico 9.2.3. Consequências Econômicas 9.2.4. Efeitos no Sistema de Administração da Justiça Penal 9.2.5. Efeitos no Sistema Carcerário 9.3. O Projeto Antiproibicionista no Brasil 9.4. A Insustentabilidade Jurídica da Criminalização das Drogas 9.5. O Direito às Drogas: Thomas Szasz e Antonio Escohotado 9.6. Falácia Politicista da Lei 11.343/06 e Programa Mínimo de Redução de Danos 9.7. Alternativas e Práticas de Redução de Danos: a Experiência da Prescrição de Heroína 9.8. Proibicionismo e Redução de Danos: Incompatibilidades

Parte III - O DIREITO PENAL DAS DROGAS (CRÍTICA DOGMÁTICA E ABERTURAS JURISPRUDENCIAIS) 10. A INSTRUMENTALIDADE DO DISCURSO GARANTISTA E A CRÍTICA CONSTITUCIONAL AO DIREITO PENAL DAS DROGAS 10.1. Mudança de Perspectiva: da Crítica Criminológica à Instrumentalização Garantista 10.2. A Constituição Penal entre os Crimes Hediondos e os Delitos de Menor Potencial Ofensivo 10.3. A Estrutura da Lei no Direito Penal das Drogas e os Efeitos da Descodificação: Lei Penal em Branco e Tipicidade Aberta 11. O TRATAMENTO PENAL DO TRÁFICO DE DROGAS NA LEI 11.343/06 11.1. A Configuração da Tipicidade no Tráfico de Entorpecentes 11.1.1. A Finalidade do Agir como Critério Necessário de Identificação das Condutas Previstas nos Arts. 28 e 33, caput, da Lei 11.343/06 11.1.2. Critério Dogmático de Correção da Desproporcionalidade e a Definição da Tipicidade (Subjetiva) das Condutas 11.1.3. Os Equívocos na Configuração da Tipicidade do Tráfico de Entorpecentes: Objetificação dos Elementos Subjetivos 11.1.4. As Dificuldades de Imputação da Conduta no Oferecimento da Denúncia

11.1.5. Lições de Direito Penal Comparado: Fixação de Quantidade Mínima para Consumo, Tráfico Privilegiado, Tráfico Comum e Tráfico Qualificado 11.2. Consumo Compartilhado (art. 33, § 3º, Lei 11.343/06) 11.2.1. Critérios de Imputação e de Definição Típica 11.2.2. Lições da Jurisprudência Penal Comparada e Critérios de Imputação e de Desclassificação369 11.3. Condutas do Art. 33, caput, Imunes aos Efeitos da Lei dos Crimes Hediondos e dos Arts. 33, § 4º, e 44 da Lei 11.343/06 11.4. A Inconstitucionalidade do Art. 34 (Criminalização de Atos Preparatórios) e os Problemas Relativos ao Crime do Art. 35 (Associação para o Tráfico) da Lei de Entorpecentes 11.5. Causas de Aumento de Pena Decorrente de Transnacionalidade e Transregionalidade do Tráfico (art. 40, I e V): Proibição de Dupla Incriminação 11.5.1. Requisitos de Configuração da Exportação e da Importação 11.5.2. As Majorantes Relativas à Transnacionalidade e Transregionalidade 11.6. Financiamento e Custeio do Tráfico (art. 40, VII) e o Crime Autônomo do Art. 36 da Lei 11.343/06 11.7. A Questão do Traficante-Dependente: Ausência de Conflito entre o Art. 33 e o Art. 45 da Lei 11.343/06

11.8. (Im)Possibilidade de Substituição de Pena Privativa de Liberdade por Restritiva de Direito: Inconstitucionalidade do Art. 44 da Lei 11.343/06 11.9. A Inconstitucionalidade do Art. 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos e a Progressão de Regime no Tráfico de Entorpecentes 11.10. Indução, Instigação, Auxílio e Apologia ao Uso de Drogas: Análise de Casos (Práticas de Redução de Danos, Marcha da Maconha e Movimentos Rapper e Funk) 12. A RESPOSTA PENAL AO USO DE ENTORPECENTES NO BRASIL 12.1. A Inconstitucionalidade do Art. 28 da Lei 11.343/06 12.2. Porte de Drogas para Uso Pessoal e Tipicidade Material: Aplicações do Princípio da Insignificância 12.3. O Sistema de Penas e de Medidas Previstas para Usuários de Drogas na Lei 11.343/06 12.3.1. Natureza das Sanções Previstas na Lei de Drogas: Penas e Medidas 12.3.2. Da Inconstitucionalidade da Aplicação Cumulada entre Penas e Medidas e a Reedição do Sistema do Duplo Binário 12.3.3. O Caráter Moralizador da Pena de Admoestação 12.3.4. Tempo de Pena e Qualificação do Uso de Drogas pela Reincidência 12.4. Transação Penal, Justiça Terapêutica e Limites da Medida

12.4.1. Condições para Oferecimento de Transação Penal (Art. 48, §§ 1º e 5º, da Lei 11.343/06) 12.4.2. Da Inconstitucionalidade do Art. 48, § 5º, da Lei 11.343/06: Nulla Poena Sine Iudicio 12.4.3. Justiça Terapêutica e Aplicação de Medidas Educativas 12.4.4. Política de Redução de Danos e Justiça Terapêutica CONSIDERAÇÕES FINAIS 1. A Constância e o Fortalecimento da Ideologia da Diferenciação 2. O Futuro da Política Internacional de Repressão às Drogas 3. As Fundações da Política Proibicionista: Defesa Social 4. As Fundações da Política Antiproibicionista: Crítica Criminológica 5. Antiproibicionismo e Redução de Danos 6. A Nova Lei de Drogas e a Manutenção da Lógica Punitiva 7. Mecanismos Moralizadores e Ética da Alteridade BIBLIOGRAFIA APÊNDICES 1. #DescriminalizaSTF: UM MANIFESTO ANTIPROIBICIONISTA ANCORADO NO EMPÍRICO INTRODUÇÃO 1. OS CONSUMIDORES SELECIONADOS PELO SISTEMA PENAL

2. AS RESPOSTAS PENAIS PARA OS CASOS DE PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO 3. OS ATOS, O PAPEL DESEMPENHADO PELOS ATORES PROCESSUAIS E O FENÔMENO DAS “AUDIÊNCIAS COLETIVAS” 4. A JUSTIÇA PENAL E A POBREZA TERAPÊUTICA 5. A OVERDOSE DE ILEGALIDADES: O CONSUMO PROBLEMÁTICO DO SISTEMA PENAL PARA O CONTROLE DO USO DE DROGAS #DescriminalizaSTF REFERÊNCIAS 2. Nas Trincheiras de uma Política Criminal com Derramamento de Sangue: Depoimento sobre os Danos Diretos e Colaterais Provocados pela Guerra às Drogas* REFERÊNCIAS

Professor

Adjunto

de

Direito

Penal

e

Criminologia

do

Departamento de Direito do Estado da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito. PósDoutor em Criminologia (Universidade Pompeu Fabra – Barcelona), em Direito Penal (Universidade de Bolonha) e em Filosofia (PUCRS).

Para Mari e Inês, sempre.

PREFÁCIO (3ª EDIÇÃO)

Prefaciar o livro de Salo de Carvalho foi um prazer honroso com duplo risco. O primeiro prefácio, de Vera Regina Pereira de Andrade, constituiu-se num dos melhores artigos brasileiros sobre drogas e globalização do controle social; no desvelamento do poder penal e na potencialização da sua capacidade de produzir dor e danos. O segundo risco foi constatar que Salo havia transformado o seu brilhante A Política Criminal de Drogas no Brasil em um outro livro... Eu já havia lido a 1ª edição para minha análise sobre os difíceis ganhos fáceis da juventude popular brasileira, principalmente os meninos das favelas do Rio de Janeiro. O resultado é que esse outro

importantíssimo

livro

de

Salo

me

proporcionou

uma

atualização no estado das artes em que se enfronha a questão drogas. Há tempos venho dizendo que a falta de novidades em nossa política criminal e em nossos discursos sobre drogas tem sido inversamente proporcional aos danos, aos sofrimentos e ao extermínio produzidos por essa política e por esse discurso. Quando falamos em genocídio queremos delimitar um marco conceitual que não seja hiberbólico. Em assuntos de direitos humanos devemos ser sempre precisos. Mas o que dizer de um projeto penal que é a causa principal da morte de 33.000 jovens em 10 anos no Rio de

Janeiro? Estamos com uma constante em torno de 1.000 homicídios/ano em “autos de resistência”, confrontos com a polícia. O número de policiais mortos, da mesma faixa etária e extração social dos seus inimigos, também cresce. Os meios de comunicação não cessam de disparar seus argumentos perigosistas e alarmistas, suprimentos de medo para nossas políticas criminais com derramamento

de

sangue.

Enquanto

isso,

o

capitalismo

enlouquecido vive à custa de drogas farmacoquímicas da indústria transnacional. Drogas para ativar, desligar, dormir, sonhar, fornicar, enfim, não falhar... O controle social pela medicalização provida pelo complexo farmacoquímico (mais assustador que o de armas, só trabalha com cobaias humanas) já não é um pesadelo do Admirável Mundo Novo. O Ministro do Interior da França, em resposta às barricadas juvenis da Sorbonne e da periferia, apresentou um projeto de lei que prevê a vigilância de crianças de três a seis anos para que não se transformem

em

adolescentes

agressivos.

Pôde

propor

tal

aberração lombrosiana a partir da “pesquisa” Conduzindo desordem na infância e na adolescência, realizada pelo Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica de Paris (INSERM). Observemos o grau de periculosidade que os dispositivos médico-psiquiátricos podem produzir... “O projeto de lei prevê a medicação das crianças ditas com ‘distúrbios’ e estabelece a necessidade da presença de

funcionários públicos nas creches para observar comportamentos ‘suspeitos’

de

predisposição

à

desordem”. 1A

Europa

está

constantemente assombrada pelo ovo da serpente que nela profundamente dormita. Esse novo livro, então, pretende atualizar a 1ª edição. Mas, Salo liberta-se das amarras normativas que o estudo do direito (como o de sociologia) impõe ao pensar, e desconstrói o seu objeto na perspectiva transdisciplinar, ao melhor estilo da nova criminologia crítica da América Latina. Junto com Maximo Sozzo, na Argentina, ele está ajudando a criminologia crítica dos anos 70 a seguir seu curso. O interessante no caso de Salo de Carvalho é que sua filiação é concreta, como filho do imprescindível intelectual e magistrado Amilton Bueno de Carvalho, chefe da mais generosa Escola brasileira, aquela do Direito Alternativo, que vem mantendo a tradição libertária gaúcha desde sempre na história. Desconstruído o objeto, Salo analisa-o à luz de múltiplas perspectivas, mas principalmente no sentido da contenção do furor penal que hoje preside qualquer discussão sobre o assunto no Brasil. No momento em que a ideia de Estado Penal de Loïc Wacquant se cristaliza, com uma projeção de 500 mil presos para 2007, pululam os discursos e a histeria punitiva. São os tais

discursos que matam, que darão conta dos escombros da classe trabalhadora no capitalismo de barbárie. Salo compreende a criminalização por drogas como um processo

histórico

socialmente

construído

a

partir

da

transnacionalização do controle. Ele dá voz a uma das mais importantes intelectuais latino-americanas, a admirável Rosa Del Olmo, pioneira na produção de um olhar latino-americano sobre a política criminal de drogas. Iluminado por essa perspectiva, Salo analisa a adequação brasileira ao projeto de transnacionalização, cujo suporte central de atuação seria o paradigma “médicosanitário-jurídico”. A Lei 6.368/76, no auge do período duro do regime militar, instaura uma maximização do jurídico, ampliando maciçamente os horizontes da criminalização e da punição. Naquilo que Zaffaroni chama de fenômeno da multiplicação dos verbos, o caráter mágico e fetichista da nossa política criminal de drogas vai demonizando tudo à sua volta. Parece que na questão criminal, como em Lavoisier, nada se perde, tudo se transforma. Na sua brutal e inédita magnificação, o sistema penal contemporâneo alarga seus domínios sem abrir mão de nenhuma velha técnica: são as penas alternativas e mais o cárcere, a prisão, a tortura e o extermínio de sempre, multiplicados.

A marca da ideologia da Segurança Nacional vai aprofundar os estereótipos do discurso médico-jurídico-político, sem abrir mão dos discursos morais. O tratamento coercitivo, previsto no art. 10 da Lei 6.368/76, vai, nas palavras de Salo, associar a dependência ao delito, abandonar a ideia de voluntariedade no tratamento e, subliminarmente, ampliar as possibilidades de identificação do usuário como dependente. Este movimento de expansão da penalização por drogas gera a “naturalização do crime ou a criminalização da adição”. Os efeitos dramáticos desses tratamentos compulsivos podem ser percebidos em relatos dramáticos daquele período: pais entregando filhos à polícia, internações violentas e principalmente “tratamentos” à base de drogas muitas vezes mais fortes que as que motivaram as terapias, porém drogas lícitas. Mas o incremento da repressividade vai acentuar suas feições no art. 12, na inclusão de outros itens nesse projeto pan-penalista: remessa, preparo, produção, fornecimento e transporte, com aumento das penas e da margem para sua fixação. É nesse exato momento que a criminalização primária tratará de delinear os contornos do novo estereótipo do inimigo interno: o traficante. Salo de Carvalho chama a atenção para o rigor presente tanto nos casos de hiatos de punibilidade (criminalização do uso) ou da baixa danosidade ao bem jurídico tutelado (comércio de drogas ilícitas em pequena quantidade). O fato é que nesse momento o sistema penal

com sua seletividade ontológica vai distribuir seus papéis fixos: estereótipo médico para os jovens usuários de classe média e estereótipo criminal para a juventude recrutada para o varejo desse circuito informal. É neste momento que “a tecnologia legal possibilitou o desencadeamento de política de repressão integrada (planos legislativo, executivo e judiciário) na otimização do projeto transnacional de guerra às drogas. Paradoxalmente, o projeto criminal de drogas do período militar é aprofundado e estendido através da ‘democratização’”. Isto só pode acontecer através da articulação de três instâncias da ideologia punitiva: os movimentos de “Lei e Ordem”, a ideologia da Defesa Social e a ideologia da Segurança Nacional. Atualizando essa aliança nos dias de hoje temos a ressonância da tese do Direito Penal do Inimigo, simulacro mal enjambrado da nazi-finura de Schmitt, remendado às pressas por Jakobs para dar conta do que Bush filho chamou de eixo do mal: terroristas e narcotraficantes. Curiosamente, os primeiros vivem em terras aonde abunda o petróleo, e os segundos detêm as áreas de produção da principal mercadoria ilícita, a cocaína. A fina criminologia de Salo faz questão de abandonar e deslegitimar

as

ideologias

“re”

(reeducação,

recuperação,

ressocialização), nas quais muitos bem-intencionados se perderam, ao tombarem pela repetição ad infinitum do senso comum punitivo.

Ao invés disso, utiliza o conceito de vulnerabilidade para trabalhar a atribuição de estigmas que os movimentos de “Lei e Ordem” produzem. É na análise da construção dos discursos na estrutura repressiva dos anos 60 e 70 que Salo vai constatar o que ele chama de “fusão dos horizontes da punibilidade”: defesa social, segurança nacional e “Lei e Ordem”. A lógica defensivista seria o eixo central do que Baratta denominou como ideologia conformadora do sistema penal da modernidade ocidental. O problema, para todos nós, é reconhecer e denunciar a maneira como tudo piorou com a “transição democrática”. É assustador, mas temos que encarar os fatos: este simulacro de democracia representa a liberdade para o mercado e restrições infinitas para a humanidade. Como disse Loïc Wacquant: o “mundo livre” está encarcerado. Somos mais exterminadores e autoritários do que éramos no fim da ditadura. A partir dos anos 80 do século XX, nossa legislação penal aprofunda o seu potencial bélico. Com a Lei de Crimes Hediondos institui-se um oceano de criminalização sem perspectivas, projetos de emparedamento de uma geração de jovens. A ela soma-se a Lei do Crime Organizado (essa categoria frustrada e frustrante) e o cenário econômico-transnacional que institui uma nova geopolítica: de um lado a supremacia ocidental com seus hábitos de consumo, do outro, os criminalizáveis, produtores de petróleo e cocaína, terroristas e narcotraficantes.

A partir daí, a engenhosidade demoníaca do sistema penal do inimigo só se expande, acumula discursos, atualiza estratégias. No caso do Rio de Janeiro, a situação é agravada pela histórica posição de cidade rebelde. A chegada de Leonel Brizola e sua recusa radical ao modelo do “pé na porta do barraco” ativou medos antigos na Zona Sul global, e no Brasil imperial-escravista. Motivou, inclusive, uma das discussões mais estéreis da criminologia: desde logo, a direita raivosa e etiológica que atribui o aumento da violência à ausência do pelourinho – o mercado é ótimo, mas só funciona com o chicote bem à vista. A figura emblemática do governador gaúcho e os ecos da Campanha da Legalidade trouxeram os meios de comunicação para um protagonismo descarado. A política de segurança pública de Brizola, Batista e Nazareth Cerqueira é massacrada pela construção do medo e da desmoralização das garantias. A Operação Rio (1994-1995) é uma intervenção políticomilitar nesse sentido. Naquela conjuntura eleitoral realizam-se os sonhos

de

Ipanema:

tanques

apontados

para

os

morros,

neoliberalismo na Presidência e na economia. Os livros de Wilson Couto Borges e Cecília Coimbra iluminam o debate destacando o ponto de vista dos derrotados. Uma parcela grande da esquerda não se deu conta do que acontecia ou preferiu não se associar àquela mácula, o melhor era ficar bem com a imprensa. Esqueceram-se da poesia de Brecht e hoje são acossados pela

mesma máquina de guerra. Uma vez detonado o mecanismo diabólico é difícil controlá-lo. De lá para cá, o que se vê é um verdadeiro circo dos horrores, a obra insana do petucanismo político penal: além do eixo crimes hediondos/crime

organizado,

RDDs,

administralização

dos

“benefícios”, justiça terapêutica e outros dispositivos a magnificar na legislação penal, no processo penal e na execução penal, as grosseiras feições autoritárias da nossa história. Mas o trabalho de Salo não é só crítico e nem desesperançoso. Ele aposta em novas perspectivas para a descriminalização das drogas. E ele as discute no território da dogmática, trincheira fundamental para a desconstrução do arbítrio e da brutalidade. Salo leva o garantismo até as últimas consequências, no sentido da redução de danos e da exploração dos paradoxos e contradições do liberalismo. Os discursos e as práticas descriminalizadoras são companheiras essenciais na luta contra o neoliberalismo e o Estado Penal. É curioso observar a magnitude subjetiva da questão drogas. Elas põem em jogo sua condição de “alteradoras da consciência”, e parece que o establishment requer controle total sobre a forma como são alteradas as consciências: as lícitas têm o processo de produção dominado e o aval do complexo farmacoquímico transnacional. É importante entendermos que para que se produza o

assujeitamento total a essa economia é necessário uma consciência reificada, que pretende manter uma determinada ordem de coisas, impedindo a ruptura entre a consciência do lugar projetado para as classes sociais e a construção de um outro futuro. Marildo Menegat demonstra como tudo isso faz parte de relações entre os homens e deles com a natureza que são reduzidas a relações de domínio, de objetificação. Digamos então que o controle das consciências é fundamental para o capitalismo de barbárie. O parodoxo da modernidade, a barbárie produzida pelo excesso de civilização, aparece nas ciências e nas técnicas usadas para o controle da pobreza: extermínio e aniquilação. O fato é que a violência, a agressividade, a criminalização e o encarceramento apresentam estatísticas nunca vistas antes na história dos homens. A nova ordem

econômica

totalizante

precisa

das

metáforas,

do

disciplinamento e da indústria bélica. O cenário do “excesso de civilização” é o das ocupações militares (favelas do Rio, muros na Palestina, Haiti, rebeliões nos presídios do Acre e de Kabul), seguidas das comitivas das corporações do direito humanitário e suas estrelas hollywoodianas. Só um estado permanente de guerra pode fortalecer um “poderoso dique contra as forças utópicas”, que não cessam de se multiplicar, dos círculos bolivarianos aos meninos-bomba do Islã.

A nossa política criminal de drogas é um importante instrumento de barbárie e este renovado e revigorante livro de Salo afina nossos argumentos e nossa potência para combatê-la na direção de tempos melhores, tempos de delicadeza. Rio de Janeiro, abril de 2006. Vera Malaguti Batista

PREFÁCIO (1ª EDIÇÃO) Dos Discursos Enunciados aos Discursos Silenciados: recuperando a dignidade da Política Criminal pelo e para o homem Ao prefaciar A Política Criminal de Drogas no Brasil, dissertação de Mestrado de Salo de Carvalho que orientei junto ao Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC), quero inscrever aqui a honra com que o faço, sob o crivo da responsabilidade que me é conferida. Pois, ser um prefaciador é, afinal, ser um sujeito em busca do (difícil) equilíbrio no “dizer”. Busca que não se confunde, por sua vez, com uma aproximação da (fictícia) neutralidade científica positivista. Mas por que me honra prefaciar esta obra? Primeiramente, pelo histórico de seu autor que indireta e depois diretamente acompanhei e que trago aqui à colação, seja para homenageá-lo, seja para que o leitor melhor compreenda o lugar de onde fala e o trabalho por ele produzido. Num modelo de Curso Jurídico de graduação fortemente centrado no “Ensino” em detrimento da Pesquisa e da Extensão e num Ensino “reprodutor” ao invés de “produtor” de conhecimento – particularmente a Dogmática Jurídica – Salo de Carvalho integra um

minoritário e seleto universo de acadêmicos que se destaca pelo histórico de dedicação ao estudo, curiosidade intelectual e interesse na pesquisa, associados à militância em Movimentos como o Direito Alternativo, desde a Graduação em Direito, que cursou na UNISINOS, Rio Grande do Sul. Foi com este perfil que o conheci, meu aluno que foi nas disciplinas de Pesquisas em Criminologia e Políticas Criminais e Pesquisas em Dogmática Penal, no CPGD/UFSC, a partir das quais inaugurei com ele um produtivo e prazeroso diálogo que se estendeu e aprofundou ao longo da construção desta que hoje se torna, felizmente, uma dissertação socializada. A formação crítica e interdisciplinar que então recebeu neste curso de Mestrado só fez verticalizar um processo de conhecimento e maturação acadêmica que, por sua vez, Salo trilhou com sabedoria. A sabedoria de quem não se limita a “aprender”, mas “apreende” e (re)escreve a própria escritura. Esta foi também a riqueza do nosso processo pedagógico, da sala de aula à orientação, a riqueza da interação permanente. É o resultado deste histórico que preliminarmente se evidencia, nesta dissertação: segurança teórica, zelo metodológico, equilíbrio na argumentação. É do trabalho produzido, pois – segundo grande motivo pelo qual me honra prefaciá-lo –, que passo a falar. Do que se trata, o que objetiva e que caminhos trilha para tal?

Seu objetivo fundamental foi o de diagnosticar a existência da Política Criminal de drogas no Brasil e identificar a sua especificidade (perfil ideológico) fundamentando, neste movimento, a

necessidade

da

descriminalização

e

as

alternativas

à

criminalização. É senso comum a ideia de que o combate à criminalidade e, particularmente, ao uso e tráfico de entorpecentes são fortemente obstaculizados, no Brasil, pela inexistência de uma adequada Política Criminal. A hipótese aqui desenvolvida e fundamentada rompe com este senso comum precisamente ao afirmar que tal política “existe” e tem uma coerência interna. Trata-se de uma política de guerra, combate ou beligerância (genocida) que, inserida num processo de transnacionalização

ou

globalização

do

controle

social,

é

potencializada, no Brasil, por uma tríplice base ideológica: a ideologia da defesa social (em nível dogmático) complementada pela ideologia da segurança nacional (em nível de Segurança Pública), ambas ideologias em sentido negativo instrumentalizadas (no nível legislativo) pelos Movimentos de Lei e Ordem (como sua ideologia em sentido positivo). A

abordagem

traz,

neste

sentido,

uma

proposta

de

compreensão ampla do terreno onde se desenha e move a Política Criminal de Drogas (extensão que abrange os níveis legal,

dogmático e de segurança pública, e perpassando-os, o nível ideológico) a partir da ampliação do próprio conceito de Política Criminal relativamente às suas matrizes clássicas (Beccaria, Feuerbach, Liszt, etc.). O mote que sustenta toda a argumentação é o da distinção entre o discurso oficial (declarado) e a funcionalidade real da Política Criminal de drogas (não declarada) pondo a descoberto esta última e situando o primeiro como o seu discurso legitimador, o que remete, diretamente, para o conceito e o funcionamento da ideologia no interior do sistema de controle penal. O marco teórico centralmente adotado é a Criminologia desenvolvida com base no paradigma da reação social associada a outras disciplinas das Ciências Sociais. Daí que a abordagem é, marcadamente, crítica e interdisciplinar projetada para a análise do discurso oficial. A perspectiva, enfim, em que o autor se insere, imediata e prioritariamente

jus-humanista-minimalista

e,

mediatamente,

abolicionista, o conduz a analisar o fenômeno sob o prisma do pluralismo cultural e da realidade marginal latino-americana, visualizando no processo descriminalizador a possibilidade concreta de minimização da atuação genocida e seletiva do modelo de sistema penal em vigor. Obviamente, como o leitor verá, o novo aqui não é o (já velho) discurso da descriminalização, mas o lugar de

onde é enunciado e fundamentado – a própria técnica penal –, e o modo pelo qual é feito – mediante a superação do vigor passional. Trata-se, indubitavelmente, de uma investigação séria e importante que deverá trazer uma contribuição fundamental ao debate no país. Pois, ao mesmo tempo que é densa na apreensão e sistematização

da

problemática,

propõe

um

deslocamento

qualitativo de abordagem em relação ao senso comum oficial sobre as drogas, mérito, sobretudo, do marco teórico adotado. Deslocamento antecipado, no Brasil, pelos corajosos trabalhos da Dra. Éster Kosovski, particularmente quando de sua atuação junto ao CONFEN e aos quais se rende, aqui, a devida homenagem. De outra parte, a importância temática, acadêmica e política que este trabalho por si só detém é conjunturalmente duplicada. É que neste final de século e milênio o sistema de controle penal construído no marco do projeto da modernidade, isto é, desde os séculos XVIII e XIX, experimenta um duplo e contraditório movimento. Por um lado, uma crise de legitimidade sem precedentes e traduzida no profundo déficit existente entre suas promessas e sua real funcionalidade. Por outro lado, se uma das vias de resposta a esta crise tem sido as tendências denominadas minimalista e abolicionista do sistema

penal,

instrumentalizadas

pelos

movimentos

de

descriminalização,

despenalização

e

descaracterização,

a

contraface desta resposta tem sido um movimento inverso de (neo)criminalização, (neo)penalização, (neo)encarceramento, que, já classicamente denominado Movimento de Lei e Ordem, implica uma forte demanda relegitimadora do sistema penal mediante a distinção do que pode ser, neste contexto de crise, considerada a nova Musa do Direito Penal: a distinção entre a criminalidade “leve” e a criminalidade “grave”, destinatária do Movimento de Lei e Ordem e contra a qual deve desaguar toda a fúria do sistema penal (deslegitimado). Embora esta dupla tendência seja globalmente verificável, em face mesmo do processo de transnacionalização do controle social e do controle penal como espécie deste, no Brasil o pêndulo oscila, particularmente, na segunda direção. E, enquanto a primeira tendência tem atrás de si várias décadas de investigação criminológica (precisamente a Criminologia desenvolvida com base no paradigma da reação social) a subsidiar-lhe, o Movimento de Lei e Ordem só tem atrás de si a voz do voluntarismo e do poder de plantão, encontrando no Mass Media seu grande instrumento ideológico de difusão e formação (sensacionalista) de opinião. Nesta esteira, tudo se substitui à Criminologia, tudo é fonte da Política Criminal: a dor de uma mãe, a obsessão de um pai... O privado assume o lugar do público e dita as regras do jogo criminal.

O “combate às drogas” recebe, neste contexto de crise, uma particular atenção do discurso oficial, estando inscrito no centro desta bipolaridade: descriminalização? Até certo ponto sim, mas para o usuário (leve). (Neo)criminalização? Hediondez? Com certeza..., para o traficante (grave). Combate transnacional ao narcotráfico. Ao abordar também a retórica desta distinção Salo de Carvalho acaba por evidenciar, ainda que indiretamente, como o campo da drogadição se converteu num dos grandes “bodes expiatórios” da manipulação política da criminalidade. Esta a importância duplicada a que me refiro. A importância de deslocar o debate para o plano epistemológico (emancipatório) quando vivemos um tempo de alucinação em matéria de Política Criminal. A importância de elaborar um contradiscurso, de dizer não ao panpenalismo, à esquizofrenia penal. E de fortalecer as fileiras, ainda que sob o preço da abissal diminuição de espectadores, do contrapoder ao poder que a mídia assume no Movimento de Lei e Ordem; contrapoder que deve unir minimalistas e abolicionistas. E, neste deslocamento, recuperar a dignidade da Política Criminal, porque, sem sombra de dúvida, se o reinado das Ciências Criminais já esteve com a Dogmática Penal e posteriormente com a Criminologia, este lugar, hoje, pertence à Política Criminal em plena revisão de sua identidade política epistemológica.

Enfim, quero dizer que há pelo menos duas grandes vozes sistematicamente silenciadas pelos discursos oficiais das drogas e que “vitalmente” devem ser ouvidas: a dos envolvidos na situaçãoproblema, os drogaditos e seu universo de interação e a voz do conhecimento emancipatório. Porque, na essência, é o homem que está

em

questão.

É

o

homem

o

grande

sujeito-objeto

subjacentemente tematizado nesta questão e o seu destinatário. E do que se trata, em última instância, é da salvaguarda de vidas humanas. O universo da drogadição, ainda que ilusoriamente envolto numa profunda sensação de prazer, é um universo de dor. O universo do castigo, simbolizado e institucionalizado no sistema penal, também o é. Da mesma forma que enfrentar o problema das drogas como o objeto teórico implica um esforço de suspensão da dor – e do discurso passional –, converter o problema da drogadição num problema penal, ou seja, criminalizá-lo, com as dimensões que hoje lhe confere o processo de transnacionalização do controle social, só pode redundar numa duplicação da dor e do sofrimento inútil. O que é tão absurdo do ponto de vista humanista, epistemológico e emancipatório quanto compreensível do ponto de vista da manipulação política da criminalidade. Salo de Carvalho – e felizmente hoje com ele uma geração de novos juristas formados sob outra direção – tem nítida consciência

disto. Por isso resgata, aqui, a voz do conhecimento emancipatório e dos direitos humanos como objeto e limite do poder de punir, o que só pode desembocar numa outra voz: menos castigo, menos dor, minimização da violência. Honra-me, pois, em definitivo, ser partícipe desta geração que, superando mitos como “demonização” das drogas e “satanização” do abolicionismo, se libertou para fazer da

pretérita

geografia

(um

campo

fechado

e

estático)

a

contemporânea e futura história (um campo aberto e em “devir”) do penal. Ilha de Santa Catarina, outubro de 1996. Vera Regina Pereira de Andrade Doutora em Direito e Professora nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC.

NOTA EXPLICATIVA À 8ª EDIÇÃO

Escrevo esta nota explicativa acompanhando os intensos debates sobre os rumos da política criminal de drogas no Brasil. Na

linha

do

incremento

do

punitivismo,

a

síntese

é

representada pelo Projeto de Lei 7.663/10. Entre as principais alterações propostas, dois temas se destacam: (1º) a previsão de internação compulsória para usuários; e (2º) a inclusão de uma causa especial de aumento de pena (art. 40) para os casos de comércio de drogas com “alto poder de causar dependência”. Para além dessas questões altamente polêmicas, o projeto objetiva modificar novamente (e de forma radical) a estrutura normativa da Lei de Drogas. Não se trata apenas de uma reforma setorial, mas de uma mudança global que densifica o significado e o direcionamento repressivo dado à política criminal de drogas no Brasil nas últimas décadas. Em um momento em que inúmeros países avançam nas políticas de redução de danos, optando explicitamente pela descriminalização (legislativa ou judicial) do porte de drogas para consumo (emblemáticos os casos de Portugal, Argentina e Estados Unidos, mas, sobretudo, do Uruguai, que legalizou toda a cadeia de produção e distribuição de maconha), o referido projeto reforça o

paradigma bélico instaurado nos anos 1980 pela política war on drugs. Apesar do reconhecimento mundial do fracasso desse modelo, importantes setores dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário reiteram a adesão ao punitivismo, cujos efeitos, nas últimas décadas, foram aumentar vertiginosamente os índices de encarceramento e criar barreiras à implementação de alternativas eficazes ao tratamento das pessoas que fazem uso problemático das drogas. Como o leitor poderá perceber ao longo da investigação, nossa política de drogas é marcada por constantes alterações, com poucos avanços e muitos retrocessos, sempre no sentido de reforçar o paradigma bélico e de dificultar a implementação de políticas de redução de danos. Todavia, em paralelo ao debate sobre o Projeto de Lei 7.663/10, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento sobre a (in)constitucionalidade do porte de drogas para uso pessoal. Nesse exato momento, após o voto do Relator, Ministro Gilmar Mendes, reconhecendo a violação que a proibição produz na estrutura constitucional, os autos se encontram com o Ministro Fachin. Importante lembrar que esse tema ganhou destaque nos meios de comunicação em decorrência de sete ex-Ministros da Justiça e do Supremo Tribunal Federal (Tarso Genro, Márcio Thomaz Bastos, Aloysio Nunes, Miguel Reale Júnior, José Carlos Dias, Nelson Jobim

e José Gregori) haverem redigido, no final de 2012, um manifesto defendendo a inconstitucionalidade da criminalização. O manifesto foi entregue ao Ministro Relator e, para além de contundentes argumentos jurídicos, apresentou importantes e positivos dados sobre a descriminalização em Portugal, Espanha, Colômbia, Argentina, Itália e Alemanha. Por outro lado, no próprio âmbito legislativo a questão é dúbia, pois o Anteprojeto de Reforma do Código prevê a descriminalização para o uso pessoal. Em meio à indecisão acerca do direcionamento da nossa política criminal, a 8ª edição apresenta algumas revisões (e poucas atualizações) às novidades inseridas na anterior. Foram novamente atualizados os dados relativos ao impacto do proibicionismo nos níveis de encarceramento e, em razão da ausência de novas e pormenorizadas informações do Departamento Penitenciário, optouse por manter a exclusão do mapa dos substitutivos penais. O artigo redigido com Marcelo Mayora, Mariana Garcia e Mariana Weigert (Apêndice 1), que apresenta dados concretos sobre o tratamento penal (substitutivos penais) imposto aos usuários de drogas na cidade de Porto Alegre, torna-se ainda mais atual e relevante, sobretudo pelo julgamento no Supremo Tribunal Federal. O texto, a partir do estudo de casos concretos, permitirá compreender a forma de utilização dos substitutivos penais pelo

sistema penal, enfatizando como a irracionalidade da política proibicionista atinge o Poder Judiciário. De igual maneira, o artigo que apresenta, de forma nominal (novamente através da técnica metodológica dos estudos de casos), os problemas decorrentes da alta volatilidade dos tipos penais e dos critérios postos na Lei de Drogas, sobretudo do dispositivo do art. 33 da Lei 11.343/06 (Apêndice 2). Percebe-se, pois, que o momento da política criminal brasileira de drogas é de polarização entre dois modelos absolutamente distintos. Possível, inclusive, que, nesse debate, Legislativo e Judiciário assumam posições radicalmente opostas. Assim, resta aguardar alguma definição e torcer para que o Brasil avance positivamente na matéria, o que significaria, na crueza do cotidiano da repressão penal às drogas, salvar inúmeras vidas de pessoas e de grupos sociais em situação de vulnerabilidade.

Rio de Janeiro, Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), agosto de 2015.

INTRODUÇÃO

Mas o importante é descobrir o rumo e andar corrigindo, sempre, os desvios de visão e formulação, com o olho voltado para a práxis e com a certeza de que a teoria emerge do contato com ela. (Roberto Lyra Filho)

1. A Justificativa A política criminal de drogas, desde o ponto de vista dos processos de criminalização, de sua estruturação dogmática e da operacionalidade das agências repressivas, define espécie de tipo ideal (Weber) de repressão e de gestão do sistema penal nacional. Em outros termos, a política criminal de drogas assumiu, a partir da assunção dos projetos transnacionalizados pelas agências centrais aos países periféricos, o papel significativo de definição dos horizontes de punitividade. Desta forma, seu estudo permite visualizar não apenas o caso específico do sistema punitivo das drogas, mas possibilita diagnóstico de toda a estrutura repressiva. Este fato, aliado à alteração na legislação sobre a matéria em 2006 (Lei 11.343/06), justifica a investigação proposta.

2. O Enfoque Criminológico e Transdisciplinar O debate sobre a questão das drogas tem sido realizado ao longo da história em vários campos do conhecimento, fomentando a pesquisa deste objeto por essência transdisciplinar. Assim, os mais diversos estudos podem ser visualizados: de investigações realizadas na esfera sanitária pela medicina, psiquiatria e farmacologia, às pesquisas na área das humanidades, como antropologia, sociologia, história, psicanálise e psicologia. No direito, a cegueira provocada pelo positivismo dogmático invariavelmente tem obscurecido a necessária abertura do tema aos demais ramos do saber. Por este motivo, as investigações realizadas no direito penal e processual penal das drogas são profundamente limitadas às avaliações exegéticas, meramente descritivas, das leis em vigor, normalmente a partir da técnica dos comentários de artigos e das variações jurisprudenciais. Os estudos alienígenas no âmbito das ciências jurídicas, quando são realizados, normalmente ocorrem de forma incidental, como justificadores ou interrogadores de determinados posicionamentos político-criminais consolidados. Em decorrência desta limitação, a investigação será marcada essencialmente pelo olhar criminológico crítico, entendendo-se a criminologia contemporânea como espaço de encontro de inúmeros saberes cuja preocupação central de estudo é o desvio (im)punível

e as respostas formais e informais elaboradas para o seu controle. A criminologia, portanto, desde esta perspectiva, configuraria campo de convergência transdisciplinar no qual desembocam saberes problematizadores do direito e do processo penal (das drogas). Ao adquirir a qualidade de lente de aumento dos sintomas sociais contemporâneos, a criminologia atuaria como instrumento de diagnóstico e prognóstico das políticas criminais no campo das toxicomanias, ou seja, das opções repressivas e/ou preventivas realizadas pelas agências formais de controle. Neste quadro, o principal objetivo do trabalho é, a partir desta lupa criminológica, redimensionar a relação entre as esferas criminais (dogmática penal, dogmática processual penal e política criminal), gestando discurso crítico de integração entre os ramos penais e destes saberes com as demais ciências. Registre-se, contudo, que a proposição não intenta reviver as propostas originárias relativas às ciências criminais integradas, sobretudo

nas

matrizes

apontadas

por

Liszt

ou

Rocco.

Diversamente das perspectivas tradicionais impulsionadas no direito penal pelo positivismo dogmático e na criminologia pelo positivismo etiológico – “(...) pensamentos que se limitam a descrever o que é visível, a mostrar que uma dada coisa que existe se apresenta desta ou daquela maneira, com estas ou aquelas características” 2 –, intenta-se

viabilizar

modelo

integrado

crítico

aberto

à

transdisciplinaridade. A orientação crítica seguida na pesquisa merece o qualificativo porque “suscitando o que não é visível, para explicar o visível, se recusa a crer e a dizer que a realidade se limita ao visível. Sabe que a realidade está em movimento (...)”. 3 Se a criminologia etiológica mantém diversas pesquisas voltadas à resposta da indagação “por que determinadas pessoas usam drogas?”, a crítica perguntará “por que certas substâncias são consideradas lícitas e outras ilícitas?”. A mudança na forma de questionamento permitirá à criminologia, ao direito penal e processual penal e às políticas criminais absterem-se do papel meramente descritivo das funções oficiais (declaradas) do sistema penal das drogas para descortinar os efeitos de sua programação no incremento e na manutenção dos processos criminalizadores. A base teórica fornecida pelo paradigma da reação social permite constatar o processo moralizador e normalizador das políticas proibicionistas, sobretudo aquelas relativas às drogas. A propósito, esta anamnese fora realizada na década de 1970 pelo ensaísta Roberto Lyra Filho, ao fazer “análise dos tipos penais que constituem ‘normalidade sociológica’, tais como o aborto, a casa de prostituição, o adultério, o consumo de certas drogas proibidas e a não proibição de outras”. 4

3. As Dimensões do Proibicionismo

O instrumental desenvolvido pela Criminologia Crítica, desde o câmbio de perspectiva realizado pelos teóricos da reação social (criminological turn), permite focar a investigação no sentido de identificar as variáveis da política criminal brasileira de combate às drogas (ilícitas), notadamente neste momento de intenso câmbio legislativo (populismo punitivo). Desde esta perspectiva, confrontarse-á o discurso oficial com as funções exercidas e os efeitos produzidos pela atuação das agências de punitividade (aparelhos formais e informais de controle social). Frequentemente os pesquisadores que criticam o modelo repressivo/preventivo

nacional

partem

do

pressuposto

da

inexistência de política criminal de drogas no país. Ocorre que este diagnóstico somente é possível caso se entenda a política criminal como política pública de tutela e garantia dos direitos fundamentais. A hipótese desenvolvida nesta pesquisa é a da existência concreta de modelo político-criminal de drogas no Brasil. Todavia, distante da programação constitucional de efetivação dos direitos e das garantias fundamentais, há conformação belicista do sistema repressivo advinda da gradual e constante incorporação de signos criminalizadores transnacionalizados, operando sérias violações aos direitos dos sujeitos vulneráveis à incidência das agências punitivas. Assim, sob o enfoque das políticas antiproibicionistas (direito penal mínimo) e dos programas de redução de danos, procurar-se-

á, no primeiro momento, diagnosticar os componentes discursivos que

conformam

posteriormente, experiências

a

política

fornecer

concretas.

de

repressão

alternativas Esta

dupla

às

viáveis

drogas

para,

baseadas

perspectiva

atingirá

em as

proposições da política criminal – v.g. oposição entre modelos de direito penal máximo e direito penal mínimo –, as tendências criminológicas contemporâneas – v.g. confronto entre o enfoque sanitário que prolifera os estereótipos do consumidor-dependente e do comerciante-delinquente e as correntes críticas que procuram dar autonomia e fala ao sujeito envolvido com drogas – e os enfoques jurídico-dogmáticos na esfera penal, processual penal e penitenciária



v.g.

dicotomização

entre

as

tendências

do

dogmatismo positivista e a dogmática crítica (garantismo).

4. A Estrutura da Investigação A primeira parte do trabalho intenta reconfigurar a política criminal brasileira de combate às drogas. Apresenta escorço histórico da legislação de drogas no Brasil, identificando a emergência dos discursos médico-jurídicos e da ideologia da diferenciação. Após esta análise, centra-se na comparação do estatuto político-criminal da Lei 6.368/76 e da Lei 11.343/06, apontando as adequações aos projetos de transnacionalização do controle social e a densificação do belicismo em face da

incorporação histórica da ideologia da segurança nacional pelo modelo autoritário repressivo do Estado brasileiro. Neste contexto, apresenta a reconfiguração do discurso e o incremento do modelo médico-jurídico-político com a nova Lei de Drogas. Não obstante, procura descrever os fundamentos do projeto repressivo, apresentando o Movimento da Defesa Social, os Movimentos de Lei e Ordem e a ideologia da Segurança Nacional como germens da doutrina do direito penal do inimigo que, na atualidade, legitima a intervenção punitiva. As conclusões da primeira parte projetam o modelo brasileiro de guerra às drogas para o terceiro milênio a partir do pêndulo entre o direito penal do inimigo e o estado de exceção permanente. Na segunda parte, o estudo recai especificamente sobre a questão

da

(des)criminalização,

partindo

da

exposição

das

tendências político-criminais contemporâneas críticas, notadamente dos discursos e das práticas descriminalizadoras. Desenvolve e instrumentaliza o projeto antiproibicionista do plano legislativo ao judicial, sendo este privilegiado em face das aberturas que possibilita ao operador do direito. Finaliza com o diagnóstico dos custos e da insustentabilidade jurídica da criminalização das drogas, com a apresentação dos programas de redução de danos e com a análise preliminar dos efeitos jurídicos e sociais da nova Lei de Drogas.

A terceira parte da investigação é marcada eminentemente pela crítica dogmática. Neste ponto o discurso altera radicalmente seu eixo, saindo da perspectiva extrassistemática (criminológica) para adentrar no emaranhado e na complexidade do direito penal das drogas. A mudança de perspectiva é realizada com intuito de instrumentalizar discurso garantista no direito penal e processual penal das drogas. Assim, temas árduos de teoria da lei, teoria do delito e teoria da pena são enfrentados – v.g. os elementos subjetivos dos tipos incriminadores no direito penal das drogas; as condutas previstas no art. 33 da Lei 11.343/06 imunes à adjetivação como crime hediondo; a questão da associação para o tráfico (art. 34,

Lei

11.343/06);

internacionalidade;

a

os

requisitos

questão

do

de

configuração

da

traficante-dependente;

as

possibilidades de progressão e de aplicação de penas alternativas; a inconstitucionalidade do art. 28; a aplicação do princípio da insignificância; os requisitos da transação penal e da justiça terapêutica, entre outros –, procurando fornecer alternativas teóricas e aberturas jurisprudenciais. O trabalho, na última parte do livro, apesar da análise legal, procura livrar-se da assepsia dogmática. É que a doutrina, ao desenvolver estudo sobre leis específicas normalmente, acaba por realizar discussão literal sobre a estrutura do tipo penal, quando não se resume a fornecer sinonímia aos elementos gramaticais

presentes no texto legal. Esta tradição exegética tem sido responsável pela miséria técnica na academia brasileira. Se desde o ponto de vista teórico esta tradição parece ingênua, no cotidiano forense e na vida dos envolvidos no problema das drogas produz efeitos concretos. Para tanto, a investigação procurou tensionar ao máximo a estrutura das normas, apontando falhas, lacunas e contradições no sentido de encontrar saídas garantistas à sonolência dogmática, com a finalidade de procurar, no interior do sistema normativo, formas discursivas adequadas à efetivação dos direitos fundamentais. No que diz respeito à instrumentalização do discurso penal crítico através de jurisprudências de vanguarda, merece especial referência a importância histórica da obra Leis Penais e sua Interpretação Jurisprudencial, coordenada por Alberto Silva Franco e Rui Stocco, e do acervo disponibilizado online pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Grande parte da jurisprudência sobre drogas colacionada na pesquisa, embora pensada para aplicação da Lei 6.368/76, foi extraída da obra de Franco & Stocco e das publicações (inclusive eletrônicas) disponibilizadas pelo IBCCrim aos seus sócios. Não apenas a atualidade, mas a extensão das investigações realizadas pelos autores e a qualidade do acervo mantido pelo Instituto revelam ser

ferramentas indispensáveis aos juristas comprometidos com a luta cotidiana pelas liberdades públicas. Por fim, importante dizer que, como toda pesquisa, as conclusões expostas são sempre parciais e provisórias, embora o período inicial de impacto da Lei 11.343/06, quando inúmeros conceitos e inovações ainda não demonstram sua real dimensão e profundidade, tenha sido parcialmente superado. Todavia o momento ainda permite sejam propostas novas práticas, objetivando a redução dos danos causados pelo aumento da punitividade.

1. O MODELO INTERNACIONAL DE CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS 1.1. As Pesquisas sobre (Criminalização das) Drogas As reconstruções históricas em geral, e em particular as relativas aos sistemas legislativos penais, sempre são difíceis de realizar. Um dos fatores que lhes aufere complexidade é o de que os sistemas punitivos, por sua tendência constante a maximizar a criminalização,

invariavelmente

atribuem,

em

algum

período

histórico, algum tipo de sanção para condutas desviantes, ou seja, não é incomum a reedição de hipóteses criminalizadoras. Desta forma, sempre é possível encontrar tipos penais (ideais) históricos para que se possa fazer referência à origem de determinada lei criminal. Todavia o problema de traçar evoluções históricas de temas político-criminais é definitivamente mais complexo. Devido à necessária ruptura com a ideia de linearidade, e ciente de que qualquer reconstrução (histórica) é sempre arbitrária, mesmo quando o objeto de investigação parece ser relativamente fixo e estável, não se pretenderá realizar nesta obra a historiografia da legislação de drogas no Brasil. Desde perspectiva criminológica crítica, o trabalho opõe-se à pesquisa de origem. Em sendo o

conhecimento sempre perspectivo e não havendo cena de inauguração ou de estreia, não se procura buscar o nascedouro dos valores morais que fundam a punição das condutas relacionadas às drogas. Com Giacóia, afirma-se que “a gênese histórica é tarefa preparatória para uma questão mais incisiva, mais radical: aquela que se pergunta pelo próprio valor dos valores e avaliações da moral tradicional”. 5 Em decorrência de se entender o processo de criminalização das drogas como produto eminentemente moralizador, incorporado à perspectiva de punição de opções pessoais e de proliferação de culpas e ressentimentos próprios das formações culturais judaicocristãs

ocidentais,

descontinuidades

a

dos

investigação discursos

procura

legitimadores

apontar das

as

políticas

proibicionistas. O problema de pesquisa, portanto, é relacionado ao campo retórico, às linguagens, às imagens e aos demais elementos que compõem a criminalização, visto serem elementos de formação da subjetividade e de construção da realidade e dos sintomas sociais. A opção por estes elementos configuradores possibilita visualizar, de maneira sempre parcial, o mosaico discursivo, o conjunto dos elementos justapostos que sustenta os discursos criminalizadores. A origem da criminalização (das drogas), portanto, não pode ser encontrada,

pois

inexiste.

Se

o

processo

criminalizador

é

invariavelmente moralizador e normalizador, sua origem é fluida, volátil, impossível de ser adstrita e relegada a objeto de estudo controlável. Desta forma, adequado pensar, a partir de Nietzsche, em invenção – “a invenção – Erfindung – para Nietzsche é, por um lado, uma ruptura, por outro, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho, inconfessável”. 6 Visualizar a invenção dos discursos punitivistas no campo das toxicomanias autoriza resgatar sua proveniência para “descobrir todas as marcas sutis, singulares, subindividuais que podem se entrecruzar e formar uma rede difícil de desembaraçar (...)”, e sua emergência, isto é, a “entrada em cena das forças; (...) [o] lugar de afrontamento”. 7 A tentativa, sempre difícil, de romper com a linearidade tradicional que se apresenta quando é proposta a tarefa de reconstrução de sistemas legais (criminalizadores) não abdicará, porém, da apresentação epocal, a dizer, da visualização, em determinados momentos da história, dos processos punitivos que ajudaram a solidificar e a compor a atual matriz proibicionista. Assim, o trabalho procurará encontrar os nós que possibilitam a captação dos signos conformadores dos discursos, intentando, a partir de sua exposição ao público consumidor do sistema penal, esboçar a (des)continuidade da programação punitiva. A perspectiva genealógica, portanto, instrumentaliza a pesquisa como “uma forma de história que dê conta da constituição dos

saberes, dos discursos, dos domínios de objeto”. 8 Visualizar o problema desde este local abre espaços para reconfigurar sua própria constituição como problema, bem como intentar apresentar formas diferenciadas para a administração e redução dos danos gerados pelas agências de punitividade.

1.2. Brevíssima Apresentação da Legislação de Drogas no Brasil A criminalização do uso, porte e comércio de substâncias entorpecentes no Brasil aparece quando da instituição das Ordenações Filipinas (Livro V, Título LXXXIX – “que ninguém tenha em caza rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso”). 9-10 E se o Código Penal Brasileiro do Império (1830) nada mencionava sobre a proibição do consumo ou comércio de entorpecentes, a criminalização será retomada na Codificação da República. Com a edição do Código de 1890, passou-se a regulamentar os crimes contra a saúde pública, previsão que encontrou guarida no Título III da Parte Especial (Dos Crimes contra a Tranquilidade Pública). Juntamente com a incriminação do exercício irregular da medicina (art. 156), da prática de magia e do espiritismo (art. 157), do curandeirismo (art. 158), do emprego de medicamentos alterados (art. 160), do envenenamento das fontes públicas (art. 161), da corrupção da água potável (art. 162), da alteração de substâncias

destinadas à alimentação (art. 163) e da exposição de alimentos alterados ou falsificados (art. 164), o art. 159 previa como delito “expor à venda, ou ministrar, substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades prescritas nos regulamentos sanitários”, submetendo o infrator à pena de multa. No início do século XX o aumento do consumo de ópio e haxixe, sobretudo nos círculos intelectuais e na aristocracia urbana, incentiva a edição de novos regulamentos sobre o uso e a venda de substâncias psicotrópicas. Com a Consolidação das Leis Penais em 1932, ocorre nova disciplina

da

matéria,

no

sentido

da

densificação

e

da

complexificação das condutas contra a saúde pública. O caput do art. 159 do Código de 1890 é alterado, sendo acrescentados doze parágrafos. Em matéria sancionatória, à originária (e exclusiva) pena de multa é acrescentada a prisão celular. 11 A pluralidade de verbos nas incriminações, a substituição do termo substâncias venenosas por substâncias entorpecentes, a previsão de penas carcerárias e a determinação das formalidades de venda e subministração ao Departamento Nacional de Saúde Pública passam a delinear novo modelo de gestão repressiva, o qual encontrará nos Decretos 780/36 e 2.953/38 o primeiro grande impulso na luta contra as drogas no Brasil.

Assim, é lícito afirmar que, embora sejam encontrados resquícios de criminalização das drogas ao longo da história legislativa brasileira, somente a partir da década de 1940 é que se pode verificar o surgimento de política proibicionista sistematizada. Diferentemente da criminalização esparsa, a qual apenas indica preocupação episódica com determinada situação, nota-se que as políticas de controle (das drogas) são estruturadas com a criação de sistemas punitivos autônomos que apresentam relativa coerência discursiva,

isto

é,

modelos

criados

objetivando

demandas

específicas e com processos de seleção (criminalização primária) e incidência dos aparatos repressivos (criminalização secundária) regulados com independência de outros tipos de delito. No caso da política criminal de drogas no Brasil, a formação do sistema repressivo ocorre quando da autonomização das leis criminalizadoras (Decretos 780/36 e 2.953/38) e o ingresso do país no modelo internacional de controle (Decreto-Lei 891/38). A edição do Decreto-Lei 891/38, elaborado de acordo com as disposições da Convenção de Genebra de 1936, regulamenta questões relativas à produção, ao tráfico e ao consumo, e, ao cumprir as recomendações partilhadas,

proíbe

inúmeras

substâncias

consideradas

entorpecentes. 12 Com a publicação do Código Penal pelo Decreto-Lei 2.848/40, a matéria é recodificada sob a epígrafe de comércio clandestino ou

facilitação de uso de entorpecentes, cuja previsão se encontra descrita no art. 281: “importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar ao consumo substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. A característica marcante do Código Penal de 1940 é a tentativa, a partir do ensaio da Consolidação das Leis Penais na década de 1930, de preservar as hipóteses de criminalização junto às regras gerais de interpretação e de aplicação da lei codificada. No entanto, a partir do Decreto-Lei 4.720/42 (que dispõe sobre o cultivo), e com a publicação da Lei 4.451/64 (que introduz ao art. 281 a ação de plantar), se inicia na legislação pátria – não apenas no que diz respeito às drogas, mas aos entorpecentes de maneira muito especial – amplo processo de descodificação, cujas consequências serão drásticas para o (des)controle da sistematicidade da matéria criminal (dogmática jurídico-penal). A década de 1950 fomenta o primeiro discurso relativamente coeso sobre as drogas ilegais e a necessidade do seu controle repressivo. Como lembra Rosa del Olmo, em face de o consumo de drogas, sobretudo do ópio, até esta década, estar restrito a grupos considerados desviantes, as explicações sociológicas em termos de

subcultura identificam os usuários como devassos – “el fenómeno se percibía en términos de peligrosidad, patología y vicio por lo cual el consumidor era visto como un ‘degenerado’”. 13 Deriva desta concepção, segundo a criminóloga, discurso oficial que pode ser denominado de discurso ético-jurídico, o qual, não obstante potencializar leis penais repressivas, criava o estereótipo moral do consumidor. 14 O principal mecanismo de divulgação do discurso ético-jurídico, em nível internacional, será o Protocolo para Regulamentar o Cultivo de Papoula e o Comércio de Ópio, promulgado em Nova Iorque (1953). Contudo, o ingresso definitivo do Brasil no cenário internacional de combate às drogas ocorrerá somente após a instauração da Ditadura Militar, com a aprovação e promulgação da Convenção Única sobre Entorpecentes pelo Decreto 54.216/64, subscrito por Castello Branco.

1.3. A Transnacionalização do Controle: o Discurso MédicoJurídico e a Ideologia da Diferenciação Com a popularização do consumo da maconha e do LSD durante a década de 1960, mormente pelo fato de estar vinculado à contracultura e aos movimentos de contestação, o uso de entorpecentes aparece como instrumento de protesto contra as políticas

belicistas

e

armamentistas,

criando

as

primeiras

dificuldades às agências de controle penal. 15 Associado às posturas reivindicatórias e libertárias, o uso de drogas ilícitas compõe, junto com outros elementos da cultura (música, literatura, artes plásticas, cinema, vestuário, alimentação, sexualidade), o quadro de manifestações estéticas das políticas de ruptura. Contrariamente ao que aconteceu nas décadas anteriores, o consumo de drogas ganha o espaço público, aumentando sua visibilidade e, consequentemente, gerando o pânico moral que deflagrará intensa produção legislativa em matéria penal. Neste quadro, campanhas idealizadas pelos empresários morais e por movimentos comunicação

sociais

repressivistas

justificarão

transnacionalização

do

os

controle

aliadas

primeiros sobre

os

aos passos

meios para

entorpecentes.

de a A

Convenção Única sobre Estupefacientes, aprovada em Nova Iorque em 1961, é reflexo imediato desta realidade. Segundo Rosa del Olmo, a globalização da repressão às drogas se insere no projeto de transnacionalização do controle social, cuja finalidade é dirimir as fronteiras nacionais para o combate à criminalidade. O substrato ideológico desta política global será fornecido pelo Movimento de Defesa Social (MDS), “que corresponde a una ideología caracterizada por una concepción abstracta y ahistórica de la sociedad donde se destacan fundamentalmente los principios del bien y del mal y de la

culpabilidad, necesaria en ese momento como centralizadora y unificadora de las ‘normas universales’ que debían imponerse”. 16 Como

em

econômico,

todo os

processo argumentos

de

universalização

centrais

para

a

cultural repressão

e/ou da

delinquência passam a ser invocados de forma autônoma e distante das especificidades locais. Assim, “al querer uniformizar el control social transnacionalmente a través de estos códigos, se le está dando al delito un carácter abstracto y ahistórico, olvidando su especificidad concreta en cada formación social”. 17-18 Passa a ser gestado, neste incipiente momento de criação de instrumentos totalizantes de repressão, o modelo médico-sanitáriojurídico 19 de controle dos sujeitos envolvidos com drogas, fundado em duplo discurso que estabelecerá a ideologia de diferenciação. A principal característica deste discurso é traçar nítida distinção entre consumidor e traficante, ou seja, entre doente e delinquente, respectivamente. Assim, sobre os culpados (traficantes) recairia o discurso jurídico-penal do qual se extrai o estereótipo do criminoso corruptor da moral e da saúde pública. Sobre o consumidor incidiria o

discurso

médico-psiquiátrico

consolidado

pela

perspectiva

sanitarista em voga na década de 1950, que difunde o estereótipo da dependência 20 – “o problema da droga se apresentava [na década de 1960] como ‘uma luta entre o bem e o mal’, continuando com o estereótipo moral, com o qual a droga adquire perfis de

‘demônio’; mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se o pânico devido aos ‘vampiros’ que estavam atacando tantos ‘filhos de boa família’”. 21 A avaliação de Rosa del Olmo é chave de leitura da base discursiva da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961. O escopo do estatuto, definido no preâmbulo da Convenção, refere a necessidade de manutenção da saúde física e moral da civilização, sendo a toxicomania considerada perigo social e econômico para a humanidade. Desta forma, o combate a esse mal exigiria ação conjunta e universal, orientada por princípios idênticos e objetivos comuns, devendo ser projetada política internacional de controle que viesse a substituir os tratados existentes sobre entorpecentes. A ação contra o tráfico e o tratamento dos toxicômanos solidificam o discurso fragmentador. Não obstante o processo de demonização da droga em face da consolidação da ideologia da diferenciação, 22 pode ser visualizado o uso político dos entorpecentes pelas agências repressivas através da nominação de novos inimigos. 23 Com a adequação das normas internas brasileiras aos compromissos internacionais de repressão, é editado o Decreto-Lei 159/67, que iguala aos entorpecentes as substâncias capazes de determinar dependência física e/ou psíquica – “nesta matéria, o Brasil foi o segundo país do mundo a enfrentar o problema,

considerando tão nocivo quanto o uso de entorpecentes o uso, por exemplo, de anfetamínicos ou dos alucinógenos”. 24 Substancial modificação, porém, acontece com a publicação do Decreto-Lei 385/68. O dispositivo do art. 281 do Código Penal, em decorrência do princípio da taxatividade, proporcionava a punição exclusiva do comerciante de drogas, visto que o entendimento dado pelo Supremo Tribunal Federal era o da não abrangência dos consumidores. A descriminalização (judicial) do uso, porém, gerava situação que “suscitava preocupações no âmbito da repressão”. 25 Assim, contrariando a orientação internacional e rompendo com o discurso de diferenciação, o Decreto-Lei 385/68 modifica o art. 281 do Código Penal, criminalizando usuário com pena idêntica àquela imposta ao traficante. Com a inclusão de novo parágrafo, há previsão de que “nas mesmas penas incorre quem ilegalmente: traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Como observou Menna Barreto, “o legislador brasileiro optou pela medida drástica de identificar, na mesma categoria, todos os envolvidos com tóxicos, independentemente do grau da sua participação”. 26 Segundo Ney Fayet de Souza, “o Decreto-Lei n. 385 abalou a consciência científica e jurídica da Nação, dividindo juristas, médicos, psiquiatras, psicólogos e todos quantos se voltam

para o angustiante problema da vertiginosa disseminação do consumo de produtos entorpecentes”. 27 Após três anos de vigência do Decreto-Lei 385/68, a Lei 5.726/71 adequa o sistema repressivo brasileiro de drogas às orientações

internacionais,

marcando,

definitivamente,

a

descodificação da matéria. A Lei 5.726/71 redefine as hipóteses de criminalização e modifica o rito processual, inovando na técnica de repressão aos estupefacientes. Todavia o fato de não mais considerar o dependente como criminoso escondia faceta perversa da Lei, pois continuava a identificar o usuário ao traficante, impondo pena privativa de liberdade de 1 a 6 anos – “importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda ou oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar ou ministrar, ou entregar de qualquer forma ao consumo substância entorpecente ou que determine dependência” (...) “Nas mesmas penas incorre: quem traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica.” Nas lições de Ney Fayet de Souza, “a ‘Lei Antitóxicos’ [Lei 5.726/71] deixou a desejar porque quando todos esperavam que o tratamento punitivo para o consumidor da droga, que a trouxesse consigo, desaparecesse ou fosse bem menor do que o dispensado ao traficante – apenas para justificar a imposição

da medida de segurança –, ambos continuaram a ter idêntico apenamento. E agora, com pena ainda maior: reclusão de 1 (um) a 6 (seis) anos, e multa”. 28 A legislação preserva o discurso médico-jurídico da década de 1960 com a identificação do usuário como dependente (estereótipo da dependência) e do traficante como delinquente (estereótipo criminoso). Apesar de trabalhar com esta simplificação da realidade, desde perspectiva distorcida e maniqueísta que operará a dicotomização das práticas punitivas, a Lei 5.726/71 avança em relação ao Decreto-Lei 385/68, iniciando o processo de alteração do modelo repressivo que se consolidará na Lei 6.368/76 e atingirá o ápice com a Lei 11.343/06.

2. A INSTAURAÇÃO DO MODELO JURÍDICO-POLÍTICO 2.1. A Adequação Nacional ao Projeto de Transnacionalização A Lei 6.368/76 instaura no Brasil modelo inédito de controle, acompanhando as orientações político-criminais dos países centrais refletidas nos tratados e convenções internacionais. A escassez do discurso médico-jurídico no que concernia à densificação do processo de repressão permite a elaboração de sistema preponderantemente jurídico, baseado na severa punição que, não obstante manter resquícios do antigo sistema, cria condições para o nascimento do discurso jurídico-político. As condutas criminalizadas na Lei 6.368/76 não diferem substancialmente das figuras típicas encontradas nos estatutos precedentes, notadamente o texto do art. 281 do Código Penal com a redação fornecida pela Lei 5.726/71. A distinção, porém, é no que concerne à graduação das penas, cujo efeito reflexo será a definição do modelo político-criminal configurador do estereótipo do narcotraficante. A estratégia de globalização do controle penal sobre as drogas ilícitas obteve êxito com a ratificação por mais de cem países, durante os anos 1960, da Convenção Única sobre Estupefacientes.

A consolidação ocorre com a aprovação do Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas, em Viena (1971). Entretanto, segundo as agências centrais, sobretudo as norte-americanas, apesar dos esforços repressivos da política externa, a dimensão do problema se agravava visto a não redução dos índices de consumo e comércio domésticos. A estratégia do Governo Nixon, com a importante ação da representação dos EUA nos grupos de trabalho sobre política de drogas na Organização das Nações Unidas (ONU) capitaneada por George Bush, foi a de conduzir a opinião pública a eleger as drogas, principalmente a heroína e a cocaína, como (novo) inimigo interno da nação. Todavia, com a popularização do consumo de heroína e a criação dos programas de metadona, forma indireta de controlar e legalizar o consumo, o inimigo interno teve de ser substituído, projetando-o ao exterior. Rosa del Olmo lembra que o processo de transferência marcado pela responsabilização de países marginais pelo consumo interno de drogas nos EUA acabou por produzir a dicotomização mundo livre versus países inimigos, sendo criadas inúmeras teorias cujo efeito, ao ganharem espaço na opinião pública, foi a difusão de pânicos morais. 29 Dentre as teorias destaca-se o Pacto de Pequim, tese segundo a qual a China estaria envenenando estrategicamente o Ocidente com heroína – “nas vinte e seis fichas referentes ao verbete tóxicos nos arquivos do Dops, a ‘construção do estereótipo’

está sempre presente. Uma delas, de janeiro de 1973, intitula-se ‘Tóxico e Subversão’; é um documento oficial, um artigo sobre a toxicomania como arma dos comunistas. Citando Lênin, Mao e Ho Chi Min, atribui-se a disseminação do uso de drogas a uma estratégia para a destruição do mundo ocidental”. 30 A América Latina logicamente não ficou imune às especulações, principalmente pela produção de cocaína nos países andinos. A síntese do discurso pode ser visualizada no informe do Congresso dos EUA sobre O Tráfico Mundial de Drogas e seu Impacto na Segurança dos Estados Unidos 31 (1972), em que se percebe a culpabilização dos países produtores pelo consumo interno, ou seja, a criminalização do estrangeiro reforça a vitimização doméstica. Os reflexos do projeto externo norte-americano incidiram diretamente nas políticas de segurança pública dos países da América Latina. Se a Lei 5.726/71 pode ser considerada reflexo desta assertiva, com a Lei 6.368/76 o discurso jurídico-político belicista toma a dimensão de modelo oficial do repressivismo brasileiro. A institucionalização do discurso jurídico-político nos países produtores – ou, no caso do Brasil, país rota de passagem do comércio internacional –, a partir da transferência do problema doméstico dos países consumidores, redundará em instauração de modelo genocida de segurança pública, pois voltado à criação de

situações de guerras internas. Para Rosa del Olmo, a cômoda posição das agências centrais produziu resultados desastrosos porque, sendo exportado e imposto do centro à periferia, o discurso jurídico-político ignorava a alteridade, ou seja, estava alheio (ou pouco preocupado) à historicidade, às questões sociais, políticas e econômicas, bem como à relação cultural entre a droga e os grupos sociais envolvidos. Na América Latina, efeito bélico exemplar ocorreu com o etnocídio resultante da inclusão da folha de coca nas listagens de drogas ilícitas a eliminar, com a destruição de culturas seculares entre os povos andinos. O relatório da Resolução 116/74, embrião da Lei 6.368/76, revela a sintonia do projeto nacional ao modelo transnacionalizado na preservação do discurso médico-jurídico e na implementação normativa do discurso jurídico-político. As observações de Menna Barreto, membro do grupo interdisciplinar criado pelo Ministério da Justiça para elaboração do Projeto da Lei de Drogas de 1976, são reveladoras no que tange à preocupação de prevalência da eficácia da repressão (campo processual penal) sobre a prevenção, o incremento da punitividade (campo penal) e redefinição sanitarista do tratamento (campo médico-psiquiátrico): “A presente legislação sobre entorpecentes tem três características primaciais: celeridade racional dos prazos, quanto ao processo; modernidade adequada dos métodos, em relação ao tratamento do dependente de drogas, e

proporcionalidade equitativa de sanções, no que concerne ao direito substantivo”. 32 Assim, no plano político-criminal, a Lei 6.368/76 manteve o histórico discurso médico-jurídico com a diferenciação tradicional entre consumidor (dependente e/ou usuário) e traficante, e com a concretização moralizadora dos estereótipos consumidor-doente e traficante-delinquente. Outrossim, com a implementação gradual do discurso jurídico-político no plano da segurança pública, à figura do traficante será agregado o papel (político) do inimigo interno, justificando as constantes exacerbações de pena, notadamente na quantidade e na forma de execução, que ocorrerão a partir do final da década de 1970.

2.2. A Assinatura Latina: A Ideologia de Segurança Nacional Apesar de o modelo jurídico-político transnacional ter sido incorporado formalmente no Brasil em meados da década de 1970, apontando a ideia do traficante como inimigo interno a ser eliminado pelas agências punitivas civis, desde a década de 1960 a estrutura do sistema de segurança pública operava com idênticos postulados ideológicos, alterando, apenas, o objeto de direcionamento da coação direta. Com a incorporação dos postulados da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) no sistema de seguridade pública a partir do Golpe

de 1964, o Brasil passa a dispor de modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminação/neutralização de inimigos. A estruturação da política de drogas requeria, portanto, reformulação: ao inimigo interno político (subversivo) é acrescido o inimigo interno político-criminal

(traficante).

Categorias

como

geopolítica,

bipolaridade, guerra total, adicionadas à noção de inimigo interno, formatam o sistema repressivo que se origina durante o regime militar e se mantém no período pós-transição democrática. A constante (re)adequação da lógica bélica aos discursos contingenciais permite inclusive afirmar que sua estrutura ideal e ideológica permanece inabalada, pautando, ainda hoje, as ações punitivas de intervenção legal, judicial e executiva – v.g. criminalização

dos

crimes

hediondos,

repressão

ao

crime

organizado, formulação de políticas penitenciárias diferenciadas. Sobretudo porque neste paradigma proibicionista, nos dizeres de Vera Malaguti Batista, “existe uma renúncia expressa à legalidade penal através de um controle social militarizado e verticalizado sobre os setores mais pobres da população ou sobre os dissidentes. Esse poder configurador é também repressivo ao interiorizar a disciplina, configurando

uma

sociedade

submetida

a

uma

vigilância

interiorizada da autoridade”. 33 Analisando o aumento gradual do consumo de cocaína no Rio de Janeiro a partir dos anos 1970, Vera Malaguti Batista percebe a

cisão do discurso jurídico-político-médico conforme a identidade do sujeito criminalizado: “Aos jovens de classe média, que a consomem [cocaína], aplica-se o estereótipo médico, e aos jovens pobres, que a comercializam, o estereótipo criminal”. 34 A constatação da criminóloga carioca sobre a criminalização da juventude pobre por meio da imposição do estereótipo delitivo, seja ao comerciante ou ao consumidor (de cocaína), se integra às conclusões de Rosa del Olmo sobre o consumo de maconha – “tudo dependia na América Latina de quem a consumia [droga]. Se eram os habitantes de favelas, seguramente haviam cometido um delito, porque a maconha os tornava agressivos. Se eram os ‘meninos de bem’, a droga os tornava apáticos”. 35 Nesta complexa rede de (re)afirmação de estereótipos e de distribuição arbitrária e seletiva de etiquetas ocorre o incremento e a densificação, na estrutura dos aparatos da seguridade pública, da lógica militarizada. As agências de controle penal, agregando nestas o importante papel desempenhado pelos meios de comunicação, amparam e são amparadas pelas nascentes campanhas de Lei e Ordem, (re)definindo o inimigo interno a ser combatido: “No início dos anos setenta aparecem as primeiras campanhas de ‘lei e ordem’ tratando a droga como inimigo interno. Permitia-se assim a formação de um discurso político para que a droga fosse transformada em uma ameaça à ordem. As ações governamentais e

a grande mídia trabalham o estereótipo político criminal. Na medida em que se enuncia a transição democrática, este novo inimigo interno justifica maiores investimentos no controle social”. 36 Desta forma, a partir do final da década de 1970 e início da década de 1980 ocorrerá a fusão de dois modelos ideológicos diferenciados (mas não dicotômicos ou exclusivos), cujo efeito será a formatação do modelo repressivo que sustentará o proibicionismo nacional. No que diz respeito à estrutura normativa, a ideia de Defesa Social permeará o imaginário legislativo, adquirindo forte impacto em sua aplicação judicial; quanto ao sistema de segurança pública, o modelo de Segurança Nacional determinará lógica militarizada, a qual será transferida às agências civis de controle do desvio punível.

2.3. O Discurso Médico-Jurídico-Político na Lei 6.368/76 O discurso de formação do tipo ideal militarizado de repressão às drogas ilícitas no Brasil aparece como pano de fundo na construção normativa da Lei 6.368/76. O estatuto repressivo deixa nítida a dicotomização entre usuário/dependente e traficante, aprimorando os instrumentos de distribuição formal dos estereótipos proporcionados pelos discursos médico-jurídico e jurídico-político. Os

binômios

dependência-tratamento

e

tráfico-repressão

permeiam a legislação e, apesar de aparecerem integrados no texto,

sua conjugação é aparente, pois, na realidade operativa do sistema repressivo, criam dois estatutos proibitivos diferenciados, moldados conforme

a

disciplinando

lógica sanções

médico-psiquiátrica e

medidas

ou

autônomas

jurídico-política, aos

sujeitos

criminalizados. A tonalidade alarmista, efeito próprio das campanhas de Lei e Ordem, está presente na legislação, revelando os temores que passam a nortear o senso comum sobre a matéria. O discurso de pânico demonstra a distorção entre o real e o imaginário, sobretudo porque os índices de comércio e consumo de drogas ilícitas no Brasil, em meados da década de 1970, se comparados aos de outros países ocidentais, não são substancialmente elevados. A propósito, importante ter presente, desde o início da investigação, a constatação de Jock Young no sentido de que o campo das drogas – sobretudo pela forma de exposição gerada pelo mass media – é a fonte do pânico moral par excellence, sendo sua imagem frequentemente distorcida, quantitativa e qualitativamente. 37 O primeiro capítulo da Lei 6.368/76, ao tratar do tema prevenção, estabelece como dever de toda pessoa, física ou jurídica, colaborar com a prevenção e a repressão ao tráfico e ao uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica. Trata-se, conforme Vicente Greco Filho, de norma exortiva, cujo escopo é o “chamamento das forças

da Nação para esta verdadeira guerra santa que é o combate aos tóxicos. O dever mais que jurídico é moral (...)”. 38 Em sentido idêntico Mena Barreto, membro da Comissão redatora do Projeto da Lei: “(...) o artigo inicial mantém a filosofia de que é indispensável a colaboração e o esforço conjunto num campo de luta que hoje compromete toda a humanidade. É questão de sobrevivência político-econômica e social (...)”. 39 A mobilização nacional pretendida na abertura do texto, apesar de apresentar-se como integrante das políticas preventivas, projeta sistema repressivo autoritário típico dos modelos penais de exceção. A inversão ideológica do discurso revela os futuros efeitos perversos da Lei de Drogas: a aparente preocupação com as ações preventivas densifica o sistema repressivo.

2.3.1. A Perspectiva Sanitarista: Tratamento Coercitivo A Lei 6.368/76, em seu capítulo segundo, regulamenta o tratamento e a recuperação dos dependentes, independentemente da prática do delito, ou seja, trata-se de norma de aplicação universal a todos os sujeitos envolvidos com abuso de drogas ilícitas. O art. 10 determina regime de internação hospitalar “obrigatório quando o quadro clínico do dependente ou a natureza de suas manifestações psicopatológicas assim o exigirem”. Excetuam-se os

casos de tratamento em regime extra-hospitalar, realizado com assistência de técnicos do serviço social (art. 10, § 1º). A obrigatoriedade terapêutica aos drogaditos, a partir do entendimento

da

toxicodependência

como

fator

criminógeno

revelador de intensa periculosidade social, determina a solidificação do discurso médico-jurídico sanitarista na medida em que (a) associa dependência-delito, (b) abandona a ideia de voluntariedade no tratamento, e, subliminarmente, (c) amplia as possibilidades de identificação do usuário como dependente. A fusão dependência-delito, presente na lógica do tratamento e da recuperação moldada pela Lei de Drogas de 1976, gera espécie de criminalização da adicção, pois, como todos os pressupostos da criminologia etiológica, impõe como dever do Estado a intervenção no dependente para impedir sua conduta criminosa futura. No entanto, o binômio dependência-delito não é apenas equivocado em face de esta relação não ser empiricamente demonstrável, mas porque evoca medidas profiláticas de coação direta absolutamente distantes do ideal do tratamento, mormente ao estabelecer como objetivo da ação médica a prevenção de delitos. Em decorrência, olvida a importância da adesão (voluntariedade) do dependente ao programa de recuperação, transformando o tratamento em medida policialesca.

Por fim, a lógica sanitarista, ao ampliar os espaços de intervenção e aproximar o sistema de saúde das práticas punitivas de repressão, abre espaços para outra perigosa associação, qual seja, a do usuário como adicto em potencial, regulando a imposição de tratamentos aos não dependentes, o que pode ser visto como aplicação de medida de segurança atípica, independente da instauração do devido processo penal.

2.3.2. A Perspectiva Jurídico-Política: Incremento da Repressão Embora a Lei 6.368/76 rompa com a lógica da Lei 5.726/71 e a do Decreto-Lei 385/68, diferenciando o tratamento punitivo entre porte e comércio de drogas ilícitas, as alterações em matéria de penas evidenciam o aprofundamento da repressão. O art. 12 da antiga Lei de Tóxicos especificava inúmeras modalidades de conduta, não restringindo as penas do tráfico apenas à importação, exportação e venda de drogas, verbos nucleares do revogado tipo do art. 281 do Código Penal. Agregamse a estas condutas hipóteses de remessa, preparo, produção, fornecimento e transporte, submetendo-as a tratamento penal rígido, visto o substancial aumento das penas e a ampla margem de discricionaridade judicial para sua fixação (pena de reclusão de 3 a 15 anos).

Outrossim, a legislação autonomiza a “associação para o tráfico” (art. 14), incriminando o concurso de pessoas com o fim de praticar reiteradamente o comércio de drogas ilícitas. Esta previsão independente, cuja pena é a de reclusão de 3 a 10 anos, agregada à possibilidade do concurso de delitos (art. 69 do CP) com o art. 12, revela a preocupação do legislador com o incremento do tráfico de entorpecentes no Brasil. As malhas da punitividade para as hipóteses de tráfico ainda são ampliadas com a criação de causas especiais de aumento de pena (art. 18), com especial destaque à aplicação obrigatória da majorante em caso de tráfico internacional ou extraterritorialidade da lei penal (art. 18, I). Por fim, são aumentadas as penas em face da prática de crime em razão do exercício de função pública destinada à repressão das drogas (art. 18, II); quando o delito visa menores de 21 anos (art. 18, III); e em caso de comércio ou porte de entorpecentes realizado em estabelecimentos de ensino, culturais, sociais ou de tratamento, entre outros (art. 18, IV).

2.3.3. Hiatos de Criminalização: Pequeno Comerciante e Usuário de Drogas Em decorrência da estrutura genérica das cláusulas de criminalização, sobretudo pelo uso multitudinário de verbos nucleares na definição das condutas, é na sanção prevista no art. 12

da Lei 6.368/76 que se encontrará a resposta penal para todas as hipóteses de comércio ilegal de entorpecentes. A redação das majorantes do art. 18, sem qualquer previsão de causas especiais de diminuição de penas para condutas de menor potencial danoso ao bem jurídico tutelado (saúde pública) – excetuando-se os casos de semi-imputabilidade decorrente de dependência (art. 19, parágrafo único) –, junto à inexistência de tipo autônomo ou de especificação de modalidades menos significativas de comércio de drogas, permite perceber como única possibilidade de enquadramento do pequeno vendedor de drogas o art. 12 da Lei 6.368/76. Assim, suas elevadas penas conglobam o comércio ilegal indistintamente, não diferenciando efeitos penais quanto ao poder de venda no atacado ou varejo. Segundo a dogmática penal que enfrentou o tema, é na elasticidade da pena reclusiva, estabelecida (entre 3 e 15 anos), que o magistrado, no caso concreto, dosaria a pena adequando-a ao sujeito incriminado seguindo o método tripartite de aplicação da pena, sobretudo na primeira fase de avaliação de circunstâncias judiciais como a culpabilidade e as consequências do delito. Todavia, a prática forense acabou por revelar aplicação genérica de penalidades severas, sem a diferenciação do pequeno e do grande comerciante de drogas, sobretudo porque a população-alvo da incidência

das

agências

de

controle

penal

acaba

sendo,

invariavelmente, a juventude pobre recrutada para a prática do pequeno varejo. O olhar atento de Vera Malaguti Batista sobre a realidade do tráfico no Rio de Janeiro permite concluir a veracidade da assertiva: “A

disseminação

do

uso

de

cocaína

trouxe

como

contrapartida o recrutamento da mão de obra jovem para sua venda ilegal e constituiu núcleos de força nas favelas e bairros pobres do Rio de Janeiro. Aos jovens de classe média que a consumiam, aplicou-se sempre o estereótipo médico e aos jovens pobres que a comercializavam, o estereótipo criminal. Este quadro propiciou um colossal processo de criminalização de jovens pobres que hoje superlotam os sistemas de atendimento aos adolescentes infratores. A visão seletiva do sistema penal para adolescentes infratores e a diferenciação no tratamento dado aos jovens pobres e aos jovens ricos, ao lado da aceitação social que existe quanto ao consumo de drogas, permite-nos afirmar que o problema do sistema não é a droga em si, mas o controle específico

daquela

parcela

da

juventude

considerada

perigosa”. 40 Paralelo à ausência de previsão de pena inferior para pequenos varejistas, determinando na realidade forense sancionamento similar

ao imposto ao comércio volumoso, o hiato legislativo relativo ao uso igualmente projetava punibilidade reflexa. Embora não houvesse definição expressa da conduta de uso de entorpecentes, ausência que gerou em parte da dogmática penal afirmações da não incidência do sistema punitivo ao usuário, os verbos nucleares do tipo do art. 16 da Lei 6.368/76 acabam, por caminhos indiretos, impondo sanção ao consumidor. Neste sentido, as lições de Alberto Zacharias Toron são claras para o entendimento do problema: “Dizer-se que o uso de drogas não é punido soa, quando menos, estranho porque todas as condutas que possibilitam esta prática (adquirir, guardar ou trazer consigo) são incriminadas. Com efeito, se o usuário para consumir o entorpecente deve, em algum momento, detê-lo e essa detenção constitui crime, é evidente que o uso, ainda que por via oblíqua, é punido. Afirmar o contrário é sofismar”. 41 A conclusão a que se pode chegar, após visualizar o tratamento penal dos comerciantes varejistas e dos usuários de substâncias ilícitas na Lei 6.368/76, é a da necessidade de criação de rede de controle na qual o direito penal atue com rigor mesmo em casos de hiatos de punibilidade (criminalização do uso) ou de baixa danosidade ao bem jurídico tutelado (comércio de drogas ilícitas em pequena quantidade).

3. A BASE IDEOLÓGICA DA POLÍTICA CRIMINAL DA INTOLERÂNCIA: GERMENS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NA ESTRUTURA PUNITIVA BRASILEIRA

Ao historiar o caminho percorrido pela legislação brasileira de drogas e tentar delinear o estatuto político-criminal da Lei 6.368/76, solo de emergência da Lei 11.343/06, pode-se visualizar que a tecnologia legal possibilitou o desencadeamento de política de repressão integrada (planos legislativo, executivo e judiciário) na otimização do projeto global de guerra às drogas. Todavia, embora possa parecer clara a opção das agências penais brasileiras em integrar o plano internacional de repressão, é imprescindível avaliar o horizonte de projeção ideológico que estrutura esta política de beligerância. Se a adesão brasileira ao processo de criação da rede de cooperação internacional para o controle da criminalidade das drogas é realidade palpável, e se os discursos configuradores desta política são apresentados pela crítica criminológica, entende-se como fundamental a exposição desta base ideológica como forma de atualizar o diagnóstico e projetar os novos passos do repressivismo, mormente com o advento da nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06).

A hipótese de trabalho que norteará a anamnese é a de que o sistema proibicionista no Brasil se sustenta no tripé ideológico representado pelos Movimentos de Lei e Ordem (MLOs), pela Ideologia da Defesa Social (IDS) e, subsidiariamente, pela Ideologia da

Segurança

Nacional

(ISN).

A

partir

do

processo

de

redemocratização, apesar do crescimento das expectativas de abertura do enclausuramento na questão das drogas, por mais paradoxal que possa parecer, houve o recrudescimento desta base ideológica com a reconfiguração de sua apresentação ao público consumidor do sistema penal. A renovação ocorrerá sobretudo no que diz respeito à ISN, cuja roupagem, na atualidade, será fornecida pela ideologia político-criminal autoritária que funda a tese do direito penal do inimigo.

3.1. A Dupla Face do Programa de Defesa Social O programa de Defesa Social pode ser visualizado a partir da duplicidade funcional que adquiriu na configuração da ciência penal moderna, através da incidência em campos distintos daquilo que se considera sistema integrado de ciências criminais (criminologia, política criminal e dogmática penal e processual penal). Do ponto de vista da formação da identidade repressiva, a Defesa Social se apresenta como ideologia em sentido negativo, ou seja, como pano de fundo teórico que conforma o senso comum dos

atores do sistema penal. Por outro lado, em sentido positivo, concretiza, no Movimento da Defesa Social (MDS), sujeitos que compartilham o objetivo da transnacionalização de determinados projetos de reforma penal. Segundo Alessandro Baratta, a IDS perpassa o senso comum e teórico sobre criminalidade, sendo transversal à formação dos saberes penais. Nasce com o direito penal liberal e revigora seus postulados com o positivismo criminológico e o tecnicismo dogmático, ou seja, em que pesem as profundas diferenças no que diz respeito aos métodos, aos objetos e às funções (declaradas) do direito nas diversas fases da cultura penal da Modernidade, a IDS apresentaria núcleo principiológico comum rígido. O MDS, por sua vez, poderia ser considerado como “una de las especificaciones que en las últimas décadas ha hallado la ideología de la defensa social”. 42 Apesar de IDS e MDS estarem pautados em pressupostos similares, ambos projetando horizonte de maximização do sistema de repressão penal, não podem ser confundidos, pois sua funcionalidade será diversa, isto é, a IDS pauta os saberes sobre crime e criminalidade definindo sua forma de interpretar o fenômeno delitivo; o MDS, sob o influxo do sistema de ideias da IDS, gera ações político-criminais cujo escopo é universalizar a tecnologia penal.

3.1.1. A Ideologia da Defesa Social: Características e Principiologia O objetivo da estruturação burocrática de controle social inaugurado com a Ilustração foi o de estabelecer mecanismos racionais de repressão e/ou erradicação do delito (política criminal de luta contra a criminalidade). Neste quadro, a IDS se apresenta como elemento configurador, sendo impossível ler a historiografia das práticas punitivas dissociada desta ideologia informadora. Para Alessandro Baratta, a IDS se insere no universo macrossociológico

do

nascente

capitalismo,

inserindo

seus

postulados no amplo movimento de codificação penal ocidental. Com a transformação do Estado Moderno – de Estado Liberal absenteísta em Estado Social intervencionista –, o projeto penal é remodelado, ganhando nova perspectiva com a criminologia etiológica.

Todavia,

independente

da

representação

(liberal-

minimalista ou social-maximalista) ao público consumidor do direito penal e de suas divergências científicas decorrentes (concepção do crime e do criminoso), a IDS atravessa a realidade das práticas repressivas, fundando o senso comum do homem da rua (every day theory) sobre o crime, a criminalidade, o criminoso e a resposta punitiva. 43 Apesar das diferenças relativas ao método e ao objeto das ciências penais nas mais variadas vertentes (racionalismo ilustrado,

positivismo criminológico e tecnicismo jurídico), a IDS dissemina tipo ideal de resposta ao delito no qual se sustenta a ideia de intervenção punitiva racional e científica. O caráter universalista (totalizante) e a-histórico do programa repressivo auferirá a legitimidade do projeto – “el hilo conductor del análisis está dado por una consideración fundamental: el concepto de defensa social corresponde a una ideología caracterizada por una concepción abstracta y ahistórica de sociedad entendida como una totalidad de valores e intereses”. 44 A IDS, projetada como política de transformação legislativa pelo MDS, pode ser reconstruída a partir dos seguintes princípios cardeais – ou mitos fundadores, segundo a Criminologia Crítica –, identificados e nominados por Alessandro Baratta: “(a) Principio de Legitimidad. El Estado, como expresión de la sociedad, está legitimado para reprimir la criminalidad, de la cual son responsables determinados individuos, por medio de las instancias oficiales del control social (legislación, policía, magistratura, instituciones penitenciarias). Éstas interpretan la legítima reacción de la sociedad, o de la gran mayoría de ella, dirigida a la reprobación y a la condena del comportamiento desviado individual, y la reafirmación de los valores y de las normas sociales.

(b) Principio del Bien y del Mal. El delito es un daño para la sociedad. El delincuente es un elemento negativo y disfuncional del sistema social. La desviación criminal es, pues, el mal; la sociedad constituida, el bien. (c) Principio de Culpabilidad. El delito es expresión de una actitud interior reprobable, porque es contrario a los valores y las normas presentes en la sociedad aun antes de ser sancionadas por el legislador. (d) Principio del Fin o de la Prevención. La pena no tiene – o no tiene únicamente – la función de retribuir, sino la de prevenir el crimen. Como sanción abstractamente prevista por la ley, tiene la función de crear una justa y adecuada contra-motivación al comportamiento criminal. Como sanción concreta, ejerce la función de resocializar al delincuente. (e) Principio de Igualdad. La criminalidad es la violación de la ley penal, y como tal es el comportamiento de una minoría desviada. La ley penal es igual para todos. La reacción penal se aplica de modo igual a los autores de delitos. (f) Principio del Interés Social y del Delito Natural. El núcleo central de los delitos definidos en los códigos penales de las naciones

civilizadas

representa

la

ofensa

de

intereses

fundamentales, de condiciones esenciales a la existencia de toda sociedad. Los intereses protegidos mediante el derecho penal

son intereses comunes a todos los ciudadanos. Sólo una pequeña parte de los delitos representa la violación de determinados órdenes políticos y económicos y es castigada en función de la consolidación de éstos (delitos artificiales)”. 45 Não obstante a desconstrução posterior da sua base estrutural, sobretudo pela mudança paradigmática operada pela criminologia da reação social, 46 a IDS permanece fornecendo os signos de interpretação do crime, do criminoso e da pena na atualidade, em decorrência de sua capacidade de reprodução e de capilarização na opinião pública, fato que desencadeia constante aprofundamento das violências nas práticas punitivas – “a ideologia da defesa social sintetiza, desta forma, o conjunto das representações sobre o crime, a pena e o Direito Penal construídas pelo saber oficial e, em especial, sobre as funções socialmente úteis atribuídas ao Direito Penal (‘proteger bens jurídicos lesados garantindo também uma penalidade igualitariamente aplicada para os infratores’) e à pena (controlar a criminalidade em defesa da sociedade, mediante a prevenção geral – intimidação – e especial – ressocialização)”. 47 A estrutura principiológica da IDS permite, assim, ininterrupta (auto)legitimação do sistema repressivo, pois sustenta a ideia de poder racionalizado(r), cujo escopo é a tutela de bens jurídicos (universais)

compartilhados

por

estrutura

social

homogênea.

Ademais, instrumentaliza os aparelhos repressivos determinando

atuação letal em oposição frontal ao discurso oficial de proteção dos direitos fundamentais, ou seja, diferentemente de tutelar bens jurídicos e igualizar a repressão, mantém a estrutura hierarquizada e seletiva do sistema de controle social. Outrossim, se a principiologia de configuração da IDS apresentada por Baratta está circunscrita às práticas punitivas do centro,

na

América

Latina

apresentará

peculiaridades

que

potencializarão o paradigma da beligerância, pois sua virtude totalizadora

(universalizadora)

incrementará

a

incidência

verticalizada do penal/carcerário nos países periféricos. As peculiaridades podem ser traduzidas, fundamentalmente, pela aliança dos postulados da IDS à ISN, conformando modelo ótimo de repressão. Tais indicadores condicionaram a artesania dos principais estatutos criminais de drogas no Brasil (Lei 6.368/76 e Lei 11.343/06), seus correlatos solidificadores (v.g. Lei dos Crimes Hediondos, Lei do Crime Organizado, Lei do Regime Disciplinar Diferenciado) e a formação das políticas beligerantes de segurança pública.

3.1.2. Variante: os Movimentos de Defesa Social Com frequência a Defesa Social, como movimento acadêmico organizado, é apresentada como instrumentalização do paradigma etiológico da criminologia positivista, criada por Gramatica, e

recebendo, a partir da atualização obtida pela obra de Ancel, a denominação de Nova Defesa Social. Segundo João Marcello de Araújo Jr., “o final da Segunda Grande Guerra viu surgir o movimento de maior destaque e permanência, de quantos tempos conhecido. Iniciado em 1945, graças à incansável atividade de Filippo Gramatica, recebeu inicialmente o nome de Defesa Social, sendo posteriormente, em 1954, rebatizado como Nova Defesa Social, cuja ‘bíblia’ é o livro de Marc Ancel, do mesmo ano, La Défense Sociale Nouvelle, do qual deriva a sua denominação”. 48 O referido movimento, desde sua gênese, procurou estabelecer modelo universal para reforma das instituições e leis penais. Em realidade, postula a criação de um sistema integrado de ciências criminais visando reunificação metodológica. Assim, apostaria na criminologia como laboratório de investigação da ação criminosa como fenômeno individual e social; nos direitos penal e processual penal como mecanismos de fixação das regras de interpretação e aplicação das sanções; e na política criminal como ciência ou arte capaz de organizar e dar diretrizes ao legislador, ao juiz e à administração

penitenciária

sobre

os

meios

de

reação

à

criminalidade. A estrutura integrada forjada pelo MDS teria como principal objetivo a tutela da sociedade contra os criminosos através dos sistemas de prevenção do delito (prevenção geral negativa) e

tratamento do delinquente (prevenção especial positiva). Desta forma, “a Política Criminal que ela [Defesa Social] busca instaurar consiste em estabelecer as bases e precisar as orientações de uma luta esclarecida contra o fenômeno criminal. A primeira preocupação é voltada para as condições de uma ação destinada a proteger a Sociedade no seu todo, garantindo desde logo o respeito e a proteção do homem como tal; e essa ação, que visa também por isso mesmo – acabamos de ver – a estabelecer uma melhor higiene social (...)”. 49 O MDS, ao negar as concepções tradicionais do direito penal liberal, sobretudo a função retributiva da pena, é pautado no conceito de ressocialização, autoatribuindo à sua construção teórica caráter humanista. Contudo a adoção de categorias como periculosidade, reeducação, personalidade desviante, prevenção da reincidência e a formação de sistema de medidas de segurança extrapenais desmentem o projeto humanitário, pois, ao serem deslocadas do paradigma etiológico e ao retornarem ao horizonte de ação

do

direito

penal,

revigoram

práticas

autoritárias

e

segregacionistas. 50 Marc Ancel assume claramente a gênese criminológico-positivista do MDS, 51 sustentando-o na negação do livre-arbítrio, na assunção do crime como fato natural e social, no objetivo de proteção da sociedade contra os indivíduos perigosos e na finalidade ressocializadora e preventiva da sanção.

O projeto de universalização do controle social assume como objetivo a reforma dos sistemas penais sob estas bases, propugnando o estabelecimento de luta científica contra o delito – “o movimento de defesa social é universalista por excelência, desconhecendo

assim,

naturalmente,

qualquer

manifestação

nacionalista. O fenômeno criminal é além do mais um fenômeno humano, cujo estudo deve ser realizado antes de tudo pelas ciências humanas, que não conhecem fronteiras. Os meios de lhe fazer face devem ser pesquisados através de uma cooperação internacional decidida e leal; e o exame das experiências estrangeiras,

sua

confrontação

sobrepondo-se

às

técnicas

peculiares a cada país e mesmo a cada sistema, é uma das condições básicas à formulação de uma Política Criminal racional de luta contra o crime”. 52 Embora o MDS exteriorize intenção exclusivamente políticocriminal, a partir do magistério de Alessandro Baratta, é possível perceber que “todas estas ediciones del modelo integrado de ciencia penal [Defesa Social (Gramatica) e Nova Defesa Social (Ancel)] no se halla una alternativa crítica, sino sólo una modificación y un perfeccionamiento de la ideología de la defensa social”. 53 Neste sentido, o MDS transfigura-se na ideologia positiva da IDS, assumindo o caráter de catalizador e publicizador de seus princípios e objetivos.

3.2. A Ideologia de Segurança Nacional e a Militarização do Sistema de Controle Social A partir da década de 1960 praticamente toda a América Latina foi invadida pelos postulados ideológicos da Segurança Nacional que, embora tenha direcionamento específico à visualização do criminoso político como o inimigo a ser eliminado, ao ser agregada à IDS, estabelece pauta rigorosa de combate à criminalidade comum, ou seja, se diversa a principiologia fundante, definindo categorias autônomas na identificação do seu próprio adversário, na harmonização conformarão campo de ação conjunto. A potencialidade transnacional e a lógica maniqueísta de ambas as estruturas ideológicas 54 propiciarão que ocorra esta fusão de horizontes punitivos, estabelecendo estado de guerra total e permanente do sistema penal contra o crime (comum e/ou político). A função deste (super)modelo ideologizado de controle social é, nitidamente, a eliminação do crime/criminoso através da coação direta das agências repressivas. A ISN, assim como o MDS, tem sua gênese no pós-guerra e no início da Guerra Fria, com a bipolarização global entre leste-oeste. A noção de bipolaridade ideológica gera o signo da geopolítica que “orienta o homem de Estado na condução da política interna e externa do Estado e orienta o militar no preparo da defesa nacional e na conduta estratégica. A grande tese geopolítica é a divisão do

mundo em dois poderes antagônicos e a inevitável integração da América Latina em um desses blocos (...)”. 55 É interessante perceber que conceitos como geopolítica e bipolaridade estão centrados na mesma fragmentação maniqueísta encontrada na principiologia fundante da IDS. Contudo, se na IDS os antagonismos se refletem na cisão entre os indivíduos (criminosos versus cidadãos cumpridores da lei), na ISN estarão em oposição nações ou blocos políticos. A divisão do mundo entre o bem e o mal fertiliza o solo discursivo no qual operarão estas ideologias autoritárias. 56 A fragmentação do planeta em polos antagônicos em constante conflito igualmente separa a população, proliferando ideia de desagregação rapidamente consumida pelos aparelhos repressivos dos Estados. Assim, desde o ponto de vista dos regimes políticos ocidentais, sobretudo naqueles nos quais vigiam Estados de exceção como o Brasil pós-64, à constatação da existência de inimigos externos cuja ação é direcionada à corrupção dos valores morais alia-se o medo dos dissidentes internos – criminosos políticos e, posteriormente, os criminosos comuns. Não por outro motivo Borges Filho, ao pesquisar a estrutura política do governo militar brasileiro, percebe que “a geopolítica dos militares latinoamericanos visa não somente estabelecer os limites geográficos do Estado, mas trabalhar com as fronteiras ideológicas, um tipo de

fronteira que não separa um Estado-Nação de outro Estado-Nação, mas uma parte do povo de outra parte do povo, no interior de cada Nação”. 57 A forma de manutenção do corpo social sadio contra as investidas daqueles que pretendem aniquilar os valores morais é a sanção neutralizadora, cuja finalidade, diferente dos modelos de Defesa Social baseados na recuperação do infrator, é estruturada na ideia de eliminação. Neste quadro não é difícil perceber a estruturação beligerante dos sistemas de segurança pública e das reformas penais e processuais penais dela decorrentes, pois “por coerência com a doutrina, particularmente com a ‘doutrina militar’, inimigo é inimigo mesmo, a ser neutralizado de qualquer forma; guerra é guerra mesmo, implicando inclusive o emprego não seletivo da força e da inteligência militar; combate é combate mesmo; há de haver vencedores e vencidos”. 58 As engrenagens repressivas, emanadas a partir de conceitos vagos, mas com utilidade policialesca inominável (v.g. segurança nacional, inimigo interno entre outros), moldam intervenções punitivas que invertem os postulados legitimadores do Estado de Direito, pois assentadas na coação direta exercida por três sistemas penais repressivos distintos: o formal, o administrativo e o subterrâneo. 59

Subverte-se a legitimidade do uso da violência pois, segundo Comblin, suprime-se “a diferença entre a violência e a não violência, isto é, entre os meios de pressão não violentos e os meios de pressão violentos. A segurança é a força do Estado aplicada a seus adversários: qualquer força, violenta ou não”. 60 Ao estar sustentado no fundamento da segurança (nacional ou pública), a violência estatal é banalizada, sendo sua programação potencializada e tendendo naturalmente ao abuso. Legítima ou não, a intervenção das agências repressivas é sempre considerada válida “porque é justificada por sua segurança nacional. E a segurança nacional é insaciável. Nunca está satisfeita. Não tem limites. (...) Esse poder será sempre utilizado a serviço do Bem”. 61 A consequência da configuração deste modelo repressivo bélico será o estabelecimento de programação genocida na América Latina. Selecionado o público alvo (inimigo: criminoso político ou comum), deflagra-se a lógica da guerra permanente. Zaffaroni constata a existência desta relação intrínseca entre os postulados da ISN e a construção de Estado de Terror na realidade latino-americana a partir da aproximação dos conceitos do direito penal militar com o direito penal comum: “La Política Criminal de seguridad nacional se caracteriza por una transferencia de conceptos próprios del derecho penal militar al derecho penal común, derivada de la ‘ordinarización’ del concepto de ‘cuerpo’ y del

princípio general de la ‘eficácia’, proprios del plano jurídico militar. Se tiende a concibir la sociedad como un ‘cuerpo’ con ese fin, que es de ‘ganar la guerra’ y por ende, las conductas que en vida ordinaria se reservan al ámbito ético, cada vez son menos, como resultado

de

un

‘verticalismo

social’

que

implica

una

jerarquización”. 62 A consolidação da lógica militarizada nas estruturas formais de segurança pública no Brasil durante a Ditadura Militar, decorrência do treinamento das Polícias (Militares e Civis) de acordo com a cartilha da ISN, sustenta sistema verticalizado, com alta capacidade de capilarização, afeito à constante violação da legalidade. Moldadas no militarismo, as agências de controle alimentarão o desejo insaciável de poder punitivo, conformando aquilo que poderia ser denominado como vontade de suplício, em virtude de sua expansão ilimitada e imune a qualquer tipo de controle. Tudo porque “no plano da política interna, a segurança nacional destrói as barreiras das garantias constitucionais: a segurança não conhece barreiras (...)”. 63

3.3. A Política Criminal dos Movimentos de Lei e Ordem O terceiro pilar que sustenta o discurso autoritário da política criminal de drogas no Brasil pode ser identificado nos Movimentos de Lei e Ordem (MLOs). Os MLOs, assim como o MDS, são

instrumentalizadores positivos (plano de ação) de ideologias negativas (ocultadoras) cuja função é densificar o combate à criminalidade. As campanhas de Lei e Ordem brotam na década de 1960 como movimentos de resistência à contracultura e de salvaguarda dos princípios éticos, morais e cristão da sociedade ocidental. Originárias dos Estados Unidos, as primeiras manifestações se articulam no sentido de orientar a (re)produção legislativa em matéria criminal/punitiva, adquirindo a droga, neste contexto, papel de destaque. Tradicionalmente identificados com a direita punitiva, os MLOs compreendem o crime como o “lado patológico do convívio social, a criminalidade uma doença infecciosa e o criminoso como um ser daninho”. 64 Ao explorar os pânicos morais, entendem o direito penal, em sua tendência maximalista, como único instrumento capaz de solucionar o problema da sempre crescente criminalidade. Instrumentalizado pela mídia, transmite ao senso comum do homem da rua (every day theory) estado de perigo constante e iminente, apenas excluído pela atuação profilática dos aparatos do Estado Penal. Desta maneira, veem na ampliação do espectro punitivo,

na

flexibilização

das

regras

processuais

e

na

implementação de penalidades severas o instrumento eficaz para conter a ação dos criminosos que ousam desrespeitar a harmonia

social – “alegam seus defensores que os espetaculares atentados terroristas, o gangsterismo e a violência urbana somente poderão ser controlados através de leis severas, que imponham a pena de morte e longas penas privativas de liberdade. Estes seriam os únicos meios eficazes para intimidar e neutralizar os criminosos e, além disso, capazes de fazer justiça às vítimas e aos homens de bem, ou seja, aos que não delinquem”. 65 Segundo João Marcello de Araújo Jr., 66 as principais metas dos MLOs poderiam ser sintetizadas nas seguintes teses: (a) justificar a pena como castigo e retribuição; (b) instaurar regime de penalidades capitais e perpétuas ou impor severidade no regime de execução da pena; (c) ampliar as possibilidades de prisões provisórias; e (d) diminuir o poder judicial de individualização da sanção. O principal veículo dos MLOs para a produção do consenso sobre o crime, a criminalidade e a necessidade de incremento constante das penas é a imprensa – compreendendo neste conceito todos os meios de comunicação de massa. Entendida neste sentido como

parte

notadamente

integrante a

das

agências

sensacionalista,

penais,

provoca

a

imprensa,

exposições

à

vulnerabilidade, ou seja, distribui estereótipos delinquenciais que criam metarregras de atuação das agências formais de controle, sobretudo das esferas policiais e judiciais. Constata Zaffaroni que “o sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona de acordo

com os estereótipos fabricados pelos meios de comunicação de massa. Estes estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada,

deixando

de

fora

outros

tipos

de

delinquentes

(delinquência de colarinho branco, dourada, de trânsito, etc.)”. 67 Sabe-se ser notável a capacidade dos meios de comunicação de ampliar a visibilidade da violência individual, particularmente aquela que Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar definem como obras toscas da criminalidade (delitos grosseiros cometidos com fins lucrativos), 68

viabilizando

o

recrudescimento

da

violência

institucional. A volumosa publicidade nos casos de violência, sobretudo em condutas com expressivo dano ao ofendido (crimes contra a vida e contra a liberdade sexual, p. ex.), fixa no imaginário a

estética

da

delinquência

(estereótipo),

(re)significando

a

criminalidade e apontando as baterias do sistema punitivo aos grupos vulneráveis, ou seja, àqueles que por correspondência são identificados, ou os que através de posturas ou atos pessoais são identificáveis com o estereótipo. Importante referir, contudo, para que não se corra o risco de realizar a demonização da importante publicidade dos fatos cotidianos exercida pelos meios de comunicação, que a ideia de vulnerabilidade individual ou coletiva amplia as concepções da Criminologia Crítica/Radical, que percebia o indivíduo criminalizado

como objeto ao qual eram imputadas características negativas (estigmas). O conceito de vulnerabilidade permite não só constatar o processo de atribuição dos rótulos, no qual o estigmatizado adquire posição passiva (o estigma lhe é empregado), como o processo de risco pessoal, da conduta comissiva pessoal ou coletiva na qual o sujeito se coloca em situações estigmatizáveis. Assim, os meios de comunicação e os aparelhos punitivos não atuam exclusivamente como mecanismos estigmatizadores, pois, em muitos casos, o processo

se

inicia

com

os

próprios

sujeitos

que

serão

posteriormente alcançados pelo status negativo. Neste quadro, os resultados das campanhas deflagradas pelos MLOs, em sua relação simétrica com a mídia, podem ser considerados desde o ponto de vista interno e externo. Nas conjunturas nacionais, produzem efeitos irreversíveis no tecido social, fundamentalmente com a proliferação do pânico (moral) e a divulgação de medos – “también se suele hacer referencia a la innata Irreversibilidad de estos procesos. Mucho se ha discutido y se discutirá en el futuro sobre la posibilidad de ensayar con mayor o menor éxito un ‘contramensaje’, pero para un sector claramente mayoritario el efecto de estas campañas es definitivamente irreversible ya que, en estos casos, la comunicación encuadra dentro del más rígido esquema conductista de mensaje-resposta. Una vez puesta en marcha la campaña, los aislados trabajos

tendientes a esclarecer a la opinión pública, ya están operando sobre una realidad. Cuando los observadores detectan el desarrollo de una campaña de Ley y Orden, ésta ya generó el sentimiento de inseguridad y se nos presenta como realidad social”. 69 Desde o ponto de vista externo (transnacional), tais ações reproduzem a crença no sistema penal como único meio eficaz de combate à criminalidade, logrando, entre outros efeitos, a criação de demandas às agências internacionais de controle, a deterioração de valores vinculados aos direitos humanos e às suas garantias e a promoção de fratura artificial da sociedade (bem versus mal). 70

3.4. A Fusão dos Horizontes de Punitividade A partir da análise tripartite dos discursos de fundação da estrutura repressiva dos anos 60 e 70 do século passado (Defesa Social, Segurança Nacional e Lei e Ordem), é possível perceber que a lógica defensivista aparece como variável constante e transversal às mudanças legislativas. Os princípios da IDS, entendida nas palavras de Baratta como a ideologia conformadora do sistema penal da Modernidade ocidental, são propagandeados ao seu público consumidor pelos MDS e MLOs. Em paralelo, a experiência de governos autoritários configurou nos países da América Latina modelos belicistas de gestão da segurança pública. Definidos, portanto, os estereótipos criminais (estética delitiva) – signos de

formação do consenso sobre o crime, a criminalidade e a resposta penal –, bem como as metarregras de criação, interpretação, aplicação e execução das leis penais, são identificados os inimigos a eliminar/neutralizar na guerra contra a criminalidade. Ao partir das três arestas de solidificação do modelo belicista de combate à criminalidade, conclui-se com Delmas-Marty que “balizar o território da Política Criminal é, portanto, localizar as correntes ideológicas que podem influenciá-la”, objetivando “fornecer uma chave para compreender a diversidade dos fatos observados”. 71-72 Nenhuma das perspectivas expostas poderia ser negligenciada, pois, apesar das nuances e dos objetivos singulares de cada discurso repressivo, sua integração consolida a política criminal latino-americana, principalmente aquela relativa à política de repressão das drogas. A conclusão preliminar possível é a de que com a interação dos horizontes de punitividade (IDS, MDS e ISN), obtém-se modelo superpositivista de combate à criminalidade 73 cujo efeito, através do uso propagandístico fornecido pelos mass media sensacionalistas, é a potencialização do princípio do bem e do mal na cisão da sociedade entre criminosos e não criminosos. Não por outro motivo Hulsman sustenta que “as produções dramáticas tradicionais e parte da mídia tendem a perpetuar a ideia simples – e simplista – de que há os bons de um lado e os maus de outro”. 74

4. A ESTRUTURA DE PUNIBILIDADE DA LEI 11.343/06: ANTECEDENTES E ESTATUTO POLÍTICO-CRIMINAL 4.1. A Reforma da Lei 6.368/76 A necessidade de reforma integral do texto da Lei de Drogas de 1976 vinha sendo debatida no Congresso Nacional desde o início da década de 1990. Segundo as exposições de motivos dos inúmeros projetos

que

tramitavam

concomitantemente,

a

defasagem

conceitual e operacional do estatuto impunha reformulação global. Ocorre que os posicionamentos quanto à disfuncionalidade da Lei 6.368/76 pendiam da crítica antiproibicionista, com apresentação de projetos com medidas despenalizadoras e descriminalizantes, ao diagnóstico da necessidade de incremento da punitividade. O principal texto em discussão entre os congressitas foi o denominado Projeto Murad (Projeto de Lei 1.873/91), base da Lei 10.409/02. Fruto das conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito

(CPI)

do

Narcotráfico

de

1991,

instaurada

para

investigação da Conexão Rondônia – rede de tráfico de drogas existente na Amazônia, que demarcava a posição brasileira de país trânsito do comércio internacional –, o projeto marcou a política de recrudescimento do sistema de controle das teias de comércio, estabelecendo novas categorias de delitos, sobretudo daquelas

condutas associadas às organizações criminosas e suas políticas de financiamento. Paralelas ao Projeto Murad, duas propostas firmadas pelo Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) direcionavam a política

brasileira

de

drogas

para

além

do

repressivismo,

readequando as figuras criminais e as penas previstas na Lei 6.368/76 desde abordagem centrada na lógica da redução de danos. A pluralidade de propostas 75 acabou por readequar o texto original do Projeto Murad, integrando-lhe algumas concepções diversas sobre o problema, cujo resultado foi a distinção substancial dos juízos de reprovabilidade legal relativos às condutas de comércio e porte para uso pessoal. Deste processo parlamentar nasceu a Lei 10.409/02. O texto da Lei 10.409/02 aprovado pelo Congresso Nacional, apesar de manter o caráter delitivo da conduta de porte para uso pessoal, 76 optava pelo rito e pelas alternativas pré-processuais estabelecidas na lei que regula o procedimento nos delitos de menor potencialidade ofensiva 77 (Lei 9.099/95), adotando explícitas medidas descarcerizantes. 78 Em relação às hipóteses de comércio, porém, reproduzia a incriminação das condutas previstas no art. 12 da Lei 6.368/76, mantendo as mesmas quantidade e espécie de pena. 79 A incrementação da punitividade vinha na definição de

novas figuras típicas, notadamente da incriminação autônoma do agente financiador de grupo ou associação destinada ao tráfico. 80 Contudo, após a aprovação no âmbito legislativo, a íntegra do capítulo referente aos delitos e às penas recebeu veto da Presidência da República, entrando em vigor apenas sua parte processual. O veto da matéria penal derivou, na prática forense, situação anômala e inédita: a aplicação conjugada de dois textos com fundamentos e historicidade diversas. Assim, no que tange ao processo penal, a Lei 10.409/02 obteve plena vigência, restando a estrutura material do direito penal (delitos e penas) atrelada à antiga Lei 6.368/76. Cabe, portanto, para esboçar o complexo quadro das reformas legais e das práticas repressivas que desembocam na nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06), realizar o percurso que define seu rito processual inquisitório (Lei 10.409/02 e Lei 9.034/05, Lei do Crime Organizado), que densifica os suplícios na estrutura da execução da pena (Lei 10.792/03, Regime Disciplinar Diferenciado) e que regula práticas de intervenção invasivas no controle de aeronaves suspeitas de tráfico de entorpecentes (Decreto 5.144/04, Lei do Abate de Aeronaves). Isto porque a emergência da Lei 11.343/06 ocorre sob o signo da repressão às organizações criminosas responsáveis pelo comércio ilegal de entorpecentes. Os textos em análise, reflexo do amplo processo de descodificação da matéria

operado pelas reformas parciais, consolidam, pela importância que o estatuto de drogas tem na definição do perfil do sistema penal brasileiro,

a

desjudicialização

material

da

Justiça

Criminal

brasileira. 81

4.2. A Lei do Crime Organizado no Cenário Global da Repressão ao Narcotráfico A lei brasileira de combate ao crime organizado nasce inspirada nos modelos normativos italianos de repressão às organizações mafiosas. Todavia, em decorrência do discurso econômicotransnacional da década de 1990, centrado no controle geopolítico dos cartéis colombianos (Cartel de Cali e de Medelín), 82 e em face das especificidades da criminalidade nacional, seu discurso ficou atrelado preponderantemente às questões relativas ao tráfico ilícito de entorpecentes e de armas. Variações momentâneas ocorreram na identificação das organizações criminosas voltadas à prática de delitos econômicos e contra a administração pública. Apesar deste direcionamento punitivo, é importante perceber a dificuldade de identificação de tais fenômenos em nossa realidade, pois “todo diagnóstico social é muito problemático e discutível no Brasil, como sabemos, porque temos uma carência quase absoluta de investigações e dados empíricos. Apesar disso, talvez possamos arriscar que o crime organizado em nosso território, ou seu lado

mais saliente, esteja ligado ao tráfico de drogas e de armas, corrupção (fraude contra o erário público ou contra a coletividade), furto e roubo de automóveis e roubo de cargas”. 83 O problema de identificação empírica de redes de criminalidade organizada, não apenas no Brasil, produz inúmeras dificuldades interpretativas, fato que em matéria de poder punitivo amplia as malhas de criminalização. Hassemer aduz que “os especialistas ainda não conseguem chegar a um consenso sobre no que ela [criminalidade organizada] realmente consiste. A participação de bandos bem organizados ou a atividade criminosa em base habitual e profissional não parecem critérios suficientemente claros (...). O que a criminalidade organizada realmente é, como ela se desenvolve, quais suas estruturas e perspectivas futuras, não sabemos precisar. A definição atualmente em circulação é por demais abrangente e vaga, sugere uma direção em vez de definir um objeto, não deixa muita coisa de fora”. 84 A indefinição dos parâmetros de identificação do fenômeno é reproduzida na própria Lei 9.034/95, cujo texto é omisso e desprovido de quaisquer elementos classificatórios/definitórios próprios, dado que se percebe pela remessa do conceito de crime organizado ao tipo de quadrilha ou bando previsto no art. 288 do Código Penal (art. 1º, Lei 9.034/95). 85

Doutrinariamente, a ausência de vítimas individuais (vitimização difusa), a escassa visibilidade dos danos causados e o modus operandi gerencial (internacionalização, profissionalização e divisão de

trabalho)

apontariam

critérios

relativamente

seguros

de

conceituação do crime organizado em contraposição à criminalidade tradicional (criminalidade de massa). Entretanto, a projeção do olhar à experiência das drogas impossibilita qualquer fechamento conceitual, visto que “a política de drogas é um dos poucos campos onde a criminalidade organizada e a criminalidade de massas se encontram: a C. O. [criminalidade organizada]

compreende

o

comércio

internacional

de

estupefacientes; por outro lado, o pequeno tráfico e outras formas de criminalidade que os dependentes de droga praticam para manterem seu vício constituem uma boa fatia da criminalidade de massas”. 86 É na densificação da estrutura processual inquisitória, porém, que a Lei 9.034/95 fomenta a reestruturação do processo penal relativo ao tráfico de entorpecentes. Ingrediente decisivo desta trágica experiência é a recriação do juiz inquisidor, na definição não apenas da gestão da prova, mas da sua produção, em diligência pessoal e sigilosa (art. 3º), em qualquer fase da persecução criminal (investigação e cognição) (art. 2º). 87

Aliada

à

marca

inquisitória

no

principal

elemento

de

caracterização dos sistemas processuais (gestão da prova), a Lei 9.034/95 institui o retardamento do flagrante com a ação controlada (art. 2º, II), cria possibilidades amplas de acesso aos dados fiscais, bancários,

financeiros

e

eleitorais

(art.

2º,

III),

possibilita

interceptação ambiental e de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos (art. 2º, IV) e autoriza a infiltração de agentes da polícia nas organizações (art. 2º, V). Outrossim, determina a identificação criminal compulsória (art. 5º), premia a delação (art. 6º), proíbe a liberdade provisória com ou sem fiança (art. 7º) e nega a possibilidade de apelar em liberdade (art. 9º). A introdução em nossa legislação de “algumas novidades no processo penal, novidades que provêm da Idade Média e agora viraram

pós-modernas”, 88

define

o

estilo

de

atuação

dos

operadores do direito na instrumentalização da política criminal beligerante. Assim, o pensamento defensivista, impregnado na cultura jurídica embriagada pelas legislações emergenciais, justifica a constante ruptura com os direitos e garantias fundamentais, sobretudo

aquelas

garantias

processuais

cuja

finalidade

é

justamente estabelecer o limite da intervenção. 89 Como lembra Fauzi Choukr, “o devido processo legal aplicado em sua integralidade passou a ser considerado como um formalismo incômodo (...)”, visto que a lei brasileira do crime organizado, no

bojo das leis de exceção, cria “nichos próprios de interpretação que desmoronam o incipiente labor de edificação da cultura da normalidade”. 90 Pode-se, portanto, aderir com tranquilidade às constatações de Cervini 91 sobre a Lei 9.034/95: (a) trata-se nitidamente de legislação de emergência baseada na legislação italiana de exceção; (b) é inadequada às exigências constitucionais de tutela dos direitos e garantias fundamentais; (c) sacrifica os princípios da publicidade, devido processo legal e presunção de inocência; (d) recria sistema inquisitório; e (e) produz processos espetaculares, nos quais o sistema penal é visto como único instrumento de resolução de conflitos sociais.

4.3. O Regime Integralmente Fechado Plus Em meados de 2003 a imprensa nacional passou a divulgar a tramitação no Congresso Nacional de Projeto de Lei cujo objetivo era a modificação da estrutura normativa da política penitenciária, com a instituição do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). A normativa criava, no caótico sistema penitenciário brasileiro, forma absolutamente diversa de apartação do preso rotulado como ameaça à segurança social. O conteúdo do projeto apresentado causou espanto na comunidade

jurídica

vista

a

adoção

explícita

de

formas

absolutamente desumanas de execução da pena privativa de liberdade, especialmente aquela cumprida em regime fechado. Se a Lei do Crime Organizado e os dispositivos processuais da Lei 10.409/02 geravam juntamente à Lei dos Crimes Hediondos o incremento nos níveis de encarceramento (preventivo e executivo), bem como a ruptura com o sentido humanitário previsto na Lei de Execução Penal (LEP), a nova modalidade de execução cria espécie de regime integralmente fechado “plus”. O projeto fora baseado em Portaria que o Governo do Estado de São Paulo havia instituído para controlar a série de incidentes ocorridos em seu sistema prisional (fugas, rebeliões e motins) durante o ano de 2002, sobretudo a megarrebelião provocada pela facção carcerária intitulada Primeiro Comando da Capital (PCC). A Portaria criava inúmeras restrições aos direitos dos presos considerados perigosos e definia severas sanções disciplinares àqueles identificados como membros de organizações criminosas. No entanto o fato mais significativo e que impulsionou a federalização do RDD ocorreu em 2003, com o episódio Fernandinho Beira-Mar. A construção do anti-herói nacional personificado na figura do líder do Comando Vermelho (CV) agregou elemento

para

a

implantação

definitiva

maximização dos métodos de contenção.

das

medidas

de

Apesar da absoluta ilegalidade dos atos das Secretarias de Segurança de São Paulo e do Rio de Janeiro, pois não possuíam competência legal (critério de validade formal) para disciplinar a matéria, o RDD obteve ampla aplicação na condução da execução da pena dos suspeitos de participação em organizações criminosas, mormente aquelas envolvidas no tráfico de entorpecentes e de armas. Com forte apoio da imprensa, o Parlamento foi instigado a universalizar o regime diferenciado através de alteração na legislação federal. A Lei 10.792/03 delimitou forma de execução da pena totalmente inédita, consagrando em lei o suplício gótico vivido pelos condenados nos presídios brasileiros. Ao determinar medidas administrativas absolutamente lesivas dos direitos fundamentais, vinculando o ingresso do preso no regime diferenciado quando apresentar

“alto

risco

para

a

ordem

e

a

segurança

do

estabelecimento penal ou da sociedade” (art. 52, § 1º, LEP) ou quando

“recaiam

fundadas

suspeitas

de

envolvimento

ou

participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando” (art. 52, § 2º, LEP), manifesta o assentimento dos Poderes Públicos com práticas arbitrárias, regularmente toleradas nas penitenciárias nacionais. A possibilidade de impor ao preso o regime diferenciado ocorre não apenas quando da prática de faltas graves, mas, sobretudo,

pela avaliação de conduta de risco à segurança pública, seja no cárcere ou em liberdade. Sancionado o preso (definitivo ou provisório) por falta grave ou sendo-lhe atribuído o rótulo de perigoso, poderá ser submetido ao regime diferenciado com as seguintes características: (a) duração de 360 (trezentos e sessenta) dias; (b) recolhimento em cela individual; (c) visitas semanais de duas pessoas, sem contar crianças, por 2 (duas) horas; (d) saída diária, por 2 (duas) horas, para banho de sol (art. 52, LEP). A redução ao máximo das garantias processuais (direito de defesa) ao preso provisório e a imposição de barreiras à saída do sistema carcerário ao preso condenado fixam claramente a noção de inabilitação na execução penal brasileira. A reforma punitiva, nitidamente voltada à segregação e ao isolamento dos presos identificados como membros de organizações com participação no narcotráfico, dobra a pena e ressignifica a disciplina carcerária.

4.4. O Controle das Fronteiras Aéreas e a Repressão ao Tráfico Internacional A política de combate à criminalidade organizada das drogas foi reforçada, em 2004, com a promulgação do Decreto 5.144, que regulamenta os §§ 1º, 2º e 3º do art. 303 da Lei 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica). O Decreto, que ostenta selo de qualidade emitido pela Casa Branca, 92 definiu a forma de atuação dos órgãos

de controle do transporte aéreo ilegal, estabelecendo critério de definição de aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins. A medida estabelece procedimentos para aeronaves que, por força de suspeita de narcotráfico, apresentem ameaça à segurança pública. Após definir os casos de sua classificação como suspeita, 93 o

Decreto

prevê

medidas

coercitivas

de

averiguação, 94

intervenção 95 e persuasão. 96 Nos casos em que estas medidas preventivas não obtenham êxito, a aeronave suspeita que não atender aos procedimentos indicados na abordagem passa a ser considerada aeronave hostil, estando sujeita a medidas de destruição. Segundo o art. 5º do Decreto 5.144/04, “a medida de destruição consiste no disparo de tiros, feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade de provocar danos e impedir o prosseguimento do voo da aeronave hostil e somente poderá ser utilizada como último recurso e após o cumprimento de todos os procedimentos que previnam a perda de vidas inocentes, no ar ou em terra”. Logicamente que as críticas ao instrumento legal podem ser de inúmeras ordens, desde a formulação dos conceitos (abertos) de aeronave suspeita e hostil às drásticas medidas coercitivas impostas. A análise da regulamentação da destruição de aeronaves hostis suspeitas de tráfico de entorpecentes, contudo, no âmbito

desta investigação, adquire contornos diferenciados da necessária exposição dos seus déficits de constitucionalidade, sobretudo no que diz respeito à ruptura com os princípios humanitários e as garantias mínimas contra medidas arbitrárias (desproporcionais). 97 A regulamentação dos meios operacionais de destruição de aeronaves suspeitas através de procedimentos administrativos que impõem sanção mais grave que as penalmente previstas na Constituição (v.g. art. 5º, XLVI e XLVII) revela a densificação, por parte das agências repressivas, do modelo belicista de repressão às drogas. A harmonização dos meios operacionais das agências punitivas brasileiras à política transnacional de guerra às drogas legitima medidas de coação direta típicas de períodos de exceção nos quais se manifesta o terrorismo de Estado. A constatação é absolutamente pertinente se observarmos que atos desta natureza – v.g. eliminação de suspeitos, supressão de incômodos e proscrição de inimigos – são próprios de confrontos armados. Para que se possa dimensionar o alcance do Decreto na legislação brasileira, medidas extremas de eliminação de inimigos são previstas na Constituição, de forma residual, apenas em casos de guerra declarada por força de agressão estrangeira (art. 84, XIX). O quadro das políticas da repressão às drogas demonstra, sem tergiversações e para além da retórica, a incorporação formal e

substancial da lógica beligerante (militarizada) na gestão da segurança pública nacional.

4.5. O Estatuto Político-Criminal da Lei 11.343/06: Retórica Preventiva, Ênfase Repressiva A inadequação histórica da Lei 6.368/76, após 30 anos de vigência, aliada ao amplo processo de descodificação do direito penal, ocorrido durante a década de 1990, tornaram absolutamente complexo o sistema brasileiro de controle de drogas ilícitas. A publicação

de

inúmeros

estatutos

penais,

que

direta

ou

indiretamente afetam a política criminal de drogas, e a tentativa frustrada de renovação normativa, com publicação parcial do texto da Lei 10.409/02, ratificaram a ambiguidade e a contraditoriedade dos mecanismos de criminalização primária e secundária. Mais: expuseram à sociedade civil e política a dificuldade das agências governamentais

de

desenvolvimento

de

política

criminal

razoavelmente coerente sobre drogas, seja proibicionista ou antiproibicionista. Todavia

é

possível

perceber

que

as

ações

legais

e

administrativas – sobretudo as firmadas pelo Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) nas versões e adendos aos Planos Nacionais Antidrogas (PANAD) –, embora expusessem de forma ambígua os objetivos e os instrumentos adequados à prevenção do uso e à

repressão do comércio ilegal, acabavam por adequar a política criminal

de

drogas

do

Brasil

àquela

identidade

histórica

desenvolvida desde o advento da Lei 6.368/76. Outrossim, o sistema normativo extravagante correlato ao das drogas, apesar de intricado e dúbio, forneceu, direta ou indiretamente, importantes elementos de sustentação ao projeto de reforma, fornecendo condições de possibilidade para o advento da nova Lei de Drogas. A sinalização da Lei 10.409/02 no sentido do incremento da repressão

às

inúmeras

formas

de

comercialização

e

ao

financiamento de organizações, voltadas ao tráfico, paralelamente à recepção dos modelos de intervenção psiquiátrico-terapêutica, em usuários e dependentes, projetaram a estrutura material (delitos e penas) e processual (investigação, processamento e julgamento) da Lei 11.343/06. As condições internas favoráveis para reforma legal foram legitimadas no plano externo pela consolidação hemisférica da ideologia da diferenciação. Natural, portanto, a adequação do novo estatuto ao discurso jurídico-político no que tange à forte repressão ao tráfico de entorpecentes e ao discurso médico-jurídico em relação ao usuário/dependente. Embora perceptíveis substanciais alterações no modelo legal de incriminação, notadamente pelo desdobramento da repressão ao comércio ilegal em inúmeras hipóteses típicas e pelo processo de

descarcerização da conduta de porte para uso pessoal, é possível afirmar que a base ideológica da Lei 11.343/06 mantém inalterado o sistema proibicionista inaugurado com a Lei 6.368/76, reforçando-o. Neste sentido, a lógica discursiva diferenciadora iniciada na década de 1970 é consolidada no novo estatuto, em detrimento de projetos políticos alternativos (descriminalizadores) moldados a partir das políticas públicas de redução de danos. O pêndulo estabelecido entre as graves sanções previstas aos sujeitos envolvidos individual ou organizadamente com o tráfico de drogas e a sutil implementação de medidas alternativas de terapêutica penal para usuários e dependentes manifestam a lógica histórica da dupla face do proibicionismo: obsessão repressivista às hipóteses de comércio ilegal e idealização da pureza e da normalidade representada socialmente por condutas abstêmias (ideal da abstinência). Assim, o aumento desproporcional da punibilidade ao tráfico de drogas se encontra aliado, bem como potencializa, o projeto moralizador de abstinência imposto aos usuários de drogas. Apesar de fundada na mesma base ideológica da Lei 6.360/76 (ideologia da diferenciação), é possível estabelecer importantes distinções entre os estatutos criminais. Se na Lei 6.368/76 há nítida sobreposição do discurso jurídico-político ao médico-jurídico pela instauração do discurso de eliminação do traficante (inimigo interno),

cujo efeito foi densificar a repressão ao comércio ilícito e suavizar a resposta penal aos usuários e dependentes – notadamente após a edição da Lei 9.099/95 –, a Lei 11.343/06 nivela a importância dos tratamentos penais entre usuários e traficantes, criando dois estatutos autônomos com respostas punitivas de natureza distinta: alta repressão ao traficante de drogas, com imposição de severo regime de punibilidade (penas privativas de liberdade fixadas entre 5 e 15 anos); e patologização do usuário e do dependente com aplicação de penas e medidas. Fundamental perceber, portanto, para que se possa dar a real dimensão às novas respostas punitivas trazidas pela Lei 11.343/06, que, apesar da crítica criminológica relativa ao fracasso da política hemisférica de guerra às drogas, não apenas a criminalização do comércio de entorpecentes e suas variáveis é mantida, como são aumentadas substancialmente as penas e restringidas as hipóteses de incidência dos substitutos penais (v.g. penas restritivas de direito). Neste quadro, fundamental lembrar que “as políticas contra as drogas na América Latina têm seguido os passos da ‘guerra contra as drogas’ proposta pelos EUA. Por esta abordagem, os governos pretendem livrar as sociedades das drogas com medidas repressivas. Após décadas de experiência, essa política colheu um retumbante fracasso. Mesmo assim, seus seguidores não se cansam de propor doses mais fortes do mesmo remédio”. 98

Em relação ao porte para consumo pessoal, distante dos processos de descriminalização sustentados por políticas de redução de danos ocorridos em inúmeros países europeus nos últimos anos, têm-se a manutenção de sistema proibicionista estruturado na reciprocidade punitiva entre penas restritivas de direitos e medidas de segurança atípicas (medidas educacionais). Ofuscadas

pelo

sentido

terapêutico,

as

medidas

propostas

enclausuram usuários e dependentes no discurso psiquiátricosanitarista, possibilitando diagnosticar que a pretensa suavização do tratamento penal ao usuário opera como inversão ideológica dos programas de redução de danos, ou seja, apesar de estabelecer formalmente a impossibilidade de aplicação de pena carcerária aos sujeitos envolvidos com drogas – situação consolidada na realidade jurídica nacional desde a inclusão do porte para uso pessoal na categoria de delito de menor potencial ofensivo –, conserva mecanismos penais de controle (penas restritivas e medidas de segurança

inominadas),

com

similar

efeito

moralizador

e

normalizador, obstruindo a implementação de políticas públicas saudáveis. Conclui Rolim que “experiências desse tipo [redução de danos] encerram verdades básicas que, entre nós, têm sido enterradas pelo discurso moralista dominante. O resultado é a ‘vegetação vingadora’ das quadrilhas de traficantes, dos massacres nas favelas, da

superpopulação prisional, da ausência de alternativas de tratamento para os dependentes e da corrupção que atinge a polícia e se espalha por todas as instâncias de poder. Por esses e outros efeitos, nunca foi tão evidente a necessidade de se mudar a política de drogas em nosso país”. 99

5. MAL-ESTAR NA POLÍTICA CRIMINAL CONTEMPORÂNEA: A GUERRA ÀS DROGAS ENTRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO E O ESTADO DE EXCEÇÃO 5.1. Inquisitorialismo, Direito Penal de Emergência e Direito Penal do Inimigo A programação dos sistemas repressivos na história da humanidade é caracterizada pela inflexível e duradoura prática de violências arbitrárias. A constatação é plausível porque apenas na Modernidade, a partir dos postulados jusracionalistas, o direito e o processo penal passam a ser definidos formalmente como limites à intervenção punitiva irracional, como barreiras à coação direta desempenhada pelos aparatos sancionatórios. A tese permite concluir, com Ferrajoli, que “a história das penas é seguramente mais horrenda e infame para a humanidade que a própria história dos delitos: porque mais cruel, e talvez mais numerosa, que as violências produzidas pelos delitos foram as produzidas pelas penas; e porque enquanto o delito tende a ser uma violência ocasional, e às vezes impulsiva e necessária, a violência infligida pela pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um. Contrariamente à fantasiosa função de defesa social, não é arriscado afirmar que o conjunto das penas cominadas na história produziu ao gênero humano um custo de sangue, de

vidas e de mortificações incomparavelmente superior ao produzido pela soma de todos delitos”. 100 Possível diagnosticar, portanto, como se procurou demonstrar até o momento com o relato da genealogia da incriminação das drogas no Brasil, a estabilidade da lógica beligerante na programação da punitividade, sendo os postulados teóricos humanistas e garantidores rupturas prático-teóricas descontínuas e fragmentárias. 101 No entanto, embora se possa afirmar a assiduidade do extravasamento do poder punitivo em sua tendência à lesão e não à preservação dos direitos e garantias fundamentais, o discurso penal da modernidade, manifestando-se em essência como fala sobre sua falta, inexoravelmente primou pelo respeito às bases liberais do projeto de racionalização da intervenção punitiva. A sublevação ilustrada dos princípios contra o Príncipe, ou seja, da razão de direito à razão de Estado, estabilizou, ao menos no plano retórico e/ou formal, regras do jogo mínimas para aferição de legitimidade à violência estatal monopolizada. Inegável ser possível constatar germens antiliberais nas teorias penais da Modernidade, sobretudo em razão da persistência e da transversalidade epocal da IDS. Todavia, após a consagração da universalidade dos direitos humanos na revolução burguesa, a negativa dos postulados de respeito aos princípios humanitários decorrente de seu atrelamento à legalidade e à judicialidade

somente foi possível em discursos de defesa dos Estados de exceção. Notório,

porém,

que

desde

a

solidificação

da

crítica

criminológica restou clara a cisão entre as funções declaradas e as funções reais exercidas pelas agências penais, notadamente a partir da publicação de Vigiar e Punir. O discurso liberal de estar o direito penal voltado ao respeito da legalidade e da igualdade, na tutela dos principais interesses e valores da sociedade (bens jurídicos), ficou localizado no plano das funções declaradas, pois a beligerância continuou sendo a constância do sistema repressivo (função real), ou seja, a justificativa de excepcionalidade da violência institucional restou permanente. Desta forma, a retórica humanista acabou adquirindo papel dissimulador à programação autoritária. Apesar do importante desvelamento operado pela Criminologia Crítica, o discurso humanitário-racionalizador tem servido, no mínimo, como parâmetro de anamnese e de denúncia da coação direta frequentemente orientadora das ações dos sujeitos que dinamizam o sistema penal, notadamente no projeto de guerra às drogas. A dicotomia entra as funções do discurso penal (reais e declaradas) fornece refinado instrumento heurístico para projeção de atuação tendente à redução dos danos causados pelas agências repressivas.

O direito penal de emergência deflagrado pelos operadores da estrutura repressiva (direito penal do terror), em sua atuação nas esferas legislativas, executivas, judiciárias ou acadêmicas, tem sido diuturnamente dicotomizado com a tradição ilustrada. No vácuo entre o garantismo e o inquisitorialismo, isto é, entre o anunciado oficialmente e a prática violenta, define-se o campo de atuação e de assunção de posições dos operadores do direito (penal). Todavia torna-se absolutamente preocupante quando as funções reais (genocidas) passam a ser defendidas como base de novos discursos oficiais (funções declaradas), pois a transferência da programação real do direito penal do terror ao nível enunciativo potencializa inominavelmente o incremento da violência na nova realidade que se deseja criar. A partir deste marco de análise é que serão percebidas as proposições político-criminais contemporâneas do direito penal do inimigo e de sua forma estatal correspondente (Estado de exceção) – “o estado de exceção, hoje, atingiu exatamente o seu máximo desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito” 102 –, visto

estar esta doutrina intimamente ligada à histórica repressão do fenômeno das drogas.

5.2. A Formulação (Teórica) Contemporânea do Direito Penal do Inimigo A identificação das organizações dissidentes (domésticas ou internacionais) como problema penal, sobretudo aquelas cuja atuação é estruturada na utilização de métodos terroristas, tem levado à construção de novo discurso defensivista. Fundado em premissas análogas às quais objetiva combater, a resposta punitiva para a repressão dos grupos terroristas é forjada a partir de equânime direito penal do terror. A máxima na nova configuração da política criminal autoritária contemporânea parece ser contra o terror das organizações criminosas o terrorismo de Estado. Para além das pautas programáticas dos MLOs, cuja principal característica é a ausência de respaldo teórico na fundamentação das intervenções autoritárias, o novo defensivismo encontra guarida em ideólogos que disseminam a beligerância penal não apenas como reitora da política criminal mas, igualmente, como base interpretativa do direito penal (dogmática penal) em suas mais diferentes variantes (teoria e interpretação da lei penal, teoria do delito e teoria da pena). Dentre as principais construções doutrinárias inegavelmente encontra-se a formulação de Günther

Jakobs

sobre

o

direito

penal

do

inimigo, 103

aproximada

estrategicamente ao sistema de distintas velocidades preconizado por Silva Sánchez, 104 obtendo como resultado aquilo que poderia ser denominado de direito penal de descontrolada velocidade. Segundo a formulação de Jakobs, o direito penal de garantias teria aplicabilidade apenas aos cidadãos que praticaram acidental e/ou esporadicamente crimes. Para estes integrantes do pacto social envolvidos em eventual prática delitiva estariam resguardados todos os direitos e garantias inerentes à formulação normativa da Modernidade, notadamente dos postulados de legalidade e de jurisdicionalidade. O cidadão, desde este ponto de vista, seria aquele indivíduo que, mesmo tendo cometido erro (crime), oferece garantia cognitiva mínima de comportamentos relacionados à manutenção da vigência das normas. Contra os cidadãos infratores, a pena apresentar-se-ia como resposta desautorizadora do fato, procurando restabelecer a confiança social na estabilidade da lei (penal). Sustenta Jakobs ser possível identificar casos “que la expectativa de un comportamiento personal es defraudada de manera duradera [ocasião na qual] disminuye la disposición a tratar al delincuente como persona”. 105 Nestas circunstâncias de rompimento com as expectativas, na inexistência do mínimo de garantia cognitiva de condutas pessoais estabilizadoras da vigência

das normas, seria lícito realizar processo de despersonalização do desviante, no qual a perda da personalidade política (cidadania) deflagraria exclusão dos direitos a ela inerentes. Como o direito penal de garantias seria privilégio exclusivo dos integrantes do pacto social, àqueles que se negam a participar do contrato ou pretendem destruí-lo seria incabível o status de pessoa. 106 Com o procedimento de cisão entre pessoas e não pessoas são elaborados dois modelos distintos de intervenção punitiva – o direito penal do cidadão e o direito penal do inimigo –, redefinindo-se as funções das agências repressivas, 107 pois “quien por principio se conduce

de

modo

desviado

no

ofrece

garantía

de

un

comportamiento personal; por ello, no puede ser tratado como ciudadano, sino debe ser combatido como enemigo. Esta guerra tiene lugar con un legítimo derecho de los ciudadanos, en su derecho a la seguridad; pero a diferencia de la pena, no es Derecho también respecto del que es penado; por el contrario, el enemigo es excluido”. 108 Nota-se,

pois,

redimensionamento

no

marco

ideológico

defensivista com a assunção formal da dicotomia bem e mal e com a estruturação explícita da beligerância como norte programático do direito e do processo penal. Definido o novo discurso, resta identificar o objeto de intervenção a partir do interrogante quem é o inimigo?

O sinal característico apresentado pelo inimigo seria a habitualidade e a profissionalização no cometimento de crimes. Ampliando a formulação original, Jakobs não restringe a nova programação

apenas

aos

sujeitos

vinculados

aos

grupos

terroristas, 109 mas a todos aqueles indivíduos cujas atitudes, através de incorporação em organização criminosa ou não, demonstrem possibilidade de reiteração delitiva (periculosidade). Não por outro motivo Cancio Meliá define esta forma de identificação do inimigo como típica dos modelos penais de autor – “a) el derecho penal del enemigo no estabiliza normas, sino demoniza determinados grupos infractores; b) en consecuencia, el derecho penal del enemigo no es un derecho penal del hecho, sino de autor”. 110 A probabilidade, mesmo genérica do dano, legitimaria a intervenção penal desde os atos preparatórios da conduta (antecipação da punição) à supressão das garantias processuais (v.g. incomunicabilidade e ausência de publicidade) e à imposição de sanções rígidas de caráter inabilitador (preventiva de condutas futuras). Com o abandono permanente das regras, o inimigo não poderia usufruir as benesses próprias do conceito de pessoa. Lembra

Bitencourt

que

a

política

criminal

funcionalista

“sustenta, como modernização no combate à ‘criminalidade moderna’, uma mudança semântico-dogmática: ‘perigo’ em vez de

dano; ‘risco’ em vez de ofensa efetiva a um bem jurídico; ‘abstrato’ em vez de concreto; ‘tipo aberto’ em vez de fechado; ‘bem jurídico coletivo’ em vez de individual etc”. 111 Todavia, para além da modificação na linguagem dogmática, os efeitos da flexibilização dos princípios estruturais do sistema penal são pulverizados para toda a cadeia de interpretação, aplicação e execução das normas, reduzindo a capacidade do direito como regulador das violências desmedidas, públicas e/ou privadas. Ao avaliar as tendências normativas contemporâneas, Jakobs visualiza inúmeros exemplos de adoção do direito penal do inimigo: “(…) el legislador (por permanecer primero en él ámbito del derecho material) está pasando a una legislación – denominada abiertamente de este modo – de lucha, por ejemplo, en el ámbito de la criminalidad económica, del terrorismo, de la criminalidad organizada, en el caso de ‘delitos sexuales y otras infraciones penales peligrosas’, así como, en general, pretendiéndose combatir en cada uno de estos casos a individuos que en su actitud (por ejemplo, en el caso de los delitos sexuales), en su vida económica (así, por ejemplo, en el caso de la criminalidad económica, de la criminalidad relacionada con las drogas tóxicas y de otras formas de criminalidad organizada) o mediante su incorporación a una organización (en el caso del terrorismo, en la criminalidad organizada, incluso ya en la conspiración para

delinquir, § 30 StGB) se han apartado probablemente de manera duradera, al menos de modo decidido, del Derecho, es decir, pero no prestan la garantía cognitiva mínima que es necesaria para el tratamiento como persona. La reacción del ordenamiento jurídico frente a esta criminalidad se caracteriza, de modo paralelo a la diferenciación de Kant entre estado de ciudadanía y estado de naturaleza acabada de citar, por la circunstancia de que no se trata en primera línea de la compensación de un daño a la vigencia de la norma, sino de la eliminación de un peligro (…)”. 112 A inevitável ampliação do conceito de inimigo, ao ultrapassar o marco dos integrantes de grupos terroristas para agregar as demais organizações criminosas, fornece condições de expansão das malhas de punitividade a partir da radical ruptura com os sistemas de garantias constitucionais. A beligerância do discurso penal do inimigo reloca as ações de desrespeito à legalidade penal e as ilegalidades toleradas contra os direitos individuais exercidas pelas agências repressivas (direito penal subterrâneo) do plano fático ao discurso de legitimação. Abre espaço, portanto, para a justificação do terrorismo de Estado (direito penal do terror) através da aplicação do direito penal (do inimigo). Neste quadro de apontamento de exceções que se tornam duradouras,

a

categoria

organizações

criminosas

adquire

fundamental importância, visto ser o conceito que possibilitará agregar sob o mesmo estilo repressivo condutas de natureza absolutamente diversas como o terrorismo, o comércio de drogas ilícitas, a imigração ilegal, o tráfico de pessoas, os crimes econômicos, entre outros. Ao definir grupos com potencialidade delitiva, reinstituindo no direito penal dimensões de periculosidade próprias da criminologia etiológico-positivista, e ao destituir seus componentes do status de pessoa, abdica-se da própria noção de Estado Democrático de Direito. Apenas nos projetos políticos totalitários (Estados de exceção) a ideia absolutizada de segurança pública se sobrepõe à dignidade da pessoa humana. A destituição da cidadania transforma o sujeito (de direitos) em mero objeto de intervenção policialesca sujeito à coação direta.

5.3. O Direito Penal do Inimigo como Discurso de Legitimação da Punitividade no Estado de Permanente Exceção A Constituição, ao regulamentar a defesa do Estado e das instituições democráticas, elenca duas possibilidades de Estado de exceção: o Estado de defesa (art. 136, CR) e o Estado de sítio (art. 137, CR). Em ambos os casos, a excepcionalidade é arguida para preservar ou restabelecer a ordem pública e a paz social, ameaçadas por fatores internos (v.g. instabilidade institucional),

externos (v.g. declaração de guerra ou agressão armada) ou causas naturais. Nestes casos limites previstos em lei, os decretos que estabelecem os Estados excepcionais determinam o tempo de sua duração, as medidas coercitivas a vigorar e as garantias constitucionais que ficarão suspensas no período (v.g. art. 136, § 1º e art. 138, caput, CR). Tem-se,

portanto,

que

a

ideia

constitucional

de

excepcionalidade é regulamentada formal e materialmente, ou seja, com restrições de caráter quantitativo (temporal) e qualitativo (direitos suscetíveis de suspensão), sendo apenas em hipótese de guerra declarada e permanente que tais critérios poderiam ser ampliados. 113 A previsão constitucional, com definição taxativa dos critérios, permite adequar os Estados de Sítio e de Defesa aos princípios do Estado de Direito, isto é, fixa limites para considerar, mesmo a exceção, situação regulada a partir de determinados postulados. No entanto, para além da disciplina constitucional de eventos episódicos de desestabilização das Democracias, nota-se a constante tendência dos Estados contemporâneos em criar eventos excepcionais de modo a garantir permanente situação de emergência. Se

na

América

Latina

o

discurso

de

emergência

foi

constantemente revigorado pelas agências repressivas como

instrumento de (re)legitimação das políticas criminais de guerra às drogas, encontrando no crime organizado o inimigo visível a ser combatido,

na

atualidade

a

exceção

ganha

contornos

de

permanência com a adição do discurso de luta contra o terrorismo. Como o poder punitivo é operacionalizado sob a aparência do respeito às regras dos Estados de Direito, mas, em realidade, atua no vácuo do(s) direito(s), o efeito é a gradual desestabilização das Constituições. A partir dos eventos de 11 de setembro de 2001, que deflagraram a publicação pelo Governo dos Estados Unidos do USA Patriot Act e das demais Military Orders, a estabilização da exceção não regrada parece ser o novo fato da política criminal planetária. Os atentados em Nova Iorque (2001), Madrid (2003) e Londres (2005) evidenciaram a existência de riscos incapazes de prever, ou seja, que escapam à prevenção estratégica típica da racionalidade ilustrada.

A

incontrolabilidade

de

atos

de

violência,

cuja

característica é a descontinuidade temporal e espacial, expõe como irreal a principal promessa da modernidade: segurança. A instabilidade produzida pelos eventos terroristas na forma de gestão da criminalidade pelas agências estatais de repressão potencializa medos, tornando vulneráveis as conquistas da própria Democracia, sobretudo no que tange ao respeito aos direitos fundamentais.

Na tensão entre a crise de segurança individual, vivenciada pela sociedade, que se vê cada vez mais como vítima em potencial, e a falência da segurança pública, apresentada pela incapacidade de os órgãos de Estado administrarem em minimamente os riscos, tentações autoritárias brotam com a aparência de instrumentos eficazes ao restabelecimento da lei e da ordem. No cálculo entre custos e benefícios, o sacrifício de determinados direitos e garantias fundamentais aparenta ser preço razoável a ser pago pela retomada da segurança. Sua assimilação resta ainda mais fácil se estes direitos e garantias a suprimir integrarem o patrimônio jurídico de alguém considerado como inimigo, de outrem considerado como obstáculo ou ameaça que deve ser reputado como ninguém, como não ser. Ao reconstruir a política do século passado e ao avaliar as medidas atuais contra o terrorismo, Giorgio Agamben percebe a tendência na política contemporânea de apresentar o Estado de exceção como paradigma de governo, operando o deslocamento de medidas provisórias e excepcionais para técnicas de administração pública. Sustenta o autor que “a criação de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados

contemporâneos,

democráticos”. 114

inclusive

dos

chamados

Importante perceber, pois, que o processo de naturalização da exceção, com a minimização de direitos e garantias a determinadas (não) pessoas, adquire feição eminentemente punitiva, atingindo diretamente a estrutura do direito e do processo penal, os quais passam a ser percebidos como instrumentos e não como freio aos aparatos da segurança pública. Assim, dado o papel essencialmente repressivo que adquirem os Estados na atualidade, fato que levou inclusive a sua ressignificação e adjetivação como Estado Penal, 115 os históricos instrumentos de contenção das violências públicas (direito e processo penal) são convertidos, com a ruptura do seu sentido garantidor, em mecanismos agregadores de beligerância. Como a punitividade deve ser entendida como fenômeno essencialmente político (Tobias Barreto 116), o discurso penal, ao invés de operar na legitimação do processo bélico de coisificação do outro, necessariamente deveria servir como barreira de contenção da violência desproporcional. No entanto, a retórica da emergência repressiva de sacrificialização dos direitos em nome do bem maior (segurança) expressa a gradual tendência de ofuscar os limites entre os poderes, rompendo com a ideia de sistemas de controle (freios e contrapesos) dos excessos punitivos. Neste quadro, o Poder Judiciário, portador por excelência do discurso de garantias do

direito

penal,

estaria

agregado

aos

demais

Poderes

(repressivos), objetivando a capacitação e a legitimação da

exceção, ofuscando a potencialidade restritiva das violências inerente

ao

discurso

penal

da

modernidade

(funções

declaradas). 117 A inseparabilidade entre os poderes qualifica a constância do Estado de exceção, gerando círculo vicioso segundo o qual as medidas autoritárias que se justificam como idôneas para a defesa das Constituições democráticas são aquelas que levam à sua ruína, pois “não há nenhuma salvaguarda institucional capaz de garantir que os poderes de emergência sejam efetivamente usados com o objetivo de salvar a Constituição”. 118 A tese central de Agamben 119 mostra que os atuais Estados de exceção se colocam em zonas de anomia, em espaços vazios de direito onde as determinações jurídicas são desativadas. O não lugar absoluto geraria espécie de grau zero da lei no qual os direitos estariam suspensos (vigência sem aplicação) e submetidos a forças que transformariam o sistema jurídico-político em máquina letal. O

desenvolvimento

atual

de

sistemas

repressivos

na

intermitência sombria entre democracia e autoritarismo parece explicar a aproximação entre o direito penal do inimigo e a ideia do Estado de exceção permanente. A hipótese ganha relevo ainda maior se atrelada à volatilidade de conceitos como criminalidade organizada e terrorismo. Assim, importantes as lições de Riquert e Palacios quando sustentam que “el mega concepto ‘criminalidad

organizada’, pilar básico de la justificación a la aplicación de la teoría del derecho penal del enemigo, incluye desembosadamente a la llamada ‘lucha contra el terrorismo’, la ‘lucha contra el narcotráfico’ y la ‘lucha contra el inmigrante ilegal’. Es decir, aquellas luchas – en teoría – excepcionales por la ‘emergencia’ o por lo ‘anormal’ de las mismas por las cuales la ‘civilización occidental’ busca justificar y legitimar el hecho de dejar de lado sus más preciadas ‘conquistas’ tales como la universalización de los derechos humanos y los principios de un derecho penal y procesal penal liberal que se basa en el respecto a tales derechos humanos”. 120

5.4. O Inimigo (Perigoso) como Metarregra Orientadora da Atuação das Agências Penais na América Latina A interpretação e a aplicação das regras do direito e do processo penal, como amplamente demonstrado pela crítica criminológica e dogmática, escapam aos limites das normas legais. Sobretudo quando se trata de criminalização secundária, ou seja, durante a eficaz incidência das instituições penais na captura do indivíduo selecionado, inúmeros signos interpretativos praeter e citra legem impõem-se, pautando as estratégias de punitividade. Na história dos sistemas penais, o marco teórico de definição das metanormas que direcionarão as agências administrativas

(Polícia e Ministério Público), judiciais (Magistrados singulares e Tribunais) e executivas (Agentes Penitenciários) será a formulação do tipo ideal de criminoso pelo positivismo criminológico. Na América Latina, o pensamento etiológico configurou a sistemática de gestão da criminalidade no último século, cujo legado ainda persiste com vigor, fundamentalmente no que tange à repressão da criminalidade de sangue (obras toscas). Os estereótipos criminais não apenas modelam o agir dos agentes

da

persecução,

sobretudo

das

polícias, 121

como

direcionam o raciocínio judicial 122 na eleição das inúmeras variáveis existentes entre as hipóteses condenatórias ou absolutórias e à fixação da quantidade, qualidade e espécie de sanção. Todavia, se o estigma tradicional do tipo ideal positivista sustentou a atuação das agências repressivas durante a formação dos sistemas penais latino-americanos, a partir da década de 1980, com a incorporação das formas de criminalidade organizada pelo direito penal, ocorre ressignificação nas metarregras pela vivificação da ideia de inimigo no narcotraficante. Assim, se tradicionalmente o inimigo objeto da repressão penal era aquele que atuava de forma difusa (criminalidade de massas), atualmente é percebido nos agentes da criminalidade organizada. 123 Característica comum deste

estado

de

inimizade,

nas

políticas

de

repressão

à

criminalidade de massas ou organizada, é a vulnerabilidade do

sujeito ao rótulo da periculosidade, seja pela atribuição ou pela adesão do estigma. Juarez Cirino dos Santos, sob o enfoque da Criminologia Radical, nota que “uma Política Criminal de ‘proteção da sociedade contra o crime’ como foco dirigido para o indivíduo criminoso, submetido à remoção, segregação, cura e educação, sob o fundamento do estado ‘perigoso’, mesmo que acene com um Direito Penal ‘humanizado’ pela ‘ciência do crime e do criminoso’, não deixa de constituir a forma mais acerbada de violência repressiva (...)”. 124 A constatação permite concluir a constância das práticas punitivas violentas nos países da América Latina e sua exacerbação no permanente Estado de exceção proposto na fundamentação teórica do direito penal do inimigo. A ressignificação do inimigo, não apenas como metarregra mas alçado a signo oficial de interpretação e aplicação do direito penal, entra em sintonia com o projeto político criminal de beligerância. Nos países periféricos latinos, em face das inconsistências de percepção do fenômeno terrorista, a criminalidade organizada do narcotráfico abre espaço para a recepção do estigma legitimador do direito penal de emergência. Neste sentido, lembra Alejandro Aponte ser a alteração da programação penal experiência perceptível: “(...) en Colombia la criminalización del estado previo constituye una tendencia, particularmente en el derecho penal de la

emergencia, en cualquiera de sus múltiples versiones: justicia sin rosto, legislación especializada contra el crimen organizado, o legislación antiterrorista”. 125- 126 Se é realmente necessária, para garantir segurança, a cisão do direito penal com o estabelecimento de diferentes formas de atuação para os cidadãos e os não cidadãos (inimigos), e, em sendo a cidadania na América Latina status de difícil atingimento, ou seja, condição de poucos privilegiados, importante interrogante deve ser enfrentada: se não estaria sendo relegado ao grande contingente populacional latinoamericano o papel de incômodos a eliminar pela força bélica das agências de punitividade? A resposta parece não poder ser outra que aquela proposta por Nilo Batista: “A substituição de um modelo sanitário por um modelo bélico de política criminal, no Brasil, não representa uma metáfora acadêmica,

e

sim

a

intervenção

dura

e

frequentemente

inconstitucional de princípios de guerra no funcionamento do sistema penal (...). Neste sentido, podemos concluir que, em nosso país, temos para as drogas uma política criminal com derramamento de sangue”. 127

5.5. Política Criminal de Drogas e Narcisismo Punitivo O combate ao narcotráfico e ao crime organizado, no marco do direito penal do inimigo e da fixação do Estado de exceção

permanente, dirime as fronteiras entre as políticas de segurança e o direito penal. O problema, desde a perspectiva do garantismo, é que o direito e o processo penal devem representar as barreiras de contenção

das

violências

constantemente

emanadas

dos

instrumentos da política repressiva. Do contrário, se operarem na legitimação e não na deslegitimação da violência, a tendência é o extravasamento e a perda do controle dos atos do poder. A oposição entre segurança e garantias penais e processuais, neste contexto, talvez seja uma das maiores falácias servidas ao público consumidor do direito penal. Não existe dicotomia entre a manutenção

dos

direitos

e

garantias

individuais

e

a

criação/manutenção de sistemas democráticos de controle do desvio punível. 128 O choque de perspectiva somente pode ser real se houver opção por modelos persecutórios autoritários baseados em hierarquizações fictícias ou confronto entre direitos individuais, coletivos e/ou transindividuais. Contudo, pode-se perceber, pela assunção acrítica e pela naturalização do fenômeno da emergência como regulador da normalidade, o apego ao autoritarismo e à vontade de punitividade, tanto pelos operadores das agências penais quanto pelo seu público espectador (senso comum teórico, every day theory). O desejo generalizado de punição realiza o velamento da percepção de que o processo de construção da Democracia é lento e sutil, instaurando,

na realidade dura da programação repressiva, Democracia de superfície capturada pela densidade punitiva. O contexto atual pode ser interpretado a partir da crença moderna na ciência (penal) e na pretensão da racionalidade do logos punitivo. A confiança na capacidade de a tecnologia penal solucionar problemas como o das drogas e o do terrorismo (narcisismo penal) 129 obtém como resultado a maximização incontrolável e a generalização desmesurada da repressão. Importante, neste quadro, verificar com Zaffaroni que “una Política Criminal, que sueñe con que su objetivo sea la erradicación será absurda, porque el delito, en su contenido concreto, es un concepto cultural y, por ende, relativo, históricamente condicionado. Siempre habrá delitos, siempre habrá conductas jurídicamente prohibidas y reprochables”. 130 Resta, pois, lembrar que é nos momentos de desestabilidade que

a

reafirmação

das

conquistas

da

civilização

torna-se

fundamental, não havendo outra saída para a crise senão transformá-la em ação crítica.

6. AS POLÍTICAS CRIMINAIS E A CRÍTICA CRIMINOLÓGICA 6.1. Os Discursos Político-Criminais Segundo Franz von Liszt, 131 a política criminal nasce na segunda metade do século XVIII, na Itália, fundamentalmente com o advento da publicação da obra de Beccaria e sua preocupação com as formas eficazes de prevenção do delito e com o conteúdo legislativo efetivo para alcançar tal finalidade. O questionamento de Beccaria projeta a teoria do direito penal da estrutura meramente descritiva e submissa às funções declarativas da lei penal (perspectiva de lege lata) à busca de soluções para o problema da criminalidade (perspectiva lege ferenda). Assim, o dinamismo imposto por Beccaria a partir da propositura de princípios não apenas de análise, mas de reforma legislativa, faz nascer novo ramo nas ciências penais. Se Feuerbach, no século XIX, definirá política criminal como “o conjunto dos procedimentos repressivos através dos quais o Estado reage contra o crime”, 132 Liszt, no início do século XX, centralizará estudos nas relações entre política criminal e direito penal, procurando definir suas funções e encontrar o marco de autonomia:

“Entre

el

Derecho

penal

dogmático



principios

fundamentales del Derecho penal –, rígido, invariable, igualitario, que encarna en la ley penal estatutaria – derecho necesario –, igualmente rígida, igualitaria, invariable, y la viviente realidad de la práctica criminal y penal, eminentemente variable, bajo la ‘interfincción

de

lo

accidental’

(Hegel)



individuales,

circunstancias, casos – como la vida misma, se abría desde el nuevo punto de vista (finalísimo, teleología), el abismo aislador de una solución de continuidad. Era preciso llenar este vacío y para llenarle se precisaba a su vez, una actividad consciente, cuyo contenido se rigiese por una norma, un principio, una orientación diretriz”. 133 Entre as invariáveis e rígidas categorias do direito penal e a vida pulsante do mundo, apresenta-se, para Liszt, lacuna de necessária colmatação. Os princípios e diretrizes que fornecerão os mecanismos de entendimento da complexa e mutável vida social e, principalmente, de sua projeção ao futuro da lei penal seriam definidos pela política criminal. A política criminal, portanto, poderia ser definida como “contenido sistemático de principios – garantidos por la investigación científica de las causas del delito y de la eficacia de la pena –, según los cuales el Estado dirige la lucha contra el delito, por medio de la pena y de sus formas de ejecución”. 134 Criticar a legislação penal vigente à luz dos fins do direito penal e da

pena, e propor sua reforma, adequando a lei à realidade, seriam as duas funções primordiais do novo ramo das ciências criminais. Segundo Marc Ancel, é em Liszt que se encontra a projeção da política criminal orientada cientificamente, ou seja, no autor alemão a política criminal nasceria como ciência. 135 Assim, de “italiana, por su origen, la Política Criminal descuidada por los escritores italianos, se hace alemana por adopción”. 136 Se a origem da política criminal, segundo Liszt, estaria no racionalismo beccariano, no momento de sua autonomização do direito penal percebe-se giro conceitual e ideológico, sobretudo na perspectiva humanitária proveniente da Ilustração. São lançadas, na nova perspectiva, sementes autoritárias cujo desenvolvimento delineará os conhecidos modelos de Defesa Social. 137 Das noções tradicionais sobre a política criminal (Beccaria e Feuerbach), com o processo de independência científica (Rocco 138 e, principalmente, Liszt) obtém-se a definição de campos centrais de tensão que serão fundamentais para a visualização do pêndulo existente na contemporaneidade entre os discursos criminalizadores (proibicionistas) e os descriminalizadores. No campo legislativo (crítica de lege lata), são realizados diagnósticos e projeções que orientarão as mudanças legais; no campo executivo/administrativo, são enfatizadas as ações e os discursos preventivos, bem como são direcionadas as políticas de repressão à delinquência.

Apropriando-se deste legado e ciente de sua autonomia discursiva, Marc Ancel criará o movimento político-criminal de maior aceitação pela comunidade científica das ciências criminais do século XX: a Nova Defesa Social (NDS). A NDS unifica e formata os discursos político-criminais com a finalidade de criação de medidas de prevenção da reincidência em todos os níveis repressivos, ou seja, “a Política Criminal pretende inspirar e desenvolver uma ação de luta eficaz contra o crime tanto no plano legislativo, como judiciário e penitenciário”. 139 A política criminal é definida, assim, como o conjunto de princípios e de recomendações para reagir contra o fenômeno delitivo através do sistema penal. O Estado, ao monopolizar toda forma de reação contra o delito, necessitaria de orientações

político-criminais

como

pauta

programática

das

agências de punitividade. A política criminal atuaria como conselheira dos órgãos de segurança pública e “se limitaria a indicar ao legislador onde e quando criminalizar condutas”. 140 Todavia esta concepção universalista de política criminal atrelada ao processo legislativo e à atuação das agências repressivas obteve, como efeito, crescente ampliação da incidência do direito penal através da maximização dos processos de criminalização. Não por outro motivo sofreu grande abalo a partir do surgimento das correntes críticas da criminologia nos anos 1960, sobretudo com a constatação “do fracasso da pena privativa de

liberdade com respeito a seus objetivos proclamados, [que] levou a uma autêntica inversão de sinal: uma Política Criminal que postula a permanente redução do âmbito de incidência do Sistema Penal”. 141 Se originalmente o sistema penal extraía da política criminal indicações para instrumentalização dos modelos repressivos, com as conclusões advindas da crítica criminológica no sentido de que este sistema atuava contra os postulados por ele mesmo declarados, foi definida mudança de rumo, sendo pautadas formas para contração da punitividade. Como consequência das pesquisas criminológicas, principalmente das estruturadas no paradigma da reação social, percebeu-se que a reação contra o delito conduzida pelas

agências

oficiais

de

punitividade

caracteriza-se

pela

seletividade e pela desigualdade, gerando danos muitas vezes superiores aos do próprio delito praticado (violência institucional). A comprovação das teses induz, inclusive, a novas definições, ampliando a rede de controle social para além do monopólio estatal. A ciência ou arte da reação contra o delito passa a ser encarada, segundo Delmas-Marty, como “o conjunto através dos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal”. 142 Com os postulados tradicionais deslegitimados pela crítica acadêmica – embora perceptível que institucionalmente as pautas político-criminais deflagradas pela NDS tenham vigência através de processos internos de (re)legitimação –, as correntes críticas partem

para a construção de modelos alternativos de controle social, procurando restringir ao máximo a atuação das agências de persecução. As políticas criminais alternativas proporão novas formas de gestão do fenômeno delitivo, baseadas, em sua maioria, nos discursos de descriminalização.

6.2. A Tensão na Política Criminal Contemporânea: Criminalização versus Descriminalização 6.2.1. Colocação do Problema Nos Colóquios de Bellagio e de Nova Iorque, preparatórios para o XI Congresso Internacional de Direito Penal, realizado em Budapeste (1974), o tema da descriminalização aparece de forma inédita. Surge como pauta orientadora da discussão políticocriminal, sendo a mudança de programação reivindicada pelos experts das ciências criminais como alternativa à crise deflagrada pelo processo de inflação legislativa e de descodificação que caracterizou o direito penal do século XX. As propostas de adoção de estratégias descriminalizantes, para diminuir o input do sistema penal, advindas do XI Congresso Internacional de Direito Penal, pautaram os debates da década de 1970, sendo recepcionadas pelo Comitê Europeu sobre Problemas da Criminalidade no fórum de Estrasburgo (1980). A ideia de minimizar/obstruir a incidência do sistema penal nas condutas de

baixo potencial ofensivo ou de menor complexidade, bem como de retirar do direito penal a missão de definição de padrões deontológicos (comportamentais) sustentados por pautas morais, foi introduzida como possibilidade de redefinição do direcionamento das agências criminais. É que parte da experiência legislativa incriminadora no período compreendido entre as décadas de 1940 e 1960 reproduziu tipos penais de autor fundados em perspectivas behavioristas (v.g. Lei de Contravenções Penais no Brasil), transformando o direito penal em mecanismo eminentemente moralizador, em confronto com a tendência secularizadora advinda da Ilustração. Ademais, no plano teórico, as teorias críticas da criminologia que desmistificaram as funções reais exercidas pelo sistema penal, sobretudo quanto aos fins das penas – teorias de prevenção especial positiva e prevenção geral negativa –, passaram a apontar o alto custo social e econômico da criminalização e a necessidade de racionalização das normas proibitivas (criminalização primária), dos processos de persecução criminal (criminalização secundária) e das formas de punibilidade (execução das penas e das medidas de segurança). A recepção dos postulados interacionistas e do labelling approach

redefine

o

objeto

de

estudo

da

criminologia

e,

consequentemente, da política criminal. Se a centralidade das

investigações no paradigma etiológico era o homem delinquente, a ruptura com o paradigma liberal-individualista (microcriminologia) direciona as pesquisas para os processos de criminalização e a respectiva reação da sociedade aos fenômenos desviantes, lícitos ou não (macrocriminologia). Com a consolidação acadêmica do marco teórico desenvolvido pelo paradigma da reação social, a redefinição de pautas de atuação nas esferas normativas, judiciárias e executivas suscitou o desenvolvimento de inúmeras correntes político-criminais, intituladas Políticas Criminais Alternativas. O ponto comum de alternatividade, entre os mais variados enfoques, foi o de priorizar o objetivo de diminuir o impacto das agências penais (custos da criminalização) e o de possibilitar soluções diferenciadas, algumas delas não judiciais, aos problemas derivados dos desvios puníveis. O tratamento eminentemente penal das situações problemáticas (Hulsman), na concepção dos representantes das mais diversas correntes críticas, obtivera inúmeros efeitos perversos, desde a proliferação das violências pela incidência desigual da repressão penal aos mais vulneráveis, inclusive da proliferação dos danos às vítimas (revitimização), à própria inoperância das agências de controle decorrente da sobrecriminalização de condutas (direito penal máximo).

Leciona Canestri que “es conocido el fenómeno de dejar acumular textos legales en desuso ó pasados de moda, los cuales van constituyendo un abultado arsenal de leyes penales”. 143 Em casos patológicos, como os que atingiram as legislações penais ocidentais contemporâneas, sobretudo na América Latina, o processo de gradual acúmulo de leis penais tendeu a constituir sistema normativo panóptico de controle social, no qual “se cria um Direito Penal hipertrofiado e onipresente; [e] o respeito cívico que o cidadão devotaria à lei justa tende a se transformar no temor calado frente à pena grave”. 144 O fenômeno universal de produção legislativa em matéria penal – em decorrência da necessidade de tutela de novos bens jurídicos ou

pela

resposta

contingencial

a

determinadas

demandas

criminalizadoras (direito penal de emergência) –, aliado à normal tendência de abstinência legislativa quanto à descriminalização, fomenta a discussão sobre as possibilidades concretas de alteração do eixo criminalizador.

6.2.2. Criminologia da Práxis: da Criminologia Crítica às Políticas Criminais Alternativas Segundo Alessandro Baratta, o momento de maturidade da Criminologia Crítica ocorreu “cuando el enfoque macrosociológico se desplaza del comportamiento desviado a los mecanismos de control

social

del

mismo,

y

en

particular

al

proceso

de

criminalización. La Criminología Crítica se transforma de ese modo más y más en una crítica del derecho penal”. 145 Assim, do enfoque microssociológico realizado pela criminologia positivista estruturada na Ideologia da Defesa Social (IDS), é privilegiada a perspectiva macrossociológica,

em

processo

de

verdadeira

superação

paradigmática (Thomas Khun) – “el salto cualitativo que separa la nueva de la vieja criminología consiste, empero, sobre todo, en la superación del paradigma etiológico, que era el paradigma fundamental de una ciencia entendida naturalisticamente como teoría de las ‘causas de la criminalidad’”. 146 A política criminal correcionalista do positivismo criminológico, estruturada nas ideias de consenso social, patologia do criminoso, objetividade das estatísticas e gravidade do delito comum, ascende ao enfoque macro proposto pela Criminologia Crítica, no qual a reação social e os processos de seleção, etiquetamento e estigmatização demonstram nova forma da violência: a violência estatal das agências penais. A noção liberal-individualista é substituída pelo caráter institucional e social da produção de criminalidade, refletido através das normas penais (criminalização primária), da ação das agências de controle (criminalização secundária) e do atuar das instituições totais encarregadas da segregação (presídios e manicômios). 147

No relatório apresentado no Colóquio de Bellagio, Louk Hulsman

expressa

o

processo

de

superação

do

discurso

criminológico ao diagnosticar o descompasso entre as funções declaradas – discurso criminológico oficial reproduzido pelas teorias tradicionais do positivismo – e as realmente exercidas pelas agências de punitividade. Demonstra o autor a existência de “diferença considerável entre, de um lado, os objetivos que são atribuídos a este sistema e o funcionamento pressuposto na doutrina penal e, de outro, a realidade deste funcionamento”. 148 Como estratégia político-criminal de contenção das violências deflagradas pela desigual incidência das instituições de sequestro (Zaffaroni) nos grupos sociais vulneráveis aparecem as pautas de descriminalização. Para Hulsman, a diafonia entre funções reais e funções declaradas exercidas pelo sistema penal poderia ser manifestada em três campos diferenciados. O primeiro seria relativo à incapacidade de o sistema penal cumprir as tarefas que lhe foram atribuídas,

visto

redução/extinção

que

a

expectativa

da

criminalidade

(social refletida

e

política)

na

de

ostensiva

criminalização não seria suportada pela estrutura burocrática da administração pública. A comprovação desta tese estaria expressa nas cifras ocultas da criminalidade.

O segundo ponto débil estaria relacionado ao funcionamento do sistema. Se conforme a programação oficial o controle das condutas criminalizadas ocorre primeiramente no Legislativo (criminalização primária) e posteriormente no Judiciário, “esta perspectiva não é confirmada pela pesquisa empírica. O desnível substancial entre a competência do sistema (a totalidade do comportamento punível) e sua capacidade traz como consequência o fato de que a seleção dos casos tratados pelo sistema se efetua principalmente na área policial. Assim, este serviço controla negativamente as atividades de todos os outros serviços (Ministério Público, Juiz, serviços penitenciários)

do

sistema.

(...)

Concluímos,

então,

que

o

funcionamento atual do Sistema Penal é, em grande parte, não controlado e incontrolável”. 149 Em terceiro lugar, a atuação das agências penais estaria em absoluta assimetria com os custos sociais decorrentes da criminalização, ou seja, a sua incidência provocaria efeitos negativos e danos que, em determinados casos, ultrapassaria o custo do delito. Neste sentido, o autor menciona a distorção produzida

pelo

sistema

penal

na

imagem

das

pessoas

criminalizadas com a distribuição de rótulos e o decorrente processo de estigmatização; os efeitos perversos gerados pela apartação (presídios e manicômios); a promoção dos desvios secundários inerentes à criminalização, sobretudo no fenômeno das drogas; e os

obstáculos criados para efetivar a assistência das vítimas da violência em face da centralidade do sistema penal na punição dos autores dos fatos criminalizados. 150 O consenso sobre a falta de harmonia entre as funções declaradas (redução/eliminação da criminalidade) e as efetivamente exercidas (multiplicação da violência) induz as correntes da Criminologia Crítica à criação de programas político-criminais alternativos. A severa crítica ao direito penal tradicional, à criminologia etiológica e ao seu substrato ideológico (IDS) parecia estar consolidada no final das décadas de 70, sendo irreversíveis os avanços atingidos pela Nova Criminologia. Contudo, a redução do espaço de fala das correntes críticas, localizadas fundamentalmente na academia, induziu ao diagnóstico de que os postulados desconstrutores não seriam realizáveis. A forma de superação do espaço acadêmico para viabilização das estratégias de redução dos danos produzidos pelo sistema punitivo foi a associação do pensamento de vanguarda com os operadores críticos do sistema – notadamente nas experiências italiana, francesa e espanhola, nas décadas de 1970 e 1980, bem como no Brasil e em diversos países da América Latina, no final da década de 1980 e nos anos 1990, através da aproximação com o Movimento do Direito Alternativo (MDA).

O movimento de superação dos muros acadêmicos e de transformação da crise em ação crítica adveio com a consolidação das políticas criminais alternativas na construção do que poderia ser denominado como Criminologia da Práxis. O perfil prático decorrente do encontro entre os profissionais críticos das agências penais e a crítica acadêmica redirecionou as pautas de ação na busca de alternativas viáveis para a descentralização,

a

descriminalização,

a

derivação

e

a

informalização do controle estatal; a desprofissionalização, a desmedicalização, a deslegalização e a eliminação dos estigmas e das etiquetas, fruto da profissionalização dos órgãos de controle; e a descarcerização, a desinstitucionalização e o controle comunitário como

alternativa

possível

às

instituições

totais

(prisões

e

manicômios). 151 Para Baratta, quatro seriam as indicações estratégicas para o desenvolvimento de políticas criminais alternativas. A primeira, vinculada à interpretação das normas penais e processuais penais, definiria

a

necessidade

de

avaliação

distinta

entre

os

comportamentos socialmente negativos praticados por grupos sociais vulneráveis. Neste sentido, as políticas criminais alternativas deveriam ser entendidas como política de transformação social e institucional e não mera resposta ao fenômeno criminal no âmbito das funções repressivas do Estado. A segunda perspectiva seria a

de viabilizar estrategicamente práticas no interior do sistema para contrair o uso seletivo do direito penal (descriminalização judicial) e redirecionar a ação para tutela de bens jurídicos coletivos e difusos. Na sequência, o autor propõe projetos com o objetivo de abolição gradual

das

instituições

prisionais,

sobretudo

através

dos

instrumentos de descarcerização possibilitados pelo uso de medidas alternativas, suspensão condicional da pena e do processo, regimes de semiliberdade e formas diferenciadas de trabalho carcerário. Finalmente,

visualiza

como

fundamental

para

obter

preciso

diagnóstico sobre as formas de (re)legitimação do direito penal desigual o estudo e a crítica da interação entre a opinião pública e o sistema de criminalização na formação do senso comum teórico do homem de rua (every day theory). 152 Contudo, para além das necessárias estratégias de controle da violência no interior do sistema penal, a principal alternativa à política criminal criminalizadora ocorreria através de processos de contração da incidência, ou seja, a partir de concretos programas de descriminalização (legal e judicial).

7. TENDÊNCIAS POLÍTICO-CRIMINAIS CONTEMPORÂNEAS: CRIMINALIZAÇÃO E DESCODIFICAÇÃO 7.1. Os Discursos Criminalizadores: Lei e Ordem, Tolerância Zero e Esquerda Punitiva 153 Como foi apresentado anteriormente, os Movimentos de Lei e Ordem (MLOs) podem ser apontados como a terceira aresta que possibilita emanar o discurso autoritário da política criminal de drogas no Brasil. Para além desta configuração específica nas políticas de repressão aos entorpecentes, os MLOs perfazem a universalidade

dos

discursos

criminalizadores,

definindo

os

consensos presentes nos modelos autoritários que postulam plena eficácia repressiva (discurso da ação penal eficiente). No entanto, simétrica aos MLOs, surge em 1982, nos Estados Unidos, nova perspectiva de densificação do projeto eficientista 154 das agências de punitividade: a broken windows theory. O modelo teórico de criminologia atuarial, formulado por James Q. Wilson e George Kelling, parte do prognóstico da necessidade de luta constante contra pequenos distúrbios cotidianos como instrumento para recuar as grandes patologias criminais. 155 A broken windows theory, instituída como programa doutrinário da segurança urbana em Nova Iorque, universalizou a política de Tolerância Zero. Assim,

a face teórica adquire respaldo prático nos aparatos de segurança, afirmando-se como instrumental adequado para atingir o triunfo na luta contra a delinquência. 156 “De Nova York, a doutrina da ‘tolerância zero’, instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente de incômodo tenaz e de inconveniência –, propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. E com ela a retórica da guerra ao crime e da ‘reconquista’ do espaço público, que assimila os delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros (...)”. 157 Percebe-se, pois, nítida simetria entre as propostas políticocriminais

propugnadas

pelos

MLOs

e

as

oferecidas

pelos

defensores das políticas de Tolerância Zero. Todavia, enquanto os modelos de Tolerância Zero primam pela repressão à criminalidade de rua e bagatelar, por processos de higienização social a partir de normas penais sancionadoras de comportamentos individuais (behaviorismo penal), os MLOs reivindicam alta punibilidade às graves ofensas dos bens jurídicos interindividuais, sobretudo os delitos contra a pessoa e contra o patrimônio. Nesta fusão de

perspectivas, entende-se a intolerância como o único mecanismo de prevenção da desordem social. Não obstante o fortalecimento da máquina criminalizadora pelos movimentos

de

direita

punitiva,

nota-se,

na

atualidade,

convergência, no plano da segurança pública, de setores diversos da política. Assim, se historicamente a política criminal de esquerda baseou seu programa de atuação na contração do aparato penalcarcerário, em muito decorrente da crítica à criminalização de atos perpetrados por classes econômicas menos favorecidas e pelos movimentos sociais e contraculturais, sobretudo no caso do uso de entorpecentes, na atualidade verifica-se a convergência de matrizes políticas historicamente diafônicas. Paralela aos movimentos de direita punitiva, identificados nos MLOs e nas políticas de Tolerância Zero, exsurge nova perspectiva criminalizadora, denominada esquerda punitiva, 158 cujo efeito, na integração dos horizontes de punitividade, é a potencialização do discurso repressivo. Com esquerda e direita aliadas na nova cruzada moral contra a criminalidade, obtém-se a intensificação das funções simbólicas do direito penal, gestando novo paradigma criminalizador: o populismo punitivo. Elena Larrauri diagnostica a facilidade de os movimentos sociais, normalmente atrelados às esquerdas, recorrer ao direito penal, sobretudo a partir do final da década de 1970 e início da

década de 1980: “grupos de derechos humanos, de antirracistas, de ecologistas, de mujeres, de trabajadores, reclamaban la introducción de nuevos tipos penales: movimientos feministas exigen la introducción de nuevos delitos e mayores penas para los delitos contra las mujeres; los ecologistas reivindican la creación de nuevos tipos penales y la ampliación de los existentes para proteger el medio ambiente; los movimientos antirracistas piden que se eleve a la categoría de delito el trato discriminatorio; los sindicatos de trabajadores piden que se penalice la infracción de leyes laborales y los delitos económicos de cuello blanco; las asociaciones contra la tortura, después de criticar la condiciones existente en las cárceles, reclaman condenas de cárcel más largas para el delito de tortura”. 159 Segundo Scheerer, estes grupos que poderiam ser definidos como empresários morais atípicos – ou, nas palavras de Silva Sánchez, gestores atípicos da moral 160 –, (a) postulam suas demandas a partir de novas pautas morais; (b) exigem a formação de regras gerais que modelem suas convicções; (c) mostram desinteresse se os meios (penais) são (in)justos; e (d) optam pela utilização simbólica da criminalização. 161 A aporia surge pelo fato de a nova moral criminalizadora ser deflagrada por movimentos contestatórios e partidos políticos cuja estratégia, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, era

exatamente a de desestabilizar a farsa prolatada pelos MLOs – “lo propio del modelo preexistente (esto es, del debate en torno a la ideología de ley y orden) era que los partidos y grupos vulgarmente calificados como ‘de derechas’ asumieran la tesis del incremento de la seguridad a través de una mayor presión punitiva, mientras los partidos y organizaciones ‘de izquierdas’ defendían aparentemente la postura contraria: la de la disminución de la presión punitiva. Así, el cambio fundamental se produce cuando la social democracia europea pasa a asumir, en su totalidad, el discurso de la seguridad (...). Esa idea de seguridad (lo que podríamos denominar de ‘ideología de la ley y el orden en versión de izquierda’) fue asumida expresamente ante los medios de comunicación (...)”. 162 Instituições ligadas aos direitos humanos, fundamentalmente organizações de cunho não governamental (ONGs) vinculadas aos projetos políticos de construção da cidadania e radicalização democrática, acabam, na atualidade, consumindo o discurso criminalizador, digerindo-o com naturalidade preocupante. Desta forma, a macrocrítica ao sistema é abandonada, havendo notória demanda pela (re)utilização retributiva e passional do modelo anteriormente deslegitimado. Importante

ressaltar,

ainda,

que

o

potencial

criminalizador/punitivo da esquerda punitiva acaba sendo maior que o dos tradicionais movimentos criminalizadores. Se os MLOs,

potencializados pela broken windows theory, radicam seu objeto de intervenção na criminalidade violenta (criminalidade clássica), a esquerda punitiva não apenas consome este discurso como amplia seu rol de incidência. Além de ratificar a repressão aos delitos interindividuais, formula novo catálogo de condutas necessárias à criminalização, fundamentalmente no que tange àquelas lesivas de bens jurídicos coletivos e/ou transindividuais. Observa-se,

portanto,

desde

os

processos

de

(re)democratização, o nascimento de novo modelo de direito penal que dificilmente se enquadra nos rótulos direita e esquerda, visto que o pensamento repressivista atua, não esporadicamente, como polo catalisador de perspectivas políticas (em tese) opostas. O efeito desta pouco ortodoxa união é o alargamento do sistema penal e a minimização das garantias penais e processuais penais. O

impacto

deste

enlaçamento

das

perspectivas

criminalizadoras no discurso crítico é surpreendente sobretudo na América Latina. Se políticas criminais garantistas de tutela dos direitos fundamentais e programas de intervenção penal mínima eram postulados durante os regimes autoritários, ou seja, se o sistema penal estava desvendado diante do desmascaramento do seu papel de manutenção da desigualdade e reprodução de sofrimento, na atualidade os próprios atores deste exaustivo processo de transparência assumem a fala criminalizadora,

coadunando sua perspectiva com os movimentos defensivistas. O caso das políticas de drogas é exemplar: se nas décadas de 1960 e 1970 havia preocupação das esquerdas com a efetividade do discurso descriminalizador, notoriamente em decorrência de o uso de entorpecentes estar vinculado à contracultura e aos movimentos de vanguarda e de contestação, após a (re)democratização há o apoio formal e explícito às normas de combate às drogas – v.g. Lei dos Crimes Hediondos, Lei do Crime Organizado, Lei do Regime Disciplinar Diferenciado, Lei de Entorpecentes, entre outras legislações correlatas. Nota Karam 163 que os movimentos sociais e os partidos de esquerda são inebriados pela reação punitiva, desejando e aplaudindo prisões a qualquer preço e propondo como solução a retirada das garantias penais e processuais. É criado verdadeiro contrassenso

devido

à

facilidade

com

que

os

grupos

autodenominados progressistas recorrem ao penal/carcerário – v.g. “las asociaciones contra la tortura, después de criticar las condiciones existentes en las cárceles, reclamam condenas de cárcel más largas para el delito de tortura”. 164 As vertentes criminalizadoras expostas, independentemente do aporte

político-ideológico-partidário,

recrudescimento (re)legitimação

dos de

aparatos

sistema

ao

primarem

repressivos,

político-criminal

optam estruturado

pelo pela na

maximização dos poderes, dirimindo, por consequência, direitos e garantias fundamentais. Ao conformarem maiorias representativas (direita e esquerda), e ao terem como programa comum a vivificação

do

penal/carcerário

através

de

estratégias

de

maximização do direito penal – elaboração de novos tipos, aumento de penas e recrudescimento das formas de execução –, obstaculizado resta, no cenário político, o debate sobre pautas descriminalizadoras.

7.2. Os Efeitos dos Processos Criminalizadores: Descodificação (Própria e Imprópria) e Desregulamentação Com a sucessão e sobreposição de normas jurídicas, derivação do modelo de Estado Social intervencionista projetado, substancial ou formalmente, pelos países ocidentais, o direito e o processo penal

contemporâneos

padeceram

da

gradual

perda

de

regulamentação, acarretando a ofuscação dos limites entre ilícitos penais e administrativos e o incurso em profunda crise de sistematicidade. O programa ilustrado de produção de legislações penais harmônicas, renovado pela ideia do positivismo jurídico de criação de sistemas normativos completos e coerentes, com lacunas e antinomias meramente aparentes, foi soterrado pela alta demanda legiferante.

Na atualidade o excesso criminalizador atinge o núcleo duro do direito penal, isto é, os Códigos Penais e Processuais Penais. O processo de descodificação não apenas gera sistemas penais autônomos (leis penais especiais e extraordinárias), muitas vezes mais importantes que a própria lei codificada, como produz microssistemas penais em áreas diversas do direito público e privado. O fenômeno da descodificação, que atinge nível de patologia nos sistemas penais ocidentais de tradição romano-germânica, pode ser visualizado em dois momentos distintos. Sua primeira forma de manifestação, a qual poderia ser denominada de descodificação própria, diz respeito à criação de leis penais especiais ou extraordinárias, cuja finalidade é tutelar de forma diferenciada determinados bens jurídicos. Tais estruturas normativas não perdem sua característica penal, conformando, porém, sistemas paralelos que tendem a harmonizar-se com as regras gerais e os princípios do direito penal e do direito processual penal – no caso, o Direito Penal e Processual Penal das Drogas, Lei 11.343/06. No entanto, a fragmentação dos modelos codificados e o ingresso de novos bens jurídicos na esfera do direito geram igualmente espécie de descodificação imprópria, ou seja, a produção de textos legais híbridos através da composição de categorias e institutos advindos de distintas áreas. Diferentemente

das leis penais especiais e extraordinárias (descodificação própria), que criam conjuntos legislativos penais paralelos, tais normas, parcialmente penais, administrativas e civis, produzem sistemas autônomos com regras de interpretação e de aplicação próprias cujo efeito é romper com a principiologia penal e processual penal, não invariavelmente estabelecendo modelos de responsabilidade penal objetiva e flexibilização nas garantias processuais. 165 Assim,

segundo

Mantovani,

“é

necessário

concluir

resignadamente que o Direito Penal, abandonando o ideal iluminista de leis ‘simples’, ‘claras’ e ‘estáveis’, pela realidade de leis ‘complexas’, ‘confusas’ e ‘instáveis’, ingressou na era irracional da descodificação e das legislações especiais: isto é, a era nebulosa das leis penais usadas como instrumento de governo e não como tutela de bens; das leis de compromisso, de formulação indeterminada e estimativa; das leis que garantem privilégios para potentes grupos sociais; das leis vazias, simbólicas, mágicas, destinadas tão somente a colocar em cena a diligência na luta contra certas formas de criminalidade; das leis ‘hermafroditas’ com forma de lei mas sustância de ato administrativo; das leis cultivadoras do clientelismo, corporativas, para negociações do voto por privilégios particulares; das leis tecnicamente desalinhadas e ilógicas, inspiradas na ‘liberdade de expressão’, de cada vez mais árdua compreensão; das leis-expediente, do casuísmo, para

sobreviver diariamente e quase sempre mal; das leis ‘burocráticas’, meramente sancionadoras de genéricos preceitos extrapenais”. 166 A tendência do sistema punitivo de se transformar cada vez mais em sistema de controle administrativizado, e sempre menos penal em decorrência dos processos de descodificação própria e imprópria, produz séria crise no conjunto das normas e dos mecanismos que negam a informalidade do controle social. 167 O sintoma do punitivismo desmantela gradualmente a estrutura garantidora do direito penal e processual penal e, por consequência, diminui os mecanismos de tutela dos direitos fundamentais. Percebe Ferrajoli que se deve observar o fato de que os modelos penais da atualidade “ofuscaram os confins entre as esferas do ilícito penal e do ilícito administrativo, ou seja, dos ilícitos, transformando o direito penal em uma fonte obscura e imprevisível de perigos para qualquer cidadão, olvidando sua função simbólica de intervenção extrema contra ofensas graves e oferecendo, portanto, o melhor terreno à cultura de corrupção e ao arbítrio”. 168 Ao desregulamentar as normas e as sanções, bem como ao desjudicializar o processo de resolução dos casos penais e de execução da pena, a estrutura do controle social formal potencializa a coação direta e minimiza a contenção das violências institucionais. Conclui Ferrajoli que “a inflação penal provocou a regressão do

nosso sistema punitivo a uma situação não diferente daquela prémoderna (...)”. 169 Não basta, pois, na reconfiguração dos sistemas e na capacitação de instrumentos de controle das violências praticadas pelas

agências

de

punitividade,

pautar

exclusivamente

a

descriminalização de determinadas condutas que não ofendem bens jurídicos relevantes. Se a perspectiva garantista-minimalista pode ser entendida como tecnologia dirigida à contração do poder punitivo ilegítimo através de vínculos formais e materiais balizados pelo respeito à dignidade humana, aliada ao discurso da descriminalização, é extremamente necessária a recomposição da estrutura principiológica e sistemática do direito penal e processual penal. Neste

quadro,

fundamental

sustentar,

paralelamente

à

constrição das hipóteses criminalizadoras pelo processo de descriminalização, a ilegitimidade das legislações emergenciais e a necessidade de recodificação das leis penais. Segundo Ferrajoli, 170 a recapacitação do sistema imporia a obrigatoriedade de introdução, em sede constitucional, de reservas de códigos como forma de impedir respostas meramente simbólicas do poder punitivo às demandas sociais criminalizantes. A criação desta metagarantia seria destinada a imunizar as garantias penais e processuais penais das reformas assistemáticas e contingenciais, colocando freios à

inflação penal que tem provocado a regressão inquisitiva do direito e do processo penal. 171 A reserva estabeleceria que todas as normas penais e processuais penais deveriam ser introduzidas no corpo dos Códigos, não podendo dispositivo desta natureza ser criado senão com a modificação do estatuto principal. A orientação estaria balizada pelo princípio toda matéria penal e processual penal no Código, nada fora do Código. Assim, o legislador ordinário ficaria minimamente vinculado ao sistema, sendo obrigado a trabalhar pela sua unidade e coerência. O programa de direito penal mínimo, estruturado em ampla reforma neocodificadora pela via da descriminalização e da reserva de código, qualificaria o potencial garantista do direito, facilitando intervenções de redução de danos. Possível concluir com Mantovani que “o futuro decidirá se a atual tendência expansiva da ‘desordem jurídica’ em que estamos submersos ficará em uma fase transitória aguda, coincidente com uma profunda crise de nossa civilização, ou se, através de novos desenvolvimentos, estará destinada a caracterizar estavelmente os ordenamentos jurídicos, de forma que a insegurança jurídica e o arbítrio judicial se convertam em expressão das florescentes concepções de mundo. Mas o desejável retorno da ordem e da segurança jurídica, quando produzida, se é que se produzirá, não

poderá prescindir do retorno da codificação e do fim da era da legislação especial. A existência ou não do ‘clima político’ necessário para a recodificação não é problema da Ciência Penal: que o científico faça o que deve e, depois, que suceda o que tenha que suceder”. 172

8. OS DISCURSOS E AS PRÁTICAS DESCRIMINALIZADORAS 8.1. Descriminalização e Criminologia da Práxis Como legados da Criminologia Crítica, os movimentos de política

criminal

alternativa,

portadores

do

discurso

da

descriminalização e da recodificação, apresentam-se identificados nas tendências do abolicionismo e do minimalismo penal. Independente do debate sobre a efetiva viabilidade de algumas teses mais incisivas – como, por exemplo, a extinção do sistema penal, segundo postulam alguns teóricos do abolicionismo –, os movimentos de política criminal alternativa fornecem importantes elementos para o incremento das estratégias de contração do sistema penal/carcerário. Assim, o diagnóstico fornecido pelas correntes pós-Criminologia Crítica é imprescindível para que se tenha precisa dimensão dos problemas gerados pela aplicação irrestrita e de prima ratio do direito penal. As correntes abolicionistas e minimalistas congregam autores que, tendo como pressupostos os avanços do paradigma do etiquetamento, comungam de táticas para limitar o uso do sistema penal

e

substituir

gradualmente

as

instituições

carcerárias.

Mathiesen, por exemplo, a partir da criação da Organização Norueguesa Anticarcerária (KROM), procurou criar condições para

revolução permanente sem limite, fomentando profundas reformas de curto prazo nas instituições punitivas. A proposta principal de moratória na construção de novas prisões é sustentada em oito premissas: (1ª) demonstração de que o objetivo de melhora do detento (prevenção especial) é irreal, sendo constatável efeito contrário de destruição da personalidade e a incitação da reincidência; (2ª) constatação de que o efeito da prisão quanto à prevenção geral é absolutamente incerto, sendo possível apenas estabelecer alguma relação do impacto de políticas econômicas e sociais na dissuasão do delito; (3ª) verificação de que grande parte da população carcerária é formada por pessoas que praticaram delitos contra a propriedade; (4ª) constatação de que a construção de novos presídios é irreversível; (5ª) confirmação de que o sistema carcerário, na qualidade de instituição total, tem caráter expansionista; (6ª) averiguação de que as prisões funcionam como formas institucionais e sociais desumanas; (7ª) comprovação de que o sistema carcerário produz violência e degradação nos valores culturais; e

(8ª) esclarecimento de que o custo econômico das prisões é inaceitável. 173 No entanto, o autor, admitindo algumas possibilidades de encarceramento, sustenta duas teses que reduziriam drasticamente a necessidade do sistema penal: (a) o direcionamento de políticas sociais aos sujeitos vulneráveis e (b) a descriminalização das drogas. Ao partir do pressuposto de que grande parte da população carcerária é composta por pessoas que praticaram crimes contra o patrimônio, a ação positiva do Estado no incremento de condições de emprego e diminuição da pobreza reduziria drasticamente a necessidade de se optar pelo modelo repressivo. No que diz respeito ao processo de descriminalização das drogas, sustenta que esta

política

atingiria

o

epicentro

do

crime

organizado,

“neutralizando o mercado ilegal e reduzindo drasticamente a quantidade de crimes”. 174 Nils Christie, ao pressupor que o sistema sancionatório é encarregado exclusivamente de produzir danos, elabora manobras de redução ou de imposição mínima de sofrimento, buscando opções aos castigos (e não castigos opcionais). Segundo o autor, formas alternativas de manejo do conflito seriam fundamentais para romper o ciclo vicioso do processo punitivo. As estratégias voltadas a distanciar os sujeitos envolvidos no conflito das respostas punitivas das agências estatais, apesar da natureza essencialmente

abolicionista, estariam igualmente aliadas às propostas minimalistas voltadas à despenalização e à descriminalização. 175 No entanto, mesmo que se tenha o abolicionismo como meta, 176 importante pensar, a partir da dogmática garantista, formas de recomposição e contração da estrutura do direito e do processo

penal

(descriminalização). fundamental

para

além

Integrado

instrumentalizar

do ao

ações

procedimento discurso de

legislativo

político-criminal,

redução

dos

danos

produzidos pelas altas taxas de criminalização e punitividade (garantismo). Nestas duas frentes (projetos legislativos e operações jurídicas), o projeto descriminalizador faz-se presente.

8.2. Descriminalização: Conceitos No entender de Canestri, descriminalização é “o acto o actividad que ‘hace perder a un acto o a una infración su caracter criminal’”. 177 Peter Lejins define descriminalização como “el proceso por lo cual cierta categoria de actos son removidos de la lista de aquellos que la sociedad ha clasificado como criminales; significa los procesos por los cuales algunos de los actos que la humanidad en algún momento había clasificado como crímenes, son eliminados de esa categoría”. 178 Sustenta Delmas-Marty que criminalizar e descriminalizar são, ao mesmo tempo, objeto e sujeito, movimento e definição,

consequência e causa da política criminal. 179 Não por outro motivo os autores da criminologia definem a (des)criminalização como processo, ou seja, indicam o sentido de constância e gradual alteração do panorama repressivo. Inexoravelmente, conforme se pode perceber nas mais diversas matrizes teóricas e ideológicas que atuam neste ramo, a opção pela maximização ou minimização do sistema de punitividade implicará decisivamente nos rumos da política criminal oficial, (re)direcionando suas funções e modificando substancialmente a estrutura do controle social formal ou informal (estatal ou societário, respectivamente). Hulsman, ao incorporar no conceito as diferentes formas de concretização, entende por descriminalização “o ato e a atividade pelos quais um comportamento em relação ao qual o sistema punitivo tem competência para aplicar sanções é colocado fora da competência desse sistema. Assim, a descriminalização pode ser realizada através de um ato legislativo ou de um ato interpretativo (do juiz)”. 180 A definição proposta pelo autor congloba duas espécies, a descriminalização legislativa e a descriminalização judicial. O processo de definição legal da ilicitude de determinadas condutas na contemporaneidade é absolutamente complexo, sobretudo pela tendência à ampliação da tutela penal em relação aos bens jurídicos supraindividuais. O ingresso de novas condutas

na seara penal e o redimensionamento de sua arquitetura no sentido do incremento da punitividade ocorrem com a valorização de interesses sociais e difusos inéditos até o advento da ideia de sociedade de risco. Segundo Ulrich Beck, os riscos contemporâneos residem na esfera das fórmulas químico-físicas (v.g. elementos tóxicos nos alimentos e ameaça nuclear), produzindo ameaças até então inimagináveis, visto que “ponen en peligro a la vida en esta Tierra, y en verdad en todas sus formas de manifestación”. 181 Neste quadro, o discurso penal passa a assumir a responsabilidade de fornecer respostas às novas demandas (aos novos riscos), redimensionando sua estrutura e obtendo, como resultado, a ofuscação dos limites entre o direito penal e processual penal e o direito administrativo (sancionador). 182 Em não havendo diferenciação ontológica entre as condutas, isto é, inexistindo conduta penal, civil ou administrativa em si mesma, o diferenciador da ilicitude reside na espécie de sanção (penal ou indenizatória/reparatória) aplicada. 183 Assim, em face do processo de expansão do direito penal e da diversificação das respostas punitivas, resulta cada vez mais difícil definir a natureza dos ilícitos e pautar processos de (des)criminalização, pois, em inúmeros casos, simplesmente se nota a transferência de condutas entre as esferas de responsabilização pessoal, sem critérios claros de justificação.

8.3. Descriminalização Legislativa e o Caso do Porte de Drogas para Uso Pessoal na Lei 11.343/06 A descriminalização legislativa, forma mais adequada de retirada de determinadas condutas da esfera do controle social formal, comporta três processos distintos: (1) descriminalização legislativa em sentido estrito, na qual se opera a abrogação da lei ou do tipo penal incriminador (abolitio criminis); (2) descriminalização parcial, substitutiva ou setorial, cujo processo é o de (2.1) transferência da infração penal para outro ramo do direito – v.g. direito administrativo sancionador –, mantendo-se sua ilicitude jurídica, porém não penal, e/ou de (2.2) alteração dos critérios sancionatórios, como a modificação nos critérios da tipicidade, flexibilização das penas ou de sua execução, criação de regras diferenciadas de extinção de punibilidade, entre outros (reformatio legis in mellius). A descriminalização legislativa em sentido estrito (abolitio criminis) é normalmente precedida pela descriminalização de fato. Segundo Gicovate Postaloff, 184 alguns comportamentos sociais criminalizados deixam, ao longo do tempo, de ser considerados danosos, passando a ser tolerados e/ou aceitos pela comunidade (adequação social). Assim, a lei penal “deixa de ser aplicada ou porque a própria consciência popular não repugna a conduta ou porque as próprias vítimas não se interessam pelo uso do Sistema

Penal”. 185 O legislador, ao perceber a inadequação da permanência do tipo penal no cenário jurídico em decorrência da mudança dos comportamentos e dos signos da cultura, retira sua previsão como delito. Embora seja a forma mais eficaz de minimização do sistema punitivo, o processo de abolitio criminis é de difícil ocorrência, pois, ao ingressar determinada conduta no sistema penal, sua tendência é permanecer integrada na rede criminalizadora, ainda que sejam obsoletas as hipóteses de efetiva punição. A propósito, o fenômeno da inflação penal é inexoravelmente ligado ao processo de acúmulo de normas penais ultrapassadas que não são decantadas pela via legislativa ou do controle concentrado de constitucionalidade. Na recente história legislativa brasileira, como exemplo mais significativo de descriminalização legislativa em sentido estrito é possível apontar a edição da Lei 11.106/05, que, ao modificar os delitos contra os costumes e contra o casamento, previstos na Parte Especial do Código Penal, aboliu os tipos penais de sedução (art. 217), rapto violento ou mediante fraude (art. 219), rapto consensual (art. 220), concurso de rapto com outro crime (art. 222) e adultério (art. 240), bem como suprimiu a causa especial de aumento de pena do art. 226, que previa a majoração de quarta parte da pena em caso de o agente ser casado. 186

O efeito do processo de descriminalização, em qualquer de suas formas e amplitudes, é a projeção temporal da nova situação jurídica aos sujeitos criminalizados. Em decorrência dos princípios da irretroatividade da lei penal criminalizadora e da retroatividade da lei mais benigna (art. 2º, CP), conforma-se o que se poderia denominar como princípio da extratividade da situação penal mais favorável (lex mitior), face à capacidade de projeção da lei benéfica (descriminalizadora/despenalizadora) ao passado (retroatividade) e ao futuro (ultratividade). 187 No caso da Lei 11.343/06, importante ressaltar que não ocorreu processo de descriminalização do porte para consumo pessoal de drogas. O art. 28 da Lei de Drogas mantém as condutas dos usuários criminalizadas, alterando apenas a sanção prevista, impedindo, mesmo em caso de reincidência (art. 28, § 3º 188), a pena de prisão: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. Ocorre, portanto, com o ingresso da lei nova no cenário jurídico, explícita descarcerização dos delitos relativos ao uso de drogas.

Não parecem satisfatórias as leituras que afirmam ter havido descriminalização do porte para uso pessoal em face de o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (LICP – Decreto-Lei 3.941/41) considerar crime a “infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa (...)”. Não se pode olvidar que a publicação da LICP ocorreu sob a égide da Constituição de 1937. A Constituição de 1988, porém, como novo locus de interpretação e de legitimidade das leis, redefine o conceito de delito, prescrevendo como consequência jurídica, para além da privação e da restrição da liberdade, a perda de bens, a multa, a prestação social alternativa e a suspensão ou interdição de direitos (art. 5º, XLVI). O novo cenário constitucional amplia as hipóteses sancionatórias, não sendo cabíveis interpretações retrospectivas que potencializam leis ultrapassadas, dando-lhes maior importância que à Constituição.

8.4. Descriminalização Judicial 8.4.1. O Papel do Operador do Direito na Efetivação da Constituição A tendência de sobreposição de textos legais em face dos receios do poder político-legislativo em deflagrar amplos processos de descriminalização não impede que o operador do direito,

sobretudo o magistrado, atue desde dentro do sistema positivado na perspectiva de minimizar a criminalização. A densificação do constitucionalismo no século XX, cujo efeito foi a alteração substancial na teoria das fontes do direito, sendo a Constituição concebida como espaço privilegiado da interpretação das leis, produziu importante modificação no papel do jurista. Segundo Streck, a revolução copernicana do direito constitucional deve cambiar o modelo de produção jurídica forjado pelos velhos paradigmas do positivismo, impondo a alteração da concepção do operador do direito no sentido de proceder filtragens das leis ordinárias, sob pena de “a Constituição transformar-se em território inóspito (espécie de latifúndio improdutivo), pela falta de uma précompreensão adequada acerca de seu papel no interior do novo paradigma do Estado Democrático de Direito”. 189 Ferrajoli, ao adequar a teoria do direito aos novos rumos do constitucionalismo

ocidental,

critica

o

saber

derivado

do

juspositivismo dogmático, o qual, preso historicamente à ideia de legalidade estrita, funde as noções de vigência e validade, obstruindo a efetividade das normas e dos princípios constitucionais. Para o autor, o pensamento jurídico adstrito aos postulados do paleopositivismo, atrelado à máxima ideológica de obrigação do juiz em aplicar avalorativamente a lei, produz modelos unidimensionais de ciência jurídica, cujo efeito é a conservação de visão acrítica

edificante da imagem legal. Assim, a teoria garantista do direito, não apenas do direito penal, estabeleceria importante diferença entre vigência e validade das normas, pois no Estado de Direito “as Constituições não se limitam a ditar as condições formais que permitem reconhecer a vigência de quod principi placuit, mas estabelecem também ‘o que’ não deve violar (ou deve assegurar) o príncipe, ou seja, os direitos invioláveis do cidadão cuja garantia é condição de validade substancial das normas que produz”. 190 As Constituições contemporâneas, portanto, não estabelecem apenas os critérios formais de elaboração das normas, mas auferem conteúdo

(substância)

ao

qual

o

legislador

deve

guardar

observância. No caso do direito e do processo penal, a principiologia constitucional estabelece, para além dos parâmetros formais relativos aos procedimentos e competências legislativas (v.g., art. 22, I, CR), ou seja, à sua vigência (validade formal), critérios substanciais vinculativos de sua validade (material) (v.g., art. 60, § 4º, IV, CR). É que a consolidação do modelo juspositivista dogmático no direito (penal) induz à ignorância da força normativa da Constituição e à resignação com a aplicação mecânica das leis inferiores. Como consequência, obtém-se a manutenção de racionalidade legalista que provoca a dessubstancialização do direito, isto é, ao centrar sua análise na lei ordinária (fetichismo legalista), os aplicadores do

direito mantêm eficazes normas isentas de conteúdo constitucional (inválidas materialmente). Desta forma, é comum perceber a “penalização” da Constituição pela recusa do jurista ao processo de constitucionalização das leis. A patologia que envolve o saber jurídico-penal é demonstrada com precisão por Luís Roberto Barroso: “(...) as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando, automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo”. 191 Neste sentido, ensina Lenio Streck que “há um certo fascínio pelo Direito infraconstitucional, a ponto de se ‘adaptar’ a Constituição às leis ordinárias”. 192 O trabalho de crítica ao direito, portanto, deve ser direcionado à desconstrução das interpretações retrospectivas que doutrina e jurisprudência têm cotidianamente realizado. Desta forma, é possível afirmar a necessidade de novo processo secularizador no direito penal, não mais voltado à separação entre direito e moral e/ou direito e natureza (processo ainda inconcluso), mas, fundamentalmente, no sentido de conferir

primazia aos valores e princípios, objetivando efetivar o conteúdo constitucional das normas.

8.4.2. Descriminalização Judicial e Redução dos Danos Penais 193 A

postura

contemplativa

paleopositivismo induz

afirmar

e a

asséptica plenitude

imposta e

coerência

pelo do

ordenamento jurídico, ou seja, que as lacunas e antinomias do sistema seriam apenas aparentes, pois resolvidas desde sua própria lógica. O ideal sistemático (vontade de sistema) é perceptível na elaboração dos critérios gerais de preenchimento de lacunas e resolução das antinomias, de forma a pressupor ordenamento harmônico. Não por outro motivo a Teoria Geral do Direito advoga dever da coerência e completude, revelando a necessidade narcísica de atingir certeza e segurança. 194 Ferrajoli, ao forjar elementos para construção de dogmática harmônica com as Constituições democráticas, sustenta não ser tarefa do jurista crítico ocultar as falhas do sistema. Ao contrário, sua ação deve ser projetada no sentido de desmentir os ideais de pureza (coerência e plenitude). O papel do operador crítico, portanto, “não é de sistematizar e reelaborar as normas do ordenamento dando-lhes coerência e plenitude que efetivamente não possuem, mas, ao contrário, explicitar a incoerência e a falta de

plenitude

mediante

juízos

de

invalidade

às

inferiores

e

correlativamente de inefetividade em relação às superiores”. 195 A perspectiva garantista (no direito penal), entendida como atuação crítica desde o interior do sistema jurídico positivado, é de otimização da estrutura dogmática como freio aos excessos punitivos do Estado, como limitação da coação direta ínsita às práticas da administração da justiça penal. Assim, distante do olhar contemplativo que busca o ideal ascético, na exposição das falhas do sistema (lacunas e antinomias) cria-se espaço para construção de práticas judiciais de redução dos danos causados pelos processos de criminalização. A perspectiva de redução de danos, desde o atuar garantista na esfera do direito e do processo penal, encontra respaldo na Constituição de 1988, induzindo, inclusive, a pensar que está prevista explicitamente como comando após a alteração do projeto sancionador brasileiro. Importante lembrar que a Constituição inovou na exposição de inúmeros princípios relativos à pena, diversos da configuração apresentada na reforma de 1984, modificando a estrutura da resposta ao desvio punível. Note-se, em relação às teorias da pena, que há verdadeira ausência de discurso legitimador. Diferente dos fins previstos nas Constituições espanhola 196 e italiana, 197 p. ex., não há previsão constitucional de fundamentação (por quê?) da

punição. No ordenamento constitucional brasileiro os princípios relativos à pena referem exclusivamente formas e limites. O constituinte, abdicando da resposta ao por que punir?, direciona os esforços para delimitar o como punir?. A perspectiva absenteísta sobre os discursos de justificação impõe critérios limitativos à interpretação, aplicação e execução das penas. O delineamento constitucional sobre as sanções em momento algum flerta com fins, funções ou justificativas, indicando apenas meios para minimizar o sofrimento imposto pelo Estado ao condenado. Nos incisos XLV, XLVI, XLVII, XLVIII e XLIX do art. 5º estão traçadas formas constitucionalizadas de imposição de penas balizadas

pelas

ideias

de

pessoalidade,

individualização,

humanidade e respeito à integridade física e moral. Todavia, os dispositivos mais exemplares da configuração constitucional da política penalógica de redução dos danos são encontrados nos incisos XLVII, e, e XLIX. Ao determinar vedações a algumas espécies de sanção (morte, prisão perpétua, trabalhos forçados e banimento – alíneas a, b, c e d, respectivamente), a Constituição estabelece o princípio da proibição do excesso punitivo, ao negar, em qualquer hipótese, a aplicação e execução de penas cruéis (alínea e). Outrossim, assegura ao preso o respeito à sua integridade moral.

Percebe-se,

portanto,

a

negativa

constitucional

à

universalização de qualquer tipo de crença punitiva. Após o desnudamento do sistema sancionatório pela criminologia da reação social, criticável seria, como ocorreu nas Constituições européias, projetar finalidades à sanção penal; sobretudo porque na história dos sistemas punitivos as justificativas legitimadoras da pena, por mais

nobres

e

humanas

que

possam

parecer,

sempre

potencializaram a violência das agências de punitividade, ou seja, ao fim nobre sempre houve correspondente meio espúrio. As intervenções na identidade do condenado, legitimadas pelo (falso) humanismo das teorias ressocializadoras – “a psicologia dos ‘melhoradores’ da humanidade” 198 –, fornecem todos os elementos de sustentação da tese. Neste quadro, entende-se que o resultado do entrelaçamento entre a ausência do discurso legitimador e a determinação de critérios limitativos à interpretação, aplicação e execução configura a projeção da política criminal de redução de danos. A cadeia principiológica definida pela Constituição, ao optar pela exclusiva fixação de limites à forma da pena, parece estar transvalorando suas finalidades históricas, concebendo política criminal ciente dos danos causados. Outrossim, aparenta reconhecer a tendência natural do poder punitivo em extravasar os limites da legalidade,

preocupando-se, essencialmente, em reduzir ao máximo as hipóteses de transbordamento. O novo projeto perspectivado na Constituição de 1988 redefine o papel do jurista (crítico), direcionando sua atuação no sentido de explorar ao máximo as falhas do sistema (incompletudes, ambiguidades e vagueza) para minimizar o impacto das agências de punitividade. A principal e mais virtuosa estratégia é, inegavelmente, a do controle de constitucionalidade difuso através da filtragem das leis penais e processuais penais ordinárias, operando, no caso concreto, descriminalização judicial (ou por ato interpretativo).

8.4.3. Descriminalização Judicial: Critérios de Interpretação e Aplicação Ensina Ney Fayet de Souza que a aplicação de normas penais que foram superadas no processo histórico, com a decorrente punição de condutas que não merecem mais reprovação social, passa a ser vista como injusta pela sociedade civil. Assim, imprescindível, segundo o autor, “permanente atualização do Direito Penal, com a descriminalização de comportamentos não mais considerados com desvalor capaz de ensejar a pena. Todavia, as mudanças sociais precedem às alterações legislativas, e a descriminalização de condutas não mais tidas como socialmente desvaliosas pode se processar através da redefinição que o juiz dará aos termos da lei, adequando a solução sentencial ao

sentimento coletivo da época. Nesse momento, a sentença criminal surge como o mais notável instrumento descriminalizador, e o juiz como precursor de soluções jurídicas justas, equânimes e legais que recebem a aprovação do consenso social”. 199 A teoria do garantismo penal, entendida como modelo doutrinário de instrumentalização judicial (dogmática) da perspectiva de redução de danos, fornece condições, desde o interior do sistema do direito penal positivado, de minimizacão da incidência através de práticas descriminalizadoras. Pode-se notar, portanto, a diferença entre as formas de descriminalização legal e judicial: enquanto no plano políticocriminal o discurso descriminalizador realiza a crítica dos critérios de seleção das condutas e de eleição dos bens jurídicos tutelados penalmente

(criminalização

primária),

no

plano

da

atuação

dogmática a perspectiva parte das preferências punitivas realizadas pelo legislativo na limitação de sua incidência (criminalização secundária). A primeira corresponde aos (pré)requisitos de seleção dos bens jurídicos (deflação sobre a legislação); a segunda fixa o juízo a partir dos bens jurídicos selecionados (deflação desde a legislação). No plano legislativo estabelece-se a macroanálise da política criminal; no judicial, sua concretização microscópica. Inegável

que

os

efeitos

das

práticas

judiciais

de

descriminalização são residuais, se comparados com as formas

legais de abolitio criminis. No entanto, apesar da limitação de tais técnicas, o atuar judicial garantista (a) fortalece elementos de crítica dos movimentos de criminalização e (b) produz efeitos concretos na resolução mais favorável do caso penal em análise, fato que por si só demonstra sua virtuosidade por reduzir o impacto do penal na sociedade e diminuir o volume de pessoas no cárcere. Ao partir da Constituição na análise crítica da legalidade, o operador do direito, realizando o controle difuso e movimentando-se nas lacunas e na rede de antinomias, tece possibilidades descriminalizadoras. Se o princípio da legalidade formal (legalidade ampla ou mera legalidade) vincula o sentido do delito à lei penal, prescrevendo ao juiz verificar como crime apenas o predefinido pelo legislador, a legalidade material define técnicas semânticas de qualificação da conduta punível através da linguagem. As regras de formação das normas penais, apesar de prescreverem ao legislador o uso de termos de extensão determinada na definição de delito (lex poenalis certa et stricta), de forma a limitar a discricionariedade e o arbítrio judicial, em sendo elaboradas em linguagem natural, nunca criam barreiras absolutas para o fechamento das hipóteses de interpretação. Os critérios linguísticos de controle da redação da lei penal podem, no máximo, diminuir o horizonte e a extensão da interpretação (previsibilidade mínima).

A

reivindicação

de

previsibilidade

absoluta

dos

julgamentos dos casos, representados nas máximas de certeza e segurança jurídicas, corresponde, portanto, ao ideal científico paleopositivista

desmistificado

pela

hermenêutica

jurídica

contemporânea. Lembra Warat que a função de garantia atribuída ao tipo penal reside em série de pressupostos (forma escrita, irretroatividade, proibição da analogia, incriminações vagas e imprecisas) que podem ser desqualificados, pois insustentáveis pela análise linguística – “distintamente do que acontece na lógica simbólica, ou nas matemáticas, que trabalham com uma linguagem formalizada, todas as normas jurídicas, inclusive as penais, estão expressas em um tipo de linguagem que se chama natural. Essa linguagem possui como características inafastáveis a vagueza, a ambiguidade, a anemia de seus termos etc.”. 200 Nota-se, portanto, que mesmo expressões legais traduzidas pela doutrina e pela jurisprudência como claras, os denominados tipos

penais

fechados,

não

são

dotadas

de

univocidade

significativa. 201 Inegável, portanto, que a noção de legalidade apenas generaliza a impressão de certeza em decorrência do ideal asceta de segurança transmitido pela matriz científica do direito penal da Modernidade. Agregando-se à ambivalência natural dos tipos penais (fechados) a proliferação de tipos penais abertos e das leis penais em branco, dos crimes culposos e das incriminações de

estados preliminares à violação do bem jurídico (crimes de perigo), grande parte decorrência da incorporação da categoria sociológica risco (Beck) pelo direito penal contemporâneo, constata-se a característica retórica e fictícia do princípio da legalidade. A configuração aberta da lei penal abre espaços, portanto, no caso concreto, para inúmeras violações aos direitos individuais, sobretudo porque o caráter retórico da legalidade (garantia de direito material) é potencializado pela função igualmente retórica dos métodos de argumentação jurídica e de valoração da prova, notadamente nas técnicas de elaboração da sentença. 202 Possível,

portanto,

decorrente

da

natural

maleabilidade

linguística da norma penal, o magistrado, “redefinindo o sentido dos termos da legislação, punir um indivíduo por fato não previsto com anterioridade; pode também basear sua decisão em uma fonte material, distinta da lei escrita, utilizando-se este mesmo processo de redefinição”. 203 Além das inúmeras hipóteses de adjudicação de sentido, lembra Ney Fayet de Souza as possibilidades de uso judicial de estereótipos persuasivos e teorias com eixos flutuantes para alterar o direcionamento da aplicação da norma – “e toda a lei, sem exceção da lei penal substantiva ou adjetiva, face ao vazio significativo de termos e expressões, afora outros recursos retóricos, permite ao julgador mudar o rumo dominante das decisões, sem parecer fazê-lo”. 204 Conclui-se que “o tipo não é autossuficiente do

ponto de vista significativo, e que não cumpre a função de garantia”. 205 No entanto, apesar de não restringirem absolutamente as formas de compreensão e aplicação das leis penais, os tipos estabelecem horizontes de possibilidade e condições para aferição do grau de validade (licitude) interpretativa, pois, mesmo sendo as normas produto da interpretação dos textos, existem determinados limites

que,

se

ultrapassados,

tornam

inadmissíveis

sua

receptividade pelos destinatários. Da noção paleopositivista da norma penal como barreira intransponível, os tipos penais, a partir do reconhecimento de sua volatilidade e porosidade, passam a atuar como parâmetros mínimos de análise – “as normas acabam sendo meros parâmetros a solidificar o poder que detém o juiz na aplicação do direito positivo e no acertamento dos eventuais casos que se lhe põem em discussão” 206 –, tudo porque, “não há direito sem uma dogmática onde as palavras tenham um sentido aceito pela maioria, ainda que elas escorreguem e, de tanto em tanto, mereçam – e tenham – uma alteração de curso”. 207 Se verificada, porém, a falácia da ideia de tipo-garantia em face das inúmeras possibilidades linguísticas de desvirtuamento da legalidade como limite ao poder de punir, por outro lado a fluidez e a elasticidade da estrutura da norma legal permitem o direcionamento

do jurista rumo à ampliação das esferas de liberdade, via descriminalização judicial. Assim, ao invés do uso retórico da legalidade para aumentar as hipóteses de criminalização e de incidência sancionatória, a dogmática crítica conta com instrumental suficiente para restringir as práticas punitivas no caso concreto (a) limitando o extravasamento do poder punitivo através da denúncia da ruptura ou negação da legalidade ou (b) operando processos de descriminalização no alargamento dos espaços de liberdade individual. A propósito, se para potencializar punibilidade o jurista necessita realizar malabarismos retóricos em face da exclusão das fontes materiais do direito (v.g. analogia, costumes, jurisprudência e direito

penal

comparado)

como

critérios

de

interpretação

criminalizadora, no que tange às estratégias descriminalizadoras as possibilidades são ilimitadas, pois estes referenciais interpretativos adquirem legitimidade formal, ou seja, se a exclusão das fontes materiais do direito penal diz tão somente ao processo de criminalização ou de interpretação penalizadora, reduzindo o campo interpretativo e excluindo a analogia e o direito consuetudinário, tal fenômeno não ocorre em relação à exclusão da pena ou do delito. Como lembra Amilton Bueno de Carvalho, a interpretação da lei penal desde o ponto de vista do garantismo pressupõe dúplice diretiva: (a) na direção punitiva/perseguidora a interpretação deve

ter força centrípeta, isto é, a imantação é para o núcleo do texto, restritivamente (o menor sofrimento possível ao acusado) – “neste momento, a lei – garantia espetacular ao cidadão, tanto que o penal segue o princípio da legalidade – protege o cidadão-réu. Assim, tudo vai em direção ao ‘núcleo duro’ do tipo (...). Eis o momento precioso da lei: em momento algum ela pode ser ultrapassada em prejuízo do débil. Aqui, aplicar a lei, como diria David Sánchez Rúbio, é ‘una actuación revolucionária’”; e (b) na direção libertária, para favorecer o débil no direito penal (réu), a força hermenêutica deve ter potencialidade centrífuga, dirigida para fora, com olhar extensivo aos direitos e às garantias individuais – “aqui os princípios gerais do direito

são

o

instrumento

hábil

para

combater

injustiças,

perseguições inócuas, excesso legislativo”. 208 Existem, portanto, desde a perspectiva garantidora do direito penal e do processo penal, condições de flexibilização da legalidade via

interpretação

material,

em

sentido

descriminalizador/despenalizador, conformando o que se poderia denominar dogmática penal garantista. Tais possibilidades, porém, limitam-se à ampliação do direito à liberdade. Como mencionado em outro momento, não se pode esquecer a utilidade prática, por exemplo, da fórmula de analogia in bonam partem; da atipicidade material dos delitos de bagatela e das condutas socialmente adequadas (princípio da insignificância e da adequação social); o

reconhecimento de causas supralegais de exclusão da ilicitude (consentimento do ofendido e direito de resistência); a possibilidade de alargamento das descriminantes; a reavaliação da matéria do erro de proibição no que tange ao potencial conhecimento da ilicitude em decorrência da inflação normativa; a assunção de causas supralegais de exclusão e/ou redução da culpabilidade derivadas dos princípios de coculpabilidade e de vulnerabilidade; as redefinições de categorias como exigibilidade de comportamento diverso a partir do reconhecimento do pluralismo cultural; a reinterpretação da obrigatoriedade de imposição da agravante genérica da reincidência etc. 209 A hermenêutica garantista viabiliza, portanto, a flexibilização ou a

defesa

intransigente

da

legalidade

constitucionalmente

conformada, de acordo com a necessidade de tutela do mais débil. Não

obstante

reconhecer

critérios

materiais

que

justificam

abrandamentos penalógicos ou descriminalizações judiciais de condutas, tais critérios interpretativos devem ser densificados pela racionalidade formal quando se postula a efetivação da legalidade sonegada nos casos em que a abertura interpretativa potencializa criminalização. O afazer hermenêutico de efetivação dos direitos e garantias se insere no controle de constitucionalidade (difuso) das leis penais e processuais penais que se encontram em diafonia com a Constituição. Nota-se, pois, que a descriminalização por ato

interpretativo, inserida nas formas de ação de efetividade dos direitos fundamentais, aproxima a prática dos operadores do direito aos programas de política criminal alternativa. A descriminalização por ato interpretativo comporta duas formas

diferenciadas

decorrência

dos

de

avanços

manifestação da

teoria

judicial. do

É

delito,

que desde

em a

substancialização de suas principais categorias (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), houve a incorporação pela dogmática de critérios materiais de avaliação e validação das condições do delito, forjando inúmeras causas supralegais de exclusão. Assim é possível ao juiz, na análise do caso concreto, deixar de aplicar lei penal válida (constitucionalmente conformada), em razão de a conduta estar imunizada por excludente material (supralegal), como nos casos de aplicação do princípio da insignificância, consentimento do ofendido, inexigibilidade de conduta diversa, colisão de deveres, direito de resistência, entre outras. Não obstante, em face das conquistas do constitucionalismo no século passado, a partir da ideia de filtragem constitucional é possível que o julgador deixe de aplicar determinada lei penal em decorrência da contradição com o texto da Constituição. Neste caso, o juiz, utilizando-se das possibilidades de controle difuso, pode operar descriminalizações sob o argumento da não conformação da lei com os valores, princípios e normas constitucionais, desde que

observados os procedimentos previstos em lei e na Constituição – v.g. os limites estabelecidos pelo art. 97 da Constituição (reserva de plenário). Em ambos os casos, porém, o efeito da decisão judicial é inter partes, vinculando somente os envolvidos no caso penal. A diferença da extensão dos efeitos gerados pelos atos de descriminalização legal em comparação aos judiciais é, pois, substancial, visto que a alteração na norma legal – ou os efeitos judiciais de declaração da inconstitucionalidade em face de decisão judicial no controle concentrado – se estende a toda comunidade jurídico-política (erga omnes).

8.5. Descriminalização de Fato e Cifras Ocultas da Criminalidade Não obstante as formas próprias de contração do poder punitivo (descriminalizações legal e judicial e diversificação), Nilo Batista 210 menciona dois procedimentos impróprios de descriminalização. O primeiro seria o exercido pelo cidadão que, conhecendo o fato delituoso ou dele sendo vítima, voluntariamente deixa de comunicar à autoridade policial, processo denominado descriminalização de fato. O segundo seria o exercido pelas agências policiais, cuja (in)ação condiciona a incidência do direito penal e o princípio da

obrigatoriedade, vinculativo do impulso processual a ser realizado pelo titular da ação penal (Ministério Público). Apesar de as duas hipóteses de descriminalização serem classificadas como impróprias devido à sua não incorporação (formal)

pelo

discurso

penal

e

criminológico,

representam

quantitativamente o cotidiano das agências de punitividade, revelando o que a crítica criminológica denominou cifra oculta da criminalidade, ou seja, aquelas condutas delitivas que não ingressam nas estatísticas oficiais e que expressam a diferença entre a criminalidade real (totalidade dos fatos ilícitos previstos em lei) e a criminalidade oficial (estatísticas criminais). Sutherland, ao apresentar aos criminólogos seus estudos sobre os crimes de colarinho branco, mais do que demonstrar a importante conclusão sobre o equívoco da patologização do delito realizado pela criminologia positivista etiológica, 211 abre espaço para identificação da desigual incidência das agências penais sobre os grupos sociais e econômicos, desvelando o idealismo das estatísticas. A partir da noção de cifra oculta da criminalidade, expôs-se não apenas a primeira, mas a maior ferida narcísica das ciências penais, qual seja, a absoluta ineficiência das agências na repressão aos delitos, visto operar apenas com os resíduos que ultrapassaram os filtros impróprios de descriminalização. 212

O volume considerável de condutas criminalizáveis, mas que não ingressam nas taxas de delinquência, permite concluir, segundo Hulsman, que “todos os princípios ou valores sobre os quais tal sistema se apoia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à justiça, etc.) são radicalmente deturpados, na medida em que só se aplicam àquele número ínfimo de situações que são os casos registrados”. 213 Nas conclusões de Radznowicz, a cifra obscura “(a) representa a substância do crime, enquanto as estatísticas oficiais são tão somente sua sombra; (b) torna extremamente difícil descobrir os verdadeiros caminhos e composição da criminalidade; (c) restringe e distorce nosso conhecimento a respeito dos criminosos; (d) as atitudes da sociedade com relação ao crime e à punição são inevitavelmente irrealistas; (e) impõe-se como o maior fator no enfraquecimento de qualquer efeito intimidativo que a punição

ou

o

tratamento

dos

criminosos

pudesse

ter;

(f)

provavelmente, o sistema não tem o menor interesse em tentar diminuir a cifra negra, pois a polícia, os promotores, o Judiciário e os estabelecimentos prisionais sucumbiriam se tivessem que lidar com todos os que, realmente, praticam infrações penais”. 214 Percebe-se, portanto, que o problema não é apenas estatístico, mas estrutural. Além de inexistir instrumento capaz de registrar a totalidade dos delitos, sobretudo em tempos de hipercriminalização, dado que por si só demonstra a fragilidade de discursos

defensivistas como os de Tolerância Zero, a seletividade integra a lógica e a engrenagem do sistema de persecução, pois sua atuação é preponderantemente nas sobras. A descriminalização informal, neste quadro, é sua própria funcionalidade. Assim,

se

se

optasse

por

interpretação

cênica

do

inquisitorialismo processual (regra do sistema punitivo ao longo da história) e da crueldade gótica das instituições prisionais, a conclusão viável seria a de que os criminalizados, as pessoas às quais se imprime cotidianamente violência nas prisões, servem apenas para manter viva a memória punitiva derivada da culpa moral. A instrumentalização do sistema penal residiria na fixação e manutenção

da

memória

pelos

mecanismos

repressivos

(mnemotécnica da dor – técnica de aprendizado e memorização da culpa pela fixação da imagem do sofrimento no corpo social). Absorvendo, portanto, as tipologias apresentadas, possível conceituar genericamente descriminalização como os processos formais

e

informais

pelos

quais

os

autores

de

condutas

criminalizáveis não sofrem efeitos reativos, institucionais ou sociais (etiquetamento ou estigmatização), derivados da ausência de postulados formais (legalidade, iniciativa da ação e sentença condenatória) ou de interesses (da vítima, do corpo social ou das instituições repressivas) para sua concreção.

9. DESCRIMINALIZAÇÃO E POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS 9.1. Programa Descriminalizador: Critérios desde o Abolicionismo, o Direito Penal Mínimo e o Garantismo Penal Estabelecidos os conceitos, as espécies e os efeitos dos processos de descriminalização, e tendo como necessária a deflação penal via procedimento legislativo, notadamente pelos resultados significativos que produz, torna-se imperativo destacar alguns critérios que devem orientar a política criminal minimalista. Hulsman propõe duas ordens de critérios (absolutos e relativos) aos quais o legislador estaria vinculado negativamente, ou seja, estabelece principiologia definidora dos limites da criminalização. Como critérios absolutos propugna que a criminalização/penalização (a) não deve jamais fundar-se exclusivamente no desejo de tornar dominante determinada concepção moral a respeito de determinado comportamento; (b) não deve jamais ter como objetivo a criação de sistema para ajuda ou tratamento de delinquentes (em potencial); (c) não deve exceder e/ou sobrecarregar a capacidade real do sistema administrativo de controle; e (d) não pode servir como resposta contingente aos problemas sociais. Aliadas aos limites absolutos, o autor propõe contraindicações (critérios relativos) que

conteriam a criminalização (a) se a conduta fosse típica de grupos socialmente débeis; (b) se o evento proibido somente pudesse ser acessado

mediante

representação

da

vítima;

(c)

se

o

comportamento ocorresse com frequência e fosse próprio de número muito grande de pessoas; (d) se o desvio fosse verificado em situações de miséria psíquica ou moral; (e) se o ato apresentasse

dificuldade

de

precisa

definição;

(f)

se

o

comportamento fosse típico da esfera privada; e (g) se considerado, por grande parte da sociedade, admissível. 215 Densificando o projeto do direito penal mínimo, Alessandro Baratta, 216 após construir cadeia de regras, valores e princípios penais articulados com os direitos humanos, propõe tipologia intra e extrassistemática. Os princípios intrassistemáticos estabeleceriam os requisitos mínimos de correspondência da lei penal com os direitos e as garantias fundamentais, seguindo a melhor tradição do direito penal liberal. Todavia, segundo o autor, estes princípios não possuem

capacidade

descriminalizadora,

diferentemente

dos

princípios extrassistemáticos que operam desde fora do sistema. Os princípios extrassistemáticos de descriminalização indicariam que as alternativas à criminalização não devem ter como prioridade a substituição da pena por outras formas de controle social formal ou informal (princípio da não intervenção útil). A estratégia da intervenção mínima deveria recolocar a vítima no centro do debate

através de políticas de acordos e de reconciliações (princípio da privatização do conflito), restituindo ao conflito sua natureza política (princípio de politização dos conflitos). Por outro lado, em havendo transferência da resolutividade da situação problemática para órgãos

estatais

não

penais

(descriminalização

substitutiva),

fundamental ao sistema assegurar ao imputado aquelas garantias intrassistemáticas (princípio de conservação das garantias formais). Desde o garantismo penal, Ferrajoli elenca condições de legitimidade da criminalização. No âmbito externo, cria duas diretrizes

entrelaçadas.

A

primeira

adviria

do

princípio

da

necessidade, regra geral de economia político-criminal baseada no utilitarismo

que

admitiria

a

intervenção

punitiva

em

casos

absolutamente necessários (regra da intervenção mínima). Neste caso, legítima a intervenção somente quando o custo da criminalização não for superior ao da lesão provocada pela conduta reprimida, pois “o direito penal justifica-se unicamente pela capacidade de prevenir danos às pessoas sem causar efeitos mais danosos do que aqueles que têm condições de impedir”. 217 A segunda diretriz estaria visualizada no princípio da lesividade e, baseada na categoria bem jurídico, determinaria critérios a partir da idoneidade do sistema em prevenir ataques concretos (dano e perigo concreto) contra bens jurídicos individuais, ou seja, de pessoas de carne e osso.

A força normativa dos princípios de necessidade e de lesividade é auferida pela Constituição e, no caso brasileiro, encontra guarida no art. 5º, inciso XXXV – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Lembra Marco Aurélio Moreira de Oliveira que, “juntamente com o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial, a Carta Maior dispõe que a exigência da submissão de fatos ao exame judicial se faça relativamente a uma lesão efetiva a um bem, ou a uma ameaça a direito”. Neste sentido, “o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, indica como juridicamente relevante a causação de lesões efetivas ou ameaças a direitos, só podendo ser entendidas, como verdadeiras ameaças, as que sejam concretas, pois ameaças abstratas simplesmente inexistem. Em consequência, não se deve admitir crimes de perigo abstrato, por não conterem as condições concretas e diretas para afetarem bens fundamentais juridicamente protegidos. Além disso, a lógica jurídica indica como prioritária a tarefa de definir o que seja crime, isto é, conduta que causa lesão ao sujeito passivo ou, pelo menos, a que cria ameaça a direito, de modo concreto e direto. Só após, se cominarão penas. Com isso, se estará afastando um abusivo expansionismo penal, marcado por punições simbólicas, desnecessárias, ineficazes e injustas”. 218 A partir do locus constitucional, em termos quantitativos, Ferrajoli entende necessária a descriminalização de bagatelas como

contravenções ou condutas punidas exclusivamente com pena pecuniária ou restritiva de direito que não justificam o processo e a pena. Qualitativamente, seriam excluídas condutas que não produzam lesões concretas a terceiros, casos de autolesão e crime impossível. 219 A lesividade imporia, ainda, a transformação dos crimes de perigo abstrato em delitos de dano ou perigo concreto ou, simplesmente, indicaria descriminalização, visto ser inadmissível a punição da mera desobediência. Finalmente, a materialidade da conduta, a partir do princípio da secularização, inviabilizaria sanções de atitudes internas, estados de ânimo pervertido, condições pessoais ou comportamentos imorais, perigosos ou hostis, em decorrência de não ser função do direito penal impor ou reafirmar qualquer concepção moral. 220 Não

obstante

a

elaborada

desconstrução

teórica

das

tendências de maximização do sistema punitivo pelas inúmeras vertentes da Criminologia Crítica, inúmeros fatores favorecem a criminalização, obstaculizando a efetivação de políticas criminais alternativas.

Dentre

os

inúmeros

óbices

às

políticas

de

descriminalização encontra-se o fato de que o fenômeno criminal e a resposta criminalizadora produzem resultados altamente eficazes de solidificação dos laços existentes entre os poderes públicos, os meios de comunicação de massa e o público consumidor da demanda punitiva.

Se os mitos legitimantes do sistema penal são facilmente digeridos pelo sistema social, criando o que se denomina na literatura criminológica como every day theory, é porque existe forte relação de interatividade entre estes atores. Na formação destes vasos comunicantes, o objeto de consumo ofertado pelo legislador são incriminações severas, alimentando em seu público, através de forte apelo aos meios de comunicação, a sensação de que se está efetivamente buscando soluções ao problema da violência e da criminalidade. Assim, “a criminalização pode ser utilizada pelo legislador como solução aparente. Frequentemente o legislador está sob pressão da opinião pública ou de certos grupos para agir contra um fenômeno indesejável, sem que disponha dos meios eficazes para fazê-lo, ou sem que esteja disposto a pagar o preço desta ação. Nestas condições, ele pode criminalizar para acalmar a opinião. Esta operação pode muitas vezes dar resultado, porque a imagem que prevalece na sociedade sobre o funcionamento do Sistema Penal é pouco realista”. 221

9.2. Drogas: Custos da Criminalização e Descriminalização O

olhar

sobre

o

fenômeno

das

drogas

no

mundo

contemporâneo não pode ser tematizado pela lógica calculadora da racionalidade moderna, ou seja, é impossível estabelecer, a partir do olhar homogêneo dos paradigmas científicos, as causas, os efeitos

e as finalidades das pessoas que, de forma esporádica ou regular, (ab)usam de substâncias estupefacientes. A lógica da causalidade mecânica, cujo fundamento é realizar a etiologia do fenômeno para encontrar a solução para suas consequências,

fracassou.

A

riqueza

e

a

pluralidade

das

manifestações do mundo real demonstraram que a percepção e o impacto de determinadas experiências são sentidos de forma diversa, estabelecendo reações distintas em cada indivíduo. Não por outro motivo os grandes projetos que buscaram uniformizar respostas aos fenômenos das drogas e da violência fracassaram no choque com a diversidade e a intensidade do real. Ao investigar o tema da violência, Ruth Gauer afirma com precisão ser “elemento estrutural, intrínseco ao fato social e não o resto anacrônico de uma ordem bárbara em vias de extinção. Esse fenômeno aparece em todas as sociedades; faz parte, portanto, de qualquer civilização ou grupo humano”. 222 Em sendo a violência inerente à cultura, não corresponde a resquícios ou restos do estado de natureza tendente a ser domesticado pela civilização. No que tange às drogas, pode-se visualizar o problema desde o mesmo ponto de vista, pois “a questão do uso de drogas pode ser considerada universal uma vez que são pouquíssimas as culturas que não se utilizam de alucinógenos”. 223

Importante esta demarcação porque abre caminhos que visualizam as inúmeras interfaces que as drogas representam na sociedade contemporânea, sem recair no sonho ilustrado de encontrar fórmulas e instrumentos normalizadores e moralizadores para erradicar os efeitos perversos decorrentes do seu (ab)uso a partir do ideal de abstinência. Assim como o exercício das violências, o (ab)uso das drogas é caracterizado

pela

complexidade,

devendo

ser

interpretado

extramoralmente, isto é, a partir da transvaloração dos valores morais. Os fenômenos da violência e das drogas, em sua experiência lícita ou ilícita, perpassam a complexa rede das tramas sociais e, não esporadicamente, fundam, constituem, dão sentido para existência(s). Apenas a percepção transvalorativa, não moralizante ou moralizadora da questão, permite que se possa pensar em estratégias de redução dos danos produzidos pelo abuso das drogas (i)lícitas, tais como a dependência química, a contração de doenças infectocontagiosas, a violência dos tratamentos coercitivos e, em última instância, a criminalidade derivada e o sequestro realizado pelas instituições totais (cárcere e manicômios). É que o direito penal, por ser manifestação dogmática das ciências modernas, procura reduzir a complexidade do fenômeno através de resposta monofocal e homogênea, qual seja, a

criminalização – lógica da causalidade necessária entre delito e pena/medida (educativa, socioeducativa ou de segurança). Desde o processo de autoencantamento com sua técnica (narcisismo primário), o direito penal crê ilusoriamente que o processo criminalizador

representa

eficaz

instrumento

para

o

controle/erradicação do uso das drogas ilícitas. Acredita, pois, que a criminalização impediria a propagação da dependência, possibilitaria a reabilitação do adicto e a ressocialização dos envolvidos no comércio ilegal. Sua autoimagem reforça o mito no qual a criminalização das drogas atuaria como (a) contramotivação (coação psicológica), (b) recuperando os dependentes (prevenção especial) e (c) impedindo-os que, em razão do vício, cometam delitos de outra natureza (proliferação da violência). A falsa imagem que o direito penal reproduz com a resposta criminalizante na questão das drogas é frequentemente derivada de visão equivocada do fenômeno – v.g. da existência de vínculo entre consumo e dependência; da irreversibilidade na dependência; da necessária formação, pelos usuários, de subculturas criminais (carreiras criminais); da convicção de que o comportamento dos usuários leva ao isolamento da vida produtiva, entre outras. Outrossim, a reprodução desta imagem pelas agências que integram o sistema de punitividade, inclusive as agências de

informação (mídia), estabelece perigosos consensos do público consumidor do direito penal. No entanto, esta imagem tem sido amplamente desconstruída pelos estudos das mais diferentes correntes da criminologia, demonstrando que não corresponde efetivamente à realidade. Pelo contrário, as tendências de reforços e arraigamentos morais direcionam as respostas ao extremismo higienista e à repressão criminalizadora total, 224 fazendo com que “os consumidores de drogas estejam fadados a uma mortificação perpétua; que não mais lhes

oferece

qualquer

caminho

para

a

solução

de

seus

impasses”. 225 Talvez o principal equívoco da visão monofocal (criminalizante) sobre o uso de drogas seja a falsa conexão entre usuário e toxicômano, sobretudo porque a grande maioria dos consumidores de drogas não é dependente e não faz parte de subculturas criminais. Pelo contrário, na maioria dos casos o usuário consome eventualmente drogas, lícitas e/ou ilícitas, e integra normalmente o sistema produtivo, sendo excepcional a dependência. Segundo Mariana Weigert, a distinção básica entre ambos está na dimensão compulsiva que marca a ingestão da droga: “Os usuários se contrapõem aos toxicômanos enquanto grupo clínico, pois utilizam a droga de forma ocasional para obter prazer, para deleitar-se ou em momentos de angústia”. 226 Como sustenta Birman, usuários e

toxicômanos apresentam-se como unidades clínicas diferenciadas – “os usuários de droga podem se valer da droga para seu deleite e em momentos de angústia, mas a droga nunca se transforma na razão maior de suas existências. Os toxicômanos, porém, são compelidos à ingestão por forças físicas e psíquicas poderosas. As drogas passam a representar, para esse grupo, o valor soberano de sua existência”. 227 Baratta apresenta idêntica percepção do fenômeno: “(...) la gran mayoria de los consumidores de drogas ilicitas no son dependentes, no hacen parte de una subcultura desviada, no son asociales o delincuentes, no son enfermos (hay incomparablemente más enfermos y muertos por drogas permitidas, como tabaco y alcohol, que por drogas prohibidas); y, finalmente, la drogodependencia es, desde un punto de vista clínico y social, curable”. 228 A consequência imediata do processo de criminalização, portanto, é a diminuição da distância entre a realidade do fenômeno e sua imagem produzida pelas agências de punitividade. 229 Por outro lado, segundo Baratta, a questão das drogas deflagra efeitos de ordem primária e secundária: (a) os efeitos primários relativos à própria natureza das drogas (danos no organismo e na psique); (b) os efeitos secundários (ou custos sociais da criminalização),

decorrentes

essencialmente

do

processo

criminalizador e da reação social informal. Os efeitos primários são

os próprios do (ab)uso de qualquer tipo de substância entorpecente, lícita ou ilícita, e muitos deles podem não ser necessariamente prejudiciais, pois “no todos los efectos de todas las sustancias sicotrópicas son negativos, puesto que la calidad del efecto depende, como es sabido, no solo de la cantidad farmacológica sino también de una serie de otros factores como: entidad del consumo, situación del consumidor, medio social en que el consumo se produce, etc.”. 230 À presente investigação interessa avaliar o custo social da criminalização (efeitos secundários), fundamentalmente porque, na maioria dos casos, é superior aos próprios efeitos primários, ou seja, não invariavelmente a resposta punitiva produz mais danos à sociedade e ao usuário ou dependente que a própria droga. É que “a criminalização destes indivíduos impede a aproximação deles de forma produtiva, já que dessa maneira eles são inseridos em um círculo diabólico regulado por acusações e culpabilizações. Dessa maneira, não existe mais qualquer possibilidade de solução para seus impasses existenciais”. 231 Neste quadro, o critério de legitimidade das políticas de proibição

estabelecido

por

Jeffrey

Miron,

economista

da

Universidade de Harvard e ativista do The Independent Institute, da Califórnia, parece ser absolutamente preciso: “(...) em qualquer caso, políticas para reduzir o consumo de drogas fazem sentido

apenas se os seus benefícios excedem os seus custos. Em face de a proibição ter substanciais custos de aplicação e produzir efeitos externos, demonstra ser alternativa inadequada para a redução do consumo de drogas”. 232 Na tentativa de apresentar parcial anamnese do problema, os custos da criminalização serão fragmentados em diversos âmbitos: (1) individuais: consumidores e dependentes; (2) sistema penal e carcerário; (3) sistemas educacional e assistencial; e (4) sistema econômico: mercado.

9.2.1. Custos Individuais: Consumidores e Dependentes Entre

os

consumidores

a

principal

consequência

da

criminalização é o que se poderia denominar de junkização, isto é, a estigmatização do usuário com a sua identificação em subculturas criminais, processo que, a partir de sua amplificação pelos meios de comunicação de massa, produz palpável reação dos aparatos formais e informais de controle social. Constata Cezar Manzanos que “la guerra contra el problema de las drogas, se identifica como guerra contra ciertos consumidores de drogas ilegales que genera graves efectos secundarios: su marginalización y criminalización, y la de su entorno social. Los adictos junkizados son los últimos peones, los más reprimidos y explotados en la cadena del comercio de la droga hacia el consumo (…)”. 233

A visão patologizada dos consumidores deflagrada pelo sistema penal produz seu isolamento e sua rotulação, 234 impedindo qualquer tipo de escuta diversa da policialesca. O sujeito envolvido com as drogas, por força da política proibicionista, ingressa no vicioso

círculo

da

clandestinação,

fato

que,

em

caso

de

dependência, invabiliza utilização dos serviços de assistência médica e social. Ferrajoli, ao tratar do tema da criminalização das drogas, compara seus efeitos àqueles derivados da criminalização do aborto, visto que em ambos os casos sua ocultação na clandestinidade impede o acesso aos mecanismos de assistência sanitária



“o

efeito

principal

da

lei

[penal]

é

levar

os

toxicodependentes a esconder sua condição, refutar o contato com aqueles que poderiam ajudá-lo, mas também denunciá-lo, e com os serviços de assistência pública, e, sobretudo, a integrar-se cada vez mais no mundo da droga por força de sua maior dependência do mercado ilegal”. 235 Assim, se em relação ao aborto a criminalização produz imenso custo de vidas decorrente da inviabilização do acesso das mulheres ao sistema de saúde, 236 em relação às drogas os danos são sensivelmente sentidos pelos dependentes em razão da inexistência de políticas adequadas de redução dos danos causados pelo uso abusivo.

No caso brasileiro, a Lei 11.343/06, apesar de insinuar intervenções redutoras, prevê medidas descarcerizantes que acabam sendo consumidas pela lógica da punitividade, fato que propicia identificar na base argumentativa da nova lei a inversão ideológica do discurso de contração de riscos, ou seja, é enunciada formalmente

política

de

redução

de

danos,

mas

sua

instrumentalização reforça a lógica repressiva. Por outro lado, a manutenção das condutas de uso de entorpecentes na ilegalidade não permite fiscalização mínima sobre as condições de consumo e sobre a própria substância consumida. Em relação ao produto, Miron sustenta que a ausência de controle incentiva que o mercado ilegal produza drogas com custo econômico menor e com maior concentração do princípio ativo, como, p. ex., nos casos do crack em relação à cocaína, da heroína frente ao ópio e do haxixe sobre a maconha. Outrossim, o autor demonstra que a variação da qualidade e do nível de concentração do princípio ativo é responsável, na maioria dos casos, pelas dosagens excessivas que geram severas intoxicações e mortes. 237 Ademais, a ausência deste tipo de fiscalização e do apoio sanitário aos usuários e dependentes cria ambientes de consumo com péssimas condições de higiene, favorecendo a propagação de doenças infectocontagiosas como o HIV e a hepatite. Pesquisas empíricas realizadas na Suíça, após a implementação de políticas

de redução de danos, demonstram a eficácia dos projetos não apenas na diminuição do número de mortes entre usuários e dependentes mas, sobretudo, na redução dos delitos associados à droga. 238 Helena Regina Lobo da Costa, ao avaliar a forma como a tutela penal do bem jurídico saúde pública sacrifica a saúde concreta dos sujeitos envolvidos com drogas, encontra na contaminação pelo HIV marcante exemplo. Lembra a autora que as políticas públicas de redução

dos

danos

causados

pelas

drogas

injetáveis

são

incompatíveis e absolutamente inviabilizadas pela incriminação do uso de entorpecentes, fato que acaba por maximizar efeitos negativos – “ocorre que a criminalização do uso de entorpecentes destrói este postulado [redução de danos], pois a proibição mais enérgica do ordenamento não é compatível com a aceitação da conduta de usar entorpecente injetável. Além disso, a criação de centros para receber o usuário, transmitir informação, distribuir seringas descartáveis ou permitir o uso em salas higienizadas, evitando-se o compartilhamento de seringas, esbarra em todos os empecilhos relacionados à estigmatização já descritos”. 239 O cenário não é alterado com a Lei 11.343/06, pois a persistência da lógica criminalizadora obsta formalmente que o Estado crie, financie e incentive práticas redutoras.

9.2.2. Efeitos nos Sistemas Educacional e Médico

No que diz respeito aos demais sistemas públicos não penais de intervenção no campo das drogas (sistemas sanitário e educacional), o proibicionismo contradiz absolutamente os fins preventivos declarados, pois o usuário ou o dependente que necessitam de auxílio e voluntariamente desejam acessar os órgãos de tutela pública somente alcançarão êxito no momento em que não forem selecionados pelas agências estatais. A resposta penal, neste sentido, expropria a situação problemática do campo da saúde e da educação pública, inviabilizando o acesso livre às instâncias provedoras do Estado. Assim, o toxicômano somente poderia optar pelo tratamento público (princípio da espontaneidade) se ao longo do penoso processo de dependência o sistema penal não o capturasse através da criminalização. Em caso de incidência das agências punitivas e da constatação da dependência, o tratamento durante o processo penal de cognição e de execução passa a ser coativo, fato que rompe com os princípios básicos de perspectiva prevencionista baseada na redução de danos. Neste aspecto, a nova Lei de Drogas diminui parcialmente a carga coercitiva prevista na Lei 6.368/76 (arts. 10 e 11), a qual determinava ao magistrado aplicação de tratamento (art. 19) quando constatasse ser o réu, em virtude da dependência, incapaz de entender o caráter ilícito do fato. Em caso de frustração do

tratamento

médico-ambulatorial,

a

Lei

6.368/76

previa

sua

substituição pela internação. Assim, o caráter notadamente obrigatório dos regimes hospitalar e extra-hospitalar pressupunha a intervenção penal coativa como instrumento de reabilitação. A Lei 11.343/06 não prevê expressamente esta modalidade de conversão, estabelecendo de forma genérica o encaminhamento do dependente para tratamento médico (arts. 26, 45, parágrafo único, e 47). A previsão de penas e de medidas substitutivas da prisão aos usuários,

porém,

sobretudo

da

medida

educativa

de

comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III), propicia chaves de interpretação que indiciam espécie de autoritarismo de baixa intensidade no tratamento dos consumidores de drogas, mormente se não for efetivamente observado o princípio de autonomia individual. A constância da opção criminalizadora em manter usuários e dependentes dentro do sistema penal tende a incapacitar a interação do sujeito envolvido com as drogas no seu próprio tratamento, coisificando-o através de observação incentivadora da passividade. 240 Como lembra Helena Regina Lobo da Costa, “a tentativa de imposição de tratamento pela via penal também não costuma levar a bons resultados, pois a voluntariedade do paciente é essencial e muitas vezes existem recaídas – próprias e inerentes ao tratamento – que acabam levando à suspensão de benefícios,

retomada do curso do processo penal etc.”. 241 Nota-se, do diagnóstico apresentado, com o apoio em Birman, que “a introdução no campo das drogas de uma outra modalidade de clínica, que se considera a escuta do funcionamento psíquico dos drogados como condição sine qua non para seu manejo terapêutico”. 242 Perceptível, pois, que as lógicas do tratamento e da prevenção, declaradas nos programas públicos relativos à drogadição, são absolutamente incompatíveis com a perspectiva proibicionista, dado que justifica a crítica à opção adotada na Lei de Drogas.

9.2.3. Consequências Econômicas No que diz respeito às consequências econômicas da criminalização, pode-se apontar dois fatores relevantes: a variação no preço das substâncias entorpecentes e os custos de manutenção do sistema repressivo. É notório o fato de que a manutenção da ilicitude de determinadas substâncias estupefacientes é variável significativa na determinação dos preços ao consumidor. A variante mercadológica da ilegalidade cria mercado extremamente lucrativo no qual os maiores prejudicados são os consumidores. Afirma Cervini que os benefícios derivados deste gigantesco mercado clandestino dão condições possíveis para se concluir que sua ilegalidade é provocada

habilmente

pelos

beneficiários,

empresários

e

comerciantes de drogas que têm interesse no aumento da demanda.

Assim,

o

crescimento

do

mercado

depende,

necessariamente, de sua clandestinidade, visto que “la legalización del mercado reduciría drásticamente los márgenes de ganancias con que hoy cuentan”. 243 Contudo, para além da variação dos preços aos consumidores e das vantagens da criminalização aos beneficiários do mercado de drogas, dentre os principais problemas em matéria econômica estão os altos custos de manutenção do sistema repressivo. Estudos realizados por Jeffrey A. Miron apontam que se a maconha fosse descriminalizada nos Estados Unidos o país economizaria cerca de US$ 7,7 bilhões anualmente gastos em policiamento e ações militares. Por outro lado, poderia aumentar a arrecadação de impostos em até US$ 6,2 bilhões no mesmo período. A investigação intitulada As Implicações Orçamentárias da Ilegalidade da Maconha, divulgada em junho de 2005, financiada pela ONG Marijuana Policy Project (MPP) de Washington, ganhou adesão de inúmeros economistas de Universidades como Yale, Cornell e Stanford, que assinaram documento encaminhado ao exPresidente George W. Bush e ao Congresso americano requerendo fortes mudanças legislativas. 244 Segundo Milton Friedman, firmatário da carta-aberta, “é imoral que os Estados Unidos proíbam as chamadas drogas ilegais”. 245 O

Nobel de Economia defende amplo processo de descriminalização em

face

dos

custos

sociais

e

econômicos

das

políticas

proibicionistas: “O atual estado das coisas é uma desgraça social e econômica. Veja o que acontece todos os anos neste país: colocamos milhares de jovens na prisão, jovens que deveriam estar se preparando para o seu futuro, não sendo afastados da sociedade. Além disso, matamos milhares de pessoas todos os anos na América Latina, principalmente na Colômbia, na tal ‘Guerra contra as Drogas’. Nós proibimos o uso das drogas, mas não podemos garantir que elas não sejam de fato consumidas. Isso só leva à corrupção, à violação de direitos civis. Acho que o programa contra as drogas dos EUA é uma monstruosidade e ele é que devia ser eliminado. A maconha é apenas um pequeno pedaço desse problema, mas essa equação pode ser aplicada a qualquer droga hoje em dia ilegal”. 246 Os

argumentos

talvez

tenham

sido

importantes

na

descriminalização do porte de maconha em Denver, primeiro Estado norte-americano a optar, com apoio de 54% da população, pela nova política antiproibicionista. 247

9.2.4. Efeitos no Sistema de Administração da Justiça Penal As consequências perversas da criminalização das drogas na estrutura das agências penais, mormente nos países da América

Latina, são inúmeras, abarcando o alto custo dos processos de conhecimento e de execução penal e o financiamento das políticas repressivas. Todavia, distante do custo econômico, o principal problema da ilegalidade é a derivação da criminalidade ou, conforme a literatura criminológica, a criação de criminalidade secundária. A manutenção clandestina do comércio implica desdobramento de inúmeros delitos relacionados às drogas, sobretudo

envolvendo

profissionais

das

próprias

agências

repressivas em delitos como corrupção e extorsões. 248 Neste sentido, lembra Manzanos que “los efectos negativos de la criminalización de drogodependientes se hace sentir sobre el proprio sistema judicial y policial: riesgos de degeneración y corrupción policial, la acción penal se muestra ineficaz en la persecución de la circulación de las drogas, el 70% de los presos son personas drogodependientes cuyo delito guarda relación con el tráfico a pequeña escala o con la necesidad de conseguir dinero para procurarse la droga”. 249 Paralela à facilitação da criminalidade entre os sujeitos envolvidos com as instituições repressivas, outras espécies de criminalidade secundária de alto custo social são as decorrentes da estigmatização e da autossegregação, com o ingresso de usuários e de

dependentes

em

ambientes

de

ilegalidade.

Importantes

pesquisas realizadas na Suíça, Reino Unido, Espanha, Holanda,

Alemanha e Canadá indicam significativa diminuição nos processos de criminalização secundária e de vitimização de usuários e dependentes – não obstante a constatação da diminuição dos índices de dependência (menor número de pessoas e menor tempo de adicção) – quando o consumo de droga é realizado em espaços de legalidade – v.g. programas de prescrição de metadona e heroína, conforme exposto na sequência. Outrossim, Miron aponta dado que se torna relevante em nossa realidade marginal, qual seja, o de que as pessoas que integram e/ou se relacionam com o mercado ilegal têm obstado o acesso ao sistema judicial para resolução de conflitos. 250 Desta forma, os problemas acabam sendo resolvidos por métodos violentos, próprios do uso arbitrário, que caracteriza os sistemas de justiça penal privada. Não por outro motivo forte argumento para a descriminalização das drogas funda-se no fato de que “la experiencia ha demonstrado que su penalización produce crímenes secundários diferentes y frecuentemente más graves a los de las conductas prohibidas, creando nuevos criminales. Por otra parte, se observa que dicha penalización tiende a degradar la normal existencia humana e invariavelmente su administración es arbitrária y discriminatória”. 251

9.2.5. Efeitos no Sistema Carcerário

Conforme descrito, o texto constitucional de 1988 trouxe inúmeras modificações na estrutura do direito penal e processual penal. Se por um lado ampliou as normas de tutela dos direitos fundamentais, por outro abriu espaço para o incremento do punitivismo que caracterizou o sistema punitivo nas duas últimas décadas. Com a dilatação do input e o estreitamento do output do sistema de justiça criminal, observa-se o aumento vertiginoso nos índices de encarceramento. Realidade não apenas brasileira, mas compartilhada por grande parte dos países ocidentais imersos no discurso do populismo punitivista. E a política proibicionista, por seu turno, colabora de forma significativa, direta ou indiretamente, para essa maximização do carcerário na sociedade contemporânea. A partir da descrição das alterações legislativas que ocorreram no Brasil após a promulgação da Constituição de 1988, é possível dizer, em termos preliminares, que a diminuição das taxas de encarceramento prescindiria de ampla reforma no quadro legislativo, atingindo na integralidade todas as fases da persecução criminal, ou seja, da investigação policial à execução da pena. Todavia, é possível sustentar a hipótese de que alteração específica no rumo da política proibicionista no campo das drogas modificaria, por si só, o triste quadro de exclusão social e inclusão prisional que marca a política (criminal) brasileira contemporânea.

Dados quantitativos sobre encarceramento nas duas últimas décadas indiciam a veracidade da hipótese. Tabela 01: Número de presos por 100.000 habitantes no Brasil ANO PRESOS PRESOS/100.000 HAB. 1994 129.169 87,87 1995 148.760 95,47 1997 170.207 108,36 2000 232.755 137,08 2001 233.859 135,66 2002 239.345 137,06 2003 308.304 174,31 2004 336.358 185,24 2005 361.402 196,22 2006 401.236 214,83 2007 419.551 228,06 2008 451.219 238,10 2009 473.626 247,35 2010 496.251 260,18 2011 514.582 269,79 2012 548.003 287,31 2013 574.207 301,05 2014/1 607.731 299,70 Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (Ministério da Justiça) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Segundo os dados consolidados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), no final do segundo semestre de 2014, a população carcerária atingia o número de 607.731 presos, atingindo a cifra de 299,70 presos por 100.000 habitantes. Ao ser analisada a curva de aumento da população carcerária nas duas últimas décadas, nota-se que a opção político-criminal

autoritária de recrudescimento dos aparelhos punitivos tem obtido êxito no incremento do punitivismo. Dados que desde o ponto de vista da crítica criminológica tomam dimensões preocupantes. Se proposta comparação dos índices apresentados pelo Brasil com os dos países da Comunidade Europeia (dados de 2010 a 2014), percebe-se que o grau de encarceramento (número de presos por 100.000 habitantes) supera em grande medida países como Portugal (137), Espanha (141), França (100), Itália (85), Inglaterra (148) e Alemanha (76), aproximando-se de países do Leste como a Lituânia (315) e a Bielorrússia (335). Os países mencionados são ultrapassados apenas pela Rússia (455), país com a maior densidade populacional encarcerada do continente, mas que vem, nos últimos anos, diminuindo significativamente sua massa carcerária de 729 (2000) para 471 (2014) presos por 100.000 habitantes.252 Em relação aos países da América do Sul, se assemelham aos índices nacionais Guiana (264), Guiana Francesa (261), Uruguai (282), restando, porém, sempre com índices inferiores aos brasileiros. Todos os demais países do continente apresentam níveis de encarceramento inferiores aos brasileiros: Argentina (154), Bolívia (134), Chile (240), Colômbia (244), Equador (162), Paraguai (159), Peru (236), Suriname (183) e Venezuela (178).253

Os Estados Unidos, segundo dados de 2013 apresentados pelo Federal Bureau of Prisons, permanecem com a maior taxa de encarceramento mundial (698), atingindo o número absoluto entre presos provisórios e definitivos de 2.217.000.254 Segundo Roy Wamsley, pesquisador do International Centre for Prison Studies, da Universidade de Londres, “nas últimas duas décadas o crescimento da população carcerária brasileira só foi superado pelo do Camboja, que passou de 1.981 presos, em 1994, para 15.404, em 2011, um aumento de mais de 700%”.255 A análise da composição da população carcerária brasileira em relação ao delito imputado permite sustentar a hipótese de que o punitivismo nacional tem como referência o delito de tráfico de entorpecentes.

Conforme

apresentado

desde

o

início

da

investigação, a hipótese que orienta o trabalho é a de que a política de repressão ao tráfico de entorpecentes representa o carro-chefe da política criminal brasileira, ultrapassando os limites estritos da incidência no plano prisional para conformar regras e metarregras de compreensão do funcionamento das agências de punitividade (v.g.

Polícia,

Ministério

Público,

Judiciário

e

Administração

Carcerária). Como foi possível sustentar, as principais alterações legislativas são, em grande parte, definidas desde o posicionamento político-criminal proibicionista.

Se os dados sobre encarceramento no Brasil, ao longo da última década, indicam curva ascendente – de 137,08 presos por 100.000 habitantes em 2000 para 299,7 em 2014 –, a política de repressão às drogas acrescenta importantes cifras, sobretudo se analisado o índice de encarceramento em relação aos demais bens jurídicos violados. O resultado apresentado é hiperdimensionado em relação à população prisional feminina, pois as mulheres, proporcionalmente, foram mais encarceradas por crimes relacionados com as drogas, nos últimos anos, do que os homens. Tabela 02: Número de crimes tentados/consumados pelos quais as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento Total de crimes Código Penal Grupo: Crimes contra a pessoa Homicídio simples (art. 121, caput) Homicídio culposo (art. 121, § 3º) Homicídio qualificado (art. 121, § 2º) Aborto (arts. 124, 125, 126 e 127) Lesão corporal (art. 129, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 6º) Violência doméstica (art. 129, § 9º) Sequestro e cárcere privado (art. 148) Outros – não listados acima entre os arts. 122 e 154-A Grupo: Crimes contra o patrimônio Furto simples (art. 155) Furto qualificado (art. 155, §§ 4º e 5º)

MASCULINO FEMININO TOTAL 234.524 11.297 245.821 155.394 3.592 158.986 38.731 874 39.605 13.529 352 13.881 1.387 38 1.425 17.764 355 18.119 727 43 770 1.280

20

1.300

2.439 629

20 18

2.459 647

976

28

1.004

94.972 14.284 12.829

2.234 456 403

97.206 14.740 13.232

Roubo simples (art. 157) Roubo qualificado (art. 157, § 2º) Latrocínio (art. 157, § 3º) Extorsão (art. 158) Extorsão mediante sequestro (art. 159) Apropriação indébita (art. 168) Apropriação indébita previdenciária (art. 168-A) Estelionato (art. 171) Receptação (art. 180) Receptação qualificada (art. 180, § 1º) Outros – não listados acima entre os arts. 156 e 179 Grupo: Crimes contra a dignidade sexual Estupro (art. 213) Atentado violento ao pudor (art. 214) Estupro de vulnerável (art. 217-A) Corrupção de menores (art. 218) Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231) Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231-A) Outros (arts. 215, 216-A, 218-A, 218-B, 227, 228, 229 e 230) Grupo: Crimes contra a paz pública Quadrilha ou bando (art. 288) Grupo: Crimes contra a fé pública Grupo: Crimes contra a Administração Pública Grupo: Crimes praticados por particular contra a Administração Pública Legislação específica Grupo: Drogas (Lei 6.368/76 e Lei 11.343/06)

MASCULINO FEMININO 16.449 224 33.563 555 6.639 182 1.708 42 601 30 191 7

TOTAL 16.673 34.118 6.821 1.750 631 198

14

10

24

1.615 6.238 474

127 150 13

1.742 6.388 487

367

35

402

12.636

175

12.811

6.778 2.953 2.299 356

42 28 17 56

6.820 2.981 2.316 412

28

3

31

6

2

8

216

27

243

5.497 5.497 2.074

132 132 88

5.629 5.629 2.162

245

66

311

1.239

23

1.262

79.130

7.705

86.835

59.154

7.159

66.313

MASCULINO FEMININO TOTAL Tráfico de drogas (art. 12 da Lei 6.368/76 e art. 33 da Lei 11.343/06) Associação para o tráfico (art. 14 da Lei 6.368/76 e art. 35 da Lei 11.343/06) Tráfico internacional de drogas (art. 18 da Lei 6.368/76 e arts. 33 e 40, inciso I, da Lei 11.343/06) Grupo: Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826, de 22-12-2003) Grupo: Crimes de Trânsito (Lei 9.503, de 23-9-1997) Grupo: Legislação específica – outros Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13-1-1990) Genocídio (Lei 2.889, de 1º-10-1956) Crimes de tortura (Lei 9.455, de 7-4-1997) Crimes contra o Meio Ambiente (Lei 9.605, de 12-2-1998)

50.014

5.906

55.920

6.823

832

7.655

2.317

421

2.738

17.482

315

17.797

557

77

634

1.937

154

2.091

1.577

99

1.676

16 96

11 25

27 121

248

19

267

Fonte: Censo Penitenciário 2014 (Ministério da Justiça).

Embora,

em

termos

absolutos,

o

contingente

de

encarceramento brasileiro possua a imagem masculina do crime patrimonial (furto, roubo e latrocínio), o comércio ilícito de entorpecentes, nesse universo, aparece em segundo lugar, superando os 25% da população carcerária. Se for analisada a população carcerária feminina, cujo crescimento nas últimas décadas é significativo em todo Ocidente, tem-se como resultado principal a imputação do comércio ilegal de drogas, que supera 40% das encarceradas.

Segundo Kalili, “com a legislação de 2006, quadruplicou o número de encarcerados por tráfico. Um ano antes da lei, havia 32,8 mil condenados pelo crime; cinco anos depois, já eram 125,7 mil (DEPEN). A porcentagem de detidos por drogas em relação à população carcerária total aumentou de 13,4%, em 2005, para 24%, em 2012. Agora, tráfico e roubo qualificado (18%) são as principais causas de prisão”. 256 Conforme os dados consolidados do DEPEN de junho de 2014 (Tabela 2), 27% dos registros de crimes praticados pelas pessoas privadas de liberdade eram relacionados ao tráfico de entorpecentes, enquanto o de roubo foi reduzido para 21%, furto 11%, receptação 3%, homicídio 14%, latrocínio 3%. Os mesmos dados atualizados demonstram que a incidência do tráfico por gênero é bastante distinta: 25% entre os homens e 63% entre as mulheres. Rodrigo Azevedo, ao analisar as taxas de prisionalização por região no ano-base de 2007, constata que é possível estabelecer importantes diferenças, sobretudo em relação ao impacto do tráfico de drogas nos níveis gerais de encarceramento: “Há estados com altas taxas de encarceramento, de mais de 300 presos por 100 mil habitantes, entre os quais destacam-se o estado de São Paulo, o mais populoso do país, com uma taxa de 384,30 presos por 100 mil habitantes, e o de Mato Grosso do Sul, com uma taxa de 479,54 presos por 100 mil habitantes. Encontram-se também nesta faixa os

estados de Mato Grosso, Rondônia, Acre, Roraima e Amapá, e o Distrito Federal. Com exceção de São Paulo e do Distrito Federal, todos os demais se situam na fronteira oeste do país, por onde passa o tráfico de drogas e de outras mercadorias ilícitas”.257 Conforme dados apresentados em momento anterior, em 2007 o tráfico de drogas representava 15% da população carcerária, sendo que os delitos de roubo simples e qualificado e latrocínio atingiam 32%. Em 2011 há uma mudança substancial: o tráfico é responsável por 24,43% dos apenados, e o roubo simples e qualificado e o latrocínio decrescem para 28%.258 As expressivas diferenças nas taxas de encarceramento entre os países centrais e os países periféricos, bem como entre as espécies de delitos criminalizados, são devidas, conforme enuncia Jock Young, não apenas pelas diferenças na administração da justiça criminal, mas pela ação da “extraordinária intensidade da ‘guerra às drogas’ em curso nos Estados Unidos”259 e nos países que aderiam ao modelo proibicionista repressivo.

9.3. O Projeto Antiproibicionista no Brasil Sustenta Miron que a análise global da política repressivista permite afirmar que a proibição diminui apenas moderadamente o consumo enquanto aumenta vertiginosamente a violência. 260 No Brasil, a análise dos efeitos da criminalização das drogas valida a

hipótese. Todavia, para além de apenas referendar conclusão universalizadora, a realidade brasileira comprova a tese de forma superdimensionada, haja vista as omissões nas esferas sanitária e educacional e o impacto das violências nos direitos e garantias individuais em decorrência do abuso de poder das autoridades públicas constituídas. A histórica opção nacional pelas políticas proibicionistas foi rompida em 1992, quando o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN), sob a presidência de Ester Kosovski, elaborou a Proposta para uma Política Nacional de Drogas, que seguiu como Projeto de Lei à Câmara dos Deputados (PL 3.901/93), sendo alterado no Senado (PL 94/93) e renumerado como PL 4.591/94. A proposta do CONFEN, diferente de demais projetos em trâmite naquele momento no Congresso Nacional, não pretendia reelaborar a Lei 6.368/76 em sua integralidade, mas estabelecer políticas públicas centradas na ideia da prevenção das drogas lícitas ou ilícitas em diversos níveis. O pressuposto foi a constatação de que “o consumo de produtos capazes de alterar o psiquismo humano faz parte da vida em sociedade. O álcool, cujo uso é permitido e até estimulado, geralmente é considerado como um ‘mediador das relações sociais’. A maconha, para muitos jovens, cumpre o papel de facilitar sua integração ao grupo, ou até mesmo uma forma de transgressão e agressão ao meio no momento crítico

de sua passagem à vida adulta. O abuso de determinados medicamentos pode também ter como origem a tentativa de minimizar as tensões geradas pela sociedade moderna”. 261 Assim, abdicando das políticas baseadas essencialmente na repressão, otimizava a perspectiva reducionista centrada na prevenção integral ao abuso de todos os tipos de substâncias psicotrópicas. À guisa de exemplificação, a ideia de prevenção extensiva às drogas lícitas agudizava o necessário debate sobre o (ab)uso e o comércio de drogas legais, propondo-se inclusive a proibição de qualquer tipo de publicidade não autorizada pelo Conselho. 262 O projeto sustentou-se em três premissas estruturantes que deslocavam o foco eminentemente penal: (a) a centralidade dos projetos preventivos deveria ser a pessoa humana, ao contrário da perspectiva repressivista na qual o objeto é a substância; (b) as políticas públicas deveriam abranger todas as drogas psicoativas (lícitas e ilícitas); e (c) o uso de drogas é variável constante na história da humanidade e a relação do homem com ações e substâncias psicoativas decorre de múltiplas motivações – “(...) o ser

humano

é,

ele

próprio,

psicoativo”. 263

As

bases

transdisciplinares do Projeto foram relevadas na sua Exposição de Motivos (objetivos): “Adotar-se-á, em relação à questão do uso, sistema referencial interativo que contemple razões de ordem

socioculturais e econômicas, a partir do estudo das relações do indivíduo com seu ambiente plural”. 264 A orientação transdisciplinar e a visão plural e complexa da sociedade e da rede de interações que envolve a questão das drogas permitiram ultrapassar a histórica adoção de sistemas valorativos unívocos que, em realidade, apenas reforçam projetos morais. Ao negar o monismo, refutava a ideia de que se possa extrair

de

sociedades

complexas

e

conflitivas

referenciais

homogêneos para avaliação das diversas situações problemáticas. Desta forma, o homem, relacionado com seu ambiente plural, passava a ser o centro da prevenção e “a repressão e fiscalização estarão dirigidas ao produto, à droga e à regulamentação ou proibição da oferta”. 265 O Programa de Prevenção Integral estaria dividido em três momentos específicos. As estratégias de prevenção primária intentariam impedir o primeiro contato do indivíduo com a droga, antecipando-se

à

experimentação,

através

de

planos

de

esclarecimento nos grupos familiares, nas escolas e no ambiente profissional do usuário em potencial (jovem). A prevenção secundária teria a finalidade de reduzir os danos decorrentes do uso, para, em caso de derivar dependência (prevenção terciária), propor alternativas de tratamento ao dependente.

Ao estruturar as políticas públicas de drogas a partir da perspectiva da prevenção integral, o projeto abdicava a base ideológica e autoritária repressivista da Lei 6.368/76, sobretudo o modelo punitivo-sanitarista – “e é neste ponto, precisamente, que vimos ao longo dos anos, adotando e promovendo teratológica mistura, odiosa confusão, reduzindo toda a questão ao âmbito do direito penal. A lei em vigor é fundamentalmente, lei penal, apoiada pela ótica ‘psiquiatrizada’ dos problemas causados pelo ‘uso das drogas’”. 266 Abria espaço, portanto, para projeto antiproibicionista fundado na ideia de mínima intervenção penal, cuja base inegavelmente se encontrava nos processos de descriminalização – “a sede da questão pertinente ao uso de drogas não pode ser o direito penal. Muitos são os argumentos que demonstram o acerto desta afirmação, entre eles avulta o de que o direito penal não pode ter por objeto condutas estritamente privadas”. 267 A inédita proposta do CONFEN apresentada à comunidade jurídica e política em 1992 restringia, portanto, qualquer tipo de atuação punitiva em relação ao uso de entorpecentes enquanto estivesse limitado à vida privada (consumo doméstico). Assim, o projeto mantinha a proibição do consumo, mas apenas em locais públicos. Em caso de infração, determinava a apreensão da droga (art. 6º), não do usuário, como geralmente ocorre no sistema proibicionista. Com a retirada compulsória da droga e do sujeito do

estabelecimento de uso público, o usuário ficaria sujeito a sanções administrativas (art. 6º,§ 4º) – (a) suspensão, por seis meses a um ano (em caso de reiteração) ou cassação (terceira ocorrência), de licença para conduzir veículo terrestre, aéreo ou marítimo, se a infração ocorrer quando de sua condução ou por ocasião dela; (b) suspensão, por um ano, ou cassação (em caso de reiteração) de licença de condução quando se tratar de qualquer meio de transporte público; (c) suspensão de licença para porte de arma, por seis meses, cassada no caso de repetição da conduta; (d) pagamento de multa, exceto em estado de pobreza; e (e) quando estrangeiro, independente das demais sanções, suspensão da permissão de estada no País. Com a otimização da prevenção (integral) e a revogação das modalidades de porte de entorpecentes para uso pessoal, permaneceria exclusivamente o discurso punitivo em relação às hipóteses de comércio clandestino, fabricação de instrumentos destinados à preparação, associação para o tráfico e prescrição ilegal por agente de saúde.

9.4. A Insustentabilidade Jurídica da Criminalização das Drogas A exposição do PL 4.591/94 do Senado, apesar das críticas que a ele possam ser endereçadas, objetiva exclusivamente demonstrar

que, paralelamente ao embrião da Lei 11.343/06, existia alternativa concreta e viável à política criminal de drogas no Brasil. Tratava-se de projeto subsistente, apresentado às casas legislativas com proposições de efetivas mudanças na rota traçada na Lei 6.368/76 e consolidada na Lei 11.343/06, cujos efeitos seguem extremamente danosos do ponto de vista jurídico, político, econômico, social, educacional,

sanitário

e,

sobretudo,

individual

(usuários

e

dependentes). A proposição do CONFEN, no início da década de 1990, expõe a viabilidade de projetos diferenciados fundados em sérios

diagnósticos

sobre

os

elevados

custos

da

opção

criminalizadora. Todavia o que se pode depreender da avaliação da constância e da permanência da lógica bélica e sanitarista nas políticas (criminais) relativas às drogas no Brasil é que, não obstante os elevados custos da criminalização, sua manutenção é necessária em decorrência da opção por modelos punitivos moralizadores e que sobrepõem os interesses do Príncipe aos princípios (e garantias fundamentais), ou seja, a razão de Estado à razão de direito. A opção moralizante e normalizadora aflora nas atuais tendências de tratamento de usuários pela Justiça Terapêutica e, no âmbito do comércio ilegal, nos efeitos penais da adjetivação hedionda das condutas.

É que do ponto de vista da principiologia conformadora do direito penal contemporâneo, a criminalização das condutas relativas ao uso de entorpecentes é injustificável. Neste aspecto, a literatura jurídico-penal é vasta e as críticas são amplamente conhecidas,

notadamente

pela

violação

ao

postulado

da

secularização e aos princípios da lesividade, da intimidade e da vida privada. O principal postulado do direito penal moderno, que funda os modelos de direito penal do fato, é a radical separação entre direito e moral, determinando que a pena não pode servir para reforçar ou impor determinados padrões de comportamento. A assunção do pluralismo cultural, portanto, é máxima fundante dos Estados Democráticos de Direito. Neste quadro, os princípios de lesividade, intimidade

e

vida

privada

instrumentalizam

a

máxima

secularizadora, visto que somente podem ser proibidas condutas que ofendam ou coloquem em perigo (concreto) bens jurídicos de terceiros. Exclui-se, pois, qualquer legitimidade criminalizadora contra atos autolesivos, condutas que não violam ou arriscam bens alheios, condições ou opções individuais (ideológicas, políticas, religiosas, sexuais, entre outras). No caso específico da legislação de entorpecentes, a previsibilidade de condutas autolesivas e que não violam terceiros (crimes sem vítima 268)

como

delito

desqualificam

qualquer

justificativa incriminadora razoável. Lembra Cervini que o eixo central das discussões de Bellagio (1973) girava em torno da ilegitimidade da programação punitiva direcionada aos delitos sem vítima, sendo este tipo de incriminação o primeiro a ser incluído nos programas de descriminalização. 269 Ferrajoli, ao estabelecer propostas para programa de direito penal mínimo, advoga que “se deveria ab-rogar a absurda e criminógena Lei de Drogas, particularmente a iníqua punição do uso pessoal de entorpecentes”. 270 Sustenta o autor que normativas proibitivas de uso pessoal de determinadas substâncias enunciam preceitos

morais,

antissecular

na

representando qual

as

normas

a

confusão penais

pré-moderna

ocupam

funções

propagandísticas ou pedagógicas. “Punindo o consumo – reflete Ferrajoli –, se acaba inevitavelmente na punição da toxicodependência enquanto tal, isto é, de uma trágica e infeliz condição pessoal de dependência e de sofrimento que exclui em grande parte, nos casos extremos, a própria vontade da pessoa. Não me ocuparei do fato de que uma similar criminalização de figuras sociais marginalizadas, que necessitam de assistência em lugar de punição, assinalam o reflexo de ordenamentos autoritários e, nos melhores dos casos, a nunca extinta ilusão repressiva que confia às penas a solução dos dramáticos problemas sociais e existenciais. O que é grave,

sob o ponto jurídico, a punição de uma condição pessoal enquanto tal, a qual contradiz o clássico princípio do Estado de Direito, aquele segundo o qual se pode ser punido apenas pelo que se faz e não pelo que se é, como se age e não pela própria identidade.” 271 Apesar de sua insustentabilidade, o discurso punitivo opera com determinadas inversões ideológicas e significativas que acabam, nas aparências, facilmente consumidas pelos mass media jurídicos

(senso

comum

teórico),

justificando

hipóteses

criminalizadoras. A

principal

manipulação

interpretativa

no

campo

dos

entorpecentes ocorre, inegavelmente, com a enunciação da criminalização como mecanismo de tutela do bem jurídico saúde pública. Nota Maria Lúcia Karam que “é evidente que na conduta de uma pessoa que, destinando-se a seu uso próprio, adquire ou tem a posse de uma substância que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo”. 272 A missão de proteção de bens jurídicos legitimou inúmeras formas de intervenção penal na contemporaneidade. Ocorre que se na estrutura do direito penal liberal os bens jurídicos eram individuais (palpáveis), com a constante alteração em sua natureza ocorreu

processo

de

agregação

de

interesses

públicos

representados na coletividade e no próprio Estado. Ademais, a maior

parte

destes

bens

jurídicos

é

caracterizada

pela

imaterialidade, como é o caso da saúde pública. O problema é que o princípio da lesividade, segundo Ferrajoli, determina que somente podem ser considerados bens jurídicos penalmente

relevantes

aqueles

empiricamente

identificáveis,

notadamente os de titularidade de pessoas de carne e osso. Do contrário, as normas penais seriam injustificáveis, pois típicas de leis penais autoritárias ou de emergências identificadas, p. ex., com a tutela da personalidade do Estado. Ferrajoli sustenta que na medida em que o Estado, nos ordenamentos democráticos, não constitui bem ou valor em si, incriminações de condutas de natureza intangível são privadas de objeto e, portanto, isentas de significado. No mesmo sentido, ações deflagradas contra si mesmo ou não lesivas a terceiros, “como a prostituição, os atos considerados ‘contra natureza’, a tentativa de suicídio, e em geral os atos contra si mesmo, da embriaguez ao uso pessoal de entorpecentes”. 273 Os argumentos conduzem à conclusão de que a criação de determinadas categorias jurídicas sob a tutela pública, como a saúde pública, opera espécie de espiritualização metafísica do bem jurídico, em absoluta dicotomia com a nervura da realidade cotidiana.

A incongruência na incriminação é perceptível ao se verificar o direcionamento das agências de punitividade na repressão às drogas sob o discurso da tutela da saúde pública, quando é no mínimo temerária a gestão pública deste sistema. O descaso das autoridades públicas com a prestação de serviços minimamente razoáveis na área de saúde deslegitima qualquer pretensão de utilização do aparato penal para sua proteção. A analogia poderia ser estendida inclusive aos déficits da administração pública em geral, como no caso da (des)ordem econômica, previdenciária, entre tantos outros exemplos possíveis. A falácia do direito penal de tutela de bens jurídicos serviu apenas como justificativa para a maximização da intervenção punitiva.

Especificamente

em

relação

à

saúde

pública,

a

incapacidade dos gestores é demonstrada na abstinência histórica em iniciativas elementares. A contrapartida pela omissão na prestação de serviços básicos para efetivação dos direitos transindividuais e coletivos à saúde pública é a constante intervenção penal. No caso das drogas, a inatividade em matéria de criação de programas de recuperação na órbita do direito à saúde é compensada pela ansiedade criminalizadora, sacrificando por ação (penal) e omissão (social) a saúde do sujeito capturado pelas agências de punitividade. Trata-se, pois, de efeito perverso dobrado:

danos à saúde pública por inação; ofensa comissiva à saúde individual amparada pelo discurso da tutela penal da saúde pública não fornecida. Em resumo, conclui Helena Regina Lobo da Costa: “Para proteger a indefinida e vaga ‘saúde pública’, negligencia-se a proteção da saúde individual e concreta (...). Este paradoxo faz com que a sanção penal se torne, paulatinamente, um mero marco decorativo, desprovido de qualquer sentido de justiça”. 274 O paradoxo apontado encontra raízes na cisão artificial entre os interesses

públicos

e

os

direitos

individuais

(privados).

É

fundamental perceber, para que se possa apresentar respostas razoáveis ao problema, que inexiste hierarquia ou graduação entre direitos, ou seja, é impossível vislumbrar confronto entre os direitos individuais, identificados tradicionalmente como interesses privados, e os coletivos e/ou transindividuais, incorporados à ideia de interesse público. 275 A contraposição entre os direitos, derivada da metodologia geracional sugerida por Bobbio 276 – cuja virtude é meramente didático-metodológica –, compartimentaliza e fragmenta a unidade dos direitos fundamentais, criando bifurcações virtuais como se fosse possível, por exemplo, tutelar os direitos sociais à saúde (pública) sacrificando este mesmo direito (à saúde) individual. A cisão inerente à ideia geracional não invariavelmente potencializa a contraposição dos titulares dos direitos, criando oposição fictícia e

situação fática contenciosa entre indivíduos (titulares dos direitos individuais) e sociedade civil (titular dos direitos sociais e transindividuais), ou entre estes (indivíduos e/ou sociedade civil) e Estado (instrumentalizador da efetivação dos direitos). Este método de despedaçamento, típico da obsoleta concepção cartesiana que funda a ciência moderna, obtém como efeito concepção beligerante entre os direitos e seus titulares, encobrindo formas alternativas viáveis de tutela e de efetivação. Constata López Calera que “nadie que ni tenga los ojos cerrados dejará de reconocer que en los ultimos tiempos el Estado ha ido afirmandóse sobre el individuo y, esto es lo grave, de manera injusta. La amplia y ambigua utilización de categorias como ‘interés del Estado’ o ‘interés público’ han producido graves daños a los derechos individuales”. 277 Vê-se, no contexto das políticas criminais de drogas, a incorporação do discurso de tutela da saúde pública pelas agências repressivas, cujo efeito é alçar o combate à criminalidade de drogas ao local privilegiado da política repressiva, tornando reféns os direitos e as garantias de usuários e dependentes.

9.5. O Direito às Drogas: Thomas Szasz e Antonio Escohotado

Para além da ilegitimidade jurídica da criminalização, discurso que estabelece barreira negativa ao poder punitivo estatal, Thomas Szasz, principal representante da corrente antipsiquiátrica norteamericana, e Antonio Escohotado, autor de destaque na literatura europeia sobre a questão das drogas, defendem o direito individual às drogas. Em linhas gerais, se o discurso antiproibicionista direciona sua crítica à ausência de justificativa da criminalização, Szasz e Escohotado defendem abertamente ser o consumo de drogas, de quaisquer naturezas e para quaisquer fins, direito inalienável do cidadão nas sociedades democráticas, constituindose como liberdade de intoxicação ou liberdade de automedicação, espécie de liberdade civil com idêntica natureza das liberdades de propriedade e de expressão consagradas historicamente nos textos constitucionais dos países ocidentais. A obra de referência é Our Right to Drugs: the Case for a Free Market, publicado, por Szasz, em 1992, cujo conteúdo remete ao trabalho precursor Ceremonial Chemestry, de 1975. Conforme demonstra Escohotado, em Ceremonial Chemestry, Szasz coloca em relevo como “la cruzada antidroga carece de raiz científica, y únicamente resulta inteligible como específico delírio popular de nuestro tiempo, maquillado como iniciativa terapéutica”. 278 Szasz desenvolve sua tese a partir destes dois eixos fundamentais, negativo e positivo, pendendo sua argumentação

entre a ilegitimidade de proibição e o direito ao livre consumo para, finalmente, analisar o atual debate político-criminal e as propostas proibicionistas e antiproibicionistas, nas vertentes criminalizadoras (manutenção das drogas proibidas e ampliação do rol de drogas controladas), legalizadoras (transferência das drogas proibidas à classe de controladas) e partidárias do livre mercado (abolição das categorias drogas ilícitas e controladas). O texto é marcado pelo agudo posicionamento liberal de Szasz, que se nota na introdução do livro, quando alerta que a investigação versa, fundamentalmente, sobre direitos, responsabilidade, lei e Constituição, entendidos “não como abstrações em tratados filosóficos ou teses jurídicas, mas como realidade prática da nossa vida cotidiana”. 279 A tese negativa (ilegitimidade da proibição) é amparada na ideia da autonomia do sujeito como limite à intervenção estatal nos regimes democráticos. Assim, ao contrário de governos de feição totalitária, as democracias liberais careceriam de legitimidade política para privar adultos do direito de utilizar quaisquer substâncias que elejam, independente dos danos que lhes possam causar. A limitação e a regulação do mercado de drogas pelo Estado – englobando neste caso a proibição (drogas ilícitas) e controle total ou parcial (drogas lícitas de uso restrito) –, com a delegação do monopólio da autorização de alguns fármacos à classe médica e às autoridades sanitárias, caracterizariam política

governamental

totalitário-terapêutica

orientada

à

autoproteção

coletiva. 280 A face paternalista e médica do governo em relação às drogas, delineando o que Szasz denomina Estado Terapêutico, é associada às formas totalitárias de dominação próprias das economias de controle do mercado e dos bens de consumo (economias de domínio). Se os Estados controladores são eminentemente despóticos, os de livre mercado seriam inerentemente democráticos e os indivíduos decidiriam o que produzir, vender e comprar, pois consumidores livres para abster-se ou não de determinados usos e costumes. A

aberta

defesa

da

liberdade

de

mercado



e,

consequentemente, a crítica aos projetos/modelos de economia regulada – direciona à classificação dos modelos proibicionistas como exercício de poder policialesco e paternalista, pois “sob o poder policialesco os Estados podem proibir amplo espectro de atividades que consideram suscetíveis de colocar em perigo o bemestar público como, por exemplo, o jogo, a obscenidade e as drogas, notadamente o álcool”. 281 Assim, “os impostos e a proibição das drogas são intervenções coativas do Estado, justificando-se fundamentalmente sob bases paternalistas”. 282 A postura paternalista demonstrada no sentido terapêutico da intervenção político-criminal e sanitária evoca configuração estatal

antissecular na qual a administração define quais condutas virtuosas devem ser realizadas pelo cidadão e quais os malefícios devem ser evitados. Trata-se, na terminologia da teoria geral do direito, de fusão entre as esferas morais e jurídicas, estrutura própria dos Estados pré-modernos ou modernos totalitários. A determinação das condutas ilícitas, nesta perspectiva política, assume, acima de tudo, a perspectiva moralizadora de pautar comportamentos considerados adequados em detrimento de proibições de atos que efetivamente provoquem danos externos a terceiros. Nesta linha argumentativa, Escohotado diagnostica que as origens concretas das proibições de drogas, bem como dos comportamentos considerados eróticos ou perversos, refletem o caráter clerical e puritano das normas de conduta 283. Os Estados contemporâneos, portanto, assumem afãs eclesiásticos típicos dos modelos jurídicos inquisitórios nos quais são cultivados valores como o arrependimento, a abstinência e a castidade. Todavia, para além do incentivo à virtude, as autoridades burocráticas passam a regular os comportamentos transgressivos pelo processo de criminalização das falhas morais (pecados). Szasz partilha deste entendimento argumentando que a justificação contemporânea do controle sobre as drogas “se apoia fortemente na tradicional equação judaico-cristão de que assassinato e suicídio são formas de

homicídio,

combinada

com

a

tendência

moderna

e

particularmente Ocidental de considerar ambos como estados mentais anormais”. 284 Conclui que a legitimidade dos Estados seculares reside em tutela prudente dos interesses dos cidadãos, objetivando aumentar ao máximo a segurança de suas vidas, liberdades e propriedades. Todavia tal justificativa de intervenção “não inclui no compromisso estatal de salvar as pessoas de incorrer em pecado moral, erro político ou enfermidade médica”. 285 Da crítica negativa ao intervencionismo estatal, Szasz passa ao argumento positivo da ampla liberdade de ação do indivíduo adulto, a partir de dois marcos teóricos: político, referendado por Thomas Jefferson, e científico, apoiado em Ludwig von Mises. A premissa de Szasz pode ser exposta pela afirmação de que a titularidade sobre o corpo integra os direitos inalienáveis de propriedade das pessoas, não constituindo mero regalo estatal ou governamental que pode ser limitado ou ampliado conforme são delineadas as opções políticas da administração. Portanto, sustenta o autor, permitir que o Estado decida sobre qual o tipo de substâncias as pessoas podem ingerir significa a derrogação dos direitos sobre o próprio corpo. Sustenta Szasz a hipótese de que para Thomas Jefferson seria muito difícil compreender que a nação que ajudou a criar estaria imersa em sistema político baseado na contraditória premissa de que as pessoas são suficientemente autônomas para eleger seus

representantes, mas receiam usufruir desta mesma autonomia no momento de decidir quais drogas irão tomar, delegando às autoridades esta competência. Ludwig von Mises não apenas teria negado a legitimidade deste modelo político como apresentaria, neste quadro, o alerta sobre a possibilidade da configuração de Estados paternal-protecionistas. 286 O princípio fundamental da autonomia da vontade é, na construção de Szasz e de Escohotado, tensionado ao máximo, incorporando não apenas o direito das pessoas de consumir as substâncias que entenderem adequadas como o direito de não serem molestadas por esta escolha. A epígrafe do livro Aprendiendo de las Drogas, de Escohotado, atribuída a anônimo contemporâneo, parece concentrar toda a força da argumentação desenvolvida pelos pensadores: “(...) de la piel para dentro empieza mi exclusiva jurisdicción. Elijo yo aquello que puede o no cruzar esa frontera. Soy un estado soberano, y la lindes de mi piel me resultan mucho más sagradas que los confines políticos de cualquier país”. 287 Desta forma, o direito à imunidade absoluta para possuir o próprio corpo extrapola a questão do uso de drogas, ganhando especial relevo na obra de Szasz quando trata as questões éticas e o que denomina de política do suicídio. Em Fatal Freedom (1999), propõe repensar o suicídio a partir da ideia de responsabilidade final de controle sobre a própria morte.

A defesa do direito de possuir seu próprio corpo sem interferência de terceiros, muito menos da burocracia estatal-policialesca, direciona o autor a negar o conceito de direito ao suicídio, o qual implicaria terceiros no ato e/ou nas suas consequências, e reivindicar o direito a não ser molestado. Nas palavras do autor, “dado que el concepto de derecho al suicidio (o suicidio asistido) implica la obrigación de que otros cumplan los deberes recíprocos que de él se derivan, debo rechazar este concepto. No obstante, creo que poseemos – y debe ser acordado – un ‘derecho natural’ a no ser molestados para poder cometer suicidio. Una sociedad verdaderamente humana debería reconocer esta opción como un derecho civil respetado”. 288 Com base em completo levantamento de leading cases das Cortes norte-americanas, 289 Szasz percebe que, em termos morais, legais e médicos, o direito a não ser molestado é equivalente ao direito à intoxicação, ao suicídio e ao de negar tratamento médico. As decisões sobre a saúde pessoal são exclusivas do indivíduo, não sendo legítima qualquer intervenção coativa. Exemplifica citando fato ocorrido em 1993, na Califórnia, quando médico penitenciário solicitou mandado judicial que permitisse introduzir sonda gástrica para alimentar e medicar recluso tetraplégico que havia se declarado em greve de fome. A manifestação do Tribunal foi no

sentido de garantir a autonomia do recluso, permitindo que seguisse com a manifestação pacífica. “El derecho a rechazar un tratamiento médico es igualmente ‘básico y fundamental’ y una parte esencial del consentimiento informado. El derecho individual a la autonomía personal para rechazar un tratamiento médico no se detiene ante el conocimiento, por ejemplo, de la racionalidad médica (…), porque las decisiones sobre la salud conciernen íntimamente a la sensación subjetiva de bienestar de cada persona. (…) El Estado no ha abrazado una política incondicional de preservación de la vida a expensas de la autonomía personal. (…) Como proposición genérica, la idea de que el individuo existe para el bien del Estado es, evidentemente, contraria a nuestra tesis, que sostiene que el deber del Estado consiste en garantizar el máximo de libertad personal para elegir y para actuar”. 290 Questão aparentemente problemática colocada por Szasz seria relativa aos riscos que sucederiam a aceitação desta radical extensão do direito à autonomia individual ou, em outros termos, sobre a forma de eliminar as consequências indesejadas desta liberdade. No entanto a aparência do problema se revela a partir de outra questão, qual seja, a da expectativa que se deve ter sobre as eleições

de

pessoas

maduras:

seria

razoável

estabelecer

criminalizações e punir pessoas adultas por eventuais escolhas consideradas errôneas? Bastante elucidativo para formular a resposta

é

o

exemplo

formulado

por

Szasz

ao

analisar

oportunidades e riscos. Além de revelar importante sintoma social contemporâneo,

problematiza

lembrando

que

“não

responsabilizamos a obesidade dos gordos a quem lhes vende comida, mas atribuímos os hábitos dos dependentes a quem lhes vende droga”. 291 Constituindo-se, na atualidade, a obesidade epidemia, seria crível pensar na criminalização da venda ou do consumo de certos alimentos? Ou, retomando a questão, qual a expectativa social em relação à autonomia e à responsabilidade das pessoas em relação à qualidade e à quantidade de alimento que consomem? A limitação do direito às drogas, no entendimento de Szasz, somente é legítima quando a conduta causa danos diretos a terceiros. Assim, o Estado estaria autorizado tanto a proibir o consumo de drogas em espaços públicos e a condução de veículos ou aeronaves sob efeitos de quaisquer tipos de entorpecentes, quanto estaria justificado proibir que pessoas não habilitadas conduzissem transportes públicos ou privados e exigir que determinadas pessoas dirijam apenas sob determinadas condições, como, p. ex., que epiléticos estejam condicionados ao uso de anticonvulsivantes para trafegar. 292 Não havendo potencialidade

lesiva externalizada, a proibição extrapolaria os limites da autonomia individual. Em conclusão, Szasz analisa o contraponto entre as propostas proibicionistas e antiproibicionistas, destacando o equívoco de propostas descriminalizadoras que (a) condicionam o uso de drogas ao ingresso em programas governamentais ou (b) limitam o consumo pressupondo autorização médica. No entender do autor, se as políticas proibicionistas pecam por outorgar ao Estado possibilidade de ingerência na vida pessoal e na intimidade, restringindo

a

autonomia

individual,

os

modelos

de

descriminalização controlada pressuporiam o uso de droga como enfermidade. Como defensor do livre mercado, entende que nenhuma

conduta

deve

ser

regulada

mediante

sanções

terapêuticas, ou seja, o uso de drogas deve ser percebido como eleição pessoal, alheia aos rótulos crime ou doença. 293 As ponderações de Escohotado e, sobretudo Szasz, direcionam o debate à ampla reforma das políticas de drogas. Os problemas, portanto, centralizam-se nos fundamentos da esfera política, em geral, e político-criminal, em particular. Contudo, conforme alertam os autores, desenvolveu-se tradição paternal-protecionista em torno da questão das drogas, sendo imprescindível, para que seja possível o cambio legal, mudança na cultura que envolve o problema. A principal é operar radical inversão nas preferências

morais que primam pela tutela estatal e pela coação em detrimento de liberdade e autocontrole. 294 Ocorre, porém, que mudanças culturais, na maioria dos casos, tendem a ser graduais, realizadas através de microrrupturas no campo das micropolíticas.

9.6. Falácia Politicista da Lei 11.343/06 e Programa Mínimo de Redução de Danos Embora seja absolutamente viável, pela experiência do direito penal

internacional

das

drogas,

pensar

na

viabilidade

da

descriminalização do consumo pessoal, as estratégias concentramse, na atualidade, em nossa realidade periférica, em duas dimensões: (a) plano da dogmática penal crítica, com a proliferação de julgados que deslegitimam a intervenção penal na esfera da vida privada e da intimidade; (b) plano político-criminal, com a proposição de políticas de redução de danos que respeitem a autonomia do usuário e as necessidades dos dependentes. No caso brasileiro, a nova Lei de Drogas nominou as atividades de prevenção do uso indevido, de atenção e de reinserção social de usuários e dependentes de drogas, definindo como ações preventivas “aquelas direcionadas para a redução dos fatores de vulnerabilidade e risco e para a promoção e o fortalecimento dos fatores de proteção” (art. 18).

Os princípios e as diretrizes norteadores das ações preventivas são, em sua maioria, inspirados em fundamentos redutores, notadamente aqueles relativos ao reconhecimento da autonomia e da responsabilidade individual; do reconhecimento do não uso e do retardamento

do

uso

como

resultados

desejáveis;

da

individualização do tratamento aos sujeitos e grupos vulneráveis; e do reconhecimento do uso indevido de drogas como fator de interferência na qualidade de vida do indivíduo. A partir desta pauta, a Lei de Drogas projeta ações de atenção aos usuários e dependentes, juntamente com seus familiares, visando à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e dos danos associados ao uso de drogas (art. 20), bem como a sua integração ou reintegração em redes sociais (art. 21). Ocorre que os princípios e diretrizes previstos na Lei 11.343/06, notadamente identificados com políticas de redução de danos, acabam ofuscados pela lógica proibicionista, não representando senão mera carta de intenções direcionada ao sistema de saúde pública. É notório que em matéria de direitos sociais, sobretudo aqueles relativos às áreas da educação e da saúde, se a legislação não determinar claramente as ações e os órgãos competentes, prevendo mecanismos de responsabilização administrativa, a tendência é de as pautas programáticas restarem irrealizadas.

O efeito da projeção de diretrizes sem o estabelecimento dos vínculos de responsabilidade em casos de omissão no campo dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESCs) é o absenteísmo estatal. Diferentemente dos direitos individuais, sobretudo no campo do direito criminal, em que os princípios de não intervenção devem ser taxativamente expostos sob pena de atividade comissiva das agências criminalizadoras, na esfera dos DESCs a regra em casos de não determinação é a omissão. Neste sentido é que se pode perceber a falácia politicista presente na Lei 11.343/06, baseada no pressuposto de existência do bom poder público realizador dos direitos sociais e não interventor na órbita dos direitos individuais. Por outro lado, agregado à falácia politicista, é igualmente possível visualizar verdadeira inversão ideológica no discurso de redução de danos ao utilizar sua base conceitual e principiológica para legitimar políticas e intervenções proibicionistas. Correlato à projeção idealista de política redutora da Lei 11.343/06, historicamente o modelo repressivo de drogas no Brasil apresentou profundos déficits de legitimidade. A atual crise do modelo criminalizador pode, portanto, ser resumida em importantes constatações: (a) a histórica ausência de harmonia das legislações de drogas com os valores e princípios de tutela dos direitos fundamentais; (b) o acréscimo no nível de criminalidade subsidiária

à criminalização das drogas (criminalidade urbana e policial); e (c) os altos custos sociais da criminalização. Como foi possível perceber ao longo da exposição, a eleição do uso e do comércio de droga e de seus sujeitos como inimigos da sociedade tem reduzido toda a discussão sobre o problema ao âmbito do penal, impossibilitando a busca por soluções menos danosas e efetivas alternativas à criminalização, em face da demonstração da absoluta incapacidade resolutiva do sistema penal. Pelo contrário, o proibicionismo apenas potencializou efeitos colaterais à incriminação: a promessa de contramotivação do crime fomentou a criminalização secundária; ao reprimir o consumo estigmatizou o usuário; e com intuito de eliminar o tráfico ilícito deflagrou a criminalização de setores vulneráveis da população. A manutenção da ilegalidade da droga produziu sérios problemas sanitários e econômicos; favoreceu o aumento da corrupção dos agentes do poder repressivo; estabeleceu regimes autoritários de penas aos consumidores e pequenos comerciantes; e restringiu os programas médicos e sociais de prevenção. O alto custo da criminalização, sobretudo o da marginalização dos dependentes, harmoniza as práticas redutoras com as políticas criminais de descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Notadamente porque “las políticas de reducción de riesgos consideran que los toxicómanos bien integrados en la sociedad

tienen más posibilidades de abandonar la droga que aquellos que viven marginalizados”. 295 Difícil pensar inexistir esta associação, inclusive em face da eventual criminalização dos agentes redutores, conforme será possível perceber no capítulo seguinte. As políticas de redução de danos, portanto, conforme destaca Weigert, partem do princípio de que “existem (e sempre existirão) usuários (dependentes ou não) que, seja pelo motivo que for, não abandonarão

as

drogas.

Optam

pelo

consumo

e

assim

permanecerão, razão pela qual defini-los como delinquentes ou doentes em lugar de meros consumidores significa frear o movimento no sentido de respeitar seus direitos como cidadãos. Em segundo lugar, crê-se que os danos causados pelo uso de entorpecentes não advêm propriamente de suas propriedades intrínsecas, senão da sua ilegalidade”. 296 A descriminalização aparece, assim, como possibilidade de deslocamento do enfoque, aprimorando instrumentos de garantia dos direitos humanos fundamentados em modelos de diminuição dos efeitos perversos gerados pela criminalização. Desde esta perspectiva é possível pensar políticas públicas eficazes à prevenção sustentadas na informação e no ensino, no incentivo agrícola de culturas alternativas e na regulamentação e controle do comércio das substâncias pelos órgãos estatais.

Contudo, paralelamente à descriminalização, inúmeras ações podem ser implementadas. Baseada nas conclusões do grupo italiano sobre descriminalização 297 e nas propostas apresentadas pelo

projeto

antiproibicionista

do

CONFEN



proposições

devidamente adaptadas em decorrência da dimensão local e temporal –, a estrutura da política alternativa de redução de danos (harm reduction) no campo das drogas pode ser delineada pelos seguintes princípios e estratégias: (a) definir estratégias de assistência aos dependentes em dois níveis: terapia, destinada ao auxílio do controle do abuso de drogas que causam dependência; e tratamento, voltado não à assistência, mas ao melhoramento dos comportamentos dos dependentes sob o ponto de vista físico e social; (b) criar condições e possibilidades alternativas de modo que o médico proponha o tratamento que melhor entenda adequado ao caso – “é necessário reconhecer o direito de cada médico de sugerir e praticar a forma de terapia que considera mais apropriada às condições do paciente” –, favorecendo a interação e o envolvimento do paciente (dependente) no seu próprio tratamento; 298 (c) oferecer, não obstante as estratégias imediatas, opções diversas e diferenciadas de programas de tratamento e terapia, conforme as demandas dos diferentes grupos consumidores – “é

direito de cada cidadão escolher e decidir, numa gama ampla de ofertas

sanitárias,

qual

a

mais

apropriada

às

suas

necessidades”; 299 (d)

afirmar

como

necessárias,

como

condição

de

legitimidade das terapias e dos tratamentos, a intervenção e a voluntariedade do usuário, como forma de diálogo (escuta e fala), afastando

dois

tipos

de

medidas

coativas:

judiciária,

representada pelos sistemas de penas e sanções, sobretudo a carcerária; e sanitária, que subordina o auxílio e assistência à decisão de total abstinência; 300 (e) fomentar a participação de usuários junto aos conselhos e órgãos estatais deliberativos sobre as políticas públicas na área de saúde, notadamente no que se refere à prevenção, tratamento e abordagens sobre drogas; (f) excluir, de qualquer hipótese interventiva, interrupção ou mudança do tratamento em virtude de naturais recaídas, prática comum prevista em legislações ou programas de tratamento autoritários; (g) separar os mercados das diversas substâncias de forma a diminuir a possibilidade da passagem do consumo de drogas leves às drogas pesadas; (h) incrementar programas de ação médica, psicológica e social, como o de distribuição de seringas descartáveis e

disponibilização de locais higienizados de consumo, destinados a reduzir os danos à saúde dos consumidores, particularmente a transmissão do HIV e da hepatite; (i) estabelecer políticas de ação médica, psicológica e social nas zonas de risco, de forma a realizar aproximação com os grupos vulneráveis; (j) instituir programas de distribuição de metadona e outros fármacos análogos para dependentes previamente cadastrados, proporcionando

o

acompanhamento

dos

especialistas

no

processo de desintoxicação; (l) oferecer estratégias de aproximação do usuário com o mercado de trabalho e a rede de ensino, bem como com associações de voluntariado, comunidades de acolhimento e ONGs; (m) limitar o consumo a determinados locais e ao domicílio – “o consumo teria que se submeter a limitações, restringindo-se, ou mesmo vedando-se, o uso em lugares públicos de determinadas drogas mais danosas, a exemplo do que, hoje, se começa a fazer em relação ao tabaco”; 301 (n) restringir o comércio de drogas aos locais autorizados pela

vigilância

sanitária

autoridades competentes;

e

submetidos

ao

controle

das

(o) estabelecer condições de controle sobre a venda de substâncias com maior tolerabilidade social como álcool e cigarro e, em especial, reduzir as possibilidades de comercialização de solventes; (p) proibir a veiculação de qualquer tipo de publicidade sobre entorpecentes, inclusive álcool e tabaco; (q) estabelecer sanções administrativas ao consumo em locais proibidos que impliquem a apreensão da drogas (e não do usuário), aliadas à suspensão de determinados direitos (v.g. condução de veículos, porte de armas, multas); e (r) prever, em caso de manutenção da criminalização do comércio e da produção de determinadas drogas, figuras típicas privilegiadas ou autônomas do tráfico com penas reduzidas, ou ainda de causas de diminuição de pena (atenuantes ou minorantes), em caso de produção eventual ou de comércio esporádico ou de pequena quantidade, facultando institutos com a transação penal e a suspensão condicional do processo, evitando-se os danos advindos do encarceramento. As proposições de redução de danos apresentadas procuram, a partir da ruptura com os discursos de pânico que veem nas políticas descriminalizadoras incentivos ao consumo, afastar a incidência lesiva da intervenção penal. Sustentam-se, fundamentalmente, na ruptura com a fantasia da solução penal, conforme ensina Maria

Lúcia Karam. A enunciação de programas mínimos de redução de danos objetiva, em última análise, evitar a transformação do tóxicodependente em tóxico-delinquente. Descriminalizar, portanto, “não significa liberalizar. Ao contrário, descriminalizar implica em abrir espaços para a criação de mecanismos não penais de controle sobre a produção, a distribuição e o consumo de drogas, eliminando um sistema contraproducente e de graves efeitos negativos, em prol da intervenção de outros instrumentos, menos perniciosos e mais adequados, na busca de caminhos mais racionais e mais eficazes para tratar essa questão”. 302

9.7. Alternativas e Práticas de Redução de Danos: a Experiência da Prescrição de Heroína Inúmeras práticas estão associadas aos fundamentos e às políticas de redução de danos. As ações envolvem desde projetos educativos de informação sobre os riscos aos consumidores e acolhimento de dependentes em locais de tratamento à distribuição de materiais esterilizados para consumo. Em sua intervenção mais incisiva, compreende a própria prescrição de drogas (substitutivas ou não) para dependentes como forma de reinserção social e melhoria de sua qualidade de vida.

As experiências com a prescrição de metadona foram implementadas em inúmeros países, com distintas características e resultados. Em geral, ocorreram durante a década de 1980 com o advento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA), embora as primeiras manifestações teóricas remetam ao início do século passado. O marco no reconhecimento das políticas ocorreu nas I e III Conferências Internacionais de Redução de Danos (1990 e 1992). 303 É possível destacar duas ações principais na fase inicial de implementação de políticas de redução de danos: (a) distribuição de material higiênico para o consumo de drogas (p. ex., agulhas e seringas descartáveis); e (b) criação dos programas de prescrição de metadona. Os programas de prescrição de metadona, direcionados para dependentes

de

heroína,

visavam

retirar

os

usuários

da

marginalização, de forma a facilitar gradual desintoxicação. Junto à assistência médico-social, os dependentes, após cadastro, recebiam doses diárias gratuitas de metadona para consumo em locais predeterminados, inicialmente identificados como narcossalas. O objetivo central, além de promover contato do dependente com a rede pública de saúde e instigar processo de abandono da dependência pelo acompanhamento psicossocial, era retirar o consumidor periódico de ambientes insalubres e marginais. O

consumo de substâncias com qualidade controlada e em locais adequados diminuiria a possibilidade de aquisição de doenças infectocontagiosas (v.g. hepatite e SIDA), bem como de intoxicações graves e overdoses, normalmente ocasionadas pela alteração da concentração do princípio ativo na droga adquirida e não pelo aumento da quantidade consumida em razão de aquisição de resistência,

como

normalmente

divulgado.

Ademais,

a

não

permanência em áreas de risco e a ausência de necessidade de aquisição da droga restringiriam dois processos de intervenção penal: o processo de criminalização secundária, ocasionado normalmente pela prática de delitos patrimoniais para aquisição da droga, e/ou o de vitimização, gerado pela própria permanência em ambientes de risco. Apesar dos relativos sucessos com os programas de metadona, o reconhecimento de ser a droga experiência prazerosa na vida de usuários eventuais e de dependentes possibilitou verificar a limitação do alcance desta política redutora. Sobretudo a partir da análise dos índices de abandono do tratamento, constatou-se a ineficácia de a metadona “disputar” o prazer do uso com a heroína. Importante lembrar, conforme elucidam Riley e O’Hare, que a análise pragmática (e não idealista ou idealizada) do consumo de droga é fundamental e serve como princípio de orientação das práticas redutoras, pois “o uso de determinadas substâncias para

alteração da consciência é inevitável e certo nível de consumo de drogas é normal em uma sociedade, motivo pelo qual muitas vezes é mais factível conter os danos do que tentar eliminar as drogas”. 304 Desde esta perspectiva, a partir de 1992, a Suíça lançou, de forma inédita, programa governamental de subministração de heroína para dependentes severos da droga – Heroin-Assisted Treatment (HAT). O Conselho Federal suíço autorizou que em casos de grave dependência, haveria possibilidade de órgãos estatais relacionados à saúde prescreverem e ministrarem heroína aos seus pacientes. Após a aprovação, o programa foi autorizado por Comissão de Ética, sendo criadas oitocentas vagas que iniciaram a atividade em janeiro de 1994, recebendo pacientes até julho de 1996. A partir desta data, não foram inscritos novos pacientes, persistindo os serviços apenas aos dependentes em tratamento. 305 Assinalam Killias, Aebi e Ribeaud que a Suíça deteve, durante a década de 1990, as taxas mais elevadas de dependência em drogas pesadas, sobretudo heroína, da Europa ocidental. Em razão deste problema de saúde pública, foi adotada política baseada em quatro áreas de intervenção: prevenção, terapêutica, repressão e redução de riscos (política dos quatro pilares). A nova estratégia, totalmente distinta da política repressiva em vigor até o final da década de 1980, inicia com a distribuição de agulhas estéreis.

Segundo os autores, apesar de o tema ter sido muito contestado pela opinião pública, “permitió reducir drásticamente el número de nuevas infecciones del vírus HIV entre los toxicómanos”. 306 O efeito imprevisto da distribuição de agulhas foi a concentração de dependentes nas cidades que ofereciam assistência, criando o que foi conhecido como parques de agulhas (needle parks). A concentração de usuários resultou no aumento da delinquência urbana “debido en gran parte al accionar de ciertos toxicómanos en estado muy avanzado de dependencia que recurrían al robo para financiar su adicción”. 307 Ademais do fechamento dos parques em face da diminuição da qualidade de vida da população, relatam os pesquisadores que “los estudios realizados mostraban que, a pesar de la represión, los indicadores de la toxicomanía no cesaban de aumentar, mientras que los tratamientos prolongados con metadona – preconizados también por la reducción de riesgos – permitían mejorar las condiciones de vida, la salud, y la integración socioeconómica de los pacientes, pero no eran adecuados para algunos toxicómanos”. 308

A

constatação

desta

realidade

permitiu

aproximar-se de acordo político para implementação da política de prescrição de heroína aos dependentes. As condições de admissão estabelecidas para ingresso no programa eram, em ordem de importância, (a) idade mínima de 20 anos, (b) histórico de envolvimento com heroína superior a dois

anos, (c) presença de danos físicos e/ou sociais associados ao consumo de drogas e (d) mínimo de duas tentativas falhas de abandono do vício por métodos convencionais. 309 Foram criados 18 centros de prescrição nas principais cidades suíças, nos quais eram fornecidas doses de heroína aos dependentes mediante assistência médica, psicológica e social. Após os primeiros contatos do paciente com os médicos, é estabelecida a quantidade de dose diária a ser ministrada no caso particular. O tratamento é ambulatorial, em clínicas com capacidade máxima de 150 usuários, e o paciente desloca-se, de uma a três vezes diárias, ao centro previamente habilitado onde recebe e injeta a droga. Não é permitida aplicação fora do centro de atendimento e, em caso de necessidade de viagem ou situações similares, o paciente recebe o equivalente em metadona. Os relatórios de análise dos programas do Departamento Federal de Saúde Pública demonstram que os pacientes do programa tinham em média 30 anos de idade e histórico de 10 anos de uso de heroína; 87% haviam sido condenados ao menos uma vez, sendo a média de 8 condenações por usuário dos serviços dos centros; mais da metade havia sido presa ao menos uma vez. Dados adquiridos voluntariamente em entrevistas indicavam que 70% haviam se envolvido em delitos nos 6 meses anteriores à

admissão no tratamento, mais de 50% envolvidos em tráfico de drogas, 40% em furtos e 10% em roubos. 310 Conforme destacado, o objetivo da implementação do programa era o de que “mediante el suministro de heroína, acompañado de una asistencia médica, psicológica y social, se intenta mejorar el estado de salud de las personas tratadas, eliminar el estado de tensión provocado por la necesidad de procurarse cotidianamente el dinero necesario para adquirir la droga, y facilitar la reinserción social”. 311 O programa foi objeto de inúmeras avaliações sobre aspectos médicos, econômicos e sociais. Das análises de resultados mais relevantes à investigação, destacam-se aquelas realizadas nos campos médico-social e criminológico, a partir da comparação de dados anteriores e posteriores à implementação do projeto. Dentre os principais temas nas respectivas áreas de investigação podem ser destacados: (a) área médica, social e psiquiátrica: estudo da evolução da qualidade da saúde e das condições sociais e de trabalho dos pacientes submetidos aos programas; (b) área criminológica: verificação de ocorrências e de participação dos pacientes em eventos criminais – na qualidade de autores ou vítimas – e comparação de dados sobre aumento/diminuição nas taxas de criminalidade das cidades.

Não obstante estudos específicos realizados em pequenos grupos aleatoriamente eleitos possibilitaram comparações entre os programas de prescrição de heroína e os de metadona. Nestes casos, as pesquisas objetivaram questionar se a subministração de heroína (a) seria mais eficaz no recrutamento de dependentes, particularmente daqueles que obtiveram experiências de reabilitação frustradas no passado; (b) se estabeleceria melhores condições de tratamento (p. ex. menor incidência de uso de drogas adicionais); e (c) se as taxas de abandono seriam menores. 312 A avaliação na área criminológica foi delegada ao Institut de Police Scientifique et de Criminologie (IPSC) da Universidade de Lausanne, que apresentou importantes resultados quanto à validade do programa. Em termos gerais, Eisner e Killias, em relatório sobre a situação da pesquisa criminológica na Suíça apresentado à Sociedade Europeia de Criminologia em 2004, destacam que “os resultados demostraram que o tratamento com heroína é mais eficiente que as demais alternativas [referindo-se, principalmente, aos programas de metadona] para motivar os tóxico-dependentes para participar, permanecer e respeitar as regras do tratamento, bem como para abandonar a prática de delitos”. Ademais, “os resultados mostraram queda na vitimização e na prática de delitos entre os consumidores de droga que receberam heroína prescrita, queda muito superior à percebida nos tratamentos tradicionais”. 313

Em termos específicos, os indicadores de violência, em todos os níveis (criminalidade primária, secundária e vitimização), mostraram-se em declínio. O IPSC realizou estudos de evolução de prevalência (porcentagem de pessoas que praticaram delitos) e de incidência (número médio de delitos cometidos por pessoa), mediante comparação entre os delitos praticados antes e depois da admissão no programa. As técnicas de obtenção de dados foram a partir de análise de condenações penais, contatos com a polícia e entrevistas de vitimização e de delinquência autorrevelada. Inúmeros

estudos

foram

publicados

indicando

a

estrutura

metodológica e a teoria criminológica orientadora, nos quais são apontados, em todos os indicadores, importante decréscimo de incidência e prevalência delitivas, 314 redução do contato conflitivo com a polícia 315 e diminuição no consumo geral de drogas – inclusive não opioides, como cocaína 316 –, fato que indicou alteração na demanda e impacto no mercado ilícito de substâncias entorpecentes. 317 Para Aebi, Killias e Ribeaud, “la evolución criminológica pone de manifiesto que la prescripción de heroína conduce a una reducción impresionante de las conductas delictivas de las personas tratadas. A partir de la entrada en el programa se reduce el porcentaje de personas que cometen delitos y, de manera aún más importante, la cantidad de delitos cometidos. Estos resultados son

confirmados por todos los indicadores de la delincuencia utilizados que comprenden los registros de policía, las condenas penales y las encuestas de delincuencia autorrevelada. De manera global, la cantidad de delitos registrados por la policía se reduce a una proporción largamente superior al 60% y las condenas penales disminuyen en un 80%. En particular, tanto los registros policiales como las encuestas de delincuencia autorrevelada indican una disminución extremadamente importante de los delitos contra la propiedad y del tráfico de drogas”. 318 Outrossim, relatam os autores que, através das pesquisas de vitimização, houve substancial mudança no estilo de vida dos participantes, que constituíam, invariavelmente, grupo marginalizado da população antes de entrar no programa. Os indicadores socioeconômicos e de saúde são amplamente favoráveis e, ao contrário dos programas com metadona, o índice de abandono é relativamente baixo, “lo que de por sí constituye un éxito dado que uno de los principales problemas que presenta esta categoria de toxicómanos

es

la

falta

de

motivación

para

continuar

el

tratamiento”. 319 A diminuição no nível geral da criminalidade urbana patrimonial permitiu, segundo as análises, melhorar a qualidade de vida da população em cidades gravemente afetadas pelo problema da toxicomania, com redução, inclusive, dos custos da administração

da justiça pela diminuição do número de processos criminais e contração do tempo médio de condenação. Em comparação com os programas de metadona, além do menor índice de abandono, todos os demais indicadores foram vantajosos. Ocorre que, apesar de os programas de metadona igualmente apresentarem resultados positivos, o projeto de prescrição de heroína demonstrou eficácia superior, sobretudo pela maior adesão, comprometimento e motivação do paciente com o programa. 320 Os resultados amplamente satisfatórios da experiência suíça fomentaram a implementação de programas de prescrição de heroína em diversos países da Europa e da América do Norte. O objetivo destes programas foi avaliar a utilidade da prescrição de heroína em dependentes severos de opioides, mormente pelo fato de se estimar cerca de 1,5 milhão de usuários problemáticos de heroína na Europa, segundo dados do European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (EMCDDA). 321 Outrossim, associado ao uso problemático da droga, havia constatação de grande incidência de contaminação por doenças infectocontagiosas, morte prematura por overdose, envolvimento com delitos, entre outras situações de risco. Dentre

as

principais

experiências

em

programas

de

subministração de heroína, destacam-se os conduzidos no Canadá,

Alemanha, Holanda, Espanha e Reino Unido – em sua integralidade inspirados no projeto inovador da Suíça. Estudo comparativo realizado por centros de investigação que monitoraram os processos de implementação e de desenvolvimento dos projetos de redução de danos nos referidos países 322 apresentaram as seguintes conclusões: (a) a dependência de heroína ocorre em distintas situações da vida cotidiana e as intervenções necessitam ser adequadas às circunstâncias culturais para obter relevância política e prática; (b) os estudos demonstraram que, em diferentes contextos, a implementação de programas de prescrição de heroína foi exequível, efetiva e segura como intervenção terapêutica; (c) os programas de prescrição de heroína atingiram resultados positivos em vários indicadores relacionados à população de alto risco (dependentes de heroína) cujos tratamentos disponíveis não se apresentam eficazes; e (d) os programas demonstram ser opção viável para casos nos

quais

as

intervenções

terapêuticas

tradicionais

não

apresentaram resultados positivos. Por fim, estudo desenvolvido na Alemanha pelos centros de investigações criminológicas e de pesquisa em dependência das

Universidades de Hanover e de Hamburgo comparou grupos de dependentes que participavam dos programas de prescrição de metadona e de heroína. Os resultados apresentados foram semelhantes aos expostos pelos pesquisadores da Suíça, indicando diminuição de incidência criminal entre os indivíduos em tratamento em ambos os programas. Ocorre que índices superiores e de redução significativa foram apresentados por integrantes dos programas de prescrição de heroína, sobretudo em relação aos crimes patrimoniais e relacionados diretamente às drogas. Ademais, concluiu-se que os resultados alcançados foram derivados de diminuição do consumo de drogas ilícitas e, fundamentalmente, da abstenção de frequência nos locais de venda e consumo. 323

9.8. Proibicionismo e Redução de Danos: Incompatibilidades Apesar

das

reservas

quanto

à

fundamentação

teórica

apresentada por alguns autores que analisaram os projetos redutores – sobretudo pela discordância em relação ao necessário vínculo estabelecido entre as teorias situacionais do desvio e as políticas de redução de danos 324 –, é inegável a conclusão de serem substancialmente positivos os resultados apresentados por experiências como as de prescrição de heroína para tratamento de dependentes severos.

Se as ações públicas de redução de danos apresentam notórias vantagens em relação aos programas político-criminais que priorizam a repressão, diminuindo os custos da criminalização em todas as esferas (áreas da saúde pública e privada, da administração da justiça, socioeconômica, laboral e educacional), importa analisar as resistências que devem ser rompidas para que se possa ultrapassar a lógica punitivista. Neste aspecto, algumas questões merecem destaque. A primeira delas diz respeito à ruptura com os binômios usuário-dependente e dependente-delinquente. Isto porque a relação de cada pessoa com diferentes tipos de drogas é distinta, sendo impossível estabelecer padrões de comportamento e nexos de causalidade deterministas. As interações individuais e culturais com as drogas são complexas e as simplificações em busca de fórmulas resolutivas invariavelmente produzem mais danos que os riscos derivados do consumo de entorpecentes. Neste aspecto, retomar as lições de Becker é imprescindível: “Ao perceber o desvio como ação coletiva a ser investigada em todas as suas dimensões, como qualquer outra forma de atividade coletiva, notamos que o objeto do nosso estudo não é o ato isolado cuja origem devemos descobrir. Ao contrário, o ato que se alega ter ocorrido, quando ocorreu, se situa em uma rede complexa de atos que envolvem

outros, assumindo parte desta complexidade em razão da maneira como distintas pessoas e grupos o definem”. 325 Assim como é falsa a correlação entre uso e dependência, a associação dependência e crime é equivocada, representando simplificação

do

problema.

E

situações

complexas

exigem

problematizações e respostas complexas. Rebecca Löbmann e Uwe Verthein demonstram que diferentes teorias intentam explicar, com base em dados empíricos, a correlação entre uso de droga e delito. De acordo com os modelos econômico-motivacionais,

os

delitos

resultam

da

vontade/necessidade de obtenção da droga; linhas teóricas diversas associam o uso de drogas a estilos de vida desviantes precedidos de prática de crimes; teorias ecológicas enfatizam as condições ambientais que influenciam tanto o crime quanto o consumo de drogas. Todavia, as pesquisadoras expõem com precisão que “nenhuma destas influências são determinantes. Existem grupos de usuários de drogas ilegais que não se tornam delinquentes. Além disso, não é provável que diferentes fatores afetem uns aos outros. Por outro lado, poucos indicadores sustentam a hipótese de que a dependência severa torna usuários de drogas agressivos e impulsivos, de modo a impulsionar práticas delitivas. Assim, a relação entre uso de drogas e comportamento criminoso irá variar conforme o indivíduo, a biografia, a situação e o tempo”. 326

No mesmo sentido, se a interação entre determinada droga e seu usuário é ímpar, o impacto dos distintos tipos de tratamentos deverá ser analisado de forma particularizada. No entanto, o que parece ser relevante nos programas de redução de danos é o elemento de voluntariedade e a interação que se exige entre o paciente e o seu tratamento. Diferente dos modelos fundados sob a lógica proibicionista, abdica-se do ideal de abstinência e de cura, invariavelmente impostos pela coação, com a redução do dependente à condição de incapaz de compreender a situação na qual está envolvido. Os programas de redução de danos pressupõem estar o usuário de drogas implicado positivamente no processo de reabilitação, estando este objetivo no seu horizonte de desejo. A segunda questão decorre da condição de diálogo e do espaço de escuta e de fala ínsitos às práticas redutoras. Para além da euforia estatística que os dados sobre os programas de redução de danos podem induzir, notadamente os de prescrição de heroína, as políticas públicas apresentadas avançam na criação de espaços de diálogo horizontalizados que rompem com o modelo punitivo hierarquizado próprio das práticas das agências de punitividade. O pano de fundo que informa os projetos redutores é, essencialmente, o da superação da racionalidade moralizadora, que fundamenta as políticas proibicionistas de natureza inquisitória

marcadas para redução do outro a mero objeto de intervenção. Esta forma inquisitória de gerir a justiça penal, sobretudo nos países de tradição romano-germânica, caracteriza-se pela subtração do direito de

as

pessoas

consideradas

desviantes

intervirem

no

encaminhamento da solução derivada da conduta imputada moralmente como inadequada. Seja em termos de punição ou de tratamento, a resposta inquisitória à prática do desvio punível é vertical, hierárquica e coativa, à qual o implicado simplesmente se submete, não interage. As propostas de redução de danos, ao contrário, pressupõem a participação ativa do destinatário do programa, não submetendo o tratamento à lógica coercitiva. Terceiro ponto que requer análise atenta é o relativo à transposição do proibicionismo moralizador pela postura ética de reconhecimento e de respeito à alteridade. A determinação governamental de que órgãos e agências de saúde pública forneçam aos consumidores problemáticos a substância (ilícita ou controlada) que aparentemente é a causa do problema, implica a radical aceitação do direito e da autonomia das pessoas sobre suas vidas – sobre seus corpos, nas palavras de Szasz –, abdicando da exigência de que partilhem ou adotem valores morais aos quais, em determinado espaço-tempo, se atribui universalidade.

Percebe Janine Ribeiro que “no fundo, se eu decido reduzir os danos, em vez de impor ao outro os meus valores morais, não é por preguiça nem por complacência. É porque percebo que não dá para ter uma única visão de mundo. E neste sentido a redução de danos deixa de ser, apenas, a busca de um mal menor. Deixa de ser a renúncia ao bem. Torna-se, isso sim, a renúncia ao bem propriedade privada minha, à minha pretensão de ser dono da verdade. E é bom para a sociedade que as pessoas não queiram ter, sozinhas, toda a razão”. 327 Outrossim, a quarta questão, e provavelmente a mais polêmica e de difícil superação, decorrente das anteriormente apresentadas, é relativa à aceitação do prazer de consumir droga. É notório nas descrições sobre a alta motivação e as baixas taxas de abandono dos programas de prescrição de heroína em comparação aos de metadona que se está perante duas opções: reconhecer e respeitar o desejo que o usuário tem ao consumir entorpecentes ou subtrair o desejo e impor ideal de abstinência fundado na impossibilidade do prazer. As práticas redutoras permitem atuar transvalorando os valores morais que sustentam o proibicionismo. Ao não negar o desejo e o prazer que as pessoas têm no consumo de drogas, espaço de aproximação e de diálogo é criado, permitindo, através de políticas

de saúde pública, que danos maiores sejam minimizados em decorrência desta opção do usuário. Em última análise, importa abandonar a lógica moralizadora que permeia a tradição criminalizadora, motivo pelo qual são notórias as incompatibilidades entre as ações de redução de danos e as políticas criminais proibicionistas.

10. A INSTRUMENTALIDADE DO DISCURSO GARANTISTA E A CRÍTICA CONSTITUCIONAL AO DIREITO PENAL DAS DROGAS 10.1. Mudança de Perspectiva: da Crítica Criminológica à Instrumentalização Garantista A análise realizada durante a investigação é alterada, significativamente, neste momento. O objetivo anterior foi apresentar o desenvolvimento e a edificação do discurso criminalizador e, ato contínuo,

desde

a

perspectiva

criminológica,

apresentar

contradiscurso antiproibicionista, isto é, realizar o percurso políticocriminal e criminológico de construção e desconstrução do direito penal das drogas. As Partes I e II, portanto, estão fortemente marcadas pela avaliação extradogmática. A criminologia (crítica) e a política criminal (alternativa), neste sentido, representam espécie de consciência dogmática, permitindo sair das entranhas do discurso penal para avaliar a legitimidade da intervenção dos aparatos de punitividade no âmbito das drogas e diagnosticar os danos provocados. Contudo, se “a investigação criminológica não obedece a um único princípio nem se atém a métodos que possam ser

enclausurados

em

uma

única

perspectiva”, 328

diferente

procedimento ocorre desde dentro do discurso jurídico-dogmático. Desta forma, opera-se radical câmbio de perspectiva, orientado, porém, pela mesma ideia de redução dos danos causados pelos processos de criminalização. Se no desenrolar da investigação foram solidificados os pressupostos teóricos e empíricos de negação do discurso punitivo no âmbito dos entorpecentes, a partir de agora o objetivo passa a ser a instrumentalização garantista, desde a dogmática penal, de atuar forense comprometido com a efetividade da Constituição. São perspectivas discursivas diversas, mas complementares, indicando a possibilidade de efetivação de novo modelo integrado de ciências criminais, não no sentido auferido por Liszt, mas orientado (a) pelos avanços e pela irreversibilidade das conclusões efetivadas pelos pesquisadores do paradigma da reação social, (b) pela densificação do debate e pelo direcionamento político fornecido pelos autores da crítica

criminológica

(criminologia

da

práxis)

e

(c)

pelo

desenvolvimento de ferramentas de abertura do sistema punitivo a partir do paradigma do direito penal de garantias. O entrelaçamento das

ideias

da

Criminologia

Crítica,

das

políticas

criminais

alternativas (direito penal mínimo) e do garantismo penal possibilita pensar na construção de modelo integrado crítico de ciências criminais para o terceiro milênio, cuja finalidade, única e exclusiva, é

desenvolver ações comprometidas com a redução dos danos ocasionados pelo incremento da punitividade. A dogmática penal crítica a seguir desenvolvida, inserida no interior do discurso garantista, intenta explorar as lacunas, as antinomias e as contradições da nova Lei de Entorpecentes para, desde o plano constitucional, filtrar os excessos punitivos. Para tanto, a investigação explorará as potencialidades da produção teórica no campo do direito penal e do direito processual penal das drogas,

utilizando

ao

máximo

as

aberturas

jurisprudenciais

encontradas na vigência da Lei 6.368/76, no sentido de fornecer, ao operador do direito, ferramenta útil de atuação no cotidiano forense.

10.2. A Constituição Penal entre os Crimes Hediondos e os Delitos de Menor Potencial Ofensivo Delineou-se o conceito de Constituição Penal 329 para demarcar as opções no âmbito do direito penal e processual penal realizadas pelos constituintes de 1987, as quais se diferenciam nitidamente da tradição histórica do constitucionalismo brasileiro. A constante dos textos constitucionais em matéria de direito penal e processual penal, até o advento da Constituição de 1988, era restringir a intervenção, ou seja, o escopo era demarcar rígidos limites de incidência do poder punitivo através de normas e princípios negativos, seguindo a tradição liberal de tutela dos

direitos e garantias individuais. No entanto, a presença de normas com projeção incriminadora na Carta Constitucional de 1988 (Constituição Penal dirigente) redimensiona a estrutura do direito penal, estabelecendo verdadeiros paradoxos, notadamente o da coexistência de normas garantidoras (limitativas) e de normas incriminadoras (projetivas) em único estatuto. Se comum na doutrina constitucional a crítica à inefetividade do dirigismo constitucional no que tange à salvaguarda dos direitos econômicos, sociais e culturais (DESCs), em matéria penal este diagnóstico é parcial e impreciso. Inegavelmente ainda há enorme déficit entre o direito penal e processual penal e os comandos da Constituição. Todavia, esta falta de harmonização ocorre apenas em relação às normas que fixam direitos e garantias individuais – normas e princípios constitucionais limitativos. No que tange às cláusulas

incriminadoras

(dirigismo

penal)

percebe-se

movimentação inversa, ou seja, há total adaptação, quando não o extravasamento das barreiras possíveis, da legislação ordinária às normas constitucionais punitivas. Dentre as inúmeras normas constitucionais programáticas em matéria penal (cláusulas de criminalização/penalização), chamam atenção aquelas inseridas no Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais),

fundamentalmente

porque

na

história

do

constitucionalismo este locus caracterizou-se como espaço de estabelecimento

dos

limites

do

poder

punitivo

do

Estado.

Maximizou-se o espectro de incidência do direito penal aos atos de discriminação (art. 5º, XLI); à prática de racismo (art. 5º, XLII); aos crimes hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e ao terrorismo (art. 5º, XLIII); à ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado de Direito (art. 5º, XLIV). Neste local da Constituição coabitam, portanto, normas distintas com funções igualmente diferenciadas. Especificamente em relação ao tráfico ilícito de entorpecentes, a Constituição determina sua equiparação aos delitos hediondos, estabelecendo a impossibilidade de fiança, graça e anistia, bem como a responsabilização criminal dos mandantes, executores e aos que, podendo evitar a prática do crime, se omitirem (art. 5º, XLIII). Delineia a Constituição, portanto, o máximo grau de resposta punitiva no sistema de direito e de processo penal brasileiro com a adjetivação de nova espécie de delito – crime hediondo, regulamentado posteriormente pela Lei 8.072/90 –, estendendo seus efeitos ao comércio ilegal de drogas, à tortura e ao terrorismo. No

entanto,

paralelamente

à

definição

das

condutas

consideradas mais graves no sistema punitivo nacional, os constituintes, ao tratarem da organização do Poder Judiciário, nominaram as infrações penais de menor potencial ofensivo,

direcionando-lhes o mínimo da resposta penal, consequência da previsão de procedimento oral e sumaríssimo e a permissão da transação penal (art. 98, I). Nota-se, pois, na definição dos polos opostos da resposta penal, as múltiplas facetas do dirigismo constitucional, sendo impossível tratar a Carta da República de 1988 como conjunto harmônico e coerente dotada de unidade discursiva. O

legislador

ordinário,

ao

obedecer

aos

comandos

constitucionais, definiu, na conceituação de Lenio Streck, 330 hard (crimes hediondos) e soft crimes (crimes de menor potencial ofensivo), elaborando dois estatutos autônomos: a Lei 8.072/90 e a Lei 9.099/95. No entanto, apesar de derivadas da mesma origem (Constituição), os critérios utilizados para definição dos crimes hediondos e das infrações de menor letalidade foram absolutamente diversos. Como mencionado anteriormente, a Lei 9.099/95 dispôs como infrações de menor potencial ofensivo aquelas condutas cuja pena máxima prevista abstratamente não ultrapassasse 1 (um) ano. 331 Assim, determina em seu art. 61 o processamento e o julgamento no âmbito dos Juizados Especiais Criminais (JECs). Paralelamente, avançando no comando constitucional, a lei criou o instituto da suspensão condicional do processo, igualmente utilizando como referencial à quantidade de pena. Definiram-se, pois, como crimes

de médio potencial ofensivo aqueles nos quais a pena mínima cominada fosse igual ou inferior a 1 (um) ano, possibilitando, na esfera dos juizados comuns, a suspensão do processo de conhecimento mediante o cumprimento de determinadas condições (art. 89, Lei 9.099/95). Posteriormente, com o advento da Lei 10.259/01, que instituiu os JECs no âmbito da Justiça Federal, o critério da menor potencialidade delitiva foi ampliado para os crimes aos quais a pena máxima prevista não fosse superior a 2 (dois) anos, ou multa (art. 2º). Com a Lei 11.313/06, o patamar foi universalizado para ambas as esferas de competência (Justiça Estadual e Justiça Federal), embora a jurisprudência, a partir de 2001, admitisse esta equivalência. Ao definir os delitos hediondos, o redator da Lei 8.072/90 optou por critério diferenciado, enumerando taxativamente, desde a gravidade da lesão ou da reprovabilidade do fato, as condutas que conformariam esta classe delitiva (art. 1º, Lei dos Crimes Hediondos). Com a nova categorização e hierarquização dos crimes a partir da Constituição de 1988, as principais condutas incriminadas pela Lei de Drogas, assim como o eram na Lei 6.368/76, são dicotomizadas nos polos opostos da resposta penal. Se havia, desde a publicação do texto constitucional, a equiparação do comércio ilegal de entorpecentes aos crimes hediondos (hard

crimes), o porte de drogas para consumo, na vigência da Lei 6.368/76, assumia, com o advento da Lei 9.099/95, característica de crime de médio potencial ofensivo, sendo possibilitada a suspensão condicional do processo. A partir da Lei 10.259/01, com a chancela da jurisprudência e posteriormente com as Leis 11.313/06 e Lei 11.343/06 (art. 48, §1º), ocorre sua inclusão formal e explícita no rol dos crimes de menor potencial ofensivo (soft crime), com processamento perante os Juizados Especiais Criminais, sendo facultada ao autor do fato a transação penal pré-processual. Percebe-se,

portanto,

que

os

crimes

relativos

aos

entorpecentes, notadamente o comércio ilegal e o porte para uso próprio, oscilam entre o máximo e o mínimo da resposta punitiva. O movimento criminalizador pendular, porém, em casos relevantes e muito comuns no cotidiano forense, é definido por circunstâncias nebulosas, de baixa perceptividade e de difícil comprovabilidade, motivo pelo qual é fundamental estabelecer rígidos critérios de definição.

10.3. A Estrutura da Lei no Direito Penal das Drogas e os Efeitos da Descodificação: Lei Penal em Branco e Tipicidade Aberta A descodificação penal no Brasil ganha seu principal impulso com a edição da Lei 6.368/76. A partir deste marco, redefine-se a própria técnica legislativa empregada no processo de esvaziamento

do direito penal e processual penal codificado. Nota-se, como característica da técnica legislativa utilizada no direito penal póscodificação, a constante utilização de preceitos em branco, de tipos penais vagos e de qualificações genéricas de condutas, sob a justificativa de que permitiriam maior flexibilidade, proporcionando mecanismos de atualização e sintonia do sistema punitivo com os avanços tecnológicos, mormente aqueles ocorridos no campo da produção de drogas ilícitas. Se na estrutura da Lei 6.368/76 havia (a) a utilização de lei penal em branco – v.g. substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, (b) o uso constante de tipos penais isentos de precisão semântica e dotados de elaborações genéricas – v.g. expressões como de qualquer forma (art. 12) ou prescrever dose superior evidente (art. 15) e (c) a proliferação abusiva de verbos nucleares do tipo para caracterização do injusto penal; com a publicação da Lei 11.343/06, o cenário não apenas é mantido como reforçado. A expressão caracterizadora da lei em branco é substituída pelo gênero drogas; permanecem expressões genéricas e imprecisas (tipos penais abertos) – v.g. “utiliza[r] local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas”

(art. 33, § 1º, III); “prescrever ou ministrar, culposamente, drogas, sem que delas necessite o paciente, ou fazê-lo em doses excessivas

ou

em

desacordo

com

determinação

legal

ou

regulamentar” (art. 38) –; e não há alteração na forma pluriverbal das incriminações – v.g. os arts. 28 e 33, correspondentes aos arts. 16 e 12 da Lei 6.368/76. Inegável, portanto, a constância do horizonte maximizado de incriminação, circunstância potencializada pela fragmentação e autonomia do direito penal das drogas dos estatutos penais. Percebe-se, no processo histórico, como consequência direta da descodificação, a conversão das leis especiais em direito penal de diferenciado valor. Formam-se microssistemas jurídicos nos quais os rígidos princípios da lei codificada são flexibilizados, quando não absolutamente ignorados, acentuando rupturas com a base garantista do direito penal, conforme diagnostica Zaffaroni: “La legislación penal latinoamericana padece de un mal endémico, que son las ‘leyes penales especiales’, cuya proliferación acarrea un enorme componente de inseguridad jurídica”. 332 Os artigos-base dos preceitos incriminadores da Lei 11.343/06 incorporam na estrutura do direito penal das drogas estes efeitos da descodificação. Junto à proliferação de condutas pela previsão de inúmeros verbos nucleares é exposta a necessidade de preceitos em branco – “para fins do disposto no parágrafo único do art. 1º

desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada

no

preceito,

denominam-se

drogas

substâncias

entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS n. 344, de 12 de maio de 1998” (art. 66). Apesar de a nova Lei de Drogas não avançar em relação ao art. 36 da Lei 6.368/76, 333 ao menos restou imune o sistema normativo de critérios absolutamente indefinidos como os do Decreto-Lei 385, que conferia competência definitória da capacidade lesiva da substância ao laudo toxicológico. Se a técnica dos preceitos em branco gera profunda crise no sistema de legalidade constitucional ao permitir que o órgão executivo estabeleça o conteúdo formal do tipo penal, inegável ser mais gravoso o modelo que delega a base da incriminação à perícia técnica. A lei penal em branco é caracterizada por preceitos incompletos que

requerem

preenchimento

por

terceiros

dispositivos,

normalmente de cunho extrapenal (administrativo). Conforme leciona Juarez Cirino dos Santos, “as leis penais em branco são tipos penais que necessitam de um complemento, proveniente de atos do Poder Executivo, e que, pela natureza, é variável no tempo e no espaço”. 334 A parte integradora do tipo não segue, portanto, o rigoroso procedimento de criação da lei penal. Contudo, produz os mesmos efeitos incriminadores. 335

A morosidade na formulação legislativa para viabilizar a proteção de bens jurídicos em condutas que se caracterizam pela constante alteração na forma de lesão (v.g. delitos ambientais, criminalidade

genética,

crimes

informáticos,

criminalidade

econômica, entre outros) legitimou o recurso às leis em branco. Para justificar a ruptura no modelo de legalidade desenvolveu-se a teoria da reserva legal relativa em detrimento da reserva legal absoluta (Mantovani). 336 Como ensina Nilo Batista, a tese da reserva legal absoluta aufere

legitimidade

democrático

debate

apenas

às

leis

parlamentar,

penais

ou

seja,

resultantes

do

somente

os

procedimentos legislativos teriam idoneidade para formular crimes e cominar penas. 337 Sua relativização flexibiliza o monopólio legislativo

em

matéria

penal

(art.

22,

I,

CR),

admitindo

complementações advindas de esfera diversa da via institucional competente. Assim, o Legislativo seria responsável apenas pela delimitação de diretrizes gerais a serem seguidas pelos demais órgãos de Estado. Embora seja nítida a irreversibilidade desta técnica no direito penal contemporâneo, sobretudo no direito penal das drogas, não se pode olvidar que o Legislativo, em que pese suas falhas, continua a ser o local idôneo e democrático para produzir tipos penais que destituirão do cidadão sua liberdade.

Outrossim, percebe-se que a flexibilização do princípio da legalidade, por menor que seja, produz efeito irreversível na base do sistema de garantias, proliferando inúmeras formas de abertura da tipicidade. Não por outro motivo, agregadas ao preceito em branco, as estruturas dos tipos dos art. 33, § 1º, I, II e III, e do art. 34 da Lei de Tóxicos, incriminam vários atos meramente preparatórios, abandonando o critério da violação ou do perigo concreto ao bem jurídico. A constante variação nas formas de complemento das leis em branco

e

dos

critérios

jurisprudenciais

e

doutrinários

de

interpretação dos tipos penais abertos permite o diagnóstico dos malefícios deste tipo de técnica legislativa em relação aos direitos e garantias

fundamentais,

constitucionalidade. 338

indicando

sua

questionável

11. O TRATAMENTO PENAL DO TRÁFICO DE DROGAS NA LEI 11.343/06 11.1. A Configuração da Tipicidade no Tráfico de Entorpecentes Se absolutamente diferenciadas as sanções e os tratamentos penal, processual penal e penitenciário dos crimes de tráfico e de porte para consumo, necessário definir chaves de interpretação constitucionais que permitam caracterizar, com o mínimo de precisão possível, tais desvios puníveis, intentando reduzir os custos

e

os

danos

causados

pela

vagueza

da

estrutura

criminalizadora. Os problemas de interpretação derivam das formas de construção da tipicidade penal em ambos os delitos, da disparidade entre as quantidades de penas previstas e da inexistência de tipos penais intermediários com graduações proporcionais entre os dois modelos ideais de condutas (comércio e uso pessoal) que representam o sustentáculo do sistema proibicionista (arts. 28 e 33 da Lei 11.343/06). Assim, entre o mínimo e o máximo da resposta penal verifica-se a existência de zona cinzenta intermediária cuja tendência, em decorrência dos vícios advindos do dogmatismo jurídico e da expansão do senso comum punitivo, é a de projetar a subsunção de condutas dúbias em alguma das inúmeras ações

puníveis presentes nos 18 (dezoito) verbos nucleares integrantes do tipo penal do art. 33 da Lei de Drogas, assim como foi a tradição incriminadora durante o longo período de vigência da Lei 6.368/76. Importante mencionar que o tipo do art. 33 da Lei 11.343/06 prevê as mesmas condutas do art. 12 da revogada Lei 6.368/76, dado que justifica a preocupação com a definição de critérios para o juízo de tipicidade. Do contrário, eventos de natureza não especificamente identificáveis como hipóteses de comércio ilegal podem acabar recebendo os rígidos efeitos penais, processuais e punitivos do tráfico de entorpecentes. A doutrina, quando da vigência da lei pretérita, alertava que “as hipóteses previstas no art. 12 são tão amplas que facilmente se poderia enquadrar por analogia tanto o traficante de fato, como o passador e o viciado, e até mesmo o experimentador”. 339 A Lei de Entorpecentes, em matéria de elaboração de tipos penais intermediários entre as hipóteses de comércio e porte pessoal, inovou apenas em relação ao sujeito que oferece, eventualmente e sem finalidade de lucro, droga para consumo compartilhado (art. 33, § 3º). No entanto, em tal modalidade de conduta – assim como as ações de entrega a consumo ou fornecimento gratuito, que permanecem incriminadas junto às modalidades de comércio ilegal –, o entendimento geral da jurisprudência era o da necessidade de desclassificação para o consumo pessoal em face da excessiva sanção.

Desta forma, percebe-se como notória a timidez do legislador, não apenas por olvidar a necessidade de descriminalização de algumas modalidades de conduta, como por deixar de efetivamente diferenciar ações substancialmente diversas em relação à lesão ao bem jurídico tutelado – v.g., a distinção entre comércio atacadista e varejista; o reconhecimento de figuras privilegiadas como o comércio

de

subsistência;

o

fornecimento

para

consumo

compartilhado etc.

11.1.1. A Finalidade do Agir como Critério Necessário de Identificação das Condutas Previstas nos Arts. 28 e 33, caput, da Lei 11.343/06 Ao comparar as elementares típicas dos arts. 28 e 36 da Lei de Drogas, assim como ocorria entre os arts. 12 e 16 da Lei 6.368/76, percebe-se que em relação aos elementos objetivos do tipo, ou seja, às circunstâncias que permitem identificar empiricamente a conduta para que se estabeleça o juízo prévio de incriminação, existe espantosa similitude, quando não plena correspondência. Processo idêntico em relação aos verbos nucleares. Segundo o art. 33 da Lei 11.343/06, constitui crime, entre outras treze modalidades de condutas, adquirir, ter

em

depósito,

transportar, trazer consigo ou guardar drogas. Ao estabelecer as hipóteses de consumo pessoal, o art. 28 define como incurso em crime o sujeito que “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar

ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (...)”. Vê-se absoluta correlação dos verbos do art. 28 com as hipóteses previstas

no

art.

33. 340

O

diferencial

entre

as

condutas

incriminadas, e que será o fator que deflagrará radical mudança em sua forma de processualização e punição, é exclusivamente o direcionamento/finalidade do agir (para consumo pessoal), segundo as elementares subjetivas do tipo do art. 28. Na dogmática tradicional que se debruçou sobre a antiga Lei de Drogas, tendência refletida de forma praticamente uníssona na jurisprudência dos Tribunais, havia nítida diferenciação entre o agir doloso previsto no art. 12 e aquele definido no art. 16, entendimento que permanece em face da identidade entre os tipos novos e os revogados. Assim, no tipo de injusto do art. 28 da Lei 11.343/06, o dolo não apenas pressupõe o conhecimento de que a substância adquirida, guardada, depositada, transportada ou trazida seja droga idônea e capaz de causar dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (em caso contrário ocorreria erro de tipo 341), como requer a vontade específica, ou seja, o particular fim de agir para uso próprio: “para incidência do art. 16, portanto, as condutas ‘adquirir’, ‘guardar’ e ‘trazer consigo’ só podem ser praticadas quando a finalidade exclusiva seja o uso próprio e não seja ela

desviada pelo fornecimento a terceiro” 342; “há um segundo elemento subjetivo do tipo contido na finalidade da conduta (‘para uso próprio’). A presença dessa tendência interna é imprescindível à tipicidade do fato a título do crime do art. 16. Ausente, a conduta se enquadra no delito do art. 12”. 343 No que diz respeito ao art. 33, por não existir referência específica à intencionalidade da ação, estaria caracterizado o delito independentemente de sua destinação ao comércio ilícito, sendo prescindível, inclusive, a mercancia e a efetivação da entrega (traditio) da droga, segundo consolidou a jurisprudência. 344 Embora ciente da histórica ausência de maiores conflitos doutrinários e jurisprudenciais no que tange à configuração genérica do dolo nas hipóteses do art. 12 da Lei 6.368/76 e fatalmente do art. 33 da Lei 11.343/06 – segundo Fragoso, p. ex., o elemento subjetivo que informa o delito é o dolo genérico, ou seja, a “vontade livre e consciente de praticar qualquer das ações incriminadas, sabendo o agente que atua sem autorização legal ou regulamentar” 345 –, a presente investigação propõe, ainda que embrionariamente, reler as formas de averiguação do elemento subjetivo, procurando encontrar formas de clausura do referido tipo, tendo em vista os efeitos patológicos de sua porosidade. A proposta se justifica em decorrência dos custos produzidos pela excessiva punição de condutas com escassa danosidade social ou com reprovabilidade

sensivelmente menor do que aquelas relacionadas ao comércio ou à produção ilegal de drogas, notadamente com o radical acréscimo na quantidade de pena trazido pela recente legislação. A análise dos verbos nucleares do art. 33 da Lei de Entorpecentes possibilita visualizar a significativa diferença entre as ações de importar, exportar, remeter, produzir, fabricar, vender e expor à venda em relação às de adquirir, oferecer, preparar, fornecer gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar e entregar a consumo. Todavia, apesar da distinta lesão ao bem jurídico tutelado (saúde pública), a quantidade de pena imposta é idêntica: reclusão de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa. Quando da vigência do antigo estatuto, notava Delmanto que “um dos maiores defeitos do art. 12 é estabelecer a punição de condutas que podem ser praticadas por outras pessoas que não os verdadeiros traficantes de drogas. A não exigência do propósito de comércio ou fim de lucro (o art. 12 pune o fornecimento ainda que gratuito) dá margem a punições que serão injustas, se a lei não for aplicada com prudência nesse particular”. 346 O diagnóstico é ainda mais trágico em decorrência da densificação da punibilidade às figuras do art. 33, caput e § 1º, da Lei 11.343/06. Para que se possa dar a real dimensão do problema, necessário ter presentes os consensos jurisprudenciais no que dizia respeito aos danos gerados pela punibilidade indiscriminada de

condutas notadamente diferenciadas em termos de ofensividade social, mas que por opção político-criminal eram previstas conjuntamente no art. 12 da Lei 6.368/76. 347 Com a nova lei o problema persiste, agravado pelo aumento da resposta penal. O quadro proibicionista, portanto, gera situações não muito diversas daquelas visualizadas no revogado art. 281 do Código Penal 348 ou do tipo penal do art. 290 do Código Penal Militar, 349 os quais fixam com a mesma sanção a resposta penal para o tráfico e para o porte. Muñoz Conde, ao avaliar a tendência universal de intervenção omnicompreensiva em todas as fases do ciclo da droga – “la penalización

de

todo

comportamiento

que

suponga

una

contribuición, por mínima que sea, a su consumo” 350 –, alerta para os resultados autoritários que tal perspectiva produz, notadamente em relação à sua incorporação nas decisões judiciais. A recepção desta interpretação omnicompreensiva pelos Tribunais, agregada à estrutura aberta da tipicidade no direito penal das drogas, induz a introdução de critérios ampliadores das hipóteses de criminalização. Assim, advoga Muñoz Conde a necessidade de “interpretación restrictiva en base al princípio de proporcionalidad que atempera la excesiva amplitud de estos conceptos, excluyéndose, además del autoconsumo, las [condutas] adecuadas socialmente o las que no tienen capacidad de expansión”. 351

Em havendo tratamento penal paritário em situações cuja extensão da lesão ao bem jurídico tutelado é diferenciada, a Constituição impõe, como mecanismo corretivo, ponderação a partir do princípio da proporcionalidade.

11.1.2. Critério Dogmático de Correção da Desproporcionalidade e a Definição da Tipicidade (Subjetiva) das Condutas Como demonstrado ao longo do trabalho, a Constituição de 1988 explicitou os princípios da lesividade (art. 5º, XXXV) e da proporcionalidade

(art.

5º,

LIV),

estabelecendo

parâmetros

interpretativos para realizar juízos de invalidade das leis e dos demais atos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Os critérios de deslegitimação formal (juízo sobre a vigência) ou substancial (juízo sobre a validade), contudo, apenas criam possibilidades diagnósticas, ou seja, ferramentas de identificação das patologias do sistema. Aliados à anamnese, imprescindível estabelecer mecanismos de correção dos atos violadores dos direitos e das garantias fundamentais. Em decorrência dos efeitos deflagrados pela incriminação indistinta das inúmeras condutas previstas no art. 33 da Lei de Drogas, alguns critérios serão propostos como instrumentos de efetivação do modelo dogmático-crítico, cujo objetivo central é a redução dos custos da punitividade.

A análise detalhada permite apontar como principal mecanismo corretivo da desproporcionalidade do tipo penal do art. 33 da Lei de Entorpecentes a especificação da conduta (especial fim de agir) naquelas figuras que igualmente aparecem incriminadas no art. 28, ou seja, as condutas adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo drogas. Conforme o consenso dogmático e jurisprudencial explanado, notadamente no que se referia ao problema do art. 12 da Lei 6.368/76 não superado com a nova legislação, não seria requisito para a caracterização das condutas previstas no art. 33, da Lei 11.343/06 o fim de mercancia da substância entorpecente. O elemento subjetivo que caracteriza o crime seria o dolo genérico. Contudo, como igualmente exposto, as modalidades comissivas adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo drogas, além de previstas no art. 28 (soft crimes), encontram-se presentes junto às modalidades de tráfico. Assim, do que se depreende da dogmática penal, a única forma de diferenciação entre as condutas seria a comprovação do objetivo para consumo pessoal (art. 28). Em não ficando demonstrado este especial fim de agir, qualquer outra intenção, independente da destinação comercial, direcionaria a subsunção da conduta ao art. 33, decorrência da generalidade, abstração e universalidade do dolo. Cria-se, em realidade, espécie de zona gris de alto empuxo

criminalizador na qual situações plurais são cooptadas pela univocidade normativa. Esta situação, inclusive, não invariavelmente potencializa na jurisprudência tendência à inversão do ônus da prova, recaindo ao réu o dever de provar durante a cognição a especial finalidade de agir, eximindo a acusação do dever processual imposto pela Constituição, qual seja, confirmar, à exaustão, todas as hipóteses narradas na denúncia e efetivamente apresentar as evidências que permitem concluir não ser a ação direcionada ao uso próprio ou compartilhado. Propõe-se, portanto, como critério interpretativo de correção da desproporcionalidade

no

tratamento

punitivo

de

condutas

objetivamente idênticas, mas díspares no que tange à ofensividade ao bem jurídico, a necessidade de especificação dos elementos subjetivos de ambos os tipos penais, seja do art. 33 como do art. 28 da Lei 11.343/06. O raciocínio deve ser realizado de forma negativa, invertendo-se os rumos tradicionais da doutrina e da jurisprudência dominantes durante a vigência da Lei 6.368/76. Desta forma, em havendo especificação legal do dolo no art. 28 da nova Lei de Drogas (especial fim de consumo pessoal), para que não ocorra inversão do ônus da prova e para que se respeitem os princípios constitucionais de proporcionalidade e de ofensividade, igualmente deve ser pressuposto da imputação das condutas do art. 33 o desígnio

mercantil.

Do

contrário,

em

não

havendo

esta

comprovação ou havendo dúvida quanto à finalidade de comércio, imprescindível a desclassificação da conduta para o tipo do art. 28. A jurisprudência, mesmo de forma tímida, traçou hipóteses que possibilitam aberturas no cerrado entendimento sobre o tema: “Não pode ser acusado de tráfico de maconha aquele que eventualmente a transporta, sem prova de sua condição de traficante ou de relacionamento com quem pratica o tráfico”. 352 Neste sentido decisão do STJ, a qual, em decorrência da importância, tem-se como paradigmática: “Se o acórdão reconheceu a inexistência de indício de prova de destinação comercial da maconha apreendida na residência do réu e, por isso, desclassificou o delito de tráfico para o de uso, conferiu ao tema interpretação razoável, insusceptível de revisão em sede de recurso especial, onde não tem espaço para reexame de provas. (...) Sustenta o recorrente que a lei não exige a comprovação da mercancia da droga, bastando para a configuração do delito o ato de adquirir ou guardar a substância. O tema, todavia, não se exaure de modo tão simples e exige uma compreensão sistemática da lei regente. É certo que o tipo complexo do art. 12 da Lei 6.368/76 contempla, dentre as diversas condutas criminosas, o ato de guardar ou ter em depósito substância entorpecente.

Todavia, o mesmo diploma legal, em seu art. 16, prevê como crime de menor gravame o ato de guardar ou trazer consigo, para

uso

próprio,

a

referida

substância,

causadora

de

dependência física ou psíquica. Assim, ambas as condutas, em sua expressão vernacular, configuram crimes diferentes. No crime previsto no art. 12, o ato de guardar tem por finalidade o fornecimento da droga a terceiros, ao passo que, no tipo do art. 16, guarda-se para consumo próprio. Assim, pela interpretação sistemática da Lei 6.368/76, não se pode compreender o tipo guardar substância entorpecente sem que se investigue a destinação da conduta. O Tribunal a quo, em face do quadro fático, entendeu como não demonstrado o crime do art. 12 da Lei de Tóxicos, desclassificando-o para o tipo inscrito no art. 16, ambos da referida Lei. Acentuou o Tribunal que inexistia nos autos ‘prova da destinação da substância entorpecente para traficância’ verberando, noutra passagem, que ‘não se fez uma prova sequer; de que ele houvesse comercializado a erva com terceiros’”. 353

11.1.3. Os Equívocos na Configuração da Tipicidade do Tráfico de Entorpecentes: Objetificação dos Elementos Subjetivos

As dificuldades de definição dos requisitos configuradores da tipicidade do art. 33 da Lei de Drogas não se resumem, porém, à discussão dos elementos subjetivos (dolo). Para além do problema da identificação do fim do agir, diversa interrogação exsurge: se existem descrições de condutas empíricas idênticas nos tipos dos arts. 28 e 33, quais os critérios concretos (circunstâncias do tipo objetivo) de diferenciação a serem utilizados? A questão colocada é complexa, revelando, em determinadas circunstâncias, verdadeiras aporias. Todavia não pode deixar de ser enfrentada, sobretudo quando os critérios que foram utilizados pelos operadores do direito (jurisprudência) quando da incidência da Lei 6.368/76 parecem estar amplamente dissociados dos comandos constitucionais. A definição do juízo de tipicidade do art. 12 ou do art. 16 da Lei 6.368/76, nos casos de aquisição, guarda ou porte, invariavelmente foi resolvida na jurisprudência nacional a partir de critério objetivo: quantidade de droga apreendida. Em alguns casos, o histórico de dependência, os antecedentes criminais, o local de apreensão ou a forma de acondicionamento do produto ganhava relevância. As formas de definição advinham da extensão interpretativa auferida pelo art. 37, caput, da Lei 6.368/76, que estabelecia que “para efeitos de caracterização dos crimes definidos nesta Lei, a autoridade atenderá à natureza e à quantidade da substância

apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação criminosa, às circunstâncias da prisão, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. O direcionamento do comando normativo atingia as autoridades policiais, exigindo, conforme o parágrafo único do referido artigo, justificativa dos motivos que levaram à definição



“a

autoridade

deverá

justificar,

em

despacho

fundamentado, as razões que a levaram à classificação legal do fato, mencionando, concretamente, as circunstâncias referidas neste artigo, sem prejuízo de posterior alteração da classificação pelo Ministério Público ou pelo juiz” (art. 37, parágrafo único, Lei 6.368/76). Logicamente, a imputação inicial não vinculava o juízo posterior realizado pelo agente acusador ou pelo magistrado. Porém, a aplicação do art. 37 da antiga lei, desvinculada do contexto constitucional, fortalecia sistemas penais com forte inspiração em modelos de responsabilidade penal objetiva e com tendência inquisitória, face ao enclausuramento do juiz pela predefinição realizada no inquérito pela autoridade policial. Parece, contudo, não ser mais admissível a utilização destes critérios, notadamente pelo aumento do hiato de punibilidade entre os tipos referenciais do tráfico e do porte para consumo próprio. A barreira a ser superada é a forte tendência da interpretação retrospectiva que perpassa a jurisprudência nacional, ou seja, a disposição dos Tribunais e da doutrina de interpretar o novo

contexto legislativo com o olhar do velho, enclausurando qualquer possibilidade de mudança. Ademais, o § 2º do art. 28 da nova Lei de Drogas reproduz a mesma lógica do art. 37 da Lei 6.368/76, dado que parece evidenciar as dificuldades de superação da objetificação dos critérios – “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” (art. 28, § 2º, Lei 11.343/06). É que definições desta natureza acabam por destoar da própria lógica do sistema dogmático da teoria constitucional do delito, substancialmente porque intentam absolutizar critérios objetivos de forma a induzir a esfera subjetiva do tipo. A partir de conjunturas fáticas que caracterizariam os elementos objetivos (circunstâncias de tempo, local e forma de agir) ou de características pessoais do autor do fato (antecedentes e circunstâncias pessoais e sociais), são projetados dados de imputação referentes à integralidade da tipicidade, olvidando seu aspecto mais importante, o elemento subjetivo. A perspectiva dogmática no direito, visando sempre procurar instrumentos e mecanismos para estabilizar os julgamentos, na incessante busca do (ilusório) sonho positivista/legalista da segurança jurídica (previsibilidade e padronização das decisões),

forjou na doutrina e na jurisprudência nítida tendência de criação de fórmulas resolutivas calculáveis, mormente no que se convencionou chamar de hard cases (casos complexos), cujo exemplo significativo pode ser verificado nas questões envolvendo a tipificação das condutas relativas às drogas ilícitas. As construções normativas e dogmáticas podem servir apenas como indicativos, mas nunca como fundamento tarifado de juízos ou de decisões, isto é, de forma alguma podem proliferar-se como standards motivacionais ou reproduzir-se como critérios jurisprudenciais de justificação do ato de imputação e de decisão. Neste quadro, os dados apresentados como idôneos à classificação da conduta pela autoridade judicial previstos no art. 28, § 2º, da Lei de Entorpecentes, tais como quantidade, local e antecedentes, podem apenas sugerir e indiciar a incidência dos tipos penais do art. 33 ou do art. 28. Nunca, porém, definir o juízo de imputação como se tais critérios fossem únicos e exclusivos, exatamente por se tratar de elementos objetivos do tipo. Como referido, a diferenciação entre condutas, como adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo drogas, deve ser estabelecida a partir da finalidade, qual seja uso próprio ou compartilhado ou mercancia. As dificuldades de resolução do problema exposto parecem ser muito similares àquelas encontradas na doutrina e na jurisprudência

para delimitar a incidência dos incisos I ou II do art. 18 do Código Penal, na tortuosa diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente. Lembra Juarez Tavares que “a doutrina sempre procurou adotar fórmulas e elaborar teorias que pudessem esclarecer a distinção entre dolo eventual e culpa consciente”. Todavia, ensina o autor que “o dolo deve ser retratado de uma forma, antes de tudo, garantista, quer dizer, afora seus elementos reais, sua configuração depende da clareza e da perfeita identificação de contornos e limites”. 354 Nos crimes de trânsito, p. ex., a tentativa de identificar elementos estáveis de caracterização do dolo eventual ou da culpa consciente, em face da dificuldade de prova do elemento subjetivo (vontade e conhecimento), acabou por gerar situação desconfortável de intenso desrespeito aos direitos e às garantias fundamentais. Na mesma linha do que ocorre no direito penal das drogas, a tendência em objetificar o elemento subjetivo (dolo ou culpa) levou doutrina e jurisprudência à taxação de determinadas informações empíricas, violando inclusive os princípios processuais de valoração da prova – vivificação de sistema de provas legais (tarifada) em detrimento do livre convencimento motivado (art. 157, CPP combinado com art. 93, IX, CR). Assim, presentes no caso concreto fatores como alta velocidade e embriaguez, o direcionamento da imputação tende ao tipo doloso (dolo eventual).

As consequências derivadas desta simplificação na análise dos elementos de prova são sensíveis, sobretudo na questão do homicídio de trânsito, pois se a imputação for dolosa, não apenas a quantidade e a qualidade de pena, mas o próprio rito processual será alterado. A classificação do homicídio como doloso impõe pena de reclusão de 6 a 20 anos, sendo o delito, em face da disciplina constitucional sobre competência (art. 5º, XXXVIII, d), julgado pelo Tribunal do Júri; em caso de tipificação culposa, segundo o art. 302 da Lei 9.503/97 – “praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor” –, a pena é modificada para detenção de 2 a 4 anos. Outrossim, lembre-se ainda de que em caso de aplicação da sanção prevista para o homicídio culposo haveria possibilidade de substituição por penas restritivas de direitos e, no máximo da resposta penal, aplicação de regime aberto de cumprimento. Por outro lado, na hipótese dolosa, a pena mínima impõe, de imediato, regime inicial semiaberto. Lógico que, no caso concreto, tanto nas questões de trânsito como nas relativas ao porte de drogas, as dificuldades probatórias em relação aos elementos do dolo (representação, previsibilidade, anuência e vontade) são inúmeras. Todavia estas dificuldades empírico-processuais

não

podem,

de

forma

alguma,

gerar

tendências objetificantes cujos efeitos são tornar prescindível (Streck 355) o elemento subjetivo.

Neste sentido, as circunstâncias objetivas de tempo, local e forma de agir servem apenas como critérios indiciários do elemento subjetivo, sendo fundamental aos operadores do direito avaliar criteriosamente os aspectos referentes à vontade, à previsibilidade, à representação e à consciência. Tudo porque, por si sós, os dados externos da conduta não revelam nada se não estiverem apoiados por dados subjetivos minimamente reveladores. Logo, o homicídio de trânsito praticado em circunstâncias de alta velocidade e embriaguez pode ser classificado nas modalidades culposas (culpa consciente ou inconsciente), dolosas (dolo direto ou dolo eventual) ou ainda em hipóteses de absoluta ausência de relação de causalidade em que não estão presentes quaisquer elementos referentes à previsibilidade e vontade (caso fortuito). Igualmente na questão das drogas: quantidade elevada, acondicionamento em embalagens

distintas,

antecedentes,

entre

outras

inúmeras

circunstâncias fáticas, podem revelar tanto situação de mercancia como de uso próprio – v.g. sujeito preso em flagrante com quantidade elevada de droga, disposta em recipientes distintos, gera apenas indício de comércio, não podendo ser descartada, de plano, a hipótese de porte para consumo, visto o fato de poder ter adquirido o produto exatamente nestas condições. O problema não está, frise-se vez mais, nos dados externos da conduta, mas no aspecto cognitivo e volitivo do agir.

Na mesma linha, o histórico de internações ou dados sobre dependência, p. ex., permitem extrair importantes indícios para o enquadramento da conduta. Contudo não geram prova absoluta (tarifada) e suficiente. Frise-se, porém, que cabe ao agente acusador o ônus da prova de que as circunstâncias empíricas indiciadoras são congruentes com o animus de comércio em caso de imputação de tráfico de entorpecentes. Em não havendo prova robusta ou restando esta dúbia, imperativa a desclassificação para o caput do art. 28 da Lei de Drogas.

11.1.4. As Dificuldades de Imputação da Conduta no Oferecimento da Denúncia Se

o

tratamento

penal

das

condutas

relativas

aos

entorpecentes pende entre os dois extremos opostos da resposta penal (crime hediondo e crime de menor potencial ofensivo), ainda seria admissível, conforme consenso na doutrina processual, imputar as figuras típicas do art. 33 da Lei 11.343/06 em caso de dúvida no momento do exercício da ação penal? A questão proposta para análise, após a discussão dos requisitos objetivos e subjetivos para imputação dos crimes previstos no art. 28 e no art. 33 da Lei de Drogas, expõe dificuldade inominável ao operador do direito sensível aos efeitos da incriminação no momento do oferecimento da denúncia. É que a

questão ultrapassa os limites da discussão sobre competência – juizados especiais criminais ou juizado comum –, inserindo-se no âmbito do pleno exercício dos direitos fundamentais dos réus, como, p. ex., o direito às novas modalidades de transação penal (art. 28, I, II e III), a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/95), o direito a responder em liberdade (v.g. a limitação da fiança em caso de prisão cautelar, herança do art. 2º, II, Lei 8.072/90 356 reproduzida no art. 44 da Lei 11.343/06 357). As dificuldades de classificação, portanto, não se resumem ao plano do direito penal material, pois o enquadramento da conduta gera diferenciados efeitos processuais antes da resolução do caso penal na sentença de mérito. O problema que se coloca é o de que se é estável na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a dúvida quanto à situação de comércio ou uso pessoal deve direcionar a sentença em favor do agente, determinando o enquadramento nas hipóteses de consumo (art. 28, Lei 11.343/06), esta mesma situação no momento do exercício da ação penal é invertida em decorrência da ideia ainda viva de que a imputação deve obedecer aos princípios do in dubio pro societate e do jura novit curia. Entretanto, como lembra Andrei Schmidt, “o período paleolítico do Direito Processual Penal, em que o réu defendia-se apenas dos fatos, já se esgotou”; e “a vetusta tese de que o réu

defende-se dos fatos, e não da capitulação jurídica do fato, há de ser relativizada (...)”. 358 Seguro que o estado de incerteza que marca o processo de cognição somente será afastado no momento da sentença, cuja dúvida, por força da presunção de inocência, projeta decisão favorável – absolvição ou desclassificação do crime imputado. Igualmente correto que a opção pelo não processamento não pode advir de extensão infinita da presunção de inocência ao momento do impulso processual, devendo a opção pelo arquivamento advir nos casos em que não houver lastro probatório mínimo (justa causa) da tipicidade aparente ou interesse de agir que sustentem a ação penal. Contudo os pressupostos para o exercício da ação penal e a decorrente imputação de delito ao investigado não podem pautar-se por

princípios

substância

processuais

constitucional.

defasados Paulo

e

Rangel,

notadamente ao

sem

demonstrar

a

inexistência de dispositivo legal que legitime a dúvida contra o réu, sustenta que “o chamado princípio in dubio pro societate não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus”, ou seja, segundo o autor, “o Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa

humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal”. 359 Aury Lopes Jr., ao tratar do encerramento da primeira fase do procedimento do Júri, segue o mesmo caminho ao indagar qual a base constitucional do princípio in dubio pro societate. A resposta é inequívoca: “Nenhuma, pois ele não foi recepcionado pela Constituição de 1988 e não pode coexistir com a única presunção

constitucionalmente

consagrada:

a

presunção

de

inocência”. 360 Percebe-se, assim, que a justificativa da ação penal, aquilo que lhe aufere legitimidade, não é o estado de dúvida (in dubio pro societate), mas a existência de suporte probatório mínimo que permita visualizar a aparência da tipicidade. As presunções normativas desempenham importante papel na dogmática, projetando efeitos sensíveis nas decisões judiciais. 361 As presunções jurídicas antecipam certa verdade processual a partir de inferências, ou melhor, criam sentidos possíveis de verdade processual, direcionando a decisão a partir de fragmentos. No entanto, para além do sonho narcisista da dogmática processual penal de alcançar a verdade – qualquer que seja: real, material, substancial, formal, processual –, a Constituição, ao normatizar a presunção de inocência, estabeleceu atitude deontológica aos sujeitos processuais: aceitar, tomar como verdadeira a inocência do

acusado enquanto não houver robusta prova em contrário, enquanto evidências concretas não destruírem o pressuposto. Como o processo de cognição é, em essência, campo de diálogo direcionado à resolução de dúvidas sobre o caso penal objeto de análise, e face à impossibilidade de se determinar ex ante, ou seja, fora do devido processo legal, a culpabilidade do autor, pressupõe-se a inocência. Desta feita, aos sujeitos processuais é constitucionalmente imposto o dever de aceitar a presunção (o réu é inocente), até que o status (inocência) seja bloqueado ou destruído pelo mecanismo da contraditoriedade probatória. Se a prova inexiste (ausência de evidências), não é substancial (dúvida razoável) ou não é passível de refutabilidade empírica (elemento probatório que impede o contraditório), mantém-se o status inicial. Mendonça adverte, portanto, que as presunções têm como função básica possibilitar a superação do impasse do processo decisório em virtude da ausência de elementos de juízo a favor ou contra determinada proposição. 362 A única presunção possível e constitucionalmente conformada é, portanto, a de inocência, não havendo mais espaço na argumentação jurídica para se justificar ação penal em face da dúvida, por mais tentador que seja o desejo inquisitivo de auferir a alguém o cometimento de delito a partir de confluência fática que insinua a existência de evento indeterminado.

Por outro lado, prosseguir sustentando que o réu se defende dos fatos imputados e não da definição jurídica proposta na denúncia é não apenas ignorar os avanços da técnica processual contemporânea – v.g. a criação de novos institutos como a transação penal e a suspensão condicional do processo –, mas olvidar os efeitos que são inerentes à capitulação jurídica, notadamente no direito penal das drogas. Assim, se efetivamente se deseja aprimorar a estrutura do processo constitucional penal, fundamental abdicar de antigos princípios não mais harmônicos com a Constituição. A denúncia, pois, não está legitimada por dúvida que favorece

o

processamento;

muito

menos

é

secundária

a

preocupação em apontar todas as circunstâncias da conduta por se pressupor que o juiz conhece o direito (narra mihi factum dabo tibi ius) e pode corrigir a capitulação quando do ato decisório. O exercício da ação penal se fundamenta em critérios de averiguação da suficiência probatória do material colhido na investigação e em seu consequente direcionamento à aparente tipicidade. Note-se que da justa causa brota a tipicidade. Logicamente haverá possibilidade de alteração do juízo de subsunção no decorrer da instrução. No entanto, os elementos definitórios na ocasião da denúncia estão presentes e fornecem condições mínimas de aferibilidade da definição legal da conduta.

No caso de processo por crimes previstos na Lei 11.343/06, em face das graves consequências advindas da classificação jurídica, talvez seja menos onerosa aos direitos e às garantias fundamentais, em havendo dúvida sobre a identificação do fato como tráfico ou uso próprio, a opção pela imputação do art. 28 da Lei de Drogas. Esta opção não impede que, em caso de surgirem novos elementos de prova ao longo da cognição ou durante o período de cumprimento das condições da transação penal ou da suspensão condicional do processo, haja posterior alteração, mediante aditamento. A questão no caso concreto revela verdadeira aporia, notadamente quando há transação ou suspensão condicional, merecendo, no mínimo, especial atenção dos representantes do Ministério Público no oferecimento da denúncia e dos Magistrados na análise de sua pertinência. Tudo porque nos processos envolvendo entorpecentes inegavelmente o réu se defende da imputação, efeito das substanciais diferenças de tratamento previstas na legislação. Como lembram Alexandre Bizzotto e Andreia de Brito Rodrigues, avaliando a Lei 6.368/76, “a falta de demonstração da circulabilidade e o indiciamento no crime do artigo 12 da Lei 6.368/76 por mera formalidade ensejam situações sem ressonância social, constituindo-se em verdadeiro abuso da finalidade do direito”. 363

11.1.5. Lições de Direito Penal Comparado: Fixação de Quantidade Mínima para Consumo, Tráfico Privilegiado, Tráfico Comum e Tráfico Qualificado A discussão acerca da possibilidade de se estabelecerem quantidades fixas para cada tipo de droga como critério de diferenciação entre as hipóteses de uso e comércio não ganhou destaque na literatura nacional, apesar de as orientações normativas relativas à sua importância indiciária estarem presentes na Lei 6.368/76 e na Lei 11.343/06. No entanto, inúmeros países da Europa Ocidental adotam o critério objetivo quantidade, estabelecido em lei, por ato das autoridades sanitárias ou pela jurisprudência, como elemento primeiro de definição. O intuito é estabelecer condições de (a) obstruir a incidência repressiva (atipicidade formal ou material – princípio da insignificância), (b) presumir o uso pessoal, e/ou (c) agravar sanções penais (diferenciação entre tráfico simples e tráfico qualificado). No direito penal espanhol, legislação que será utilizada como referencial, a incriminação das condutas referidas nos arts. 368, 369 e 370 do Código Penal estabelece quatro níveis que variam entre a atipicidade e o tráfico qualificado. Em relação à quantidade de droga objeto da proibição, a jurisprudência, com base em dados provenientes das autoridades sanitárias, especificou as diretrizes gerais da Parte Especial do Código, cerrando as tipificações abertas

(v.g., “sustancias o productos que causen grave daño a la salud”; “notoria importancia la cantidad de sustancias”; “cantidad extrema de sustancias”). Os critérios foram estabelecidos nos seguintes termos: (1) posse de quantidade mínima que induz à presunção de autoconsumo (fato atípico); (2) posse de quantidade moderada que indicia tráfico de entorpecentes – art. 368, Código Penal; 364 (3) posse de quantidade de notória importância, que ocasiona punição agravada – art. 369, 6º, Código Penal; 365 (4) posse de quantidade expressiva de droga (extrema cantidad) a qual, agregada a outros elementos e circunstâncias, define condutas qualificadas – art. 370, 3º, Código Penal. 366-367 Segundo a doutrina, entre a conduta atípica da posse para consumo e a forma qualificada de extrema gravidade são estabelecidos referenciais quantitativos que não deixam margem de dúvidas: “(...) el Tribunal Supremo entiende que la posesión de más de 50 gramos de hachís, es indicativo de su destino a ser difundida la droga, desde los 50 gramos hasta 1000 gramos (1 kilo), que es el nivel mínimo a partir del cual se reputa la droga objeto del delito, como de notoria importancia, hay un amplio margen que excluye cualquier zona de coincidencia o dudosa”. 368

Assim, em relação ao haxixe, p. ex., as quantidades ficam determinadas da seguinte forma: (a) até 50 gramas o fato é atípico (posse para consumo pessoal); (b) entre 50 gramas e 1 quilo, considera-se posse moderada, recaindo a figura do tráfico simples; (c) de 1 quilo a 2,5 quilos, a quantidade é de notória importância, incidindo as penas agravadas; (d) acima de 2,5 quilos, a posse passa a ser de extrema quantidade, aplicando-se as sanções do tráfico qualificado. As quantias de notória importância, por serem intermediárias, balizam o sistema escalonado espanhol, e variam conforme a droga, sendo o limite para ingresso nas formas qualificadas 750 gramas para cocaína, 300 gramas para heroína e 10 quilos para maconha, segundo dados do Instituto Nacional de Toxicología. A definição dos critérios e dos níveis de diferenciação, sobretudo entre consumo pessoal e comércio de drogas, ocorre conforme cálculo realizado pelas agências sanitárias do consumo médio diário que necessitaria o dependente. Definida a média diária de cada droga, este valor é triplicado em razão de o consumo ser projetado para três dias. Importante observar, ainda, que a quantidade definida abarca qualquer conduta relacionada ao consumo pessoal ou ao tráfico. Desta forma, em estando a quantidade de droga definida nos níveis

inferiores ao do tráfico simples, independente da ação específica do porte ou da armazenagem, considera-se atípico o caso. Na experiência jurisprudencial brasileira, são desconhecidas decisões deste gênero, embora a variação entre o mínimo e o máximo da pena seja absolutamente significativa. Apenas no que tange ao porte de pequena quantidade de droga, sem definir especificamente qual seria a quantidade, alguns Tribunais têm optado pela aplicação do princípio da insignificância. Na esfera legislativa, em 2002 foi apresentado à Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Violência e Narcotráfico e à Comissão de Constituição e Justiça e Redação o Projeto de Lei 5.824/01 que, ao acrescentar parágrafo ao art. 16 da Lei 6.368/76, definia critério quantitativo de atipicidade da conduta de pequeno porte de maconha: “Não caracteriza a conduta típica prevista no caput deste artigo adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, a substância entorpecente denominada maconha (tetrahidrocanabinol) em quantidade que não ultrapasse 5 (cinco) gramas”. Embora restrito ao uso da maconha e limitado à descriminalização de quantidade ínfima, o projeto é importante por pautar discussão inédita no Brasil. Como referido anteriormente, não se está a postular, com a introdução de critérios quantitativos de diferenciação entre uso pessoal e comércio e entre as várias hipóteses de tráfico, a

objetificação dos elementos do tipo. A estrutura da tipicidade do art. 28 da Lei 11.343/06 é inconteste no que tange à incorporação do elemento subjetivo (para consumo pessoal), sendo este o critério substancial de definição da conduta. Todos os demais elementos previstos no § 2º do art. 28 são, inequivocamente, indiciários e informativos (natureza e quantidade de droga, local e condições, circunstâncias sociais, pessoais e antecedentes do agente) à convicção judicial sobre a natureza da ação. Ocorre que a introdução de dados quantitativos forneceria a possibilidade de excluir, a priori, discussão (instrução cognitiva) acerca de casos irrelevantes ou a avaliação da graduação do comércio.

O

estabelecimento

de

critérios

específicos

individualizados relativos à quantidade das principais drogas de consumo criaria presunção legal ou jurisprudencial sobre os limites das condutas, sem excluir os elementos relativos ao dolo e as demais circunstâncias do art. 28, § 2º, da Lei de Drogas. Se se utilizar, p. ex., o critério espanhol das 50 gramas de haxixe ou maconha para definição do porte ou armazenamento para uso pessoal, estaria estabelecida cláusula de barreira que implicaria duas consequências: (1ª) até o limite haveria presunção legal ou jurisprudencial de uso, sendo as condutas tratadas no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, aplicados os institutos inerentes (transação penal e suspensão do processo); (2ª) a partir do

parâmetro quantitativo, para definição da tipicidade seriam avaliadas a finalidade (art. 28, caput, Lei 11.343/06) e as demais circunstâncias da conduta (art. 28, § 2º, Lei 11.343/06). Como critério de definição da quantidade, os elementos avaliados pela jurisprudência espanhola parecem ser absolutamente relevantes: (a) média da quantidade de doses diárias utilizadas pelo dependente e (b) projeção do seu uso por determinado período de tempo. A vantagem da cláusula de barreira é excluir, sob qualquer hipótese, a possibilidade de o usuário sofrer os sérios efeitos da imputação de tráfico, tanto em relação às consequências penais materiais quanto às processuais que, em determinados casos, são tão danosas quanto aquelas (v.g. prisão cautelar).

11.2. Consumo Compartilhado (art. 33, § 3º, Lei 11.343/06) 11.2.1. Critérios de Imputação e de Definição Típica Conforme referido, o único tipo penal intermediário entre tráfico e porte estabelecido pela nova Lei de Drogas foi o fornecimento gratuito para consumo comum: “oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem” (art. 33, § 3º, Lei 11.343/06). Trata-se de delito de menor potencial ofensivo em razão da fixação da pena de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa.

A previsão legal de ausência de finalidade econômica (sem objetivo de lucro), intenção de consumo conjunto e a própria quantificação da pena aproximam a estrutura típica das hipóteses do art. 28 da Lei de Drogas. Questionável, portanto, a previsão conjunta com as modalidades de tráfico, inclusive pelas dúvidas que esta opção geográfica pode trazer. Em se tratando de consumo, embora compartilhado (conjunto), caracterizado pelo oferecimento eventual para pessoa que possui laços de afinidade, a conduta é espécie de porte, inexistindo qualquer possibilidade de integrar modalidade de tráfico. Não parece correto, portanto, a qualificação desta conduta como tráfico privilegiado, conforme entendido por alguns segmentos da doutrina. Outrossim, a estrutura do tipo incriminador, em seus preceitos primários (conduta) e secundários (pena), descaracteriza qualquer possibilidade de qualificação do delito como hediondo. A previsão do especial fim de agir (sem objetivo de lucro) reforça a tese exposta acerca da necessidade de interpretar as condutas previstas no caput do art. 33 da Lei de Drogas como direcionadas à mercancia, de forma a eliminar os espaços de ambiguidade e minimizar os efeitos perversos da lei.

11.2.2. Lições da Jurisprudência Penal Comparada e Critérios de Imputação e de Desclassificação 369

A modalidade de conduta prevista sob o rótulo de consumo compartilhado pela Lei 11.343/06, em comparação com os avanços da

jurisprudência

penal

comparada,

pode

ser

considerada

relativamente tímida, sobretudo pelas novas formas de uso e pelas novas drogas consumidas na sociedade contemporânea. Importantes julgados da Sala Penal do Tribunal Supremo da Espanha oferecem interessantes critérios que permitem ampliar a interpretação do denominado consumo compartilhado de drogas ilícitas no Brasil, de maneira a diminuir a lacuna existente entre os tipos penais do art. 28 e do art. 33 da Lei 11.343/06. Interessante

notar

que

na

Espanha

o

problema

do

estabelecimento de critérios de diferenciação entre o porte para consumo e o comércio de entorpecentes ganha proporções semelhantes aos casos previstos na Lei 11.343/06, sobretudo porque

os

efeitos

decorrentes

da

imputação

são

também

diferenciados. Na Espanha, contudo, a quantidade das penas privativas de liberdade previstas para o tráfico é menor e a esfera sancionatória do porte para consumo pessoal em locais públicos é administrativa, sendo as penas exclusivamente pecuniárias (multa), e o consumo pessoal em locais privados não configura ilícito, sequer administrativo, conforme a Lei Orgânica 01/1992 (Ley de Seguridad Ciudadana).

O leading case sobre a matéria do consumo compartilhado remete a julgado proferido pelo Tribunal Supremo em 25.05.81. O entendimento ganhou consistência em 1991 com a prolação de sentença pela Sala Penal, “en un supuesto de consumo conjunto e inmediato de heroinómanos que habían acudido juntos a comprar la droga, y donde se cuestionaba incluso que hubiera habido donación”. 370 Calderón Susín afirma, inclusive, que a partir do julgamento do início da década de 1990 a postura se consolida vertiginosamente. 371 A Corte Suprema espanhola, após o câmbio no entendimento jurisprudencial quanto à imputação de tráfico nos casos de consumo conjunto de drogas por grupos, solidificou entendimento no qual determinadas condutas de aquisição e transporte de drogas, mesmo acima do limite permitido para uso pessoal, configurariam situações de consumo compartilhado. A consequência da desclassificação é nitidamente de descriminalização judicial da conduta em face da atipicidade do porte para consumo pessoal naquele país. Alguns casos recentemente julgados são importantes para verificar a extensão dos argumentos. No Recurso de Casación 184/2001 (Resolución 1585/2002), a Sala Penal do Tribunal Supremo estabeleceu importantes critérios para definição das hipóteses de enquadramento de condutas no consumo compartilhado.

“Crimen contra la salud pública. Requisitos para que el ‘consumo compartido’ pueda ser atípico. Análisis del art. 56 CP. Quebrantamiento

de

forma

por

contradicciones

en

los

fundamentos (inexistente). Atenuante 2ª del art. 21 CP (inexistente).”372 No caso, os processados foram condenados, pela Sección Primera de la Audiencia Provincial de Burgos, a pena de três anos de prisão, inabilitação para o exercício do direito de sufrágio passivo durante o tempo da condenação e multa de 250.000 pesetas pela prática do delito contra a saúde pública. Em síntese, os réus tiveram seu veículo detido pela patrulha policial que encontrou 2 porções de haxixe (cerca de 3,7 gramas) e bolsa na qual era transportada anfetamina. A anfetamina pura (5,62 gramas), adulterada com cafeína, adquiriu peso total de 67 gramas. As circunstâncias demonstraram não possuírem os acusados antecedentes criminais, sendo consumidores esporádicos (consumo de final de semana) de haxixe. Irresignados com a condenação, interpuseram recurso de cassação. Embora mantida a decisão da província de Burgos, o Tribunal Supremo estabeleceu requisitos genéricos para definição do consumo compartilhado. Em face de o bem jurídico nos delitos de tráfico de entorpecentes ser a saúde pública, sua ofensa ocorreria apenas quando houvesse efetiva possibilidade de transmissão da

droga para terceiros não pertencentes ao grupo de consumo. Segundo o julgado, apesar da jurisprudência variar o entendimento quanto à configuração de crime nas hipóteses de oferta ou transmissão gratuita de droga ao consumo, 373 os casos de consumo compartilhado indicariam a atipicidade. Em face de o consumo pessoal não ser delito na Espanha, o uso compartilhado passou a integrar este conceito, ou seja, tornou-se espécie do gênero atípico. Assim, para o seu reconhecimento, o Supremo Tribunal pressupõe a exclusão de qualquer perigo para o bem jurídico

protegido.

A

exclusão

ocorreria

quando

presentes,

genericamente, os seguintes requisitos: (a) dependência dos consumidores na droga adquirida; (b) consumo futuro realizado em local fechado sem risco de difusão para terceiros; (c) quantidade pequena de droga que possibilite o consumo imediato, evitando risco de armazenamento que exceda o consumo compartilhado; (d) consumo sem transcendência social; e (e) identificação das pessoas que

integram

o

grupo

de

consumidores.

Ausentes

estas

circunstâncias, a atividade de intermediação de drogas passaria a ser considerada punível em virtude de a conduta não excluir o risco potencial ao bem jurídico. A Sala Penal do Tribunal Supremo, ao julgar caso com características não muito distintas – Recurso de Casación 81/2002 (Resolución 237/2003) –, manteve decisão da Sección Tercera da

Audiencia Provincial de Valencia que, em 14.11.01, absolveu réu denunciado pela prática de delito de tráfico de entorpecentes. Ao apreciar o recurso do Ministério Público, a Suprema Corte julgou a matéria, apresentando a seguinte ementa: “Delito contra la Salud Pública – Atipicidad del consumo compartido



Aprehensión

de

100

pastillas

de

MDMA

desconociendo porcentajes de pureza, destinadas a una celebración de cumpleaños entre 25 personas – Cumplimiento de los requisitos que exige la jurisprudencia para permitir tal atipicidad – Importancia del análisis individualizado de cada caso – Desestimación del recurso del Ministerio Fiscal”.374 No relatório os julgadores apresentam a síntese do caso: o recorrido fora preso em flagrante portando 100 pastilhas de ecstasy (MDMA), que analisadas apresentaram peso líquido de 21,74 gramas de substância entorpecente. Segundo a prova produzida, as pastilhas teriam sido adquiridas pelo acusado, em concurso com inimputável (menor de idade), e eram destinadas para o consumo de grupo de amigos por ocasião de festa de aniversário. Os participantes do evento, de comum e prévio acordo, haviam colaborado com quantidade em dinheiro, cerca de 2.000 pesetas por pessoa, para comprar as pastilhas e reparti-las durante a festa. O total da aquisição foi de 50.000 pesetas. Ao não ser comprovada a

destinação de tráfico ou a obtenção de lucro patrimonial ilícito, a versão

defensiva

foi

adotada

pelos

magistrados,

sendo

desclassificada a conduta de tráfico para uso pessoal, na modalidade compartilhada, circunstância que definiu sua atipicidade. O Ministério Público recorreu, argumentando não estarem presentes os cinco requisitos exigidos pela jurisprudência da Sala Penal da Suprema Corte. Acontece

que

o

Tribunal

Supremo

manifestou-se

favoravelmente ao julgado da Corte de Valencia, alterando, inclusive, alguns dos pressupostos tradicionalmente aplicados. A modificação mais evidente e substancial foi a que tange ao requisito de que todos os membros do grupo de uso conjunto devessem ser dependentes. Em relação à condição toxicômanos, a decisão aduziu que o motivo de inclusão desta circunstância (dependência) como pressuposto da desclassificação é evitar a captação ou integração no grupo de terceiros não consumidores. Neste quadro, a interpretação foi no sentido de identificar nos integrantes do grupo certo padrão de consumo, no caso as formas usuais de uso das drogas sintéticas – o ecstasy (MDMA) é derivado sintético da anfetamina. Em sendo comum o consumo de fim de semana, geralmente no contexto de festas, houve o reconhecimento formal pela Corte da possibilidade de desclassificação do consumo compartilhado em situações de não dependentes. 375

O julgado é paradigmático pois determina reformulação importante da condição de toxicômano como requisito para aplicação do consumo compartilhado, não devendo ser interpretado o critério como de direcionamento exclusivo aos dependentes stricto sensu, podendo ser ampliado aos consumidores eventuais. A relativização do requisito passou a ser constante nos julgamentos da Corte. Outra abordagem interessante da decisão diz respeito à exigência de quantidade pequena de droga, capaz de ser consumida no evento, de forma a se evitarem riscos de proliferação para não consumidores através do armazenamento (transcendência social).

O

julgado

reafirmou

a

necessidade

de

haver

proporcionalidade entre o número de pessoas integrantes do grupo de compartilhamento e a quantidade de droga. No caso, eram 25 pessoas, tendo sido apreendidas 100 pastilhas com pesagem de 21,74 gramas. 376 A quantidade foi admitida não apenas pela inexistência de dados quanto à pureza de cada pastilha, mas pelo fato de estarem presentes os critérios jurisprudenciais de verificação do uso. A doutrina espanhola conceitua o consumo compartilhado de entorpecentes como modalidade de autoconsumo não punível, sendo “la base argumental con que se llega a la impunidade es la de que, siendo la salud pública un bien jurídico colectivo, no padece tal

bién cuando no concurre o hay riesgo o peligro para la salud de terceros que (em caso del consumo compartido entre adictos) las cantidades disponibles por los copartícipes no rebasen los límites de un consumo normal y sea inmediato, y no medie contraprestación remuneratoria alguna por parte de los drogodependientes; es pues un razonamiento basado en criterios de antijuricidad material”. 377 A construção da tese, segundo a lição de Calderón Susín, é direcionada essencialmente a dois grupos: (a) os toxicômanos que usam conjuntamente drogas e (b) usuários eventuais que formam fundo comum destinado a adquirir a droga para uso compartilhado em ocasiões específicas. 378 A recepção da tese pela jurisprudência nacional inegavelmente possibilitaria redução substancial do nível de encarceramento nos casos de consumo por grupos. No Brasil, a observação das variações jurisprudenciais permite afirmar que normalmente nestas circunstâncias são imputadas condutas relacionadas às hipóteses de tráfico. Mais: não invariavelmente nestas circunstâncias, em face do número de pessoas envolvidas, a imputação de tráfico tende a ser fixada em concurso material (art. 69, CP) com as figuras relativas à associação. Notório, portanto, serem absolutamente desproporcionais os efeitos deste tipo de interpretação, sendo fundamental a incorporação da jurisprudência penal comparada

como fonte de alteração dos rumos do direito penal das drogas no Brasil.

11.3. Condutas do Art. 33, caput, Imunes aos Efeitos da Lei dos Crimes Hediondos e dos Arts. 33, § 4º, e 44 da Lei 11.343/06 A Constituição de 1988, em seu art. 5º, XLIII, equiparou o tráfico de entorpecentes e drogas afins aos crimes hediondos, posteriormente descritos na Lei 8.072/90, vedando-lhes os institutos da fiança, da graça e da anistia. No entanto, como visto anteriormente, em face da pluralidade de verbos nucleares do tipo do art. 33 da nova Lei de Entorpecentes, nem todas as condutas previstas

podem

ser

classificadas

como

tráfico

ilícito

de

entorpecentes. O problema de análise proposto é idêntico ao que ocorrera quando da vigência do art. 12 da lei revogada, e naquela ocasião alertava Alberto Silva Franco: “Em face da Lei 6.368/76, não se pode fugir à consideração de que inexiste, no direito penal brasileiro, figura típica que atenda pelo nomen iuris de tráfico ilícito de entorpecentes.” 379 Fundamental, portanto, estabelecer os critérios de classificação das

condutas

entorpecentes

passíveis e

drogas

da afins

adjetivação

tráfico

(terminologia

ilícito

de

constitucional),

realizando processo de clausura do tipo penal do art. 33 da Lei 11.343/06. A finalidade é minimizar a extensão dos efeitos derivados

da norma constitucional e do legado que a Lei dos Crimes Hediondos presentifica na nova Lei de Drogas. Salientou-se a necessidade de averiguação do especial fim de agir para que se possa enquadrar determinado fato nas hipóteses do art. 33, sobretudo quando as condutas são igualmente previstas no art. 28 da Lei de Tóxicos. Assim, para a caracterização de condutas, como adquirir, guardar, depositar, transportar e trazer consigo, necessário, conforme exposto, a verificação da intenção comercial, ou seja, este desígnio mercantil tem a possibilidade de migrar a ação do tipo do art. 28 para o do art. 33 ou, em caso de falta, operar sua desclassificação. Contudo, importante dizer que esta mesma finalidade não possibilita classificar indistintamente todas as condutas previstas no art. 33 como hediondas, pois em inúmeros casos a previsão típica comissiva do agir não se coaduna com a natureza mercantil. Para que se possam qualificar determinadas condutas como tráfico de entorpecentes, a marca distintiva do seu verbo constitutivo deve expor atos marcadamente de comércio – importar, exportar e vender, notadamente. A mera intencionalidade diversa do consumo pessoal em ações cujo verbo nuclear não está caracterizado por modalidade mercantil – v.g. remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, oferecer, depositar, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar e fornecer –, efetivamente pode

produzir a migração da conduta, submetendo-a à penalidade mais rigorosa do art. 33 da Lei 11.343/06. Todavia, em vista de sua incompatibilidade semântica com os atos comerciais, não adquire a natureza de tráfico, sendo incabível sua equiparação aos crimes hediondos. Ademais, admitir que o elemento subjetivo além de qualificar a ação assinale o rótulo de hediondo representaria dupla valoração de circunstância única, interpretação vedada pelo princípio da proibição da dupla incriminação (ne bis in idem). A complexidade do problema pode ainda ser potencializada se aos 18 (dezoito) verbos presentes no art. 33 da Lei de Entorpecentes forem agregados os relativos aos precursores (art. 33, § 1º, I 380) e ao modo de produção (art. 34 381), ao plantio (art. 33, § 1º, II 382 )e às formas de estímulo (art. 33, § 2º 383), de auxílio logístico (art. 33, § 1º, III 384) ou de oferecimento eventual sem objetivo de lucro (art. 33, § 3º 385). A quantidade assustadora de hipóteses previstas como delito no art. 33 da Lei de Drogas demonstra a necessidade de se restringir a incidência da valoração como crime hediondo, pois nem todas as ações descritas nos referidos artigos podem ser subsumidas à categoria tráfico de entorpecentes. A chave interpretativa que melhor possibilita a constrição do horizonte de punitividade é aquela que qualifica como tráfico apenas os comportamentos

cuja

natureza

identifica

ato

comercial, 386

basicamente os de importação, exportação, venda e exposição à venda de substâncias entorpecentes. Todos os demais, inclusive aqueles relacionados à produção, não se compatibilizam com a noção constitucional de tráfico de drogas, estando blindados pelo princípio da legalidade dos efeitos da Lei 8.072/90. Outrossim, conforme o entendimento dos Tribunais, imunes à adjetivação de hediondas as condutas adequadas às figuras do art. 35 da Lei de Entorpecentes, em analogia à interpretação dada ao art. 14 da Lei 6.368/76. Frise-se, vez mais, ser fundamental o processo de fechamento dos tipos dos arts. 33 e 34 da Lei de Tóxicos em decorrência da quantidade inominável de condutas previstas como delito. É que o art. 44, caput e parágrafo único, da Lei 11.343/06 vedou aos crimes previstos no art. 33, caput e § 1º, e nos arts. 34 a 37 a fiança, o sursis, a graça, o indulto, a anistia e a liberdade provisória, impedindo, ainda, a conversão das penas em restritivas de direitos – a vedação da conversão está igualmente prevista no art. 33, § 4º 387. Não obstante, para estas hipóteses, aumentou o prazo do livramento condicional para dois terços, vedando sua concessão ao reincidente específico. Inegável perceber que a obstrução aos direitos trazida pela Lei de Drogas é derivativa do comando constitucional sobre crimes hediondos, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, tortura e

terrorismo (art. 5º, XLIII, CR), reforçada pela ampliação excessiva produzida

pela

Lei

dos

Crimes

Hediondos

(Lei

8.072/90).

Excetuando-se a progressão de regime, cuja vedação fora julgada inconstitucional pelo STF, todas as demais restrições foram retomadas. Acontece que a jurisprudência nacional havia limitado os efeitos da equiparação constitucional do tráfico aos crimes hediondos

tão

somente

àquelas

condutas

de

natureza

eminentemente comercial, estabelecendo tratamento diferenciado entre as distintas ações do art. 12 da Lei 6.368/76. No entanto, em sendo o tipo penal revogado reincorporado ao cenário jurídico pelo art. 33 da Lei 11.343/06, inegável a necessidade de distinção entre as condutas, como fizeram anteriormente os Tribunais nacionais, sob pena de ofensa ao princípio da proporcionalidade. E não há outra forma de diferenciar senão eximindo as ações diversas da atividade comercial da incidência do art. 44, caput e parágrafo único, e do art. 33, § 4º, da Lei de Tóxicos. Note-se que na própria construção do tipo incriminador há lesão à proibição de excesso quando são equiparadas várias condutas absolutamente diversas com idêntica sanção. Como frisado anteriormente, não existe relação de proporcionalidade possível na previsão de pena de reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e multa para condutas tão distintas como

importar, exportar e vender e adquirir, ter em depósito, trazer consigo, guardar e entregar ou fornecer gratuitamente. Assim, em face da paridade no tratamento de ações absolutamente díspares, o controle de constitucionalidade (difuso ou concreto) deve ser efetivado de duas formas: (a) eximindo as condutas sem finalidade mercante das graves penas impostas ou facultando-lhes aplicação da minorante do artigo e (b) blindando estes verbos da incidência do art. 44, caput e parágrafo único. Inexiste forma diversa de reduzir os efeitos da Lei dos Crimes Hediondos senão pela via da interpretação constitucional. No caso, a herança da Lei 8.072/90 na Lei 11.343/06 deve ser contida em decorrência de projetar gravames de punibilidade equânimes para circunstâncias autônomas que derivam lesões absolutamente diversas ao bem jurídico tutelado.

11.4. A Inconstitucionalidade do Art. 34 (Criminalização de Atos Preparatórios) e os Problemas Relativos ao Crime do Art. 35 (Associação para o Tráfico) da Lei de Entorpecentes A definição precisa das etapas do iter criminis, sobretudo da diferenciação entre atos preparatórios e atos de execução, é questão central na dinâmica dos processos de criminalização, sendo um dos temas mais explorados no desenvolvimento da teoria do delito, exatamente por estabelecer baliza formal à imputação.

Lembra Bitencourt que “os critérios mais aceitos são os do ‘ataque ao bem jurídico’, critério material, quando se verifica se houve perigo ao bem jurídico, e do ‘início da realização do tipo’, critério formal, que foi adotado pelo Código Penal brasileiro”. 388 De qualquer forma, independentemente do critério (formal ou material), a legitimidade da incriminação advém da proibição de determinada conduta que, posta em movimento (iniciada), represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado. Motivo pelo qual os atos preparatórios

são

impuníveis,

a

menos

que

se

assuma

explicitamente a justificativa etiológico-positivista dos modelos criminológicos de autor, cujo fundamento da norma proibitiva é centrado exclusivamente no juízo de periculosidade do autor e na probabilidade do dano consequente de sua conduta futura. Assim, em modelos de direito penal do fato, regrados processualmente pela presunção constitucional de inocência e pelo devido processo legal, descarta-se a criminalização dos atos de preparação por não representarem perigo concreto ao bem jurídico e estarem distantes do início da realização do verbo do tipo. Contudo, o modelo de intervenção omnicompreensivo (Munõz Conde) que prescinde os sistemas proibicionistas, cujo escopo é a punibilidade integral do ciclo da droga – da mínima contribuição ao consumo –, produz leis penais que ofuscam os critérios mínimos de

razoabilidade. No caso do direito penal das drogas, o efeito é a criminalização de condutas essencialmente preparatórias. Ao avaliar os sistemas de criminalização das drogas na Europa, Muñoz Conde sustenta que “el resultado de esta extensión desmesurada del tipo es que se consideran como delitos consumados lo que en puridad de principios serían formas imperfectas de ejecución o incluso simples actos preparatorios (...). Los límites entre infracción criminal y comportamiento penalmente irrelevante por atípico quedan así muy difuminados y se corre el riesgo de hacer intervenir al Derecho penal em estádios muy alejados de la simple puesta en perigo del bien jurídico protegido”. 389 A estrutura do art. 34 da Lei 11.343/06 evidencia o problema exposto ao prever como crime, sujeito à pena de reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos e multa, “fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas (...)”. O art. 34 da Lei de Entorpecentes não apenas expõe sua natureza de ato preparatório ao vincular os verbos nucleares aos instrumentos e objetos de destinação à produção de drogas, violando o princípio da lesividade, como cria tipo penal vago e

impreciso, em frontal ofensa à taxatividade (previsibilidade mínima). Greco Filho, em comentário ao art. 13 da Lei 6.368/76, 390 diagnosticava a indeterminação desta espécie de tipo penal incriminador de comércio e manutenção de maquinário e de instrumento de preparação de entorpecentes em face de “não existirem

aparelhos

de

destinação

exclusivamente

a

essa

finalidade”. 391 Não

por

outros

motivos

é

necessário

questionar

sua

constitucionalidade. E nesta perspectiva as lições do Tribunal Constitucional da Espanha são novamente paradigmáticas. Streck e Cattoni de Oliveira lembram que, em 1988, o Tribunal Constitucional espanhol declarou inconstitucional dispositivo do Código Penal que punia quem “tuviera en su poder ganzúas y otros instrumentos destinados especialmente para ejecutar el delito de robo y no diere descargo suficiente sobre su adquisición o conservación”. O fundamento da decisão, ancorado nos princípios de lesividade e do devido processo legal, foi o de que a mera posse de instrumentos idôneos para executar delito não pode presumir a finalidade e o destino que lhe dará o possuidor. 392 A incriminação de atos através da projeção de condutas futuras é inadmissível em regimes processuais penais balizados pelo princípio da presunção de inocência.

No mesmo sentido o entendimento de Maria Lúcia Karam, ao avaliar o texto da nova lei: “Repetindo dispositivos da Lei 6.368/76, a Lei 11.343/06 reafirma a antecipação do momento criminalizador da produção e da distribuição das drogas qualificadas de ilícitas, seja abandonando as fronteiras entre consumação e tentativa, com a tipificação autônoma de condutas como sua posse, transporte ou expedição, seja com a tipificação autônoma de atos preparatórios como o cultivo de plantas ou a fabricação, fornecimento ou simples posse

de

matérias-primas,

insumos

ou

produtos

químicos

destinados à sua preparação, ou mesmo a fabricação, transporte, distribuição ou simples posse de equipamentos, materiais ou precursores a serem utilizados em sua produção. A criminalização antecipada viola o princípio da lesividade da conduta proibida, assim violando a cláusula do devido processo legal, de cujo aspecto de garantia material se extrai o princípio da proporcionalidade expressado no princípio da lesividade”. 393 Assim, parece absolutamente razoável o argumento da inconstitucionalidade do art. 34 da Lei 11.343/06, sobretudo porque intervenções

omnicompreensivas

como

esta

“conducen

necesariamente a una política penal y policial autoritária (...)”. 394 De igual forma conclui Zaffaroni: “(...) es inadmisible que, para penar las conductas que afectan bienes jurídicos – el tráfico y similares – se

criminalice un ámbito mucho más extenso, abarcando una inmensa mayoría de acciones sin bienes afectados.” 395-396 No entanto, a ideia de Muñoz Conde de criminalização omnicompreensiva resta confirmada na análise do art. 35 da Lei de Drogas, que incrimina a associação para o tráfico: “Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei”. A forma de redação do tipo penal parece desconhecer a existência das regras de concurso de agentes, previstas no art. 29 do Código. Lembra Daniel Nicory Prado que o tipo absorve a maior parte das hipóteses de concurso de pessoas e que “nem sempre a cooperação criminosa é levada em consideração para agravar a situação jurídica do agente, e, mesmo quando isso ocorre, não necessariamente isso se dá pela configuração de um crime autônomo”. 397 Mas para além dos problemas técnico-dogmáticos, a estrutura típica é uma das chaves para a compreensão do encarceramento em massa, pois não apenas permite uma dupla imputação no caso de concurso de agentes (concurso material entre as condutas de tráfico

e

a

associação

para

o

tráfico),

como

incrimina

autonomamente hipóteses de participação, inclusive de menor importância, e permite qualificar o crime como hediondo.

A incriminação é, portanto, evidentemente desproporcional, não apenas pela quantidade de pena que estabelece, mas, sobretudo, pelo requisito do número de pessoas para a configuração do delito. Conforme destaca Prado, “a desproporcionalidade é tamanha que até a Convenção de Palermo, tratado internacional destinado ao combate ao crime organizado, promulgada no Brasil, exige pelo menos três agentes para configurar a organização criminosa. A Lei de Drogas, para tratar como crime autônomo o concurso de agentes, contentou-se com dois”. 398

11.5. Causas de Aumento de Pena Decorrente de Transnacionalidade e Transregionalidade do Tráfico (art. 40, I e V): Proibição de Dupla Incriminação O art. 40 da Lei 11.343/06 elenca as causas especiais de aumento de pena (majorantes) nos casos de tráfico e suas variáveis (arts. 33 a 37). Dentre as circunstâncias de majoração, a Lei de Drogas previu os casos de (a) a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito (inciso I) e (b) a conduta caracterizar tráfico entre Estados da Federação ou entre estes e o Distrito Federal (inciso V).

Ocorre que nestes casos verifica-se a possibilidade de violação ao princípio da proibição da dupla valoração das circunstâncias (ne bis in idem), fato que impõe seja realizada interpretação constitucional corretiva. Antes, contudo, de adentrar no mérito do problema, sobretudo relativo à questão da importação e exportação, imprescindível avaliar a caracterização do iter criminis do tráfico de entorpecentes.

11.5.1. Requisitos de Configuração da Exportação e da Importação Problema

relevante

na

definição

das

hipóteses

de

transnacionalidade ou transregionalidade do comércio ilegal de drogas é a precisa definição da natureza dos atos meramente preparatórios, da tentativa, da consumação e do exaurimento. Os primeiros verbos nucleares do tipo do art. 33 da Lei 11.343/06 referem modalidades específicas de comércio interregional de drogas ilícitas, ampliando as modalidades de importação e de exportação previstas na Lei 6.368/76, a qual se limitava ao âmbito

internacional. 399

A

Lei

de

Entorpecentes

incluiu

explicitamente o tráfico entre Estados da Federação e com o Distrito Federal. O momento consumativo dos verbos nucleares importar e exportar é, portanto, o da ultrapassagem das fronteiras estaduais ou do território nacional, com a saída ou o ingresso da mercadoria

entorpecente ilícita. Assim, se não há efetiva transposição dos limites territoriais, o delito não se consuma, restando a conduta no plano estrito da tentativa (art. 14, II, CP). 400 Em caso idêntico as modalidades de produção e remessa. 401 Incabível, nos atos de importação e exportação sem que haja a efetiva transposição dos limites estaduais ou nacionais, pensar na incidência do verbo transportar, na modalidade consumada, vista a definição da tipicidade pelo elemento subjetivo – vontade livre e consciente de ultrapassar substância entorpecente pelas fronteiras. Ademais, interessante notar que os atos de importação e de exportação conglobam outras três modalidades de ação previstas como autônomas no art. 33 da Lei 11.343/06, pois para que haja o comércio inter-regional é imprescindível a compra (aquisição), a venda e a remessa ou transporte do produto. Assim, em caso de internacionalidade ou interestadualiade, os verbos importar e exportar consomem a aquisição, a venda e a remessa ou o transporte, decorrência de sua especialidade em relação aos demais.

11.5.2. As Majorantes Relativas à Transnacionalidade e Transregionalidade Definida a extensão e os limites da tipicidade, bem como o momento consumativo, imprescindível avaliar o (des)cabimento das

causas especiais de quantificação de pena previstas no art. 40, I e V, da Lei de Entorpecentes. É que gramaticalmente as condutas importar e exportar prescindem a introdução ou a saída de produtos, no caso entorpecentes, de Municípios, Estados ou nações – o termo exportar é definido como “vender (algo), remetendo-o para fora do país, estado, município ou região que o produziu”. 402 A tipicidade do art. 33 da Lei 11.343/06, nas modalidades de comércio interregional, requer como conditio sine qua non a transposição da droga por fronteiras, estaduais ou nacionais, sendo este o âmbito de incidência da norma. Como visto anteriormente, não são todos os verbos nucleares do tipo do art. 33 que podem ser enquadrados nas formas de tráfico de entorpecentes, mas apenas aqueles cuja natureza mercantil é notória. Assim, em não sendo irrestrita a aplicação, em primeira análise a majorante somente poderia incidir em atos típicos de comércio. Contudo, acredita-se que sequer nestas modalidades de comércio exterior ou regional haveria possibilidade de sua aplicação. É que se aos atos específicos de importação e de exportação – incluindo neles as condutas genéricas de produção, aquisição, venda, remessa ou transporte – é imprescindível a transposição das fronteiras, ou seja, é fundamental que exista a relação de comércio com o país ou Estado alienígena, a aplicação

das causas de aumento de pena implicaria violação ao princípio do ne bis in idem. Em sendo o tráfico (comércio) circunstância elementar das formas de importação e exportação previstas no tipo penal do art. 33, em cuja ausência o delito não se consuma, a aplicação das majorantes opera como dobra punitiva, ofendendo a regra da proibição da dupla incriminação. Vedada, pois, a incidência da causa de aumento de pena na terceira fase do processo sancionatório.

11.6. Financiamento e Custeio do Tráfico (art. 40, VII) e o Crime Autônomo do Art. 36 da Lei 11.343/06 A Lei 6.368/76, em seu art. 14, previa como crime autônomo a associação de duas ou mais pessoas com intuito de praticar comércio ilegal de drogas. Acontece que também previa como causa especial de aumento de pena se a prática dos delitos previstos nos arts. 12 e 13 decorresse de associação (art. 18, III, primeira parte). Segundo Paulo Queiroz, em parecer exarado em Apelação Criminal perante o TRF da 1ª Região, é de convir que as espécies de associação descritas nos arts. 14 e 18, III, da Lei 6.368/76 tratam de imputação idêntica: “Daí por que a única conclusão possível em face de toda situação que ora se examina, considerando-se que a lei não possui palavras inúteis, é a de que o

crime de associação para o tráfico (art. 14) somente subsiste se o grupo não chegar a praticar efetivamente o tráfico de drogas. Todavia, se porventura isto vier a se verificar, deve ser aplicado o art. 12, c/c art. 18, III, da Lei n. 6.368/76, não havendo espaço na norma para o pretendido concurso material, sob pena de ocorrer bis in idem”. 403 No caso do financiamento e do custeio do tráfico de entorpecentes, previstos como crimes autônomos no art. 36 da Lei 11.343/06, 404 há situação similar, pois nota-se igualmente sua previsão como majorante no art. 40, VII. 405 Ademais, a pena para o crime de financiamento e de custeio é a mais severa prevista na Lei de Drogas. O raciocínio corretivo do excesso deve ser o mesmo daquele realizado anteriormente em relação às hipóteses de associação, qual seja da inadmissibilidade de eventual concurso material (art. 69, CP) entre o art. 33, caput ou § 1º, com o art. 36 da Lei 11.343/06, em face da previsão da causa de aumento de pena do art. 40, VII. Desta forma, em caso de financiamento ou custeio do tráfico de entorpecentes, a tipicidade se perfaz pela combinação do art. 33, caput ou § 1º, com o art. 40, VII.

11.7. A Questão do Traficante-Dependente: Ausência de Conflito entre o Art. 33 e o Art. 45 da Lei 11.343/06

O discurso penal no campo das drogas historicamente polarizou a resposta punitiva entre traficante e consumidor/dependente. Todavia, como é típico das simplificações maniqueístas, esta dicotomia acabou por ofuscar inúmeras possibilidades de interação entre tráfico-uso-dependência, sobretudo porque, como sempre ocorre, a realidade demonstra-se muito mais rica e complexa do que o emaranhado de soluções contraditórias propostas pela dogmática do direito penal e processual penal. Os arts. 45 e 46 da Lei 11.343/06 estabelecem os critérios de isenção 406 e de diminuição 407 da culpabilidade do agente que comete, em virtude da dependência ou sob efeito fortuito da droga, qualquer espécie de delito. Os dispositivos legais preveem, portanto, duas situações com resultados diversos. A primeira é o caso da prática de delito, previsto na Lei de Drogas ou em qualquer outro estatuto penal, em decorrência de dependência. O imputado, por força do abuso de drogas ilícitas, torna-se adicto e, em razão de a dependência causar diminuição ou ausência na capacidade de entendimento ou de determinação, realiza fato típico e ilícito. Neste caso, conforme a extensão dos efeitos da toxicomania, será isento de pena ou será aplicada pena reduzida. A segunda hipótese é a do sujeito que pratica delito sob o efeito de drogas proveniente de consumo realizado em situações de caso

fortuito ou força maior. Segundo esta previsão, o imputado não é dependente, mas ingere involuntariamente substância entorpecente que lhe retira, total ou parcialmente, a capacidade de compreensão e determinação. Da mesma forma que a previsão anterior, dependendo dos efeitos produzidos pela ingestão acidental, haverá exclusão ou diminuição da sanção criminal. Nas definições da Lei de Drogas estão previstas, portanto, as consequências

dos

problemas

decorrentes

entorpecentes.

São

os

de

casos

do

abuso

inimputabilidade

ou

de de

imputabilidade diminuída, previstos genericamente na Parte Geral do Código Penal, especificamente no art. 26, caput e parágrafo único. 408 Na hipótese do consumo involuntário por caso fortuito ou força maior, os dispositivos da Lei 11.343/06 seguem a orientação estabelecida aos casos de embriaguez (art. 28, §§ 1º e 2º, CP) 409. Como o Código Penal, a Lei de Drogas deixa evidente a diferença entre as formas de verificação e de valoração da culpabilidade na teoria do delito (atribuição de responsabilidade penal) e na teoria da pena (consequências jurídicas do delito). Se no processo de identificação da responsabilidade do sujeito pelo fato ilícito praticado a culpabilidade opera qualitativamente, como fundamento sem o qual impossível averiguar a existência do crime, na fase de aplicação da pena atua como mecanismo quantificador. Se na primeira etapa a indagação provém da análise se o réu é ou

não culpável – inteiramente capaz de compreender o caráter ilícito do fato e de determinar-se conforme esse entendimento –, após a caracterização do delito o interrogante é o quanto culpável era o autor no momento da ação ou da omissão. Por isso, nesta a pena é reduzida e naquela excluída. Conforme ensina Bitencourt, “a culpabilidade, aqui [aplicação da pena], funciona como elemento de determinação ou de medição da pena. Nessa acepção, a culpabilidade funciona não como fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja imposta aquém ou além da medida revista pela própria ideia de culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios, como a importância do bem jurídico, fins preventivos etc.”. 410 O quadro conceitual apresentado não difere em nada daquele presente quando da vigência da Lei 6.368/76. Desta forma, importante

pautar

crítica

a

determinados

posicionamentos

jurisprudenciais para que não tenham aplicação ultrativa. É que considerável tendência jurisprudencial, em nítida negativa de vigência aos dispositivos da Lei 6.368/76 – determinação de aplicação a “qualquer que tenha sido a infração penal praticada” (art. 19, caput) –, entende como inaplicável a exclusão ou a diminuição da culpabilidade em caso de imputação de tráfico de entorpecentes, restringindo-se apenas aos casos previstos no art. 16, situação jurídica correspondente ao art. 28 da Lei 11.343/06. Há,

inclusive, julgados que expressam a desnecessidade de realização do exame de dependência quando a acusação descrever hipóteses de comércio ilegal. 411 Se a Lei 6.268/76 e a nova Lei de Entorpecentes preveem expressamente a possibilidade de aplicação das causas de diminuição

ou

de

exclusão

de

culpabilidade

em

qualquer

modalidade delitiva, torna-se absolutamente ilógico a jurisprudência limitá-las, mormente quando da dificuldade de realizar o juízo de tipicidade nas condutas descritas nos arts. 28 e 33. Seria como, p. ex., definir jurisprudencialmente que determinadas causas de exclusão de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito) não teriam aplicabilidade em determinados delitos ou que a própria inimputabilidade etária (art. 27, CP) fosse aplicável apenas em casos específicos. Como é notório, as regras de definição de crimes e as corolárias hipóteses de exclusão, bem como os mecanismos de atribuição e isenção de pena, têm aplicabilidade universal, dado o caráter genérico da estrutura das teorias do delito e da pena moldadas pelo princípio da legalidade. Assim, as causas legais e supralegais de exclusão de culpabilidade – como poderiam ser de tipicidade ou de ilicitude – são aplicadas ao direito penal das drogas sem limitação aos tipos que incriminam as diversas modalidades de comércio. Neste sentido,

importante entendimento jurisprudencial admitindo a aplicação da excludente da inexigibilidade de conduta diversa reforça o argumento anteriormente exposto: “Réu pobre e que, necessitando trabalhar pela noite e madrugada, se vale de drogas para manter-se acordado. Inexigibilidade de conduta diversa, falta de reprovação da conduta e consequente ausência de punibilidade.” 412 Inequívoco que em sendo constatado o nexo de causalidade entre a dependência (ou a ingestão involuntária) e o delito praticado, impõe-se

absolvição

sucedida

de

avaliação

criteriosa

para

individualização do tratamento. Importantes precedentes do STF e do STJ amparam o argumento. 413 Seguindo a lógica dos julgados, se admissível a redução da pena ao semi-imputável, indiscutível sua isenção aos delitos praticados em circunstâncias de uso próprio ou de mercancia de substância ilícita. A ausência de culpabilidade em virtude da dependência não apenas minimiza como exime de pena o absolutamente incapaz. Conclui-se, pois, não haver qualquer incompatibilidade em isentar de pena, conforme a previsão dos arts. 45 e 46 da Lei de Drogas, o agente ao qual foi imputado o delito do art. 33 do referido estatuto. Em sendo caso de exclusão de culpabilidade, e, portanto, de delito, a decisão necessariamente será absolutória, devendo, por decorrência lógica, não ser determinada pena, mas tratamento

médico adequado (internação ou ambulatorial) na forma do art. 45, parágrafo único, da Lei 11.343/06. 414

11.8. (Im)Possibilidade de Substituição de Pena Privativa de Liberdade por Restritiva de Direito: Inconstitucionalidade do Art. 44 da Lei 11.343/06 A Lei 9.714/98, alterando o art. 44 do Código Penal, estabeleceu novos requisitos para substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, a dizer: “I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena, se o crime for culposo; II – o réu não for reincidente em crime doloso; III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente”. O problema colocado à jurisprudência nacional após a publicação da Lei das Penas Alternativas foi relativo à aplicação de pena próximo ao mínimo legal em casos de imputação pelo art. 12 da Lei 6.368/76. Como a sanção variava entre 3 (três) e 15 (quinze) anos, havia possibilidade de fixação abaixo de 4 (quatro) anos, mormente nos casos em que o réu fosse primário, sendo viável a pena restritiva de direito visto estar adequada à quantidade permitida em lei e não ser

o tráfico crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa (crime contra a saúde pública). Ao serem valoradas como favoráveis as circunstâncias judiciais (art. 59, caput, CP) e em não sendo o imputado reincidente (art. 63, CP), a pena necessariamente deveria ser fixada próxima ao mínimo legal. A propósito, mesmo no caso de ser o réu reincidente ou possuir maus antecedentes, restando a pena abaixo dos 4 (quatro) anos e não sendo esta reincidência específica, por força da relativização do instituto operada pelo § 3º do art. 44, 415 permaneceria a possibilidade substitutiva. Ocorre que grande parte da doutrina e da jurisprudência, seguindo orientação dos Tribunais Superiores, entendeu como incompatível a possibilidade de pena alternativa em decorrência da adjetivação hedionda do delito de tráfico de entorpecentes, mesmo nos casos de adequação aos critérios formais de substituição. No entanto, este entendimento não estava em consonância com o texto da legislação vigente à época. Por ter sido a Lei 9.714/98 publicada após a Lei 8.072/90, ao estabelecer os critérios limitativos à possibilidade de substituição – v.g. pena superior a 4 (quatro) anos, crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa,

reincidente

específico

e

desfavorabilidade

das

circunstâncias judiciais –, inegavelmente deveria o legislador, se assim o desejasse, inserir vedação aos delitos hediondos e

equiparados. Todavia não o fez, não havendo, naquelas hipóteses, qualquer limitação quanto à natureza (hedionda) do crime. Ao destoar da orientação majoritária, algumas decisões de vanguarda vinham aplicando penas alternativas mesmo nos casos de condenação por tráfico de entorpecentes. No caso de favorabilidade das circunstâncias judiciais e legais, isto é, quando a pena

aplicada

no

mínimo

legal

denotava

baixo

grau

de

reprovabilidade da conduta, a substituição tornava-se viável. 416 Seguindo esta linha, o STF alterou o rumo de sua jurisprudência, admitindo as hipóteses de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito. 417 No entanto, com o novo cenário normativo, fundamental rediscutir a possibilidade, sobretudo em decorrência de eventuais dubiedades que a Lei de Tóxicos possa gerar. Como visto anteriormente, as penas aplicadas ao tipo-base do tráfico de entorpecentes (art. 33, caput) foram elevadas, em seu mínimo, de 3 (três) para 5 (cinco) anos. Este aumento, por si só, inviabilizaria a substituição da prisão por pena restritiva em decorrência do critério objetivo quantidade de pena. No entanto, a previsão de causa especial de diminuição no § 4º do art. 33, que atinge as condutas do art. 33, caput e § 1º, bem como as penas mínimas aplicadas aos casos dos arts. 34, 35 e 37, revalidam a discussão.

O art. 44 da Lei 11.343/06 estabelece como inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos, os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37. A discussão se torna relevante neste ponto para que se estabeleçam critérios conceituais claros, de modo a evitar equívocos. Em primeiro lugar, é fundamental distinguir dois institutos diversos, referentes a momentos distintos da persecução penal: a substituição e a conversão de pena privativa de liberdade por restritiva de direito. Isto porque o art. 44 da Lei 11.343/06 vedou, em princípio, a conversão, não a substituição da pena. Assim, não haveria qualquer óbice de o magistrado, após realizar o juízo condenatório, ao fixar a pena seguindo o itinerário prescrito nos incisos do art. 59, CP, substituir a pena de prisão pela restritiva de direito. A aplicação do instituto da substituição ocorre no momento da sentença penal condenatória, quando o juiz, depois de (a) definir as penas aplicáveis dentre as cominadas (art. 59, I, CP), (b) determinar a quantidade de pena aplicável (art. 59, II, c/c art. 68, CP) e (c) fixar o regime inicial de cumprimento, avalia as possibilidades de alteração da espécie de pena, ou seja, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito (art. 59, IV, CP). Neste último momento de definição da pena,

avaliando os requisitos do art. 44 do CP, o julgador opera o câmbio da pena se presentes os requisitos objetivos e subjetivos. Nota-se, portanto, que se aplicada a minorante do § 4º do art. 33 às condutas do art. 33, caput e § 1º, ou se forem aplicadas penas próximas do mínimo legal nos eventos relacionados pelos arts. 34, 35 e 37, inexiste óbice à substituição. Assim, o entendimento proposto é o de que vedação prevista pela Lei 11.343/06 não diz respeito à incidência do art. 59, IV, combinado com o art. 44 do CP, mas aos casos previstos no art. 180 da LEP, que especifica: “A pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá ser convertida em restritiva de direitos, desde que: I – o condenado a esteja cumprindo em regime aberto; II – tenha sido cumprido pelo menos um quarto da pena; III – os antecedentes e a personalidade do condenado indiquem ser a conversão recomendável”. Nas hipóteses de conversão, o magistrado sentenciante determina pena privativa de liberdade que, a partir de incidente no processo da execução, é transformada em restritiva de direito. Diferentes, pois, os institutos, seja pela sua natureza jurídica, seja pelo seu momento e sua forma de aplicação. Assim, inexistiria motivo para qualquer vedação à aplicação de pena restritiva de direitos nos casos mencionados. Do contrário, estender o efeito do instituto de execução à fase de aplicação da pena não apenas significa negar vigência ao art. 44 do CP, como implicaria a criação

de lex tertia pela fusão de categorias diversas e/ou a elaboração de metarregra interpretativa prejudicial aos direitos fundamentais. Outrossim, lembre-se que mesmo nos casos de conversão o legislador previu excepcionalidade e, relativizando a regra, admitiu a modificação da pena na fase de execução “desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa” (art. 33, § 4º, Lei 11.343/06). Em setembro de 2010, os Ministros do STF decidiram serem inconstitucionais os dispositivos da Lei 11.343/06 que proíbem a conversão da pena de prisão em restritiva de direitos para condenados por tráfico de drogas. O Plenário concluiu, por maioria, pela inconstitucionalidade da expressão vedada a conversão em penas restritivas de direitos presente nos arts. 33, § 4º, e 44, ambos da Lei 11.343/06. 418 Em janeiro de 2013, a Corte, por intermédio do Plenário Virtual, reconheceu a Repercussão Geral da matéria no Agravo em Recurso Extraordinário 663.261/SP (rel. Min Luiz Fux), no qual se discutia novamente a vedação da substituição da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, conforme previsto no texto originário da Lei de Drogas. Novamente por maioria, os Ministros reafirmaram o entendimento firmado no julgamento do Habeas Corpus 97.256/RS.

A argumentação, no sentido de a vedação violar o princípio da individualização, reforça o entendimento exposto pela Corte no julgamento do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90.

11.9. A Inconstitucionalidade do Art. 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos e a Progressão de Regime no Tráfico de Entorpecentes Tema controverso desde a publicação da Lei dos Crimes Hediondos foi o relativo à imposição do regime de cumprimento de pena integralmente fechado, com a consequente vedação da progressão de regime (art. 2º, § 1º, Lei 8.072/90). A doutrina nacional, em sua grande maioria, apontou desde os primeiros momentos de vigência da lei que a impossibilidade de progressão

de

regime

era

ofensiva

aos

princípios

da

individualização e da humanidade das penas. A vedação acabava por negar os avanços do direito penal e penitenciário que projetaram mecanismos

processuais

sancionatório

(incidentes

na de

fase

derradeira

execução)

que

do

processo

permitiriam

ao

condenado gradual retorno à sociedade. Não apenas a progressão de regime e o livramento condicional, mas as possibilidades de conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direito, o indulto e a comutação, a remição e a detração da pena aparecem como

instrumentos

minimização

dos

do danos

processo e

do

de

execução

sofrimento

voltados

produzidos

à

pelo

encarceramento, sobretudo aquele de longa duração. Na definição clássica de Novelli e Falchi, os incidentes correspondem a todas as decisões judiciais complementares à execução da sentença com o poder de modificá-la, de forma a contribuir para que a pena termine em virtude de fatos supervenientes. 419 Junto aos incidentes quantitativos – que alteram o tempo da pena (v.g. detração, remição e comutação) –, os incidentes qualitativos – que alteram a forma e o regime de execução (v.g. progressão de regime, livramento condicional e conversões de pena) – redimensionaram o sistema de punibilidade, notadamente a partir da reforma do Código Penal e da edição da Lei de Execução Penal em 1984. A progressão de regime, instituída nos países ocidentais desde a consolidação do projeto de defesa social e dos seus programas de individualização científica da pena, acabou por representar, sobretudo nos países periféricos nos quais a realidade bárbara dos cárceres atinge nível de insuportabilidade, importante mecanismo de abertura das instituições totais. Pense-se, nesta linha, no avanço possibilitado pela leitura analógica da progressão de regime na esfera das medidas de segurança com a desinternação gradual. Todavia, em sentido inverso, a Lei dos Crimes Hediondos não apenas

obstaculizou

o

processo

de

desinstitucionalização

progressiva como produziu a maior taxa de encarceramento da história do país. A partir da edição da Lei 9.455/97 (Lei dos Crimes de Tortura), o tema voltou a ser objeto de reflexão. É que o § 7º do art. 1º da lei menciona que os condenados pela prática do crime de tortura iniciarão o cumprimento da pena em regime fechado. Assim, em face de ambos os estatutos terem igual hierarquia, pois derivados do mesmo dispositivo constitucional (art. 5º, XLIII), e em sendo a Lei de Tortura posterior e mais benéfica que a Lei dos Crimes Hediondos, inegável que o tratamento penal de ambas as espécies de delito deveria ser isonômico. Após algumas variações na jurisprudência, o STF, no intuito de pacificar a matéria, emitiu a Súmula 698, a qual determinava que “não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão de regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura”. No entanto, mesmo após a publicação da Súmula 698, a 1ª Turma do STF decidiu, em dois habeas corpus (HC 87.623 e HC 87.452), à unanimidade, afastar a proibição da progressão de regime. Nos casos referidos houve a reconsideração de pedidos liminares, viabilizando a transferência para regime menos severo de cumprimento de pena de condenados pelo crime de extorsão mediante sequestro (art. 159, § 1º, CP) e de tráfico ilícito de

entorpecentes (art. 12 c/c art. 18, III da Lei 6.368/76). As teses defendidas pelos impetrantes versavam sobre a violação do direito à individualização da pena e sobre a superveniência da Lei 9.455/97. O relator, Ministro Marco Aurélio de Mello, argumentou que em decorrência de a constitucionalidade do dispositivo que veda a progressão estar naquele momento ainda em discussão no Plenário do STF (HC 82.959), enquanto não fosse definido pela Corte o mérito da questão deveria ser afastada a proibição da progressão de regime. Neste ínterim, o STJ, notadamente a 6ª Turma, seguindo a orientação do STF, passou a questionar a legitimidade da vedação de progressão de regime aos delitos considerados hediondos e assemelhados, reputando inconstitucional o óbice. Sustentou-se a tese nos princípios de humanidade, de individualização e de igualdade. Retomada a discussão do HC 82.959, o Pleno do STF julgou, por maioria de votos, pela inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos, aderindo à tendência doutrinária e às recentes decisões. Embora

sejam

altamente

instrumentais

os

argumentos

utilizados pelo STF para apreciar a inconstitucionalidade da Lei dos Crimes

Hediondos



v.g.

princípios

da

humanidade,

da

individualização e da igualdade, acrescidos do efeito da lei penal no

tempo (Lei 9.455/97) –, notadamente no que tange à obstrução da progressividade, discussão complementar, não necessariamente em confronto com as teses expostas, com intuito de sofisticação dos argumentos, parece ser relevante, qual seja a dos limites do legislador ordinário em face das normas constitucionais penais incriminadoras. Como visto, os constituintes não apenas estabeleceram critérios de limitação, como projetaram a intervenção penal em inúmeros casos. A questão é que o legislador ordinário não apenas cumpriu o comando constitucional – enumeração taxativa dos crimes que seriam adjetivados como hediondos, vedação da fiança, anistia e graça –, mas, indo além do determinado, limitou direitos não elencados na norma constitucional – proibição da liberdade provisória, do indulto e da comutação de pena e da progressão de regime. A interrogação que se coloca é se o legislador ordinário, ao regulamentar a norma constitucional, não teria violado o princípio da proibição do excesso. Inegavelmente, se a Lei dos Crimes Hediondos não cumprisse, no todo ou em parte, o comando constitucional, constatar-se-ia inconstitucionalidade por omissão, sendo possível saná-la com as devidas ações constitucionais cabíveis. Em sentido oposto, parece ser plenamente aceitável a tese de que houve excesso na regulamentação da Lei 8.072/90, em face de o legislador, mormente

em termos de limitação aos direitos e garantias fundamentais (cláusulas criminalizadoras e penalizadoras), estar adstrito aos rígidos comandos da Constituição. Como ensina Azevedo, “é consabido que a norma regulamentar não pode ultrapassar os limites da norma reitora. No caso, trata-se de exceção ao exercício de direitos e garantias individuais. Não bastará a incriminação de certas condutas: os agentes das mesmas estarão

ainda

sujeitos

a

tratamento

processual

rigoroso

(inafiançabilidade) e em nenhuma hipótese serão beneficiados por graça ou anistia (...). Assim, não pode a lei regulamentadora proibir a liberdade provisória, nos crimes hediondos, como se isso fosse desdobramento

da

inafiançabilidade

constitucional.

O

delito

inafiançável não afasta necessariamente – repita-se – a liberdade provisória. Também inadmissível qualquer nova restrição no campo das causas extintivas da punibilidade. Se a Constituição proíbe ‘graça e anistia’, o indulto é permitido. Lei ordinária não pode ir além da restrição constitucional”. 420 No mesmo sentido em relação à vedação do processo individualizador da pena proporcionado pelo sistema progressivo. Inquestionável,

portanto,

o

excesso

legislativo,

com

a

consequente violação do princípio constitucional da proporcionalidade, 421 motivo pelo qual foram relevantes e merecedoras de

aplausos as decisões do STJ e, sobretudo, o julgamento do HC 82.959 pelo STF. No entanto, em resposta imediata à decisão do STF, foi publicada a Lei 11.464/07, que altera o art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos. A referida lei modifica o § 1º do art. 2º, estabelecendo a possibilidade da progressão de regime (“a pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado”), impondo, porém, prazo superior ao fixado pelo Código Penal, ou seja, de cumprimento de pena de 2/5 (dois quintos) para primários e 3/5 (três quintos) para reincidentes (art. 2º, § 2º).

11.10. Indução, Instigação, Auxílio e Apologia ao Uso de Drogas: Análise de Casos (Práticas de Redução de Danos, Marcha da Maconha e Movimentos Rapper e Funk) O § 2º do art. 33 da Lei 11.343/06 estabelece como crime “induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”, prevendo como penalidade detenção de 1 (um) a 3 (três) anos cumulada com multa. A Lei 6.368/76, em seu art. 12, § 2º, incriminava com pena de 3 a 15 anos, ou seja, idêntica à antiga sanção do comércio ilegal, a pessoa que: “I – induz, instiga ou auxilia alguém a usar entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica; II – utiliza local de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou

consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, para uso indevido ou tráfico ilícito de entorpecente ou de substância que determine dependência fisica ou psíquica; III – contribui de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Com a alteração legislativa, a Lei 11.343/06 manteve os tipos penais cujos verbos preveem indução, instigação e auxílio ao uso indevido de drogas. As condutas criminalizadas referem-se ao convencimento e à persuasão (indução e instigação) ou ao efetivo apoio material (auxílio) – “Induzir significa persuadir ou levar alguém a praticar algum ato. Instigar, além deste mesmo significado, encerra também o de acoroçoar um desígnio (...). Auxiliar, finalmente, é prestar assistência material, é facilitar a execução de um ato”. 422 Segundo a doutrina, para a configuração da tipicidade formal e objetiva em crimes desta espécie é fundamental que o resultado final efetivamente ocorra, no caso, que terceiro consuma a droga. Do contrário, não havendo êxito na indução, instigação ou auxílio, a conduta é atípica. A estrutura da norma é similar ao tipo penal do art. 122 do Código Penal, que trata do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. 423 Hungria, ao tratar da impossibilidade jurídica da tentativa das condutas do art. 122 do Código Penal, estabelece como pressuposto da tipicidade o

exaurimento da conduta-fim, pois “se este [suicídio] não ocorre, tais atos tornam-se penalmente indiferentes”. 424 Apesar de preservada a tipicidade dos verbos de indução, instigação e auxílio, houve novatio legis in mellius em face da substancial redução da pena. Tal fato determina, inclusive, sejam as condutas consideradas de médio potencial ofensivo visto permitir, nos termos do art. 89 da Lei 9.099/95, a suspensão condicional do processo, em decorrência do mínimo de pena cominado. No entanto, diferentemente da manutenção dos tipos penais previstos no art. 12, § 2º, I, da Lei 6.368/76, a nova Lei de Drogas foi omissa em relação às condutas de contribuição para incentivo ou difusão. As condutas do inciso III, especificação do art. 287 do Código Penal, 425 que criminaliza a apologia de crime ou de autor de delito, 426

foram

excluídas

do

rol

de

delitos,

operando,

indubitavelmente, abolitio criminis. O reconhecimento da descriminalização é relevante em face dos inúmeros problemas que a criminalização desta forma de conduta gerou nos últimos anos no Brasil, sobretudo na obstaculização do acesso de usuários e de dependentes de drogas ilícitas aos serviços de saúde pública. Caso paradigmático é o conflito gerado entre as agências do sistema penal e os órgãos da saúde pública para a implementação de políticas públicas de redução de danos.

Conforme descreve Mariana Weigert, a primeira política de redução de danos no Brasil ocorreu em 1989, na cidade de Santos (SP), com o projeto de distribuição e de troca de seringas entre usuários de drogas. No entanto, a ação da Secretaria de Saúde do Município foi considerada pelo Ministério Público local como estímulo ao uso de substâncias psicotrópicas, resultando na persecução penal do coordenador do programa, Secretário Municipal da Saúde. Na ocasião, em face da atuação do agente persecutório, houve o cancelamento da distribuição de seringas, permanecendo apenas os serviços de informação, distribuição de água destilada, de hipoclorito de sódio, lenços com álcool e preservativos. 427 Outro grave problema decorrente desta estrutura de tipicidade aberta e volátil – fato que por si só gera dúvidas quanto a sua constitucionalidade – é a criminalização da livre manifestação do pensamento, tanto por ações de grupos antiproibicionistas quanto por exposição de ideias no ambiente artístico e cultural. No primeiro caso, inúmeras foram as ações das Polícias Civil e Militar e do Ministério Público, nos mais diversos Estados da Federação,

para

proibição

do

movimento

conhecido

internacionalmente como Marcha da Maconha (Global Marijuana March).

Realizada anualmente a partir de 1999 em várias cidades do planeta, a Marcha da Maconha é caracterizada por série de eventos de apoio às políticas antiproibicionistas e de redução de danos. Em festividades realizadas no primeiro sábado do mês de maio, considerado o Dia Mundial pela Descriminalização da Cannabis, são organizados encontros, passeatas, fóruns de debates, festas, concertos e festivais. Idealizada e coordenada por organizações civis e públicas não governamentais, a Marcha objetiva realização de manifestações pacíficas, performances culturais e atos de livre expressão para informação e discussão de políticas públicas que envolvem a (des)criminalização da Cannabis. Segundo os organizadores, a ideia principal do evento é a promoção de debate sério sobre as políticas públicas que envolvem as drogas, sendo os participantes incentivados a não fazer uso de qualquer tipo de droga, lícita ou ilícita, especialmente o álcool, durante

as

manifestações. 428

Constitui-se,

portanto,

como

movimento social espontâneo, reivindicatório e de livre exposição do pensamento. No Brasil, na última década, inúmeros coletivos aderiram à Marcha, seguindo o movimento global de manifestação contrária às políticas proibicionistas. A organização nacional, ao longo dos anos, publicizou amplamente a intenção de debater o tema da criminalização e os efeitos produzidos pela atual política criminal de

drogas no Brasil e na América Latina. No ambiente virtual mantido pelos grupos e instituições que representam o Movimento, encontra-se a seguinte Exposição de Motivos: “Os objetivos principais do Coletivo são: Criar espaços onde indivíduos e instituições interessadas em debater a questão possam se articular e dialogar; Estimular reformas nas Leis e Políticas Públicas sobre a maconha e seus diversos usos; Ajudar a criar contextos sociais, políticos e culturais onde todos os cidadãos brasileiros possam se manifestar de forma livre e democrática a respeito das políticas e leis sobre drogas; Exigir formas de elaboração e aplicação dessas políticas e leis que sejam mais transparente, justas, eficazes e pragmáticas, respeitando a cidadania e os Direitos Humanos. O Coletivo Marcha da Maconha Brasil reafirma que suas atividades não tem a intenção de fazer apologia à maconha ou ao seu uso, nem incentivar qualquer tipo de atividade criminosa. As atividades do Coletivo respeitam não só o direito à livre manifestação de ideias e opiniões, mas também os limites legais desse e de outros direitos”. 429 Na Carta de Princípios da Marcha da Maconha no Brasil, os integrantes expressam os objetivos da manifestação:

“A Marcha da Maconha Brasil é um movimento social, cultural e político, cujo objetivo é levantar a proibição hoje vigente em nosso país em relação ao plantio e consumo da cannabis, tanto para fins medicinais como recreativos. Também é nosso entendimento que o potencial econômico dos produtos feitos de cânhamo deve ser explorado, especialmente quando isto for adequado sob o ponto de vista ambiental. A Marcha da Maconha Brasil não é um movimento de apologia ou incentivo ao uso de qualquer droga, o que inclui a cannabis. No entanto, partilhamos do entendimento de que a política proibicionista radical hoje vigente no Brasil e na esmagadora maioria dos países do mundo é um completo fracasso, que cobra um alto preço em vidas humanas e recursos públicos desperdiçados. A Marcha da Maconha Brasil não tem posição sobre a legalização de qualquer outra substância além da cannabis, a favor ou contra. O nosso objetivo limita-se a promover o debate sobre a planta em questão e demonstrar para a sociedade brasileira a inadequação de sua proibição. A Marcha da Maconha Brasil tem como objetivo agregar todos aqueles que comunguem dessa visão, usuários da erva ou não, que desejem colaborar de alguma forma para que a proibição seja derrubada. Os que estão presos pelo simples fato

de plantar a cannabis para uso pessoal são considerados presos políticos, assim como todos aqueles que estão atrás das grades sem ter cometido violência nenhuma contra ninguém, por delitos relacionados

a

esse

vegetal

que

o

conservadorismo

obscurantista teima em banir. Para atingir os seus objetivos, a Marcha da Maconha Brasil atuará estritamente dentro da Constituição e das leis. Não abrimos mão da liberdade de expressão, mas também não promovemos a desobediência a nenhuma lei. Entretanto, reconhecemos que se a sociedade tem o dever de cumprir a lei elaborada e aprovada por seus representantes eleitos, os legisladores devem exercer a sua função em sintonia com a evolução da sociedade. Uma vez por ano, simultaneamente com o movimento internacional Global Marijuana March, a Marcha da Maconha Brasil organizará e convocará manifestações públicas pela legalização da cannabis. Além disso, também poderão ser organizadas

outras

atividades,

tais

como

seminários,

conferências e debates, inclusive em colaboração com outros grupos e movimentos, nacionais e estrangeiros”. 430 Percebe-se, da leitura do material de divulgação, que a finalidade do movimento é problematizar a política criminal proibicionista. Trata-se, portanto, de movimento social espontâneo

que reivindica a possibilidade, através da livre manifestação do pensamento, da discussão democrática do modelo proibicionista e dos efeitos que produziu em termos de incremento da violência. Ademais, o evento Marcha da Maconha possui, nitidamente, caráter cultural e artístico, em face da programação de atividades musicais, teatrais e performáticas, além da criação de espaço de debate com palestras, seminários e exibições de documentários relacionados às políticas públicas ligadas às drogas, lícitas e ilícitas. Até 2011, ocasião em que a matéria foi apreciada pelo Pleno do STF, houve inúmeras ocorrências, em todo o território nacional, devido a imputação do delito previsto no art. 287 do Código Penal – inclusive porque o tipo específico da Lei 6.368/76 havia sido revogado. Importante perceber que o bem jurídico tutelado pelo tipo penal do art. 287 do Código Penal é a paz pública. Assim, a conduta, para constituir materialmente delito, deve, necessariamente, gerar, no seio social, perturbação. Segundo a doutrina, “fazer apologia significa defender, justificar, elogiar, enaltecer, defender. Trata-se da conduta daquele que, publicamente, enaltece o fato criminoso ou o autor do crime”. 431 No caso da Marcha da Maconha, o STF entendeu inexistir qualquer espécie de enaltecimento, defesa ou justificativa do porte para consumo ou do tráfico de drogas ilícitas, figuras tipificadas nos

art. 28 e 33 da Lei 11.343/06. Ao contrário, a Corte percebeu interessante importância do movimento em pautar (e necessário) debate acerca das políticas públicas e dos efeitos do proibicionismo. Importante lembrar, com Magalhães Noronha, que “não é apologista quem se limita a justificar ou explicar a conduta delituosa, bem como apontar qualidades ou atributos do delinquente. Muito menos o será a crítica ou apreciação de dispositivo legal ou de uma decisão. Mesmo o apoio moral, o conforto etc., em determinadas circunstâncias, não é apologia de criminoso (...)”. 432 Se a crítica constituísse delito, haveria a inusitada situação de imputar crime aos magistrados que, desde a vigência da Lei 6.368/76, têm considerado inconstitucional a proibição, os políticos que atuam no sentido da descriminalização, os artistas que se manifestam favoráveis à liberalização e os inúmeros doutrinadores que sustentam a ilegitimidade da intervenção estatal na esfera da privacidade e da vida íntima. No entanto, a questão central analisada pelo STF no julgamento da ADPF 187 foi relativa ao confronto entre a regra que incrimina a apologia e o direito à liberdade de expressão, previsto nos incisos IV e IX do art. 5º da Constituição da República. No caso, o Tribunal manteve sua posição histórica no sentido que de “a liberdade de expressão constitui-se em direito fundamental do

cidadão, envolvendo o pensamento, a exposição de fatos atuais ou históricos e a crítica”. 433 As conclusões expostas no voto do Ministro Relator dão a exata dimensão do problema: “(...) a liberdade de expressão, considerada em seu mais abrangente significado, traduz, ela própria, o fundamento que nos permite formular ideias e transmiti-las com o intuito de provocar a reflexão em torno de temas que podem revelar-se impregnados de elevado interesse social. As ideias, Senhor Presidente, podem ser fecundas, libertadoras,

subversivas

ou

transformadoras,

provocando

mudanças, superando imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos nas formações sociais. É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções divergentes, a concretização de um dos valores essenciais à

configuração do Estado Democrático de Direito: o respeito ao pluralismo político. A livre circulação de ideias, portanto, representa um signo inerente às formações democráticas que convivem com a diversidade, vale dizer, com pensamentos antagônicos que se contrapõem, em permanente movimento dialético, a padrões, convicções e opiniões que exprimem, em dado momento histórico-cultural, o mainstream, ou seja, a corrente dominante em determinada sociedade. É por isso que a defesa, em espaços públicos, da legalização das drogas, longe de significar um ilícito penal, supostamente caracterizador do delito de apologia de fato criminoso, representa, na realidade, a prática legítima do direito à livre manifestação do pensamento, propiciada pelo exercício do direito de reunião, sendo irrelevante, para efeito da proteção constitucional de tais prerrogativas jurídicas, a maior ou a menor receptividade social da proposta submetida, por seus autores e adeptos, ao exame e consideração da própria coletividade. Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas e garantindo a todas as pessoas o exercício dos direitos fundamentais de reunião e de livre manifestação do pensamento, tais como assegurados pela Constituição da República, julgo procedente a presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, para dar, ao art. 287 do Código Penal, interpretação

conforme à Constituição, ‘de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos’”. 434 A proposição, no espaço público, do debate sobre as políticas proibicionistas constitui, portanto, um legítimo exercício de livre manifestação do pensamento e exposição de crítica. Por

fim,

importante

registrar

que

interpretações

desconstitucionalizadas dos tipos penais mencionados têm operado a criminalização de manifestações artísticas, como nos casos das prisões dos integrantes do grupo Planet Hemp e do músico de funk MC Colibri e do indiciamento do rapper MV Bill. Em duas ocasiões, nos anos de 1997 e 2000, os integrantes do Planet Hemp foram presos em flagrante durante shows em Brasília pela imputação de apologia ao uso de drogas. Em 2002, ao retornarem ao Distrito Federal, foi interposto habeas corpus preventivo no qual foi obtida a seguinte decisão liminar: “A livre manifestação do pensamento é garantida pela Constituição Federal. Os impetrantes podem produzir sua arte e sua poesia sem que a autoridade lhes imponha uma censura prévia. Expeça-se o salvo-conduto para impedir que a autoridade impeça a livre manifestação da arte, nesse País chamado

Brasília, que é o repositório de toda a nação brasileira. Todavia, se os impetrantes se excederem em seu verbo e fizerem a apologia da droga, estão sujeitos ao flagrante. O que não se pode admitir é censura prévia. Expeça-se o salvo-conduto nos termos da liminar ora concedida. Venham as informações. Colha-se o parecer da douta Procuradoria de Justiça. Dê-se ciência à douta autoridade policial. Cumpra-se”.435 Situação similar ocorreu com o cantor de funk MC Colibri, denunciado e preso preventivamente como incurso nos arts. 12, § 2º, I e III, combinado com o art. 18, III, e art. 14 da Lei 6.368/76. Segundo a denúncia, o artista, valendo-se da condição de intérprete de funk, teria induzido e instigado grande número de pessoas a utilizar substâncias que determinam dependência física ou psíquica, em especial as comercializadas pela organização Terceiro Comando Puro – TCP. Conforme a descrição fática do órgão acusador, a conduta de MC Colibri direcionava-se ao incentivo do uso indevido e do tráfico ilícito de drogas em razão do enaltecimento que suas composições faziam da facção criminosa. A materialização das condutas teria ocorrido com a realização de shows, comercialização de CD’s e disseminação através da web de suas músicas, denominadas funks proibidões, fato que revelaria, conforme o Ministério Público, constituir o artista verdadeiro portavoz do crime organizado.

Após decretação de prisão preventiva, recebimento de denúncia e submissão ao processo, o STJ trancou a ação penal, entendendo inexistir narrativa processualmente válida de fato típico. “CRIMINAL. HC. INSTIGAÇÃO E INDUZIMENTO AO USO DE ENTORPECENTES. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. ANULAÇÃO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. NECESSIDADE

DE

DESCRIÇÃO

DAS

CONDUTAS

ATRIBUÍDAS AO PACIENTE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. PLEITO DE REVOGAÇÃO DA CUSTÓDIA PREVENTIVA PREJUDICADO. ORDEM CONCEDIDA. I. Hipótese na qual o impetrante alega a inépcia da exordial oferecida contra o réu, denunciado por instigação e induzimento ao uso de entorpecentes e associação para o tráfico, pois, na qualidade de cantor de funk, teria instigado e induzido o uso de substâncias ilícitas, especialmente as comercializados pela facção criminosa da qual seria membro. II. A acusação não logrou expor adequadamente os fatos tidos por criminosos, olvidando-se de delimitar as circunstâncias em que estes teriam ocorrido, nos termos exigidos pelo art. 41 do Código de Processo Penal, o que efetivamente terminou por obstar o exercício pleno do direito de defesa pelo paciente. III. Embora não se exija a descrição pormenorizada das condutas do agente, isso não significa que o órgão acusatório

pode oferecer denúncia sem a devida descrição dos fatos, como no caso dos autos, em que a acusação nem sequer transcreveu trechos das músicas que fariam apologia ao crime, não tendo, ainda, demonstrado de que forma o réu teria concorrido para a divulgação das músicas na rede mundial de computadores. IV. Peça acusatória que igualmente não descreveu as circunstâncias do crime de associação para o tráfico de drogas, faltando elementos que amparem a acusação, tais como o modo, o local e os envolvidos na senda criminosa. V. A inexistência absoluta de elementos hábeis a descrever a relação entre os fatos delituosos e a autoria ofende o princípio constitucional da ampla defesa, tornando inepta a denúncia. Precedentes. VI. Deve ser declarada a nulidade da denúncia oferecida contra o paciente, por ser inepta, determinando-se a anulação da ação penal contra ele instaurada, em curso perante o Juízo de Direito da 8ª Vara Criminal da Comarca de Niterói/RJ. VII. Resta prejudicado o pleito de soltura, eis que o Tribunal concedeu Habeas Corpus em favor do réu, determinando a expedição de alvará de soltura. VIII. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator”.436 Situação similar, mas sem os desdobramentos processuais acima descritos, ocorreu com rapper MV Bill. Após a gravação do

videoclipe da música Soldado do Morro, no qual são utilizadas imagens de traficantes armados, durante a divulgação do trabalho, a Polícia carioca instaurou Inquérito por apologia ao tráfico (Inquérito Policial 066/00, Polícia Civil, Rio de Janeiro). A investigação e o indiciamento de Alex Pereira Barbosa (MV Bill) foram decorrência da produção e do protagonismo no videoclipe. No entanto, o Ministério Público requereu o arquivamento da investigação sustentando estar o indiciado exercendo importante direito de crítica, comparando a utilização de imagens reais à atividade jornalística e a letra da música à crônica social. No parecer, anexado ao livro Falcão Mulheres e o Tráfico, o Promotor de Justiça expõe, de forma clara, a extensão do direito de manifestação e crítica: “A postura do artista, no caso, antes de ser reprovável, deve ser louvada, posto que consiste em uma das poucas vozes originadas das camadas menos favorecidas da população que, com uma compreensão correta da realidade, busca alertar para as distorções infelizmente existentes no quadro social de nosso país. A má interpretação de tal intenção pode ocorrer, como assinalado no relatório da autoridade policial acostado às fls. 58/60, de um preconceito que tanto pode dever-se à origem do indiciado quanto à associação do gênero musical escolhido, o rap, com a chamada cultura ‘funkeira’, esta sim contendo, muitas

vezes, manifestações de apoio ou apologia a fatos criminosos, como é o exemplo dos chamados ‘proibidões’, que se diferenciam essencialmente da obra do indiciado. Nem mesmo a utilização de imagens reais de traficantes quando da realização do clipe musical tem qualquer relevância penal. Dado o caráter de crônica social que pode ser dado à canção ‘Soldado do Morro’, a filmagem de criminosos reais pode ser mesmo equiparada a uma matéria jornalística, não se podendo acusar nem o indiciado nem a equipe de produção do vídeo de apologia ao crime, porque se limitam a retratar a realidade (...)”. 437 Não obstante a análise das imputações pela atribuição de sentido criminal aos eventos da Marcha da Maconha e à divulgação de música e de videoclipes pelos artistas dos gêneros funk e rap, os casos expostos demonstram de forma precisa como regras e metarregras são utilizadas para desdobrar perversos processos de criminalização de manifestações culturais. Sobretudo se refletirem a cultura da juventude vulnerável.

12. A RESPOSTA PENAL AO USO DE ENTORPECENTES NO BRASIL 12.1. A Inconstitucionalidade do Art. 28 da Lei 11.343/06 Ao ser tratado o tema da insustentabilidade jurídica da criminalização das drogas, e ao serem sopesados os custos político, econômico, jurídico, social, educacional, sanitário e, sobretudo, individual

da

opção

político-criminal

proibicionista,

inúmeros

argumentos foram apresentados no sentido de desconstruir, sob o ponto de vista da principiologia constitucional-penal, as normas incriminadoras. Foi ressaltado naquele momento que a permanência da lógica bélica e sanitarista nas políticas de drogas no Brasil é fruto da opção por modelos punitivos moralizadores e que sobrepõem a razão de Estado à razão de direito, pois desde a estrutura do direito penal constitucional, o tratamento punitivo do uso de entorpecentes é injustificável. Para tanto, invocou-se o postulado da secularização e os princípios da lesividade, da autonomia individual, da intimidade e da vida privada como desqualificadores destas normas. O sustentáculo da programação punitiva ocorre em dois pontos relevantes: (a) ser o delito previsto no art. 28 da Lei 11.343/06 de perigo abstrato e (b) ser a saúde pública o bem jurídico tutelado. O discurso da periculosidade presumida do ato (expansividade) e do escopo da lei em tutelar interesses coletivos e não individuais

permite, inclusive, que a posse de pequena quantidade de droga seja objeto de incriminação. A impossibilidade de constatação empírica das teses de legitimação do discurso criminalizador, decorrente sobretudo da intangibilidade do bem jurídico, por si só desqualifica a manutenção da opção proibicionista. Todavia este discurso de fundamentação, apesar de despregado da realidade, é altamente funcional e cotidianamente (re)produzido na dogmática jurídica. Neste ponto, importante lembrar os argumentos de Maria Lúcia Karam no sentido de que “é evidente que na conduta de uma pessoa, que, destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem a posse de uma substância, que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo (...). Nesta linha de raciocínio, não há como negar a incompatibilidade entre a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal – não importa em que quantidade – e a ofensa à saúde pública, pois não há como negar que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são antagônicas. A destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses

jurídicos

alheios.

São

coisas

conceitualmente

antagônicas: ter algo para difundir entre terceiros, sendo totalmente fora de lógica sustentar que a proteção à saúde pública envolve a punição da posse de drogas para uso pessoal”. 438

Como defendido anteriormente, a identificação de bens jurídicos sob a chancela do interesse público (v.g. saúde pública) estabelece espécie de (neo)espiritualização do valor ou interesse de tutela. No caso das drogas, sob a justificativa da tutela da saúde pública, inúmeros danos à saúde e à autonomia e à liberdade de pessoas de carne e osso (Ferrajoli) são cometidos. 439 Esquecer o sujeito concreto para criar mecanismos retóricos abstratos de legitimação da punição aos usuários produz significativa violência ao núcleo constitucional que deveria sustentar o direito penal. Lembra Alexandre Morais da Rosa que “no caso de porte de substâncias tóxicas inexiste crime porque ao contrário do que se difunde, o bem jurídico tutelado pelo art. 16 da Lei 6.368/76 é a ‘integridade física’ e não a ‘incolumidade pública’ (...)”. 440 A inversão ideológica do discurso de tutela, com a sobreposição do bem jurídico saúde pública à saúde individual dos consumidores, pressupõe modelo de direito penal de autor no qual todo usuário transforma-se em potencial traficante. Ensina Zaffaroni que “se argumenta que cualquier consumidor es un ‘traficante en potencia’, lo que resulta inexacto especialmente en los casos de drogas que no generan dependencia rígida y, en general, importa una presunción juris et de jure de ‘tipo de autor’, lo cual viola la legalidad y la igualdad ante la ley, entre otros derechos, sin contar con que no todo tenedor es consumidor y con que el consumo forma parte de

derecho de disposición sobre la propia persona, que no puede ser afectado, pues se trata de bien jurídico del proprio consumidor”. 441 Necessário, pois, redirecionar o enfoque, alçando os direitos e garantias fundamentais à qualidade de limite e de objeto do direito penal (Baratta), de forma a construir discurso de redução de danos antropologicamente fundado (Zaffaroni). Pensar o uso de drogas desde o ponto de vista dos envolvidos com a situação-problema impõe perceber a conduta como autônoma e o dano como próprio (autolesão). Assim, desde o princípio da ofensividade (art. 5º, XXXV, CR), questionável a constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06 e seus correlatos incriminadores. Neste sentido, apesar da fusão dos discursos médico e jurídico, relevante argumentação foi desenvolvida em julgados de referência no debate sobre a legitimidade das normas incriminadoras do uso pessoal de entorpecentes no Brasil. Milton dos Santos Martins, em dois

votos

vencidos

proferidos

em

incidentes

de

inconstitucionalidade propostos em Recursos de Apelação perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando da vigência da Lei 6.368/76, expôs o problema: “Não é lícito ao Estado, dentro do sistema de liberdade democrática, punir o viciado, que é, antes de tudo, uma vítima. O art. 16 da Lei 6.368/76, punindo como infrator o viciado e doente,

afronta a Constituição Federal, no que respeita à liberdade individual quanto ao uso de estupefaciente”. 442 “A preliminar é conhecida em suas razões. O art. 16 da Lei de Tóxicos tipifica proceder da esfera individual, restrita à pessoa, não interferindo com outrem. É, portanto, inconstitucional ao invadir e violar os direitos fundamentais da pessoa. Não é o usuário que difunde o tóxico. Em vez de se prender quem anda com quantidades ínfimas para uso próprio, por que não se encontram as plantações dos traficantes, aqueles que fazem as desgraças dos outros? O usuário é vítima, não criminoso, que terá sua vida arruinada ainda mais, quando o Estado devia tratálo como doente, dar-lhe oportunidade de recuperação”. 443 Aliados aos argumentos decorrentes do princípio da lesividade e da autonomia individual, os princípios da igualdade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, CR) permitem a densificação da tese da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas. A ofensa ao princípio da igualdade estaria exposta no momento em que se estabelece distinção de tratamento penal (drogas ilícitas) e não penal (drogas lícitas) para usuários de diferentes substâncias, tendo ambas potencialidade de determinar dependência física ou psíquica. 444 A variabilidade da natureza do ilícito tornaria, portanto, a opção criminalizadora essencialmente

moral. Todavia, é nos princípios de tutela da intimidade e da vida privada que os argumentos ganham maior relevância. Os direitos à intimidade e à vida privada instrumentalizam em nossa Constituição o postulado da secularização que garante a radical separação entre direito e moral. Neste aspecto, nenhuma norma penal criminalizadora será legítima se intervier nas opções pessoais ou se impuser padrões de comportamento que reforçam concepções morais. A secularização do direito e do processo penal, fruto da recepção constitucional dos valores do pluralismo, da tolerância e do respeito à diversidade, blinda o indivíduo de intervenções indevidas na esfera da interioridade. 445 Assim, está garantida ao sujeito a possibilidade de plena resolução sobre os seus atos (autonomia), desde que sua conduta exterior não afete (dano) ou coloque em risco factível (perigo concreto) bens jurídicos de terceiros. Apenas nestes casos (dano ou perigo concreto) haveria intervenção penal legítima. Em face do entrelaçamento dos argumentos expostos, paradigmática decisão da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sobre a inconstitucionalidade da incriminação do porte para uso próprio na revogada lei: “penal. art. 16 da lei 6368/76. ausÊncia de lesão a bEM JURÍDICO PENALmente relevante. Inconstitucionalidade.

A Lei Antitóxicos brasileira é caracterizada por dispositivos viciados nos quais prepondera o ‘emprego constante de normas penais em branco (...) e de tipos penais abertos, isentos de precisão semântica e dotados de elaborações genéricas’ (ver: Salo de Carvalho, A Política Criminal de Drogas no Brasil: do discurso oficial às razões da descriminalização, Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 33-34). Diante destes dados, tenho como limites, ao labor na matéria, a principiologia constitucional impositora de freios à insurgências punitiva estatal. Aqui interessam primordialmente os princípios

da

dignidade,

humanidade

(racionalidade

e

proporcionalidade) e da ofensividade. No Direito Penal de viés libertário, orientado pela ideologia iluminista, ficam vedadas as punições dirigidas à autolesão (caso em tela), crimes impossíveis, atos preparatórios: o direito penal se presta, exclusivamente, à tutela de lesão a bens jurídicos de terceiros. Prever como delitos fatos dirigidos contra a própria pessoa é resquício de sistemas punitivos pré-modernos. O sistema penal moderno, garantista e democrático não admite crime sem vítima. Repito, a lei não pode punir aquele que contra a própria saúde ou contra a própria vida – bem jurídico maior – atenta: fatos sem lesividade a outrem, punição desproporcional e irracional!

Lições de Eugênio Raul Zaffaroni, Nilo Batista, Vera Malaguti Batista, Rosa del Olmo, Maria Lúcia Karam e Salo de Carvalho”. 446 Em sentido idêntico, decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, em importante acórdão: “1. A traficância exige prova concreta, não sendo suficientes, para a comprovação da mercancia, denúncias anônimas de que o acusado seria um traficante. 2. O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados

pela

Constituição

Federal

e

por

tratados

internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil”. 447 A decisão do Tribunal paulista reforça o entendimento de Alberto Zacharias Toron no sentido de que a tutela dos direitos à intimidade e à vida privada é preceito legal que tem como destinatário o próprio poder legiferante do Estado. O espaço de liberdade individual faculta preservar e desenvolver formas de

realização em todas as esferas do íntimo (planos sexual, familiar, intelectual entre outras). 448 Neste sentido, a criminalização de opções pessoais revela tendência marcadamente moralizadora no direito penal, cujos fundamentos não guardam harmonia com os preceitos constitucionais, sendo amplamente desqualificados pela cadeia principiológica que sustenta os direitos e as garantias individuais.

12.2. Porte de Drogas para Uso Pessoal e Tipicidade Material: Aplicações do Princípio da Insignificância A crítica realizada nos capítulos precedentes à função declarada do direito penal em tutelar bens jurídicos não inviabiliza que, desde o interior do discurso dogmático, esta categoria seja utilizada como referencial para minimizar o impacto das agências de punitividade. A propósito, é exatamente este manuseio dos institutos jurídicos com intuito de redução dos danos do proibicionismo que deve orientar a prática garantista. A teoria do tipo penal, desenvolvida no início do século passado por Beling (1906), apesar de instrumentalizar o princípio da legalidade fornecendo os horizontes possíveis de punibilidade, reduzia seu âmbito de análise à racionalidade meramente formal. Fundada em requisitos e critérios meramente objetivos e formais,

estava alheia a qualquer espécie de valoração dos elementos subjetivos ou materiais. Se com Welzel ocorre a virada interpretativa no que diz respeito à reengenharia da teoria do tipo penal com a introdução da análise dos elementos subjetivos (dolo e culpa), com Roxin, 449 a estrutura da tipicidade supera a racionalidade formal e, sob o enfoque do grau de ofensa ao bem jurídico objeto de tutela, passa a valorar aspectos materiais. Elementos como juízo de significância do resultado (desvalor do resultado) e adequação social da conduta (desvalor da ação) densificam a avaliação da tipicidade, abrindo espaços, inclusive, para que os demais elementos da teoria do delito (ilicitude e culpabilidade) incorporem juízos substanciais (racionalidade material) e criem causas supralegais de justificação e de exculpação. Da avaliação meramente mecânica (formal) na qual o delito era concebido apenas como infração da lei ditada pelo Estado, a teoria do delito, com a perspectiva material, amplia as hipóteses de minimização dos efeitos da resposta penal pela sofisticação da dogmática, “pois o tipo, incluído sistematicamente na teoria do delito, não é um elemento hermético, fechado, estanque”. 450 Assim, no que se refere à tipicidade, o delito passa a ser entendido como “desvalor da vida social, ou seja, uma ação ou omissão que se proíbe e se procura evitar, ameaçando-a com pena, porque constitui

ofensa (dano ou perigo) a um bem (...). Crime é, assim, numa definição material, a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de uma pena”. 451 O bem jurídico, portanto, passa a ser percebido como normogênese do tipo, reestruturando a teoria do crime que, no primeiro momento de valoração (teoria do tipo), o coloca como balizador do injusto. Hassemer, neste quadro, sustenta que “la misión del estudio de la tipicidad es caracterizar el relieve de la proteción de bienes jurídicos, que es lo que constituye la especificidad de toda cultura juridicopenal”. 452 A alteração na conceituação de delito – de objetivo e formal para subjetivo e material –, através da gradual assunção do critério bem jurídico, dar-se-á pelo fato de que a tipicidade, do ponto de vista meramente formal e dogmático, “não satisfaz a moderna tendência de reduzir ao máximo a área de influência do Direito Penal diante de seu reconhecido caráter subsidiário, já que manifesta a sua ineficiência como o único meio de controle social”. 453 Se a função oficial (declarada) do direito penal passa a ser a estrita e necessária proteção do bem jurídico, estariam excluídas por atipicidade material todas as condutas que geram dano insignificante aos valores (bens) tutelados pelos tipos penais. A

tipicidade, nesse sentido, não se esgotaria no juízo lógico-formal de subsunção do fato ao tipo legal de crime, mas, para além desta adequação necessária (requisito formal da tipicidade), a conduta concreta em análise deve produzir efetiva ofensa (ou perigo concreto) ao bem jurídico (requisito material da tipicidade). 454-455 Resultariam atípicas, portanto, todas as condutas com baixo grau de lesividade, visto que é o bem jurídico que determina o grau de (in)incidência do tipo. Fundada

nesta

substancial

alteração

provocada

pela

incorporação da racionalidade material na teoria do delito, tendência doutrinária e jurisprudencial passou a considerar o porte (trazer consigo) de pequena quantidade de entorpecente como conduta atípica. A quantidade inexpressiva de substância entorpecente não teria a potencialidade de produzir dependência física e/ou psíquica (elementar formal) ou de ofender o bem jurídico saúde pública tutelado na Lei de Drogas (elementar material). Duas decisões em sede de Recurso Especial, proferidas no final da década de 1990, em processos relatados por Luiz Vicente Cernicchiaro,

na

época

Ministro

do

STJ,

tornaram-se

paradigmáticas: “Recurso Especial. Penal. Entorpecente. Quantidade Ínfima. Atipicidade.

O crime, além de conduta, reclama resultado no sentido de provocar dano, ou perigo ao bem jurídico. O tráfico e o uso de entorpecentes são definidos como delito porque acarretam, pelo menos, perigo para a sociedade, ou ao usuário. A quantidade ínfima, descrita na denúncia, não projeta o perigo reclamado”. 456 “Entorpecente. Quantidade Ínfima. O crime, além de conduta, reclama resultado, ou seja, repercussão do bem juridicamente tutelado, que, por sua vez, sofre dano, ou perigo. Sem esse evento, o comportamento é penalmente irrelevante. No caso dos entorpecentes, a conduta é criminalizada porque repercute na saúde (usuário), ou interesse público (tráfico). Em sendo ínfima a quantidade encontrada (maconha) é, por si só, insuficiente para afetar o objeto jurídico”. 457 Embora pacificada a tese na doutrina, com recepção por importantes

segmentos

da

jurisprudência,

ainda

se

verifica

resistência na aplicação do princípio da insignificância no caso de porte de drogas para uso próprio nos Tribunais pátrios, notadamente em decorrência da abstração do bem jurídico saúde pública, da negativa de assunção da saúde individual e da exclusão da análise da relevância e da potencialidade da droga em causar dependência física ou psíquica.

Apesar de certa irreversibilidade do processo de incorporação de bens jurídicos que declaram proteção de interesses abstratos sob o rótulo de públicos pelas legislações contemporâneas (neoespiritualização do bem jurídico), não se pode deixar em segundo plano e ao esquecimento o sujeito concreto envolvido na situação-problema. Descurar o indivíduo objeto de incidência do direito penal em nome da tutela de interesses coletivos ou transindividuais é equívoco de que padecem teorias que cindem os direitos

em

eras

ou

gerações

(individuais,

coletivos

e

transindividuais). O efeito é a contraposição dos interesses sob tutela e a potencialização do confronto sempre fictício entre seus titulares (v.g., Estado e sociedade contra o indivíduo, público contra privado). Como afirmado anteriormente, o sacrifício dos direitos individuais igualmente coloca em risco os interesses públicos coletivos e/ou transindividuais, pois irreal a fragmentação dos direitos humanos, constituindo-se as várias etapas de construção do discurso humanista unidade intransponível. Desta forma, não reconhecer o envolvido no caso como sujeito com capacidade de fala, autônomo e responsável pelos seus interesses (no caso, sua saúde privada), em razão da supremacia da saúde pública, é aniquilar qualquer possibilidade de transformar o espaço jurídico em campo de diálogo democrático.

Conforme exposto, análise material desta estrutura típica impõe como imprescindível a verificabilidade concreta da capacidade de ofensa,

sobretudo

a

idoneidade

da

droga

para

causar

a

dependência, motivo pelo qual a quantidade ínfima torna atípica a ação. Fundamental destacar, portanto, por mais que soe redundante, que o juízo de tipicidade material é relativo à lesão do bem jurídico, ou seja, trata-se de uma valoração objetiva do fato e não subjetiva do seu autor. Embora o STF tenha estabelecido alguns critérios para incidência do princípio da insignificância – (a) mínima ofensividade da conduta, (b) ausência de periculosidade social da ação, (c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e (d) inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva

autorizadores

da

aplicação

do

princípio

da

insignificância458 – decisões recentes têm vinculado sua aplicação à ausência de antecedentes criminais, especificamente não ser o réu reincidente. O entendimento parece ser, em absoluto, equivocado,

exatamente

por

confundir

critérios

objetivos

e

subjetivos, situação que reforça modelos penais de autor. Por fim, importante lembrar o equívoco de alguns julgados que confundem a ideia de insignificância com a de delito de menor potencial ofensivo, deixando de aplicar a causa de exclusão em virtude de previsão de respostas penais alternativas. A Lei 9.099/95

elencou alternativas processuais (transação penal e suspensão condicional do processo) para delitos considerados em si mesmos de baixa lesividade social. Ao fazer esta classificação (soft crimes), seguindo o comando constitucional, aponta-se formalmente crimes de ofensividade mínima, ou seja, opta-se legislativamente por alternativas penais diversas em condutas cujo bem jurídico é de escassa relevância. Não há confundir, portanto, com a tipicidade material: nos crimes de menor potencial ofensivo o bem jurídico é em si mesmo de menor valor; nas condutas insignificantes, a conduta é de mínima relevância. Assim, é possível verificar nos soft crimes condutas que ofendem bem jurídico valorado como de menor relevância social. Diferentemente no caso do princípio da insignificância, no qual a conduta sempre será ínfima na ofensa de bens de relevância social. Equivocada, portanto, a orientação doutrinária e jurisprudencial que vê na Lei 9.099/95 o esgotamento da aplicação do princípio da insignificância. 459

12.3. O Sistema de Penas e de Medidas Previstas para Usuários de Drogas na Lei 11.343/06 12.3.1. Natureza das Sanções Previstas na Lei de Drogas: Penas e Medidas

O art. 5º, XLVI, da Constituição determina que a lei regulará a individualização da pena e aplicará, entre outras, (a) privação ou restrição da liberdade; (b) perda de bens; (c) prestação social alternativa; e (e) suspensão ou interdição de direitos. Percebe-se que o rol constitucional no que se refere às penas é exemplificativo, sendo abertas possibilidades de outras espécies desde que respeitados os limites estabelecidos no art. 5º, XLVII. 460 Assim, a Lei 9.714/98, ao alterar o Código Penal, regulamentou as penas restritivas de direito e criou outras modalidades para além da configuração originária estabelecida na Constituição (v.g. prestação pecuniária e limitação de fim de semana). A prestação de serviço à comunidade prevista no art. 28, II, Lei 11.343/06, inegavelmente é inserida no sistema punitivo brasileiro como espécie de pena restritiva de direito, incorporando-se naturalmente à tradição sancionatória. Resta aberta, contudo, a classificação da modalidade advertência sobre os efeitos das drogas (art. 28, I, Lei 11.343/06). Tem-se que o ato de admoestação, em razão do caráter de reprovabilidade real ou simbólica, adquire natureza punitiva, adequando-se

na

proposital

lacuna

deixada

pelo

texto

constitucional. Com a crise da pena privativa de liberdade e o movimento internacional de reforma dos sistemas punitivos, a Constituição abriu espaço à criação e à proposição de alternativas

ao cárcere, fixando os limites possíveis de punibilidade a partir do respeito à dignidade da pessoa humana, e tendo como norteadores da sanção os princípios da proporcionalidade, da individualização, da pessoalidade e da humanidade. Em não sendo, pois, a admoestação modalidade de privação de liberdade ou multa, nota-se que se aproxima, de forma atípica, das penas restritivas de direitos. Por outro lado, a Constituição de 1988, diferentemente de inúmeros textos ocidentais, não dispôs sobre as medidas aplicadas aos inimputáveis. Sobre a capacidade criminal apenas refere, no art. 228, que são inimputáveis os menores de dezoito anos, sendo sujeitos às normas da legislação especial, em redação similar àquela do art. 27 do Código Penal. Com o advento da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), foram introduzidas como respostas aos atos infracionais praticados pelos adolescentes as medidas socioeducativas. Assim, o sistema infraconstitucional se compôs da seguinte forma: aos penalmente inimputáveis em decorrência da idade (inimputabilidade etária), determinação de medida socioeducativa nos moldes do ECA; aos inimputáveis em razão de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (inimputabilidade psíquica), aplicação de medida de segurança conforme as regras do Código Penal (arts. 96 usque 99).

A Lei 11.343/06, em paralelo à previsão de medidas de segurança aos inimputáveis em decorrência da dependência ou intoxicação fortuita (arts. 45 usque 47), ao determinar as sanções cabíveis às condutas relativas ao porte para uso pessoal de drogas, estabeleceu nova espécie de medida: medida educativa (art. 28, III). Segundo a Lei de Drogas, a medida educativa consiste na frequência a programa ou curso educativo. O caráter reabilitador e terapêutico da medida educativa (prevenção especial positiva), associado à ideia prevalente no direito penal das drogas de associação entre usuário e dependente, cria na legislação pátria espécie atípica de medida, híbrido de medida de segurança e medida socioeducativa, aplicada ao imputável incurso nas condutas do art. 28, caput, da Lei 11.343/06.

12.3.2. Da Inconstitucionalidade da Aplicação Cumulada entre Penas e Medidas e a Reedição do Sistema do Duplo Binário As inovações da Lei 11.343/06 não se limitam apenas em prever, como sanção autônoma e não substitutiva da pena privativa de liberdade (art. 59, IV, c/c art. 44, CP), espécies de penas restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade e admoestação) e medidas educativas. A Lei de Drogas alterou substancialmente sua forma de aplicação, de execução, bem como o sistema de conversão em caso de descumprimento.

O art. 27 da Lei de Entorpecentes estabelece que as penas e as medidas previstas às condutas incriminadas no caput do art. 28 poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo, após oitiva do Ministério Público e do defensor. Na legislação penal brasileira contemporânea, existe apenas a hipótese de aplicação isolada ou cumulada entre pena privativa de liberdade e multa. O padrão incriminatório está centrado fundamentalmente na cominação exclusiva de pena de prisão ou na composição entre a privação de liberdade e a multa. Em situações excepcionais há possibilidade de o juiz optar por penas distintas (pena privativa de liberdade ou multa). A legislação, porém, diferentemente da previsão da Lei de Drogas, em momento algum facultava aplicação conjunta ou autônoma entre as penas (admoestação e/ou prestação de serviço) e muito menos entre penas e medidas (admoestação e/ou prestação de serviço e/ou medida educativa). A estrutura do novo sistema de punibilidade parece incorrer no que Ferrajoli denomina falácia policitista, vício do paleopositivismo que pressupõe a atuação dos poderes penais como parcimoniosa, razoável e limitada. Todavia a Criminologia Crítica demonstra exaustivamente que a tendência das agências de punitividade é ultrapassar a barreira da legalidade, incrementando metarregras para exceder nas formas de punir. Desta forma, as possibilidades

excepcionais de cumulatividade, visto a aplicação exclusiva constituir direito subjetivo do acusado, pois menos aflitiva, abrem espaço para que a cominação conjunta de penas e de medidas se estabilize como regra, criando verdadeiras dobras punitivas no sistema. A possibilidade de o magistrado aplicar advertência verbal e prestações comunitárias ou qualquer destas hipóteses acrescida da medida educativa deflagra dupla incriminação pelo mesmo fato, em frontal ofensa ao princípio ne bis in idem. Importante lembrar ainda que esta estrutura de punição da Lei de Drogas que agrega pena (restritiva de direito ou advertência) e medida (educativa) revive o sistema do duplo binário revogado com a reforma penal de 1984. Naquela ocasião, “consciente da iniquidade e da disfuncionalidade do chamado sistema ‘duplo binário’, a Reforma Penal de 1984 adotou, em toda a sua extensão, o sistema vicariante, eliminando definitivamente a aplicação dupla de pena e medida de segurança, para os imputáveis e semiimputáveis”. 461 A retomada à estrutura do duplo binário às modalidades de porte para consumo pessoal de drogas demonstra à exaustão os efeitos da perigosa associação, na esfera legislativa ou no plano discursivo (dogmático), entre consumidor e dependente. Em realidade, o sistema opera com dúplice pressuposição de periculosidade do usuário, mesmo eventual: (a) periculosidade

social em face da possibilidade de expansão do consumo de droga para terceiros, afetando o bem jurídico saúde pública; (b) periculosidade individual decorrente da percepção do consumidor como potencial dependente. Apenas neste quadro retórico é possível entender os excessos da dobra punitiva: pena retributiva à ofensa à saúde pública; medida educativa preventiva à autolesão. A reinstitucionalização da aplicação conjugada entre pena e medida, embora em menor grau, pois na Lei 11.343/06 estão excluídas

possibilidades

instituições

totais, 462

de

efetiva

encarceramento/internamento a

patologização

do

em

usuário,

densificando a ideologia da diferenciação. Neste quadro, crítica realizada ao sistema do duplo binário é absolutamente pertinente, visto que “a aplicação conjunta de pena e medida de segurança lesa o princípio do ne bis in idem, pois, por mais que se diga que o fundamento e os fins de uma e de outra são distintos, na realidade, é o mesmo indivíduo que suporta as duas consequências pelo mesmo fato praticado”. 463 Não por outro motivo a doutrina veda expressamente a possibilidade da aplicação cumulada entre penas e medidas 464.

12.3.3. O Caráter Moralizador da Pena de Admoestação No

que

tange

ao

conteúdo

sancionatório,

igualmente

questionável a constitucionalidade da pena de advertência verbal

sobre os efeitos das drogas. A previsão de admoestação revela não apenas a timidez política em optar pela descriminalização do uso pessoal de drogas, como demonstra a natureza pouco secularizada do discurso sobre os tóxicos, as toxicomanias e os toxicômanos. O caráter moralista e normalizador da sanção de advertência – seja como pena restritiva de direito (art. 28, I), como alerta à recusa injustificada à prestação de serviços comunitários ou como advertência ao não comparecimento ao programa ou curso educativo (art. 28, § 6º) –, ofende o núcleo rígido dos direitos fundamentais

constitucionalmente

previstos.

A

admoestação

prevista na Lei de Tóxicos adquire como objeto único e exclusivo a reprovação da opção pelo consumo de determinadas substâncias, fruto do livre exercício da autonomia da vontade do usuário. Não por outro motivo é possível identificar nesta estrutura de incriminação e na resposta penal ao desvio punível do consumo de drogas fortes aproximações aos modelos penais de autor.

12.3.4. Tempo de Pena e Qualificação do Uso de Drogas pela Reincidência Em relação ao tempo da pena, duas são as inovações previstas no art. 28 da Lei 11.343/06: (a) a ausência de determinação de pena mínima (apenas máxima) e (b) a determinação da reincidência como circunstância qualificadora do delito. Segundo o art. 28, § 3º, as

penas de prestação de serviços à comunidade e as medidas educativas serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses. O período de execução da pena ou da medida é aumentado para 10 (dez) meses em caso de reincidência, conforme o § 5º do referido artigo. A indefinição de mínimo com a fixação apenas do máximo da punição é alteração interessante introduzida pela Lei de Drogas. Entende Ferrajoli, ao defender este modelo de previsão penalógica, que ao legislador caberia apenas delimitar o máximo da sanção, ficando ao critério do juiz sua fixação motivada. O fundamento da proposta reside na ausência de justificativa da estipulação legislativa do mínimo legal: “Seria oportuno [sustenta Ferrajoli] confiar ao poder equitativo do juiz, a escolha da pena abaixo do nível máximo estabelecido pela lei, sem vinculá-lo a um limite mínimo, ou vinculado a um limite mínimo muito baixo”. 465 A tese se legitima no fato de o delito não ser quantificável, diferentemente da pena. Por esta razão os critérios utilizados para medição de gravidade do crime, tanto da perspectiva do dano quanto da culpabilidade, fracassaram. Argumenta Ferrajoli que o elemento da medida da pena se encontra na definição da pena máxima e não no mínimo, o qual representa, em realidade, espécie de tarifa. Em adquirindo o Estado o monopólio do poder de punir, a

única garantia necessária é a do cidadão, fornecida pela quantidade máxima da pena. No entanto, se apesar de manter a opção proibicionista a Lei de Entorpecentes fornece novos elementos de compreensão da resposta ao fenômeno punitivo, em outros aspectos reforça o inquisitorialismo e a perspectiva penal de autor. Os resquícios advêm não apenas da manutenção do instituto da reincidência, como da potencialização de seus efeitos. O art. 28, § 4º, ao aumentar o patamar máximo da pena restritiva de direito (prestação de serviços) e da medida (educativa) para 10 (dez) meses em face da circunstância subjetiva da reincidência, opera conceitualmente a qualificação dos delitos de aquisição, guarda, depósito, transporte ou porte de drogas. Se a crítica ao direito penal no Brasil tem reiterado a inconstitucionalidade do instituto da reincidência 466 por representar violação ao princípio da proibição da dupla incriminação (ne bis in idem), na Lei 11.343/06 o sistema densifica seus efeitos. Em razão de a reincidência estar prevista como agravante genérica nos arts. 61, I, e 63 do Código Penal, o sistema de cominação (art. 67, CP) possibilita aumento quantitativo vinculado à pena-base, tendo como limite máximo insuperável aquele previsto abstratamente no tipo, que no caso do art. 28 da Lei 11.343/06 seriam 5 (meses). O cálculo da pena, portanto, se seguisse os

critérios da lei codificada, deveria ser de determinação da penabase a partir das circunstâncias judiciais (art. 59, caput, CP), incidindo sobre esta a agravante, sendo inadmissível que a pena provisória ultrapassasse o teto fixado. No entanto o novo sistema demonstra a perversidade da opção proibicionista e a maximização dos métodos inquisitivos próprios aos modelos penais de autor. Ao aumentar o limite máximo da pena pela reincidência, a circunstância atuou como qualificadora, produzindo,

no

caso

do

uso

pessoal

de

drogas,

efeitos

proporcionalmente mais gravosos do que sua incidência em qualquer outro delito previsto na lei penal brasileira, inclusive os considerados hediondos e assemelhados. Se até o advento da Lei de Drogas se afirmava a incompatibilidade da agravante da reincidência com a Constituição, maiores ainda os argumentos ao operar como circunstância qualificadora. Neste caso, porém, não fere apenas o princípio ne bis in idem, mas notadamente os de proporcionalidade e de proibição do excesso.

12.4. Transação Penal, Justiça Terapêutica e Limites da Medida Segundo o art. 76 da Lei 9.099/95, aos delitos considerados de menor potencial ofensivo, o agente ministerial, nos casos em que as

hipóteses de arquivamento estiverem descartadas, no momento posterior à representação ou em caso de ação penal pública incondicionada, poderá propor aplicação de pena restritiva de direito ou multa. A lei nomina esta possibilidade diversificacionista como transação penal. As condutas previstas no art. 28, não apenas em decorrência da quantidade e espécie de pena cominada mas em face do determinado no art. 48, § 1º, da Lei de Drogas, harmonizam-se com a categoria crime de menor potencial ofensivo, estando abertas, portanto, possibilidades de diversificação processual – transação penal ou suspensão condicional do processo. Em inexistindo, nesta espécie de evento, vítima concreta, factível, palpável, incabível a composição civil dos danos previstas nos arts. 72, 73 e 74 da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Ocorre que o art. 48, § 5º, da Lei 11.343/06, ao regulamentar a forma de aplicação do instituto da transação penal, faculta ao agente acusador propor a aplicação imediata das sanções prevista no art. 28 – ”o agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais” (art. 48, § 1º, Lei 11.343/06). Desta forma, antes mesmo de se pensar em devido processo penal

e aplicação de pena decorrente de sentença condenatória transitada em julgado, exsurge a possibilidade punitiva como hipótese de transação.

12.4.1. Condições para Oferecimento de Transação Penal (Art. 48, §§ 1º e 5º, da Lei 11.343/06) Para avaliar os critérios e a legitimidade da transação e/ou suspensão condicional do processo, fundamental retomar a questão do porte de quantidade ínfima de entorpecentes, sobretudo para que se possam ampliar ao máximo os efeitos das teses propostas. A tese sustentada é a de que nos casos de porte de quantidade ínfima de droga não há alternativa possível aos operadores do direito senão optarem pelo arquivamento do procedimento, sequer propondo transação penal ou suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/95). Em sendo o porte de pequena quantidade de droga materialmente atípico, não haveria conformação de justa causa, fato que deslegitima qualquer pretensão em deflagrar modalidades diversificacionistas ou em ser exercida a ação penal. Assim, deve ser desqualificada a estranha prática que tomou conta do cotidiano dos Juizados Especiais, qual seja a vigência do princípio do “in dubio pro” transação penal, conforme diagnóstico realizado por Bogo Chies. 467 A experiência da universalização acrítica dos institutos diversificacionistas resultou na exclusão de qualquer filtro

limitativo às propostas de transação e de suspensão condicional do processo (v.g., tipicidade aparente, lastro probatório mínimo, interesse de agir), inviabilizando o arquivamento de ações temerárias ou de fatos formal ou materialmente atípicos, como no caso do porte ínfimo de entorpecentes. Os requisitos para propositura da transação penal, portanto, devem ser os mesmos que legitimam o exercício da ação penal e o recebimento da denúncia, ou seja, é imprescindível existir justa causa, condição fornecida pela prova suficiente da tipicidade (aparente) e pelo interesse em agir. Ocorre que a aparência de tipicidade que justifica a transação – ou o processo penal em caso de recusa da proposta, não cumprimento dos requisitos ou descumprimento das condições – deve estar sustentada em todo o âmbito de conformação típica, isto é, deve conglobar os aspectos objetivos, subjetivos, formais e materiais. Em não havendo preenchimento desses requisitos, injustificável a possibilidade de diversificação ou o próprio processo, constituindo a transação, a suspensão condicional, o oferecimento e/ou o recebimento da denúncia coação ilegal. Neste sentido o entendimento do STF: “JEC. AUDIÊNCIA PRELIMINAR. DESIGNAÇÃO SEM ATENTAR

PARA

A

FALTA

DE

JUSTA

CAUSA.

CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. (...) o ato da Turma

Recursal,

indeferindo

ordem

em

Habeas,

fez-se

alicerçado na premissa de que não se teria ainda recebido a denúncia. Olvidou-se não só o instituto da impetração preventiva, como

também

a

circunstância

de

consubstanciar

constrangimento ilegal contexto em que, flagrantemente sem justa causa, caminha-se para a audiência preliminar prevista na Lei 9.099/95, como se esta não alcançasse a liberdade ampla de ir e vir, no âmago, do próprio envolvido, sujeitando-o ao comparecimento a juízo em procedimento criminal. (...) Concedo a ordem para fulminar, e essa é a expressão mais adequada ao caso, o procedimento instaurado contra o paciente e que se faz em curso no Juizado Especial Criminal de Belo Horizonte (...)”.468 Assim, no caso de porte de quantidade ínfima de droga, em se tratando de conduta materialmente atípica, inexistem elementos que sustentem

procedimentos

processuais

penais,

devendo

o

arquivamento ser a hipótese aplicada.

12.4.2. Da Inconstitucionalidade do Art. 48, § 5º, da Lei 11.343/06: Nulla Poena Sine Iudicio Aspecto processual fundamental para que se possam avaliar os limites e a extensão da transação penal prevista no art. 48, § 5º, da Lei de Drogas, bem como a legitimidade das condições de cumprimento

dos

institutos

diversificacionistas,

é

o

da

inconstitucionalidade de qualquer tipo negociação pré-processual de natureza punitiva, sejam penas privativas de liberdade, restritivas de direitos,

multa

ou

medidas

(de

segurança,

educativas

ou

socioeducativas). O princípio constitucional da jurisdicionalidade da pena e das medidas (nulla poena sine iudicio), ao impor o cumprimento de requisitos formais e materiais do devido processo penal para que seja limitada a liberdade ou restritos direitos individuais, veda qualquer tipo de processamento sumário sem que se garanta ao imputado o tempo e os meios necessários para defesa. E a concessão do tempo e dos meios adequados para a preparação da defesa (art. 8º, 1, c, Decreto 678) implica necessariamente construção, no interior do procedimento em contraditório, de mecanismos cognitivos idôneos à compreensão do caso penal e à refutabilidade das hipóteses de acusação. A questão é que no procedimento pré-processual estabelecido pela Lei 9.099/95 e incorporado pela Lei 11.343/06, inexiste contraditório e ampla defesa, notadamente pelo fato de não ser o momento (cognitivo) adequado para discussão do mérito da causa penal – materialidade e autoria; elementos do crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade); condições de punibilidade. Neste caso, em sendo admitida homologação judicial de transação penal que determine ao imputado submissão a condições cuja natureza sejam

análogas às penas ou às medidas cominadas em lei, restarão violados os princípios de tutela dos direitos fundamentais previstos na Constituição, constituindo-se o ato em aplicação de sanção penal (pena ou medida) sem processo. Como mencionado, o art. 28, incisos I, II e III, da Lei 11.343/06, inovando na estrutura punitiva brasileira, previu como pena às condutas relativas ao uso pessoal de drogas as seguintes modalidades: (a) advertência sobre os efeitos das substâncias entorpecentes ou capazes de determinar dependência e (b) prestação de serviços à comunidade. No que tange às medidas, determinou (c) aplicação de medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Ocorre que o art. 48, § 5º, vinculou a proposta de transação às modalidades de pena e de medidas cominadas nos incisos do art. 28, configurando explícita violação ao princípio nulla poena sine iudicio. E não se trata, como defende importante corrente doutrinária, de verificar na decisão que homologa a transação espécie atípica de sentença penal condenatória, ou seja, decisão de tipo sumário cuja emergência ocorre em seu devido processo legal. 469 Justificar a aplicação

de

sanção

penal

fora

do

procedimento

previsto

constitucionalmente, por maior que seja o esforço retórico em inverter ideologicamente o sentido dos direitos fundamentais,

implica abandono ao mínimo de respeito necessário às garantias para que se possa auferir legitimidade ao processo penal e à pena. Desta forma, a possibilidade da transação penal nos casos de porte para uso pessoal de drogas é viável em duas hipóteses: (a) não haja correspondência alguma entre as condições de transação e as penas ou medidas previstas no art. 28, incisos I, II e III, ou seja, a natureza seja efetivamente diversa e (b) não sejam as condições impostas mais severas que as sanções elencadas, sob pena de ofensa ao princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso.

12.4.3. Justiça Terapêutica e Aplicação de Medidas Educativas Neste quadro de avaliação das condições da transação penal e da verificação da proporcionalidade das sanções se insere necessária crítica ao que se convencionou denominar Justiça Terapêutica. A Justiça Terapêutica, conforme a identidade do projeto fornecida

pela

Associação

Nacional

(ANJT),

“pode

ser

compreendida como um conjunto de medidas que visam aumentar a possibilidade de que infratores usuários e dependentes de drogas entrem e permaneçam em tratamento, modificando seus anteriores comportamentos delituosos para comportamentos socialmente adequados”. 470

O projeto-piloto de instauração foi realizado na 2ª Vara da Infância e da Juventude na Comarca do Rio de Janeiro, através da publicação da Ordem de Serviço 02/01 e do Provimento 20/01 da Corregedoria Geral de Justiça carioca. 471 A partir das aberturas fornecidas pelos arts. 101 (medidas de proteção) e 112 (medidas socioeducativas) da Lei 8.069/90 (ECA), foram criadas sanções específicas para jovens que teriam praticado condutas previstas na Lei de Drogas ou realizado “infrações sob influência de drogas ou para sustentar seu vício”. 472 Com a ampliação do conceito de menor potencial ofensivo fornecido pela Lei 10.259/01, o projeto pôde ser estendido aos imputados pela prática dos crimes previstos no art. 16 da Lei 6.368/76. Assim, no momento da transação penal, agregado ou alternado às condições negociadas em audiência, haveria a proposição de intervenção terapêutica com acompanhamento de equipe de saúde interdisciplinar. Outrossim, em crimes que admitiriam a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/95), segundo a orientação do projeto, poderia o juiz “acrescentar

à

condição

de

intervenção

terapêutica,

como

orientação, frequência a cursos e tratamento, em caso de dependência química”. 473 Nestes casos, em sendo homologada a transação ou a suspensão condicional do processo, seria determinado tratamento

conforme

critérios

estabelecidos

pelas

equipes

de

saúde

responsáveis indicadas pelo juiz competente. O tratamento, adquirindo nítida natureza de medida socioeducativa (como propugnado no âmbito do ECA) ou de segurança (no caso de autores imputáveis), não estaria limitado temporalmente, sendo vinculado ao período disposto na transação/suspensão. Contudo, “encerrado o processo, a indicação de continuidade ou não do tratamento, seria realizado pela equipe de saúde”. 474 Em caso de descumprimento das condições estabelecidas, o processo criminal seria (re)instaurado. O principal marco do projeto é o da substituição do sistema de penas pelo de tratamento (medidas), reduzindo as taxas de prisionalização

das

pessoas

envolvidas

com

substâncias

entorpecentes. Segundo os idealizadores, a legislação brasileira, em distintos

institutos

(penas

restritivas

de

direitos,

suspensão

condicional da pena, transação penal, suspensão condicional do processo e medidas socioeducativas), autorizaria, quando o delito praticado envolvesse o consumo de drogas ilícitas, a adoção do tratamento compulsório. 475 Nota-se, ao avaliar a estrutura ideológica e as funções não declaradas do programa, que o projeto Justiça Terapêutica não apenas retoma os modelos defensivistas que substituem penas por medidas de segurança, 476 como reedita perspectiva sanitarista na

qual o usuário de drogas é visto invariavelmente como doente crônico, dotado do atributo periculosidade. Não obstante, ao vincular na mesma categoria usuários e dependentes, não estabelecendo as necessárias

distinções, 477

o

programa

estabelece

pautas

moralizadoras e normalizadoras próprias de modelos penais autoritários fundados no periculosismo. Em realidade, sob o declarado fim de auxiliar, via tratamento, o indivíduo envolvido com drogas, o projeto lhe retira a qualidade de sujeito, negando-lhe possibilidade de fala e de interação. A propósito, esta é a característica marcante dos discursos penais que se fundem com a lógica psiquiátrica etiológica. A questão da aplicabilidade do projeto ganha novos contornos a partir da previsão, como sanção ou condição da transação penal, de aplicação de “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo” (art. 28, III, Lei 11.343/06). Ao regulamentar a nova sanção, a Lei de Drogas avançou no sentido de limitar sua duração temporal, obstruindo a ideia central do projeto Justiça Terapêutica em transformar o tratamento coercitivo, nominado como transação penal ou pena, em medida de segurança atípica de tempo indeterminado – “as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses” (art. 28, § 3º).

Todavia, embora salutar o limite formal, a aproximação sempre perigosa entre penas e medidas (educativas, socioeducativas ou de segurança) deixa aberto espaço para o aniquilamento do sujeito, transformado-o em objeto de intervenção criminológica. É que parece evidente e anunciado o fracasso de qualquer tipo de intervenção na qual o envolvido não perceba valorizado seu discurso e não lhe seja possibilitado interagir na definição do rumo e do objetivo do tratamento, pois “não há um só programa sério que não indique como primeiro passo o desejo do sujeito dependente”. 478-479 Neste quadro, apresentam-se como ofensivos aos direitos e garantias individuais, notadamente às dimensões da intimidade e da vida privada, práticas comuns das intervenções terapêuticas como a obrigatoriedade de testagem laboratorial para verificação do uso de drogas, a exigência de comparecimento regular e pontual às sessões de terapia, o desempenho laboral ou escolar satisfatório e a abstinência do uso de drogas. É que tais requisitos,

além

de

ofender

os

direitos

de

personalidade

constitucionalmente previstos, não se harmonizam com a ideia de redução de danos que deve imperar em casos que envolvem problemas de saúde coletiva, constituindo-se, exclusivamente, em projetos

moralizadores.

Outrossim,

medidas

desta

ordem

obstaculizam qualquer aproximação e possibilidade de escuta do sujeito. 480

Ao se vincular, p. ex., a continuidade do tratamento à abstinência

comprovada

por

exame

laboratorial

coercitivo,

estabelecendo-se sanções aos casos de descumprimento (v.g. reedição do processo penal quando condição de transação), se olvida que, nos casos de dependência severa, recaídas são absolutamente naturais, quando não etapas do próprio tratamento. Tais medidas, inclusive, podem gerar efeito perverso, dobrando a punitividade, como ensina Vera Batista: “O programa [Justiça Terapêutica] coopera com a criminalização exigindo testagens de abstinência obrigatórias, exigência de comparecimento regular às ‘terapias’, pontualidade, ‘vestir-se apropriadamente para as sessões de tratamento’, colaboração com a realização dos testes de drogas, ‘comparecer e demonstrar desempenho satisfatório na escola, estágios profissionalizantes e laborativos’ (...)”. 481 A autora, aliando-se às políticas antiproibicionistas e percebendo o pano de fundo ideológico do projeto Justiça Terapêutica, conclui: “Ao invés de descriminalizar e tratar o problema através do ponto de vista da saúde coletiva, o projeto prevê uma criminalização do atendimento ao dependente químico, sujeito agora a uma justiça terapêutica; como se punir e curar voltassem aos braços um do outro, como no perigosismo curativo do Positivismo”. 482

12.4.4. Política de Redução de Danos e Justiça Terapêutica

Não obstante se entenda a alternativa de descriminalização do uso pessoal de drogas como a mais harmônica com as políticas de redução de danos, restaria ainda a indagação de quais formas de tratamento possíveis e de que maneira se podem conceber mecanismos

de

baixa

dependente

(direitos

invasividade de

na

esfera

personalidade).

pessoal

Responder

do tais

interrogantes pressupõe transvalorar os modelos político-criminais (criminalizadores

ou

descriminalizadores)

e

pautar

políticas

efetivamente reducionistas, para além da carta de intenção e das meras formalidades apontadas nos capítulos introdutórios da Lei 11.343/06. É que se entende possível estabelecer programas de tratamento de dependência de drogas fora do âmbito das agências de punitividade. Neste sentido, as proposições de auxílio aos dependentes químicos elababoradas pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), objetivando minorar as arbitrariedades e as lesões aos direitos de réus e condenados submetidos à medida de segurança, podem representar o primeiro passo na busca de alternativas viáveis fundadas em principiologia orientada para o respeito à diversidade e à autonomia individual. Os pesquisadores do IIDH, ao diagnosticar a legislação latinoamericana que trata da aplicação e execução das medidas de

segurança, propõem como programa mínimo: 1) La elaboración a la brevedad de proyectos de legislación que establezcan un estricto procedimiento para la internación, diagnóstico y tratamiento de enfermos mentales, garantizando el control de la autoridad judicial. 2)

Considerar

administración

violatoria

de

Derechos

Humanos

indiscriminada

de

tratamientos

que

la

sean

sumamente dolorosos, que afecten la integridad psíquica del paciente o que lo deterioren, sin instancias judiciales y permanentes de control. 3) En consecuencia con lo anterior, tender a la codificación de la legislación psiquiátrica sobre la base de un estricto control judicial con el menor número posible de internaciones y de tratamientos dolorosos o susceptibles de producir efectos desintegradores o deteriorantes. 4) En cualquier caso, establecer el más amplio deber de explicación del médico al paciente (o a su família en el caso en que aquél no estuviese en condiciones de comprenderla) y el consentimiento prévio para la internación y el tratamiento. 483 As teses do IIDH de respeito à integridade física e psíquica dos usuários dos serviços de saúde coletiva aliam-se aos dispositivos do Código de Ética Médica que vedam ao médico: (a) efetuar qualquer

procedimento sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida; (b) exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar; (c) desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida; e (d) deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal (arts. 46, 48, 56 e 59, respectivamente). Parece ser premissa fundamental, portanto, o reconhecimento do envolvido com drogas como sujeito com capacidade de diálogo. Este deve ser o pressuposto de qualquer modalidade de intervenção, pois, como ensina Mariana Weigert, “o paciente deve ter o direito de decidir sobre a sua vida, sobre seu corpo e sua mente, inclusive para contribuir para que os resultados do tratamento sejam atingidos”. 484 Outrossim, mister ressaltar que qualquer política de tratamento de dependentes e de auxílio de usuários gestada no interior de modelos proibicionistas tende ao fracasso, visto o afastamento natural que a intervenção penal produz nos sujeitos envolvidos com drogas. Em modelos como o brasileiro, portanto, fundamental

otimizar o instrumental dogmático no sentido de afastar usuários e dependentes do estigmatizante sistema penal através, dentre outras ferramentas, de arquivamento de termos circunstanciados, de trancamento de ações penais, de absolvição do porte de pequena quantidade de droga (atipicidade material), de declaração de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06 (ofensa aos princípios de tutela da intimidade e da vida privada). O programa Justiça Terapêutica, em decorrência de ter sido forjado e estar gerido desde a lógica das agências de punitividade, carrega

consigo

efeitos

desintegradores

e

deteriorantes,

fundamentalmente por operar com o pressuposto da coercitibilidade. Não por outro motivo a tendência das intervenções propostas neste modelo é de gradual afastamento da ideia de diversificação processual,

própria

de

políticas

criminais

minimalistas,

transformando a terapêutica em medidas de segurança atípicas (medidas educativas) aplicadas sem o devido processo penal. Conforme lecionam Oliveira, Wolff, Conte e Henn, 485 nas orientações terapêuticas que sustentam o imperativo da abstinência, o sujeito deverá realizar série de tentativas para abdicar de todos os objetos que estavam marcados pela sua trajetória toxicomaníaca, isto é, sua história, suas referências, suas memórias. Assim, adquirindo a condição de “limpo”, responderia ao ideal de recuperação. Neste quadro, concluem as autoras que no imperativo

da abstinência reúnem-se duas formas de controle: a que responde ao apelo legal de eliminação do inimigo e a que está referenciada aos princípios de erradicação do problema, próprias do higienismo. Em polo oposto à coercitibilidade e ao ideal de pureza, que reproduzem no âmbito da saúde pública a perversa lógica punitiva, os programas alternativos são pautados por premissas de consentimento e de voluntariedade. Os projetos de redução de danos, como visto anteriormente, fixam como requisito da intervenção o reconhecimento do envolvido com drogas, usuário ou dependente, como sujeito com capacidade de diálogo, ou seja, dotado dos atributos da fala e da escuta. Abrem, pois, espaço para novas formas de ação cujo objetivo principal é o de minimizar os efeitos danosos gerados pelo (ab)uso das drogas, abdicando de qualquer intenção moralizadora decorrente do ideal de abstinência. Tal concepção é centrada na ideia de que o “sujeito, para advir, além da necessidade e da demanda, precisa renunciar ao absoluto do real, recuperando a eficácia da fala e construindo na linguagem sua história psíquica, recuperando memória e marcas em uma série singular que o engaje em formas de cuidado, deveres simbólicos e direitos. Nesta perspectiva o lugar do Outro Real poderá ser civilizado, tolerado, sem que se precise dominá-lo completamente”. 486

Em realidade, distintos sistemas de atuação no campo do direito penal das drogas, fundados em princípios unificadores absolutamente autônomos, podem ser conformados: (a) modelos baseados no princípio do tratamento compulsório e coercitivo (v.g. Justiça Terapêutica) e (b) modelos sustentadas pelo princípio do respeito à autonomia individual (v.g. políticas de Redução de Danos). Os sistemas atribuem diferentes status aos usuários e dependentes de drogas, demonstrando maior ou menor adequação ao projeto constitucional balizador da atuação dos órgãos e agentes públicos. Assim, se nos sistemas de reconhecimento da autonomia o usuário e o dependente são percebidos como sujeitos de diálogo, portadores de fala e de escuta, tendo sua alteridade preservada, nos de coercitibilidade é reduzido a mero objeto de intervenção, incapaz de interagir e definir sua trajetória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 1. A Constância e o Fortalecimento da Ideologia da Diferenciação A política criminal de drogas no Brasil, em sua expressão ideológica, legal e dogmática, demonstra a grande distância entre as funções declaradas e as funções realmente exercidas pelas agências de punitividade. A investigação procurou demonstrar que o Brasil, desde o início do século passado, mas principalmente a partir da década de 1960, foi inserido no modelo transnacional de controle dos entorpecentes, adequando sua legislação e sua máquina administrativo-punitiva para saldar compromissos político-criminais assumidos com as agências centrais. A nova Lei de Entorpecentes reforça o processo de globalização do controle social e reproduz em sua estrutura o rompimento gradual que as leis de emergência operam na principiologia constitucional do direito penal e do direito processual penal – na esfera da lei penal (utilização de normas penais em branco, termos imprecisos e genéricos, proliferação de verbos nucleares do tipo e incriminação de condutas autolesivas e meramente preparatórias); na teoria do delito (indefinição do dolo do tráfico e a objetificação dos elementos subjetivos do tipo); na teoria

da pena (desproporcionalidade da sanção); e na esfera processual (ruptura do devido processo legal decorrente da aceleração dos procedimentos e minimização da ampla defesa e do contraditório). O processo de descodificação, capitaneado no Brasil pelas Leis de Drogas, desestruturou totalmente a pretensão de rigidez, completude e coerência ínsita ao moderno projeto de segurança jurídica. Além das incoerências internas, nota-se que a Lei 11.343/06 criou dois estatutos penais absolutamente distintos, marcados pela ideologia da diferenciação, cujo direcionamento reforça os estereótipos de traficante e de dependente. Com o advento da Lei 11.343/06, portanto, são reforçados no cotidiano repressivo os discursos forjados na Lei 6.368/76 e que conduziram, na segunda metade do século passado, a política de repressão às drogas: o discurso médico-sanitário (estereótipo da dependência)

e

o

discurso

político-jurídico

(estereótipo

da

criminalidade). Ambos proliferam a ideologia de diferenciação entre consumidor-doente

e

traficante-delinquente,

mantendo

na

contemporaneidade o padrão e a dinâmica das reformas das leis penais,

processuais

penais

e

executivas

no

campo

dos

entorpecentes. Todavia, para além da implementação de estereótipos, os discursos presentes na Lei de Entorpecentes fomentam a construção político-criminal da categoria inimigo – não sujeito (de

direitos) identificado com as pessoas envolvidas com o tráfico. Deflagra-se, no senso comum dos juristas e do homem de rua (every day theories), a ideia de políticas públicas de segurança pautadas pela lógica beligerante da eliminação dos incômodos. A ação conjunta dos mecanismos de salvaguarda pública (agências de punitividade) adquire, neste contexto, legitimidade na qual inexistem limites ou barreiras legais a respeitar. Durante a década de 1970 as agências centrais identificaram como inimigos (externos) os produtores e exportadores de substâncias entorpecentes localizados nos países periféricos. A política repressiva derivada desta simplificação passou a influenciar diretamente a estrutura punitiva internacional. Como consequência, a ilusão do discurso central levou os países periféricos a estabelecer políticas extremamente autoritárias e dissociadas de sua realidade (marginal).

A

transnacionalização

do

controle,

com

o

estabelecimento de padrões punitivos de cariz inquisitiva, não compreende e não respeita as autonomias culturais e políticas, gerando resposta repressiva em diafonia com os direitos e as garantias

individuais.

Ademais,

ao

incorporarem

o

modelo

transnacionalizado, as agências da periferia identificam inimigos internos, proliferando a lógica da beligerância e densificando processos punitivos baseados na eliminação, na neutralização e na erradicação dos elementos disfuncionais.

A estrutura repressiva, portanto, passa a ser orientada por falsas imagens, por fragmentações ilusórias da realidade. Todavia esta concepção não se restringe à prática das instituições e dos agentes que compõem o sistema punitivo, pois invade e integra elementos de cultura, recriando sistemas político-criminais de exceção.

2. O Futuro da Política Internacional de Repressão às Drogas A constante formalização da transnacionalização do controle de drogas suscita, inclusive, o questionamento sobre o futuro do direito penal e processual penal das drogas. Rosa del Olmo, ao tabular os discursos sobre os entorpecentes ao longo do século passado, indaga, após apresentar o modelo econômico-transnacional da década de 1990, quais seriam as próximas configurações retóricas e os planos de ação para o incremento da punitividade. Seus questionamentos são da seguinte natureza: globalização da justiça com a debilitação da justiça nacional e o surgimento de justiça paraestatal e extraterritorial ou criação de Tribunal Internacional e de forças multinacionais antidrogas? 487 As indagações da criminóloga são pertinentes neste quadro de constantes reformas do qual a Lei 11.343/06 faz parte.

Importante lembrar que a Conferência de Roma (1998), órgão encarregado de elaborar o estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), foi derivada exatamente da discussão sobre a possibilidade de

criação

processamento

de e

Tribunal

Internacional

julgamento

dos

especializado

delitos

de

tráfico

no de

entorpecentes. 488 Durante a 46ª Sessão da ONU (1994), a Comissão de Direito Internacional foi instigada, a partir de requerimento de Trinidad y Tobago, a manifestar-se sobre a possibilidade de criação do Tribunal Internacional. No interessante relato sobre os debates de Roma, Kirsch & Robinson demonstram que “as delegações estavam divididas sobre se o Estatuto deveria incluir o crime de agressão, crimes de terrorismo ou aqueles relacionados a drogas. Muitas delas estavam empenhadas na inclusão do primeiro, e um número significativo apoiava a inclusão dos outros dois tipos, mas, em cada caso, havia fortes preocupações de que não houvesse definição consensual de tais crimes, e que eles fossem de caráter fundamentalmente diferente dos ‘crimes principais’ de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra”. 489 A inclusão do tráfico de drogas (e do terrorismo) foi amplamente debatida, visto que alguns Estados, sobretudo Barbados, República Dominicana, Jamaica e Trinidad e Tobago, faziam pressão contundente por sua inclusão.

Em que pese grande pressão para a internacionalização dos julgamentos dos delitos de tráfico em caso de extraterritorialidade, é possível sustentar que, em não tendo sido aprovada a proposta no Estatuto de Roma, difícil visualizar, ao menos nos próximos anos, Tribunal Internacional autônomo e específico para o processamento desta natureza de delitos. Tal fato, contudo, não inibe a padronização das leis penais locais desde o modelo gestado pelas agências

centrais,

como

ocorre

no

Brasil

com

a

recente

reformulação do estatuto de entorpecentes.

3. As Fundações da Política Proibicionista: Defesa Social A facilidade de incorporação do discurso repressivo das drogas no cotidiano, com a formação de cultura beligerante com termos e signos próprios, advém inegavelmente de sua base ideológica informadora. O modelo de guerra às drogas encontra na ideologia da Defesa Social seu fundamento ótimo. A perspectiva universalista da Defesa Social absorve e aprisiona a alteridade, convocando postulados de moralidade para a eterna cruzada do bem contra o mal. Como principal consequência, é fomentada a incidência vertical e seletiva das agências de punitividade, obstaculizando políticas públicas preocupadas em efetivar valores constitucionalmente previstos, como o pluralismo, a tolerância e o respeito à diversidade. A

intervenção totalizante realizada pelas agências centrais torna a diversidade refém de respostas unificadas, impedindo intervenções pautadas no respeito à autonomia cultural e à liberdade individual quando se está diante de situações marcadas pela diferença. Neste sentido Alessandro Baratta diagnostica o papel auferido pela ideologia da Defesa Social aos toxicômanos na sociedade contemporânea: “Su función consiste en ser los sujetos de una transferencia de los conflictos y del ‘mal’, desde la sociedad en general, a un grupo particular. Autodefiniéndose, por el peso de la présion externa en esta identidad desviada ellos cumplen de manera muy exitosa la función de chivo expiatório y al mismo tiempo de ‘enemigo interno’”. 490

4. As Fundações da Política Antiproibicionista: Crítica Criminológica Com a irreversibilidade e a recepção dos postulados do paradigma da reação social pela Criminologia Crítica foi possível constatar a falta de adequação entre os princípios de intervenção declarados pelo tradicional modelo integrado de ciências criminais e o funcionamento empírico das agências repressivas. Como alternativa para dirimir os efeitos perversos desta disfunção provocada pelo sistema penal, a crítica criminológica, convertendose em políticas criminais alternativas, procurou desenvolver

programas concretos de ação (criminologia da práxis) visando à minimização da incidência do poder punitivo. O projeto de descriminalização aparece, portanto, como alternativa viável, como tema consensual entre as mais diferentes correntes críticas (minimalistas, garantistas, abolicionistas e realistas marginais). Os colóquios preparatórios ao XI Congresso Internacional de Direito Penal, realizados em Bellagio e Nova Iorque, marcaram o debate

sobre

as

possibilidades

de

contenção

ao

gradual

crescimento do sistema penal (inflação penal). Opostas à concepção meramente estatal de controle social, as vertentes alternativas

procuraram

antecipar

modelos

baseados

na

informalidade e horizontalidade do controle, intentando visualizar respostas societárias ao desvio. A base argumentativa nega as categorias da criminologia positivista (microcriminologia), alterando o objeto de estudo da etiologia

delitiva

aos

processos

de

criminalização

primária

(seletividade de condutas realizada pela lei penal), criminalização secundária (etiquetamento dos vulneráveis provocado pela desigual incidência das agências) e penalização (consolidação do rótulo no estigma decorrente dos processos punitivos). A Criminologia Crítica, desde o enfoque macrossociológico, centraliza a investigação nos processos de criminalização/descriminalização, contrapondo os modelos tradicionais (beligerantes) aos alternativos (pluralistas).

Se a característica histórica dos modelos repressivos é a ampliação do poder de punir através de políticas maximalistas, o processo de descriminalização permite visualizar os primeiros passos para dirimir os efeitos nefastos provocados pelo aumento da punitividade, quais sejam, a seletividade, o etiquetamento e a estigmatização dos grupos e sujeitos vulneráveis.

5. Antiproibicionismo e Redução de Danos No campo das drogas, as consequências perversas geradas pela desigual incidência das agências penais são percebidas nas esferas econômicas, educacionais, médicas, jurídicas e, sobretudo, individuais

(custos

da

criminalização).

Da

promessa

de

contramotivação, o modelo repressivo às drogas estabeleceu regime de criminalização secundária; ao reprimir o consumo, estigmatizou o usuário; no intuito de eliminar o tráfico ilícito, direcionou seu poder letal contra segmentos sociais e indivíduos vulneráveis. A eleição dos sujeitos envolvidos com drogas como os novos inimigos da sociedade global reduziu toda a complexa problemática ao exclusivo âmbito penal. Esta escolha, não obstante potencializar violências, impossibilitou historicamente soluções alternativas (nãopenais) baseadas na diversificação e na redução dos riscos e dos danos provocados pelo (ab)uso de drogas.

Ler criticamente os programas político-criminais de drogas significar revelar sua funcionabilidade. Para tanto, Baratta lembra que “Foucault nos ha mostrado lo productivo que es, para un análisis científico de la cárcel, dejar la perspectiva ideológica del fracaso y utilizar la historia del éxito; dejar de lado las funciones declaradas para interpretar el fenómeno por medio de una reconstrución de las funciones realmente cumplidas. Desde este punto de vista, en efecto, reconstruir funciones económicas y políticas que puedan explicar históricamente cuán exitoso ha sido y sigue siendo el gran esfuerzo llevado a cabo para la construcción de la actual política de la droga en los años sesenta; su utilización y mantenimiento en nuestros días, no obstante la evidencia del fracasso”. 491 Neste

sentido,

o

contraefeito

à

criminalização

(projeto

antiproibicionista) pode abrir espaços para políticas preventivas inovadoras com maior eficácia na redução dos danos provocados pelas drogas e pelo próprio abuso do poder penal. A retirada do problema da ilegalidade, possibilitando sua visibilidade, abriria espaço para incremento da informação educacional, para o incentivo agrícola de culturas alternativas e para a regulamentação do comércio e do uso de substâncias entorpecentes. Como

sustenta

Baratta, 492

a

descriminalização

deve

representar utopia concreta, realizável, perseguida pelos mais

diversos segmentos sociais, pois representa alternativa viável para minimizar os danos ocasionados pela criminalização.

6. A Nova Lei de Drogas e a Manutenção da Lógica Punitiva A Lei 11.343/06, frustrando as expectativas dos grupos antiproibicionistas, manteve a perspectiva formal do controle e criou dois estatutos autônomos e diversos fundados na ideia de criminalização omnicompreensiva do ciclo da droga. No que tange à incriminação do tráfico ilícito, a Lei 11.343/06 incrementa a punibilidade, aumentando as quantidades mínimas de pena privativa de liberdade, impondo severo tratamento penal, processual e executório, na linha da Lei dos Crimes Hediondos. Em relação às ações facilitadoras do consumo, apesar de deflagrar processo de descarcerização com a proibição taxativa de qualquer espécie de prisão (processual ou punitiva), reeditou o sistema do duplo binário facultando a punição dobrada do consumidor e/ou do dependente com pena (restritiva de direito) e medidas (educativas). Fortalece, portanto, o discurso psiquiátrico de origem etiológica, no qual inexiste diferenciação entre usuário e dependente. Ademais, facilita a implementação de projetos autoritários que retiram da pessoa envolvida com drogas seu status de sujeito, negando-lhe capacidade de fala e de escuta – v.g. Justiça Terapêutica.

Conforme leciona Maria Lúcia Karam, “ao contrário do que muitos querem fazer crer, a nova Lei 11.343/06 não traz nenhum avanço nesse campo do consumo. Uma lei que repete violações a princípios e normas constantes das declarações universais de direitos e das Constituições democráticas jamais poderá ser considerada um avanço. Nenhuma lei que assim suprime direitos fundamentais pode merecer aplausos ou ser tolerada como resultado de uma conformista ‘política do possível’”. 493

7. Mecanismos Moralizadores e Ética da Alteridade Christopher Hitchens, ao comentar a fragilidade das evidências médicas em relação aos riscos do fumo passivo, lembra que essas proibições

destinadas

“fundamentalmente

ao

ilógicas,

“nosso

próprio

pressagiando

bem” um

são mundo

supervisionado em que viveremos de maneira indolor, segura e tediosa”. 494 A fala de Hitchens é trazida por Zizec, ao analisar as políticas de intolerância (ou tolerância zero) fomentadas pelas obsessões legislativas de coibir o prazer excessivo dos outros. No caso, o filósofo esloveno disseca o princípio ativo das campanhas contra o fumo (lícito), sustentando haver espectro rondando o mundo ocidental desenvolvido: o espectro do cigarro.

Lembra Zizec que “primeiro, todos os escritórios foram declarados áreas de ‘não fumantes’, depois os voos, depois os restaurantes, aeroportos, bares, clubes, 50 metros em torno da entrada dos prédios de algumas universidades e depois, em um caso único de censura pedagógica, lembrando-nos a famosa prática stalinista de retocar as fotos da nomenclatura, os correios dos Estados Unidos removeram o cigarro dos selos com o retrato do guitarrista de blues Robert Johnson e do pintor Jackson Pollock, até as recentes tentativas de impor a proibição de fumar nas calçadas ou em parques”. 495 O ideal ascético de pureza, abstinência e tédio, ao pressupor sua virtude em garantir à humanidade maior segurança e imunidade aos riscos, define nova perspectiva moralizadora e antissecular. Em tempos de exploração de medos decorrentes das representações sociais dos riscos catastróficos – das ações de grupos terroristas e das hipóteses de colapso ambiental à corrosão dos valores sociais fomentada pelo narcotráfico –, o sacrifício das liberdades públicas parece ser preço razoável a ser pago em prol do consumo pasteurizado de segurança. No cálculo utilitário entre ônus e bônus, os direitos individuais são apresentados como ordinária mercadoria de troca passível de limitação, de obstaculização ou de restrição, por

mais

ilusório

(segurança).

que

seja

o

produto

de

contraprestação

Se o uso de drogas ilícitas, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, “se articulava com a subversão estética da existência” 496 – não esquecendo, logicamente, que usuários e toxicômanos apresentam

unidades

clínicas

diferenciadas

(Birman)

–,

na

atualidade o valor da abstinência determina sua substituição pelo gozo lícito e asceta dos fármacos controlados. A proliferação do uso de psicofármacos (ansiolíticos e antidepressivos) impõe severa culpabilização ao gozo irresponsável, não controlado e “sujo” de drogas (ilícitas), motivo pelo qual se torna natural a patologização do usuário como dependente. Ao supor o usuário de entorpecentes como doente, entra em cena o processo moralizador anestésico do tratamento com fármacos, sempre eficazes para esquecer a escuta do sujeito. Birman diagnostica que “diante de qualquer angústia, tristeza ou outro desconforto psíquico [ou desvio, acrescente-se], os clínicos passaram a prescrever, sem pestanejar, os psicofármacos mágicos, isto é, os ansiolíticos e antidepressivos. A escuta da existência e da história dos enfermos foi sendo progressivamente descartada e até mesmo, no limite, silenciada. Enfim, por essa via tecnológica, a população passou a ser ativamente medicalizada, numa escala sem precedentes”. 497 A farmacologização do cotidiano ultrapassa inclusive as técnicas de tratamento (e justiça) terapêutico de usuários e de dependentes de drogas, atingindo toda e qualquer

manifestação de dor psíquica. Melman lembra que, com os neurolépticos, simplesmente não se permite mais que as pessoas façam seus lutos, pois “os psiquiatras tendem mais a tratar os lutos como doenças, a confundir luto e estado depressivo. Muitos não sabem mais que um luto é algo normal”. 498 A comercialização da felicidade parece estar associada ao lema “entorpeça-se, mas de forma limpa, lícita e controlada para não causar distúrbios e desestabilizações éticas ou estéticas”. Ao mumificar o sujeito (Melman), a própria figura do analista é subvertida – “a figura do analista não é, pois, um remédio, tampouco um fármaco, capaz de promover a salvação das almas sofrentes (...). Além disso, as dores provocadas pela existência não são doenças no sentido médico do termo. Dessa maneira, a figura do analista seria a de alguém capaz de sustentar radicalmente a experiência limite da morte indicada pela dor do desamparo, acreditando que, da fronteira do horror com o impossível, o sujeito vai advir”. 499 Desta forma, se não é tarefa do médico ou do analista anestesiar ou mumificar o sujeito envolvido com drogas, seja o usuário ou o dependente, não cabe ao direito e aos juristas o papel de moralizadores. O

respeito

à

diversidade

necessariamente

a

assunção

e do

à

autonomia

outro

como

implica fator

de

desestabilização e de ruptura com a segurança ofertada pela crença nas ilusões. A redução, o aniquilamento, o entorpecimento da identidade do outro ao eu (mesmo) define o caráter totalitário deste tipo de abordagem. Motivo pelo qual qualquer possibilidade clínica para dependentes pressupõe sua interação e o respeito à sua diversidade, por mais desestruturante que se apresente. Para que se possa ultrapassar a perversa moralização do cotidiano que determina a anulação da alteridade instituída pelo ideal de pureza abstêmia e reproduzida na lógica proibicionista dos processos criminalizadores, fundamental e necessário assumir postura

que

permita

transvalorar

os

valores

morais.

A

transvaloração dos valores (Nietzsche) permite perceber que no campo das drogas as proibições intentam ocultar este outro que desestabiliza. Desta forma, conforme indaga Zizec, não seria fundamental à ordem de culpabilização demonizar “o gozo excessivo e perigoso do outro, personificado no fato de acender ‘irresponsavelmente’ um cigarro e inalar com profundo prazer, em contraste com os yuppies clintonistas que o fazem sem tragar (ou fazem sexo sem penetração ou comem sem gordura ou...)?”. 500 Ricardo Timm de Souza ensina que o encontro com a alteridade é um dos mais difíceis de realizar, “pois esta disponibilidade [de encontro] sinaliza que o Eu se encontra em uma posição que pode

ser radicalmente colocada em questão, em uma situação de insegurança, pelo mero aparecer da Alteridade”. 501 A incapacidade do humano de estar frente à diversidade e a sua impossibilidade de realizar acontecimentos trágicos (Timm de Souza) com sujeitos que o desestabilizam talvez possam explicar a necessidade de manutenção da lógica proibicionista com seus perversos efeitos.

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A

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O

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Cezar.

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Informe

sobre

el

52º

Período

de

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Codice

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APÊNDICES 1. #DESCRIMINALIZASTF: UM MANIFESTO ANTIPROIBICIONISTA ANCORADO NO EMPÍRICO Salo de Carvalho Marcelo Mayora Alves [*] Mariana Dutra de Oliveira Garcia [**] Mariana de Assis Brasil e Weigert [***]

INTRODUÇÃO O Supremo Tribunal Federal está prestes a julgar caso bastante relevante, tanto do ponto de vista jurídico-constitucional quanto do criminológico e político-criminal. É que, provocada por Recurso Extraordinário interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a Corte Suprema decidirá acerca da (in)constitucionalidade da posse de drogas para consumo próprio, fato hoje tipificado no art. 28 da Lei 11.343/06. O caso que será analisado resultou de denúncia oferecida contra detento da penitenciária de Diadema/SP, com quem foi encontrada maconha na cela onde estava preso. O Relator do Recurso Extraordinário é o Ministro Gilmar Mendes, e a Repercussão Geral foi reconhecida. O Recurso Extraordinário tramita no Supremo sob o número 635.659, tendo o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) como Amicus Curiae.

Não

pretendemos

discutir

juridicamente

a

(in)constitucionalidade da posse de drogas para consumo. Desde a criminologia crítica (e mesmo desde o direito penal crítico), sabe-se que o direito cumpre apenas parcialmente o seu objetivo declarado de limite à política. O sonho da dogmática penal de servir de barreira à imprevisibilidade e às intempéries do campo político nunca foi alcançado. A política criminal ingressa nas decisões judiciais; as metarregras regem a atuação das agências judiciais; a política criminal, por dentro da dogmática, influencia o destino das decisões legislativas e judiciais no âmbito penal. O fundamento último de toda a decisão é político, sobretudo na Corte Constitucional. O artigo intenta servir de contribuição à decisão do Supremo Tribunal Federal, não propriamente fornecendo fundamentos jurídicos à inconstitucionalidade (sobretudo porque certamente os Ministros do STF conhecem tais fundamentos, e não caberia aqui retornar a Stuart Mill para requentar as críticas liberais do século XIX), mas oferecendo à análise dos Ministros pesquisa empírica criminológica que pode esclarecer o real funcionamento do controle penal do uso de drogas, de maneira a evidenciar sua total inutilidade, quer dizer, sua prescindibilidade. Isso porque o juiz não deve decidir partindo de um modelo ideal de sistema penal, imaginando ingenuamente que as agências do sistema penal atuam

conforme a programação que declaram e que cumprem as funções que prometem. Assim, as decisões judiciais podem ter como premissa diagnósticos criminológicos acerca da fenomenologia do sistema penal, de modo a superar as ilusões, o autismo e a falta de compromisso com a realidade. Nesse sentido, o artigo pretende apresentar ao público acadêmico, e quem sabe aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, pesquisa realizada no ano de 2009, na cidade de Porto Alegre. Na ocasião, foram analisados 105 processos por posse de drogas, nos sete Juizados Especiais Criminais de Porto Alegre. Os

dados

dos

processos

foram

analisados

quantitativa

e

qualitativamente. No momento quantitativo foi possível descobrir alguns padrões no que tange aos selecionados pelo sistema penal, como o sexo, a idade e a condição socioeconômica. Além disso, a pesquisa verificou os territórios nos quais ocorreram os flagrantes e a droga consumida. Foi possível analisar, portanto, as respostas penais adotadas para os casos de posse de drogas para consumo, bem como os destinos das penas impostas. Na análise qualitativa, foi possível penetrar nos flagrantes policiais e nas respostas penais de cada um dos Juizados de Porto Alegre, de modo a compreender detalhadamente as sutilezas dos casos penais estudados. Os

recursos

metodológicos

utilizados

foram

a

análise

documental dos processos, a observação de audiências e a

entrevista com usuários de drogas (selecionados pelo sistema penal ou não), bem como algumas incursões etnográficas. 502 A partir de tal análise, foi possível traçar um panorama bastante fecundo acerca da atuação das agências policial e judicial no campo do controle penal do uso de drogas. Neste artigo analisaremos o perfil dos selecionados pelo delito de posse de drogas para consumo, as respostas penais adotadas, as audiências realizadas, a pobreza da terapêutica proposta pela justiça penal e a overdose de ilegalidades que ocorre nesse campo. Não obstante tratar-se da análise realizada em Juizados Especiais Criminais de Porto Alegre, crê-se que o diagnóstico pode ser estendido para todo o país. O objetivo deste texto é demonstrar que tal instrumento de controle social é descartável, pois não cumpre as funções positivas declaradas, e pernicioso, pois cumpre funções negativas latentes. Em suma, que tal instrumento deve ser abolido.

1. OS CONSUMIDORES SELECIONADOS PELO SISTEMA PENAL (...) Eu me formei suspeito profissional, Bacharel pós-graduado em tomar geral. Eu tenho um manual com os lugares horários, De como dar perdido, ai caralho... Prefixo da placa é MY sentido Jaçanã, Jardim Ebrom. Quem é preto como eu, já tá ligado qual é, nota fiscal, RG polícia no pé (Racionais MC’s).

A seletividade é estrutural e, portanto, presente em qualquer âmbito de atuação do poder punitivo. O delito de porte de drogas para consumo provavelmente é um dos que apresentam as maiores cifras ocultas e a sua repressão só ocorre de maneira seletiva, pois, do contrário, a sociedade e, sobretudo, aqueles que têm o controle sobre as definições, não concordariam com a manutenção de tal prática como delito. Em outras palavras, caso houvesse repressão constante às festas dos filhos e dos pais da classe média, talvez o objetivo antiproibicionista já tivesse sido alcançado. Malaguti Batista, ao refletir sobre as drogas e a juventude pobre no Rio de Janeiro, percebe o vocábulo “atitude suspeita” como uma expressão-standard, utilizada pelos policiais para enquadrar os casos nos quais um second code criminalizador é aplicado. “Analisando a fala dos policiais o que se vê é que a ‘atitude suspeita’ não se relaciona a nenhum ato suspeito, não é atributo do ‘fazer algo suspeito’ mas sim de ser, pertencer a um determinado grupo social; é isso que desperta suspeitas automáticas. Jovens pobres pardos ou negros estão em atitude suspeita andando na rua, passando num táxi, sentados na grama do Aterro, na Pedra do Leme ou reunidos num campo de futebol” (Batista, 2003:103)

Os processos analisados pela pesquisadora eram os dos anos de 1968 a 1988. Passados muitos anos, percebemos que a “atitude suspeita” ainda serve de álibi à atuação preconceituosa da polícia. Além disso, em muitos casos utilizou-se também a expressão “abordagem de rotina”, que de algum modo suaviza a ideia de “atitude suspeita”, mas difere pouco no que toca à forma pela qual a expressão aberta é preenchida pelo intérprete. Em inúmeros flagrantes, a expressão “atitude suspeita” foi utilizada diretamente pelos policiais que efetuaram o termo circunstanciado. Num deles, dois homens em “atitude suspeita” foram flagrados no Campo da Tuca, uma das vilas mais pobres da capital. A narrativa abaixo, extraída de um caso analisado, pode ser considerada exemplar acerca do raciocínio policialesco. Em decorrência do descumprimento da transação penal, o processo foi instruído. O policial militar foi ouvido como testemunha na audiência de instrução e explica um pouco do que se trata a “atitude suspeita”: Juiz: Lembra por que ele foi abordado? Testemunha: Suspeito. Ali é cheio de viela. Juiz: O que chamou a atenção? Testemunha: As vestes, o aspecto físico. Ele era suspeito porque todo mundo estava passando e ele estava ali parado na esquina.

Em outra situação, o flagrado estava em atitude suspeita pois caminhava por local conhecido como ponto de tráfico de drogas. Como podemos notar, o morador dos vários “conhecidos pontos de tráfico de drogas” existentes nas periferias de Porto Alegre e das demais cidades do Brasil vive em atitude suspeita. Estar em atitude suspeita é sua rotina, a atitude suspeita é inerente à sua existência. Os processos analisados na pesquisa eram bastante pobres em termos de dados, motivo pelo qual não foi possível contar com diversos indicadores sobre a seletividade. Os autos quase nunca ultrapassavam a marca de quarenta páginas, a sua maioria era composta de folhas protocolares responsáveis exclusivamente pelo movimento burocrático (procedimento judicial). De conteúdo, muito pouco. Não havia como extrair do que constava nos autos a etnia dos selecionados, tampouco o grau de escolaridade, por exemplo, importantes elementos para auferir a adequação ou não ao estereótipo do delinquente. Entretanto algumas outras informações indicam claramente a seletividade do controle penal do uso de drogas. Nas audiências que acompanhamos foi possível perceber claramente que a clientela da justiça penal do uso de drogas é a mesma de todo o sistema penal. Aliás, uma das questões que percebemos apenas em audiência – pois na análise dos autos é impossível saber se o defensor que esteve presente na audiência era público ou privado –

é o fato de que é a defensoria pública que atua em quase todos os casos, sendo quase inexistente a presença de defensor privado. Tal fato pode ser considerado um sintoma de que os flagrados são aqueles que não possuem condições de arcar com os custos da advocacia privada. Os selecionados são homens e jovens, a clientela majoritária e preferencial do sistema penal – 92,4% homens; 7,6% mulheres; 51,4 % entre 18 e 24 anos, 19% entre 24 e 30 anos, 19% entre 30 e 40 anos, 7,6% entre 41 e 50 anos e 2,9% com mais de 50. Nas ocorrências há espaço para designar a profissão do autor do fato. Em muitos casos o espaço permanecia em branco, não sendo possível saber se isso denota a ausência de profissão, o desemprego ou apenas um lapso de quem preencheu a ocorrência. De qualquer modo, foram informadas profissões em 49% dos casos. Como esperado, a maioria registrada era de profissões próprias das camadas baixas da sociedade, normalmente prestadores de serviço das classes altas: autônomo, cabeleireiro, vitrinista, garçom, motoboy, estagiário, carroceiro, técnico em informática, funileiro, açougueiro, auxiliar de segurança, motorista, taxista, técnico de arcondicionado, funcionário público, corretor de seguro, carpinteiro, mecânico, instalador de som, comerciante, auxiliar de vendas, vendedor ambulante, servente, pedreiro.503

Os dados demonstram que os consumos de drogas não são “zumbis improdutivos”, conforme a imagem representada no senso comum e produzida na mídia. Aliás, indica que é possível, como na maioria dos consumidores, que o sujeito concilie a sua prática tóxica com as demais obrigações do cotidiano. Demonstram, sobretudo, que os criminalizados são aquelas pessoas que não se enquadram em alguma profissão, que estão completamente fora do mercado de trabalho (excedentes, descartáveis) ou que possuem profissões que não são aptas a romper com a situação de vulnerabilidade frente ao poder punitivo. Em síntese, são aquelas pessoas que não conseguiram “estar acima do biótipo suspeito mesmo que seja dentro de um carro importado”, nas certeiras palavras do compositor Marcelo Yuka. É gritante e significativa a ausência de flagrantes das práticas tóxicas das elites. Provavelmente porque tais práticas são protegidas das inseguranças urbanas, ocorrem nos interiores dos condomínios da exclusão, nos carros blindados com vidros negros ou nos seletos clubes. A imunidade é também simbólica, pois percebemos

nos

depoimentos

que

dificilmente

os

policiais

desconfiariam de um advogado engravatado que desfila pela cidade na

caminhonete

do

ano,

consumindo

maconha

despreocupadamente enquanto fecha importantíssimos negócios

pelo celular (situação real descrita em uma das entrevistas com consumidores). Nos autos, foram igualmente significativas as informações sobre os “antecedentes” dos flagrados. Preferimos utilizar uma categoria de análise mais ampla, “registros policiais”, de forma a imunizar a pesquisa do debate dogmático sobre antecedentes e reincidência. Dos processos analisados, em 64,8% dos casos não havia registros policiais anteriores contra os flagrados. Apesar de a maioria dos selecionados não possuir passagens pela polícia, entendemos que 35,2% de flagrados com registros policiais é um número bastante expressivo, considerando o universo de pessoas que usam drogas e que nunca tiveram qualquer problema policial.

2. AS RESPOSTAS PENAIS PARA OS CASOS DE PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO Notamos que os Juizados Especiais Criminais de Porto Alegre possuem uma resposta-padrão para os processos de posse de drogas para consumo que invariavelmente surgem – essa é uma forte impressão que derivou do campo – de um acordo entre Ministério Público e Poder Judiciário. Por motivos de conveniência, percebemos que ambos acordam previamente a resposta penal que será utilizada pelo Juizado, aplicando-a para todo e qualquer tipo de

caso, independentemente das suas peculiaridades. Apesar disso, foi igualmente possível notar que essa resposta-padrão difere entre os Juizados: transação penal; determinação de justiça terapêutica “prétransação

penal”;

arquivamento

em

aplicação

do

decorrência

princípio da

da

insignificância;

inconstitucionalidade

da

criminalização; aplicação de sanções sem previsão legal; diferentes respostas em caso de não comparecimento à audiência ou do não cumprimento das condições da transação penal. No 1º Juizado Especial Criminal do Foro Central de Porto Alegre, a pena de advertência foi, na maioria dos casos, aplicada antecipadamente, na forma de transação penal, conforme autoriza o § 5º do art. 48 da Lei de Drogas. Em apenas um dos casos analisados a transação consistiu em medida terapêutica de comparecimento a programa ou curso educativo, na prática, frequência às sessões de Narcóticos Anônimos. Não foi possível verificar qualquer lógica para essa diferenciação, ou seja, aplicação de medida terapêutica em vez de advertência, praxe no referido Juizado. A quantidade de droga não destoou dos demais, e o fato de a droga ser crack também não pode ser considerado explicação, pois em outros casos de flagrante com crack a medida foi a advertência. Nos casos em que o autor do fato não compareceu à primeira audiência houve arquivamento, pois a ausência “evidencia o

desinteresse na realização de algum tratamento para a drogadição, além do que a pequena quantidade de droga apreendida em seu poder configura crime de bagatela” (decisão-padrão). Ausente a autora do fato, pela Dra. Juíza foi dito que considerando a finalidade terapêutica da Lei 11.343/06, que visa à recuperação do drogadito, a ausência da autora, apesar de devidamente intimada, evidencia seu desinteresse na realização de algum tratamento para a drogadição, além do que a pequena quantidade de droga apreendida em seu poder configura o crime de bagatela, razão pela qual pelo Ministério Público foi requerido o arquivamento do termo circunstanciado. A seguir, pela Dra. Juíza foi dito que, acolhendo a promoção do Ministério Público, determinava o arquivamento e a baixa do processo. Ambos arquivamento

os

argumentos

são,

em

utilizados

verdade,

para

pretextos

fundamentar para

não

o dar

prosseguimento ao processo por motivos de conveniência ou simplesmente pelo custo judicial (efetuar nova intimação, por exemplo). Isso porque a manifestação do acusado em audiência de desinteresse

na

realização

do

tratamento

não

redunda

automaticamente em arquivamento, e, além disso, notamos que em casos similares nos quais foi apreendida menor quantidade de droga não houve aplicação do princípio da insignificância.

No Juizado Especial Criminal do Foro Regional do Partenon aplica-se o instituto da pré-transação penal. O instituto é explicado pelo Promotor de Justiça que atuava no Juizado: “Posição coerente com o entendimento da descriminalização do uso de drogas, por se tratar de fato relacionado com a própria saúde do agente, é a adotada pelo JECrim do Foro Regional do Partenon, na Comarca de Porto Alegre, onde é oferecido ao autor do fato, incondicionalmente, a possibilidade de conhecer o trabalho realizado pelos profissionais do CIARB, intermediando um contato com o referido órgão, onde serão apresentadas as possibilidades de tratamento disponíveis, ficando o autor do fato livre para aderir ou não ao que lhe foi proporcionado” (Conti, 2006:213). No referido Juizado, para aqueles que estão interessados no tratamento para drogadição há o encaminhamento ao Centro Interdisciplinar de Apoio para Encaminhamento à Rede de Tratamento Biopsicossocial (CIARB), órgão vinculado ao projeto da Justiça Terapêutica, instaurado no Rio Grande do Sul pela Corregedoria-Geral de Justiça. Enquanto o tratamento ocorre, o processo fica suspenso. Finalizado, o caso é arquivado por “ausência de justa causa” e “pela perda do objeto”.

“Aos 3 dias do mês de março do ano de 2009, às 14h10min, na sala de audiências do Juizado Especial Criminal do Foro Regional do Partenon, à hora aprazada, sob a presidência do Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito em substituição, comigo Oficial Escrevente Auxiliar do juiz, no fim assinados, feito o pregão de estilo, compareceram: o Ministério Público, o Autor do fato e a Defensora Pública. Pelo juiz foi dito que ouvido o autor do fato, este confirma o uso de drogas e mostra-se interessado em tratamento de drogadição. Pelo juiz foi dito que: acolhendo a manifestação

do

Ministério

Público,

suspendia

o

feito,

encaminhando o autor do fato para acompanhamento e tratamento de drogadição, se necessário, junto à rede pública, através do CIARB – Justiça Terapêutica, pelo prazo a ser determinado pela equipe da Justiça Terapêutica, não superior a seis meses, salvo com concordância do autor do fato. Cumprindo o prazo fixado, o feito será extinto sem julgamento do mérito, por falta de justa causa e pela perda do objeto. Fica designado comparecimento do autor do fato junto ao CIARB. Presentes intimados. Oficie-se o CIARB. Diligências. Após o prazo transcorrido, voltem conclusos. Nada mais.” Na prática, a única diferença entre o tratamento pré-transação e aquele derivado da transação penal é a preservação do direito de transacionar em eventual problema futuro. Não obstante as boas

intenções da proposta, pensamos ser insuficiente, principalmente pelo fato de que não evita o contato do flagrado com o sistema penal. Além disso, a opção pelo tratamento resta bastante relativizada. Notamos que no universo opressivo de uma sala de audiências, o autor do fato, cobrado pelo Estado punitivo em razão de uma falta, com completo desconhecimento sobre a lei, considera favorável a opção de submeter-se a um tratamento voluntário. No entanto, pouco há de escolha, e o fato de que em nenhum dos casos verificamos negativa à proposta parece ser um forte indício do afirmado. Não por outro motivo, conforme Weigert, “refere o promotor [do JECrim do Partenon] que em 99% dos casos os réus aceitam o encaminhamento e, depois de cumpridas as condições do CIARB, o feito é arquivado” (Weigert, 2009:157). No Foro Regional da Tristeza foi possível perceber uma maior severidade na resposta penal. Nos casos em que o autor do fato fora beneficiado anteriormente com transação penal, o Ministério Público oferece suspensão condicional do processo, com condições invariavelmente bastante gravosas. Aliás, condições normalmente mais gravosas que a aplicação conjunta das penas previstas em lei para a posse de drogas são aplicadas conjuntamente. Outrossim, nos processos nos quais foi ofertada transação penal, a medida terapêutica (CIARB) pelo prazo mínimo de 4 meses foi a soluçãopadrão encontrada.

No Juizado Especial Criminal do Foro Regional do Sarandi, nos casos de transação penal foram igualmente oferecidas as medidas terapêuticas de comparecimento a programa ou curso educativo, situação que se resumia ao encaminhamento ao CIARB. Nos casos de descumprimento da medida, após a instrução, percebemos a aplicação de multas e das demais penas previstas no art. 28 da Lei de Drogas. Isto posto, julgo PROCEDENTE a presente ação penal para condenar WAL por incurso nas sanções do artigo 28 da Lei 11.343/2006. No presente caso, as penas de prestações de serviços à comunidade e medida socioeducativas se mostram inviáveis, pois o réu se encontra recolhido ao Presídio central e, portanto, impossibilitado de cumprir estas reprimendas. Assim fixo a pena de advertência prevista no inciso I do art. 28 da Lei 11.343/2006 (Sentença, Processo n. 001/20600575323). No Foro Regional do Alto Petrópolis verificamos uma situação interessante, pois foram registrados casos de absolvição por atipicidade da conduta. (...) o fato de portar entorpecente para uso pessoal é prática que diz respeito à faculdade de cada um de se decidir ou agir segundo sua própria determinação, estado inerente ao homem livre que assume as eventuais consequências em seu ambiente

privado, não interferindo no de seu semelhante (Sentença, Processo n. 001/20700100858). No caso, o Ministério Público recorreu da decisão e, na segunda instância, apesar do parecer do Procurador de Justiça pelo improvimento da apelação, a Turma Recursal julgou procedente, reformando a sentença absolutória. Em decorrência, o fato restou atingido pela prescrição da pretensão punitiva. Verificamos neste Juizado uma maior variação de respostas penais, sendo aplicada como transação penal a prestação de serviços à comunidade ou as medidas terapêuticas. Em alguns casos, notamos a aplicação do instituto da “pré-transação penal” (“suspensão extralegal do feito pelo prazo de 6 meses, como medida terapêutica, período no qual a autora do fato se submeterá a uma avaliação e atendimento específico na área, a ser coordenado pelo CIARB”). No Juizado Especial Criminal do Foro Regional do Quarto Distrito, o Ministério Público manifestou-se, em todos os casos, pelo arquivamento dos processos em razão da inconstitucionalidade do delito de posse de drogas para consumo. O pedido de arquivamento foi invariavelmente acolhido pelo Magistrado. Assim, sequer eram designadas audiências. No Foro Regional da Restinga foi possível perceber uma maior atuação da Defensoria Pública. No Juizado notamos os únicos

casos de negativa da proposta de transação penal (medida terapêutica). O Defensor Público regularmente manifestou-se no sentido de que as penas cominadas na Lei 11.343/06 eram sucessivas, de modo que a pena de advertência deveria ser aplicada primeiramente. Nesses casos, o próprio Ministério Público concordava com o argumento da Defensoria Pública e prontamente oferecia a advertência como transação. (...) pelo Dr. Juiz foi dito que o autor do fato não aceitou a proposta, sob o fundamento de que a Defesa entende que as medidas previstas no art. 28 da Lei de Tóxicos são progressivas e sucessivas, devendo necessariamente no caso do autor do fato primário e sem antecedentes, ser aplicada inicialmente a advertência, e assim sucessivamente, na ordem prevista no referido dispositivo legal. Análise global dos casos observados demonstra a variabilidade das respostas adotadas nos Juizados da Comarca de Porto Alegre: transação penal em sentido amplo (27,6%); suspensão condicional do processo (13,3%); arquivamento (26,7%); justiça terapêutica (28,6%); processo penal (3,8%). Um primeiro dado interessante é o fato de que, nos casos em que houve intimação do autor do fato, 85,4% compareceram ao ato. Os demais (14,6%) não foram

encontrados no endereço fornecido para intimação ou simplesmente não foram à audiência, apesar da intimação. Para além dos casos de conveniência, os casos de “arquivamento” normalmente ocorrem com a aplicação do princípio da insignificância ou pelo entendimento da atipicidade do delito de posse

de

drogas

para

consumo

em

razão

de

sua

inconstitucionalidade. Anita foi flagrada fumando um baseado, e o seu processo foi arquivado após um mero pedido de adiamento da audiência realizado por seu advogado. Não me lembro se pediram, mais começaram a revistar as nossas bolsas, carteira, assopravam cada bolsinho da carteira, até que em um certo momento a brigadiana [Policial Militar do Rio Grande do Sul – Brigada Militar] encontrou na minha mochila um punhadinho de farelos de briff. Chamou uma viatura, pois ia nos fichar, disse que não precisaríamos ir até a delegacia, pois aos poucos tinha entrado uma lei que podiam fichar no local mesmo. Chegou a viatura, nos ficharam, fizeram a gente assinar uma papelada e, apesar de nós duas falarmos que compramos aquele punhado juntas, eles fizeram questão de me colocar como culpada do caso e a minha amiga como testemunha. Quiseram saber quem tinha nos vendido, pra não dedurar o cara e dar um problema ainda maior mentimos, dizendo que ele não

estava mais lá, e de alguma forma, não me lembro agora como, nos fizeram terrorismo por não ter dito quem nos vendeu, como se aquilo aumentasse a nossa pena... Então disseram que dentro de 3 meses ia chegar uma carta na minha casa me intimando a comparecer ao Tribunal. A carta chegou, então falei com o pai do Nivaldo, e ele me encaminhou a um amigo dele que trabalha no escritório com ele, o Murilo, só que no dia da audiência o Murilo não podia, pois tinha outra marcada em Cachoeira do Sul. Então ele mandou uma carta, e-mail sei lá o que remarcando essa audiência, então não remarcaram e resolveram arquivar o caso por insignificância, 2 gramas. As representações de Anita sobre o caso e a própria Justiça Penal são reveladoras, sobretudo porque é uma pessoa beminformada que possui curso superior. Anita assinou uma “papelada” onde constou que ela era “culpada”; foi intimada a comparecer no “Tribunal”; seu advogado enviou uma “carta” ou um e-mail requerendo o adiamento da audiência. Como Joseph K., pouco sabia sobre o “processo”: “que tipo de pessoas eram aquelas? Do que elas falavam? A que autoridade pertenciam?” (Kafka, 2005:10). Cremos, porém, que um dos dados mais relevantes da pesquisa diz respeito à adoção da “Justiça Terapêutica” como medida de restrição de direitos.

No Juizado Especial Criminal do Partenon, especificamente, parece faltar um pequeno passo para que se afirme expressamente que a criminalização é inconstitucional, o que no caso implicaria requerer o arquivamento imediato dos processos. A indagação que permanece é a de que, se os atores processuais entendem (subliminarmente) ser o tipo incriminador inconstitucional, por que razão submeter o sujeito à cerimônia degradante da audiência penal? Se 99% dos sujeitos aceitaram submeter-se ao tratamento, isso não pode indicar que existem casos de consumos não problemáticos que não necessitariam dessa resposta e que as pessoas aceitam apenas por conveniência ou por temor? Nos casos de transação penal, foram aplicadas as seguintes condições:

advertência

(41,4%);

medida

educativa

(44,8%);

prestação de serviços comunitários (3,4%); e outros (10,3%). A mera necessidade de criação da categoria “outros” é um indicativo de problema. Percebemos que a categoria “outros” abarcou a imposição de medidas punitivas ilegítimas nos acordos, justamente em razão da ausência de previsão legal, como, por exemplo, o encaminhamento aos grupos de Narcóticos Anônimos. Nos poucos casos em que houve instrução processual, ocorreu a predominância de condenações (63,6%), algumas sucedidas de aplicação da prescrição (36,4%). Em nenhum caso registramos absolvição. Dentre as penas, foram aplicadas a advertência

(42,9%), a prestação de serviços comunitários (28,6%) e as medidas educativas (28,6%).

3. OS ATOS, O PAPEL DESEMPENHADO PELOS ATORES PROCESSUAIS E O FENÔMENO DAS “AUDIÊNCIAS COLETIVAS” Uma estudante de doutorado chamada Melinda foi flagrada com seu namorado enquanto “queimava um” num parque da capital. Diante do desconhecimento da lei e das possíveis consequências que podem decorrer do “crime” pelo qual teve de submeter-se à abordagem policial, ligou imediatamente para seu amigo, advogado criminalista. O advogado a tranquilizou, disse que em breve ela seria intimada para uma audiência e o máximo que lhe aconteceria seria comparecer a algumas sessões de grupos de Narcóticos Anônimos. Em momento posterior, disse que Melinda, artista e intelectual anarquista, acharia o ato de audiência “um tanto quanto bizarro”, mas que valeria a pena, pois poderia encarar toda aquela cerimônia do ponto de vista de uma observação participativa. Ademais, ressaltou que de maneira nenhuma sua viagem de estudos ao Canadá, para a conclusão da pesquisa de doutorado, seria afetada. A audiência de Melinda foi marcada em um dos Juizados do Foro Central que não realiza “audiência coletiva” e que oferece, geralmente, transação penal na forma de comparecimento a

programa ou curso educativo. Na prática, as condições da transação não passariam do comparecimento aos Narcóticos Anônimos, com o preenchimento (carimbo) da sua presença. Em audiência, a juíza ofereceu à estudante a proposta padrão que estava sendo adotada naquele momento: comparecimento a doze sessões de Narcóticos Anônimos. O advogado ofereceu contraproposta, dizendo que Melinda estava envolvida com sua pesquisa de doutorado, situação que lhe tomava muito tempo e que, além disso, estava de viagem marcada ao Canadá. Requereu, portanto, que fosse aplicada a advertência como transação ou que, ao menos, fosse reduzida a exigência de comparecimento para metade das sessões de Narcóticos Anônimos. O Promotor de Justiça argumentou que justamente por ser uma estudante de doutorado é que a “drogadita” deveria ter conhecimento dos males causados pelo uso de drogas, e que seria possível assistir a mais de uma sessão por dia. Assim, “se assistisse duas sessões por dia, em uma semana obteria os doze carimbos”. O juiz concordou com a racionalidade do argumento, aduzindo que o “tratamento” serviria para que Melinda pensasse sobre seu “vício”. Melinda aceitou a proposta. Todos lhe desejaram boa sorte no doutorado. A pequena história serve para ilustrar um aspecto relevante observado nas audiências: qualquer tipo de relação entre as pessoas acusadas e as substâncias consumidas é tratado da

mesma forma. A percepção dos atores processuais é a de que o uso de drogas é sempre um uso problemático, um vício, uma dependência química. Em consequência, todas as pessoas que usam drogas necessitam de “tratamento”, ou, no mínimo, precisam ser advertidas sobre seus malefícios. Notamos que essa précompreensão acaba por gerar um insuperável distanciamento entre o discurso das autoridades e o sujeito que está sendo “julgado” no ato ritual da audiência. Aliás, foi possível observar que há um completo silenciamento daquele que deveria ser o protagonista da audiência (o “autor do fato”). Literalmente o sujeito pouco fala, não raro fala absolutamente nada, apenas consentindo com os termos da transação penal com um mero acenar. Quando fala, percebemos que geralmente é para mentir, produzindo um falso discurso explicativo ou justificativo (escusas absolutórias), no sentido de que está “tentando largar o vício”, que “faz tratamento psiquiátrico”, que “não usa drogas desde que foi flagrado pela polícia”, que “estava em más companhias”, entre outros – não foram raras as vezes que, em conversa com os acusados após as audiências, houve uma espécie de “confissão informal” sobre a informação falsa prestada ao Juiz. Por outro lado, não observamos nenhum caso no qual o sujeito tivesse dito que era um usuário convicto, que mantém uma relação saudável com a substância que consome e que acha absurdamente ilegítimo aquele procedimento ao qual está se submetendo –,

embora falas neste sentido tivessem aparecido com frequência fora da sala de audiência. Percebemos, portanto, que a unificação imprópria destas relações absolutamente díspares entre as pessoas e as substâncias se dá por meio do uso de categorias médicas patologizantes, sobretudo o rótulo da dependência química. Na cena judiciária, todo o uso de drogas é dependência química ou, no mínimo, apresenta uma potencialidade. E apesar do uso indiscriminado dos termos patologizantes, notamos que o discurso das autoridades reproduz o senso comum, as teorias moralizantes do dia a dia invariavelmente postas pelos meios de comunicação de massa. A impropriedade do tratamento paritário de pessoas que mantêm diferentes tipos de consumos, de distintas substâncias, ficou bastante exposta nas “audiências coletivas”. As “audiências coletivas” foram criadas por motivos de economia processual, para dar conta do grande número de atos que deve ser realizado nos casos de porte de drogas para consumo. Consiste em unificar audiências preliminares, normalmente uma audiência para cada dez termos circunstanciados. Percebemos que não houve qualquer critério para a unificação – tipo de droga, idade, antecedentes, por exemplo. A impressão é que a unificação foi feita aleatoriamente, pelo número de distribuição do processo. Nas audiências, o Juiz responsável realiza um discurso genérico sobre o

uso de drogas, explicando que em razão da primariedade ou da pequena quantidade de droga apreendida ocorrerá apenas uma audiência pedagógica, sem qualquer outro efeito. As audiências coletivas são todas semelhantes. Entretanto foi possível perceber a pluralidade de respostas jurídicas, sendo difícil explicar a lógica que orienta as opções adotadas pelos atores processuais. Em determinada audiência foi oferecido como proposta de transação penal o comparecimento a doze sessões de Narcóticos Anônimos. Um dos sujeitos disse que morava em cidade do interior, onde não havia grupo de Narcóticos Anônimos. O Promotor de Justiça respondeu: “Não há problema, pode ser também nos Alcoólicos Anônimos...”. Em outro ato, de oito réus intimados, cinco compareceram. Quatro flagrados com maconha, um com crack. O juiz passou a advertir os “maconheiros” usando o sujeito flagrado com crack como exemplo, referindo que era naquele estágio que eles poderiam chegar caso continuassem com a prática tóxica. Como é possível perceber, nos dois casos houve bastante sensibilidade dos atores processuais com as pessoas e os problemas que estavam envolvidos.

4. A JUSTIÇA PENAL E A POBREZA TERAPÊUTICA Eu deveria parar de beber Porque não estou fazendo bem a quem me ama

Devia me converter ao hinduísmo Comida vegetariana, mantras e Krishna (...) Aleluia, Hare Krishna Krishna Krishna aleluia...(Júpiter Maçã).

A “resposta terapêutica” é a que predomina nos Juizados Especiais Criminais de Porto Alegre. O encaminhamento à chamada “Justiça Terapêutica” ocorre pelas mais diversas formas: a) prétransação penal; b) transação penal; c) suspensão condicional do processo; d) pena. As “terapias”, na prática, consistem em comparecimento a grupos de Narcóticos Anônimos. Existe a hipótese de realização de “terapias privadas”, normalmente sugerida nos casos em que se percebe um melhor nível socioeconômico – “nessas situações a pessoa deverá comprovar no cartório do JECrim que cumpriu com seu terapeuta particular o tratamento imposto pelo juiz” (Weigert, 2009:150). Esta possibilidade não foi encontrada na análise processual, mas intuímos que certamente é possível que ocorra, tendo em vista que qualquer tipo de terapia acaba sendo aceito nas audiências. Duas hipóteses sobre a “Justiça Terapêutica”, que orientaram a pesquisa, acabaram sendo confirmadas: o tratamento compulsório e a ausência de distinções entre usuários e dependentes. Com exceção do Juizado Especial Criminal do Partenon, onde não há obrigatoriedade, o “tratamento penal” do uso de drogas, em Porto Alegre, é compulsório. Ademais, não há qualquer tipo de

diferenciação entre as práticas tóxicas. Mesmo que se procure com atenção nos processos ou se tente perceber em audiência, nos foi impossível encontrar qualquer lógica na imposição do tratamento. Não houve qualquer triagem prévia em que se distinguissem as pessoas e os usos, sequer em relação ao tipo de droga apreendida, por exemplo. O que verificamos foram escolhas aleatórias em que para usos não problemáticos foram determinados tratamentos, e casos de consumos problemáticos foram arquivados ou houve advertência. Em

realidade,

concluímos

haver

uma

enorme

pobreza

terapêutica: não existe nenhum tipo de “saber” sobre os usos (problemáticos ou não) de drogas a fundamentar as decisões diariamente tomadas. O que se convencionou chamar de Justiça Terapêutica consiste, na prática, em um emaranhado de soluções improvisadas, voluntaristas, sem qualquer fundamentação teórica ou base empírica. Assim, conforme relatamos, o Promotor de Justiça entende plenamente aceitável que um sujeito “viciado em maconha” cumpra seu tratamento em um grupo de Alcoólicos Anônimos. Se é necessário tomar a sério os casos de usos problemáticos de drogas, entendemos imprescindível que se adotem outras soluções. A primeira, com o afastamento da jurisdição (penal) dos casos de posse de drogas para consumo pessoal.

Os casos de consumos problemáticos podem ser tratados pelo sistema de saúde pública, sobretudo através da mediação de agentes redutores de danos. E se a ideia do Judiciário é utilizar os grupos de Narcóticos Anônimos como alternativa, sua intromissão punitiva perde o sentido, pois bastaria capacitar agentes de redução de danos para atuação junto aos consumidores. Não se trata de desconsiderar ou de minimizar os riscos e os danos individuais e sociais que podem decorrer do uso de drogas. Trata-se, ao contrário, de considerá-los em sua complexidade, fato que nos impede crer na eficácia da solução pré-fabricada do direito penal. Além disso, é necessário superar a própria ideia de que o uso de drogas é um problema de saúde pública. Isso porque a maioria das práticas tóxicas não é problemática. Entendemos que não se pode considerar o uso de drogas um problema em si mesmo. As práticas tóxicas inseridas nos rituais do cotidiano acabam por ocupar diversos espaços e não são inerentemente negativas. Significa dizer que os usos não problemáticos de drogas não dizem respeito aos profissionais da saúde e, muito menos, aos profissionais do direito. Por evidente, aos profissionais da saúde cabe apenas a responsabilidade pelos consumos problemáticos, assim como os demais problemas de saúde relacionados ao consumo excessivo (bebidas, cigarro, comida, medicamentos).

5. A OVERDOSE DE ILEGALIDADES: O CONSUMO PROBLEMÁTICO DO SISTEMA PENAL PARA O CONTROLE DO USO DE DROGAS Zaffaroni e Batista, quando analisam a dinâmica de atuação do sistema penal e das agências punitivas, buscam despertar os juristas do seu delírio narcísico, ao denunciar o inexpressivo poder que exercem no âmbito do sistema penal: “O poder direto dos juristas dentro do sistema penal limita-se aos raros casos que as agências

executivas

selecionam,

abarcando

o

processo

de

criminalização secundária, e restringe-se à decisão de interromper ou habilitar a continuação desse exercício” (Zaffaroni & Batista, 2003:64). Os autores concebem de forma dinâmica o Estado de Direito e o consideram um projeto inacabado, que deve ser constantemente afirmado, como forma de conter o estado de polícia (poder punitivo) em permanente expansão. Assim, buscam construir um sistema de interpretação e de atuação que parta da deslegitimação do poder punitivo: o objetivo do direito penal seria, pois, conter o poder punitivo. “O direito penal deve programar o exercício do poder jurídico como um dique que contenha o estado de polícia, impedindo que afogue o estado de direito. Entretanto, as águas do estado de polícia se encontram sempre em um nível superior, de modo que

ele tende a ultrapassar o dique por transbordamento. Para evitar isso, deve o dique dar passagem a uma quantidade controlada pelo poder punitivo, fazendo-o de modo seletivo, filtrando apenas a torrente menos irracional e reduzindo sua turbulência, mediante um complicado sistema de comportas que impeça a ruptura de qualquer uma delas e que, caso isto ocorra, disponha de outras que asseguram a contenção. O direito penal deve opor ao poder punitivo uma seletividade de sinal trocado, configurando perante ele uma contrasseletividade. A proposta de uma constante contrapulsão jurídica ao poder punitivo do estado policial, como um unfinished, importa atribuir ao juiz penal a função de um personagem trágico, cujas decisões nunca aparecerão como completamente satisfatórias, porque deve opor toda sua resistência ao poder punitivo” (Zaffaroni & Batista, 2003:156). Na formalização judicial do controle penal do uso de drogas em Porto Alegre, podemos perceber uma infinita gama de ilegalidades, com pouca ou quase nenhuma resistência (limitação jurídica). Em verdade, talvez seja possível afirmar que não encontramos efetivamente uma atuação judicial, pois o Judiciário invariavelmente limitou-se a referendar os atos policiais (termo circunstanciado) e do Ministério Público (transação penal). Na maioria dos casos, utilizouse uma receita pré-fabricada para todos os tipos de caso, sem

qualquer reflexão aprofundada sobre a adequação da intervenção ou sobre o papel do Judiciário neste tipo de intervenção. As ilegalidades começam no momento do flagrante e da efetivação do Termo Circunstanciado. O art. 48, § 3º, da Lei 11.343/06 é expresso no sentido de exigir que o Termo Circunstanciado seja lavrado “no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente”. Entretanto, este dispositivo legal foi violado em pelo menos 10% dos casos, sendo o Termo Circunstanciado lavrado nas Delegacias da Polícia Civil ou nos postos da Brigada Militar. Exemplificativamente vale referir o caso de Juninho, flagrado na Redenção (parque de Porto Alegre) consumindo um cigarro de maconha e conduzido ao Posto da Brigada Militar. Em entrevista, Juninho narra a arbitrariedade de que foi vítima: “Me colocaram na viatura, no banco de trás, ficaram tirando com a minha cara e me levaram pro postinho na esquina da Oswaldo com a rua do Brick da Redenção. Fiquei sentado numa cadeira, eles fizeram o boletim de ocorrência, eu assinei e me liberaram”. Em outros 5% dos casos foram efetuadas prisões em flagrante, situação vedada pela Lei de Drogas – nesses casos a ilegalidade do ato foi sanada pelo Judiciário. Outra questão notória é o fato de que nas propostas de transações são sugeridas modalidades de penas. Nesses casos, constatamos

homologações

judiciais

de

transação

penal

determinando ao imputado condições de natureza análogas às penas restritivas de direito, o que permite verificar explícita violação ao princípio nulla poena sine iudicio. Em sentido idêntico as propostas de suspensão condicional do processo que, em certos casos, preveem consequências mais gravosas que a pena aplicada em caso de condenação. Pelo Doutor Juiz de Direito foi dito que fica registrado que o Ministério Público não ofertou a transação penal tendo em vista que o acusado já registra o recebimento anterior por duas vezes do mesmo benefício. A seguir, o Ministério Público ofertou a suspensão condicional do processo por dois anos, o que foi aceito pelo acusado mediante as seguintes condições: 1. comparecimento mensal a juízo para justificar suas atividades; 2. não afastar-se da comarca por período superior a 30 dias sem prévia comunicação ao juízo; 3. obrigação de frequentar pelo período mínimo de seis meses reuniões dos Narcóticos Anônimos, qual seja, o grupo “Juntos Podemos”, situado na Wenceslau Escobar, 2380, Igreja Nossa Senhora das Graças, sendo que deverá comprovar o comparecimento a quatro reuniões fechadas a cada mês perante o cartório, o que será feito nas mesmas datas das apresentações. O acusado declara aceitar as condições agora referidas e pelo Juiz foi dito que no prosseguimento recebia a denúncia e concedia a suspensão

condicional do processo pelo prazo de dois anos frente as condições supramencionadas (Processo 20700042319). No caso, o fato de ter que comparecer mensalmente ao Juizado, por dois anos, desconsidera completamente os limites máximos para cumprimento das penas previstas na Lei 11.343/06: cinco meses para réus primários e dez meses para reincidentes (§§ 3º e 4º, art. 28). Ademais, a proibição de ausentar-se da Comarca é medida absolutamente ilegal, pois mais grave do que as penas previstas para o delito. Somado ao tempo e à proibição de ausência da Comarca, impôs-se a obrigação de frequentar reuniões de Narcóticos Anônimos. Parece-nos evidente que deve haver uma adequação mínima (proporcionalidade) entre o acordo judicial e a pena abstrata prevista para o delito. Não parece ser aceitável, portanto, que a medida de diversificação imponha condições mais gravosas que o máximo de pena prevista para o crime. O último caso é representativo do arbítrio e da falta de controle da legalidade dos atos relativos ao direito penal das drogas em Porto Alegre. Em audiência realizada no Juizado Especial Criminal do Estádio Olímpico – em dias de jogos da “dupla grenal” funcionam Juizados Especiais Criminais nos estádios Olímpico e Beira-Rio – o Promotor de Justiça responsável oferece proposta de transação, homologada pelo Juiz sob o olhar silente do Defensor:

(...) concedida a palavra ao Ministério Público, oferece proposta de transação, aceita pelo autor do fato e Defensor, nos seguintes termos: depósito de R$ 200,00, no prazo de 60 dias, na conta do Lar Santo Antônio dos Excepcionais, bem como não poderá comparecer nos próximos três jogos no estádio Olímpico. Como é possível perceber da leitura da Lei de Drogas, a multa não pode ser aplicada diretamente para os casos de posse de drogas (apenas para a garantia do cumprimento das medidas, nos termos do art. 28, § 6º). Quanto à proibição de comparecimento aos jogos, entendemos melhor não emitir qualquer tipo de juízo sobre a decisão.

#DescriminalizaSTF A pesquisa nos processos por posse de drogas na cidade de Porto Alegre evidenciou que o sistema penal não possui nenhuma capacidade simplificação

de

lidar

extrema.

com

o

fenômeno

Igualam-se

senão

acontecimentos

desde

uma

que

nada

possuem em comum. Não há qualquer tipo de diferenciação entre as drogas, entre as práticas tóxicas ou entre os sujeitos flagrados. Para todos os casos a mesma receita, o mesmo molde: tênis número 38 para todos, inclusive para aqueles que calçam 42. A máquina funciona no modo piloto automático, no modo simulação e

no modo shuffle, na medida em que inexiste qualquer lógica na escolha das consequências penais. Apesar de não haver possibilidade de pena de prisão – as respostas penais são relativamente brandas se comparadas com as demais penas aplicadas no sistema penal brasileiro –, notamos que ao seguir apostando na fantasia da solução penal, o sistema de Justiça e a própria sociedade padecem de uma profunda perda de tempo. Mais: percebemos que se perde uma rica oportunidade de ajudar aquelas pessoas que realmente necessitam, aquelas que fracassaram no projeto de autogestão e que, por isso, possuem relações problemáticas com as drogas. Assim, ao mesmo tempo em que o sistema penal seleciona consumidores conscientes, que não necessitam de qualquer sanção pela opção do uso de drogas, impede que as verdadeiras políticas públicas, as políticas de acolhimento, sejam adotadas em prol do consumidor problemático. Além disso, a intervenção penal habilita o poder policial repressivo, de onde emergem incontáveis ilegalidades, notadamente prisões em flagrante por tráfico quando notório o caso de consumo ou em casos de pequenos comerciantes – situação que permite o encarceramento massivo de jovens varejistas nas masmorras fétidas do ilegítimo sistema carcerário brasileiro.

Desse modo, esperamos que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário que debate a (in)constitucionalidade do delito previsto no art. 28 da Lei 11.343/06, leve em consideração a realidade da Justiça Penal brasileira e a concreta atuação das suas instituições no controle penal do uso de drogas. Um olhar relativamente atento parece evidenciar que o direito penal das drogas deve ser abolido. Assim como devemos abdicar da obscurantista guerra às drogas (que em realidade é uma guerra contra as pessoas envolvidas com drogas) que há muito tempo produz efeitos perversos em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil (Estudo Criminológico e Dogmático). 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. CONTI. Justiça Terapêutica: nova alternativa à pré-transação penal. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (orgs.). A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Sapucaia do Sul: Notadez, 2006. KAFKA, Franz. O Processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

MAYORA, Marcelo. Entre a Cultura do Controle e o Controle Cultural: um estudo sobre práticas tóxicas na cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. Uso de Drogas e Sistema Penal: entre o proibicionismo e a redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. ZAFFARONI, E. Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

2. NAS TRINCHEIRAS DE UMA POLÍTICA CRIMINAL COM DERRAMAMENTO DE SANGUE: DEPOIMENTO SOBRE OS DANOS DIRETOS E COLATERAIS PROVOCADOS PELA GUERRA ÀS DROGAS* Salo de Carvalho

1. Há muito tempo venho observando que os profissionais e pesquisadores do campo da psicologia social vêm assumindo publicamente uma postura de vanguarda em relação a temas que tradicionalmente foram objeto de estudo da criminologia – por exemplo, crítica às instituições prisionais, questionamento sobre o papel dos psicólogos na execução penal (notadamente em relação à questão dos laudos psicológicos), denúncia das políticas higienistas de internação compulsória, luta para implementação de políticas públicas que substituam os regimes de internação manicomial aplicados às pessoas submetidas à medida de segurança e na efetivação da Lei de Reforma Psiquiátrica. É possível dizer, inclusive, que no campo da política (criminal) brasileira os profissionais e pesquisadores da psicologia social estão ocupando um espaço que durante muito tempo foi de titularidade exclusiva dos atores do direito. Com raras exceções, a lacuna provocada pela inércia política que se instalou no campo jurídico nas últimas décadas, em grande parte decorrente da formação

burocrática e conservadora dos seus profissionais (operadores jurídicos), permitiu que novos atores sociais reivindicassem o protagonismo nas lutas pela efetivação dos direitos humanos no sistema de justiça criminal. Dentre estes novos atores políticos, os Conselhos Regionais e o Conselho Federal de Psicologia merecem especial destaque. Inserido neste contexto, no final de dezembro de 2012, fui convidado pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS) para participar de uma mesa de debate intitulada Legalização das Drogas, uma das atividades do seminário Entre Garantia de Direito e Práticas Libertárias, promovido pelas Comissões de Políticas Públicas e de Direitos Humanos.

2. A ideia central da minha fala foi a de expor os efeitos diretos da política criminal de drogas brasileira, visualizados nos índices superlativos de encarceramento. A hipótese do discurso partiu de uma constatação normativa (plano do direito penal) e do seu imediato efeito empírico (plano da criminologia): a existência de vazios e dobras de legalidade legitima o aprisionamento massivo da juventude vulnerável. Identifiquei como vazios (ou lacunas, na linguagem da teoria geral do direito) e dobras de legalidade as estruturas incriminadoras da Lei 11.343/06 que permitem um amplo poder criminalizador às

agências da persecução criminal, notadamente a agência policial. Estruturas normativas abertas, contraditórias ou complexas que criam zonas dúbias que são instantaneamente ocupadas pela lógica punitivista e encarceradora.

2.1. A dobra de legalidade estaria associada a um excesso normativo: a previsão (ou proliferação) de condutas idênticas nos dois tipos penais que estruturam e edificam a política criminal de drogas – proibição das condutas facilitadoras do consumo (art. 28, caput, da Lei 11.343/06) e incriminação do comércio (art. 33, caput, da Lei 11.343/06). No quadro, em destaque e numeradas, as condutas típicas compartilhadas por ambos os tipos penais.

“Quem [1] adquirir, [2] guardar, [3] tiver em depósito, [4] transportar ou [5] trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo” (art. 28, caput, da Lei 11.343/06).

“Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, [1] adquirir, vender, expor à venda, oferecer, [3] ter em depósito, [4] transportar, [5] trazer consigo, [2] guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa” (art. 33, caput, da Lei 11.343/06).

A observação inicial é a de que cinco condutas objetivas (isto é, empiricamente observáveis) idênticas (adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo) impõem consequências jurídicas radicalmente diversas: o enquadramento no art. 28 da Lei de Drogas submete o infrator às penas restritivas de direito (admoestação verbal, prestação de serviços e medida educativa); a imputação do art. 33 da Lei 11.343/06 impõe regime carcerário com pena privativa de liberdade variável entre 5 (cinco) e 15 (quinze) anos. É possível afirmar, inclusive, que estas duas figuras normativas – traduzidas pelo senso comum como porte e tráfico de drogas – estabelecem as consequências jurídicas mais e menos severas previstas no ordenamento penal brasileiro. A nova Lei de Drogas vedou qualquer possibilidade de prisão (provisória ou definitiva) ao sujeito processado por porte de drogas para consumo. Aliás, a proibição da detenção, disciplinada no art. 48, §§ 1º, 2º e 3º, é uma regra inédita no ordenamento nacional, aplicável exclusivamente ao consumidor de drogas. A vedação de qualquer forma de regime carcerário e a previsão autônoma de pena restritiva de direito no preceito secundário do tipo penal permitem concluir que a incriminação do porte para consumo pessoal configura o tratamento jurídico mais brando previsto em toda a legislação penal brasileira.

Por outro lado, aos casos de comércio de drogas, o legislador estabeleceu o regime penal mais rigoroso possível, não apenas pela quantidade de pena aplicável – note-se, por exemplo, que a pena prevista para o tráfico varia entre 5 e 15 anos de reclusão, enquanto a pena cominada ao estupro é modulada entre 6 e 10 anos de reclusão (art. 213, caput, do Código Penal), e a do homicídio simples entre 6 e 20 anos de reclusão (art. 121, caput, do Código Penal) –, mas, sobretudo, pela sua equiparação constitucional aos crimes hediondos. Como se sabe, o status “hediondo” impõe um regime jurídico diferenciado no processo de instrução (prisão preventiva, fiança) e no de execução penal (regime inicial de cumprimento

de

pena,

progressão

de

regime,

livramento

condicional, indulto).

2.2. O primeiro vazio de legalidade que procurei demonstrar foi o estabelecido pelo dispositivo que pretende criar parâmetros para identificar quais as condutas (adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo) que se destinam ao consumo pessoal. Segundo o art. 28, § 2º, da Lei de Drogas, “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às

circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Embora o dispositivo seja destinado ao juiz, sabe-se que a primeira agência de controle que é habilitada ao exercício criminalizador é a policial. As guias normativas definem, pois, os critérios de interpretação dos agentes policiais e, posteriormente, judiciais. Logicamente, conforme a estrutura da persecução criminal brasileira, o primeiro filtro sempre será o policial, que irá identificar se o sujeito, por exemplo, que “traz consigo” droga, realiza a conduta incriminada com intuito (elemento subjetivo especial do tipo) de consumo pessoal (art. 28) ou se “porta” com qualquer outro objetivo, que não implica necessariamente uma finalidade mercantil, típica do que se conhece como tráfico de entorpecentes (art. 33). Não é necessária uma consistente base criminológica em perspectiva crítica para perceber que o dispositivo legal, em vez de definir precisamente critérios de imputação, prolifera metarregras que se fundam em determinadas imagens e representações sociais de quem são, onde vivem e onde circulam os traficantes e os consumidores. Os estereótipos do “elemento suspeito” ou da “atitude suspeita”, por exemplo, traduzem importantes mecanismos de interpretação que, no cotidiano do exercício do poder de polícia, criminalizam um grupo social vulnerável muito bem representado no sistema carcerário: jovens pobres, em sua maioria negros, que

vivem nas periferias dos grandes centros urbanos (neste sentido, Batista, 2003; Carvalho, 2013; Weigert, 2009; Mayora, 2011; Mayora, Garcia, Weigert & Carvalho, 2012).

2.3. O segundo vazio de legalidade que identifiquei naquele momento foi o relativo à conduta de “entregar a consumo ou fornecer drogas ainda que gratuitamente”, prevista no art. 33, caput, da Lei 11.343/06. Apesar de o § 3º do art. 33 prever pena de 6 meses a 1 ano às situações de “consumo compartilhado” – “oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa do seu relacionamento, para juntos a consumirem” –, a hipótese narrada no caput introduz, como figura paritária ao tráfico (internacional e doméstico), uma conduta sem qualquer intuito de comércio. Assim, se a entrega a consumo ou se o fornecimento da droga for destinado a uma pessoa que não seja do relacionamento do autor do fato ou, mesmo sendo do seu círculo, não tiver como objetivo o consumo conjunto, haverá incidência do crime equiparado aos hediondos. 2.4. As aberturas (lacunas ou vazios de legalidade) e os excessos

apresentados

inegavelmente

ativam

a

máquina

persecutória, habilitando as agências punitivas aos processos de criminalização

que,

na

atualidade,

refletem

o

cenário

de

hiperencarceramento. Os números que são derivados desta política

criminal bélica (war on drugs), aqui compreendidos como custos diretos da criminalização, não permitem outra conclusão. Em uma análise relativamente simples dos dados oficiais apresentados pelo Ministério da Justiça, é possível perceber que o aumento dos índices de encarceramento por tráfico de drogas, sobretudo do encarceramento feminino, em muito pode ser explicado por estes vazios e dobras de legalidade. Atualmente a população carcerária nacional é de 549.577 (288,14 presos por 100.000 habitantes), 513.538 homens e 26.411 mulheres; 133.946 pessoas estão aprisionadas em decorrência da imputação do art. 33 da Lei de Drogas (116.768 homens e 17.178 mulheres), segundo as estatísticas do Departamento Penitenciário Nacional. Os efeitos imediatos (diretos) da política proibicionista (encarceramento massivo) podem ser resumidos nos seguintes dados (consolidação relativa ao primeiro semestre de 2012): (a) 24,37% da população carcerária nacional foi condenada pelo art. 33 da Lei 11.343/06 – em 2009 correspondia a 18,05%; (b)

22,73%

da

população

carcerária

masculina

foi

condenada pelo art. 33 da Lei 11.343/06 – em 2009 correspondia a 15,73%; (c) 65,04% da população carcerária feminina foi condenada pelo art. 33 da Lei 11.343/06 – em 2009 correspondia a 48,31%;

(d) em comparação com o roubo qualificado, a prevalência do encarceramento foi invertida em 2010: em 2007, o número de encarcerados pelo art. 33 da Lei de Drogas correspondia a 17% e de presos pelo art. 157, § 2º, do Código Penal era de 23%, índices transpostos na mesma proporção, ou seja, em 2010, 23% da população carcerária derivava da imputação de tráfico e 17% dos crimes patrimoniais violentos; (e) dos presos em flagrante no Rio de Janeiro e em Brasília, nos anos de 2008 e 2009, aos quais foram imputadas condutas previstas no art. 33 da Lei de Drogas, 55% eram primários, 60% estavam sozinhos e 94% estavam desarmados (Boiteux et alii, 2009). Todavia, estes efeitos diretos do proibicionismo ganham efetiva relevância quando a assepsia dos números é transformada em biografia de pessoas de carne e osso que sofrem as consequências da política de drogas. Somente quando concretizamos os problemas é que percebemos os danos colaterais, para além daqueles descritos

burocraticamente

nas

estatísticas

criminais

(índice

numérico da criminalização oficial).

3. Após a apresentação do material que havia preparado para o Seminário, foram abertos os debates. Dentre as inúmeras questões pertinentes que foram colocadas, uma em particular chamou minha

atenção. E confesso que, em um primeiro momento, pela sua aparente impropriedade. Um jovem universitário que acompanhava os debates pediu a palavra e descreveu ao público que havia sido abordado em uma blitz policial na praia e que fora flagrado com uma quantidade pequena de maconha. Ele perguntou sem qualquer constrangimento como enfrentar o problema, pois havia sido intimado para comparecer a uma audiência no Juizado Especial Criminal. Mais: como seria possível sustentar a inconstitucionalidade da proibição, tendo em vista os inúmeros argumentos que eu havia apresentado na palestra. Os risos da plateia foram inevitáveis. Sobretudo porque ficou claro para todos que o ouvinte estava fazendo uma “consulta jurídica”. Após

alguns

segundos

de

descontração,

porém,

todos

percebemos a pertinência do questionamento e a angústia do jovem. Se fosse um público “jurídico”, fatalmente a resposta seria: “procure um advogado”. Logicamente a resposta também passava pela indicação de, antes de qualquer atitude, um profissional do direito. Todavia, e para além de uma eventual tentativa de “consulta particular”, entendi necessário readequar a questão e indagar ao jovem o que ele pretendia fazer diante daquela situação. Isto porque, no caso, desde

o meu ponto de vista, a postura e a forma de enfrentamento do problema mudariam a abordagem jurídica a ser utilizada. A primeira alternativa seria a de procurar uma estratégia que reduzisse os danos pessoais causados por aquele processo de criminalização. Neste sentido, uma das possibilidades seria a de comparecer à audiência, aceitar a transação penal com o Ministério Público, negociar algumas condições viáveis de cumprimento do acordo para evitar o processo criminal e os seus efeitos – por exemplo, comparecimento em algumas sessões de grupos de autoajuda como Narcóticos Anônimos, proposta-padrão realizada pelo Ministério Público gaúcho no caso de imputação de porte de drogas para consumo pessoal (sobre o tema, conferir Mayora, Garcia, Weigert & Carvalho, 2012). A segunda alternativa, porém, implicaria uma posição de enfrentamento do proibicionismo. Expliquei ao jovem que o processo poderia ser utilizado como um manifesto e que, se levado às últimas consequências, seria um instrumento de “guerrilha” contra

a

política

de

guerra

às

drogas.

Neste

caso,

a

inconstitucionalidade da proibição de que um jovem adulto, consciente, se relacione voluntariamente com uma substância que lhe dá prazer, para além dos possíveis riscos do consumo, poderia ser utilizada como um argumento que imprimisse tensão ao proibicionismo. Assim, na audiência, poderia negar a transação

penal, afirmando que o Estado não possui legitimidade para ditar o que ele pode ou não consumir. Como referi, o processo seria transformado em um manifesto. Não restam dúvidas que é inexigível que todas as pessoas criminalizadas tenham esta postura. A propósito, tentar reduzir ao máximo os danos individuais causados pela criminalização é uma atitude totalmente legítima. Mas ingressar nesta trincheira e transformar um caso em um manifesto (um case jurídico) é uma alternativa que inúmeros militantes do movimento antiproibicionista estão adotando, mesmo cientes dos eventuais custos derivados da criminalização.

4. Com base nestas duas perspectivas, gostaria de narrar algumas

experiências

da

trincheira,

algumas

histórias

que

acompanhei de perto, atuando como advogado pro bono em Porto Alegre, tanto na defesa de pessoas sem qualquer envolvimento com os movimentos antiproibicionistas e que procuravam apenas minimizar os problemas derivados da criminalização, quanto na atuação política junto aos coletivos militantes contrários à criminalização. Em ambos os casos, porém, a diretriz que orientou o trabalho foi a de produzir defesas de ruptura – expressão utilizada pelo advogado francês Jacques Vergès para descrever o seu estilo de atuação, nas décadas de 1950 e 1960, na defesa dos militantes

da Frente de Libertação Nacional pela independência da Argélia –, ou seja, atuar de forma a expor incisivamente os danos do proibicionismo e o papel de legitimação e de manutenção que as agências penais exercem em relação à política de guerra às drogas, sem postular qualquer piedade ou clemência do Poder Judiciário.

4.1. O primeiro caso em que me senti profundamente envolvido e que possibilitou uma percepção clara da perversidade da política proibicionista foi o de Marco Antônio. Marco Antônio, um jovem de classe média de Porto Alegre, foi preso em flagrante em 14 de janeiro de 2003, ainda sob o regime da Lei 6.368/76, pela posse de 6,30 gramas de cannabis sativa e R$ 8,05. Conforme narrou o Ministério Público na denúncia, Marco Antônio foi detido no parque da Redenção, em um domingo, por volta das 21 horas, ocasião em que teria oferecido droga a um casal que se encontrava no local. Segundo os depoimentos do casal e do denunciado, Marco Antônio estava sozinho, fumando maconha, quando foi abordado pela garota que teria pedido para consumir conjuntamente a droga. Sem hesitação, alcançou para a jovem, momento em que foi preso, pois o casal era formado por agentes da Polícia Civil. A denúncia foi oferecida e recebida pela infração ao art. 12 da Lei 6.368/76 – “fornecer, ainda que gratuitamente, droga”. O

flagrante foi convertido em prisão preventiva que perdurou durante toda a instrução processual e a fase de recurso. Marco Antônio foi condenado a pena de 4 anos de reclusão, em regime integralmente fechado. Na sentença, o julgador registrou a impossibilidade de o réu apelar em liberdade em razão da equiparação do delito de tráfico aos de natureza hedionda. Além da conduta de “fornecer” droga a terceiro, confirmada no interrogatório

do

acusado,

outros

elementos

circunstanciais

fundamentaram a condenação, notadamente para afastar a alegação de que o porte de droga destinava-se ao consumo pessoal, dos quais destacam-se: (a) o local frequentado pelo réu – o parque da Redenção, notadamente aos domingos, é um conhecido local de consumo e de comércio de droga em Porto Alegre; e (b) as circunstâncias do fato, pois os valores que Marco Antônio possuía (R$ 8,05) estavam dispostos em várias cédulas, o que indiciaria atividade mercantil. No julgamento da apelação, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul votou, por maioria, pelo improvimento do recurso interposto pela Defensoria Pública em nome de Marco Antônio. Com base no voto divergente do Desembargador vogal – que entendeu (a) ser duvidosa a prova e (b) ser desproporcional a imputação de crime análogo ao do tráfico para o

fornecimento

gratuito

de

droga,

e,

consequentemente,

desclassificou a conduta para o delito do art. 16 da Lei 6.368/76, fixando pena em 8 meses de detenção –, os defensores públicos ingressaram

com

embargos

infringentes.

As

preliminares,

notadamente a do flagrante preparado, foram afastadas à unanimidade. No intervalo entre a interposição e o julgamento dos Embargos, a família de Marco Antônio, em decorrência de vínculos antigos de amizade, entrou em contato para que eu apresentasse memoriais e sustentasse o recurso no Grupo. No dia da sessão, em 1º de outubro de 2004, os embargos foram acolhidos pela diferença de um voto, sendo desclassificada a conduta para o art. 16 da antiga Lei de Drogas (TJRS, Embargos Infringentes 70008836132, 1º Grupo Criminal, rel. Des. Marcel Hoppe, j. 1º-10-2004). A questão que sensibilizou parte dos julgadores foi o histórico de dependência que Marco Antônio apresentava, destacado amplamente pela defesa desde a instrução. Importante ressaltar, neste caso, o mérito integral da Defensoria Pública, na instrução probatória e na fase recursal. Minha participação foi acidental e, apesar de singela, foi suficiente para experimentar

a

grave

e

direta

consequência

da

política

proibicionista: a ampliação dos horizontes de punitividade. Marco Antônio ficou preso provisoriamente 1 ano, 9 meses e 13 dias por

força dos critérios dúbios de criminalização que, em um ambiente punitivista, acabam sempre otimizando o encarceramento.

4.2. O segundo caso que gostaria de destacar é relativo a um dano secundário provocado pela política de guerra às drogas e que pode ser caracterizado como uma variável reflexa do processo de criminalização que atinge o movimento antiproibicionista. Desde há muito tempo apoio os coletivos antiproibicionistas, sobretudo os sediados em Porto Alegre. Juntos obtivemos algumas vitórias bastante significativas, como, por exemplo, ter conseguido autorização judicial para a realização das “Marchas da Maconha”. Em maio de 2008, em nome do coletivo “Princípio Ativo”, junto com Mariana Weigert, ingressei com um habeas corpus (coletivo) preventivo

com

o

objetivo

de

assegurar

a

realização

da

manifestação em Porto Alegre. Na ação constitucional, interposta contra o Comandante da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, demonstramos o risco de constrangimento, apresentando inúmeras entrevistas do policial militar no sentido de que não permitiria a manifestação e que, se houvesse, os participantes seriam presos por apologia ao crime. A juíza de plantão concedeu a liminar (salvoconduto), e a “Marcha da Maconha” ocorreu pacificamente, sem qualquer conflito, diferente do que houve em outros Estados em que o Poder Judiciário negou o direito à livre exposição do pensamento.

Como é de conhecimento geral, a matéria foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal, que garantiu o direito de livre manifestação, afirmando não haver crime de apologia em manifestações contra leis injustas e pela descriminalização de determinadas condutas (neste sentido, STF, Tribunal Pleno, ADPF 187/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 15-6-2011). Após esta decisão em 2008, nos anos seguintes, com o objetivo de assegurar a “Marcha”, foram impetrados novos habeas corpus, sempre com o deferimento do salvo-conduto e a realização das manifestações. Importante dizer que em nenhuma ocasião houve qualquer conflito ou desrespeito às decisões judiciais, as quais, de forma expressa, asseguravam a “Marcha”, mas vedavam o consumo de droga ou a distribuição de sementes. No entanto, em maio de 2010, o magistrado de plantão indeferiu o salvo-conduto ajuizado em nome do “Princípio Ativo”. A decisão foi publicada nos sites do coletivo (www.principioativo.org) e do Centro Acadêmico André da Rocha, entidade representativa dos estudantes de direito da UFRGS (www.caar.ufrgs.br). Como era de se esperar, em face da frustração na expectativa – notadamente pelos precedentes dos anos anteriores – inúmeras foram as manifestações contrárias à decisão do juiz plantonista. Algumas opiniões bastante fortes, entre as quais destaco dois comentários do acadêmico Pedro:

Vejam só as ideias do Juiz conservador de 1º Grau que nos negou o livre direito de manifestação. Será mal-informado (sic)? Acionista em alguma empresa de armamentos, de segurança privada ou de leitos psiquiátricos? Ou seria mais um mero leitor de Zero-Hora (sic), com um adesivo “crack-nem pensar” no carro? Decidam aí o naipe. Aí estão os fatos: este juiz, de posse de sua caneta, decide que a) se um policial achar que um cartaz verde é “apologia”, isto justificaria descer porrada nos manifestantes; que b) o nome “Marcha da Maconha” faz apologia às drogas; e c) as drogas sumiriam automaticamente do planeta caso não fossem “toleradas”. Perguntamos: será que o juiz sentiu vontade de consumir psicoativos ao ler o nome Marcha da Maconha? Temos certeza que não, mas nós até toleramos sua pretensão aparente, de acabar com o problema contemporâneo das drogas alimentando-se o tráfico de armas. Ocorre que, ao tomar conhecimento das manifestações, o magistrado representou criminalmente contra Pedro, imputando-lhe a prática de delitos contra a honra. De posse da representação, o Ministério

Público

gaúcho

determinou

algumas

diligências

investigatórias e denunciou Pedro e Leonardo pelas condutas previstas no art. 139 e art. 140, c/c art. 29 e art. 141, II e III, na forma do art. 69, todos do Código Penal.

Segundo a denúncia, nos dias 15 e 22 de maio de 2010, os acusados, em conjunção de esforços e convergência de vontades, teriam injuriado e difamado o julgador que havia indeferido o salvoconduto para realização da “Marcha da Maconha”. Interessante notar, para além da importante discussão sobre a (a)tipicidade da crítica à decisão judicial, o fato de que Leonardo foi denunciado exclusivamente por ser o responsável pela manutenção do sítio web do coletivo – “o acusado Leonardo, a seu turno, concorreu decisivamente para a prática dos delitos, ao publicar no sítio, www.principioativo.org,

sob

sua

responsabilidade

técnica,

informação de fl. 30, os artigos ‘Habeas Corpus da Marcha da Maconha’ e ‘Refletindo os Bastidores da Jurisprudência’” (TJRS, Processo Criminal 001/2.10.0092147-0, 7ª Vara Criminal, Denúncia, fls. 02-06). Quem conhece minimamente a web e navega em sites e blogs opinativos, sabe que, em muitos espaços virtuais – como ficou demonstrado ser o caso da página do “Princípio Ativo” –, quem publica o comentário é o próprio autor, não havendo necessidade de intermediação do responsável formal. De qualquer forma, juntamente com o colega Marcelo Mayora, interpus habeas corpus para trancamento da ação penal, alegando, em síntese, (a) a atipicidade da conduta de Pedro em razão do seu legítimo direito de crítica à decisão judicial – argumento reforçado posteriormente no julgamento do mérito da ADPF da “Marcha da

Maconha” pelo Supremo – e (b) a insuficiência da denúncia ao narrar a participação de Leonardo (art. 41 do Código de Processo Penal), em face de não haver qualquer nexo de causalidade (art. 13, caput, do Código Penal) entre a eventual ofensa à honra e o fato de ser o responsável pelo site. O Tribunal denegou, à unanimidade, a ordem por entender que as teses demandavam instrução probatória (TJRS, Habeas Corpus 70047084280, 3ª Câmara Criminal, rel. Des. Francesco Conti, j. 9-2-2012). Proposto o debate ao Superior Tribunal de Justiça – inclusive com a juntada de parecer elaborado pela representante da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) no Brasil, Maria Lucia Karam, em uma precisa análise do direito de livre manifestação e de crítica –, o caso encontra-se pendente de julgamento (STJ, Habeas Corpus 241948, 5ª Turma, rel. Min. Campos Marques).

4.3. O terceiro caso de referência ganhou notoriedade nacional em razão de o seu protagonista ter exposto publicamente o problema

no

documentário

Cortina

de

Fumaça

(www.cortinadefumaca.com). Trata-se, em realidade, de mais um produto direto da equivocada política de guerra às drogas, sobretudo pelo fato de o proibicionismo, posto em forma de lei, reduzir as tragédias humanas aos folhetins fictícios (denúncias

criminais) que simplificam toda a complexidade da vida no irreal e abstrato código crime-pena. Alexandre Thomaz, formado em Comunicação Social, atuava como publicitário no Jornal Diário de Canoas, quando, aos 35 anos de

idade,

apresentou

problema

de

saúde

posteriormente

diagnosticado como “neoplasma maligno” (linfoma) na região do pescoço. Submeteu-se às intervenções cirúrgicas pertinentes e iniciou tratamento, realizando inúmeras sessões de quimio e de radioterapia. Em razão da doença e dos efeitos colaterais do procedimento medicamentoso, Alexandre procurou tratamento psiquiátrico, pois sentia que não tinha mais forças para suportar a “luta contra a doença”. O psiquiatra, na tentativa de minimizar os efeitos das drogas terápicas e de recuperar emocionalmente o paciente, receitou um psicofármaco muito potente, denominado Tranquinol, cujos efeitos são profundas alterações de consciência, mais fortes, por exemplo, que as geradas pelo uso da maconha. Tranquinol é um ansiolítico, um tranquilizante de alta potência com profundo efeito de sedação e de indução do sono. Os efeitos podem durar até 12 horas e as consequências colaterais são bastante relevantes: tontura e vertigem. Além disso, a droga (Tranquinol) gera dependência física e o usuário, em estado de abstinência, pode sentir muita irritabilidade, insônia, tonturas, enjoo, cansaço e fortes dores de cabeça e musculares.

Segundo os relatos de Alexandre Thomaz no documentário Cortina de Fumaça e no Inquérito Policial no qual foi indiciado e, posteriormente, denunciado pelo delito previsto no art. 33, § 1º, II, da Lei 11.343/06 (TJRS, Apelação Criminal 70050818152, 2ª Câmara Criminal, rel. Des. Lizete Andreis Sebben), a droga receitada pelo psiquiatra produziu um efeito ainda mais desgastante, pois agregou nova dosagem química às outras substâncias que estavam

sendo

ingeridas

em

decorrência

da

rádio

e

da

quimioterapia. No desgastante cenário em que vivia, orientado por um oncologista, tomou conhecimento do uso medicinal da cannabis, notadamente dos resultados satisfatórios na diminuição dos efeitos colaterais do tratamento químico. Paralelamente, tomou a decisão de mudar radicalmente o seu estilo de vida urbano e o foco profissional altamente competitivo determinado pelo mercado publicitário – “em consultas na internet, livros etc., soube o declarante que precisava se alimentar melhor com alimentos naturais. Diante desta nova descoberta, adquiriu um pequeno sítio de dois mil metros quadrados, onde pretendia fazer uma horta 100% orgânica. Que realmente fez a horta com plantação de temperos, ervas medicinais, árvores frutíferas (...) e mais de outras trinta árvores diversas” (Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Procedimento Policial 586/2009-100514, fl. 28).

No mesmo período, soube que em diversos países (Estados Unidos, Canadá, Holanda, por exemplo) a cannabis sativa estava sendo prescrita para minimização dos efeitos da rádio e da quimioterapia, principalmente os sintomas de enjoo, náusea, falta de apetite

e

dores

crônicas,

os

quais

não

eram

tratados

satisfatoriamente pelos medicamentos tradicionais. Em Israel, por exemplo, existem programas estatais de distribuição de maconha para casos semelhantes. Neste cenário, descobriu uma espécie de cannabis sativa com baixo teor de THC, indicada exatamente para o tratamento do câncer. Assim, toma a decisão de plantar para consumo pessoal. Importa as sementes da Holanda, cultiva em seu sítio e “passou a consumir a planta em chás, colocava em receitas de bolos e, eventualmente, fumava. Notou melhoria em seu estado clínico com o alívio das dores” (Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Procedimento Policial 586/2009-100514, fl. 29). A decisão de plantar para consumo pessoal, ou seja, de produzir o seu remédio – “que reside sozinho no sítio. Mantinha sigilo em relação às plantas que cultivava. Nunca vendeu e nem doou a erva para ninguém” (Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Procedimento Policial 586/2009-100514, fl. 29) –, decorreu, fundamentalmente, da opção consciente de não se envolver com o

comércio ilegal e de não se submeter ao consumo de drogas adulteradas vendidas no mercado varejista. Como seria possível prever, após uma denúncia anônima, no dia 13 de dezembro de 2009, a Polícia Militar do Rio Grande do Sul, sem autorização judicial, ingressou no sítio de Alexandre e confiscou a plantação – interessante destacar que, em decorrência de os responsáveis pela invasão terem destruído a residência do réu, o Delegado que presidiu o Inquérito indiciou os Policiais Militares pelos delitos de abuso de autoridade (art. 3º, b, Lei 4.898/65) e de usurpação de função pública (art. 328 do Código Penal): “poderiam os PMs ter trazido os fatos ao conhecimento da Autoridade Policial que, certamente, faria um trabalho legítimo e sem a truculência de uma invasão a força e ilegal à casa do indiciado. Diante dos exageros, entendemos que os PMs tenham cometido excesso (...)” (Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Procedimento Policial 586/2009-100514, Relatório Policial, fl. 17). O Ministério Público, ao receber o Inquérito, (a) denunciou Alexandre Thomaz como incurso no art. 33, § 1º, II, da Lei 11.343/06, e (b) requereu, apesar das provas e do indiciamento, o arquivamento do caso em relação aos delitos de abuso de autoridade e usurpação de função pública. No entanto, em uma decisão relativamente surpreendente – sobretudo porque a lógica proibicionista amplia os espaços de

punitividade e, mesmo nos casos de baixa complexidade, potencializa a criminalização secundária –, o magistrado de primeiro grau desclassificou a conduta para a hipótese do art. 28, § 1º, da Lei 11.343/06, remetendo os autos aos Juizados Especiais Criminais, argumentando serem robustas as provas no sentido de o produto do plantio ter finalidade terapêutica (consumo pessoal) e inexistir dados concretos acerca de eventual comércio (TJRS, Processo Criminal 008/2.11.0008041-7, Decisão Judicial, fls. 248-251v.). O Ministério Público ingressou com recurso de apelação, alegando que a finalidade (consumo pessoal ou comércio) deveria ser comprovada na instrução probatória. Os autos foram remetidos ao Tribunal de Justiça e o recurso aguarda pauta de julgamento na 2ª Câmara Criminal.

5. É interessante notar, em todos os casos expostos, que a postura dos atores do sistema punitivo seguiu uma lógica similar e que pode ser afirmada como “juridicamente adequada”, se os atos de interpretação dos seus protagonistas forem reduzidos à estrita legalidade (vigência da lei penal). Os indiciamentos realizados pelos agentes da Polícia, as denúncias produzidas pelos membros do Ministério Público e as decisões exaradas pelos juízes seguem um padrão de ampliação dos níveis de punitividade sustentado por uma racionalidade paleopositivista (Ferrajoli, 1998; Carvalho, 2008) que

ignora as diretrizes constitucionais de validação dos dispositivos incriminadores e a complexidade do mundo da vida. Nesse aspecto, a sucessão e o encadeamento de atos formais de incriminação atestam profundos déficits dogmáticos e criminológicos, se ambas as ciências (dogmática jurídica e criminologia) forem pensadas desde uma perspectiva crítica. Pensar (primeiro) em imputações pelo art. 33 da Lei 343/06, apesar de demonstração da ausência de finalidade mercantil das condutas, é o traço mais evidente de como a lógica proibicionista expande os horizontes de encarceramento. Os casos de Marco Antônio e Alexandre Thomaz são experiências vivas da inversão do sentido da realidade gerada pelo proibicionismo. Dificilmente um leigo

atribuiria

àquelas

condutas

o

rótulo

de

“tráfico

de

entorpecentes”. No entanto, a normatividade produzida pela política de

war

on

drugs

torna

esta

espécie

de

atribuição

de

responsabilidade absolutamente natural. No mesmo sentido, é igualmente desproporcional, situação que, inclusive, beira à insanidade, constatar (segundo) que um agente do Estado, membro do Ministério Público, criminalize como tráfico a conduta de uma pessoa que faz comprovado uso terapêutico de cannabis e, no mesmo ato, considere “normal” o evidente abuso de autoridade empregado na ação policial que apreendeu a droga. A distorção de valores perceptível na denúncia contra Alexandre

Thomaz

é

um

retrato

bastante

evidente

dos

efeitos

do

proibicionismo no campo da administração da justiça criminal: legitimação da violência (policial), criminalização do usuário, encarceramento massivo. Ademais, como foi possível ver no processo movido contra Pedro e Leonardo e nos inúmeros casos de repressão à Marcha da Maconha – mesmo após a decisão do Supremo Tribunal Federal –, (terceiro) a política criminal de drogas na atualidade irradia efeitos, operando

na

criminalização

dos

movimentos

sociais

antiproibicionistas. É neste cenário de plena vigência de uma política criminal com derramamento de sangue, na precisa expressão de Nilo Batista (1998), que emergem ações antiproibicionistas, individuais e coletivas, de resistência, com o objetivo exclusivo de conquistar a paz, o que significa, em última instância, o fim da guerra às drogas e a implementação de políticas públicas inteligentes para a prevenção dos

danos

provocados

pelo

abuso

e

pela

dependência.

Experiências, aliás, que vêm acontecendo de forma bastante satisfatória em inúmeros países ocidentais. Do contrário, a manutenção deste paradigma bélico de política criminal seguirá produzindo histórias similares às de Marco Antônio, Pedro, Leonardo e Alexandre. Ocorre que, infelizmente, os casos relatados não são narrativas épicas e românticas, mas histórias de

vidas atravessadas por uma política criminal genocida e que é legitimada, dia a dia, pelos atores do sistema penal.

REFERÊNCIAS BATISTA, Nilo. Política Criminal com Derramamento de Sangue. Discursos Sediciosos, v. 5/6, Rio de Janeiro, 1998. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. BOITEUX, Luciana et alii. Tráfico de Drogas e Constituição. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos (Ministério da Justiça), 2009. CARVALHO, Salo. A Política Criminal de Drogas no Brasil (Estudo Criminológico e Dogmático). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. _______. Pena e Garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale. 5. ed. Roma: Laterza, 1998. MAYORA, Marcelo. Entre a Cultura do Controle e o Controle Cultural: um estudo sobre práticas tóxicas na cidade de Porto Alegre. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. MAYORA, Marcelo; GARCIA, Mariana; WEIGERT & CARVALHO, Salo.

#DescriminalizaSTF:

um

Manifesto

Antiproibicionista

Ancorado no Empírico. Revista de Estudos Criminais, v. 46, Porto Alegre, 2012.

WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. Uso de Drogas e Sistema Penal: entre o proibicionismo e a redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

* Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e Doutorando em Direito (UFSC). ** Mestranda em Direito (UFSC). *** Mestre em Criminologia (UAB) e em Ciências Criminais (PUCRS) e Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). 1“Estigma condena infância”, matéria de Clara Cavour para a seção Internacional do Jornal do Brasil de 19 de março de 2006, p. A25. 2 MIAILLE, Introdução Crítica ao Direito, p. 22. 3 MIAILLE, Introdução..., p. 22. 4 LYRA FILHO, Carta Aberta a um Jovem Criminólogo, p. 23. 5 GIACÓIA, Nietzsche, p. 63. 6 FOUCAULT, A Verdade e as Formas Jurídicas, p. 15. 7 FOUCAULT, Nietzsche, a Genealogia e a História, pp. 20-25. 8 FOUCAULT, Verdade e Poder, p. 7. 9 A incriminação no Código Filipino determinava: “Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender rosalgar branco, nem vermelho, nem amarello, nem solimão, nem agua delle, nem escamonéa, nem opio, salvo se fôr Boticario examinado, e que tenha licença para ter Botica, e usar do Officio. E qualquer outra pessoa que tiver em sua caza algumas das ditas cousas para vender, perca toda a sua fazenda, a metade para nossa Câmera, e a outra para quem o accusar, e seja degradado para Africa até nossa mercê. E a mesma pena terá quem as ditas cousas trouxer de fora, e as vender a pessoas, que não forem Boticarios. 1. E os Boticarios as não vendão, nem despendão, se não com Officiaes, que por razão de seus Officios as hão mister, sendo porem Officiaes conhecidos per elles, e taes, de que se presuma que as não darão á outras pessoas. E os ditos Officiaes as não darão, nem venderão a outrem, porque dando-as, e seguindo-se disso algum dano, haverão a pena que de Direito seja, segundo o dano for. 2. E os Boticarios poderão metter em suas mezinhas os ditos materiaes, segundo pelos Medicos, Cirurgiões, e Escriptores for mandada. E fazendo o contrario, ou vendendo-os a outras pessoas, que não forem Officiaes conhecidos, pola primeira vez paguem cincoenta cruzados, metade para quem accusar, e descobrir. E pela segunda haverão mais qualquer pena, que houvermos por bem” (grafia original). 10 As fontes legislativas históricas (codificadas) foram pesquisadas no trabalho de PIERANGELI, Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. Igualmente importante a pesquisa realizada por LUISI, A Legislação Penal Brasileira sobre Entorpecentes, pp. 152-158. 11 Neste sentido, conferir PIERANGELI, Códigos..., pp. 352-353.

12 O art. 33 do Decreto-Lei 891/38 define como delito “facilitar, instigar por atos ou palavras o uso, emprego ou aplicação de qualquer substância entorpecente, ou, sem as formalidades prescritas nesta lei, vender, ministrar, dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir substâncias compreendidas no artigo 1º ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no artigo 2º, ou de qualquer modo proporcionar a aquisição, uso ou aplicação destas substâncias”. Determina como pena a prisão celular de 1 a 5 anos e multa. 13 OLMO, Las Drogas y sus Discursos, p. 123. 14 “Se impone un discurso oficial que se puede denominar ético-jurídico por el énfasis que adquiere en esa época, la promulgación de severas leyes penales para sancionar el fenómeno, que a su vez da lugar a la creación del estereotipo moral, si se recuerda que según éste ‘el uso de droga es por parte censurable como hábito vicioso y degradante y por otra aparece descrito como algo estrechamente ligado al placer, al ocio y al sexo’” (OLMO, Las Drogas…, p. 123). 15 A utilização do termo agências de controle (penal, punitivo) seguirá a definição de Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar: “(...) na análise de cada sistema penal devem ser consideradas as seguintes agências: (a) as políticas (parlamentares, legislaturas, ministérios, poderes executivos, partidos políticos); (b) as judiciais (que incluem juízes, ministério público, serventuários, auxiliares, advogados, defensoria pública, organizações profissionais); (c) as policiais (que abarcam a polícia de segurança, judiciária ou de investigação, alfandegária, fiscal, de investigação particular, de informes privados, de inteligência do Estado e, em geral, toda agência pública ou privada que cumpra funções de vigilância); (d) as penitenciárias (pessoal das prisões, da execução ou da vigilância punitiva em liberdade); (e) as de comunicação social (radiofonia, televisão, imprensa escrita); (f) as de reprodução ideológica (universidades, academias, institutos de pesquisa jurídica e criminológica) e (g) as internacionais (organismos especializados da ONU, da OEA, cooperação de países centrais, fundações, candidatos à bolsa de estudos e subsídios)” (Direito Penal Brasileiro I, p. 61). 16 OLMO, América Latina y su Criminología, p. 90. 17 OLMO, América…, p. 105. 18 Sobre o tema da transnacionalização do controle social, conferir JESCHECK, Rasgos Fundamentales del Movimiento Internacional de Reforma del Derecho Penal, e BERGALLI, Observaciones Críticas a las Reformas Penales Tradicionales. 19 Para Rosa del Olmo, “se desarrollaría un discurso científico en términos de salud mental que se consolida en un doble discurso oficial que bien se puede

calificar de médico-sanitario-jurídico, ya que se observa una clara separación entre el delincuente-traficante y el consumidor-enfermo; no obstante, el énfasis recae sobre este último con la política de fortalecer la industria de la salud mental y, de manera particular, el tratamiento” (Las Drogas…, p. 125). 20 Entende-se por estereótipo aqueles elementos simbólicos manipuláveis na sociedade que servem para justificar a existência e o comportamento do sujeito em relação com seu meio. É definido a partir do processo de interação com os grupos e pelo contato e resposta dada pelos mecanismos difusos ou institucionais de controle. Segundo Lola Anyar de Castro, o estereótipo “permite à maioria ‘não criminosa’ redefinir-se com base nas normas que aquele [estereotipado] violou e reforçar o sistema de valores do seu próprio grupo” (Criminologia da Reação Social, p. 126). Desta forma, uma das principais funções do delinquente estereotipado é dirigir a carga agressiva do sistema social contra si, “estabilizando”, ainda que momentânea e fragmentariamente, os anseios punitivos. 21 OLMO, A Face Oculta da Droga, p. 34. 22 A ideologia da diferenciação, expressão cunhada por Rosa del Olmo, gestada na década de 1960, permite observar “duplo discurso sobre a droga, que pode ser chamado de médico-jurídico, por tratar-se de um híbrido dos modelos predominantes (o modelo médico-sanitário e o modelo éticojurídico)”. Assim, a ideologia estabeleceria a distinção entre consumidor e traficante ou entre doente e delinquente (A Face..., p. 34). Entretanto, a ideologia da diferenciação pode ser concebida igualmente como discurso de fragmentação das respostas ofertadas aos autores do desvio dependendo do seu status social: “O discurso ainda em moda diferencia os malvados fornecedores e usuários pobres, dos bons filhos, dos ‘bons filhos (ricos) de família’ que cederam às tentações. Para os ricos, tratamento. Para os pobres, internamento (Baratta). Esta ‘ideologia da diferenciação’ serve para justificar o injustificável, lançando mão do velho recurso retórico da distinção” (ROSA, Direito Infracional, p. 216). Luciana Boiteux supõe situação esclarecedora da aplicabilidade do modelo diferenciador ao avaliar a Lei 11.343/06: “(...) basta imaginar a hipótese de dois garotos de dezoito anos negociando a compra de droga considerada ilícita: se a polícia os flagrasse no momento em que o vendedor (pobre, que precisa vender a droga para sobreviver) entregasse a mercadoria ao usuário (rico, que tem dinheiro de sobra para poder comprar droga sem traficar), este iria ser encaminhado ao Juizado Especial e não poderia ser preso de jeito nenhum, enquanto o outro estaria sujeito a uma pena mínima de cinco anos (...)” (A Nova Lei de Drogas e o Aumento da Pena do Delito de Tráfico de Entorpecentes, p. 8).

23 Rosa del Olmo lembra que, em determinado momento, Nixon discursa anunciando que “o abuso de drogas atingiu dimensões de emergência nacional”, posteriormente qualificando as drogas como “o primeiro inimigo público não econômico” (América..., pp. 36-39). No mesmo sentido OLMO, Las Drogas..., p. 126. 24 GRECO FILHO, Tóxicos: prevenção e repressão, p. 42. 25 MENNA BARRETO, Estudo Geral da Nova Lei de Tóxicos, p. 29. 26 MENNA BARRETO, Estudo..., p. 29. 27 FAYET DE SOUZA, Lei Antitóxicos: Reparos e Sugestões para o art. 314 do Novo Código Penal, p. 57. 28 FAYET de SOUZA, Lei Antitóxicos…, pp. 58-59. 29 As categorias desvio, rótulo, subcultura, carreiras criminais, empresários morais e pânicos morais correspondem, fundamentalmente, ao sentido empregado em BECKER, Outsiders, pp. 1-58 e 177-208. 30 MALAGUTI BATISTA, Difíceis Ganhos Fáceis, pp. 74-75. 31 Sobre o tema, conferir OLMO, América..., p. 41. 32 MENNA BARRETO, Estudo..., p. 33. 33 MALAGUTI BATISTA, Difíceis..., p. 45. 34 MALAGUTI BATISTA, Difíceis..., p. 74. 35 OLMO, América…, p. 46. 36 MALAGUTI BATISTA, Difíceis..., p. 74. 37 YOUNG, Drugs: absolutism, relativism and realism, p. 24. 38 GRECO FILHO, Tóxicos..., p. 52. 39 MENNA BARRETO, Estudo..., p. 37. 40 MALAGUTI BATISTA, Difíceis..., p. 122. 41 TORON, A Proteção Constitucional da Intimidade e o Art. 16 da Lei de Tóxicos, p. 43. 42 BARATTA, Criminologia Crítica y Crítica del Derecho Penal, p. 36. 43 BARATTA, Criminologia..., p. 36. 44 BARATTA, Criminologia..., p. 42. 45 BARATTA, Criminologia..., pp. 36-37. 46 Conforme propõe Baratta, a IDS será deslegitimada pela série de teorias criminológicas posteriores ao positivismo que, de alguma forma, contribuíram para o desenvolvimento do paradigma rotulacionista (BARATTA, Criminologia..., pp. 44-54, 56-65 e 103-123; no mesmo sentido, BARATTA, Criminologia e Dogmática Atual, pp. 5-37). A negação do Princípio da Legitimidade ocorrerá com os estudos das Teorias Psicanalíticas da sociedade punitiva, nos quais a penalidade, ao contrário do

discurso oficial, exerceria a função de satisfação das necessidades inconscientes de castigo da sociedade, através da eleição de “bodes expiatórios” sobre os quais se projetam as tendências delituosas, conscientes e/ou inconscientes, do corpo social (BARATTA, Criminologia..., pp. 44-54). A Teoria Estrutural-Funcionalista, representada principalmente por Durkheim e Merton, possibilitará profunda revisão crítica dos postulados basilares da Criminologia tradicional, desqualificando o Princípio do Bem e do Mal, ao afirmar que (a) as causas do desvio não são predeterminadas; que (b) o desvio é um fenômeno normal em toda estrutura social; e que (c) atua como fator necessário e útil ao equilíbrio e desenvolvimento sociocultural. Durkheim passa a afirmar o delinquente não mais como um membro doente de uma sociedade sã, mas como elemento catalizador e agregador, um agente regulador da vida social no momento em que toda a estrutura o elege desviante (BARATTA, Criminologia..., pp. 56-65). No que diz respeito ao Princípio da Culpabilidade, as Teorias das Subculturas Criminais constataram que o comportamento desviante não deve ser interpretado como expressão de comportamento interior, dirigido contra valor universalmente aceito, pois não existe “o” sistema oficial de valoração, mas sim “sistemas” de valores que coexistem em sociedades plurais (BARATTA, Criminologia e Dogmática Atual, p. 9). Estabelecido como novo paradigma criminológico, o Labelling Approach desconsiderará a base principiológica da IDS, concluindo que os processos de seleção, etiquetamento e os efeitos estigmatizantes da pena “ponen en duda el Princípio del Fin o de la Prevención y, en particular, la concepción reeducativa de la pena. Esos resultados muestran, en efecto, que la intervención del sistema penal, y especialmente las penas que privan de libertad, en lugar de ejercer un efecto reeducativo sobre el delincuente, determinan, en la mayor parte de los casos, una consolidación de la identidad de desviado del condenado y su ingreso en una verdadera y propria carrera criminal” (BARATTA, Criminologia…, p. 89). De igual forma, colocará em dúvida o mito da igualdade no Direito Penal, visto que os estudos de Sutherland sobre a criminalidade de colarinho branco e sobre as cifras ocultas da criminalidade apontavam para a conclusão de que, apesar da tipificação, não eram passíveis de seleção, etiquetamento e estigmatização – “estas investigaciones han conducido a otra corrección fundamental del concepto corriente de criminalidad: la criminalidad no es un comportamiento de una minoría restringida, como quiere una difundida concepción (y la ideología de la defensa social conexa a ella), sino, por el contrario, el comportamiento de amplios estratos o incluso de la mayoria de los miembros de nuestras sociedades” (BARATTA, Criminologia..., p. 103). Zaffaroni sustenta que “a

disparidade entre o exercício de poder programado e a capacidade operativa dos órgãos é abissal, mas se por uma circunstância inconcebível este poder fosse incrementado a ponto de corresponder a todo exercício programado legislativamente, produzir-se-ia o indesejável efeito de se criminalizar várias vezes toda a população”. Conclui exemplificando que “se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizadas, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizado” (Em busca das Penas Perdidas, p. 16). Por fim, o Princípio do Interesse Social e do Delito Natural é negado pela Sociologia do Conflito a partir da constatação de que o desvio não é algo que precede as definições e as reações sociais, mas realidade construída; e que a criminalidade não é qualidade ontológica, mas um status social atribuído através de mecanismos e processos formais e informais de reação (BARATTA, Criminologia..., p. 123). 47 ANDRADE, Dogmática e Sistema Penal, p. 231. 48 ARAÚJO JR., Os Grandes Movimentos da Política Criminal de Nosso Tempo, p. 66. 49 ANCEL, A Nova Defesa Social, p. 241. 50 Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar, apesar de trabalharem conjuntamente as noções de ideologia e movimento, percebem nitidamente a origem da Defesa Social e seu falso humanitarismo: “As ideologias que consideram realizada a modernidade e, portanto, caem na ficção do estado racional como realidade consumada, deram lugar à chamada nova defesa social, como corrente paternalista, de algum modo tributária do positivismo perigosista, tratando de equilibrar esta com os direitos humanos em uma interpretação político-criminal, aspirante a um direito penal tutelar de aspecto bondoso, graças a Marc Ancel (falecido em 1990) e a uma versão próxima a de Dorado Montero, devida a Filipo Gramatica (falecido em 1979)” (Direito..., p. 631). 51 “A defesa social não é uma doutrina do Positivismo, mas uma consequência indireta, e de certa forma em segundo grau, da doutrina positivista” (ANCEL, A Nova..., p. 87). 52 ANCEL, A Nova..., p. 365. 53 BARATTA, Criminología…, p. 41. 54 Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar consideram exagero denominar como ideologia a Doutrina de Segurança Nacional, devido à insubsistência dos seus postulados: “Trazida à América por autores franceses, que a apresentaram por ocasião da guerra argelina, e por Escolas de Guerra implantadas com a colaboração norte-americana, nos anos cinquenta, e difundida nos exércitos

do continente, é um exagero chamá-la de ideologia, devido à sua enorme pobreza de conteúdo teórico. Foi uma tese simplista que alucinava um estado de guerra total e permanente, o qual comprometia todo o planeta. Daí sacrificar-se tudo nessa guerra até aniquilar o comunismo, motivo da emergência de turno. Os estados policiais se reservavam à função de determinar quem, em cada caso, era o inimigo, dentro de uma nítida tradição schimidttiana. Valia-se da militarização de toda a sociedade, onde os seres humanos e seus direitos se subordinavam ao objetivo primário de defesa do modelo ocidental de estado, ainda que para isso montassem um estado de polícia que era sua negação, instalando uma ditadura arbitrária que Schmidtt talvez qualificasse de comissária. Amparados por essa ideologia surgiram estados de emergência, estatutos de segurança, organismos e agências políticas de facto em substituição aos de jure e de representação popular, tribunais especiais, penas impostas pela administração, conselhos e grupos de extermínio” (Direito..., pp. 608-609). 55 COMBLIN, A Ideologia da Segurança Nacional, pp. 25-28. 56 “(...) a visão de mundo baseada na geopolítica é a de uma rivalidade entre as Nações que são vontades de poder e de poderio. Essas Nações estão reagrupadas em duas alianças opostas. Uma representa o bem e a outra o mal” (COMBLIM, A Ideologia..., p. 31). 57 BORGES FILHO, Os Militares no Poder, p. 54. 58 SILVA, Militarização da Segurança Pública e a Reforma da Polícia, p. 498. 59 “O poder punitivo [moldado pela ISN] foi exercido por meio de três sistemas penais: (a) o formal; (b) o administrativo, mediante prisões determinadas pelo executivo; (c) o subterrâneo, mediante homicídios, sequestros, torturas, campos de concentração e desaparecimento de pessoas à margem de toda a legalidade” (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, Direito..., p. 609). 60 COMBLIN, A Ideologia..., p. 56. 61 COMBLIN, A Ideologia..., p. 133. 62 ZAFFARONI, Política Criminal Latinoamericana, p. 108. 63 COMBLIN, A Ideologia..., p. 56. 64 FRANCO, Crimes Hediondos, p. 88. 65 ARAÚJO JR., Os Grandes..., p. 71. 66 ARAÚJO JR., Os Grandes..., p. 72. 67 ZAFFARONI, Em Busca..., p. 130. 68 Zaffaroni, Batista, Alagia & Slokar, Direito..., p. 47. 69 CERVINI, Incidencia de las “Mass Media” en la Expansión del Control Penal en Latinoamérica, p. 43.

70 Neste sentido, conferir CERVINI, Incidencia…, p. 40. 71 DELMAS-MARTY, Modelos e Movimentos de Política Criminal, p. 30. 72 “(...) a Política Criminal, numa dada sociedade e num dado momento de sua história, só é aparentemente explicada pela influência desta ou daquela corrente ideológica, mesmo dominante. Além do jogo das correntes contrárias nas sociedades pluralistas, a Política Criminal é, em todo lugar, a resultante de muitos outros fatores, ao mesmo tempo individuais e sociais no sentido mais amplo, não apenas políticos, mas econômicos e culturais” (DELMASMARTY, Modelos..., p. 40). 73 A categoria superpositivismo é licença teórica do significado empregado por Juarez Cirino dos Santos quando menciona a fusão do positivismo jurídico com o positivismo criminológico: “(...) modelo de superpositivismo: as elaborações técnicas do positivismo jurídico são integradas às propostas essenciais do positivismo criminológico, em um sistema orgânico autodefinido como ‘Política Criminal humanizadora, estruturada segundo imperativos deliberadamente aceitos’” (As Raízes do Crime, p. 51). 74 HULSMAN, Penas Perdidas, p. 56. 75 Sobre os Projetos de Lei, conferir a 2ª edição deste livro, datada de 1997 (CARVALHO, A Política Criminal de Drogas no Brasil, pp. 212-231). 76 “Art. 20. Adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, em pequena quantidade, a ser definida pelo perito, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Penas e medidas aplicáveis: as previstas no art. 21”. 77 “Art. 20. (...) § 1º. O agente do delito previsto nos arts. 19 e 20, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995 – Lei dos Juizados Especiais, Parte Criminal”. 78 “Art. 21. As medidas aplicáveis são as seguintes: I – prestação de serviços à comunidade; II – internação e tratamento para usuários e dependentes de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, em regime ambulatorial ou em estabelecimento hospitalar ou psiquiátrico; III – comparecimento a programa de reeducação, curso ou atendimento psicológico; IV – suspensão temporária da habilitação para conduzir qualquer espécie de veículo; V – cassação de licença para dirigir veículos; VI – cassação de licença para porte de arma; VII – multa; VIII – interdição judicial; IX – suspensão da licença para exercer função ou profissão”. 79 “Art. 14. Importar, exportar, remeter, traficar ilicitamente, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, financiar, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar a

consumo e oferecer, ainda que gratuitamente, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena: reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e multa”. 80 “Art. 15. Promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de 3 (três) ou mais pessoas que, atuando em conjunto, pratiquem, reiteradamente ou não, algum dos crimes previstos nos arts. 14 a 18 desta Lei: Pena: reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, e multa”. 81 Neste sentido, conferir CARVALHO, Cinco Teses para Entender a Desjudicialização Material do Processo Penal Brasileiro, pp. 133-150, e CARVALHO, As Reformas Parciais no Processo Penal Brasileiro, pp. 83-132. 82 Rosa del Olmo lê a divulgação da ideia dos cartéis na década de 1990 a partir da teoria da rotulação, e verifica que tais identificadores compõem sistema de metarregras empregados aleatoriamente e com enorme grau de sensacionalismo. Ao referir-se ao caso paradigmático do Cartel de Medelín, acredita simplesmente que o termo era aplicado a quatro rudes rapazes colombianos. Contudo, como faz parte do sistema de metarregras, a classificacão produz graves efeitos em termos de recrudescimento do sistema punitivo: “Eles são de fato muito rudes e muito ricos [Cartel de Medelín], porém, esta publicidade sensacionalista construída em torno deles, apenas os converte, ao menos no discurso, em ‘Super-homens do inferno’, o que acaba glorificando-os e contribui para a proliferação de novelas escritas na América Latina sobre suas vidas” (O Impacto da Guerra Americana à Droga sobre o Povo e as Instituições Democráticas da América Latina, p. 592). 83 GOMES, Crime Organizado, p. 126. 84 HASSEMER, Segurança Pública no Estado de Direito, p. 24. 85 Na tentativa de fechamento da tipicidade aberta criada pela Lei 9.034/95, a doutrina propôs alguns requisitos mínimos necessários para sua configuração. Em relação ao número de pessoas, o pressuposto seria aquele estabelecido no art. 288 do Código Penal. Não obstante, seria fundamental a presença de alguns dos seguintes indicadores: (a) organização estável e permanente; (b) previsão de acumulação de riqueza indevida; (c) hierarquia estrutural; (d) uso de meios tecnológicos sofisticados; (e) recrutamento de pessoas e divisão funcional das atividades; (f) conexão estrutural ou funcional com o poder público; (g) ampla oferta de prestações sociais (clientelismo); (h) divisão territorial das atividades; (i) alto poder de intimidação; (j) real capacidade de fraude difusa; e (l) conexão local, regional, nacional ou internacional com outra organização criminosa (GOMES, Crime..., pp. 70-77). Para Hassemer, p. ex., o elemento estruturador da criminalidade organizada seria o poder de

corrupção das instituições encarregadas da repressão (HASSEMER, Perspectivas de uma Moderna Política Criminal, p. 95). 86 HASSEMER, Segurança..., p. 35. 87 A possibilidade de realização, pelo Magistrado, de diligência pessoal e sigilosa, em qualquer fase da persecução criminal, para fins de obtenção de prova foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal – neste sentido, conferir STF, Tribunal Pleno, ADIn 1.570, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 20.10.04. 88 ZAFFARONI, Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito, p. 17. 89 Neste sentido, advoga Chiavario: “Assim, é justamente a defesa da sociedade contra o crime organizado que sempre mais vezes é usada como justificação para a limitação de direitos e garantias individuais, que são também fundamentais (frequentemente, e sobretudo com referência à esfera dos direitos ‘processuais’): com o suspeito – muitas vezes, infelizmente, fundado... – para o qual a luta contra as organizações criminais torna-se pouco mais que um pretexto para pressões autoritárias e até mesmo liberticidas” (Direitos Humanos, Processo Penal e Criminalidade Organizada, p. 27). 90 CHOUKR, Processo Penal de Emergência, p. 139. 91 CERVINI, Nuevos Aportes al Analisis del Delito Organizado, pp. 248-254. 92 O escritório da Secretaria de Imprensa da Casa Branca, em 18 de outubro de 2004, publicou Memorando assinado pelo Presidente George W. Bush intitulado Apoio de Assistência ao Combate às Drogas do Governo Americano ao Governo Brasileiro. Segundo o documento, o Governo dos EUA “certifica” a lei, ponderando que: “(1) interdição de aeronave com razoável suspeita de estar efetivamente envolvida no tráfico ilícito de drogas no espaço aéreo desse País é necessária em razão da extraordinária ameaça posta pelo tráfico ilícito de drogas à segurança nacional desse País e (2) esse País estabeleceu procedimentos apropriados para proteger contra a perda de vidas de inocentes no espaço aéreo e terrestre em relação a tal interdição, as quais, no mínimo, incluem meios efetivos para identificar e alertar uma aeronave antes de uso da força contra a mesma” (disponível em: , acesso em 27.06.05). 93 Segundo o art. 2º do Decreto 5.144/04, é considerada aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins aquela que se enquadre em uma das seguintes situações: (a) adentrar o território nacional, sem Plano de Voo aprovado, oriunda de regiões reconhecidamente fontes de produção ou distribuição de drogas ilícitas; ou (b) omitir aos órgãos de controle de tráfego aéreo informações necessárias à sua identificação, ou não

cumprir determinações destes mesmos órgãos, se estiver cumprindo rota presumivelmente utilizada para distribuição de drogas ilícitas. 94 As medidas de averiguação visam determinar ou confirmar a identidade de uma aeronave, ou, ainda, vigiar o seu comportamento, “consistindo na aproximação ostensiva da aeronave de interceptação à aeronave interceptada, com a finalidade de interrogá-la, por intermédio de comunicação via rádio ou sinais visuais, de acordo com as regras de tráfego aéreo, de conhecimento obrigatório dos aeronavegantes” (art. 3º, § 2º, Decreto 5.144/04). 95 As medidas de intervenção, seguidas das de averiguação, consistem “na determinação à aeronave interceptada para que modifique sua rota com o objetivo de forçar o seu pouso em aeródromo que lhe for determinado, para ser submetida a medidas de controle no solo” (art. 3º, § 2º, Decreto 5.144/04). 96 Consideram-se medidas de persuasão aquelas que consistem “no disparo de tiros de aviso, com munição traçante, pela aeronave interceptadora, de maneira que possam ser observados pela tripulação da aeronave interceptada, com o objetivo de persuadi-la a obedecer às ordens transmitidas” (art. 3º, § 3º, Decreto 5.144/04). 97 Sobre o tema, conferir Rodrigues, A Lei do Abate, pp. 68-93. 98 ROLIM, A Síndrome da Rainha Vermelha, p. 174. 99 ROLIM, A Síndrome..., p. 175. 100 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 382. 101 “(...) a biografia das práticas penais, apesar de sua sinuosidade, tem demonstrado que a regra do poder penal é o inquisitorialismo, ou seja, que o discurso garantista de gênese ilustrada configurou uma variável insensata na estrutura das formas de poder, uma cisão acidental na história das violências da qual somos herdeiros inocentes, românticos poetas de um passado imaginário” (CARVALHO, Tântalo no Divã, p. 117). 102 Agamben, Estado de Exceção, p. 131. 103 Embora alguns autores procurem realizar aproximações teóricas entre a base humanitária (garantismo) do direito e do processo penal com a vertente dogmática do pensamento de Jakobs, visualizando pontos de contato entre as linhas garantistas e este modelo de funcionalismo, nota-se uma incompatibilidade de origem que refuta, terminantemente, tais ensaios. A incompatibilidade se refere à perspectiva político-criminal que ilumina ambas as teorias. Deste modo, se incompatíveis as projeções de criminalização (minimalismo versus maximalismo) e a estruturação da teoria geral de interpretação do delito e da pena (direito penal do fato versus direito penal do autor), qualquer aproximação doutrinária entre categorias aparentemente comuns soa como esforço inútil, visto serem os horizontes de (não)

intervenção absolutamente incompatíveis. Veja-se, por exemplo, a importante lembrança realizada por Alejandro Aponte, ao dizer que em 1985, no Congresso de Direito Penal de Frankfurt, quando Jakobs apresenta sua primeira versão do direito penal do inimigo, o faz “en el contexto de una reflexión sobre la tendencia en Alemania hacia la ‘criminalización en el estadio previo a una lesión’ del bien jurídico” (APONTE, Derecho Penal de Enemigo vs. Derecho Penal del Ciudadano, pp. 12-13), ou seja, no âmbito da discussão aparentemente neutra da dogmática do delito sobre consumação e tentativa. 104 Silva Sánchez, La Expansión del Derecho Penal, pp. 161-167, e CANCIO MELIÁ, Derecho Penal del Enemigo y Delitos de Terrorismo, pp. 37-43. 105 JAKOBS, Derecho Penal del Ciudadano y Derecho Penal del Enemigo, p. 38. 106 “Quien no presta una seguridad cognitiva suficiente de un comportamiento personal, no sólo no puede esperar ser tratado aún como persona, sino que el Estado no debe tratarlo ya como persona, ya que de lo contrario vulneraría el derecho a la seguridad de las demás personas” (JAKOBS, Derecho…, p. 47). 107 “El derecho penal del ciudadano mantiene la vigencia de la norma, el derecho penal del enemigo (en sentido amplio: incluyendo el Derecho de las medidas de seguridad) combate peligros (...) en el Derecho penal del ciudadano la función manifiesta de la pena es la contradicción, en el Derecho penal del enemigo la eliminación de un peligro” (JAKOBS, Derecho…, pp. 3355). 108 JAKOBS, Derecho..., pp. 55-56 (destacou-se). 109 Importante perceber a categoria “terrorismo”, desde o ponto de vista do direito penal, como um tipo aberto, ou seja, como um elemento conceitual indefinido, semanticamente lacunoso e sem qualquer precisão de suas características configuradoras. Neste sentido, lembram Riquert e Palacios que “entre esas expresiones que dificultan una total hegemonía – si algo así fuera posible – podríamos incluir a lo que desde los centros de poder llaman ‘terrorismo’ y que es tan difuso e indefinido que lo debemos entrecomillar (…)” (El Derecho Penal del Enemigo o las Excepciones Permanentes, p. 3). 110 CANCIO MELIÁ, “Derecho Penal” del Enemigo?, pp. 93-94. No mesmo sentido, Eduardo Demetrio Crespo: “(...) cabe afirmar que el llamado ‘derecho penal del enemigo’ toda vez que fija sus objetivos primordiales en combatir a determinados grupos de personas, abandona el principio básico del derecho penal del hecho, convirtiéndose en una manifestación de las tendencias autoritarias del ya históricamente conocido como ‘derecho penal de autor’” (“Del Derecho Penal Liberal” al “Derecho Penal del Enemigo”, p. 50).

111 BITENCOURT, Princípios Garantistas e a Criminalidade do Colarinho Branco, p. 123. 112 JACKOBS, Derecho..., pp. 38-40. 113 Veja-se, por exemplo, a questão da determinação temporal. O prazo determinado pela CR para perdurar os Estados de Sítio e de Defesa é de, no máximo, 30 dias, podendo ser prorrogável uma vez por igual período (art. 138, § 2º, e art. 138, § 1º, CR), e somente em casos de guerra declarada poderá ser indeterminado. 114 AGAMBEN, Estado…, p. 13. A partir da avaliação do Estado nazista, com publicação por Hitler do “Decreto para a Proteção do Povo e do Estado”, uma de suas primeiras medidas, Agamben sustenta que o “totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, parecem não integráveis ao sistema político” (Estado..., p. 13). Completa resenha do texto de Agamben pode ser lida em SANTIN, O Estado de Exceção em Giorgio Agamben, pp. 177-188. 115 Neste sentido, conferir Wacquant, As Prisões da Miséria, pp. 77-152; Wacquant, Punir os Pobres, pp. 53-98; Bauman, O Mal-Estar da PósModernidade, pp. 49-90; Bauman, Globalização, pp. 111-137; e CARVALHO, A Ferida Narcísica do Direito Penal, pp. 179-212. 116 Tobias Barreto, em um dos mais clássicos textos da literatura penal brasileira, sustenta: “(...) quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”. Desloca, pois, o eixo de análise da pena do direito penal para os aparelhos repressivos, capacitando este (direito penal) à sua limitação (BARRETO, Fundamentos do Direito de Punir, p. 650). 117 Interessante estudo sobre o papel do Poder Judiciário na legitimação da exceção permanente é realizado por Geraldo Prado. O autor, partindo das regras de limitação de direitos previstas constitucionalmente em casos de decretação do Estado de Defesa e do Estado de Sítio, avalia a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Constata que em casos de imputação de crime organizado (no leading case, crimes econômicos), as Cortes determinam, na constância democrática, restrição de direitos fundamentais (v.g., direito à intimidade e à vida privada limitados por interceptações telefônicas) superiores àquelas que seriam permitidas nas situações de emergência elencadas pela Carta Maior (Prado, Limite às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pp. 34-43). 118 Sustenta Agamben que “uma das características essenciais do estado de exceção – a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo

e judiciário – mostra, aqui, sua tendência a transformar-se em prática duradoura” (Estado…, p. 19). O refinamento na centralização do poder geraria o paradoxo do círculo vicioso apontado por Friedrich: “Não há nenhuma salvaguarda institucional capaz de garantir que os poderes de emergência sejam efetivamente usados com o objetivo de salvar a Constituição (...). As disposições quase ditatoriais dos sistemas constitucionais modernos, sejam elas a lei marcial, o estado de sítio ou os poderes de emergência constitucional, não podem exercer controles efetivos sobre a concentração dos poderes. Consequentemente, todos esses institutos correm o risco de serem transformados em sistemas totalitários, se condições favoráveis se apresentarem” (apud AGAMBEN, Estado..., p. 20). 119 AGAMBEN, Estado…, pp. 78-80 e 130-133. 120 RIQUERT & PALACIOS, El Derecho…, p. 2. 121 Neste sentido, conferir BACILA, Estigmas como Meta-Regras da Atividade Policial, pp. 38-72 e 183-328. 122 “Geralmente, chegado o momento de prolatar a sentença penal, o juiz já decidiu se condenará ou absolverá o réu. Chegou a essa decisão (ou tendência a decidir) por vários motivos, nem sempre lógicos ou derivados da lei. Muitas vezes, a tendência a condenar está fortemente influenciada pela extensão da folha de antecedentes do réu ou, ainda, pela repugnância que determinado delito provoca no espírito do juiz (...)” (BRUM, Requisitos Retóricos da Sentença Penal, p. 72). 123 Para precisa diferenciação entre a criminalidade de massas e a criminalidade organizada, conferir BITENCOURT, Princípios..., pp. 123-125, HASSEMER, Três Temas de Direito Penal, pp. 56-85, e HASSEMER, Perspectivas de uma Moderna Política Criminal, pp. 41-68. 124 SANTOS, As Raízes do Crime, p. 51. 125 APONTE, Derecho..., p. 13. 126 Sobre a supressão das garantias processuais fruto da assunção dos discursos de emergência, nos países centrais e periféricos, conferir a ampla investigação realizada por CHOUKR, Processo..., pp. 71-208. Sobre a experiência paradigmática da Itália, conferir FERRAJOLI, Diritto..., p. 844-877. 127 BATISTA, Política Criminal com Derramamento de Sangue, p. 92. 128 Sobre o tema, conferir CARVALHO, Antimanual de Criminologia, pp. 99-123. 129 Neste sentido, conferir CARVALHO, A Ferida..., pp. 179-212. 130 ZAFFARONI, Política Criminal Latinoamericana, p. 22. 131 LISZT, Tratado de Derecho Penal, p. 44.

132 Apud DELMAS-MARTY, Modelos e Movimentos de Política Criminal, p. 24. 133 LISZT, Tratado…, p. 60. 134 LISZT, Tratado..., p. 62. 135 ANCEL, A Nova Defesa Social, p. 90. 136 LISZT, Tratado..., p. 50. 137 “Su asunto es puramente político; se propone la continuación de la legislación en el sentido de una lucha consciente contra el delito, y, en especial, pero no exclusivamente, por la pena y por medidas análogas. De aquí la distinción práctica fundamental, dentro de la lucha contra el crimen, de su actividad legislativa – Política Criminal – y su actividad gubernativa – Política Social – en un terreno común donde se alían sus armas” (LISZT, Tratado…, p. 66). 138 A Política Criminal, embora existam divergências conceituais entre os autores italianos e alemães, é definida por Rocco como “la ciencia o la arte de la legislación, pero que tiene en mira el juicio, la crítica y la reforma del derecho penal vigente (...)” (El Problema y el Metodo de la Ciencia del Derecho Penal, p. 82). A “ciência da luta contra o delito”, no modelo proposto pelo tecnicista, não se limita tão somente ao plano legislativo. Além da arte de legislar, dividir-se-ia em outros dois momentos específicos: (a) o judicial, de aplicação do direito penal conforme os fins políticos propostos (arte da aplicação da lei) e (b) o executivo (arte da administração). 139 ANCEL, A Nova..., p. 301. 140 BATISTA, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 35. 141 BATISTA, Introdução..., p. 36. 142 DELMAS-MARTY, Modelos..., p. 24. 143 CANESTRI, Los Procesos de Decriminalización desde un Punto de Vista Criminológico, p. 35. 144 BATISTA, Algumas palavras sobre Descriminalização, p. 37. 145 BARATTA, Criminología Crítica y Crítica del Derecho Penal, p. 167. 146 BARATTA, Criminología…, pp. 166-167. 147 Sustenta Baratta que “con la perspectiva de la criminología crítica, la criminalidad no es ya una cualidad ontológica de determinados comportamientos y de determinados individuos, sino que se revela más bien como un estatus asignado a determinados individuos por medio de una doble selección: en primer lugar, la selección de bienes jurídicos protegidos penalmente, y de los comportamientos ofensivos a estos bienes considerados en las figuras legales; en segundo lugar, la selección de los individuos estigmatizados entre los individuos que cometen infraciones a normas

penalmente sancionadas. La criminalidad es un ‘bien negativo’ distribuido desigualmente según la jerarquía de intereses fijada en el sistema socioeconómico, y según la desigualdad social entre los individuos” (Criminología…, p. 167). 148 HULSMAN, Descriminalização, p. 8. 149 HULSMAN, Descriminalização, p. 9. 150 HULSMAN, Descriminalização, pp. 9-10. 151 Neste sentido, conferir COHEN, Visions of Social Control, pp. 30-36. 152 BARATTA, Criminología…, pp. 200-205. 153 Releitura de item originalmente publicado em CARVALHO, As Reformas Parciais do Processo Penal Brasileiro, pp. 93-99. 154 Sobre a tensão entre o direito penal liberal e as tendências contemporâneas do eficientismo penal, conferir DIAS NETO, Segurança Urbana, pp. 92-97. 155 WACQUANT, As Prisões da Miséria, p. 25. 156 Sobre as teorias críticas ao discurso da “Tolerância Zero” e a “broken windows theory”, conferir WACQUANT, As Prisões...; WACQUANT, A globalização da “tolerância zero”, pp. 111-120; WACQUANT, Inimigos Cômodos, pp. 121-128; WACQUANT, Punir os Pobres; e BATISTA, Intolerância dez, ou a propaganda é a alma do negócio, pp. 217-222. 157 WACQUANT, As Prisões..., p. 30. 158 Neste sentido, conferir KARAM, A Esquerda Punitiva, pp. 79-92, e CLEINMAN, A Esquerda Punitiva, pp. 11-18. 159 LARRAURI, La Herencia de la Criminología Crítica, p. 218. 160 SILVA SÁNCHEZ, La Expansión del Derecho Penal, pp. 66-69. 161 Apud LARRAURI, La Herencia..., p. 218. 162 SILVA SÁNCHEZ, La Expansión…, pp. 69-70. 163 KARAM, A Esquerda..., pp. 79-92. 164 LARRAURI, La Herencia..., p. 218. 165 Neste sentido, no que tange à matéria pós-Constituição de 1988: Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), Lei 8.078 (Código de Defesa do Consumidor), Lei 8.245 (Lei de Locação de Imóveis Urbanos), Lei 8.494 (Lei de Improbidade Administrativa), Lei 8.666 (Lei de Licitações), Lei 8.974 (Lei de Engenharia Genética), Lei 9.263 (Lei do Planejamento Familiar), Lei 9.279 (Lei de Propriedade Industrial), Lei 9.434 (Lei de Remoção de Órgãos), Lei 9.472 (Lei de Telecomunicações), Lei 9.503 (Código de Trânsito Brasileiro), Lei 9.504 (Lei Eleitoral), Lei 9.605 (Lei Ambiental), Lei 9.609 (Lei de Propriedade Intelectual de Programas de Computador), Lei 9.800 (Lei de Transmissão de Dados), Lei 10.257 (Estatuto da Cidade), Lei 10.747 (Estatuto

do Idoso), Lei 10.826 (Estatuto do Desarmamento), Lei 11.340 (Lei de Violência Doméstica), entre outras. 166 MANTOVANI, Valori e Principi della Codificazione Penale, p. 263. 167 FERRAJOLI, El Derecho Penal Mínimo, p. 44. 168 FERRAJOLI, La Pena in una Società Democratica, p. 532. 169 FERRAJOLI, La Giustizia Penale nella Crisi del Sistema Politico, p. 81. 170 FERRAJOLI, Quattro Proposte di Riforma delle Penne, p. 50. 171 FERRAJOLI, La Pena…, p. 538. 172 Mantovani, Valori..., p. 273. 173 Neste sentido, conferir Mathiesen, La Politica del Abolicionismo, pp. 119-125. 174 Mathiesen, A Caminho do Século XXI, p. 276. 175 “En los últimos años hemos observado un mayor interés por la aplicación de medidas no penales, como una alternativa al castigo, la mayoría de las cuales se basa en discusiones directas entre las partes, que con frecuencia terminan en acuerdos de reparación del daño causado. Este cambio va desde el uso monopólico de la pena por parte del estado hacia los intentos por permitir que las partes tengan oportunidad de encontrarse y buscar por sí mismos formas de reparar el daño. Estas ideas en conjunto se llaman ‘ideas abolicionistas’, aunque algunas veces se la encuentra bajo denominaciones como ‘descarcelación o descriminalización’” (Christie, Las Imágenes del Hombre en el Derecho Penal Moderno, p. 139). 176 Neste sentido, conferir CHIES, É Possível se Ter o Abolicionismo como Meta, Admitindo-se o Garantismo como Estratégia, pp. 161-219. 177 CANESTRI, Los Procesos..., p. 33. 178 Apud POSTALOFF, Los Procesos de Descriminalización, p. 63. 179 DELMAS-MARTY, Modelos..., p. 152. 180 HULSMAN, Descriminalização, p. 7. 181 Beck, La sociedad del riesgo, p. 28. 182 Sobre as críticas ao messianismo do direito penal na assunção da responsabilidade pela tutela da humanidade em face dos riscos advindos pelo desenvolvimento tecnológico, conferir CARVALHO, A Ferida Narcísica do Direito Penal, pp. 179-211. 183 Demonstra Antolisei que todas as tentativas de encontrar critérios substanciais na diferenciação dos ilícitos resultaram fracassadas: “(...) il falimento delle teorie che sono state enunciate per distinguere il torto penale da quello civile, induce a concludere che una diversità sostanziale non esiste. La distinzione è puramente estrinseca e legale: il reato è il torto sanzionato mediante la pena; l’illecito civile è quelle cha ha per conseguenza le sanzioni

civili (risarcimento del danno, restituzioni, ecc.). Insomma, è la natura della sanctio iuris quella che consente di stabilire se ci troviamo di fronte all’una o all’altra specie di torto” (Manuale di Diritto Penale, p. 170). Assim, ensina Frederico Marques que é no valor extrínseco, nas consequências do ilícito, que se distingue sua natureza, pois o ilícito civil provoca uma coação patrimonial, e o ilícito penal uma coação pessoal – “o ilícito civil determina sempre, como consequência jurídica, ou a execução forçada, ou a obrigação de indenizar, ou a obrigação de restituir, ou a declaração da nulidade do ato; o ilícito penal, ao contrário, pode determinar todas essas consequências, mas além delas produz uma outra especial: a pena, que consiste num mal infligido ao autor do fato antijurídico, e que, na maior parte das vezes, afeta ou pode afetar a própria pessoa do autor” (Tratado de Direito Penal, p. 21). Em sentido semelhante, Fragoso constata que “o direito penal, como direito público, distingue-se marcadamente do direito civil, pois a sanção própria deste último é apenas reparatória (restituição, ressarcimento, execução coativa, nulidade)” (Lições de Direito Penal, p. 11). 184 POSTALOFF, Los Procesos..., p. 65. 185 GOMES, Suspensão Condicional do Processo Penal, p. 92 (excluídos os exemplos). 186 Crítica à majoração da pena, antes da descriminalização, pode ser encontrada em CARVALHO & CARVALHO, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 153-173. 187 Os efeitos do princípio, em decorrência de seu status constitucional, coloca em dúvida a conformação do art. 3º do Código Penal com a Constituição. Segundo o Código, “a lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”, ou seja, tais leis teriam a qualidade da ultratividade. A justificativa do efeito é dada segundo o argumento de que o termo de limitação dos efeitos não descriminalizaria o fato, apenas cessando as causas que justificaram a lei excepcional ou temporária. Sobre a inconstitucionalidade do dispositivo, conferir LYRA FILHO & CERNICCHIARO, Compêndio de Direito Penal, p. 44; LUISI, Os Princípios Constitucionais Penais, pp. 22-23; e SCHMIDT, O Princípio da Legalidade Penal no Estado Democrático de Direito, pp. 228-232. 188 Art. 28, § 3º “As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses (...); § 4º “Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses”. 189 STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, p. 31.

190 FERRAJOLI, Diritto e Ragione, p. 917. 191 BARROSO, Interpretação e Aplicação da Constituição, pp. 70-71. 192 STRECK, Jurisdição..., pp. 30-31. 193 As teses expostas sobre a política criminal de redução de danos penais correspondem às conclusões parciais sobre as Teorias da Pena, em CARVALHO, Teoria Agnóstica da Pena, e CARVALHO, Supérfluos Fins (da Pena). 194 Ao criticar o narcisismo dos juristas a partir da exposição de mitos fundantes, sustenta-se que “violar o discurso narcisista que envolve a ciência criminológica advinda da modernidade, cujo efeito foi deflagrar a violência dos poderes penais contra a alteridade, impõe tarefa árdua de desconstrução. Em virtude de sua submissão ao discurso da dogmática jurídica (penal e processual penal), a ruptura talvez deva iniciar-se nos mitos fundantes da própria ciência do direito. A propósito, nenhum exemplo mais claro do narcisismo dos juristas que a manutenção do dogma de ser o ordenamento jurídico um todo completo e coerente, no qual as lacunas e antinomias são aparentes e de previsível resolução. O narcisismo em primeiro grau visível na dogmática jurídica dá vazão às (in)completudes e (in)coerências em sentido estrito. Não por outro motivo o direito penal, envolto na circularidade do conceito de bem jurídico, ainda brada sua capacidade técnica de tutelar os maiores valores da humanidade; o processo penal, perdido na confusão entre os conceitos de verdade e realidade e de verdade e substância, concebe a possibilidade de buscar uma ‘verdade real’; e a criminologia, absorta nas entranhas dos aparelhos de segurança pública, visualiza (e crê) em sua aptidão de erradicação da criminalidade” (CARVALHO, Criminologia e Transdisciplinaridade, p. 331) No mesmo sentido, Carvalho, A Ferida..., pp. 179-211, e CARVALHO, Memória... 195 Ferrajoli, Diritto..., p. 921. 196 Na Espanha, a Constituição pauta como função da pena a reeducação e a reinserção social, condicionando a limitação dos direitos fundamentais do condenado àqueles fins: “Las penas privativas de libertad y las medidas de seguridad estarán orientadas hacia la reeducación y reinserción social y no podrán consistir en trabajos forzados. El condenado a pena de prisión que estuviere cumpliendo la misma gozará de lo derechos fundamentales de este Capítulo a excepción de los que se vean expresamente limitados por el contenido del fallo, el sentido de la pena y la ley penitenciaria (…)” (art. 25, § 2º). 197 A Constituição da Itália, seguindo o modelo de Defesa Social, determina como função da punição a reeducação do condenado: “Le pene non possono

consistere in trattamenti contrari al senso di umanità e devono tendere alla rieducazione del condannato” (art. 27). 198 Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, p. 55. 199 FAYET DE SOUZA, A Sentença Criminal e suas Nulidades, p. 24. 200 WARAT, Introdução Geral ao Direito, p. 209. 201 “Também no direito penal positivo todas as expressões são atual ou potencialmente vagas. Não falemos de termos como mulher honesta, ultraje ao pudor, ânimo de lucro etc. Mas, mesmo expressões que parecem caracterizar-se por uma inquestionável unicidade significativa, como matar ou furtar, padecem de vagueza. Não se discute aqui a multiplicidade de casos em que é clara a aplicação do termo, mas aqueles em que o significado de matar deixa de ser transparente, como, por exemplo, o caso de um médico que extrai o coração do paciente para transplante, enquanto estão vivas as células de seu sistema nervoso. O caso adequa-se ao sentido ordinário de matar” (WARAT, Introdução..., p. 209). 202 Neste sentido, BRUM, Requisitos Retóricos da Sentença Penal, pp. 39-88; FAYET DE SOUZA, A Sentença..., pp. 30-38. 203 WARAT, Introdução..., p. 210. 204 FAYET DE SOUZA, A Sentença..., p. 26-33. 205 CUNHA, O Caráter Retórico do Princípio da Legalidade, p. 65. 206 COUTINHO, Discrição Judicial na Dosimetria da Pena, p. 152. 207 COUTINHO, Dogmática Crítica e Limites Linguísticos da Lei, p. 37. 208 Carvalho, Lei, para Que(m)?, pp. 20-24. 209 CARVALHO, Pena e Garantias, pp. 89-90. 210 BATISTA, Algumas Palavras sobre Descriminalização, pp. 36-37. 211 Segundo Sutherland, “las hipótesis de que el delito es debido a patologías personales y sociales no se aplica a los delitos de ‘cuello blanco’, y si las patologías no explican estos delitos no son factores esenciales en los delitos en general, y, por lo tanto, no son factores esenciales en los delitos que ordinariamente confrontan los departamentos policiales y los tribunales penales y juveniles” (El Delito de Cuello Blanco, p. 307). 212 Sobre o efeito das cifras ocultas no discurso penal, conferir CARVALHO, A Ferida..., pp. 201-206. 213 HULSMAN, Penas..., p. 66. 214 Apud THOMPSON, Quem são os Criminosos?, p. 19. 215 HULSMAN, Descriminalização, pp. 23-24. 216 BARATTA, Principios del Derecho Penal Mínimo, pp. 623-650. 217 Ferrajoli, Il Problema Morale e il Ruogo della Legge, p. 44. 218 OLIVEIRA, Crimes de Perigo Abstrato, p. 99.

219 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 481. 220 Sobre a política garantista de deflação penal, conferir CARVALHO, Pena e Garantias, pp. 91-95. 221 HULSMAN, Descriminalização, p. 14. 222 GAUER, Interdisciplinaridade e Ciências Criminais, p. 683. 223 GAUER, Uma Leitura Antropológica do Uso de Drogas, p. 60. No mesmo sentido, BIRMAN, Mal-Estar na Atualidade, p. 221. 224 Neste sentido, importante contribuição de GAUER, Velocidade: Ritmo Social e Mudança, p. 307. 225 BIRMAN, Mal-Estar…, p. 223. 226 WEIGERT, Uso de Drogas e Sistema Penal, p. 24. 227 BIRMAN, Mal-Estar…, p. 223. 228 BARATTA, Introducción a la Sociología de la Droga, p. 74. 229 Lembra Baratta que “la distancia entre la realidad y la imagen se acorta hoy. Actualmente hay más consumidores dependientes que en la fase ‘inicial’; más drogodependientes marginados en subculturas, que son infractores de normas penales e insertos en carreras criminales; la dependencia de drogas ilícitas es menos curable de lo que sería, si en esta pequeña parte del problema social de la drogodependencia no hubiera intervenido la justicia penal” (Introducción a la Sociología…, p. 74). 230 BARATTA, Introducción a la Criminología de la Droga, p. 335. 231 BIRMAN, Mal-Estar…, pp. 222-223. 232 MIRON, Drug War Crimes: the consequences of prohibition, p. 4. 233 MANZANOS, Apuntes sobre la Deconstrucción del “Problema Droga”, p. 279. 234 Cooper, ao fixar os elementos teóricos da antipsiquiatria a partir da análise dos processos de interação social na esquizofrenia, fornece interessante chave de leitura em relação aos problemas da estigmatização do usuário e do dependente, bem como dos pseudoproblemas gerados pelas intervenções coativas: “(...) ainda é quase revolucionário sugerir que o problema não reside na ‘pessoa doente’, porém na rede de interações de pessoas, particularmente sua família, da qual o paciente é admitido, por um truque de prestidigitação conceitual, já foi abstraído. Dito em outras palavras, a loucura não se encontra ‘numa’ pessoa, porém num sistema de relacionamentos em que o ‘paciente’ rotulado participa: a esquizofrenia, se é que significa alguma coisa, constitui um modo mais ou menos característico de comportamento grupal perturbado. Não existem esquizofrênicos. A abstração usual de uma ‘pessoa doente’ do sistema de relacionamentos em que se acha imediatamente presa deforma o problema e abre caminho à

intervenção de pseudoproblemas, classificados e analisados causalmente com absoluta seriedade, quando todos os problemas genuínos se esvaíram despercebidamente, através dos portões do hospital (justamente com os parentes que se foram)” (Psiquiatria e Antipsiquiatria, p. 47). 235 FERRAJOLI, Proibizionismo e Diritto, p. 138. Conferir igualmente FERRAJOLI, Il Problema Morale e il Ruolo della Legge, pp. 41-47. 236 “Qualquer que fosse o juízo moral sobre o aborto, o que torna moralmente inaceitável a sua punição é a sua total e reconhecida ineficácia dissuasiva, isto é, o fato que não previne de qualquer modo os abortos ou sequer reduz, mas apenas constrange à clandestinidade e impede a atuação com a necessária assistência social” (FERRAJOLI, Proibizionismo..., p. 138). 237 MIRON, Drug..., pp. 15-16. 238 Neste sentido, conferir KILLIAS & AEBI, The Impact of Heroin Prescription on Heroin Markets in Switzerland, pp. 83-99; KILLIAS, AEBI & RIBEAUD, Effects of Heroin Prescription on Police Contacts Among Drug-Addicts, pp. 433-438; KILLIAS, AEBI & RIBEAUD, Learning Through Controlled Experiments, pp. 233-251; AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción de Heroína em Suiza, p. 713-731; AEBI & KILLIAS, La Prescripcion de Heroína como Medida de Prevención de la Delincuencia, pp. 1-4; EISNER & KILLIAS, Switzerland, pp. 283-284. 239 COSTA, Análise das Finalidades da Pena nos Crimes de Tóxicos, pp. 114-115. 240 Ao tratar da violência do discurso psiquiátrico, Cooper lembra que “o paciente mental, uma vez rotulado, é obrigado a assumir o papel de doente. Essencial a este papel é certa passividade. Supõe-se que há uma doença que, vindo de alguma maneira de fora da pessoa, constitui um processo que a altera. O paciente é afetado, alterado de maneira tal, que seu próprio afetar e alterar se tornam relativamente inessenciais. Ele é coisificado até se converter no objeto em que o processo patológico se elabora. O processo é sofrido, suportado” (COOPER, Psiquiatria..., p. 45). 241 COSTA, Análise..., p. 113. 242 BIRMAN, Mal-Estar…, p. 220. 243 CERVINI, Los Procesos..., p. 138. 244 Estudo Prevê Economia de US$ 14 Bi, Folha de S. Paulo, 19.06.05. 245 Entrevista, Folha de S. Paulo, 19.05.05. 246 Entrevista, Folha de S. Paulo, 19.05.05. 247 “Denver, the ‘mile high city’, is living up to its name after it became the first city in the US to remove all criminal and civil penalties for adults caught in possession of a small amount of marijuana. Under the measure residents over

21 years old will be allowed to possess up to an ounce of marijuana in Denver, which originally earned its nickname for its high altitude in the Rocky Mountains. However, the move may turn out to be merely symbolic, as police will still be able to charge offenders under state and federal drug laws. Denver’s new policy was supported by 54% of voters” (Denver Decriminalises Possession of Marijuana, The Guardian, 04.11.05). 248 Conforme argumenta Miron, “prohibition also fosters corruption of police, prosecutors, judges, and politicians. This occurs because lawsuits, lobbying, and campaign contributions do not exist in a prohibited industry. In addition, drug traffickers have high profits to protect and thus added incentive to bribe or threaten those who might impede these profits. Evidence on the magnitude of corruption is difficult to obtain, but anecdotal evidence of drug-trade-induced corruption is abundant (e.g., U.S. General Accounting Office 1998; ACLU – Texas 2003)” (Drug…, p. 13). 249 MANZANOS, Apuntes..., p. 280. 250 MIRON, Drugs…, p. 12. 251 CERVINI, Los Procesos..., p. 161. 252 ICPS (International Centre for Prison Studies), World Prison Brief, 2012. 253 ICPS, World Prison Brief, 2013. 254 BUREAU OF JUSTICE STATISTICS, Prisioners in 2007, p. 4. 255 KALILI, Como a Reforma do Código Penal Pode Afetar o Sistema Carcerário, p. 4. 256 KALILI, Como a Reforma…, p. 13. 257 AZEVEDO, Justiça Penal e Segurança Pública no Brasil, p. 106. 258 Dados comparativos de 2011 com os apresentados na 5ª edição (2010), referentes ao ano de 2007 (CARVALHO, A Política Criminal de Drogas no Brasil, pp.156-158). 259 YOUNG, A Sociedade Excludente, p. 38. 260 MIRON, Drugs..., p. 20. 261 CONFEN, Proposta..., p. 13. 262 No art. 8º do Projeto, a possibilidade de aprovação estaria vinculada à veiculação de mensagens esclarecedoras quanto aos riscos do consumo com duração e qualidade idênticas à da promoção do uso. 263 CONFEN, Proposta..., p. 10. 264 CONFEN, Proposta..., p. 7. 265 CONFEN, Proposta..., p. 7. 266 CONFEN, Proposta..., p. 12. 267 CONFEN, Proposta..., p. 13.

268 Segundo Bedau, “una actividad es un crimen sin víctima solamente si está prohibida por un código criminal y sujeta a penalidad o castigo, e implica un cambio o negociación de bienes y servicios entre adultos que consienten en relacionarse en una actividad que no es dañina y que voluntariamente no van a informar a las autoridades de su participación en ella”. Elenca o autor que as principais características desta espécie de “delito” seriam (a) a participação consensual das partes envolvidas no fato, (b) a ausência de demanda de proteção jurisdicional e (c) a não identificação de qualquer dano. As respostas consentidas às condutas incriminadas poderiam ser identificadas, na teoria do delito, a partir da causa de exclusão do injusto consentimento do ofendido (apud POSTALOFF, Los Procesos..., p. 50). 269 CERVINI, Los Procesos…, p. 157. 270 FERRAJOLI, Per un Programma di Diritto Penale Minimo, s/p. 271 FERRAJOLI, Proibizionismo..., p. 137. 272 KARAM, De Crimes, Penas e Fantasias, p. 125. 273 FERRAJOLI, Diritto…, p. 481. 274 COSTA, Análise…, p. 115. 275 CARVALHO, Antimanual de Criminologia, pp. 99-123. 276 BOBBIO, L’Età dei Diritti, pp. 45-65. 277 LÓPEZ CALERA, Yo, el Estado, pp. 64-65. 278 ESCOHOTADO, Prólogo, p. 7. 279 SZASZ, Our Right to Drugs, p. XXII. 280 “Mesmerized by the mortal dangers of fictitious new diseases such as ‘chemical dependency’ and ‘substance abuse’, we have become diverted from the political perils of our totalitarian-therapeutic effort as collective selfprotection” (SZASZ, Our…, p. XXII). 281 SZASZ, Our…, p. 10. 282 SZASZ, Our…, p. 6. 283 ESCOHOTADO, Historia de las Drogas, pp. 338-347. 284 SZASZ, Our…, p. 26. 285 SZASZ, Our…, p. 163. 286 “Jefferson would have found it difficult to believe that the nation he helped found has embraced a political system based on the self-contradictory premise that people are competent enough to elect their own representatives to govern them, but so deeply distrust their own competence with respect to managing drugs that they deputize their elected representatives to permit them (the people) to use the drugs the state deems good for them, and prohibit them from using the drugs it deems bad for them. Mises rebelled against, and

rejected, the legitimacy of the second half of this oxymoronic premise” (SZASZ, Our…, pp. 158-160). 287 Apud ESCOHOTADO, Aprendiendo a las Drogas, p. 7. 288 SZASZ, Libertad Fatal, p. 211. No mesmo sentido, SZASZ, The Medicalization of Everyday Life, pp. 90-93, e SZASZ, Our…, pp. 207-212. 289 Neste sentido, Union Pacific Railway Co. v. Bostford, 141 U. S. 250, 251 (1891); Olmstead v. United States, 277 U. S. 438 (1928); Application of President and Directors of Georgetown College, 331 F. 2nd, 1010 (D.C. Circ. 1964); Thor v. Superior Court (Andrews), 855 P.2d 375 (Cal. 1993); In re Osborne (D. C. 1972) 294 A. 2d (SZASZ, Libertad…, pp. 209-214). 290 Thor vs. Superior Court (Andrews), 855 P.2d 375 (Cal. 1993), apud SZASZ, Libertad…, pp. 209-214. 291 “We do not blame the obesity of fat persons who sell them food, but we do blame the drug habits of addicts on the people who sell them drugs” (SZASZ, Our..., p. 12). 292 Conforme será demonstrado, ao menos no que diz respeito ao tratamento do usuário, a proposta delineada por Szasz aproxima-se das políticas dos países europeus que na última década descriminalizaram o uso de drogas para consumo pessoal. Na Espanha, p. ex., a restrição ao consumo atinge apenas ambientes públicos, fato que constitui infração administrativa. Com relação ao tema trabalhado pelo autor em destaque, SZASZ, Our..., p. 162. 293 “I disagree with both the drug criminalizers and drug legalizers: with the former, because I believe that criminal Law ought to be used to protect us from others, not from ourselves; with that latter, because I believe that behavior, even if it is actually or potentially injurious or self-injurious, it is not disease, and that no behavior should be regulated by sanction called ‘treatment’” (SZASZ, Our…, p. 18). No mesmo sentido, ESCOHOTADO, Prologo, pp. 11-14. 294 Neste sentido, SZASZ, Our…, pp. 158-164. 295 AEBI & KILLIAS, La Prescripción…, p. 1. 296 WEIGERT, Uso..., p. 94. 297 Os estudos foram realizados a partir da entrada em vigor da Lei 162/90, que prevê sanções exclusivamente administrativas para o uso de drogas ilícitas (MANCONI, Legalizzare la Droga, p. 203). 298 MANCONI (org.), Legalizzare..., p. 206. 299 MANCONI (org.), Legalizzare..., p. 206. 300 MANCONI (org.), Legalizzare..., p. 203. 301 KARAM, De Crimes..., p. 65. 302 KARAM, De Crimes..., p. 64.

303 Neste sentido, conferir WEIGERT, Uso..., p. 93. 304 RILEY & O’HARE, apud WEIGERT, Uso..., p. 95. 305 O relato histórico e as condições de adesão aos programas foram realizados com base nos textos de KILLIAS & AEBI, The Impact..., pp. 83-85; KILLIAS, AEBI & RIBEAUD, Effects..., pp. 433-438; KILLIAS, AEBI & RIBEAUD, Learning..., pp. 243-245; AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción..., p. 713-716; AEBI & KILLIAS, La Prescripcion..., pp. 1-4; EISNER & KILLIAS, Switzerland, pp. 283-284. 306 AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción..., p. 714. 307 AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción..., p. 714. 308 AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción..., p. 715. 309 KILLIAS & AEBI, The Impact..., p. 85. 310 KILLIAS, AEBI & RIBEAUD, Learning..., p. 243; KILLIAS & AEBI, The Impact..., pp. 85-86. 311 AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción..., p. 715. 312 KILLIAS & AEBI, The Impact..., p. 87. 313 EISNER & KILLIAS, Switzerland, p. 283. 314 Neste sentido, AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción..., pp. 718-728; AEBI & KILLIAS, La Prescripcion..., pp. 2-4. 315 KILLIAS, AEBI & RIBEAUD, Effects..., pp. 433-438. 316 Segundo estudos realizados pelo Addiction Research Institute e pelo Institute for Social Preventive Medicine da Universidade de Zurique, “the results suggest that prescribed heroin maintenance provides a treatment context that may help reduce consumption of other illicit drugs such as cocaine” (BLÄTER et. al., Decreasing Intravenous Cocaine Use in Opiate Users with Prescribe Heroin, p. 24). Segundo os dados apresentados pelos pesquisadores, “we were able to show evidence of a highly significant reduction of intravenous cocaine use in patients in a comprehensive treatment programme including the prescription of heroin. In this special setting there was a decrease in associated behaviour like prostitution, criminality, contact with the drug scene, and illicit heroin use” (BLÄTER et al., Decreasing…, pp. 30-31). 317 “Thus, the program had three effects on the drug market: (a) it substantially reduced the consumption among the heaviest users, and this reduction an demand affected the viability of the market; (b) it reduced levels of other criminal activity associated with the market; (c) by removing local addicts and dealers, Swiss casual users found it difficult to make contact with sellers” (KILLIAS & AEBI, The Impact..., p. 96). 318 AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción..., p. 727.

319 AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción..., p. 728. 320 KILLIAS, AEBI & RIBEAUD, Learning..., p. 245; EISNER & KILLIAS, Switzerland, p. 283. 321 “As estimativas da prevalência do consumo problemático de opiáceos a nível nacional no período de 2002-2006 variam aproximadamente entre um e seis casos por 1.000 habitantes dos 15 aos 64 anos; estima-se que a prevalência global do consumo problemático de droga varia entre um e dez casos por 1.000 habitantes (...). É possível calcular, a partir dos relativamente poucos dados disponíveis, uma prevalência média estimada do consumo problemático de opiáceos de quatro a cinco casos por 1.000 habitantes entre os 15 e os 64 anos. Supondo que este valor reflete a União Europeia no seu conjunto, conclui-se que havia cerca de 1,5 milhões (1,3 a 1,7 milhões) de consumidores problemáticos de opiáceos na UE e na Noruega em 2006” (EMCDDA, 2008 Annual Report: The State of the Drugs Problem in Europe). 322 Centre for Addictions Research of British Columbia, University of Victoria, Victoria (Canada); Centre for Addiction and Mental Health, Toronto (Canada); British Columbia Centre for Excellence in HIV/AIDS, St. Pauls Hospital, University of British Columbia, Vancouver (Canada); Andalusian School of Public Health, Granada (Espanha); Central Committee on the Treatment of Heroin Addicts (CCBH), University Medical Centre, Utrecht (Holanda); Addiction Research Centre, Department of Psychiatry, University of Amsterdam, Amsterdam (Holanda); Center for Interdisciplinary Addiction Research, University Medical Center, Eppendorf (Alemanha); Research Institute on Public Health and Addictions, University of Zurich (Suíça); National Addiction Centre, Institute of Psychiatry, London (Reino Unido); e NHS Foundation Trust, London (Reino Unido). 323 LÖBMANN & VERTHEIN, Explaining the Effectiveness of Heroin-Assisted Treatment on Crime Reductions, p. 91-95. 324 Aebi, Killias e Ribeaud afirmam que a base teórica das políticas de redução de danos estaria atrelada às teorias criminológicas que destacam o rol de oportunidades na explicação do delito, sendo os objetivos desta linha de pensamento reduzir as ocasiões que se apresentam como favoráveis à prática do delito (AEBI, KILLIAS & RIBEAUD, La Prescripción..., p. 717). 325 BECKER, Outsiders, p. 189. 326 LÖBMANN & VERTHEIN, Explaining…, p. 84. 327 RIBEIRO, Redução de Danos, p. 3. 328 SCHECAIRA, Criminologia, p. 62. 329 Sobre o conceito de Constituição Penal, conferir CARVALHO, Canotilho e a Constituição Dirigente, pp. 69-74; CARVALHO, Pena e Garantias, pp.162-164; e FELDENS, Constituição Penal, pp. 69-154. Sobre o conteúdo

incriminador advindo da Constituição, conferir LUISI, Princípios Constitucionais Penais, pp. 41-43. 330 Importante leitura sobre os comandos constitucionais criminalizadores e aguda crítica à desproporcionalidade dos critérios de definição dos hard e soft crimes, conferir em STRECK, O Senso Comum Teórico e a Violência Contra a Mulher, pp.121-146; STRECK, A Inconstitucionalidade (Parcial sem Redução de Texto) da Lei dos Juizados Especiais Criminais Federais, pp. 169-202; e STRECK & COPETTI, O Direito Penal e os Influxos Legislativos PósConstituição de 1988, pp. 255-296. 331 Sobre as críticas à utilização da pena como critério de definição dos crimes de menor potencial ofensivo, conferir CARVALHO, Cinco Teses para Entender a Desjudicialização Material do Processo Penal Brasileiro, pp. 133-150, e CARVALHO & CAMPOS, Violência Doméstica e Juizados Especiais Criminais, pp. 53-63. 332 ZAFFARONI, Política Criminal Latinoamericana, p. 147. 333 “Para os fins desta Lei serão consideradas substâncias entorpecentes ou capazes de determinar dependência física ou psíquica aquelas que assim forem especificadas em lei ou relacionadas pelo Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia, do Ministério da Saúde” (art. 36, Lei 6.368/76). 334 SANTOS, Direito Penal, p. 52. 335 Importante discussão derivada é a que se refere à sucessão do dispositivo complementar no tempo e os seus efeitos em matéria penal. Entende-se, com Cirino dos Santos, que a questão deve ser colocada da seguinte maneira: “Se o tipo penal não existe sem o complemento administrativo, e o Poder Legislativo autoriza expressamente (pela natureza do tipo penal), o Poder Executivo a complementar a lei penal, então o complemento é elemento do tipo objetivo da conduta proibida, e, na hipótese mais favorável, é retroativo” (SANTOS, Direito..., p. 52). Em 7 de dezembro de 2000, a Anvisa publicou a Resolução 104/2000 e excluiu o cloreto de etila da relação das substâncias de uso proibido no Brasil (Portaria SVS/MS 334/98). No entanto, uma semana depois, em 15 de dezembro, a substância foi reintroduzida na lista por nova portaria. O Supremo Tribunal Federal reconheceu, no caso, a abolitio criminis, em caso julgado em 2001 (HC 80.752-5/SP, rel. Min. Marco Aurélio de Mello, j. 23.02.01). Em maio de 2015, o Supremo reforçou o entendimento: HC 120.026/SP, rel. Min. Celso de Mello, j. 29.05.15. 336 LUISI, Os Princípios..., p. 17. 337 BATISTA, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, pp. 73-74.

338 Sobre a (in)constitucionalidade das leis penais em branco, conferir SCHMIDT, O Princípio da Legalidade Penal no Estado Democrático de Direito, pp. 156-160; QUEIROZ, Direito Penal, pp. 29-32; e BIZZOTTO E RODRIGUES, Nova Lei de Drogas, pp. 5-6. 339 ROCHA, Tóxicos, p. 150 (destaques originais). 340 Na Lei 6.368/76, havia correlação de apenas três modalidades de conduta (adquirir, trazer consigo ou guardar substância entorpecente), em face de o tipo do art. 16 definir como crime “adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização legal ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. 341 Lembra Cezar Bitencourt que existem elementos normativos especiais da ilicitude, normalmente representados por expressões como “indevidamente”, “injustamente”, “sem justa causa”, “sem licença da autoridade” entre outros, que, “embora integrem a descrição do crime, referem-se à ilicitude e, assim sendo, constituem elementos sui generis do fato típico, na medida em que são, ao mesmo tempo, caracterizadores da ilicitude” (Erro de Tipo e Erro de Proibição, p. 95). A polêmica quanto à possibilidade de classificação desta modalidade de erro como de tipo ou de proibição instaurou-se a partir do posicionamento de Welzel, visto entender que a expressa referência à antijuridicidade compreende elementos do dever jurídico, devendo ser tratado como erro de proibição. A corrente, porém, é minoritária, sobretudo a partir da concepção cerrada da tipicidade e da ideia do tipo como garantia. Assim, na esteira de Muñoz Conde, Bitencourt – “em síntese, como o dolo deve abranger todos os elementos da figura típica, e se as características especiais do dever jurídico forem um elemento determinante da tipicidade concreta, a nosso juízo, o erro deve ser tratado como erro de tipo” (Erro..., p. 97) – e Luiz Flávio Gomes – “quando o tipo possui requisitos normativos (coisa ‘alheia’, mulher ‘honesta’ etc.) ou requisitos que fazem expressa referência à antijuridicidade da conduta (‘indevidamente’, ‘sem justa causa’, ‘sem licença’) fica difícil saber se estamos diante de um erro de tipo ou um erro de proibição (...). A resposta não pode ser outra senão a de que estamos diante de um erro de tipo” (Erro de Tipo e Erro de Proibição, p. 137) – sustentam que a análise do erro de tipo, no caso de referência a estes elementos sui generis da ilicitude, deve prevalecer à do erro de proibição. Desta forma, em caso de o agente realizar a conduta, desconhecendo, porém, ser a substância entorpecente ou capaz de causar dependência física ou psíquica, inegável a presença do erro. 342 GRECO FILHO, Tóxicos, p. 119. 343 JESUS, Lei Antitóxicos, p. 105.

344 Sobre a ampla tendência jurisprudencial neste sentido, conferir FRANCO & STOCCO, Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial, pp. 3131-3132. 345 Apud FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3150. 346 Prossegue Delmanto, sustentando que “punir-se, com as mesmas graves penas tanto o traficante profissional que ganha a vida às custas daquele comércio, como o usuário que cede ou passa a outro, ocasionalmente, parte do tóxico que adquiriu não seria justo. Observa-se que faltou no elenco das punições da Lei de Tóxicos, uma capitulação intermediária entre o tráfico do art. 12 e o porte para uso do art. 16. Como é natural, a falha levou a jurisprudência à criação de forte corrente no sentido de que a cessão ou divisão esporádica de tóxicos entre amigos ou companheiros, enquadra-se na punição prevista pelo art. 16 (para uso próprio), não configurando o crime mais grave do art. 12” (Tóxicos, p. 18). 347 De forma exemplificativa, algumas decisões que refletiam a jurisprudência consolidada da Lei 6.368/76: “Desimporta se o agente não chegou a vender o tóxico, pois ‘trazer consigo’ já é delito consumado, segundo uma das normas múltiplas que contém o art. 12 da lei respectiva” (TJRS, AC 68.305.178-3, Rel. Milton dos Santos Martins, RJTJRS 107/59 in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3141). “Incide nas sanções do art. 12 da Lei 6.368/76, não só quem vende, expõe à venda, oferece ou fornece, ainda que gratuitamente, mas também quem traz consigo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica” (TJSC, AC Rel. Tycho Brahe, JC 22/543 in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3141). No mesmo sentido, TAPR, AP 88.942-0, Rel. Nério Ferreira, j. 26.03.98, RT 756/671, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3141; TJSP, AC 72, Rel. Jarbas Mazzoni, RT 651/263, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3138; TJBA, HC 293/81, Rel. Oliveira e Souza, BF 18/173, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3142; TACrSP, AC174.809, Rel. Geraldo Pinheiro, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3145. 348 Previa o caput do art. 281, redação dada pela Lei 5.726/71: “Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma, a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 1 (um) a 6 (seis) anos e multa, de 50 (cinquenta) a 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País”. O § 1º, inciso III, estabelecia penas idênticas

para quem, indevidamente, “traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. 349 “Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, até cinco anos”. 350 MUÑOZ CONDE, Derecho Penal: Parte Especial, p. 664. 351 MUÑOZ CONDE, Derecho..., p. 664. 352 TJMG, AC 13.891, Rel. Iracy Jardim, RF 275/305, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3147. 353 STJ, REsp 115.660, Rel. Vicente Leal, j. 05.08.97, JSTJ e TRF 101/368, RJ 241/106 e RT 747/637, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3146-3147. 354 TAVARES, Teoria do Injusto Penal, p. 272. 355 Lenio Streck, ao discutir o problema de enquadramento do homicídio de trânsito nas categorias de dolo eventual ou culpa consciente, indaga: “Como prescindir da vontade se ela é a principal característica do agir doloso?” (Tribunal do Júri, p. 156). 356 Registre-se que a jurisprudência historicamente tem sido majoritária no sentido de que apesar da Lei dos Crimes Hediondos impedir a liberdade provisória, a prisão não é obrigatória (p. ex., STJ, 5ª Turma, HC 27.102, Rel. Gilson Dipp, j. 27.05.03, DJU 04.08.03, p. 346, e STJ, 5ª Turma, REsp 410.744, Rel. José Arnaldo da Fonseca, j. 11.03.03, DJU 28.09.03, p. 315, in FRANCO, Crimes..., p. 452). 357 “Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.” 358 SCHMIDT, Crítica ao “Jura Novit Curia”, p. 9. 359 RANGEL, Direito Processual Penal, p. 87. 360 LOPES JR., Introdução Crítica ao Processo Penal, pp. 144-145. 361 Ullmann-Margalit afirma que “las presunciones legales fuerzan a tomar algo como verdadero bajo determinados supuestos; en ocasiones, el derecho interviene y establece reglas en forma de presunciones en virtud de las cuales se ‘infere’ un hecho controvertido, a partir de ciertos hechos básicos ya establecidos, mientras no se aporten elementos de prueba suficientes en sentido contrario. De este modo, las presunciones indican anticipadamente

una respuesta posible a la cuestión controvertida, a los efectos de producir una decisión” (apud Mendonça, Presunciones, p. 83). 362 Mendonça, Presunciones, p. 89. 363 Bizzotto & Rodrigues, Tóxicos, p. 12. 364 “Los que ejecuten actos de cultivo, elaboración o tráfico, o de otro modo promuevan, favorezcan o faciliten el consumo ilegal de drogas tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotrópicas, o las posean con aquellos fines, serán castigados con las penas de prisión de tres a nueve años y multa del tanto al triple del valor de la droga objeto del delito si se tratare de sustancias o productos que causen grave daño a la salud, y de prisión de uno a tres años y multa del tanto al doble en los demás casos.” 365 “Art. 369. Se impondrán las penas superiores en grado a las señaladas en el artículo anterior y multa del tanto al cuádruplo cuando concurran alguna de las siguientes circunstancias: (...) 6º. Fuere de notoria importancia la cantidad de las citadas sustancias objeto de las conductas a que se refiere el artículo anterior.” 366 “Art. 370. Se impondrá la pena superior en uno o dos grados a la señalada en el artículo 368 cuando: (...) 3º. Las conductas descritas en el artículo 368 fuesen de extrema gravedad. Se consideran de extrema gravedad los casos en que la cantidad de las sustancias a que se refiere el artículo 368 excediere notablemente de la considerada como de notoria importancia, o se hayan utilizado buques o aeronaves como medio de transporte específico, o se hayan llevado a cabo las conductas indicadas simulando operaciones de comercio internacional entre empresas, o se trate de redes internacionales dedicadas a este tipo de actividades, o cuando concurrieren tres o más de las circunstancias previstas en el artículo 369.1.” 367 SORIANO SORIANO, La Cualificación de la Notória Importancia en los Delitos de Tráfico de Drogas, p. 206. 368 SORIANO SORIANO, La Cualificación..., pp. 206-207. 369 Sobre a matéria do consumo compartilhado, estudo anterior em CARVALHO, WEIGERT & LIMA, A Configuração da Tipicidade na Nova Lei de Drogas e as Hipóteses de Consumo Compartilhado, pp. 703-716. No mesmo sentido, WEIGERT, Uso de Drogas e Sistema Penal, pp. 74-78. 370 CALDERÓN SUSÍN, La Posesión de Drogas para Consumir y para Traficar: el Consumo Compartido, p. 41. 371 CALDERÓN SUSÍN, La Posesión..., p. 42. 372 Tribunal Supremo, Sala de lo Penal, Madrid, Recurso de Casación 184/2001, Resolución 1585/2002, fecha de resolución 30.09.2002. 373 A decisão menciona, contudo, o reconhecimento pelos Tribunais da atipicidade em casos de fornecimento altruísta de pequena quantidade de

droga para auxílio de dependentes em processo terapêutico ou para impedir os riscos da síndrome de abstinência. 374 Tribunal Supremo. Sala de lo Penal, Madrid, Recurso de Casación 81/2002, Resolución 237/2003, fecha de resolución 17.02.03. 375 “En relación a la condición de adictos, en la medida que la razón de ser de tal requisito es evitar la captación o integración en el grupo de quien no es consumidor, debe ser interpretado en el sentido de que las personas integrantes del grupo respondan a un patrón de consumo que por lo que se refiere a los supuestos de consumo de drogas sintéticas, el MDMA es un derivado sintético de la anfetamina, el patrón de consumo más habitual responde al consumidor de fin de semana, generalmente en el marco de fiestas o celebraciones de amigos. Ello supone una matización o modulación importante de la condición de ‘adicto’ que no debe interpretarse como drogadicto stricto sensu, sino como un consumidor de fin de semana como ya se ha dicho” (Tribunal Supremo, Sala de lo Penal, Madrid, Recurso de Casación 81/2002, Resolución 237/2003, fecha de resolución 17.02.03). 376 Tribunal Supremo, Sala de lo Penal, Madrid, Recurso de Casación 81/2002, Resolución 237/2003, fecha de resolución 17.02.03. 377 CALDERÓN SUSÍN, La Posesión..., p. 42. 378 CALDERÓN SUSÍN, La Posesión..., p. 43. 379 FRANCO, Crimes..., p. 145. 380 “Importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas.“ 381 “Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas (...).” 382 “Semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas.” 383 “Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga (...).” 384 “Utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.” 385 “Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem.”

386 Segundo Alberto Silva Franco, “nem todos os comportamentos descritos nos referidos tipos encontram enquadramento no conceito representado pelo substantivo tráfico, adjetivado pelo vocábulo ilícito. A área de significado da palavra tráfico está vinculada às ideias de comércio, mercancia, trato mercantil, negócio e ainda de negócio fraudulento, indecoroso. Uso indevido ou o mero uso próprio não se equivalem à ideia-chave de tráfico ilícito e, ausente tal equipolência, não há cuidar, em relação às diferentes modalidades de uso (semear para uso próprio, induzir, instigar ou auxiliar alguém no uso de entorpecentes, utilizar local para uso indevido, contribuir para incentivar ou difundir o uso indevido etc.), da aplicação da Lei 8.072/90. A Lei 8.072/90 quis nitidamente distinguir as hipóteses de tráfico em relação aos casos de uso, embora alguns desses estejam equiparados, em nível de Lei 6.368/76, no que se refere ao tratamento punitivo. As restrições de caráter penal, processual penal ou de execução penal, estatuídas na Lei 8.072/90, são totalmente indiferentes às formas de uso” (Crimes..., p. 145). 387 “Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.” 388 BITENCOURT, Tratado de Direito Penal, p. 495. 389 MUÑOZ CONDE, Derecho..., p. 664. 390 “Possuir ou guardar maquinismo, aparelho ou objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de substância entorpecente (...).” 391 GRECO FILHO, Tóxicos, p. 107. 392 STRECK & OLIVEIRA, (Mais) Um Passo Atrás no Direito Processual Brasileiro Atual, p. 4. 393 KARAM, A Lei 11.343/06 e os Repetidos Danos do Proibicionismo, p. 6. 394 MUÑOZ CONDE, Derecho..., p. 665. 395 ZAFFARONI, Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina, p. 27. 396 Importante crítica histórica à punição dos atos preparatórios e definição dos requisitos e punibilidade da tentativa no direito penal contemporâneo, conferir BRANDÃO, Teoria Jurídica do Crime, pp. 215-224. 397 PRADO, Crítica ao Controle Penal das Drogas Ilícitas, p. 89. 398 PRADO, Crítica..., p. 89. 399 Franco e Stocco referiam que “na modalidade de importar entenda-se a irregular entrada de substância entorpecente ou que determine dependência

física ou psíquica, no território nacional. Na forma exportar, a irregular saída para o estrangeiro. A ação pode desenvolver-se por qualquer meio: via terrestre, marítima ou aérea” (Leis..., p. 3133). Greco Filho sustentava que “‘importar’ é fazer entrar no território nacional. Consuma-se o delito transpostas as fronteiras do País ou ingressando o entorpecente nos limites do mar territorial e respectivos espaços aéreos (...). ‘Exportar’ é ato inverso, isto é, fazer sair dos limites territoriais brasileiros” (Tóxicos, pp. 86-87). Em sentido idêntico a ampla jurisprudência dos Tribunais (FRANCO & STOCCO, Leis..., pp. 3133-3134). 400 Segundo o entendimento dos Tribunais em relação aos limites entre consumação e tentativa do tráfico internacional durante a vigência da antiga lei, “ainda que o dispositivo do art. 12 da Lei 6.368 descreva um crime de ação múltipla, em verdade o fato mencionado na peça de acusação é o correspondente ao da ação de importar. O ato de importar envolve normalmente a transposição de espaços físico-territoriais e jurídico-fiscais definidos, de modo a que somente após certo momento, v. gratia, o cruzamento da linha de fronteira e da zona fiscal primária, se verifique a internação em território brasileiro, ou a efetivação da importação. O réu foi preso ainda na aduana, praticamente sobre a linha de fronteira; em razão disso, não houve internação nem importação mas tentativa de importação, estando, nesse ponto, correto o parecer do MPF, e a pena deve ser aplicada com atenção desse fato” (TRF da 4ª Região, AC 92.04.10114-8, Rel. Volkmer de Castilho, RTRF4 12/363, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3133). De igual forma, TRF da 4ª Região, AC. 95.04.09512-7, Rel. Dória Furquim, RTRF4 22/263. 401 STJ, REsp 162.009, Rel. Vicente Leal, j. 18.05.2000, JSTJ e TRF 133/381. 402 HOUAISS, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, p. 1289. 403 Prossegue Paulo Queiroz, sustentando que “não se diga que a causa de aumento do art. 18, III, diz respeito a uma ‘associação eventual’ e que o tipo do art. 14 refere-se a uma ‘associação permanente’, como se ao exegeta fosse dado realizar tal tipo de distinção, afinal as mais comezinhas regras de interpretação defendem que não se pode interpretar extensivamente normas restritivas de direito, sendo o direito penal a mais grave delas. Ora, não pode o intérprete limitar onde a lei não o fez, caso contrário estará ele usurpando função típica do Poder Legislativo, além de relativizar o princípio da legalidade em prejuízo do réu, na medida em que cria situações não previstas na lei” (ApCr 2005.37.00.006413-9/MA, rel. Des. Federal Hilton Queiroz (4ª Turma), TRF da 1ª Região, j. 29.09.06).

404 “Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa.” 405 “As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se: (...)VII – o agente financiar ou custear a prática do crime.” 406 “É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (art. 45, caput, Lei 11.343/06). 407 “As penas podem ser reduzidas de um terço a dois terços se, por força das circunstâncias previstas no art. 45 desta Lei, o agente não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (art. 46, Lei 11.343/06). 408 “Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” 409 “Art. 28. (...) § 1º É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou de força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. § 2º A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” 410 BITENCOURT, Tratado..., p. 700. 411 “Desnecessária a realização de exame especializado para verificação de dependência na hipótese de tráfico, porque só seria imprescindível no caso de uso próprio de entorpecentes” (TJPR, RT, 610/369, in ANDREUCCI, Legislação Penal Especial, p. 35). 412 TJRS, AC 687011833, Rel. Marco Aurélio Cardoso Moreira de Oliveira, RJTJRS 124/108, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3259).

413 STF, HC 70.898/SP, 2ª Turma, Rel. Francisco Rezek, j. 06.06.95, DJ 22.09.95, p. 30590. No mesmo sentido: STF, HC 73.117/SP, 1ª Turma, Rel. Octávio Gallotti, DJ 01.07.96, p. 23861; STJ, REsp 52.209-9, 6ª Turma, Rel. Anselmo Santiago, j. 18.12.95, DJU 01.04.96, p. 9947. 414 “Quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado.” 415 Dispõe o parágrafo que “se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face da condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime”. Sobre a relativização do instituto da reincidência, conferir CARVALHO, Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro, pp. 391-403. 416 TJRS, ApCr 6990118297, Câmara de Férias Criminal, rel. Des. Sylvio Baptista Neto, j. 26.05.99 – grifou-se. No mesmo sentido: “As controvertidas disposições da Lei dos Crimes Hediondos, editada para conter a criminalidade violenta crescente, por certo deverão buscar atingir seu objetivo, contudo, não se lhe conferem o condão de obstaculizar a Justiça. Nessa linha de entendimento, tendo presente a novel legislação, Lei 9.714/98, cumprindo tendências inovadoras das penas alternativas à prisão, introduziu significativas disposições (...). A única ressalva da Lei se refere ao crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa (...)” (TRF da 4ª Região, HC 1999.04.01.018587-9/PR, rel. Desa. Tânia Escobar, DJU 13.04.99, p. 327). 417 STF, 1ª Turma, HC 84.928/MG, rel. Min. Cezar Peluso, j. 27.09.05, v.u., DJU 11.11.05. 418 STF, Tribunal Pleno, HC 97.256/RS, rel. Min. Ayres Britto, j. 01.09.10. 419 Apud Lyra, Comentários ao Código de Processo Penal, p. 92. 420 AZEVEDO, Crimes Hediondos e Regime Carcerário Único, p. 589. 421 “Não é preciso esforço para perceber que a Lei dos Crimes Hediondos desatende ao princípio da proibição do excesso, violando direitos fundamentais sem autorização constitucional, isso tudo sem qualquer benefício à defesa da ordem pública ou segurança social” (AZEVEDO, Crimes..., p. 591). 422 HUNGRIA, Comentários ao Código Penal, p. 232. 423 “Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça.” 424 HUNGRIA, Comentários..., p. 237.

425 “Art. 287. (...) III – fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: pena – detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, ou multa.” 426 Em razão do conflito aparente entre as normas do Código Penal e a da antiga Lei de Drogas, aplicava-se o estatuto temático em decorrência do princípio da especialidade. 427 WEIGERT, Uso de Drogas e Sistema Penal: alternativas para a redução de danos na Espanha e no Brasil, pp. 93-96. 428 Informações podem ser obtidas nos sítios do movimento Global Marihuana March (http://www.globalmarijuanamarch.org) ou, em sua versão nacional, Marcha da Maconha (www.marchadamaconha.org). 429 MARCHA DA MACONHA, Apresentação, acesso 05.07.09. 430 MARCHA DA MACONHA, Carta de Princípios da Marcha da Maconha no Brasil, acesso 05.07.09. 431 SILVA FRANCO & STOCCO, Código..., p. 1348. 432 NORONHA, Direito..., p. 85. 433 No referido precedente, o Ministério Público Militar havia denunciado o autor do livro Feridas da Ditadura Militar como incurso no art. 219 do CPM – “propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das forças armadas ou a confiança que estas merecem do público”. O relator, Ministro Marco Aurélio, no voto proferido no HC 83.125, inicia afirmando que “não há Estado Democrático de Direito sem observância da liberdade de expressão”, epigrafando a decisão com a ementa citada, trancando a ação penal movida contra o paciente (HC 83.125, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 07.11.03). 434 STJ, Tribunal Pleno, ADPF 187/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 15.06.11. 435 TJDF, 1ª Turma Criminal, HC 2002002008413-2, rel. Des. Pedro Aurélio Rosa de Farias, j. 04.12.02. 436 STJ, 5ª Turma, HC 63.966/RJ, rel. Min. Gilson Dipp, j. 24.04.07. 437 MV BILL & ATHAIDE, Falcão, Mulheres e o Tráfico, pp. 260-261. 438 KARAM, De Crimes, Penas e Fantasias, p. 126. 439 Na história da incriminação do uso de drogas no Brasil a jurisprudência foi fértil em operar a inversão do discurso de tutela dos direitos individuais pela proteção ao interesse público. Veja-se, exemplificativamente, a afirmação da constitucionalidade do art. 16 da Lei 6.368/76 em face da tutela da saúde pública: “Violação de direito à privacidade. Posse de entorpecentes. Descaracterização pretendida por ser o art. 16 da Lei 6.368/76 inconstitucional em face do art. 5°, X, da CF, que protege a privacidade do indivíduo. Inadmissibilidade. Direito Constitucional que não pode ser oponível

ao interesse coletivo de proteger a saúde pública, bem jurídico tutelado pelo referido diploma. Posse de substância entorpecente, que, embora para uso próprio, representa perigo à coletividade. Condenação mantida. Não pode prosperar a alegação de que a punição do delito de posse de substância entorpecente para uso próprio (art. 16 da Lei 6.368/76) viola o direito constitucional à intimidade (art. 5°, X, da CF) por não acarretar o fato lesão ou perigo para a saúde pública. O direito à intimidade não pode ser oponível ao interesse coletivo em proteger a saúde pública, que é o bem jurídico tutelado pela norma em debate. A posse da substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, ainda que para uso próprio, representa perigo para a saúde pública, que o legislador ordinário pode apenar sem ferir o right of privacy” (TJSP, AC, Rel. Dante Busana, RT 650/273 e RJTJSP 123/476, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3257). 440 ROSA, Direito Infracional, p. 217. 441 ZAFFARONI, Sistemas…, p. 27. 442 TJRS, Incidente de Inconstitucionalidade, AC 686062340, voto vencido do Des. Milton dos Santos Martins, RJTJRS 128/34, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3255. 443 TJRS, AC 687043661, voto vencido do Des. Milton dos Santos Martins, RJTJRS 127/99, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3255-6. 444 “Deste modo, cremos que ou o legislador proíbe a utilização de todos os tipos de estupefacientes que cientificamente comprovados prejudicam de maneira mais ou menos uniforme a saúde, ou permite o uso e o consumo de todos aqueles que, de uma maneira ou outra, provocam em quem os utiliza situações em certo grau equivalentes. O que não pode ocorrer, desde uma perspectiva penal, é uma diversidade de tratamento que compromete seriamente esse princípio constitucional [princípio da igualdade perante a lei]” (SANTOS, Tóxicos, p. 123-124). 445 Neste sentido a Exposição de Motivos do Projeto de Lei 5.824/01, apresentado pelo Deputado Marcos Rolim, que alterava o dispositivo do art. 16 da Lei 6.368/76, criando cláusula de barreira à criminalização do porte para uso pessoal: “(...) há que se perguntar se é moralmente aceitável que o Estado defina padrões de comportamento e/ou consumo circunscritos à esfera privada da existência. A Lei penal, por óbvio, ao tipificar condutas, procura preservar os direitos da cidadania e resguardar a paz pública. Como, então, sustentar como típica uma conduta que não viola qualquer direito, nem ameaça a paz pública? Tal pergunta, sustentada historicamente pela melhor tradição liberal, não encerra tão somente uma dúvida procedente. Com ela, procura-se evidenciar que a liberdade dos indivíduos estará sempre ameaçada se permitirmos que o Estado passe a regrar condutas cuja prática,

na pior das hipóteses, só pode agregar efeitos danosos aos próprios autores. A concepção moderna de democracia não pode conviver com a pretensão tutelar do Estado sobre a cidadania, ainda que tal pretensão envolva a tutela da saúde dos indivíduos. Foi por não aceitar esse princípio que o governo Taliban no Afeganistão, por exemplo, organizou o ‘Ministério para a Promoção da Virtude e Combate ao Vício’, de triste memória. Por esse princípio, deveríamos entender que o consumo de drogas, de qualquer droga, constitui ato irrelevante para o direito penal. As preocupações com o consumo de drogas deveriam estar circunscritas ao debate pertinente na área de saúde pública e, portanto, voltar-se para a prevenção e o tratamento da dependência química. Nesse caso, os esforços públicos deveriam considerar, inclusive, a prioridade para a prevenção e o tratamento do alcoolismo e do tabagismo” (Projeto de Lei 5.824/01, Exposição de Motivos). 446 TJRS, 5ª Câmara Criminal, ApCr 70004802740, Rel. Amilton Bueno de Carvalho, j. 07.05.2003. No mesmo sentido: “(...) II. Porte de substância entorpecente para uso próprio (conduta ‘trazer consigo’). Art. 16 da Lei 6.368/76. Violação dos princípios da dignidade, humanidade e ofensividade. Absolvição (art. 386, iii, do CPP (...)” (TJRS, 6ª Câmara Criminal, ApCr 70010579944, Rel. Marco Antônio Bandeira Scapini, j. 03.03.05). “I. Porte de substância entorpecente para uso próprio (conduta ‘guardar’). cannabis sativa apreendida na residência do acusado. Art. 16 da Lei 6.368/76. Violação dos princípios da dignidade, humanidade e ofensividade. Absolvição mantida (art. 386, III, do CPP)” (TJRS, 6ª Câmara Criminal, ApCr 70008952129, Rel. Marco Antônio Bandeira Scapini, j. 12.08.04). 447 TJSP, 6ª Câmara Criminal, ApCr 01113563.3/0-0000-000, Rel. José Henrique Rodrigues Torres, j. 31.03.08. 448 TORON, A Proteção Constitucional da Intimidade e o Art. 16 da Lei de Tóxicos, pp. 38-39. 449 A teoria da insignificância, elaborada por Roxin em 1964, “permite en la mayoría de los tipos excluir desde un princípio de daños de poca importancia: maltrato no es cualquiera tipo de daño de la integridad corporal, sino solamente uno relevante; analogamente desonesto en el sentido del Código penal es solo la acción sexual de una cierta importancia, injuriosa en una forma delictiva es solo la lesión grave a la pretensión social de respeto” (apud MACHADO, Uma Visão Material do Tipo, pp. 100-101). 450 MACHADO, Uma Visão..., p. 89. 451 FRAGOSO, Lições de Direito Penal, p. 144. 452 Hassemer. Fundamentos del Derecho Penal, p. 261.

453 Mañas, O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, p. 53. 454 Zaffaroni, com sua peculiar sensibilidade, propõe significativa alternativa à definição de “bem jurídico”, de modo a sustentar dogmática penal antropologicamente fundada. Segundo o autor, “bien jurídico tutelado es la relación de disponibilidad de un individuo con un objeto, protegida por el Estado, que revela su interés mediante la tipificación penal de conductas que le afectan” (Manual de Derecho Penal, p. 389 – grifou-se). Assim, fundamental na caracterização do bem jurídico o poder de disponibilidade que o agente adquire em relação ao interesse. Exemplifica: “En realidade, si bien no es incorrecto decir que el honor es un bien jurídico, eso pasa de ser una abreviatura, porque el bien no es propriamente el honor, sino el derecho a disponer del proprio honor, como el bien juridico no es la propriedad, sino el derecho a disponer de los derechos patrimoniales” (Manual…, p. 389). Deste modo, “bienes juridicos son los derechos que tenemos a disponer de ciertos objetos” (ZAFFARONI, Derecho…, p. 390), devendo o direito sancionar quem impede outrem de dispor dos seus bens. Por outro lado, inviável a punição pela destruição de bem jurídico próprio, em face de a autolesão ser impunível (v.g., dano à própria saúde ou à própria propriedade). 455 O princípio desenvolvido por Roxin a partir do legado principiológico romano minima non curat praetor foi recepcionado pelo Supremo Tribunal Federal em 1988, em habeas corpus impetrado para trancamento de ação penal: “ACIDENTE DE TRÂNSITO. LESÃO CORPORAL. INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME NÃO CONFIGURADO. Se a lesão corporal (pequena esquimose) decorrente de acidente de trânsito é de absoluta insignificância, como resulta dos elementos dos autos – e outra prova não poderia fazer-se tempos depois – há de impedir-se que se instaure ação penal que a nada chegaria, inutilmente sobrecarregando-se as Varas Criminais, geralmente tão oneradas” (STF, 2ª Turma, RHC 66.869-1, rel. Min. Aldir Passarinho, j. 06.12.88). 456 STJ, 6ª Turma, REsp 154.840/PR, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 18.12.97, DJ 06.04.98, p. 175. 457 STJ, 6ª Turma, REsp 164.861, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 03.12.98, DJU 17.02.99, p. 171, in FRANCO & STOCCO, Leis..., p. 3231. 458 STF, HC 84.412, rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.11.2004. 459 Sobre o tema, conferir CARVALHO, WUNDERLICH, GARCIA & LOUREIRO, Os Critérios de Definição da Tipicidade Material e as Infrações de Menor Potencial Ofensivo, pp. 81-98.

460 “Não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis.” 461 Bitencourt, Tratado..., p. 837. 462 Neste sentido o § 6º do art. 28 prevê: “Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I – admoestação verbal; II – multa”. 463 BITENCOURT, Tratado..., p. 837. 464 Sobre o tema, queiroz, Direito..., p. 375. 465 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 397. 466 Neste sentido, conferir BUENO DE Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 61-70. 467 CHIES, Por uma Utopia do Possível, pp. 88-91. 468 STF, 1ª Turma, HC 85.911/MG, rel. Min. Marco Aurélio, j. 25.10.05, v.u., DJU 02.12.05. 469 Importante crítica à justificativa em PRADO, Sistema Acusatório, pp. 210-222. 470 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JUSTIÇA TERAPÊUTICA, Justiça Terapêutica, p. 1. 471 BATISTA, O Tribunal de Drogas e o Tigre de Papel, p. 113. 472 Silva et alii, Justiça Terapêutica, p. 1. 473 Silva et alii, Justiça..., p. 2. 474 Silva et alii, Justiça..., p. 4. 475 “Dessa forma, resumidamente pode-se afirmar que, sem embargo da adoção pelo Brasil de legislação específica a regular a submissão de infratores a tratamento compulsório, quando o delito praticado envolver o uso e consumo de substâncias que causem dependência, as boas técnicas de hermenêutica autorizam, desde logo, com base na legislação existente, a adoção do princípio do tratamento compulsório. Vale dizer, ainda, que as modernas técnicas psiquiátricas nos demonstram que, em se tratando de dependências de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, algum tratamento é melhor que nenhum tratamento e normalmente o primeiro tratamento pode ser compulsório, haja vista que estamos falando de afastar alguém de uma fonte de prazer. Isso porque é fato cientificamente comprovado que o processo de dependência passa pela satisfação que o consumo da droga causa no consumidor. O usuário de droga se torna dependente da sensação de prazer que a substância causa em seu organismo e por isso tem dificuldade em parar de usá-la, entrando no círculo vicioso da dependência, que pode ser

interrompido pela sua submissão a tratamento judicial compulsório” (SILVA, Justiça..., pp. 10-12). 476 “Assinala-se, também, a implantação em nosso País da Justiça Terapêutica, nos moldes das Cortes de Drogas Norte-Americanas. Esta prática entende que os adolescentes envolvidos em algum delito, e que também fazem uso de drogas, devem ser encaminhados pelo Juizado da Infância e Adolescência para tratamento das toxicomanias, mesmo sem haver motivação ou uma toxicomania em causa. Este encaminhamento é resultado de um acordo legal que visa a substituição da pena pelo tratamento” (OLIVEIRA, WOLFF, CONTE, HENN, “Passes” e Impasses: Adolescência – Droga – Lei, p. 4). 477 “Apesar de não haver consenso entre os operadores da lei sobre a prática da Justiça Terapêutica, de forma geral, o mais recorrente aponta para o fato de que é a droga a responsável pelo delito, tendo como consequência efeitos de desresponsabilização subjetiva. O fato de que a lei não faz distinção entre uso e dependência, e também, não distingue narcotraficante, traficante-usuário e traficante-dependente, determina que se instale a ideia de que todo o uso se caracteriza como dependência e todo tráfico deve ser enquadrado como crime hediondo sem progressão de regime, desconsiderando que o dependente, muitas vezes, faz pequenos tráficos para sustentar o próprio consumo. Este é um dos maiores problemas desta lei, pois estipula punição equivalente aos diferentes níveis de inserção no tráfico: do narcotraficante ao ‘aviãozinho’, este último refere-se ao menor na hierarquia da rede de tráfico, aquele que vende pequenas quantidades de droga” (OLIVEIRA, WOLFF, CONTE, HENN, “Passes”..., p. 4). 478 BATISTA, O Tribunal..., p. 113. 479 Conforme indica Daniela Sousa dos Santos, “reduzir a quantidade de usuários não é possível através da prisão, prestação de serviços à comunidade ou pagamento de multa, e sim por meio de tratamento, acompanhamento e prevenção. Entretanto, ainda que tais alternativas sejam impostas judicialmente (processo chamado de Justiça Terapêutica), ainda assim, não surtirão efeitos, uma vez que o sucesso destas medidas está condicionado ao arbítrio de quem receberá o tratamento. Logo, verifica-se que a imposição do tratamento, muitas vezes realizada de forma indireta (‘ou aceita o tratamento ou é preso’), está fadada ao fracasso, ao provável retorno ao uso e, por conseguinte, ao crime. A participação consciente do usuário é condição primeira na eficácia do tratamento, devendo o Estado munir-se de toda a estrutura e investir na efetiva recuperação dessas pessoas” (A Inconstitucionalidade do Art. 16 da Lei 6.368/76, p. 2).

480 OLIVEIRA, WOLFF, CONTE e HENN, ao avaliarem as dificuldades de escuta dos dependentes e dos usuários, elencam como obstáculos a lógica proibicionista e o ideal de abstinência – “entre os obstáculos à escuta dos toxicômanos nos serviços de saúde mental, elencou-se alguns aspectos como a ideologia repressiva da política de drogas e o imperativo da abstinência, por considerá-los centrais no seguinte impasse: escutar o que o toxicômano tem a dizer, para além do rótulo e da relação ao produto” (“Passes”..., p. 5). 481 BATISTA, O Tribunal..., p. 113. 482 BATISTA, O Tribunal..., p. 113. 483 ZAFFARONI, Sistemas Penales y Derechos Humanos en la América Latina, p. 257. 484 WEIGERT, O Discurso Psiquiátrico na Imposição e Execução das Medidas de Segurança, p. 608. 485 OLIVEIRA, WOLFF, CONTE, HENN, “Passes”..., p. 5. 486 OLIVEIRA, WOLFF, CONTE, HENN, “Passes”..., p. 5. 487 OLMO, Las Drogas…, p. 136. 488 Ensina Cassesse que “em essência, o processo de elaboração e promulgação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional baseou-se no trabalho da Comissão de Direito Internacional (CDI) a partir da década de 1940. A questão de um Tribunal Penal Internacional voltou à agenda da ONU por uma via inesperada, em 1989, após um hiato de 46 anos, seguindo uma sugestão de Trinidad y Tobago à Assembleia Geral, de que se instalasse um Tribunal Penal Internacional especializado para lidar com o problema do tráfico de drogas. Em resposta à incumbência da Assembleia Geral, gerada na sessão especial de 1989 sobre drogas, em 1990, a CDI finalizou um relatório que foi submetido à 45ª sessão da Assembleia. Embora não se tenha limitado à questão do tráfico de drogas, esse relatório foi recebido favoravelmente pela Assembleia Geral, que estimulou a CDI a dar continuidade a seu trabalho. A CDI produziu um texto abrangente em 1993, que foi modificado em 1994” (De Nuremberg a Roma, p. 12). 489 Kirsch & Robinson, A Construção do Acordo na Conferência de Roma, p. 2. 490 BARATTA, Fundamentos Ideológicos de la Actual Política Criminal sobre Drogas, p. 34. 491 BARATTA, Introducción a la Criminología de la Droga, p. 343. 492 BARATTA, Introducción..., p. 345. 493 KARAM, A Lei 11.343/06 e os Repetidos Danos do Proibicionismo, p. 7. 494 Apud ZIZEC, O Espectro do Cigarro, p. 4. 495 ZIZEC, O Espectro..., p. 4.

496 BIRMAN, Mal-Estar na Atualidade, p. 221. 497 BIRMAN, Mal-Estar..., p. 224. 498 MELMAN, O Homem sem Gravidade, p. 101. 499 BIRMAN, Mal-Estar..., p. 46. 500 ZIZEC, O Espectro..., p. 4. 501 SOUZA, A Racionalidade Ética como Fundamento de uma Sociedade Viável, p. 124. 502 A análise completa sobre a pesquisa realizada pode ser conferida em Mayora (2011). 503 Descrição completa e com representação proporcional, em Mayora (2011).