A Pedagogia do Espectador

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•. J

FLÁVIO DESGRANGES

A PEDAGOGIA DO ESPECTADOR

EDITORA HUCITEC São Paulo ; 2003 .

-Díreltos.autorais, 2002, de Flávio Desgranges . DIreitos' de publicação reservados por ADERALDO ;& ROTHSCIIILD EDITORES LTDA.,

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Para Giulian

ClP-Brasll Catalogação na Fonte SIndicato NacIonal dos Editores de LIvro, RJ

D486p

Desgranges, Flávio A pedagogia do espectador / Flávio Desgranges. • São Paulo: Hucltec, 2003. 11. ; . - (Teatro ; 46) Inclui bibliografia ISBN 85·271-062()-5

1. Teatro e sociedade. 2. Platéias de teatro. 3. Teatro História. I. Título. n. Série. 03·2268.

CDD 792.ol CDU 792Jl67

's UMÁ RIO pág.

Capítulo 1 Ao encontro do mundo lá fora. Capítulo 2 A arte do espectador: contexto de uma formação Capítulo 3 Práticas teatrais e formação de espectadores . Capítulo 4 O espectador épico: pedagogia para um teatro de espetáculo Capítulo 5 O teatro épico moderno e a contemporaneidade Capítulo 6 A descoberta do prazer da análise Bibliografia

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1 AO ENCONTRO DO MUNDO LÁ FORA

Numa visita ao Musée D'Orsay, na cidade de Paris , local onde , me contaram, teria funcionado, outrora, uma estação de trem, eu percorria as grandes galerias do segundo andar, de pé-direito bastante alto e paredes de concreto. Passeava por um dos setores dedicados à exposição permanente do museu , onde estavam localizadas diversas pinturas impressionistas. Uma profusão delirante de quadros de Gauguln , Cézanne, Van Gogh, Seurat, que .exploravam as qualidades 6tlcas da luz e da cor, e despertavam intensas emoções . As telas pareciam exalar os perfumes das paisagens que retratavam . Um pequeno descuido já nos deixava ouvir o cantar das cigarras nos campos de sol escaldante, ou o ruído silencioso dos rios rnargeados por arbustos em variados tons de verde e leves pinceladas de violeta. A visitação seguia pelas muitas galerias fechadas, quando , no meio de uma das salas surge, surpreendente, uma janela que nos deixava ver, lá fora, o entardecer da cidade, tendo como fundo um céu azul cravejado por nuvens esparsas, recortado pelos pequenos' prédios parisienses. Postei-me diante da janela durante longo tempo e percebi que não estava s6. Vários dos visitantes permaneciam estáticos diante dela, olhando para aquela paisagem 13

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como se observassem uma pintura, uma obra de arte . Afasteime da janela, sentei-me em um dos bancos próximos e me ative à reação das pessoas , à relação que estabeleciam com a paisagem que surgia pela vidraça, enquanto pensava na faculdade da arte de nos sensibilizar, em como a contemplação daquela seqüência de quadros havia provavelmente estimulado os visitantes a lançar um olhar estetizado para o mundo lá fora, em como a relação com as obras propiciava, ainda que por instantes, que os contempladores fruíssem a existência como uma experiência artística . Os visitantes entravam e saíam daquela, galeria; o movimento em direção à janela ea.relação com a paisagem parisiense repetiu-se por longo período , até que me retirei da sala e do museu , não sem guardar cuidadosamente na memória aqueles que para mim foram intensos e raros momentos . N~ ano seguinte, em 1996 , na época em que fazia um estágio no T.J.A. (Théâtre des Jeunes Années), na cidade de Lião, tive oportunidade de retornar a Paris. O impulso me levou de volta ao D'Orsay e, depois de rápida visita aos impressionistas, oheguei à galeria em que se encontrava a tal janela. Para meu espanto, nada acontecia. Não havia ninguém diante dela, os visitantes passavam pela sala sem o menor interesse pela paisagem parisiense que a vidraça descortinava. Sentei-me no mesmo banco em que observara as pessoas no ano anterior e aguardei. Alguma reação tinha de acontecer, não poderia ser possível que a mesma exposição, a mesma seqüência de quadros , as mesmas obras de arte que pro vocaram os contempladores na vez anterior, não estimulassem os passantes a lançar um olhar ~urioso em dire ção à paisagem da janela. Os visitantes não eram os mesmos, pensei, mas isso não explicava o desinteresse, pois no ano anterior dezenas de pessoas, das mais diferentes nacionalidades, seno tiram-se estimuladas a travar um diálogo corri o mundo lá fora.

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Vincent Van Gogh (1853-1890). La Méridienne (d'apr ês Miliet), 1889-1890. Musée d'Orsay.

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E, além do mais, as obras eram exatamente as mesmas , ordenadas da mesma maneira. A única variável encontrava-se, portanto.no céu, na paisagem vista através da janela; como em qualquer canto, as tardes em Paris, naturalmente, nunca se repetem. A resposta s6 poderia ser esta: a janela não provocava os observadorescomo fizera naquela vez. Mas o que, efetivamente, havia de diferente na .paísagern? Por que 'aquele entardecer teria sido provocatívo e.este não? . .' Levei . ~. ques~ão comigo , as soluções que consegui formular no dia l1,ão'me satisfizeram, até porque muitas respostas seriam posefvelsra beleza especial da.primeira paisagem teria catívado os visitantes, oua pr~sença do sol naquele dia em Paris poderia ter chamado 'atenção das pessoas, já que no segundo dia o 'céu estava hastant~ n~bla·d~. Mas atitude dos observadores diante da.janela me Indicavaurna resposta diferente, que não se resumisse à própria, beleza da vista da primeira visita, mas quede alguma maneira relacionasse algo presente na seqüência de quadros observados com elementos daquela paisagem. E foi nesse sentido que formulei minha resposta: pareceu-me que, no primeiro entardecer, o céu parisiense, pontuado por algumas nuvens e entrecortado pelos pequenos prédios, apresentava-se com uma variação de luz e sombra, ressaltando intensos reflexos da luminosidade do sol e das vibrações do ar, que de algum modo poderia ser relacionado com as investigações pictóricas dos impressionistas. A janela, dessa maneira, provocava os observadores por apresentar relações, afinidades estéticas entre a seqüência de obras de arte vistas e o entardecer da cidade; a paisagem como que problematizava a experiência artística, propondo aos contempladores que estancassem o curso da visita e se debruçassem reflexivamente sobre o parapeito da vidraça para analisar o mundo lá fora.

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Outras respostas poderiam ser formuladas , não há dúvida , mas foi essa a que mais me satisfez. Contudo, independente das múltiplas possíveis soluções para este problema específico, carrego a questão comígo, a qual ainda me inquieta, pois sugere outros desdobramentos, tanto acerca da compreensão de como se estabelece a relação do contemplador com a obra de arte, quanto . sobre as possibilidades pedagógicas da experiência artística. Este trabalho é, em certo sentido, o desdobramento das interrogações suscitadas pelas visitas ao Musée D'Orsay. A experiência da janela perpassa, assim, diversas das questões abordadas nas partes seguintes deste livro. Como se estabelece a relação do espectador com a obra teatral? Essa recepção pode ser dinamizada? Que procedimentos utilizar visando provocar esteticamente a recepção? Como estimular o espectador a empreender uma atitude artística, produtiva, em sua relação com O mundo lá fora? Qual a importância atual de se pensar uma pedagogia do espectador? Como se estruturaria essa pedagogia na oonternporapeidade? Como compreender o processo de formação de espectadores? Formar para quê , afinal? Trata-se aqui, portanto, de investigar a relação há muito acalentada entre o teatro e a educação , sem a pretensão de esgotar as questões levantadas, porém na tentativa de traçar algumas linhas de reflexão que possibilitem, não só afirmar, 'mas ampliar o entendimento do teatro como importante instrumento educacional. Para isso, foram apontadas algumas reflexões possíveis acerca da relação entre teatro e sociedade , com intuito de investigar a necessidade de teatro que a vida contemporânea permite supor, e assinalar a relevância de unia pedagogia do espectador ~os dias que correm. . O livro trata , ainda, das diversas práticas teatrais que visam a formação de espectadores, enfocando tanto atividades pedagógicas

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propostas antes ou depois do espetáculo, que objetivam dinamizar a recepção, quanto procedimentos artísticos utilizados na própria constituição do espetáculo teatral visando provocar esteticamente a platéia. E, aqui, tomou-se, por base a teoria de teatro épico, concebida por Bertolt Brecht. Ninguém, talvez, tenha pensado, teorizado, experimentado/tanto sobre o assunto ~ .. quanto o teatrólogo alemão, que é figura-chave do 'teatro no seculo XX; seus ensaios nos oferecem pistas quase obrigatórias em qualquer tentativa de estabelec~r as bases de uma pedagogia do espectador. Com intuito de compreender o caráter educacional do teatro brechtiano, estabeleceram-se alguns pontos de contato entre: a atitude proposta ao espectador do teatro épico; a atitude do contemplador em sua relação com obra de arte, segundo as definições de Mik.hail Bakhtin; a atitude do historiador no diálogo travado com o,passado histórico e a atitude da criança diante do brinquedo, tal como compreendidas por Walter Benjamin. Em seguida, com base nas teorias que fundamentam a arte contemporânea, investigou-se a atualidade do teatro épico concebido por Brecht na primeira metade do século XX, questionando a atual: aplicabilidade dos procedimentos artísticos da modernidade, tendo em vista as recentes transformações no modo de vida, que solicitam um redimensionamento das propostas estéticas formuladas no. período.

2 A ARTE DO ESPECTADOR: CONrEXTO DE UMA FORMAÇÃO

o centro de gravidade da atividade teatral mudou: ele não está mais na cena ou na obra somente, ele se situa de alguma maneira no ponto de intersecção da cena com a sala, ou melhor ainda, no encontro do teatro com o inundo.

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- BERNARD DORT

o esvaziamento

das salas No início dos anos 1970, Anatol Rosenfeld, filósofo alemão refugiado no Brasil, talvez um dós maiores te6ricos de teatro que já tenha escrito em língua portuguesa, debitava a propalada crise do teatro nacional à falta de público nas salas de espetáculo, Fala-se atualmente com insistência de uma crise do teatro brasileiro. Empresários, diretores, autores, atores reúnem-se, debatem a crise, fazemlevantamentos, analisam a situação, encontram-se assiduamente, com o ministro de Educação e Cultura para apresentar reclamações, propostas, reivindicações, pedidos. A crise de que se fala quase exclusivamente é de público: uma encenação normal raramente 19

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consegue atrair, nos dias comuns, mais que cinqüenta ou setenta espectadores, se é que consegue tanto (Rosenfeld, 1993, p . 43). . Mais adiante, dando seqüência à sua análise, afirmava que, em nosso país, se os teatros fossem fechados, não apenas uma porcentagem do público não tomaria conhecimento disso durante algumas semanas, como disse Grotowski , referindo-se ao público europeu, mas que também grande parcela da população brasileira, provavelmente, nunca se daria conta do ocorrido. Atualmente, no início do século XXI, e lá se vão'trinta anos , a dita crise prossegue quase inalterada, pelo menos no que se refere ao público; e, se há alguma mudança, não parece ser muito animadora. Segundo pesquisa divulgada pelo Jornal do Brasil há poucos anos, cresce o I}úmero de poltronas vazias nos teatros das cidades do Rio.de Janeiro e de São Paulo, tendo as salas uma média de ocupação de, respectivamente, 21% e 22,7% (Oliveira, 1997). Se a crise se anuncia de forma semelhante em duas épocas, o debate, no entanto, parece ganhar COntornos diferentes. No início dos anos 1970, indica Rosenfeld , ao comentar os motivos apontados, então, por empresários e artistas para a falta de público nas salas, a concorrência da televisão merecia grande destaque, pois o teatro perdia não só espectadores, mas também atores que, seduzidos pela vantagem econômíoa por ela oferecida , não mais se in teressavam pelas produções teatrais. A disputa cada vez maior com O cinema estrangeiro era outro fator. Apoiada em uma produção artesanal, a dificuldade da arte teatral em competir com espetáculos industrializados a tornava um evento em franca decadência. Discordando fortemente de Rosenfeld, alguns julgavam mesmo obsoleto o palco , argumentando que ele não seria mais capaz de retratar a complexidade

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do' mundo moderno. Outro motivo apontado na época 'por alguns homens de teatro para o esvaziamento das salas era o momento político-social, apoiado na falta de liberdade de expressão que lançava toda a cultura nacional em um círculo de silêncio. No final dos anos '1990, segundo a reportagem, as principais causas da falta de público , apontadas por artistas e produtores, dizem respeito ao aumento do preço dos ingressos , motivado pelo alto custo das produções, à violência nas grandes cidades que, somada à falta de segurança pública e à inexistência de estacionamento próprio nos teatros, deixando os espectadores temerosos de saírem de casa duran te a noite , à carência de textos que despertem interesse na platéia, à "vírulêncía" com que a crítica tem tratado os espetáculos, além da ausência de campanhas de formação de platéia e de uma lei de incentivo às artes cênicas. Épocas dlstíntas, contextos diferentes, outras abordagens do mesmo problema. Alguns dos motivos levantados por Rosenfeld, . como a concorrência .da televisão e do cinema, em virtude de seu caráter industrial, poderiam ainda estar presentes nas análises atuais, bem como a discussão acerca da obsolescência da arte teatral , Os' motivos apontados" de importância inquestionável, entretanto, não conseguem esgotar a densidade da questão, que abrange desde as possibilidades e dificuldades da relação travada entre teatro e sociedade nos dias atuais até tentativas de apreender a relevância e a necessidade que o teatro tem, ou poderia ter, na sociedade contemporânea. Aliás, apesar de ganhar contornos bastante específicos em nosso país, esse tema não é exclusivament~ brasileiro, mas também mundial. O esvaziamento das salas teatrais reflete , possivelmente, o de uma arte essencialmente coletiva que se vê em confronto com a solidão da era moderna. O individualismo, marca da modernidade,

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ganha expressivas tonalidades nessa virada de século e talvez transforme o teatro em evento muito pouco sedutor. A coisa mais importante dos anos 70 e do início dos anos 80 foi a escalada do individualismo , tanto no aspecto comportamental quanto na vida política. E, com esse individualismo , a crise das formas políticas ligadas a uma promoção coletiva dos cidadãos ou da comunidade. O que nós chamamos de "neolíberalísmo" foi a crítica a qualquer forma de promoção 'ou de vontade coletiva de criar algo. Eu penso , efetivamente, que nós estamos em vias de retornar (Saez, 1989, p. 34).

O cinema, provavelmente a atividade artística mais freqüentada nos dias atuais, é um bom exemplo desse primado dos eventos individuais, das coletividades solitárias. Normalmente, ir ao cinema sozinho, ou em uma sala vazia, é tão ou mais divertido do que com a sala cheia. O filme está lá, pouco se altera. Pode-se até mesmo pegar uma fita de vídeo e vê-la em casa. Com o teatro , evento que requer a participação do público, acontece o contrário: sem levarmos em conta as questões de conforto, uma sala cheia ou a presença de um bom número de espectadores incendeia o espetáculo , tornando-o mais prazeroso. Abdicando de seu caráter marcadamente díalógíco, o teatro, por sua vez , na tentativa de se adequar aos padrões de comportamento , vem procurando cada vez mais .constrtrír espetáculos para as individualidades. As peças são encenadas de tal forma ' que pouco se alteram com a presença do pú.blico, parecem indiferentes aos espectadores. Contrariando a si próprio, o teatro (ou parcela significativa das produções teatrais) propõe a ausência do público presente.

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Isoladas do mundo, as consciências individuais entram em contato espiritual com profissionais da oferta - oferta de arte, oferta política - com a condição de que esta lntírní. dade não ofereça riscos (Saez, 1989, p. 27) . E se a arte teatral deixou de oferecer riscos, é porque .deixou de se colocar em risco, o teatro propõe à platéia aquilo que se espera dele , que o espectador seja o modelo do cidadão ideal, aquele que 'apenas aguarda a cena seguinte. O dito teatro de arte não é mais um movimento de guerra e, sim, de resistência, tal a indiferença a que foi relegado . Em todos os lugares do mundo, o público de teatro se tornou rarefeito. Existem aqui e ali tentativas de renovação , mas, em seu conjunto, o teatro não consegue nem exaltar, nem instruir; e muito freqüentemente, não consegue .nem mesmo divertir. .. Na Broadway, em Paris, em Londres', a crise é exatamente a mesma. Não temos necessídade de ouvir as queixas das agências de locação para saber que o .teatro se tornou uma empresa funerária e que o público já compreendeu isso (Brook, 1977, p. 24). E se o assunto não pode ficar circunscrito às particularidades nacionais, tampouco pode ser visto como um tema recente. "Seria ingênuo ficarmos abatidos pOI; algo que é óbvio há um século: o teatro é uma atividade artística em busca de sentido" , as palavras são do encenador Eugênio Barba, escritas no programa de sua peça Kaosmos, o ritual: da porta, encenada recentemente no Brasil. Uma atividade que busca o próprio sentido, no entanto, necessita manter-se viva, atuante, para que possa continuar dialogando com a experiência contemporânea. Talvez a crise

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secular do teatro venha sendo mesmo sua própria forma de vida, a razão de existência de uma arte que, tragicômica, volta eme ía se lança ao fundo de si mesma e que, durante a queda, reínventa maneiras de 'pairar e sobrevoar prazerosamente o próprio abismo. Não há dúvida de que a falta de um público especializado em nosso país agrava a dita crise: o esvaziamento das salas de espetáculo emudece o debate. No Brasil, a situação torna-se mais dramática, pois o hábito de freq üentar teatro nunca se arraigou de fato na alma de nosso povo. As indústrias culturais, sobretudo a televisão e o cinema, naturalmente são uma concorrência poderosa, favorecida pelo fato de no Brasil, antes da expansão desses meios e artes, não se ter constituído um amplo público habituado a freqUent~r teatros e por isso mesmo capaz de transmitir esse hábito em larga medida. às próximas gerações (Rosenfeld, 1993, p. 245)., Nos dias atuais, entretanto, a busca de sentido para a crise do teatro apresenta características bastante esp~'cíficas. Uma diferença marcante da década de 1970 para esse início de século consiste na ampla expansão e no predomínio de uma cultura audiovisual estandardizada. Além disso, no decorrer desses anos , o teatro se tornou menos uma experiência artística para se compartilhar e mais um mercado a se conquistar, um produto a ser vendido para um espectador que se transformou em "consurn ídor-alvo". Isso faz que os produtores culturais cada vez mais voltem seus esforços para a veiculação de sua imagem e da imagem de seu trabalho pelos meios de comunicação de massa, COncentrando atenção na divulgação e venda de seus produtos.

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Em nossas sociedades contemporâneas, sociedades espetacularizadas, de indivíduos viciados em imagem , especialmente na imagem da própria imagem , sociedade que vive sob monopólio da aparência, em que "só aquele que aparece é bom ", o artista da arte do espetáculo vive um dilema: trabalhar para a qualidade de seu fazer artístico ou para aparecer e fazer parecer que sua arte é de qualidade? O narcisismo dos artistas e o mercantilismo dos empreendimentos teatrais fazem que os produtores se preocupem mais com a difusão de seu trabalho nos media do que no contato fundamental entre autor e espectador. Interessados sobretudo na divulgação e comercialização de sua mercadoria, deixam de prezar a efetiva presença e participação do público, esquecendose de um companheiro fundamental nesse jogo: o espectador. Tudo isso leva alguns espectadores habituados e interessados nos rumos da arte teatral a se perguntarem: Nestas condições, por que ir ao teatro hoje? É preciso aceitar esse primado absoluto da cena sobre a sala ? É preciso aceitar o estatuto de consumidor de produto teatral, em vezdeespectador.crítíoo de uma obra, ou melhor, observador de uma proposição teatral? Na verdade , vários espectadores potenciais respondem a tais questões de maneira negativa: não vão ao teatro , ou vão menos ao teatro . Devo confessar que sou um deles (Carrasso , 1995 , p. 15). A saída para o esvaziamento das salas, portanto, não se resume em facilitar o acesso do público 'a esse produto, mas consiste também em fazer os produtores teatrais perceberem a importância do espectador no evento. Não somente como alguém que sustenta financeiramente 01;1 cobre de aplausos os espetáculos ,

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mas como o outro imprescindível em um diálogo.''Da mesma, maneira como o público se pergunta "por que ir ao teatro hoje em dia?", talvez seja imprescindível que os artistas de teatro levantem questões semelhantes: Por que ir ao público hoje? Para fazer o quê? Dizer o quê? Para quem? Qual a necessidade disso, afinal? Somente respostas muito claras dos artistas podem suscitar a contra-resposta dos espectadores.

Não existe teatro sem platéia e a importância da presença do espectador no teatro precisa ser vista não somente por uma razão econômica, de sustentação financeira das produções. É evídente que o fator econômico é vital e não pode ser esquecido, até porque o preço do ingresso torna o acesso inviável, excluíndo das salas uma parcela do público que talvez fosse a mais ínteressada. Como um livro que só existe quando alguém o abre, o teatro não existe sem a presença desse outro com o qual ele dialoga sobre o mundo e sobre si. Sem espectadores interessados nesse debate, o teatro perde conexão com a realidade que se propõe a refletir e; sem a referência desse outro, seu discurso se torna ensimesmado, desencontrado, estéril. Não há evolução ou transformação do teatro que se dê sem a efetiva participação dos espectadores.

A obsessão de todos os grandes reformadores do teatro foi a pesquisa não' das técnicas mas do sentido. Todas as grandes reformas tiveram que passar por esta questão: por que fazer teatro? (Barba, 1996, p. 60). Talvez fosse necessário empreender uma luta para que artistas e produtores abram as salas para os espectadores. E não se trata somente de facilitar o acesso financeiro de todas as camadas da população, mas também de convidar o público a tornarse parceiro de empreendimentos culturais. Abrir o teatro, de fato, de maneira que o espectador se sinta participante efetivo de um movimento artístico, fazendo da Instituíção teatral um espaço comunitário, de todos e aberto a todos. E não um espaço restrito, reservado ao desfile de alguns poucos e inflados egos. O que não significa dizer que não haja artistas e projetos teatrais que marchem na contramão dessa tendência dominante, que se contrapõem ao consenso estético e à lógica mercantilista das produções. Artistas que se negam a reproduzir as proposições perceptivas veiculadas pelos meios audiovisuais de massa. A formação de espectadores possibilita ampliar seu campo de questionamento, pois, uma vez especializado, habituado, não se pergunta apenas "por que ir ao teatro?", mas passa a indagar também: "a qual teatro ir?".

O teatro que a getuefas: tem a necessidade de jogadores, estamos assim chamando os companheiros de jogo que são os espectadores. Assim, do lado da platéia', precisamos também de jogadores [... ] (Guénoun, 1997, p. 164).

o olhar do observador sobre o espetáculo sustenta o próprio jogo do teatro: A necessidade de companheiros de jogo, de crlação, anima o movimento de formação de público. Uma pedagogia do espectador se justifica, assim, pela necessária presença de um outro que exija diálogo, pela fundamental participação criativa desse jogador no evento teatral, participação que se efetiva na sua resposta às proposições cênicas, em sua capacidade de elaborar os signos trazidos à cena e 'formular um juízo próprio dos sentidos. A luta por um teatro que responda aos anseios de nosso tempo, teatro de qualidade (e por que não?) q~e não deve ser me-

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dida pelo bom acabamento da produção ou pelas críticas que

um tom demagógico do tipo "a pessoa mais importante do tea-

recebe em jornais e revistas ou pela quantidade de espectadores .9ue consegue seduzir ou ainda' pelo índice de aplausos ao final da encenação não pode acontecer sem a voz da platéia. Os espectadores, partícípantes interessados, precisam constituir parte atuante no processo. ,A qualidade do trabalho de um ator, de um encenador, ou de um dramaturgo não pode ser avaliada ape-

tro é você" ou investidas esporádicas, que mais lembram campanhas de vacinação, do tipo "vá ao teatro" , corno se dissessem: "vacine-se contra a ignorância" . Pode-se aprender a gostar de teatro, o difícil é ser convencido a fazê-lo (ou ser convencido a gostar de qualquer coisa). O prazer advérn .da experiência, o gosto pela fruição artística precisa ser estimulado, pro vocado , vivenciado, o que não se resume a uma questão de marketing , O despertar do interesse do espectador não pode acontecer sema implementação de medidas e procedimentos que tornem viáveis seu acesso ao teatro. Na verdade, duplo acesso: físico e Iíng üístíco. Ou seja, tanto a possibilidade de o indivíduo freqüentar espetáculos quanto a sua aptidão para a leitura de obras teatrais. Antes disso , é fato , torna-se necessário que tenhamos boas condições de produção para um oferecimento quantitativo e qualitativo de espetáculos teatrais. No entanto, não é suficiente ter oferta de peças em cartaz, é preciso mediaresse encontro entre palco e platéia. Primeiramente, é necessário criar condições para o espectador ir ao teatro , o que envolve uma série de medidas para favorecer a freqüentação, tais como: divulgação competente das peças em cartaz, que atinja públicos de diversas regiões e classes sociais; promoções e incentivos que viabilizem financeiramente o acesso de diferentes faixas de público; condições de segurança; rede de transportes eficiente; e tantas outras atitudes de apoio e incentivo que façam, em última instância, colocar o espectador diante do espetáculo (ou vice-versa) . O acesso ao teatro " porém não se resume a possibilitar a ida às salas (ou a levar , espetáculos itinerantes a regiões menos favorecidas). Formar espectadores não se restringe a apoiar e estimular a fre-q üentação , é preciso capacitar o espectador para um rico e intenso diálogo com a obra, criando, assim, o desejo pela experiê~cia artística.

nas por sua capacidade técnica e inventiva de realização , mas está fortemente ligada à franqueza, vigor, e interesse com que , em sua prática, se depara e responde à questão central, aquela que o move: Por que fazer teatro? Por que ir ao público hoje? A pedagogia do espectador não é questão somente para pedagogos. A capacitação do público para participar ativamente do evento teatral está fundamentalmente vinculada à proposição artística que lhe é dirigida, e se estabelece também pela ma neira corno o artista trabalha e compreende o ponto de Intersecção entre a cena e a sala. A atuação do espectador não se efetiva sem o reconhecimento de sua presença. A voz desse outro integrante do diálogo situado na platéia só pode ser ouvida se a palavra lhe for aberta. Seu interesse em enfrentar o debate estético proposto na obra está diretamente lígadoàmaneíra como o artista o convida, provoca e desafia a se lançar no diálogo. O acesso ao teatro No entanto, como promover de fato a atuação do espectador na evolução e nas transformações da arte teatral? Como tornar efetiva sua participação no evento? Corno levá-lo à sala de espetáculo? Como despertar seu interesse em freqüentá-la? Qualquer iniciativa de formação de espectadores não pode ser reduzida, como ternos visto nos últimos anos no Brasil, a campanhas de convencimento que , às veze~ , escorregam para ,0

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Portanto, a pedagogia do espectador está calcada fundamentalmente em' procedimentos adotados para criar o gosto pelo debate estético, para estimular no espectador o desejo de lançar ' um olhar particular à peça teatral, de empreender uma pesquisa pessoal na interpretação que se faz da obra, despertando seu interesse para uma batalha que se trava nos campos da linguagem, Assim se contribui para formar espectadores que estejam aptos a decifrar os signos propostos, a elaborar um percurso próprio no ato de leitura da encenação, pondo em jogo sua subjetividade, seu ponto de vista, partindo de s~a~ experiências, sua posição, do lugar que ocupa na sociedade. A experiência teatral é única e cada espectador descobrirá sua forma de abordar a obra ede estar disponível para o evento. Ir ao teatro não quer dizer rigorosamente ser espectador da peça que está sendo apresentada, da mesma forma que ir ao museu não sígníftca necessariamente participar de um evento estético, já que, segundo Bakhtin, o fato artístico s6 se completa no momento em que o receptor se distancia da obra, retoma à sua própria consciência e, recorrendo ao seu patrimônio vivencial, elabora a sua compreensão dela (Bakhtin, 1993).1 É preciso, portanto, em um museu, por exemplo, que o visitante esteja disponível para se colocar em diálogo com a obra (e o artista), debruçando-se diante da pintura ou da escultura para, a seu modo, apreendê-Ia e compreendê-Ia. Da mesma maneira, o espectador de teatro precisa travar diálogo com a peça. Ser espectador requer esforço , não há saída, um esforço criativo. Se levarmos em consideração um quadro, uma pintura, o diálogo que se estabelece entre receptor e obra d.e arte pode dar-se anos ou séculos depois do momento da sua realização; no tea-

tro, esse diálogo acontece no instante exato em que o ato artístico, efetivamente, se realiza. Se isso revela seu caráter efêmero, caracteriza também a intensidade de sua relação com o espectador e a importância do público numa encenação, nesse contato vivo que se dá entre palco e platéia.

1 Estudaremos mais detalhadarnente o conceito de fato artístico, tal como foi compreendido por Mikhail Bakhtin, na Parte IV deste livro.

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[. . .] o tão exaltado privilégio da realimentação Criativa com que um 'pú blico ativo inspira o elenco (quando não o desalimenta pela apatia), a ponto de o espetáculo estar se fazendo em cada sessão, como fenômeno irrepetível ("eis a verdadeíraobra aberta!") (Rosenfeld, 1993, p. 251). Público partícípatívo é aquele que, durante o ato da representação, exige que cada instante do espetáculo não seja gratuito, o que não significa que seja necessário, portanto, manifestar-se ou intervir diretamente para participar do evento. Sua presença efetiva-se na cumplicidade que ele estabelece com o palco, na vontade de compactuar com o evento, na atenção às proposições cênicas, na atitude desperta, olhar aceso. E essa presença deve ser encarada pelos atores "como um desafio positivo, tal qual um amante diante do qual não nos apresentamos de qualquer maneira" (Brook, 1991, p. 27). Esse espectador crítico, exigente e participativo é aliado fundamental nos diálogos travados acerca dos rumos da arte teatral. Figura-chave nas reflexões traçadas entre teatro e educação, Brecht afirmava que a leitura crítica, a capacidade de compreensão de uma obra de arte, no entanto , pode e precisa ser trabalhada. A capacidade de elaboração estética é uma conquista e não somente um talento natural. É uma opinião antiga e fundamental que uma obra de arte deve influenciar todas as pessoas, independente da ida-

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de, status ou educação [... ]. Todas as pessoas podem entender e sentir prazer com uma ob~a de arte porque todas têm algo artístico dentro de si [. .. l. Existem muitos artistas dispostos a não fazer arte apenas para um pequeno círculo de iniciados, que querem criar para o povo. Isso soa democrático, mas, na minha opíníão, não é totalmente democrático. Democrático é transformar o pequeno círculo de iniciados em um grande círculo de iniciados. Pois a arte necessita de conhecimentos. A observação da arte s6 poderá levar a um prazer verdadeiro, se houver uma arte da observação. Assim como é verdade que em todo homem existe um artista, que o homem é o mais artista dentre todos os animais, também é certo que essa inclinação pode ser desenvolvida ou perecer. Subjaz à arte um saber que é um saber conquistado através do trabalho (Brecht, apud Koudela , 1991, p. 110). A especialização do espectador se efetiva na aquisição de conhecimentos de teatro , o prazer que ele experimenta em uma encenação intensifica-se com a apreensão da linguagem teatral. O prazer estético, portanto, solicita aprendizado. A arte do espectador é um saber que se conquista com trabalho. Familiarizado com os códigos teatrais , esse espectador iniciado descobre pistas próprias de como se relacionar com a obra, percebendo-se, no atada.' recepção , capaz de dar un idade ao conjunto de signos utilizados ria encenação e estabelecer cone- .. . xões entre os elementos apresentados e a realidade exterior. A conquista da linguagem teatral propicia ao espectador uma atitude não submissa diante do fato narrado e das opções cênicas propostas. Conhecendo os signos que vêm sendo estabelecidos ao longo da história do teatro, bem como o funcionamento dos

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mecanismos utilizados em uma encenação, e os efeitos que produzem, o espectador ganha distância para melhor apreciar como tais elementos estão sendo apresentados em um determinado espetáculo. A aquisição desses conhecimentos permite que o observador esteja em melhores condições para traçar linhas de reflexão acerca da obra e elaborar um juízo de valor sobre ela . A distância possibilita que o espectador problematize a encenação, faça perguntas à cena, tais como: Que temas este espetáculo aborda? De que maneira isto se relaciona com a vida lá fora? Que signos e símbolos o artista se utiliza para apresentálas? Eujá vi algo parecido? Como eu faria? De que outras maneiras esta mesma idéia poderia ser encenada? O prazer de assistir a espetáculos teatrais advém justamente do domínio da linguagem, que amplia o interesse pelo teatro à proporção que possibilita uma compreensão mais aguda, uma percepção cada vez mais apurada das encenações.

No teatro como nos campos esportivos . Ir ao teatro ou gostar de teatro, também se aprende. E ninguém gosta de algo sem conhecê-lo. De que man~ira se pode considerar relevante, e até mesmo imprescindível, aquilo que não conhecemos em todas as suas possibilidades? O apreço está diretamente ligado ao grau de intimidade e, apenas entrando em contato com o teatro, seus meandros, técnicas e história, o espectador pode reconhecer nele importante espaço de debate das nossas questões e, principalmente, perceber o quão prazerosa e gratificante pode ser essa relação., O gosto por uma cultura artística, contudo, se constrói desde a infância. Aproximar crianças e adolescentes das atividades teatrais é de fundamental importância, se quisermos pensar em formar espectadores. .

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Evoco um estudo do sociólogo holandês T. Karnphorst, que investigou a maneira pela qual o público adulto tinha sido sensibilizado pela primeira vez para diversos eventos. Ele calculou, em seguida, as chances de um adulto ir "x" vezes ao concerto ou ao teatro, em função da idade em que havia sido socializado para esse evento. Os resultados são bastante interessantes. Em se tratando de um concerto, ele mostra que, se não tivermos adquirido o hábito entre os cinco' e os oito anos, tElremos muita dificuldade em ir a um concerto de música ,clássica mais tarde.' No que concerne aos museus, [o hábito se adquire] entre oito e doze anos; no que se refere ao teatro, entre doze e quinze anos. [... ] mesmo sabendo que não há idade precisa para estarmos mais abertos , existem determinados períodos em que estamos mais receptivos que outros (Saez, 1989, p. 33). Um dos eixos da formação que se pode oferecer à criança espectadora consiste em fornecer os instrumentos conceituais necessários ao despertar de seu espírito crítico. De simples consumidor de espetáculos, ela pode tornar-se capaz de formular e sustentar suas apreciações. Trata-se de iniciar o público infantil na linguagem específica da criação teatral, a fim de fomentar, , por meio do espetáculo, sua reflexão. Compreende-se, assim , a formação de espectadores como a:aplicação de procedimentos destinados a criar o gosto 'pelo teatro e ressaltar a necessidade e importância da arte, quanto como uma proposição educativa cujo objetivo está voltado para a formação delndívíduos capazes de olhar, observar e se espantar. A apropríação da linguagem teatral tem o intuito de contribuir para a sensibilidade e para uma experiência de prazer e comunicação, além de contribuir para sua afirmação como sujeito nos rituais coletivos.

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Brecht sonhava com uma platéia constituída de iniciados, espectadores aptos a avaliar propostas trazidas à cena, prontos a elaborar um juízo acerca dos significados presentes nos elementos cênicos. O autor alemão queria que os espectadores de teatro fossem especializados como a platéia de um evento esportivo, que conhece as regras do jogo, sua história, meandros e fundamentos técnicos. O conhecimento tático e técnico do jogo permite que o espectador esportivo, mesmo emocionalmente envolvido com a partida, identificado com os "heróís" em cam, po, questione a atuação dos jogadores. Nas partidas de futebol, podemos perceber Com clareza essa atitude do iniciado em face de um espetáculo esportivo, que reúne tanto o profundo envolvimento emocional quanto a postura .crítíca acerca do evento. A isso [a identificação íntima do torcedor com o jogo e os jogadores 1 se liga, a despeito de toda a ídentífícação, a possibilidade de distanciamento crítico ("Eu não teria chutado para fora"), em virtude do que, por outro lado, é estimulada uma co-participação ainda mais apaixonada (Rosenfeld, 1993, p. 95). A conclusão do espectador da partida de futebol- espetáculo para o qual os brasileiros em geral são, desde a infância, especíalmente formados - de que não teria errado o chute para o gol, se dá 'p elo conhecimento técnico adquirido. O domínio dos meandros da atividade futebolística advém tanto das brincadeiras em que participou como j?gador quanto da experlên. cía como espectador, apurada especialmente nos debates travados COm outros torcedores e nas análises de comentaristas esportivos. A apreensão de regras e o amplo conhecimento tático e técnico das jogadas, como ressalta Rosenfeld, estimula a

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co-participação do espectador, intensifica o prazer na sua relação com o evento. No entanto, diferentemente do que acontece com o futebol, a impossibilidade (não apenas financeira) da grande maioria das crianças e jovens brasileiros de ir ao teatro ou mesmo de receber a visita de uma trupe teatral é um fato. Criar condições para que eles possam ir ver um espetáculo talvez seja o primeiro passo a ser dado . Mas a questão não se encerra aí, pois possibilitar o acesso ao teatro não significa, como já apontamos, apenas colocar o espectador infanto-juvenil diante de uma peça, mas também fornecer ferramentas para que ele disseque e interprete o evento. Tornar o espectador iniciante mais íntimo da arte teatral e estimulá-lo para um mergulho divertido amplia sua capacidade de apreender o espetáculo e favorece sua socialização, seu acesso ao debate contemporâneo, sua Integração e participação sociais.' Democratizar o acessode criançase jovensao teatrose constitui,en· tão, em viabilizar a ida aos espetáculos e, concomitantemente, oferecer os instrumentos de compreensão e de recepção que condicionam esse acesso, oferecendo meios necessários paraque o espectador infanto-juvenil tenha possibilidade e vontade de apropriá-los.

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se contente em ser apenas o receptáculo de um discurso que lhe proponha um silêncio passivo. A formação do olhar e a aquisição de instrumentos lingüísticos capacitam o espectador para o diálogo que se estabelece nas salas de espetáculo, além de lhe fornecer instrumentos para enfrentar o duelo que se trava no dia-a-dia. O olhar armado busca urna interpretação aguda dos signos utilizados nos espetáculos diários, da propaganda aos programas eleitorais. Com um senso crítico apurado, esse oldadãoespectador, consumidor-espectador, eleitor-espectador procura estabelecer novas relações com o entorno e as diferentes mani.festações espetaculares que buscam retratá-lo. Se nessa sociedade "a linguagem do espetáculo é constituída pelos signos da -produção reinante " (Debord, 1992, p. 18), tomar conhecimento dos mecanismos que envolvem uma encenação, desvendar e apreender a lógica da teatralidade significam conquistar instrumentos que viabilizem a reflexão acerca dos procedimentos utilizados em diferentes produções espetaculares . O espectador instrumentalizado encontra-se em condições de decodificar os signos e questionar os significados produzidos, seja no palco, seja fora dele. Os métodos e procedimentos propostos pejos meios comunicacionais contemporâneos influenciam e condicionam asensi. bilidade e percepção dos espectadores. Se quisermos destacar exemplos das opções éticas e estéticas de algumas dessas produções espetaculares, podemos abordar diversos fatos recentes . ,

A posição de espectador Na sociedade baseada na espetacularidade dos acontecimentos e apoiada na indústria moderna, que "não é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente 'espetacularista'", onde o espetáculo é "o sol que não se esconde jamais' sobre o império da passividade moderna" (Debord, 1992, p.21) , formar espectadores consiste também em estimular os indivíduos (de todas as 'idades) a ocupar O seu lugar não somente no teatro , mas no mundo. Educar o espectador para que não

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[... ] se queremos um emblema para a educação mundial em prol da Insensíbíl ídade , não serã difícil descobri-lo: ele está na cobertura televisiva de alguns anos atrás da Guerra do Golfo (Costa Lima, 2001, p. 15) .

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Assim, a pedagogia do espectador se justifica também pela urgência de 'uma tomada de posição crítica diante das represen. rações dominantes, pela necessária capacitação do indivíduoespectador para questionar procedimentos e desmistificar códigos espetaculares hegernônlcos. Em casa ou nas ruas , o indivíduo contemporâneo encontrase invadido por um entulho de signos de todas as espécies talvez hoje devêssemos lutar pelo livre direito de ir e ver. As mídias eletrônicas produzem ficção a um ritmo alucínante, imagens já fazem parte da 'cesta básica de famílias de todas as classes so-ciais: Para se ter uma idéia vertiginosa dessa produção, se nos detivermos somente nas imagens televisivas, estima-se que se consuma em nosso país cerca de 200 milhões de horas de imagens, mostradas em cerca de 40 milhões de aparelhos televisores instalados nos lares (Barreto , 1996, p. 9). Os espectadores consomem uma quantidade e uma variedade de imagens , narrativas e fragmentos narrativos que, apesar da aparente facilidade de decodificação , impõem uma fruição superficial , desestimulam a atitude interpretativa, o esforço criativo é a elaboração de juízos de valor, propondo uma recepção desprovida de exigência estética. A indigestão de signos empurrados goela abaixo, o abuso e banalização da ficcionalidade , o estílhaçarnento visual, a híper-fragrnentação narrativa m~difi­ carn ainda o campo de percepção do espectador, influenciando seu modo de relação com a espetacularidade e seu horizonte de expectativa. Deixar a televisão para ir ao teatro .ver televisão: assim é, em breve resumo , a expectativa do grande público (Deldírne , 1993, p. 111) .

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É muito comum o espectador assistir a programas televisivos de maneira fortuita, acompanhando vários programas ao mesmo tempo ou desenvolvendo outras atividades simultaneamente, interrompendo freqüentemente a recepção para comer alguma coisa ou atender ao telefone. Desse modo, a televisão, principal veículo de comunicação da contemporaneidade, cria um hábito mental fundado na ruptura e na segmentação, um hábito calcado na sedução imediata, desencorajando, quando o flash deixa de ser fascinante . Isso leva os criadores de programas televisivos a acelerar consideravelmente as rupturas de imagens e modificar . a estrutura da.montagem- das emissões para não deixar .escapar a atenção do espectador. Buscando capturar o olhar do espeotador-consumídor, esses mesmos criadores promovem, assim', uma multiplicação dos planos, propondo a justaposição artífíoíal de imagens que não fazem nenhum sentido que não seja o da busca da sedução imediata. O hábito mental de segmentação e ruptura proposto pela televisão agrava-se, quando se trata de crianças, pela freqüência assídua diante do aparelho . Uma recente pesquisa indica que uma criança francesa, por exemplo, durante um ano, chega a passar uma vez e meia mais tempo diante da televisão do que na escola (Meirieu, 1994). Além disso , antes de ingressar na escola, qualquer criança já assistiu a milhares de horas de televisão. Os valores da televisão são os do mercado, tendo em vista que seu objetivo principal é fazer vender produtos e serviços, de maneira que, regida pelo máximo lucro , pouco ou nada avalia os conteúdos e procedimentos estéticos utilizados para manter a atenção do espectador. Se prestarmos especial atenção, observaremos que as estruturas narrativas dos programas, pressionados pelos repetidos intervalos comerciais, geralmente abando-

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nam nuanças e sutilezas, propondo uma abordagem superficial dos fatos e questões tratadas.

Não seria exagero supor que a arte teatral possa ser encarada como uma proposição espetacular pouco habitual , ou mesmo frustrante, para esse superestimulado espectador contemporâneo. Ao pensar a pedagogia do espectador, portanto , não se pode desprezar o anseio, o hábito , a expectativa que condiciona o indivíduo-espectador de nosso tempo em sua relação com os variados meios comunicacionais ; meios esses que detêm a hegemonia dos procedimentos estéticos espetaculares e da produção de sentidos.

Ao final de uma emissão, todas as intrigas devem estar resolvidas, e as incertezas desaparecidas. Está na hora de vender os produtos (Condry, 196, p. 56). Essa constante necessidade de chamar a atenção do espectador faz que a televísão, ligada a índices diários de audiência, viva absolutamente no presente , atropelando o passado e mostrando pouco interesse pelo futuro coletivo. O espectador infantil recebe , assim, grande e importante quantidade de informações (e sentidos produzidos) acerca do mundo que o envolve e dele mesmo, e a televisão acaba desempenhando, com a família e a escola, papel destacado na socialização da criança. Assim, projetos artísticos e pedagógicos que têm por objetivo ' propor a espectadores iniciantes uma descoberta ativa do teatro não suscitam evidências tranqüilas nem facilidades inesperadas. O teatro, em seu estágio contemporâneo, pode ser percebido pelos espectadores , crianças e adultos, habituados às produções audiovisuais dominantes , como um espaço totalmente estranho, diante do qual pode ser extremamente difícil se situar. Gestos, movimentos , intenções sutis dos atores, um mosaico complexo de signos e códigos específicos propõem um modo de relação e comunicação fundado na participação sensível e reflexiva do público, uma atitude concentrada de observação. É cornpreensível (e mesmo desejável) que o teatro possa desorientar, provocar e incomodar os espectadores que estabelecem as primeiras relações de conhecimento dessa arte . O prazer do teatro talvez não seja mesmo uma aquisição fácil, mas um prazer que requer disponibilidade e esforço do espectador.

Na boca do povo A busca por um teatro aberto , particípatívo , que comova, movi~ente, apaixone e faça pensar é um desejo expresso em ' várias línguas. Sua crise não é s6 nossa. Talvez tenhamos de nos h.abituar ao fato de que o teatro é, hoje , um evento para poucos e, por isso, não podemos mais alimentar a visão .antiga e romântica desse gênero como uma instituição de educação e reunião de todo o povo. . Em alguns lugares, há uma minoria de pessoas que precisam de algo diferente, algo mais humano , que s6 pode' ocorrer numa escala menor. E, então, teatro será sempre para um porcentual pequeno de pessoas. Isso não o toma elitista, apenas faz algo que está lá para gente que realmehte tem interesse (Brook, 2000, p. 1). Todas as lutas pela democratização do teatro , pela prática de projetos de formação de espectadores, por àflrm ã-Io como instrumento de transformação social, pelo livre entendimento entre atores e espectadores, tudo isso talvez seja uma dessas utopias que se vive sem realizar, ma s que, ao mesmo tempo , não há

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como sentir-se realizado sem a tentativa de vivê-las. Será mesmo assim? No Brasil, contudo, o enfraquecimento do debate acerca do 'redímensionamen to da relação do teatro com 'a sociedade contemporânea se acentua em virtude da inexistência de uma platéia devidamente formada, habituada a freqüentar as salas de espetáculo, Com gosto e alma despertados para essa arte. Será que, como dizia Ziembinski, a arte do teatro, tal qual a conhecemos, não se afeiçoa à nossa personalidade? Será que nós brasileiros realmente gostamos do teatro e precisamos dele? Qual deveria ser esta arte para que o povo se interessasse por ela? [.. .] O conflito, a situação de comoção interna, o jogo de contrastes entre o preto e o bran. co, todos estes elementos que caracterizam o fenômeno dramático não parecem ser o forte do nosso temperamento nacional. Não existe vontade de se envolver no conflíto' dos outros; há vontade, isto sim, de ficar na praia, nos campos, numa atitude contemplativa. l...] O que acontece é que esta nação ainda se prepara para encontrar sua própria forma daquilo que seria o espetáculo teatral, embora . talvez não se chame mais de espetáculo teatral, mas no qual a nação se realizaria através de conceitos afins ao drama, e adaptação ao seu temperamento, seu sangue, sua paisagem e sua sensibilidade melódica. [... ] Então não será mais necessário escrever "Vamos ao teatro" , porque o povo irá espontaneamente (Ziembinski, apud Michalski, 1996). Será mesmo uma questão de personalidade da nossa gente e não uma 'falia de incentivo a projetos democratizadores , que busquem a formação de uma platéia nacional? Talvez os dois

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juntos? Ou será que o teatro, da maneira como suas formas estão estabelecidas, não oferece respostas para a necessidade de teatro que a vida contemporânea produz ou permite supor? O fato é que para que se possa almejar o nascimento de uma forma teatral genuinamente brasileira, como sonhava Ziembinski, é preciso que haja uma intimidade nacional com essa arte, colocáIa na boca (e olhos) do povo. A iniciação de espectadores, contudo, requer organização e aplicação de métodos e procedimentos específicos destinados a sua formação. A leitura do teatro, passeio interpretativo pelos signos que constituem uma encenação, como afirmava Brecht, não é atitude evidente, mas adquirida. A capacitação estética não é somente aptidão natural, mas conquista cultural. Democratizar o acesso ao teatro consiste, portanto, em preparar esse espectador ín íclan te, instrumentalizando-o, tornando-o apto ao diálogo com a obra. Mas que projetos de formação adotar para uma efetiva democratização do acesso à arte teatral? Que práticas artísticas e pedagógicas implementar? Que procedimentos espetaculares e extra-espetaculares podem ser utilizados para tornar o espectador estimulado e capacitado para enfrentar o embate lingüístico?

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PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES A leitura obrigatória é uma coisa tão absurda quanto se falar em fellcldade 'obriga tória, -

JORG E LUIS BORGES

A conscientização por meio do teatro Desde os anos 1960 até meados de 1970 , artistas e educadores, movidos pela Idéia de democratização cultural, estruturaram variadas práticas destinadas à ampliação social e geográfica do público de teatro, quanto à difusão da experiência artística em geral. Essas iniciativas se efetivaram com grande vitalidade em países europeus, como França, Itália , Bélgica e Portugal; realizaram-seímportantes movimentos também em outros países, como Estados Unidos e,também, Brasil. Dentre as diversas atividades artístico-culturais implementadas nesse período, destacam-se: a apresentação de espetáculos teatrais nas ruas, metrôs, praças, bares e outros lugares pouco habituais; a proposta de oficinas de teatro em escolas e universidades; :a promoção de festivais de arte; a criação e difusão de bibliotecas ambulantes; as projeções cinematográficas em praças públicas de pequenas cidades ou em bairros de periferia; entre tantas outras. ~~

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OS agentes culturais de então almejavam estreitar relaciona-

produção marcada por forte teor ideológico, concentraram seus

mento com uma parcela do público que se encontrava fora do circuito comercial de arte, articulando uma luta para abrir as instituições culturais a todos, bem como para levar espetáculos teatrais e promover práticas artísticas, tanto em localidades distantes dos centros urbanos, quanto nos mais diferentes espaços : fábricas, sindicatos, igrejas , escolas , universidades, empresas e hospitais. As atividades aplicadas tinham, por vezes, o objetivo de rever as relações sociais existentes na comunidade ou no interior das próprias instituições onde acontecia o evento . Esse movimento baseava-se na convicção de que todas as pessoas têm plena capacidade e direito de ver e fazer arte. A difusão das práticas artísticas ao mesmo tempo que ampliava o círculo de conhecedores,' tinha por Objetivo subverter a ordem estabe-'

esforços na difusão de espetáculos para um público o mais amplo possível, com o objetivo de não somente manter a sobrevivência. do próprio teatro, mas também, e especialmente, de implementar urna ação política de conscientização por meio da arte teatral. Os grupos buscavam a utilização do palco como espaço para à discussão de questões que afligiam nossas sociedades, convidan-

lecida. A arte - e o teatro funcionava como um dos principais instrumentos de açã? cultural- era veículo primordial de questionamento e transformação da sociedade. A proposta de atividades artísticas para um grande público se estruturava como: uma das respostas à crise que conhecem as nossas sociedades ocidentais, marcadas pela industrialização, o desenvolvimento tecnológico e a urbanização, a cultura de massa, o questionamento de valores tradicionais corno os da família, as dificuldades de comunicação, a desestabilização de instituições sólidas corno a escola, o desemprego, a inflação, a aspiração à "qualidade de vida" , a tomada de consciência ecológica, a vontade de ver reconhecido o direito à diferença, o direito de ser você mesmo (Gourdon, 1986 , p. 27). Na esteira dos movimentos contraculturais que eclodiram no período , nos países há pouco citados, várias trupes, com uma

do os espectadores a participarem desses debates . Esses artistas, impulsionados pelo cansaço diante de práticas teatrais conhecidas e pelo desejo de extinguir o fosso que separava o palco da platéia, conceberam métodos bastante particulares que tinham oobjetívo de provocar a. atitude do público diante dos fatos trazidos à cena. Essas formas dramáticas contínham, assim, urna proposta pedagógica atrelada ao interesse artístico e estavam calcadas, em grande parte, na intervenção direta da platéia no evento artístico . E~ses experimentos permitiram o redimensionamento da posição do espectador em sua relação com a obra teatral.' Dentre os relevantes movimentos teatrais que surgiram neste período, voltados para a especíalízação de espectadores com O objetivo de estimular a platéiapara uma tomadade posição críticaante as questões apresentadas, destacam-se: as experiências do Lívíng Theatre, realizadas nos Estados Unidos, e que exerceram forte influência em muitos outros países: as técnicas do Teatro do Oprimido, que foram aplicadas primordialmente na França e no Brasll, e alcançaramreconhecimento em diversas nações, a revisão da peçadidática,que provocou a retomada deste teatro brechtiano, possibilitando o desenvolvimento de ricas experiências de formação emnosso país; entre outros. Para melhorconhecimentodesses experimentos, pode-se consultar as seguintes obras: sobreo LívíngTheatre ver JeanJacquot.The Lívíng Theatre. In: ~ .Lessioies de la cr éatum th éãtrale (Paris, CNR8. v. 1/1970); sobre o Teatro doOprimido , Augusto Boal. Teatro do Oprimido (Rlo de Janeiro, Cívíhzação Brasileira, 1988); sobre a revisão da peça didática, Ingríd Dormien Koudela. Breclu. um jogo de aprendizagem (São Paulo, Perspectiva, 1991). . I

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Propondo uma nova maneira de compreender a atuação política, a ação por meio do teatro , um instrumento revolucionário, provocaria a potência imaginativa e transformadora do público. . As formas artísticas 'mais surpreendentes e contraditórias surgiram neste período, todas encaixadas em um movimento comum, de um radicalismo COm grande vitalidade, em permanente contestação à sociedade e cultura dominantes, que desconstruía os espaços teatrais tradicionais e transbordava pelas ruas e outros locais à procura de espectadores, diminuindo a distância entre vida teatral e vida social. Os espectadores do futuro Nesse período, surgiram também importantes experimentos que tinham em seu horizonte a criança como alvo predileto para renovação do público teatral. Em um contextosocial marcado pela afirmação do direito de parcelas desprívílegíadas da popu-lação de ver e .fazer arte , àssiste-se a uma explosão sem p~eceden-tes da criação teatral dirigida ao público infantil. O então denominado "teatro para crianças" alcança enorme sucesso, especialmente em alguns países da Europa, como França, Bélgica, Espanha, Portugal, entre outros; e tem também grande expansão em outros países: Estados Unidos, Canadá, Austrália e Brasil. Trata-se de um movimento que defendia o direltoda criança de possuir uma produção cultural que lhe fosse.espe-cialmente dirigida e seu direito à prática artística, além de objetivar também a sustentação e a transformação da própria arte teatral. Ou seja, as companhias que produziam teatro para crianças acreditavam que, aofonnarem espectadores infantis, estariam preparando os espectadores do futuro - que, ao se tornarem adultos, estariam capacitados a ditar os novos rumos dessa arte , e, futuramente, resolveriam a questão do esvaziamento das salas, pois já estariam habituados a freqüentar os teatros.

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O crescimento de produções teatrais para a infância aconteceu em concomitância com o estreitamento das relações do teatro com a escola. Motivadas pela possibilidade de alcançar todas as crianças, de todas as classes sociais, uma grande quantidade e variedade .de espetáculos e oficinas teatrais passaram a ser realizados em instituições educacionais. Havia também nessa iniciativa um anseio de modificar o próprio sistema escolar, considerado esclerosado, abrindo-o à arte e aos artistas. DINAMIZANDO A RECEPÇÃO TEATRAL

As trupes passaram, assim, a visitar com maior freqüência as escolas, propondo diversas atividades de expressão dramática, com o objetivo de sensibilizar crianças e jovens para o teatro. Essas práticas,que passaram a ser conceituadas como animações teai:rais,2 tanto podiam organizar-se em tomo de um espetáculo teatral, dinamizando a compreensão da encenação vista pelos alunos , quanto se estruturar como oficinas teatrais autônomas que, trabalhando a expressividade e criatividade dos participantes, não tinham necessariamente ligação com uma determinada peça de teatro . As animações teatrais autônomas.' que não estavam vinculadas a um espetáculo teatral, estruturavam-se como oficinas in-

o conceito de animação teatral (animation théêttrale) nasce na França ,

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país que tem papel preponderante nessas experiências realizadas visando à formação de crianças ejovens espectadores. As práticas de animação teatral foram também aplicadas em outros países europeus, tais como: Bélgica, especialmente, além de Itália, Espanha, Portugal , entre outros. No Brasil, nos anos 1970 e início dos 1980, alguns grupos de teatro realizaram, de maneira esporádica, práticas de animação teatral nas escolas. O sociólogodo teatro Reger Deld írne, belga, reconhece duas maneiras possíveis de aplicação das anlmaçõesteatraís: aquelas que estão vinculadas a um espetáculo teatral, as quais definiu como animações teatrais periféricas, e as que acontecem independentes' de qualquer espetáculo, as quais denominou animações teatrais atLtónomas (Deldime , 1990).

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dependentes e estavam fundamentadas na aplicação de jogos e exercícios que proporcionassem a ampliação do domínio da linguagem teatral pelos participantes. Algumas dessas oficinas pro' piciavam aos alunos a apreensão de diferentes técnicas, como

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teatro de sombras, teatro de bonecos, confecção e utilização de máscaras, entre outras. Aplicavam-se animações autônomas tanto nas escolas quanto em fábricas, sindicatos, associações de moradores, etc. Estas animações teatrais foram também muito utilizadas por grupos itinerantes que se deslocavam até regiões afastadas dos grandes

mais bem observados pelos alunos no ato de recepção da obra. Essas animações, por vezes, ensinavam aos participantes o funcionamento de alguns artifícios e elementos de cena do espetáculo, tais como: utilização dos refletores, criação da sonoplastia, construção de determinados materiais cenogr áflcos, etc. Com esse procedimento, os animadores queriam desmistificar a máquina teatral, estimulando os alunos a lançar um olhar distanciado , crítico, à encenação que seria posteriormente apresentada. Alguns artistas e educadores dos diferentes países em que essas práticas foram implementadas manifestaram-se contrári-

centros urbanos ou bairros da periferia, com o" intuito de promover práticas teatrais, inserindo essa arte na vida cultural da região . Por meio de atividades dramáticas propostas, esses grupos queriam tornar os participantes capazes de questionar suas condições de vida, manifestar suas idéias e anseios e transformar o ambiente pessoal e social. . As animações que se organizavam em tomo de um espetáculo, sendo por esse motivo conhecidas como animações teatrais periféricas', tinham por bjetivo principal a formação de espectadores. Elas se estruturavam tanto com base em atividades que forneciam informações complementares a respeito do espetáculo que seria visto pelos partícípantes , quanto pela aplicação de exercícios que, explorando a linguagem teatral, se destinavam a

os à utilização de animações teatrais antes do espetáculo , por entenderem que, ao revelar previamente elementos da peça, os exercíciós de animação corriam o risco de romper a "magia" da encenação, diminuindo o envolvimento dos espectadores. Além disso, argumentavam que as atividades aplicadas antes do espetáculo poderiam influenciar e condicionar de maneira definitiva a leitura dos alunos, impedindo-os de realizar uma interpretação livre da obra. As animações teatrais propostas depois da apresentação do espetáculo tinham o objetivo de explorar pedagogicamente a experíêncla artística, por meio da aplicação de variados jogos e exercícios. Os próprios artistas dos grupos, preferencialmente, ou os pro-

capacitar o espectador iniciante a urna leitura mais aguda da

fessores das escolas organizavam e aplicavam essas práticas de

encenação. Eram também utilizadas para avaliar o grau de compreensão e interesse do público sobre o espetáculo em questão . As animações teatrais periféricas aconteciam antes ou depois da apresentação do espetáculo. As atívidades'propostas antes da peça tinham o intuito de preparar os alunos-espectadores para a leitura da peça que seria vista e, quase sempre, sublinhavam alguns aspectos artísticos do espetáculo que, assim, poderiam ser

formação de espectadores. Considerando suas principais tendências, definidas em função de variados objetivos, pode-se categorizar as animações teatrais que aconteciam em torno de um espetáculo da seguinte maneira.' animações de integração escolar, animações de expressão e animações de leitura.~ As animações teatrais de integração escolar, como o próprio termo sugere, buscavam integrar a obra teatral ao processo de

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aprendizagem escolar. O espetáculo motivava atividades múltiplas, tornava-se pivô de um estudo que podia interligar diversas disciplinas do currículo escolar, sendo utili~ado como atividade .. d~ reforço. A peça propiciava, assim, a aplicação de exercícios , visando a uma dinamização do aprendizado em diversas áreas do conhecimento. Alguns grupos, especialmente na França e na Bélgica, distribuíam nas escolas fichas pedagógicas relativas a cada espetáculo, com o objetivo de indicar aos professores sugestões de desdobramentos escolares para a peça teatral. Essas fichas, que podiam vir acompanhadas de fotos ilustrativas, slides ou gravações em fita cassete de músicas, geralmente traziam as seguintes informações: 1) apresentação da peça, incluindo um resumo e comentários sobre a temática abordada; 2) análise formal do espetáculo; 3) sugestões de exercícios de preparação das crianças para o espetápulo; 4) exercícios de desdobramento aplicáveis às diferentes disciplinas escolares; 5) referências biblio-gráficas, úteis aos professores para melhor compreensão da peça e melhor aproveitamento dessas atividades. 4

As categorias de animação teatral apresentadas neste trabalho foram livremente concebidas com base nas determinadas por Reger Deldime em seu vasto estudo sobre o assunto . Embora as definidas por esse sociólogo do teatro tenham sido particulannente recolhidas das práticas tea trais de seu país, a Bélgica , sua ampla pesquisa acerca do tema nos pode auxiliar no entendimento da estruturação das animações teatrais nos d íferentes países em que foram (ou são) aplicadas, mesmo no Brasil. Reger Deldlme organiza as animações teatrais nas seguintes categorias: les

animations pédagogiques, les animations id éologiques, les animationsimplantations regionales, les animations-décodages, les animacionsexpressions, les animations culturalistes. As definições de cada uma dessas categorias podem ser encontradas nas seguintes obras do sociólogo: Animation et théãtre pour enfants (Bruxelas, Instítut de Socíologíe de l'Uníverslt é Líbre de Bruxelles, 1985) eLe ouatriême muroRegards sociologiques sur la re~ation théátrale. (Carniêres, Lansrnan, 1990).

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As animações de integração escolar aconteciam, normalmente, após o espetáculo e estabeleciam relações entre a encenação vista pelos alunos e diversas áreas do conhecimento. As atividades de desdobramento.da peça enfocavam, por exemplo: noções de matemática (exercícios de conjunto, dividiam-se os personagens em grupos); abordagens históricas; exercícios de expressão escrita (redações sobre a peça ou aplicação de ditados); atividades de artes plásticas (a criação de cartazes para a peça ou de desenhos animados que retratassem a história contada) . Havia ainda outras tantas atividadesque variavam em função das possíveis aborda~en.s suscitadas pelo espetáculo e da faixa etária dos alunos. Essas animações , bastante freqüentes nos países acima citados, na década de 1970, foram muito criticadas nos anos subseqüentes,consideradas "escolarizantes" e acusadas de "pedagogizar" o teatro pelo fato de o espetáculo teatral ser utilizado como instrumento de aprendizagem de determinadas díscíplínas da grade curricular ou como mero pretexto para atividades normalmente aplicadas no cotidiano .escolar. A arte teatral acabaria, deste modo, por ser "fagooítada" pelo sistema de ensino, em que vigorava o "dídatísmo" e o "dlrtgísrno". A utilização do teatro como ferramenta para a apreensão de conteúdos disciplinares empobrecia o diálogo do aluno-espectador (e os desdobramentos desse díãlogo) com a peça , tornava a experiência estética padronizada, atrelando a recepção às necessidades da' escola. As animações teatrais de expressão constituíam-se fundamentalmente de oficinas e atividades teatrais, de curta ou longa duração, propostas às escolas vincula~as à apresentação de um espetáculo. Nas animações de expressão, utilizava-se, preferencialmente, a aplicação de jogos de improvisação, centrando o foco do trabalho no aprimoramento da expressividade dramática dos participantes. Por vezes , propunha-se a montagem de

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pequenos espetáculos, que podiam ser inventados pelos próprios alunos, responsáveis por conceber eoletívamente trama, personagens, cenário, figurinos e adereços; dessa maneira, proporcio, na-se aos alunos o contato com diversos aspectos da arte teatral. Em alguns casos, aplicavam-se ainda atividades de escrita, em que a prática drarnatúrgica era exercitada com os participantes; ou ateliês de criação plástica, para trabalharem a confecção de elementos cenográflcos; ou oficinas de iluminação, direcionadas à construção à exploração criativa de refletores. A aprendizagem daIlnguagern teatral, em seus diferentes dornínios , buscava oferecer instrumentos aos partícípantes para um diálogo mais intenso com os espetáculos. As animações teatrais de leitura pretendiam dinamizar a recepção do aluno-espectador, propondo atividades que possibilitassem urna leitura mais apurada da obra. Fichas pedagógicas, co.ntendo informações sobre a peça e sugestões de atividades para serem aplicadas pelos professores, antes ou depois do espetáculo, também eram utilizadas pelos grupos teatrais que promoviam essas animações. Eram apresentadas em duas vertentes: animações de leitura horizontal, que procuravam destacar e pôr em debate o tema da peça, ressaltando o conteúdo veiculado pelo espetáculo; e animações de leitura transoersal, que buscavam propor atividades que capacitassem os espectadores íníolantes a decodificar os signos que constituíam a encenação. Nas animações de leitura horizontal, em que o conteúdo da peça era prioritariamente abordado nos exercícios propostos, os animadores estimulavam o grupo de alunos a debater o assunto em questão e a improvisar cenas que se relacionassem com o tema da peça. Essas animações chamavam a atenção dos participantes para O discurso da obra, para a atualidade dos ternas tratados, além de provocar a observação dos alunos para

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corno a encenação lidava com tais questões e que técnicas teatrais eram utilizadas nessa abordagem. As animações de leitura horizontal focalizavam elementos de texto e de cena sempre ilustrativos, que propunham uma leitura imediata. . Essas atividades, que enfocavam primordialmente a temática da peça, podiam, por exemplo, ser estruturadas com base nas seguintes práticas: 1) exposição sobre a vida do autor, de seu tempo (em se tratando de uma peça de época) e do conteúdo do texto; 2) interpretação pelos atores de uma cena representativa do espetáculo; 3) curto debate sobre a atualidade da situação encenada; 4) aplicação de exercício dramático em que Os alunos transpunham a cena montada pelos atores para acontecimentos contemporâneos ou para situações outras que, de algum modo, estivessem relacionadas às apresentadas pelos atores. Nas animações de leitura transversal, que tinham corno objetivo capacitar alunos-espectadores para a decodificação dos signos do espetáculo, o enfoque dado às atividades propostas reduzia a importância da percepção imediata provocando o espectador a empreender uma interpretação da encenação, estimulando-o a efetivar sua compreensão dos significados contidos nas concepções dramatúrgícas, intenções gestuaís, opções cenográ-fioas e demais' criações dos realizadores do espetáculo. Propiciar aos alunos a compreensão do espetáculo não se reduzia à trama, mas se constituía de uma totalidade de signos, pois ensinava-se a 'reconhecer a especificidade da arte teatral e elaborar os elementos semi6ticos presentes na encenação. Essas animações foram fundamentalmente implementadas por companhias teatrais que construíam os seus éspetáculos buscando uma escritura cênica provooaríva, nem sempre evidente, que valorizava a atitude do espectador diante da obra, incitando-o a engendrar uma leitura pr6pria dos signos propostos,

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Partindo do princípio .de que a capacidade de ler os signos não é umfenômeno natural , mas cultural, essas animações de leitura tinham o intuito .de preparar os espectadores para a decifra.. ção dos códigos, realizando uma leitura plural dos espetáculos.

o modo tradicional de recepção do espectador tem como elemento preponderante a espera ansiosa pelo final (ohappy end), acompanhado de um forte envolvimento na ação. Nesse caso, a atenção do espectador está essencialmente centrada na anedota: nas peripécias, nos seus .encadeamentos [.. .] A essa leitura horizontal da obra, Richard Demarcy (Sociologie du spectacle) opõe a leitura transversal, fundada em um modo de recepção em que o espectador não se detém essencialmente na fábula. Observador, ele coloca sobre todos os elementos de significação contidos no espetáculo teatral, a medida de seu aparecimento em cena, a questão: "o que é isto?", i~ediatamente seguida da questão: "o quê isto significa?" (Deldime, 1990b , p. 96) . As animações de leitura transversal sobrepunham-se, assim, às animações de leitura horizontal, mais explicativas e nas quais o espectador se detinha nas perípéclas, na ação dos personagens e no conteúdo veiculado pela peça. Essas atividades levavam os participantes a perceber, como sugeria Ionesco, que tudo é linguagem no teatro, palavras, gestos, objetos, já que tudo tem a função de exprimir, significar (Ionesco, 1962). As animações de leitura transversal queriam sensibilizar os alunos-espectadores tanto para a compreensão do argumento e a apreciação da históría. vquanto para a observação dos elementos especificamente teatrais , chamando sua atenção para a expressão teatral de um argumento , e a maneira como a temática foi tratada a partir da

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utilização de recursos de expressividade e comunicação próprios do teatro. As animações de leitura transversal queriam oferecer pistas ao aluno para uma;ampla leitura do espetáculo, fornecendo instrumentos que o auxiliassem a lançar questões à peça, propondo que o espectador construísse as próprias respostas, distantes de respostas dogmáticas, preestabelecidas. Assim , o leitor adquiriria o hábito de analisar os signos constitutivos da representação teatral, compreendendo o funcionamento do espetáculo e percebendo como se articulam elementos escolhidos e trazidos à cena pela equipe de criação. Essas animações de leitura efetivavam-se , portanto, a partir de exercícios que estimulassem os alunos-espectadores a compreenderem os elementos cênicos utilizados no espetáculo em questão. Para isso, os animadores utilizavam slides, fotos, gravações de músicas da peça ou mesmo a representação de cenas do espetáculo pelos atores, visando provocar os participantes da atividade a se questionarem e responderem criativamente acerca do significado de cenários, maquíagens , gestos, atitudes, etc. Os alunos debatiam os signos produzidos pelos autores do espetáculo e, em seguida, criavam seus próprios signos, explorando elementos da linguagem teatral e elaborando cenas sobre temáticas diversas . As animações em torno de um espetáculo (de qualquer estilo ) eram concebidas principalmente em função de características da peça, do grupo com o qual se iria trabalhar e dos objetivos dos promotores, Não havia (ou não deveria haver) , portanto , fórmulas a serem seguidas , os jogos e exercícios implemen tados eram preferencialmente uma criação dos : animadores. Um procedimento educacional que se propunha, entre outras coisas, a desenvolver a criatividade e o espírito crítico não deveria justamente abrir mão desses valores.

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ESPETÁCULO ANIMAÇÃO

Algumas companhias de teatro - espeolalmente nos países em .que as animações foram usualmente aplicadas - conceberam , em experimentos realizados na década de 1970 e início da de 1980, o que pode ser denominado de espetáculo-animação. 5 Como sugere o próprio conceito, essas práticas teatrais aliavam, na mesmaatividade artística, momentos em que o público assistia à representação corri outros em que ele adentrava a área de jogo, sendo convidado alntervtr.na const~uçãb da cena ou a participar de jogos relacionados com a peça. Artistas e educadores propunham , assim, que os espectadores vivenciassem, no mesmo evento , tanto o ato de recepção quanto a participação em atividades dramáticas integradas à ação da peça. Em tais práticas, portanto, as animações teatrais não aconteciam antes ou depois da peça, mas faziam parte do próprio espetáculo. Como exemplo de espetáculo-animação, pode-se destacar o trabalho realizado pelo grupo canadense Thé ãtre de la Mamaille . Na década de 1980, os artistas da trupe viajaram para as regiões geladas do Canadá, travando contato com o povo inuit,pàra conhecer brincadeiras, histórias e costumes da população local. Depois dessa vivência e das trocas de experiências, foi criado um espetáculo com base em lendas da região, que foi posteriormente apresentado no Qu ébec e em outras cidades canadenses. EmL'Umiak (barco típico feito com pele de foca, e que deu nome à peça), os artistas queriam mergulhar os espectadores nos hábitos, costumes, ritos , mitos dessas comunidades isoladas nas regiões polares. Os espectadores particípavam como persona-

" No Brasil, o encenador Ilo Krugll, por exemplo , realizou diversas experiências nesse sentido.

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gens , atuando diretamente na ação dramática, sendo divididos em três grupos de integrantes do clã dos inuits: os pais, os av6s e as crianças, cada grupo carregando um adereço específico de Identificação. Alguns animadores conduziam a participação dos espectadores que, logo que entravam no palco, dividiam-se espacialmente e cada grupo de personagem se colocava em seu iglu ; Em determinados momentos da peça, propunha-se a participação direta da platéia na ação dramática, como, por exemplo, quando os animadores distribuíam um peixe seco para cada iglu; sugerindo que os espectadores , ao ritmo rítualístíco de um tambor, partilhassem o alimento entre eles, propondo, assim , a partir de um envolvimento tátil, olfativo e gustativo do público, uma vivência dos hábitos desse povo. Nos momentos importantes , em que :decisões precisavam ser tomadas para a continuação da história, respeitando os costumes dessas comunidades , o grupo dos anciãos era sempre consultado em primeiro lugar, "pois as pessoas idosas são consideradas as mais sábias e instruídas acerca das coisas da vida, conhecendo bem a natureza e os ensinamentos de seus ancestrais" (Camirand et alii, 1984, p. 49); mas todos os que participavam das decisões, eram sempre estimulados a justificar as posições que estavam defendendo . Outra forma de participação acontecia quando Luckasi, o herói da trama , entrava numa região escura, sendo proposto, então, que os espectadores-participantes colocassem vendas nos olhos, assumindo a posição do protagonista, e, de mãos dadas, empreendessem uma caminhada pelo palco durante a qual jogos sensoriais lhes eram propostos (a sensação do vento, respingos de gotas d'água, etc.) . No final da peça, no foy& do teatro, músicas e fotos contemporâneas dos Inuit ilustravam o modo de vida dessa população.

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OS PROCEDIMENTOS UTILIZADOS ALCANÇAVAM SEUS OBJETIVOS?

Havia dúvidas sobre os efeitos das animações teatrais , especialmente pela dificuldade de obter um retorno a respeito da eficácia dos procedimentos empregados, Artistas e educadores estavam divididos sobre o risco de as animações serem mera perda de tempo, ou mesmo de funcionarem no sentido inverso , enfraquecendo o desejo das crianças de irem ao teatro, ou ainda se essas atividades de formação ' poderiam de fato tocar, fazer. refletir e auxiliar os espectadores iniciantes a compreenderem melhor a arte teatral. As incertezas acerca da eficácia dessas animações ficam bem evidentes no depoimento do diretor teatral português João Brítes: Catorze anos depois temos mais certezas sobre a influência que essa prática exerceu sobre nós como artistas do que a permanência do contágio que exercemos tão temporariamente sobre os outros. O que 'terá ficado nas centenas de crianças que entre 1974 e 1976 participaram das animações semanais que orientamos? E nos professores, animadores culturais, assistentes sociais que freqüentaram os nossos seminários? E, por último, que contribuições se terão fixado nas gentes transmontanas que conhecemos em 1977? Muito pouco podemos saber do que terá ficado nos outros e contribuído para manter vivo e acutilante o seu sentido crítico, a disponibilidade solidária, o gosto pela criação, pela comunicação, pelo associativismo cultural, que foram e são os objetivos da nossa atividade no campo da "expressão dramática" (Brites, 1989, p. 98) ,

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Os efeitos das práticas de animação sobre os espectadores passaram a ser mais amplamente compreendidos a partir da investigação realízada pelos sociólogos Reger Deldime e Jeanne Pígeon" que, no final dos anos 1980, publícararn uma pesquisa em que foram entrevistados diversos adultos que haviam assistido em períodos escolares, em finais dos anos 1960 e inícios dos 1970, a espetáculos teatrais encenados pelo T.J.A. (Théãtre des Jeunes Années), instalado na cidade de Lião, França. As en trevistas e encontros com esses espectadores, em que dinâmic~s foram propostas para provocar a lembrança da.s peças que tinham sido vistas quando eram crianças, possibilitaram que se constatasse que estavam mais fortemente presentes em sua memória aqueles espetáculos que , na época, haviam sido "animados" e trabalhados com os alunos pelos professores ou pelos próprios artistas, antes ou depois da representação .i A Investigação indicou ainda, entre outras constatações, que as animações teatrais tinham eficácia marcadamente relevante, quando aplicadas em torno dos espetáculos que possuíam uma linguagem considerada de difícil compreensão. De maneira geral , a animaçãodesempenhou papel particularmente positivo no caso dos espetáculos que apresentavam problemas de legibilidade, contribuindo bastante para sua compreensão. Podemos citar o exemplo deBaladar !uma das peças investigadas l, em que a diferença entre a lembrança dos espectadores "n ão-an imados" e a dos espectadores "animados" é gigantesca (Deldime & Pígeon, 1988, p. 128). b

Reger Deldime & Jeanne Pígeon, La mémoire du jeune spectateur (Paris! Bruxelles: De Boeck Uníversíté/Edltíons Unlversítaíres, 1988). 7 Nenhuma das peças investigadas propunha animações integradas ao espetáculo.

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A pesquisa permite supor que as animações propostas em torno de um espetáculo teatral auxiliem a capacitação dos espectadores iniciantes, possibilitando uma compreensão mais aguda da encenação. Além disso, essas atividades criavam também intimidade maior, ao aproximar os espectadores do universo da obra , deixando a experiência artística mais fortemente marcada em suas memórias e presente em suas recordações. O resultado dessa pesquisa, entr-etanto, não constituiu resposta definitiva sobre o assunto. Porém, além de fornecer um importante retorno acerca dos caminhos percorridos até aquele momento, foi recebida com alívio, um consolo, especialmente em países europeus, após tantos anos, mais de vinte (à época), da implementação intensiva de animações teatrais no trabalho de formação de espectadores. T~ANSIÇÓES PARA UMA NOVA ORDEM

A partir de meados dos anos 1980, essas práticas teatrais de que vínhamos tratando ganham novo contexto global. O crescente ímpeto mercantil leva trupes a se constituírem como empresas e, desse modo, precisam aprender a cuidar da saúde financeira de seus investimentos, mostrar resultados - financeiros, evidentemente. Mais do que nunca as companhias de teatro se orientam para o lucro . E, assim, distantes dos ideais que sustentavam as atividades teatrais nos anos 1960 e 1970, longe do voluntarísrno revolucionário que movimentava os integrantes dos grupos , os empreendimentos abandonam cada vez mais o caráter ideológico que animava as produções de anos anteriores . As transformações processadas em todos ps âmbitos da vida econômica e social operam profundas modificações na relação do teatro com a sociedade contemporânea. Essa reestruturação do papel da arte teatral em nossas sociedades influi diretamente

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nas práticas de formação de espectadores, que passam a ser enquadradas de maneira diferente no cotidiano, dos grupos de teatro , alterando o funcionamento das práticas pedagógicas que vinham sendo implementadas até esse período . As companhias teatrais procuram adequar suas atividades aos sistemas de comunicação e ao mercado de consumo cultural, e vão, progressivamente, estruturando seu funcionamento em torno de novas ocupações, tais como: relação com a mídia , que se torna espaço fundamental para a sobrevivência do teatro; contatos com empresas patrocinadoras e instituições governamentais financiadoras das produções; preocupações com sua constituição legal como empresa (trâmites burocráticos, impostos, etc.); relação com possíveis compradores; entre outros serviços. A criação e difusão de espetáculos passa a tomar longo tempo das empresas teatrais, sobrando muito pouco para a implementação das práticas de formação, como acontecia anteriormente. As aplicações de exercícios de animação nas escolas são consideradas, a partir de então, atividades pouco lucrativas , especialmente asrealizadas pelos próprios artistas, que precisavam deslocar-se até as instituições. As companhias especializam-se em produzir e ~ender espetáculos, deixando, pouco a pouco, de oferecer animações teatrais, tanto periféricas quanto autônomas. Se, nas décadas de 1960 e 1970, a formação de espectadores estava calcada numa vontade de subversão por meio de precedimentos pontuais que buscavam transformações imediatas, a partir desse período, artistas e educadores almejam proposições estruturais. As práticas esporádicas ~e animação implementadas pelas trupes passam a ser criticadas por 's empre recomeçarem do zero , sem deixar rastros e começam a ser substituídas por projetos educacionais de longo alcance; o experirnentalismo é substituído pela organização de práticas pedagógicas. Artistas e

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educadores, movidos pelo intuito de realizar um trabalho continuadode formação, em vez de procedimentos implementados de maneira dispersae irregular, querem estruturar projetos de iniciação de espectadores de longa duração, com objetivos e aplicações pedagógicas bem-definidos. Em alguns países, como França, Bélgica, Espanha, Suíça, Canadá, entre outros, os agentes culturais idealizadores dos projetos de formação de espectadores, especialmente os voltados às crianças e jovens, a partir dos anos 1980, conseguem organizar uma estrutura material e operacional que muito se distancia das práticas, ainda esporádicas, quando não inexistentes, implementadas em países como o nosso. Na França, foram construídos teatros especialmente voltados para a infância e juventude que, em parceria com escolas, desenvolvem atividades de formação bem-estruturadas, como, por exemplo, o T.J.A. (Théãtre des Jeunes Années), em Lião,e o T.J.s. (Théâtre des Jeunes Spectateurs), em Montreuil. Na Bélgica, nos anos 1990, foi construído o Théâtre la Montagne Magíque, em Bruxelas, espaço de mediação que promove O encontro entre grupos teatrais e instituições escolares. No Canadá, foi também inaugurado um hem-equipado espaço de mediação denominado La Maison Théãtre, no Québec. A profissionalização das companhias e dos meios de produção, por sua vez, cria condições, especialmente nos países citados, para a organização duradoura de projetos de formação, substituindo as iniciativas sazonais por uma educação permanente de espectadores. A continuidade dos procedimentos e o acompanhamento dos espectadores em formação favorecem o melhor desenvolvimento de projetos, que são constantemente adequados à especificidade e necessidade de cada público. Em geral, as práticas de animação teatral se sustentavam, em anos anteriores, por iniciativas próprias, espontâneas, sem ne-

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nhum tipo de apoio governamental, dependendo fundamentalmente da boa vontade de alguns professores e. artistas . Essas iniciativas isoladas de formação, portanto, começam a ser substituídas por projetos que, englobando a participação de várias instituições mediadoras (imprensa, instituições culturais e educacionais, companhias de teatro, órgãos governamentais, empresas privadas, etc.), podem criar novos dispositivos para facilitar o acesso e melhorar a qualidade do encontro dós espectadores com a arte teatral. A partir de então, destaca-se a importância de se conceber uma criteriosa políticacultural de acesso ao teatro, política esta que defina com clareza, primeiramente, prioridades educacionais e ações culturais a serem implementadas, .buscando, posteriormente, meios próprios (recursos, parceiros institucionais, eto.) à efetivação de projetos. Para isso, estruturam-se medidas e procedimentos que contemplem tanto a ampliação da quantidade do público quanto a capacitação de espectadores. No decorrer dos anos 1990, a noção de animação teatral vai sendo substituída, nas experiências pioneiras realizadas na França e na Bélgica; pelo conceito de mediação teatral, m~is abrangente e que engloba, também, as próprias atividades de animação que eram aplicadas em anos anteriores. As práticas de mediação teatral compreendem, assim, não somente procedimentos artístlcos e pedagógicos propostos diretamente aos espectadores Iníclantes, mas abordam a formação de espectadores como uma questão que abrange as diversas etapas do evento teatral , desde a concepção artística até sua recepção pelo público. É considerado procedimento de mediação toda e qualquer ação que se interponha, situando-se no espaço existente entre o palco e a platéia, buscando possibilitar ou qualificar a relação do espectador com a obra teatral, tais como: divulgação (ocupação de es-

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paços na mídia, propagandas, resenhas, críticas); difusão e promoção (vendas, festivais, concursos) ; produção (leis de incentivo , apoios, patrocínios); atividades pedagógicas de formação ; entre tantas outras. . No entanto, apesar de a participação conjunta de diversas insti-

ênoía, porque, quando o encontro com o teatro é encarado como

tuições, permitindo melhor estruturação de projetos , ser, desde então, considerada fundamental, a instítucíorialização das atividades corre também o risco de esolerosã-los, seja pela excessiva burocratização e desencontros das relações ins-titucionais , seja pela proposição repetida, irrefletida de procedimentos de formação . Em outras palavras , mesmo que se viabilize a implementação de grandiosos projetos, sem a vontade consciente dos agentes culturais , sem uma prática viva e auto-reflexiva, sem anima , sem a motivação e o desejo de transformação que transbordavam nas iniciativas vistas em épocas anteriores, nada feito . As relações-do teatro com a escola sofrem também profundas alterações nesse período. Os projetos mais recentes não deixam de priorizar, entretanto , a instituição escolar como agente fundamental na efetivação de procedimentos de formação , ressal- . tando ainda O' enriquecimento proporcionado às crianças e jovens quando a escola abre suas portas e promove o diálogo dos alunos com a produção teatral contemporânea, permitindo que desenvolvam um outro modo de apreensão da arte e do mundo. Pesquisas demonstram que a maior parte das crianças , na França, especialmente as de baixa renda, travam o primeiro contato com o teatro na escola," o que torna relevante a atuação dessa instituição na mediação desse importante contato, especialmente sua responsabilidade acerca da qualidade dessa experíHNão temos conhecimento de pesquisa sobre o assunto em nosso país, mas pode-se supor que também no Brasil a escola seja a principal med iadora do encontro das crianças e jovens com o teatro.

um dever, uma obrigação escolar, essa aproximação pode tornarse um momento profundamente desinteressante. É fundamental que a relação do espectador em formação COm o teatro não seja a do aluno que cumpre uma tarefa imposta, mas a do sujeito que dialoga livremente com a obra , elabora suas interrogações e formula suas respostas. Isso faz que os mediadores culturais estejam cada vez mais preocupados em tomar (ou simplesmente manter) a ida ao teatro uma atividade que seja, antes de tudo, prazerosa. Não por vontade de inovar a qualquer preço, mas porque uma necessidade imediata se impunha: encontrar uma solução para o fracasso cada vez mais evidente dos espetáculos apresentados diante de públicos escolares "ca tivos ", pouco preparados e pouco motivados . Essas matínês clássicas, organizadas em condições pouco favoráveis para uma real emoção artística, que redundavam, em numerosos casos, em um resultado diametralmente oposto ao procurado e poderiam para sempre causar aversão ao teatro em alguns jovens (Lansman, 1998, p. lOS). Por esse motivo, alguns autores combatem a hegemonia absoluta da escola como detentora do papel de iniciação dos espectadores , reivindicando maior amplitude às ações educativas , de maneira que sê incremente a possibilidade de crianças e jovens de todas as classes sociais terem acesso direto ao teatro , e, até mesmo, com o direito de escolherem por si os espetáculos a que QNa pesquisa realizada por Deldime e Pígeon sobre a memória do espectador infanto-juvenil, referida anteriormente, um dos ternas recorrentes é a manifesta Insatisfação dos alunos com a obrigatoriedade de assistirem a espetãoulos escolhidos pela escola.

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irão assístír;? Argumentando ainda que, se as apresentações escolares têm o mérito de fazer os alunos descobrirem o teatro, as crianças que só freqüentam o teatro em horário escolar associam,

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cessos apaixonantes para formar apaixonados. Sendo a escola um espaço privilegiado para projetos de formação de espectadores, não se pode tratar a iniciação de alunos sem abordar a iniciação dos professores. Ao apontar o direito dos alunos à criação e expressão, é preciso pensar também no direito dos professores, direitO de acesso ao teatro, à possibilidade de ver e de praticar e à capacitação para ler os espetáculos. A diminuição das animações teatrais aplicadas pelos artistas

responsabilidade pela mediação de acesso à linguagem teatral, pela preparação dos alunos, pela proposição de exercícios de dinamização da recepção implementados antes ou depois dos espetáculos. Ao mesmo tempo, porém, observa-se a grande dificuldade docente em conduzir essas práticas, ocasionada pela enorme carência em formação artística desses educadores. Portanto, torna-se fundamental a organização de projetos permanentes de formação em teatro para educadores. Projetos que, além de instrumentalizá-los para a leitura de espetáculos, motivem-nos também a tomar iniciativas, correr riscos, inventar, quebrar a rotina escolar; que possam reunir escolas e grupos de teatro, aproximem artistas e professores, tirando-os do abandono das iniciativas solitárias que podem facilmente tornar-se desestimulantes. A formação dos professores de teatro tem também o intuito de multiplicar o número de mediadores capacitados, de modo que, em vez de artistas e educadores especializados proporem atividades de formação diretamente aos alunos, elas passem a ser oferecidas aos professores, para que estes, então, passem sua experiência e conhecimento adquiridos. Cada professor formado multíplloaria a quantidade e a qualidade dessas práticas. Como mediador fundamental no processo de iniciação de espectadores, pode-se esperar que um educador sensibilizado para a arte teatral: 1) tenha interesse em conduzir seus alunos a espetáculos teatrais; 2) saiba escolher bem esses espetáculos;3) trate crianças e jovens como espectadores plenamente capazes; 4) compartilhe as próprias emoções e reflexões acerca da peça, conservando, entretanto, a liberdade interpretativa dos alunos-espectadores; 5) auxilie-os na decodificação dos signos cênicos, fazendo ver o que pode escapar a um olhar com pouco

nas escolas deixa prioritariamente nas mãos dos professores a

treino; 6) promova jogos e atividades dramáticas, relacionadas

inevitavelmente, o tempo da representação ao tempo escolar, o que acaba por oferecer uma imagem redutora da arte teatral. Projetos contemporâneos de formação de espectadores FORMAR OS FORMADORES

Em todos os lados, é possível ouvir alguém gritando que precisamos de professores apaixonados por arte, doidos por teatro, loucos pelo prazer díalõgíco, imaginativo, estético, pois a existência de um relacionamentO positivo das crianças e jovens com a arte teatral depende, em larga medida, da formação desses educadores; além disso, um professor que não se interessa por teatro não consegue despertar tal interesse. Contudo, definitivamente, professores não se tornam apaixonados por teatro por . " . teatro " , "vá ao tea t"" meio do convencímento: veja ro , voe .preê

cisa gostar de teatro, professor, porque teatro faz bem, teatro é cultura", etc. Como afirmava Walter Benjamin, "convencer é infrutífero". 1t preciso educar, formar os formadores, propiciar experiência para se criar gosto por essa experiência, propor pro-

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PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

~RÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

ou não Com o espetáculo visto , que lhes favoreçam a apreensão da linguagem' teatral , fazendo-os perceber também o valor daquilo que eles próprios criam e que por vezes parece escaparlhes ; 7) esteja capacitado para trabalhar a partir de fichas técnicas

No Brasil, o papel desempenhado pelo professor de teatro nas escolas - o que não existe no sistema educacional de vários outros países -, aliado à formação em teatro de educadores de todos os níveis escolares, pode ser bastante positivo para o de-

e pedagógicas , ou demais materiais , possivelmente oferecidos pelos grupos de teatro para dinamizar a recepção dos espetáculos. Algumas instituições francesas, como o Théâtre des Jeunes Spectateurs, de Montreuil, em relevante procedimento de mediação , convidam professores de diversas instituições escolares para que assistam previamente ao espetáculo que serãvísto por seus

senvolvimento de projetos de formação de espectadores. A presença de um professor formado em teatro , que vai conduzir as práticas de expressão e leitura, estreitando laços afetivos e compreensivos com essa arte, pode ser de grande valia. Porém, torna-se bastante difícil o trabalho desse professor numa escola em que os demais colegas, assim como diretores e coordenadores (que geralmente decidem pela compra de espetáculos ou parcerias com instituições culturais) não estejam sensibilizados para a arte teatral e não consigam estabelecer claros objetivos pedagógicos e critérios de qualidade artística em seus projetos. É necessário, portanto, que todos os educadores de uma escola estejam sensibilizados para a experiência artística, para que o acesso dos alunos à linguagem teatral não seja uma luta isolada

alunos. Nesse encontro , travam-se debates com os artistas, que explicitam as proposições estéticas da encenação, e promovemse jogos de expressão dramática, com o objetivo de intensificar a apreensão da peça, além de motivar e instrumentalizar os professores para que possam, posteriormente, preparar e estimular seus alunos, criando o desejo pela experiência artística que irão vivenciar. A integração entre professores de diferentes escolas, que enfrentam des afios semelhantes com seus alunos, possibilita um rico intercâmbio de experiências e informações. Nessas atividades , podem estar presentes tanto professores que: já possuem larga experiência, como outros que pouquíssimo contato tiveram com a arte teatral.

o conhecimento do teatro e sua prática variam de acordo com os participantes: alguns descobrem pela primeira vez este domínio artístico, enquanto outros trazem um percurso já rico em experiências, mas todos estão abertos para um objetivo comum , que é o de colocar em ação uma estratégia original para melhor auxiliar a criança em seu acesso à arte do espetáculo (Bertin & Giros, 1997, p. 87).

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do professor de teatro no interior da própria instituição escolar, como um dever que competiria somente a esse professor. Ao contrário, é desejável que os projetos de formação de espectadores, bem como o de.freq üentação de museus, cinemas, e incentivo à leitura não sejam iniciativas individuais, heróicas, desprovidas de apoio institucional. Em nossas instituições, tornam-se fundamentais os seguintes requisitos : a presença do professor de teatro e a inclusão da disciplina no currículo não sejam para "escolarizar" o teatro , aprisionando este àquele; as aulas de teatro nas escolas sejam um espaço de respiro, de diversão sim' (mas' não necessariamente de recreação); os espaços oferecidos para essas aulas e a quantidade de alunos por sala ofereçam mínimas condições de trabalho aos educadores; os professores de teatro não sejam somente

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PRÁTIC!>S TEATRAIS E FORMAÇÃO DE

PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

ESPECTADORES

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transmissores de conteúdos ou meros repetidores de jogos conhecidos, mas principàlmente "despertadores" ou propositores

A prática teatral, porém, não se resume à montagem de espetáculos. O exercício do teatro pode também ocorrer por meio

de efetivas experiências artísticas; as aulas de teatro sejam uma

de jogos de improvisação dramática, em que o participante brinca

porta aberta, tanto para o teatro contemporâneo como para o

para aprender o prazer do teatro como elemento lúdico e co-

mundo lá fora, um espaço imaginativo e reflexivo, em que se pensem e inventem novas relações sociais, dentro e fora da escola.

nhecer os mecanismos que o constituem. Alguns projetos de for- . mação, nos diferentes países citados há pouco, procuram, assim, reunir as idas ao teatro com a prática de jogos lmprovísacíonaís. 10 A integração das atividades propostas nas salas de aula com a ida aos espetáculos teatrais possibilita à criança e ao ad;lescente o desenvolvimento da capacidade expressiva e maior domínio da lin-

VER E PRATICAR: UMA VIA DE MÃO DUPLA

A prática continuada do teatro por crianças e jovens, aliada à . freqüentação aos espetáculos, cria uma via de mão de dupla que favorece a compreensão do fenômeno' teatral. O exercício dramático sensibiliza para uma recepção mais atenta, crítica, e aberta a concepções cênicas novas e divergentes, ao mesmo tempo que a ida ao teatro, o diálogo com as obras contemporâneas, possíbilita melhor aproveitamento dessas atividades em sala de aula. A prática teatral pode ser incentivada tanto por meio de jogos de expressão dramática propostos nas aulas, como também pela

guagem teatral, ampliando sua compreensão do jogo de cena e aprofundando sua capacidade de entendimento da obra. Nos jogos de ímprovlsação dramática, o participante pode exercer todas, ou. quase todas, as funções artísticas da criação teatral, podendo desempenhar, na criação de suas pr6prias cenas, ao mesmo tempo, a função de dramaturgo, ator, diretor, cenógrafo, etc. A exploração das infindáveis possibilidades de

estratégias específicas precisam ser postas em ação para que essa

construção de uma cena favorece o aprendizado da linguagem, assim como a acuidade da observação acerca das particularidades de cada encenação, chamando a atenção do aluno-espectador para as opções estéticas dos diversos artistas da criação teatral. O jogador exerce também nesses exercícios dramáticos a função de espectador, ao observar as improvisações dos outros gru-

vivência proporcione uma apreensão que, de fato, contribua para sua formação como espectador. O processo de construção precisa carregar uma tensão e um interesse ínvestígatívo que susten-

pos enquanto espera para apresentar a sua, Ou ap6s tê-la apresentado. Embora o objetivo, em geral, dos participantes seja "fazer teatro", ver os outros jogadores em cena também faz parte do jogo,

montagem de espetáculos com alunos que, nesse caso, podem participar de todo o processo de construção de uma peça, ganhando intimidade com os meandros dá arte teatral. Entretanto, estar em cena ou transitar por ela, ao participar de uma montagem, por si só, não oferece instrumentos ao aluno;

tem essa prática, possibilitando uma rica experiência artística e efetiva apreensão da linguagem. Evita-se assim, que a experiência teatral dos alunos tenha um fim em si mesma, resumida a uma cópia estereotipada do teatro profissional, tornada não mais que um incentivo ao cabotinismo de pais, alunos e professores.

10

Em nosso pais, três principais vertentes de jogos improvisacionais vêm sendo aplicadas: o jogo dramático, o jogo teatral e o drama. Paramelhor conhecimento destas práticas, que têm tradições francesa, norte-amerícana e inglesa, respectivamente, pode-se consultar as seguintes obras: sobre jogo dramático ver Jean-Píerre Ryngaert, Jouer; représenter

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PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

Em um ateliê, todo mundo não está simultaneamente em atividade , e a natureza e função dos olhares lançados sobre aqueles que jogam determinam as práticas. Nós jogamos para nós mesmos diante dos outros, e os retornos incessantes dos olhares caracterizam as atividades. Eu não me referia, portanto, à representação teatral tal qual a compreendemos tradicionalmente, que estabelece estatutos diferentes para atores e espectadores. No círculo da formação, considero indispensável que essas funções sejam, vez a vez, ocupadas por todos os participantes (RYD:~aert, 1985, p. 13). Os exercícios de improvisação resultam em uma pluralidade e diversidade de respostas , os grupos apresentam, por vezes, situações semelhantes e , ao mesmo tempo, marcadamente diferentes. A observação da realização cênica dos outros participantes é de suma importância para o aprimoramento do olhar; o jogador, que elabora a própria realização para a proposta dada pelo coordenador da atividade, enriquece-se "ao deparar com realizações completamente diferentes da sua, surpreende-se com a infinidade de possibilidades de criação cênica para a mesma proposta. Após os exercícios, geralmente, promovem-se debates entre os participantes sobre as apresentações dos grupos , em que sugestões e comentários são feitos com 6 intuito de analisar as cenas, visando propiciar aos jogadores, entre outras aquisições, a consciência de que , na criação teatral, não existe verdade cênica absoluta; se uma cena foi assim criada, assim apresentada pelos artistas, poderia, no entanto , ter sido elaborada (Paris. CEDIC, 1985); sobre jogos teatrais Viola Spolin: Improoisaçõ» para o teatro (São Paulo: Perspectiva, 1992 ); sobre drama ver Beatriz Cabral (org.) . Ensino do teatro: experiéndas inierculturais (Florianópolis: Imprensa Universitária, 1999). "

PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

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de outra maneira por outro grupo . A aquisição da linguagem teatral permite seu questionamento . . A atenção e o pensamento do jogador-espectador acerca das improvisações dos jogadores-atores dina.mizam sua relação com a cena teatral, armam seu olhar, o capacitam a empreender uma atitude interpretativa, desempenhando o papel que lhe cabe no jogo naquele momento, estando apto a realizar seu lance corno espectador. O jogador-espectador compreende o jogo da cena e sua função nele, observa a resposta criativa dos demais às propostas levantadas pelo professor, ao mesmo tempo que as Compara com sua criação e atuação. O participante aprende, assim, a gostar de ser espectador e percebe a importância fundamental de sua atenção ao outro que está em cena, a importância de sua participação crítico-criativa. Ao compreender o jogo de cena e suas regras, o aluno adquire consciência de que , se o espectador não faz seu papel, não há jogo. Permitindo a exploração e a descoberta do processo dramático, os jogos ímprovisaclonaís não impõem urna estética e não reproduzem, necessariamente, as formas do teatro tradicional, encarregando-se, ao contrário, de interrogá-las, subvertê-las, exagerá-las, às vezes até mesmo negá-las , propondo, assim, um questlonamento permanente dos espetáculos contemporâneos. Os jogos de improvisação, em suas diferentes vertentes, permitem u!ll conhecimento geral do fenômeno teatral em sua riqueza e liberdade expressiva, que fornecem múltiplas pistas de investigações cênicas. Mais do que espectadores, os jogos de expressão dramática, talvez, formem apaixonados por teatro. Ao pensar a formação de espectadores, entretanto, não se pode deixar de priorizar a freqüentação a espetáculos profissionais, associando a prática teatral nas escolas à id~ aos teatros. E ir ao teatro não é uma atitude evidente , criar o gosto por essa arte

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PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

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tampouco, não por falta de atrativos e interesses intrínsecos à experiência, mas pelas dificuldades encontradas pelo espectador ínícíante para estabelecer os primeiros contatos. O professor-mediador vai justamente criar pistas para aproximar o aluno do teatro, auxiliá-lo a travar conversas iniciais, propor atividades que o tornem apto a ler uma encenação, que "é um pouco corno uma página e;crÚa no espaço, um conjunto de signos complexos para decifrar e analisar" (Besnehard, 1996, p. 8), possibilitando que o aluno conquiste o prazer do diálogo possível e compreenda a linguagem que vigora neste universo particular.

por vezes, nem mesmo aonde estão indo , ou a que peça irão assistir; as saídas, assim, não ultrapassam a mera recreação , perdendo-se de vist.a o objeto principal do passeio: o teatro.

Uma imagem dramática, por mais sóbria que seja, possui uma grande complexidade: o gestual dos atores, os figurinos, cenários, acessórios , luzes, ao que se juntam o som, as máscaras, os barulhos, vozes, palavras freqüentemente; cada elemento carregando um sentido em si, aumentado e modificado pelas inter-relações dos diversos elementos; o todo superposto propõe, a cada momento da representação, um significado a este contexto espetacular (Fayard, apud Deldime, 1987 , p. 171). Para abriras portas do teatro, adentrar nesse universo próprio, aprendendo a ler essas páginas cravadas no espaço, é bastante positivo o auxílio de intermediário, que pode ser, além de um professor, um amigo , um familiar, um artista. E essas intervenções de mediação, que visam dinamizar a apreensão de um . espetáculo, podem tomar formas bastante diversas. Aprópria maneira de anunciar um espetáculo, de convidar alunos (ou filhos) , de criar o desejo do que se v àí encontrar, pode ser o primeiro detonador favorável a uma recepção de qualidade. As crianças, quando vão com os pais ou a escola ao teatro, não sabem,

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Por ocasião das representações escolares , lamentamos com freqüência o fato das crianças não disporem das mínimas informações contidas no programa e indispensáveis a todos os espectadores: saber o título e a natureza do espetáculo, o nome do autor e do diretor; por vezes , elas ígnoram até mesmo o fato de estarem indo ao teatro e acham que estão no cinema (Bertin & Giros, 1997, p. 47). Aiguns educadores acreditam que, na preparação dos alunos para ir ao teatro, devem ser incluídas também algumas recomendações concernentes a como se comportar em uma sala de espetáculos, fazendo o aluno ver que assistir a uma peça teatral exige um comportamento cívico e social, uma atitude de respeito ao trabalho dos artistas e aos demais espectadores. Entretanto, essas recomendações, se exageradas, podem acabar estabelecendo algumas regras de conduta, ou normas de comportamento do "bom espectador" que terminam por tolher uma relação de livre descoberta das crianças e adolescentes com o teatro , ao sugerir determinadas atitudes, como, por exemplo: que os aplausos sejam dados somente ao final do espetáculo e com comedimento , sem gritos ou assobios ; ou que não haja manifestações sonoras durante a peça; nem reações exageradas se os atores aparecerem nus ou com pouca roupa; entre outras. Alguns artistas , em espetáculos oferecidos às escolas , criticam o fato de que , muitas vezes durante a representação , ao chamar a atenção de seus alunos para que fiquem atentos e em silêncio, os pro fessores acabam atrapalhando mais o desenrolar do espetáculo

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PR ÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

do que as crianças em suas manifestações espontâneas. Não seria melhor-deixar, por vezes , que os pr6prios artistas estejam no comando da situação? Assim, como é importante preparar os alunos para ir ao teatro , a recíproca é verdadeira, o teatro também precisa estar preparado para receber as escolas; as estratégias traçadas pelas trupes ou responsáveis pela programação cultural para receberem os espectadores no teatro são de fundamental importância para o bom desdobramento do evento artístico. Uma das responsabilidades dos organizadores do evento que pode ser destacada é a maneira de acolher os grupos escolares, deixando-os bem instalados enquanto aguardam o início da sessão. Outra iniciativa, que alguns mediadores entendem ser proveitosa para introduzir o espetáculo, estabelecendo uma transição do burburinho da chegada para o início da representação, é que algumas palavras de apresen tação .da peça que será vista sejam proferidas por um artista ou educador instantes antes do início da encenação, quando os alunos já estão acomodados na sala de espetáculos, centrando a atenção dos espectadores para o que verão. PROCEDIMENTOS PEDAGÓGICOS

DE

MEDIAÇÃO TEATRAL

Na preparação dos alunos para a experiência artística, atividades teatrais propostas pelos professores, seguindo a mesma linha das práticas desenvolvidas na década de 1970 , continuam atualmente sendo consideradas, se bem-aplicadas, um valioso instrumento de mediação . As atividades pedagógicas de mediação teatral, como vimos, podem estimular o aluno-espectador a ret1etir acerca das questões contemporâneas que o espetáculo aborda, auxiliando-o a criar seu percurso no diálogo com a obra, formular suas perguntas para a encenação, tais como: De que problemas tratá esse espetáculo? Que símbolos e signos o artis-

PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE

ESPECTADORES

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ta utiliza para abordá-los? Eu já vi algo parecido? De que outras maneiras essa idéia poderia ser encenada? Corno eu faria? De que modo isso se relaciona com a minha vida? Nem sempre é óbvio definir quais são as melhores atividades a serem aplicadas para qualificar a recepção de um espetáculo, e até mesmo quando se deve ou não utilizar esses recursos de mediação. Que critérios, afinal , podem ser estabelecidos para auxiliar a decisão do professor de aplicar ou não exercícios de desdobramento? Deve-se utilizar a prática de animação em todos os espetáculos? É melhor propor atividades antes ou depois da peça? Os. desdobramentos sistemáticos dos espetáculos não correm o risco de orlar efeitos perversos, diminuindo o prazer espontâneo dos espectadores iniciantes? Se mal-aplicadas, essas práticas não 'c orrem o risco de prestar um desservíço ao teatro? Como definir opções e estratégias? Que meios , jogos e práticas de mediação propor? De novo (infelizmente, ou felizmente!), não há fórmulas e nem procedimentos milagrosos , é preciso capacitar e manter a autonomia dos professores na avaliação e definição dos exercícios, não há como padronizar as atividades que têm de estar em consonância com cada espetáculo, os objetivos dos educadores e o projeto de formação organizado e desenvolvido pela instituição. Dentre os muitos procedimentos pedagógicos de mediação que vêm sendo postos em prática, especialmente em países europeus - onde.normalmente, os custos dos projetos (ingressos, transportes, eto.) são subvencionados por órgãos públicos - podemos destacar o projeto francês denominado Journée au Théâtre que , como o próprio nome diz, convida o:aluno a passar o dia no teatro. Antes (ou depois) de assistir à representação de uma peça, o espectador vai visitar o espaço teatral, conhecer suas dependências, o camarim, a cabine de operação dê luz e som, entre

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PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO 'DE ESPECTADORES

outros ambientes, além de observar demonstrações e receber explicações sobre a utilização e funcionamento dos mecanismos e. aparatos técnicos de uma sala de espetáculos. A atividade tem o objetivo de despertar o olhar do aluno-espectador para curiosidades e particularidades da vida teatral, promovendo um encontro inicial com instrumentos utilizados em cena e maior intimidade com o trabalho exercido pelos artistas, funcio-nários da administração e técnicos do espetáculo. O projeto propõe, assim ) que crianças e jovens descortinem esse universo atípico para eles, se comparado com a televisão ou o cinema. A idéia é promover uma espécie de ritual de passagem, criar um percurso de iniciação que apresente os mistérios do teatro) que revele todos os segredos dos bastidores. Após terem conhecido o teatro pelo lado do avesso, os refletores do palco são acesos e os alunos são convidados a tomar a cena) participando de jogos de expressão dramática inspirados naqueleespetáculo, que foi ou será visto. O Théâtre la Montagne Magíque, 11 espaço belga voltado para a formação de espectadores, em um de seus projetos de mediação, intitulado classes artistiques d'initiatioti théãtrale, convida professores de diferentes escolas, após terem levado seus alunos para assistirem a uma peça de teatro de sombras, por exemplo , a participarem de oficinas em que aprendem com os artistas daquele espetáculo esta técnica teatral específica. Posteriormente, esses professores transferem o aprendizado aos seus alunos e cada ' classe desenvolve, durante um período determinado, a criação de suas próprias peças com a técnica aplicada. Em um dia previamente combinado, todas as classes se encontram para, 11

Este espaço teatral foi criado e é coordenado pelos socíõlogos do teatro Reger Deldime e Jeanne Pígeon que, ap6s mais de vinte anos de pesquisas de recepção teatral e formação de espectadores, resolveram pôr em práticas as suas conclusões. :

PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇ ÃO DE ESPECTADORES

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utilizando um teatro munido dos aparatos técnicos necessários e com auxílio de profissionais do espetáculo , apresentarem as cenas criadas pelos alunos das diferentes escolas que participaram do projeto. Atualmente, o Thé âtre des Jeunes Speotateurs, de Montreuil , destaca em seu trabalho de formação de espectadores a importânc ía de integrar os pais de alunos nos projetos, aproximandoos do processo de aprendizagem. Em parceria com companhias teatrais e instituições escolares, o T.J.S. promove eventos culturais (que não são caracterizados como atividades escolares), à noite ou nos finais de semana, em que as famílias dos alunos são convidadas, juntamente com os professores daquela escola, a assistirem a apresentação pública de uma determinada peça; os 'pais são, assim, convocados a participar ativamente da formação artística de seus filhos. A aprovação, o apoio e o incentivo do meio familiar são importantes para que a criança integre o teatro como rico e prazeroso hábito cultural. Embora o professor seja um mediador privilegiado, está claro que ele não deve ser o único a assumir esse papel. Essa iniciativa possibilita, ainda, que muitos adultos que nunca foram ao teatro travem um primeiro contato com essapràtioa artística. Outra estratégia de mediação que deve ser observada é o projeto francês conhecido por Leoer des Rideaux (levantar as cortinas), em que várias salas, em um mesmo dia, em sessões de apresentação pública, abrem as portas para os alunos das escolas ou un iversidades, cedendo o palco para que os próprios estudantes apresentem seus trabalhos , com duração de 5 a 10 minutos , não necessariamente uma cena teatral , mas que seja um "eco" , uma "ressonância" do espetáculo que será visto em seguida. Muitas vezes, nesse dia, é lida uma "carta aos pais ", escríta por artista de renome, enfocando a importância da formação teatral em

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todas as suas dimensões. Em 1998 , 176 teatros participaram do projeto, que mantém um tom festivo e espetacular e visa sensibilizar pais , professores, artistas, profissionais da mídia, etc . Asocialização do espectador iniciante, aliada ao conhecimento técnico do teatro e a doses de criação artística, são ingredientes presentes em diferentes projetos de formação, cujo objetivo é, além de instaurar o hábito , proporcionar ao espectador a apropriação do fenômeno teatral e o desenvolvimento de sua potencialidade criativa. No entanto, diversas são as possibilidades de incentivar e facilitar o acesso ao teatro, assim como variados são os procedimentos que podem ser aplicados para proporcionar a apreensão das técnicas teatrais e que estimulam a capacidade inventiva do espectador iniciante. As práticas de formação , portanto. jpodern tomar inúmeras direções , O que torna fundamental a necessidade de se definir um eixo ao projeto implementado e objetivos claros para intervenções formadoras. Para isso, é preciso estabelecer prioridades, escapando da pretensão de formular um programa que cubra, ao mesmo tempo , todos os-aspectos do teatro , o que pode resultar numa série de experiências incompletas e desencontradas. Tudo é possível, desde que prioridades e os objetivos sejam estabelecidos, cumpridos e avaliados, para que um novo patamar possa ser alcançado. Afinal, quais os objetivos gerais e específicos do projeto de formação? Qual o ângulo de ataque escolhido? Aprender as regras , aplicando jogos improvisacionais? Experimentar a montagem de um espetáculo? Aprofundar o conhecimento técnico do _ maquinário teatral? Formar professores? Convidar artistas para organizarem oficinas nas escolas? Desenvolver a prática de ator? Conhecer os meandros da produção? Explorar recursos de encenação? Que aspectos do fenômeno teatral serão trabalhados no primeiro momento? Quais serão os próximos passos> .

PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

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Há sempre o que inventar no que diz respeito às práticas que bus~am a especialização de espectadores, e é até mes-mo desejável que assim seja, pois projetos aplicados, e que funcionam muito bem em um país (ou região), não funcionarão necessariamente em outro, e mesmo procedimentos pedagógicos que possibilitam excelente resultado na apreensão de uma determinada peça , podem oferecer respostas absolutamente decepcíonantes quando aplicados em outro texto, ou até em diferente contexto. Espectador ínícíante ou espectador "café-com-leíte"? As lutas para a modificação do estatuto da criança na sociedade estão estreitamente ligadas aos combates travados pelos direitos de parcelas desprivilegiadas da sociedade. A primeira tomada de consciência coletiva, no que diz respeito à situação das crianças, ocorreu na época da Revolução Industrial, em fins do século XIX, tendo por base uma visão em princípio econômíca. Uma batalha que se iniciava, à época; contra a exploração da mão-de-obra infantil e vinculava a luta pela emancipação da criança com aquela implementada pelo proletariado por melhores condições de trabalho e vida. A partir desse período, em consonância com o crescente debate acerca do lugar estabelecido para a criança em nossas sociedades, a construção de espetáculos teatrais, bem como de obras de arte em geral , notadamente obras literárias, destinadas ao público infantil, intensifica-se pouco a pouco. Ai-informações que nos chegam das peças oferecidas ao público infantil nessa época, contudo, dão notícias de uma produção dotada de qualidade artística duvidosa, apoiada em uma linguagem pobre e éxcessivamente 'açucarada. A produção teatral direcionada ao espectador infantil começa a ganhar COntornos mais definidos, aprimoramento da linguagem e de pesquisa estética, no início do século )LX, especialmente em países

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europeus, e, desde então, vem desenvolvendo-se continuamente por todo o mundo. : - ' Por volta de 1970, o então chamado "teatro para crianças" ' - gánha força jamais vista. A prática teatral dirigida ao público infantil desenvolve-se intensamente nos mais diversos países; um movimento que estava calcado, como vimos, na urgência de realizar produtos artísticos para espectadores privados de acesso aos bens culturais. A partir dos anos 1980, á quantidade de espetáculos teatrais oferecidos às crianças começa a ser contraposta a um deoréscímo em sua qualidade. A discussão acerca da qualidade do teatro dirigido ao público infantil passou a ser preponderante, não bastava mais montar peças para crianças e jovens, era preciso, en· tão, oferecer a esse público bons espetáculos. Esse debate se prolonga até os dias atuais, neles vigorando, entretanto, uma produção de baixa qualidade. Conhecendo bem a evolução do teatro infanto-juvenil, n6s todos sabemos que algumas trupes desenvolvem projetos fabulosos, tendo uma intransigência extrema acerca da qualidade de suas produções , mas a proliferação de espetáculos medíocres s- e que se -vendem muito bem nas escolas , apreços baratos - contribui para manter na opinião públi ca a imagem tradicional, um pouco débil, que decididamente está colada à pele do teatro infanto-juvenil. O fenômeno existe também na França, no Québec , e um pouco por todos os lugares, eu creio (Deldime, 1990a, p. 69). A baixa qualidade artística das produções teatrais destinadas às crianças está, em grande parte, fundada na pr6pria necessidade de adequar a linguagem do espetáculo ao pretenso "gosto da

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criança", ou -melhor, na necessidade de agradar aos adultos, aos responsáveis, em suas diferentes instâncias, de satisfazer as expectativas de quem possui, no fim das contas , o poder de compra (responsáveis eulruraís, professores , pais ) ou o poder de determinar o bom desdobramento de uma produção (críticos de jornais e revistas, jurados de prêmios , etc.). Tudo isso acaba por definir um padrão estético para o dito "teatro infantil", levando os produtores a não se contraporem ao conceito de infância estabelecido, construindo espetáculos que não incomodem ou choquem, adequando seus trabalhos ao consenso estético em vigor, que determina o que é "bom para a criança". Escrever e encenar espetáculos para o público infantil supõe, então,' que a negociação com os representantes desse mercado se faça implicitamente, e as margens dessa negociação são estreitas, situando-s.e entre o "bom gosto" , uma certa idéia positiva do mundo , e umdidatismo cada vez mais sutil. Essas condições são pouco desejáveis para a criação artística, desviando o teatro aberto a crianças do que deveria ser seu principal objetivo: constituir-se, antes de tudo , como teatro , ponto. Um teatro em que a exigência seja fundamentalmente artística, com tudo o que a arte pode 'oferecer de incômodo e desestruturador. É desejável, portanto, que os produtores culturais lutem pela liberdade de conceber espetáculos dotados da capacidade, inerente , à obra de arte, de abalar as certezas e costumes dos espectadores (tanto crianças, quanto adultos) quanto a teatro ou vivência cultural. A busca de uma criação adaptada a determinada compreensão, de um teatro específico, de uma linguagem adequada "para crianças" deixa nebulosa a dimensão estética da obra. Nossos palcos, no entanto, nas ofertas feitas ao público infantil, estão entulhados (ainda hoje, apesar de tanta reflexão e tanto palavr6rio sobre o assunto) de! um teatro que não conhece a

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dúvida, não interroga sua função nem seus modos de escrita e encenação, buscando adequar-se a um pretenso gosto, fechando-se na estética do consenso. Um teatro dócil, que visa não . desagradar ninguém, trazendo uma "mensagem" obrigatoriamente positiva e otimista, submisso e que abaixa a cabeça para normas de pensamento e percepção. "Assumir a exceção contra a regra: esta é, de fato, a responsabilidade ética do 'théâtre jeune publíc';'! é a única condição de emancipação de seus espectadores" (Pígeon, 1991, p. 78). Abrir as portas das salas de teatro ao público infantil, convidando a criança espectadora ao diálogo estético, não significa construir determinada forma de teatro, tendo por base a busca de uma linguagem "específica", adequada a seu gosto e capacidade compreensiva, mas tão-somente fazer teatro, com a liberdade, inquietude e investigação de linguagem próprias ao fazer artístico, estimulando um debate em que o espectador infantil também participe, estabelecendo um diálogo, encontro entre adultos e crianças, convidando todos a refletir sobre os problemas do mundo contemporâneo, nossos questionamentos, a partir de diferentes pontos de vista, diversos enfoques. Pontos de vista que permitam às crianças e aos jovens esta atividade sensível e intelectual de espectadores plenos.[ ... ] se colocarem como indivíduos pensantes e responsáveis ante as grandes questões de sua época, aos debates urgentes de nossas diferentes sociedades (Yendt, 1989, p.66). Reconhecidos como "teatro para crianças", "teatro infantil" ou "teatro jovem", os espetáculos oferecidos a esse público conIJ

Designação francesa que vem, recentemente, sendo aplicada ao teatro oferecido às crianças e jovens.

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tinuam sendo, como produtos dotados de linguagem específica, práticas marginais, considerados subprodutos artísticos, não participando efetivamente do movimento teatral global. A luta para acabar com sua especificidade, portanto, é também para que saia da marginalidade; trata-se, fundamentalmente, hoje, de lutar para tirar a criança (e os produtos culturais que lhe dizem respeito) do gueto cultural ao qual está submetida; uma batalha, portanto, contra a segregação cultural e O empobrecimento artístico da produção teatral dirigida ao público infantil. O que significa, em última análise, afirmando o teatro como espaço privilegiado de debate das nossas questões, incluir efetivamente a criança nos diálogos travados acerca dos fatos da atualidade. Afinal de contas, a vida está aí, aberta para a criança, em toda sua intensidade, como estão abertos os meios de comunicação contemporâneos. Portanto, torna-se fundamental que o teatro seja também oferecido a ela em todo seu vigor, principalmente se levarmos em consideração que "teatro é vida condensada" (Brook, 1991).

A noção de infância é construção histórica, conceito que se faz e refaz ao sabor das transformações sociais no decorrer dos tempos. A concepção "infantilizada" que se tem doteatro feito "para crianças" reflexo da própria visão de infância estabelecida por nossas sociedades, concebendo a criança como ser incompleto, alguém que está em vias de, em estado de aperfeiçoamento. O adulto, nesse caso, é modelo de bom acabamento e perfeição. é

Supõe-se, assim, que a ínfânoía deva ser vista como mero estado de passagem, precário e efêmero, que caminha para a sua resolução posterior na idade adulta, por meio da acumulação de experiências e conhecimento. A linearidade do

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tempo cronológico autoriza uma compreensão da infância " que lhe atribui uma qualidade de menoridade e, conseqüentemente, sua r.elativa desqualificação como estado transitório, Inacabado e imperfeito. Essa concepção vai marcar de forma profunda a compreensão do que é ser criança nas sociedades complexas modernas, definindo padrões de normalidade e deficiência, além de legitimar todo tipo de tratamento infligido sobre as crianças pelos "especialistas" (Jobim e Souza, 1996, p. 44). Cada vez mais cedo (hoje a partir dos nove, dez anos), as crianças deixam de querer ver o teatro que lhes é oferecido pois, argumentam, "teatro infantil é coisa de criança". E elas têm razão mesmo , pois se é para a tal da "criança" que se deve mostrar um tal tratamento "infantíllzador", quanto antes ela se emancipar e deixar ~e ser cons iderada "criança", melhor será. Ainda um último ponto. Porque isto preocupa a vocês , eu sei. Após um espetáculo, uma idéia atormenta, incomoda: "Será que meus alunos compreenderam tudo?" . É natural este temor quando se é um bom professor. Mas fiquem tranqüilos, no teatro não é como na escola: não é preciso compreender tudo . O bom teatro deixa zonas de sombra, de incerteza, provoca questões e dúvidas [. . .] (Pígeon, 1991, p.180). Até quando trataremos a criança espectadora como participante "oafé-corn-leíte" do evento teatral, alguém que está presente na brincadeira, mas não é convidado a brincar de fato? E como formar espectadores, sem lhes oferecer um desafio estético efetivo? Em seu diário de trabalho, com base nos diversos

PRÁTICAS TEATRAIS E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

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experimentos teatrais por ele realizados em escolas na Alernanha, Brecht escreveu: "a experiência demonstrá que as crianças compreendem, tão. bem quanto os adultos, tudo o que merece ser compreendido" (Brecht, 1977, p. 217). Enfim, a intensidade do prazer teatral e a pertinência da leitura dos signos das obras não estão diretamente ligadas à faixa etária do espectador.

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O ESPECTADOR ÉPICO: PEDAGOGIA PARA UM TEATRO DE ESPETÁCULO o épico

e a modernidade O surgimento do teatro moderno, em fins do século XIX e início do XX, é proveniente de dois fatores fundamentais: o desenvolvimento científico eas mudanças na estrutura social, política e econômica. Assim como as ciências naturais aprofundaram, como nunca, os seus conhecimentos sobre as condições de vida do homem neste planeta, a realidade político-social foi dissecada e compreendida pelas ciências humanas . A compreensão das engrenagens sociais ampliou a consciência da sociedade sobre seus processos. Movimentos artísticos, entre os quais o teatro, entraram em consonância com este momento histórico. O conhecimento dos, agora aparentes, mecanismos sociais requeria a formulação de novas concepções teatrais; a cena passou a investigar suas configurações internas, buscando linguagens que possibilitassem um diálogo efetivo com a realidade em transformação. As novidades científicas e o desen~olvimento tecnológico do final do século XIX acrescentaram ingredientes de grande importância para as transformações teatrais, proporcionando uma verdadeira revolução cênica. A tecnologia permitiu redimensionar 91

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o ESPECTADOR ÉPICO

o palco, iluminando a cena, inventando sonoridades, tonalidades, profundidades, multiplicando sensações. O palco, corno nunca antes, torna-se capaz de levar ao espectador a ilusão de estar diante da própria vida. É neste contexto histórico que Brecht vai começar a pensar a criação de seu teatro épico, urna teoria que foi desenvolvida durante mais de trinta anos em textos e anotações muito numerosas, por vezes até contraditórias. Contrário à passividade proposta para o espectador do teatro burguês que , imobilizado diante da ilusão de realidade, estava impedido de raciocinar, Brecht sugere uma linguagem abertamente teatralizada. O palco não poderia manter-se fechado, abandonando o espectador ao silêncio solitário e hipnótico das salas escuras, ao contrário, deveria assumir a presença do espectador no evento, apresentando-se como teatro, não ilusão da vida. A ruptura da função usual do teatro tornava-se fundamental para 'Brecht que, não sem urna dose da ironia que lhe era peculiar, classificava os espetáculos burgueses corno pertencentes ao ramo do comércio de entorpecentes. O autor questiona, assim, a função social da arte teatral e busca construir um teatro que revele, interrogue e contribua para transformar aestrutura social. Por meio da revolução do processo teatral se ,chegaria à crítica e à reforma do aparato social. Era preciso destruir o velho teatro e reconstruí-lo em outras bases . "As inovações autênticas atacam o mal pela raiz" (Brecht, 1978, p. 22). O gênero por ele criado procurava manter a tensão entre dois teatros: o burguês e o proletário; surgia da tentativa de relação entre estas duas formas dramáticas, do diálogo entre um teatro com forte tom emocional e outro marcadamente racional. Trazia para o mesmo palco elementos do teatro conscientizador do proletariado, em desenvolvimento naquele momento na Alerna-

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nha, e do daquele que ele chamava de ilusionista, ao qual se opunha fortemente, pois utilizava algumas Inovações científicas da época, em especial a iluminação elétrica, para susc itar no espectador a ilusão de estar diante da realidade, um teatro da burguesia que criticava por deixar a consciência, junto com o chapéu, no foyer das salas de espetáculo. O teatro brechtiano tentava superar estas posições , marcando um questionamento há muito presente nos debates acerca da arte da encenação: Qual a finalidade do teatro, divertir ou instruir? E, para isso, ut ilizava: Por um lado, a técnica do teatro burguês (teatro que alcançou desenvolvimento pleno) e, por outro lado, a dos pequenos agrupamentos teatrais proletários que na Alernanha, após a Revolução, elaboraram um estilo próprio , moderno, ao serviço dos seus objetivos proletários (Brecht, 1978, p. 37). O teatro brechtiano pretendia aliar à emoção um forte teor reflexivo, o que não levaria a um resultado cênico menos prazeroso . Para ele, no entanto, o prazer também precisaria ser posto em questão. O teatro épico deveria ter como objetivo maior a diversão, nisto não se distinguia do teatro burguês. Mas o que seria verdadeiramente divertido ou prazeroso? A seu ver, "deveria se tornar o prazer objeto de uma análise, já que se tinha de tornar a análise um objeto de prazer" (Brecht, 1978 , p. 15). Os recursos cênicos utilizados dessa forma têm o intuito de afastar o espectador da ação dramática" interrompendo a corrente hipnótica e possibilitando a sua atitude crítica. "O espectador não deve viver o que vivem os personagens, e sim ques tioná-los " (Brecht, 1989, p.131). O encenador propõe , assim, que o espectador se distancie e reflita sobre o que vê, em vez de entregar-se a

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um envolvimento emocional que Inviabíllza o raciocínio. Este efeito de distanciamento é a viga mestra do teatro brechtiano.

saria no espectador uma sensação de assombro diante da realidade cotidiana. O assombro é a tomada de consciência, a percepção da dimensão social do acontecimento, a descoberta das muitas possibilidades de desdobramento e desfecho para o mesmo fato . É o sentimento de prazer que provoca esta descoberta (Benjamin, 1993a).

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"dramático" não mantém esta atitude distante [. . .], precipitando-se com terrível tensão para o desfecho, a ponto de sugar o espectador para o vórtice do seu movímenta inexorável, sem lhe dar folga para,observar, criticar, estudar (Rosenfeld, 1985 , p. 156). As arfes da cena, afirmava Brecht, deveriam encarar o desafio de elaborar uma nova forma de transmissão do produto artístico ao público. O teatro precisava renunciar à sua tarefa de guia de espectadores , exercida sem tolerar contradições e críticas, e buscar oferecer, representações da vida social dos homens que permitissem à platéia, ao ver-se diante de situações contraditórias , adotar uma . atitude crítica, tanto acerca dos processos sociais representados como do próprio espetáculo teatral. Brecht pretendia construir um teatro dialético, que funcionasse como a negação da negação. Ao nos alienarmos de nossa força produtiva, de nossas possibilidades criativas, não nos sentimos capazes de transformar. O teatro deveria apresentar situações de maneira tal que proporcionassem ao espectador o estranharnento da situação habitual , a percepção de uma vivência alienada, e despertassem nele a vontade de intervir, de tomar para si a condução de suas atitudes. Distanciado e alienado da alienação , o espectador poderia, então , tomar consciência de sua não . refletida alienação cotidiana e retomar sua plenitude, sua potencialidade transformadora. Distanciado do habitual, o espectador descobriria a verdadeira face do familiar, reconhecendo o c~nhe­ cído. O estranhamento do cotidiano, o questionamento ' do que antes parecia normal e que se mostra agora surpreendente, cau-

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O épico é o gênero literário em que a história é contada tanto por um narrador, em sua descrição dos acontecimentos, quanto pelos personagens, em diálogos que interrompem a narrativa. Tem, portanto, caráter fortemente narrativo, ao contrário do gênero dramático, em que a história vai sendo contada somente por meio do diálogo dos personagens entre si, sem interferência direta de um narrador (autor). No épícovo autor relata uma história já ocorrida e que, em geral, aconteceu com outra pessoa. Portanto, ele fala no pretérito (a história foi assim) e na terceira pessoa do singular (aconteceu com ele); "isto cria uma certa distância entre o narrador e o mundo narrado" (Rosenfeld, 1985, p. 25) . Se a história já aconteceu e quem a conta conhece bem todo seu desenrolar, não há o mesmo envolvimento emocional do autor dramático, que apresenta o fato no tempo presente, como se o estivesse conhecendo pela primeira - . . . vez. Da mesma maneira, o leitor que .entra em contato com um texto épico, uma história já ocorrida, e que lhe é narrada, mantém certa distância do fato e não tem o mesmo envolvimento que o leitor do texto dramátíco , ao qual os fatos , mesmo quando se trata de um acontecimento histórico, são apresentados como se estivessem acontecendo naquele momento . O texto no teatr? épico, portanto, procura apresentar as situações de forma narrativa, tratando os fatos como históricos ~~ .

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fatos já ocorridos e que têm relevância histórica. Essa distância que se 'estabelece entre o espectador que assiste no presente a fato ocorrido no .passado permite que ele mantenha a atítu.'de reflexiva acerca do assunto narrado. No texto do teatro dramático, o autor ausenta-se da história, que parece ganhar vida própria; o espectador vívenoía a história que acontece diante dele no tempo presente. Vinculado emocionalmente à trama, o espectador teria diminuída sua capacidade de sobre ela reflet ír, No gênero dramático, a história desenrola-se diante do espectador, que fica "parado", assistindo à sucessão dos fatos interligados. O épico abrange um conteúdo mais vasto, o autor seleciona os acontecimentos a serem narrados e os apresenta .ao espectador; a história progride aos saltos e o espectador tem de se "movimentar". para acompanhar os fatos, que não têm uma necessária relação causal. A forma épica de teatro tem caráter fragmentário . Por haver autonomia entre as partes da peça, cada cena tem seu valor e cada parte contém. o todo, cada cena tem unidade própria e está ligada às outras pela idéia do todo que traz em si. "Ao contrário da obra dramática, uma obra épica se deixa recortar, como por uma tesoura, em partes capazes de conti!1Uar uma vida própria" (Brecht, 1989, p. 258). As cenas são independentes e não se vinculam por uma relação de causa e conseqüência. Cada cena tem importância própria, tem começo, meio e fim, como várias peças dentro da peça. Essa est,rutura fragmentária das cenas resulta na ação dramática constantemente interrompida, da qual o espectador fica desvinculando e, assim, evita-se apresentar a história de forma determinista, já que o que aconteceu antes não determinaria, necessariamente, o que acontece. O mundo se mostra passível de modificação e afirma-se a possibilidade do homem de surpreender, de mudar o curso dos acontecimentos históricos.

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No épico, como vimos, não há encadeamento rigoroso entre as cenas, não há um crescendo para o clímax, o espetáculo é composto por diversos fragmentos , cabendo ao espectador estruturar a totalidade, elaborar uma compreensão do todo , relacionar cada:situação particular, cada cena, com o tema geral. A evolução linear da trama é quebrada, rompendo com a progressão dramática em direção ao desfecho , deixando a obra suspensa e a conclusão final a cargo do espectador. É que se trata de ,mostrar não uma evolução fatal, irresistível, mas uma série de possibilidades, e paraisso, é necessário decompor uma situação em outros tantos elementos particulares que o espectador "remontará" em seguida [, . ,J. Cabe ao espectador determinar, deduzir do espetáculo este sentido global: em nenhum momento, este sentido é expresso claramente, ele não se realiza em uma cena-ch ave (Dort, 1977,p. 289) .

Assim, o espectador do teatro épico passa de uma cena a outra, mantendo-se distante do fato apresentado, analisando seus aspectos e construindo 'sua compreensão da história narrada . Já que : Seu fim repousa desde logo em cada ponto do seu movimento; por isto não corremos impacientes para um alvo, mas demoramo-nos com amor a cada passo (Schiller, apud Rosenfeld , 1985, p. 32). Como o texto, os elementos cênicos do teatro épico também têm caráter fragmentário ; o palco se mostra desconstruído e cada pedaço que o constitui está à vista , O encenador deixa elaro para o espectador os recursos que utiliza em cena: a luz, o

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cenário, as músicas têm independência dos outros elementos, possuem vo~ própria. Ou seja, Brecht apresenta um teatro des. nudado, que revela os mecanismos utiÍizados, tais como refletores de luz , maquinário cenográfíoo, etc., retirando as tapadeiras, . rotundas e tudo que possa esconder a construção e o funcionamento dos objetos que constituem a cena, evitando o ilusionismo e assumindo a teatralidade da encenação. O palco rasga as cortinas, porque qu~r revelar as engrenagens teatrais e sociais. Embora a fábula ~ej~ considerada o coração do teatro épíco , pois é ela que revela as vicissitudes sociais que enredam os personagens, na concepção brechtiana, no entanto, não apenas o texto, mas a encenação como um todo assume o papel narrativo; o palco conta de maneira crítica a história. Todos os recursos cênicos -aluz, o cenário, os figurinos e adereços - podem desempenhar, função narrativa, comentando a ação , tomando posição em face dos acontecimentos. O palco assume urna função narrativa. A quarta parede não esconde mais o autor, graças a grandes telas - em que se projetavam documentos com cifras concretas, ou fotos Ou citações - que permitiam trazer à memória outros processos que se desenrolavam simultaneamente em outros lugares e que contradiziam ou comentavam as palavras e atitudes de alguns personagens. Essa postura narrativa do palco diante dos fatos trazidos à cena, ressalte-se, somente se tornou viável graças a certas conquistas técnicas do período. A partir de então', para efetivar esta . postura, podia-se contar com as projeções ?e slides e recursos cinematográficos, além de um maquinário motorizado, que aumentou as possibilidades de transformação do palco. Essas inovações permitiram ao teatro incorporar elementos oenográflcos , que dando à encenação um caráter quase literário, com a inclusão

na peça de críticas e comentários do autor que, por vezes, se assemelhavam a notas de pé de pãgína: A cena começa, assim, a exercer uma função pedagógica. O petróleo, a inflação, as lutas sociais, a família, a religião, a manteiga e o pão, o comércio de carnes devem ser objetos de representação teatral. A intenção era trazer o pano de fundo social para a cena, afirmando a dimensão histórica do acontecimento apresentado por meio dos elementos narrativos que a golpeiam, interrompendo a corrente dramática e afirmando a atitude crítica do espectador. Brecht elaborou uma série de técnicas e recursos cênicos com esta finalidade; entre eles se destacam, por exemplo: jornaleiros que percorrem a sala, anunciando mano chetesque caracterizam o clima social, ouslides com fotos histó ricas , ou ainda canções (songs) e cartazes com dizeres que propunham uma visão crítica acerca do fato representado .

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teatro épico progride movido a golpes . Sua forma essencial éa do choque, por meio da qual as diversas e distintas situações da peça se chocam umas às outras. As songs, os títulos das cenas, as convenções "gestuaís" dos atores distinguem cada situação das outras. Dessa maneira, são criados intervalos que comprometem, primeiramente, a ilusão do público. Estes intervalos são reservados a sua tomada de posição crítica, a suas reflexões (Benjamin , 1969, p.""S2). Ao se deparar com o caráter histórico e os aspectos sociais dos acontecimentos e ao perceber as dificuldades do protagonista "de enxergar estes mecanismos sociais que induzem suas atitudes, o espectador questiona-se a respeito da sua existência cotidiana e de como ele próprio se relaciona com estas forças

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invisíveis, tomando consciência da própria alienação. Assim, o autor trabalha com a idéia de que o homem, mesmo envolvido pelas situações, tem. condição de determiná-Ias; de que ele não está entregue à história, mas pode construí-la. "O desejo é de não apresentar apenas relações inter-humanas, mas também as determinantes sociais destas relações " (Rosenfeld, 1977 , p. 149). O homem para ser compreendido precisa estar vinculado aos processos que o condicionam, o fato não pode estar restrito aos aspectos psicológicos , às relações entre indivíduos, ignorando a voz do ambiente em que eles estão situados. Essas forças invisíveis determinam as relações individuais e, por isso, não podem estar ausentes da trama. Distanciar é, para Brecht, portanto, "historicizar", representar as situações como sendo históricas. Para isso, não é necessário que sejam levados à cena somente acontecimentos do passado, o encenador épico pode proceder da mesma' maneira com processos e personagens contemporâneos, mostrando suas atitudes como estando ligadas a uma época, portanto, históricas; Os atores do teatro épico, por sua vez, não se metamorfoseiam completamente, mas guardam certa distância em relação ao papel que representam, deixando visíveis as suas críticas aos personagens e à situação mostrada. O ator apresenta o personagem como se falasse na terceira pessoa do singular: vejam como ele é! O que ele fala! Reparem suas atitudes! Não é permitido, assim, ao espectador identificar-se ingenuamente com os personagens, abandonando-se às emoções vivenciadas sem criticá-las e sem tirar da representação alguma conseqüência de ordem prática. É necessário que os fatos apresentados, considerados "naturais", recebam a marca do ínsôllto, sendo tratados como acontecimentos estranháveis. Somente dessa maneira poderiam vir à tona as leis que regem as causas e os efeitos dos mecanismos sociais. '

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O teatro épico quer estabelecer a relação do homem com o universo que o circunda, do homem com a história dos homens . Move-se do partícular para o universal, parte da representação de um indivíduo para alcançar toda a comunidade em que ele está inserido. O homem é revelado em seu rastro social e histórico. O gesto de um homem está vinculado ao gesto da comunidade humana.' Brecht vai, assim , conceber o que denomina de gesto social (gestus), o gesto ou o conjunto de gestos que revelam a determinação h ístórlca das atitudes humanas. O gesto em seu enfoque social e não psicológico , crítico e criticável. Como, por exemplo, em Mãe Coragem e seus filhos: comerciante que vive da guerra, o personagem morde uma moeda para conferir a legitimidade do metal, revelando excessivo zelo financeiro num conflito que lhe rouba, um a um, todos os filhos. O gesto comenta e denuncia a situação, sua contradição é patética, assombrosa. Todo o palco épico gesticula. O gestus, em -que se pode ler toda uma situação social , pode ser encontrado em vários elementos da encenação, na própria língua, inclusive. Uma língua pode ser gestual, diz Brecht, quando indica certas atitudes de quem fala para, com os outros: "se seu olho dói, arranque-o", é mais gestual do que "arranque o olho que lhe dói", porque a ordem da frase , o assíndeto que domina remetem a uma situação profética e vingativa (Barthes, 1982 , p, 89). Brecht reconhecia que, à primeira vista, o teatro épico poderia ser tomado por uma obra de arte reservada a um círculo I

Brecht possuía, em seus arquivos, dezenas de fotos de Hitler, recolh idas de jornais e revistas, nas quais Investígava a atitude corporal, o gesto do líder nazista. '

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restrito de eruditos, de iniciados. No entanto, afirmava tratarse, efetivamente, de um teatro compreendido pelas grandes massas populares, capaz de oferecer múltiplas propostas e apto a exigir e produzir uma arte do espectador, arte que deve ser aprendida, aperfeiçoada e constantemente exercida no evento teatral. Memória: a mais épica das faculdades Benjamin considerava a obra de Brecht uma confirmação prática de suas teorias estéticas. Em uma de sua.'> cartas a amigos, escreveu: A concordância com a produção de Brecht expressa um dos pontos mais valiosos e importantes da minha posição entendida como um todo (Benjamin apud Konder, 1989, p.63). Os pontos de encontro entre as teorias de Benjamin e Brecht são bastante significativos. A investigação das proposições teóricas de Benjamin, fundamentadas em sua filosofia da história, permite ampliar o entendimento dos ensaios de Brecht. Aliás, as afinidades entre eles não param aí; eram amigos, companheiros de exílio, e mais, companheiros de catástrofe. Os dois articulam em suas obras um pensamento do presente, acentuando a experiência do horror que vinha tomando conta da Europa e abordando as terríveis conseqüências que aqueles acontecimentos produziam nos indivíduos. Em nota sobre Mãe Coragem e seusfilhos, Brecht escreveu que, da mesma maneira que uma cobaia não aprende biologia, as vítimas de uma catástrofe não aprendem nada. Sua percepção dos estragos provocados pelos atos de barbárie encontrava ressonância na voz de Benjamin:

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No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos dos campos de batalha, nãomaís ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros 'sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiência mais radicalmente desmoralizada do que a experiência da guerra de trincheiras, a experiência econômica da inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética dos governantes (Benjamin, 1993a, p.198).

o absurdo e o horror da guerra não constituíam experiência capaz de ser transmitida. O desmoronamento do mundo exterior parecia ter petrificado o mundo interior. A linguagem mostravase insuficiente, talvez inadequada, não conseguia dar conta dos acontecimentos, traduzi-los em algo comunicável. A palavra não podlaproduzír significados diante da situação; a intensidade da experiência sufocava qualquer possibilidade de narrá-la. "Em meio à destrutividade cósmica, a língua não era mais lugar de origem e pertencimento, referência e proteção" (Matos, 1995, p. 3). As lutas de hoje estão sempre em relação com as de ontem. Se mantivermos um abismo separando presente e passado, mundo dos vivos e mundo dos mortos, as lutas se repetirão ao longo da história, sem novas conquistas; para nos livrarmos desse perigo, comentava Benjamin na primeira metade do século XX, é preciso que nos apropriemos das reminiscências, cada vez mais assunto raro. A memória está, aos poucos, se esvaindo, pois está desaparecendo o dom de contar e de ouvir histórias, e isso porque ninguém se interessa mais em trocar experiências, que estão

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se tornando cada vez mais pobres e, com isso, desinteressantes e incomunicáveis (Benjamin, 1993a). Quase nada pode " efetivamente, ser traduzido em experiência em um dia do homem da , era modernaa pobreza das experiências faz que a vida diária se transforme em vivências de situações sem importância. Os choques do cotidiano, os riscos da selva das cidades consomem as experiências possíveis, condenando o indivíduo auma vivência repetitiva e desmemoriada, rompendo os laços da comunicabilidade capazes de manter vivas a tradição e a história da comunidade; pois tradição é memória que se passa de mão em mão. E, se não há memória para ser transmitida de uma geração a outra, está rompida a cadeia da tradição. Exposto a perigos multiformes, e obrigado a concentrar todas as 'suas energias na tarefa de proteger-se con tra o choque, p homem moderno vai perdendo a memória individual e coletiva. O homem privado de experiência é o homem privado de história, e da capacidade de integrar-se numatradlçãofRouanet, 1990, p. 49). ".

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A concentração de esforços para aparar ou desviar-se dos choquesempobrece as potencialidades mentais. A capacidade que antes era empregada para absorver e memorizar as situações do cotidiano, para, posteriormente, revertê-las em experiência, agora trabalha sob tensão nos combates da vida diária. E a memória, lia mais épica de todas as faculdades" (Benjamin, 1993a, p. 210), não resistindo aos choques constantes, foi a nocaute; jaz estirada no asfalto das ruas , espalhada na sujeira dos becos, esfacelada nos cacos dos canteiros de obras . . . Esta mera vivência dos eventos cotidianos "sedimenta a autoalienação do ser humano que inventariou o seu passado como

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propriedade morta" (Benjamin, 1993a, p. 172) e que , no entanto, se acredita plenamente integrado ao processo histórico, O homem não percebe que o passado se repete porque está esquecido dele, pois "rompeu com a cultura e a tradição , e está proibido de construir a história porque se demitiu da história" (Rouanet, 1990, p. 97) Expulso da esfera do discurso vivo, incapaz de criar o presente, pois se perdeu do passado, continua ansioso pelas novidades sempre iguais. Certo de estar renovando o presente, na verdade, soterra a possibilidade do novo, ao desvincular-se da história. O novo, como afirma Benjamin (1993a), não surge do vazio, não surge do movimento aleatório, não surge de gestos sem vínculos com a memória. O novo tem história, adv érn da tradição , mas não de uma tradição irrefletida, apoderada pelo conformismo e, sim, da tradição libertada pelo presente, da relação dialética do presente despertado com os sonhos do passado . Sem ter experiências para contar, o homem moderno está entregue ao vazio da própria linguagem que, superficial e informativa, nada acrescenta. Tão bem retratado pelo teatro do absurdo, ele se assemelha a um personagem que, encontrandose sobre um chão movediço no qual vai afundando aos poucos e incessantemente, parece alheio à situação e continua a monologar banalidades. Acostumado a uma linguagem jornalística, preocupada em notícias de assimilação imediata, "o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado "; com isso, "a arte de narrar está em vias de extinção" (Benjamin, 1993a, p. 197). Se a arte da narração é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por este declínio, Cada manhã recebemos notícias de todo' o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreenden teso A razão

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é que os fatos já nos chegam acompanhados de explica. ções. Em outras palavras: quase tudo está a serviço da ín-

formação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações [. . .], o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele está livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (Benjamin, 1993a, p. 203). Benjamin toma como exemplo, em sua críticaàmaneira como os veículos de comunicação de massa abordam os acontecimentos cotidianos, a peça Um Vôo sobre o Oceano; escrita por Brecht a partir de um fato verídico: o audacioso e solitário vôo de Charles Líndbergh , primeiro piloto de avião a atravessar o Atlântico. Acontecimento que provocou grande entusiasmo e foi ampla. mente notlcíado por revistas, jornais e rádios da época. A obra, porém, ressalta Benjamin, diferente dos bombásticos noticiários , que explodiram em sensacionalismo, "se preocupa em decompor o espectro da «vivência» para obter por decantação as cores da «experiência». Experiência que só poderia ser extraída do trabalho de Lindbergh e não da excitação do público" (Benjamin, 1991, p. 216). O mesmo acontecimento fora, assim, tratado, ora como mero evento, ora como fato histórico. A falência da capacidade de adquirir e transmitir experiências está extinguindo a sabedoria, que Benjamin define como "o lado épico da verdade", forjada a partir do enredamento dos fios da experiência diária, aperfeiçoando sua trama na comunicabi~ida­ de , na relação viva com o tecido social. Ríço em experiências transmissíveis , aquele que sabe narrar uma história sabe "fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo riarrada" (Benjamin , 1993a, p. 200). Quem sabe contar uma

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história assim, sabe continuar outra. Ou seja, quem sabe contar sabe ouvir, e a recíproca aqui é verdadeira. Se o abandono da memória individual e coletiva dá-se pela incapacidade de narrar, é .na linguagem que se localiza esta falência e é nela que se encontram as possibilidades de sua própria transformação. O mergulho na corrente viva da linguagem acende a capacidade transformadora, pois a tomada de oonscí êncía é uma leitura de mundo . Apropriar-se da linguagem é ganhar condições para essa leitura. Na linguagem, o passado, o presente e o futuro se interpenetram e se transformam; revê-la é rever a história, ' pois esta existe na linguagem; a história está viva no discurso vivo. Linguagem que é intrínseca à própria história, já que o discurso histórico é sempre uma narrativa [... ] Fazer história é contar história [.. .] Pois, na medida em que o homem só pode recebera história numa transmissão, a hístória condiciona e mediatiza o acesso à linguagem (Kramer, 1993, p. 65). A linguagem revela-se instrumento precioso, não se limita apenas a ser veículo da história, mas a faz. Para reconstruir a história, portanto, é preciso reconstruir a linguagem. o HISTORIADOR PARALISA O TEMPO PRESENTE Cabe ao presente abrir diálogo com o passado , uma vez que o ontem não se cansa de gesticular em, direção ao hoje. Cabe ao sujeito revolucionário o gesto de fazer e refazer a história, para que nossos mortos, e seus sonhos, não fiquem entregues ao ini-

migo. Trata-se de reconhecer os momentos de tensão, de perigo , . e retirar deles as centelhas de esperança contidas em cada uma

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das situações, para que estas centelhas se libertem e iluminem o presente. A reflexão sobre o que está acontecendo está vinculada àquela sobre o que aconteceu, e a verdade continuará sempre a nos escapar enquanto o presente, em sua ânsia de progresso, abortar o passado em busca do futuro. O presente não é mera passagem para o futuro, mas o tempo que o historiador deve paralisar para escrever a história. O passado não pode ser encarado de forma definitiva, incontestável, é preciso desencantá-lo, deixando-o em aberta relação com o hoje, capturando, no dito, o não-dito, e, no feito, o não realizado, aquilo que foi desejado, mas reprimido; despertando os sonhos adormecidos pelo véu da história, sonhos realizados anteriormente e que foram sufocados; oxigenando-os para que venham à tona, invadam e impulsionem o presente e o futuro. "Cada época não somente sonha a seguinte, mas ao sonhá-la a força a despertar" (Benjamin, apud Rouanet, 1990, p. 91). Os sonhos coletivos de ontem não cessam de esperar respostas da atualidade; frustrados historicamente buscam incessantemente serem revítalízados, trazendo seu potencial transformador. A história, tal qual os homens a fazem, não éum movimento contínuo, linear: ela é marcada por rupturas e se realiza através de lances que, em princípio, poderiam sempre ter sido diferentes... O sujeito dispõe da possibilidade de surpreender. E o sujeito revolúcionário precisa se empenhar no aproveitamento dessa possibilidade, para se contrapor não só ao quadro institucionalizado como ao movimento que resultou na. institucionalização. Por ter plena consciência desse imperativo é que Benjamin exige do marxista que este trate sempre de "escovar a história a contrapelo" (Konder, 1989, p. 7).

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escovado ao contrário é revolvido, mostrando o que está escondido no couro; além de alterar o seu curso normal, a sua disposição pr~visível, o seu irretocável penteado. Os fatos históricos podem :Ser reordenados, não se relacionam continuamente, ligados por uma sucessão de causas e conseqüências. A história não é um continuum vazio e homogêneo, mas tempo, saturado de agoras, que constituem fragmentos brotados da explosão do continuum. A cadeia da história não se estabelece pela sucessão de fatos, mas pela sucessão de idéias, desejos, sonhos, necessidades... A história é composta por pedaços descontínuos, em que cada fragmento é um agora, uma mônada, uma parte que contém o todo, como uma constelação formada por diversos sóis, diversos centros. Cada parte tem luz própria e traz em si a idéia do todo. Pa~a Benjamin, simplesmente por ser causa, um fato não pode ser considerado histórico, "se transforma em fatohistéríco postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios" (Benjamin, 1993a, p. 232). Ele se torna histórico, quando é retirado do continuum do tempo pelo historiador, que capta o seu momento e o põe em relação com o presente. Abramos, aqui, um pequeno parêntesís e retornemos ao teatro épico. Brecht propõe a apresentação dos acontecimentos corno fatos históricos, tenham acontecido ou não. A partir da definição de Benjamin, dar a um acontecimento o tratamento de fato histórico significa, para o encenador épico, perceber o contexto social de sua época e pôr os fatos (reais ou não) que teriam ocorrido em outra época, e/ou relacionados a um outro contexto social, em contato com o agora recolhido do momento atual. Ele se torna fato histórico à proporção que traga em si tensões que se liguem às vividas no momentO vivido, subvertendo a ordem do tempo e se fazendo presente em outro contexto.

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A ligação viva dos acontecimentos do passado com os de hoje torna-se possível justamente pela tensão que relaciona fatos ocorridos em épocas anteriores com os atuais; que se vinculam pela descontinuidade contínua dos sonhos e desejos, pelas centelhas de esperança contidas nas experiências anteriores que penetram as situações que estão sendo e que serão vividas; quebrando .o coruinuum histórico em pedaços vivos, entrecruzando passado , presente e futuro no agora do sonho, que jamais perde o viço revolucionário. Os sonhos coletivos de ontem não cessam de esperar resposta dohoje.ros sonhos do passado buscam, incessantemente, despertar e transformar o presente e o futuro . Daí a necessidade de analisá-los, perceber os que foram frustrados historicamente e deixar que se revitalizem e invadam o presente, trazendo seu potencial transformador. Os sonhos de porvir, sonhados e sufocados no passado, vêm à tona e, a plenos pulmões, gritam seus desejos e anseios reprimidos, buscando ressonância na voz do presente. Não se trata de o historiador lançar-se de volta ao passado , mas averiguá-lo paralisando o tempo presente. Não é, portanto , um sentimento nostálgico que o move, mas um movimento . dinamizador do presente que, para se libertar, precisa reaver o seu passado. Os fatos históricos são encarados, assim, do ponto de vista do momento histórico atual e propõe ao historiador (e ao encenador) gestos contemporâneos de compreensão. Lançando um golpe, aplicando um choque, o historiador interrompe , paralisa o tempo, buscando frear o fluxo da vida-ri 0que-corre, no qual está imerso, para se retirar da água e repousar sobre as pedras para observar melhor opercurso do rio , as peripécias da água que passa, e, depois desse momento de reflexão; retornar num novo mergulho.

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Quando o fluxo real da vida é represado, imobilizandose, essa interrupção é vivida como se fosse um refluxo: o assombro é esse refluxo . O objeto mais autêntico desse assombro a dialética em estado de repouso (Benjamin , 1993a, p. 89) . é

A estrutura fragmentária da história, como Benjamin a concebe, muito se assemelha à estrutura dramatúrglca das peças épicas que, como já foi dito, apresentam uma história constituída de partes descontínuas, calcada em várias cenas fechadas, em que cada uma terno próprio centro, carrega consigo uma idéia própria. A peça, poderíamos assim dizer, utilizando uma imagem benjaminiana, é uma constelação e cada cena é um sol em si. Na visão de uma história fragmentária, cada pedaço tem valor próprio e não se liga aos demais por uma relação determinista, de causa e conseqüência, como se o correr da história não pudesse ser alterado, como se o presente e o futuro fossem mera seqüência do passado, e o mundo não fosse suscetível de transformações. . Como o universo para o Galileu de Brecht, a história pode ser revista, colocada em dúvida. Não há uma forma fixa, segura, linear; como o universo, ela perdeu o seu centro. Explodido em diversos fragmentos, o centro pode estar em qualquer lugar, ou em nenhum, pois tudo se move, e pode ser modificado. GA~ILEU -Mas veja o que se diz agora: se as coisas são assim,

. assim não ficam. Tudo se move , meu amigo [... J. As verdades mais consagradas são tratadas sem cerimônia; o que era indubitável agora é posto em dúvida [. .. J. Uma noite bastou para que o universo perdesse o seu ponto central, na manhã seguinte, tinha uma infinid~de deles. De modo

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que agora O centro pode ser qualquer um, ou nenhum . Subitamente há muito lugar (Brecht, 1991, p. 57).

'A forma épica proposta por Breoht apresenta uma sucessão de cenas que progridem aos golpes , umas se chocando contra as outras, interrompendo constantemente o fluxo da ação dramática. Os fatos , dessa maneira, são destacados para fora do continuum do processo da história narrada, sublinhando os agoras que constituem cada fragmento. A interrupção, que se efetiva quando uma cena se choca com a outra, paralisando abruptamente o fluxo da ação, instaura um refluxo que ressalta a situação cênica e propõe ao espectador um movimento reflexivo, uma tomada de posição crítica em face dos acontecimentos históricos apresen tados. A reflexão inclui não somente a mobilidade do pensamento corno sua paralisação. Quando o pensamento pára, subitamente, numa constelação saturada de tensões, transmite-lhe um choque, e ela se cristaliza enquanto rriônada

(Rouanet, 199ü,p. 25) . Na interrupção da cena épica, o tempo é imobilizado para que se reflita sobre a história, paralisando o pensamento que se debruça sobre a situação, buscando interpretá-la. O espectador distaricia-se da corrente da ação dramática, em atitude crítica e, posteriormente, em novo mergulho, retoma ao curso da trama. o

OLHAR 'tPICO DA CRIANÇA

Nos ensaios acerca da infância, Benjamin compara o olhar da criança ao do artista, que inventa possibilidades, ou ao do colecionador; que , em sua relação afetiva com os objetos, lhes tira o

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carimbo de mercadoria. A concepção benjaminiana de infân cia nos oferece um rico material a ser utilizado nesse esforço de melhor compreender o ?lhar proposto ao espectador do teatro épico . Sempre que uma arrumação é feita no quarto da criança e que brinquedos são jogados fora ou doados , é invariavelmente o velho brinquedo que sai, dando lugar aos novos . Mantendo o quarto bem "bonitinho", che irando a novidade. Mas por que logo o velho? Quanto mais cheia de brincadeiras, de investigações for a relação da criança com o brinquedo, quanto maior a intimidade, a mem6ria afetiva dos dois parceiros de brincadeira, com maior fluência surgirão novas aventuras , maior a facilidade de construir novas histórias. Por que, então , jogar o velho fora, se é justamente da relação com o velho que pode surgir o novo? Os pais que se lamentam porque um brínquedo foi escangalhado cometem um erro considerável, que demonstra a sua ignorância acerca de um fenômeno importante: os bocados dos brinquedos escangalhados têm ainda. mais valor para a criança do que os brinquedos inteiros, são-lhe muito úteis durante muito tempo . De momento , na verdade, não se utilizará deles , mas dois ou três dias depois recorrerá a eles para construir novos jogos , e esses bocados desempenharão uma função nova no seu imaginário . .. O mesmo acontece quando [os pais l incitamos filhos a oferecera um menino pobre brinquedos velhos de que ele gostou. É preferível dar um brinquedo novo a que ainda não se criou afeição: primeiro, porque o menino pobre gostará mais de um brinquedo novo e em seguida isso não privará a criança de nada (Dolto, apud Leenhardt, 1973 , p.52).

o ESPECTADOR ÉPICO 114 A criança, em geral, desmonta o brinquedo para se apropriar dele , para conhecer o que há por trás, estabelecer uma relação de in timidade, de aproximação, de afetividade mesmo. E é aí que mora o lado épico da brincadeira, na re-sígnífícação dos cacos. Assim como o espetáculo épico na concepção de Brecht, com o mesmo espírito científico, a criança desconstrói para descobrir, dominar e tornar a construir a partir de significados próprios ; por mais que a sua remontagem efetiva possa dei~ar o brinquedo um tanto diferente do que era antes e, para 'os pais, com um certo ar de escangalhado. . E a criança também escolhe os seus brinquedos por conta própria, não raramente entre os objetos que os adultos jogam fora. As crianças "fazem história a partir do lixo da história;'. É o que as aproxima dos "inúteis", dos "inadaptados" e dos marginalizados (Benjamin, 1984, p. 14) . A atenção ao olhar da criança em Benjamin, retorno à própria infância, a lembrança e o relato de várias passagens de suas experiências de menino , estão vinculados a sua reflexão sobre a história. A volta à infância é a volta ao passado, farejando os sonhos, os desejos, as idéias, que foram então formuladas, mas que não chegaram a se expressar em realidades objetivas duradouras , embora estivessem prenhes de significação histórica, tanto pessoal, do adulto que revê sua infância, quanto coletiva, vinculada às experiências do menino . O maior revela-se no menor. Ao abordar suas recordações de infância, é de um momento histórico que Benjamin está tratando. A infância de um homem está relacionada à infância dos homens , a memória individual ligada à coletiva. Os sonhos de infância vão ao encontro dos sonhos da coletividade. "A idéia de

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infância se encontra no centro da concepção benjaminiana de história" (Lehman, 1986, p. 83) .

É aí que o tema da infância assumia um papel fundamental: cada um denós tem a possibilidade de rememorar sua própria infância, que é uma história que lhe é íntima, que pode lhe abrir segredos preciosos, que pode funcionar como um centro especial de treinamento para o sujeito desenvolver sua sensibilidade e sua capacidade de resgatar significações obscurecidas que ficaram no passado (Konder, 1989 , p. 56) . Esta reflexão sobre o passado visto através do presente encontra .na infância sinais que o presente deve .decifrar: trilhas abandonadas, desejos frustrados , idéias não realizadas. Alem· brança da infância, nesse sentido, não se dá como idealização, mas como realização possível dos sonhos sufocados, leitura crítica do presente da vida adulta. Não se trata, porém, de uma preocupação restrita à infância individual do historiador, mas da infância como modalidade de experiência e percepção do passado. A infância compreendida de maneira coletiva e não individual é a chave do entendimento de uma época a partir de sua face criança. Este retorno, portanto, não se encerr~ em uma perspectiva psicológica, ele se estende ao plano da história; a necessidade de rever a infância reside na necessidade de refazer a memória hlstôríca. Benjamin retoma à infância, vivida em Berlim, buscando compreender a realidade daquela época com base em sua visão infantil, indo ao encontro do olhar espeoífíoo da criança para os objetos e situações, partindo do olhar do menino de então que , como os demais, era tido pelos adultos como ingênuo , desatento, desajeitado...

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Essas aberturas mal davam para o lado de fora; abriamse para o subterrâneo. Daí a curiosidade com que olhava "p ara baixo através das barras de cada gradeado que pisava a fim de ganhar do subterrâneo a visão de um canário, de uma lâmpada ou de um morador. Nem sempre era possível. Mas, se durante o dia fossem vãs minhas tentativas, poderia acontecer que, à noite, a coisa se invertesse, e eu mesmo me tornasse presa em sonhos de olhares que apontavam para mim de tais aberturas. Eram gnomos de gorros pontudos que os lançavam. Porém, mal me haviam assustado até a medula, já desapareciam [.. ·l· O corcundinha era da mesma espécie. Contudo , não se aproximou de mim. Só hoje sei como se chamava. Minha mãe me revelou seu nome sem que o soubesse. "Sem jeito mandou lembranças" era o que sempre me diziam quando eu quebrava ou deixava cair alguma coisa. E agora entendo do que falava. Falava do corcundinha que me havia olhado. Aquele que é olhado pelo corcundinha não sabe prestar atenção (Benjamin, 1993b, p. 142). A criança, ao ser olhada pelo "corcundínha", o que caracteriza a sua maneira particular de ver o mundo, torna-se um "sem jeito" que "manda lembranças" cada vez que não se porta como adulto, ou como quer o adulto. O "coroundínha" representa a inabilidade, o fracasso, a insegurança da criança diante das "certezas" dos adultos. É justamente esse olhar próprio , desajeita- " do, aberto a diferentes significados, que estranha um objeto com intuito de assimilá-lo a sua maneira e está apto a novas associações , que vai tocar o interesse de Benjamin. O jeito singular como a criança se relaciona com a realidade, que pode ser tornado como um sem jeito, seria, na verdade, um jeito próprio , já que

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"o mal-entendido, longe de ser um simples não entender, se re· vela como entendimento do não-entendido nos objetos" (Anna Stussi , apud Gag~bin, 1994, p. 93). Esse olhar inseguro da criança tem características épicas em sua relação com fatos e coisas: a percepção de quem está sempre disposto a olhar outra vez; olhar curioso, científico ; sempre pronto para se assombrar, como o de Galileu diante da lâmpada. [. . .] um olhar de estranheza idêntico àquele com que o grande Galileu contemplou o lustre que oscilava. As oscilações surpreenderam-no, como se jamais tivesse esperado que fossem dessa forma , como se não entendesse nada do que se estava passando; foi assim que descobriu a lei do pêndulo. O teatro [ ] tem de suscitar no público uma visão semelhante [ ]. Tem de fazer que o público fique assombrado [... ] (Brecht, 1978, p. 117). A estrutura temporal deste método do "d esvio deve ser ressaltada: o pensamento pára, volta para trás, vem de novo , espera, hesita, toma fôlego. É o exato contrário de uma consciência segura de si(Gagnebin, 1994, p. 99). O pensamento inseguro, que titubeia e quer ver de novo , que paralisa o tempo, cristaliza o agora e se detém no objeto, é a percepção da criança benjamínlana, percepção de colecionador, de artista. . . Segundo Benjamin, "como nenhum outro , Brecht recomeça, sempre, do princípio. E é nisso, diga-se de passagem, que se reconhece o dialético" (Konder, 1989, p. 64) . Esta percepção proposta ao espectador do teatro épico traz o mesmo teor de investigação contido nas crianças da pintura flamenga localizada na pãg. 119 (Berthold, 2000, p. 260),

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que retrata um auto farsesco numa quermesse camponesa do século XVI . No detalhe, a percepção infantil. O teatro está na praça, aberto a todos, os adultos se mostram atentos à representação; as crianç-as, no fundo do palco, buscam, através de uma brecha, um ponto de vista próprio, que descobre, desvenda, revela, quebra a ilusão, apreende a técnica, recriando, a seu modo, a história... Um ponto de vista épico . . . O olhar do espectador épico , como nos permite apontar Benjamin, se aproxima da maneira como a criança se relaciona com o cotidiano, distaritede uma percepção-lugar-comum, olhar de um tal "sem jeito" que não se cansa de mandarlembranças, tal qual o do menino que desmonta o brinquedo e faz história dos cacos , ou o das crianças da pintura, que escangalham o teatro para dele. se apropriarem, lançando um olhar ao contrário, pelo avesso, que tem método próprio. Olhar inseguro que incansavelmente começa sempre de novo e volta minuciosamente ao mesmo ponto. "Este incessante tomar fôlego é a mais autêntica forma de contemplação" (Benjamin, apud Gagnebín, 1994, p. 99). O ESPECTADOR DAS RUAS

Inspirado em Baudelaire, admirável sonhador das ruas da Paris da virada do século XIX para o XX, Benjamin traçou as características dojlâneur, este artista das ruas, que passeia pelas avenidas disfarçado de passante, se mistura e some na multidão, sem jamais perder, contudo, a individualidade e a autoria de seus passos e seu olhar; injetando seu espírito nas coisas sem, no entanto, se transformar em coisa. Sem direção precisa, esté observador da cidade passeia pelas ruínas deixadas pelo processo civilizatório, criando novos significados para os pedaços que encontra, para os restos que recolhe enquanto passa; visitando construções que retratam uma memória em destroços, pois

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"abandonam os, fragmento por fragmento , o patrimônio heredltárlo.da humanidade, empenhando-o, às vezes, a um centésimo dó'seu valor, para obter em troca a pequena moeda da atualída'd~" (Rouanet, 1990,' p. 53). Os objetos, ao seu olhar, ganham valor próprio; as vitrines, como espelhos da vida, perdem seu caráter unicamente mercadológico e conquistam uma dimen-

sua biblioteca, e os terraços de café são balcões" (Benjamin , apud Rouanet, 1990, p. 129). Espectador urbano, coloca-se na platéia sem estar alheio ao que acontece, mantendo-se na zona do despertar, intermediária entre sono e vigília, estado em que a consciência está acordada, mas ainda não se esqueceu dos próprios sonhos. "A 'flãmerie o conduz para um tempo desaparecido . Cada rua para ele é uma ladeira que desce em direção ao passado - o dele e o da cidade " (Rouanet, 1992, p. 50) . O passante, ao contrário dofiâneur, abandonou a memória e, tal qual o espectador ingênuo , se lança na corrente da vida diária, sem empreender uma atitude crítica e transformadora aos fatos que se sucedem, condenando-se à reprodução de um passado não revisitado , sendo arrastado em direção, a um futuro que ele não consegue evitar. , O espectador épico, como umfiâneur das salas de espetáculo, passeia pela açãc dramática, observando personagens e situações, embarca na corrente da trama, sem perder, no entanto , a capacidade de empreender uma atitude autoral, criativa. Como este sujeito das ruas, ele não se mantém parado, estático, vendo os fatos se sucederem, uns depois dos outros, mas passeia pela história, construírido-a.

são poética. Ofiâneur é um espectador em plena atividade, que não perde a autoria da história que escreve enquanto passa. Estranha o dia-a-dia, distancia-se e reflete sobre as atitudes dos passantes e sobre a sua. É um coletor da tradição esfacelada, que cata e transforma em poesia a memória espalhada pelo chão, que reconstrói o presente a partir dos seus restos. "Com a ajuda de uma palavra que escuto ao passar, refaço toda uma conversa, toda uma vida" (Foumel apud Benjamin,.1993c, p. 204). Para oflâneur, o mundo da experiência não se extinguiu de todo. Perambulando pela cidade, ele recorre às memórias nela depositadas, e recorda-se do seu próprio passado. O flãneur .ainda tem a capacidade de narrar, e o que narra é o que ouviu da cidade. Por,um instante efêmero, a memória individual e coletiva volta'a convergir (Rouanet, 1990, p. 65) . O flãneur arrisca-se nas vivências diárias, dispondo-se a experimentar situações, não delega a ninguém a autoria da história que constrói aos pedaços. Constituindo-se, nesse sentido , num espectador épico das ruas , que se abandona ao sabor da correnteza para, a qualquer momento, retirar-se do curso para observálo , imobilizando o pensamento ao debruçar o olhar reflexivo sobre os passantes. Para ele, "os muros são a escrivaninha em que apói a seu livro de apontamentos, os quiosques de jornal são

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O ir e vlr do contemplador diante da obra Em suas reflexões acerca da criação artística, particularmente no ensaio O autor eo herói, Bakhtin (1992), definindo a atitude do contemplador diante da obra de arte, nos oferece possibilidades de melhor compreender o movimento do espectador em sua relação com a obra teatral, ampliando-nos o entendimento acerca da atitude proposta ao espectador do teatro épico . Para ele , toda obra de arte é composta de signos (palavras, gestos, etc.): o receptor da obra, ao se relacionar com os signos \

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que a constituem, elabora uma compreensão do sentido neles encarnado, construindo, assim, o significado da obra. Para efetuar essa compreensão, respondendo aos signos, interpretandoos, o contemplador trava um diálogo tanto com o autor daquela obra quanto com as vozes coletivas que nela ecoam. O sujeito da contemplação, comenta Bakhtin, ocupa lugar único na existência, o seu pontO de vista é singular e intransferível. A insubstituibilidade do meu olhar, do meu lugar no mundo, me permite uma produção única, "porque neste lugar, neste tempo, nestas circunstâncias, eu sou à único que me coloco alí, todos os outros estão fora de mim" (Bakhtin,apud Zoppí-Fontana, 1997, p. 117) . Ou seja, cada contemplador da obra participa do diálogo com o autor e o grupo social, e compreende os signos apresentados de maneira própria; de acordo com a sua experiência pessoal, com seu ponto de vista. Assim sendo, o sentido de uma obra é inesgotável. Essa concepção particular da obra, quando elabora uma interpretação, seu ato de compreensão do sentido presente nos signos utilizados, é criativo; desse modo, o contemplador pode ser visto como um co-autor daquela obra. A compreensão, além de ser um processo ativo, é também um processo criativo. Bakhtin afirma que aquele que compreende participa do diálogo, continuando a criação de seu interlocutor (Jobim e Souza, 1994, p. 109). O acontecimento artístico completa-se quando o contemplador elabora sua compreensão da obra. li totalidade do fato artístico, 'portanto, inclui a criação do contemplador; na relação entre os três elementos - autor, contemplador e obra -, reside o evento estético. O fato artístico não está contido completamente

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no objeto, nem no psiquismo do criador, nem no do receptor, mas na relação destes três aspectos. A atitude do espectador diante de uma peça teatral pode ser compreendida, segundo Bakhtin, como uma tensão constante entre elee a obra: no primeiro movimento, o espectador se aproxima da obra, vivenoiando-a, para, no segundo movimento; afastar-se dela e refletir sobre ela, compreendendo-a. Ou seja, ao se relacionar com a obra -teatral, no momentO dos "atos de contemplação - atos, pois a contemplação é algo ativo e produtivo" (Bakhtin, 1992, p. 44) -, o contemplador aproxima-se do mundo . vivido pelos personagens de determinada história, identifica-se com o herói e vivifica situações de sua vida, vendo o mundo através do seu sistema de valores, tal como ele (herói) o vê; colocase no lugar do herói e, depois, retoma a si, à sua consciência, a seu lugar na poltrona, para completar o horizonte com tudo o que descobre do lugar que ocupa, baseado na sua ótica, no seu saber, no seu desejo, no seu sofrimento pessoal, na sua experiência. Assim, a fusão com o horizonte interno da obra não constitui o objetivo principal da experiência artística; neste primeiro movimento do espectador, em direção ao universo interior da obra ; a atividade propriamente estética nem sequer começou. O contemplador engendra um ato estético, quando compreende o todo do acontecimento representado - que implica um ponto de vista externo a cada um dos personagens em particular e ao conjunto que constituem -, retomando seu ponto de vista, que lhe possibilita uma dimensão única do acontecimento, e efetuando uma interpretação própria do mundo narrado. A tensão que se estabelece neste if e vírdo espectador, nessa relação entre identificação com o personagem e o retorno a si mesmo, constitui o movimento do espectador em sua relação com a obra, quando ele vive as peripécias por que passa o herói

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aí representado, compartilhando suas agruras, e retoma à sua consciência, situada fora do mundo-palco, externa à obra, para elaborar sua compreensão do todo do espetáculo. Abrimos as fronte iras do herói quando o vívencíarnos do interior e as fechamos quando, do exterior, asseguramos seu acabamento estético. Se no primeiro movimento , interno , somos passivos, no segundo movimento, externo, [... ] somos atívos, edificamos algo absolutamente novo , exce-

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posição que me coloque fora dessa alma [.. .] que a vida dessa alma me aparecerá numa luz trágica, assumirá uma expressão cômica, tornar-se-á bela e sublime [... ]. Se eu me fundo com Édipo , se perco o lugar que ocupofora dele , deixo de enriquecer o acontecimento de. sua vida, pois abandono esse novo ponto de vista que lhe é inacessível a partir do lugar que ele é o único a ocupar, deixo de enriquecer o acontecimento da sua vida. da qual já não serei autor-conternplador (Bakhtin, 1992, p. 86) .

dente (Bakhtin, 1992, p. 106). Para compreender esteticamente os questionamentos do personagem, sua vida, seu mundo, o espectador afasta-se da obra, retoma à poltrona, assumindo a condição de consciência externa, de autor (co-autor) diante da obra de arte. Bakhtin, tornando como exemplo a tragédia Édipo Rei, de Sófocles, afirma que a compreensão do todo dessa obra, a percepção de seu caráter trágico, não pode dar-se na identificação com Édipo, inas justamente no retorno do espectador a si, quando ele se afasta do herói e apreende, situado emsua consciência de contemplador, a dimensão da obra. Se começarmos a coincidir interiormente com Édipo, perderemos de imediato a categoria estética do trágico. No interior do contexto dos valores e do sentido em que Édipo vive a sua vida , não há nada que possa estruturar a forma da tragédia. Dentro de si mesma, uma vida não é nem trágica, nem cômica, nem bela, nem sublime para quem vive pessoalmente e para quem a vive através do ato de empatia. É somente com a condição de eu ficar fora dos limites em cujo interior a alma vive a vida , de ocupar uma

Ao-afastar-se da obra, olhando-a do exterior, o sujeito da contemplação adquire condições para uma abordagem estética da existência interior da peça e para estruturar seu entendimento do todo. Distante dela, o espectador pode completar seu ato , que é necessariamente subjetivo, criativo. O espectador qtie se deixa conduzir pelo ritmo da obra, que se perde no ato de empatia, vive as situações e circunstâncias experimentadas pelo protagonista, O espectador "ingênuo" que, sensibilizado pelas agruras ou envolvido nas peripécias por que passa o herói, compartilha dores e alegrias sem ,no entanto, retornar a si para obter uma visão do todo, abandona apossíbíl ídade estética do seu ato (a atitude reflexiva), ao lírnítar-se a uma atitude ética (o envolvimento emocional com o herói). A completa adesão à obra - a vlvencíação , ao lado de Édipo, de seu destino arrebatador, suas dores , que despertam a compaixão do espectador pelo sofrimento do herói - não passa, portanto, de um ato ético, não podendo ser vis to como ato estético, em que há relaç~o ativa do contemplado r com a obra, um ato de criação , pois "o todo estético não é algo para ser vivido, mas algo para ser criado" (Bakhtín , 1992 , p. 83). No teatro, ao interromper a identificação com o herói, a vivifícação do personagem , e retornar a .si para elaborar sua in-

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terpretação da cena, o espectador está criando um ritmo próprio, em vez de se abandonar ao ritmo proposto pela encenação. Para criar, para regressar à sua consciência de espectador, exterior ao mundo narrado, conquistando a autoria da obra de arte, o oonternplador precisa imprimir uma atitude rítmica que quebre e descompasse o ritmo do espetáculo, desvencilhando-o da obra e lançando-o de volta a si, paralisando, assim, o tempo pr~sente para debruçar O pensamento sobre as situações apresentadas.

o ato criador (a vivência, a tensão, o ato) que enriquece o acontecimento existencial, que Inícía o novo, é por princípio um ato extra-rítmico... A existência ritmada tem uma "finalidade sem finalidade" (gratuidade), umafinalidade que não emana de uma escolha, de um julgamento, que não implica responsabilidade (Bakhtin, 1992, p. 133).

o espectador diante de uma encenação, bem

como o sujeito diante de um fato existencial, um acontecimento cotidiano, necessita, para interpretá-lo, imprimir um ritmo próprio, interrompendo o movimento ritmado, tanto da obra quanto da vida. Todo ato de compreensão, portanto, implica atitude rítmica, criativa. A compreensão estética de algo que nos diga respeito na vida, aponta Bakhtin, se assemelha ao movimento último do contemplador na arte. Na vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos dos outros, sempre regressamos a nós mesmos; e o acontecimento último, aquele que nos parece resumir o todo, realizase sempre nas categorias de nossa própria vida (Bakhtin, 1992, p. 37).

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o autor da obra (ou mesmo o herói) pode ser entendido como o outro do espectador, que re-sígnífíca a realidade social, base comum a todos, possibilitando que ele (espectador) 'veja o seu meio social (e a si mesmo) "pelos olhos dos outros" para, em seguida, regressar à consciência e elaborar esteticamente respostas que dêem uma visão do todo contido naquele olhar. O contemplador capta na obra a realidade (na qual está inserido) vista pelos olhos ,do autor e, posteriormente, retorna a si para o "acontecimento último", a concepção refletida de um juízo de valor acerca da obra. E o ator, em que fase de seu trabalho executa um ato de criação estética? Não é, aponta Bakhtín, na fase em que vive o herói, em que se exprime pelo interior do personagem, vivendo por dentro esta ou aquela atitude. O ator pratica ato de criação quando, de fora (ao tratar o personagem na terceira pessoa do singular), com base em sua experiência externa, cria e dá forma à imagem do her6i, concebendo o personagem como um todo que não pode ser considerado isoladamente, mas que se insere como elemento no todo da obra. Por conseguinte, o todo da peça será percebido não de dentro do her6i - enquanto acontecímento de sua vida -, não enquanto horizonte de sua vida, mas do ponto de vista exot6pico do autor-contemplador dotado de sua própria atividade estética [... ] (Bakhtin, 1992, p. 93). Em outras palavras, o ator executa, um ato estético quando é autor, ao mesmo tempo que espectador ativo, do personagem que representa.

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espectador breohtíano, o historiador benjaminiano e o contemplador bakhtlníano O teatro épico foi criado tendo em vista o espectador da era

moderna; esse indivíduo, tal qual definido por Benjamin, expulso da esfera do discurso vivo, que abandonou o seu passado e , com ele, as possibilidades de transformar o presente; esse espectador passivo das salas e ruas -que, solitário em sua vida cotidiana, totalmente desprovido de experiências comunicáveis e ausente da história, se lança por inteiro na identificação com o herói da história narrada, abandona-se na empatia com o protagonista e, em "devaneio passivo", como o leitor ingênuo de um romance, transfere a outro a criação que lhe cabe, abdicando de seu ponto de vista. Por vezes, à leitura primária de um romance , o leitor ingênuo substitui a percepção pelo devaneio , um devaneio . que não é mais seu devaneio livre, e sim o devaneio passivo, determinado pelo romance, que o leva a identificar-se com o protagonista... cuja vida vivenciarácomo se ele próprio fosse o herói (Bakhtín, 1992, p. 49) . A atitude ingênua do bom homem para com o herói, identificando-se com o personagem e compartilhando suas agruras, se efetivapelo fato do espectador não saber encontrar uma posição fora do acontecimento representado que pudesse transformar a sua atividade em um sentido estético e não ético . O espectador ingênuo passou para o outro lado do fosso, colocou-se ao lado do herói e, com isso, "destruiu o acontecimento estético de que deixou de ser o espectadorautor" (Bakhtln, ibidem, p. 95).

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[. • .J se me restrinjo a identificar-me com ele [o herói], não posso intervir em sua vida, pois essa intervenção supõe minha exotopia em relação a ele - era o caso de nosso bom homem (Bakhtín, ibidem, p. 95) A empatia, a identificação com o protagonista, bem como a dramaticidade, não estão ausentes do teatro épico. Brecht, no entanto , quer interromper aquilo que considera empatia por abandono : o passivo deixar-se levar da platéia. Propõe-se que o espectador se aproxime e viva o mundo narrado , mas não se abandone nesta vivência, esquecendo-se de si, de sua capacidade reflexiva, da sua potencialidade criativa e transformadora . A atitude proposta ao espectador brechtiano - a quem se apresenta uma narrativa que avança aos golpes, interrompendo a identificação deste espectador com o protagonista, distanciando-o da ação - pode ter seu entendimento ampliado a partir da relação que o contemplador bakhtiniano estabelece com a obra. Ou seja, tal como o movimento proposto ao espectador do teatro épico, o movimento de ir e vir do contemplado r em relação ao herói é , primeiramente, o de se aproximar, quando ele vívencla as peripécias do herói , partilha seus sentimentos , suas emoções, e, posteriormente, o movimento de retorno a si, quando o conternplador se afasta do herói , reassumindo seu lugar na poltrona e, daí , de um ponto de vista externo, elabora seu entendimento da obra, sua compreensão do todo . Brecht queria construir um teatro que revisse não somente a arte do encenador, mas também, e especialmente, a do espectador. "Um dos princípios essenciais da teoria do. teatro épico é que a atitude crítica pode ser uma atitude artística" (Brech t, 1989, p. 366).

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Esta atitude crítica [adotada pelo espectador épico] não deve ser considerada como uma atitude científica puramente racional, feita de cálculo e neutralidade. Ela deve ser uma atitude artística, produtiva, cheia de prazer (Brecht, ibi-

dem, p. 270). Utilizando os conceitos de Bakhtin, podemos dizer que Brecht almejava um teatro que afírmasse a autoria do contemplador, autoria que se via ameaçada numa relação entre espectador e obra, marcada, de um lado, pelo indivíduo moderno incapaz de realizar experiências próprias e disposto a se lançar por inteiro numa empatia sem retorno, sem finalidade estética, e, de outro , em espetáculos marcados por certo monologismo, fechados ao diálogo , tratando o espectador como objeto e não como sujeito da contemplação . De forma ' semelhante , podemos aprofundar o entendimento da atitude proposta ao espectador brechtiano, na relação com o fato histórico trazido à cena, se o compararmos com o movimento do historiador benjaminiano em direção ao passado histórico . ATOR- Poderia me dizer o que você entende por historiador? [ . . .] ESPECTADOR - O historiador se interessa pela. mudança das coisas. [. .. ] ATOR _ O espectador é , então, um historiador da sociedade? ESPECTADOR - Sim. (Brecht, ibidem , p. 405). O historiador, na concepção de Benjamin, estanca o momento presente para refletir sobre o acontecimento histórico, interrompendo o fluxo da vida, paralisando o pensamento e se debruçando

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reflexivamente sobre o agora que salta docontinuum da história. Atitude semelhante à proposta ao espectador épico que, distante da cena que lhe é narrada no pretérito , a cada interrupção, é convidado a refletir sobre a dimensão social do acontecimentO apresentado. Estancar a vida-rio-que-corre, a linearidade factual da história (ou da ação dramática) , para, num ato extra-rítmico .. .. . , impnrmr uma atitude críatíva. Pois a existência ritmada se torna gratuita, dotada de "uma finalidade que não emana de uma escolha, de uqI julgamento, que não implica responsabilidade" (Bakhtin , ibidem , p. 133). Como historiador benjaminiano , o espectador do teatro épico, em diálogo com o passado, paralisa o tempo presente para escrevera história, para, tal como o contemplador bakhtlníano , elaborar uma compreensão própria da história narrada; imprimindo uma atitude criativa e afirmando a sua autoria diante do fato. Assumindo a função q?e lhe cabe no evento, de (co- )autor da obra de arte, o espectador teatral pode ser definido como produtor de conhecimentos , já que o ato de compreender demanda elaboração. O caráter pedagógico do teatro épico, portanto, estaria centrado justamente nesta resposta criativa do espectador às narrativas apresentadas, na sua interpretação do evento, na compreensão própria .dos fatos trazidos à cena, na sua elaboração estética dos signos utilizados. Um teatro que afirmava a própria característica d íalóglca do evento artístico , característica que lhe é inerente; que se manifestava contra o monologlsmo de qualquer evento, contra qualquer imposição de determinada narrativa como verdade inquestionável; que propunha ao espectador a construção de uma resposta particular à história contada. Não podemos esquecer que Brecht convivia (mesmo no exílio) com o movimento nazista que, calcado em fest ividades cívicas e

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outros eventos populares, queria legitimar uma narrativa totalízante-e totalitária: o mito da superioridade ariana. Fez-se notar freqüentemente a importância insólita concedida à encenação na política nazi. A estética, nomeadamente a da "obra de arte total", elaborada pelopós-romantísmo e Wagner, que privilegia a ópera e o cinema, artes "completas", é posta ao serviço do despotismo, derrubando toda a economia do projeto schilleriano. Muito longe de educar a humanidade e de a tornar ma is apta às Idéias , a representação sensível do povo para si mesmo favorece a sua própria identificação como singularidade de exceção. As "festas" nazi , monumentais ou familiares, exaltam a identidade germânica tornando sensíveis aos olhos e aos ouvidos as figuras simbólicas da mitologia ariana. Trata-se de uma arte da persuasão, que só conseguiu lugar eliminando as correntes vanguardistas orientadas para a reflexão (Lyotard, 1986, p. 66).

o teatro de Brecht tinha uma vontade educacional, a de afirmar ao espectador a possíbllídade estética,portanto, reflexiva, de seu ato, estimulando uma atitude responsiva, autoral, deste espectador diante dos eventos cotidianos e das narrativas que lhe eram propostas. A ESCUTA, O SONHO EA COLETA

enquanto escuta a narrativa e sonha com a história que lhe exoeriê nci'a " vai sendo contada , o ouvinte " c 1toca os ovos daa expen (Benjam in, 1993a, p. 204). Quem ouve a narrativa, tal como o contemplador bakhtlniano , entrecruza a história que está sendo contada com a sua, em um movimento de compreensão e

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ordenação do imaginário que lhe está sendo proposto. Estabelece, assim, uma relação entre a história narrada e a sua, experimentada no seu cotidiano. É com base na própria experiência que o ouvinte vai éons tru ír o entendimento da que lhe é contada, é no cruzamento dos fatos narrados com as experiências pessoais que ele produz as reflexões acerca do que ouve (e doque houve). Ao rever suas experiências, à luz da narrativa, o ouvinte as choca, fazendo nascer o pensamento crítico. A narrativa permite diversas elaborações. Cada pessoa que ouve produz uma interpretação própria do fato narrado. Livre das sutilezas psicológicas que o prendem à ação dramática, o espectador épico, ouvinte da narrativa, distancia-se, retoma a seu universo pessoal e estabelece vínculos entre as experiências vividas e as narradas, elaborando um juízo de valor sobre situações que lhe são apresentadas, recriando tanto a história contada quanto a sua, chocando, assim, os ' ovos da própria experiência. Autor das histórias que lhe foram contadas, o espectador assume também a autoria da sua história pessoal e coletiva. Os sonhos do passado narrado buscam comunicação com a atualidade. O espectador lhes fornece o oxigênio das próprias experiências, entrecruzando os fatos no coruiriuurri do tempo e fazendo saltar deles o agora revolucionário , libertando os sonhos para que , com seu potencial transformador, invadam e despertem o presente e o futuro. A narrativa deixa o espectador entre a zona do sonho e a zona do despertar, lançando-o na corrente do tempo, em que os fatos estão desprovidos de sucessão linear, em que passado, presente e futuro sé cruzam, e a história é uma construçãoque se faz pela sucessão de idéias, desejos e necessidades. Assim , o espectador épico escuta, sonha e coleta. Escuta, sonha e desperta.

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O "desper tar " constituía uma "zona" privilegiada, na qual o sonho já não prevalecia e no entanto continuava próximo, o sujeito podia aproveitá-lo, extrair dele significações pre- . ciosas [; .. ]. Em estado de vigília, quando está plenamente acordado, o sujeito paga um preço muito alto pela eficácia: sua consciência se articula em moldes inevitavelmente utilitários, sua razão tende a se enrijecer, perde algo de sua capacidade de rejuvenescer no contato com o . novo. O "despertar" é uma vigorosa experiência dialética: ele cri a condições para quearazão -astuciosame,n.te.;;.. se renove e amplie seus horizontes. ((O novo método dialético na história se apresenta como a arte de compreender o presente como O mundo no despertar, um mundo ao qual se liga, verdadeiramente, esse sonho que chamamos de ,pas sado" (Konder, 1989,p.82 )

o pensamento

crítico irrompe dos ovos da experiência que vão sendo chocados. Os acontecimentos históricos redlrnensionam os fatos cotidianos. O passado força o presente a despertar.

5 O TEATRO ÉPICO MODERNO E A CONTEMPORANEIDADE o meu barraco Hoje está valorizado, S6 por causa de uma antena Que eu instalei no telhado. A parabólica Foi trazida por um temporal, Eu achei no mato E botei no barraco Na cara-de-pau. Quando tem blits: no morro O primeiro barraco A levar a geral é o meu, Pois está sempre lotado E todos pensam Que estou no apogeu. Barbeirínho do Jaearezinho

Marcos Diniz & Luiz Grande

As alterações no modo de vida contemporâneo Desde o surgimento do teatro moderno, na virada do século XIX para o XX, até Os dias atuais, a relação do espectador com a obra teatral vem sofrendo modíflcações significativas, e isso porque a vida moderna - e a própria maneira de representá-la - é bastante mutável. Essa arte busca, assim , rever ocncínuamente suas propostas para manter um diálogo profícuo com a SOCiedade. 1J5

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As transformações na vida social contemporânea podem ser percebidas, por exemplo, a partir da infinidade de novos precedírnentos espetaculares que imprimem um tom Iíccíonal ao dia-

ca u~a maneira. própria de ser, fugindo de qualquer modelo

.a-día e nos deixam expostos a um turbilhão de informações que

comum, essa procura pela diferenciação dos estereótipos , por

se renovam a cada instante. A expansão dos meios de comunicação de massa, que ampliam incessantemente sua capilaridade no tecido social, incrementada pela multiplicação de máquinas e eventos, e a criação constante de diferentes canais de aproximação suscitam no indivíduo contemporâneo sensações e estí-

vezes, resulta em outra estandardízação, que leva todos a agirem do mesmo modo ao se proporem diferentes, estabelecendose uma conduta comum de tentar ser particular. O subtexto desta sedução ao personalismo poderia ser algo como "seja você mesmo, sendo igual a todo mundo ".

mulos diversos , provocam e interrompem raciocínios e estabelecem profundas alterações nos valores éticos e nos conceitos estéticos. A complexidade das redes de comunicação engendradas no século XX requisita, assim, maneiras próprias de perceber e compreender os acontecimentos sociais. A espetacularidade dos informes pode ser observada em diferentes instâncias, desde os anúncios de produtos para consumo

A interação proposta ao indivíduo contemporâneo nos diversos eventos das mídias - seja 'por meio de ligações telefônicas para programas de rádio e de televisão , ou de cartas e e-mails para jornais e revístas, etc. - em que os sistemas de comunicação se abrem democraticamente para a participação do público , torna-se cada vez mais freqüente. O que está em jogo, entretanto, nessa lnterativldade, é muito menos a relevância da expressão do participante e, sim, lI O direito e o prazer narc íslco do .

até a apresentação dos fatos sociais. A própria atividade política vê-se transformada, vivendo sob a égide do espetacular; A constituição da imagem do homem público, com suas exigências éticas, torna-se espetacularizada, podemos até dizer estetizada. O indivíduo do final do século ~ deu-se conta de que a única maneira de destacar-se perante os demais é ter sua imagem veiculada pelas redes e que não se deve dar atenção a quem não circule por esses canais. A falta de crédito nos projetos globais de reestruturação da vida humana, motivada pela sensação de sua falência, pro voca desconfiança acerca de qualquer proposição de novos projetos, ou mesmo da retomada dos antigos. E como as reformas coletivas situam-se num impasse, volta-se para o âmbito individual ,

busca narcisista da sua identidade" (Tourraine , 1997, p. 198). Contudo, se cada qual, em suas investigações particulares, bus-.

indivíduo que se exprime para nada, para si apenas, mas veiculado e amplificado por um médium" (Lipovetsky, 1983 , p. 16). Esta pseudo-interação, já que a intervenção do espectador não constitui uma participação efetíva que, de fato , influencie e mude os rumos do que foi previamente programado, pode ser comparada à crise de participação que se manifesta no jogo político das democracias representativas, em que é oferecida aos cidadãos ampla liberdade de escolher seus candidatos , contanto que optem entre A ou B. O .papel proposto ao cidadão-espectador, em qualquer dos casos, parece ser o de dar legitimidade a um processo que corre à sua revelia. As alte rações no modo de vida contemporâneo podem ser

para descobertas de experiências e transformações pessoais. "Os

mais bem compreendidas valendo-se da análise da complexida-

atores deixam de ser sociais e voltam-se para si mesmos, para a

de que atingiu o sistema capitalista mundial, diante do qual nos

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vemos embaraçados pela dificuldade de compreender na totalidade a sua forma . As transformações que evidenciam o advento da sociedade pós-industrial constituem sinais culturais marcantes 'de um novo estágio na história do modo de produção, que podem ser observados nos seguintes fenômenos atuais: a explosão tecnológica que , com seus inventos e serviços, desempenha o papel de principal fonte de lucro empresarial; o.predornínlo global das corporaçõesmulttnacíonats, diminuindo o poder de decisão dos Estados nacionais; e a ascensão e amplo domínio dos conglomerados de comunicação, que ultrapassálIl fronteiras. Fenômenos que provocaram profundas conseqüências pelos quatro cantos do planeta, alterando interesses políticos nacionais e internacionais, o ciclo de negócios, padrões de emprego e até mesmo relações de classe.

o capitalismo avançado continuava sendo uma sociedade de classes, mas nenhuma classe dentro do sistema era exatamente a mesma de antes [. ; .], À medida que foi revolvida uma ordem industrial mais antiga, as tradicionais formações de classe se enfraqueceram, como identidades segmentadas e grupos localizados, tipicamente baseados em diferenças étnicas ou sexuais, se multiplicam. Em escala mundial- na era Pós-Moderna, a arena decisiva - nenhuma estrutura estável de classe comparável à do capitalismo anterior cristalizou-se ainda. Os que estão acima têm a coerência do privilégio; os que estão embaixo carecem de unidade e solidariedade. Um novo "trabalhador coletivo" tem ainda que surgir (Anderson, 1999, p. 7~). Esse multífacetado modo de vida contemporâneo, composto por ingredientes bastante específicos, marca, assim, profundas

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alterações nas relações econômicas, políticas e sociais se comparadas às engendradas na modernidade, e requisita novos procedimentos estéticos que possam estabelecer um diálogo efetivo com os espectadores deste tempo. O fato é que a sensibilidade atual é claramente distinta da que vigorou até o início da Segunda Guerra Mundial ou, para procurar outros marcos , diversa da que orientou a percepção, a emoção e a reflexão até o advento da bomba. atômica, o desenvolvimento da .televísão e a formulação do novo pensamento científico que, iniciado com Einsteín na primeira metade do século, foi (e vai) lentamente penetrando o-cotídíano . Depois de Hiroshima e Nagasakí, da Guerra Fria, da invasão da Hungria pela URSS, da Guerra do Vietnã, da rebelião dos jovens em 1968, da Primavera de Praga, do choque do petróleo, da queda do muro de Berlim, do esfacelamento da antiga URSS e da inquietante ascensão dos pré-modernos fundamentalismos religiosos em todos os .seus modos e versões, a sensibilidade humana não pode mais ser a mesma e não pode mais ser estimulada ou atingida pelas propostas que, de um modo Ou de outro, puderam ser chamadas de modernas (Teixeira Coelho, 1995, p. 7). Pode-se observar, nas últimas décadas do século XX, um esmaecimento-da perspectiva revolucionária da modernidade , não apenas em suas inovações artísticas, mas no questionamento a seus principais valores constitutivos, que são: a aposta na existência de uma razão universal capaz de defínír com segurança os rumos da coletividade, a valorização da idéia de pátria e a busca pelo incessante progresso da humanidade. Um conjunto de valores que se revelam desgastados, o que indica a busca de novas

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direções, já que o investimento nesses valores nãosígníflcou nem de longe, e a história o demonstra, a prometida conquista da felícídade pelos homens . .' Define-se a dita "falê ncia" dos projetos iluministas, em especial o liberalismo e o socialismo, que alimentaram a utopia da modernidade - apoiados na idéia gerada no Iluminismo de uma razão libertadora, voltada para a concretização dos anseios de justiça social e autonomia do homem -, a partir do momento em que se percebe que a universalidade da razão pode não ser um parâmetro eficaz para qualquer grande projeto de transformação, tomando-se como exemplo os atos de barbárie desencadeados em nossa história recente em nome da razão.

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reformulação d~ vida humana, encontra condições bastante difíceis para um diálogo efetivo com a experiência contemporânea.

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Nem o liberalismo, econômico ou político, nem os diversos marxismos saem destes dois séculos sangrentos sem Incorrerem na acusação de crime contra a humanidade. Podemos enumerar uma série de nomes próprios, nomes de lugares, de ·pessoas, datas, capaz de ilustrar e de fundar nossa suspeita. Depois de Theodor Adorno, usei o termo "Auschwitz" para significar quanto a matéria da história ocidental recente parece Inconslstente relativamente ao projeto "moderno". de emancipação da humanidade (Lyotard, 1993, p. 95). A arte moderna estava, de uma ou outra maneira, vinculada a esse projeto revolucionário de transformação da vida social, inspirada pela visão utópica de um novo mundo possível. Atualmente, esse novo mundo parece inconcebível ou, ao menos, não se conseguem formular opções consensuais sobre que caminhos trilhar para alcançá-lo. Assim, uma proposição estética ancorada em qualquer síntese coletiva, ou grande proposta de

Tudo no ar parece confirmar a sensação generalizada de que "os tempos modernos agora terminaram" e que alguma divisão , algum corte fundamental ou salto qualitativo, agora nos separa decididamente daquele que foi o novo mundo do início do século XX, o do modernismo triunfante (Jameson, apud Anderson, 1999, p. 60). As profundas alterações no modo de vida trazidas pela contemporaneidade põem em xeque as proposições artísticas modernas e requisitam aos artistas de teatro novos procedimentos estéticos, em consonância com a percepção e a sensibilidade do espectador de nossos dias , solicitando a elaboração de propostas artísticas que tomem posição diante do horizonte deexpeotatlva do receptor contemporâneo, que apresenta feições particulares. Assim, estando estruturado com base nos critérios estéticos modernos, questiona-se a atualidade do teatro épico , que teve em Bertolt Brecht seu principal teórico e é, sem sombra de dúvi-da, um marco fundamental nacriaçãoteatral do século XX. Porém, de que maneira essas transformações no modo de vida inviabillzarlam propostas ditas "modernas"? Por que as proposições artísticas não provocariam as mesmas reações de antes? Em que proporção as modificações na relação do indivíduo com a socieda-de poriam em questão os procedimentos do teatro épico moderno? As implicações estéticas da vida contemporânea O projeto moderno de reformulação social pretendia destruir o mundo velho einstaurar um novo, modificando totalmente as estruturas com suas propostas revolucionárias. Os artistas modernos ,

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por sua vez, imbuídos desse espírito, buscavam; com suas obras , explorar a experiência do choque, da ruptura, quebrando conceitos que tradicionalmente sustentavam as bases da cultura 'européia. Entretanto , à proporção em que se sucedem no século XX experi ências modernas , também seu potencial revolucionário vai esmaecendo. Como os eventos artísticos em geral, o teatro perde o seu poder de negação, rebeldia, transgressão. A arte não produz mais rupturas como antes , não surpreende nem choca o público. O choque éuma experiência já consumida pelo indivíduo contemporân'eo,as revoluções estéticas estão completamente diluídas em sua percepção. O teatro, em seus procedimentos recentes, não causa mais, como a experiência artística em geral, espanto pela quebra das regras, das convenções. As técnicas utilizadas pelo teatro épico moderno não conseguem atualmente,' por exemplo , ser tão provocantes quanto outrora, nem podem mais arrancar reações como as descritas abaixo na ocasião da estréia de Mahagonny: Um dígníss írno cavalheiro, de faces congestionadas, empunhava um molho de chaves e arremetia triunfante, contra o teatro épico. A mulher não o abandonava nesse transe. A digna senhora tinha dois dedos enfiados pela boca adentro, os olhos semicerrados em fenda, as faces balofas. Soprava pela extremidade da chave do cofre como num assobio (Folgar, apud Brecht, 1978, p. 15). A arte moderna, em suas diferentes configurações, estava marcada pela vontade da quebra absoluta com tudo que vigorava até então, vontade de abarcar o todo social e transformá-lo completamente, mostrando-se imbuída de uma espécie de "impulso demíúrgico no qual um desejo chamado totalidade é, de

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forma impossível, associado a um desejo chamado inovação ou simplesmente Novo" (Jameson, 1996, p. 138). A efetivação de uma grande proposta de renovação social esbarra atualmente, tanto no descrédito de movimentos coletivos já substituídos pelas iniciativas individuais e privadas , quanto na própria impossibilidade de obter-se uma visão totalizante, de conjunto, e que abarque o multifacetado modo de vida contemporâneo. O capitalismo de mercado, em seu terceiro estágio, penetrou todos os recantos, não há como sair da cultura, colocar-se fora dela, seja para evitá-la Ou para estar distante e ganhar condições para melhor refletir sobre sua totalidade, pois: [... ] não ~á mais lugar pré-moderno nem bons selvagens, somente reservatórios de matérias-primas ou de mão-deobra, terrenos para exercícios militares ou lixeiras entulhadas de latas de conservas e de programas de televisão (Tourraine, 1997, p. 100). .

O capitalismo de consumo preenche todos os espaços, penetrando e colonizando tanto e Naturesa quanto o Inconsciente, Q que pode ser percebido na "destruição da agricultura pré-capitalista do Terceiro Mundo pela Revolução Verde e a ascensão das mídias e da indústria da propaganda" (Jameson, 1996, p. 61).1

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Como exemplo da poluição (e colonização) do im aginário pela cultura de mercado, posso citar um exercício teatral realizado com meus alunos no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo, 110 qual propus que ouvissem As quatro estações, de Vlvaldí, e construíssem cenas a partir da livre composição das imagens 'suscitadas pela música. A grande maioria dos participantes apresentou elaborações cênicas que, de uma ou outra maneira, estavam relacionadas a uma recente propaganda de sabonete que utilizava esta música em seus comerciais de TV. Daí a importância de um trabalho destinado à descolon ízação do imaginário.

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Se partirmos do pressuposto de que não há mais refúgio seguro para onde se possa retirar, de que não há mais lugar em que se possaestar fora da cultura para sobre ela refletir, o que define a ausência de um ponto de vista que englobe a totalidade do modo de produção contemporâneo em suas diferentes manifestações, a elaboração de um projeto un íversalízante de renovação social se torna uma tarefa de difícil realização, ou que requer redimensionamento. A impossibilidade de uma visão global da cultura prejudica a formulação de qualquer síntese que se proponha a dar conta do todo social, pois não há ponto de vista que permita um olhar suficientemente abrangente, que alcance todos os aspectos da vida humana neste momento histórico. Nenhuma narrativa totalizante oferece, portanto, consenso, nenhum grande projeto de transformação consegue abarcar todas as reivindicações, satisfazer todos os desejos, reunir múltiplos ideais. Não havendo condições para que vigore qualquer proposta de salvação da coletividade cada vez mais explodida em átomos dessocializados. A síndrome Blade Runner é apenas isto: a interfusão de multidões num bazar de alta tecnologia' com seus múltiplos pontos nodais, tudo selado num interior sem exterior, que por isso intensifica o anteriormente urbano a ponto de ele se tornar o sistema não mapeável do próprio capitalismo tardio . Agora é o sistema abstrato e as suas inter-relações que estão de fora: O antigo domo , a antiga cidade, além da qual não há nenhuma posição individual disponível , de forma que ele não pode ser inspecionado coma uma coisa em seu próprio direito, apesar de ser, certamente, uma totalidade (Jameson , 1996, p. 162).

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o sistema não mapeável do capitalismo avançado anula aoposíção entre interno e externo e gera um todo sem perfil , irrepresentável, que se caracteriza por uma totalidade diferentemente constituída ~- solicita novo mapeamento , novas representações . MaS como representar a vida em seu modo contemporâneo, concebendo-a como síntese orgânica, se estamos imersos full time, condicionados à cultura capitalista de consumo, impossibilitados da visão do t~.do , condenados a estilhaços, se nosso ponto de vista está cada vez mais submetido à contemplação de frações do mundo, e a impossibilidade de uma visão de conjunto se torna radical por uma realidade cada vez mais ficcionalizada, virtualizada? A incapacidade de abranger o ambiente social em todas as suas dimensões e complexidades e de estruturar um projeto que responda aos anseios e necessidades das sociedades modernizadas é um dilema contemporâneo. Em suas divers idades e variabilidades, essas sociedades "ultrapassam as dimensões das condições 'de vida que poderiam ser calculadas pela imaginação do projetista" (Habermas apud Anderson, 1999, p. 50) . E se a impossibilidade de formulação de projetos é fato, a construção de modelos que funcionem como sínteses das sociedades modernízadas apresenta as mesmas dificuldades. E aqui poderia ser apontado um problema pelo qual passa o teatro épico moderno, se o relacionarmos aos aspectos da vida no período em que .vivemos. A idéia , concebida por Brecht, de construção de uma peça que funcione como modelo científico, como narrativa sintética que demonstre o funciona~ento do aparato social capitalista, em que as contradições sistêmlcas são reconhecidas e a solução direciona para uma transformação radical do sistema, indicando a revolução socíalísta com o. saída necessárl a, esbarra nas

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mesmas dificuldades dos projetistas contemporâneos. Dificuldades manifestas tanto na representação de um todo social orgânico, quanto na resolução de problemas sistêmicos. Não há condições, neste início de século XXI, para se formular uma síntese do todo social, nem para apontar a conclusão da parábola para a revolução do sistema capitalista, indicando o socialismo como caminho efetivo, concreto.. As saídas possíveis deparam com indicadores de caminhos um tanto confusos e incertos, o que dificulta a formulação de uma proposta estética que se estruture como expressão COletiva. [... ] se programas estéticos podem ainda com certeza ser encontrados - embora hoje mais como expressão individual que coletiva -, o que indubitavelmente falta é uma visão revolucionária do tipo articulado pelas vanguardas históricas (Anderson, 1999, p. 134). A tomada de consciência proposta ao espectador do épico moderno consistia em levá-lo a perceber mecanismos de um sistema opressor e, ao mesmo tempo, apontar uma saída prática: a revolução socialista. No entanto, é de difícil aplicabilidade produzir, atualmente, no espectador este efeito ideológico, tornando-se necessário que nos interroguemos acerca de como compreender a tomada de consciência nos dias de hoje. Tomada de que consciência? Consciência revolucionária, quando estão desfeitas as condições político-sociais que sustentavam o engajamento em 'qualquer grande proposta de reformulação social? Consciência de classe, quando a luta de classes, ou a base social da divisão de classes, em seus padrões modernos, tal como forjada na SOCiedade industrial, está enevoada "a ponto de perder toda a sua radicalidade"? (Lyotard, 1989, p, 36).

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Propondo-se a dialogar com o passivo sujeito da modernidade, alheio ao funcionamento das engrenagens do sistema capitalista, e alienado de sua capacidade produtiva e sua potencialidade transformadora, o teatro épico quer implementar um procedimento estético que produza no espectador um efeito desalienador, e o leve a perceberas forças sociais que o mantêm afastado do processo histórico. O teatro funcionaria como instrumento de denúncia, revelando bastidores da cena e da vida, possibilitando ao espectador perceber, negar e modificar sua conduta alienada. Mas como compreender alienação nos dias atuais, época em que a informaçãose desloca ainda mais rápido que os dias? Como dizer que está alienado o indivíduo superinformado? Como julgar que' alguém esteja alheio aos diversos aspectos dos fatos atuais? Como pensar em propor procedimentos estéticos desalienadores a indivíduos plugados, de um modo ou de outro, na híper-ramífícada rede comunicacional? Para que propor-se a denunciar, a revelar os bastidores do que está superdenunciado e revelado pela mídia? Não estaria a desalíenação, hoje, já incorporada ao discurso tanto da mídia quanto da mercadoria? Diversamente da época em que foi proposta, quando destruía uma tradição teatral que chamava de "ilusionista", tradição essa que tinha por objetivo convencer o espectador de estar diante da própria vida, em vez de assumir a teatralidade do evento, a proposição desalienadora do teatro épico moderno está disseminada nos media, de maneira que a denúncia de um sistema opressor e alienante não produz nenhum choque, não propõe qualquer olhar de estranheza, para ~m indivíduo ligado à rede de informação e com a percepção acostumada aos procedimentos estéticos modernos. A revelação da teatralidade da encenação, O desvendamento do próprio veículo teatral, estava em consonância com a vontade de desnudar os mecanismos do aparato

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social, os bastidores de todos os eventos. Atualmente, podemos observar essa estética da revelação tanto em comerciais de TV,

ao fascismo - a não ser a alegação debilmente pragmática de que o fascismo não é o modo como as coisas funcionam

quedeixam propositalmente à vista do telespectador os procedimentos de criação e gravação, quanto - e aqui em outro sentido sobre ela - em embalagens de produtos alimentícios, que revelam ao consumidor quais são os ingredientes e nutrientes que compõem aquele produto; sem falar nos artigos de jornais e revistas e nos noticiários televisivos que estão sempre em busca de revelar os mais diversos bastidores: A informação acerca da

em Sus-sex ou em Sacramento (Eagleton, 1999, p. 30),

produção é cada vez mais um procedimento estimulado pelos veículos de comunicação e exigido pelo consumidor. A negação pós-moderna Como oposição às utópicas propostas do período anterior e sugerindo um tipo diferente de relação entre arte e sociedade, a cultura pós-moderna, a partir das últimas décadas do século XX, expõe a crise de muitas certezas confortáveis, subvertendo, até ironicamente, as altivas verdades do modernismo, do evolucionismo e até mesmo dos modelos críticos. Os pósmodernos, em sua negação ao movimento anterior, relativizam .a crítica social e tendem a render-se a uma resignação acomodada: [... ] a um ceticismo politicamente paralisante, a um populismo vistoso, a um relativismo .moral bem desenvolvido e a uma marca de sofismá segundo o qual, uma vez que todas as convenções são, de qualquer maneira, arbttrérías, podemos perfeitamente nos adequar às do mundo livre. Ao puxar o tapete das certezas de seus adversários políticos, essa cultura Pós-Moderna freqüentemente se deixou sem chão também, não havendo mais razões para resistirmos

Ao dar a guinada, visando escapar do discurso Ideologizante, o pós-modernismo, ou parcela significativa de sua produção, escorrega para a absoluta ineficácia. O tratamento jocoso a qualquer esboço de vontade crítica faz, por vezes , o sorriso gelar nos lábios . A arte contemporânea não está, contudo, restrita a essas produções paralisantes, sendo, de fato, empurrada em duas direções: uma vontade de rever criticamente as propostas modernistas e reincorporar elementos ao ambiente atual, e um ímpeto de "se lançar de cabeça no novo mundo sedutor da fama, do comercialismo e do sensacionalismo" (Wollen apud Anderson, 1999, p. 124). Essas proposições que, em geral, ajustam-se ou fazem apelo ao espetacular e estão apoiadas no abastecírnento maciço do mercado, têm predomínio absoluto no período. Todavia, além das tendências pós-modernas que pretendiam instalar um produto cultural de acesso mais fácil, geralmente associado à utilização dos novos media, há também , por parte de produtores culturais, a busca de um além do modernismo , pela radicalização de suas negações da lnteliglbílídade imediata e da proposição autoral feita ao receptor. A modernidade inaugurou a participação em todas as instâncias sociais. A arte desse período, imbuída desse espírito, pretendia provocar o espectador, propondo-lhe que raciocinasse criticamente acerca da obra e elaborasse ínterprecações próprias sobre ela. Os artistas modernos promovem, assim, a pluralidade interpretativa, construindo uma obra de arte aberta, elaborada com a participação do espectador, instaurando uma forma artística em que o espectador se tornaria co-autor. "A própria recep-

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ção das obras se personaliza, torna-se uma experiência estética 'não amarrada' (Kandinsky), polivalente, fluida" (Lipovetsky, 1983, p. 95). A arte contemporânea, por sua vez, em sua tendência de análise e especificação do modernismo , vai levar ao extre. mo esta proposição de autoria feita ao espectador, de maneira que não s6 a significação fica aseu encargo, mas, em certo sentido, a pr6pria "escritura" artística - o que se' traduz por uma radicalização da abertura da forma e da significação. A estética da destruição-construção do moderno - e a desconstrução da cena apresentada pelo teatro épico.• com a interdependência dos elementos, é bom exemplo disso ... deixa a obra aberta para que o espectador elabore outras construções, outras montagens possíveis. O teatro precisava apresentar um mundo passível de transformação e, como o mundo, a obra teatral poderia ser construída de outras maneiras pelo espectador. A experiência artística contemporânea vai levar ao extremo essa idéia, apresentando não mais uma obra aberta, mas uma obra explodida. A realidade não se mostra mais desconstruída, transformável, e sim dessubstancializada, necessária de ser concebida. Ou seja, não há mais uma realidade, esta não é maisfacilmente apreendida, portanto, não há uma obra, mas possíveis obras a serem concebidas pelo receptor. Assim, a elaboração da obra teatral efetuada pelo espectador vai estar necessariamente vinculada à sua construção de realidade. A arte na contemporaneidade tenta, desse modo, resolver o impasse gerado pela impossibilidade de conce~er um todo orgânico, uma narrativa que abarque a totalidade, propondo não uma síntese aberta à conclusão e, sim, recortes que proponham uma atitude analítica ao espectador. Não mais a busca de construir um consenso acerca da leitura do mundo, mas algo que possa

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ser contemplado e analisado a partir do ponto de vista próprio do espectador. Não se propõe ao espectador uma reflexão conclusiva, com base em uma síntese, mas uma reflexão analítica, a ser elaborada valendo-se de uma disjunção estética apresentada. O artista trabalha recortando e definindo as frações de vida sobre as quais irá debruçar-se, mas os pedaços recortados não formam necessariamente um todo orgânico. Em oposição aos projetos modernos, a contemporaneidade implementa uma guerra contra totalidades, pois a relatividade ganhou o cotidiano, e pontos de vista possíveis estão multiplicados. Se a noção de totalidade associada à construção do.novo está prejudicada, os artistas contemporâneos retratam em suas obras não mais uma harmonia orgânica, como a da arte moderna, em que as partes formavam um todo, por mais que cada fragmento pudesse ser radicalmente diferente do outro. A arte recente se constitui, diferentemente, de um hibridismo desconexo, calcado na justaposição de elementos que não se harmonizam, ou então de partes que soam desnecessárias ao todo funcional da obra. O que contraria a noção de organícídade observada no período anterior ou, ao menos, pressiona essa noção para além dos seus limites. A disjunção das partes, a multiplicidade de estilos que definem uma descontinuidade lingüística, vai propor, por sua vez, uma atitude criativa ao interlocutor. Porém, não mais como sugeria a arte moderna, como obra aberta a esperar uma conclusão, mas obra interrogativa que espera uma resposta. A arte contemporânea formula, nesse sentido, uma releitura da moderna, radicalizando suas propostas. Não se trata mais de uma obra desconstruída, pronta para ser remontada, e sim de uma obra explodida, que provoca O receptor a concebê-la. Se a arte moderna propõe uma elaboração conclusiva, a da contemporaneídade

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propõe leituras plurais, dissensuais. A compreensão formulada pelo espectador vai estar mais extremadamente vinculada a leiturassíngularízadas ~e mundo, já que não há uma visão de mundo consensual proposta na obra. A falta de condições para o "novo", já que tudo foi dito e experimentado, lança-nos numa atitude analítica em direção ao passado, ao contrário da modernidade que apontava para um futuro utópico. Mas "o recurso à historiografia dá-se como instrumento de alteração do passado, não como sua reconstrução e preservação" (Teixeira Coelho, 1995,94). Sem encontrar condições que permitam vislumbrar novos caminhos, a contemporaneldade está investida em um movimento de análise da história. Esse diálogo aberto com o passado pode ser percebido nas diversas formas de arte, que utilizam elementos de todas as épocas, mesclando variados estilos. A multiplicidade de estilos ajuntados se dá assumídarnente, deixando-os evidenciados, sem preocupação de criar uma unidade entre eles, de torná-los orgânicos, integrados, apresentando-os como diferentes textos, diferentes narrativas desencontradas, decompostas. Procura-se, assim, manter a tensão entre os variados pedaços. O que antes era compreendido por unicidade agora o é por diferenciação, em vez de relacionar a parte, o fragmento, com o todo, o espectador relaciona partes entre si, pedaços que não se encaixam e não compõem necessariamente uma totalidade. Ao espectador contemporâneo é proposto, assim, que se movimente pelos vários fragmentos de uma não-obra, pedaços que, mesmo em suasoma, não constituem um todo. Lançado em uma seqüência de recortes, pedaços decompostos - que se diferenciam da seqüência das cenas épicas modernas, pertencentes a. uma mesma narrativa e desconstruídas como partes de um todo

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-, o espectador desloca-se de uma narrativa para outra, onde cada uma suscita a "renarratlvízação" das anteriores, estabelecendo uma tensão entre as diversas narrativas. Um pedaço redimensiona, reéontextuallza outro. Cada retorno reflexivo não possibilita uma visão do todo, a elaboração de uma síntese, mas uma visão sempre parcial de quem analisa pedaços que não estruturam uma totalidade. Soma-se à superposição de narrativas o ajuntamento de estilos diversos, o entrecruzamento de textos e estilos que se sucedem aos golpes e não se ligam necessariamente por relações causais ou evidências fatuaís, mas por livre associação ou relação de necessidades, desejos, vontades, etc. Uma seqüência de pedaços que redírnensiona o sentido de cada um deles isoladamente. Esses fragmentos narrativos não se juntam tampouco como colagem aleatória e constituem proposição que só se justifica como revisão dos procedimentos estéticos da modernidade. Ou seja, a explosão das narrativas e a tensão estabelecida entre os fragmentos narrativos vão radicalizar o desmembramento de uma narrativa em várias cenas, levando ao extremo o procedimento proposto pelo teatro épico brechtiano. [.... ] uma tensão que é nota dominante entre todas as partes distintas de que se compõe e que as "carrega" reciprocamen.te. Esta forma é, assim, tudo, menos um conjunto de fatos simplesmente alinhados em seqüência (Brecht, 1978, p. 29). Essa característica da produção artística contemporânea, marcada pela multiplicidade e heterogeneidade, que se apresenta como proposição radical de autoria ao espectador, pode ser compreendida como a suposta existência de uma obra ausente, que será escrita pelo receptor, um evento inexistente que

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será criado pelo contemplador. Um exemplo explícito e extremado dessa proposição criativa pode ser observado no poema China , transcrito abaixo: Moramos no terceiro mundo a contar do sol. Número três. Ninguém nos diz o que fazer. As pessoas que nos ensinaram a contar estavam sendo muito boazinhas Sempre é hora de ir embora. Se chover, você ou tem ou não tem um guarda-chuva. O vento faz voar o seu chapéu. . O sol também se levanta. . Preferia que as estrelas não nos descrevessem uns aos outros, gostaria quen6smesmos o fizéssemos . Corra na frente de sua sombra. Uma irmã que aponta para o céu pelo menos uma vez a cada década é uma boa irmã. A paisagem é motorizada. O trem leva você para onde ele for. Pontes no meio da água . Pessoas desgarradas em grandes vias de concreto, indo para o avião. Não se esqueça de como vão parecer seu sapato e seu chapéu quando você tiver desaparecido. Até as palavras flutuando no ar fazem sombras azuis. Se o gosto for bom, nós comemos. As folhas estão caindo. Chame a atenção para as coisas. Escolha as coisas certas. . Oi, ad'rJinhe o que aconteceu? O q'uê? Aprendi afalar. Fantástico. A pessoa cuja cabeça estava incompleta começou a chorar. Enquanto caía, o que a boneca podia fazer? Nada. Vá dormir. . Você fica superbem de shorts . E a bandeira parece estar muito bem também. Todos se divertiram com as explosões. Hora de acordar. Masé melhor nos acostumarmos com os sonhos. (Perelrnan, apud Jarneson, 1996, p. 55).

O poema, conta-nos Jameson, e aqui estaria sua relevância, foi concebido pelo autor a partir de um livro de fotos sobre a

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China, comprado em uma papelaria no bairro de Chínatown, em Nova York. Para cada foto, .o autor criou uma legenda, o poema éo ajuntamento dessas legendas. O sentido primeiro das frases está vinculado a esse livro ausente, a imagens fotográficas que estão fora do alcance do leitor do poema. Ao leitor cabe preencher o vazio criado pela retirada das fotos. Ele pode , quem sabe, criar outro livro, de fotos imaginárias, outro sentido possível para essas narrativas desencontradas, outra obra. À profusão de narrativas, segue-se uma profusão de silêncios que se interpõem entre uma frase e outra, ou o leitor se aventura por esse vácuo que se estabelece ou pode simplesmente se retirar sem nenhuma iniciativa autoral, criadora. Opoema, como é característica da arte recente, não tem moral nem aponta conclusões, apenas põe na bandeja opções para o self-seroiee analítico oferecido aos leitores, cabendo ao receptor desvendar um possível banquete oculto.'

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DESCENTRAMENTO DO HERÓI

Se no teatro épico

moderno, além dos atores, o palco também fala, e os diversos aspectos da encenação - cenários, figurinos , adereços, iluminação, sonoplastia, etc. - participam da narração da história, o teatro contemporâneo, em seu redimen-sionamento da arte teatral do início do século XX, radicaliza essa tendência, fazendo gritar as múltiplas vozes emitidas pelos elementos cênicos , que agora conquistam independência total uns dos outros. A ênfase na diferença e no incomensurável, que tantalízarn a. experiência contemporânea, aparece, na problematização da história, na teoria, na cultura e na arte, através de expressões que são verdadeiras personagens conceituais: indeterminado, heterogeneidade, hibridismo, deslegí -

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tímação, desenraízamento, etc. Todas indiciam, pretendem significar, o proceso de fuga do consensual, a dificuldade de unificar e to tal ízar, valorizando descontinuidades, desterritorialização , descentramento: mul-tiplicidade

(Favaretto, 1995 , p. 29). Os diversos aspectos da cena podem, agora, contar cada qual uma narrativa diferente, ou mesmo manifestar-se em diversos estilos, línguas e linguagens. Polífôníco, o palco contemporâneo comunica-se por meio de várias vozes autônomas, propondo ao espectador uma espécie de jogo de armar, um "faça você mesmo", monte sua peça teatral a partir de suas preferências, privilegie o elemento e a proposição que mais lhe convir na elaboração criativa de sua encenação. Até mesmo o trabalho do ator, levando ao extremo a tendência modernista, se vê partido em sua multiplicidade de elementos constituintes, cada palavra passa a ter um valor em si, destacada e independente do texto , um gesto pode ganhar autonomia , desprendendo-se do movimento, e assim por diante. O trabalho do ator; e Brechtjá anunciava isso; nãoserestringe mais a compor, dar vida a um personagem, mas se expande na exploração das variadas possibilidades lingüísticas que estão a seu alcance e podem ser ampliadas em relações estabelecidas com os demais elementos de cena. Levada ao extremo a proposta épica de independência dos diversos elementos da encenação, o palco agora não apenas fala, como também é protagonista do espetáculo. O personagem (herói) perde , dessa maneira, sua posição central no evento. Não há mais história, peripécia, trajetória, mas múltiplas narrativas a serem contadas, não mais uma voz centralizando as atenções , mas variadas emissões de significantes vindas de todos os lados

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do palco. No teatro contemporâneo , não se abandona, necessariamente, a importância da trajetória do personagem, mas , ao contrário do teatro moderno, ele pode não ser mais a linha fundamental da proposição espetacular, tornando-se um dos aspectos da encenação, dentro de diversas outras possibilidades de provocação estética presentes no jogo de linguagem que os criadores propõem ao espectador. O sentido desse jogo não está mais restrito à vida do protagonista, os elementos cênicos não giram mais em torno do herói, que foi retirado de seu lugar central e tratado como um dos muitos elementos de linguagem trazidos à cena. Se o personagem é removido do seu lugar central, a identificação com o herói (e a quebra dessa identificação) perde também sua função de proposição primordial feita ao espectador e deixa de ser categoria fundamental na análise do' teatro contemporâneo. Constitui-se, desse modo , outro aspecto da encenação contemporânea, radicalizando uma tendência do teatro épico moderno, que buscava não evitar a identificação, mas descolar o espectador de sua vivência das peripécias do herói, impedindo a empatia por abandono . Produzem-se ainda efeitos de 'iden tificação, passageiros, fugazes, como uma espécie de espuma da representação . Formam-se identificações menores , residuais: fios, franzidos , ou traços, de uma experiência antiga que retoma aqui e lá. Além de surgirem outros tipos de identificação em locais diferentes, mais intensos, que atravessam o teatro. Mas não se pode mais pensar a arte teatral valendo-se da identificação com. o personagem. como categoria. determinante de análise (Gu énoun, 1997 , p. 106).

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O perder-se, lançar-se no universo interior do personagem , colando-se diante de su as peripécias e compartilhando seus sentimentos e agruras, deixa de ter força !lO teatro contemporâneo. Fato que se dá motivado, em .grande parte, pela mudança no campo perceptivo da platéia, habituada aos espetáculos diários da mídia eletrônica e, principalmente, à estética cinematográfica. A identificação ilusionista abandona o teatro, pois tornou-se inviável numa produção crua e artesanal, que se efetiva em face de espectadores acostumados com recursos tecnológicos capazes de produzir um alto teor,de sensacionalismo. Não se vai mais ao teatro para ver (vivenciar) um personagem ou acompanhar um drama, mas para ver o teatro, um espetáculo, uma encenação. Não se vai mais ao teatro na espe, rança de ser capturado ou iludido; do teatro não se espera mais que ofe-reça envolvimento irrestrito como herói nem respiração ofegante. Quem busca situações dramáticas e identificações por abandono encontra atualmente no cinema melhor endereço. A identificação com o herói perde, assim! sua força na experiência proposta ao espectador teatral. O mergulho no horizonte interno da obra não se dá mais primordialmente conduzido sob a perspectiva do personagem, outros elementos o convidam a adentrar no universo da obra. No trabalho do ator, por sua vez, a identificação com o personagem também deixa de ser o objetivo principal, sua função não se restringe mais à construção psicológica do personagem, suas possibilidades de proposição lingüística estão multiplicadas. Ou seja, para ~: ator contemporâneo , a ativa participação na lógica do .logo de linguagem proposto pela encenação se torna uma ocupação tão ou mais importante que a de fazer viver o personagem.

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A PROPOSIÇÃO PEDAGÓGICA DA ARTE CONTEMPORÃN~A

O caráter estético do fato artístico, em que se inscreve seu caráter educacional, está diretamente relacionado com sua proposição díalógíca, com a efetiva participação do contemplador como co-criador do evento. Qualquer anál ise do aspecto pedagógico do teatro de espetáculo, portanto, não pode estar desvinculada da própria busca do 'sentido dessa arte, de sua capacidade de dar conta da experiência de seu tempo, já que a sua possibilidade pedagógica se inscreve em sua viabilidade estética. Uma das importantes características da arte m~derna foi o estímulo à participação do receptor, convidando-o a estabelecer uma reÍação co-autoral com o evento, especialmente em uma atitude responsiva, de quem formula interpretações para questões apresentadas pelo autor. A arte contemporânea, por sua vez, pretende levar ao extremo essa atitude proposta. O teatro épíco moderno funcionava como modelo científico exposto ao espectador, apresentado érn diálogo aberto com a platéia, convidando-a a refletir sobre aquele sistema, que funcionava como uma tradução sintética da vida social. Um modelo desmontado que era (re)montado na frente do espectador, revelando todos os seus mecanismos, seus meandros , já que estava inserido na lógica estética da construção-desconstrução que inspirava a arte moderna. Nas últimas décadas, nenhuma narrativa se acha em condições de sintetizar a vida social contemporânea, pela faÚa de visão de conjunto, pela impossibilidade de abranger os múltiplos pontos de vista possívels, múltiplas interrogações. As grandes narrativas estão explodidas em elementos de linguagem, com os quais cada qual elabora combinações nem sempre estáveis, ou seja, a "falência" dos projetos de renovação leva a uma. decomposição ; um sucateamento desses projetos ,

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produzindo vários elementos de linguagem, fragmentos de lín-

suprimem a reflexividade. A proposição participativa e, nesse

guagemnarratíva que advêrn dessa pulverização e se prestam a

sentido, pedagógica, é não apenas conservada, mas radicalizada.

explicações localizadas e não mais globais. No teatro contemporâneo, em sua tendência de análise e redimensionamento do épico moderno, cada espectador trabalha com esses e outros elementos de linguagem a seu modo; formulando sua interpretação do evento. O teatro recente não se encontra mais em condições de se

A caraoterfstíca talvez mais importante de toda a arte recente, mas que já era fundamental na arte de vanguarda, é a reflexividade. A obra não s6 reflete sobre si mesma - é auto-referente, metalíngüístlca, em termos semi óticos -, mas é reflexiva porque o prazer e a significação que dela

apoiar na proposição concreta de um movimento coletivo, sustentado por uma grande narrativa, na proposta de engajamento político, fundamentando-se, portanto, na provocação aos espectadores, formulando um raciocínio estético em que caberia ao espectador a elaboração de questões que lhe pareçam pertinentes, a partir de sua concepção do evento, sua leitura de mundo.

Em vez de propor que o espectador feche a obra que se apresenta aberta, com uma elaboração responsíva, definindo significados para os signos propostos, o teatro contemporâneo pre-

A vontade educacional encontrada em tendências da arte moderna efetivava-se, assim, na instauração de uma atitude particípatíva, no convite ao receptor para exercer a autoria que lhe cabe, para elaborar uma compreensão pr6pria do evento. Nessa proposição reflexiva estava estruturado o caráter pedagógico do teatro épico, disposto a sacudir o espectador refastelado na poltrona e abandonado à corrente da narrativa que lhe era apresentada. O teatro brechtiano se propunha, assim, a potencializar o caráter pedagógico da atividade artística, "cíentífícízando" a criação teatral, potencializando seu caráter estético, a reflexividade da obra. A dinamização da recepção, contudo, precisa estar sempre vinculada a padrões estéticos contemporâneos, em diálogo com as questões de seu tempo. Essa atitu-

tende que a platéia participe, acrescentando significantes ao jogo de linguagem. Menos interessada em formular a compreensão, o fechamento, a sintetízação da obra, ou criar uma u~idade para as partes, a arte da contemporaneidade quer propor ao espectador que teça análises, elabore outros significantes, empreendendo, assim, uma atitude mais extremadamente autoral. O artista está menos preocupado com o entendimento que a obra suscita no espectador do que com a provocação que lhe faz. A reflexividade suscitada pelo teatro recente se depara com condições específicas, que requerem propostas estéticas consonantes com as alterações no modo de vida contemporâneo. A arte teatral dialoga, atualmente, com um indivíduo bem informado, participante incondicional da híper-ramificada rede de

de reflexiva proposta ao espectador pode também ser percebida

comunicação. Porém, se a espetacularidade do cotidiano pro-

na arte recente, que mantém, não sem transformá-la, a vontade pedagógica presente na arte moderna. As recentes transformações na recepção alteram os procedimentos artísticos, mas não

movida pelos media, associada aos múltiplos informes, proporciona amplo conhecimento acerca dos fatos sociais, "a informação excessiva, afírma-se, é uma das melhores induções ao

derivam só podem ser encontrados na reflexão (Favaretto, 1997, p. 29).

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esquecimento" (Harvey, 1992, p, 315). E isso porque na superdosagern informativa não há espaço e tempo para reflexão , com a mesma velocidade que entra na rede, a notícia desaparece, qualquer história veiculada é rapidamente relegada ao caráter de passado distante, sem ao menos ser dígerída, Os indivíduos vêemse, assim , sedados por uma overdose de informação. Observadores "conscientizados" mas desmobilizados; em lugar de passividade alienada, apatia bem informada. Talvez se possa conoeber que o teatro contemporâneo pretenda suscitar no espectador habituado a fragmentos narrativos descontínuos a formulação de contralances inesperados , provocando-o a elaborar leituras próprias, surpreendentes, estimulando-o a fazer jogadas inventivas. O caráter pedagógico do tea-tro de espetáculo deixaria, dessa maneira, de ter valor formador para ter valorperformático. O conceito de performance, aqui aplicado , não tem o sentido atribuído ao melhoramento da capacidade competitiva, de gerar lucros, a valor de mercado, mas , sim, à capacidade de desferir golpes, produzir elaborações estéticas próprias, inesperadas. A idéia de formar espectadores , que pressupõe um patamar a ser atingido , seria substituída pela idéia de processo , de provocação dlalógíca, Um teatro interessado tanto na capacidade performática do espectador, de reagir aos lances propostos, de desferir golpes surpreen-dentes, quanto na performance da própria atividade artística, em sua capacidade provocativa, de formuiar novos lances, novos jogos de linguagem . Ela (a melhor performatividade) resulta de um novo arranjo dos dados, que constituem propriamente um "lance" . Este novo arranjo obtém-se , a maioria das vezes, pondo em conexão séries de dados tidos até então como indepen-

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dentes. Pode-se chamar imaginação a esta capacidade de articular juntamente o.que não estava. A velocidade é uma propriedade da imaginação (Lyotard, 1989, p. 106). O teatro recente, assim, calcado no estímulo à reflexividade , provocaria essa capacidade inventiva, ativando uma melhor performatividade, estimulando a "'imaginação' , que permite ou realizar um novo lance , ou mudar as regras do jogo" (Lyotard , 1989, p. 106). A negação · da negação O teatro épico moderno queria propor à platéia um olhar cien tífico, Interrogatlvo, como o do grande Galileu diante da lâmpada, como afirmava Brecht. E para isso, provocava o espectador a lançar questões à vida lá fora, a estranhar o estranhável e a buscar soluções para situações apresentadas. A peça teatral A Alma Boa de Setsuan pode servir como exemplo desse exercício crítico proposto ao espectador brechtiano. O texto narra as peripécias do personagem Chen Te, uma prostituta que se vê em dúv ídas acerca da melhor maneira de agir, já que, tendo recebido uma ajuda financeira dos deuses, resolve abandonar a prostitui. ção e adquirir uma tabacaria. Ela começa a administrar o novo empreendimento seguindo sua índole generosa, sua tentativa de ser uma pessoa correta, honesta, uma alma boa , enfim . No entanto, Chen Te é constantemente incompreendida pelos demais, que não perdem a oportunidade de tirar proveito de sua bondade. Vendo sua tabacaria ir à falência , já que seus atos de caridade são tão bem intencionados quanto P0!lCO lucrativos, ela re· solve disfarçar-se em um primo imaginário, para quem inventa o nome de Chui Ta, que sempre aparece na hora em que se precisa tomar atitudes duras e nem sempre honestas, atitudes que

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estão em total discordância com o caráter humanitário de Chen Te,!J1as necessárias ao sucesso do empreendimento comercial. K questão está formulada: é possível ser uma boa alma nos dias de hoje? Cabe ao espectador respondê-la. No epílogo , direcionado à platéia, esta' idéia está explicitada: E agora, público amigo, não nos interprete mal: Sabemos que este não foi um excelente final! Nós fazíamos idéia de uma lenda cor de ouro E ela, disfarçadamente, assumiu um tom de agouro . Ficamos tristes também ao notar, por nosso lado, Tanto problema em aberto e o pano de boca fechado. Qualquer sugestão, portanto, acatamos com respeito: Recolham-se às suas casas e disto tirem proveito! Não poderíamos ter maior mágoa em confessar O nosso maior fracasso, se alguém não nos ajudar. Thlvez nada nos ocorra, agora, de puro medo: Isso acontece ! Entretanto, como encerrar este enredo? Já batemos o bestunto e nada achamos no fundo : Se fossem outros os homens, ou se outro fosse o mundo, Ou se os Deuses fossem outros ou nenhum - como seria? Nós é que ficamos mal sem nenhuma fantasia! Para esse horrível impasse, a solução no momento ThJvez Iosse vocês mesmos darem trato ao pensamento Até descobrir-se um jeito pelo qual pudesse a gente Ajudar uma alma boa a acabar decentemente.... Prezado público, vamos: busque sem esmorecer! Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver! (Brecht, 1992, p. 184).

No texto, o que se questiona é a impossibilidade de viver dignamente sob a égide do sistema capitalista, em que todos se colocam contra todos, o que acaba determinando que o homem tome atitudes que contrariam a si próprio, fazendo que abandone gestos humanitários , sendo forçado a optar, inevitavelmente, por uma maneira de agir impiedosa para que alcance o tão almejado lucro. No que está dito, se pode perceber o não-dito : é

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necessário mudar o mundo , é preciso reformular o sistema econômico, político e social. (. ..] se tratando de um rio, "criticar" é regularizar o seu curso ,· se tratando de uma árvore frutífera, enxertá-la; se tratando de problemas nos transportes, construir novos veículos terrestres, marítimos e aéreos; se tratando da sociedade, fazer a revolução (Brecht, 1989, p. 270) . Assim, o teatro épico moderno apresenta interrogações para que o espectador formule exclamações, treinando-o para o raciocínio investígatívo, instigando-o a lançar um olhar de curiosid ade , travar uma relação de estranhamento com a realidade social, para que ele elabore suas descobertas conclusivas, deixando subentendida uma sugestão de saída possível. Se a indicação de saída está inviabilizada, e não se achem atualmente condições para a efetivação de grandes projetos de renovação, não significa dizer que a proposta brechtiana não encontreressonância na atualidade . O necessário redlmens íonamento do teatro épico moderno não significa negar Brecht. Ou melhor, . ta·lvez seja preciso negar o teatro épico brechtiano, e negar também a negação que se faz, efetivando a negação da negação, que certamente não faz o pensamento retornar a seu ponto de partida. Ou seja, a negação do moderno, ou a necessária análise das propostas estéticas desse período, nas quais o teatro épico se insere, não significa negar sua proposição crítica. O redimensionamento do teatro épico moderno se efetiva-se em conson ânciacorn o modo de produção da contemporaneidade, pela radicalização de suas proposições estéticas , reflexivas, e não por seu abandono. Assim, a tendência pós-moderna de ridicularizar qualquer proposição crítica precisa ser

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negada com a mesma disposição que é necessário negar (e estranhar) o tratamento de "normalidade" que é dado a alguns fatos de nosso tempo: o desemprego estrutural permanente, a especulação financeira, os desastres ecológicos, a miséria nos países pobres, etc. Bem como a necessária negação da "normalidade" que é atualmente conferida ao comportamento do primo Chui Ta. O indivíduo, no capitalismo pós-industrial, incapaz de criticar (mesmo reconhecendo) a lógica mercantilista que o conduz e que determina suas atitudes, atribui a outros, quando não a si, a razão de suas mazelas. Quando algo sai errado em grande escala, quase nunca se permite que o fato seja posto em questão, a responsabilidade recai com freqüência sobre a falta de competência e mesmo sobre a má-fé das pessoas. E isso porque "a ordem reinante do sistema social lhe foi alçada a dogma de uma legitimidade natural, alheia a qualquer possibilidade de valoração" (Kurz, 2001, p'o12). Os vilões alternam-se como responsáveis pelos retumbantes fracassos dos acontecimentos nos diferentes setores da vida social. Na seqüência infindável de crises, os responsáveis vão para o olho da rua, sendo trocados por outros que melhor não se saem. O estranhamento de uma situação propõe o despertar da percepção adormecida. Em Brecht, a situação estranháoel é dada como histórica, construída, podendo, portanto, ser reconstruída. Aqui, o familiar ou o habitual é novamente identificado como o "natural", e seu estranhamento desvela aquela aparência, que sugere o imutável e o eterno, e mostra que o objeto é "histórico". A isso deve-se aorescentar, como corolário político, que é feito ou construído por seres humanos e, assim sendo, também pode ser mudado por eles ou completamente destruído (Jameson, 1999, p. 65).

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Talvez possamos considerar que o teatro de Brecht somente perderá seu vigor contemporâneo, quando o sistema capitalista, contra o qual ele engendrou sua proposta estética, esteja extinto como sistema autoritário e criador de desigualdades. A condição irreflexiva da consciência cotidiana agrava-se pela ausência de um projeto que conduza a sociedade a um desenvolvimento positivo. A perda de objetivos e parâmetros leva ao completo abandono da atitude crítica, que é substituída pelo jogo Intelectual descompromissado, nos lançando ao encontro de um pragmatismo livre de ilusões reformistas, recusante de qualquer pensamento que não proponha aplicações práticas imediatas. Predomina, assim, um silêncio sorrateiro, que anuncia o fim de qualquer crítica social que contrarie esse pragmatismo desiludido. Contra a desesperança, é preciso reagir, negar o estranho que se tornou normal, reacendendo a importância de imaginar e concretizar mudanças que nos afastem da mera administração de uma crise permanente, mas que possamos formular maneiras de suprimi-la. Quem sabe numa nova forma de movimento so-cial, que surja da necessária elaboração de uma alternativa coletiva global e rompa com o domínío sem sujeito do valor econômico abstrato. E que a arte teatral, porque não, reassumindo seu diálogo com a sociedade, possa provocar o espectador, como historiador da sociedade, a formular saídas, mesmo que seja somente a possibilidade de formara idéia da própria possibilidade de inovação, ainda que pontual e estratégica. O teatro, assim, ajudaria a criar perspectivas no retorno da vontade de criação de um novo sistema possível, vontade de superar a saturação atual. Afinal de contas, os anseios utópicos não são facilmente reprimidos e podem ser reacesos com os mais imprevisíveis pretextos.

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Se a época não permite que se apontem caminhos consensuais , e nãohá nenhuma síntese que consiga dar conta da estruturação deum projeto revolucionário que transforme efetivamente a realidade social, tendo em vista que a própria realidade não se apresenta mais estática, facilmente delimitada, a arte contemporânea, em algumas de suas tendências, quer arremessar esse indivíduo, afastado dos movimentos sociais, ao encontro de si mesmo, propondo que elabore uma análise própria do momento histórico, formule suas questões .e defina, segundo seus critérios, a melhor atitude li tomar. O teatro, seguindo essa tendência, mostra-se desajeitado, calcado numa desconcatenação provocativa, em que os fragmentos não propõem uma totalidade , mas se . mantêm como partes fissuradas, num ajuntamento que não evoca unidade possível, mas destaca os pedaços, numa mistura assumida e heterogênea. Um teatro que propõe ao espectador que rearrume os pedaços, fazendo suas escolhas, e monte o jogo de peças em função de suas posições críticas, estimulando-o , assim, a produzir conhecimento. Pois, "o conhecimento é descoberta de relações entre signos" (Favaretto, 1995,' p. 33). A invenção de um ponto de vista unificador não pode ser imposta, mas precisa surgir justamente da própria produção de oonhecímentos, da atitude de análise em direção ao passado, que possibilitará a redeflníção de metas e estratégias para o presente e o futuro. O redimensionamento do teatro épico, nesse contexto , define-se como prática teatral que provoca o espectador a uma atitude reflexiva acerca da relação entre ético e estético na atualidade , marcada pela espetacularidade da ~ida social. Um teatro que desafia a platéia a um movimento analítico dos fatos que se apresentam aos montes e de maneira totalmente desordenada', que , calcado na retlexividade, mantenha a vontade pedagógica

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do teatro épico moderno, não propondo COm ele uma ruptura total, mas sua revisão incontornável. Mais do que formular questões definidoras ou oferecer respostas, ao teatro recente cabe pôr em cena indefinições e questionamentos do momento histórico, oferecendo o palco às ambigüidades, os diversos enfoques. É um momento, uma passagem da Modernidade a qualquer coisa que, para apreendermos , é preciso saber buscar no substrato sensível dos dados sociais: Buscar o sensível, mas' que seja possível de se interpretar racionalmente. Uma "razão sensível", isto é, capaz de elaborar sobre os dados da sensibilidade intuitiva (Maffesoli, 1994, p. 22) . O teatro contemporâneo talvez precise colocar-se, positivamente, em diálogo com esse momento, participar desse debate, trabalhar sobre uma revolução sem projeto (que seja!), mas que nem por isso é menos necessária. A busca de caminhos para a concretização do nosso anseio de felicidade persiste, apesar do ~escrédito nos projetos conhecidos , que nos levaram a situações e condíções bastante diversas da orientação inicial. Nesse momento em que a capacidade da arte teatral de traduzir a experiência contemporânea está em questão, podemos constatar que as conquistas e inovações estéticas do teatro épico moderno foram inegáveis, como o é também a necessidade de revê-las . Assim, ao contrário do pensamento sintético da arte moderna, a produção contemporânea propõe que cada espectador elabore seu pensamento crítico e formule coruralances, resoluções possíveis para questões do presente histórico , traçando caminhos, estratégias pessoais e sociais possíveis para a construção de uma vida coletiva mais digna e justa. E desembarace os

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infindáveis n6s, solte as tantas amarras que nos prendem ao ciclo hist6rico de atitudes sempre-iguais, que nos fazem repetir uma história esquecida, e sufoca os sonhos do presente, liberan.do-os para que se aliem aos dos nossos antepassados.

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espectador espeoialista As .ínvestígações acerca da formação de espectadores para o teatro estão em pleno curso. Embora algumas respostas tenham sido encontradas, outras questões surgiram, de modo que o debate continua. Nenhuma das práticas citadas, ou mesmo outras que não tenham sido referidas neste trabalho, pode ser julgada detentora do verdadeiro e definitivo método de formação, pois essa é mais uma experiência e uma conquista pessoal do que um conteúdo adquirido. Não se pode ainda esperar que a atuação dos projetos de formação vá resolver a dita crise do teatro, seria pretensão desmedida para questão tão complexa. Por outro lado, é reconhecível a relevância e a pertinência dessas práticas na tentativa de pensar as relações entre teatro e sociedade. A transformação do teatro passa, necessariamente, por sua democratização, e esta pelo convite aos espectadores a participar efetivamente do evento artístico. Quando idealizou seu teatro épico - calcado na desconstrução do palco, no desnudamento da cena, assumindo a teatralidade

do evento - Brecht pretendia, justamente, que o espectador ganhasse intimidade com a linguagem teatral. Ao se apropriar dos 171

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recursos e mecanismos utilizados no teatro, o espectador se tornaria especialista, ampliando sua capacidade de compreender a cena, ao perceber ~s inúmeras possibilidades de concepção e 'interpretação da obra, sentindo-se então apto a elaborar significados para os signos propostos, criar um ou mais sentidos para a encenação. A conquista da lin~uagem teatral pelo espectador implica o desenvolvimento de um senso estético e um olhar crítico - olhar armado, exigente , atento à qualidade do espetáculo, que reflete sobre os fatos apresentados e não se contenta em ser apenas O receptáculo de um discurso rnonolõgíco, que impõe um silêncio passivo. A aquisição da linguagem teatral capacita o espectador a interpretar a obra, desempenhando uma efetiva participação no fato artístico e assumindo a autoria da narrativa apresentada, mantendo viva sua possibilidade de-construção e reconstrução da história. Unia pesquisa realizada, na década de 1990, com crianças extremamente desfavorecidas do subúrbio da cidade deLlão , na França, mostrou que uma das principais características dessas crianças, que' se sentiam fracassadas pessoal ,e socialmente, era a absoluta incapacidade de pensar uma história, a sua história (Meíríeu, 1993). A investigação ressalta ainda que nas conversas travadas com essas crianças, que tinham entre seis e doze anos , em que lhes foi pedido para contar a própria vida, a própria história, pôde-se perceber a grande dificuldade que demonstravam em se referir ao passado, mesmo recente. Foi possível perceber que elas utilizavam constantemente o "você" e o "a gente", e quase nunca o pronome "eu", e que se mostravam incapazes, mesmo as mais velhas, de utilizar "estas pequenas expressões tão fundamentais para dar sentido à vida, que são: 'fOi a partir deste momento que eu compreendi', 'teve um momento

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em minha vida que aconteceu isto e me levou a decidir isto', 'eu descobri que', etc." (Ibidem, p. 15). A pesquisa ressalta ainda o fato de que, dentre as crianças entrevistadas, as habituadas a freqüentar salas dé teatro e cinema revelavam maior facilidade em utilizar esse tipo de discurso narrativo , apontando para a conclusão de que aprender a assistir e interpretar uma história é aprender a contar e construir a própria história. O mergulho na corrente viva da linguagem abre a consciência para uma ativa atuação e transformação da vida pessoal e social. A tomada de consciência oonstítuí.rassírn, uma leitura de mundo, ou melhor, aptidão para empreender uma leitura própria do mundo. Apropriar-se da linguagem é ganhar condições para essa leitura, essa tomada de posição diante da realidade. A conquista da linguagem viabiliza o diálogo com a vida e possibilita a (re) formulação de projetos e a concretização de mudanças . A arte lança o oonternplador ao encontro da vida, sempre de maneira surpreendente, inesperada. A compreensão da obra passa pelo necessário diálogo com a experiência cotidiana; essa elaboração reflexiva não se processa, contudo , sem esforço. Descobrir o prazer dessa análise é aprender a ser espectador, a tornar-se autor de ' histórias, fazedor de cultura. Um prazer que , como experiência pessoal, única e íntransfertvel, pode ser aprendido, mas não ensinado. Assim, formar espectadores consiste em provocar a descoberta do prazer do ato artístico mediante o prazer da análise . A especlallzação do espectador constitui-se não tanto em ensinar como pensar, dialogar, ler, gostar, mas sim em propor experiências que estimulem o espectador a construir os percursos próprios, O próprio saber, o próprio prazer, deixando que cada qual vá descobrindo laços e afinidades, tornando-se íntimo a seu modo, relacionando-se e gostando de teatro do seu jeito.

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·0 espectador especialista deseja o ato estético. Como os visitantes do Museu D'Orsay, lançados pela janela ao encontro do mundo lá fora, esse espectador descobre o gozo de emp~eender uma atitude própriaem face da realidade, o prazer de fruir a vida, analisá-la e concebê-la de outra maneira, à sua m~neira.

Procedimentos espetaculares e extra-espetaculares As transformações no modo de vida ocorridas nas últimas décadas do século XX, como vimos, ocasionaram modificações na percepção e na sensibilidade dos indivíduos. Com isso, algumas das propostas e recursos cênicos que fundamentavam a teoria do teatro épico moderno não causam a mesma reação de outrora, a mesma atitude no espectador - '0 que demanda outras premissas para se pensar como a arte teatral pode dar sentido à experiência contemporânea, e solicita outros procedimentos estético-pedagógicos para dinamizar a recepção do espectador. -Para a percepção do indivíduo contemporâneo, acostumado às fibras óticas e telas de cristal líquido, o teatro talvez seja um evento insuportavelmente antiilusionista, incapaz de provocar adesão , capturá-lo, deixando-o incomodamente distanciado da ação. As reflexões e experimentos de Brecht, no entanto , estão longe de serem irrelevantes e seus ensaios são incontornáveis se quisermos investigar as possíveis relações do teatro com a sociedade nos dias que correm. A análise da atualidade do teatro épico moderno não pode dar-se, contudo, sem a reaftrrnação da viga mestra desse teatro: o efeito distanciamento . O teatro épico está fundamentado na proposta feita ao espectador de estranhar o estranhável: de não tomar como normal os absurdos cotidianos, não aceitar os valores como provenientes de uma validação consensual, nem conformar-se com a repetição irrefletida

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do passado. O palco ressalta, dessa maneira, a condição histórica dos acontecimentos e a capacidade do homem de refazê-los socialmente. O teatro reafirma, assim, a idéia brechtiana de que não há oposição entre ação e contemplação,' propondo ao espectador que efetive o ato criativo, artístico, produtivo . O redimensionamento do teatro épico mantém, portanto, o caráter pedagógico do teatro de espetáculo, calcado na atitude observadora, .crít íca, na reflexividade proposta à platéia. O teatro recente, radicalizando a proposição autoral característica da arte moderna, propõe-se a tratar o espectador como um igual, o outro necessário ao diálogo, que é reconhecido pelo autor como um outro autor, estabelecendo um diálogo franco, onde ambos estejam igualmente implicados. Para se pensar uma pedagogia do espectador torna-se relevante, entretanto, considerar não apenas a proposta estética que constitui O espetáculo, mas também os procedimentos extra-espetaculares que podem fornecer instrumentos preciosos para uma recepção mais apurada. Na vertícalízação da pesquisa nesses dois sentidos da especialização do olhar, na tensão entre essas duas experiências estético-pedagógicas - a espetacular e a extra-espetacular - podem constituir-se efetivos projetos de especialização de espectadores de teatro. Inspirados nas teorias de Brecht, os exercícios de mediação pretendem descortinar o espetáculo, apontara dimensão cotidiana do que está sendo apresentado, e afirmar o espectador como participante ativo do evento. O teatro, nas atlvidades pedagógicas , é apresentado como jogo que aguarda a intervenção .

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Sobre esta questão, o encenador alemão afirmava: "os filósofos burgueses insistem na distinção fundamental entre ação e contemplação. Mas o pensador verdadeiro (o dialético) não faz esta dist inção {.. . J" (13recht, apud Jameson, 1999, p. 1(1)

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do espectador; a cena solicita novas soluções, outras resoluções, tornando maleável o mundo que se constrói no jogo. Os procedírnentos de mediação visam ressaltar o caráter vital da experi. ência artística, associado à dúvida, à incerteza, à questões sem resposta ou com mult~plicidade de respostas. A educação artísticf\., no entanto, não pode existir sem a frequentação da arte. Como pensar em uma pedagogia do espectador sem o necessário incentivo à produção teatral e a projetos que facilitem e estimulem o acesso às salas? De que valem espetáculos de qualidade ~e o público não tem acesso a eles? Ou de que adianta espectadores motivados sem uma ~rodução teatral provida de recursos que viabilizem sua execuçao? Para ~ conuísta da linguagem teatral é importante que se pense, conjuntaq ente sobre condições de acesso físico do espectador às salas m " . de espetáculo, porque é na própria experiência artlstlCa que o espectador vai descobrir o prazer do ato que lhe cabe. A atitude do espectador no evento teatral, seu interesse em se lançar ao embate estético, efetiva-se, assim, primordialmente, a partir do desafio estabelecido pelas proposições artísti~as com que se depara, e que podem ser dinamizadas por procedl~entos pedagógicos de mediação, que aprofundem seu conheCImento da linguagem teatral, intensifiquem seu diálogo co~ a obra e agudizem formulações estéticas. A reunião desses dOIS aspectos da formação torna-se relevante na formulação de projetos de especialização de espectadores. . . Faz-se necessário ressaltar'que esses proJetos, motivados pela crise financeira ocasionada pelo esvaziamento das salas, não resumam suas práticas e objetivos à mera formação de freqüentadores de teatro. Pois não é suficiente criar o hábito de ir ao teatro' deseja-se especialmente fomentar a vontade crítica, a exígêncta dialógica, que se traduz no necessário reconhecimen-

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to da existência de uma arte dá observação , arte do espectador - que pode (e precisa) ser trabalhada e desenvolvida .. Importa ainda destacar que a relevância de uma formação continuada desde infância não precisa estar vinculada à idéia de formação dos espectadores dofuturo , calcada no objetivo de depositar nas mãos de crianças e jovens a responsabilidade ou esperança de urna revolução teatral vindoura . A tarefa dos formadores nos anos 1970, período em que essa idéia vigora va , passou a ser a de transformar a criança para a sociedade , ou melhor, a de transformar a criança para que ela transformasse a sociedade. Ela se via assim carregada de tod~ uma expectativa de pais , educadores e artistas como sendo potencialmente ap ta a realizar seus sonhos. Atualmente, não se trata mais de preparar o público de amanhã mas de formar o espectador de hoje, sujeito que reflete sobre as questões que lhe dizem absoluto respeito. .

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Na sociedade espetacularizada, em que o show da realidade , por. vezes, substitui a própria realidade , o olhar aguçado aliado ao senso crítico apurado procura estabelecer novas relações com a vida social e com diferentes manifestações espetaculares que buscam retratá-la: O olhar crítico busca urna interpretação apurada dos signos utilizados nos espetáculos diários. A aquisição de instrumentos lingüísticos, arma o espectador para um debate que se trava, justamente, nos terrenos da linguagem. Porque , mesmo em uma época em que satélites e computadores dão o tom, a palavra ainda constitui o mais valioso instru men to revolucionário. Com a linguagem afiada, o espectador do cotidiano não se resigna em ser mero receptor "de uma leitura do mundo feita por terc~iros, ou então por uma máquina anônima especializada em selecionar, entre a poeira infinita dos eventos , aqueles que podem cair na malha da 'notícia' " (Calvino, 1996, p. 4).

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Apto a elaborar uma compreensão própria dos acontecimentos, este cidadão-espectador pode reivindicar sua autoria nos eventos cotidianos. , Acostumado a se embrenhar nas profundezas da linguagem, habituado a passearpor suas ruelas, visitar seus guetos, alcançar os bairros nobres, procurando conhecê-la em sua delicadeza, . rigor, exigências, o contemplador torna-se capaz de .formular critérios, valores e juízos referentes a variados produtos culturais . O sujeito da contemplação adquire, assim, condições de relacionar. múltiplos signospropostos, formulando novos lances, concebendo jogadas surpreendentes, produzindo conhecimento. E é dos fios dessa produção que ele poderá tecer a trama de um novo futuro.

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