A Origem da Bíblia: um Guia Para os Perplexos [1 ed.] 853493567X, 9788534935678

Este é um grandioso trabalho que oferece respostas e explica os caminhos percorridos pela Bíblia até os dias atuais. Em

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Portuguese, Portuguese Pages 264 [206] Year 2012

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A Origem da Bíblia: um Guia Para os Perplexos [1 ed.]
 853493567X, 9788534935678

Table of contents :
Capítulo 1: Introdução e observações preliminares
Capítulo 2: Síntese histórica
Capítulo 3: Formação do cânone do Antigo Testamen­to
Capítulo 4: Encerramento do cânone do Antigo Testamento
Capítulo 5: Formação das Escrituras cristãs
Capítulo 6: Influência da “heresia” e da “ortodoxia” sobre a formação do cânone
Capítulo 7: Fixação do cânone do Novo Testamento
Capítulo 8: Comentário final
Bibliografia

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Sumário Capítulo 1: Introdução e observações preliminares Capítulo 2: Síntese histórica Capítulo 3: Formação do cânone do Antigo Testamento Capítulo 4: Encerramento do cânone do Antigo Testamento Capítulo 5: Formação das Escrituras cristãs Capítulo 6: Influência da “heresia” e da “ortodoxia” sobre a formação do cânone Capítulo 7: Fixação do cânone do Novo Testamento Capítulo 8: Comentário final Bibliografia

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Com amor e afeto, para Karl Martin McDonald, filho maravilhoso que orgulha seu pai!

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INTRODUÇÃO E OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

POR QUE A FORMAÇÃO DA BÍBLIA É IMPORTANTE A Bíblia influencia decisivamente a fé de judeus e cristãos, proporcionando-lhes o conhecimento de Deus, da vontade divina, da própria identidade como povo de Deus e da sua missão no mundo. Judeus e cristãos aceitam a sacralidade dos livros do Antigo Testamento como literatura sagrada, mas os cristãos admitem também inúmeros outros escritos sagrados. É importante saber quais livros integram o cânone bíblico, e é fundamental que pessoas de fé conheçam o texto desses livros, de modo especial as palavras que, neles, são inspiradas por Deus. A Antiguidade produziu muitas outras obras religiosas, e tanto judeus como cristãos selecionaram as que contribuíam para sua compreensão de Deus e elucidavam sua própria identidade e missão no mundo. Infelizmente, a forma como os escritos sagrados judaicos e cristãos foram reunidos para formar suas respectivas Bíblias é uma história mais complexa, menos evidente e, muitas vezes, desconhecida. Este pequeno volume tem o objetivo de lançar alguma luz sobre alguns aspectos mais importantes relacionados ao modo como chegamos à nossa Bíblia. Iniciamos com um breve esclarecimento sobre o que se encontra na Bíblia. A Bíblia judaica contém 24 livros (ou 22, dependendo de como se combinam e contam os mesmos livros), um conjunto geralmente denominado Bíblia hebraica (BH), Tanak e até Miqra. Na verdade, Tanak é um acrônimo, formado a partir das três partes da Bíblia hebraica: a Lei, os Profetas e os Escritos. Em hebraico, essas categorias se chamam Torah, Nebiim e Ketubim, daí TNK ou TaNaK (Tanak). Alguns especialistas bíblicos adotam o termo Primeiro Testamento, em lugar de Antigo Testamento, pois o termo “antigo” às vezes sugere a ideia de algo obsoleto e de menor consequência. Evidentemente, os que escolheram a expressão nos primórdios não tinham essa intenção, mas atualmente há quem a considere depreciativa. Por isso muitos biblistas empregam as denominações Primeiro Testamento e Segundo Testamento, em vez de Antigo Testamento e Novo Testamento. Os cristãos aceitam os mesmos livros que os judeus como Antigo Testamento, mas com uma contagem (39 livros) e uma ordem sequencial diferentes. Por exemplo, na BH, 1 e 2 Samuel constituem uma só obra, do mesmo modo que 1 e 2 Reis e 1 e 2 Crônicas; também os doze Profetas Menores compõem um único livro, muitas vezes mencionado simplesmente como os “Doze”. Esses mesmos livros são contados um a um nas Bíblias cristãs. As Igrejas protestante, católica e ortodoxa têm o mesmo Novo Testamento, mas diferem nos livros que incluem nos seus Antigos Testamentos.

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Embora estes contenham os mesmos livros que compõem o Antigo Testamento protestante, os católicos e os ortodoxos agregam outros textos, que os protestantes normalmente chamam de “apócrifos” e os católicos classificam como “deuterocanônicos”. Com o tempo, judeus e cristãos chegaram à conclusão de que se faziam necessários mais escritos para esclarecer sua fé e missão. Para os judeus, esses escritos adicionais incluíram tradições orais dos dois primeiros séculos da Era Comum (EC)1 e sua interpretação. As tradições orais judaicas que começaram no tempo de Jesus e continuaram até aproximadamente as primeiras décadas do século III EC dedicaram-se à manutenção da Lei em sua aplicação à vida diária e à conduta religiosa. Esse material é, em geral, conhecido como Mixná.2 De modo semelhante, os cristãos perceberam rapidamente o valor de muitas composições cristãs que narravam a história de Jesus (os Evangelhos) e as implicações dessa história para a vida e a fé cristãs (algumas cartas de Paulo). Antes de se separarem dos judeus, entre 62 e 135 EC, aproximadamente, os cristãos já haviam reconhecido como Escritura livros que para muitos judeus constituíam Escritura estabelecida. Até o fim do séc. II, os cristãos começaram a identificar os seus escritos com o termo Escritura e a fazer distinção entre um “Antigo Testamento” e um “Novo Testamento”. Mais adiante analisaremos essas designações em maior profundidade. Os cristãos davam grande valor à leitura desses livros e também das Escrituras judaicas que haviam recebido como herança. Por que as comunidades judaica e cristã viram a necessidade de acrescentar outros livros às suas coleções sagradas? E, ainda, por que selecionaram os livros que por fim foram incluídos em suas Bíblias? E por que, entre os excluídos, estavam alguns livros de grande popularidade, como 1 Enoc, Sabedoria de Salomão, Salmos de Salomão, Testamentos dos Doze Patriarcas, Pastor de Hermas, Didaqué, Epístola de Barnabé, 1 Clemente e outros? Alguns dos excluídos não são muito diferentes, em termos teológicos, dos livros que foram incluídos; por exemplo, Sabedoria de Jesus Ben Sirac (Sirácida ou Eclesiástico), Didaqué, 1 Clemente e outros. Os primeiros cristãos incluíram alguns desses livros em seu Antigo Testamento e alguns judeus continuaram a lê-los durante séculos, especialmente Sabedoria de Jesus Ben Sirac e Sabedoria de Salomão. Da mesma forma, muitos outros escritos cristãos que circularam inicialmente em algumas igrejas como escritos inspirados (por exemplo, Didaqué, Cartas de Inácio, Epístola de Barnabé, Pastor de Hermas) foram por fim excluídos das Escrituras. Muitos acreditavam que esses livros eram de origem divina e comunicavam a vontade de Deus, sendo, por isso, incluídos em coleções sagradas em várias comunidades cristãs. Esses chamados escritos não canônicos moldaram a fé dos primeiros cristãos, consolidaram sua identidade e formaram as bases do seu modo de conduzir-se e da sua missão. Como a delimitação dos escritos sagrados à literatura bíblica atual foi um

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processo desenvolvido ao longo de vários séculos, e como os cristãos divergem a respeito da composição final da sua Bíblia, precisamos perguntar qual dos grupos está correto, se é que um deles tem esse atributo. Que critérios foram adotados no processo de seleção e por que alguns livros foram inicialmente aceitos e depois rejeitados? Esses livros deveriam ser reintroduzidos nas Bíblias atuais? Por outro lado, deveríamos continuar mantendo livros que parecem não ter mais relevância ou não condizer com as condições de comunidades religiosas contemporâneas, como, por exemplo, os que contêm exortações semelhantes a esta: “Servos, obedecei a vossos senhores” (Ef 6,5)? Graças ao desenvolvimento das pesquisas canônicas em anos recentes, compreendemos melhor alguns processos envolvidos na definição dos livros da Bíblia e também conseguimos responder a algumas das complexas perguntas em torno da sua formação. Quer dizer, então, que os cristãos, por terem uma melhor compreensão do contexto histórico da Bíblia, finalmente concordarão a respeito de todas as questões relativas à formação do cânone bíblico? Provavelmente não, porque ainda restam muitas ambiguidades, mas com uma análise cuidadosa dos vários problemas em torno das origens da Bíblia, temos hoje uma compreensão maior dos motivos que nos levam a concordar ou discordar de outros a respeito de muitas questões análogas. Fato ainda mais importante, hoje podemos entender por que algumas escolhas foram feitas. Com esse entendimento, temos condições de compreender melhor os que divergem de nós. Atualmente, cristãos e judeus se perguntam como foram tomadas as decisões a respeito da composição da Bíblia e se os livros que a constituem foram selecionados apropriadamente. Como os livros bíblicos definem a fé, a conduta e a missão das comunidades religiosas que os aprovam, a origem e o desenvolvimento da Bíblia serão sempre questões muito importantes. Se a fé de uma pessoa tem como base a fidelidade aos livros sagrados, hoje essas perguntas acarretam consequências sérias e se revestem de suma importância. É apropriado pôr essas informações à disposição de um público maior, não as restringindo à comunidade acadêmica, pois assim estimulam-se discussões muito enriquecedoras, tanto nas igrejas como nas sinagogas. Nos últimos anos, surpreendeme positivamente o grande interesse que igrejas e grupos de estudantes manifestam pelo tema da formação da Bíblia. Recebo muitos convites para abordar essas questões tanto em comunidades acadêmicas quanto em um número cada vez maior de igrejas e de conferências pastorais. Com frequência, ouço colegas de ministério dizer que nunca trataram desses assuntos em suas congregações, e muito menos os debateram, por considerá-los muito complexos ou demasiado propensos a criar divisões na Igreja. Acredito, porém, que a Igreja tem capacidade para discutir todas as questões que influenciam a nossa fé e o nosso modo de agir, mesmo que algumas lições que aprendamos com pesquisas bíblicas meticulosas sejam às vezes inquietantes e provocadoras. Oportunidades assim constituem passos importantes de crescimento

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educativo e espiritual. É muito fácil enclausurar-nos em nossos dogmas tradicionais e não incentivar os membros das nossas congregações a fazer perguntas legítimas sobre a origem e o desenvolvimento de sua Bíblia e de sua fé. É praticamente impossível reprimir mentes inquisitivas, porém, e quando oferecemos oportunidades para a formulação de perguntas, podemos atrair alguns membros mais brilhantes e promissores das nossas comunidades de fé. Infelizmente, quando essas pessoas não dispõem dessas oportunidades ou, inclusive, são desestimuladas a questionar, em geral procuram outros lugares onde possam expor suas dúvidas. Espero que este volume seja uma contribuição para leigos interessados e que também demonstre para os alheios à igreja ou à sinagoga que é legítimo fazer perguntas que nos ajudam a examinar a nossa fé e as questões importantes que a afetam. ALGUMAS QUESTÕES IMPORTANTES Anos atrás, quando eu exercia o ministério pastoral em Nebraska, certa noite, ao ministrar um curso sobre Bíblia, um jovem bastante perspicaz fez várias perguntas sobre as origens da Bíblia cristã e sobre os livros que não faziam parte dela. Ele fizera um curso sobre religião em uma universidade local e aprendera, corretamente, que muitos outros livros antigos haviam sido candidatos à inclusão na Bíblia, mas que, por motivos os mais variados, foram rejeitados tanto por judeus quanto por cristãos. Ele queria algum esclarecimento sobre esse assunto e também queria saber quando e por que as igrejas escolheram os livros que constituíam a Bíblia. Depois de dar algumas respostas iniciais e pouco convincentes a essas perguntas, baseado no que eu havia aprendido nos tempos de seminário, concluí que devia adiar uma resposta mais completa até pesquisar o assunto mais a fundo. Ao tentar responder às perguntas do jovem, eu me surpreendi pensando em várias exceções às respostas dadas! Na ocasião, eu simplesmente não estava preparado para responder às perguntas do jovem, por sinal muito válidas, apesar de conhecer muito bem as explicações tradicionais. Como eu já conhecia muitas exceções a teorias do passado sobre o modo como a Bíblia fora composta, protelei as respostas por uma semana ou pouco mais, com o objetivo de estudar a questão em maior profundidade do que o fizera na época do seminário. Comecei a examinar com mais atenção as questões levantadas e outras que surgiam, pesquisando as antigas tradições judaicas e cristãs; obviamente, encontrei respostas melhores e mais esclarecedoras do que as inicialmente oferecidas ao estudante universitário. As perguntas do jovem me levaram a uma investigação do contexto histórico da formação da Bíblia. Depois de passar quase 30 anos lendo e escrevendo sobre o assunto, descobri que questões relacionadas à origem e ao desenvolvimento da Bíblia estavam essencialmente ultrapassadas ou então eram respondidas de modo inadequado. É importante o leitor saber que tentativas de respondê-las não abalam a fé que muitos de nós abraçamos e que procuramos viver.

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A fé não depende dessas inquirições; inclusive, o conhecimento das origens da Bíblia pode aumentar a nossa compreensão da fé. Os teóricos da conspiração para quem a Igreja tenta ocultar ao público informações valiosas estão, naturalmente, extraviados ou confusos. Estudiosos da Bíblia refutam regularmente, e corretamente, essas ideias populares e pedem provas mais robustas para essas afirmações inconsistentes da mídia. Novas posições sobre a origem e o desenvolvimento da Bíblia também exigem provas convincentes. Embora seja verdade que é muito pequeno o avanço enquanto alguém não questiona posições previamente assumidas, é sempre preciso que se apresentem provas consistentes para alterar pontos de vista bem estabelecidos. Peritos bíblicos muitas vezes discordam a respeito da interpretação das provas disponíveis, mas essa divergência sempre promove uma atenção mais cuidadosa aos detalhes dos dados bíblicos e históricos disponíveis a todos os estudiosos. Quando novas posições são propostas, as provas são, em geral, convincentes e não simplesmente resultado de algumas apresentações populares ou de manchetes espalhafatosas nos noticiários. A fé bíblica nos acompanha há muito tempo, e é muito pouco provável que críticas populares simplistas possam mudar o compromisso de uma pessoa com essa fé. Perguntas envolvendo os livros bíblicos normalmente levam os especialistas a outras perguntas importantes, como, por exemplo, somos favoráveis à possível inclusão de outros livros antigos na Bíblia? Ou, alguns livros que parecem não ser mais tão relevantes para a Igreja devem ser retirados ou substituídos por outros? Dever-se-iam incluir livros mais recentes que parecem atender melhor às necessidades da Igreja atualmente? Por fim, o que dizer de alguns textos bíblicos que apresentam dificuldades para as igrejas modernas? De modo particular, refiro-me aqui aos textos relacionados à escravidão (Ef 6,5-9; Cl 3,22–4,1; 1Cor 7,21-24), à submissão da mulher ao seu marido (Ef 5,22-33; 1Tm 2,11-15); a assuntos relativos à purificação das excreções fisiológicas de homens e mulheres, e, ainda, aos preceitos bíblicos atinentes ao início e término do ciclo menstrual da mulher ou aos ritos de purificação após o nascimento de um filho ou filha (Lv 12,1-8; 15,1-33). Passagens como essas continuam fazendo sentido para comunidades de fé atuais? Podemos reinterpretá-las para que assumam novo significado? Precisamos expandir o cânone bíblico para dar valor aos escritos não canônicos? Às vezes, os biblistas recebem perguntas teóricas sobre a descoberta de livros antigos perdidos. Quando descobertos, esses livros devem ser incluídos na Bíblia? Para alguns especialistas, é proveitoso estudar esses livros, mas como não influenciaram a história da Igreja nem as decisões ou a teologia da Igreja, não devem ser incluídos. Outros sugerem que, se o livro tem por autor um apóstolo, ele é relevante para a fé cristã hoje e merece ser incluído. Paulo dizia ter escrito cartas que não chegaram até nós (ver 1Cor 5,9 e Cl 4,16); na hipótese de encontrarmos essas cartas, o que deveríamos fazer com elas? Aprofundando esse argumento um pouco mais, é indubitável que os primeiros

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cristãos reconheciam Jesus como Senhor da Igreja e como autoridade central do cristianismo nascente. O que dizer se alguém encontrasse alguma declaração autêntica de Jesus preservada em um manuscrito descoberto recentemente? Considerando que as palavras de Jesus revestiam-se do caráter de autoridade para os primeiros cristãos, o que faríamos se fosse descoberto um dito autêntico de Jesus em um manuscrito antigo? O que faríamos com essa descoberta? Como bem sabem os especialistas bíblicos, essa é uma possibilidade bastante plausível. Há décadas, eles conhecem inúmeras palavras ou frases de Jesus que não estão na Bíblia, mas que sobreviveram em antigos manuscritos bíblicos e em tradições escritas da Igreja. Essas palavras de Jesus, conhecidas como ditos não escritos, chegando a mais de 200, são, em geral, denominadas ágrafos, e muitos especialistas admitem que ao menos alguns deles sejam autênticos! Assim, se Jesus pronunciou essas palavras, como rejeitá-las? Elas devem ser incluídas na Bíblia? A Bíblia continua ou não aberta a possíveis inclusões de outros escritos? Existe um argumento bíblico ou teológico segundo o qual a Bíblia cristã está ou deveria estar fechada a supostos acréscimos? Historicamente, tanto para judeus como para cristãos, ela está fechada há mais de mil anos, mas existe algum argumento bíblico ou teológico que justifique um cânone bíblico fechado? Deus não se dirige atualmente aos seus fiéis seguidores? Por vezes, os teólogos levantam essa questão, mas as igrejas raramente o fazem. A igreja mórmon, por sua vez, responde a essa pergunta positivamente e por isso inclui o Livro de Mórmon, a Pérola de grande valor e a Doutrina e alianças em suas coleções sagradas. Os mórmons estão certos? Tratarei desse assunto mais adiante, mas, no momento, esclareço que as primeiras igrejas adotaram em geral o critério da ortodoxia para selecionar os livros que incluiriam em suas Escrituras. Tenho dúvidas se essa decisão dos mórmons subsistiria ao antigo teste da ortodoxia, mas esse é outro assunto e eu não o abordarei aqui. Não obstante, em termos bíblicos ou teológicos, é difícil defender uma coletânea fechada de Escrituras. Especialistas cristãos realizam hoje frequentes e longos debates sobre esses e outros temas, mas ainda não chegaram a um entendimento comum. Sem dúvida, qualquer tentativa de resolver questões dessa natureza deve começar com uma pesquisa histórica sobre a origem da Bíblia e sobre o que os primeiros cristãos queriam dizer quando usavam termos como “Escritura”, “inspiração”, “cânone”, “não canônico”, “apócrifo”, “pseudepígrafo” e outros do mesmo teor. Em sua grande maioria, esses são termos anacrônicos que foram introduzidos posteriormente nas discussões sobre antigos textos religiosos judaicos e cristãos. Examinando as limitadas evidências que restam, podemos descobrir por que alguns livros foram incluídos no cânone bíblico e por que outros foram rejeitados, mas ainda permanecem algumas questões sobre outros escritos. A grande maioria das antigas igrejas concluiu que alguns livros simplesmente não refletiam a compreensão da fé que lhes fora histórica e fielmente transmitida. Alguns livros eram candidatos

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evidentes à inclusão, por exemplo, os livros da Lei, ou Pentateuco, e os Evangelhos. Alguns profetas e algumas cartas paulinas também eram candidatos bastante óbvios à inclusão, mas outros livros exigiam um questionamento maior. Por exemplo, Ester nem mesmo menciona o nome de Deus; por que, então, incluí-lo? Ezequiel parece assumir uma posição contrária à Lei. O Cântico dos Cânticos é, na verdade, uma história de amor entre um homem e uma mulher e diz muito pouco, se é que diz, em termos de significado teológico. Somente um processo de espiritualização do seu texto o tornou relevante para assembleias judias e cristãs contemporâneas. Também o Eclesiastes reflete, de modo geral, uma atitude depressiva em relação à vida (“tudo é vaidade sob o sol”) e é bastante pessimista quanto ao interesse de Deus pelos assuntos humanos. O livro pouco diz sobre a missão de Deus para seu povo ou sobre o que poderíamos chamar de apelo profético a um viver segundo a vontade de Deus. Por que esses livros foram incluídos, ao passo que outros, com uma mensagem mais positiva sobre Deus e a vontade de Deus – por exemplo, Sabedoria de Salomão e Sabedoria de Jesus Ben Sirac – foram excluídos pelos judeus e por muitos cristãos? No âmbito dos escritos cristãos, não está claro por que a Didaqué e 1 Clemente foram excluídos, enquanto 2 Pedro e Judas foram incluídos. Também foi excluído o Pastor de Hermas, um livro apocalíptico muito popular entre os cristãos nos dois primeiros séculos; de fato, com exceção de Mateus e João, e mais do que qualquer outro livro do Novo Testamento, é dele o maior número de exemplares preservados da antiguidade. Por quê? No início, ele era mais popular entre os cristãos do que o Apocalipse de João. 1 Clemente provavelmente foi escrita antes de diversos livros do Novo Testamento e é tão ortodoxa em seus ensinamentos quanto outros livros que depois foram incluídos no Novo Testamento. Por que, estando incluída em inúmeros manuscritos bíblicos importantes dos primeiros cristãos, a carta foi excluída das Escrituras cristãs? Podemos levantar hipóteses bastante plausíveis sobre a inclusão ou exclusão de alguns textos religiosos antigos, mas para muitos casos simplesmente não temos resposta. Questões sobre a formação da Bíblia surgem esporadicamente desde os anos da Reforma no séc. XVI. Até as recentes descobertas de vários escritos judaicos e cristãos antigos, essas questões foram praticamente negligenciadas, mas, com a descoberta dos famosos Manuscritos do Mar Morto e de várias outras coleções de antigos textos religiosos judaicos e cristãos, elas passaram a receber tratamento privilegiado nos debates teológicos e a servir de inspiração para muitos livros e filmes de ficção, tornando-se assim conhecidas do público. É praticamente inquestionável que o sensacionalismo midiático em torno de O Código da Vinci ou de O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, além de outras obras ficcionais populares, contribuiu para o atual interesse das pessoas pelas origens da Bíblia. Parte dessa atenção recente volta-se para “o que a Igreja não quer que você saiba”, como se houvesse algum tipo de conspiração eclesiástica para ocultar a verdade sobre a origem de sua Bíblia. Como consequência, os especialistas valem-se de publicações

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ou das ondas hertzianas para esclarecer grande parte da confusão. Embora o interesse por questões de “cânone” esteja presente há séculos, hoje ele passou a preponderar nos meios acadêmicos e eclesiásticos. Muitas instituições acadêmicas e mesmo igrejas patrocinam conferências sobre temas relacionados com a origem e a forma final da Bíblia. Alguns seminários teológicos oferecem cursos completos sobre livros excluídos. Estudiosos conservadores, moderados e liberais estão descobrindo mananciais de informações valiosas que nos possibilitam compreender o contexto das origens judaicas e cristãs nessa literatura até agora ignorada. Curiosamente, sociedades acadêmicas também devotam especial atenção a essas fontes antigas. Há vários anos, a Sociedade de Literatura Bíblica, a maior comunidade internacional de especialistas bíblicos, conta com vários setores que se dedicam exclusivamente a livros antigos excluídos. ALGUMAS DISTINÇÕES IMPORTANTES: ESCRITURA E CÂNONE No início deste breve estudo sobre a origem e o desenvolvimento da Bíblia, precisamos elucidar algumas distinções importantes relacionadas com os conceitos de Escritura e cânone. Em geral, essas distinções provocam debates acirrados entre os especialistas bíblicos. Depois de sucinta análise dos termos, examinaremos as expressões “Antigo Testamento” e “Novo Testamento”. Origem e conceituação de Escritura A aceitação de livros bíblicos sagrados fundamenta-se na antiga crença de que um “livro celestial” contém conhecimento divino, sabedoria, decretos emanados de Deus e que é um livro da vida. Esse conceito remonta provavelmente à antiga Mesopotâmia e ao Egito, onde o livro celestial não só indicava os planos futuros de Deus, mas também os destinos dos seres humanos. Essa crença também se reflete no Salmo 139,16: “No teu livro os meus dias já estavam calculados, antes mesmo que chegasse o primeiro”. A ideia de livros celestiais continua nos tempos do Novo Testamento, como vemos no Apocalipse (5,1.3; 6,1-17; 8,1–10,11 e 20,12-15). Na última dessas passagens, abrem-se livros diante do trono de Deus no céu, e “foi também aberto outro livro, o livro da vida. Então os mortos foram julgados de acordo com sua conduta, conforme o que estava escrito nos livros [...] e quem não se achava inscrito no livro da vida foi também lançado no lago de fogo”. Da mesma forma, no Antigo Testamento, Deus diz que riscará do seu livro todo aquele que pecou contra ele (Ex 32,33). No Novo Testamento, Paulo diz a respeito de Clemente e dos seus outros colaboradores que “seus nomes estão no livro da vida” (Fl 4,3). Tanto no judaísmo como no cristianismo nascente, a concepção de um livro celestial gerou a ideia de que o repositório do conhecimento divino e dos decretos do alto está contido em um livro divino que é comunicado através de Escrituras escritas. No judaísmo, muito antes do surgimento da noção de um cânone bíblico, a Torá, ou

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Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia), constituía uma coletânea divina de textos sagrados proveniente diretamente de Deus. Moisés, por exemplo, transmitiu ao povo todas as palavras e leis de Deus (Ex 24,3), e recebeu de Deus a incumbência de registrá-las por escrito (Ex 34,4.27). Os judeus acreditavam que Deus era o autor dos Dez Mandamentos, ou Decálogo (Ex 34,1 e Dt 4,13; 10,4), e que a Lei de Deus estava transcrita em forma de Escritura. Tudo indica que essas ideias exerceram um papel decisivo no desenvolvimento de Escrituras escritas sob inspiração divina. Na Antiguidade, os escribas eram sumamente respeitados, ocupando uma posição sacerdotal quase divina na comunidade judaica. Tudo o que escreviam era considerado absolutamente importante, mesmo que quase tudo não passasse apenas de cópia do que outros haviam dito. Não obstante, o ato de escrever implicava certa autoridade. Documentos escritos eram muito importantes para os antigos judeus e se traziam subscrita a expressão “está escrito”, revestiam-se de autoridade divina. Essa autoridade sagrada vinculada a materiais escritos surgiu, em parte, porque as pessoas acreditavam que tudo o que assumia forma escrita estava “fixo”, estabelecido, determinado. Temos um exemplo disso na objeção dos judeus à decisão de Pilatos de colocar um letreiro com as palavras “Rei dos Judeus” sobre a cruz de Jesus. Pilatos respondeu, “O que escrevi, escrevi” (Jo 19,22), uma referência ao que está escrito como algo fixo, definitivo. No Novo Testamento, a citação da Escritura é muitas vezes introduzida com o que em geral chamamos de fórmulas escriturais, ou seja, “como dizem as Escrituras” ou “como está escrito”, e outras semelhantes. Mas esse não é o único modo de citar textos sagrados. Por exemplo, Jesus cita Daniel 7,13 como Escritura em Mc 14,62, mas sem nenhuma fórmula introdutória. Do mesmo modo, o autor de Hebreus escreve “com” Escritura, proporcionalmente citando maior número de passagens do Antigo Testamento que qualquer outro escritor do Novo Testamento, mas normalmente sem recorrer a fórmulas escriturais. Por exemplo, em Hb 1,5-13, o autor cita Sl 2,7; 2Sm 7,14; 1Cr 17,13; Dt 32,43; Sl 104,4; Sl 45,6-7; Sl 102,25-27; Sl 110,1 e Sl 8,6-8, sem adotar as designações escriturais costumeiras. Ele cita também Sabedoria 7,22; 7,25-26 e 8,1 em 1,2-3. No Evangelho de Marcos e em Hebreus, os autores baseiam regularmente seus argumentos em textos sagrados, isto é, em livros que eles acreditavam proceder de Deus e, portanto, sinônimos de autoridade divina, mas normalmente não empregam as designações escriturais geralmente utilizadas. A crença comum era a de que tudo o que estava incluído nos escritos sagrados provinha de Deus, e por isso não podiam ser alterados; a única coisa possível a se fazer era acreditar nesses textos e obedecer-lhes. Os escritos reconhecidos como textos sagrados inspirados foram por fim incluídos no conjunto de outros escritos sagrados e assumiram seu lugar em uma coleção fixa de Escrituras sagradas, ou seja, um cânone bíblico. A história desse reconhecimento, embora de especial interesse para os estudiosos contemporâneos da Bíblia, não era suficientemente importante para as primeiras igrejas, pois estas não deixaram registros de como a Bíblia foi

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formada – provavelmente imaginavam que todos a conhecessem! A palavra “cumprir”, ou suas variantes “cumpriu-se” ou “como se cumpriu”, também era usada em escritos antigos com referência à sacralidade da literatura antiga. Como os antigos judeus acreditavam que Deus inspirava o material escrito, este recebia prioridade especial. Por exemplo, quando os profetas diziam que usavam palavras inspiradas por Deus, para muitos judeus essas eram a própria palavra de Deus. Quando os profetas escreviam suas profecias sob inspiração divina, estas assumiam autoridade especial na comunidade religiosa. Se uma profecia se cumpria ao longo do tempo, ela era legitimada e proclamada como divinamente inspirada. Motivos de profecias realizadas encontram-se frequentemente na literatura bíblica, e tanto judeus como cristãos as aceitavam como provas de sua natureza sagrada. As propriedades básicas da “Escritura” para o antigo judaísmo e para o cristianismo incluíam ao menos quatro componentes essenciais; especificamente, a Escritura é um documento escrito considerado de origem divina que comunica fielmente a verdade e a vontade de Deus para uma comunidade de fé e que se constitui em fonte de regulamentações para a vida social e individual de pessoas religiosas. Quando a um texto religioso era atribuída inspiração divina, ele era tratado como Escritura autorizada, isto é, investida de autoridade, mesmo que ainda não fosse chamado de “Escritura”. Por vezes essa condição era temporária, mas havia casos em que esses textos eram incluídos numa coleção de Escrituras já formada. Por exemplo, os Evangelhos foram inicialmente recebidos como documentos autorizados da Igreja porque narravam a história de Jesus, o Senhor da Igreja. No final do séc. II, foram considerados Escritura e, posteriormente, incluídos em uma coleção fixa de Escrituras sagradas. Alguns cristãos aceitaram inicialmente vários textos religiosos como sagrados, mas mais tarde os excluíram de coleções de Escrituras (1 Enoc, Eldad e Medad, a Epístola de Barnabé, O Pastor de Hermas, 1 Clemente e as Cartas de Inácio). Apesar da concordância inicial a respeito de muitos livros incluídos na Bíblia, como os Livros da Lei (Pentateuco) e os Profetas, ou os Evangelhos e algumas cartas de Paulo, os debates foram prolongados com relação a Ester, Eclesiastes, Ezequiel, Cântico dos Cânticos e outros que acabaram não sendo incluídos na Bíblia hebraica ou no Antigo Testamento cristão. O que entendemos por “cânone”? Os conceitos de “Escritura” e de “cânone” bíblico sobrepõem-se consideravelmente, no sentido de que ambos implicam Escrituras sagradas autorizadas, mas não são exatamente a mesma coisa. Pelo fato de um “cânone bíblico” assemelhar-se a uma Escritura sagrada, na medida em que é um guia normativo para comunidades religiosas, os especialistas bíblicos frequentemente os confundem. Uma Escritura, especificamente, tem relação com a condição divina de um livro escrito, enquanto um cânone de Escrituras é uma coleção fixa de escritos

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sagrados que define a fé e a identidade de comunidades religiosas. Nesse sentido, enquanto toda Escritura tem certa autoridade divina, um cânone bíblico é uma coleção fixa de Escrituras de inspiração divina que constitui a autoridade definidora plena para um corpo religioso. O termo grego kanon deriva originariamente de um empréstimo semítico (kaneh), que denota uma “vara de medir” ou “cana de medição”. Os gregos usavam a palavra para se referir a um padrão ou norma pela qual todas as coisas eram julgadas ou avaliadas, seja a forma perfeita a seguir na arquitetura ou o critério pelo qual as coisas devem ser apreciadas. O termo era frequentemente empregado para denotar padrões de escultura, arquitetura, música, gramática, arte, poesia e mesmo filosofia, nesse caso servindo de critério para discernir o verdadeiro do falso. No Egito, por exemplo, o templo de Carnac exibe estilos uniformes de colunas, com capitéis em forma de folhas de papiro, tanto abertas como fechadas. A mesma configuração encontra-se na arte e na arquitetura egípcias em geral. Por exemplo, as representações estatuárias normais de faraós eram absolutamente uniformes, com torsos perfeitos, muitas vezes com um pé à frente e um braço também estendido para frente, indicando que o faraó ainda estava vivo quando a estátua foi feita. Os pés juntos e os braços cruzados sobre o peito indicavam que o faraó estava morto. A cor da pele de figuras masculinas e femininas também seguia cânones artísticos padronizados, ou seja, figuras masculinas têm pele mais escura e figuras femininas têm pele mais clara. Na antiga Alexandria, havia um cânone de livros que relacionava ou catalogava as obras de referência em filosofia e poesia, embora fossem chamados pinakes (singular, pinax = tábua, tabela, quadro). Na arquitetura grega, estilos uniformes eram adotados em colunas de templos (dórico, jônico, coríntio). Os antigos gregos tinham também cânones ou normas de procedimento religiosos. Por exemplo, eles veneravam um número fixo de deuses, ou seja, aqueles mencionados na Ilíada e na Odisseia de Homero. Podemos ver o caráter sagrado dessas duas obras para os gregos no fato de que cada uma tem 24 capítulos ou livros, e cada capítulo começa com uma letra do alfabeto grego. A prática habitual era usar números ou nomes para seções ou capítulos. Esse emprego especial do alfabeto mostra que Homero era muito admirado entre os gregos e que, para eles, personificava um cânone ou autoridade sagrada. As obras de Homero também exerceram um impacto importante sobre os judeus helenistas e podem ter influenciado de modo muito significativo o cânone da Bíblia. Provavelmente seguindo o modelo de Homero, os judeus usaram o alfabeto para dividir os versículos de alguns Salmos, por exemplo os de número 25, 34, 119, e para fixar o número de livros do seu cânone bíblico. A referência a Cristo ressuscitado como “Alfa e Ômega” (primeira e última letras do alfabeto grego) em Ap 1,8 (ver Ap 22,13) se serve dessa aplicação do alfabeto no mundo antigo para falar da divindade, da orientação divina e das normas para a vida. O alfabeto representa a santidade e a autoridade das obras, como no caso de Homero, talvez porque suas letras sejam os elementos básicos da

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linguagem humana e as Escrituras contenham as expressões básicas da palavra de Deus. O cânone comporta duas características essenciais: adaptabilidade e sobrevivência. Os judeus foram capazes de adaptar suas Escrituras autorizadas a circunstâncias novas e variáveis, e sobreviveram a desafios devastadores (cativeiro e perda de uma nação). Às vezes, a adaptabilidade continua por meio da espiritualização (ou da alegorização) criativa dos textos da Escritura. Na Antiguidade, porém, quando a literatura religiosa não atendia mais às necessidades emergentes de uma comunidade de fé, e quando interpretações engenhosas não conseguiam adaptar os textos às novas situações, ela deixava de ser Escritura nessas comunidades. Tanto no caso dos judeus como dos cristãos, as obras que deixaram de exercer sua função de Escritura sagrada simplesmente caíram em desuso. A literatura canônica se renova nas comunidades religiosas que acreditam em sua utilidade nos momentos de mudança que precisam enfrentar (adaptabilidade). A função precípua do cânone, enquanto Escritura, é ajudar uma comunidade de fé a definir a si mesma e oferecer-lhe diretrizes de vida. A adaptabilidade por si só, porém, não é suficiente para que um escrito seja reconhecido como cânone. Os livros que, por fim, constituíram o cânone bíblico para o antigo Israel também capacitavam a comunidade para a vida, isto é, precisavam infundir esperança mesmo em situações desesperadoras (por exemplo, no cativeiro da Babilônia em 587 AEC) e promover a vida na comunidade. A contínua reinterpretação das Escrituras, tanto no judaísmo quanto no cristianismo, ressalta sua adaptabilidade, sobrevivência e, fundamentalmente, sua canonicidade. Uma característica inicial importante do cânone não é, portanto, sua rigidez, mas sua flexibilidade. A estabilização final do texto bíblico, que representa a necessidade de uma tradição fixa sentida por uma comunidade de fé, acontece muito mais tarde no processo canônico, e nesse ponto metodologias interpretativas criativas (hermenêutica) desempenham um papel crucial para a sobrevivência de textos bíblicos. Duas realidades importantes estão associadas à formação das Escrituras cristãs; distingo-as com os termos “cânone 1” e “cânone 2”, especificamente, o estágio fluido (cânone 1) e o estágio fixo final (cânone 2). Cânone 1 designa uma autoridade flexível ou fluida em que um livro não era fixo nem inviolável. Cânone 2 designa a coleção bíblica fixa à qual nada se acrescenta nem se subtrai. Compõem o cânone 2 os livros bíblicos que se estabeleceram tão bem em uma comunidade de fé a ponto de não pairar a mínima dúvida sobre sua autoridade depois dessa etapa. Isso acontece quando a sacralidade do livro é reconhecida e ele se torna inviolável (ver Dt 4,2 e 12,32 [13,1], cf. Ap 22,18). Em alguns casos, houve um reconhecimento inicial temporário do caráter escritural de um livro, mas, com o tempo, em sua maioria, as igrejas o rejeitaram, e assim ele não foi incorporado a uma coleção escritural fixa. Coleções sagradas fixas (cânone 2) começam a se destacar a partir do séc. IV EC e,

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em geral, refletem uma longa história de uso nas igrejas primitivas. A aceitação do caráter sagrado dos Evangelhos e seu uso nas igrejas podem ter começado no séc. I EC (cânone 1), mas sua inclusão em uma coleção fixa de livros bíblicos (cânone 2) é um fato posterior decorrente de um processo de seleção. Alguns especialistas bíblicos sustentam que a composição das Escrituras do Novo Testamento foi em grande parte definida em consequência da investida da Igreja contra as heresias surgidas no séc. II. Se essa foi de fato a realidade, então a noção de cânone remonta ao séc. II. Não existem provas disso, porém, e as primeiras igrejas enfrentaram o problema das heresias reunindo um conjunto de ensinamentos cristãos que definiam quem elas eram. Em sua forma primitiva, esses ensinamentos eram chamados de regula fidei (regra de fé) e eram transmitidos nas igrejas desde o séc. I. Antes de chegar a um cânone bíblico, a Igreja precisou consolidar suas crenças essenciais a respeito de Jesus. Uma concordância mais ampla em torno dessas questões foi alcançada em grande parte (não totalmente) após o Concílio de Niceia (325 EC). Depois de Niceia, as igrejas tomaram decisões mais conscientes a respeito das Escrituras sagradas que realmente refletiam seus ensinamentos fundamentais e das que não preenchiam essa condição. Essas informações são essenciais para se poder compreender a origem de uma coleção fixa de Escrituras para a Igreja. Origem de “Antigo Testamento” e “Novo Testamento” No séc. II tardio, alguns líderes da Igreja começaram a identificar a literatura religiosa com as expressões Antigo Testamento e Novo Testamento. O termo “nova aliança” (aliança = testamento) encontra-se tanto no Antigo (Jr 31,31) como no Novo Testamento (Lc 22,10; 1Cor 11,25; Hb 8,8.13; 9,15; 12,24), mas não com referência a uma coleção de livros sagrados. Por outro lado, “antiga aliança” encontra-se somente no Novo Testamento (Hb 9,1), referindo-se à aliança da Lei (Ex 19,5; 24,7-8). “Testamento” e “aliança” traduzem a mesma palavra grega (diatheke), mas só são usados com relação a uma coleção de Escrituras sagradas a partir do último quartel do séc. II EC. Para alguns autores, o emprego da palavra aliança para identificar uma coleção de escritos sagrados teve suas raízes em uma obra pseudepigráfica conhecida como Testamentos dos Doze Patriarcas,3 uma sugestão que ainda não é possível demonstrar, mas é esclarecedor o fato de que alguns cristãos primitivos identificavam seus livros sagrados como “testamentos”, embora só o façam de forma regular a partir da segunda metade séc. IV. Os termos Antigo e Novo Testamento começaram a ser usados fortuitamente na segunda metade do séc. IV, como vemos no cânone 39 do Sínodo de Laodiceia (c. 360 EC), onde lemos: “[Fica decretado] que não se devem ler na Igreja salmos isolados nem livros não canônicos, mas somente os livros canônicos do Novo e do Antigo Testamento”. Até onde podemos julgar atualmente, os termos aparecem pela primeira vez nas obras de Irineu (c. 180 EC), que escreve:

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Portanto, agora como então [isto é, em ambos os Testamentos], o justo julgamento de Deus é o mesmo que então era feito de forma típica, temporária e moderada, e, agora, de forma verdadeira, para sempre e com rigor [...] no Novo Testamento, aumentou a fé dos homens em Deus, recebendo em acréscimo [ao que já estava revelado] o Filho de Deus, para que também o homem se torne partícipe de Deus (Contra as Heresias IV,28,1-2. Grifo nosso).

Do mesmo modo, Eusébio (c. 320 EC) cita Melitão, bispo de Sardes (c. 170-180 EC), dizendo: “Tendo ido, portanto, ao Oriente, depois de chegar ao lugar onde a Escritura foi anunciada e cumprida [Palestina], tive exato conhecimento acerca dos livros do Antigo Testamento. Levantei uma lista, que te envio” (História Eclesiástica IV,26,13). Tertuliano (c. 200 EC) também escreve: “Se não consigo justificar este artigo (da nossa fé) por meio de passagens do Antigo Testamento que podem causar polêmicas, extrairei do Novo Testamento uma confirmação da nossa visão, de modo a não atribuíres diretamente ao Pai toda possível [relação e condição] que atribuo ao Filho” (Contra Praxeias 15). O desconhecimento desses termos no início do séc. III transparece no uso de Orígenes da expressão “chamado, que se chama” para se referir às duas coleções: Parece-me necessário, portanto, que alguém capaz de representar de modo autêntico a doutrina da Igreja e de refutar esses adeptos do conhecimento [os gnósticos], assim falsamente chamados, deve contestar ficções históricas e opor-lhes a verdadeira e grandiosa mensagem evangélica em que a concordância de doutrinas, encontrada tanto no chamado Antigo Testamento quanto no chamado Novo Testamento, aparece tão clara e plenamente (Comentário ao Evangelho Segundo João 5,4. Grifo nosso).4

Igualmente, Eusébio (c. 320-330 EC), descrevendo o cânone da Escritura de Josefo, escreve: “No primeiro livro, ele [Josefo] estabelece o número das Escrituras canônicas do chamado Antigo Testamento e informa quais são recebidas como autênticas pelos hebreus, segundo antiga tradição” (Hist. Ecles. III,9,5. Grifo nosso). Mais adiante, falando do Novo Testamento, ele diz, “A esta altura, parece-nos oportuno recapitular os escritos do Novo Testamento a que nos referimos” (III,25,1. Grifo nosso). Embora esses termos tenham surgido no séc. II, as igrejas só começaram a empregá-los de modo geral no séc. IV EC, mas mesmo então havia pouca clareza sobre quais livros faziam parte desses “Testamentos”. Como a comunidade cristã só usa o termo “Antigo Testamento” para suas Escrituras mais antigas no fim do séc. II EC, é prematuro identificar essa coleção de Escrituras judaicas com esse nome antes daquela época. OS PROCESSOS Os processos que conduziram à seleção dos livros incluídos na Bíblia, normalmente chamados de “canonização”, estão sendo foco de atenção atualmente e, em parte, porque essas questões tocam a essência das crenças cristãs contemporâneas sobre a inspiração e autoridade da Bíblia. Essas indagações são também relevantes para a identidade judaica, e inúmeros biblistas judeus estão demonstrando grande

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interesse por questões em torno do cânone. Os que estudam esse assunto pela primeira vez quase sempre se surpreendem ao descobrir que as antigas igrejas não deixaram nenhum registro da evolução e formação das suas Escrituras, e também não mencionam quanto tempo foi necessário para obter concordância mais ampla sobre essas questões. Essa omissão é desconcertante para o leitor moderno e reflete o desenvolvimento, em grande parte inconsciente, das Sagradas Escrituras das igrejas. Essa história não narrada nas antigas igrejas deixa os estudiosos modernos com fragmentos limitados de evidências para construir um panorama do que aconteceu. Essa realidade também nos leva a perguntar se podemos ter certeza de que as primeiras igrejas tomaram as decisões acertadas com relação à composição do seu cânone bíblico. Voltaremos a esse tema no final deste volume; para o momento, o que temos na Bíblia é suficiente para a fé, não obstante haver muitas questões que não encontramos na Bíblia e que surpreendem, mas que por enquanto devem permanecer em aberto. No período de constituição e organização da Igreja, indivíduos e igrejas tomaram decisões sobre os livros que deviam ou não ser reconhecidos como Escrituras sagradas. As circunstâncias emergentes acabaram levando alguns líderes da Igreja à conclusão de que chegara o tempo de interromper o acréscimo ou a subtração de livros de suas coleções sagradas. Não há nenhuma evidência a sugerir que as antigas igrejas chegaram todas às mesmas conclusões ao mesmo tempo, ou que usaram os mesmos critérios para selecionar os livros que incluíram em suas Escrituras. As provas demonstram que durante séculos elas nem sempre usaram os mesmos livros. As listas ou catálogos de livros sagrados que subsistiram, com data do séc. IV, revelam que, apesar da considerável concordância sobre a maioria dos livros do Antigo e do Novo Testamento, essa concordância não foi total. Analisaremos esse tema em maior profundidade mais adiante. Várias editoras demonstram hoje grande interesse em fazer com que os avanços acadêmicos recentes nesse campo cheguem aos não especialistas e às pessoas leigas. Inúmeras editoras solicitam aos que se debruçam e escrevem sobre questões de formação do cânone que produzam livros sobre esse assunto para não especialistas. Agradeço aos editores da T&T Clark o convite para contribuir com este volume para sua série Guia para os Perplexos. Eu o escrevi com a esperança de oferecer aos não especialistas interessados informações proveitosas que lhes possibilitem participar de discussões enriquecedoras sobre esse importante tema. Lembro seguidamente aos alunos e aos que se dedicam ao estudo do cânone que estamos apenas nas etapas iniciais dessas inquirições, e que é de suma importância que se envolvam ativamente nessa investigação no presente e no futuro. Este volume é uma introdução a esse assunto e incentivo os que buscam informações mais detalhadas a examinar atentamente a literatura crítica relacionada em Outras Leituras, no final de cada capítulo. Espero que este volume seja um passo importante para que questões críticas sobre as Escrituras judaica e cristã estejam à disposição de um

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público cada vez maior. Os que desejam aprofundar esse assunto encontram no site da T&T Clark uma coletânea de textos básicos e milhares de dados importantes a que recorri ao longo de todo este estudo. Para localizar esses importantes textos fundamentais, visite . Para concluir, a fé e o futuro da Igreja não dependem dos resultados das pesquisas históricas sobre a origem e a evolução da Bíblia, não obstante o nosso entendimento do surgimento e do desenvolvimento do cristianismo primitivo beneficiar-se consideravelmente com esses estudos. Antes, a fé cristã depende do que Deus fez e continua fazendo na vida, no ministério e na morte e ressurreição de Jesus. Eu preparei este livro para aqueles que, como meu filho Karl, são leigos participativos em suas igrejas e leem e estudam regularmente a Bíblia, e também para aqueles que se interessam pelo assunto, mas ainda não têm acesso a estudos acadêmicos importantes. Karl ministra um curso de Bíblia em sua casa, é líder ativo em sua igreja e demonstra regularmente um ávido interesse por muitas questões intrigantes sobre a fé cristã e a Bíblia. Este pequeno volume é dedicado a ele e escrito para os muitos outros que, como ele, encaram com seriedade sua fé e almejam uma melhor compreensão desse importante tema. Lee Martin McDonald Junho de 2010 1 As abreviaturas EC para “Era Comum” e AEC para “Antes da Era Comum” são equivalentes a a.D. (anno Domini, ou também d.C., depois de Cristo) e a.C. (antes de Cristo), respectivamente. Comunidades e publicações acadêmicas adotam em geral essas designações porque muitos participantes de estudos bíblicos e leitores não seguem religiões cristãs. Essa terminologia favorece uma melhor interação entre cristãos, judeus e não cristãos, quando da abordagem da literatura bíblica e de questões bíblicas. 2 A Mixná (hebraico = “o que é repetido” ou “instrução oral”) é um código filosófico de leis que judeus praticantes por vezes chamam de “Torá Oral”, com o argumento de que Deus deu a Moisés não apenas leis escritas, mas também leis orais que “construíram um muro” em torno da Lei escrita. Até a metade do séc. III EC, materiais semelhantes, chamados “Tosefta” (hebraico = “suplemento”), passaram a coexistir com a Mixná. Os mestres rabínicos do séc. III ao VI usaram a Mixná como texto-base para a lei talmúdica posterior. Essas interpretações, chamadas gemara (aramaico = “término”, complementação), constituem o Talmude (hebraico = “instrução”, doutrina; pl. = Talmudim). Havia dois Talmudes principais, o da Babilônia (Bavli) e o da Terra de Israel (Yerushalmi). Ambos seguem a ordem dos tratados da Mixná. Os rabinos faziam distinção entre a Mixná, a Tosefta, os dois Talmudes e as suas Escrituras sagradas, mas consideravam essas interpretações das Escrituras judaicas semelhantes aos seus escritos sagrados. Esses escritos adicionais esmiúçam as implicações das Escrituras para a conduta religiosa. A Mixná reflete os ensinamentos dos doutores da Lei judeus de aproximadamente 10 EC até 200 EC, doutores que são conhecidos pelo termo “Tanna’im” (aramaico tanna’ = “aquele que estuda”, ou “ensina”, ou “repete”). Nas primeiras décadas do séc. III EC, o rabino Judá, o Príncipe, reuniu e codificou os 63 tratados que compõem a Mixná. 3 Esse documento, provavelmente escrito entre 109-106 AEC, durante o reinado de João Hircano, rei asmoneu do povo judeu na terra da Palestina, esclarece as crenças sobre as expectativas messiânicas entre os judeus no fim do séc. II AEC. Os cristãos fizeram a interpolação do texto, que acabou entrando em desuso por

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dar sinais de falsificação. 4 Clemente de Alexandria (Miscelânea XV,5,85) e Orígenes (Dos Primeiros Princípios 4,11; 10,28) referem-se às Sagradas Escrituras como “Antigo Testamento” e “Novo Testamento”.

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SÍNTESE HISTÓRICA

O nosso estudo da formação da Bíblia começa com uma visão geral de algumas questões de suma importância, essenciais para que possamos compreender a origem e o desenvolvimento das Sagradas Escrituras. Abordaremos esses temas mais detalhadamente nos próximos capítulos, ilustrando-os com inúmeras citações referenciais de textos antigos que conferem a necessária clareza à canonização da Bíblia. UMA HISTÓRIA IMBUÍDA DE SIGNIFICADO E DIREÇÃO Uma das autoridades sagradas mais antigas dos judeus foi a história de um povo que migrou do Egito para Canaã sob a direção e proteção de Deus, em geral conhecida pelo título de “Êxodo”. Mais tarde, outros elementos foram agregados antes e depois dessa história; por exemplo, a narrativa do Gênesis, a tradição profética e a história da decadência da nação. A forma mais primitiva desse relato provavelmente não incluía os Dez Mandamentos, nem outras listagens de prescrições divinas (em torno de 613). Ela consistia na exposição das realizações de Deus conduzindo um povo para uma nova terra e preservando-o através de atos de grande poder. A resposta do povo a esses atos de preservação ou salvação foi o reconhecimento desse Deus único e verdadeiro e a submissão e obediência a ele. São muitas as referências a essa história nas Escrituras do Antigo Testamento, especialmente nos Profetas (por exemplo, ver Amós 2,9-11; 3,1-2; 4,10-11; 5,25; 9,7 e 9,11). Outras sínteses antigas também se encontram em Dt 26,5-9 e Js 24. No Novo Testamento, várias passagens importantes preservam o mesmo relato (ver At 7,2-53, Hb 3,5-19 e até certo ponto também 1Cor 10,1-11). A história original expandiu-se ao longo do tempo, sem dúvida. Assim, depois do exílio dos judeus na Babilônia (586 AEC), ela foi reexaminada sob a perspectiva dos profetas clássicos cuja mensagem transmitia vida e esperança. Para Ezequiel, por exemplo, em razão da fidelidade do Senhor, o povo podia alimentar a expectativa de um ressurgimento da nação após a ruína (Ez 36–37). No tempo do exílio, Ezequiel começou a reiterar a visão de Jeremias que, antes dele, havia falado sobre a reconstrução da nação (Jr 18,1-11). Depois de perder tudo, sua identidade nacional, sua monarquia e o reino, e, especialmente, seu Templo e culto na terrível destruição de 587-586 AEC, como Israel podia manter sua identidade e encontrar esperança? Diferentemente de muitos outros povos antes e depois dele, cuja identidade religiosa desapareceu ou mudou

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radicalmente quando se mesclaram com outras nações, isso não aconteceu com o povo judeu. Por quê? A nação judia renasceu porque os judeus se agarraram a uma história que foi levada de Israel para a Babilônia e de volta a Israel, e que foi adaptada às novas circunstâncias da nação em cativeiro. Durante o exílio, um grupo remanescente lembrou o testemunho dos profetas que haviam predito exatamente o que aconteceria à nação em consequência de sua desobediência a Deus. Esses remanescentes entenderam que os profetas haviam dito a verdade com relação ao destino de Israel e compreenderam que a mensagem dos profetas antes do exílio incluía uma história que também lhes dava esperança. Essa narrativa lhes permitiu sobreviver às terríveis condenações que lhes foram impostas e, ao contrário de outras nações que viam na derrota o fracasso também dos seus deuses, os judeus aceitaram a mensagem dos profetas e assumiram a responsabilidade por seu fracasso enquanto nação. Não foi Deus que fracassou, foram eles! Eles aceitaram o cativeiro e a destruição como sentença de Javé por suas transgressões, e essa história era repetida regularmente de geração em geração. Os profetas anteriores haviam proclamado essa história para advertir o povo sobre as consequências do seu comportamento, e foram chamados de “insanos, antipatriotas, blasfemos, sediciosos e traidores” (ver Jr 23,30; 27,9). Agora, porém, eles eram lembrados porque as suas predições se realizaram. A mensagem divina estava na Torá, que então foi expandida para incluir os Profetas Anteriores, depois os Profetas Posteriores e, por fim, os Escritos. Mas a história central que deu vida (Jo 5,39) e identidade a Israel estava nos livros da Lei. Quando remanescentes dos judeus retornaram da Babilônia, o que lhes deu identidade e propósito com diretrizes a seguir foi a Lei de Moisés. Esta tratava do resgate e da preservação do povo israelita por parte de Deus, chamando-o à existência como nação e preceituando leis que orientavam a vida cotidiana das pessoas e ofereciam esperança para o futuro. Essa história também se caracterizava pela adaptabilidade às novas circunstâncias que envolviam o povo judeu. Esse caráter de fluidez continuou até o tempo de Jesus e serviu de base a vários textos religiosos que reinterpretavam a história. A falta de uma tradição bíblica fixa ou estabilizada deu origem a outras seitas religiosas judaicas que floresceram no tempo de Jesus e depois dele (samaritanos, saduceus, fariseus, essênios, cristãos) após a destruição do Templo e do seu culto em 70 EC. Com o fracasso do movimento messiânico de Bar Kokeba e de sua revolta contra Roma (132-135 EC), os dois judaísmos mais importantes que sobreviveram a esses acontecimentos traumáticos foram o judaísmo rabínico e o cristianismo primitivo. A estabilização da Bíblia hebraica judaica e do Antigo Testamento cristão ficou em grande parte definida nos séculos seguintes. A formação do cânone do Novo Testamento se assemelha a esses desdobramentos. O que, acima de tudo, deu origem à comunidade cristã e lhe conferiu uma identidade e missão foi a história da atividade de Deus em Jesus de Nazaré. Embora os

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estudiosos discutam sobre o conteúdo dessa história inicial, não há dúvida de que Jesus, seu destino e seu significado para a fé estiveram no centro. A vida e as realizações de Jesus foram inicialmente narradas na pregação (At 2,17-36), na transmissão e ensino (1Cor 15,3-8) e, por fim, através da escrita (Mc 1,1; Lc 1,1-4). Com o tempo, a história da atividade de Deus em Jesus e suas implicações para a humanidade foi expandida e expressa por meio de várias formas literárias (epístolas, Evangelhos, narrativas históricas, apocalipses e sermões). Ela começou com a circulação de tradições orais sobre Jesus no séc. I. Em seguida foi estendida para incluir tradições escritas do séc. I e possivelmente do início do II e se estabilizou nos sécs. III e IV, quando o caráter sagrado dessa literatura incipiente foi amplamente aceito. Quase ao mesmo tempo, as Escrituras do Antigo Testamento chegavam às etapas finais de estabilização na comunidade cristã (ver capítulos 3 e 4). A capacidade de adaptação das Escrituras cristãs a novas circunstâncias deveu-se em parte à hermenêutica criativa – o processo de interpretação – das várias igrejas subsistentes. Essas interpretações nasceram da necessidade de adaptar uma tradição estabilizada a novas situações enfrentadas pelas comunidades cristãs. A capacidade de ver na literatura algo que não era apenas adaptável, mas também de grande relevância e utilidade, aconteceu através desse processo hermenêutico. Alguns textos literários judaicos e cristãos terminaram sendo retirados das coleções sagradas cristãs porque sua utilidade e adaptabilidade deixaram de ser reconhecidas. Exemplo disso é a antiga profecia de Eldad e Medad que, durante certo tempo, foi um recurso religioso autorizado para algumas comunidades cristãs primitivas nos dois primeiros séculos (ela é citada como Escritura no séc. II, no Pastor de Hermas, Visão II,3,4). Os livros 1 Enoc, Assunção de Moisés, Jubileus, Apocalipse de Baruc (c. 70 EC) e Testamentos dos Doze Patriarcas, além de outros, eram consultados diversamente nas igrejas cristãs primitivas e, às vezes, citados como Escritura. Por fim, foram suprimidos das coleções sagradas cristãs. O autor cristão da Epístola de Barnabé (c. 140-150 EC) cita 1 Enoc três vezes e, em duas dessas ocasiões, emprega designações da Escritura (ver 4,3, que começa assim: “Estava escrito como Enoc diz”, e 16,5, que cita Enoc 89,55.66 e 67, e inicia com as palavras “Pois a Escritura diz”). Parece que a carta de Judas desagradou alguns professores cristãos no séc. IV, não por ele ter usado Enoc (Judas 14), como outros autores cristãos haviam feito, mas por se referir especificamente a esse escrito pelo nome! O uso e citação de Enoc pelo nome eram comuns na Igreja no séc. II, mas já no séc. IV o livro era menos popular e fora marginalizado. O uso contínuo de Sirac em comunidades judaicas nos sécs. IV e V também reflete uma ambiguidade persistente a respeito dos parâmetros precisos da coleção de Escrituras judaicas naquela época. Os judeus rabínicos acabaram classificando Sirac como apócrifo e excluindo-o do seu cânone bíblico, apesar de alguns continuarem a usar esses escritos, especialmente Sirac (ou Jesus Ben Sirac), vários séculos depois que os rabinos já haviam definido em grande parte a composição da Bíblia hebraica.

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Não são claros os motivos por que o uso e a autoridade dos chamados livros pseudepigráficos diminuíram nas comunidades judaicas e também cristãs, mas a tendência a refinar a distinção entre escritos canônicos e não canônicos surgiu no séc. II, e estava praticamente realizada e completa até o séc. IV EC. Posteriormente, houve uma tendência para a estabilidade textual dos livros bíblicos e uma concentração maior em metodologias hermenêuticas que possibilitaram a judeus e cristãos adaptar a tradição bíblica às suas circunstâncias mutáveis. Os livros que os judeus reconheceram como Bíblia hebraica (Tanak),5 e os cristãos como Antigo Testamento variaram durante séculos. Por exemplo, os mestres rabínicos na Palestina e na Babilônia de aproximadamente 200 EC a 500 EC (conhecidos como Amoraim) continuaram a discutir o caráter sagrado de Sirac. Eles debateram se Sirac “sujava as mãos” (expressão judaica para designar o caráter sagrado de textos religiosos) até os sécs. IV e V. Como a leitura de um texto durante o ofício religioso e o seu ensino em uma comunidade de fé implicam sua sacralidade e autoridade para a comunidade, inversamente a proibição de ler um documento em público sugere que ele não era considerado sagrado. As exceções podem ser os escritos que alguns judeus acreditavam estar reservados para a elite espiritual, como no caso de 4 Esdras 14,4347. Os escritos bíblicos que os rabinos debatiam e que alguns inclusive excluíram da leitura pública incluem o Cântico dos Cânticos (ver Yadayim 3,5; b. Megillah 7ª); Eclesiastes (Yadayim 3,5; b. Shabbat 100a; ver também Jerônimo sobre o Eclesiastes 12,14); Rute (b. Megillah 7a); Ester (b. Sanhedrin 100a; b. Megillah 7a); Provérbios (b. Shabbat 30b) e Ezequiel (b. Shabbat 13b; Hagiga 13a; Menahot 45a). Os judeus remanescentes na diáspora (judeus que viviam fora da terra de Israel) que definiram sua identidade segundo a Lei de Moisés adaptaram a Lei às suas necessidades. Eles sobreviveram à assimilação por parte de outras culturas e sociedades. Com a adaptação da Lei à comunidade judaica (Ne 8,1-8), ela também lhes proporcionou vida nova. A interpretação e a aplicação das Escrituras continuam sem obstáculos tanto em comunidades judaicas como cristãs hoje e, conforme demonstra a produção de muitas novas interpretações da Escritura para novas circunstâncias, nada indica que essa atividade deixe de ser exercida num futuro próximo. Os livros que compreendiam as Escrituras sagradas dos judeus variaram desde o período da dominação helenística da terra de Israel até os tempos do Novo Testamento e depois. A história judaica e suas tradições específicas eram reinterpretadas de modo significativo para compensar a ausência do Templo e do seu culto. Notavelmente, a fixação dos livros que faziam parte das Escrituras sagradas de judeus e cristãos aconteceu especialmente nos sécs. III e IV. Abordaremos essa questão mais adiante. Para a Igreja, embora houvesse ampla concordância sobre a autoridade de muitos livros do Novo Testamento no fim do séc. III, uma coleção mais fixa de livros

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sagrados surgiu no séc. IV, influenciada pelas posições claras da Igreja com relação a questões teológicas e por avanços importantes em direção à harmonização no império. O esforço para fixar o texto dos livros bíblicos veio muito mais tarde. Na verdade, o processo ainda está inconcluso e continua até o presente. Porquanto haja grande concordância sobre a maior parte do conteúdo textual bíblico hoje, os especialistas ainda não recuperaram o texto original das Escrituras. Os primeiros avanços perceptíveis no sentido de estabilizar ou fixar os livros que compõem o Novo Testamento ocorreram durante a perseguição à Igreja movida por Diocleciano (303313 EC), quando os cristãos precisaram decidir que livros entregariam às autoridades romanas para ser queimados. O segundo movimento para a uniformidade foi igualmente imperioso e nasceu da pressão de Constantino pela unidade e conformidade religiosa nas comunidades cristãs, com a ameaça de banimento para os que não concordassem. (Essa história está resumida no Capítulo 7.) Na época, houve grande (não total) concordância sobre a composição do Novo Testamento. A seguir examinaremos a origem dos escritos sagrados. ESCRITOS SAGRADOS ENTRE JUDEUS E CRISTÃOS Tanto para o judaísmo como para o cristianismo, a autoridade última da fé religiosa sempre foi Deus. Nas etapas iniciais dos tempos do Antigo Testamento, surgiu entre os judeus a crença de que a revelação e a vontade de Deus se manifestavam nos atos poderosos de Deus, como o Êxodo dos judeus do Egito. Mais tarde, os judeus passaram também a acreditar que a vontade de Deus se revelava em documentos escritos inspirados por ele. Por exemplo, o registro de algum ato era muitas vezes visto como uma marca importante de sua revelação divina (Ex 24,12; 31,8; 32,15.32; 34,1; Dt 4,13; 8,10 etc.). Moisés escreveu os mandamentos do Senhor (Ex 24,4; 34,27), como também o fizeram Josué (Js 24,26) e Samuel (1Sm 10,25). No livro do Deuteronômio, que em sua forma atual provavelmente foi escrito pelo fim dos tempos do Antigo Testamento, o rei deve fazer, para seu uso, uma cópia da Lei de Deus; ele deve lê-la todos os dias da sua vida para se lembrar dos estatutos de Deus e ser humilde em suas relações com o povo (Dt 17,18-20). Os israelitas devem inclusive escrever essas palavras de Deus nos umbrais e portas de suas casas (Dt 6,9; 11,20). Os escritores do Novo Testamento não dizem se Jesus escreveu um livro ou uma carta, nem se mandou a seus discípulos que fizessem algum registro. Do mesmo modo, com duas exceções, esses autores não atribuem o que escrevem a uma origem direta de Deus. O Apocalipse é a exceção mais notória, em que o autor afirma escrever uma profecia inspirada pelo Senhor ressuscitado (Ap 1,3.11; 22,18-19). A segunda exceção se dá quando Paulo diz aos seus leitores coríntios que, acredita ele, o Espírito inspirou suas orientações com relação às viúvas, às pessoas virgens e aos que são casados com descrentes (1Cor 7,25-40). Os escritores do Antigo Testamento normalmente não têm à disposição um

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documento sagrado escrito como fator ou poder determinante conhecido e reconhecido na vida religiosa de Israel. Quando os profetas dizem “assim diz o Senhor”, em geral, não se referem a um texto de Escrituras. De fato, muito pouca coisa nos escritos do Antigo Testamento sugere que os líderes de Israel recorressem a uma coleção de Escrituras sagradas quando precisavam de orientação espiritual. Supondo-se que as Escrituras haviam sido aceitas por uma ampla maioria e que eram acessíveis a todo Israel, chama atenção o pequeno número de referências a livros sagrados nas histórias de Davi, Salomão e Ezequias e em outras passagens do Antigo Testamento. Antes, parece que os judeus dos tempos do Antigo Testamento geralmente se relacionavam com Deus mais por intermédio de pessoas (sacerdotes e profetas) e instituições (o tabernáculo e o Templo e seu culto com sacrifícios) do que mediante escritos sagrados. Israel, porém, dispunha de tradições religiosas que o povo considerava autorizadas. Na verdade, não existe nenhuma comunidade religiosa sem tradições religiosas (normas ou diretrizes), sejam elas expressas em transmissões orais, credos, liturgias ou em textos sagrados escritos. Por sua própria natureza, essas tradições passam por adaptações a novas circunstâncias da vida ou deixam de operar de forma autorizada. Em termos gerais, a religião de Israel não era dirigida ou influenciada, nem tampouco erigida sobre a Lei de Moisés muito antes das reformas de Josias (621 AEC, ver 2Rs 22–23; cf. 2Cr 34–35), mas seguramente não até as reformas de Esdras, entre 460 e 400 AEC, aproximadamente (Ne 8,1-8; 9,1-3).6 O movimento deuteronômico, ocorrido em Israel nos sécs. VIII e VII AEC, teve sem dúvida um papel importante no processo de conscientização voltado a uma Escritura sagrada. Ver, por exemplo, a exortação a obedecer aos mandamentos de Deus (Javé) e a não acrescentar-lhes nem tirar-lhes nada (Dt 4,2). Interessa-nos não apenas o tempo em que a influência dos escritos sagrados repercutiu sobre a vida dos judeus, mas também o tempo em que as tradições religiosas escritas em Israel receberam uma função religiosa normativa. É provável que isso tenha acontecido até o tempo de Esdras (460-400?), quando esses textos sagrados (provavelmente as leis de Moisés e talvez também todo o Pentateuco) foram traduzidos e explicados para a comunidade judaica (Ne 8,8-11). Naquele tempo, a noção de Escritura estava claramente presente no judaísmo, apesar de ainda não haver um nome específico nem caracterizações mais definidas para ela. Não estamos sugerindo aqui que não tenham existido tradições sagradas escritas entre os judeus antes de Esdras e Neemias, ou mesmo de Josias. Pelo contrário, o Antigo Testamento menciona inúmeros livros “perdidos” que sem dúvida influenciaram alguns escritores bíblicos. Embora esses livros não recebam o nome de “Escritura” e não tenham sobrevivido a antigos processos de seleção e preservação, às vezes são citados com relação à sua condição de livros autorizados na nação. Entre eles incluem-se:

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A. Na Lei ou Torá: Livro das Guerras do Senhor (Nm 21,14) B. Em Josué, Juízes, 1-2 Samuel, 1-2 Reis: 1. Livro do Justo (Js 10,12-13; 2Sm 1,18-27) 2. Livro dos Anais dos Reis de Judá (1Rs 14,29; 15,7.23; 22,45; 2Rs 8,23; 12,18; 14,18; 15,6.36; 16,19; 20,20; 21,17.25; 23,28; 24,5) 3. Livro dos Anais dos Reis de Israel (1Rs 14,19; 5,31; 16,5.14.20.27; 22,39; 2Rs 1,18; 10,34; 13,8.12; 14,15.28; 15,11.15.21.26.31) 4. Livro dos Atos de Salomão (1Rs 11,41) C. Em Crônicas, Esdras e Neemias: 1. Livro dos Reis de Israel (1Cr 9,21; 2Cr 20,34) 2. Livro dos Reis de Judá e de Israel (2Cr 16,11) 3. Livro dos Reis de Israel e de Judá (2Cr 27,7) 4. Anais dos Reis de Israel (2Cr 33,18) 5. Livro de Samuel, o vidente (1Cr 29,29) 6. Livro de Gad, o vidente (1Cr 29,29) 7. Livro de Natã, o vidente (1Cr 29,29) 8. História do Profeta Natã (2Cr 9,29) 9. Profecia de Aías de Silo (2Cr 9,29) 10. Visão de Ido, o vidente (2Cr 9,29) 11. Livro do Profeta Semeías e do vidente Ado (2Cr 12,15) 12. Atos de Jeú, filho de Hanani (“que estão inseridos no Livro dos Reis de Israel”, 2Cr 20,34) 13. Palavras dos videntes (ou Palavras/História de Hozai) (2Cr 33,19) 14. Midrash do Profeta Ado (2Cr 13,22) 15. Midrash do Livro dos Reis (2Cr 24,27) 16. Um livro escrito pelo profeta Isaías, filho de Amós, contendo a história de Ozias (2Cr 26,22) 17. Uma visão do profeta Isaías, filho de Amós, no Livro dos Reis de Judá e de Israel (2Cr 32,32; cf. Is 1,1) 18. Anais do Rei Davi (1Cr 27,24) 19. Memórias de teus pais (Esd 4,15) 20. Livro das Crônicas (Ne 12,23) D. Livro adicional: “Lamentações” em 2Cr 35,25 não é uma referência a Lamentações, mas a um livro evidentemente produzido por Josias ou para Josias que está perdido. Os títulos de alguns desses livros, como “vidente”, “profeta” e “visão/visões” sugerem um papel sagrado que eles exerciam em um estágio inicial da história judaica.

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COLEÇÕES DE ESCRITURAS JUDAICAS Nos últimos anos, estudiosos da Bíblia vêm concordando sobre vários aspectos relacionados às origens da Bíblia, e provavelmente outros serão objeto de maior unanimidade em publicações futuras. Entre eles está a aceitação de que o Pentateuco (Lei ou Torá = os cinco primeiros livros do Antigo Testamento) era em grande parte reconhecido como literatura sagrada entre os judeus que retornaram da Babilônia sob a liderança de Esdras (c. 450-400 AEC). Essa aceitação confirma-se de modo evidente mais tarde, quando o Pentateuco foi traduzido para o grego (c. 281-280 AEC). Se outros livros das Escrituras hebraicas tivessem sido reconhecidos como Escritura sagrada no início do séc. III AEC, muito provavelmente também teriam sido incluídos na primeira tradução grega das Escrituras judaicas (em geral denominada LXX ou Setenta). Muitos outros livros do Antigo Testamento foram traduzidos para o grego até pelo menos 130 AEC, como vemos no prólogo do livro do Eclesiástico (esse texto é citado no Capítulo 3). Além desses livros, outros também foram por fim incluídos em coleções de Escrituras sagradas judaicas e traduzidos para o grego. Não está claro quando foi feita a tradução de todos os livros que hoje compõem a tradução grega do Antigo Testamento, mas é provável que tenha ocorrido até o séc. I AEC, o mais tardar. Entre os escritos excluídos que foram reconhecidos como textos sagrados por judeus, e posteriormente por cristãos, estão alguns que hoje chamamos “apócrifos” (hebraico = “escondido” ou “secreto”, denotando qualquer livro de autoridade duvidosa) e pseudepigráficos (livro escrito com subscrição falsa ou com pseudônimo). Alguns desses livros fazem parte do Antigo Testamento dos católicos romanos e dos cristãos ortodoxos, e às vezes são chamados de livros “deuterocanônicos” (ver listagens ao fim do Capítulo 4). Somente os cristãos protestantes usam o termo “apócrifos” para os escritos adicionais que constam do Antigo Testamento da Igreja católica romana e da Igreja ortodoxa. Alguns escritos pseudepigráficos foram amplamente aceitos como Escritura sagrada por alguns cristãos primitivos até meados do séc. III EC (especialmente 1 Enoc, Salmos de Salomão e Testamentos dos Doze Patriarcas). Entre os livros apócrifos ou deuterocanônicos mais populares estavam o Eclesiástico, a Sabedoria de Salomão e 1-2 Macabeus, além de outros, como Tobias, Judite e Baruc. Os cristãos protestantes aceitaram os mesmos livros constantes da Bíblia hebraica como seu Antigo Testamento, mas não na mesma ordem. Os livros específicos na coleção judaica são primeiro identificados em uma tradição rabínica denominada b. Baba Bathra 14b (provavelmente produzida na Babilônia entre 150-180 EC, possivelmente 200 EC). Esse texto baraita7 (b. Baba Bathra 14b) relaciona pela primeira vez os livros da Tanak (a Lei não consta do texto, mas pode-se subentendêla claramente pelo contexto) e os classifica em três categorias (Lei, Profetas e Escritos). A maioria desses livros sagrados judaicos, se não todos, era amplamente aceita entre judeus e cristãos no séc. I EC, mas naquela época a coleção não estava

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fechada ou fixa, e outros livros religiosos circulavam entre judeus e cristãos. A maioria dos judeus do séc. I EC aceitava o esquema geral de suas Escrituras sagradas (Lei e Profetas), mas outros textos religiosos judaicos também circulavam entre judeus e cristãos e eram frequentemente tratados como “Escritura”. Vemos isso no Novo Testamento, mas também em escritos cristãos posteriores. Os termos populares “Bíblia hebraica” e “Antigo Testamento” são normalmente empregados de modo anacrônico para deixar claro o tipo de literatura que estamos abordando, isto é, coleções de Escritura sagrada do tempo de Jesus e de antes dele, mas essas designações não existiam naquela época para identificar essas coleções de Escrituras. São termos posteriores e não há provas de que uma coleção fixa de Escrituras judaicas amplamente aceita existisse antes do séc. II EC e seguintes para os judeus rabínicos e para os cristãos. Josefo, historiador judeu, menciona a existência de uma coleção no fim do séc. I, e o b. Baba Bathra 14b oferece encaminhamentos iniciais nessa direção. Esses “livros adicionais” nas várias coleções de Escrituras sagradas foram bem recebidos por alguns judeus do séc. I e, mais tarde, também por muitos cristãos. Existem ao menos 70 desses livros apócrifos e pseudepigráficos judaicos. Alguns deles incluem adições cristãs e, no caso das Odes de Salomão, alguns podem ter sido totalmente escritos por cristãos. É possível que mais livros excluídos sejam descobertos no futuro. Os mais conhecidos são os seguintes: 1. Obras apocalípticas e correlatas: 1 Enoc (Apocalipse Etíope de) (judaico, c. 200 AEC-50 EC); 2 Enoc (Apocalipse Eslavo de) (judaico, c. 75-100 EC); 3 Enoc (Apocalipse Hebraico de) (judaico, em sua forma atual preservada de c. séc. V a VI EC); Oráculos Sibilinos (judaicos e cristãos, c. séc. II AEC – séc. VII EC); Apócrifo de Ezequiel (em grande parte perdido, forma original de c. séc. I tardio AEC); Apocalipse de Sofonias (em grande parte perdido, forma original de c. séc. I tardio AEC); 4 Esdras (forma judaica original depois de 70 EC; mais tarde, forma com adições cristãs finais); Apocalipse Grego de Esdras (a forma atual é cristã, de c. séc. IX EC, com fontes judaicas e cristãs); Visão de Esdras (documento cristão datado do séc. IV ao VII EC); Questões de Esdras (cristão, mas de data imprecisa); Revelação de Esdras (cristão, de pouco antes do séc. IX EC); Apocalipse de Sedrac (a forma atual é cristã, de c. séc. V com fontes anteriores); 2 Baruc (Apocalipse Sírio de) (judaico, de c. 100 EC); 3 Baruc (Apocalipse Grego de) (cristão recorrendo a fontes judaicas, c. séc. I-II EC);

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Apocalipse de Abraão (principalmente judaico, c. 70-150 EC); Apocalipse de Adão (gnóstico, derivado de fontes judaicas de c. séc. I EC); Apocalipse de Eliseu (judaico e cristão, c. 150-275 EC); Apocalipse de Daniel (forma atual de c. séc. IX EC, mas contém fontes judaicas de c. séc. IV EC). 2. Testamentos: Testamentos dos Doze Patriarcas (a forma atual é cristã, c. 150-200 EC, mas Levi, Judas e Naftali são judaicos e datam de antes de 70 EC e provavelmente do séc. II-I AEC); Testamento de Jó (judaico, c. séc. I tardio AEC); Testamentos dos Três Patriarcas (Testamentos judaicos de Abraão, Isaac e Jacó de c. 100 EC relacionados com o Testamento de Isaac e de Jacó, cristão); Testamento de Moisés (judaico, de c. início do séc. I EC); Testamento de Salomão (judaico, forma atual de c. séc. III EC, mas forma mais antiga de c. 100 EC); Testamento de Adão (cristão na forma atual de c. séc. III tardio EC, mas com fontes judaicas de c. 150-200 EC). 3. Expansões do Antigo Testamento e outras lendas: Carta de Aristeia (judaico, c. 200-150 AEC); Jubileus (judaico, c. 130-100 AEC); Martírio e Ascensão de Isaías (com três seções, a primeira, judaica, de c. 100 AEC; a segunda e a terceira são cristãs. A segunda de c. séc. II EC, a terceira – Testamento de Ezequias – de c. 90-100 EC); José e Asenat (judaico, c. 100 EC); Vida de Adão e Eva (judaico, c. início e meados séc. I EC); Pseudo-Fílon (judaico, c. 66-135 EC); Vidas dos Profetas (judaico, c. inícios séc. I EC com adições cristãs posteriores); Escada de Jacó (a forma mais antiga é judaica, datando do séc. I EC tardio. Um capítulo é cristão); 4 Baruc (original judaico, mas editado por um cristão, c. 100-110 EC); Janes e Jambres (cristão na forma atual, mas dependente de fontes judaicas mais antigas de c. séc. I AEC); História dos Recabitas (cristão na forma atual, datando de c. séc. VI EC, mas contém algumas fontes judaicas de antes de 100 EC); Eldad e Medad (baseado em Números 11,26-29, antes do séc. I EC, está hoje perdido, mas citado em Pastor de Hermas, c. 140 EC); História de José (judaico, mas difícil de datar). 4. Literatura sapiencial e filosófica: Aicar (judaico, datando do séc. VII tardio ou VI AEC e citado em Tobias Apócrifo);

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3 Macabeus (judaico, c. séc. I AEC); 4 Macabeus (judaico, c. antes do ano 70 EC); Pseudo-Focílides (máximas judaicas atribuídas ao poeta jônio do séc. VI, c. 50 AEC –100 EC); As Sentenças do Menandro Siríaco (judaico, c. séc. III EC). 5. Orações, salmos e odes: Mais Salmos de Davi (salmos judaicos de c. séc. III AEC até 100 EC); Oração de Manassés (às vezes em Apócrifos, judaico de c. inícios do séc. I EC); Salmos de Salomão (judaico, c. 50-5 AEC); Orações Helenísticas Sinagogais (judaico, c. séc. II-III EC); Oração de José (judaico, c. 70-135); Oração de Jacó (documento judaico, em grande parte perdido, de c. séc. IV EC); Odes de Salomão (cristão, mas influenciado pelo judaísmo e provavelmente também Qumrã, c. 100 EC). Além desses, há muitos outros livros cristãos conhecidos que as antigas igrejas excluíram de coleções de Escrituras e que são identificados como apócrifos cristãos ou do Novo Testamento e, às vezes, como livros “malfalados” (grego = antilegomena). Em sua maioria, pertencem ao séc. II ou III EC. Os mais conhecidos são os seguintes: Evangelhos: Protoevangelho de Tiago; Evangelho da Infância, de Tomé; Evangelho de Pedro; Evangelho de Nicodemos; Evangelho dos Nazarenos; Evangelho dos Ebionitas; Evangelho dos Hebreus; Evangelho dos Egípcios; Evangelho de Tomé; Evangelho de Filipe; Evangelho de Maria. Atos (os cinco primeiros são chamados “Atos Leucianos”, e circularam juntos): Atos de João; Atos de Pedro; Atos de Paulo; Atos de André; Atos de Tomé; Atos de André e Matias; Atos de Filipe;

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Atos de Tadeu; Atos de Pedro e Paulo; Atos de Pedro e André; Martírio de Mateus; Ato Eslavo de Pedro; Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos. Epístolas: Terceira Coríntios; Epístola aos Laodicenos; Cartas de Paulo e Sêneca; Cartas de Jesus e Abgar; Carta de Lêntulo; Epístola de Tito. Apocalipses (escritos visionários sobre a intervenção iminente de Deus na história humana e o fim de todo mal no mundo): Apocalipse de Pedro; Apocalipse Copta de Paulo; Primeiro Apocalipse de Tiago; Segundo Apocalipse de Tiago; Apócrifo de João; Sofia de Jesus Cristo; Carta de Pedro a Filipe; Apocalipse de Maria.8 Nenhum desses livros cristãos foi inicialmente identificado como “apócrifo” ou “pseudepigráfico”, e é muito provável que alguns cristãos primitivos os reconhecessem todos como Escritura cristã. A identificação dessa literatura como apócrifa ou pseudepigráfica muitas vezes prejudica sua investigação, mas esses termos identificam hoje de modo conveniente a literatura não bíblica da Antiguidade. O leitor deve lembrar, porém, que judeus e cristãos aceitaram muitos desses escritos não bíblicos como literatura sagrada. Essa realidade comprova-se no uso considerável desses escritos nessas comunidades. Estas acreditavam que esses textos religiosos, ao lado dos livros do Antigo Testamento, revelavam a vontade de Deus, a identidade do povo de Deus e, muitas vezes, sua missão neste mundo. Embora a coleção de livros cristãos não incluídos no Novo Testamento contenha atualmente em torno de 80 livros, esse número pode aumentar à medida que novas descobertas sejam feitas e postas à nossa disposição. Inúmeros livros antigos conhecidos apenas de nome vieram a lume recentemente. Entre os livros mais comuns nessa chamada coleção cristã não canônica estão os vários Evangelhos, atos e cartas produzidos com nomes de apóstolos identificados nos Evangelhos canônicos. Em alguns casos, eles informaram a fé de milhares de

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cristãos durante séculos, antes de serem suprimidos para dar lugar aos livros que hoje compõem a Bíblia cristã. Como observamos anteriormente, quem escreveu os livros que foram incluídos no Novo Testamento, em geral, não escreveu como se estivesse produzindo literatura sagrada. Não obstante, desde as primeiras etapas das igrejas, vários escritos do Novo Testamento eram muito valorizados, citados frequentemente e usados nas igrejas para instrução catequética e para expor sua missão. Os Evangelhos, por narrarem a história de Jesus e seus ensinamentos, e as cartas de Paulo, por conterem muitos ensinamentos práticos e elementos doutrinais importantes para as primeiras igrejas, eram muito usados em muitas igrejas do séc. I em diante. A partir do último terço do séc. II, os escritos cristãos começaram a ser chamados de “Escritura”, frequentemente incluindo as fórmulas habituais, “como está escrito” ou “como diz a Escritura”. COLEÇÕES DE ESCRITURAS CRISTÃS Em torno de 160 EC, os Evangelhos eram lidos e citados paralelamente aos livros do Antigo Testamento (às vezes, no seu todo, chamados “Profetas”) nas cerimônias de culto cristãs. O testemunho mais antigo dessa prática encontra-se na 1 Apologia, de Justino, o primeiro livro conhecido que descreve os componentes básicos do culto cristão primitivo. Justino não propõe especificamente uma nova coleção de Escrituras sagradas, mas inquestionavelmente reconhece a autoridade do que chama de “memórias dos apóstolos” – ou seja, para a fé cristã, os Evangelhos. Ele escreve: “Foi isso que os apóstolos, nas memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos transmitiram que assim lhes foi mandado...” (1 Apologia 66). Ele as cita frequentemente para solidificar e defender a doutrina cristã (Diálogo com Trifão 100,1-2 e 101,3), e diz que, em Roma, os Evangelhos eram lidos nos ofícios litúrgicos (ver 1 Apologia 66,67). Ele também se refere aos Evangelhos como “todas as lembranças referentes ao nosso Salvador Jesus Cristo” (1 Apologia 33 e 66). Essas “memórias” eram para ele um guia autorizado para o ensinamento de Jesus sobre matéria eclesial, inclusive a Eucaristia (1 Apologia 67). Elas eram lidas “enquanto o tempo o permite” junto com os “escritos dos profetas” e, às vezes, no lugar destes. Ele descreve o culto do seguinte modo: Depois dessa primeira iniciação, recordamos constantemente entre nós essas coisas, e aqueles de nós que possuem algo socorrem todos os necessitados, e sempre nos ajudamos mutuamente. Por tudo o que comemos, bendizemos sempre ao Criador de todas as coisas, por meio de seu Filho Jesus Cristo e do Espírito Santo. No dia que se chama do Sol [domingo], celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos nossas preces. Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas ações de graças e todo o povo exclama, dizendo “Amém”. Vem depois a distribuição e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos ausentes pelos diáconos. Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua livre vontade, dão o que bem lhes parece, e o que foi

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recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por necessidade ou outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros de passagem; numa palavra, ele se torna o provisor de todos os que se encontram em necessidade. Celebramos essa reunião geral no dia do Sol, porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno [sábado], e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas doutrinas que estamos expondo para vosso exame (1 Apologia 67. Grifo nosso).

Observe que logo depois que essas “memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas” eram lidos, “o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos”. Essa “imitação” dos “belos exemplos” implica o reconhecimento do seu valor na vida da Igreja, um prelúdio à aceitação das Escrituras. Além disso, a leitura dessas “memórias” em paralelo com os Profetas sugere enfaticamente que elas se revestiam de um caráter escritural. Essa prática antecipou o reconhecimento posterior dessa literatura como Escritura cristã. Como essa literatura atendia ao culto e às necessidades instrucionais das igrejas, pouco depois algumas igrejas começaram a chamá-la de “Escritura”. Em outro lugar, Justino recorre aos “nossos escritos” para fundamentar seus argumentos teológicos (1 Apologia 28,1), referindo-se ao Antigo Testamento e aos escritos cristãos, de modo especial às “memórias” ou Evangelhos. Quando menciona as “memórias” em primeiro lugar no texto acima, Justino pode estar sugerindo que, nos rituais religiosos, a preferência era pelos escritos cristãos mais do que pelos profetas do Antigo Testamento. Essa é certamente a prática dos escritores dos sécs. II e III que citavam regularmente textos cristãos com mais frequência do que os escritos do Antigo Testamento. Até aproximadamente 170 EC, o reconhecimento da proeminência dos apóstolos e o apreço pelo papel deles na missão das igrejas haviam crescido consideravelmente. A consequência foi que os Evangelhos começaram a ser identificados com nomes de apóstolos (Mateus e João) ou com nomes de pessoas associadas aos apóstolos (Marcos e Lucas). Ao mesmo tempo, Irineu (c. 170-180), referindo-se aos quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) e a algumas cartas de Paulo, usou o termo “Escritura”. Esses escritos já eram citados em forma de Escritura com certa frequência antes disso, mas de modo geral só foram chamados de “Escritura” pelo fim do séc. II. Apressamo-nos a dizer que isso não significa que todos os escritos do Novo Testamento haviam alcançado o mesmo nível de reconhecimento ou que sua aceitação ocorreu ao mesmo tempo em todas as igrejas. A aceitação de outros livros do Novo Testamento como Escritura cristã por parte das igrejas aconteceu de diferentes modos e no decorrer de períodos de tempo mais longos. Pelo fim do séc. III e início do IV, muitas igrejas já haviam chegado a um consenso expressivo, embora não total, em torno da sacralidade de alguns livros do Novo Testamento. Outros livros cristãos, por exemplo, continuaram circulando extensamente e sendo aceitos em várias igrejas (especialmente o Pastor de Hermas, a Epístola de Barnabé, a Didaqué, as Cartas, de Inácio de Antioquia, e 1 e 2 Clemente). Em outras palavras, inicialmente quase todas as igrejas aceitaram os Evangelhos e

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sete ou mais cartas de Paulo, mas muitas não deram sua anuência a vários outros livros. A aceitação final de todos os livros do Novo Testamento não ocorreu ao mesmo tempo ou nos mesmos lugares. Hoje, naturalmente, os três principais corpos eclesiásticos (católico, ortodoxo e protestante) aceitam todos os 27 livros que compõem o Novo Testamento. Os cristãos nunca chegaram a um acordo pleno, porém, com relação à composição ou ao conteúdo de suas Escrituras do Antigo Testamento. Pelo fim do séc. IV, vários concílios começaram a elaborar listas de livros sagrados, o que não quer dizer que houvesse consenso universal sobre a composição do Novo Testamento na época. Eram muito bem aceitos os quatro Evangelhos canônicos, o livro dos Atos e os escritos de Paulo, além de 1 Pedro e 1 João, mas a concordância plena com relação à composição do Novo Testamento ainda exigiria mais tempo. Por exemplo, mesmo depois das decisões conciliares do séc. IV tardio e do séc. V sobre a composição das Escrituras cristãs, inúmeros manuscritos escriturais antigos produzidos dessa data em diante continuaram incluindo livros que no final não foram incluídos no Novo Testamento (ver capítulo 7). Fatores diversos contribuíram para a seleção dos livros que hoje compõem o Novo Testamento, como veremos mais adiante, mas nos apressamos a dizer que as igrejas mais antigas divergiam quanto aos livros que gostariam de incluir em suas Bíblias, seja no cânone do Antigo Testamento ou do Novo Testamento. Como veremos nas próximas páginas, só em torno do ano 1000 EC encontraremos os primeiros manuscritos cristãos com todos os livros do Novo Testamento, e somente esses. Em sua maioria, os manuscritos contêm menos livros e alguns, já num período relativamente tardio, ainda incluem alguns escritos não canônicos. Curiosamente, os cristãos etíopes, à diferença dos católicos, dos ortodoxos e dos protestantes, têm uma coleção maior de livros tanto no seu Antigo como Novo Testamento. Mesmo em data já adiantada, metade do séc. XVI, Martinho Lutero rejeitou vários livros do Novo Testamento, especificamente Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, mas os incluiu no fim do seu Antigo Testamento. Para ele, esses livros não acrescentavam nada à doutrina cristã e inclusive contrariavam os ensinamentos cristãos essenciais. Ao rejeitar a importância e significado desses livros e dos deuterocanônicos, Lutero revela a liberdade existente em sua geração de questionar livros do cânone bíblico. QUATRO PRESSUPOSTOS ERRÔNEOS Ao se narrar a história do cânone, é importante identificar quatro pressupostos comuns que, em geral, conduzem a conclusões defeituosas sobre a formação do cânone bíblico. Primeiro, pressupõe-se normalmente que, se um antigo escritor que vivia em um determinado local aceitava um texto específico como Escritura sagrada, todos os escritores da mesma época e de outras regiões do império romano chegavam à mesma conclusão. Naturalmente, não existem provas que sustentem essa posição, e as igrejas primitivas com frequência divergiam a respeito de inúmeras questões, tanto

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com relação à organização, ao batismo e à Eucaristia (ou ceia do Senhor), quanto à identidade de Jesus (Cristologia), ao tempo em que ele retornaria e ao futuro da Igreja. A grande Igreja resolveu algumas dessas questões no séc. IV, apesar de alguns cristãos continuarem a discuti-las durante séculos subsequentes. Dada essa diversidade, seria realmente estranho se todos os cristãos pensassem do mesmo modo a respeito da composição do cânone bíblico. As igrejas precisaram de vários séculos para resolver problemas teológicos fundamentais e teria sido praticamente impossível definir a coletânea da literatura sagrada antes de solucionar pelo menos grande parte desses problemas. Dificilmente poderíamos esperar acordo pleno entre os líderes da Igreja dos sécs. IV e V, séculos em que eles se empenharam em organizar as Escrituras cristãs. Segundo, supõe-se frequentemente que os primeiros cristãos reagiram às heresias surgidas no séc. II produzindo uma coleção fixa de Escrituras sagradas, isto é, um cânone bíblico. Nada na história das igrejas dos sécs. II e III comprova essa suposição. Os escritos desse período nos informam que os cristãos enfrentaram os desafios teológicos (heresia) estabelecendo um cânone (regra) de fé (latim = regula fidei). Em outras palavras, contestaram os argumentos teológicos com ensinamentos teológicos que a maioria dos cristãos acreditava serem verdadeiros e que lhes chegaram através da sucessão apostólica, ou seja, pela transmissão desses ensinamentos, de uma geração a outra, por intermédio dos seus líderes eclesiásticos, os bispos. (Ver análise dessa questão no capítulo 5.) Os cristãos do séc. II se opuseram às heresias com um cânone de fé, não com um cânone bíblico. Terceiro, muitos entendem que, quando um escritor antigo citava ou se referia a um determinado texto, esse texto era para ele uma Escritura. Nada sustenta esse entendimento, porém, e cada citação ou referência deve ser analisada em seu próprio contexto para se determinar como foi usada. Em alguns casos, escritores antigos citaram fontes bíblicas e também não bíblicas como textos sagrados, mas não podemos generalizar. Precisamos determinar se o texto citado é usado de maneira autorizada para consolidar uma crença cristã ou definir normas de comportamento. Quarto, e de modo semelhante, alguns estudiosos sustentam que os livros citados pelos primeiros Padres da Igreja constituíam para eles Escritura sagrada, ou seja, consideravam-nos seu cânone bíblico. Sem levar em conta se um determinado escritor citava fontes não canônicas, o que em geral se esquece é que as citações de textos eram feitas em um contexto específico para tratar de problemas específicos. Nesses casos, os autores recorriam apenas às obras que confirmavam suas perspectivas com relação àquelas situações, fato que não se pode alegar para inferir que citavam toda literatura que consideravam sagrada e inspirada. Se os escritores antigos se deparassem com outras situações, provavelmente recorreriam a outras fontes para sustentar seus argumentos. Como os escritos antigos, em sua maioria, são de natureza ad hoc, isto é, escritos para tratar de situações ou circunstâncias específicas, é improvável que uma compilação das fontes usadas por esses escritores

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nos possibilite produzir seus cânones bíblicos; isso só seria possível se tivessem feito uma lista específica de livros que constituíam suas Escrituras. Esses pressupostos comuns normalmente distorcem os resultados de pesquisas quase sempre importantes sobre o cânone bíblico. No entanto, eles precisam ser testados em confronto com as evidências que encontramos na Bíblia e nas produções originais da antiguidade, ou seja, os livros bíblicos e não bíblicos, a história da Igreja primitiva e os manuscritos bíblicos que chegaram até nós. ALGUMAS OBSERVAÇÕES PRELIMINARES IMPORTANTES Ao iniciar a nossa história das origens da Bíblia, devemos estar cientes de que, apesar de ter herdado a ideia de Escrituras sagradas, a Igreja não herdou a ideia de uma coleção fixa de Escrituras sagradas. A fixação de um cânone bíblico, isto é, a escolha de livros para inclusão e exclusão, precisou de séculos para ser decidida, não obstante a Igreja ter surgido já dispondo de uma grande coleção de livros sagrados judaicos. As primitivas comunidades judaicas e cristãs geralmente utilizavam outros livros que por fim não foram incluídos em suas Escrituras. As primeiras igrejas se consideravam herdeiras das tradições contidas nas Escrituras judaicas e também acreditavam viver numa era do Espírito em que Deus lhes dirigia regularmente sua Palavra viva. Os primeiros cristãos acreditavam que a voz profética estava bem viva no seu meio através do poder do Espírito (Atos 2,17-21). No tempo da Reforma, nos anos de 1500 e depois, alguns estudiosos admitiam, na prática (não em teoria), que o Espírito Santo não se comunicava mais com a Igreja com palavras novas de Deus, mas somente por meio da coleção fechada de Escrituras do Antigo e do Novo Testamento. Essa posição predominou especialmente na teologia protestante desde a Reforma, mas sobre quais bases? Como é que alguns professores da Igreja chegaram a acreditar que o Espírito de Deus cessou de se manifestar com palavras novas inspiradas depois da morte do último apóstolo? A Igreja primitiva não transmitiu essa ideia, naturalmente, mas ela se tornou um pressuposto comum no período da Reforma. Quando surgiu, os cristãos desenvolveram diversos passos interpretativos que os capacitassem a aplicar os ensinamentos bíblicos às situações sempre novas que enfrentavam. Os cristãos acreditavam que tudo o que estava escrito em suas Escrituras sagradas originava-se em Deus e não podia ser mudado; bastava acreditar no que estava escrito e obedecer. Os escritos reconhecidos como textos sagrados inspirados foram agrupados com outros escritos sagrados e, por fim, incluídos em uma coleção fixa de Escrituras sagradas, isto é, um cânone bíblico. QUE TEXTO E TRADUÇÃO DA BÍBLIA É ESCRITURA? Na história da formação da Bíblia, tão importante quanto a seleção dos livros é

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também o texto desses livros que deve servir de Escritura sagrada para a Igreja. Uma concordância mais significativa em torno do texto bíblico só ocorreu após o desenvolvimento posterior do que hoje se chama textus receptus ou “texto recebido” das Escrituras, o qual, todavia, teve curta duração! Esse texto serviu de base para a versão “King James” no início do séc. XVII. Estudantes da Bíblia e muitos cristãos contemporâneos, porém, estão perfeitamente cientes das descobertas mais recentes de centenas de manuscritos bíblicos antigos com grande variação em seus textos. No decorrer dos últimos 120 anos ou mais, muitos desses manuscritos foram encontrados no Egito, em Israel, em museus, bibliotecas e outros lugares. O estudo desses documentos mostrou que os textos neles incluídos muitas vezes apresentam grande variação de um para outro. Essas variações se referem tanto aos livros que compõem esses manuscritos quanto a determinadas passagens desses livros. Não existem dois manuscritos bíblicos que contenham exatamente as mesmas palavras! Além disso, todos esses manuscritos constituíam “Escritura” para as comunidades de fé que os possuíam e liam. Os textos gregos do Novo Testamento utilizados para produzir o chamado “texto recebido” eram bastante tardios e esse texto foi em grande parte substituído. Tradutores modernos e críticos textuais têm hoje manuscritos muito mais antigos à disposição, os quais estão centenas de anos mais próximos dos escritos originais do Novo Testamento. Do mesmo modo, devido à descoberta moderna dos Manuscritos do Mar Morto, estudiosos da Bíblia e críticos textuais estão ainda mais próximos dos manuscritos originais do Antigo Testamento. Embora ninguém pense que os especialistas em crítica textual tenham produzido o texto bíblico “original”, difícil de apreender, certamente estamos muito mais próximos dele do que estivemos até algum tempo atrás. Os manuscritos bíblicos que sobreviveram à Antiguidade e chegaram até nós apresentam milhares de variantes. De fato, existem na Bíblia mais variantes do que palavras! Os especialistas estão trabalhando no sentido de resolver essa situação e produzir um texto do Antigo e do Novo Testamento que seja o mais preciso e o mais próximo possível do texto original dos livros bíblicos. Antes da invenção da imprensa no séc. XV, todas as Escrituras eram copiadas à mão, uma a uma, por escribas com graus variados de competência. Os copistas que produziram manuscritos bíblicos antes do séc. IV eram em geral pouco habilidosos, e nas cópias mais antigas incluíram muitas variantes, seja por acaso ou mesmo intencionalmente. Embora os especialistas tenham realizado ótimas análises e resolvido grande parte dessas variações, ainda restam incertezas e ambiguidades sobre o texto original de algumas passagens do Antigo e do Novo Testamento. Como observamos acima, alguns desses textos são bem diferentes de outros e por isso é apropriado perguntar: que textos os tradutores devem seguir hoje? Outro assunto associado a esse também representa um desafio para os estudiosos bíblicos atuais. Todas as traduções modernas da Bíblia baseiam-se em uma avaliação crítica das centenas e até milhares de cópias de textos bíblicos que sobreviveram à Antiguidade. Como os cristãos, na sua quase totalidade, não falam nem leem

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hebraico, aramaico ou grego – idiomas dos livros bíblicos –, que tradução da Bíblia devem os cristãos ler em suas igrejas e em seus estudos e rituais devocionais particulares? Como os tradutores sabem, muitas traduções antigas são de qualidade sofrível, realizadas por amadores. No início do séc. V, Santo Agostinho escreveu sobre a má qualidade das traduções latinas (o que se poderia aplicar a muitas outras), dizendo: “Isso porque, nos primeiros tempos da fé, qualquer um que tivesse em mãos um códice grego e presumisse possuir certo conhecimento de uma língua e outra, atrevia-se a traduzi-lo” (A Doutrina Cristã 11). Com isso, impõe-se naturalmente a pergunta: da perspectiva da Igreja, existe uma tradução autorizada das Escrituras? Há muitas traduções antigas das Escrituras judaica e cristã, e, embora a maioria delas inclua um conjunto básico de livros, muitas não contêm os mesmos livros; além disso, a qualidade da tradução é em geral deficiente. Não obstante, eram essas traduções que constituíam as Escrituras das primeiras igrejas que as possuíam. Em um grupo de estudos bíblicos que se reunia em uma igreja que visitei há pouco tempo, alguém relacionou a inspiração da Bíblia aos “manuscritos originais infalíveis”. Os participantes pediram a minha opinião sobre o assunto e eu respondi que, uma vez que não temos os autógrafos, ou manuscritos originais, e como nenhuma tradução atual da Bíblia se baseia neles, precisamos perguntar a respeito das condições das únicas Bíblias que temos e que circulam em nossas igrejas. Elas são inspiradas, mesmo não se baseando em manuscritos originais e mesmo que os manuscritos que lhes serviram de fonte contenham muitos erros? Além disso, sabemos que os livros da Bíblia foram originalmente escritos em hebraico, aramaico e grego, mas as bíblias que eu via na plateia eram todas em inglês, inclusive de diferentes traduções inglesas. Lá estavam a King James Version, a New International Version, a Revised Standard Version e a New American Standard Version, além de outras. Perguntei aos presentes se a versão King James que uma senhora idosa segurava entre as mãos era inspirada, considerando-se que essa Bíblia não se baseava absolutamente nos manuscritos bíblicos originais (sabemos quais eram conhecidos na época) e não estava escrita nos idiomas originais dos livros bíblicos. Sugeri aos meus ouvintes que considerassem como mais importante um debate sobre as únicas Bíblias que temos, nenhuma das quais se baseia em “manuscritos originais infalíveis”! Todas as nossas Bíblias se apoiam em manuscritos antigos que contêm muitas variantes textuais e inclusive erros. Mais, nossas traduções são revisadas regularmente a partir de um conjunto de dados cada vez maior oferecidos por manuscritos antigos. Quais traduções são inspiradas? Talvez todas elas, uma vez que muitas pessoas chegaram à fé e cresceram em sua fé devido ao fato de usá-las, mas nenhuma delas estava livre de erros. Embora ninguém contestasse os meus comentários, as questões que levantei pareceram produzir bastante inquietação entre os presentes. É absolutamente pertinente perguntar qual tradução é mais autorizada para a Igreja hoje e por quê. Minha resposta inicial é que devemos procurar uma tradução que reflita do modo

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mais preciso possível os manuscritos mais antigos e mais confiáveis que possuímos, mas que também comuniquem exatamente a mensagem pretendida pelos autores da Escritura. Naturalmente, isso também implica certa discussão sobre o que é uma tradução e que público ela quer alcançar. As traduções atuais, em sua maioria, têm como alvo leitores com nível de escolaridade correspondente à segunda série do Ensino Médio ou aproximado, mas algumas Bíblias traduzidas mais livremente (paráfrases) destinam-se a um público com grau de instrução correspondente ao sétimo e oitavo anos do Ensino Fundamental. Qual a tradução que deve se tornar texto bíblico autorizado para os franceses, para os alemães, para os chineses e para outros que falam uma língua diferente da nossa? Novamente, embora eu dê preferência a uma Bíblia traduzida com todo esmero e precisão, baseada nos melhores e mais antigos manuscritos, também escolho aquela que é mais fácil de ler e de ensinar nas igrejas, onde o nível de instrução médio é consideravelmente mais baixo do que na academia. Faço alterações onde julgo necessário para que haja clareza. Um hábito mais proveitoso para as pessoas que não têm condições de ler a Bíblia em seus idiomas originais (hebraico, aramaico e grego) é realizar uma leitura em duas traduções. Em geral, uma ajuda a esclarecer a outra. UM “CÂNONE DENTRO DO CÂNONE” Assim como aconteceu ao longo da história da Igreja, muitos cristãos contemporâneos ignoram grandes segmentos das Escrituras que aceitam como literatura inspirada por Deus. Isso é importante? Recentemente, quando eu fazia uma palestra em certa igreja, uma mulher comentou que tirava muito pouco proveito da leitura do Levítico e, por isso, praticamente o ignorava. Outros indicaram com acenos da cabeça que concordavam com ela. Ouvi comentários semelhantes sobre vários livros da Bíblia, inclusive Hebreus e o Apocalipse. Às vezes descrevemos essa prática como “um cânone dentro do cânone”. Com isso, queremos dizer que os cristãos muitas vezes ignoram grandes segmentos da Bíblia, dando preferência a outros. Faz muitos anos que venho falando a grupos eclesiais sobre essa questão da leitura seletiva das Escrituras e procurando ampliar a extensão da literatura bíblica proveitosa para os ofícios cultuais e para os estudos bíblicos. Essa prática seletiva é comum, apesar de raramente admitida ou debatida em muitas igrejas. Por exemplo, muitas igrejas atuais seguem um calendário litúrgico e adotam lecionários padronizados para leituras da Escritura, para a pregação e para a instrução catequética. Esses lecionários raramente incluem mais do que pequenas porções da maioria dos livros bíblicos, mas nunca de todos os livros, mesmo no decorrer de um longo período de anos. No entanto, cristãos que adotam habitualmente lecionários dizem conhecer o cânone inteiro das Escrituras, conforme lhes é transmitido na igreja. Os lecionários raramente incluem seleções de Crônicas, Naum, Habacuc, Hebreus, 2 Pedro, 2-3 João, Judas e Apocalipse, além de outros. Quando o fazem, a ocorrência é rara e em geral as passagens são curtas. Talvez isso seja intencional e

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tenha alguma justificativa, mas trata-se de uma questão que deve ser admitida e discutida abertamente nas igrejas. Se normalmente ignoramos alguns livros da Bíblia por exigirem mais estudo para ser compreendidos, deveríamos excluí-los da Bíblia? Por outro lado, no último século ou pouco mais, foram descobertos muitos livros que antigamente estavam incluídos nas coleções de Escritura cristã, mas que mais tarde foram excluídos (por exemplo, 1 Enoc, Salmos de Salomão, Didaqué [ou Doutrina dos Doze Apóstolos], Evangelho de Tomé e outros). Esses livros devem ser hoje reavaliados tendo em vista uma possível inclusão em coleções cristãs de textos sagrados? A mudança dos cânones bíblicos atuais pouco aproveitaria em termos de doutrina da Igreja; não obstante, a leitura de outros textos pode oferecer informações muito úteis sobre o contexto e o desenvolvimento do judaísmo e do cristianismo primitivo. Voltando à questão anterior sobre os lecionários, quais livros deveriam ser incluídos neles? Os organizadores dos lecionários sempre fazem a melhor seleção? Os cristãos que não seguem os lecionários tradicionais geralmente não se encontram em melhor situação em termos de leitura, pregação e ensinamento de todo o cânone bíblico. Normalmente, eles também ignoram até porções maiores das Escrituras. Isso não significa necessariamente criticar os que ignoram porções da Bíblia, uma vez que muitos reconhecem que nem todas as passagens bíblicas têm relevância igual para as congregações modernas. Concordo que as palavras de Jesus têm mais importância para a Igreja atual do que as passagens do Levítico que relacionam normas sobre o sábado, sobre a alimentação e sobre a pureza. A maioria dos cristãos ignora essas leis e regulamentos e se dedica mais à graça e à liberdade em Cristo, mas é apropriado ignorar também vários livros do Novo Testamento? Como observamos acima, os cristãos frequentemente ignoram diversos livros do Novo Testamento. Deveríamos retirar esses livros do cânone do Novo Testamento? Teríamos mais unidade nas igrejas com ou sem o Apocalipse, por ser difícil compreendê-lo e porque alguns professores de Bíblia dizem que ele não oferece uma imagem fidedigna de Jesus ou da fé da Igreja primitiva? Ele deveria ser excluído porque muitas de suas profecias aparentemente ainda não se realizaram (por exemplo, Ap 1,3; 22,20)? Ou deveria ser retirado simplesmente porque depende de uma cosmovisão que alguns acreditam ser em grande parte inconcebível pelos padrões modernos? Biblistas e líderes da Igreja estão divididos a respeito dessas questões. Em princípio, cristãos e judeus, em sua maioria, reconhecem a totalidade das suas Escrituras sagradas, mas, na prática, quase sempre ensinam ou pregam apenas pequenas porções delas. Por exemplo, conta-se que o falecido Donald Grey Barnhouse, ex-pastor da Décima Igreja Presbiteriana da Filadélfia, pregou durante anos, domingo após domingo, tão somente sobre a Carta de Paulo aos Romanos. Também o seu sucessor, o falecido James Montgomery Boice, adotou o mesmo procedimento, e por um período ainda mais longo, com a única diferença de que escolheu como tema de suas pregações o Evangelho de João! Evidentemente, esses

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são casos extremos e raros, mas ilustram a tendência de alguns ministros a reconhecer, em princípio, a inspiração e autoridade de todo o cânone bíblico, mas na prática selecionam bem os textos que utilizam em sua proclamação e ensinamento nas igrejas. Conquanto a intenção desses pastores fosse boa, isto é, demonstraram que há muito a ser respigado nos livros bíblicos, ainda assim, no processo, muita coisa deixou de ser levada em consideração. Também é muito possível que seminaristas atuais se formem em Teologia sem ter tido um curso sequer sobre qualquer um dos chamados livros marginais do Novo Testamento ou do Antigo Testamento relacionados acima, a não ser por umas poucas páginas lidas apressadamente em uma introdução ao Antigo ou Novo Testamento. Do mesmo modo, dá-se pouca atenção aos “livros excluídos”, isto é, àqueles concorrentes antigos que acabaram sendo retirados do cânone. Quanto ao Antigo Testamento, é grande a probabilidade de que os seminaristas não sejam expostos a uma interpretação cuidadosa da maioria dos livros dos Profetas Menores ou, como observamos acima, do Eclesiastes, do Cântico dos Cânticos e mesmo de Ester, exceto por uma ou outra breve passagem conhecida, citada para corroborar algum outro aspecto considerado mais importante. Embora cursos introdutórios abordem ligeiramente esses livros, raramente me deparo com cursos seminarísticos sobre o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos, Naum ou Sofonias! Em sua maioria, os cursos que conheço sobre o Antigo Testamento dedicam-se ao Pentateuco, abordam superficialmente o Levítico e dão mais atenção ao Gênesis, ao Êxodo e ao Deuteronômio. Enfim, se esses e outros livros da Bíblia são “canônicos”, não faz muito sentido marginalizá-los. É bastante comum estudantes seminaristas e membros de congregações receberem apenas análises superficiais de vários livros bíblicos. Os livros que não foram incluídos no cânone bíblico começam a receber hoje certa atenção em cursos introdutórios na maioria dos seminários, independentemente de sua perspectiva (liberal, moderada ou conservadora) e do fato de que muitos professores consideram esses livros úteis para expor tanto sua compreensão dos livros bíblicos quanto os contextos do judaísmo e do cristianismo primitivos. Judeus e cristãos que reconhecem a autoridade da Bíblia geralmente adotam algo como um “cânone dentro do cânone”, isto é, na prática seguem apenas algumas admoestações bíblicas ou adotam maneiras criativas de interpretar os textos bíblicos mais obscuros ou provocadores. Como a Bíblia pode continuar a ser Escritura autorizada se reconhecemos sua autoridade e sacralidade, mas ignoramos seletivamente muitas de suas exortações e mensagens? Para as comunidades de fé, a Bíblia nunca é simplesmente um documento histórico antigo, útil apenas para compreender o surgimento de comunidades de fé judaicas e cristãs. Para elas, a Bíblia é uma compreensão prática da identidade e da vontade de Deus para essas comunidades e exerce certo grau de autoridade em sua conduta e missão no mundo. Biblistas sugeriram recentemente que alguns livros

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bíblicos poderiam ser excluídos sem muita perda para a Igreja e que alguns livros que foram inicialmente excluídos no processo de canonização poderiam ser incluídos com considerável proveito para as igrejas. Há mais ataques à validade do cânone bíblico atualmente do que em qualquer outra época nos últimos 400 anos. É chegado o momento de se reavaliar o cânone bíblico? Apesar das descobertas e análises dos especialistas, trata-se de um “assunto encerrado”, que não admite mudanças? Se a composição da Bíblia fosse alterada, como vêm propondo alguns estudiosos, que diferença isso faria? Que diferença faria nas igrejas, em termos de sua compreensão de Deus, de sua identidade, de sua vida em comunidade, de sua missão, se alguns livros fossem retirados e outros incluídos? Essas são perguntas sobre o cânone bíblico, isto é, sobre os livros que compõem a Bíblia, e dizem respeito a livros sagrados que tanto cristãos como judeus em todo o mundo acreditam constituir o fundamento de sua fé, conduta e missão. Muitos cristãos atuais perguntam que coleção de Escrituras do Antigo Testamento reflete de modo mais apropriado as Escrituras de Jesus e dos seus primeiros seguidores. Será aquela adotada pelos judeus rabínicos da metade para o fim do séc. II EC, ou será uma coleção mais extensa, mas definida com menos precisão, que incluía tanto livros bíblicos quanto vários escritos “apócrifos” e mesmo “pseudepigráficos”? A prevalecer esta última alternativa, qual a implicação disso para a autoridade da Bíblia hoje? Abordaremos, a partir de agora, questões mais específicas relacionadas com a formação do Antigo e do Novo Testamentos. OUTRAS LEITURAS AUWER, J.-M. e JONGE, H. J. De (orgs.). The Biblical Canons. BETL CLXIII. Leuven: Leuven University Press, 2003. BARR, J. Holy Scripture: Canon, Authority, Criticism. Filadélfia: The Westminster Press, 1983. BARTON, J. Holy Writings, Sacred Text: The Canon in Early Christianity. Louisville: Westminster John Knox Press, 1997. CAMPENHAUSEN, H. von. The Formation of the Christian Bible. Tradução para o inglês de J. A. Baker. Filadélfia: Fortress, 1972. DAVIES, P. R. “The Jewish Scriptural Canon in Cultural Perspective”, em MCDONALD, L. M. e SANDERS, J. A. S. (orgs.). The Canon Debate. Peabody: Hendrickson Publishers, 2002, p. 42-44. GAMBLE, H. Y. Books and Readers in the Early Church: A History of Early Christian Texts. New Haven: Yale University Press, 1995. GUILLORY, J. Cultural Capital: The Problem of Literary Canon Formation. Chicago: University of Chicago Press, 1995. HALLBERG, R. von (org.). Canons. Chicago: University of Chicago Press, 1985. KRAEMER, D. “The Formation of the Rabbinic Canon: Authority and Boundaries”. JBL 110 (1991), cap. 4, p. 613-630. LEIMAN, S. Z. The Canon and Masorah of the Hebrew Bible: An Introductory

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terra de Israel e por isso não foi incluído na Mixná. O b. diante de Baba Bathra é o símbolo que indica que o livro faz parte do Talmud Babilônio (o Bavli), uma das duas interpretações judaicas da Mixná (a outra é o Yerushalmi com o símbolo ou signo y). Como b. Baba Bathra 14b é um baraita, é provável que não fosse bem conhecido ou aceito de modo geral entre os judeus no séc. I ou II EC. 8 A essa lista acrescentaríamos os seguintes: Apócrifo de Tiago (preservado no Códice I de Nag Hammadi); Diálogo do Salvador (preservado no Códice III de Nag Hammadi); Evangelho dos Ebionitas (preservado nas citações de Epifânio); Papiro Oxyrhynchus 840; Papiro Oxyrhynchus 1224; Papiro Egerton (+ Papiro Köln 255); Fragmento de Fayyum (= Papiro Vindobonensis Grego 2325).

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FORMAÇÃO DO CÂNONE DO ANTIGO TESTAMENTO

DA ESCRITURA PARA AS ESCRITURAS A origem das Escrituras do Antigo Testamento ocorre em um contexto em que a noção de literatura sagrada havia assumido o sentido de coleções escritas autorizadas de Escrituras ou livros sagrados. No séc. I EC, o conceito de Escritura já estava bem estabelecido, o mesmo acontecendo com as coleções de Escrituras sagradas, não obstante as fronteiras dessas coleções ainda serem fluidas e imprecisas na época. Os judeus do séc. I não tinham a mínima dúvida de que a palavra e a vontade de Deus haviam sido transmitidas através de palavras escritas; as dúvidas existentes limitavam-se à composição dessas coleções. Todos os grupos religiosos de Israel e o próprio Jesus haviam aceitado inúmeros textos religiosos judaicos como Escritura sagrada. No capítulo anterior, examinamos como essa ideia se desenvolveu entre os judeus; mas, quando ela se completou, o que foi incluído nas primeiras coleções e até que ponto estas eram semelhantes à nossa Bíblia atual? A coleção definitiva que compreendia o Antigo Testamento (Bíblia hebraica) estava completa no tempo de Jesus e antes dele? Os especialistas bíblicos divergem bastante em suas respostas. A Lei (ou Pentateuco) estava completa nessa época, sem dúvida, mas é difícil precisar o conteúdo pleno dos Profetas, a segunda principal categoria das Escrituras judaicas. Em termos gerais, parece que, no séc. I EC, todos os livros sagrados, com exceção da Lei, faziam parte da categoria “Profetas”, como vemos em toda a literatura do Novo Testamento. Muitos livros que mais tarde foram incluídos na terceira parte do Antigo Testamento (Escritos ou Ketubim) também eram classificados em “Profetas”. Entre os judeus rabínicos, essa terceira categoria começou a configurar-se no séc. II. É provável que os livros que os judeus hoje denominam “Profetas” (Nebiim) e “Escritos” (Ketubim ou Hagiógrafos) eram em sua maioria reconhecidos como Escritura sagrada no séc. I EC. Isso seguramente se aplica aos livros incluídos nessas coleções – que nos escritos do Novo Testamento são citados como Escritura –, mas provavelmente abrange também a maioria dos demais livros do Antigo Testamento que não são citados no Novo Testamento. A terceira parte da Bíblia hebraica, os Escritos, provavelmente não foi separada dos Profetas antes do séc. II EC, e há dúvidas se todos os seus livros eram reconhecidos como Escritura sagrada. Quase um terço dos livros do Antigo Testamento não foi citado no Novo Testamento, e a condição canônica de alguns desses livros não citados era muitas vezes debatida entre os rabinos no séc. II e seguintes (por exemplo, Cântico dos Cânticos, Ester, Ezequiel

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e Eclesiastes). As fronteiras entre a segunda e a terceira partes das Escrituras judaicas estavam indefinidas para os judeus rabínicos muito antes da metade para o fim do séc. II EC. Pelo menos, não há evidências de que elas existissem antes do séc. II EC. Além disso, os livros sagrados e suas categorias também não estavam bem definidos entre os judeus que viviam na diáspora (fora da terra de Israel, especialmente os judeus que viviam a oeste da terra de Israel). Esses judeus adotaram a tradução grega das Escrituras judaicas, a qual não se limitava aos livros que hoje compõem a Bíblia hebraica e também não classificava esses livros nos três grupos que atualmente compreendem a Bíblia hebraica. Não há evidências de que os judeus da diáspora aceitassem a coleção mais limitada de Escrituras que circulava entre os judeus na terra de Israel e na Babilônia no séc. II EC e depois. De fato, as evidências disponíveis apontam na direção oposta. Os judeus da diáspora desconheciam o texto hebraico de suas Escrituras e só usavam a tradução Setenta (grega), mais abrangente, a qual continha inclusive os livros que os protestantes denominam apócrifos e os católicos romanos deuterocanônicos. A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto e de outros textos religiosos no deserto da Judeia nos leva a crer que os livros sagrados que constituíam as Escrituras judaicas eram variáveis no séc. I EC e em maior número do que os que constituem a atual Bíblia hebraica ou o Antigo Testamento protestante. Muitos judeus do séc. I EC e também muitos entre os primeiros cristãos receberam como literatura sagrada inúmeros outros livros religiosos judaicos, que foram produzidos entre o séc. IV tardio AEC e o séc. I EC e que tiveram ampla circulação na terra de Israel. É difícil acreditar que os livros sagrados da Bíblia hebraica ou Antigo Testamento faziam parte de uma coleção fixa muito antes da época de Jesus. Essa dificuldade decorre do fato de que muitos outros textos religiosos judaicos foram produzidos, principalmente nos sécs. II e I AEC, na terra de Israel, e aceitos como escritos sagrados tanto por judeus como, mais tarde, por cristãos, no séc. I e seguintes. Se existia um cânone bíblico fechado em Israel antes do tempo de Jesus e aceito pela maioria dos judeus, como podiam outros textos sagrados aparecer e encontrar aceitação entre os judeus nos primeiros séculos AEC e EC? Novamente, é seguro dizer que, em sua maioria, os livros que compõem as atuais Escrituras do Antigo Testamento circularam amplamente e foram aceitos como Escritura sagrada por muitos judeus no tempo de Jesus, mas havia muitos outros livros sagrados, tanto apócrifos como pseudepigráficos, de ampla circulação e que eram lidos como Escritura entre as várias seitas judaicas do séc. I. Esses mesmos livros também informaram os primeiros seguidores de Jesus nos sécs. I e II, e alguns deles continuaram na literatura sagrada da Igreja. Em termos gerais, as Escrituras adotadas pelos judeus fariseus eram as mesmas aceitas por Jesus e seus seguidores. Essa coleção, porém, era um tanto instável nos primeiros três séculos EC, e incluía vários livros apócrifos e pseudepigráficos. Vários séculos foram necessários para que as igrejas chegassem a um acordo amplo sobre a

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composição da sua Bíblia, apesar de nunca ter havido uma concordância total entre elas a respeito do conteúdo das suas Escrituras do Antigo Testamento. Nos sécs. IV e V, os cânones bíblicos judaico e cristão já não incluíam uma quantidade significativa de escritos. Atualmente, os cristãos protestantes aceitam como primeira parte de suas Bíblias os 39 livros do Antigo Testamento protestante. Eles aceitam os mesmos livros que compõem o cânone de 24 livros da Bíblia hebraica, mas numa sequência diferente e com diferentes divisões. Como vimos no capítulo 2, os processos canônicos tiveram início com uma história que deu ao povo de Israel um sentido de identidade, uma missão e uma razão para continuar e persistir até diante das dificuldades mais avassaladoras. Os judeus haviam sido levados para o cativeiro, suas cidades e o Templo haviam sido destruídos, o reino abolido. O cativeiro da Babilônia e milhares de obstáculos criados por seus vizinhos e ocupantes estrangeiros de sua terra normalmente teriam aniquilado uma nação, o que não aconteceu! A história que infundiu esperança e estimulou a nação a continuar em meio às enormes dificuldades desenvolveu-se e mudou muitas vezes para atender às contínuas necessidades da comunidade religiosa, mas seu núcleo manteve-se intocado. Ela acabou sendo aceita como Escritura sagrada quando foi escrita, ocupando o centro dos textos sagrados reconhecidos pelos judeus. Essa história sagrada era também contada nos muitos textos religiosos que surgiram depois que os últimos livros do Antigo Testamento foram escritos e também em vários livros do Novo Testamento. Examinaremos a seguir inúmeros textos antigos que revelam a noção de coleções de textos judaicos sagrados e em seguida avaliaremos o significado dessas coleções para elucidar a origem e o desenvolvimento da Bíblia. COLEÇÕES DE ESCRITURAS NO JUDAÍSMO ANTIGO Em inúmeras passagens do Antigo Testamento, um profeta, ao admoestar o antigo Israel, poderia ter reforçado de modo significativo sua mensagem citando um texto (prescrição ou proscrição) da Lei. Amós, por exemplo, poderia ter intensificado suas advertências e ameaças se tivesse recorrido a mandamentos da Lei para sustentar suas acusações contra Israel (ver 2,6-16; 5,1–6,14; e as cinco visões em 7,1–9,15), mas não o fez. Do mesmo modo, Oseias poderia ter fortalecido suas críticas a Israel se tivesse citado textos sagrados do Decálogo que proibiam ter outros deuses diante do Senhor (Ex 20,4-6), mas não o fez. Por fim, o profeta Natã poderia ter sido mais específico com relação à morte de Urias, instigada por Davi, e ao adultério de Davi com Betsabeia, como violações de mandamentos específicos da Lei. Ele poderia ter dito “não matarás” e “não cometerás adultério”, ordens expressas no Decálogo (Ex 20,13-14); em vez disso, para intensificar sua repreensão a Davi, contou-lhe uma parábola sobre a injustiça cometida contra um homem em situação desvantajosa (2Sm 12,1-15). Ele diz que Davi quebrou a palavra do Senhor (12,9), mas não esclarece de que palavra do Senhor se tratava. É difícil ver nessa passagem uma referência a uma

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Lei codificada que proibia essa conduta, uma vez que não existem outras referências a tais leis no restante de Samuel 1 e 2. Mesmo se a Lei de Moisés estivesse por trás da mensagem do profeta (uma suposição discutível), a citação de uma violação específica da Lei teria aumentado consideravelmente o impacto da mensagem sobre o público do escritor. Embora Josué insista no cumprimento do “Livro da Lei” (1,8), referências dessa natureza são raras em Juízes. Ver, por exemplo, uma referência à palavra do profeta em Jz 6,8-11, mas mesmo aqui não temos uma menção clara a um texto sagrado. Há muitos exemplos de omissão de textos sagrados em outras partes do Antigo Testamento, mas alguns estudiosos sugerem que essa falta de citações nos leva a perguntar se e como a Lei realmente operava no antigo Israel. Quando as Escrituras do Antigo Testamento assumiram autoridade canônica em Israel? Por que não se configuraram como cânone de modo mais evidente antes das reformas de Josias, quando seu uso se torna mais explícito (2Rs 22,1-3; 25 e 2Cr 34,14-33)? Nos estágios iniciais de Israel, obviamente a religião judaica ainda não estava informada pelos textos sagrados que mais tarde dominaram sua vida religiosa, mas há evidências de que pouco antes do cativeiro da Babilônia e da destruição de Jerusalém e de seus arredores (597-585 AEC), houve uma renovação da fé na nação antes da perda da sua independência. A renovação se deu como resultado da descoberta no Templo, pelo sumo sacerdote Helcias (2Rs 22,8–23,20), do livro da Lei (provavelmente o Deuteronômio) e das reformas que lhe seguiram, promovidas pelo rei Josias. No fim desse período do “primeiro Templo”, houve um esforço concentrado para mostrar a importância das leis de Moisés para o povo, e deram-se os primeiros passos para o reconhecimento tanto dessas leis como de alguns dos Profetas como autoridade sagrada na vida religiosa israelita (2Rs 17,13, talvez escrito entre 450-400 AEC). Com as reformas posteriores de Esdras (c. 458-390 AEC), porém, há um claro chamamento a observar e obedecer à “Lei de Moisés” (Esd 10,2-3; Ne 8,18), mas não havia clareza na época se “Lei de Moisés” correspondia a todo o Pentateuco (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento) ou simplesmente às leis de Moisés (os Dez Mandamentos e outras prescrições). Mais tarde, autoridade semelhante, mas não igual, foi conferida aos Profetas ou a alguns deles (talvez em torno de 400 AEC e possivelmente antes). Podemos ver uma referência antiga à autoridade de outros profetas, como observamos acima, na advertência do Senhor ao seu povo. No norte (a Casa de Israel com sede na Samaria), Deus havia exortado Israel seguidamente a observar seus mandamentos. Como essas exortações não foram atendidas, os assírios destruíram e escravizaram a nação israelita em 721-720 AEC. O comentador de 2 Reis afirma que o Senhor disse: “No entanto, Javé tinha feito esta advertência a Israel e a Judá, por meio de todos os profetas e videntes: ‘Convertei-vos de vossa má conduta e observai meus mandamentos e meus estatutos, conforme toda a Lei que prescrevi a vossos pais e que lhes comuniquei por intermédio de meus servos, os profetas’” (2Rs 17,13).

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Posteriormente, depois da destruição de Judá e de sua capital em Jerusalém, e com a nação exilada na Babilônia, a autoridade antes atribuída à Lei foi também atribuída a outros escritos, especificamente aos Profetas Anteriores (Josué, Juízes, 1-2 Samuel, 1-2 Reis). Daí em diante, a autoridade foi gradualmente atribuída também aos Profetas Posteriores (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze, isto é, os doze Profetas Menores). Por exemplo, em aproximadamente 160 AEC, o profeta Daniel cita um profeta mais antigo (Jeremias) como autoridade religiosa (ver Dn 9,2 e comparar com Jr 29,10). Na próxima seção, examinaremos brevemente alguns textos antigos de maior importância que refletem conhecimento e autoridade atribuídos a diversas coleções de escritos sagrados. TEXTOS IMPORTANTES QUE REFLETEM A AUTORIDADE DAS ESCRITURAS DE ISRAEL O reconhecimento do valor e da autoridade dos livros identificados na Lei e nos Profetas pode ter começado pelo séc. VI ou V AEC, mas as evidências mais objetivas dessa apreciação começam a surgir de modo mais sistemático em torno de 200 a 180 AEC. A maioria dos judeus não duvidava do caráter sagrado dessas duas coleções de Escrituras, ainda que os conteúdos da segunda (Profetas) só se consolidem no séc. II EC. Inúmeros outros textos antigos foram produzidos nesse intervalo de tempo, e muitos deles, se não a maioria, foram recebidos como Escritura sagrada por judeus nos primeiros séculos AEC e EC e também pelos primeiros cristãos mais tarde. No conjunto de textos antigos mais importantes apresentado a seguir, veremos inicialmente a exaltação dos profetas e, em seguida, várias referências também a seus escritos. Esses 12 testemunhos relacionados a várias coleções de literatura sagrada judaica refletem a evolução na aceitação das Escrituras judaicas e também as ambiguidades que persistem. 1. Sirac (c. 180 AEC). O primeiro testemunho importante nesse sentido é Sirac (Sabedoria de Jesus Ben Sirac ou Eclesiástico), que demonstra conhecer os livros de Ezequiel, de Jó e dos “Doze Profetas”. Em uma importante passagem (44,1–50,24), Sirac se refere não tanto aos livros escritos pelos profetas quanto aos seus feitos heroicos. A exceção é Eclo 49,8-10: Ezequiel contemplou uma visão de glória, que Deus lhe mostrou sobre o carro dos querubins. E Deus também fez menção de Jó, que seguiu todos os caminhos direitos. Quanto aos doze profetas, que seus ossos floresçam no sepulcro, porque eles consolaram Jacó e o resgataram na fé e na esperança (Bíblia de Jerusalém, BJ).

A seção mais longa do Eclesiástico, a “História de Homens Ilustres” (Eclo 44,1– 50,24), narra a história de pessoas famosas ou ativistas. Nessa extensa passagem, o autor dá mostras claras de conhecer os livros dos Profetas Anteriores e Posteriores e o livro de Jó. Minimamente, estamos diante do reconhecimento de uma literatura sagrada que se configura como “cânone 1”. É provável que o autor conheça também os livros de Josué (46,1-6), Samuel (46,13–47,11) e, possivelmente, também Reis

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(47,12–49,3), incluindo Davi e Salomão, e ainda mencionando Ezequias e Isaías (48,20-25), e Josias (49,1-4); além de Jeremias (49,6), Ezequiel, Jó e os Doze Profetas (49,9-10). Essas referências sugerem que os doze Profetas Menores talvez já circulassem em um único volume (pergaminho) em Israel nessa época (200-180 AEC) e possivelmente que os Profetas Maiores (Isaías, Jeremias e Ezequiel) estivessem circulando em volumes ou pergaminhos individuais. 2. Prólogo a Sirac. Quando o neto de Sirac, ou possivelmente outra pessoa (a autoria é incerta), escreveu o Prólogo para o livro da Sabedoria de Jesus Ben Sirac e o traduziu para o grego para os que viviam em Alexandria (c. 130 AEC), ele descreveu a literatura que já havia sido traduzida para eles como a “Lei, os Profetas e os outros escritores que se seguiram a eles”. Em seguida, ao falar das dificuldades para traduzir textos sagrados hebraicos para o grego, ele diz que há diferenças que continuam na tradução da Lei, dos Profetas e de alguns outros livros, inclusive na tradução da obra do seu avô. Para os nossos objetivos, destaco em itálico o texto da parte mais importante do Prólogo, como segue: Visto que a Lei, os Profetas e os outros escritores que se seguiram a eles deram-nos tantas e tão grandes lições, pelas quais convém louvar Israel por sua instrução e sua sabedoria, e como, além do mais, é um dever não apenas adquirir ciência pela leitura, mas, ainda, uma vez instruído, colocar-se a serviço dos de fora, por palavras e por escrito: meu avô Jesus, depois de dedicar-se intensamente à leitura da Lei, dos Profetas e dos outros livros dos antepassados, e depois de adquirir neles uma grande experiência, ele próprio sentiu necessidade de escrever algo sobre a instrução e a sabedoria, a fim de que os que amam a instrução, submetendo-se a essas disciplinas, progridam muito mais no viver segundo a Lei. Sois, portanto, convidados a ler com benevolência e atenção e a serdes indulgentes onde, a despeito do esforço de interpretação, parecemos enfraquecer algumas das expressões: é que não se tem a mesma força quando se traduz para uma outra língua aquilo que é dito originariamente em hebraico; não só este livro, mas a própria Lei, os Profetas e o resto dos livros têm grande diferença nos originais (BJ).

Não sabemos com certeza quais eram esses “outros livros”, o que não impediu que muitos estudiosos continuassem a especular. É tentador imaginar que se tratava dos mesmos livros que constituíam a terça parte da Bíblia hebraica, mas poderiam também incluir-se alguns dos chamados escritos apócrifos ou deuterocanônicos, ou pseudepigráficos, que acabaram sendo desconsiderados. Os “Profetas” ou “Profecias” poderiam muito bem ter incluído alguns ou todos os livros que mais tarde constituíram os Escritos (Ketubim). Simplesmente não podemos ter certeza hoje, mas considerando que o neto queria incluir o livro de Sirac na coleção de livros sagrados, como sabemos que outros livros não canônicos também não foram incluídos em “outros”? Nos parágrafos seguintes, relacionaremos várias outras referências bem conhecidas a coleções de textos sagrados entre os judeus no período anterior a Jesus; adiantamos, porém, que não é possível determinar a identidade desses textos com clareza. Eu os relacionarei aqui com alguns comentários sobre o que julgo revelarem sobre a esquematização do cânone bíblico antes da época de Jesus. 3. 1Mc 1,56-57. Essa passagem, produzida em Israel (c. 100-64 AEC, provavelmente mais próximo de 100), reflete como o rei selêucida (sírio) Antíoco IV

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Epífanes saqueou o Templo em Jerusalém em 167 AEC e mandou suas tropas destruírem os livros sagrados da Lei. O problema sobre esse texto está no sentido das palavras em grifo. O texto em questão diz: 54No décimo quinto dia do mês de Casleu, do ano cento e quarenta e cinco, o rei fez construir, sobre o altar dos holocaustos, a Abominação da desolação. Também nas outras cidades de Judá erigiram-se altares, 55e às portas das casas e nas praças queimava-se incenso. 56Quanto aos livros da Lei, os que lhes caíam nas mãos eram rasgados e lançados ao fogo. 57Onde quer que se encontrasse, em casa de alguém, um livro da Aliança ou se alguém se conformasse à Lei, o decreto real o condenava à morte (1Mc 1,54-57, BJ).

4. 2Mc 2,13-15. Esse texto controverso é muitas vezes citado com referência à formação do cânone. Ele foi escrito em algum momento entre 104 e 63 AEC (ver 2Mc 15,37) e reflete um período posterior à rebelião judaica, quando os judeus recuperaram o controle de sua terra durante alguns anos (até 63 AEC, quando Pompeu invadiu a Palestina e os judeus tiveram de se submeter ao poder de Roma). Ele diz: 13Também nos documentos e nas Memórias de Neemias eram narradas essas coisas. E, além disso, como ele, fundando uma biblioteca, reuniu os livros referentes aos reis e aos profetas, os escritos de Davi e as cartas dos reis sobre as oferendas. 14Da mesma forma, também Judas [Macabeu] recolheu todos os livros que tinham sido dispersos por causa da guerra que nos foi feita, e eles estão em nossas mãos. 15Se, pois, deles precisardes, quaisquer que sejam, enviai-nos pessoas que vo-los possam levar (BJ, grifo nosso).

5. 4QMMT (= 4Q394-99 ou 4Q Carta Haláquica, às vezes chamada “Manifesto Sectário”) ou Miqsat Ma’seh ha-Torah, isto é, “Alguns Preceitos da Lei” (c. 150 AEC). Nesse texto de Qumrã, de tradução recente, há uma referência a três e possivelmente quatro categorias de escritos sagrados. O texto em pauta é fragmentado e, consequentemente, difícil de decifrar, contendo várias omissões de palavras que os especialistas precisam suprir usando colchetes. Os números sobrescritos se referem às linhas do texto hebraico descoberto. Segundo alguns estudiosos, parte dessa “epístola” (Carta Haláquica), liberada para publicação há pouco tempo, parece oferecer evidências de uma antiga divisão tríplice do cânone hebraico. Não há duas traduções dessa passagem que sejam exatamente iguais, dada sua condição fragmentária. Às vezes, as lacunas no texto original foram preenchidas com palavras praticamente da mesma extensão que parecem corresponder ao contexto. Transcrevemos o texto com os colchetes para mostrar ao leitor as muitas incertezas que permanecem. O material sob análise é consistente em ambas as traduções, mas não é o mesmo, e alguns dos textos oferecidos são meramente hipóteses bastante plausíveis. A porção pertinente desse texto fragmentado e reconstituído em 4Q398 14-17 é a seguinte: com relação [a essas coisas] nós vos damos [...] nós temos [escrito] que deveis compreender o livro de Moisés [e] o[s] livr[os dos pr]ofetas e Dav[i...] [as crônicas de] cada geração.

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E em seguida, em 4Q397 14-17, vemos este comentário semelhante: [... com relação a essas coisas da]mos [...] temos escrito que deveis compreender o li[vro] de Moisés [e os livros dos profetas e Davi e as crônicas de cada] geração [e no] livro está escrito [...] e os tempos antigos...

As partes mais significativas desse texto e tradução reconstituídos são, naturalmente, as referências ao “Livro de Moisés”, aos “livros [ou palavras] dos profetas”, a “Davi” e às “crônicas de cada geração”. Referir-se-á a terceira categoria, “Davi”, aos Salmos, como os conhecemos hoje, ou a uma coleção diferente de salmos, como os encontrados em Qumrã, bem diferentes dos do livro dos Salmos, especialmente na última terça parte dessa coleção? Do mesmo modo, existirá uma quarta categoria, “crônicas de cada geração”, que se refere a Crônicas, EsdrasNeemias e possivelmente Ester ou a alguma outra coisa? Nem o texto de Fílon (abaixo) nem 4QMMT oferecem uma ideia clara sobre o conteúdo do que mais tarde identifica-se em escritos rabínicos como Ketubim ou Hagiographa (Hagiógrafos = “Escritos Sagrados”), nem tampouco esclarecem o conteúdo dos Profetas. Eles nos mostram, porém, que tanto os Terapeutas no Egito quanto os destinatários deste texto 4QMMT talvez reconhecessem três ou quatro categorias de escritos sagrados. É incerto se essas possíveis categorias são constituídas dos escritos que mais tarde foram descobertos em Qumrã ou se elas são como as divisões mais precisas das Escrituras mencionadas em 4QMMT ou no Prólogo ao Eclesiástico e mesmo em Josefo (ver abaixo). Também precisamos ser cautelosos e examinar se essas categorias pressupõem uma coleção fechada de escritos sagrados (cânone 2) com limites claramente definidos. Até aqui, nada sugere a existência de uma coleção fechada de Escrituras sagradas entre os judeus no séc. I EC, ou antes. 6. De vita contemplativa (Da vida contemplativa) 3,25-28. Ao dissertar sobre uma seita judaica no Egito, conhecida pelo nome de Terapeutas, Fílon (c. 20-35 EC) identifica coleções de escritos sagrados judaicos que seus seguidores liam em seus templos, mas ele não especifica o conteúdo dessas coleções. Não obstante, a descrição nos permite entrever o possível surgimento entre o povo judeu de uma coleção de Escrituras sagradas constituída de três ou quatro partes. Por exemplo, Fílon menciona os livros santos dos “Terapeutas”, seguidores de uma seita que, apesar de diferente, assemelhava-se à dos essênios, os quais produziram ou preservaram os hoje famosos Manuscritos do Mar Morto. Fílon afirma que essa seita judaica levou inúmeros textos sagrados para seus santuários sagrados ou lugares santos. A passagem a que aludimos diz o seguinte: (3,25) Eles têm um mosteiro, onde se recolhem e realizam todos os mistérios de uma vida piedosa. Nada levam para esse lugar santo, nem comida, nem bebida, nem nada que não seja indispensável para suprir as necessidades do corpo. Ali estudam as leis e os oráculos sagrados de Deus enunciados pelos santos profetas, pelos hinos, pelos salmos, por toda espécie de outras coisas, motivo pelo qual o conhecimento e a piedade aumentam e são levados à perfeição. (26) Por isso eles sempre preservam uma lembrança inextinguível de Deus, de modo que nem mesmo em seus sonhos se apresenta aos seus olhos qualquer outro objeto que não a beleza das virtudes

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divinas e dos poderes divinos. Por isso muitas pessoas falam em seu sono, divulgando e publicando as doutrinas celebradas e a filosofia sagrada. [...] (28) E o intervalo entre a manhã e a noite eles o dedicam inteiramente à meditação sobre a virtude e à sua prática, pois manuseiam as Sagradas Escrituras e meditam sobre elas, investigando as alegorias de sua filosofia nacional, visto que consideram suas expressões literais como símbolos de algum significado secreto da natureza, transmitido através dessas expressões figurativas (Da vida contemplativa 3,25-26.28. Grifo nosso).

7. Lc 11,48-51 e Mt 23,34-35. Especialistas citam frequentemente essas passagens do Novo Testamento, pois elas admitiriam um cânone bíblico fixo que começa com o Gênesis (Abel, Gn 48) e termina com o último livro da Bíblia hebraica (Zacarias, em 2Cr 24,20). A primeira passagem é a seguinte: 48Assim, vós sois testemunhas e aprovais os atos dos vossos pais: eles mataram e vós edificais! 49Eis por que a Sabedoria de Deus disse: Eu lhes enviarei profetas e apóstolos; eles matarão e perseguirão a alguns deles, 50a fim de que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas, que foi derramado desde a criação do mundo, 51do sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que pereceu entre o altar e o Santuário. Sim, digo-vos, serão pedidas contas a esta geração! (Lc 11,49-51, BJ.)

E a passagem paralela em Mateus: Por isso vos envio profetas, sábios e escribas. A uns matareis e crucificareis, a outros açoitareis em vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade. E assim cairá sobre vós todo o sangue dos justos derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que matastes entre o santuário e o altar (Mt 23,34-35, BJ).

Zacarias (ver 2Cr 24,20-24) foi o último profeta canônico a ser assassinado; e, continua o argumento, por ser Zacarias o último profeta a morrer em 2 Crônicas, e pelo fato de 2 Crônicas ser o último livro das Escrituras hebraicas, Jesus devia ter em mente todo o cânone bíblico ao fazer essas duas declarações. O argumento prossegue dizendo que as palavras de Jesus em Lc 11,49-51 tinham o objetivo de abranger a totalidade das Escrituras hebraicas, desde o Gênesis até 2 Crônicas, conforme aparecem na Bíblia hebraica. Se assim for, não sugere esse fato que a terceira parte da Bíblia hebraica estava completa quando Jesus pronunciou essas palavras? Curiosamente, quer 2 Crônicas fosse o primeiro livro dos Escritos ou o último livro da Bíblia hebraica, essa circunstância não afetaria a exatidão da afirmação feita em Lc 11,49-51. Simplesmente não há outros profetas martirizados depois desse tempo na terceira parte da Bíblia hebraica. Devemos lembrar que o cânone da Bíblia de Jerônimo, que, segundo os estudiosos, era muito influenciada pelo judaísmo, não conclui com Crônicas. Além disso, o cânone de Jerônimo é formado por 22 livros (sem dúvida baseado no número de letras do alfabeto hebraico), diferentemente do cânone bíblico mais geralmente aceito de 24 livros (baseado no número de letras do alfabeto grego). Curiosamente, o texto hebraico mais citado hoje, os famosos textos de Alepo, dos quais deriva o Texto Massorético da Bíblia hebraica, situa Crônicas no início da terceira divisão e Esdras-Neemias, no fim. Além disso, os versículos de conclusão de 2Cr 36 são os mesmos de abertura de Esdras 1. Parece, portanto, que o escritor/editor

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dessa coleção de livros sagrados pelo menos queria ter Crônicas em primeiro lugar e Esdras-Neemias em último lugar, mesmo que ficassem separados na coleção. A tradução do Antigo Testamento feita por Jerônimo no séc. V, a Vulgata, preserva até certo ponto a tríplice divisão da Bíblia hebraica, embora sem as designações habituais (Lei, Profetas e Escritos), coloca Jó em primeiro lugar na terceira categoria e Crônicas em sétimo lugar, seguido de Esdras (Esdras e Neemias), e termina com Ester. 8. Lc 24,44. O cânone tripartido de Israel mal começava a ser fechado quando os evangelistas escreviam seus Evangelhos, isto é, numa época em que o cristianismo deixara essencialmente de ser mais uma seita judaica fortemente influenciada pelo judaísmo. Mesmo então, porém, ainda não estavam firmemente estabelecidos os limites da terceira parte do cânone do Antigo Testamento. Na passagem a seguir, pode o termo “Salmos” referir-se à totalidade da terceira parte da Bíblia hebraica, os Escritos (Ketubim)? Escrito em 65-70 EC, Lucas escreve a respeito do encontro de Jesus com seus discípulos depois da ressurreição, ocasião em que lhes diz que tudo o que aconteceu com ele estava previsto nas Escrituras. Na expressão de Lucas: “São estas as palavras que eu vos falei, quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44, BJ). 9. Josefo, Contra Apião. Um dos textos mais frequentemente citados em debates a respeito da formação do cânone da Bíblia hebraica é a defesa do povo judeu assumida por Josefo contra os ataques verbais feitos por Apião no Egito (c. 93-95 EC). Em sua apologia, Contra Apião, Josefo afirma que os judeus tinham um cânone bíblico de apenas 22 livros e que seu conteúdo, para a maioria dos judeus, já fora estabelecido havia muito tempo. Em suas alegações diante de Calígula (imperador romano, c. 100 EC), Josefo afirma que as Escrituras sagradas judaicas eram compostas de 22 livros, identificados por classificação ou categoria, não por nome. As partes importantes estão grifadas na passagem seguinte: Portanto, segue naturalmente, ou melhor, necessariamente, (considerando que entre nós nem todos estão capacitados a escrever crônicas, e que não há discrepância no que está escrito; considerando, pelo contrário, que apenas os profetas tinham esse privilégio, obtendo seu conhecimento da história mais remota e antiga através da inspiração que atribuíam a Deus, e comprometendo-se a escrever um relato claro dos fatos do seu tempo logo que aconteciam) – segue, digo, que não possuímos milhares de livros incongruentes, em conflito uns com os outros. Os nossos livros, os que são legitimamente reconhecidos, são apenas vinte e dois e contêm o registro de todos os tempos. Desses, cinco são os livros de Moisés, compreendendo as leis e a história tradicional da origem do homem até a morte do legislador. Esse período corresponde a pouco menos de três mil anos. Da morte de Moisés até Artaxerxes, que sucedeu a Xerxes como rei da Pérsia, os profetas posteriores a Moisés escreveram a história dos acontecimentos das suas épocas em treze livros. Os quatro livros restantes contêm hinos a Deus e preceitos para a conduta da vida humana. De Artaxerxes aos nossos dias, a história toda foi escrita, mas não foi considerada merecedora de igual crédito em comparação com os registros anteriores, por causa da inexatidão cronológica dos profetas. Temos dado provas concretas do respeito que temos por nossas Escrituras. Apesar de decorrido tanto tempo, ninguém ousou acrescentar, retirar ou alterar uma única sílaba que seja; e é instintivo em cada judeu, desde o dia do seu nascimento, considerá-las decretos de Deus, viver de acordo com elas e, se

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necessário, morrer alegremente por elas. No passado, vezes sem conta, olhos testemunharam prisioneiros suportando torturas e a morte sob todas as formas nos anfiteatros, inabaláveis em não dizer uma única palavra contra as leis e os documentos correspondentes (Contra Apião 1,37-43. Grifo nosso).

A divisão de Josefo, de 22 livros, é bastante diferente da divisão tripartida posterior, especialmente com relação ao conteúdo dos Hagiógrafos do Baba Bathra 14a-15b, citado integralmente abaixo. Aparentemente, essa passagem é um dos argumentos mais robustos a favor de um cânone fechado das Escrituras hebraicas no séc. I, segundo alguns estudiosos, mas devemos sempre ter em mente quatro aspectos importantes. O primeiro é que o cânone de vinte e dois livros de Josefo não se impôs no judaísmo, sendo superado em popularidade pelo cânone de vinte e quatro livros ainda na época de Josefo (ver 4 Esdras 14,44-48, citado abaixo). Segundo, e mais importante, bem sabemos que Josefo era dado a exageros. A passagem reproduzida acima foi escrita em um contexto apologético, isto é, como uma réplica contundente não só contra Apião, mas também contra todos os que negavam a antiguidade dos judeus e de sua literatura sagrada. Nessa réplica, Josefo sustenta e defende a exatidão das Escrituras hebraicas como história fidedigna, não como Escritura. Terceiro, o comentário de que “ninguém ousou acrescentar, retirar ou alterar uma única sílaba que seja” não encontra sustentação histórica, pois é muito improvável que Josefo não estivesse a par das múltiplas discrepâncias textuais comuns às versões hebraica, grega e aramaica das Escrituras hebraicas em circulação no séc. I. Os frequentes exageros de Josefo, especialmente em defesa do judaísmo, defesa que evidentemente constitui o contexto de Contra Apião, levaram alguns a se perguntar se é possível confiar nele. Em geral, Josefo é confiável nas áreas da topografia e da geografia da terra de Israel e em questões de economia, mas muitos o consideram um propagandista quando se trata da defesa do judaísmo contra os intelectuais pagãos do seu tempo. É mais provável que o cânone de 22 livros revelasse um desejo seu, mais do que a situação de fato do cânone bíblico da época. Finalmente, o que Josefo sustentava em termos de uma coleção fixa de Escrituras judaicas não constituía unanimidade entre os judeus no resto do império romano no séc. I e seguintes. Embora Josefo não especifique os livros que tem em mente ao dividir o cânone em três ou quatro partes, podemos inferir alguns desses livros – do Gênesis ao Deuteronômio, de Josué a Reis, e os Salmos, ou pelo menos partes dos Salmos. É possível que ele considerasse outros livros, mas o texto acima não os identifica com clareza. Na coleção de Josefo, talvez Rute esteja com Juízes, e Lamentações faça parte de Jeremias, mas não podemos confirmar essas possibilidades a partir dos seus comentários. Essas conjeturas são inferências feitas com base em testemunhos posteriores, quando essas questões interessavam bem mais ao judaísmo e à Igreja cristã incipiente, mas não necessariamente ocupavam o pensamento de Josefo! Devemos observar que os judeus da diáspora não nos oferecem provas de que adotassem as mesmas coleções de Escrituras sagradas judaicas. Numa data já tardia,

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séc. VIII EC, a geniza (nas sinagogas, depósito de manuscritos sagrados antigos, praticamente um “arquivo morto”) em uma sinagoga do Cairo conservava cópias de Tobias e do Eclesiástico, em hebraico e aramaico! Essa descoberta sugere que o cânone bíblico dos judeus rabínicos na terra de Israel e na região oriental da Babilônia não foi aceito imediatamente pelos judeus da diáspora, especialmente porque continuaram a usar a tradução grega da literatura sagrada judaica que incluía inúmeros dos chamados livros apócrifos. Considerando a afirmação de Josefo, segundo a qual a linha sucessória dos profetas foi interrompida com Artaxerxes, filho de Xerxes, que, nas Antiguidades Judaicas (11,184), com base no livro de Ester, ele identifica como Assuero, é óbvio por que ele encerrou seu cânone bíblico em data tão antecipada, mas essa não era a única percepção a respeito da profecia que circulava entre os judeus no séc. I (ver a análise de 4 Esdras 14, abaixo). Para alguns judeus e para os primeiros cristãos, a profecia continuava efetiva e atuante nos sécs. I e II e, por conseguinte, os judeus produziram vários outros livros religiosos sagrados bem depois de alguns daqueles que se acreditava terem sido escritos antes que o Espírito supostamente abandonasse Israel. Essa visão, embora popular entre alguns judeus (ver 1Mc 14,41, c. 140 AEC), não era comum a todos os judeus e certamente não aos primeiros cristãos ou aos residentes em Qumrã. No texto de 1 Macabeus, por exemplo, Simão, da dinastia dos asmoneus (c. 140 AEC), foi escolhido como “chefe e sumo sacerdote para sempre, até que surgisse um profeta fiel”. De onde Josefo conheceria o cânone bíblico, se essa informação não estivesse bastante difundida na sua época? Alguns estudiosos sugeriram que Jubileus 2,23-24 é a primeira menção a um cânone de 22 livros e pode ser a fonte da referência de Josefo em Contra Apião 1,37-43. O texto original de Jubileus foi provavelmente escrito em c. 150 AEC, mas ficou corrompido durante o processo de transmissão. Os textos mais antigos da passagem que chegaram até nós não mencionam os 22 livros. O texto de Jubileus que temos atualmente está assim redigido: Vinte e dois patriarcas desde Adão até Jacó e vinte e duas classes de obras foram feitas até o sétimo dia. Um é bendito e santo, e o outro também é bendito e santo. Um se igualava ao outro com relação à santidade e à bênção. Aos primeiros foi dado o ser para sempre benditos e santos do testemunho e da primeira lei, do mesmo modo que ele havia santificado e abençoado o dia de sábado no sétimo dia.

Várias versões de Jubileus 2,23-24, inclusive o texto etíope, subsistiram à Antiguidade. A forma mais antiga de que dispomos, porém, não contém a referência a uma coleção de 22 livros sagrados. A referência pode ter sido uma inserção feita numa época em que o conceito de um cânone de 22 livros havia se estabilizado em Israel. Mas a tradição de 22 livros era bem conhecida entre os Padres da Igreja, que a mencionaram com certa frequência. Por exemplo, segundo Eusébio (Hist. Ecles. VI,26,1.2), Orígenes citou-a. Se a tradição fosse uma invenção do séc. I tardio, seria fácil ver como uma referência a ela por parte de Josefo produziria um forte impacto sobre os escritores cristãos do séc. IV, os quais tinham grande respeito por Josefo e

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continuaram a publicar as obras dele. Ao que parece, essa tradição perdurou por mais tempo na Igreja do que entre os judeus rabínicos. É provável, portanto, que o cânone de 22 livros não tenha começado com Josefo e que Josefo pode ter se baseado em uma forma anterior do texto de Jubileus, mas isso não é óbvio nem certo. Seja qual for a origem desse cânone de 22 livros, então, é difícil, pelas evidências disponíveis, afirmar que o cânone de Josefo fosse tão difundido e inviolável quanto ele afirma. Por exemplo, Epifânio (315-403 EC), em seu Sobre pesos e medidas, menciona o número sagrado 22 que circulava na tradição em Israel e inclui a referência aos 22 livros das Escrituras hebraicas. Mas, repito, a forma mais antiga desse texto de Qumrã não inclui os 22 livros. 10. 4 Esdras 14,22-48 (ou 2 Esdras). 4 Esdras é um livro judaico pseudônimo escrito em torno de 90 EC e mais tarde interpolado por cristãos que provavelmente acrescentaram os capítulos 1-2 e 15-16. O autor descreve como Esdras recuperou milagrosamente as Escrituras de Israel na volta do exílio na Babilônia, um processo que envolveu a ação de Deus inspirando os escribas a escrever os livros que haviam sido perdidos. Os livros mencionados chegavam a 24, que podiam ser lidos por todos os judeus, mas havia uma coleção de 70 escritos sagrados reservados aos “sábios”. A passagem é a seguinte: 22“Por isso, se encontro graça diante de ti, envia-me o teu santo espírito para que eu escreva tudo o que aconteceu no mundo desde o princípio, os preceitos que foram estabelecidos em tua Lei, para que o povo encontre o caminho e aqueles que quiserem, possam viver nos últimos dias”. 23Ele [Deus] respondeu-me e disse: “Vai, reúne o povo, e dize-lhes que não te procurem por quarenta dias. 24Prepara-te muitas tábuas para escrever, e leva contigo Saraja, Dabria, Selemia, Etã e Asiel, esses cinco, pois sabem escrever com rapidez. 25Em seguida, volta para este lugar; eu acenderei em teu coração a lâmpada do entendimento, que não se apagará até terminares o que estás para escrever. 26Ao concluíres, divulgarás algumas coisas, e outras entregarás em segredo aos sábios; começarás a escrever amanhã, a esta hora”. 27Procedi, então, conforme ele determinou, reuni todo o povo, e disse: 28“Ouve estas palavras, ó Israel. 29Nossos antepassados viveram como estrangeiros no Egito, depois foram libertados 30e receberam a Lei da vida, mas não a cumpriram, do mesmo modo que vós também a transgredistes depois deles. 31Em seguida lhes foram dadas terras em Sião, mas vós e vossos antepassados cometestes iniquidades e não seguistes os caminhos ordenados pelo Altíssimo. 32E como ele é um juiz justo, no devido tempo tirou-lhes o que lhes havia dado. 33E agora estais aqui, e os vossos filhos estão longe. 34Se, então, governardes vossas mentes e disciplinardes vossos corações, continuareis vivos, e após a morte obtereis misericórdia. 35Pois após a morte virá o julgamento, quando viveremos novamente; e então os nomes dos justos serão revelados, e as ações dos ímpios serão expostas. 36Mas ninguém venha a mim agora, nem me procure por quarenta dias”. 37Reuni, assim, os cinco homens, como ele me ordenou, e nos dirigimos para o campo, lá permanecendo. 38No dia seguinte, uma voz me chamou, dizendo: “Esdras, abre tua boca e bebe a bebida que te ofereço”. 39Abri a boca e uma taça transbordante me foi oferecida; estava cheia de um líquido como água, mas sua cor era de fogo. 40Tomei-a nas mãos e dela bebi; depois de beber, meu coração se encheu de entendimento e a sabedoria se expandiu em meu peito, pois meu espírito

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conservou sua lembrança, 41e minha boca estava aberta e não estava mais fechada. 42Além disso, o Altíssimo deu entendimento aos cinco homens, e por turnos eles escreveram o que era ditado, usando caracteres que não conheciam. Eles permaneceram durante quarenta dias; escreviam durante o dia e comiam seu pão à noite. 43Quanto a mim, eu falava durante o dia e não silenciava à noite. 44Assim, durante os quarenta dias, noventa e quatro livros foram escritos. 45E quando os quarenta dias terminaram, o Altíssimo dirigiu-se a mim, dizendo: “Divulga os vinte e quatro livros que escreveste por primeiro, e deixa que os dignos e os indignos os leiam; 46mas reserva os setenta escritos por último para entregá-los aos sábios entre o teu povo. 47Pois neles está a fonte do entendimento, o manancial da sabedoria e o rio do conhecimento”. 48E eu assim fiz (NRSV).

Esse texto mostra que, no fim do séc. I EC, vinte e quatro livros da Bíblia hebraica, de identidade indefinida, eram reconhecidos como sagrados. Esse é um número sagrado que reflete participação divina, no mínimo, mas a mesma passagem deixa claro que havia “setenta” outros livros sagrados revelados por Deus a Esdras e a seus escribas, também de identidade imprecisa para nós, mas tidos como inspirados e autorizados, mesmo que reservados para os “sábios”. O fato de terem sido necessários “quarenta dias” (14,36) para concluir a tarefa de transcrição dos livros sagrados perdidos, inclusive dos 70, e de que Deus transmitiu todos eles (4 Esd 14,19-48) a Esdras e a seus escribas, comprova a crença e a aceitação da sacralidade dessa coleção. A indicação “quarenta dias” tem inúmeros precedentes bíblicos, todos relacionados com a atividade de Deus (dias do dilúvio na terra, Moisés no monte Sinai, Elias no monte Horeb, a tentação de Jesus, aparições de Jesus em Atos 1 etc.). O número “setenta” para os livros especiais para os sábios remete ao seu caráter sagrado e à edificação espiritual para os leitores. Caso não fossem aceitos como Escritura, ou inspirados, o autor de 4 Esdras diria que Deus os transmitiu a Esdras e a seus escribas (14,22-26)? A afirmação de que esses livros deviam ser dados somente aos sábios, “pois neles [nos setenta livros] está a fonte do entendimento, o manancial da sabedoria e o rio do conhecimento” (14,47), comprova claramente sua autoridade. Muitos cristãos primitivos deram boa acolhida a 4 Esdras em suas coleções sagradas e inclusive acrescentaram-lhe passagens importantes, transformando partes de sua lenda em texto cristão. Isso seria motivo de grande estranheza, dizem alguns estudiosos, se o conteúdo do cânone bíblico judaico tivesse sido definido bem antes do tempo de Jesus e se Jesus tivesse dado aos seus discípulos uma coleção fechada de Escrituras sagradas. 11. Melitão. Melitão era bispo de Sardes (c. 170-180 EC) quando um membro da sua igreja o questionou a respeito dos livros sagrados aceitos pela Igreja. Estranhamente, Melitão não soube responder, por isso viajou para a terra de Israel em busca da resposta. É inconcebível o bispo de uma grande igreja no fim do séc. II não conhecer o conteúdo das Escrituras sagradas se sua composição fosse conhecida no seu tempo e definida bem antes do tempo de Jesus. Mais tarde (c. 320-330 EC), Eusébio conta essa história e relaciona os livros da coleção descoberta por Melitão em sua viagem. A lista não inclui Ester e, estranhamente, menciona o apócrifo

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Sabedoria de Salomão. A relação de livros é a seguinte: Tendo ido, portanto, ao Oriente, depois de chegar ao lugar onde a Escritura foi anunciada e cumprida [Palestina], tive exato conhecimento acerca dos livros do Antigo Testamento. Levantei uma lista, que te envio. São os seguintes os seus nomes: de Moisés, cinco livros: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio; Josué, filho de Nun, Juízes, Rute; quatro livros dos Reis, dois livros dos Paralipômenos; Salmos de Davi; Provérbios de Salomão e sua Sabedoria; Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Jó; profetas: Isaías, Jeremias, e os Doze num só livro; Daniel, Ezequiel, Esdras. Dessas obras extraí alguns trechos, que distribuí por seis livros (Eusébio, Hist. Ecles. IV,26,14).

Um dos méritos desse texto é que ele revela a fluidez das Escrituras do Antigo Testamento no fim do séc. II. Novamente, se essas questões estivessem resolvidas para judeus e cristãos no tempo de Jesus, ou antes dele, e caso as Escrituras da época se assemelhassem às que atualmente compõem a Bíblia hebraica e o Antigo Testamento protestante, teríamos de concluir sem justificativa que os discípulos de Jesus ou seus sucessores perderam essa coleção de vista. Isso é mais inexplicável do que dizer que o Antigo Testamento cristão e a Bíblia judaica ainda não haviam sido concluídos e que certa variabilidade continuou afetando a coleção bem além do tempo de Jesus. Se havia uma coleção definida e de parâmetros bem conhecidos no séc. I, como sustentam alguns estudiosos, então temos de descobrir algum modo de explicar como ela se perdeu nos anos seguintes e por que a Igreja nunca concordou sobre a composição do seu cânone do Antigo Testamento. Referir-me-ei novamente a esse texto no próximo capítulo. 12. b. Baba Bathra 14b. Um texto rabínico, b. Baba Bathra 14b, é a primeira tradição judaica que identifica especificamente os livros da Bíblia hebraica. Essa tradição surgiu na Babilônia e é normalmente considerada um baraita (pl., baraitot), termo aramaico que significa “externo”, referindo-se a um texto (ou tradição) tanaítico judaico (c. 10 AEC a c. 200 EC) não incluído na Mixná.9 O Talmude babilônio,10 em geral, confere autoridade especial aos baraitot, igual à da Mixná. O texto Baba Bathra 14b foi escrito na Babilônia em algum momento em torno da metade (provavelmente) até o fim do séc. II EC (menos provavelmente). Significativamente, essa tradição não foi incluída na Mixná, o que sugere que, até o fim do séc. II EC, ela ainda não havia alcançado projeção suficiente entre os judeus rabínicos em Israel nem na Babilônia para merecer essa inclusão. Apenas o Talmude babilônio preserva a passagem aqui transcrita. Enquanto alguns estudiosos atribuem ao texto uma data anterior à época de Josefo (fim do séc. I EC), outros mais cautelosos dizem que ele foi escrito em data não posterior a 200 EC. Esse texto é uma referência muito importante porque é o primeiro a identificar claramente a coleção tripartida e os 24 livros sagrados que formavam a Bíblia hebraica. Ele não menciona a Lei, mas esta é claramente subentendida no contexto. Sua redação é a seguinte: Nossos rabinos ensinaram: a ordem dos Profetas é a seguinte: Josué, Juízes, Samuel, Reis, Jeremias, Ezequiel, Isaías e os doze Profetas Menores. Examinemos isso. Oseias apareceu primeiro [entre os Profetas Menores], como está escrito (Os 1,2): Deus falou primeiro a Oseias. Mas Deus realmente falou primeiro a Oseias? Não houve muitos profetas entre Moisés e Oseias? Rabino Johanan (250-

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290), porém, explicou que ele foi o primeiro dos quatro profetas que profetizaram naquele período, ou seja, Oseias, Isaías, Amós e Miqueias. Não deve então Oseias vir em primeiro lugar? – Como sua profecia está com as profecias de Ageu, Zacarias e Malaquias, e Ageu, Zacarias e Malaquias vieram no fim dos profetas, ele é contado com eles. Mas por que ele não deve ficar separado e ser posto em primeiro lugar? – Vejamos novamente. Isaías foi anterior a Jeremias e Ezequiel. Então, por que não deve Isaías ser posto em primeiro lugar? – Porque o livro de Reis termina com um registro de destruição e Jeremias fala o tempo todo em destruição; Ezequiel começa com destruição e termina com consolação; Isaías está repleto de consolação; por isso colocamos destruição com destruição e consolação com consolação. [Nossos rabinos ensinaram:] A ordem dos Hagiógrafos é Rute, Salmos, Jó, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Lamentações, Daniel e o Manuscrito de Ester, Esdras e Crônicas. Agora, considerando que Jó viveu nos dias de Moisés, o livro de Jó não deveria vir primeiro? – Não começamos com um relato de sofrimento. Mas também Rute não é um relato de sofrimento? – É um sofrimento com uma continuação [de felicidade], como Rabino Johanan disse: Por que seu nome era Rute? – Porque dela descendeu Davi que glorificou o Santíssimo, bendito seja ele, com hinos e louvores. Quem escreveu as Escrituras? – Moisés escreveu seu próprio livro e a porção de Balaão e Jó. Josué escreveu o livro que leva o seu nome e [os últimos] oito versículos do Pentateuco. Samuel escreveu o livro que tem seu nome e o livro de Juízes e de Rute. Davi escreveu o livro dos Salmos, nele incluindo a obra dos dez anciãos, ou seja, Adão, Melquisedeque, Abraão, Moisés, Emã, Iditum, Asaf e os três filhos de Coré. Jeremias escreveu o livro que leva seu nome, o livro de Reis e Lamentações. Ezequias e seus colegas escreveram (YMSHQ mnemônico) Isaías, Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes. Os Homens da Grande Assembleia escreveram (QNDG mnemônico) Ezequiel, os Doze Profetas Menores, Daniel e o Manuscrito de Ester. Esdras escreveu o livro que leva seu nome e as genealogias do livro de Crônicas até a sua época. Isso confirma a opinião de Rab (220-250), uma vez que Rab Judá (250-290) disse em nome de Rab: Esdras não partiu da Babilônia para ir a Eretz Yisrael até ter escrito sua própria genealogia. Quem então o terminou [o livro de Crônicas]? – Neemias, filho de Hacalias.

Os livros identificados nessa passagem constituem o cânone bíblico que finalmente alcançou o estado canônico no judaísmo rabínico, provavelmente antes na Babilônia, onde teve origem, e depois na terra de Israel. No entanto, mesmo após a redação desse texto, rabinos debateram e discutiram sobre os livros “marginais” do cânone bíblico: Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Ester, Ezequiel e Provérbios. Embora os antigos rabinos jamais tenham questionado o caráter sagrado desses escritos, tudo indica que houve polêmicas em torno da sua inclusão na coleção de livros sagrados judaicos. É preciso também observar nesse contexto que alguns rabinos aceitaram inicialmente Sabedoria de Jesus Ben Sirac como Escritura sagrada, só mais tarde rejeitado. Com relação ao texto Baba Bathra acima, ele não teria sido mencionado na Mixná porque no séc. II não obtivera apoio suficiente ou fora generalizado entre os judeus nem na terra de Israel nem na Babilônia, pelo menos não antes do fechamento e codificação da Mixná no fim do séc. II EC e início do séc. III. Ninguém pode contestar que alguns sábios do séc. II aceitaram como cânone a lista fixa de livros sagrados incluída em Baba Bathra 14b, apesar de não termos provas de que outros judeus tenham chegado às mesmas conclusões. No séc. II, esse baraita específico, com toda probabilidade, era a visão de uma minoria entre os judeus ou simplesmente um assunto sem importância na época. No séc. II EC, com exceção da relação de livros do Antigo Testamento de Melitão (ver acima), semelhante, mas não idêntica, este baraita não encontra paralelos.

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OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO E O CÂNONE DO ANTIGO TESTAMENTO Há mais de 60 anos, especialistas em Bíblia e a comunidade internacional têm conhecimento da importantíssima descoberta de uma coleção de antigos manuscritos ocorrida nas proximidades de uma comunidade de judeus essênios localizada em Qumrã, na margem noroeste do mar Morto. Essa coleção é normalmente identificada com o nome Manuscritos do Mar Morto, embora em tempos mais recentes os peritos estejam estudando concomitantemente a esse corpus a descoberta de várias outras coleções menores de manuscritos antigos aproximadamente da mesma época e arredores. Por isso, estudiosos dessas outras descobertas judeias em geral identificam essas coleções com o nome “Descobertas do Deserto da Judeia” (ou DDJ), porque incluem achados mais recentes em Massada, Nahal Hever e Muraba’at, que também refletem a condição de textos sagrados entre os judeus do tempo de Jesus e antes dele. Quanto aos Manuscritos do Mar Morto descobertos entre 1947 e 1952 em 11 cavernas nas proximidades de Qumrã, quase três quartos dos mais de 900 manuscritos descobertos são de textos que não foram incluídos na coleção posterior de livros que constituem a Bíblia hebraica ou o Antigo Testamento cristão protestante. O número exato de textos encontrados em Qumrã continua impreciso, pois muitos manuscritos encontram-se em estado fragmentário, alguns podendo conter um ou vários livros; por isso, ainda não é possível obter-se uma precisão maior. Dos aproximadamente 900 ou mais livros, somente em torno de 200 são cópias de livros bíblicos. Os demais são cópias de livros não canônicos. Sobre que bases podemos dizer que as coleções mais antigas relacionadas acima não continham nenhum desses chamados livros não canônicos? Exceto nos dois casos de Melitão de Sardes e de b. Baba Bathra 14b, mencionados acima e ambos com origem no séc. II EC, não temos ideia do que as coleções mencionadas na seção anterior continham. Como o número “vinte e quatro” é usado em referência aos livros sagrados no texto de 4 Esdras 14,22-28, citado acima, podemos imaginar que alguns judeus, a exemplo de Josefo (Contra Apião 1,43-47), concordavam com relação à composição dos seus livros sagrados, não obstante o estado dos outros “setenta” livros na passagem de 4 Esdras não ser claro, mas certamente não desprezível. Historicamente, Melitão e os textos do Baba Bathra são os primeiros a identificar claramente os livros específicos incluídos nas Escrituras judaicas e no Antigo Testamento cristão. Importante aqui também é que eles identificam em suas coleções livros semelhantes, mas não exatamente idênticos. Os outros livros não canônicos descobertos em Qumrã e arredores e inseridos pelos essênios em coleções sagradas, muitas vezes colocados lado a lado com livros canônicos nas cavernas próximas, recomendam cautela na identificação dos livros que faziam e dos que não faziam parte de uma Escritura sagrada. Inversamente, porquanto fossem descobertos 200 fragmentos de livros do Antigo Testamento nas

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proximidades de Qumrã, inclusive de todos os livros do Antigo Testamento com exceção de Ester, esse fato não exclui a importância dos mais de 700 fragmentos de livros que não foram incluídos no cânone da Bíblia hebraica. Em que bases podemos afirmar que nenhum dos últimos foi incluído em qualquer das coleções mencionadas na seção anterior? Embora não seja inadequado, estamos diante de um argumento do silêncio, pois simplesmente não sabemos o que havia nas coleções anteriormente mencionadas. Do mesmo modo, não há nada que sugira que os livros sagrados reverenciados pelos Terapeutas no Egito sejam exatamente os mesmos que hoje compõem o cânone da Bíblia hebraica ou do Antigo Testamento protestante. Os estudiosos da Antiguidade às vezes têm lapsos de lógica inexplicáveis nesse aspecto, e por isso precisamos ser ainda mais cautelosos. Simplesmente não sabemos o que havia nas coleções anteriores, mas estamos cientes dos livros que fazem parte dos Manuscritos do Mar Morto e das outras descobertas no deserto da Judeia. A maioria desses livros foi levada de outros lugares para Qumrã e somente alguns deles podem ser considerados sectários, isto é, produzidos especificamente pelos judeus essênios em Qumrã. Se procederam de outros lugares, é provável que outros judeus no tempo de Jesus na terra de Israel conhecessem essa literatura e a considerassem importante o bastante para produzir diversas cópias. Como alguns cristãos também conheciam e usavam essa literatura, é provável que tenhamos de postergar a ideia de um antigo cânone bíblico corrente entre os judeus no tempo de Jesus. Os manuscritos lá copiados datam de aproximadamente 150 AEC a 68 EC, mas alguns podem ser ainda mais antigos, sendo levados a Qumrã pelos essênios. Com as exceções de Josefo (Contra Apião) e do texto do Baba Bathra 14b, nada nos textos acima citados sugere uma coleção fechada ou fixa de Escrituras sagradas entre os judeus no séc. I EC ou antes; e esses mesmos textos tampouco identificam o que suas coleções continham. Quem deseja encontrar um cânone bíblico fechado entre os judeus no séc. I, durante ou antes do tempo de Jesus, deve lembrar a máxima judiciosa do erudito judeu, Jacob Neusner, que ao longo dos anos provoca seguidamente os estudiosos da matéria com as palavras: “O que você não consegue mostrar, você não sabe!” Pesquisadores observaram corretamente que, com exceção de Ester e Neemias, foram encontrados em Qumrã todos os livros do Antigo Testamento, e apenas um dos apócrifos (Tobias). É falacioso, porém, tirar daí conclusões a respeito da composição da Bíblia hebraica, de data mais recente. Muitos outros livros foram lá encontrados e é possível haver justificativas para a ausência de Ester. Como Esdras e Neemias em geral circulavam em um único livro, e como a cópia de Esdras encontrada é fragmentária, não podemos saber ao certo se Neemias foi excluído intencionalmente. Do mesmo modo, somente um pequeno fragmento de Crônicas foi descoberto em Qumrã. Seguindo o critério do professor de Harvard, Frank More Cross, também poderíamos dizer: “Uma traça faminta a mais, e Crônicas também não teria

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subsistido”. Nenhum estudioso dos Manuscritos do Mar Morto afirma que foram encontrados todos os livros originalmente depositados nas grutas em Qumrã, nem tampouco que todas as grutas foram descobertas, apesar das extensas escavações feitas na região. Poderia existir uma “gruta 12” (ou mais), que talvez venha a ser descoberta um dia e possivelmente contenha muitas outras surpresas, mas estamos longe da certeza de que a coleção que hoje constitui os Manuscritos do Mar Morto seja tudo o que estava lá originalmente. De modo geral, manuscritos ou fragmentos de manuscritos são postos à venda no mercado internacional, muitos deles oriundos das adjacências de Qumrã. Nos últimos anos, inúmeros manuscritos importantes foram vendidos e provavelmente serão publicados num futuro próximo. Embora não tenhamos o quadro completo de todos os livros guardados em Qumrã e arredores no séc. I, os manuscritos descobertos nas grutas que conhecemos nos levam a uma história diferente do que antes se acreditava a respeito da composição das Escrituras judaicas no tempo de Jesus. Alguns outros documentos encontrados em Qumrã ou arredores são os seguintes: Documento de Damasco (CD), Manual da Disciplina (1QS), Regra Messiânica (1QSa), Livro das Bênçãos (1QSb), Rolo da Guerra (4QM), Hinos (Hodayot), Gênesis Apócrifo e Rolo do Templo. Além desses, fragmentos de Sirac, Epístola de Jeremias, Jubileus, 1 Enoc e Testamentos dos Doze Patriarcas. A variedade de literatura lá descoberta sugere que não é possível chegar a conclusões sólidas sobre os limites das Escrituras judaicas naquele tempo – nem se a coleção sagrada era consideravelmente maior do que aquela obtida mais tarde no judaísmo e no cristianismo. Os livros não canônicos descobertos em Qumrã que não foram mais tarde incluídos na Tanak11 ou no Antigo Testamento protestante aparecem ao lado dos livros bíblicos, com pouca ou nenhuma distinção. Alguns livros bíblicos lá encontrados foram escritos com um alfabeto hebraico mais antigo (em geral chamado “paleo-hebraico”, ou o estilo de escrita hebraica antiga antes da adoção da escrita “quadrática” aramaica que os judeus trouxeram da Babilônia). Essa foi a forma preferida para alguns livros bíblicos, especialmente os da Lei (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), mas apenas 12 dos livros descobertos em Qumrã estão nessa forma. Esses 12 textos paleo-hebraicos foram também copiados com maior cuidado, sugerindo corretamente que lá os livros da Lei tiveram prioridade sobre os demais. É essa a forma usada na passagem 4QMMT, citada acima, mas, em geral, não há diferença na escrita entre os outros livros da Bíblia hebraica e os chamados livros não bíblicos. Afora isso, é difícil distinguir livros bíblicos de livros não bíblicos entre os Manuscritos do Mar Morto. O mais provável é que, para aquela comunidade, todos esses textos constituíssem literatura sagrada. Nada do que foi descoberto em Qumrã sugere que os residentes adotassem um cânone dividido em três partes ou três coleções de textos sagrados judaicos (Lei,

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Profetas e Escritos). O mais próximo disso que temos no séc. I está no Evangelho de Lucas, na passagem em que Jesus, depois da ressurreição, aparece aos discípulos e diz: “São estas as palavras que eu vos falei, quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44, BJ). Esse Evangelho pode ter sido escrito já por volta de 65-70 EC e pode sugerir o surgimento de uma terceira parte das Escrituras judaicas naquela época, mas não necessariamente. Não está claro se a última categoria (“Salmos”) inclui todos os livros que mais tarde vieram a ser conhecidos como os Salmos do Antigo Testamento e da Bíblia hebraica. Alguns estudiosos também tentaram fazer “Salmos” nessa passagem referir-se a toda a terceira parte da Bíblia hebraica posterior, ou seja, aos Escritos, mas não há evidências para isso em Lucas ou no cristianismo primitivo. As referências aos “Salmos” ou a “Davi” em 4QMMT, em Fílon (Da vida contemplativa 3,25) e em Lc 24,44 provavelmente se aplicam apenas a “Salmos”, mas não sabemos a quais. Não está claro, porém, se “Davi” se refere a Salmos e não simplesmente aos feitos ou atividades de Davi. Os Evangelhos de Mateus e Marcos indicam que Jesus citou o livro de Daniel (ver, por exemplo, Dn 4,26 em Mt 4,17 e Dn 7,13 em Mc 14,62), e Daniel era considerado parte dos Profetas na Setenta, somente mais tarde, no séc. II EC, passando a constar nos Escritos da Bíblia hebraica. Alguns estudiosos propuseram que, se Jesus se referiu a uma parte dos Escritos (Daniel), ele possivelmente aceitava toda essa seção. Esse argumento só tem valor se pudermos comprovar que os Escritos existiam como coleção fixa no tempo de Jesus, o que até agora ninguém fez. Como observamos acima, essa terceira categoria e seus conteúdos são mencionados pela primeira vez entre a metade e o fim do séc. II, no texto babilônio conhecido como b. Baba Bathra 14b. Não temos evidências de que, ao referir-se aos “Salmos” em Lc 24,44, Jesus conhecia e aprovava todo o restante da literatura que mais tarde foi incluída nos Escritos. Entre os especialistas, há quem sustente que bastava mencionar apenas o livro que introduzia uma coleção mais volumosa para abranger a coleção inteira; novamente, porém, não há evidências disso no Novo Testamento ou no tempo de Jesus. Devemos lembrar que Jesus citou também o Deuteronômio, Isaías e os Salmos. Não há indicação de que “Salmos” incluísse todos os demais livros nessa coleção posterior. Se “Salmos” incluía o restante da terceira parte da Bíblia hebraica, e se esse era o entendimento no séc. I (esses são Se’s com inicial maiúscula e inconsistentes), então se poderia argumentar que Jesus endossava todo o cânone bíblico hebraico. O problema com esse modo de pensar, naturalmente, é que não há provas de que “Salmos”, no séc. I, referia-se a outra coisa além dos Salmos. No tempo de Jesus ou no Novo Testamento, não existem outras referências a três categorias de Escritura sagrada. No séc. I EC, as categorias Lei e Profetas eram as designações mais comuns para as Escrituras sagradas de Israel, não só em Israel, mas também no Novo Testamento, apesar de não ser de todo claro o que continham naquela época.

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UMA AVALIAÇÃO DAS EVIDÊNCIAS Muitos estudiosos sustentam que as Escrituras hebraicas já estavam completas no séc. II AEC, e que essa coleção era aceita por Jesus e pelos primeiros cristãos. Essa tese, porém, não corresponde ao que sabemos a respeito das citações e alusões de Jesus à literatura bíblica e não bíblica. Sabemos que, entre os primeiros cristãos, alguns conheciam diversos escritos judaicos apócrifos e também pseudepigráficos, como no caso de Judas, que cita um deles (Judas 14 citando 1 Enoc 1,10). Curiosamente, em data já tardia, 200 EC, Tertuliano (De Cultu Feminarum 1,3) cita Judas 14 para demonstrar a autoridade escritural de 1 Enoc! Em outras palavras, para Tertuliano, se Judas citou Enoc, este devia ser Escritura! Uma grande dificuldade com a ideia de Jesus ter transmitido aos discípulos um cânone bíblico fixo igual ao nosso Antigo Testamento protestante atual é o uso generalizado de escritos apócrifos e pseudepigráficos no Novo Testamento (revelando conhecimento considerável) e o fato de Padres apostólicos e de outros Padres da Igreja, a exemplo daqueles, citarem frequentemente esses escritos como Escritura. Alguns biblistas explicam esse fenômeno dizendo que os primeiros Padres da Igreja simplesmente perderam o cânone bíblico que Jesus lhes deixou. Como, porém, os primeiros cristãos tendiam a transmitir as tradições de Jesus tanto em forma oral quanto escrita, e como nunca mencionam que Jesus deu a seus discípulos um cânone bíblico e estes nunca lhe atribuem uma coleção assim, é razoável concluir que ele não lhes transmitiu um cânone. Além disso, como não há consistência na ordem dos escritos na terceira divisão da Bíblia hebraica, é difícil sustentar que essa categoria existisse no tempo de Jesus. Do mesmo modo, podemos ver a imprecisão na composição da Bíblia hebraica, ainda persistente no fim do séc. II e início do III, nos debates constantes na Mixná sobre o caráter sagrado do Cântico dos Cânticos e do Eclesiastes (Coélet). Por exemplo, eis como o tratado da Mixná, Yadayim 3,2-5, descreve o que é puro e impuro e como relaciona essa matéria com a controvérsia a respeito dos escritos que são e dos que não são sagrados. Yad. 3,2

A. Tudo o que macula as oferendas torna as mãos impuras, conferindo-lhes impureza em segundo grau. B. “Uma das mãos torna a outra impura”, palavras do rabino Joshua. C. Os sábios dizem: “O que é impuro em segundo grau não torna outra coisa impura em segundo grau”. D. Ele lhes perguntou: “E as escrituras sagradas, impuras em segundo grau, não tornam as mãos impuras?” E. Eles lhe responderam: “Eles não fazem inferências sobre prescrições da Torá a partir de prescrições dos escribas, nem sobre prescrições dos escribas a partir de prescrições da Torá, nem sobre prescrições dos escribas a partir de prescrições dos escribas”.

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Yad. 3,3

A. As fitas, enquanto ainda estão atadas aos filactérios (tefillin), tornam as mãos impuras. B. Rabino Judá diz: “As fitas dos filactérios, quaisquer que sejam as circunstâncias, não tornam as mãos impuras”. Yad. 3,4

A. As lacunas em um rolo, acima ou abaixo, no início ou no fim, tornam as mãos impuras. B. Rabino Judá diz: “O que está no fim não torna as mãos impuras, a não ser que esteja fixado na vareta”. Yad. 3,5

A. Um rolo que foi rasurado e em que permanecem oitenta e cinco letras – B. como a frase: “Quando a arca partia” [Nm 10,35s.] C. torna as mãos impuras. D. Um rolo em que estão escritas oitenta e cinco letras, E. como a frase: “Quando a arca partia”, F. torna as mãos impuras. G. Todas as Sagradas Escrituras tornam as mãos impuras. H. O Cântico dos Cânticos e Coélet [Eclesiastes] tornam as mãos impuras. I. Rabino Judá diz: “O Cântico dos Cânticos torna as mãos impuras, mas há divergências quanto a Coélet”. J. Rabino Yose diz: “Coélet não torna as mãos impuras, mas há divergências quanto ao Cântico dos Cânticos”. K. Rabino Simeão diz: “Coélet está entre as prescrições flexíveis da Casa de Shamai e entre as prescrições estritas da Casa de Hilel”. L. Rabino Simeão b. Azzai disse: “Tenho uma tradição do testemunho dos setenta e dois anciãos, M. no dia em que empossaram Rabino Eleazer b. Azariah na sessão, N. de que o Cântico dos Cânticos e Coélet tornam as mãos impuras”. O. Rabino Aqiba disse: “Santo Deus! Nenhum israelita jamais contestou que o Cântico dos Cânticos torna as mãos impuras”. P. Séculos inteiros não têm tanto valor quanto o dia em que Israel recebeu o Cântico dos Cânticos, Q. pois todas as escrituras são sagradas, mas o Cântico dos Cânticos é a mais sagrada de todas. R. “E se eles debatiam, debatiam somente com relação a Coélet”. S. Disse rabino Yohanan b. Joshua, filho do sogro do rabino Aqiba, segundo as palavras de Ben Azzai: “Realmente debateram, e realmente chegaram a uma decisão” (Neusner, The Mishnah: A New Translation, p. 1126-1127). Devemos também observar que a divisão tripartida que finalmente prevaleceu na

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organização da Bíblia hebraica (Lei, Profetas e Escritos) não se encontra em nenhuma tradução grega das Escrituras hebraicas (a LXX). A Bíblia grega era a Bíblia da maioria das primeiras igrejas cristãs, especialmente das que falavam somente grego. Ela era também usada em mais de 94 por cento das citações do Novo Testamento ou do Antigo Testamento. Como está claro que os primeiros cristãos adotavam as Escrituras judaicas (aquelas comumente citadas como Escritura no tempo de Jesus) como seu Antigo Testamento, é importante saber que eles não aceitavam a divisão judaica em três partes dessas Escrituras. Por quê? Se essa organização era popular entre os judeus no séc. I, quando cristãos e judeus ainda se reuniam, por que os cristãos não a adotavam? Apesar de comunicar uma mensagem diferente daquela transmitida pela ordem e divisão dos livros das Bíblias cristãs, não há nada de errado com a divisão tripartida judaica das Escrituras. Isso é evidente na hipótese de se pensar que, se o cânone bíblico judaico de três partes estivesse estabelecido no tempo de Jesus ou antes, seria estranho as primeiras igrejas não o adotarem. Por que os primeiros cristãos usariam os mesmos livros, mas não as mesmas divisões e sequência de livros, se a ordem na Bíblia hebraica estivesse definida e fosse amplamente aceita na época de Jesus, como sustentam alguns especialistas? Quanto à afirmação de Josefo de que o cânone bíblico estava bem estabelecido e de que qualquer judeu o conheceria e até morreria por ele, não se pode imaginar por que Melitão teria feito uma longa viagem à Palestina especialmente para conhecer o conteúdo do cânone bíblico, quando simplesmente poderia ter atravessado uma rua na sua cidade e perguntado a um judeu local. Evidentemente, ele realizou essa viagem porque não poderia obter em sua própria cidade conhecimento suficiente sobre a composição do cânone das Escrituras hebraicas/Antigo Testamento cristão. Não há evidências de que os judeus que viviam na diáspora seguissem a mesma coleção de textos sagrados adotada pelos judeus rabínicos do séc. II e seguintes. Em data já adiantada, no séc. VIII EC, a geniza em uma sinagoga do Cairo conservava cópias de Tobias e do Eclesiástico em hebraico e aramaico! Esse fato sugere que o cânone bíblico dos judeus rabínicos na terra de Israel e a leste na Babilônia não encontrou aceitação imediata entre os judeus da diáspora, especialmente os que continuaram a usar a tradução grega da literatura sagrada judaica que incluía inúmeros dos chamados livros apócrifos. Se a Igreja tivesse recebido de Jesus um cânone bíblico fechado, seria muito curioso e muito improvável um bispo de uma igreja eminente no fim do séc. II, Melitão de Sardes, não conhecer os livros que formavam sua Bíblia! O fato seria realmente estranho se a questão estivesse resolvida havia muito tempo na Igreja e se essa coleção fechada ou estável de literatura sagrada tivesse sido reconhecida por Jesus e transmitida a seus discípulos. Não seria tão estranho, porém, se a questão do conteúdo das Escrituras do Antigo Testamento cristão continuasse sem solução no tempo de Jesus e ao longo do séc. I, antes que judeus e cristãos se separassem. À luz das evidências acima, tudo indica que a composição do Antigo Testamento

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em seu formato atual não era a composição das Escrituras judaicas no tempo de Jesus. Também é evidente que não ocorreram naquela época discussões a respeito do conteúdo ou composição de um cânone bíblico. Se um cânone bíblico como o que conhecemos hoje tivesse despertado o interesse de Jesus ou de seus primeiros seguidores, parece razoável que pelo menos uma tradição envolvendo seu conteúdo ou algum debate sobre ele teriam sido preservados nas primeiras igrejas. Mas isso não aconteceu. É teoricamente possível que um cânone assim possa ter sido estabelecido tão bem que ninguém jamais pensou em defendê-lo ou discuti-lo, uma tese proposta por alguns especialistas em Bíblia, mas as evidências históricas remanescentes apontam na direção contrária. No próximo capítulo, concentrar-nos-emos no encerramento do cânone do Antigo Testamento. OUTRAS LEITURAS ACKROYD, P. R. e EVANS, C. F. (orgs.). The Cambridge History of the Bible: From Beginnings to Jerome. Vol. 1. Cambridge/Nova York: Cambridge University Press, 1970. AUWER, J.-M. e DE JONGE, H. J. (orgs.). The Biblical Canons. BETL clxiii. Leuven: Leuven University Press, 2003. BARR, J. Holy Scripture: Canon, Authority, Criticism. Filadélfia: The Westminster Press, 1983. BARRERA, J. The Jewish Bible and the Christian Bible. An Introduction to the History of the Bible. Tradução para o inglês de Wilfred G. E. Watson. Leiden, Nova York e Köln: E. J. Brill; Grand Rapids: Eerdmans, 1998. BARTON, J. Holy Writings, Sacred Text: The Canon in Early Christianity. Louisville: Westminster John Knox Press, 1997. ________. How the Bible Came to Be. Louisville: Westminster John Knox Press, 1997. BECKWITH, R. The Old Testament of the New Testament Church and Its Background in Early Judaism. Grand Rapids: Eerdmans, 1985. BRUCE, F. F. The Canon of Scripture. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988. CAMPENHAUSEN, H. von. The Formation of the Christian Bible. Tradução para o inglês de J. A. Baker. Filadélfia: Fortress, 1972. CHAPMAN, S. B. The Law and the Prophets: A Study in Old Testament Canon Formation. Forschungen zum Alten Testament 27. Tübingen: Mohr Siebeck, 2000. CHILDS, B. S. Biblical Theology of the Old and New Testament: Theological Reflection on the Christian Bible. Filadélfia: Fortress Press, 1993. ________. Introduction to the Old Testament as Scripture. Filadélfia: Fortress Press, 1979. CROSS, F. M. From Epic to Canon: History and Literature in Ancient Israel. Baltimore e Londres: Johns Hopkins University Press, 1998. DAVIES, P. R. Scribes and Schools: The Canonization of the Hebrew Scriptures. Library of Ancient Israel. Louisville: Westminster John Knox Press, 1998. ELLIS, E. E. The Old Testament in Early Christianity: Canon and Interpretation in the Light of Modern Research. Grand Rapids: Baker Book House, 1991.

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ENCERRAMENTO DO CÂNONE DO ANTIGO TESTAMENTO

Os judeus rabínicos do séc. II EC e seguintes foram os primeiros a estabelecer limites fixos para a composição de suas Escrituras sagradas. Em pouco tempo, o mesmo processo se desenvolvia entre os cristãos. Isso não quer dizer que todos os judeus ou todos os cristãos de toda parte tomassem as mesmas decisões sobre o conteúdo de suas Escrituras ao mesmo tempo. Pelo contrário, entre os judeus dos primeiros séculos AEC e EC, como também no cristianismo nascente, a fluidez do cânone era evidente. As divergências em torno dos livros que deviam compor as Escrituras sagradas de judeus e cristãos continuaram até os sécs. IV e V. Em anos recentes, constatou-se com mais clareza que as posições dos judeus rabínicos mais tardios sobre a composição da Bíblia hebraica (e do cânone do Antigo Testamento protestante) não refletem as ideias de judeus e cristãos do séc. I. Começaremos com um exame das convicções rabínicas sobre a estruturação das Escrituras hebraicas e concluiremos com uma análise das Escrituras de Jesus e das primeiras igrejas cristãs. O GRANDE DIVISOR: JUDEUS RABÍNICOS E JUDEUS DA DIÁSPORA Como observamos anteriormente, parece ter havido algo semelhante a um “divisor continental” entre os judeus na questão da fixação dos parâmetros da sua coleção sagrada. Os estudiosos vêm argumentando de forma persuasiva que, até aproximadamente o fim do séc. VIII, as Escrituras dos judeus da diáspora continham um número maior de livros do que a Bíblia hebraica rabínica. De fato, as Escrituras dos judeus da diáspora incluíam os livros que faziam parte da LXX, a qual abrangia os livros apócrifos e pseudepigráficos. É exagero concluir que os judeus na terra de Israel não influenciavam os judeus da diáspora, mas estes eram relativamente independentes da sua terra natal. Os judeus da diáspora sabiam que suas Escrituras consideravam a dispersão uma punição pelo pecado (Lv 26,33; Dt 28,63-64; Jr 5,19; 9,15). Os que foram levados de sua terra à força e obrigados a viver em outros lugares teriam sido julgados por Deus ou viveriam no juízo de Deus. Essa perspectiva se reflete também na Carta de Aristeia, em que o rei do Egito pergunta aos sábios da corte como seria possível expressar amor à pátria. A resposta de um deles mostra o que sentia a pessoa banida da própria pátria. Ele diz: “Sabei que é bom viver e morrer na própria pátria. Viver no estrangeiro é motivo de desprezo tanto para pobres como para ricos – ignomínia, como se estivessem no exílio por alguma maldade cometida” (Car. Arist. 249). Os

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judeus da diáspora eram também julgados pelos pecados de seus irmãos que viviam na terra de Israel (ver Tb 1,18; 3; Mc 2,21-24). Cícero, por exemplo, justificou o confisco dos bens dos judeus na Ásia Menor porque seus compatriotas na Judeia lutaram contra Pompeu (Pro Flacco 28,69). Várias passagens da literatura rabínica fazem referência ao juízo de Deus envolvendo os judeus no exílio (ver b. Ned. 32a; b. Ta’na 29a; Lev R. 29,2). Às vezes parece que o banimento e o exílio se deviam à falta de fé desses judeus na promessa divina de bênçãos em sua terra natal. Novamente, a dispersão era algo ruim e vista como consequência dos pecados. Como os que viviam na terra de Israel muitas vezes desprezavam os que viviam no exílio por acreditar que estes enfrentavam o juízo divino, é fácil ver a origem desse desprezo pelos exilados (ver também O Testamento de Levi 10,3-4; O Testamento de Aser 7,2-7; Tb 3,4; Jt 5,18; 2 Baruc 1,2-4; Terceiro Oráculo Sibilino 267-76; Midrash sobre o Salmo 71,4). Todos esses textos refletem a bem conhecida visão judaica de que o exílio era um julgamento de Deus, uma perspectiva que afetava também a atitude dos judeus na terra de Israel com relação aos judeus da diáspora nos territórios ocidentais que não falavam sua língua. Embora questões relativas à circuncisão, à observância da ceia pascal, à obediência à lei e à prática da oração fossem aspectos comuns da atividade judaica tanto no Oriente como no Ocidente nos tempos de Jesus, e por séculos depois dele, os textos sagrados que os judeus reconheciam no Oriente eram em número menor e diferentes depois da destruição de Jerusalém no ano 70 EC. Os que viviam no Ocidente continuaram aceitando durante séculos as Escrituras dos Setenta que continham livros apócrifos e pseudepigráficos, mas esses livros e a própria tradução grega do Pentateuco eram rejeitados por muitos judeus que viviam no Oriente. Pelo fim do séc. II, as palavras a seguir demonstram a rejeição judaica da tradução da Lei para o grego, feita por rabinos mais tardios: “Consta que cinco anciãos escreveram a Torá em grego para o rei Ptolomeu. Esse dia foi tão abominável para Israel quanto o dia em que foi feito o bezerro de ouro, pois a Torá não pode ser traduzida adequadamente” (Massekhet Soferim, 1). Os judeus orientais e os judeus ocidentais ficaram separados pelo idioma e finalmente por inúmeras interpretações das tradições e dos livros sagrados que lhes eram comuns. Essas duas correntes do judaísmo, paralelamente à comunidade cristã primitiva, continuaram existindo depois da destruição do Templo em 70 EC. Judeus orientais e ocidentais continuaram a celebrar a Páscoa e outras tradições presentes nos livros sagrados que lhes eram comuns, mas alguns aspectos da sua fé e a interpretação dessa fé eram diferentes. A tradição oral judaica que foi por fim codificada por Judas, o Príncipe (Judah Ha-Nasi, c. 200-220), não foi traduzida para o grego, o idioma dos judeus ao norte e ao oeste da terra de Israel. Todos os judeus continuaram com suas orações diárias, mas, devido à barreira do idioma entre o leste e o oeste, as orações prescritas na Mixná e nos dois Talmudes no Oriente (por exemplo, Dezoito Bênçãos) não passaram a fazer parte dos hábitos de devoção dos judeus ocidentais. As

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Escrituras dos judeus no Oriente (Israel e territórios situados a leste, em direção à Babilônia) acabaram limitadas àquelas que hoje constituem a Bíblia hebraica, mas pelo menos até a metade para o fim do séc. VIII EC os livros sagrados dos judeus situados a oeste também incluíam livros apócrifos e alguns pseudepigráficos. Sob esse aspecto, os judeus da diáspora ocidental se assemelhavam muito mais aos primeiros cristãos que inicialmente consideravam como Escritura não só os livros da Bíblia hebraica, mas também muitos livros apócrifos e pseudepigráficos. Essa pode ter sido uma contribuição importante para o sucesso dos cristãos em aumentar o número dos primeiros convertidos entre os judeus da diáspora. Como observamos anteriormente, um fator que reflete as diferenças nas Escrituras dos judeus do Oriente e do Ocidente é a descoberta de várias cópias dos livros de Tobias e do Eclesiástico em hebraico e aramaico na geniza (nas sinagogas, depósito de textos sagrados fora de uso) de uma sinagoga do Cairo, nos sécs. IX ao X. Eram poucos os vínculos entre os judeus que viviam na parte oriental e os que viviam na parte ocidental do império romano, especialmente depois da destruição do Templo em 70 EC. O Templo em Jerusalém fora o ponto de convergência e união dos judeus da diáspora do Oriente e do Ocidente com os judeus que viviam na terra de Israel. Depois de sua destruição, essa função primordial deixou de existir. Depois da destruição do Templo, os judeus rabínicos no Oriente voltaram-se especialmente para as tradições orais da Torá que estavam codificadas na Mixná, e os que viviam no Ocidente concentraram-se mais nas Escrituras que lhes haviam sido anteriormente (até 150 EC, ou antes) transmitidas pelos judeus do Oriente. Esses textos sagrados incluíam os livros apócrifos e pseudepigráficos, bem como os livros da Bíblia hebraica, alguns dos quais eram provavelmente os mesmos que os livros não canônicos encontrados nas grutas de Qumrã. O que também reforça a divisão entre Oriente e Ocidente, examinada acima, é que não existem yeshivot (escolas judaicas) conhecidas no Ocidente onde rabinos do Oriente transmitiriam aos judeus da diáspora ocidental os ensinamentos dos sábios rabínicos do Oriente. Chama atenção o pequeno número de comentários na literatura rabínica sobre os judeus do Ocidente. A ORDEM DA BÍBLIA HEBRAICA E DO ANTIGO TESTAMENTO Outro problema difícil relacionado à formação da Bíblia hebraica e do Antigo Testamento diz respeito às diferenças na ordenação dos livros em cada coleção. James A. Sanders (Spinning the Bible) deu uma contribuição positiva para o estudo das origens do cânone bíblico ao analisar as causas dos dois arranjos ou sequências dos mesmos livros sagrados. Essas diferenças são muitas vezes negligenciadas e sua importância ignorada na maioria dos estudos sobre a formação do cânone, para não mencionar na maioria dos seminários teológicos e nas pesquisas acadêmicas atuais. Os livros que compõem as Escrituras do Antigo Testamento cristão, exceção feita à inclusão dos livros apócrifos ou deuterocanônicos nas Bíblias católica e ortodoxa, são

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os mesmos que formam a Bíblia hebraica. No entanto, esses livros estão organizados de forma bem diferente nas coleções judaica e cristã (ver abaixo a relação desses livros, para judeus e cristãos). A ordem ou sequência dos livros é um processo que ocorre mais tarde nessas duas tradições religiosas e surge depois da seleção de vários livros para inclusão nessas coleções. Embora a Lei ou Pentateuco ocupe o lugar predominante em todas as coleções de livros bíblicos, a ordenação mais antiga desses livros é uma realização da Era Comum, e não algo que remonta ao séc. I ou antes. Em outras palavras, o reconhecimento da sacralidade desses livros é um passo anterior à sua inclusão nas duas diferentes Bíblias, mas a posição dos vários livros nessas coleções tem significado importante no modo como essas coleções são interpretadas por suas respectivas comunidades de fé. A Bíblia hebraica (Tanak), por exemplo, começa com os livros da Lei (Torá), seguidos pelos Profetas Anteriores e Posteriores (Nebi’im) e, por último, pelos Escritos (Ketubim). O último grupo (Escritos) começa destacando a piedade individual (Salmos) e termina com o relato que mostra como a história de Israel decaiu desde seus dias de glória do passado. Esses dias chegaram ao apogeu durante o reinado de Salomão (1Rs 10), um reinado, porém, que acabou sendo a causa da destruição da nação, do seu Templo, do cativeiro dos seus líderes na Babilônia, até, por fim, dar-se a reintegração dos judeus em sua terra. A última parte desse cânone, em sua localização atual, parece chamar todo indivíduo à fidelidade pessoal ao Senhor (Javé), mas não aponta de modo significativo ao futuro, a um Reino vindouro, às bênçãos de Deus para seu povo ou a quaisquer outras grandes promessas para a nação de Israel. O apelo é para a fidelidade a Javé, o Senhor. O juízo recaiu sobre a nação por causa da sua infidelidade, e a esperança procede de uma renovação da fidelidade ao Senhor. A atual ordenação da Bíblia hebraica deu-se no séc. II. Mesmo que a Lei e os Profetas (nessa ordem e independentemente do seu conteúdo à época) ocupassem posição de destaque entre os judeus, as circunstâncias instáveis do povo judeu depois de sua trágica derrota em 70 EC e o posterior fracasso da rebelião messiânica de Bar Kokeba contra Roma levaram a uma rejeição ou arrefecimento do fervor messiânico até então presente em Israel. Em meio a esses nefastos acontecimentos, muito pouca coisa dava esperança, alegria ou entusiasmo pela nação judia. Essas são as circunstâncias históricas em que os judeus decidiram realizar a ordenação ou sequenciamento dos livros na terceira parte de sua Bíblia. O que se reflete na estruturação da Bíblia hebraica também se assemelha às circunstâncias que prevaleceram entre os judeus no período pós-70 EC. Diante da destruição da nação, do seu Templo e de muitos de seus líderes, houve novamente uma importante busca da identidade. A linha histórica da Bíblia hebraica começa com Gênesis e termina com 2 Reis, com a derrota das tribos do Norte (Casa de Israel) e das tribos do Sul (Casa de Judá), infligida pelos assírios e pelos babilônios, respectivamente. Muitos judeus foram

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forçados a se exilar de sua terra. Mesmo depois do decreto de Ciro autorizando o retorno dos judeus à sua pátria (532-530 AEC), muitos, se não a maioria, não retornaram. Eles permaneceram na Babilônia e arredores ou então migraram para outras terras como uma comunidade da diáspora, seja na Ásia Menor, Roma, Grécia, Egito ou outros lugares. Por outro lado, o Antigo Testamento cristão estende essa linha do tempo consideravelmente inserindo Rute depois de Juízes e transformando-o em livro histórico. Crônicas é posto imediatamente depois de Reis; e Esdras, Neemias e Ester também são incluídos nessa linha de tempo histórica. Nas Bíblias católica e ortodoxa, essa linha é expandida para incluir Judite, Tobias e 1 e 2 Macabeus. No cânone judaico, os Profetas Posteriores, começando com Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze Profetas Menores, seguem a narrativa histórica para explicar a catástrofe que devastou a nação israelita. Os profetas esclarecem o que aconteceu à nação e por que Israel se encontra em sua condição presente, dadas as antigas promessas de Deus (Gn 12,1-3; 2Sm 7,10-17). Os Escritos, ou a terceira parte da Bíblia hebraica, receberam sua forma final no séc. II EC, sob a influência dos líderes rabínicos, muitos dos quais haviam influenciado as terríveis tragédias recentes que arrasaram a nação em 70 EC e 135 EC. Os Escritos estimulam as pessoas a servir a Deus e, acima de tudo, a ser fiéis a Deus mesmo em tempos difíceis. Os judeus acreditavam que essa era a forma mais apropriada para concluir sua Bíblia sagrada. Dadas as tragédias que haviam assolado a nação em consequência de sua infidelidade, o apelo à obediência fiel à Lei de Deus revestia-se de relevância especial para os judeus do período pós-70 EC. O Antigo Testamento cristão, por outro lado, orientou-se para a futura e multiforme ação de Deus que se manifestaria em breve, acreditavam os cristãos, na atividade de Jesus Cristo. No cânone cristão, a primeira parte do Antigo Testamento, acompanhando a ordem rabínica, contém os livros da Lei (o Pentateuco, que ocupa o primeiro lugar em todos os Antigos Testamentos), seguidos pelos livros históricos de Josué, Juízes, Rute, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas, Esdras, Neemias e Ester. Aos livros históricos seguem os livros poéticos (Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos), e, finalmente, os livros proféticos (os “Profetas Maiores”: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel; e os Doze “Profetas Menores”. Os católicos romanos e os ortodoxos incluem os livros apócrifos ou deuterocanônicos entre esses livros. Para alguns judeus, é lamentável esse agrupamento não dar primazia à Lei, classificando-a em uma categoria própria, e situar a profecia como ápice das Escrituras. A organização cristã dos livros do Antigo Testamento apresenta quatro grandes partes: o Pentateuco, os livros históricos, os livros sapienciais ou poéticos e os Profetas. O Pentateuco tem sempre identificação própria e primazia nas Bíblias cristãs. Daniel, um dos livros dos Escritos, ou terceira parte da Bíblia hebraica, tornou-se um dos Profetas na Bíblia cristã. Os dois livros de Crônicas foram em geral colocados depois dos dois de Samuel e dos dois de Reis, sendo seguidos por Esdras,

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Neemias e Ester. O papel da categoria “Profetas”, ocupando o último lugar no Antigo Testamento cristão, não era tanto explicar as adversidades sofridas pelos judeus, como vemos na Bíblia hebraica, mas sim conduzir à esperança prometida no Antigo Testamento que, conforme acreditavam os cristãos, realizou-se em Jesus Cristo. Concluindo o Antigo Testamento nesse ponto, a Igreja expressava que a literatura profética remetia para a esperança em um novo dia em que os que forem fiéis a Deus alcançarão a bem-aventurança e os que desobedecerem serão julgados. De acordo com esse ordenamento dos livros, esses dias seriam antecipados pela vinda do profeta Elias (Ml 3,1-6.23), que prepararia o povo de Deus para o tempo do Reino futuro do Senhor. Exatamente no livro seguinte da Bíblia cristã, Mateus diz que Elias veio na pessoa de João Batista (Mt 11,7-15) e que Jesus é o prometido que trará o Reino de Deus. O modo como os livros da Bíblia hebraica e da Bíblia cristã são ordenados é muito importante para interpretar o que cada comunidade estava tentando dizer sobre essa literatura e sobre o que seus membros acreditavam que Deus estava fazendo em suas respectivas comunidades de fé. Os cristãos acreditavam que estavam vivendo os últimos dias da realização prometida em suas Escrituras do Antigo Testamento e que as bênçãos da nova era haviam se derramado sobre eles (At 2,17-36). O cânone hebraico, por sua vez, tem uma perspectiva muito mais moderada e está pouco voltado a um futuro esperançoso para a nação. O ordenamento do seu cânone parece indicar que ele não era mais objeto da esperança da nação. Diferentemente do que acontece no Antigo Testamento cristão, os rabinos marginalizaram o fervor messiânico. Para muitos judeus rabínicos, a estabilização dos textos bíblicos no séc. II EC, associada ao surgimento da capacidade tecnológica de aumentar o tamanho do rolo para incluir todos os livros da Bíblia hebraica, favoreceu a evolução do processo de canonização. As circunstâncias foram bem diferentes para as comunidades cristãs, porém, diferenças essas que se refletem na ordenação dos mesmos livros numa sequência diferente. O CÂNONE BÍBLICO DE JESUS E DOS PRIMEIROS CRISTÃOS Praticamente não restam dúvidas de que o componente principal dos primeiros escritos sagrados aceitos pelos primeiros seguidores de Jesus eram a Lei e os Profetas, mas também grande parte – se não tudo – do que os rabinos identificaram mais tarde como Escritos. São muitas as citações de dois terços dessa literatura no Novo Testamento, embora livros como Juízes, Rute e Ester não sejam mencionados e muitos outros pareçam não ter exercido papel relevante no ministério de formação e testemunho das primeiras igrejas. O Novo Testamento contém inúmeras referências à Lei e aos Profetas, ou a Moisés e aos Profetas, como vemos em Mt 7,12 e Rm 3,21. Essas designações são às vezes confusas, porém, como podemos constatar em Jo 10,34, quando Jesus diz: “Não está escrito em vossa Lei”, referindo-se ao Salmo 82.

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Do mesmo modo, também Paulo fala da “lei” (3,19) ao citar diversos Salmos em Rm 3,10-18 (ver também Lc 4,17; Jo 1,45; At 13,27 e 28,23 para referências ao uso da Lei e dos Profetas na primitiva comunidade cristã). Segundo o livro dos Atos, tanto a Lei como os Profetas eram lidos regularmente na sinagoga, não havendo nenhuma menção a uma terceira categoria ou mesmo aos “Salmos” como vimos anteriormente em Lc 24,44, embora Salmos estejam claramente incluídos nas citações das Escrituras constantes de Atos. Por exemplo, de acordo com Atos 13,15: “Depois da leitura da Lei e dos Profetas, mandaram dizer-lhes [a Paulo e Barnabé] os chefes da sinagoga: ‘Irmãos, se tendes alguma palavra de exortação ao povo, falai’” (BJ). Como observamos anteriormente, há apenas uma referência a uma terceira parte das Escrituras no Novo Testamento (Lc 24,44), e mesmo assim não se tem total clareza se ela diz respeito a uma terceira categoria de Escritura, conforme discutem alguns estudiosos. Nessa passagem, a referência à terceira parte das Escrituras é simplesmente a “Salmos”, sem nenhuma especificação ou artigo definido que possa sugerir uma coleção específica ou mais extensa de livros. A constatação no Novo Testamento de inúmeras referências a uma coleção de escritos sagrados em duas partes (Lei e Profetas) e de apenas um versículo que pode se referir a uma terceira parte limitada constituída de Salmos leva-nos a imaginar que não havia na época o reconhecimento generalizado de um cânone bíblico tripartido, mesmo que muitos livros incluídos nessa terceira parte já fossem usados e estivessem inseridos na “Lei e nos Profetas”. Como vimos no último capítulo, mesmo Melitão (c. 180 EC), o escritor cristão mais antigo conhecido a produzir uma lista das Escrituras judaicas que formavam o Antigo Testamento, refere-se a toda a coleção de escritos do Antigo Testamento citando livros que mais tarde foram incluídos na terceira parte da Bíblia hebraica (com exceção de Ester) como a “Lei e os Profetas”. Escrevendo a um “irmão” cristão chamado Onésimo, Melitão descreve o motivo para viajar à terra de Israel com o objetivo de descobrir os escritos que constituíam o Antigo Testamento, como se segue: “Melitão a Onésimo, seu irmão. Saudações. Visto que muitas vezes manifestaste o desejo, inspirado pelo teu zelo relativamente à doutrina, de possuir extratos da Lei e dos Profetas sobre o Salvador e o conjunto da nossa fé, e ainda quiseste conhecer com exatidão o número dos antigos livros e a ordem que seguem, dediquei-me a tal tarefa, uma vez que conheço teu zelo pela fé e tua aplicação ao estudo da doutrina. O amor de Deus sobretudo faz com que o aprecies, enquanto lutas tendo em mira a salvação eterna. Tendo ido, portanto, ao Oriente, depois de chegar ao lugar onde a Escritura foi anunciada e cumprida [Palestina], tive exato conhecimento acerca dos livros do Antigo Testamento. Levantei uma lista, que te envio. São os seguintes os seus nomes: de Moisés, cinco livros: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio; Josué, filho de Nun, Juízes, Rute; quatro livros dos Reis, dois livros dos Paralipômenos; Salmos de Davi; Provérbios de Salomão e sua Sabedoria; Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Jó; profetas: Isaías, Jeremias, e os Doze num só livro; Daniel, Ezequiel, Esdras. Dessas obras extraí alguns trechos, que distribuí por seis livros”. Esses são os fatos a respeito de Melitão (Hist. Ecles. IV,26,13,14. Grifo nosso).

Essa carta nos permite ver que, para a Igreja, não havia um cânone do Antigo Testamento em três partes, antes ou durante o tempo de Melitão, e que tampouco era

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uma divisão consciente para a Igreja depois dessa época. Novamente, Melitão inclui todos os livros da Bíblia hebraica, exceto Ester, e os identifica todos como a “Lei e os Profetas”. Também acrescenta à lista Sabedoria de Salomão. Em termos de autenticidade, devemos dizer que a lista de Melitão apresentada por Eusébio é menos suspeita do que quando Eusébio relaciona os cânones bíblicos de Clemente e Orígenes. Nesses dois casos, Eusébio parece fazer uma compilação dos livros por eles citados em suas obras e concluir que esse era o cânone bíblico deles. No caso de Melitão, ele cita objetivamente uma carta deste. Os autores dos Evangelhos mostram Jesus citando vários Salmos; por exemplo, em Mc 15,34, Marcos indica que Jesus se referia ao Sl 22,1, e provavelmente aos versículos seguintes, e João menciona Jesus citando o Sl 69,10, com relação ao incidente da purificação do Templo em Jo 2,17. Nos Evangelhos, Jesus cita com mais frequência os Salmos do que os demais livros do Antigo Testamento, mas, para os nossos propósitos, teriam Jesus e os primeiros cristãos também recorrido de forma autorizada a outros livros estranhos à literatura veterotestamentária? Por exemplo, teriam recorrido a alguma literatura apócrifa e pseudepigráfica considerando-a Escritura, isto é, imbuída de autoridade? Parece não haver nenhuma dúvida razoável quanto a essa questão, embora muitos estudiosos atuais continuem a negar que isso tenha acontecido. Quaisquer que possam ser as tradições por trás de Contra Apião 1,37-43, 4 Esdras 14,44-47 e Baba Bathra 14b-15a – as três tradições mais importantes que refletem uma coleção mais fixa de escritos sagrados judaicos do fim do séc. I até a metade ou fim do séc. II EC –, o interesse por uma coleção fixa de Escrituras não produziu um impacto evidente sobre os escritores do Novo Testamento. Os livros do Novo Testamento não sugerem nenhum interesse especial em limitar os livros da Bíblia a um número fixo. O que sustenta essa conclusão é o fato de haver muitas referências à literatura não canônica nos Padres da Igreja que com frequência se referem a ela como “Escritura” ou a usam de forma autorizada. Antes de examinar a evidente falta de interesse da Igreja primitiva pela composição de suas Escrituras sagradas, vejamos alguns usos claros de literatura não canônica no próprio Novo Testamento. É provável que, em Rm 1,24-32, Paulo esteja fazendo uso de Sabedoria 14,22-31, e em Rm 5,12-21, ele sem dúvida recorre às ideias presentes em Sabedoria 2,23-24. A questão da canonicidade de Sabedoria parece não preocupar Paulo, mas apenas os argumentos teológicos nela contidos. Em 1Cor 2,9, Paulo cita como “Escrituras” ou a Ascensão de Isaías 11,34 ou um Apocalipse de Elias perdido, derivado de Is 64,3. Judas 14 cita expressamente o livro pseudepigráfico 1 Enoc (1,9). O autor de 2 Pedro também demonstra conhecer 1 Enoc em 2,4 e 3,6. O autor de Hebreus 1,3 evidentemente usa Sabedoria de Salomão 7,25-26, e Tiago 4,5 parece citar uma Escritura desconhecida. Esses usos da literatura não canônica no Novo Testamento, e muitos outros, aparentemente não constituíam motivo de preocupação para Paulo ou

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outros escritores do Novo Testamento. O cerne da literatura bíblica para todos os judeus no séc. I e até mais tarde era a Lei de Moisés. Embora os autores dos Evangelhos, ao narrar sua história de Jesus, citem os Salmos com mais frequência do que qualquer outro livro do Antigo Testamento, a Torá ou Lei de Moisés ainda é a espinha dorsal de qualquer coleção “canônica” adotada no séc. I EC e seguintes, do mesmo modo que o foi muito antes e durante o tempo de Jesus. Nos Padres Apostólicos, sucessores da primitiva comunidade cristã, há muitos usos da literatura não canônica, alguns deles mais eloquentes, inclusive. Observe, por exemplo, que Clemente citou Sirácida 2,11 em 1 Clemente 60,1, Sabedoria de Salomão 12,10 em 1 Clemente 7,5 e Sabedoria de Salomão 12,12 em 1 Clemente 27,5, a que aludiu em 3,4 e 7,5. Em 1 Clemente 55,4-6, tanto Judite 8 como Ester 7 e 4,16 são citados da mesma forma, isto é, como Escritura. 2 Clemente relaciona várias citações de escritos não canônicos desconhecidos, além de uma citação de Tobias 16,4 (ver 11,2-4; 11,7 e 13,2). A Epístola de Barnabé também inclui citações de Sabedoria de Salomão (20,2), de 1 Enoc (16,5), 4 Esdras (12,1) e outras passagens de “Escritura” desconhecida, como vemos em 7,3.8 e 10,7. A Didaqué (c. 70-90 EC), que primitivamente constou de algumas listas canônicas de Escrituras cristãs, mas foi excluída por Atanásio no séc. IV, recorre ao livro Sabedoria de Salomão em 5,2 e 10,3. Em seu Diálogo com Trifão (c. 160), Justino pode estar se referindo à Ascensão de Isaías (ver 120,5), mas baseia seu argumento no livro que os judeus aceitam como canônico. Como Melitão, ele se refere a Gênesis, Êxodo, Levítico, os Reinos (1 e 2 Reis), aos Salmos, Provérbios e cita Jó. Ele menciona os profetas Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel, além dos Doze Profetas Menores e Esdras (ver Diálogo com Trifão 72,1). Também cita, sem mencionar os nomes, Números, Deuteronômio e 2 Crônicas. Isso não necessariamente implica um cânone bíblico fixo, uma vez que ele se dirige a situações específicas no Diálogo, mas seu exemplo é ilustrativo no que se refere à questão da literatura comumente aceita entre cristãos na metade do séc. II. Justino Mártir silencia sobre o Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos e Ester, e esse silêncio pode refletir as dúvidas que existiam sobre esses livros na comunidade judaica e possivelmente também na comunidade cristã no séc. II. Cristãos posteriores podem ter evitado o uso desses escritos porque não atendiam às preocupações específicas da comunidade, a não ser que passassem pelo processo de alegorização ou espiritualização. Anteriormente, comentei que a mera citação de textos não canônicos não necessariamente significa que fossem recebidos como Escritura sagrada ou incluídos num cânone bíblico fixo. A maneira das citações, porém, revela a importância dos escritos na mente dos que os usavam. Não há dúvida de que a vasta maioria das referências e citações em 1 Clemente tem origem na literatura canônica do Antigo Testamento e apenas algumas procedem da literatura do Novo Testamento. Não estou sugerindo que o cristianismo incipiente usasse a literatura apócrifa e pseudepigráfica tanto quanto usava os livros do Antigo

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Testamento. Não é isso. O que estou sugerindo é que essa literatura influenciou os ensinamentos e o desenvolvimento das primeiras igrejas. Vários temas do Novo Testamento têm suas raízes na literatura apócrifa e pseudepigráfica. Pode-se debater como as passagens dos livros não canônicos são citadas ou mencionadas – seja no Novo Testamento, seja nos Padres Apostólicos –, e não temos certeza se existe um argumento específico no Novo Testamento para chamar todos esses documentos de “Escrituras”, mas a questão aqui é que essas referências mostram que não havia uma tradição clara na Igreja sobre a extensão do cânone do Antigo Testamento no séc. I ou II. Judas, citando 1 Enoc 1,9, por certo ilustra a fluidez do cânone bíblico no séc. I EC. Os acréscimos a livros bíblicos que aparecem na LXX, os quais não eram aceitos pelos judeus no séc. II, também reforçam essa conclusão. O Cântico dos Três Jovens foi acrescentado a Daniel, Susana foi usado por Clemente de Alexandria e Orígenes, e Bel e o Dragão (os três fazem parte da LXX) era também aceito por Irineu, Tertuliano e Orígenes. Os acréscimos a Ester mencionados em Josefo são também considerados Escritura por Clemente Romano, Clemente de Alexandria e Orígenes. A Oração de Manassés encontra-se na Didascalia siríaca, do séc. III EC, e nas Constituições Apostólicas (II,22,12-14), como também no Códice Alexandrino do séc. V. Um exame dos Padres Apostólicos mostra conclusivamente que eles recorriam frequentemente à literatura apócrifa e pseudepigráfica do mesmo modo que se serviam dos escritos da Bíblia hebraica. Por exemplo, a única citação explícita no Pastor de Hermas procede do escrito perdido Livro de Eldad e Medad (Visão II,3,4; cf. Nm 11,26). Novamente, esse conjunto de evidências sugere a fluidez da coleção de Escrituras do Antigo Testamento da Igreja primitiva no tempo de Jesus e por um tempo considerável dessa época em diante. OS CÓDICES E O CÂNONE BÍBLICO DA IGREJA PRIMITIVA Uma das peculiaridades da comunidade cristã primitiva é sua preferência pelo códice, desde 100 EC, pelo menos. O códice, que com o tempo substituiu o rolo herdado dos judeus, é o antecessor antigo do livro moderno. O Apocalipse atesta o uso do rolo no séc. I tardio, como vemos na descrição da abertura do rolo com sete selos (Ap 5,1-3; 6,1-17; 8,1-5) e na visão do anjo com um pequeno rolo (10,2). Com o tempo, e provavelmente a partir do início do séc. II EC, a Igreja começou a usar o códice para transcrever e transmitir seus escritos sagrados. Muitas são as possíveis razões para essa decisão; por exemplo, ser o códice compacto, oferecer bastante espaço, facilitar o manuseio, favorecer as consultas, por seu efeito conservador, ou seja, a tendência dos escribas de continuar usando o que sempre usaram, e talvez também outros motivos. Mas nenhuma dessas alegações mais óbvias responde à pergunta de por que os cristãos, mais do que quaisquer outros, preferiram o códice, e não o rolo, para transmitir sua literatura sagrada. Na Igreja primitiva, a prática pode ter começado em Jerusalém, com os cristãos optando por diferentes meios para

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propagar seus textos sagrados, em vez do recurso utilizado pelos judeus (rolos), mas isso é incerto e não temos como comprovar. Também não temos evidências de que os primeiros cristãos usassem o códice por razões econômicas, um fator que muitas vezes se revela no uso de letras muito comprimidas, margens demasiado estreitas ou a frequência de palimpsestos (pergaminhos raspados). A facilidade de manuseio e de transporte, contudo, fazia do códice um recurso valioso para um missionário itinerante, como Paulo. Ele ocupava muito menos espaço e era prático de se transportar numa viagem. Dificilmente podia ser amassado ou danificado a caminho de outra cidade, pois era levado nas costas do mensageiro ou no lombo de uma mula. Confirmando a maior facilidade de transportar livros em formato de códice, Marcial (c. 80 EC), poeta romano, aconselhava seus leitores a usar esse meio se quisessem levar os poemas dele em suas viagens. O códice substituía perfeitamente o pergaminho ou o rolo, era portável e ocupava menos espaço. Falando sobre a facilidade de levar os escritos em tabletes ou “livros”, Marcial escreve: Tu que desejas a companhia dos meus pequenos livros [tabletes] onde estiveres e queres que te acompanhem em longas viagens, compra-os, pois condensam um pergaminho em pequenas páginas. Dispõe os grandes [autores] em estantes; quanto a mim, uma das mãos me contém. Caso não saibas onde estou à venda e perambulas por toda a cidade, seguramente descobrirás o caminho com a minha orientação. Procura Segundo, liberto do erudito Lucêncio, atrás da entrada da Paz e do Fórum de Palas (Epigramas 1,2, versos 1-8).12

Em seus Epigramas, Marcial deu a entender que mesmo obras de grandes poetas veiculavam desse modo, isto é, em tabletes, inclusive Homero (“Homero em cadernos de pergaminho”, 14,184), Virgílio (“Tão pouco pergaminho contém o vasto Marão [Virgílio]”, 14,186), Cícero (“Se esse pergaminho for seu companheiro, imagine-se fazendo uma longa viagem”, 14,188), Lívio (14,190)13 e Ovídio (14,192). Sem dúvida, o códice era mais portável do que o rolo, e pelo fim do séc. II podia conter mais textos do que vários rolos. O comprimento médio desses rolos completos era de aproximadamente 9 metros. Quando o códice passou a ser usado regularmente, talvez o que mais chamou atenção tenha sido a facilidade de consultá-lo, permitindo acesso rápido tanto no ensino como nos debates com adversários. Considerando que Paulo usou o códice, sem dúvida por sua comodidade e portabilidade, e considerando que suas cartas estavam entre os primeiros escritos a serem reconhecidos como “Escritura” em muitas igrejas (2Pd 3,15-16), ele pode ter sido o incentivador do uso desse meio no início do cristianismo. Segundo 2Tm 4,13, Paulo escreve: “Traze-me, quando vieres [a Roma], o manto que eu deixei em Trôade, na casa de Carpo, e também os livros [ta biblia], especialmente os pergaminhos [membranas]”. Quando suas cartas foram coligidas no fim do séc. I, é provável que essa mesma forma de transmissão fosse seguida e repetida. Ela também possibilitou que seus escritos circulassem em um único volume. Embora o códice possa ter sido usado paralelamente ao rolo ou ao pergaminho no cristianismo incipiente para coletâneas

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das palavras de Jesus, provavelmente foi a autoridade das cartas de Paulo que circulavam em livro ou em formato de códice que definiu o modelo a ser adotado pela literatura cristã posterior. Dada sua praticidade de manuseio diário e sua facilidade de transporte, no séc. IV os códices se tornaram a forma habitual utilizada para transmitir todos os escritos cristãos. As etapas iniciais do processo de cópia dos escritos do Novo Testamento, porém, com frequência se caracterizaram por uma qualidade sofrível, não só porque os copistas não tinham consciência plena de que transcreviam Escritura sagrada, mas também porque os primeiros copistas dos escritos sagrados da Igreja eram geralmente inábeis na arte da transcrição profissional. Como alguns especialistas em crítica textual observaram, os primeiros copistas eram em geral “letrados amadores”, incompetentes na delicada arte da transcrição. Na Antiguidade, havia, de modo geral, dois estilos de escrita, o estilo mais literário e o estilo documentário, isto é, menos formal. Esse estilo de escrita inferior ou mais informal era característico da maioria dos manuscritos em papiro antes do séc. IV. No séc. IV, e ao que parece por determinação do imperador Constantino, manuscritos transcritos com maior perfeição, com letras cuidadosamente desenhadas e com espaçamento adequado, foram produzidos em pergaminhos de boa qualidade. Isso nos diz alguma coisa sobre a compreensão que os primeiros cristãos tinham da literatura lida até então em suas Igrejas? Na verdade, não. O fato apenas reflete as condições financeiras da Igreja primitiva e sua incapacidade de pagar a copistas profissionais o valor de mercado para fazer cópias de seus textos sagrados. Os habilitados a exercer essa função tinham vários níveis de competência para a tarefa que se apresentava. Diferentemente do estilo de transcrição muito mais esmerado seguido nas comunidades judaicas, em geral (nem sempre) os cristãos eram bem menos meticulosos nesse quesito até depois do pedido de Eusébio a Constantino para produzir 50 cópias das Escrituras para uso nas igrejas na Nova Roma (Constantinopla). Examinaremos esse pedido mais detalhadamente no Capítulo 7. Os estudiosos divergem sobre as razões que levaram os cristãos a adotar o códice em vez do rolo, mas a facilidade de transporte e talvez, no início, a falta de reconhecimento desses escritos como “Escritura” provavelmente expliquem por que os cristãos começaram a usar o códice no início do séc. II, se não ainda antes. Nessa época, o códice não era comum no resto do mundo greco-romano, mas no séc. IV a maioria dos antigos manuscritos começou a aparecer em forma de códice. Para documentos literários, a substituição em larga escala do rolo pelo códice no império romano começou a ocorrer apenas no séc. IV. Podemos ver que a Igreja primitiva não considerou inicialmente os escritos do Novo Testamento como documentos literários formais, quando constatamos as muitas mudanças textuais feitas nos primeiros séculos. O costume de transcrever os chamados nomina sacra (nomes sagrados) em forma abreviada nesses códices talvez

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sugira a grande veneração da Igreja por eles. Em geral, esses nomes abreviados representavam Deus, Jesus, Senhor e Cristo, mas também incluíam em torno de onze outros termos sagrados. Muitas vezes as transcrições aparecem deste modo: o nome grego Deus (theos), por exemplo, é frequentemente substituído por um simples ths com um pequeno traço sobre a abreviatura. Normalmente as abreviaturas eram uma contração da primeira e da última letras da palavra original. No séc. IV adiantado e seguintes, essas e outras abreviações foram usadas em cópias das Escrituras sagradas cristãs. Elas se encontram, por exemplo, no Códice Vaticano, do séc. IV. Outros termos comuns que foram assim abreviados são os seguintes: espírito, cruz, salvador, mãe, pai, homem, céu, Jerusalém, Davi e Israel. O uso das abreviações pode indicar que a Igreja tinha consciência de que não estava apenas transmitindo textos literários, mas textos religiosos importantes, de grande valor para os cristãos. Normalmente, as abreviações não eram feitas em livros padronizados ou em rolos de qualidade literária, mas quase sempre em tabletes ou cadernos, como o códice. Embora fossem comuns em textos documentais seculares, eram muito raras em textos literários de boa qualidade. Os nomina sacra, portanto, podem indicar o uso prático dos textos cristãos, admitindo que não eram textos de alta qualidade e que talvez não fossem inicialmente valorizados como Escritura sagrada no mesmo nível dos textos do Antigo Testamento. Isso é suposição, naturalmente, uma possibilidade que pode ter certo mérito. Com o tempo, porém, os nomina sacra foram usados em Escrituras sagradas claramente reconhecidas e primorosamente preparadas. Inicialmente, eles eram usados tanto em textos religiosos como não religiosos, mas claramente só em textos cristãos. Mais importante para os nossos propósitos, sem contar o simples uso do códice, é o seguinte: tudo indica que, devido ao lento desenvolvimento do códice, as primeiras igrejas só tiveram condições de reunir todos os livros do Novo ou do Antigo Testamento em um único livro no séc. IV. Nos séculos seguintes, a tecnologia para produzir um códice evoluiu até ser possível incluir todos os livros do Antigo Testamento e do Novo Testamento em um único volume de mais de 1.600 páginas. Quando isso aconteceu, pôde-se ver com mais clareza quais livros tanto do Antigo como do Novo Testamento constituíam as Escrituras sagradas das igrejas. A história que os manuscritos do séc. IV e seguintes contam é, portanto, muito importante para sabermos quais livros eram considerados Escritura nas comunidades onde essas grandes coleções se encontravam e eram modelo para a produção de outras cópias. Pelo fim do séc. II, o máximo que podia circular em um único livro era o cânone dos quatro Evangelhos (em torno de 220 páginas ou 110 folhas escritas na frente [recto] e atrás [verso]). Nos séculos IV e V, quatro códices muito importantes contendo Escrituras sagradas merecem destaque especial. São eles: (1) Códice Sinaítico (a) (c. séc. IV): além da coleção do Novo Testamento que examinaremos mais adiante, o Antigo Testamento também inclui Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico e 1-4 Macabeus. (2) Códice Vaticano (B) (séc. IV): além da

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coleção do Novo Testamento, o Antigo Testamento também inclui Baruc, a Epístola de Jeremias, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Judite e Tobias, mas não os Macabeus. (3) Códice Alexandrino (A) (séc. V): inclui livros de ambos os Testamentos e seu Antigo Testamento também inclui a Epístola de Jeremias, Tobias, Judite, 1-2 Esdras, 1-4 Macabeus, Salmo 151, Sabedoria de Salomão e Eclesiástico; esses livros adicionais estão também incluídos nos vários outros códices com os livros do Antigo Testamento e sem nenhuma distinção entre eles. (4) Códice Ephraemi Syri Rescriptus (C) é um manuscrito do séc. V que contém 209 folhas, das quais 64 são fragmentos ou porções dos livros do Antigo Testamento. Além de livros da Bíblia hebraica, esse manuscrito contém Eclesiástico, Prólogo ao Eclesiástico e Sabedoria de Salomão. Nem todos os livros do Antigo Testamento estão incluídos, mas dada sua condição fragmentária, é difícil estabelecer categoricamente o conteúdo total do manuscrito. O que se pode dizer é que ele continha mais livros do que os que constituíam a Bíblia hebraica ou o Antigo Testamento protestante. O conhecimento de um cânone bíblico fixo só poderia universalizar-se na Igreja depois do séc. IV, quando foi finalmente possível incluir todos os livros sagrados em um único volume. Podemos também observar que, quando isso aconteceu, não encontramos uma ordem coerente dos livros bíblicos nesses manuscritos do séc. IV e seguintes. Foi necessário muito mais tempo para se fixar a sequência de livros, o que só foi possível depois que todos os livros puderam ser reunidos em um só volume. Por exemplo, em alguns dos primeiros manuscritos cristãos, Mateus está junto com Atos. Além disso, alguns livros canônicos às vezes circulavam com livros não canônicos, como no caso do Cântico dos Cânticos, que está amarrado com a Apologia de Aristides. Mais, Acta Pauli (Atos de Paulo) está em grego e atado com o Cântico dos Cânticos e Lamentações em copta, e o Eclesiástico está em grego e copta, e todos estão em um único volume. Isso indica algo sobre a coleção fluida e instável de livros sagrados que circulavam nas igrejas no séc. IV adiantado. O FECHAMENTO DO CÂNONE DO ANTIGO TESTAMENTO CRISTÃO Nos últimos 80 anos, talvez pouco mais, uma das ideias correntes com relação ao encerramento do cânone do Antigo Testamento é que as duas primeiras partes (Lei e Profetas) estavam concluídas antes do tempo de Jesus e provavelmente no início do séc. II AEC, e que a terceira parte, os Escritos, só foi definida ou fechada em um “concílio” de rabinos realizado em Jâmnia (Yavna ou Javneh), uma cidade litorânea ao norte da antiga Gaza, pelo fim do séc. I EC. Alguns estudiosos ainda defendem essa ideia, mas a maioria questiona sua credibilidade. Não há nada na literatura judaica remanescente daquela época que sugira a realização de um concílio em Jâmnia para definir a composição de suas Escrituras sagradas. Com essa posição praticamente abandonada, alguns especialistas raciocinaram que, se a teoria de Jâmnia não se sustentava, a época mais razoável para finalizar a terceira parte da Bíblia hebraica seria uma data anterior a Jâmnia, talvez ainda no

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tempo de Judas Macabeu (c. 165 AEC) ou até antes. No reinado da dinastia selêucida, o rei Antíoco Epífanes (c. 176-163 AEC) obrigou os judeus a venerar os deuses gregos e proibiu-os de oferecer sacrifícios ao Deus hebreu. Entre outras medidas, mandou destruir o(s) livro(s) sagrado(s) dos judeus. Como mencionamos no capítulo anterior, 1 Macabeus narra a história deste modo: “Quanto aos livros da Lei, os que lhes [dos selêucidas] caíam nas mãos eram rasgados e lançados ao fogo. Onde quer que se encontrasse, em casa de alguém, um livro da Aliança ou se alguém se conformasse à Lei, o decreto real o condenava à morte” (1Mc 1,56-57, BJ). Consta que Judas Macabeu, depois de suas vitoriosas campanhas militares contra os exércitos do rei selêucida, recolheu as Escrituras judaicas que restaram e as pôs à disposição de todo Israel. Esse relato baseia-se em Neemias, que teria reunido os livros sagrados em uma biblioteca, com Judas Macabeu seguindo-lhe o exemplo. Essa história está reproduzida acima, Capítulo 3. A coleta de escrituras dispersas e remanescentes realizada por Judas oferece aos estudiosos um momento propício para o fechamento da Bíblia hebraica. No entanto, a primeira passagem citada em defesa dessa posição (1Mc 1,56-57) não diz quais textos sagrados foram destruídos, e a segunda (2Mc 2,13-15) não diz quais textos foram recuperados. É apoiar-se no argumento do silêncio dizer que a coleção de Judas é a mesma que por fim constituiu o cânone bíblico judaico, a Bíblia judaica. Não obstante, alguns estudiosos acreditam que “Lei” nesse texto se refere a todas as Escrituras sagradas judaicas – e há precedentes para essa posição, como vimos acima. Essas passagens não esclarecem o que fazia parte da “Lei” naquele tempo. Não está claro se a terceira parte da Bíblia foi concluída em consequência da ação de Judas Macabeu. É difícil acreditar que a coleção de Judas coincidisse com a coleção da Bíblia hebraica fixada mais tarde, porque outros escritos, como os de Qumrã, continuaram sendo produzidos e circulando na terra de Israel, e eram inclusive citados como Escritura em comunidades de fé judaicas e cristãs primitivas. Se a questão tivesse sido resolvida anteriormente, é muito pouco provável que os judeus e, depois, os cristãos produzissem e recebessem esses livros não canônicos como Escrituras sagradas. No momento, sugerirei que a terceira parte da Bíblia hebraica e a composição do Antigo Testamento cristão não haviam sido concluídas nem antes do tempo de Jesus nem no início do séc. II EC. Para alguns judeus, essa tarefa foi realizada perto do fim do séc. I; para outros judeus rabínicos, ela se encerrou ainda mais tarde. Nesse caso, de modo especial na região da Babilônia, no séc. II; para outros, no início do séc. III EC, e, para um terceiro grupo de judeus, ainda mais tarde. Para os cristãos, o processo de composição das Escrituras do Antigo Testamento pode ter começado no séc. II EC, mas em grande parte só se definiu em algum momento na segunda metade do séc. IV e seguintes. No entanto, apesar dessa provável data para o início do processo, na Antiguidade os cristãos nunca chegaram a uma decisão seja a favor de uma coleção menor (protestante) ou maior (católica e

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ortodoxa) de escritos do Antigo Testamento. É quase certo que inicialmente ficaram na dependência das Escrituras sagradas recebidas dos judeus antes da destruição de Jerusalém, quando os judeus reconheciam como literatura sagrada um número maior de livros do que aqueles que compõem a Bíblia hebraica atual. Como já dissemos, porém, os cristãos nunca concordaram totalmente sobre os livros que pertencem ao seu Antigo Testamento. Se as Escrituras do Antigo Testamento já estavam fixas no séc. I EC, como pretendem alguns estudiosos, por que não existem tradições da Igreja ou da sinagoga que identifiquem essa literatura canônica antes do séc. II tardio (Melitão e b. Baba Bathra 14b)? Será simplesmente porque essas listas só precisaram ser produzidas mais tarde, quando a composição do cânone bíblico se tornou imprecisa nas igrejas, como sugerem alguns especialistas? Se assim fosse, a mesma coisa deveria acontecer com os judeus no séc. I. Mas essas listas só aparecem entre os judeus da metade para o fim do séc. II. Sugerirá esse fato que os judeus também haviam perdido a lista de suas Escrituras sagradas produzidas até então? Parece pouco provável. É mais fácil dizer que as igrejas ou as sinagogas ainda não haviam resolvido o problema. Mais importante, se a questão estivesse definida no tempo de Jesus, ou ainda antes, como é possível haver tantas variações nas listas canônicas dos livros do Antigo Testamento elaboradas pelos cristãos nos séculos IV, V e VI? Para imaginar que os primeiros cristãos tinham um cânone bem definido das Escrituras do Antigo Testamento, precisamos também concluir que gerações seguintes de cristãos perderam esse cânone ou então que era bem diferente do cânone das igrejas atuais. Considerando que não temos um registro completo de tudo o que Jesus disse (observe Jo 20,30), e que o material de que dispomos é muitas vezes específico para situações concretas (em grande parte, as palavras de Jesus são ad hoc, isto é, referemse a situações específicas), como poderemos saber com segurança qual era o cânone bíblico que ele seguia? Até onde sabemos hoje, ninguém perguntou a Jesus quais livros constituíam as Escrituras que ele adotava, e nenhum texto antigo sequer sugere que ele conversava com seus discípulos sobre uma coleção desse gênero. A falta de um consenso nos primórdios sobre os limites dos livros que constituem o cânone bíblico judaico (os livros que “sujam as mãos”) entre os Amoraim – os intérpretes rabínicos da Mixná (séc. III a VI) – é congruente com o fato de que a sacralidade de vários livros da Bíblia hebraica, como Cântico dos Cânticos, Ester, Eclesiastes e Provérbios, e o próprio livro de Ezequiel, ainda era objeto de debate entre alguns rabinos Amoraim em data já adiantada, isto é, sécs. IV e V EC. Embora não saibamos bem como muitos mestres religiosos judeus estavam envolvidos nesses debates, até onde sabemos nenhum rabino tentou resolver a questão recorrendo a uma coleção fixa mais antiga de escritos sagrados. Além disso, a aceitação inicial de pelo menos dois livros não canônicos como literatura sagrada (Eclesiástico e Sabedoria) e sua posterior exclusão são prova de que os rabinos dos sécs. II e III não concordavam totalmente a respeito da sacralidade desses livros (como comprovação desse ponto,

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ver y. Ber. 11b; y. Nazir 54b; Bereshith Rabbah 91,3; Koheleth Rabbah 7,11; b. Ber. 48a). Os debates e divergências em torno dessas questões entre os rabinos mostram que a falta de consenso sobre os livros que compõem a Bíblia hebraica persistiu durante vários séculos mesmo entre eles. Não há evidências de que todos os judeus rabínicos aceitavam a lista de livros incluída no texto b. Baba Bathra 14b logo que ele apareceu, fato comprovado pelas tradições rabínicas. É interessante observar que Melitão, na coleção que menciona (preservada por Eusébio, Hist. Ecles. IV,26,13-14, citada acima), omite Ester, mas inclui Sabedoria de Salomão, sem esclarecer se esses escritos faziam parte do corpus ou não. Se ele omite Ester e inclui Sabedoria, como essa coleção poderia ser fixa, especialmente se ele a recebeu de cristãos influenciados por judeus na terra de Israel no fim do séc. II ou se a recebeu diretamente dos judeus na terra de Israel? Os livros “marginais” continuaram sendo discutidos e debatidos durante um tempo bem maior. É quase certo que os organizadores da Mixná eram os mesmos rabinos que estavam envolvidos na finalização inicial das Escrituras hebraicas, mas, na época em que essas questões estavam sendo discutidas abertamente, fim do séc. II, havia também um movimento para incluir numa coleção sagrada mais ampla não só as Escrituras do Antigo Testamento, mas também a Mixná e eventualmente a Tosefta, Gênesis Rabbah, Levítico Rabbah, os dois Talmudes (Bavli e Yerushalmi) e várias outras interpretações judaicas da Lei. A expansão do cânone baseado na Torá para incluir tanto as Escrituras hebraicas quanto esses outros escritos ocorreu quando o mito da “Torá oral”14 passou a integrar o ensinamento dos sábios. No séc. IV, quando os sábios mencionavam a Torá, não se referiam mais unicamente a um rolo das leis de Moisés, mas sim ao ensinamento tanto escrito como oral revelado a Moisés no Sinai (“a Torá inteira”). Essa Torá incluía, além da Lei, tudo o que os rabinos ensinavam sobre a Lei. Nela também constavam os Profetas e os Escritos (isto é, as Escrituras hebraicas), a Mixná, os dois Talmudes, as várias interpretações das Escrituras, e outros escritos mais. A questão aqui é que os livros sagrados dos judeus estavam se expandindo em tamanho, não reduzindo, embora os apócrifos e pseudepigráficos tivessem sido em grande parte retirados muito antes de suas coleções sagradas. Parece que os compiladores da Mixná, no entanto, não se interessaram muito em limitar ou em expandir sua coleção de escrituras, pois o assunto ocupa muito pouco espaço em suas deliberações no séc. II EC. Embora algumas passagens da Mixná tratem do assunto, Yadayim 3,4-5 (ver texto citado acima), por exemplo, esse fato não representa um debate ou exame aprofundado da questão, e de qualquer modo não se refere a todas as divisões ou livros da Bíblia hebraica, mas apenas ao Cântico dos Cânticos e a Coélet (Eclesiastes). Os compiladores da Mixná, com algumas exceções, não justificaram suas várias prescrições e proscrições para uma vida piedosa com referências às Escrituras hebraicas. Conquanto sejam feitas algumas menções aos

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textos bíblicos, elas não são tantas quantas esperaríamos de pessoas envolvidas com suas Escrituras sagradas. Essa ausência é compensada mais tarde nos dois Talmudes, mas no caso da Mixná não é o que esperaríamos de uma comunidade “disposta a morrer” por suas Escrituras, como se expressara Josefo no passado. Tudo isso mudou, entretanto, quando os Amoraim passaram a fundamentar cada preceito da Mixná nos seus Talmudes com referências às Escrituras hebraicas. Desse modo, os Amoraim demonstraram que tanto a dimensão escrita como a dimensão oral da Torá eram uma só, e que uma não contradizia a outra. É incerto se o cânone hebraico ficou fechado depois da unificação das duas Torás e se essa “Torá inteira” (= Escrituras hebraicas, Mixná, Tosefta, os dois Talmudes e vários midrash) se tornou o cânone do judaísmo. Para alguns mestres rabínicos, a constituição básica da Bíblia hebraica ficou definida provavelmente no séc. II EC tardio, mas não podemos demonstrar se essa definição foi reconhecida por todos os judeus daquela época, seja dentro ou fora da Palestina. Esse processo guarda algumas semelhanças com o que aconteceu na Igreja primitiva. Ao definir suas Escrituras sagradas, também os cristãos viram a necessidade e a importância de acrescentar outros escritos cristãos à sua coleção. Os documentos fundamentais usados em quase todas as primeiras igrejas, especialmente os Evangelhos e as cartas de Paulo, foram suplementados por outros escritos que naquela época, acreditavam os líderes, esclareceriam melhor e aumentariam a compreensão da identidade e da missão da Igreja. Além desses textos, a Igreja continuou valendo-se dos escritos do Antigo Testamento e de vários apócrifos e pseudepígrafos. Não houve debates importantes sobre o conteúdo do cânone do Antigo Testamento na Igreja primitiva, e tampouco sobre o conceito de canonização propriamente dita nos sécs. II ou III EC. Somente o cânone ou “regra de fé” (regula fidei), adotado normalmente para enfrentar as investidas heréticas, era utilizado para resolver os problemas em que as igrejas se viam envolvidas. (Esse assunto será analisado em maior profundidade no Capítulo 6.) Os Padres da Igreja citavam regularmente as Escrituras tanto do Antigo como do Novo Testamento para combater essas heresias e crises, mas sem destacar os livros que tratavam desses problemas. Ao abordar questões relacionadas à natureza e identidade de Jesus Cristo, os Padres da Igreja não dispunham de um rol especial de escritos do Antigo Testamento a que pudessem recorrer e também não se referiam ao conteúdo de uma coleção de Escrituras. O fato de Melitão, bispo de uma importante igreja na Ásia Menor (Sardes) nas últimas décadas do séc. II, não saber ao certo quais livros constituíam seu Antigo Testamento, sugere enfaticamente que essa não era uma questão relevante para a maioria das igrejas da sua época. Curiosamente, é Eusébio que constata pela primeira vez a preocupação de Melitão, no séc. IV. Além disso, como apenas um texto hebraico menciona no séc. II o conteúdo das Escrituras hebraicas (b. Baba Bathra

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14b), é provável que esse assunto não fosse importante nem para o judaísmo rabínico. A ausência de quaisquer polêmicas a respeito da composição das Escrituras sagradas judaicas, tanto antes como imediatamente após o tempo de Jesus, seja na Igreja ou no judaísmo, mostra que essas ideias simplesmente não faziam parte do discurso comum de judeus e cristãos da época. No final do séc. I EC ou início do II e seguintes, alguns judeus empregavam a expressão “sujar as mãos” para se referir à sua literatura sagrada. Nesse período, alguns judeus começaram os debates sobre quais livros “sujam as mãos” ritualmente, isto é, quais textos religiosos são Escritura sagrada. O significado dessa expressão é um tanto obscuro, mas ela se refere aos livros que os judeus consideravam sagrados. Alguns estudiosos sustentam que a expressão se aplica apenas à condição de texto inspirado de um determinado escrito, não à sua condição de texto canônico; mas essa é uma forma de argumentar que não se aplica à natureza da formação ou inspiração do cânone. Em ambos os casos, se uma comunidade acreditava que um escrito havia surgido por inspiração ou intervenção divina, ele era considerado profético, isto é, inspirado. Se fosse aceito como integrante do cânone – um conceito bem posterior –, também era considerado profético ou inspirado por Deus. Fazer distinção entre esses termos nessa etapa de uma indagação sobre o cânone bíblico judaico apenas complica a questão sob análise. “Sujar as mãos” era uma referência à sacralidade dos livros sagrados. Aceitar a propriedade das Escrituras de sujar as mãos era uma forma de aceitar seu caráter sagrado. Aceitar uma obrigação ritual de remover esse resíduo sagrado antes de envolver-se numa atividade mundana era uma forma de admitir sua santidade. Nessa prática cerimonial, a inspiração divina desses livros exteriorizava-se para que todos vissem. Tudo indica que a expressão foi usada pela primeira vez pelo rabino Zacai em um debate com os saduceus (ver m. Yad. 4.6 e também t. Yad. 2.19), mas só se tornou a lingua franca do judaísmo para caracterizar sua literatura sagrada no séc. II EC. A passagem é a seguinte: Os saduceus dizem: “Temos um desentendimento convosco, fariseus, pois dizeis que as Sagradas Escrituras sujam as mãos, ao passo que os escritos de Homero não sujam as mãos”. Rabban Johanan ben Zacai (40-80) explicou: “Nada temos contra os fariseus, a não ser isto: segundo eles, os ossos de um asno são puros, ao passo que os ossos de Johanan, o sumo sacerdote, são impuros?” Eles lhe responderam: “A impureza deles corresponde à sua preciosidade, de modo que nenhum homem faria colheres com os ossos de seu pai ou de sua mãe”. Ele lhes disse: “Assim também as Sagradas Escrituras, sua impureza corresponde à sua preciosidade. Os escritos de Homero, que não são preciosos, não sujam as mãos” (m. Yadayim 4,6. Trad. para o inglês de S. Leiman, Canonization 107108).

Uma explicação bem posterior para a origem da expressão aparece em Shabbath 14a, c. 350-375 EC, onde lemos: E por que os rabinos atribuíram a impureza aos livros das Escrituras? Rabino Mesharshiya disse: “Porque originalmente os alimentos terumá15 eram armazenados perto dos rolos da Torá, pois diziam: ‘Isto é santo e aquilo é santo’. Quando viram que os livros ficavam danificados, os rabinos impuseram-lhes a impureza” (S. Leiman, Canonization 108).

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A expressão “sujar as mãos” é normalmente empregada no séc. II EC e seguintes como qualificação judaica da literatura sagrada. Em m. Yadayim 3,2-5 (citado na seção anterior), temos o texto fundamental para compreender o que essa expressão significa e certo contexto para a aplicação do termo. Naturalmente, esse não é o único lugar onde as palavras são usadas na literatura rabínica, mas é um dos textos mais antigos para entender a expressão, e por ele sabemos, como observamos acima, que no séc. II EC os rabinos debatiam sobre a condição de livro inspirado do Cântico dos Cânticos e do Eclesiastes. Parece que foi somente com a secularização da profissão de escriba, ocorrida no judaísmo nos sécs. II e III EC, que a designação passou a ser usada regularmente para diferenciar os escritos sagrados dos profanos, ou seja, os escritos que “sujam as mãos” e os que não sujam as mãos. Como nos períodos inicial e de formação do judaísmo grande parte dos escritos, se não todos, era considerada sagrada, até o séc. III EC era proibido escrever orações, tradições orais e lendas. Com a suspensão da proibição, surgiu a necessidade de distinguir entre o que era e o que não era sagrado. No judaísmo, isso começa a acontecer no contexto dos escritores tanaíticos do séc. II tardio e seguintes. A mudança de significado da Torá, que do sentido de um rolo do Pentateuco passou a incluir tudo o que os sábios tinham a dizer sobre ela, também começou a ocorrer nessa época. Até o séc. IV, era amplamente aceita a ideia de que a Torá se dividia em duas partes (escrita e oral) quando foi entregue a Moisés. Essa mudança é importante porque expandiu realmente e de modo considerável o cânone hebraico de escritos sagrados. Os cristãos nunca aplicaram a expressão “sujar as mãos” às suas Escrituras sagradas, mas nos sécs. IV e V eles também encontraram termos peculiares para designar o caráter sagrado das suas Escrituras, ou seja, “Escrituras canônicas” ou “testamentárias” [ton endiathekon graphon]” (Eusébio, Hist. Ecles. V,8,1). Falaremos mais sobre isso no Capítulo 7. DECISÕES CONCILIARES DA IGREJA Embora seja comum sugerir que foram os Concílios da Igreja que efetivamente definiram os livros a serem incluídos nos cânones bíblicos cristãos, uma reflexão mais aprofundada sobre a matéria revela que os Concílios reconheceram ou aceitaram os livros que já haviam se destacado devido ao uso entre as várias igrejas cristãs precedentes e contemporâneas. As decisões conciliares relacionadas abaixo expressam o que as comunidades aceitavam. Se os Concílios decidiram sobre a composição do cânone bíblico, assim procederam apenas com relação a livros que estavam muito próximos das coleções que já haviam alcançado considerável aceitação em algumas igrejas, embora não em todas. Essas decisões só foram tomadas depois de um longo processo de reconhecimento nas igrejas, não se caracterizando como decisões unilaterais “de cima”. Mais do que criar cânones bíblicos, os Concílios refletiram as circunstâncias existentes nas diversas regiões geográficas em que foram

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realizados. Suas decisões se fundamentaram no que constituía a visão majoritária na época em que se realizaram. Tudo indica que as igrejas orientais foram mais conservadoras em sua seleção dos escritos para um cânone de Escrituras sagradas. No fim do processo, o Concílio mais importante para a Igreja Católica Romana foi o de Trento. Em sua quarta sessão, realizada em 8 de abril de 1546, a Igreja anunciou sua decisão sobre os limites do cânone do Antigo Testamento, nele incluindo os livros de Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico e 1-2 Macabeus. A 4ª sessão afirma, em parte: O sacrossanto Concílio ecumênico e geral [...] seguindo [...] os exemplos dos Padres ortodoxos [...] com igual sentimento de piedade e reverência aceita e venera todos os livros, tanto os do Antigo como os do Novo Testamento, visto terem ambos o mesmo Deus por autor; bem como as mesmas tradições que se referem tanto à fé como aos costumes, quer sejam só oralmente recebidas de Cristo, quer sejam ditadas pelo Espírito Santo e conservadas por sucessão contínua na Igreja Católica.

Depois de relacionar os livros, o texto continua: “Se alguém não aceitar como sacros e canônicos esses livros na íntegra com todas as suas partes, como era costume serem lidos na Igreja Católica [...] seja excomungado”. Essa decisão foi confirmada pelo Concílio Vaticano I (1869-1870). No ano de 1559, as Igrejas Reformadas publicaram sua Confissão Galicana (Confessio Gallicana), e, mais tarde, na Confissão Belga (artigos IV e V) de 1561, anunciaram um cânone bíblico que excluía os livros apócrifos incluídos pelos católicos romanos. Em 1562 e 1571, a Igreja da Inglaterra aceitou ou recebeu com boa disposição os livros apócrifos, mas recomendou que não fossem usados para difundir os ensinamentos da Igreja. Depois de relacionar os livros pertencentes ao cânone mais extenso do Antigo Testamento e de confirmar o cânone do Antigo Testamento protestante do momento, o documento conclui: “E os outros livros [como diz Jerônimo], a Igreja os lê para exemplo de vida e orientação de costumes, mas não os aplica para definir nenhuma doutrina”. Após essa afirmação, o documento relaciona os livros apócrifos. É inegável a popularidade do cânone bíblico judaico na Igreja primitiva, mas serem as listas de Escrituras do Antigo Testamento em igrejas dos sécs. IV ao VI diferentes do cânone bíblico judaico sugere que a dependência cristã do cânone da Bíblia hebraica não foi um fator determinante com relação aos livros que foram incluídos nos cânones cristãos do Antigo Testamento. Mesmo onde houve a tentativa de reproduzir o cânone bíblico hebraico ou judaico, ainda persiste em algumas dessas listas a ausência do livro de Ester (ver a lista de Melitão) ou a presença da Epístola de Jeremias ou de Baruc. Nenhuma lista da Igreja primitiva é idêntica ao cânone bíblico judaico. Já recentemente, em 1950, o Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa Grega autorizou como seu cânone do Antigo Testamento todos os apócrifos, inclusive 2 Esdras e 3-4 Macabeus, colocados em apêndice. O Antigo Testamento da Bíblia russa de 1956 tem quase o mesmo conteúdo da Bíblia grega, mas 3 Esdras e 4 Macabeus estão ausentes.

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Entre as várias decisões conciliares da Igreja primitiva relativas ao seu cânone bíblico, duas são provavelmente as mais importantes. A primeira é do Concílio de Laodiceia (c. 363 EC), que em seu Cânone 59 define os Salmos que podiam ser usados nas igrejas. O Cânone 60 relaciona os livros do cânone do Antigo Testamento. Esses livros são os mesmos relacionados no cânone de Atanásio (367 EC), a não ser pelo livro de Rute, colocado com Juízes, e de Ester, que lhe segue imediatamente. No exame do cânone do Novo Testamento que desenvolveremos mais adiante, abordaremos Atanásio e sua influência sobre o cânone bíblico cristão, mas podemos antecipar aqui que seu cânone não foi aceito por todas as igrejas da sua época. Somente mais tarde, com o apoio de Agostinho nos Concílios de Hipona (393) e de Cartago (397), sua coleção recebeu um reforço de considerável importância. Conquanto as três principais igrejas tenham finalmente aceito o cânone do Novo Testamento de Atanásio, seu cânone do Antigo Testamento, incluindo vários livros apócrifos, é tema para outra ocasião. A segunda dessas decisões conciliares mais importantes, como acabamos de observar, aconteceu em 393 EC, quando o Concílio reunido em Hipona produziu um cânone bíblico semelhante ao elaborado por Atanásio e apoiado vigorosamente por Agostinho. Embora as deliberações desse Concílio estejam hoje perdidas, elas foram resumidas nas atas do Terceiro Concílio de Cartago, realizado em 397 EC. Ao que parece, o Concílio de Hipona foi o primeiro a tomar uma decisão formal sobre a composição e o conteúdo do cânone bíblico. Para concluir, os livros que os judeus consideram hoje Escritura sagrada, ou seja, a Bíblia hebraica, não foram os únicos que informaram os judeus no tempo de Jesus. Além disso, as igrejas nunca concordaram totalmente sobre a composição do seu cânone do Antigo Testamento, apesar de todas aceitarem os livros da Bíblia hebraica. Somente os protestantes se restringiram aos livros da Bíblia hebraica, sem, contudo, adotar a sequência ou a divisão em três partes daquele cânone bíblico. 12 “Paz” refere-se ao Templo da Paz, consagrado por Vespasiano em 75 EC, depois da captura e destruição de Jerusalém. O Fórum de Palas identificava-se com o Fórum de Nerva, imperador romano, que teve sua construção iniciada por Domiciano (81-96 EC) e concluída por Nerva (96-98 EC). 13 Nesse caso, como Lívio publicou 142 livros, Marcial escreve: “O vasto Lívio, para quem a minha biblioteca não tem espaço, está comprimido em diminutas peles” (Epigramas 14,190). 14 O pressuposto ou mito da “Torá oral” era que, no Sinai, Deus havia dado a Moisés tanto a lei escrita como a lei oral, e que a segunda foi transmitida de viva voz e mais tarde entregue em forma escrita ao povo de Israel. 15 Hebraico = elevar, levantar, apresentar. Segundo a Torá, inúmeras oferendas sagradas são “elevadas”, isto é, separadas ou reservadas para Deus. Inicialmente, o termo se referia a toda oferta feita a Deus e elevada diante de Deus. Depois passou a ser usado principalmente para o dízimo pago aos sacerdotes. Outros termos equivalentes são oferta, oferenda, oblação, dedicação, apresentação, contribuição.

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CÂNONES DAS ESCRITURAS JUDAICAS E DO ANTIGO/PRIMEIRO TESTAMENTO CRISTÃO Bíblia hebraica Lei/Torá (Pentateuco) Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio Profetas (Nebiim) Profetas Anteriores: Josué Juízes 1 e 2 Samuel 1 e 2 Reis Profetas Posteriores: Isaías Jeremias Ezequiel Os Doze: Oseias Joel Amós Abdias Jonas Miqueias Naum Habacuc Sofonias Ageu Zacarias Malaquias Escritos (Ketubim) Salmos Provérbios Jó Cinco rolos (Hamesh Megillot) Cântico dos Cânticos Rute Lamentações Eclesiastes Ester

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Daniel Esdras-Neemias 1-2 Crônicas

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Católica Pentateuco Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio Livros históricos Josué Juízes Rute 1 Samuel 2 Samuel 1 Reis 2 Reis 1 Crônicas 2 Crônicas Esdras Neemias Tobias Judite Ester (com 6 acréscimos) 1 Macabeus 2 Macabeus Livros sapienciais Jó Salmos Provérbios Eclesiastes Cântico dos Cânticos Sabedoria de Salomão Eclesiástico Livros proféticos Isaías Jeremias Lamentações Baruc + Epístola de Jeremias Ezequiel Daniel (+ 3 acréscimos: Oração de Azarias, Cântico dos três jovens, Susana e Bel e o Dragão) Oseias Joel Amós Abdias

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Jonas Miqueias Naum Habacuc Sofonias Ageu Zacarias Malaquias

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Ortodoxa Livros históricos Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio Josué Juízes Rute 1 Reinados (= 1 Samuel) 2 Reinados (= 2 Samuel) 3 Reis (= 1 Reis) 4 Reis (= 2 Reis) 1 Crônicas 2 Crônicas 1 Esdras 2 Esdras Neemias Tobias Judite Ester (com 6 acréscimos) 1 Macabeus 2 Macabeus 3 Macabeus Livros poéticos Salmos (com Salmo 151) Jó Provérbios Eclesiastes Cântico dos Cânticos Sabedoria de Salomão Sabedoria de Sirac Livros proféticos Oseias Amós Miqueias Joel Abdias Jonas Naum Habacuc Sofonias Malaquias Isaías

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Jeremias Baruc Lamentações de Jeremias Epístola de Jeremias Ezequiel Daniel (+ Oração de Azarias, Cântico dos três jovens, Susana e Bel e o Dragão)

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Protestante Pentateuco Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio Livros históricos Josué Juízes Rute 1 Samuel 2 Samuel 1 Crônicas 2 Crônicas Esdras Neemias Ester Livros Poéticos Jó Salmos Provérbios Eclesiastes Cântico dos Cânticos Isaías Jeremias Ezequiel Daniel Oseias Joel Amós Abdias Jonas Miqueias Naum Habacuc Sofonias Ageu Zacarias Malaquias

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Etíope Octateuco Pentateuco + Josué Juízes Rute Judite Samuel Reis Crônicas 1 Esdras + Apocalipse de Esdras Ester Tobias 1-2 Macabeus Jó Salmos 5 livros de Salomão Profetas Profetas Maiores: Isaías Jeremias Ezequiel Daniel Profetas Menores: Oseias Joel Amós Abdias Jonas Miqueias Naum Habacuc Sofonias Ageu Zacarias Malaquias Sirac Pseudo-Josefo Jubileus 1 Enoc

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FORMAÇÃO DAS ESCRITURAS CRISTÃS

A Igreja primitiva assumiu desde o início a noção de Escritura sagrada, cuja autoridade era incontestável – apesar da nossa incerteza quanto à extensão final dessa coletânea de escritos. Não temos nenhuma prova convincente de que a Igreja tenha nascido já dispondo de um cânone bíblico fixo (um Antigo Testamento), mas o precedente de uma Escritura sagrada já estava bem arraigado na comunidade judaica muito antes do nascimento de Jesus. Como observamos anteriormente, no tempo da composição do Novo Testamento, o conceito de Escritura geralmente compreendia a “Lei e os Profetas”, ou simplesmente a “Lei”. No séc. I AEC e EC, a composição e o conteúdo das coleções sagradas na terra de Israel ainda eram fluidos (“cânone 1”). Os primeiros cristãos acreditavam que os desígnios e a vontade de Deus eram comunicados através da palavra escrita das Escrituras de Israel. À medida que foi se desenvolvendo, porém, a Igreja sentiu que, paralelamente ao uso das Escrituras que recebera como herança dos seus irmãos judeus, era muito importante adotar a sua própria coleção de escritos para fins de culto, instrução e testemunho. Os primeiros cristãos perceberam o valor dos seus escritos bem antes que fossem chamados “Escritura” ou “Sagrada Escritura”. Com efeito, em pouco tempo, até o fim do séc. I EC, já eram generalizadas a produção e a circulação desses escritos nas igrejas. A Igreja passou a acreditar que a palavra e a vontade de Deus eram também comunicadas por meio de escritos inspirados produzidos no seio da própria comunidade cristã. Por fim, até o final do séc. II EC, os cristãos começaram a se referir a alguns desses escritos com o termo “Escritura”. Como mencionamos anteriormente, tanto o cristianismo como o judaísmo farisaico, as principais seitas judaicas na terra de Israel que sobreviveram à destruição de Jerusalém (66-70 EC), e também os judeus da diáspora, chegaram à conclusão de que precisavam de um volume de literatura sagrada maior do que a “Lei e os Profetas” para atender às necessidades de suas respectivas comunidades religiosas. Assim, ao que já possuíam, os cristãos acrescentaram o material que acreditavam originar-se nas comunidades apostólicas; isso aconteceu aproximadamente na mesma época em que a comunidade judaica agregou suas tradições orais codificadas (Mixná) às suas coleções sagradas escritas. Embora os cristãos tivessem precedentes para uma Escritura redigida antes do tempo de Jesus, a Igreja não fez um esforço consciente para produzir suas próprias Escrituras sagradas. Na maioria dos livros que por fim constituíram o Novo Testamento, nada sugere que seus autores acreditassem estar produzindo Escritura sagrada no momento em que escreviam. A única exceção é o

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autor do Apocalipse, que lança imprecações contra os que modificarem ou alterarem o livro (22,18-19; cf. Dt 4,2), e possivelmente também Paulo em 1Cor 7,40, que quase chega a afirmar que está falando (escrevendo) pelo poder do Espírito. Paulo faz distinção entre seus próprios comentários e os de Jesus com a evidente implicação de que as igrejas consideravam as palavras de Jesus imbuídas de autoridade sagrada muito maior (ver 1Cor 7,10.12). Do mesmo modo que esteve nas origens e no desenvolvimento do cânone do Antigo Testamento, a complexidade acompanhou também a formação do cânone do Novo Testamento. Durante mais de um século, os estudiosos situaram em grande parte a origem e o desenvolvimento do cânone do Novo Testamento no séc. II EC tardio, admitindo mais tarde pequenas modificações e ajustes em sua composição. Especialistas de renome aceitaram o séc. II como principal contexto para o desenvolvimento de um cânone do Novo Testamento, entre eles Adolf von Harnack, R. M. Grant, Hans von Campenhausen, Denis Farkasfalvy, William Farmer, Bruce M. Metzger, F. F. Bruce e Everett Ferguson (ver “Outras leituras”, ao final deste capítulo). Para eles, os fatores que deram origem ao cânone do Novo Testamento surgiram naquele século, quando os cristãos enfrentaram as heresias de Marcião, dos cristãos gnósticos e dos montanistas. Não existem, porém, evidências consistentes da existência de um cânone do Novo Testamento fechado ou semifechado nos escritos dos Padres do séc. II, sendo muito duvidoso que a questão fosse sequer debatida, quanto mais decidida naquela época. O argumento mais sólido a favor da formação do cânone no séc. II depende da datação do Fragmento de Muratori naquele século. Esse fragmento, originariamente produzido em grego e mais tarde traduzido para o latim, contém uma lista ou catálogo de livros cristãos (com o estranho acréscimo do livro Sabedoria de Salomão) reconhecidos como textos sagrados autorizados entre os cristãos, mas essa lista encontra seus únicos congêneres no séc. IV EC, e não no séc. II. A teoria depende de uma aceitação prévia dos escritos cristãos enquanto textos escriturais e da comprovação de que os primeiros Padres da Igreja enfrentaram as heresias e os desafios à tradição cristã criando um novo cânone de Escrituras sagradas, ou seja, um cânone do Novo Testamento. Na sequência, examinarei esses e outros pressupostos e oferecerei uma proposta alternativa que situa a consolidação do cânone do Novo Testamento no contexto do séc. IV. O ponto de partida lógico para as origens dos escritos do Novo Testamento, todavia, é o próprio Jesus, de modo que é com ele que começamos o nosso estudo. A AUTORIDADE DE JESUS E DOS PRIMEIROS ESCRITOS CRISTÃOS A autoridade primeira e mais importante na Igreja nascente era Jesus. Tudo o que ele disse e fez era autorizado e sagrado para a Igreja. Quando as tradições orais que circulavam nas igrejas sobre o que Jesus disse e fez foram escritas, elas logo (20 a 30 anos, no máximo) foram integradas à pregação e ao ensino cristãos. Quando os seguidores mais próximos de Jesus (os apóstolos) falavam, muitas igrejas

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acreditavam que eles refletiam o que Jesus havia dito e feito. As primeiras histórias sobre Jesus que circulavam nas igrejas foram em pouco tempo escritas e passaram a ser transmitidas nas comunidades nessa forma. A história das atividades, da pregação e do destino de Jesus ocupava o centro vital da Igreja nascente. As Escrituras hebraicas, ainda incompletas no séc. I, e a história recém-escrita de Jesus formavam a base autorizada do cristianismo primitivo. Havia, no entanto, uma diferença importante no modo de interpretação das Escrituras judaicas, ou seja, elas não eram interpretadas à luz da atividade e da pregação de Jesus. Em grande parte, as Escrituras judaicas eram consideradas literatura profética, no sentido de que haviam prenunciado a vida, morte e ressurreição de Jesus (por exemplo, Mt 2,13-15; 1Cor 15,3-4). Muito pouca coisa no Novo Testamento pode ser razoavelmente explicada como interpretação meticulosa das Escrituras do Antigo Testamento. A passagem mais longa do Antigo Testamento citada no Novo Testamento é Jr 31,31-34, reproduzida em Hb 8,8-12. Embora seja grande nos livros do Novo Testamento o número de referências à literatura do Antigo Testamento, são poucas as interpretações detalhadas desses textos em seu contexto e significado originais. O argumento de que os primeiros seguidores de Jesus chegaram à compreensão de quem Jesus era depois de minucioso exame das Escrituras judaicas simplesmente não se sustenta. Em vez disso, a interpretação desses textos resultou da própria convivência com Jesus e do conhecimento que acumularam sobre ele. Mas a perspectiva de autoridade das Escrituras que eles herdaram dos seus irmãos judeus estimulou-os a estudar essas Escrituras para compreender melhor a identidade e a missão de Jesus. O valor fundamental dessas Escrituras para os primeiros seguidores de Jesus parece ser o testemunho profético que prestam com relação à vida e às ações de Jesus. Os primeiros cristãos viam a si mesmos como o novo povo de Deus e, como tal, depositários das promessas de Deus em suas Escrituras sagradas, anteriormente dadas à nação de Israel. Viam-se inclusive como o “novo Israel” (ver Gl 6,15-16) e, com a adesão de um número cada vez maior de gentios, alguns acreditavam que a Igreja dos gentios havia substituído ou suplantado os judeus, pelo menos temporariamente, como povo de Deus (Rm 11,11-24). O ponto de partida para se entender a aplicação das Escrituras do Antigo Testamento por parte da Igreja primitiva, nos escritos do Novo Testamento, não está tanto em uma compreensão correta daquelas Escrituras em si, mas em uma compreensão precisa de Jesus, isto é, de quem ele era e da sua missão no mundo. A própria literatura cristã parece ter começado como resposta a Jesus à luz da experiência cristã (At 18,28), e só mais tarde como interpretação das Escrituras do Antigo Testamento. Biblistas atuais concordam, de modo geral, que a Igreja primitiva surgiu não como resultado de uma cuidadosa interpretação das Escrituras do Antigo Testamento, mas de uma nova compreensão de Jesus decorrente de uma experiência com o Cristo professado pela comunidade de fé.

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Não será exagero dizer que Jesus foi a autoridade primordial nas comunidades cristãs primitivas. Embora os primeiros seguidores de Jesus reconhecessem a sacralidade das Escrituras judaicas, especialmente a Lei e os Profetas, foram a vida, a morte e a ressurreição de Jesus que constituíram o cerne dos ensinamentos e da pregação desses seguidores (1Cor 15,3-11). Com efeito, uma das confissões de fé mais antigas nos escritos do Novo Testamento está na Carta aos Romanos, onde Paulo transmite um credo que ele próprio havia recebido: “Porque, se confessares com tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” (Rm 10,9). O que Jesus disse e fez era em sentido muito real o “cânone” (autoridade definitiva) para seus seguidores. A vida de Jesus foi o exemplo por excelência para eles seguirem (Fl 2,5; Ef 5,1-2; Hb 12,1-3). Sua morte pelos pecados do povo e sua ressurreição não eram fundamentais apenas nas crenças dos primeiros cristãos, mas também na compreensão que os cristãos tinham das suas Escrituras. Eles acreditavam que essas Escrituras haviam prenunciado a vida, a morte e a ressurreição de Jesus (1Cor 15,3-11; At 2,31-36; Hb 13,20; 1Pd 1,3; Ap 1,5, 17-18; 2,8). A vida, a morte e a ressurreição de Jesus eram o pressuposto quintessencial de toda fé cristã. Os relatos ou histórias das palavras e realizações de Jesus – e inclusive do seu destino – sem dúvida circularam desde o início nas comunidades cristãs recémformadas, antes oralmente, através da pregação e do ensino (instrução catequética), mas com o tempo muitas dessas histórias e tradições foram escritas. No início, somente as tradições das palavras, da morte e da ressurreição de Jesus tinham importância absoluta para as igrejas, mas logo o valor prático de várias cartas do apóstolo Paulo também passou a receber destaque. Em pouco tempo, pelo fim do séc. I, uma coleção desses escritos já circulava nas igrejas, contendo não apenas palavras de Jesus (Evangelhos), mas também as implicações práticas dessas palavras (cartas de Paulo) para a fé cristã. Alguns ditos de Jesus continuaram a ser transmitidos nas igrejas em forma oral mesmo depois do aparecimento dos Evangelhos escritos. Aproximadamente 266 desses ditos não constam nos Evangelhos, mas se encontram em diversas outras fontes – em manuscritos antigos, em obras dos primeiros Padres da Igreja e em textos não canônicos –, sendo identificados com o nome de Ágrafos.16 Para muitos estudiosos, alguns desses ditos não canônicos são até mais confiáveis do que muitos canônicos, podendo-se inclusive atribuí-los ao próprio Jesus. Muitas coleções de palavras e atos de Jesus circularam em forma oral no início, mas com o tempo assumiram forma escrita no que hoje chamamos “Evangelhos”. Estamos habituados com os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, mas antes desses houve outros Evangelhos, que se perderam. Lucas confirma a existência desses precedentes no prólogo ao seu Evangelho: “Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós [...] a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo [...]” (Lc 1,1-3). Mais adiante examinaremos os

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ágrafos em maior profundidade. Algumas dessas narrativas podem ter sido enviadas a várias comunidades de seguidores de Jesus, mas as mais populares entre os primeiros cristãos eram os Evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João). O primeiro desses Evangelhos subsistentes foi provavelmente escrito nos anos 60 do séc. I e é atribuído a João Marcos, companheiro de Paulo e Barnabé (At 13,5; 15,37) e, mais tarde, de Pedro (1Pd 5,13). Como, no início, os Evangelhos canônicos não tinham nomes, eles são formalmente anônimos, mas chegaram até nós com os nomes que lhes foram atribuídos no fim do séc. II, provavelmente baseados em tradições orais mais antigas. Marcos e, em seguida, os outros evangelistas compuseram a história de Jesus em forma narrativa, relatando seu ministério, seu magistério e sua pregação, além de sua paixão, morte e ressurreição. O Evangelho de Marcos inaugurou um novo gênero de literatura, uma composição literária que não era exatamente uma biografia, nem exatamente uma descrição histórica da vida e ministério de Jesus. Tratava-se, antes, de uma coleção bem seletiva do que as igrejas acreditavam ser mais importante sobre Jesus e que foi produzida tanto por razões catequéticas quanto para ser usada para atrair seguidores (por exemplo, Mc 8,32-35; Jo 20,30-31). Tudo o mais que se pode dizer a respeito desses primeiros escritos cristãos (Evangelhos) é que eram acima de tudo apelos à fé em Jesus enquanto Cristo, a autoridade suprema para as igrejas desde o início. Por exemplo, em Ap 2–3, o Senhor ressuscitado é soberano sobre as sete igrejas da Ásia Menor e se aproxima delas com autoridade divina. Jesus não tem rivais na Igreja e estava no centro de toda literatura cristã primitiva, sendo seu fundamento (Mt 28,19). Como Marcos (Mc 1,1), Paulo usa o termo “Boa-nova” (ou “Evangelho”) em referência a Jesus, não a um gênero de literatura a respeito de Jesus. Paulo diz que foi escolhido para anunciar “o Evangelho [Boa-nova] de Deus que ele [Deus] já tinha prometido por meio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, e que diz respeito a seu Filho” (Rm 1,1-3; BJ). Paulo usou esse termo para designar a tradição cristã oral específica que recebeu e que anunciava nas comunidades cristãs sobre a atividade de Deus na morte e ressurreição de Jesus (1Cor 15,1-5), mas também sobre sua nova vinda ou parusia (1Cor 15,23-28). A pregação da Igreja primitiva concentrava-se em Jesus, em suas ações e na presença do Reino de Deus que se revelou em suas palavras e atos. Em outras palavras, e repetindo, Jesus era o locus de autoridade do movimento cristão nascente. À medida que a Igreja foi compreendendo melhor a sua missão e em consequência da dispersão causada pelas perseguições (At 8,4; 11,19), surgiu a necessidade de comunicação com as novas igrejas. Quando não eram possíveis visitas pessoais, essa comunicação era feita através de cartas. Paulo, o principal missionário enviado aos gentios, quando não podia visitar as igrejas que havia fundado, escrevia-lhes cartas (2Cor 1,23–2,4). Através delas, Paulo procurava esclarecer questões relacionadas à fé e à conduta cristãs que ele considerava importantes para as igrejas. Apesar de nem

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sempre seguirem o estilo greco-romano costumeiro, essas cartas têm características muito semelhantes às dos estilos tanto formal como informal da época. Dada a popularidade dessa forma de comunicação, os cristãos das gerações seguintes também adotaram esse meio para transmitir mensagens importantes às igrejas (1-2 Timóteo, Tito, 1 Pedro, 1-3 João, Tiago, Judas, mas também Apocalipse 2–3 e, mais tarde, as Cartas de Inácio, c. 115 EC). Várias cartas de Paulo perduraram, especialmente as que foram enviadas a sete igrejas (Roma, Corinto, Galácia, Éfeso, Filipos, Colossas, Tessalônica) e até o fim do séc. I, o mais tardar, várias delas começaram a circular entre várias igrejas. Na Carta aos Colossenses, encontramos inclusive uma orientação exatamente nesse sentido (Cl 4,16-17). Uma das primeiras coleções dos escritos de Paulo é creditada a Marcião, um dos principais “hereges” do séc. II, mas provavelmente essa não foi a primeira coleção a reunir os escritos de Paulo. Marcião, um rico comerciante da Ásia Menor (c. 140 EC), era um cristão ativo na Igreja e exerceu grande influência sobre muitas igrejas durante o séc. II. (Aprofundamo-nos sobre Marcião e sua influência no Capítulo 7.) As cartas paulinas não tinham o peso da autoridade de Jesus durante a vida de Paulo, e o próprio Paulo não tinha essa pretensão. Pelo final do séc. II, porém, e após considerável circulação nas igrejas, o valor dessas cartas e dos Evangelhos canônicos na vida e testemunho da Igreja era evidente, colocando-as entre os primeiros escritos cristãos a serem reconhecidos como Escritura sagrada. Como comentamos no Capítulo 3, pelo fim do séc. II esses escritos começavam a ser chamados de Escritura. Mas isso não aconteceu com vários outros escritos do Novo Testamento, que precisaram de mais tempo para chegar a essa condição. É indubitável que, desde o início da Igreja, as palavras de Jesus foram consideradas Escritura – tinham autoridade – pelas comunidades de fé, quer essas palavras e atos estivessem em forma escrita ou oral. Ver, por exemplo, o grande respeito que Paulo demonstra pelas palavras de Jesus em 1Cor 7,10.17 e, por implicação, maior do que às suas próprias em 7,12.25; 1Ts 4,15; Mt 28,19, e em outras passagens. Clemente Romano (c. 95 EC) também reconheceu a autoridade dos ensinamentos de Jesus para as igrejas quando escreveu: Portanto, irmãos, sejamos humildes, depondo todos os sentimentos de jactância, de vaidade, de insensatez e de cólera, e pratiquemos o que está escrito. De fato, o Espírito Santo diz: “Que o sábio não se glorie de sua sabedoria, nem se farte de sua força, nem o rico de sua riqueza; aquele que se gloria, glorie-se no Senhor, por procurá-lo e praticar o direito e a justiça”. Lembremo-nos, sobretudo, das palavras do Senhor Jesus, quando ele nos ensinava sobre a benevolência e a paciência. Assim dizia: “Sede misericordiosos, a fim de que sejais tratados com misericórdia; perdoai, para que vos seja perdoado; da mesma forma com que agirdes, também agirão convosco; da mesma forma como dais, assim também vos darão; do modo como julgais, assim também vos julgarão; do modo como tratais com bondade, assim também vos tratarão; a medida que usais é a mesma que usarão para convosco”. Fortaleçamo-nos a nós mesmos com esse mandamento e esses preceitos, a fim de caminhar com espírito de humildade, submissos às suas santas palavras. Com efeito, eis o que diz a palavra santa: “Para quem voltarei meu olhar, senão para o homem manso e pacífico, que treme diante de minhas palavras?” (1 Clemente 13,1-4. Grifo nosso).

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Em outro lugar, ele acrescenta: Por que esquartejamos e rasgamos os membros de Cristo? Por que nos revoltamos contra o nosso próprio corpo, chegando a tal ponto de loucura? Esquecemo-nos de que somos membros uns dos outros? Lembrai-vos das palavras de Jesus, o Senhor nosso. Com efeito, ele disse: “Ai desse homem! Melhor seria para ele não ter nascido, do que escandalizar um só dos meus eleitos!” (1 Clemente 46,78. Grifo nosso).

O apelo de Clemente à ordem baseia-se nas exortações de Jesus, mas ele as enfatiza e introduz com suas próprias palavras: “Lembrai-vos das palavras do Senhor Jesus”. Essas são as duas únicas referências às palavras de Jesus em 1 Clemente, mas há mais de 100 referências à literatura do Antigo Testamento. Curiosamente, em 1 Clemente, Paulo é citado mais vezes do que Jesus, mas isso acontece, sem dúvida, porque Paulo fundou a igreja de Corinto e ele mesmo havia falado sobre as divisões na Igreja que continuaram até o fim do séc. I e motivaram a carta de Clemente Romano aos coríntios (1Cor 1,10-13). A linguagem de Clemente transcrita nas passagens acima mostra considerável familiaridade com as palavras de Jesus, especialmente com as que se encontram no Evangelho de Mateus, mas são poucas as referências gerais a outras tradições nos Evangelhos Sinóticos. Embora Clemente se refira ou aluda a Hebreus e a epístolas de Paulo em toda sua carta, nunca se refere a elas ou aos Evangelhos como “Escritura” (grego = graphe). Sem dúvida, as palavras de Jesus consignadas nos Evangelhos se revestiam de uma autoridade semelhante à atribuída a uma Escritura Sagrada, mas essa designação só lhes foi aplicada pelo final do séc. II. Em sua Carta a Flora (c. 160 EC), bem conhecida, Ptolomeu frequentemete se refere às “palavras do Salvador” (3,5.8; 4,1.4 e também 7,5.10) como autoridade primeira para os ensinamentos que ele transmite. Veja, por exemplo, sua devoção ao ensinamento de Jesus ao explicar a forma correta de compreender a Lei de Moisés e ao se referir aos que a interpretam mal: Isso é o que acontece com as pessoas que não percebem as implicações das palavras do Salvador. Nenhuma cidade ou casa dividida contra si mesma pode subsistir [Mt 12,25], declarou nosso Salvador. Além disso, o apóstolo diz que a criação do mundo foi obra dele, e que tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito [Jo 1,3], refutando o entendimento inconsistente desses mentirosos; não a criação de um deus que corrompe, mas de um Deus justo que abomina o mal. Essa é a opinião de homens displicentes que não compreendem a causa da providência do Demiurgo [nome dado a uma divindade inferior que criou o mundo material], cegos não apenas do olho da alma, mas também do olho do corpo. Pelo que te foi dito, está claro para ti como eles se extraviaram da verdade. Dois grupos se desencaminharam, cada um a seu modo, um pela ignorância do Deus de justiça, outro pela ignorância do Pai de Todos, revelado em sua vinda pelo único que o conhecia. Agora cabe a nós, a quem foi concedido o conhecimento de ambos, apresentar-te a Lei com exatidão, sua natureza e aquele que nola deu, o Legislador, fundamentando nossas demonstrações nas palavras de nosso Salvador, o único através de quem é possível prosseguir sem erro em direção à compreensão da realidade. Primeiro precisas saber que toda a Lei contida no Pentateuco de Moisés não foi decretada por uma pessoa só, quero dizer, somente por Deus. Ela também inclui alguns mandamentos dados por homens; e as palavras do Salvador nos ensinam que ela é tripartida. Uma parte é atribuída ao próprio Deus e aos seus estatutos; outra é atribuída a Moisés, no sentido de que ele legislou movido por seu próprio

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entendimento, não por prescrições que lhe foram dadas por Deus; a terceira é atribuída aos anciãos do povo, que introduzem seus próprios preceitos desde o início. Podes saber como isso aconteceu através das palavras do Salvador. Em algum lugar, explicando aos que discutiam com ele sobre o divórcio, permitido pela Lei, o Salvador lhes disse: Por causa da dureza dos vossos corações, Moisés permitiu ao homem repudiar sua mulher, mas não era assim no começo. Deus os uniu como homem e mulher, e o que Deus uniu, ele disse, não separe o homem [Cf. Mt 19,8; Mc 10,5]. Aqui ele mostra que a lei de Deus é uma coisa – proíbe o marido repudiar sua mulher – e a lei de Moisés é outra – permite que esse vínculo seja desfeito por causa da dureza do coração. Assim Moisés determina uma lei contrária a Deus, pois o divórcio é contrário ao não divórcio (Tradução para o inglês de Stevenson, ANE – Ancient Near East – 92-93. Adaptado e grifo nosso).

Para ambos, Clemente de Roma e Ptolomeu, as palavras de Jesus tinham autoridade de Escritura Sagrada, mesmo quando não eram extraídas de um texto escrito nem fossem precedidas de fórmulas escriturais específicas (“diz a Escritura” etc.). As Escrituras cristãs começaram a esboçar-se com o reconhecimento da autoridade das palavras de Jesus e com o valor atribuído aos ensinamentos de Paulo. Sem dúvida, os ensinamentos, as realizações e o destino de Jesus constituíram o núcleo que possibilitou o surgimento de uma Escritura cristã. A AUTORIDADE DOS APÓSTOLOS E DOS SEUS ESCRITOS Muitas são as citações, menções e alusões a vários livros do Novo Testamento que encontramos nas obras dos Padres Apostólicos (aproximadamente de 90 a 150 EC), as primeiras a aparecer depois dos escritos do Novo Testamento. Em sua maioria, as referências desses Padres da Igreja são extraídas dos Evangelhos canônicos, especialmente do Evangelho de Mateus e, em menor número, do Evangelho de João; algumas pertencem aos escritos atribuídos ao apóstolo Paulo. Na grande maioria das vezes, essas referências citam Jesus (a partir dos Evangelhos) e, às vezes, o apóstolo Paulo, mas no início e de modo geral não mencionam os nomes dos apóstolos associados a essa literatura. Isso começa a acontecer em torno de meados do séc. II. Os primeiros escritores e professores da Igreja começaram a citar a literatura específica do Novo Testamento por nome (dos apóstolos) e mais tarde, no último terço do séc. II, passaram a designar essa literatura com o termo “Escritura”. As evidências de que esses escritos eram aceitos como Escritura sagrada surgiram quando começaram a ser introduzidos com as palavras “diz a Escritura”, “está escrito” e outras fórmulas semelhantes comumente usadas com referência às Escrituras do Antigo Testamento. Do mesmo modo como ocorreu com o surgimento das Escrituras do Antigo Testamento, os escritos do Novo Testamento alcançaram condição praticamente equivalente a um “cânone 1” antes da etapa em que passaram a ser citados por nome e identificados como Escritura sagrada. Só no séc. IV EC é que esses e outros escritos começaram a constar em catálogos de Escrituras sagradas (“cânone 2”). Citações e alusões aos Evangelhos eram comuns no séc. II. A prática de citar escritos sagrados como Escritura, isto é, autorizadamente, indica certo reconhecimento do apreço e autoridade que desfrutavam na comunidade cristã. Em

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geral, eles são citados de forma autorizada antes de serem formalmente chamados de “Escritura”. Em outras palavras, os escritos do Novo Testamento já eram considerados Escritura antes de serem chamados Escritura. Há, no entanto, um aspecto importante que precisa ser levado em conta, qual seja, a distinção entre as palavras ou preceitos autorizados de Jesus e os Evangelhos que os continham. No início, só as palavras de Jesus constantes em tradições escritas e orais eram citadas e consideradas Escritura, mas isso não significa que o Evangelho que continha essas palavras ou o Apóstolo ao qual o livro era atribuído haviam alcançado o estado canônico – não no início, pelo menos. Era a palavra de Jesus que, quando escrita, assumia o caráter de Escritura. A fonte dessa palavra de Jesus escrita era de importância secundária para as primeiras igrejas, e é por isso que não há referência aos autores dos Evangelhos até o último terço do séc. II. Em torno da metade do séc. II, os Evangelhos começaram a ser chamados de “memórias dos apóstolos”, como veremos abaixo, mas os nomes desses apóstolos raramente foram mencionados antes do último terço do séc. II. Essa situação começou a mudar pelo fim do séc. II, quando as pessoas mais próximas de Jesus no tempo começaram a ser consideradas mais confiáveis do que as mais afastadas. Nesse contexto, inúmeros Evangelhos do séc. II e outros gêneros literários similares (atos, epístolas, apocalipses) começaram a aparecer com nomes de apóstolos. Mas eram as palavras de Jesus citadas nesses documentos que recebiam reconhecimento e destaque nas igrejas. Além disso, embora os Evangelhos se destinassem desde o início à leitura nas igrejas, não tinham no começo a autoridade que adquiriram mais tarde. A liberdade com que os primeiros copistas alteraram o texto desses Evangelhos nos três primeiros séculos sugere isso. As numerosas variantes e mudanças intencionais nos manuscritos desses documentos sustentam essa conclusão. Assim, quando os Evangelhos alcançaram sua condição de Escritura nas igrejas? Certamente quase no mesmo momento em que começaram a ser lidos junto – e, às vezes, em substituição – às Escrituras do Antigo Testamento. Essas ocasiões propiciaram o reconhecimento dos Evangelhos como Escritura sagrada. A autoridade conferida a Jesus nos escritos do Novo Testamento foi por fim, até certo ponto, transferida para os autores da literatura neotestamentária. Isso não significa que os apóstolos fossem vistos sob a mesma perspectiva que Jesus; eles eram considerados os fiéis transmissores dos ensinamentos e da história da vida, morte e ressurreição de Jesus. Essa confiança foi posteriormente atribuída à comunidade apostólica e aos escritos apostólicos que as igrejas acreditavam terem sido por eles produzidos. (Ver exemplos 7-10 na próxima seção.) RECONHECIMENTO INICIAL DA AUTORIDADE DOS ESCRITOS APOSTÓLICOS As referências do séc. II tardio em relação à autoridade e sacralidade da literatura

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do Novo Testamento são mais explícitas do que as mais antigas, em geral mais ambíguas ou restritas. Os exemplos a seguir refletem algumas atitudes iniciais com relação ao locus da autoridade nas igrejas do séc. II. É possível detectar neles os estágios iniciais da transferência de certa autoridade atribuída a Jesus para os apóstolos e para os que pertenciam à comunidade apostólica (Marcos e Lucas) como testemunhas fidedignas do evento Cristo que deu origem à Igreja. Da metade até o fim do séc. II, as igrejas reconhecem amplamente a autoridade apostólica, e com isso os escritos pseudônimos com nomes de apóstolos se tornam comuns. Apresentaremos vários exemplos dessa extensão gradual de autoridade de Jesus para os apóstolos, atestada por testemunhas fidedignas na comunidade apostólica. Começamos com Paulo, em torno de 52-55 EC, que sobrepõe a autoridade de Jesus à sua própria em questões emergentes nas igrejas. Isso ocorre aproximadamente 20-25 anos após a morte de Jesus. (1) Paulo. Em 1Cor 7,10-12, Paulo afirma que o valor das palavras do Senhor (Jesus) é superior ao das suas próprias palavras. Quanto àqueles que estão casados, ordeno não eu, mas o Senhor: a mulher não se separe do marido – se, porém, se separar, não se case de novo, ou reconcilie-se com o marido – e o marido não repudie a sua esposa! Aos outros digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem esposa não cristã e esta consente em habitar com ele, não a repudie (BJ. Grifo nosso).

Também em 1Cor 11,23-26, com relação aos problemas em Corinto atinentes à ceia em comum dos cristãos, Paulo cita a autoridade do próprio Jesus para resolver a questão. Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo, após a ceia, também tomou o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim”. Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha (BJ. Grifo nosso).

A autoridade de Paulo para seu Evangelho lhe foi dada pela revelação especial recebida do Cristo ressuscitado, como vemos na seguinte passagem: Com efeito, eu vos faço saber, irmãos, que o Evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, pois eu não o recebi nem aprendi de algum homem, mas por revelação de Jesus Cristo. [...] Quando, porém, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça, houve por bem revelar em mim o seu Filho, para que eu evangelizasse entre os gentios, [...] (Gl 1,11-12.15-16. Grifo nosso).

E também, Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras (1Cor 15,3-4. Grifo nosso).

Nas palavras do próprio Paulo, a autoridade da sua missão deriva em primeiro lugar do seu encontro com Cristo ressuscitado (1Cor 9,1 e Gl 1,15-16) que, segundo

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os Atos dos Apóstolos, apareceu-lhe na estrada para Damasco (9,1-19; 22,6-16.1218), mas em segundo lugar procede dos ensinamentos de Jesus que ele recebeu de outros na Igreja (1Cor 15,1-3). (2) 2 Clemente. Para o autor desconhecido de 2 Clemente (c. 120-140, mas não depois de 170), a autoridade dos seus comentários deriva das “Escrituras” (sem dúvida, as Escrituras judaicas) e em seguida dos “livros e dos apóstolos”. Creio que não ignorais que a “Igreja viva é o corpo de Cristo”. Pois a Escritura diz: “Deus os fez homem e mulher” [Cf. Mc 10,6]; o homem é Cristo, a mulher é a Igreja. Além disso, os livros e os apóstolos afirmam que a Igreja não pertence ao presente, mas existe desde o princípio; ela era espiritual, como também o era Jesus, mas ele se revelou nos últimos dias para poder salvar-nos (14,2. Grifo nosso).

Nessa passagem, é quase certo que “os livros” é referência às Escrituras do Antigo Testamento (ver também 2Tm 4,13) e “os apóstolos” provavelmente remete à tradição do Novo Testamento, comum nas igrejas tanto em forma oral e possivelmente também em forma escrita. Se assim for, esse texto é uma indicação antiga de que a tradição do Novo Testamento ocupava uma posição paralela às Escrituras do Antigo Testamento, enquanto ambas são fontes autorizadas a que o autor recorre para fundamentar os seus ensinamentos sobre a Igreja preexistente. Nesses primórdios, os apóstolos são os “fiadores” da tradição do Novo Testamento, mas a autoridade deles deriva da autoridade de Jesus. A semelhança aqui é com os “mandamentos do Senhor” confiados aos apóstolos, que podemos ver em 2Pd 3,2. Novamente, em 2 Clemente 2,4, o autor cita Mc 2,17 (ou Mt 9,13), introduzindo as palavras de Jesus como um apelo à Escritura. Ele escreve: “E outra Escritura também diz: ‘Eu não vim chamar justos, mas pecadores’. Ele quer dizer que aqueles que estão perecendo devem ser salvos, pois é admirável e maravilhoso fortalecer os que estão caindo” (2 Clemente 2,4-6). Aqui, como em 14,2 citado acima, parece que as palavras de Jesus que ainda não haviam encontrado uma forma fixa universalmente aceita, já nos primórdios, eram reconhecidas estando no mesmo nível e estreitamente relacionadas com a autoridade das Escrituras do Antigo Testamento. As palavras de Jesus eram usadas para fundamentar argumentos teológicos e a conduta moral na Igreja nascente. Para o autor, se Jesus pronunciou as palavras reproduzidas, elas tinham autoridade de Escritura. (3) Epístola de Barnabé (c. 90-130). Essa epístola é um tratado teológico pseudônimo produzido por um gentio cristão interessado na morte de Cristo como sacrifício no sentido veterotestamentário. De duas citações evangélicas, ele introduz uma (Mt 22,14) ao modo de Escritura: “Acautelemo-nos para que, como está escrito, não estejamos entre ‘os muitos chamados, mas poucos escolhidos’” (Barnabé 4,14. Grifo nosso). A expressão “como está escrito” implica que as palavras de Jesus equivaliam em autoridade ao Antigo Testamento, isto é, as palavras de Jesus, quando escritas, equivaliam a Escritura. Essa passagem pode também indicar que um texto evangélico individual – todo o Evangelho em si – começava a se revestir de autoridade igual à das Escrituras do Antigo Testamento, de modo especial se a fonte

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nesse texto fosse o próprio Jesus. (4) Inácio (c. 110-117). Uma passagem frequentemente citada da carta de Inácio aos Filadelfienses mostrava sua preferência pelo “Evangelho” (provavelmente o querigma ou pregação de Jesus e sobre Jesus na tradição oral e/ou escrita da Igreja) à autoridade das Escrituras do Antigo Testamento. Ele escreve: Exorto-vos a não fazer nada com espírito de rixa, mas segundo o ensinamento de Cristo. Eu escutei que alguns diziam: “Se eu não encontro nos arquivos,17 não creio no Evangelho”. E quando eu lhes dizia que está escrito, respondiam-me que era preciso provar. Para mim, o arquivo é Jesus Cristo; meus arquivos invioláveis são a sua cruz, sua morte, sua ressurreição, e a fé que vem dele. É nisso que eu desejo ser justificado, mediante vossas orações (Inácio, Filadelf. 8,2. Grifo nosso).

Parece que Inácio considerava os ensinamentos de Jesus superiores à autoridade das Escrituras veterotestamentárias (“arquivos”). Mais especialmente, esse texto mostra que, para Inácio, o locus principal da autoridade para a fé cristã estava no evento Jesus Cristo e, mais especificamente, na primitiva pregação cristã sobre “sua cruz, morte e ressurreição”. O significado pleno dessa tradição não está claro em Inácio, mas parece que as tradições orais e/ou escritas relacionadas a Jesus Cristo eram a autoridade superior para ele. Ver, por exemplo, sua tríplice fonte de autoridade (o Senhor, ou Jesus, os Apóstolos e os Profetas) e a prioridade dada a Jesus na citação da Carta aos Filadelfienses acima. Observar também como os “Apóstolos” começam a ocupar seu lugar em seguida ao “Senhor” (Jesus). Meus irmãos, transbordo de amor por vós e, numa grande alegria, procuro fortalecer-vos, não eu, mas Jesus Cristo. Acorrentado nele, temo bastante, pois ainda sou imperfeito. Entretanto, a vossa oração a Deus me tornará perfeito, a fim de que obtenha a herança recebida na misericórdia, refugiando-me no Evangelho como na carne de Jesus e nos apóstolos, como também no presbitério da Igreja. Amemos os profetas, porque eles também anunciaram o Evangelho, esperaram nele e o aguardaram. Crendo nele, foram salvos; permanecendo na unidade de Jesus Cristo, santos dignos de amor e admiração, receberam o testemunho de Jesus Cristo e foram admitidos no Evangelho da nossa esperança comum (Inácio, Filadelf. 5,1-2. Grifo nosso).

Inácio conhecia vários escritos do Novo Testamento, especialmente os Evangelhos de Mateus e João e diversas epístolas de Paulo, e conquanto não chamasse essa literatura de “Escritura”, os paralelos destacados, bem evidentes, mostram que ele conhecia e aceitava a autoridade dessas tradições. O que Jesus disse nesses documentos expressa para ele as atitudes e a conduta a serem vividas pelos cristãos. Também para Inácio as palavras de Jesus tinham valor de Escritura. (5) Policarpo. Em sua Carta aos Filipenses (c. 140-155), Policarpo escreveu vários parágrafos importantes reconhecendo a autoridade de Jesus na Igreja, e também parece estender essa autoridade aos apóstolos. Ele reconhecia a autoridade dos ensinamentos e do exemplo de Jesus e exortava seus ouvintes a obedecer a esses ensinamentos e a imitar esse exemplo. Veja os excertos a seguir. Aquele que o ressuscitou dos mortos também nos ressuscitará, se fizermos a sua vontade, se caminharmos em seus mandamentos e se amarmos o que ele amou, abstendo-nos de toda injustiça, ambição, amor ao dinheiro, maledicência, falso testemunho, não retribuindo o mal com o mal, injúria com injúria, agressão com agressão, maldição com maldição, mas lembrando-nos do que o Senhor nos

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ensinou: “Não julgueis para não serdes julgados; perdoai e sereis perdoados; usai misericórdia para receber misericórdia; a medida com que medirdes, servirá também para vós; felizes os pobres e aqueles que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino de Deus” (Policarpo, Carta aos Filipenses 2,2.3. Grifo nosso).

Em seguida vemos a autoridade das palavras de Jesus relacionada à autoridade das palavras dos escritos do Novo Testamento (os apóstolos?) nas primitivas comunidades cristãs em que Policarpo exercia o seu ministério, e também sua advertência sobre o perigo de adulterá-los. Evidentemente, não se pode adulterar a autoridade de Jesus, nem os escritos dos que o seguiram fielmente e refletiram os seus ensinamentos. Essa é quase a advertência do Ap 22,18-19 (compare com Dt 4,2; 12,32), praticamente equivalente a uma Escritura, isto é, de natureza imutável. Policarpo escreve: Quem não confessa que Jesus Cristo veio na carne é anticristo” [compare a 1Jo 4,2]; aquele que não confessa o testemunho da cruz é do diabo; aquele que distorce as palavras do Senhor segundo seus próprios desejos e diz que não há ressurreição, nem julgamento, esse é primogênito de Satanás. Por isso, abandonando os discursos vazios de muitos e falsos ensinamentos, retornemos à palavra que nos foi transmitida desde o começo. Permaneçamos sóbrios nas orações e perseveremos nos jejuns. Supliquemos em nossas orações ao Deus que tudo vê, para não cairmos em tentação, pois assim diz o Senhor: “O espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Policarpo, Filip. 7,1.2. Grifo nosso).

Reconhecendo o exemplo de Jesus como norma ou modelo para a comunidade cristã, o seguinte comentário de Policarpo também é instrutivo: “Imitemos, portanto, a perseverança dele. Se sofrermos por causa do seu nome, o glorificaremos. De fato, esse é o modelo que ele nos apresentou em si mesmo, e nós cremos nisso” (Policarpo, Filip 8, 2. Grifo nosso). Ele também cita o Sl 4,5 e Ef 4,26, identificando-os como “Escrituras”. Embora o fragmento original grego dessa passagem se tenha perdido, o texto latino ainda é bem instrutivo. Policarpo escreve: Creio que sois bem versados nas Sagradas Letras [in sacris litteris] e que não ignorais nada; isso, porém, não me foi concedido. Nessas Escrituras está dito [Modo, ut his scripturis dictum est]: “Encolerizai-vos, mas não pequeis” e “Não se ponha o sol sobre a vossa cólera”. Feliz quem se lembrar disso. Acredito que seja assim convosco (Policarpo, Filip. 12,1. Grifo nosso).

Policarpo parece ter posto conscientemente no mesmo nível de autoridade uma Escritura do Antigo Testamento e um escrito cristão.18 O mínimo que se pode dizer sobre esses dois textos é que encontramos um apelo autorizado a textos encontrados tanto no Antigo como no Novo Testamento com a promessa de que as pessoas que seguirem essa exortação serão abençoadas. Essas passagens sugerem a atribuição de um caráter escritural às palavras e exemplo de Jesus, e Policarpo supõe que seus leitores cheguem à mesma conclusão. Policarpo também dá provas de uma tríplice fonte de autoridade nas primeiras igrejas (Jesus, os Apóstolos e os Profetas [= Escrituras do Antigo Testamento]) no seguinte comentário: “Assim, ‘sirvamos com temor e reverência’, conforme os preceitos dados por ele próprio, pelos apóstolos, que nos evangelizaram, e pelos profetas que antecipadamente pregaram a vinda de nosso Senhor” (Policarpo, Filip 6,3. Grifo nosso). Evidentemente, as palavras de

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Jesus, quando escritas como neste caso, assumem a função de Escritura mesmo que ainda não fossem especificamente chamadas de Escritura. Sobejamente claro nos exemplos acima é que, para Policarpo, o próprio Jesus era o cânone autorizado da Igreja. (6) Ptolomeu. Na Carta a Flora (c. 160), Ptolomeu, ao procurar definir as Escrituras judaicas (Antigo Testamento) e interpretá-las corretamente, recorre, ao longo de todo o texto, às “palavras do Salvador” (3,5.8; 4,1), ao mandamento do Salvador (5,9) e aos seus ensinamentos (7,9) como autoridade fundamental para os seguidores de Jesus. Ele também cita “o apóstolo” (João, em 3,6 citando Jo 1,3) como se fosse Escritura. Essas referências são especialmente importantes, uma vez que Ptolomeu não pertence ao círculo do que mais tarde ficou conhecido como cristianismo preponderante ou “ortodoxo”. Não obstante, elas mostram nitidamente que ele aceita a autoridade das palavras de Jesus, algumas delas extraídas de Mateus e outras de João. Com a autoridade derivada de uma adequada interpretação do Antigo Testamento, Ptolomeu também expõe o seu entendimento da autoridade da Lei de Moisés sancionada pela autoridade das palavras do Salvador. Um trecho mais longo desse texto está transcrito acima, mas observe novamente que a prioridade cabe às palavras do Salvador. Primeiro deves saber que toda a Lei contida no Pentateuco de Moisés não foi decretada por um único legislador – quero dizer, unicamente por Deus; alguns mandamentos são de Moisés e outros foram dados por homens. As palavras do Salvador nos revelam essa tríplice divisão. A primeira parte deve ser atribuída ao próprio Deus e às suas leis; a segunda, a Moisés, não no sentido de que Deus legisla através dele, mas de que Moisés estabeleceu algumas leis influenciado por suas próprias ideias; e a terceira, aos anciãos do povo, que parecem ter prescrito desde o início alguns mandamentos definidos por eles próprios. Ficarás sabendo agora como as palavras do Salvador comprovam a verdade dessa teoria (Carta a Flora 3,5-8, Barnstone, The Other Bible 622. Grifo nosso).

Embora Jesus seja claramente sua autoridade primordial, observe que Ptolomeu também cita Paulo como se fosse Escritura: Os discípulos do Salvador e o apóstolo Paulo mostraram que essa teoria é verdadeira, falando da parte relacionada com imagens, como já dissemos, ao mencionarem “a Páscoa para nós” e o “pão ázimo”; da lei entrelaçada com a injustiça, quando diz que “a Lei dos mandamentos expressa em preceitos foi suprimida” [Ef 2,15]; e daquela desvencilhada de tudo o que é inferior, quando diz que a lei é santa, e santo, justo e bom é o preceito” [Rm 7,12] (Barnstone, The Other Bible 624. Grifo nosso).

(7) 2 Pedro. O autor de 2 Pedro (c. 150, mas possivelmente mais tarde, c. 180) refere-se aos escritos de Paulo dizendo que os “ignorantes e vacilantes [= os hereges – marcionitas ou gnósticos?] os distorcem, do mesmo modo que desvirtuam as demais Escrituras” (3,15-16). Ficamos com a impressão de que esse autor coloca as epístolas de Paulo em pé de igualdade com as Escrituras do Antigo Testamento (ou, menos provável talvez, com outros escritos cristãos) que eram reconhecidos como autorizados ou normativos na época da redação de 2 Pedro. Ele também está ciente do uso “herético” das cartas de Paulo, possível referência velada a Marcião. Por que as primeiras igrejas, da metade para o fim do séc. II, estenderam a

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autoridade de Jesus para os apóstolos e para suas testemunhas fidedignas? A explicação não se limita a um fator único, mas, com a adoção dos escritos neotestamentários na catequese e na pregação, e com sua leitura regular nos serviços religiosos, seu reconhecimento como Escritura seria uma questão de tempo. E com esse reconhecimento, sua inclusão numa coleção autorizada de Escrituras cristãs e sua inserção ao lado dos escritos do Antigo Testamento no culto cristão seguramente ocorreriam em pouco tempo. Os processos de canonização da literatura cristã começaram provavelmente no séc. I, com a aceitação da autoridade das palavras e realizações de Jesus, e o reconhecimento de parte dessa literatura como Escritura sagrada já ocorria na metade do séc. II. Mas esse processo só foi concluído no séc. IV e seguintes. (8) Justino Mártir (c. 150-160). Justino contribui com duas referências a favor do reconhecimento da condição escritural dos escritos evangélicos canônicos. Primeira: ele se refere às palavras de Jesus em Mt 11,27 introduzindo-as com a fórmula peculiar das Escrituras: “mas também no Evangelho está escrito que ele disse: ‘Tudo me foi entregue por meu Pai’ [Mt 11,27]; e ‘Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar’” [Mt 11,27] (Diálogo com Trifão 100,1ss., ver também 101,3. Grifo nosso). Além disso, Justino chama os Evangelhos de “memórias dos Apóstolos” (1 Apologia 64), servindo-se deles para estabelecer e defender a doutrina cristã (Diálogo com Trifão 100,1) e para narrar a história da paixão de Jesus. Ao introduzir citações de Lc 22,42.44, ele escreve: “Com efeito, nas Memórias que eu digo terem sido compostas pelos apóstolos ou por aqueles que os seguiram, está escrito que ele derramou suor com gotas de sangue” (Diálogo 103,8. Grifo nosso). Ele também se vale dos Evangelhos canônicos ao explicar o testemunho apostólico referente à Eucaristia, dizendo: “Foi isso que os apóstolos, nas Memórias por eles escritas, chamadas Evangelhos, nos transmitiram que assim foi mandado a eles, quando Jesus, tomando o pão e dando graças, disse...” (1 Apologia 66,3). Depois dessas palavras introdutórias, Justino cita Marcos 14,22-24 e 1 Coríntios 11,23-25 como descrições do que foi dito na Eucaristia. Ele também descreve o uso dos Evangelhos como material de leitura no ofício da Igreja, seja junto ou em substituição aos escritos do Antigo Testamento (“Profetas”). Ao descrever um ofício religioso cristão, ele diz que “no dia que se chama do Sol [domingo], celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas” (1 Apologia 67,3. Grifo nosso). Para Justino, os Evangelhos canônicos tinham uma função escritural e se igualavam em autoridade às Escrituras do Antigo Testamento (“Profetas”), apesar de ainda não os chamar de Escrituras. Estranhamente, porém, ele não se refere de modo explícito às cartas de Paulo, seguramente conhecidas em Roma bem antes do tempo dele. Por outro lado, Justino se refere ao Apocalipse de modo favorável (Diálogo com Trifão 81,4), deixando-nos uma das primeiras transcrições de uma passagem desse

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documento. Ele demonstra, assim, que o Apocalipse era aceito já naquela época nas igrejas ocidentais. Na 1 Apologia 28,1, ele se refere ao Apocalipse com a expressão “um dos nossos escritos”. (9) Mártires de Lião e Viena. Na carta conhecida como Os Mártires de Lião e Viena (c. 175-177) – citada e parcialmente preservada na História Eclesiástica (V,1,363) de Eusébio, são feitas inúmeras referências, citações e alusões a livros do Novo Testamento, inclusive algumas de escritos não canônicos. Uma das mais interessantes para os nossos objetivos é a referência ao Apocalipse 22,11 como Escritura. Ao descrever as terríveis perseguições dos cristãos locais, a carta diz em parte: “[...] o governador e o povo manifestavam contra nós idêntico e injusto ódio, cumprindo-se a palavra da Escritura: ‘Que o injusto cometa ainda a injustiça e que o justo pratique ainda a justiça’ [Ap 22,11]” (V,1,58). Além de demonstrar um elevado respeito pelo Livro da Revelação nas igrejas ocidentais, essa citação é também uma das referências mais antigas ao Apocalipse enquanto “Escritura” e uma das raras menções a esse livro no fim do séc. II. (10) Irineu (c. 170-180). Revelando uma tríplice autoridade nas primeiras igrejas (Jesus, Apóstolos e Profetas), Irineu diz: “o próprio Senhor testifica, os apóstolos confessam e os profetas proclamam” (Contra as Heresias III,17,4. Grifo nosso). É interessante observar que Irineu dispõe essas três autoridades precisamente nessa ordem (“profetas” em último lugar), mas essa disposição ainda se assemelha muito à tríplice autoridade sagrada que encontramos em outros lugares e em períodos anteriores no séc. II, como vimos acima. Irineu reconhecia a autoridade “do Senhor” (os ditos ou palavras de Jesus), dos apóstolos (principalmente Paulo) e dos profetas (escritos do Antigo Testamento conhecidos naquele tempo). Voltarei a Irineu mais adiante. (11) Taciano (c. 160-170). Taciano, discípulo de Justino, respeitava os quatro Evangelhos canônicos, mas não os considerava invioláveis. A primeira harmonia dos quatro evangelistas, por ele produzida, provavelmente valendo-se também de outras tradições evangélicas, é conhecida como Diatessaron (ou também “Evangelho dos Misturados”). Essa harmonia foi usada nas igrejas sírias até o séc. V, inclusive. Taciano eliminou as repetições e divergências constatadas nos Evangelhos e reuniuos em um único volume harmonioso. Parece que também incluiu o Evangelho de Pedro. Eusébio, falando dos grupos heréticos que surgiram com Taciano, escreveu o seguinte a respeito dessa obra: Seu primeiro chefe, Taciano, elaborou uma compilação e um compêndio, não sei como, dos Evangelhos, e deu-lhes o nome de Diatessaron. Alguns ainda o possuem. Afirma-se que ousou mudar determinadas expressões do apóstolo, sob pretexto de corrigir a sintaxe. Deixou numerosos escritos, entre os quais muitos mencionam especialmente o célebre Discurso aos gregos, em que rememora os tempos antigos e mostra que Moisés e os profetas dos hebreus são anteriores a todos os mais famosos autores gregos. Esse discurso aparenta ser o mais belo e útil de seus escritos (Hist. Ecles. IV,29,6-7. Grifo nosso, com exceção dos títulos das obras).

A iniciativa de Taciano é importante na medida em que, além de mostrar sua

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percepção do caráter inspirado e sagrado dos Evangelhos, também revela seu desejo de modificá-los com o objetivo de harmonizá-los. Na passagem acima, Eusébio diz que Taciano “ousou mudar determinadas expressões do apóstolo”. Depois de Taciano, Atenágoras (c. 180) e Teófilo de Antioquia (c. 190-200) adotaram os escritos de Paulo paralelamente aos Evangelhos como literatura cristã normativa. Atenágoras, por exemplo, recorre a Paulo para justificar a existência da vida após a morte. Portanto, permanece evidente o que diz o apóstolo: é preciso que este corpo corruptível e disperso se revista de incorruptibilidade, para que os que estavam mortos [...] recebam justamente, cada um, o que realizou por meio do seu corpo, bem ou mal” (Sobre a ressurreição dos mortos 18; cf. 1Cor 15,54).

Teófilo também demonstra grande dependência dos escritos de Paulo, especialmente Rm 2,7-9 e 1Cor 2,9, em seu apelo a Autólico para que ouça e reverencie a Palavra de Deus. Se queres, lê tu também com interesse as Escrituras dos profetas e elas te guiarão com mais clareza para escapares dos castigos eternos e alcançares os bens eternos de Deus. De fato, ele, que nos deu a boca para falar, que formou o ouvido para ouvir e fez os olhos para ver, examinará tudo e julgará com justiça, dando a cada um segundo os próprios méritos. Para aqueles que, segundo suas forças, buscam a incorruptibilidade através das boas obras, ele dará a vida eterna, a alegria, a paz, o descanso e uma multidão de bens, que nenhum olho viu, nenhum ouvido ouviu e nenhum coração humano sentiu; mas aos incrédulos, aos zombadores e aos que desobedecem à verdade e seguem a injustiça, depois de manchar-se com adultérios, fornicações, pederastias, avarezas e sacrílegas idolatrias, para esses existirá a ira e a indignação, a tribulação e a angústia, e, por fim, o fogo eterno se apoderará deles (Teófilo, A Autólico 1,14. Grifo nosso).

Essas referências são importantes porque mostram uma tendência crescente por parte da Igreja não só a reconhecer a autoridade que Jesus preservou nos Evangelhos, mas também a estender essa autoridade aos documentos em si. Observamos isso pela primeira vez nas obras de Justino e de outros que lhe seguiram o exemplo, quando as cartas de Paulo alcançaram nas igrejas uma maior autoridade como Escritura, especialmente nos escritos de Irineu, Teófilo de Antioquia e Atenágoras. É quase certo que, em torno do ano 200, o cerne da coleção de escritos cristãos com status de Escritura na Igreja em geral era constituído pelos quatro Evangelhos canônicos e pelas cartas de Paulo. Esse conjunto ainda não formava, de forma alguma, um cânone fechado dos livros do Novo Testamento, apesar de Irineu aceitar somente os quatro Evangelhos canônicos entre a literatura desse gênero, e eles posteriormente alcançarem um status escritural amplamente reconhecido na maioria das igrejas. A autoridade de Jesus sempre foi a mais importante na Igreja, embora os ensinamentos dele que sobreviveram até aquele tempo só se encontrassem, em sua maioria, nos Evangelhos escritos. Os escritos autorizados incluíam agora as Escrituras do Antigo Testamento, os ensinamentos de Jesus – presentes principalmente nos Evangelhos canônicos – e as cartas de Paulo. Entretanto, inúmeras outras obras do Novo Testamento circulavam nas igrejas com aceitação cada vez maior, chegando em alguns casos (Apocalipse) a ser reconhecidas como

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Escritura, à semelhança do que acontecera anteriormente com os Evangelhos e algumas cartas de Paulo. Na descrição do culto cristão mais antiga que conhecemos, Justino diz que as “memórias dos apóstolos” (Evangelhos) eram lidas com os Profetas, pelo tempo que fosse possível. O texto mais completo dessa passagem, acima transcrita, é o seguinte: Depois dessa primeira iniciação, recordamos constantemente entre nós essas coisas e aqueles de nós que possuem alguma coisa socorrem todos os necessitados e sempre nos ajudamos mutuamente. Por tudo o que recebemos, bendizemos sempre ao Criador de todas as coisas, por meio de seu Filho Jesus Cristo e do Espírito Santo. No dia que se chama do Sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos e elevamos nossas preces. Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas ações de graças e todo o povo exclama, dizendo “amém”. Vem depois a distribuição e recebimento, por parte de cada um, dos alimentos consagrados pela ação de graças e seu envio aos ausentes pelos diáconos. Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua livre vontade, dá o que bem lhe parece, e o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por carência ou outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros de passagem; numa palavra, ele se torna o provisor de todos os que se encontram em necessidade. Celebramos essa reunião geral no dia do Sol, porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno [sábado], e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol [domingo], ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas doutrinas que estamos expondo para vosso exame (1 Apologia 67. Grifo nosso).

Esses primeiros textos cristãos, de autoria apostólica, conforme se acreditava, eram citados regularmente em argumentações contra as heresias, como vemos no caso de Irineu, no fim do séc. II (170-180). Para ele, os gnósticos estavam ameaçando a Igreja, por isso escreveu contra eles, citando inúmeros escritos do Novo Testamento em suas exposições. Conquanto alguns autores do séc. II admitissem o valor dos escritos cristãos do séc. I e os usassem como Escritura, essa prática não era universal na época. Pelo fim do séc. II, mesmo muitos concordando que os escritos cristãos equivaliam a Escrituras, havia divergências quanto a quais livros precisamente haviam alcançado essa condição. Nessa época, algumas igrejas adotavam vários escritos do Novo Testamento no culto, na instrução, nas discussões teológicas com hereges e em argumentos polêmicos contra os que faziam ameaças à paz e à estabilidade da Igreja. No séc. II, não obstante os Evangelhos e várias cartas de Paulo serem citados com frequência, não havia consenso geral sobre os escritos a que se devia recorrer para tratar dessas questões. Também não havia debates em torno da transformação desses escritos em uma coleção fixa de livros sagrados do Novo Testamento. OS ÁGRAFOS: DITOS NÃO CANÔNICOS DE JESUS Frases ou sentenças de Jesus circulavam às centenas nas primeiras igrejas cristãs,

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muitas no que hoje chamamos de literatura não canônica. Cerca de 266 dessas frases ou sentenças, também denominadas ditos, foram descobertas em literatura extrabíblica, mas os estudiosos divergem com relação ao número desses ditos que constituem realmente palavras autênticas do Jesus histórico. Esses ditos, em geral denominados ágrafos, encontram-se em fontes apócrifas do Novo Testamento, como o Evangelho de Tomé e o Evangelho de Pedro. Obras dos primeiros Padres da Igreja e cópias de antigos manuscritos do Novo Testamento também os contêm. Os ditos alcançaram maior notoriedade recentemente por intermédio da obra de Joachim Jeremias, Palavras desconhecidas de Jesus, um livro pequeno, mas importante, que relaciona e comenta esses ditos. Segundo Jeremias, da lista bem maior desses ditos, somente 18 são autênticos, isto é, expressos por Jesus de fato. Depois de Jeremias, outros estudiosos o consideraram generoso demais e reduziram o número de frases ou sentenças autênticas de Jesus a uma lista de quatro a dez. Os dez ágrafos abaixo são os que receberam mais atenção e merecem destaque. Os mais aceitos entre esses estão assinalados com asterisco. São os seguintes: 1. “Como fordes encontrados, assim sereis levados [isto é, para julgamento]” (Liber Graduum Siríaco, Serm. III,3; 15,4). 2. “Pedi as grandes coisas, e as pequenas vos serão dadas de acréscimo” (Clemente Alexandrino, Stromata 1,24,158). 3. “Sede cambistas competentes!” (Ps. Clem. Hom. II,51,1; III,50,2; XVIII,20,4). *4. “No mesmo dia, Jesus viu um homem trabalhando no sábado. Disse-lhe: ‘Homem, se sabes o que estás fazendo, és bem-aventurado; se não sabes, és amaldiçoado e transgressor da lei!’” (Ver Lc 6,5 no Códice D). *5. “Quem está perto de mim está perto do fogo; quem está longe de mim está longe do Reino” (Evang. Tomé 82; Orígenes, In Jer. hom. lat. 3,3; Dídimo, In Ps., 88,8). *6. “(Aquele que hoje) está longe, amanhã (estará perto de vós)” (Papiro Oxyrhynchus 1224). *7. “E só então sereis felizes, quando olhardes para o vosso irmão com amor” (Evang. Hebreus 5, segundo Jerônimo, In Eph. 5,4). 8. “O Reino se assemelha a um pescador sensato que lançou sua rede ao mar; ele a retirou do mar cheia de peixes pequenos; entre eles encontrou um peixe grande e bom; o pescador sensato devolveu todos os peixes pequenos ao mar e escolheu o peixe grande sem remorso” (Evang. Tomé 8). 9. “Então, como estás? Pois te encontras no Templo. Estás, então, puro? [...] Ai de ti, cego que não enxerga! Tu te lavaste nesta água corrente, onde cães e porcos se jogam dia e noite, e lavaste e limpaste tua pele externa, que prostitutas e tocadoras de flauta também perfumam, lavam, limpam e adornam para despertar o desejo nos homens, mas internamente estão cheias de escorpiões e de toda espécie de maldade. Mas eu e meus discípulos, que dizes não nos termos lavado, [eu te asseguro que] nós o fizemos nas águas vivas e limpas que procedem [do

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Pai que está nos céus]” (Papiro Oxyrhynchus 840,2). *10. “E nunca vos alegreis, senão quando olhardes para o vosso irmão com amor” (Evang. Hebreus 5; compare Jerônimo, In Eph. 3 [sobre Ef 5,4]). Esses ditos extracanônicos de Jesus sem dúvida funcionaram como “cânone 1” (ver significado desse termo no capítulo 2), ou como autoridade, nas comunidades em que foram descobertos e circularam, apesar de nunca terem feito parte de uma coleção canônica fixa (“cânone 2”) nas comunidades cristãs em desenvolvimento. A questão hoje não é tanto se foram encontradas palavras autênticas de Jesus aqui ou acolá em fontes não canônicas, mas sim o que fazer com elas! Caso se comprovasse que são frases ou sentenças efetivamente pronunciadas por Jesus, deveríamos acrescentá-las às Escrituras canônicas da comunidade cristã? Elas também deveriam informar a teologia da Igreja hoje, como aconteceu no passado e, mais importante, ser lidas no culto litúrgico ou fazer parte da base autorizada para construir os ensinamentos doutrinários da Igreja? Os estudiosos não são unânimes em suas respostas a essas perguntas, mas fortalece-se cada dia mais a convicção de que fontes não canônicas contêm realmente alguns ditos autênticos de Jesus. Embora também haja divergências a respeito dos ditos extracanônicos efetivamente autênticos de Jesus, se a lista contiver apenas quatro ou cinco das sentenças relacionadas acima, qualquer alvoroço para incluí-los no cânone de Escrituras da Igreja resultará em pouco proveito. Não obstante, muitos biblistas concordam que eles podem ser um bom recurso para as pesquisas sobre o Jesus histórico. ESCRITOS CRISTÃOS APÓCRIFOS E NÃO CANÔNICOS Como a maioria dos estudiosos do processo canônico sabe, as evidências de autoria apostólica constituíram fator decisivo para definir as Escrituras e o cânone da Igreja. Além dos escritos que realmente entraram na composição do Novo Testamento, numerosas outras obras pseudepigráficas especificamente cristãs e atribuídas aos apóstolos não foram incluídas no cânone bíblico. Entre essas, temos evangelhos, vários atos, epístolas e apocalipses. Essa literatura é em grande parte sectária, e parece recorrer ao nome de um apóstolo para ser aceita em segmentos da comunidade cristã. Praticamente toda essa literatura é descrita em detalhe em outro lugar (New Testament Apocrypha, de Schneemelcher). Para conhecimento do leitor, elaboramos uma lista dos livros mais importantes dessa coleção, alguns dos quais só existem em fragmentos. Essa lista encontra-se no capítulo 2. Ela identifica os escritos considerados literatura sagrada em uma ou mais igrejas na Antiguidade, mas que por fim foram rejeitados pela maioria das igrejas. As dúvidas em torno da autoria desses escritos fizeram com que perdessem sua utilidade para a Igreja, até finalmente ser excluídos do cânone do Novo Testamento.

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CONCLUSÃO Constatamos uma progressão na aceitação e reconhecimento da autoridade e sacralidade dos escritos do Novo Testamento no cristianismo primitivo. Essa aceitação não aconteceu ao mesmo tempo ou nos mesmos lugares, nem no vácuo. A situação manteve-se oscilante durante um período de tempo considerável e a aceitação foi inconstante, na melhor das hipóteses, mas outros fatores contribuíram para o processo de seleção. No final, a maioria das igrejas aceitou os 27 livros do Novo Testamento. Ao longo do tempo, os escritos que melhor atendiam às necessidades contínuas e à missão das igrejas foram incluídos no cânone do Novo Testamento. No momento, porém, está claro que o processo precisou de um bom tempo para se desenvolver e raramente houve unanimidade nas igrejas. Isso se parece ao que as igrejas enfrentam hoje. Os livros mais aceitos em uma congregação são em geral negligenciados em outra, apesar de ambas as igrejas aceitarem a autoridade da mesma Bíblia. O cânone bíblico emergente das igrejas refletia especialmente o que elas acreditavam ser a verdade a respeito de Jesus, sua autoridade primeira e mais importante. A segunda autoridade era derivada, e procedia dos apóstolos, os quais, segundo a crença das igrejas, transmitiram fielmente a história de Jesus e suas implicações para uma vida cristã. Os livros mais aceitos entre os cristãos não foram selecionados devido a certo poder que algumas igrejas, especialmente a de Roma, tivessem para impor sua vontade sobre outras. Tampouco o foram devido aos recursos financeiros em mãos de algumas igrejas, como a de Roma. Esses livros foram mais aceitos porque, no entendimento da maioria dos cristãos, eram os que melhor comunicavam a história de Jesus e suas implicações para a vida da Igreja; além disso, eram as primeiras testemunhas dessa história, e as mais fidedignas. Um fator interveniente no processo canônico é mais polêmico do que os demais: a heresia, tema do próximo capítulo. No entanto, inúmeros outros fatores históricosociais precisam ser considerados como coadjuvantes no processo de canonização do Novo Testamento ao lado, dos critérios básicos que levaram as antigas igrejas a adotar os escritos do Novo Testamento. Esses fatores serão analisados no capítulo 7. No momento, concluímos admitindo que as referências e dados acima revelam a complexidade e expõem algumas etapas importantes envolvidas na canonização dos livros do Novo Testamento. Examinaremos a seguir o papel ou o suposto papel que os “hereges” do séc. II desempenharam para ajudar a Igreja a definir os escritos que constituiriam suas Escrituras Sagradas. OUTRAS LEITURAS ALLERT, C. D. Revelation, Truth, Canon and Interpretation: Studies in Justin Martyr’s Dialogue with Trvpho. Supplements to Vigiliae Christianae. Leiden, Boston e Colônia: E. J. Brill, 2002.

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INFLUÊNCIA DA “HERESIA” E DA “ORTODOXIA” SOBRE A FORMAÇÃO DO CÂNONE

Que papel exerceram a heresia e a ortodoxia na formação do cânone bíblico cristão? Dois argumentos conflitantes sobre essa matéria se destacaram, ambos partindo da premissa de que um desses fatores influiu decisivamente na composição final da Bíblia cristã. No primeiro deles, vários especialistas dissertam extensamente e sustentam que a formação do cânone do Novo Testamento foi essencialmente uma reação da Igreja a três heresias dominantes no séc. II. O segundo afirma que a Igreja enfrentou esses desafios fortalecendo a função do bispo e compondo credos, chamados regula fidei, mas, por fim, elaborou também um cânone de Escrituras (séc. IV) que refletia a perspectiva teológica desses credos. Como demonstraremos abaixo, a primeira dessas posições não resiste a um escrutínio histórico, e a segunda pode não ir muito longe. A formação do cânone do Novo Testamento muito provavelmente tem suas origens na aceitação e no uso dos escritos cristãos enquanto textos autorizados no culto e na instrução religiosa nas igrejas e, em seguida, no reconhecimento desses escritos como Escritura, realidades essas ocorridas ambas no séc. II. Em outras palavras, os processos de formação do cânone começaram o mais tardar no séc. II, mas a coleção fixa de livros judaicos e cristãos que constituem a Bíblia cristã só foi concluída nos sécs. IV e V. De modo geral, foram incluídos na Bíblia os escritos mais adaptáveis às necessidades do culto, da catequese e da missão da Igreja, os quais também permaneceram no cânone bíblico em formação. Como as necessidades e as circunstâncias vividas pelas igrejas variavam de um lugar para outro e de uma época para outra, os cristãos precisaram de mais tempo para chegar a um entendimento sobre a composição do seu Novo Testamento. Essa variedade de expressões no cristianismo do séc. II é evidenciada pela diversidade de perspectivas teológicas presentes nos antigos manuscritos que chegaram até nós e pelas muitas referências nas obras dos Padres da Igreja à atividade sectária nos sécs. II e III. No fim do séc. I e início do II, todos os apóstolos estavam mortos, Jesus não havia retornado, como acreditavam os cristãos, e várias heresias, especialmente o docetismo, surgido no fim do séc. I, afetavam a vida de muitas igrejas. Perseguições também começaram a irromper em diversas partes do império romano, fazendo com que as autoridades, deixando de considerar o cristianismo uma seita judaica, confiscassem os direitos de religio licita (religião autorizada e protegida). Como consequência, ao se recusarem a oferecer sacrifícios ao imperador, os cristãos eram

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penalizados com a perda dos bens e com outras sanções ainda mais severas. Essas circunstâncias, aliadas ao fato de haver pouco controle organizado sobre o pensamento teológico e sobre o desenvolvimento das igrejas na época, expuseram a Igreja a inúmeros desafios em sua passagem para o séc. II. Uma consequência dessas dificuldades foi o surgimento de um episcopado mais forte, com mais poderes atribuídos à função do bispo. Tempos difíceis normalmente exigem líderes fortes, e Inácio é o exemplo perfeito de alguém que precisou enfrentar não só a perseguição e o próprio martírio, mas também a heresia docética (do grego, dokeo = “eu pareço” ou “apareço”), segundo a qual Jesus apenas pareceu ter um corpo físico. Os docetas negavam a humanidade plena de Jesus. As cartas de Inácio refletem tanto as perseguições quanto a heresia que se infiltrava nas igrejas e propunham a atribuição de mais poder aos bispos para enfrentá-las. A composição de um episcopado com maiores poderes continuou e se expandiu ao longo do tempo. No período que podemos designar como “vácuo de autoridade” nas igrejas, após a morte dos apóstolos, surgiu uma grande diversidade teológica (o que mais tarde deu origem ao que se denominou ortodoxia), fato que impôs novos desafios à Igreja. Esta reagiu fortalecendo o múnus episcopal, criando credos que, para ela, refletiam o testemunho mais original e autêntico da fé cristã, e, finalmente (séc. IV), compondo um cânone de Escrituras que refletia essa perspectiva. Nas seções a seguir examinaremos a influência da heresia nas igrejas, como estas reagiram e as três principais heresias do séc. II. Começaremos com uma análise das ideias sectárias mencionadas acima e ofereceremos algumas perspectivas sobre o modo como as igrejas lidaram com elas. Esclarecemos que nem todas as igrejas do séc. II viram inicialmente como heresia o que nós hoje consideramos heresia; além disso, elas dispunham de poucos meios para enfrentar a diversidade com que se deparavam. No início do séc. II, as igrejas ainda não haviam chegado a um consenso sobre todas as questões relacionadas com suas crenças e ensinamentos. Consequentemente, era comum encontrar diferentes vozes nas igrejas da época. Como as igrejas enfrentaram esses desafios? O PAPEL DA “HERESIA” NA FORMAÇÃO DO CÂNONE BÍBLICO Muitos estudiosos sustentam que três principais heresias do séc. II (marcionismo, gnosticismo e montanismo) e a reação da Igreja a essas heresias são os fatores mais importantes que levaram a Igreja a compor seu cânone de Escrituras do Novo Testamento. Examinaremos esses movimentos através das atividades e escritos dos seus líderes nas igrejas do séc. II. Marcião Marcião (c. 140-150), nascido em Sinope, no Ponto, era um armador abastado e influente, proprietário de uma grande frota de navios mercantes. Nessa condição, ele

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fez contribuições financeiras vultosas à Igreja. No aspecto doutrinário, rejeitou as influências judaicas no cristianismo nascente e percebeu o valor de fundamentar sua fé e seus ensinamentos numa coleção limitada de obras cristãs autorizadas. Ele adotava essas obras na celebração dos serviços religiosos e na instrução em sua comunidade de igrejas. Seu sentimento contra o judaísmo demonstrava-se na rejeição do Deus do Antigo Testamento, que considerava cruel, e na aceitação do Deus de Jesus, amoroso e benevolente. Coerentemente, ele rejeitava também as Escrituras judaicas, que eram ao mesmo tempo as primeiras Escrituras da Igreja. Para Marcião, o Evangelho cristão representava a essência do amor incondicional ou absoluto e contrapunha-se fundamentalmente à Lei. Naquele tempo, a Igreja valorizava as Escrituras do Antigo Testamento, conferindo-lhes um caráter alegórico ou espiritualizado, mas Marcião repudiava quaisquer métodos de interpretação desse gênero. A Igreja adotava normalmente essa metodologia interpretativa para transformar o Antigo Testamento em Escritura relevante para a fé cristã. Na concepção de Marcião, porém, o cristianismo era algo totalmente novo, e ele sustentava que o Deus da Lei (Antigo Testamento) era um Demiurgo,19 ou o deus criador; o deus do Antigo Testamento não podia ser o mesmo Deus desconhecido do Evangelho e de Jesus. Por isso, ele fazia todo esforço possível para separar o cristianismo de sua herança judaica. Embora muitos digam que Marcião era gnóstico ou que talvez fosse muito influenciado pelo gnosticismo, ele pouco se identificou com as especulações mitológicas ou com as formas estranhas de interpretação da literatura bíblica peculiares dos gnósticos. Marcião é a primeira pessoa conhecida que produziu uma coleção bem definida do que mais tarde veio a ser conhecido como Escrituras cristãs. Como não temos fontes ou documentos marcionitas independentes, porém, dependemos totalmente dos seus críticos, especialmente Irineu e Tertuliano, para informações sobre suas ações e coleção de Escrituras. Felizmente, as informações desses dois Padres são abundantes e, em geral, consideradas fidedignas. Marcião aceitava tão somente uma forma editada do Evangelho de Lucas e dez epístolas de Paulo para leitura em suas igrejas. Ele não incluía as Epístolas Pastorais, talvez por não conhecê-las. Além disso, como sugerem alguns estudiosos, talvez elas tenham sido escritas depois da época de Marcião, e possivelmente em reação a ele (ver 1Tm 6,20). Um argumento a favor desse ponto de vista é que esses livros não se encontram no manuscrito de papiro do séc. II tardio ou início do séc. III, P46, o mais antigo manuscrito ainda preservado contendo a maior coleção de epístolas paulinas. Além disso, as Epístolas Pastorais não são citadas em outros documentos antes do fim do séc. II. Outro manuscrito de papiro, identificado como P32 (c. 200), contém apenas uma pequena porção de Tito. Existem algumas semelhanças verbais entre as Pastorais e os Padres Apostólicos, mas essas podem explicar-se pela presença de uma tradição oral comum que circulava nas igrejas no séc. II ou pela dependência mútua de documentos mais antigos que não são mencionados. Um bom argumento encontra-se

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mais tarde na referência de Irineu a Tito 3,10, em Contra as Heresias (I,16,3), onde ele menciona o nome de Paulo. Outros exemplos claros da aceitação e citação das Epístolas Pastorais por parte de Irineu encontram-se na citação de 1Tm 6,20 (Contra Heres. II,14,7), na referência a 2Tm 4,21 (III,3,3), e citando 2Tm 4,10 (III,14,1). As Epístolas Pastorais não eram muito citadas no séc. II e alusões ou “ecos” dessa literatura só começam a aparecer na segunda metade do séc. II e mais claramente com Irineu. Apesar das semelhanças de linguagem com os Padres Apostólicos, não é possível estabelecer uma dependência clara. Tertuliano afirmou especificamente que Marcião rejeitava as Epístolas Pastorais, observando que ele as conhecia muito bem, como vemos na passagem seguinte: Pergunto-me, porém, se, quando ele recebeu essa carta [a Filêmon] que foi endereçada a uma única pessoa, ele rejeitou as duas cartas a Timóteo e a carta a Tito, todas tratando da disciplina eclesiástica. Imagino que seu objetivo era estender seu processo de interpolação inclusive ao número de epístolas [de Paulo] (Contra Marcião 5,21).

Voltando ao nosso tema, vários estudiosos – a começar com Adolf von Harnack em 1921 – asseveram que Marcião foi o primeiro a produzir uma lista canônica de Escrituras cristãs e que as igrejas reagiram a essa ação produzindo um cânone mais inclusivo. Esse cânone conteria um Antigo Testamento e um conjunto maior de escritos cristãos, representando com mais exatidão o que as igrejas acreditavam ser sua vida e sua fé. Se Marcião realmente produziu um cânone bíblico, como afirmam esses especialistas, o fato teria aberto um precedente para a existência de outros cânones semelhantes no séc. II. Recentemente, estudiosos da Bíblia vêm abandonando essa posição, à medida que se aprofunda o conhecimento sobre a época e a influência de Marcião. Sem dúvida, Marcião conhecia outros Evangelhos além de Lucas, uma vez que Orígenes, em seu Comentário ao Evangelho de Mateus 15,3, cita a interpretação de Marcião de Mt 19,12. É quase certo, porém, que inicialmente ele só incluiu Lucas e as cartas paulinas em sua coleção. Ele não menciona a Carta aos Efésios, mas inclui uma Carta aos Laodicenses que pode ter sido a Carta aos Efésios com nome diferente. Não está claro se Marcião rejeitou especificamente outros escritos, uma vez que os dados que temos atualmente sobre ele não nos permitem chegar a essa conclusão. O argumento de que ele produziu o primeiro cânone bíblico fechado e, assim, abriu um precedente para que a grande Igreja fizesse o mesmo mais tarde, porém, é mais do que permitem as evidências de que dispomos. Nas obras dos primeiros Padres da Igreja, não encontramos provas que confirmem a opinião popular de que Marcião criou um cânone bíblico, nem que mostrem que ele simplesmente substituiu uma coleção de Escrituras sagradas (o Antigo Testamento) por outra (Paulo e Lucas). Essa conclusão nos leva além do que comprovam as evidências atuais e atribui a Marcião mais do que seus contemporâneos diziam a respeito da condição canônica de Paulo e Lucas. Temos evidências de que vários Padres da Igreja citaram autorizadamente os

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Evangelhos e as cartas de Paulo em suas obras bem antes de Marcião, como vemos nas Cartas de Inácio, na Didaqué e em 1 Clemente, de Clemente Romano. Esses autores conheciam e citavam os Evangelhos (principalmente Mateus), as cartas de Paulo e várias obras do Antigo Testamento ainda antes de Marcião exercer sua influência. Marcião não foi o primeiro a se referir a Paulo ou a Lucas, e os escritores da Igreja que mais tarde o contestaram nunca afirmaram que a sua coleção era tão limitada a ponto de as igrejas sentirem necessidade de expandir suas coleções dos primeiros escritos cristãos. Eles concluíram que o entendimento de Marcião a respeito da fé cristã era defeituoso e que sua rejeição das Escrituras judaicas e das raízes históricas da Igreja no judaísmo era equivocada. Isso está muito longe, porém, de se afirmar que Marcião produziu o primeiro cânone fechado de Escrituras cristãs. É possível que a recusa de Marcião a aceitar as Escrituras do Antigo Testamento fosse consequência das perseguições esparsas dos judeus aos cristãos que aumentavam na sua época. Como observamos anteriormente, do início até meados do séc. II, os judeus excediam os cristãos em número, numa proporção de mais de 60 ou 70 para um. Podemos ver a oposição dos judeus aos cristãos nas denúncias às autoridades daqueles contra estes, que inclusive causaram o martírio de Policarpo na metade do séc. II (ver O Martírio de Policarpo, capítulos 13, 17 e 18), quando os cristãos não estavam mais sob o regime de “religião autorizada”. Por isso, suas reuniões eram ilegais e, quando presos, muitos eram torturados para negar sua fé, morrendo em consequência dos flagelos.20 Marcião também pode ter se recusado a aceitar as influências judaicas devido ao declínio significativo da popularidade dos judeus no séc. II, depois de sua fracassada revolta contra Roma, iniciada pelo movimento messiânico de Bar Kokeba na Palestina (132-135 EC). Seja qual for o motivo, a aversão de Marcião pelo judaísmo e pelo que ele chamava de deus vingativo das Escrituras judaicas levaram-no a rejeitar as raízes judaicas do cristianismo e a adotar somente os escritos que considerava importantes para a Igreja. Nessa época, porém, os escritos do Novo Testamento ainda não eram chamados Escritura de modo geral. No entanto, já na metade do séc. II, como vimos no capítulo anterior, vários escritos do Novo Testamento, especialmente os Evangelhos canônicos (principalmente Mateus) e as cartas de Paulo (principalmente 1-2 Coríntios e Romanos) começavam a ser usados com as Escrituras do Antigo Testamento no culto e na instrução catequética nas igrejas. Até meados do séc. II, várias comunidades/igrejas cristãs começaram a perceber a utilidade de um corpo de literatura cristã para sua vida e culto. É difícil vislumbrar a condição canônica dos escritos cristãos nessa época, pois eles só começam a ser chamados de “Escritura” pelo fim do séc. II. Por causa disso, antes de se concluir sobre seu uso ou função nas primeiras igrejas, cada referência ou citação deve ser considerada em si mesma. Esse fato não impede o uso de escritos cristãos nas primeiras igrejas, mas a denominação Escritura ainda não estava generalizada. Naquele tempo, ainda não existia a ideia de uma coleção cristã normativa fixa de

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escritos do Novo Testamento à qual se pudesse recorrer. Marcião, como outros no seu tempo, viu a importância do uso de escritos cristãos autorizados no culto, na instrução e na missão de sua comunidade de igrejas, mas seu intento não era tanto estabelecer uma coleção fixa e normativa de escritos do Novo Testamento (um Paulo editado e um Lucas condensado), mas, sim, provocar a separação entre o judaísmo e o cristianismo. Seu viés antijudaico o levou a rejeitar o Deus do Antigo Testamento, as Escrituras do Antigo Testamento e todas as demais influências judaicas sobre o cristianismo nascente. Talvez com mais sensibilidade do que outros da sua época, Marcião percebia a dificuldade de aceitar os livros do Antigo Testamento como escritos sagrados normativos para a Igreja, quando grande parte dessa literatura não era mais considerada relevante ou impositiva para os cristãos. Isso se aplicava de modo especial à observância dos preceitos legais e morais, além de outras tradições associadas à Lei. Crente de que seguia uma compreensão correta dos ensinamentos de Paulo, ele afirmava que os cristãos estavam livres da Lei e que, portanto, não havia motivo para manter uma fidelidade simbólica àquelas tradições que a fé em Cristo tornara obsoletas. Ele rejeitou o emprego de métodos arbitrários para interpretar o Antigo Testamento, isto é, o recurso à alegoria ou à tipologia por parte de muitos cristãos para encontrar sentido e orientação nessa literatura. Sua rejeição do Antigo Testamento e da interpretação alegórica desses escritos despojava a Igreja não só de suas Escrituras, mas também de sua dileta pretensão à herança da antiguidade de Israel e a ser a religião da plenitude da História. A Igreja respondeu ao desafio de Marcião devolvendo suas generosas doações e excomungando-o. Mais tarde, Tertuliano escreveu que Marcião havia “interpolado” as cartas de Paulo e, também, “como nosso herege gosta tanto da sua faca, não me admiro quando sílabas são eliminadas por sua mão, visto que páginas inteiras são em geral a matéria sobre a qual ele pratica seu processo de supressão” (Contra Marcião 5,18,1). Não há na Igreja primitiva evidências de que Marcião tenha denominado sua coleção de escritos especificamente “Escritura” ou “cânone”, mesmo considerando-se que ela cumpre essa função. Antes, parece que os livros do Novo Testamento que ele incluiu exerciam o papel de Escritura sagrada na sua comunidade de igrejas; e ele podia dispor desses escritos apenas porque igrejas antes dele também tinham usado escritos de Paulo e os haviam encaminhado a outras igrejas. É seguro supor que várias cartas de Paulo circulavam na Ásia Menor, e também em Roma, no fim do séc. I. O próprio Paulo pode ter incentivado essa propagação (ver Cl 4,16). Clemente Romano (c. 95-96 EC), por exemplo, demonstra conhecer quatro epístolas de Paulo. Finalmente, nenhuma literatura do séc. II sugere que as igrejas enfrentaram os desafios apresentados pelos ensinamentos de Marcião produzindo uma coleção fixa mais ampla de Escrituras cristãs. Apesar da forte reação às ações de Marcião (ver Irineu, Contra as Heres. IV,29-34; Tertuliano, Contra Marcião 4,2), ela não implicou

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a criação de um cânone de Escrituras do Novo Testamento. As igrejas do séc. II reagiram a Marcião com sua regula fidei ou “regra de fé”, que era fundamentada por inúmeras referências tanto ao Antigo como ao Novo Testamento, e pelos ensinamentos transmitidos nas igrejas. Não sabemos com certeza quantos outros escritos cristãos Marcião conhecia, mas seus seguidores se sentiram livres para editar sua obra e mesmo incluir versículos de outros Evangelhos canônicos. Efraim Siro da Síria (c. 306-373 EC), por exemplo, dizia que os seguidores de Marcião não haviam rejeitado Mt 23,8 (Cântico 24,1). Do mesmo modo, tanto Jo 13,34 como 15,19 são citados autorizadamente por Marcos, um marcionita, em um texto de Adamâncio (Diálogo 2,16.20, c. 310-320). Não temos condições de demonstrar se Marcião conhecia todos os quatro Evangelhos canônicos e outros escritos do Novo Testamento além dos que constavam da sua lista, mas é provável que conhecesse pelo menos o Evangelho de Mateus, devido à sua popularidade no séc. II; seus seguidores seguramente conheciam outras obras cristãs. Quando constatamos que os discípulos acrescentaram aos escritos de Marcião uma coletânea de Salmos, mais tarde rejeitada pelo autor do Fragmento Muratoriano (ver linhas 83-84), e que, ao que tudo indica, os marcionitas armênios teriam aceito o Diatessaron de Taciano, concluímos que não é com Marcião que chegamos a um cânone bíblico fechado, nem mesmo que sequer chegamos a um cânone bíblico. Valentim (c. 135-160) Como observamos acima, é provável que coleções de escritos cristãos já existissem e circulassem nas igrejas antes de Marcião. Tertuliano (c. 200 EC), por exemplo, comparava Valentim (vivendo em Roma c. 136-165 EC) com Marcião, dizendo que o primeiro usou todas as Escrituras e as corrompeu, ao passo que Marcião usou a faca para suprimir tudo aquilo de que ele não gostava. O conhecido texto é o seguinte: Um homem corrompe as Escrituras com sua mão, outro o significado delas com sua interpretação. Embora Valentim pareça usar o volume inteiro, ele lança mãos violentas sobre a verdade, mas com astúcia e habilidade maiores do que Marcião. Marcião usou clara e abertamente a faca, não a caneta, efetuando excisões das Escrituras para adaptá-las ao seu material. Valentim absteve-se de fazer excisões, porque não inventou Escrituras para ajustá-las ao seu material, mas adaptou seu material às Escrituras; e, todavia, retirou mais, e acrescentou mais, removendo o sentido próprio de cada palavra e agregando arranjos fantásticos de elementos sem existência real (Prescrições Contra as Heresias 38,4ss. Grifo nosso).

As palavras “volume inteiro” (latim: integro instrumento) estariam aludindo a uma coleção de Escrituras, talvez livros do Novo Testamento, mas possivelmente também às Escrituras do Antigo Testamento. O contexto favorece os primeiros, visto que Tertuliano pergunta a ambos, Marcião e Valentim, com que direito usam as Escrituras que receberam dos apóstolos do modo como as usavam (Prescrições 32). É provável que a referência aqui não seja aos escritos do Antigo Testamento, pois na época de

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Tertuliano o emprego do termo “Escritura” para escritos do Novo Testamento era mais comum do que antes. Para se referir ao Antigo Testamento, ele, às vezes, emprega a designação “um volume” (Prescrições 36), mas o contexto parece remeter a uma coleção do Novo Testamento. Sem dúvida, Tertuliano acreditava que Valentim, diferentemente de Marcião, havia adotado uma coleção de livros do Novo Testamento semelhante à que ele próprio usava, mas atribuiu-lhe um sentido diferente. O Evangelium Veritatis (Evangelho da Verdade), descoberto recentemente e que alguns estudiosos acreditam ter sido escrito por Valentim, dá mostras de conhecer os quatro Evangelhos, várias cartas de Paulo, Hebreus e o Apocalipse. Na hipótese de uma datação mais antiga dessa obra, esta seria a coletânea mais antiga e ampla de referências aos escritos do Novo Testamento que temos desse período. O Apocalipse, por exemplo, bem mais aceito nas igrejas ocidentais do que nas orientais nos sécs. II e III, está incluído nessa coleção. No entanto, ao condenar Marcião e Valentim, é possível que Tertuliano se baseasse em parte em uma compreensão das Escrituras do Novo Testamento do seu próprio tempo (c. 200 EC), e não necessariamente do tempo deles. Quando Marcião e Valentim escreveram seus tratados, as condições tanto do Novo como do Antigo Testamento, e dos escritos que por fim foram excluídos da literatura canônica, ainda eram incertas e instáveis. Os gnósticos Uma das seitas cristãs mais influentes no séc. II, o gnosticismo, exerceu em enorme impacto sobre muitas comunidades cristãs. Até 1945, quando uma coletânea bastante volumosa de aproximadamente 40 escritos foi descoberta em Nag Hammadi, nas proximidades do Alto Nilo, no Egito, tudo o que se sabia a respeito desse grupo era o que constava da tradição ortodoxa transmitida por escritores do séc. II, como Justino, Irineu, Clemente de Alexandria, Tertuliano e Hipólito de Roma. Com a descoberta desses documentos, foi possível examinar pela primeira vez suas crenças a partir da perspectiva dos próprios gnósticos. As origens das ideias gnósticas são obscuras, e muitos estudiosos atuais acreditam ter existido uma forma pré-cristã de pensamento gnóstico que deveria grande parte de suas crenças a concepções helenísticas sobre a imortalidade e a maldade essencial do componente material e físico do mundo e do homem. Para muitos, algumas igrejas alimentaram esses conceitos devido ao malogro das convicções judaicas relacionadas com a vinda futura do Filho do Homem. Jesus não retornou, fato que produziu um impacto importante sobre as igrejas que estavam em desenvolvimento no séc. II. Alguns componentes fundamentais desse complexo sistema de pensamento radicavam-se nos conceitos helenísticos predominantes em torno da dualidade espírito-matéria: o espírito é divino, a matéria é má. No entendimento judaico e cristão, essa perspectiva dualista manifestava-se no conflito entre o bem e o mal, com o bem finalmente vencendo o mal, como mostra o livro do Apocalipse. A noção

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generalizada de que o corpo (matéria) é a prisão da alma (espírito) e de que a alma precisa ser libertada do corpo reflete-se no pensamento gnóstico do séc. II. Do mesmo modo, para o gnosticismo cristão, o deus-criador (um demiurgo ou artesão) era inferior ao Deus desconhecido de Jesus. O conceito gnóstico de salvação surgiu através de um conhecimento especial que revelou a natureza da origem celeste da alma e seu subsequente aprisionamento num corpo, ou mundo da matéria, preservando, porém, a possibilidade de ascender e retornar à sua morada original (o céu). Na Antiguidade, o interesse pelo conhecimento não é exclusivo do gnosticismo, mas é característica do pensamento gnóstico a ênfase dada ao autoconhecimento. O Evangelho de João se refere seguidamente ao ato de conhecer (cerca de 60 vezes), mas esse Evangelho não é gnóstico, nem ensina que a criação é má ou que é resultado da ação de um deus mau ou demiurgo. A ênfase em João é ao conhecimento de Deus, que leva a pessoa a um relacionamento correto com Deus, e não ao eu, à autorrealização (ver Jo 14,7-14.17; 17,3). O gnosticismo e suas diversas seitas também se opunham aos ensinamentos cristãos sobre a ressurreição do corpo, como no caso de Paulo, por exemplo, que se manifestou em Atenas sobre a ressurreição de Jesus (At 17,30-34). Podemos ver a concepção gnóstica de salvação e sua ênfase no autoconhecimento numa citação de um discípulo de Valentim, da metade do séc. II, registrada nos Excertos de Teódoto, de Clemente de Alexandria: “O que liberta é o conhecimento de quem éramos, do que nos tornamos; de onde estávamos, aonde fomos jogados; para onde corremos, de onde somos resgatados; do que é o nascimento e do que é o renascimento” (Exc. Teod. 78,2). A concepção cristã de um Deus assumindo uma natureza humana contrariava as ideias predominantes entre os gregos e romanos. O que quer que fossem, os deuses estavam sempre distantes e eram indiferentes (apatheia) à realidade humana. Essa visão divergia das crenças judaicas e cristãs, apesar de alguns judeus (em geral os mais prósperos e instruídos) terem aprendido a se adaptar às perspectivas helenísticas dos gregos. O judaísmo e o cristianismo nascente ocupavam-se com a atividade de Deus na história humana. Tanto para o cristianismo nascente como para o judaísmo do séc. I, Deus era um criador benevolente, mas, além disso, para os cristãos, era também o ser que ressuscitara Jesus fisicamente do sepulcro. A principal diferença entre os judeus da tradição farisaica e da tradição rabínica posterior e os primeiros cristãos quanto a essa questão girava em torno da ressurreição física de Jesus, não em torno do conceito de ressurreição do corpo do sepulcro. Os pensadores gnósticos contestavam e rejeitavam esses conceitos. Sem dúvida, algumas ideias dos gnósticos cristãos (não os do apogeu do gnosticismo cristão do séc. II) encontradas no séc. II provavelmente também circulavam na Palestina, no século anterior ao nascimento de Jesus. Nessa época, judeus ricos e influentes da Palestina e também muitos da diáspora (que superavam em número os judeus palestinos, numa proporção de três ou quatro para um)

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assimilaram costumes e conceitos da cultura grega. Mais recentemente, os estudiosos passaram a distinguir entre gnose e gnosticismo. Gnose é o conhecimento dos mistérios divinos reservado a um grupo de elite; “gnosticismo” denota um sistema gnóstico totalmente desenvolvido no séc. II. A expressão gnóstica do cristianismo exerceu grande influência tanto a oeste quanto a leste da Palestina e foi precursora do mandeísmo e do maniqueísmo dos sécs. II e III. A seita gnóstica conhecida como mandeísmo começou a leste do Jordão no fim do séc. I ou no séc. II EC. Os mandeus ensinavam que o corpo aprisiona a alma, mas o redentor, Manda da Hayye, que personificava o conhecimento da vida e derrotava os poderes das trevas na terra, libertaria a alma. Para auxiliar nessa luta pela liberdade, eles adotavam as práticas de batismos frequentes e da imposição das mãos pelos sacerdotes. Tanto o conhecimento como os rituais eram os veículos que conduziam à salvação. Um pequeno número de cristãos ainda pratica o mandeísmo no moderno Iraque, perto de Bagdá. O maniqueísmo, outra seita gnóstica, começou com Manes (c. 216-276 EC), que nasceu perto da capital persa. Manes transformou as ideias da seita judaico-cristã em que foi educado em um esquema gnóstico completo de salvação através do ascetismo e do conhecimento. A influência dos maniqueus fez-se sentir especialmente no Norte da África, mas eles eram conhecidos também em Roma e até no Sudeste da China. O próprio santo Agostinho abandonou essa seita e se converteu ao cristianismo ortodoxo. Como muitas figuras em expressões cristãs do gnosticismo derivam de imagens bíblicas do Antigo Testamento, suas raízes podem ser associadas ao contexto judaico palestino. O gnosticismo influenciou significativamente muitas igrejas nos sécs. II e III. O próprio Marcião pode ter recebido parte dessa influência na medida em que ele, como também os gnósticos, rejeitavam o deus do Antigo Testamento e aceitavam o Deus desconhecido e mais benevolente de Jesus. Os sistemas do pensamento gnóstico que mais se desenvolveram nas igrejas do séc. II foram os de Basílides e de Valentim. Irineu era um severo e implacável crítico desses movimentos; ao refutar a forma valentiniana da doutrina gnóstica, ele afirmou que as ideias do gnosticismo tinham origem em Simão Mago, mencionado em Atos 8 (Contra as Heres. I,23,1). É possível que Irineu tenha colhido muitas informações a respeito do pensamento gnóstico em uma obra de Justino Mártir, Contra Todas as Heresias, hoje perdida. No âmago desse movimento gnóstico estava a crença de que o mundo (e toda matéria) veio à existência através do pecado, da negligência e da ignorância de seres espirituais. A salvação se dá através de uma centelha divina que veio à terra e despertou alguns para o conhecimento (gnose) do seu parentesco com Deus e para a possibilidade de retornar a ele. O Redentor, que aparece pela primeira vez no gnosticismo cristão, dissipou a ignorância e trouxe o autoconhecimento para as pessoas espiritualizadas que estavam em condições de recebê-lo. Entre os muitos

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aspectos importantes comumente característicos do gnosticismo cristão está o destaque dado à astrologia, que vê os astros em movimento como maus. Os “éons”, antes entendidos como períodos de tempo na atual era do mal – em oposição à futura era do bem –, eram agora entendidos como os próprios espíritos astrais. O pensamento apocalíptico judaico dualista destacava o tempo do mal no presente e o tempo do bem triunfante no futuro, com ambos coexistindo por algum tempo. O pensamento gnóstico, por sua vez, ressaltava o espírito no céu – bom – no presente, e a carne e a matéria na terra – más – também no presente. Esses sistemas rejeitavam o Deus dos judeus, provavelmente em consequência de suas esperanças malogradas, e se afastaram dos judeus. Alguns deles eram inclusive antijudaicos. Repetindo, os vários sistemas de pensamento gnóstico eram muito complexos e essencialmente um amálgama de vários sistemas de pensamento, entre os quais o helenístico, o judaico, o cristão, o zoroastriano, o mesopotâmio e o indiano. O leitor que desejar aprofundar seus conhecimentos sobre esse sistema de pensamento pode consultar as obras de referência relacionadas ao fim deste capítulo, na seção Outras leituras. Esta breve descrição de algumas características do gnosticismo talvez confunda os que desconhecem os princípios fundamentais da doutrina gnóstica. Com efeito, o novato que queira assimilar todas as Ogdóades, Décades, Tétrades, outros Éons e emanações do Pleroma, descritos meticulosamente por Irineu, provavelmente se perderá nos detalhes e se sentirá desestimulado a prosseguir sua busca. Para os nossos objetivos, a relevância dos cristãos gnósticos está ligada a uma tendência comum entre alguns estudiosos do cânone a afirmar que a chamada comunidade cristã ortodoxa reagiu aos desafios representados pelos cristãos gnósticos definindo com maior esmero sua coleção de Escrituras sagradas. Dizem esses estudiosos que a comunidade ortodoxa excluiu os escritos gnósticos e restringiu as Escrituras cristãs à sua própria coleção, a qual acabou se tornando o nosso Novo Testamento. A questão que se coloca nesse contexto, porém, é que Irineu e outros Padres da Igreja não contestaram os cristãos gnósticos limitando uma coleção de Escrituras sagradas (um cânone bíblico) ou polemizando para limitar o número de escritos cristãos, mas, sim, recorrendo à verdade da “regra de fé”. O argumento cristão era que a regra de fé chegara à Igreja por sucessão apostólica através dos bispos, sendo esse repositório apostólico utilizado para distinguir as primeiras tradições da Igreja daquelas que surgiram no séc. II. Observe, por exemplo, o famoso raciocínio desenvolvido por Irineu: Ora, se os apóstolos tivessem conhecido os mistérios escondidos e os tivessem ensinado exclusiva e secretamente aos “perfeitos”, sem dúvida os teriam confiado de modo especial àqueles a quem entregavam a liderança das próprias igrejas (Contra as Heres. III,3,3).

E, ainda, Sendo as nossas provas [da verdade] tão fortes, não é necessário procurar em outras pessoas [os hereges] aquelas verdades que facilmente podemos encontrar na Igreja, porque os apóstolos

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trouxeram, como num rico celeiro, tudo o que pertence à verdade, a fim de que cada um que o deseje, encontre aí a bebida da vida. É ela definitivamente o caminho de acesso à vida, e todos os outros são assaltantes e ladrões que é mister evitar. Por outro lado, deve-se amar com zelo extremo o que vem da Igreja e guardar a tradição da verdade. Ora, se surgisse alguma controvérsia sobre questões de mínima importância, não se deveria recorrer a igrejas mais antigas, onde viveram os apóstolos, para saber delas, sobre a questão em causa, o que é líquido e certo? E o que deveríamos fazer se os próprios apóstolos não nos tivessem deixado as Escrituras? Não seria necessário [nesse caso] seguir a ordem da tradição que transmitiram àqueles aos quais confiavam a liderança das Igrejas? (Contra as Heres. III,4,1. Grifo nosso.)

É praticamente impossível negar a vigorosa lógica de Irineu aqui, apesar de ser difícil confirmá-la nas tradições que subsistiram. Os apóstolos seguramente teriam transmitido os ensinamentos sagrados para seus sucessores, os líderes ou bispos das igrejas. Como no caso de Marcião e seus seguidores, a presença de escritos gnósticos no fim do séc. II não levou as igrejas “ortodoxas” a definir com mais precisão os limites das Escrituras do Novo Testamento, como alguns sustentam, embora reafirmassem a adoção das Escrituras judaicas como próprias. Elas abordaram suas preocupações com as ideias gnósticas recorrendo à sua regula fidei ou “regra de fé”, um cânone da verdade que teria sua origem com o próprio Jesus, sendo transmitido fielmente através dos mais próximos dele, os apóstolos. Esse “cânone”, ou “regra de fé”, foi também fator distintivo em decisões canônicas posteriores, que integraram ou suprimiram determinados livros cristãos do cânone bíblico. Da perspectiva de Irineu, esse cânone de fé incluía o seguinte: Com efeito, a Igreja, espalhada pelo mundo inteiro, até os confins da terra, recebeu dos apóstolos e de seus discípulos a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e a terra, o mar e tudo quanto nele existe; e em um só Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito Santo que, pelos profetas, anunciou os desígnios de Deus, a vinda, o nascimento pela Virgem, a paixão, a ressurreição dos mortos, a ascensão ao céu em seu corpo, de Cristo Jesus, dileto Senhor nosso; e a sua vinda dos céus na glória do Pai, para recapitular todas as coisas e ressuscitar toda carne do gênero humano; a fim de que, segundo o beneplácito do Pai invisível, diante do Cristo Jesus, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, “todo joelho se dobre nos céus, na terra e nos infernos, e toda língua confesse” [Fl 2,10-11]; e execute o justo julgamento de todos: enviando para o fogo eterno os espíritos do mal, os anjos prevaricadores e apóstatas, assim como os homens ímpios, injustos, iníquos e blasfemadores; e para dar em prêmio a vida incorruptível e a glória eterna aos justos, aos santos e aos que guardaram os seus mandamentos e perseveraram no seu amor, alguns desde o início, outros, depois de sua conversão (Contra as Heres. I,10,1; comparar com III,4,2).

Nos escritos do séc. II, as evidências de uma relação direta entre a conduta da Igreja perante a heresia gnóstica e o desenvolvimento de um cânone de Escrituras ortodoxas não são convincentes. Indiretamente, porém, é possível que por fim os escritos gnósticos fossem avaliados em termos do que em geral as igrejas ensinavam sobre Jesus Cristo e outros assuntos correlatos. Assim, esses escritos eram rejeitados por serem incongruentes com o “repositório apostólico” a que Irineu e outros se referiam e ensinavam. Esse repositório é, às vezes, denominado posição “protoortodoxa” da Igreja, tendo surgido antes das posições ortodoxas mais íntegras advogadas no séc. IV. Conquanto seja fácil para os “vencedores” da história da Igreja reescrever essa

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história de modo a favorecê-los, as evidências do séc. II mostram que os cristãos ortodoxos, quer fossem a maioria ou os mais capazes, quer fossem os defensores dessa posição, impuseram-se com força suficiente para pôr em movimento o triunfo da ortodoxia que surge no séc. IV. Não é certo que os cristãos, no fim do séc. II, fossem em sua maioria “ortodoxos” no sentido que esse termo veio a assumir. Não está claro por que exatamente os cristãos gnósticos perderam o jogo do poder no cristianismo ortodoxo, mas porque isso aconteceu, grande parte da história do movimento se perdeu e sem dúvida algumas ideias importantes por ele propostas também desapareceram. Naturalmente, poderíamos dizer isso a respeito de todas as seitas cristãs que foram rejeitadas pela maioria das igrejas. O que temos hoje não é senão um pequeno volume da atividade literária realizada pela comunidade gnóstica. Voltando ao nosso ponto principal, as igrejas do séc. II não reagiram à ameaça do cristianismo gnóstico produzindo um cânone fixo de Escrituras cristãs, mas, sim, promovendo uma regra (cânone) de fé que foi transmitida nas igrejas. Essa regra de fé, afirmava-se concludentemente, refletia uma compreensão prévia da fé cristã (proto-ortodoxia) que, através dos bispos, foi transmitida nas igrejas desde os apóstolos. Os montanistas Finalmente, Montano, possivelmente um ex-sacerdote de Cibele, associou-se a duas mulheres, Prisca e Maximila, e dirigiu-se para a Frígia, na Ásia Menor, dizendose inspirado pelo Paráclito (Espírito) com um anúncio da parusia ou vinda do Senhor. Juntos, eles produziram um forte impacto sobre a população de toda aquela região. Muitos cristãos receberam os ensinamentos montanistas com entusiasmo em todo o mundo mediterrâneo, especialmente no Norte da África, onde o próprio celebrado Tertuliano se converteu a esse novo movimento carismático. A mensagem dos montanistas orientava-se para o fim dos tempos, quando Jesus voltaria, e para o papel do Espírito; também interpretavam a mensagem do Apocalipse de forma muito peculiar e especial. Os montanistas pregavam a necessidade de uma “Nova Profecia”, um ascetismo rígido, o martírio e a presença e poder do Espírito Santo. Eusébio informa que os montanistas produziram um grande número de documentos proféticos (Hist. Ecles. V,16,3-4). Os adversários mais vigorosos dos montanistas e da sua nova profecia na Ásia Menor, os chamados alogianos ou álogos (nome derivado de sua rejeição do “logos” ou “verbo” divino do prólogo de João), rejeitavam o Evangelho e o Apocalipse de João, muito usados pelos montanistas. A grande Igreja também reprovou o movimento montanista e hesitou com relação ao Evangelho de João, pela ênfase atribuída ao Paráclito e ao Apocalipse, dado o seu caráter apocalíptico. Os alogianos questionaram a própria epístola aos Hebreus, por estar associada à crise montanista, provavelmente devido à sua visão da condição irremediável do cristão apóstata (ver Hb 6,4-6 e 10,26-31); uma visão, porém, que coincidia com a rígida

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prática penitencial dos montanistas. Até pelo ano 200, os montanistas haviam expandido sua influência até Roma e o Norte da África, apesar de ser mais intensa entre as comunidades rurais. Em seu entusiasmo, os montanistas escreveram muitos livros “proféticos” que, segundo eles, eram inspirados por Deus. Alguns especialistas em cânone, especialmente Hans von Campenhausen – e Bruce M. Metzger, concordando com ele –, sustentaram que os montanistas produziram um grande volume de literatura e que essa nova literatura foi determinante para que a Igreja se apressasse a definir com mais precisão os limites de suas Escrituras sagradas. Mas eles produziram alguma obra com valor de Escritura? Os estudiosos se dividem quanto a essa questão. De acordo com Hipólito, os montanistas produziram “inúmeros livros” (Elench. VIII,19,10), e Tertuliano defendeu a prática de produzir literatura inspirada, uma vez que, segundo ele, é mero preconceito dar atenção e valorizar apenas demonstrações passadas de poder e graça, e que “as pessoas que condenam o poder único do único Espírito Santo de acordo com idades cronológicas devem tomar cuidado” (Paixão de Perpétua 1,1-2). Ele afirmava que esses novos escritos procediam de Deus “que, segundo o testemunho da Escritura, destinou-os precisamente para este período do tempo” (Paixão Perp. 1,1). Tertuliano não queria eliminar a possibilidade de que uma nova literatura inspirada informasse sua fé cristã. A adesão de Tertuliano ao montanismo sem dúvida influenciou suas ideias sobre esse tema, mas ele também percebeu que não havia argumentos históricos ou teológicos a favor da limitação do número de textos sagrados cristãos àqueles de uma geração precedente. Discípulos de von Campenhausen sustentam que a maioria das igrejas rejeitou as profecias montanistas, basicamente, porque elas contrariavam os primeiros escritos cristãos (do Novo Testamento). Numa polêmica contra os montanistas, registrada por Eusébio, um certo Apolinário escreveu: Caro Arvício Marcelo, faz muito tempo que me instaste a escrever contra a heresia dos chamados partidários de Milcíades. Hesitei até agora, não por achar impossível impugnar a mentira e dar testemunho da verdade, mas porque receava e evitava parecer de certo modo adicionar ou retirar algo à palavra evangélica do Novo Testamento (cf. Ap 22,18-19), onde é impossível acréscimo ou corte para quem escolheu proceder de acordo com o próprio Evangelho. Recentemente eu estava em Ancira da Galácia e encontrei a igreja local dividida por esse novo movimento [montanistas] que não é, conforme eles dizem, profecia, mas, antes, pseudoprofecia, como será demonstrado. No quanto me foi possível, com o auxílio do Senhor, discutimos em todas as ocasiões a respeito deles e dos argumentos que apresentam, durante vários dias, em comunidade. Assim, a Igreja se alegrou e fortificou na verdade; os adversários foram na oportunidade batidos e nossos inimigos se contristaram (Hist. Ecles. V,16,3-4. Grifo nosso).

Von Campenhausen e outros concluíram que os montanistas e sua produção de numerosos livros estavam entre os principais fatores (não os únicos) que apressaram a Igreja a definir mais precisamente os livros que pertenceriam ao Novo Testamento. Vários estudiosos continuam a sustentar que nesse momento teve início a última fase do processo de canonização. Novamente, porém, não temos provas que permitam

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concluir que a Igreja concluiu o processo de canonização em consequência de sua interação com os montanistas. Se a maioria das igrejas estava interessada em concluir o cânone do Novo Testamento naquele tempo, a expectativa seria encontrar várias listas de literatura canônica nesse período, como encontramos no séc. IV, mas essas listas inexistem no séc. II, do mesmo modo que inexistem nas igrejas debates em torno dessa matéria. Como acontece com Marcião e com os gnósticos, as igrejas do séc. II reagiram ao montanismo e a todos os movimentos heréticos semelhantes com uma compreensão da verdade cristã. Elas não reagiram oferecendo uma coletânea de Escrituras fechada ou fixa. Para defender-se, recorreram à sua compreensão da fé cristã que acreditavam ter-lhes sido transmitida através dos seus bispos. Elas também se serviram de maneira livre e extensa dos escritos da comunidade cristã primitiva, especialmente dos Evangelhos e das cartas de Paulo, para fundamentar suas críticas a esses movimentos. A INFLUÊNCIA “ORTODOXA”: PREPARANDO O CAMINHO Não existem provas de que os movimentos heréticos do séc. II tenham forçado a Igreja a estabelecer os limites de suas Escrituras. No entanto, é correto dizer que as conversas com os próprios hereges a respeito de suas crenças seguramente levaram a Igreja a rejeitar as obras heréticas e a refletir sobre a literatura e os ensinamentos sagrados ou religiosos que melhor refletiam sua identidade e sua proclamação. Ao surgirem concepções teológicas em torno de Jesus divergentes das já solidamente estabelecidas, instrutores proto-ortodoxos as rejeitavam e ofereciam argumentos convincentes contra elas, os quais eram amplamente aceitos pela maioria das igrejas. O resultado foi que os escritos de muitos hereges e de suas comunidades acabaram sendo recusados e abandonados. Por que uma igreja continuaria a copiar e preservar obras que, segundo ela, não refletiam mais suas crenças fundamentais? É improvável que decisões sobre a composição da Bíblia fossem tomadas sem que a maioria dos cristãos finalmente concordasse a respeito da identidade de Jesus. Foram necessários aproximadamente três séculos para que a Igreja chegasse a esse consenso. Jesus era Deus, homem, anjo, Espírito, homem-Deus? Os mentores da Igreja debateram essas questões extensamente durante o séc. IV e também depois, nas controvérsias com os arianos. Alcançada uma unanimidade maior sobre esse tema, foi possível identificar os textos sagrados que refletiam essa perspectiva, pois o processo de formação do cânone encontrava-se em suas etapas finais. Isso não quer dizer que as igrejas no séc. II não fizessem ideia do que acreditavam a respeito de Jesus, mas apenas que muitas outras vozes se faziam ouvir nelas nos sécs. II e III, refletindo inúmeras perspectivas diferentes. No início do séc. III, temos evidências da influência dessa “regra de fé” em algumas igrejas. Por exemplo, quando os cristãos de Rosos (ilha da Síria) pediram permissão ao seu bispo, Serapião de Antioquia (c. 200), para ler o Evangelho de Pedro em sua igreja, inicialmente ele autorizou. Mais tarde, no entanto, depois de ler

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esse escrito, Serapião percebeu que o texto negava a humanidade de Jesus. Ele imediatamente anulou sua decisão anterior e proibiu a leitura do livro. Sua decisão baseou-se em uma regra de fé, e não em uma coleção fixa de livros inserida em um cânone do Novo Testamento. Se Serapião tivesse fundamentado sua decisão em uma coleção limitada de Evangelhos, conforme sustentara Irineu cerca de 30 anos antes, ele teria negado a autorização no instante mesmo em que foi solicitada. A carta que remeteu aos seus fiéis foi assim preservada por Eusébio: Efetivamente, nós, irmãos, acolhemos Pedro e os outros apóstolos como se fossem o próprio Cristo; mas, enquanto homens experientes, cônscios de nada de semelhante termos recebido, rejeitamos os pseudoepígrafos com esses nomes. Eu também, quando ao vosso lado, supunha que estáveis todos apegados à fé verdadeira, e sem ter lido o Evangelho que me foi apresentado sob o nome de Pedro, eu disse: “Se é somente isso que vos parece contrário, pode ser lido”. Mas agora soube que dissimulava certo senso herético; ao menos assim me foi comunicado. Voltarei, portanto, depressa para junto de vós. Por isso, irmãos, aguardai-me dentro em breve. Nós, porém, irmãos, tendo sabido a que heresia pertencia Marcião, o qual se contradiz a si mesmo, desconhecendo o que afirma, conforme podeis verificar por aquilo que vos foi escrito, pudemos, efetivamente, por meio de outros adeptos deste Evangelho, isto é, os sucessores de seus primeiros introdutores – que denominamos docetas, pois a maioria de suas ideias pertence a essa doutrina –, pudemos, digo, por este meio, obter de empréstimo o livro, percorrê-lo e encontrar ali, junto da verdadeira doutrina do Salvador, alguns acréscimos que submetemos a vosso juízo (Hist. Ecles. VI,12,3-6. Grifo nosso).

Serapião percebeu que esse livro era pseudônimo e por isso não podia ser lido, mas só chegou a essa conclusão depois de ler o documento e constatar nele a presença de ideias docetistas e gnósticas. Como consequência, sua preocupação com a verdade – o entendimento difundido da verdade de Jesus e a respeito de Jesus –, que era o principal destaque das igrejas na segunda metade do séc. II, levou-o a rejeitar o documento. Esse foco, a ortodoxia, tornou-se uma das principais preocupações das igrejas no período compreendido entre a metade e o fim do séc. IV, quando os parâmetros das Escrituras cristãs foram estabelecidos e o cânone passou a significar uma coleção bastante precisa de escritos sagrados. Quatro líderes “proto-ortodoxos” importantes do final do séc. II e primeira parte do séc. III participaram dos amplos e extensos processos que levaram as igrejas a definir e identificar seu cânone bíblico. No estudo a seguir, examinaremos brevemente suas contribuições para a composição de uma coleção fixa (cânone) de Escrituras cristãs. Irineu Irineu de Lião (escrevendo em torno de 170–180) efetuou uma transição importante na formação do cânone do Novo Testamento. Diferentemente de Justino, ele não defendeu apenas as Escrituras do Antigo Testamento, mas também identificou explicitamente e sustentou a autoridade dos escritos cristãos, especialmente dos quatro Evangelhos canônicos. Seu objetivo não era tanto estabelecer um cânone bíblico ou uma coleção fechada de escritos sagrados – pois não discute esse assunto nem dispõe de uma linguagem apropriada para uma tradição bíblica fixa –, mas, sim, estabelecer e afirmar a verdade da mensagem cristã. Sua contribuição para a

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formação do cânone foi o primeiro grande passo de vários processos que levaram à formação do cânone de Escrituras do Novo Testamento. Como observamos acima, o “cânone” de Irineu não era uma lista de livros inspirados, mas o cânone da fé de Jesus Cristo e em Jesus Cristo que ele acreditava ter sido transmitido desde os apóstolos até os bispos. Esse era o “depósito” apostólico que ele enunciou em seu Contra as Heresias (III,2,2). A síntese da “fé”, ou “cânone”, realizada por Irineu, da qual a Igreja dependeu para sua vida e testemunho, merece atenção cuidadosa. Os princípios fundamentais desse cânone se tornaram os pilares de sustentação da “ortodoxia” na Igreja e constituíram parte importante da maioria das antigas formulações do credo. Para demonstrar a autenticidade e a autoridade dos seus ensinamentos, Irineu se apoiou nas Escrituras do Antigo Testamento que lhe eram conhecidas e em obras cristãs muito bem escolhidas. Até onde sabemos, e como dissemos anteriormente, foi ele que cunhou as denominações Antigo Testamento e Novo Testamento, afirmando que ambos constituem Escrituras da Igreja e escritos sagrados para a fé cristã. Irineu introduz a premissa dos seus argumentos com as palavras: “Portanto, agora como então [isto é, em ambos os Testamentos], o justo julgamento de Deus é o mesmo que [...]” (Contra as Heres. IV,28,1). A mesma ideia encontra-se também em seu breve comentário no fim do Livro II de Contra as Heresias, onde diz: [...] as nossas palavras estão todas em harmonia com a pregação dos apóstolos, o ensinamento do Senhor, o anúncio dos profetas e dos apóstolos, o ministério da Lei que louvam um único e mesmo Deus-Pai, de quem todas as coisas têm sua origem, e não de deuses ou potências diferentes [...] (II,35,4).

Em outra passagem, ele escreve: Se, portanto, encontramos também no Novo Testamento que os apóstolos deram alguns preceitos como concessão por causa da incontinência de alguns [...] não nos devemos admirar se, já no Antigo Testamento, o próprio Deus quis fazer alguma coisa parecida para o bem do seu povo [...] para que este pudesse obter o presente da salvação (Contra as Heres. IV,15,2).

Não era ideia ou preocupação de Irineu estabelecer um cânone fechado de Escrituras inspiradas, mas, sim, defender a mensagem cristã com todas as ferramentas à sua disposição contra os promotores do que ele considerava afastamentos heréticos da verdadeira fé apostólica. Ele alicerçava o conhecimento da fé apostólica adquirido pela Igreja nos ensinamentos transmitidos através da sucessão de bispos e na autoridade das Escrituras do Novo e do Antigo Testamento. Pelo que sabemos, ele próprio nunca relacionou os livros que constituíam seja o seu Antigo, seja o seu Novo Testamento. No séc. IV, quando Eusébio arrolou os livros sagrados aceitos por Irineu, é provável que tenha composto essa lista simplesmente nomeando os textos cristãos citados por Irineu. Irineu ressaltou a noção de sucessão apostólica repetidas vezes, mas em nenhum lugar mais claramente do que nesta passagem: Os bem-aventurados apóstolos que fundaram e edificaram a Igreja transmitiram o governo episcopal a Lino, o Lino que Paulo lembra na carta a Timóteo. Lino teve como sucessor Anacleto. Depois dele, em terceiro lugar depois dos apóstolos, coube o episcopado a Clemente, que vira os próprios apóstolos

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e estivera em relação com eles, e que ainda guardava viva em seus ouvidos a pregação deles e diante dos olhos a tradição [...] A Clemente sucedeu Evaristo; a Evaristo, Alexandre; em seguida, sexto depois dos apóstolos, Sisto; depois dele, Telésforo, que fechou a vida com gloriosíssimo martírio; em seguida, Higino; depois, Pio; depois dele, Aniceto. A Aniceto sucedeu Sotero e, presentemente, Eleutério, em décimo segundo lugar na sucessão apostólica, detém o pontificado. Com esta ordem e sucessão chegou até nós, na Igreja, a tradição apostólica e a pregação da verdade. Esta é a demonstração mais plena de que é uma e idêntica a fé vivificante que, fielmente, foi conservada e transmitida, na Igreja, desde os apóstolos até agora (Contra as Heres. III,3,3. Grifo nosso).

Para Irineu, o testemunho apostólico foi o princípio determinante fundamental para o reconhecimento da autoridade das Escrituras do Novo Testamento (Contra as Heres. III,2,2). Deve-se também observar que ele não limitou essa sucessão do testemunho apostólico aos bispos de Roma (Contra as Heres. III,3,2). No caso de questões tratadas com pouca clareza no “depósito apostólico”, ou se os apóstolos não tivessem deixado nenhum ensinamento por escrito, onde deveríamos procurar a resposta? Para Irineu, a resposta evidente está com os que receberam o depósito apostólico: os bispos das igrejas. Ver sua argumentação em Contra as Heres. III,4,1, citada neste capítulo, acima (p. 175s). A preocupação de Irineu em preservar a verdade do Evangelho resultou na atitude da Igreja de passar a reconhecer escritos cristãos (especialmente os Evangelhos, mas também Paulo) como Escrituras. Excetuando sua afirmação de que os Evangelhos não podiam ser mais do que quatro (Mateus, Marcos, Lucas e João), nada indica em suas obras subsistentes que sua coleção fosse fechada na sua época. Não obstante, considerando a literatura mais citada por ele e seus comentários em torno do depósito apostólico, é provável que tivesse escolhido os escritos mais antigos produzidos pelos apóstolos ou pelos que participaram da comunidade apostólica. No séc. IV, Eusébio (Hist. Ecles. V,8,2-8) registrou que Irineu havia reconhecido um cânone de Escrituras, mas talvez esse não fosse necessariamente o caso. Não há dúvida de que Irineu seguia uma regra de fé a que recorria regularmente (ver Contra as Heres. I,10,1; cf. III,4,2), e muitas vezes fundamentava seus ensinamentos fazendo referências à comunidade apostólica a que Cristo havia confiado esse “depósito apostólico”, ou seja, a comunidade apostólica e seus escritos (Contra as Heres. IV,15,2). Sem dúvida, Irineu aceitava os escritos do Novo Testamento como Escritura em paridade com as Escrituras do Antigo Testamento. Se suas referências ou citações podem ser tomadas como indicações do que considerava autorizado, ele não citou nem prestigiou Hebreus, Tiago, Judas e 2 Pedro, mas aceitou a autoridade do Pastor de Hermas. Para Irineu, as Escrituras eram evidentemente constituídas da coleção ainda variável de livros do Antigo Testamento, dos quatro Evangelhos e de várias cartas de Paulo. Como as informações que dele temos se limitam a escritos ad hoc, isto é, textos que abordam questões específicas enfrentadas pelas igrejas, não temos condições de afirmar que conhecemos todos os livros que ele aceitava como Escritura. Curiosamente, numa declaração bem otimista sobre a interpretação da Escritura, ele diz que “todas as Escrituras, profecias e Evangelhos podem ser

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compreendidos por todos de modo claro e sem ambiguidade” (Contra as Heres. II,27,2. Grifo nosso). Estará ele sugerindo que na sua época só eram considerados Escrituras os Evangelhos e os livros do Antigo Testamento, qualquer que fosse a composição deste? Irineu é dúbio a esse respeito, embora sem dúvida inclua cartas de Paulo em sua coleção de escritos apostólicos autorizados. A natureza ad hoc dos escritos de Irineu seguramente influenciou a literatura por ele escolhida para fundamentar seus argumentos. Entre as fontes que teria considerado úteis para a defesa da ortodoxia, não se encontram necessariamente todos os livros que ele aceitava como Escrituras ou como escritos autorizados. Curiosamente, o número de referências à literatura do Antigo Testamento é menor do que o de menções aos livros do Novo Testamento. Para Irineu, “apóstolos” constitui uma coleção de escritos aparentemente distintos dos autores dos Evangelhos, mas não há clareza sobre outros escritos que compõem “apóstolos” (ver Contra as Heres. I,3,6). Exceção feita ao seu cânone fechado dos Evangelhos, nada em seus escritos sugere que tenha efetuado um procedimento de “canonização” com outros livros cristãos. Como ele citava com frequência escritos que depois foram excluídos pela Igreja – 1 Enoc, Pastor de Hermas e 1 Clemente –, não é fácil descortinar a estrutura de suas Escrituras sagradas. Clemente de Alexandria (c. 150–215) Tito Flávio Clemente, provavelmente nascido de pais pagãos, em Atenas, em torno de 150 EC, converteu-se à fé cristã e estudou com Panteno, diretor da Escola Catequética de Alexandria. Ele sucedeu a Panteno na direção da escola (c. 190–200) e expandiu os objetivos catequéticos originais da instituição – educar novos convertidos – para torná-la um centro educacional “para a formação de teólogos”. Durante as perseguições de Sétimo Severo (193–211), Clemente fugiu para o Egito, até por fim estabelecer-se na Capadócia. À semelhança de outros que o precederam, Clemente mencionou ou citou muitos escritos do Novo Testamento como Escritura, por exemplo, os quatro Evangelhos canônicos, Atos, quatorze epístolas de Paulo (Hebreus era atribuída a Paulo), 1-2 João, 1 Pedro, Judas e Apocalipse, mas não fez menção a Tiago, 2 Pedro e 3 João. O interessante é que ele também citou vários textos não canônicos para fundamentar suas ideias: Epístola de Barnabé, 1 Clemente, Pastor de Hermas, Pregação de Pedro, Escritos Sibilinos e a Didaqué. Também Clemente não elabora uma lista de todos os livros que considerava inspirados por Deus. É interessante o comentário de Eusébio sobre as obras que informavam a teologia clementina; ele mostra o interesse do teólogo por diferentes textos religiosos e o uso que deles faz. Nos Stromata, não tece apenas uma tapeçaria da Escritura divina, mas rememora também doutrinas, úteis a seu ver, extraídas dos escritos gregos; e expõe com pormenores opiniões de gregos e também de bárbaros, aceitas pela maioria. Retifica ainda as falsas opiniões dos heresiarcas; desenvolve farta informação e fornece-nos matéria de vasta erudição. A tudo isso mescla pareceres dos filósofos, e daí

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certamente vem a relação do título de Stromata com os respectivos assuntos. Nessa obra emprega também provas extraídas de Escrituras não aceitas de modo geral; cita, por exemplo, a Sabedoria dita de Salomão, a de Jesus filho de Sirac, a carta aos Hebreus, as cartas de Barnabé, de Clemente e de Judas. Menciona igualmente o Discurso aos Gregos, de Taciano, e também Cassiano, como autor de uma Cronografia; e ainda escritores judeus, Fílon, Aristóbulo, Josefo, Demétrio, Eupolemo, que declaram todos serem Moisés e a raça dos judeus anteriores aos antigos gregos. E os livros conhecidos desse autor [Clemente] estão repletos de inúmeros conhecimentos úteis. No primeiro deles denota achar-se muito próximo dos sucessores dos apóstolos e também promete comentar o Gênesis (Hist. Ecles. VI,13,4-8. Grifo nosso). Nas Hipotiposes, em síntese, ele faz exposições concisas de todas as Escrituras Canônicas, sem omitir as partes controvertidas, isto é, a Carta de Judas e as outras cartas católicas, a Carta de Barnabé e o Apocalipse, dito de Pedro. Acrescenta ser da autoria de Paulo a Carta aos Hebreus, escrita para os hebreus em língua hebraica, mas que Lucas, depois de traduzi-la cuidadosamente, divulgou entre os gregos. Este o motivo por que se assemelham a tradução desta carta e os Atos. Não é sem razão que não traz a inscrição “Paulo Apóstolo”, pois, conforme diz Clemente, “dirigindo-se aos hebreus, prevenidos contra aquele que consideravam suspeito, prudentemente evitou desafiá-los desde o começo, apondo aí seu nome” (Hist. Ecles. VI,14,1-3).

Nos mesmos livros ainda, Clemente cita um dado tradicional dos antigos presbíteros relativamente à ordem dos Evangelhos, como segue: Os Evangelhos que contêm as genealogias foram escritos em primeiro lugar. O Evangelho segundo Marcos foi elaborado da seguinte forma: Pedro anunciava a palavra publicamente em Roma e explicava o Evangelho guiado pelo Espírito Santo. Os numerosos ouvintes insistiram que Marcos, seu companheiro por muito tempo e, por isso, bem lembrado de suas palavras, transcrevesse o que ele havia dito. Marcos o fez e transmitiu o Evangelho aos que lho haviam pedido. Tendo conhecimento disso, Pedro nada aconselhou que o impedisse ou estimulasse a escrever. Por fim, João, ciente de que o lado humano havia sido exposto nos Evangelhos, escreveu, impelido pelos discípulos e divinamente inspirado pelo Espírito, um Evangelho espiritual. Eis o que refere Clemente (Hist. Ecles. VI,14,5-7).

Embora Clemente conhecesse e, aparentemente, não rejeitasse o Evangelho dos Hebreus, o Evangelho dos Egípcios e a Tradição de Matias, é possível que não os tenha aceito como Escritura (isto é, norma), mas isso não está claro. O que mais surpreende com relação a Clemente de Alexandria é seu elevado apreço pela filosofia grega como preparação para receber a mensagem cristã. Ele escreve: A filosofia grega, mesmo não abrangendo a verdade em sua totalidade e, além disso, faltando-lhe vigor para cumprir o mandamento do Senhor, pelo menos prepara o caminho para o ensinamento que é soberano no sentido mais elevado do termo, tornando o homem autocontrolado, moldando seu caráter e predispondo-o a aceitar a verdade (Stromata 7,20).

Não consta em nenhum lugar que Clemente adotasse um cânone fechado de Escrituras cristãs. Sua busca do conhecimento de Deus era informada por uma seleção mais ampla de literatura. Ele se servia de diferentes fontes e recorria a escritos apócrifos e mesmo a escritores “gregos e também bárbaros” (Eusébio, Hist. Ecles. VI,13,5), inclusive a escritos que Eusébio, mais tarde, qualificou como “questionáveis”, ou seja, Hebreus, Judas, a Epístola de Barnabé e o Apocalipse de Pedro (Hist. Ecles. VI,13,4-7). Apesar dessa qualificação de Eusébio (VI,14,1), o Fragmento Muratoriano (linhas 68-69) diz que Judas e as cartas de João são reconhecidos “na Igreja católica”, uma caracterização encontrada em outros lugares

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só no fim do séc. IV. A inclusão indiscutível desses escritos em uma lista assim evidencia a origem tardia do Fragmento Muratoriano. Tertuliano (c. 160–225) Tertuliano era um homem de grande cultura, nativo de Cartago, na África, e muitas vezes cognominado “Pai da Teologia Latina”. Como Irineu antes dele, ele também aceitava os quatro Evangelhos canônicos. Escrevendo em torno de 200 EC, porém, ele fazia distinção entre os Evangelhos, dando prioridade a Mateus e João sobre Marcos e Lucas. Escreve: “Dos apóstolos, portanto, João e Mateus primeiro incutem a fé em nós; dos homens apostólicos, Lucas e Marcos depois a renovam. Todos estes começam com os mesmos princípios de fé” (Tertuliano, Contra Marcião IV,2,2. Grifo nosso). Tanto aqui como alhures, ele parece relegar Lucas e Marcos a uma condição inferior à de Mateus e João e repreende Marcião por escolher Lucas em vez de Mateus ou João. Escreve: Dos autores que temos, Marcião parece ter escolhido Lucas para o seu processo de mutilação. Lucas, porém, não era apóstolo, mas apenas um homem apostólico; não um mestre, mas discípulo, e, por isso, inferior a um mestre – pelo menos tão subsequente a ele quanto o apóstolo a quem seguia [...] era subsequente aos outros (Contra Marcião IV,2,5. Grifo nosso).

Para Tertuliano, a apostolicidade era um critério fundamental para reconhecer a autoridade dos Evangelhos. Essa mesma autoridade apostólica, transmitida pelos apóstolos através da sucessão de bispos, garantia a autenticidade do Evangelho. Os escritos apostólicos formavam para ele o Novum Testamentum (Novo Testamento), embora não haja clareza a respeito da extensão plena dos escritos que ele considerava apostólicos. Novamente, ele explica: Se não consigo justificar este artigo (da nossa fé) por meio de passagens do Antigo Testamento que podem causar polêmicas, extrairei do Novo Testamento uma confirmação da nossa visão, de modo a não atribuíres diretamente ao Pai toda possível [relação e condição] que atribuo ao Filho. Observa, portanto, que encontro tanto nos Evangelhos quanto nos (escritos dos) apóstolos um Deus visível e um Deus invisível (que nos é revelado), sob uma distinção manifesta e pessoal na condição de ambos (Contra Praxeias 15).

Para ele, ao que tudo indica, o Novo Testamento consistia nos seguintes escritos: os quatro Evangelhos, treze epístolas de Paulo, Atos, 1 João, 1 Pedro, Judas e o Apocalipse. Entretanto, ele não produziu uma lista fixa desses livros, apesar de citálos frequentemente de forma autorizada ou ao modo de Escritura. Provavelmente esses são os livros que incluiu em sua referência a “todo o volume” citado antes (Prescrições Contra os Hereges 32). Ele também escreve que Roma “reúne a Lei e os profetas em um único volume” (Prescrições Contra os Hereges 36). Antes de aderir ao montanismo, Tertuliano incluía em sua coleção de escritos sagrados também o Pastor de Hermas, mas mais tarde o rejeitou com desdém e surpreendentemente tratou a Carta aos Hebreus como marginal, por considerá-la escrita por Barnabé. Em nenhum lugar em seus livros preservados, porém, encontramos qualquer relação ou

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identificação do que exatamente continham suas coleções do Antigo e do Novo Testamento. Nenhum dos livros que Tertuliano parece ter aceito como literatura cristã autorizada (Escritura) foi depois rejeitado pelo final de sua carreira, com exceção, naturalmente, das profecias montanistas que aceitou mais tarde. Orígenes (c. 184–235) A passagem da autoridade da tradição oral para a autoridade das tradições escritas, iniciada com Irineu, estava concluída no tempo de Orígenes. Como Clemente de Alexandria, Orígenes reportava-se aos quatro Evangelhos canônicos, às treze cartas de Paulo (parece que incluía Hebreus, mas não acreditava que tivesse sido escrita por Paulo), 1 Pedro, 1 João e Apocalipse. A tradução da Homilia (7,1) de Orígenes sobre Josué, feita por Rufino (345–410), apresenta uma lista das Escrituras aceitas por Orígenes, mas essa tradução é bem inferior à de Eusébio e não inspira confiança. Sempre que se deparava com passagens difíceis, Rufino simplesmente não as traduzia, pensando que seriam interpolações feitas por hereges. Eusébio é novamente a nossa principal testemunha do que Orígenes reconhecia como Escritura. No primeiro dos seus [Comentários] sobre o Evangelho segundo Mateus, ele conserva o cânone eclesiástico e mostra conhecer apenas quatro Evangelhos. Escreve o seguinte: “Conforme aprendi da tradição sobre os quatro Evangelhos, os únicos também indiscutíveis na Igreja de Deus que há sob os céus, foi escrito em primeiro lugar o Evangelho segundo Mateus; este anteriormente fora publicano e depois apóstolo de Jesus Cristo. Ele o editou para os fiéis vindos do judaísmo, redigindo-o em hebraico. O segundo é o Evangelho segundo Marcos, que o escreveu conforme as narrações de Pedro, o qual o nomeia seu filho na carta católica [1Pd 5,13] nestes termos: ‘A que está em Babilônia, eleita como vós, vos saúda, como também Marcos, o meu filho’. E o terceiro é o Evangelho segundo Lucas, elogiado por Paulo [cf. 2Cor 8,18-19; 2Tm 2,8; Cl 4,14] e composto para os fiéis provenientes da gentilidade. Enfim, o Evangelho segundo João”. No quinto livro dos Comentários ao Evangelho segundo João, o mesmo Orígenes declara o seguinte acerca das epístolas dos apóstolos: “Paulo, digno ministro do Novo Testamento, não segundo a letra, mas segundo o espírito, depois de ter anunciado o Evangelho desde Jerusalém e suas cercanias até o Ilírico [Rm 15,19], não escreveu a todas as igrejas que ele havia instruído; mesmo àquelas a que escreveu, enviou apenas poucas linhas. Pedro, sobre quem está edificada a Igreja de Cristo, contra a qual não prevalecerão as portas do inferno [Mt 16,18], deixou apenas uma carta incontestada, e talvez uma segunda, porém controvertida. Que dizer de João, que reclinou sobre o peito de Jesus [Jo 13,25; 21,20], deixou um Evangelho, assegurou ser-lhe possível compor mais livros [sobre Jesus] do que poderia o mundo conter [Jo 21,25], e escreveu o Apocalipse, mas recebeu a ordem de se calar e não escrever as mensagens das vozes das sete trombetas? [Ap 10,4] Legou-nos também uma carta de muito poucas linhas e talvez outra e ainda uma terceira, pois nem todos admitem que estas sejam autênticas; aliás, as duas juntas não abrangem cem linhas”. Finalmente, externa-se da seguinte maneira sobre a Carta aos Hebreus, nas Homilias proferidas a respeito dessa última: “O estilo da epístola intitulada Aos Hebreus carece da marca de simplicidade de composição do apóstolo, que confessa ele próprio ser imperito no falar, isto é, no fraseado [2Cor 11,6]; no entanto, a carta é grego do melhor estilo, e qualquer perito em diferenças de redação o reconheceria. Efetivamente, os conceitos da epístola são admiráveis e em nada inferiores aos das genuínas cartas apostólicas. Há de concordar quem ouvir atentamente a leitura das cartas do apóstolo”. Mais adiante, adita estas informações: “Mas para exprimir meu próprio ponto de vista, diria que os pensamentos são do apóstolo, enquanto o estilo e a composição originam-se de alguém que tem presente a doutrina do apóstolo e, por assim dizer, de um redator que escreve as preleções de um

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mestre. Se, portanto, uma Igreja tem por certo que a carta provém do apóstolo, felicito-a, pois não será sem fundamento que os antigos a transmitiram como sendo de autoria de Paulo. Entretanto, quem escreveu a carta? Deus o sabe. A tradição nos transmitiu o parecer de alguns de ter sido redigida por Clemente, bispo de Roma, outros opinam ter sido Lucas, o autor do Evangelho e dos Atos” (Hist. Ecles. VI,25,3-14. Grifo nosso).

É muito provável que a “lista canônica” do Novo Testamento de Orígenes, como no caso da lista de Irineu, seja uma criação de Eusébio e de Rufino no séc. IV tardio, mais de cem anos depois da morte de Orígenes. A fonte de Eusébio pode muito bem ter sido sua própria coletânea de referências ou de citações da literatura do Novo Testamento nas obras de Orígenes. É quase certo que essas listas canônicas foram produzidas no séc. IV e seguintes, e tais referências a “cânones” mais antigos da Igreja muito provavelmente são alegações anacrônicas. As heresias do séc. II não foram enfrentadas nos sécs. II e III com um cânone de Escrituras, mas com um cânone de fé ou uma regula fidei. As igrejas resolviam seus problemas invocando o princípio da verdade ou, mais precisamente, baseando-se em declarações confessionais sobre Jesus, sobre a relação de Jesus com Deus e sobre sua atividade e ministério. Não há dúvida, porém, de que, na defesa de suas posições, também recorriam a muitos livros que depois passaram a integrar o cânone do Novo Testamento. De acordo com Eusébio, portanto, Orígenes aceitava os quatro Evangelhos e um número indefinido das epístolas de Paulo, além de 1 João, Apocalipse, Hebreus com alguma dúvida e, também com alguma incerteza, 2 Pedro e 2-3 João. Ele também usou Tiago e Judas com certa hesitação porque nem todas as igrejas da época consideravam esses textos como Escritura ou como escritos “reconhecidos”. Ele se refere ainda, mais positivamente, a Barnabé, ao Pastor de Hermas e à Didaqué, e parece que aceitava essas obras como Escritura. No tratado Contra Celso, Orígenes introduz a Epístola de Barnabé com as palavras: “Está escrito na epístola católica de Barnabé” (1,63 – grifo nosso), e no Sobre os Princípios, fundamentando seu argumento nas Escrituras, ele cita o Pastor de Hermas (2,1,5). No entanto, caso nos inclinemos a dizer que Orígenes aceitava Tiago e Judas como integrantes do cânone porque os usava, deveremos dizer a mesma coisa a respeito do seu recurso e aceitação de Barnabé, do Pastor de Hermas e da Didaqué. Muitos estudiosos afirmam que Orígenes só aceitou como Escritura livros do Novo Testamento que mais tarde foram canonizados. Segundo eles, Orígenes nunca escreveu um comentário sobre um livro não encontrado no Novo Testamento posterior. Devemos acrescentar, todavia, que de acordo com as informações de que dispomos, não foram todos os livros do Novo Testamento que o motivaram a escrever um comentário. Levado o argumento à sua conclusão lógica, o cânone proposto por Orígenes seria muito menor do que o cânone do Novo Testamento atual! O principal problema com o suposto cânone fechado de Orígenes é que ele não nos oferece evidências sólidas com relação à composição desse cânone. As evidências apresentadas não são suficientemente convincentes para concluir que ele

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aceitava todos os escritos que hoje constituem o nosso cânone do Novo Testamento e não outros. Ele se mostra ambivalente com relação à condição de 2 Pedro e 2-3 João, mas provavelmente incluiu Barnabé e o Pastor em sua coleção sagrada. Ele mesmo, no entanto, nunca dispôs de uma coleção fechada de escritos do Novo Testamento. Parece que ele também se recusou a reduzir sua coleção de Escrituras do Antigo Testamento aos 22 ou 24 livros do cânone bíblico hebraico. Ele simplesmente aceitava o número de livros no cânone bíblico judaico, que conhecia bem (ver Eusébio, Hist. Ecles. VI,25,1-2), mas tudo indica que não definiu precisamente nem os livros do Antigo nem do Novo Testamento, seja para a Igreja, seja para si mesmo (Eusébio, Hist. Ecles. VI,25,3-14). O cânone do Novo Testamento a ele atribuído provavelmente não passa de uma lista selecionada produzida por Eusébio com base nos escritos mencionados ou citados por Orígenes. Os principais argumentos a favor de um cânone bíblico reconhecido por todos e praticamente fechado no fim do séc. II não são convincentes. É mais provável que nessa época houvesse um reconhecimento amplo de algo como um cânone bíblico “aberto” (cânone 1), com muitos escritos citados para fundamentar posições defendidas pelos principais mentores da Igreja. Não está claro até que ponto esse reconhecimento era generalizado ou quais exatamente seriam os escritos que integravam essa coleção. Não restam dúvidas sobre a aceitação de muitos escritos cristãos como Escritura sagrada, mas não temos evidências para um cânone bíblico fechado naquela época. Além disso, no fim do séc. II, excetuada a designação “Escritura”, não havia termos aceitos de modo geral para identificar essa coleção de escritos cristãos. As próprias denominações “Antigo Testamento” e “Novo Testamento” estavam apenas começando a ser usadas na época, não tendo obtido até então reconhecimento suficiente nas igrejas como sinônimos equivalentes de coleções canônicas fechadas. Elas parecem apenas indicar que os escritos eram judaicos ou cristãos, sem refletir a composição ou extensão dessas coleções. Nos sécs. III e IV, amplos setores da comunidade cristã ainda desconheciam essas designações. Por exemplo, observe como Orígenes as introduz nas duas passagens a seguir, da primeira metade do séc. III: Além disso, como prova de nossas afirmações, tomamos testemunhos do que acreditamos serem escritos divinos, ou seja, do que se chama Antigo Testamento e do que se intitula Novo, e nos empenhamos em confirmar nossa fé pela razão (Orígenes, Sobre os Princípios 4,1. Grifo nosso).

Novamente, em contexto diferente em que refuta especulações de cristãos gnósticos, ele escreve: Parece-me necessário, portanto, que alguém capaz de representar de modo autêntico a doutrina da Igreja e de refutar esses adeptos do conhecimento, assim falsamente chamados, deve contestar ficções históricas e opor-lhes a verdadeira e grandiosa mensagem evangélica em que a concordância de doutrinas, encontrada tanto no chamado Antigo Testamento quanto no chamado Novo Testamento, aparece tão clara e plenamente (Comentário ao Evangelho Segundo João 5,4. Grifo nosso).

Mais tarde no séc. IV (c. 320–330), Eusébio, ao elogiar Josefo por sua oposição a

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Apião, refere-se à passagem citada no capítulo anterior (Contra Apião §137-143), e diz: “No primeiro livro, [Josefo] estabelece o número dos escritos canônicos do chamado Antigo Testamento e quais são recebidos como autênticos pelos hebreus, segundo antiga tradição” (Hist. Ecles. III,9,5. Grifo nosso). Naturalmente, Josefo jamais teria se referido às Escrituras judaicas com a expressão “Antigo Testamento”, o que mostra que Eusébio às vezes falava anacronicamente usando esses termos e atribuindo-os retrospectivamente a escritores antigos. Esses exemplos demonstram a pouca ocorrência dessas denominações nas igrejas na metade do séc. III e no séc. IV. Além disso, o fato de Sabedoria de Salomão aparecer em listas do Novo Testamento no séc. IV (as de Eusébio, do Fragmento Muratoriano e de Epifânio) depõe contra o entendimento generalizado do sentido dessas denominações para identificar uma coleção fixa de Escrituras no séc. II. O máximo que se pode dizer aqui é que, no fim do séc. II, eram de modo geral reconhecidos como Escrituras os quatro Evangelhos, Atos, algumas epístolas de Paulo (não as pastorais), 1 Pedro e 1 João. OUTRAS LEITURAS Gnosticismo

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FIXAÇÃO DO CÂNONE DO NOVO TESTAMENTO

Vários fatores históricos contribuíram para as decisões finais sobre a composição das Escrituras sagradas cristãs. Analisaremos a seguir alguns fatores que levaram as igrejas a adotar a forma definitiva do cânone do Novo Testamento e as razões que tornam esses fatores importantes. Também examinaremos os critérios antigos mais relevantes que as igrejas primitivas adotaram para definir a composição de suas Escrituras sagradas. A PERSEGUIÇÃO DE DIOCLECIANO E A QUEIMA DE LIVROS Um dos fatores decisivos que levou os primeiros cristãos a aceitar como sagrados alguns livros adotados em comunidades cristãs particulares foi a perseguição (303– 313 EC) aos cristãos desencadeada pelo imperador romano Diocleciano. Diocleciano expediu um édito ordenando que os cristãos entregassem seus livros sagrados às autoridades para serem queimados. Ele lançou a última perseguição extensiva a todo o império em 23 de fevereiro de 303. Os motivos dessa investida não são muito claros, mas provavelmente deveu-se à influência crescente dos cristãos que não apoiavam o sistema religioso seguido pela maioria da população no império. Os atos de hostilidade mais flagrantes contra os cristãos são bem conhecidos: detenções, prisões, confisco de bens e propriedades, tortura e a própria morte, caso os cristãos se recusassem a entregar seus livros sagrados. Problemas de lealdade ao imperador e ameaças de desintegração do império aumentavam a cada dia, especialmente na Bretanha, na Pérsia e no Norte da África. Em estado próximo à paranoia, Diocleciano aumentou enormemente o efetivo do seu exército e deu início a um ambicioso programa de construções, na esperança de reconduzir o império aos seus anos de glória do passado. Mais importantes para os nossos propósitos, todavia, foram as ações de Diocleciano voltadas à revalorização das virtudes romanas, cujas raízes religiosas fixavam-se em antigas práticas cultuais às divindades romanas. Seu édito (c. 295) regulamentando o casamento (Sobre o Casamento) reitera a necessidade de retornar à uniformidade religiosa. Embora insistisse em evitar derramamento de sangue, ele ordenou a destruição das igrejas cristãs e a queima das Escrituras sagradas cristãs. Os cristãos que exerciam funções públicas foram destituídos de seus cargos e os pertencentes às classes mais elevadas tiveram seus bens confiscados. Por fim, proibiu a emancipação dos escravos cristãos. A primeira e mais antiga perseguição abrangendo todo o império, iniciada pelo imperador Décio, em 250 EC, obrigava os

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cristãos a oferecer sacrifícios ao imperador e intentava destruir a organização e a vida da Igreja pela eliminação de seus livros sagrados e pela depredação de suas propriedades e templos. Contrariamente ao plano inicial de Diocleciano, porém, mortes de cristãos ocorreram em muitos lugares onde estes se recusaram a entregar suas Escrituras. Em pouco tempo, também começaram a ser forçados a oferecer sacrifícios ao imperador. Um fato que mostra as autoridades romanas empenhando-se em destruir as Escrituras cristãs ocorreu em Alexandria, no Egito, em maio de 303 EC. O texto a seguir ajuda a compreender essa questão. No oitavo e sétimo consulados de Diocleciano e Maximiano, respectivamente, em 19 de maio, conforme consta nos anais de Munácio Félix, sumo sacerdote vitalício da província, o prefeito da colônia de Cirta chegou à casa onde os cristãos se reuniam. Dirigindo-se ao bispo Paulo, o prefeito ordenou: “Traz os escritos da lei e tudo o mais que tiveres, conforme manda a lei, para que a determinação seja cumprida”. Bispo: As Escrituras estão com os leitores, mas entregaremos o que temos aqui. Prefeito: Identifica os leitores ou manda buscá-los. Bispo: Todos vocês os conhecem. Prefeito: Não os conhecemos. Bispo: A Secretaria municipal os conhece, quer dizer, os funcionários Edúsio e Júnio. Prefeito: Deixando para depois a questão dos leitores, a serem identificados pela secretaria, traz o que tens. [Segue-se um inventário da prataria da igreja e de outros bens, inclusive de um grande estoque de roupas e sapatos para homens e mulheres, na presença do clero, que incluía três sacerdotes, dois diáconos e quatro subdiáconos, todos nomeados, e alguns “fossores” (= cavador, coveiro, “sepultador”, primitivamente uma das ordens menores).] A história continua assim: Prefeito: Tragam tudo o que vocês têm. Silvano e Caroso (dois dos subdiáconos): Nós nos livramos de tudo o que tínhamos. Prefeito: Estou registrando essa resposta. Depois de encontrados alguns armários vazios na biblioteca, Silvano trouxe uma caixa de prata e uma lâmpada de prata, dizendo ter achado atrás de uma ânfora. Vítor (assistente do prefeito): Serias um homem morto se não os tivesses encontrado. Prefeito: Procurem com mais atenção, caso reste mais alguma coisa. Silvano: Não resta mais nada. Jogamos tudo fora. Quando entraram na sala de jantar, encontraram quatro caixas e seis ânforas. Prefeito: Tragam as Escrituras que vocês têm para que possamos obedecer às ordens e determinações dos imperadores. Catulino (outro subdiácono) trouxe outro grande volume. Prefeito: Por que trouxeste só um volume? Traz as Escrituras que vocês têm. Marcúclio e Catulino (dois subdiáconos): Não temos mais nada; somos subdiáconos; os livros estão com os leitores. Prefeito: Se não sabem onde eles moram, digam-me os nomes deles. Marcúclio e Catulino: Não somos traidores; nós estamos aqui, ordene que nos matem. Prefeito: Prendam-nos. Parece que cederam, revelando o nome de um leitor, pois o Prefeito dirigiu-se à casa de Eugênio, que entregou quatro livros. Em seguida, o prefeito dirigiu-se aos outros dois subdiáconos, Silvano e Caroso: Prefeito: Indiquem-me os outros leitores.

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Silvano e Caroso: O bispo já disse que os funcionários Edúsio e Júnio conhecem todos eles: eles lhe mostrarão o caminho para a casa deles. Edúsio e Júnio: Nós lhe mostraremos o caminho, senhor. O Prefeito foi até as casas dos outros seis leitores. Quatro entregaram seus livros sem objeções. Um declarou que não tinha nenhum livro; o Prefeito ficou satisfeito e apenas registrou sua declaração. O último não estava em casa, mas sua esposa entregou os livros; o Prefeito mandou o escravo público revistar a casa para certificar-se de que nenhum livro ficara para trás. Com a tarefa concluída, ele se dirigiu aos subdiáconos: “Em caso de qualquer omissão, a responsabilidade será de vocês” (Gesta apud Zenophilum XXVI, in Stevenson, ANE, 287-289).

Eusébio descreve essa perseguição com detalhes importantes, destacando de modo especial os mártires da Nicomédia. Na introdução à perseguição de Diocleciano, ele menciona especificamente a queima das Escrituras sagradas: Todas essas coisas, efetivamente, se realizaram em nossa época, quando vimos com nossos próprios olhos as casas de oração completamente arrasadas, de alto a baixo, as Escrituras divinas e sagradas entregues ao fogo no meio de praças públicas, os pastores das igrejas dissimulando-se vergonhosamente aqui e ali ou capturados ignominiosamente e insultados pelos inimigos; quando, segundo outra palavra profética, “Ele espalha seu desprezo sobre os príncipes e os faz errar por ínvios desertos” [...] [Sl 106,40] No décimo nono ano do reinado de Diocleciano, no mês de Distros, que os romanos denominam março, na proximidade da festa da Paixão do Salvador, por toda a parte foram afixados os éditos imperiais que ordenavam arrasar as igrejas até os alicerces e jogar as Escrituras ao fogo. Proclamavam cassados os que estavam em função e privados da liberdade os que se achavam a serviço de particulares, se permanecessem fiéis à sua profissão de cristãos. Tal foi o primeiro édito contra nós; pouco tempo depois, apareceram outros éditos, ordenando primeiro que se pusessem no cárcere por toda a parte os chefes das igrejas; logo em seguida, que se utilizassem todos os meios para forçá-los a sacrificar (Hist. Ecles. VIII,2,1.4-5).

Durante essa perseguição, os cristãos que cederam e entregaram as cópias de suas Escrituras sagradas às autoridades romanas eram chamados de “traidores” (traditores). Eles eram desprezados por outros cristãos, especialmente pelos donatistas, que não estavam dispostos absolutamente a perdoar os que haviam traído suas Escrituras sagradas entregando-as às autoridades. Esses donatistas condenavam todos os membros do clero traditores, dizendo que haviam cometido um ato sacrílego, merecedor da condenação ao fogo eterno porque facilitaram a “destruição dos testamentos e dos mandamentos divinos de Deus Onipotente e do Senhor Jesus Cristo” (Acta Saturnini, XVIII, col. 701). Os cristãos que perseveravam na fé durante as perseguições e torturas e sobreviviam aos suplícios eram chamados “confessores”. Os que morriam sem entregar as Escrituras e permaneciam fiéis às suas crenças eram chamados “mártires”. A Igreja precisou enfrentar um problema sério no séc. IV relacionado ao modo de tratar os “traidores” (traditores) ou “lapsos” (lapsi), uma controvérsia que envolveu o próprio Constantino. De qualquer modo, o aspecto a considerar aqui é que a questão relativa aos livros que podiam ser entregues às autoridades sem incorrer em traição estava evidentemente resolvida em igrejas individuais na época das perseguições. Isso não quer dizer que todas as igrejas concordassem a respeito dos escritos considerados sagrados e que precisavam de proteção, mas a entrega de Escrituras às autoridades

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romanas pressupõe que os cristãos da época sabiam quais livros eram de fato reconhecidos como Escritura sagrada. Não havia unanimidade sobre essa matéria no conjunto das igrejas, mas até a época da perseguição de Diocleciano, igrejas locais certamente já haviam tomado a decisão a respeito dos livros que podiam ser entregues às autoridades. Novamente, não podemos presumir que todas as igrejas concordassem sobre quais livros eram sagrados e que, portanto, não podiam ser entregues; muitas igrejas divergiam sobre esse assunto. Provas dessas discordâncias encontram-se nas variações nas listas de Escrituras que continuaram circulando do séc. IV até o séc. VI. Antes do fim do séc. IV, nenhum Concílio da Igreja havia tratado da questão da canonização das Escrituras cristãs, e quando isso aconteceu (em 393, em Hipona, e em 397, em Cartago, também no Norte da África), não há evidências de que todas as igrejas estivessem dispostas a aceitar essas decisões. Igrejas individuais ou igrejas regionais teriam resolvido essas questões por conta própria. Não há dúvida de que houve ampla concordância sobre a maioria das Escrituras do Novo Testamento no séc. IV, o que demonstram as ações dos primeiros Concílios da Igreja que se reuniram para deliberar sobre a literatura que constituiria as Escrituras da Igreja. Diferenças de opinião sobre o conteúdo do cânone do Novo Testamento normalmente giravam em torno dos “livros marginais” (Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2-3 João, Judas e Apocalipse) e não em torno dos livros “medulares” (Evangelhos, Atos, cartas paulinas, 1 Pedro e 1 João), já praticamente adotados por todas as igrejas. É muito provável que, antes ainda do início das perseguições, as igrejas individuais já haviam tomado a decisão a respeito dos livros considerados sagrados e dos que podiam ser entregues às autoridades. Não há evidências de que grandes igrejas ou associações regionais de igrejas tenham tomado decisões sobre a composição ou os limites de suas Escrituras antes do fim do séc. IV. Eusébio (c. 320330 EC) apresentou a primeira relação de livros que as primeiras igrejas consideravam sagrados, mas mesmo assim não podemos dizer com certeza o que a Igreja como um todo pensava sobre essa matéria. As variações nas listas de Escrituras sagradas no fim do séc. IV e seguintes demonstram a instabilidade dos cânones naquele tempo. Essa situação envolve especialmente os livros marginais que mais tarde foram incluídos (Apocalipse, Hebreus e outros) ou excluídos (Pastor de Hermas, Epístola de Barnabé e outros) das Escrituras da Igreja. As tradições relacionadas com a queima de livros e que sobreviveram no início do séc. IV não nos dizem especificamente quais livros foram entregues às autoridades para serem queimados. As decisões sobre os livros que podiam ser entregues foram sem dúvida tomadas antes ou pelo menos no início das perseguições. Esse aspecto da perseguição de Diocleciano foi um forte estímulo para que as igrejas abordassem seriamente a questão dos escritos que consideravam sagrados. Evidentemente, era mais provável que fossem entregues às autoridades os livros já liberados dessa função sagrada ou menos aceitos nas igrejas do que aqueles que ainda eram utilizados e

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muito valorizados, sendo por isso mais protegidos quando possível. Mesmo assim, alguns livros que as igrejas consideravam sagrados também foram destruídos nessa época. CONSTANTINO E EUSÉBIO Observamos acima que um movimento para a unidade e a conformidade entre as igrejas ocorria já no tempo de Irineu (c. 170-180 EC). Além disso, a iniciativa de Diocleciano de levar o culto pagão romano à unidade e uniformidade religiosa refletia um traço característico da sociedade romana e provavelmente influenciou as decisões da Igreja relativas à composição da Bíblia. Diversos exemplos dessa mesma tendência à uniformidade na sociedade romana ocorreram no reinado de Constantino (306-337 EC). Nesse período, e nos seguintes, essa tendência da sociedade civil desencadeou movimentos semelhantes também nas igrejas, todos orientados para uma maior unidade. Os catálogos mais claros e precisos de Escrituras cristãs autorizadas são produtos desse período e dos períodos imediatamente seguintes da História. Existem evidências de que Constantino impulsionou as igrejas para uma uniformidade até então inexistente. É indiscutível que o reinado de Constantino caracterizou um momento de transição muito importante para a Igreja, que de comunidade perseguida por um governo pagão passou a ter um relacionamento longo e harmonioso com o Estado. No início, essa relação foi especialmente benéfica para as igrejas, e com o tempo produziu mudanças profundas e duradouras na organização e missão da Igreja. A chamada conversão de Constantino ocorreu em consequência da sua famosa visão da cruz (Eusébio, Vida de Constantino 2,45; 3,2.3) e o levou a conceder muitos benefícios importantes para os cristãos. O mais valioso desses benefícios foi, naturalmente, a cessação das hostilidades contra a Igreja e a consequente liberdade para os cristãos prestarem seu culto sem medo de ser perseguidos (2,14). Isso se deu, primeiro, pelo Édito de Milão, em 313, que concedeu liberdade religiosa a todos os súditos romanos, não apenas aos cristãos. Os benefícios para os cristãos aumentaram mais tarde, inclusive, quando Constantino ordenou a reparação ou a reconstrução dos edifícios da Igreja danificados ou destruídos durante as implacáveis perseguições dos anos 303-313, tudo a expensas do erário público. Ele não só substituiu estruturas prejudicadas ou demolidas, mas também fez doações de presentes de grande valor à Igreja (2,46; 3,1) e a seus líderes (3,16), e inclusive determinou a feitura de cópias extras dos “registros inspirados” (Escrituras) que haviam sido queimados. Por fim, “vingou-se” dos que estiveram envolvidos na perseguição aos cristãos (3,1). Esses acontecimentos obviamente trouxeram benefícios para a Igreja, como se pode ver na forma eufórica com que Eusébio os descreve. Compreensivelmente, Eusébio e toda a Igreja estavam encantados por receber as novas honrarias e obséquios que lhes eram concedidos. É fácil entender, então, por que os cristãos tinham só elogios para Constantino, a quem Eusébio se referiu como “um poderoso

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mensageiro de Deus” (2,61), um “imperador piedoso” (2,73), “o imperador favorecido por Deus” (3,1) e aquele que “assim fez seu constante objetivo glorificar seu Deus Salvador” (3,54). Embora Eusébio não encontre defeitos em Constantino, nem todos os historiadores da Igreja primitiva comungam da crença generalizada na “conversão” do imperador romano. Isso se deve à sua brutalidade incessante no tratamento dispensado aos seus adversários após a sua experiência de conversão e também à sua prática de coagir a Igreja a se adaptar às suas políticas. Constantino assumiu inicialmente uma disposição benévola para com o cristianismo, só mais tarde chegando a uma aceitação plena dos seus ensinamentos. Ele só foi batizado pouco antes da sua morte. Depois de converter-se, continuou a cultuar o deus pagão do seu pai e revelou tendências para um cristianismo sincretista, em que identificava o Deus cristão com o sol. Ele transformou o primeiro dia da semana (Dia do Senhor) em feriado e chamou-o de “venerável dia do sol” (Sunday, em inglês). Eusébio parece ignorar muitas incoerências de Constantino relacionadas com os ensinamentos cristãos, como, por exemplo, o fato de, quebrando sua promessa, mandar matar Licínio (seu rival), sua própria mulher, Fausta, e o filho dele com Fausta, Crispo. A conversão de Constantino, não obstante, foi um evento histórico dos mais importantes para os cristãos, levando a Igreja a uma verdadeira nova era. Com orgulho, Eusébio afirma que, com Constantino, “uma nova e auspiciosa era de existência havia começado a aparecer, e uma luz até aqui desconhecida [levou a Igreja] à aurora, libertando-a das trevas que envolviam a raça humana” (3,1). O envolvimento de Constantino nos assuntos da Igreja foi grande. Independentemente do convite que recebeu dos cristãos para ajudar a resolver atritos existentes na Igreja, quase desde o início ele considerou dever seu envolver-se em inúmeras decisões das igrejas. Essa atitude implicou não apenas convocar/ordenar aos bispos e outros líderes da Igreja que se reunissem em vários concílios (3,6; 4,41-43), mas também resolver polêmicas teológicas (por exemplo, a divergência entre Alexandre e Ário – 2,61 –, que resultou no Credo de Niceia em 325 EC). Ele também conciliou divergências em torno de um bispo (se Eusébio devia ir para Antioquia ou permanecer em Cesareia, ver 3,59-61). Esteve inclusive envolvido na questão da definição da época para a celebração da Páscoa (3,6-18) e tomou decisões sobre a possibilidade de punir e como punir hereges (3,20.64-65) e quando, onde e como construir igrejas (3,29-43). Constantino não só arbitrava sobre essas matérias, mas também reconvocava um Concílio quando as decisões deste contrariavam seus próprios desejos, como no caso da controvérsia donatista no Norte da África em 321 (a controvérsia começou em 311 e continuou por aproximadamente cem anos). Ele ameaçou os bispos com o exílio, caso desobedecessem às suas ordens de reunir-se em Tiro (4,41.42) e, inclusive, enviou seu representante de “dignidade consular” (Dioniso) para assegurar a ordem no concílio e lembrar aos bispos seu dever (4,42). Finalmente, ordenou aos mesmos

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líderes da Igreja que fossem a Jerusalém para ajudá-lo a celebrar a dedicação de uma nova igreja lá construída. Por ironia, certa ocasião ele chegou a escrever que, enquanto os bispos supervisionavam os assuntos internos da Igreja, ele próprio era um “bispo, ordenado por Deus para superintender tudo o que fosse externo à Igreja” (4,24). É muito difícil, porém, identificar as questões “internas” em que não tenha se envolvido! Ninguém negaria o envolvimento de Constantino nas atividades e decisões da Igreja, e por intermédio de Eusébio ficamos sabendo que ele não tolerava opositores à norma de paz e harmonia seja no império, seja nas igrejas. Embora não possa absolutamente ser considerado tão cruel quanto seus antecessores com relação aos cristãos, ainda assim desejava a todo custo “harmonia” (uniformidade) nas igrejas. Os que pregavam doutrinas em desacordo com a “ortodoxia” do momento eram exilados, suas obras queimadas e seus lugares de reunião confiscados (3,66). Havia ocasiões em que Constantino se mostrava afável, generoso e até humilde, mas dificilmente tolerava diferenças de opinião ou provocações à sua autoridade em questões da Igreja (4,42). “Harmonia” para ele não significava tanto coexistência pacífica, mas uniformidade de pensamento – isto é, levar as pessoas a um consenso, à identidade de ideias. Por um lado, ele destruiu alguns templos e proibiu as práticas de sacrifícios a deuses pagãos e o culto aos ídolos (2,44; 3,54-58); por outro, coagiu bispos dissidentes a se adaptarem aos seus desejos ou à vontade da maioria dos bispos (3,13). Como acontecera com imperadores que o antecederam, todo e qualquer desvio constituía para Constantino uma ameaça a ser debelada. Vários governantes anteriores haviam considerado qualquer rejeição ou oposição a divindades romanas como uma ameaça ao Império. Às vezes, Constantino dá a impressão de ter substituído apenas a religião favorecida, não o exemplo dos predecessores. Ele dá a entender, por vezes, que sua maior preocupação é a paz em sua influência social externa e no império, não a transformação moral e interior da fé cristã. Depois de resolvida a controvérsia ariana em torno da divindade de Jesus, Eusébio escreveu com grande satisfação: “Assim os membros de todo o corpo se tornaram unidos e estreitamente ligados em um único todo harmonioso... enquanto nenhum corpo herético ou cismático continuou a existir em lugar nenhum” (Vida de Constantino 3,66). Constantino tomou todas as medidas necessárias para unificar as igrejas sob o Estado todo-poderoso e usou seu poder para convocar concílios episcopais e para disciplinar membros dissidentes da Igreja. Ele também estabeleceu critérios de autoridade a serem seguidos pelos futuros papas ao tratarem questões relacionadas com atividades eclesiásticas, heresias e a nomeação de bispos nas igrejas. O título de Pontifex Maximus (“sumo pontífice”), já adotado pelos imperadores anteriores, a começar com Augusto (31 AEC–12 EC), Constantino o conservou durante todo o seu período de governo. Ele se considerava o principal protetor e sumo sacerdote da

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Igreja. Há muitas semelhanças aqui com o tipo de poder que acabou sendo atribuído aos papas. Constantino inclusive outorgou poder ao concílio de bispos sobre decisões de magistrados locais (3,20), uma prática que continuou em períodos posteriores da história da Igreja e que serviu para politizar o clero. Para os cristãos, as principais consequências da conversão de Constantino foram a “cristianização” do Império Romano, o fim das perseguições e a vitória da ortodoxia cristã (principalmente a “ortodoxia” ocidental) na grande Igreja. Isso não sugere, como afirmam outros, que as crenças ortodoxas fossem sustentadas por uma minoria antes de Constantino e que só mais tarde obtiveram prioridade. A ortodoxia avançava rapidamente em direção à predominância nas igrejas no fim do séc. II, o mais tardar, quando a Igreja ainda não tinha poder político. No entanto, os principais dissidentes foram todos silenciados nesse período, o que mostra que a principal corrente teológica a assumir a predominância antes e nessa época recebeu mais tarde o nome de “ortodoxia”. Como resultado, em termos da subsequente identidade do cânone bíblico cristão, as ideias teológicas que alcançaram a supremacia nesse tempo também exerceram um impacto importante sobre as Escrituras a serem mais aceitas nas igrejas. Devemos também observar que a Igreja dificilmente poderia chegar a um consenso sobre a composição de suas Escrituras sagradas antes de obter concordância sobre os temas básicos de suas crenças fundamentais. Nesse sentido, os estágios finais da formação do cânone cristão só podiam ocorrer depois das ações de Constantino a favor da Igreja. O papel de Constantino na finalização do cânone bíblico cristão torna-se também relevante quando levamos em conta que ele pediu a Eusébio que supervisionasse a produção de 50 cópias das Escrituras (supostamente tanto do Antigo como do Novo Testamento) para uso na nova cidade-capital (a “Nova Roma”), mais tarde chamada Constantinopla. Se a lista de livros que compunham a Bíblia cristã não estava concluída antes da cópia das Escrituras, pode-se concluir que essas cópias tiveram grande influência sobre as igrejas, não apenas em Constantinopla, mas em toda aquela região. Pouco antes disso, a divisão de Eusébio dos livros sagrados cristãos nas categorias de livros “confessos” (reconhecidos como sagrados pela maioria das igrejas, especificamente, os Evangelhos, Atos, cartas de Paulo, 1 Pedro e 1 João), livros “duvidosos” (ou seja, Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2-3 João, Judas e provavelmente Apocalipse) e livros “espúrios” (Evangelho dos Hebreus e outros livros considerados heréticos) antecipou certa concordância entre as igrejas sobre grande parte dos livros do Novo Testamento (ver Hist. Ecles. III,25,1-7). Isso mostra claramente que a questão envolvendo os livros selecionados ainda não havia sido resolvida para a grande Igreja, pelo menos não com relação aos livros “marginais” do cânone bíblico (c. 325 EC). É provável que Eusébio já tivesse solução para grande parte dessas dificuldades quando Constantino lhe pediu que produzisse as 50 cópias das Escrituras cristãs. Ele então precisava tomar uma decisão a respeito dos livros que incluiria, e

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possivelmente ele próprio exerceu papel importante na seleção do que incluir. Nas palavras de Eusébio, a produção dessas cópias ocorreu deste modo: Sempre atento ao bem-estar das igrejas de Deus, o imperador, através de carta, consultou-me pessoalmente sobre a possibilidade de obter cópias dos oráculos inspirados [Escrituras sagradas da Igreja] e sobre a questão da santíssima festa da Páscoa. Eu próprio lhe havia falado sobre a importância mística dessa festa. A forma como fui distinguido com uma resposta é compreensível a quem quer que leia a carta a seguir (capítulo 34). VÍTOR CONSTANTINO, AUGUSTO MÁXIMO, a Eusébio: É efetivamente tarefa árdua, e além da capacidade da linguagem humana, abordar dignamente os mistérios de Cristo e explicar apropriadamente a controvérsia em torno da festa de Páscoa, tanto sua origem como sua preciosa e laboriosa realização. Não está no poder nem mesmo daqueles capazes de apreendê-las, descrever de forma adequada as coisas de Deus. Não obstante, estou profundamente admirado com vosso saber e zelo, e não só li vossa obra pessoalmente e com grande prazer, mas inclusive dei orientações, de acordo com vosso próprio desejo, para que seja comunicada ao maior número possível de seguidores sinceros da nossa santa religião. Vendo, então, o prazer com que recebemos de vossa sabedoria obséquios dessa natureza, dignai-vos alegrar-nos mais frequentemente com essas composições, para cuja prática, de fato, confessais ter sido treinado desde muito cedo, de modo que estou insistindo com um homem prestimoso, como dizem, ao estimular-vos à realização de vossas atividades habituais. E certamente a elevada e confiante apreciação que expressamos é prova de que a pessoa que traduziu vossos escritos para o idioma latino não é de forma alguma incompetente para a tarefa, por mais impossível que seja equiparar inteiramente essa versão à excelência das obras propriamente ditas. Deus vos preserve, amado irmão. Essa foi a carta sobre esse assunto. E a que se relacionava com a reprodução de cópias das Escrituras para leitura nas igrejas era do seguinte teor (capítulo 35): VÍTOR CONSTANTINO, AUGUSTO MÁXIMO, a Eusébio: Movidas pela providência benevolente de Deus nosso Salvador, milhares de pessoas se unem em torno da sacrossanta igreja na cidade que recebe o meu nome. Por isso, considerando que a cidade está prosperando rapidamente em todos os sentidos, parece indispensável que o número de igrejas também aumente. Recebei, portanto, com toda disposição, a minha determinação a esse respeito. Considero conveniente instruir vossa Prudência a encomendar cinquenta cópias das Sagradas Escrituras, cujo fornecimento e uso sabeis absolutamente necessários para a instrução da Igreja, a serem escritas de modo legível em pergaminho de boa qualidade, e em forma conveniente e portável, por copistas profissionais de comprovada experiência em sua arte. O vigário-geral da diocese também recebeu instruções por carta de nossa Clemência no sentido de diligenciar o fornecimento de tudo o que for necessário para a preparação dessas cópias; caberá a vós a responsabilidade de fazer com que a tarefa seja concluída no menor prazo possível. Tendes autoridade também, por força desta carta, para usar dois veículos públicos para seu transporte, por cujo arranjo, as cópias, depois de escritas, serão imediatamente encaminhadas para minha inspeção pessoal; um dos diáconos da vossa igreja pode ser incumbido dessa tarefa, o qual, em aqui chegando, provará da minha liberalidade. Deus vos preserve, amado irmão! (Capítulo 36) Essas foram as ordens do imperador, seguidas pela imediata execução do trabalho, que enviamos a ele em volumes magníficos e esmeradamente encadernados em forma de três e quatro partes.21 Esse fato é atestado por outra carta que o imperador escreveu para expressar seu reconhecimento. Nessa mesma carta, ele também manifesta sua alegria e aprova a conduta dos habitantes da cidade de Constância, situada em nosso país. E o faz depois de saber que a população local, voltada à superstição mais do que o habitual, impelida por um sentimento religioso, decidiu abandonar sua idolatria passada (Capítulo 37) (Eusébio, Vida de Constantino, Livro 3. Grifo nosso).

Podemos supor que, na época em que Constantino fez essa solicitação a Eusébio (c. 334–336 EC), quase todas as igrejas aceitavam uma coleção bem definida de

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livros tanto do Antigo como do Novo Testamento. Por algum tempo ainda, isso não abranda os debates em torno da canonicidade de todos os livros do Novo Testamento para todos os envolvidos. Provas disso aparecem em manuscritos cristãos em circulação nas igrejas depois de Eusébio e na produção de muitos catálogos de livros do Novo Testamento que circulavam no império. Antes do ano 1000 EC, apenas quatro manuscritos conhecidos contêm todos os livros do Novo Testamento e somente esses livros. A maioria dos 5.740 manuscritos do Novo Testamento conhecidos inclui um número consideravelmente menor de livros, embora alguns contenham livros não canônicos ao lado de canônicos. Os livros mais ignorados nos manuscritos do Novo Testamento são em geral os mesmos que Eusébio considerava duvidosos (mencionados acima), o que revela falta de concordância sobre a composição do Novo Testamento nas igrejas por vários séculos futuros. Além disso, o uso de lecionários (textos selecionados para leitura em cerimônias religiosas) na Antiguidade nos possibilita identificar os livros bíblicos que informaram a fé dos primeiros cristãos. No conjunto, esses lecionários raramente contêm livros estranhos ao cânone aceito de livros fundamentais e quase nunca se valem da maioria dos chamados livros marginais constantes no cânone. As cópias dos livros sagrados encomendadas por Constantino podem muito bem ter se tornado o protótipo ou modelo para os livros bíblicos que escribas profissionais copiaram mais tarde com grande habilidade. Inúmeros estudiosos sugerem que um ou mais dos nossos melhores manuscritos unciais subsistentes (manuscritos produzidos em pergaminhos, com letras grandes, maiúsculas, no séc. IV e seguintes) são desse período. O Códice Vaticano (B) e possivelmente também o Códice Sinaítico (a), ambos com data provável em torno de 350–375 EC, podem estar entre os manuscritos produzidos por Eusébio ou talvez estes lhes tenham servido de modelo. Conquanto possam ser manuscritos derivados da tradição iniciada por Constantino, alguns estudiosos sustentam que só manuscritos mais tardios (por exemplo, o Códice de Washington) realmente correspondem a essa descrição. Embora o Códice Vaticano tenha três colunas por página (em geral), exceto em algumas seções da parte do Antigo Testamento, e o Sinaítico tenha quatro colunas por página, a sugestão de que um ou outro deles poderia ser uma das 50 cópias enviadas ao imperador, por mais tentadora que seja, continua sendo apenas uma possibilidade. São muito raros manuscritos de qualquer período da Antiguidade que contêm todos os livros da Bíblia e a maioria com datação posterior à Idade Média), mas é provável que Eusébio quisesse dizer que eram feitas cópias integrais da Bíblia (Vida de Const. 4,36 ou 37, citada acima). É possível, no entanto, que o texto utilizado para fazer as 50 cópias tenha sido um precursor do texto bíblico bizantino ou “da maioria” que influenciou quase todas as cópias subsequentes dos escritos do Novo Testamento. Mais importante, se as 50 cópias solicitadas por Constantino incluíam os atuais 27 livros do Novo Testamento – ou livros tanto do Antigo como do Novo Testamento, uma vez que a tecnologia manufatureira do livro daquela época oferecia essa

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possibilidade, esse fato por si só teria produzido um enorme impacto sobre a aceitação do cânone neotestamentário de 27 livros. Embora Eusébio tivesse dúvidas sobre a autoridade e a receptividade do Apocalipse (Hist. Ecles. III,25,4), o próprio Constantino ficou impressionado com o livro e possivelmente induziu Eusébio a incluí-lo em sua coleção. Pessoalmente, Eusébio não acreditava que fosse possível aceitar o Apocalipse de João, como vemos em História Eclesiástica (III,25,2.4). Mas quem iria opor-se à influência e preferência do imperador, considerando o que sabemos a respeito da sua ingerência nas igrejas? Por isso, é provável que não somente Eusébio, mas o próprio imperador romano tenha influenciado a composição do cânone do Novo Testamento. É difícil precisar se a conclamação de Constantino à unidade tanto no Império Romano quanto nas igrejas influenciou ou não de maneira expressiva o conteúdo do cânone bíblico da Igreja. Nenhuma tradição eclesiástica se pronuncia a esse respeito, mas o fato de Constantino envolver-se na maioria das grandes decisões da Igreja no segundo quartel do séc. IV, em matéria de doutrina, disciplina, liderança e harmonia eclesiástica, sugere fortemente que ele pode muito bem ter exercido influência sobre a constituição do cânone bíblico. Coincidência ou não, surpreende o fato de que, durante esse período e nos seguintes, os cristãos demonstraram grande interesse em discutir a questão da diversidade em suas igrejas, especialmente com relação à doutrina e à composição de suas Escrituras. O pedido pessoal de Constantino para que Eusébio produzisse cópias das Escrituras para uso em igrejas em Constantinopla, a “Nova Roma”, até então conhecida como Bizâncio, implicaria pelo menos uma forte influência das decisões de Eusébio com relação à composição das Escrituras cristãs, às igrejas daquela região e, quando não, sobre grande parte do império. Todo livro incluído na coleção que Eusébio enviasse ao imperador e que este aceitasse logicamente afetaria significativamente as igrejas. É provável que essa influência fosse mais intensa no Oriente, em Constantinopla e cercanias, mas possivelmente também em regiões mais distantes. Como mostram as listas canônicas mais tardias, não houve concordância total sobre a composição das Escrituras cristãs no período entre os sécs. IV e VI. Se as cópias produzidas por Eusébio incluíam todos os 27 livros do Novo Testamento (e não apenas os Evangelhos canônicos, como sustentam alguns especialistas), então o conhecimento do seu conteúdo e a aprovação do imperador contribuiriam de forma substancial para recomendar esses mesmos livros e seu conteúdo para outros cristãos em todo o império. Eusébio foi o primeiro a publicar uma lista ou catálogo de Escrituras testamentárias da Igreja, que chamou de escritos “canônicos” (grego = endiatheke, incluídos na Aliança). A própria tarefa em si e a supervisão sobre a produção das 50 cópias das “Sagradas Escrituras” solicitadas por Constantino transformaram Eusébio e Constantino em protagonistas da formação do cânone do Novo Testamento.

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POR QUE ESSES LIVROS? A QUESTÃO DOS CRITÉRIOS Por que foram esses os livros incluídos no cânone bíblico cristão? A resposta a essa pergunta é bem mais fácil com relação aos livros do Novo Testamento do que aos do Antigo Testamento. Quanto aos livros do Antigo Testamento, é provável que a época (antes do reinado de Artaxerxes) e os idiomas originais (hebraico e aramaico) em que foram escritos tenham constituído fatores decisivos para sua inclusão. Também contribuiu para isso uma crença que começava a consolidar-se entre alguns judeus (não todos) segundo a qual o Espírito se afastara de Israel e que, consequentemente, os escritos produzidos antes desse afastamento eram sagrados e inspirados e os produzidos depois não o eram. Além de demonstrar que a Igreja nascente se preocupava em preservar parte da sua literatura para uso em sua vida e culto, é inevitável levantar-se a questão acerca dos critérios adotados para distinguir essa literatura sagrada de todas as demais. O próprio Novo Testamento recomenda discernir entre os que se autodenominam profetas e afirmam falar pelo poder do Espírito. Paulo, por exemplo, diz que alguns cristãos haviam recebido o discernimento dos espíritos (1Cor 12,10) e João afirma que “todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne é de Deus; e todo espírito que não confessa Jesus não é de Deus” (1Jo 4,2-3). A presença de “falsos espíritos” no cristianismo primitivo motivou muitas advertências à comunidade cristã. Além de ter uma teologia correta ou crenças e práticas “ortodoxas” relacionadas ao batismo, ao jejum e à Eucaristia, o(s) autor(es) da Didaqué (c. séc. I EC tardio) recomenda(m) ao leitor que avalie os profetas comparando sua conduta pessoal com a doutrina correta. Por exemplo, se um profeta ou apóstolo procurasse o leitor e ficasse em sua casa mais de um ou dois dias, ele devia ser considerado falso profeta. Além disso, o profeta devia ter a “conduta do Senhor” ao falar (Did. 11,3-10). Se o profeta, “sob inspiração, disser: ‘Dá-me dinheiro ou qualquer outra coisa’, não o escuteis; porém, se pedir para outros necessitados, então ninguém o julgue” (11,12). Os capítulos 12 e 13 da Didaqué oferecem outras orientações sobre o modo de proceder com os profetas que querem se estabelecer entre os cristãos, mas essas diretrizes indicam claramente que alguns cristãos haviam apresentado um desvio de conduta. Consequentemente, as primeiras comunidades cristãs precisavam de alguns critérios para manter o comportamento apropriado dos seus líderes religiosos. O próprio Paulo apôs sua assinatura peculiar em suas cartas para evitar que outros enviassem mensagens em seu nome (ver 1Cor 16,21; Gl 6,11; Cl 4,18; 2Ts 3,17 e Fm 19). No caso de Marcião, os critérios que adotou para compor uma coleção de escritos sagrados foram a rejeição do judaísmo e da sua influência sobre o cristianismo por meio dos escritos do Antigo Testamento e também a rejeição da influência desses escritos sobre os escritos cristãos. Ele selecionou os livros que, na opinião dele, melhor representavam tanto uma perspectiva cristã como uma tendência antijudaica, não hesitando em “usar a faca” para cortar desses documentos tudo o que ele

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acreditava alheio à mensagem cristã. Seus critérios para a seleção são claros, mas o que separava a literatura do Novo Testamento de toda outra literatura cristã antiga daquele período nem sempre é tão claro. Seus discípulos não seguiram sistematicamente seu uso exclusivo do Evangelho de Lucas e das cartas de Paulo. A literatura cristã primitiva afirma que Jesus teve um relacionamento especial com Deus e que Deus agia nele como ninguém mais a favor da humanidade para trazer a salvação de Deus à humanidade. Isso se pode dizer a respeito de quase toda literatura cristã primitiva, inclusive sobre os livros que não entraram no cânone bíblico. Assim, o que levou as igrejas da Antiguidade a escolher os livros que escolheram? Os critérios tradicionais de apostolicidade, ortodoxia, antiguidade, inspiração, uso da Igreja e adaptabilidade são muitas vezes invocados para responder a perguntas desse gênero, mas há limitações. Ninguém na Antiguidade relaciona todos esses critérios e os que adotaram alguns deles nem sempre o fizeram sistematicamente. Examinaremos a seguir cada um desses critérios e posteriormente levantaremos várias questões importantes que eles sugerem para uso contemporâneo da Bíblia nas igrejas, inclusive a grande questão sobre se as antigas igrejas “compreenderam bem!” Apostolicidade Nos primeiros séculos do cristianismo, a arma mais imediatamente acessível à Igreja contra os movimentos heréticos era a sua apostolicidade, a qual asseverava e assegurava suas tradições e ensinamentos sagrados por sucessão histórica preservada em suas tradições orais e escritas. Basicamente, isso significava que os apóstolos que receberam a fé e os ensinamentos de Jesus transmitiram-nos aos líderes da Igreja que os sucederam. Esse “depósito apostólico” tornou-se o ensinamento nuclear que determinou e modelou o conjunto dos escritos aceitáveis que foram incluídos no cânone de Escrituras cristão. As primeiras igrejas não tinham capacidade crítica para definir seu cânone sagrado de forma rápida, uniforme e precisa, mas separaram as obras que acreditavam encarnar a tradição doutrinária geral dos apóstolos e das igrejas que as precederam. A presumida autoridade apostólica inerente aos livros que mais tarde se tornaram o cânone bíblico da Igreja não era óbvia inicialmente, mas com o tempo, progressivamente, tornou-se mais clara para os líderes das igrejas. Para eles, Cristo falava através desses escritos. Não está claro, porém, como alguém podia determinar com precisão o que era autoridade apostólica numa obra antiga. Não é demais dizer que a Igreja nascente procurava fundamentar sua tradição nos apóstolos e em Jesus. Foi a insistência em alicerçar sua fé em Jesus, representado pelos ensinamentos dos apóstolos, que historicamente levou a Igreja a defender a autoria apostólica de um determinado escrito do Novo Testamento. Isso foi feito para promover a confiabilidade desses documentos e para sustentar que a tradição da Igreja não estava separada de suas raízes históricas. O problema que a aplicação do critério da apostolicidade apresenta para os estudos canônicos é mais pronunciado em uma era em que métodos histórico-críticos de

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avaliação levam os estudiosos a questionar se a maioria da literatura do Novo Testamento foi escrita por um dos “Doze” apóstolos. Não é certo que o apóstolo João tenha escrito todos os livros a ele atribuídos no Novo Testamento, especialmente o Apocalipse. Embora alguns biblistas defendam autoria apostólica para 1 Pedro, 1 João e possivelmente Judas (se ele era irmão de Jesus e de Tiago), os argumentos não são conclusivos e não há consenso sobre essa matéria entre os estudiosos. Na Antiguidade, a autoria de Hebreus foi questionada abertamente nas igrejas e hoje ninguém sustenta com convicção absoluta que Paulo tenha escrito a Carta aos Hebreus. São também muitos os questionamentos legítimos levantados pelos estudiosos a respeito da autoria paulina de Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses e, especialmente, as Epístolas Pastorais, apesar de algumas tradições paulinas autênticas estarem presentes nelas. Por exemplo, o modo como Paulo encarou a morte está bem descrito em 2Tm 4,6-17. Tampouco há motivos para duvidar de que “todos os da Ásia” o abandonaram (2Tm 1,15). Esses são elementos que provavelmente refletem palavras de Paulo e o que aconteceu com ele. Tiago, mesmo se fosse irmão de Jesus e escrevesse a epístola que leva o seu nome, como afirmam alguns estudiosos, não era apóstolo. Mais, nenhum biblista digno de crédito defende hoje convictamente que o apóstolo Pedro escreveu 2 Pedro. E, ainda, aos Evangelhos de Marcos e Lucas não se atribui o caráter de apostolicidade, embora possam ter sido escritos durante o período apostólico (c. 30-65) ou pouco depois. É provável que a comunidade apostólica tenha influenciado ambos de modo muito significativo. O entendimento atual do que sejam documentos apostólicos é em geral diferente das conclusões a que a Igreja primitiva chegou sobre essa questão. Se a apostolicidade foi um critério antigo que determinou o reconhecimento da autoridade de uma obra, como seguramente o foi para muitas igrejas, deve-se admitir que esse critério não foi aplicado com tanto cuidado e coerência como o é atualmente. Por mais bem-intencionados que os primeiros cristãos possam ter sido ao atribuir autoria apostólica à maioria dos livros do Novo Testamento, é difícil manter essa posição hoje. No caso de Hebreus, sua atribuição a Paulo pode ter sido mais política do que bem-intencionada para ajudar o livro a ser aceito entre as igrejas, uma vez que muitos na Igreja primitiva rejeitavam sua autoria paulina. Sua mensagem foi considerada sumamente relevante para uma Igreja que estava enfrentando um futuro incerto devido a muitos desafios e ameaças contra sua existência. O testemunho de Orígenes sobre essa matéria ilustra muitas das dúvidas sobre Hebreus, pelo menos nas igrejas orientais. Eusébio tinha dúvidas sobre a autoria apostólica de 2 Pedro e em seus comentários iniciais questionou esse escrito, mas aceitava 1 Pedro porque acreditava ter sido escrita pelo apóstolo Pedro. Ele escreve: “De Pedro, apenas uma carta, classificada como primeira, é reconhecida como autêntica, e os próprios antigos presbíteros utilizaram-na, citando-a em seus escritos como sendo genuína. Quanto àquela enumerada como segunda, tivemos notícia de que não é testamentária, todavia

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muitos a consideraram útil e foi tomada em consideração com as demais Escrituras” (Hist. Ecles. III,3,1). Os que duvidavam da autoria apostólica de vários escritos do Novo Testamento, como no caso de 2 e 3 João e do Apocalipse, estavam propensos a duvidar igualmente da sua condição canônica. É interessante que vários movimentos cristãos que mais tarde foram condenados como heréticos também se atribuíam origem apostólica genuína. Por exemplo, os cristãos gnósticos do séc. II e os donatistas do séc. IV sustentavam ter suporte apostólico para seus ensinamentos. Autoria apostólica era também atribuída ao Evangelho de Tomé pelo fim do séc. II. Para alguns biblistas atuais, uns poucos ditos de Jesus nesse antigo evangelho podem ser palavras autênticas de Jesus. O critério apostólico empregado pelas primeiras igrejas tinha como propósito maior enraizar ou estabelecer as tradições sagradas das igrejas naqueles que estavam mais próximos dos apóstolos reais de Jesus, os quais supostamente conheciam bem a Jesus e seu ministério. Tertuliano, por exemplo, colocava Marcos e Lucas em posição secundária, depois de Mateus e João. A importância da apostolicidade no cristianismo primitivo é vista especialmente na tendência de alguns, nas primeiras igrejas, a compor escritos pseudônimos em nome de apóstolos para assegurar sua aceitação nas igrejas. Do mesmo modo, é improvável que qualquer livro do Novo Testamento teria sido incluído na Bíblia caso se soubesse que era pseudônimo. Os especialistas bíblicos questionam a autoria apostólica de vários livros do Novo Testamento. As polêmicas mais comuns em torno dessa questão envolvem os Evangelhos de Mateus e João (escritos anonimamente) e as epístolas aos Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Hebreus (também escrita anonimamente), 2 Pedro, 2-3 João e Apocalipse. Alguns estudiosos questionam também vários outros escritos, mas esses mencionados são os que provocam as controvérsias mais comuns. Esse fato levanta a questão de um antigo escrito cristão poder ter sido acertadamente aceito no cânone bíblico, mas pelas razões errôneas (atribuição de autoria apostólica). Para um aprofundamento desses assuntos, é mister consultar introduções ao Novo Testamento mais recentes. Ortodoxia Embora alguns biblistas sustentem que um dos fatores unificadores e distintivos da literatura do Novo Testamento seja a verdade, ou cânone de fé que ela contém, um exame mais minucioso dessa literatura revela poucos aspectos de “ortodoxia” acolhidos uniformemente pelos primeiros cristãos. Por exemplo, é difícil harmonizar o tema da vinda futura do Reino de Deus nos Evangelhos sinóticos com o tema joanino da vida eterna no presente e a pouca atenção dedicada ao futuro. E também, como a ênfase de Paulo à morte de Cristo “por nossos pecados” combina com a evidente falta de interesse de Lucas por esse assunto? Observe que a morte de Cristo “por nossos pecados” nunca é mencionada nos discursos dos Atos (ver At 2,14-39; 3,11-26), mas é enfatizada regularmente nas cartas de Paulo, como 1Cor 15,3; Rm

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3,23-25; Gl 2,21 e outras passagens. Em Rm 13,1-3, Paulo exorta os cristãos a se submeterem às autoridades constituídas (que são estabelecidas por Deus) e diz que os que se rebelam contra essas autoridades opõem-se à ordem estabelecida por Deus. Por outro lado, Pedro e João parecem rejeitar a autoridade dos investidos de poder, atribuindo primazia à obediência a Deus (At 4,18-20 e 5,27-29). É difícil coadunar essas duas posições sem limitar a mensagem de Paulo a um contexto específico. Compare também as fórmulas batismais em Atos (At 2,38; 10,48; 19,5) com a de Mt 28,19. De novo, é possível harmonizar facilmente a estrutura organizacional da Igreja nascente em Atos, Paulo, João, as Pastorais e Mt 16,18-19? Poderíamos apresentar muitos outros exemplos que mostram a grande diversidade existente na literatura do Novo Testamento, mas nos restringimos aos citados. As pessoas, em geral, acreditam que a fé das primeiras igrejas apostólicas era de algum modo unificada, pura, idêntica em todas as igrejas e normativa. Naturalmente, pelo que conhecemos através do Novo Testamento e da história da Igreja primitiva, esse modo de pensar não tem fundamento. Por outro lado, é um contrassenso ignorar a unidade em meio à diversidade. Sem dúvida, o cristianismo incipiente viveu momentos de fortes tensões, difíceis de ignorar, e as tentativas de equacioná-las normalmente obscurecem ou embaraçam ainda mais precisamente os aspectos pretendidos pelos autores originais. Se o Novo Testamento tem um núcleo teológico reconhecido ou razoavelmente aceito em toda parte, este consiste pelo menos no fato de que o homem chamado Jesus está agora exaltado em sua ressurreição e merece ser fielmente obedecido, e de que aqueles que o reverenciam e o seguem receberão a recompensa divina. A esse núcleo podemos acrescentar a crença impressionante de que Jesus, um homem justo que vive uma relação especial com Deus, morreu pelos pecados da humanidade, ressuscitou pela ação de Deus para uma nova vida e um dia voltará para julgar os vivos e os mortos. No entanto, essa breve confissão não está restrita à literatura do Novo Testamento; ela está presente em muitos documentos cristãos não canônicos, como nos Padres Apostólicos (1 Clemente Romano, Cartas de Inácio, Martírio de Policarpo, Pastor de Hermas, Epístola de Barnabé, Didaqué), escritos no séc. I tardio e no início do séc. II, que certamente concordam com tudo isso, e talvez também em obras de Marcião e dos próprios montanistas. Os líderes das antigas igrejas que deliberaram sobre a composição do Novo Testamento, entretanto, acreditavam que os escritos escolhidos continham a mensagem fidedigna de Jesus Cristo e sobre Jesus Cristo. A apostolicidade – o conceito segundo o qual os escritos do Novo Testamento foram compostos por autores apostólicos – preservava, conforme acreditavam os cristãos do séc. II e seguintes, um testemunho mais fiel da atividade de Deus em Jesus. A ortodoxia reflete o que muitos cristãos primitivos acreditavam ser a mensagem essencial de Jesus e dos seus seguidores. A presença de fórmulas de fé, ou credos, na Igreja primitiva, antes e depois da

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formação de um cânone bíblico nas comunidades cristãs, demonstra claramente que a “ortodoxia” em si se baseava em um “cânone dentro do cânone”, ou seja, havia uma fé fundamental transmitida na Igreja nascente, mas nem tudo era “fundamental” na transmissão ou nos muitos livros produzidos pelos primeiros cristãos. A composição do cânone bíblico, portanto, sugere que a Igreja aceitava certa diversidade e pode-se acertadamente dizer que ela introduziu essa diversidade em seu cânone sagrado. As afirmações acima sobre Jesus, ou algo semelhante, podem bem ser consideradas o ensinamento cristão nuclear que constituía um “cânone dentro do cânone” na Igreja primitiva. Se, porém, todos os seguidores de Jesus acreditavam que a literatura do Novo Testamento por si só, ou a Bíblia como um todo, era suficiente para a fé e para as necessidades catequéticas e missionárias da Igreja, muitas fórmulas de fé posteriores, elaboradas depois de prolongados debates (por exemplo, o credo niceno) e muitas vezes sob enorme tensão, teriam sido desnecessárias. Em debates teológicos de caráter mais conservador sobre formulações de fé relacionadas à Bíblia e à fé cristã, frequentemente pergunto: “O que está errado com a Bíblia?” Em geral, a resposta é: “Não há nada de errado com a Bíblia!” Mas a pergunta consequente – “Por que, então, precisamos de outra profissão de fé? Por que não acreditar na Bíblia, pura e simplesmente?” – não encontra resposta fácil. A “ortodoxia”, como tal, parece ser outro “cânone dentro do cânone”. Ela não responde a todas as perguntas formuladas pela Igreja, mas é suficiente para a fé e está no cerne da unidade cristã. A tarefa do intérprete do Novo Testamento consiste, portanto, em encontrar as verdadeiras prioridades bíblicas nessa literatura e fazer com que assumam a primazia no testemunho, no culto e no magistério da Igreja. O cristianismo primitivo testemunhou a presença de outras vozes (trajetórias) que, não obstante perderem a batalha contra o que mais tarde veio a ser conhecido como “ortodoxia”, talvez só tenham sido consideradas heréticas em data posterior. Alguns especialistas sustentam que, no período pós-neotestamentário (depois de 95-100 EC), os chamados cristãos ortodoxos eram efetivamente em número menor do que os chamados hereges. Outros estudiosos contestam essa tese, dizendo que seus proponentes não dimensionaram adequadamente a força dos argumentos contra o cristianismo aduzidos no séc. II por Celso, um dos adversários mais ferrenhos da Igreja. Os argumentos de Celso contra o cristianismo são essencialmente contra as posições ortodoxas de cristãos que constituíam a maioria. As primeiras igrejas abrigavam mais seitas cristãs do que apenas a ramificação ortodoxa dos sécs. II e III. No séc. IV, predominava a uniformidade, não a diversidade; muitas das chamadas seitas heréticas desapareceram no séc. IV e seguintes, com a ortodoxia passando a ocupar uma posição de destaque nas igrejas. É interessante observar que a literatura gnóstica, na sua quase totalidade, não é polêmica, diferentemente de grande parte da literatura “ortodoxa” que sobreviveu ao séc. II. Uma possível razão para isso é que o cristianismo gnóstico era popular e muito difundido nessa época, e não via a necessidade de responder “na mesma

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moeda”. Quando essas ideias passaram a ser vistas como ameaça concreta para a unidade das igrejas, elas foram marginalizadas, criticadas e, por fim, condenadas. Curiosamente, muitos ataques do cristianismo primitivo às heresias eram ad hominem, dirigidos contra pessoas, não ad doctrinam, dirigidos contra doutrinas estabelecidas, porque poucos eram os critérios ad doctrinam aceitos que servissem de parâmetro para julgar. Normalmente, a ortodoxia se afirmava com mais clareza, se sustentava com maior racionalidade e se adaptava de modo mais conforme com as tradições sagradas aceitáveis da Igreja. A heresia, por sua vez, era em geral incoerente, confusa e contraditória. Embora alguns possam ver exagero nessa afirmação, é importante lembrar que as primeiras igrejas conviviam com grande diversidade teológica. O reconhecimento dessa diversidade não significa, porém, que todas as teologias das primeiras igrejas representam de modo igual a pregação e o ensinamento cristãos mais antigos. Razões justificáveis levaram a maioria das antigas igrejas a rejeitar a interpretação gnóstica esotérica e a-histórica da fé cristã. Hoje como então, intérpretes do Novo Testamento devem dar prioridade aos elementos que são e aos que não são essenciais à fé cristã. É muito fácil omitir essa etapa mais complexa de investigação e concluir que todas as antigas teologias são essencialmente iguais. De fato, não são. Antiguidade Para muitos cristãos primitivos, somente a tradição mais próxima do tempo de Jesus podia ser aceita na forma de escritos sagrados autorizados para a Igreja. O autor do Fragmento Muratoriano, do séc. IV, por exemplo, contestava a aceitação do Pastor de Hermas como documento sagrado autorizado da Igreja, especificamente porque não foi escrito no tempo dos apóstolos, mas mais recentemente – ou seja, depois do período apostólico. Ele escreve: Mas Hermas escreveu o Pastor muito recentemente, em nosso tempo, na cidade de Roma, quando o bispo Pio, seu irmão, ocupava a cadeira [episcopal] da igreja da cidade de Roma. Por isso, ele certamente deve ser lido; mas não pode ser lido publicamente para os fiéis na igreja, seja entre os profetas, cujo número está completo, seja entre os apóstolos, pois ele é posterior ao tempo deles.

Tudo indica que a antiguidade, associada à apostolicidade e a uma “regra de fé” (ortodoxia), constituiu critério importante para a canonicidade em algumas igrejas. Os instrumentos mais criteriosos e eficientes das pesquisas bíblicas atuais possibilitaram aos estudiosos mostrar de modo convincente que parte da literatura do Novo Testamento – especialmente 2 Pedro, provavelmente as Pastorais, o Apocalipse e possivelmente outros livros – pode muito bem ter sido escrita depois de alguns livros cristãos não canônicos – depois da Didaqué, de 1 Clemente, das Cartas (ou Epístolas) de Inácio, do Martírio de Policarpo, da Epístola de Barnabé e do Pastor de Hermas. Muitos sustentam firmemente uma datação mais antiga para parte dessa literatura do que para alguns livros da literatura canônica, o que é suficiente para mostrar que o critério da antiguidade não era aplicado com tanto cuidado na Igreja

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patrística quanto é possível hoje. Associando as tradições ortodoxas constantes nos livros não canônicos com uma data mais antiga conhecida, é possível concluir que esses livros, considerados textos sagrados nos primórdios, foram equivocadamente omitidos da lista de livros candidatos a integrar o cânone bíblico. Eles aparecem de modos diferentes nos primeiros dos antigos manuscritos do Novo Testamento. O Códice Sinaítico (350–375 EC) inclui a Epístola de Barnabé e o Pastor de Hermas em sua coleção de textos sagrados cristãos. Alguns biblistas sustentam, que se a “antiguidade” permanece como critério para canonicidade, deve-se dar atenção especial a alguns evangelhos apócrifos do séc. II que também representam algumas das primeiras correntes do cristianismo. Alguns desses escritos podem legitimamente pleitear uma data de composição tão ou até mais antiga quanto alguns escritos canônicos. É possível encontrar evidências de datação antiga (pelo fim do séc. I ou pouco depois) para cerca de uma dezena de evangelhos não canônicos. Embora alguns especialistas afirmem que o Evangelho de Tomé poderia ser datado de em torno do fim do séc. I e que contém algumas das primeiras palavras de Jesus realmente autênticas, outros o situam em algum momento ao longo do séc. II. A mesma coisa se pode dizer a respeito do chamado Papiro Egerton (também chamado Evangelho Desconhecido) e do Evangelho dos Hebreus. Especialistas modernos discutem se esses dois textos dependeram dos Evangelhos canônicos ou se estes dependeram daqueles. Argumentos semelhantes foram apresentados para o Diálogo do Salvador, para o Apócrifo de João e para o Evangelho de Pedro. Seja como for, eles são testemunhas importantes do desenvolvimento da literatura evangélica do Novo Testamento em suas etapas de formação. Comparações do Evangelho de João (algumas outras além de Jo 8,12-59) com fontes de ditos apócrifos às vezes demonstram que havia uma tradição de “ditos” ainda maior do que a que se encontra nos Evangelhos sinóticos. Uma comparação dessa natureza pode dar pistas para se compreender o processo muitas vezes impreciso da composição dos discursos joaninos e também ajudar a identificar os ditos tradicionais de Jesus neles inseridos. Embora possa haver um pouco de “fel misturado com mel” (como se expressa Irineu) nos evangelhos gnósticos, acredita-se que um estudo sério desses evangelhos pode produzir resultados importantes para o estudo do cristianismo primitivo e também de alguns ditos de Jesus. Até que ponto o critério da antiguidade é útil para definir os livros que devem fazer parte do Novo Testamento? Se os comentários que precedem têm alguma importância aqui, o valor da antiguidade como critério de determinação do cânone bíblico talvez precise ser revisto. Se o objetivo do processo de canonização é em parte fundamentar a fé da Igreja nas palavras e ações de Jesus, então devemos dar alguma atenção às fontes adicionais mencionadas acima. Na maioria dos estudos sobre canonicidade, a antiguidade recebe um valor implícito, com o que devemos concordar, até certo ponto. Quanto mais antigo for o

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documento, supõe-se que mais fidedigno seja, mas não é esse necessariamente o caso. Se a antiguidade por si só fosse o critério principal para a canonicidade, seria necessário repensar seriamente o atual cânone bíblico; no entanto, é imprudente erigir um cânone de Escrituras sobre um critério inconstante e impreciso, a respeito do qual os melhores especialistas em Novo Testamento não conseguem concordar. Por esse fato apenas, os escritos mais antigos não podem ser considerados mais fidedignos. Com essa advertência, a recuperação da tradição mais antiga e mais confiável sobre Jesus, não obstante, sempre foi um dos objetivos da Igreja cristã, e especialmente dos seus mentores. Isso não implica que o cânone bíblico cristão deva ser expandido ou mesmo reduzido com base no critério da antiguidade. Os critérios de apostolicidade e ortodoxia são muito mais importantes nesse processo, e eles, associados à antiguidade, devem justificar com mais vigor a rejeição de tradições muito distantes, teológica ou historicamente, da figura tradicional de Jesus nos Evangelhos canônicos. Em alguns escritos mais recentes (sécs. II e III), a história de Jesus não é apresentada com tanta clareza, e muitas vezes é confusa. Devemos também estar cientes de que os mesmos métodos adotados em um estudo dos Evangelhos canônicos para determinar as palavras autênticas de Jesus também podem ser legitimamente aplicados à literatura cristã não canônica, com grande proveito para nossa compreensão geral das origens da fé cristã. A antiguidade de alguns documentos não canônicos é razão suficiente para examiná-los criteriosamente visando a determinar se podem nos ajudar em nossa tentativa de compreender melhor aquele que deu origem à fé cristã. Se esse exame determinar com algum grau de confiança que palavras autênticas de Jesus estão presentes em um dos textos não canônicos, então seria prudente aprender com essas outras vozes. Inspiração Todos os antigos Padres da Igreja acreditavam que as Escrituras eram inspiradas, mas, para os escritos do Novo Testamento, a inspiração é mais corolário da canonicidade de um livro do que critério de sua aceitação como canônico. Em outras palavras, se o escrito era aceito como sagrado e autorizado na Bíblia, era também considerado literatura inspirada. Os escritos do Novo Testamento geralmente não se presumem literatura inspirada. A exceção mais notória, evidentemente, é o autor do Apocalipse, que se atribui inspiração profética quando adverte: A todo o que ouve as palavras da profecia deste livro, eu declaro: “Se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará também a sua parte da árvore da Vida e da Cidade Santa, que estão descritas neste livro!” (Ap 22,18-12, BJ. Grifo nosso).

Quer o autor do Apocalipse fosse autor do Evangelho de João e de 1 João, quer se tratasse de outro João, como parece provável pelo estilo e temática do livro, seu pretexto para aceitação se baseou não na apostolicidade, mas na inspiração. Além disso, em 1Cor 7,39-40, em que Paulo se manifesta sobre a liberdade da viúva de

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contrair novo matrimônio, o que o ampara é a crença de que seu julgamento era insuflado pelo Espírito Santo. Com exceção dessa passagem, porém, Paulo recorre mais seguidamente ao seu apostolado como razão primeira de aceitação do seu ensinamento e ministério (ver Gl 1,1; 1Cor 9,1; 2Cor 13,3.10 – compare a 1Cor 9,112, onde ele invoca sua autoridade enquanto apóstolo). Nenhuma voz antiga negou a inspiração das Escrituras da Igreja, mas até que ponto a noção de inspiração influenciou o processo de canonização? Irineu deixa claro que as Escrituras da Igreja, mesmo quando não claramente compreendidas, são “expressas pela Palavra de Deus e por seu Espírito” (Contra as Heres. II,28,2). Orígenes explicita claramente que as Escrituras foram escritas ou inspiradas pelo Espírito Santo. Observe, por exemplo, sua ênfase quando diz que “as Escrituras foram escritas pelo Espírito de Deus, e têm um sentido, não somente como se revela à primeira vista, mas também outro que foge à percepção da maioria” (Sobre os Princ., prefácio 8). Curiosamente, Irineu foi o primeiro autor cristão a alegorizar os vários escritos do Novo Testamento, porque foi um dos primeiros a tratá-los como incontestavelmente inspirados. Orígenes, depois dele, e muito à semelhança de Fílon, anteriormente, sentiu-se livre para alegorizar as Escrituras precisamente porque eram consideradas inspiradas por Deus. Ao procurar desacreditar a autenticidade do tratado A Doutrina de Pedro, Orígenes escreve no mesmo texto: “Podemos mostrar que ele não foi composto por Pedro nem por nenhuma outra pessoa inspirada pelo Espírito de Deus”. O pressuposto atuante aqui, naturalmente, é que a Escritura é inspirada por Deus e que a heresia ou a falsidade não é. Mais tarde, ao refletir sobre o Espírito Santo, ele ofereceu a sua melhor prova para a filiação divina e escreveu: Nós, porém, em conformidade com a nossa crença na doutrina, que seguramente sustentamos ser inspirada por Deus, acreditamos não ser possível explicar e trazer ao alcance do conhecimento humano essa razão mais elevada e mais divina de ser Filho de Deus, de outro modo, a não ser unicamente por meio das Escrituras inspiradas pelo Espírito Santo, isto é, os Evangelhos e as Epístolas, e a Lei e os Profetas, segundo declaração do próprio Cristo (Sobre os Princ., prefácio 8).

Teófilo de Antioquia (c. 180) também acreditava que as Escrituras tinham suas origens em Deus e guardava a relação entre Escritura (“escritos sagrados”) e inspiração, expressando-a deste modo: “Os escritos sagrados nos ensinam e a todos os portadores do espírito [inspirados] [...] mostrando que no princípio existia apenas Deus e nele o seu Verbo” (A Autólico 2,22). Não há dúvida de que a Igreja primitiva acreditava que suas Escrituras eram inspiradas por Deus, mas o maior problema em considerar a inspiração critério para canonicidade na Igreja nascente é que as Escrituras canônicas não eram a única literatura antiga que os cristãos acreditavam ser inspirada por Deus. Hermas, por exemplo, não adota nenhuma das fórmulas tradicionais utilizadas para introduzir a Escritura ao citar ou aludir à literatura bíblica, mas cita o apocalipse não canônico de Eldad e Medad (hoje perdido) usando uma fórmula típica para designar um texto sagrado. Ele escreve: “O Senhor está próximo daqueles que fazem penitência, como

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está escrito no Livro de Eldad e Medad, que profetizaram para o povo no deserto” (Pastor, Visão 2,3-4. Grifo nosso). É possível que 2 Clemente 11,2 também faça alusão a esse apocalipse. Os dois nomes são mencionados em Números 11,26. O autor de 2 Clemente cita 1 Clemente 23,3.4 com as palavras introdutórias “Pois a palavra profética também diz” (11,2) – as palavras habituais para designar obras consideradas inspiradas e autorizadas. Novamente, o autor da Epístola de Barnabé introduz em 16,5 uma passagem de 2 Enoc 89,56 com as palavras “Pois a Escritura diz”. Teófilo aparentemente incluiu Sibila como documento inspirado junto com os profetas de Deus (2,9) e também deixa claro o que entende por inspiração. Ele escreve: “Os homens de Deus, que foram portadores de um espírito santo [= ‘impelidos pelo espírito’] e profetas, recebendo de Deus inspiração e sabedoria, tornaram-se discípulos de Deus, e santos e justos” (A Autólico 2,9). De uma perspectiva ligeiramente diferente, Clemente Romano (c. 95) recomendava o ensinamento do apóstolo Paulo, dizendo que ele escrevera 1 Coríntios “com verdadeira inspiração” (ep’ alétheias pneumatikos) (1 Clem. 47,3). Por outro lado, também disse que sua própria carta foi “escrita por nós através do Espírito Santo” (62,2). Do mesmo modo, Inácio disse ter consciência de falar movido pelo poder do Espírito Santo quando comentou: Estando no meio de vós, gritei, disse em alta voz, uma voz de Deus [...] Aqueles suspeitaram que eu dissera isso porque possuía conhecimento prévio da divisão de alguns, mas aquele pelo qual estou acorrentado é minha testemunha de que eu não o sabia através da carne. Era o Espírito que anunciava e dizia isso (Inácio, Filadelfienses 7,1-2. Grifo nosso).

Nas comunidades do período pós-apostólico e do início do período patrístico, são muitos os exemplos de autores que se diziam – ou que outros consideravam ser – tomados pelo Espírito e inspirados ao falar ou escrever. Segundo alguns estudiosos, todavia, a palavra do Novo Testamento para inspiração (theopneustos) em 2Tm 3,16 só era usada com referência às Escrituras bíblicas. Não obstante, o termo também se aplica a pessoas que se manifestavam na Igreja primitiva, e não apenas aos que escreveram as Escrituras. Gregório de Nissa (c. 330–395), por exemplo, ao discorrer sobre o comentário de Basílio a respeito da história da criação, afirma que Basílio (c. 330–379) estava inspirado por Deus e que suas palavras inclusive superavam as de Moisés em termos de beleza, complexidade e forma (Apologia hexaemeron em Migne, Patrologia Grega 44,61). As palavras exatas nessa exaltação são de que o comentário é uma “exposição dada por inspiração divina [...] não menos [admirada] do que as palavras proferidas pelo próprio Moisés”. Do mesmo modo, o famoso epitáfio de Abércio, bispo de Hierápolis, na Frígia, Ásia Menor, do séc. II tardio († c. 200 EC), foi chamado de “inscrição inspirada” (Vita Abercii 76), como também uma carta sinódica do Concílio de Éfeso (c. 433) que descreve a condenação de Nestório († c. 451) pelo Concílio como “seu julgamento (ou ‘decisão’) inspirado” [grego = theopneustou]. A conclusão a que essa compilação de textos nos leva é que os envolvidos não

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acreditavam que a inspiração como tal se restringia à literatura do Antigo ou do Novo Testamento, ou mesmo à literatura somente. Justino Mártir, por exemplo, que certamente está envolvido com a literatura do Novo Testamento, acreditava que a inspiração e o poder do Espírito Santo eram posses de toda a Igreja. Ele escreve: “Entre nós, com efeito, até o presente existem carismas proféticos. Por isso, deves compreender que esses dons que antes existiam entre vosso povo [os judeus] passaram para nós” (Trifão 82. Ver exemplos semelhantes em Trifão 87-88). É especialmente importante mencionar aqui que Justino acreditava que os próprios tradutores da Setenta foram inspirados por Deus para realizar sua tarefa. Ele diz que era possível comprovar esse fato não só através do próprio trabalho como um todo, que coincidia em seu significado, mas também pelas traduções individuais do hebraico, que inclusive usavam as mesmas palavras gregas! Veja também o Discurso exortativo aos gregos, onde Justino fala da aprovação da tradução da LXX pelo rei Ptolomeu: E quando ele se assegurou de que os setenta homens não só haviam dado o mesmo sentido, mas haviam empregado as mesmas palavras, e não deixaram de concordar um com o outro nem mesmo com relação a uma única palavra, mas haviam escrito as mesmas coisas, e atinentes às mesmas coisas, ele ficou sumamente admirado e acreditou que a tradução havia sido escrita pelo poder divino, e percebeu que os homens eram dignos de todo louvor, como amados de Deus; e com muitos presentes, mandou-os de volta para seus respectivos países. E depois de se maravilhar com os livros, como era natural, e de concluir que eram divinos, ele os consagrou naquela biblioteca (Grifo nosso).

Mesmo nos antigos fragmentos que tratam da controvérsia montanista, não há evidências oferecidas pela Igreja primitiva de que a inspiração se limitasse ao período apostólico ou à literatura apostólica (Eusébio, Hist. Ecles. V,14-19, é esclarecedor aqui) ou mesmo a uma coleção de escritos sagrados. Além disso, por outro lado, o consenso dos primeiros Padres da Igreja, especialmente Irineu, Orígenes e Eusébio, é que a obra dos falsos profetas e toda a filosofia e oráculos pagãos não eram inspirados. A crença tradicional de que os primeiros cristãos consideravam inspirados somente os escritos canônicos simplesmente não corresponde à realidade. A antiga crença judaica a respeito das Escrituras do Antigo Testamento segundo a qual “Quando os últimos profetas, Ageu, Zacarias e Malaquias morreram, o Espírito Santo cessou de agir em Israel” (Tosefta22 Sotah 13,2) não era partilhada pela Igreja pósapostólica. A principal distinção entre escritos “inspirados” e “não inspirados” era que estes estavam à margem de toda a vida e estrutura de fé da comunidade cristã, como no caso das obras heréticas. Estudiosos dos primeiros Padres da Igreja até 400 EC demonstraram que não há exemplos de uma obra ortodoxa fora do Novo Testamento que tenha sido qualificada como não inspirada. Essa designação se aplicava apenas a autores heréticos. Os Padres da Igreja primitiva até o fim do séc. V nunca dizem que somente as Escrituras sagradas eram inspiradas por Deus. Nas primeiras igrejas, a inspiração se aplicava a toda a Escritura e também à comunidade cristã como um todo, pois era “testemunho vivo de Jesus Cristo”. Parece que apenas a heresia era

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considerada não inspirada porque contradizia esse “testemunho vivo de Jesus Cristo” nas igrejas. Nossa análise precedente da literatura profética produzida pelos montanistas, a qual, segundo eles, originava-se no Espírito Santo ou era por ele influenciada, é relevante para o presente estudo e mostra que, no fim do séc. II, as igrejas não acreditavam que a inspiração se restringisse à literatura do séc. I. Por essas razões, o conceito de inspiração aparentemente não constou nos debates posteriores sobre o cânone bíblico. Inspiração e canonicidade, portanto, não podem ser separadas totalmente, mas a inspiração não é a base da canonicidade. Não é possível afirmar que, se um texto é inspirado, ele deve ser canônico. Isto é, essa perspectiva simplesmente não encontra sustentação histórica. A visão tradicional de inspiração, segundo a qual todos os livros constantes do cânone são plenamente inspirados pelo Espírito Santo, e que nenhum livro fora dele é inspirado, não encontra respaldo histórico. É como colocar a carroça na frente dos bois e não perceber que a inspiração é mais um corolário da canonicidade do que um critério para ela. Certamente, todos os livros incluídos no cânone bíblico eram considerados inspirados por Deus. Um dos problemas emergentes durante o desenvolvimento do cânone bíblico foi a dificuldade enfrentada pelas igrejas em distinguir entre livros inspirados e livros não inspirados. Essa dificuldade revela falta de consenso sobre o sentido do termo inspiração, e é ilustrada pelas diferentes formas como antigos livros sagrados autorizados eram citados. Por exemplo, Clemente de Alexandria citou a Didaqué como Escritura (Stromata I,100,4) e considerou 1 Clemente, a Epístola de Barnabé, o Pastor de Hermas, a Pregação de Pedro e o Apocalipse de Pedro como inspirados. Sem dúvida, a inspiração estava originariamente associada aos anúncios proféticos do Antigo Testamento (2Tm 3,16), mas depois aos escritos do Novo Testamento. Alguns sustentam que foi provavelmente Orígenes que iniciou uma tradição na Igreja segundo a qual Deus inspirou todas as Escrituras de ambos os Testamentos. Essa extensão da inspiração a todos os livros da Bíblia sofreu modificações com o tempo, mas perpetuou-se na Igreja. Curiosamente, ao longo de toda sua história, a Igreja não desenvolveu uma definição de inspiração coerente e aceita pela maioria. E tampouco articulou claramente uma distinção entre a inspiração de um escrito bíblico e a inspiração presente na vida cotidiana da Igreja e em sua pregação. A Igreja do séc. II e seguintes acreditava que o ministério profético contínuo do Espírito Santo do séc. I, que através da proclamação da Boa-nova chamava os indivíduos à fé em Cristo, estava presente em sua comunidade de fé e em seu ministério. A comunidade cristã, então, acreditava que Deus continuava a inspirar os indivíduos em sua proclamação, do mesmo modo que inspirou os autores da literatura do Novo Testamento. A Igreja primitiva acreditava que o Espírito Santo e a inspiração eram dons de Deus a toda a Igreja, e não simplesmente posse de autores de literatura sagrada. Representará, então, essa conclusão, um desrespeito à

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singularidade, inspiração e autoridade da literatura bíblica? A resposta seria afirmativa se o fator exclusivo dessa literatura fosse sua inspiração. Nunca se acreditou, porém, que a inspiração fosse o fator distintivo a separar tanto os apóstolos das gerações seguintes de cristãos quanto as Escrituras cristãs de toda outra literatura cristã. Naturalmente, a inspiração é o pressuposto divino para os escritos do Novo Testamento, mas os 27 livros não foram escolhidos porque eles, e somente eles, eram reconhecidos como inspirados. Os autores bíblicos foram inspirados por Deus, mas um escrito bíblico não era considerado canônico por admitir-se que seu autor fora inspirado. Antes, os autores bíblicos eram considerados inspirados porque suas obras eram aceitas como literatura sagrada e autorizada. O que era autêntico ou não autêntico a respeito da mensagem de Jesus e do próprio Jesus – o cânone de fé (regula fidei) da Igreja – parece ter sido mais determinante para a literatura autorizada na vida da Igreja primitiva do que a noção do que era e do que não era inspirado. Uso e adaptabilidade Em última análise, o que parece ter determinado se um livro devia ser considerado Escritura e incluído em uma coleção fixa de Escrituras foi o uso que dele fazia a Igreja primitiva. Se o termo uso se refere à utilização e ao reconhecimento generalizados de um documento autorizado na Igreja antiga, então, naturalmente, um dos primeiros testemunhos desse critério é Eusébio. Veja, por exemplo, como ele demonstra aceitar o Evangelho de João e 1 João, mas reluta em aprovar 2-3 João e o Apocalipse. Isso acontece porque o Evangelho de João e 1 João não sofrem contestação nem da parte dos nossos contemporâneos, nem dos antigos, mas as duas outras são contestadas. Quanto ao Apocalipse, sua autenticidade é ainda discutível para muitos. De novo há de ser ponderada, a seu tempo, segundo o testemunho dos antigos (Eusébio, Hist. Ecles. III,24,17-18. Grifo nosso).

Além disso, Eusébio considerava os livros “contestados” e “espúrios” (Tiago, Judas, 2 Pedro, 2-3 João e possivelmente Apocalipse, e também Atos de Paulo, Pastor de Hermas, Apocalipse de Pedro, Epístola de Barnabé, Evangelho Segundo os Hebreus e a Didaqué) diferentes daqueles que eram “reconhecidos” com base na tradição de reconhecimento da Igreja (Hist. Ecles. III,25,1-7). Veja o que ele diz: Achamos necessário fazer igualmente o catálogo dessas últimas obras, separando-as das Escrituras que, segundo a tradição da Igreja, são verdadeiras, autênticas e reconhecidas, dos livros que, ao contrário, não são testamentários, mas contestados, apesar de serem conhecidos pela maior parte dos escritores eclesiásticos (Hist. Ecles. III,25,6).

O uso generalizado nas igrejas parece ser o fator que melhor explica por que alguns escritos eram reconhecidos e preservados como autorizados na maioria das igrejas, mas não em outras; alguns escritos atendiam às necessidades do culto e da instrução das igrejas, mas outros não. Os escritos que não sobreviveram na maioria das igrejas não atendiam às necessidades dessas igrejas. Embora reconhecendo uma

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forma modificada de apostolicidade – isto é, autoria dos apóstolos ou de seus discípulos –, o critério último para aceitar ou rejeitar um livro como parte do cânone bíblico certamente envolvia a excelência com que esse livro representava os ensinamentos das igrejas desde os primórdios e havia efetivamente permanecido em uso nas igrejas desde então. Embora o uso fosse, sem dúvida, um dos fatores importantes na determinação da canonicidade, o fato por si só não responde a todas as questões relativas ao processo de seleção. Mais especificamente, é provável que o uso em igrejas principais ou maiores – por exemplo, Roma, Antioquia da Síria, Éfeso e Alexandria – fosse o critério preponderante. Naquela época, como de resto na nossa, as igrejas menores eram muito influenciadas pelas maiores. Entretanto, alguns escritos do Novo Testamento – por exemplo, Filêmon, 2 Pedro, Judas, 2-3 João e possivelmente outros – não eram citados, mencionados e nem mesmo usados com tanta frequência na vida das antigas igrejas quanto o eram várias fontes não bíblicas, como 1 Clemente, Pastor de Hermas, Didaqué e, possivelmente, também a Epístola de Barnabé, Cartas de Inácio e o Martírio de Policarpo. Pode-se perguntar, então, se todos os ensinamentos do atual cânone do Novo Testamento são de igual valor para informar a fé cristã e o seu ministério. Alguns livros não são necessariamente mais importantes ou mais próximos daquele “cânone da verdade” do que vários outros antigos escritos cristãos que não foram incluídos no cânone bíblico. Outro aspecto do uso no cristianismo primitivo é o que se pode chamar de “catolicidade”. Por esse termo entendemos a relutância de uma igreja em discordar de outras igrejas a respeito de documentos reconhecidos como autorizados. Sem dúvida, o argumento clássico para esse critério é Agostinho, que assim recomenda ao leitor das Escrituras: Os livros que são aceitos por todas as igrejas católicas se anteponham aos que não são aceitos por algumas. Por outro lado, entre os livros que algumas igrejas não admitem, prefiram-se os que são aceitos pelas igrejas mais numerosas e importantes aos que são unicamente aceitos pelas igrejas menos numerosas e de menor autoridade. Enfim, no caso de alguns livros serem aceitos por muitas igrejas e outros pelas igrejas mais autorizadas, ainda que isso seja difícil, eu opino que se atribuam a ambas a mesma autoridade (A Doutrina Cristã II,12).

Embora essa preocupação tivesse, sem dúvida, influência importante sobre muitas igrejas de tempos em tempos, especialmente a influência das igrejas maiores sobre as menores, ainda assim a variedade nas listas de Escrituras canônicas do séc. IV e seguintes mostra que o critério da catolicidade estava longe de ser absoluto. Não apenas o uso, mas também outras circunstâncias históricas ajudaram a definir os livros que foram incluídos no cânone bíblico da Igreja. Depois da reação ao montanismo, a literatura profética tornou-se muito mais suspeita e passou a ser negligenciada, de modo especial no Oriente. O Apocalipse de Pedro, por exemplo, era visto como menos autorizado depois das controvérsias montanistas, e mesmo o Apocalipse teve uma recepção tumultuada, especialmente ao longo do séc. IV e seguintes em muitas igrejas orientais. As circunstâncias históricas que levaram à

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canonização da literatura do Novo Testamento ainda não são de todo claras atualmente, mas é provável que todos os critérios acima, com exceção do critério da inspiração, tenham ajudado até certo ponto as antigas igrejas a definir seu cânone de Escrituras. Esses critérios foram empregados independentemente da cautela com que os aplicaram os líderes da Igreja envolvidos no processo de canonização. Finalmente, tudo indica que os escritos que as igrejas acreditavam transmitir com mais eficiência e fidelidade a proclamação cristã primordial – e que também melhor atendiam às necessidades das igrejas locais nos sécs. III e IV – foram os que acabaram sendo escolhidos e incluídos em suas Escrituras sagradas. Inversamente, parece que a literatura que deixara de ser relevante para as necessidades das igrejas, embora possa ter sido considerada sagrada num período anterior, foi simplesmente eliminada. Se esse for o caso, essa não seria a primeira vez que a Igreja destacava a literatura mais relevante para sua situação histórica. Os peritos em Novo Testamento aceitam há muito tempo que a Sitz im Leben (circunstâncias sociais e históricas) da Igreja primitiva desempenhou uma função importante na seleção, organização e edição dos materiais que compõem o cânone do Novo Testamento. Esses e outros materiais, e sua relevância para a vida das igrejas incipientes, sem dúvida também exerceram um papel significativo tanto em sua preservação e canonização como no desaparecimento forçado e gradual de outros competidores por deixarem de ser relevantes e úteis para a maioria das igrejas. Isso também reflete a contínua adaptabilidade desses escritos às necessidades das igrejas e melhor responde à pergunta de por que havia diferentes listas de livros do Novo Testamento nas antigas igrejas. Embora os líderes da Igreja no séc. IV e seguintes tivessem como objetivo a unidade ao reconhecer livros inspirados, autorizados e canônicos, essa unanimidade dificilmente poderia ter sido alcançada devido à variedade de circunstâncias históricas que as igrejas enfrentavam. O uso nesse sentido, como também no sentido de utilização generalizada nas igrejas maiores no séc. III até o séc. V, é provavelmente o aspecto principal para se compreender a preservação e canonização pela Igreja primitiva dos livros que compõem o nosso atual Novo Testamento. Os escritos que se adaptavam às circunstâncias instáveis das igrejas foram preservados e os que não se adaptaram acabaram sendo esquecidos. A partir do momento em que os livros foram canonizados, no entanto, surgiu toda uma série de procedimentos hermenêuticos (interpretativos) para continuar a adaptabilidade daqueles antigos escritos. Antes disso, alguns escritos tiveram uma autoridade temporária ou local nas igrejas, mas seu reconhecimento como Escritura cessou quando sua mensagem deixou de ser relevante ou adaptável. Novamente, esses critérios não são onipresentes na Antiguidade e nenhum texto antigo identifica todos eles como critérios para canonicidade, mas, como mostramos, eles aparecem de modos variados em muitos Padres da Igreja antiga e ajudam a explicar a seleção de muitos livros que agora constituem o Novo Testamento.

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OUTRAS LEITURAS BARTON, J. Holy Writings, Sacred Text: The Canon in Early Christianity. Louisville: Westminster John Knox Press, 1997. CAMPENHAUSEN, H. von. The Formation of the Christian Bible. Tradução para o inglês de J. A. Baker. Filadélfia: Fortress, 1972. GRANT, R. M. “The New Testament Canon”. In: ACKROYD, P. R. e EVANS, C. F. (orgs.). The Cambridge History of the Bible: From the Beginnings to Jerome. Cambridge: Cambridge University Press, 1970, Vol. I, p. 284-308. HARRY Y. G. Books and Readers in the Early Church: A History of Early Christian Texts. New Haven e Londres: Yale University Press, 1995. KALIN, E. R. Argument from Inspiration in the Canonization of the New Testament. Th. D. Diss., Harvard University, 1967. KALIN, E. R. “The Inspired Community: A Glance at Canon History”. CTM 24 (1971), 541-549. KOESTER, H. “Apocryphal and Canonical Gospels”. HTR 73 (1980), 105-130. ________. “Gnostic Sayings and Controversy Traditions in John 8:12-59”. In: Hedrick, C. W. e HODGSON JR., R. (orgs.). Nag Hammadi, Gnosticism, and Early Christianity. Peabody: Hendrickson Publishers, 1986, p. 97-110. MACMULLEN, R. Christianizing the Roman Empire [A.D. 100-400]. New Haven: Yale University Press, 1984. MCDONALD, L. M. The Biblical Canon: Its Origin, Transmission, and Authority. Peabody: Hendrickson Publishers, 2006. ________. Forgotten Scriptures: The Selection and Rejection of Early Religious Writings. Louisville: Westminster John Knox Press, 2009. ________. “Identifying Scripture and Canon in the Early Church: The Criteria Question”. In: MCDONALD, L. M. e SANDERS, J. A. (orgs.). The Canon Debate. Peabody: Hendrickson Publishers, 2002, p. 416-439. MCDONALD, L. M. e PORTER, S. E. Early Christianity and Its Sacred Literature. Peabody: Hendrickson Publishers, 2000. METZGER, B. M. The Canon of the New Testament: Its Origin, Development, and Significance. Oxford: The Clarendon Press. 1987. PETERSEN, W. L. “Tatian’s Diatessaron: Its Creation, Dissemination, Significance, and History in Scholarship”. In: BOEFT, J. D.; BROEK, R. V. D.; KLIJN, A. F. J.; QUISPEL, G. e WINDEN, J. C. M. V. (orgs.). Supplements to Vigiliae Christianae, vol. 25. Leiden, Nova York e Colônia: E. J. Brill, 1994. ROBBINS, G. A. “Fifty Copies of the Sacred Writings”. Studia Patristica 19 (1989), 91-98. RUTGERS, L. V.; HORST, P. W. V. D.; HAVELAAR, H. W. e TEUGELS, L. (orgs.). The Use of Sacred Books in the Ancient World. Biblical Exegesis and Theology 22. Leuven: Peeters, 1988. STENDAHL, K. Meanings: The Bible as Document and Guide. Filadélfia: Fortress, 1984. 21 Essas são as palavras mais desconcertantes nesta passagem. Elas podem se referir à composição de três

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ou quatro cópias por vez ou a três ou quatro colunas por página. É mais provável que se trate da segunda alternativa. 22 Tosefta (hebraico = “suplementos” ou “acréscimos”). Muitos pensam que se trata de uma alternativa à Mixná que às vezes preserva paralelos independentes da Mixná.

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COMENTÁRIO FINAL

No estudo precedente, examinamos parte da complexidade em torno das origens e do desenvolvimento dos cânones bíblicos judaico e cristão. Embora o cenário se obscureça aqui e ali devido, em parte, à falta de uma literatura antiga conhecida que narre explicitamente essa história: da perspectiva de judeus e cristãos, a literatura que melhor identificava sua fé e esperanças foi a que acabou sendo escolhida para compor suas coleções de Escrituras sagradas e que continua a servir à sinagoga e à Igreja. O processo envolvido nessa seleção, como vimos, começou com a redação dos livros realizada por mensageiros que, impelidos pelo Espírito, escreveram as palavras a eles comunicadas por Deus, sempre acreditando que elas eram de imenso valor para o povo de Deus. Como mostramos, o processo de seleção, em alguns casos (por exemplo, Cântico dos Cânticos, Ester, Eclesiastes, mas também 2 Pedro, Hebreus, 23 João, Judas e Apocalipse, entre outros), desenvolveu-se ao longo de um período de tempo bem maior do que em outros (os Evangelhos e algumas cartas de Paulo). Em algumas situações, os motivos que levaram à escolha e inclusão em um cânone bíblico fechado são mais evidentes do que em outras, mas também houve grandes diferenças em torno do valor de parte tanto da literatura que foi incluída como da que foi excluída. Vários dos chamados livros marginais precisaram de séculos para ser incluídos em coleções sagradas. Outros que foram inicialmente incluídos ou reconhecidos como literatura sagrada inspirada foram, por fim, excluídos de alguns cânones sagrados (Eclesiástico, Sabedoria de Salomão, Pastor de Hermas, Didaqué, Epístola de Barnabé). Eles fizeram parte de um cânone durante certo tempo em algumas igrejas ou sinagogas, mas apenas em caráter temporário. Ainda persistem perguntas sem resposta, mas os escritos que não atendiam mais às necessidades da maioria das igrejas no momento em que estavam sendo tomadas decisões sobre a composição da Bíblia não foram considerados para inclusão em coleções sagradas. Depois que vários Concílios eclesiásticos passaram a tomar decisões sobre essa matéria, parte dos livros excluídos continuou a constar em muitos manuscritos bíblicos que circulariam nas igrejas durante séculos. Quase todos os Concílios da Igreja primitiva que trataram desse assunto apenas refletiram as vivências das comunidades envolvidas. Com o tempo, a literatura anteriormente aceita por um grande número de igrejas, mas que não refletia mais suas preocupações ou necessidades, foi excluída ou então reinterpretada de modo a torná-la mais relevante para as igrejas. Esse processo interpretativo mais criativo quase sempre ocorre no contexto da canonização, e é seu pressuposto.

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A reinterpretação de livros para comunidades de fé é uma demonstração de que eram anteriormente aceitos e imbuídos de autoridade canônica. Em alguns casos, porém, livros já consolidados, mas que deixaram de comunicar uma mensagem relevante para as comunidades de fé, foram sendo marginalizados. A expressão que os estudiosos empregam para descrever esse processo de marginalização é “cânone dentro do cânone”. Nesses casos, os livros não perderam seu lugar nas coleções sagradas, mas não se expressam mais com o mesmo vigor do passado. Por exemplo, as igrejas dificilmente leem o Apocalipse em seus rituais, que tampouco está entre os livros estudados em cursos religiosos. Os cristãos praticamente ignoram diversos livros da Bíblia, livros que não foram excluídos do cânone, mas que basicamente não têm mais nenhuma função na vida da Igreja. Incluem-se nessa categoria inúmeros livros do Antigo Testamento (Levítico, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Naum) e também alguns do Novo Testamento (Hebreus, 2-3 João, Judas, Apocalipse). Esses livros normalmente recebem muito pouca atenção nas igrejas, e o “cânone dentro do cânone” praticamente os eliminou. Com o tempo, eles talvez voltem a ser redescobertos e a exercer uma função de maior relevância nas comunidades de fé, mas por ora são ignorados. Os lecionários cristãos atuais refletem esse uso bem seletivo de livros bíblicos nas igrejas e raramente incluem leituras de todos os livros da Bíblia para o culto cristão. As igrejas que não adotam um lecionário também são bastante seletivas quanto aos livros para suas cerimônias e para o ensino da Bíblia. Um ou mais evangelhos e as cartas de Paulo normalmente ocupam os primeiros lugares, mas, às vezes, os Salmos, o livro de Isaías e alguns outros também recebem atenção. Na Antiguidade, era comum as igrejas ignorarem grandes porções da literatura canônica. Talvez seja conveniente as igrejas preservarem esses livros em suas coleções fixas de escritos sagrados, pois há sempre a possibilidade de que algum dia, com a mudança das circunstâncias, eles venham a recuperar sua voz potente na vida da comunidade. Por outro lado, são escassos os comentários sobre alguns livros bíblicos e outros são basicamente ignorados (recebendo apenas breves comentários em cursos introdutórios) em cursos de Teologia regulares. Dadas as limitações de tempo dos currículos de formação teológica atuais, só alguns livros bíblicos são analisados em maior profundidade na maioria dos seminários teológicos; também são poucos os livros que recebem atenção especial em cursos facultativos. Quais critérios orientam as decisões a respeito dos livros a incluir na preparação de ministros? Relevância e adaptabilidade da literatura bíblica são dois critérios próximos das decisões conscientes tomadas sobre essa matéria. Nesse sentido, algumas coisas mudam pouco nas igrejas! Como mostramos, nem sempre está claro por que alguns livros bem aceitos entre judeus e cristãos foram rejeitados por grandes segmentos dessas comunidades, e, repetindo, por que alguns livros bem populares tanto no judaísmo como no cristianismo nascente foram excluídos de algumas coleções bíblicas (1 Enoc,

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Eclesiástico, Didaqué e Pastor de Hermas). Uma conclusão a que podemos chegar é que os livros que foram por fim incluídos em coleções sagradas fixas atendiam às necessidades particulares de comunidades religiosas e através de vários recursos interpretativos podiam ser adaptados para atender às contínuas necessidades ritualísticas, catequéticas e missionárias de comunidades judaicas e cristãs. Evidentemente, as comunidades acreditavam que esses livros respondiam ao contexto social existente na época em que foram incluídos e, inversamente, que não atendiam mais às necessidades comunitárias no momento em que foram tomadas decisões de excluir alguns deles. Simultaneamente a uma coleção fixa de livros, importante para nós é também o texto fixo ou estabilizado da Bíblia, aspecto esse que não era tão relevante nas antigas igrejas. Como vimos anteriormente, alguns Padres da Igreja primitiva preocupavamse com as inúmeras variantes presentes nos livros sagrados, pois, em geral, essas questões não eram abordadas com a frequência que poderíamos imaginar. Embora nos pareça lógico hoje dispor de um texto fixo e confiável da Bíblia, aparentemente poucos se preocupavam com isso na Antiguidade. Questões que nos interessam hoje chamavam pouca atenção nos primórdios da Igreja. Isso pode ter acontecido porque não há dois manuscritos bíblicos antigos com textos exatamente iguais, e como a maioria das igrejas não dispunha de vários exemplares de suas Escrituras, elas simplesmente se baseavam nos únicos textos que lhes eram acessíveis, acreditando serem transmissões fiéis do texto bíblico. Comparações feitas atualmente revelam que a antiga confiança no texto das Escrituras atribuída aos manuscritos (a maioria, se não todos, era recebida como Escritura sagrada) talvez não se justificasse. Os estudiosos se empenham hoje decididamente em precisar os textos hebraico, aramaico e grego da Bíblia mais confiáveis, textos esses que constituem a base para todas as traduções da literatura bíblica. Dada a multiplicidade de variantes nos manuscritos bíblicos que chegaram até nós, poucos estudiosos atuais alimentam esperanças de determinar o texto original desses livros sagrados, mas estão visivelmente mais próximos hoje do que jamais estiveram no passado. Embora estejamos hoje mais próximos do texto original dos livros tanto do Antigo como do Novo Testamento, devido aos grandes avanços da análise crítica textual e também à descoberta de muitos manuscritos antigos nos sécs. XIX e XX, ninguém sustenta categoricamente que chegamos ao texto original da Bíblia. Até que ponto essa realidade é importante para a fé religiosa hoje? Ela é importante na medida em que a maioria das variantes, intencionais ou não, não afetam adversamente ou seriamente os ensinamentos fundamentais da Bíblia ou a identidade essencial da comunidade cristã. Em alguns casos, as variantes de maior relevância são elucidadas recorrendo aos textos já estabelecidos há longo tempo e que não estão sob questionamento. Em diversos casos, os estudiosos têm dúvidas sobre o texto, mas os aspectos essenciais da fé cristã independem dessas dúvidas. A maioria dos especialistas bíblicos concorda

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que conhecemos a mensagem básica dos livros bíblicos e que suas várias traduções são em geral confiáveis. Como resultado, estamos em condições de estabelecer a mensagem bíblica básica de modo inusitadamente apropriado. Embora alguns livros tenham sido excluídos mais tarde por não darem suporte a posições ortodoxas emergentes da maioria das igrejas, muitos desses livros, como observamos acima, eram tão ortodoxos quanto os que foram incluídos. Foi grande a diversidade teológica no cristianismo primitivo, até maior do que hoje, como podemos ver no próprio Novo Testamento, mas essa diversidade não afetou seriamente os ensinamentos e as crenças essenciais da Igreja. Considerando a recente atenção acadêmica dada às pesquisas canônicas, atualmente estamos em melhores condições de compreender alguns dos processos envolvidos na estabilização dos livros e do texto da Bíblia. Isso não significa que todos os cristãos, hoje, irão concordar a respeito de todas as questões da fé cristã, ou mesmo a respeito de questões relacionadas com a formação do cânone, mas estamos mais próximos no presente do que foi possível no passado em nossa compreensão dos processos envolvidos. Agora que compreendemos melhor esses processos, há cristãos se perguntando se devemos reaplicar alguns antigos critérios adotados pelas igrejas para selecionar sua literatura sagrada. O procedimento poderia levar-nos a acrescentar ou retirar vários livros se, por exemplo, aplicássemos o critério da autoria com mais atenção e cuidado. É improvável que aconteça alguma nova aplicação dos antigos critérios com consequências para o conteúdo da Bíblia. Poderia acontecer que um texto antigo fosse corretamente aceito, mas pelo motivo errado! Por exemplo, o valor do livro dos Hebreus era amplamente reconhecido, de modo especial no cristianismo judaico primitivo, mas provavelmente foi aceito no cânone bíblico porque era atribuído a Paulo. Poucos estudiosos acreditam ter sido Paulo o autor desse livro, mas nenhum deles parece disposto a excluí-lo do cânone bíblico. A possibilidade de descobrirmos as razões por que parte da literatura foi excluída aumenta consideravelmente a nossa compreensão do cristianismo nascente e também do judaísmo primitivo. Inúmeros livros que foram rejeitados não são heréticos e muitos ensinamentos poderiam ser respigados neles. Precisamos mudar a composição da Bíblia como consequência de nossas investigações? Provavelmente não, mas também não precisamos ter medo de ser informados pela mesma literatura que informou vários segmentos do cristianismo nascente. Essa pode ser uma experiência enriquecedora que aumentará o nosso entendimento do contexto do judaísmo primitivo e do cristianismo nascente! Examinando cuidadosamente as várias questões relacionadas às origens da Bíblia, também poderemos adquirir uma maior compreensão das questões que dividem as igrejas hoje e amenizar algumas coisas que levaram às primeiras divisões. O conhecimento do contexto do cristianismo primitivo e do motivo por que algumas decisões foram tomadas com relação aos livros da Bíblia nos dá condições de

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compreender melhor aquele contexto e os valores e ensinamentos essenciais que formaram as igrejas que conhecemos hoje. Esperamos com toda confiança que essas pesquisas levem a uma maior compreensão entre cristãos e judeus e, possivelmente, a uma maior tolerância para com aqueles que discordam de nós sobre essas matérias. Como as crenças, práticas e missão de comunidades de fé judaica e cristã estão enraizadas nos livros que foram incluídos em seus cânones bíblicos, as questões que levantamos acima e o exame histórico que delas procedemos têm considerável importância e consequência hoje. Mais importante, pôr essas informações à disposição de um universo maior, para além da comunidade acadêmica, pode ser o início de um diálogo e debate valiosos nas igrejas e sinagogas. Eu continuo sendo convidado a participar como palestrante em conferências e congressos acadêmicos e, também, felizmente, recebo regularmente convites para pronunciar-me em comunidades de fé que buscam nos ensinamentos e na autoridade da Bíblia orientações para suas vidas. Muitos pastores e leigos em suas igrejas demonstram interesse cada vez maior em compreender a formação do cânone. Apresentam frequentemente questões muito bem ponderadas e se mostram ansiosos por debater assuntos correlatos comigo e com outras pessoas que reservam um tempo para com eles refletir sobre essa história não contada. Por outro lado, e também com certa frequência, alguns membros do clero receiam abordar esses temas com suas congregações e se sentem ainda mais inseguros em dizer que simplesmente não têm todas as respostas a essas perguntas. Como eu disse no início deste volume, porém, acredito que a Igreja é, ou deveria ser, capaz de discutir todas as questões que produzem impacto sobre a nossa fé e o nosso modo de agir. Ela também é capaz de ser informada por muitos outros escritos antigos que informaram os primeiros cristãos, o que deixou de acontecer com o passar do tempo. Todos nós podemos aprender com uma análise bíblica cuidadosa e rigorosa e que nos sirva como oportunidade importante para aprofundar o nosso entendimento. Espero que este volume ofereça aos não especialistas respostas a muitas questões importantes sobre a Bíblia, e também demonstre aos que não pertencem à Igreja que nós, pertencentes a ela, não tememos examinar a nossa fé e os aspectos importantes a ela relacionados. Os livros da Bíblia, tanto no Antigo Testamento católico, ortodoxo ou protestante, como no Novo Testamento comum que essas denominações receberam, informamnos o suficiente a respeito dos elementos essenciais das atividades e crenças primordiais que deram origem às primitivas comunidades judaica e cristã. Em grande parte, a Igreja radicou seu cânone bíblico na primitiva literatura subsistente que reflete os primeiros ensinamentos transmitidos nas igrejas. Quase todos os biblistas (protestantes, ortodoxos e católicos) concordam hoje que há pouca coisa na literatura apócrifa e pseudepigráfica do Antigo Testamento que pode ser classificada como “heresia” e, consequentemente, que há muita coisa que podemos aprender sobre o contexto do judaísmo e o surgimento do cristianismo nessa literatura. Além disso, os

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especialistas em Novo Testamento geralmente concordam que os livros que hoje constituem o Novo Testamento informam suficientemente a fé cristã e elucidam os ensinamentos essenciais da Igreja. Existe certa ambiguidade aqui e ali em nosso conhecimento dos processos que estabeleceram os cânones bíblicos atuais? Naturalmente sim, mas nenhuma delas afeta as áreas fundamentais da fé cristã. Essa fé está enraizada na atividade de Deus em Jesus de Nazaré, e a Bíblia nos informa suficientemente a respeito de Jesus, da identidade e essência da fé cristã e da missão da Igreja hoje.

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© Lee Martin McDonald, 2011 Título original: The Origin of the Bible: A Guide for the Perplexed ISBN 978-0-567-13932-0 Esta tradução é publicada de acordo com The Continuum International Publishing Group Tradução: Euclides Luiz Calloni Direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos Assessoria bíblica: Paulo Bazaglia Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Revisão: Cesar Augusto Faustino Junior, Tiago José Risi Leme Diagramação: Ana Lúcia Perfoncio Capa: Marcelo Campanhã Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Macdonald, Lee Martin A origem da Bíblia: um guia para os perplexos / Lee Martin Macdonald ; [tradução Euclides Luiz Calloni]. — São Paulo: Paulus, 2013. — (Coleção Biblioteca de estudos bíblicos) Título original: The origin of the bible: a guide for the perplexed ISBN 978-85-349-3567-8 1. Bíblia - Cânon I. Título. II. Série. 12-14687 CDD-220.12 Índices para catálogo sistemático: 1. Cânone bíblico 220.12 ©PAULUS – 2013 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700 www.paulus.com.br • [email protected] eISBN 978-85-349-3658-3

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Scivias de Bingen, Hildegarda 9788534946025 776 páginas

Compre agora e leia Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja Hildegarda de Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são primeiramente escritas de maneira literal, tal como ela as teve, sendo, a seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos tópicos presentes nas visões são a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino de Deus, a queda do ser humano, a santifi cação e o fi m do mundo. Ênfase especial é dada aos sacramentos do matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara. Como grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No fi nal de Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta, provavelmente um rascunho primitivo de Ordo virtutum, a primeira obra de moral conhecida. Hildegarda é notável por ser capaz de unir "visão com doutrina, religião com ciência, júbilo carismático com indignação profética, e anseio por ordem social com a busca por justiça social". Este livro é especialmente significativo para historiadores e teólogas feministas. Elucida a vida das mulheres medievais, e é um exemplo impressionante de certa forma especial de espiritualidade cristã.

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Santa Gemma Galgani - Diário Galgani, Gemma 9788534945714 248 páginas

Compre agora e leia Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para me assegurar de que era verdadeiramente a Mãe de Jesus: deu-me sinal para me orientar. Depois de um momento, fiquei toda contente; mas foi tamanha a comoção que me senti muito pequena diante dela, e tamanho o contentamento que não pude pronunciar palavra, senão dizer, repetidamente, o nome de 'Mãe'. [...] Enquanto juntas conversávamos, e me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não queria que fosse, estava quase chorando, e então me disse: 'Minha filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício, por ora convém que a deixe'. A sua palavra deixou-me em paz; repousei tranquilamente: 'Pois bem, o sacrifício foi feito'. Deixou-me. Quem poderia descrever em detalhes quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não, certamente não existe comparação. Quando terei a felicidade de vê-la novamente?

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DOCAT Youcat, Fundação 9788534945059 320 páginas

Compre agora e leia Dando continuidade ao projeto do YOUCAT, o presente livro apresenta a Doutrina Social da Igreja numa linguagem jovem. Esta obra conta ainda com prefácio do Papa Francisco, que manifesta o sonho de ter um milhão de jovens leitores da Doutrina Social da Igreja, convidando-os a ser Doutrina Social em movimento.

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Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral Vv.Aa. 9788534945226 576 páginas

Compre agora e leia A Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral oferece um texto acessível, principalmente às comunidades de base, círculos bíblicos, catequese e celebrações. Esta edição contém o Novo Testamento, com introdução para cada livro e notas explicativas, a proposta desta edição é renovar a vida cristã à luz da Palavra de Deus.

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Da Religião Bíblica ao Judaísmo Rabínico Scardelai, Donizete 9788534940047 172 páginas

Compre agora e leia O objetivo desta obra é colocar nas mãos de estudantes de teologia uma história contínua do Israel do período bíblico, avaliando seus principais desdobramentos que conduziram à formação do povo judeu sob o advento do judaísmo rabínico, após a destruição do Segundo Templo. O esforço do autor consiste em oferecer um sumário explicativo dos vários períodos da formação da religião bíblica de Israel, evitando tanto sua simplificação excessiva quanto sua discussão detalhada. Procura pontuar os elementos norteadores desse processo em relação aos momentos históricos e aos seus significados dentro do universo social, religiosos e espiritual do povo judeu, até a emergência dos sábios rabis da Mixná, no século II d.C.

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Índice Capítulo 1: Introdução e observações preliminares Capítulo 2: Síntese histórica Capítulo 3: Formação do cânone do Antigo Testamento Capítulo 4: Encerramento do cânone do Antigo Testamento Capítulo 5: Formação das Escrituras cristãs Capítulo 6: Influência da “heresia” e da “ortodoxia” sobre a formação do cânone Capítulo 7: Fixação do cânone do Novo Testamento Capítulo 8: Comentário final Bibliografia

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