A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso
 8575870475

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Lúcia Maria Wanderley Neves (org.) Adriana Almeida Sales de Melo André Silva Martins



lalê Falleiros

Marcelo Paula de Melo







Adriane Silva Tomaz

Kátia Regina de Souza Lima

Maria Emilia Bertino Algebaile

Ronaldo Sant'Anna

VAPED HE E

1 1

Estratégias do capital para educar o consenso

i i \I'

São Paulo

?ílílS

2005 by

©

Lúcia Maria Wanderley Neves

Direitos desta edição reservados à Xamã VM Editora e Gráfica Ltda. Proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.

Edição e capa: Expedito Correia Revisão: Estela Carvalho Editoração eletrônica: Xamã Editora

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) N935

A nova

pedagogia da hegemonia

:

estratégias do

capital para educar o consenso Wanderley Neves 2005. 312 p.

;

/

Lúoia Maria

(org.). - São Paulo

:

Xamã,

23 cm.

Bibliografia:

p. 293-308

ISBN 85-7587-047-5

1.

Ensino superior e Estado -

Neves,

Brasil.

I.

Lúcia Maria Wanderley.

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LISTA DE

SIGLAS

Abeb - Associação Beneficente da Companhia Siderúrgica Belga-Mineira Aberje - Associação Brasileira de Com unicação Empresarial Abesc - Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas Abong - Associação Brasileira das Organizações Não- Governam entais Abrinq - Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinqúedos AD - Alta Direção Aduff - Associação dos Docentes da Universidade Federal Fluminense ADVM - Associação dos Dirigentes de Marketing do Brasil Aids - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida , Anamec - Associação Nacional de Mantenedoras de Escolas Cató licas Andes - Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superi�J;., Anped - Associação N acional de Pós-Graduação em Educação .., Apimec - Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais Arena - Aliança Renovadora N acional BID - Banco lnteramericano de Desenvolvimento Bird - Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento BM - Banco Mundial BN DES - Banco N acional de Desenvolvimento Econômico e Sedai Capes - Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAT - Central Autônoma dos Trabalhadores CDES - Conselho de Desenvolvim ento Econômico e So cial Cease - Centro Esportivo de Ações Socioeducacionais CEB - Com unidade Eclesial de Base CEB/CNE - Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação Cefet - Centro Federal de Educação Tecnológica Ceiam - Conselho Episcopal Latino-Americano· Cempre - Cadastro Geral das Empresas do IBGE Cenpec - Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Com unitária Cepaa - The Council on Economic Priorities Accreditation Agency Cepa! - Comissão Econômica para a América Lat.ina e o Caribe Ceris - Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais CGT - Central Geral dos Trabalhadores CGT - Confederação Geral dos Trabalhadores CGTB - Central Geral dos Trabalhadores Brasileiros Cinde - Corporação para o Desenvolvimento da Pesquisa Ciosl - Confederação Internacional das Organizações Sindicais Livres CLT - Consolidação das Leis do Trabalho CNAS - Conselho de Assistência Social CNBB - Confederação N acional dos Bispos do Brasil CNE - Conselho Nacional de Educação CNI - Confederação Nacional das Indústrias

CNN - Comitê Nacional de Normalização CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvim ento Científico e Tecnológico CNT - Confederação Nacional do Transporte CNTE - Confederação Nacional de Trabalhadores da Educação Conclat - Conferên cia Nacional das Classes Trabalhadoras Concut - Congresso Nacional da CUT Coned - Congresso Nacional de Educação Consed - Conselho Nacional de Secretários da Educação Coppe/Centex - Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação em Engenharia da UFRJ/Projetos Cen­ tros de Excelên cia CRE - Centro/Redes de Excelência CST - Central Sindical dos Trabalhadores CUT - Central Única dos Trabalhadores DCNEM - Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio EEFD - Escola de Educação Física e Desportos Embratel - Empresa Brasileira de Telecom unicações Enem - Exame Nacional do Ensino Médio Faetec - Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro FAT - Fundo de Am paro ao Trabalhador FBM - Fundação Belga-Mineira Febraban - Federação Brasileira das Associações de Bancos Fecomércio - Federação do Comércio FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FHC - Fernando Henrique Cardoso Fides - Fundação Instituto de Desenvolvimento Em presarial e Social Fiesp - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo Firjan - Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro FMDCA - Fundos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente FMI - Fundo Monetário Internacional F.RM - Fundação Roberto Marinho FS - Força Sindical Fundeb - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica Fundef - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério Gife - Grupo de Institutos, Fundações e Em presas lbad - Instituto Brasileiro de Ação Democrática !base - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econôm icas IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBM - lnternational Business Machines IDRC - Centro Internacional de Desenvolvimento de Pesquisa do Canadá ledi - Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial lnmetro - Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial lpea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada lpes - Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais ISO - lnternational Organization for Standardization LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Loas - Lei Orgânica da Assistên cia So cial Mare - Ministério da Administração e da Reforma do Estado MD - Média Direção MEC - Ministério da Educação Neddate - Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação

OIT- Organização Internacional do Trabalho OMS- Organização Mundial de Saúde ONG- Organização Não-Governamental ONU - Organização das Nações Unidas Orealc- Escritório Regional da Unesco para a América Latina e o Caribe OS- Organizações Sociais Oscip- Organização da Sociedade Civil de Interesse Público PCB- Partido Comunista Brasileiro PC do B- Partido Comunista do Brasil PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais PCNEM - Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio PDE- Plano de Desenvolvimento Escolar PDS- Partido Democrático Social PDT- Partido Democrático Trabalhista Peas- Programa de Educação Afetivo-Sexual PEC- Proposta de Emenda à Constituição PEQ- Programa Ensino de Qualidade Petrobras- Petróleo Brasileiro S. A . .'·PFL- Partido da Frente Liberal PIB- Produto Interno Bruto PL- Partido Liberal PLC- Projeto de Lei Complementar PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro PN BE- Pensamento Nacional das Bases Empresariais PNUD- Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PPB- Partido Progressista Brasileiro PPP- Parceria Público-Privada PPS- Partido Popular Socialista Preal- Programa de Promoção da Reforma Educativa da América Latina Prealc- Programa de Promoção da Refo rma Educativa na América Latin a e Caribe PRJ - Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro PRN - Partido da Reconstrução Nacional Proet- Programa de Educação e Treinamento Prona- Partido de Reedificação da Ordem Nacional PSB- Partido Socialista Brasileiro PSDB - Partido da Social-Democracia Brasileira PT- Partido dos Trabalhadores PTB- Partido Trabalhista Brasileiro PUC - Pontifícia Universidade Católica PV- Partido Verde RCC- Renovação Carismática Católica AS- Social Accountability Saeb- Sistem a Nacional de Avaliação da Educação Básica SDS - Social-Democracia Sindical Sebrae- Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SEE-MG - Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais SEF - Secretaria de Ensino Fundamental do MEC Semtec- Secretaria de Ensino Médio e Tecnológico do MEC SME- Secretaria Municipal de Educação Senai- Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial ·

Sesc- Serviço Social do Comércio Sesi- Serviço So c ial da Indústria Sest- Serviço Social do Transporte SGI- Sistema de Gestão Integrada Simave - Sistema Mineiro de Avaliação Escolar Sinaes - Sistema Nac ional de Avaliação da Educação Superior Smel - Secretaria Municipal de Esportes e Lazer SMH - Secretaria Municipal de Habitação TSE- Tribunal Superior Eleitoral Uerj - Universidade Estadual do Rio de Janeiro Uevom - União Esportiva Vila Olímpica da Maré Ufal- Universidade Federal de Alagoas UFF - Universidade Federal Fluminense UFJF- Universidade Federal de Juiz de Fora Ufpe - Universidade Federal de Pernambuco UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro Undime- União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação Unesco- Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura Uniabeu- Associação Brasileira de Ensino Universitário Unicam p- Universidade Estadual de Campinas Unimar- União das Associações de Moradores da Maré Usaid- Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional USI- União Sindical Independente USP- Universidade de São Paulo VOM- Vila Olímpica da Maré

r

r

SUMÁRIO PREFÁCIO, 11 APRESENTAÇÃO, 15 INTRODUÇÃO, 19

I A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA, 41 1,PRESSUPOSTOS, PRINCÍPIOS E ESTRATÉGIAS, 43 ,,,

,.,

ÜS ORGANISMOS INTERNACIONAIS NA CONDUÇÃO DE UM NOVO BLOCO HISTÓRIC0�69""'

II A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL,

83

A SOCIEDADE CIVIL COMO ESPAÇO ESTRATÉGICO DE DIFUSÃO DA NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA, 85 ESTRATÉGIAS BURGUESAS DE OBTENÇÃO DO CONSENSO NOS ANOS DE NEOLIBERALISMO DA TERCEIRA VIA, 127 REFORMA DA APARELHAGEM ESTATAL: NOVAS ESTRATÉGIAS DE LEGITIMAÇÃO SOCIAL, 175 MECANISMOS REGULATÓRIOS COMO ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA, 193

III A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL: EXPERIÊNCIAS CONCRETAS , 207 PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA E A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA CIDADANIA, 209 FUNDAÇÃO BELGO·MINEIRA: O EMPRESARIADO EM AÇÃO, 237 IGREJA CATÓLICA E EDUCAÇÃO NO BRASIL DE FHC E LULA DA SILVA: TEMPOS MODERNOS, SONHOS ANTIGOS, 255 VILA ÜLÍMPICA DA MARÉ E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ESPORTE EM FAVELAS DO RIO DE JANElRO, 271 REFERÊNCIAS, 293 SOBRE OS AUTORES, 309

PREFÁCIO ·

Carlos Nelson Coutinho*

Antonio Gramsc i foi um dos intelectuais estrangeiros que mais influenciou o pensamento social brasileiro nas últimas décadas. Da filosofia à teoria política, da sociologia à antropologia, da historiografia ao serviço social, foram muitos os ra­ mos do saber universitário que sofreram a influência de categorias elaboradas pelo aútor dos Cadernos do cárcere, tais como Estado ampliado, hegemonia, sociedade civil, bloco históric o, O cidente/Oriente, revolução passiva e muita�utras. Em cer­ tos casos, essas categorias passaram a ser usadas até mesmo sem que se conhe­ cesse exatamente sua origem e/ou sua exata significação nas reflexões de Gramsc i: para usarmos um outro dos seus conceitos, tornaram-se muitas vezes apenas sen­ so comum, com todos os riscos de contaminações ecléticas que isso comporta. Mas cabe registrar que, dentre estes vários ramos do saber universitário, talvez te­ nha sido o dos estudos pedagógi cos aquele no qual mais circularam e foram assi­ miladas as idéias do grande pensador e revolucionário italiano. Um importante papel nesta c irculação e assimilação vem sendo desempe­ nhado por Lúcia Maria Wanderley Neves, que tive a felicidade de conhecer como aluna num curso de doutorado e que se tornou depois minha orientanda e, sobre­ tudo, minha amiga e companheira de armas. Portadora de um profundo conheci­ mento de Gramsci e de uma aguda criatividade intelectual, Lúcia Neves tem reali­ zado trabalhos que muito vêm colaborando para a compreensão das políticas edu­ cacionais no Brasil contemporâneo, cujas características principais ela tem sabido identificar com precisão e analisar com acuidade teórica. Entre ·os méritos de Lú­ cia, que não são poucos, ocupa lugar de destaque o seu empenho - que vai de encontro ao narcisismo tão presente em nossa vida universitária - de empreender um trabalho intelectual coletivo, criando e organizando grupos de pesquisa que,

*

Professor titular da Escola de Serviço Social da UFRJ, onde ensina Teoria Política e Formação Social do . Brasil. Publicou vários livros, entre os quais Marxismo e polltica (Cortez, 1996), Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político (Civilização Brasileira, 1999) e Contra a corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo.(Cortez, 2000). É também o editor brasileiro das obras de Antonio Gramsci, em dez volumes, publicados pela Civilização Brasileira a partir de 1999.

12 LÚCIA NEVES (ORG.) - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

sob sua direção, têm realizado trabalhos nos quais se conjugam a reflexão teóri ca pre cisa e a pesquisa empíri ca rigorosa; O último resultado deste trabalho coletivo, capitaneado por Lúcia Neves e realizàdo pelo Coletivo de Estudos de Política Edu­ cacional da Universidade Federal Fluminense e da Fundação Oswaldo Cruz é o presente livro, no qual as teorias .de Gramsci são utilizadas para conceituar as no­ vas formas de luta pela hegemonia nos marcos do atual predomínio da ideologia e da prática do neoliberalismo, sobretudo na versão que estas têm assumido na cha­ mada "Terceira Via", teorizada entre outros pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, cujas principais idéias a respeito são muito bem analisadas e criticadas na primeira parte deste livro. Antes de qualquer coisa, chama a atenção em A nova pedagogia da hegemonia o norte metodológico que o inspira e orienta: ignorando os falsos limites impostos pela divisão universitária do trabalho intelectual, que tanto maltêm causado a uma correta compreensão dos fenômenos so c iais, temos aqui o empenho para conceituar os fenômenos estritamente pedagógi cos no quadro de uma ampla com­ preensão da totalidade social, na qual tais fenômenos encontram sua gênese e sua explicação. Como todos os verdadeiros gramscianos, Lúcia e os membros do seu Coletivo de Estudos são marxistas; e, como diria Lukács, o que,çlistingue o marxismo da " ciência burguesa" é pre cisamente o recurso metodológic o ao ponto de vista da totalidade. Desse modo, para entender o que chamam de "pedagogia da hegemonia", os autores deste livro vão muito além de um exame apenas técnico­ pedagógi co das questões' que abordam; Na primeira parte do trabalho, eles buscam inserir o tema de sua investigação no amplo quadro histórico-social que caracteriza o mundo contemporâneo, valen­ do�se, para tanto, das principais categorias criadas por Gramsci e pelo marxismo em geral. Para Lúcia Neves e seus colaboradores, as novas tentativas hegemônico-peda­ gógicas das classes dominantes se dão num quadro em que predomina a "pequena política", a qual, segundo Gramsci, denota a ação política que evita pôr em questão os fundamentos da ordem social. Examinando este quadro, torna-se evidente que um dos principais objetivos do neoliberalismo é transformar o conceito e a realidade prática da sociedade civil; com efeito, enquanto para Gramsci a . soc iedade civil é a principal arena da luta de classes nas sociedades "ocidentais", como demonstram eficientemente os autores deste livro, os ideólogos da Terceira Via buscam transformá­ la em algo pretensamente situado para além do Estado e do mercado, ou seja, num "terceiro setor" que . se caracterizaria pelo voluntariado, pela filantropia e, sobretudo, pela redução das demandas sociais ao nível corporativo dos interesses particulares. Com base nisso, os autores .d e A nova pedagogia da hegemonia chegam mesmo a falar da tentativa de construir uma "nova cidadania", limitada a estes interesses

;

13 PREFÁCIO

corporativos e carente, assim, da dimensão universalista que caracteriza a "grande política". E mostram convincentemente como toda essa operação ideológica está a serviço da p erpetuação e fortalecimento de uma hegemonia que busca e freqüentemente obtém o consenso das classes subalternas para a conservação de polítieas que, embora sob formas mais sofisticadas, continuam a servir eficiente­ mente aos interesses das várias frações do grande capital. Mas Lúcia Neves e seus colaboradores não situam os novos fenômenos da "pedagogia da hegemonia" apenas em nível teórico, ou em escala mundial, mas buscam também indicar - o que é feito com competência na segunda parte do livro - o modo pelo qual tais fenômenos se manifestam concretamente no Brasil de hoje. Partindo da constatação de que nosso país já é uma sociedade de tipo "ocidental", ainda que orientada para uma ocidentalidade de tipo "ameri cano", eles afirmam que a burguesia brasileira tem agora de se eml4enhar para ser não apenas classe dominante, como já o é há mais de um século, mas..também classe dirigente, educadora do consenso, tal como é exigido nas sociedades mais com­ plexas, nas quais o Estado se ampliou graças à incorporação dos aparelhos da soci­ edade civil. Os estudos de caso contidos na terceira parte do livro, onde são exami­ nadas as atividades pedagógicas de empresas como a Belga-Mineira e de organiza­ ções como a Igreja. Católica, evidenciam importantes traços do modo pelo qual essa "pedagogia da hegemonia" se difunde. A extraordinária importância deste livro não resulta apenas dos seus méritos enquanto pesquisa teórico-empírica rigorosa e fundamentada. Resulta também do fato de que ele confirma com brilho a extraordinária fecundidade e atualidade das categorias do marxismo em geral e de Gramsci em partic ular - quando bem-en­ tendidas, como é precisamente o casp aqui - para a compreensão dos mais decisi­ vos fenômenos do mundo de hoje. Os gramscianos brasileiros agradecem este ser­ viço que Lúcia Neves e seu grupo mais uma vez prestam à defesa e afir mação de nossas propostas teóricas e práticas. E, last but not least, cabe lembrar que, como todo bom e autêntico produto marxista, este livro não se limita a interpretar o mun­ do, mas indi ca também a necessidade de transformá-lo. Rio de Janeiro, agosto de 2005

APRESENTACÃO .)

Este livro é o resultado· de três anos de pesquisa do Coletivo de Estudos de Políti ca Educacional da Universidade Federal Fluminense (UFF) sobre o tema da ampliação do Estado brasileiro a partir dos anos 1980 no contexto de implantação e aprofundamento do modelo so cietário neoliberal. A constatação de que o neoliberalismo vem-se desenvolvendo no Brasil das últimas duas décadas por meio de um programa político específico - o programa da Terceira Via - é ponto de partida para a análise sobre a difusão, na sociedade brasileira, dos novos ideais, idéias. e práticas voltados para a construção de uma nova pedagogia da hegemonia: uma educação para o consenso sobre os sentidos de democracia, cidéJ.klania, ética e participação adequados aos interesses privados do grande capital naciüt}al e in­ ternacional. O projeto de sociabilidade neoliberal da Terceira Via, sistematizado pelo soció­ logo, reitor da London School of Economics and Political Science e intelectual orgâ­ nico do novo trabalhismo inglês, Anthony Giddens, apresenta a característica de ne­ gar o conflito de classes e até mesmo a existência dessa divisão nas sociedades ditas "pós-tradicionais", ancorando uma sociabilidade com base na democracia formal, ou seja, na "conciliação" de interesses de grupos "plurais", na alternância de poder entre os partidos políticos "renovados", na auto-organização e envolvimento das populações com as questões ligadas às suas localidades, no trabalho voluntário e na ideologia da responsabilidade social das empresas. Permanecem intocadas, contu­ do, as relações de exploração, que estão lon$e de serem abolidas no mundo con­ temporâneo, sobretudo nos países capitalistas periféricos. Apresenta-se neste livro uma crítica a esse modelo em processo no Brasil, a partir da análise do impulso específico do modo como o sistema capitalista vem­ se recriando, transformando a realidade, revolucionando constantemente os valo­ res e as práti cas nas sociedades sob sua direção, por intermédio do aumento da exploração do trabalho humano. As reflexões do pensador marxista italiano Anto­ nio Gramsci foram tomadas como fundamentos para essa crítica. Para Gramsci, nas sociedades o cidentais contemporâneas, em que o Estado não está mais restri­ to a nenhum poder absoluto, a obtenção do consenso torna-se fundamental para que um projeto de sociedade se torne hegemônico, assumindo a direção político­ cultural na perspectiva da conservação ou da transformação do conjurato .da exis­ tência social . O "Estado ampliado", característico do "Ocidente", corresponde, portanto, a uma unidade dialética na qual diferentes projetos estão presentes e

16 LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

buscam conformar as massas para a organização científica do trabalho e da vida característica da sociedade urbano-industrial. Sendo assim, o Estado assume cada vez mais um papel educador, na medida em que passa a propor a condução de amplos setores da população a uma reforma intelectual e moral adequada ao pro­ jeto de sociabilidade dominante e dirigente. A ampliação da democracia e o Esta­ do educador têm uma relação direta. Nas sociedades em que o Estado estava res­ trito à aparelhagem burocrática, as regras da conservação e da mudança eram mais facilmente impostas, enquanto no Estado democrático torna-se primordial a parti­ lha dos valores e idéias dominantes pelo conjunto da população. Assim, como estratégia de legitimação social da hegemonia burguesa, o Esta­ do brasileiro, enquanto Estado educador, redefine suas práticas, instaurando, por meio de uma pedagogia da hegemonia, uma nova relação entre aparelhagem esta­ tal e sociedade civil, com vistas a estabilizar, no espaço brasileiro, o projeto neoliberal de sociabilidade. Tomando "educação" em seu sentido amplo, como processo formativo que se desenvolve na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas institui­ ções de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (Art. 1° da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional), o Coletivo divi­ diu este livro em três partes, precedidas por uma introdução que apresenta as fer­ .ramentas teóricas utilizadas pelos integrantes do grupo de pesquisa para orientar seu trabalho empírico: "Gramsci, o Estado educador e a nova pedagogia da hegemonia". Na primeira parte, apresentam-se os pressupostos, princípios e estratégias do projeto neoliberal da Terceira Via que norteiam a nova pedagogia da hegemonia burguesa no mundo contemporâneo ("Pressupostos, princípios e estratégias"), iden­ tificando, por meio de diretrizes dos organismos internacionais, os mecanismos utilizados na sua propagação em nível mundial ("Os organismos internacionais na condução de um novo bloco históric o"). Analisa-se, na segunda parte, a difusão da nova pedagogia da hegemonia no Brasil, porintermédio do registro das mais evidentes alterações ocorridas na estru­ tura e na dinâmica da sociedade civil brasileira dos anos 1 980 até os dias atuais (''A sociedade civil como espaçô estratégico de difusão da nova pedagogia da hegemonia"); do acompanhamento das estratégias burguesas para a educação do consenso do conjunto da sociedade brasileira segundo os postulados e práticas do projeto de sociabilidade neoliberal da Terceira Via ("Estratégias burguesas de ob­ tenção do consenso nos anos de neoliberalismo da Terceira Via"); da análise da nova conformação da aparelhagem estatal brasileira às diretrizes gerais do

17 APRESENTAÇÃO

neoliberalismo da Terceira Via nos governos FHC e nos dois anos de mandato de Lula da Silva ("Reforma da aparelhagem estatal: novas estratégias de legitimação social"); do levantamento dos mecanismos regulatórios que estimulam e orientam a difusão da nova pedagogia da hegemonia no país ("Mecanismos regulatórios como elementos constitutivos da nova pedagogia da hegemonia"). Na terceira parte, dentre as atividades desenvolvidas pelos inúmeros apare­ lhos privados de difusão da nova pedagogia da hegemonia, selecionam-se quatro dessas experiências: as diretrizes para a construção de uma nova cultura cívica pre­ sentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais para a educação básica ("Parâmetros Curriculares Nacionais para a educação básica e a construção de uma nova cidada­ nia"); as ações da Fundação Belgo-Mineira para educar as novas gerações de traba­ lhf1dores matriculados na rede pública municipal segundo seus ideais, idéias e prá­ ticas ("Fundação Belgo-Mineira: o empresariado em ação"); a doutrina e a prática da Igreja Católica nas ações de filantropia em tempos de neolibefaiismo ("Igreja ..., Católica e educação no Brasil de FHC e Lula da Silva: tempos modernos, sonhos antigos"); e a experiência da Vila Olímpica da Maré ("Vila Olímpica da Maré e as políticas públicas de esporte em favelas do Rio de Janeiro"). O Coletivo agradece especialmente à Coordenação do Programa de Pós-Gra­ duação em Educação da Universidade Federal Fluminense, pelo apoio aos traba­ lhos desenvolvidos; ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológic o (CNPq) e à Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelas bolsas de pesquisador visitante, de mestrado e de doutorado concedidas ao Programa de Pós-Graduação; à historiadora Virgínia Fon­ tes, pela leitura e discussão de textos produzidos; à advogada Renata Ouimarães Franco, pela assessoria jurídica ao capítulo "Mecanismos regulatórios ·como ele­ mentos constitutivos da nova pedagogia da hegemonia"; a todos os integrantes do Coletivo que participaram, em algum momento, do processo de elaboração desta obra; e, ainda, a Ialê Falleiros, que acumulou os papéis de pesquisadora e secretá­ ria do grupo durante todo o ano de 2004. Com mais este trabalho, o Coletivo espera contribuir para o debate sobre os rumos da formação humana no espaço brasileiro e também para o entendimen­ to das atuais formas de dominação de classe e, conseqüentemente, com a defi­ nição de estratégias mais eficazes para o fortalecimento da contra-hegemonia em nosso país: Lúcia Maria Wanderley Neves Rio de Janeiro, abril de 2005.

INTRODUÇÃO: GRAMSCI, NOVA

O

ESTADO

EDUCADOR E A

PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

,Lúcia Maria Wanderley Neves Ronaldo Sant'Anna

As reflexões do pensador marxista italiano Antonio Gramsci oferecem-nos ele­ mentos importantes para o entendimento das novas estratégias do Estado, com vis,,..,. tas à legitimação social da hegemonia burguesa nas sociedades conteu;iporâneas, em especial a partir dos anos finais do século XX e início do século seguinte. Tomando como cenário o desenvolvimento' capitalista nos primórdios do sé­ culo XX, ou seja, a passagem do capitalismo concorrenc ial ao capitalismo monopolista, Gramséi preocupa-se em analisar as mudanças qualitativas que se processam no conteúdo e na forma do trabalho, na organização da produção e nas relações de poder que engendram uma nova cultura: a cultura urbano-industrial, redefinindo as estratégias das lutas da classe trabalhadora com vistas à transforma­ ção das relações sociais capitalistas. Ao mesmo tempo em que Gramsci divisava as mudanças qualitativas nas so­ ciedades do início do século XX, percebia com clareza que .tais mudanças não se revestiam' de um caráter de originalidade, Tratava-se " [ ... ] apenas da fase mais re­ .cente d e um longo processo que começou com o próprio nascimento do industrialismo, uma nova fase que é[ra] apenas m ais intensa do que as anteriores e , se manifesta[ va] sob formas mais brutais, mas que também seria superada através de'um novo nexo psicofísico de um tipo diferente dos anteriores e, certamente, superior (GRAMSCI, 200 1 , p. 266, grifo nosso). É nessa perspectiva gramsciana que entendemos as mudanças estruturais e superestruturais que se vêm processando no mundo e no Brasil de hoje. Nesse sentido, todo o elenco de reflexões do pensador italiano estará embasado pela importância de uma compatibilização .entre os aspectos mais · dire- ?­ tamente vinculados à inserção humana na produção da vida e aqueles mais espe' ' cificamente relacionados à aquisição de consciência quanto ao lugar dos homens na história.

20 LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

E será . a própria história o elemento capaz de, por meio das correlações de forças envolvidas nos embates presentes em cada conjuntura, colaborar para a análise de como e em que medida as classes sociais em disputa conseguem, ou não, sempre provisoriamente, demonstrar a toda a sociedade a articulação entre os níveis econômic o e político, isto é, ressalta-se, um nexo entre produção e cons­ ciência, mais afeito a seus interesses específicos e próprios. O novo bloco histórico que se foi constituindo no início do século XX mantém até os dias atuais suas características essenc iais. No plano econômico, a reprodu­ ção ampliada do capital - sob a direção do grande capital, a partir do emprego diretamente produtivo da ciência e da técnica -, a expropriação crescente do tra­ balho pelo capital e a �xtração da mais-valia, por intermédio da intensidade do .trabalho e do aumento da produtividade da força de trabalho. No plano polític o, um Estado que intervém nos rumos da produção e nas relações políti co-sociais com vistas à legitimação dos padrões de relações sociais vigentes. As mudanças qualitativas que se vêm processando mundialmente no modo de produção social capitalista nas últimas décadas do século XX e nos anos iniciais deste século materializam-se em novas alterações no conteúdo e na forma de or­ ganização do trabalho e da produção, nas relações de poder e .H?-S rel�ções sociais globais que correspondem a um patamar superior da civilização urbano-industrial, resultante de movimentos contraditórios, inerentes às relações sociais capitalistas. Especificamente, tais mudanças têm-se configurado em estratégias burguesas de ·tentativa d e superação da crise estrutural da acumulação do capital; de reestruturação das relações internacionais, regionais e nacionais de poder, a partir do que se convencionou chamar de fim da Guerra Fria; assim como da organiza­ ção do cotidiano dos cidadãos em face da crescente racionalização das relações sociais urbano-industriais. Tais mudanças vêm-se expressando, ainda, em processos de alargamento da parti cipação política, apesar de obviamente limitada, da sociedade c ivil, os quais se incumbem de também redefinir, em grande medida, as relações de poder .e as próprias tentativas, por um lado, de legitimação desse poder pelas classes sociais dominantes e, por outro, das lutas travadas pelas classes dominadas, no sentido de uma alteração radical dessas relações. Sendo assim, a com­ plexificação da sociedade civil terá claramente uma relação direta com a busca pelas classes dominantes de fazer face a ela, visando a superar, tanto nos planos especificamente nacionais e regionais quanto em nível mundial, a possível contra­ dição entre o alargamento da parti cipação política e a apropriação privada da produção da vida. Esse elenco de condições e contradições define as espec i fi­ cidades do novo bloco histórico. '

21 INIB.ODUÇÃO A primeira reflexão gramsciana que auxilia a desvendar as estratégias burgue­

sas de expropriação, exploração e dominação de classe na atualidade é, indubitavelmente, a percepção de que as formações sociais capitalistas são um bloco históric o formado por estrutura e superestruturas, havendo, pois, "uma ne­ cessária· rec iprocidade" entre ambas, "reciprocidade que é o processo dialético real" (GRAMSCI, 2000b, p. 250). Na acepção de sociedade como bloco histórico, conteúdo econômico-social e forma ético-política identificam-se, de maneira concreta, na construção dos vári­ os períodos históri cos. Convém frisar que a distinção entre "conteúdo" e "forma" é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebí­ veis sem as ideologias, bem como estas seriam fantasias ·individuais ou grupistas ,'�em a contribuição das forças materiais (GRAMSCI, 1999, p. 238) 1 • Entre estrutura e superestrutura existe, portanto, um nexo decessário e vital. Por isso mesmo, conforme a visão gramsciana"" e este é um de seus• pontos mais centrais - as possibilidades de que as superestruturas se constituam em resultante mecânica do que os homens vivenciam no plano estrutural representam uma séria distorção, posto que a articulação entre os planos aponta, inclusive, para a possibi­ lidade de que ocorra certa autonomia das relações superestruturais, conforme a conjuntura histórica, as correlações de forças e o grau de organização de uma for­ mação soci al. Tal fato evidentemente não descarta, mas reforça a menc ionada articulação entre os planos, porque essa relação de reciprocidade entre forças.mate­ riais e ideologias aponta para uma possibilidade concreta de o desenvolvimento históric o das formações sociais capitalistas ser uma resultante da simultaneidade entre instrumentos de coerção, persuasão das forças político-sociais em disputa pela hegemonia político-social e alterações concretas nas forças materiais de pro­ dução social. Nas sociedades capitalistas, o p oder emana das relações sociais de produção na sociedade c ivil (estrutura)2 e é exercido pelo Estado, ou sociedade política (su­ perestrutura política), forma ético-política de garantia da dominação da classe expropriadora sobre a classe expropriada ou trabalhadora.

1 As ideologias são historicamente orgânicas ou arbitrárias, racionalísticas, "voluntaristas". São orgânicas quando espelham essa unidade entre natureza e espirita, entre estrutura e superestrutura. São arbitrárias quando não criam mais do que movimentos individuais, polêmicos (GRAMSCI, 1 999, p. 237). 2 Em Marx e Engels (1 984, p. 1 1 O), os editores chamam a atenção do leitor para os dois sentidos da expressão "sociedade civil" no idioma alemão. O primeiro surge e se desenvolve na literatura de idéias do século XVIII, particularmente na França, para designar a ordem social fundada . no capitalismo concorrencial e no individualismo burguês. O conceito reflete, por um lado, a posição da burguesia, que a si mesma se propõe

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Considerando a relação de indissociabilidade entre estrutura e superestrutu­ ra na história, pode-se afirmar que o desenvolvimento das sociedades capitalistas vem-se constituindo no resultado provisório das tentativas das classes sociais de resolução de uma dupla e concomitante ordem de contradições: a contradição entre socialização do trabalho e apropriação privada do trabalho social e a contra­ dição entre socialização da política e apropriação individual ou grupista: do poder. Movidas por essa dupla e concomitante ordem de contradições, as socieda­ des capitalistas nos anos finais do século XIX vão-se ocidentalizando3• Seria conveniente destacar que as mesmas sociedades, até esse momento histórico, haviam-se caracterizado, essencialmente, como orientais: [ ... ) não existiam ainda os grandes partidos políticos de massa e os grandes sindicatos econômicos e a sociedade estava ainda, sob muitos aspectos, por assim dizer, no estado de fluidez: maior atraso no campo e monopólio quase que completo da eficiência políti­ co-estatal em poucas cidades ou até mesmo numa só [ ... ] , aparelho estatal relativamente pouco desenvolvido e maior autonomia da sociedade c ivil em relação à atividade estatal, determinado sistema das forças militares e do armamento nacional, maior autonomia das economias nacionais em face das relações econômicas do mercado mundial, etc. (GRAMSCl, 2000b, p. 24)

Nas sociedades orientais, portanto, a sociedade civil era largamente atomizada e a aparelhagem coercitiva estatal se apresentava como sujeito político coletivo · fundamental na legitimação social da dominação burguesa. como representante de toda a sociedade contra o feudalismo e, por outro, o próprio quadro conceituai do pensamento progressista da época. O segundo sentido é o de sociedade burguesa, ordem social em que a burguesia é, não representante do povo, mas classe dominante e exploradora. Carlos Nelson Coutinho, na introdução ao volume 1 de Cadernos do cárcere (GRAMSCI, 1999, p. 1 O), registra que Valentino Gerratana observou que, quando Gramsci verte o termo marxiano bürger/iche Gesel/schaft para o italiano, usa a expressão "sociedade burguesa". De fato, Gramsci utiliza a expressão "sociedade civil" em uma dupla acepção. Na primeira, como sociedade burguesa, retoma o conceito marxiano de sociedade civil como "verdadeiro lar e teatro de toda a história", como "a organização social que se desenvolve a partir diretamente da produção e do intercâmbio, e que em todos os tempos forma a base do Estado e da restante superestrutura idealista", apresentado em A ideologia alemã (MARX; ENGELS, 1 984, p. 42, 99). No entanto, não se deve perder de vista que, quando Gramsci fala de sociedade civil como esfera superestrutura! nova que, juntamente com o Estado, em sentido estrito, forma o Estado contemporâneo (concepção ampliada de Estado), refere­ se especificamente às manifestações concretas da politização dessa mesma sociedade burguesa. Da mesma forma que Gramsci realiza uma superação dialética do conceito marxiano de Estado, realiza também uma superação dialética da teoria geral de sociedade. 3 Essa idéia de processo é enfatizada por Carlos Nelson Coutinho em diversos trabalhos. Mais recentemente, nessa perspectiva, observa: "Com efeito, os conceitos de 'Oriente' e 'Ocidente' não são [ para Gramsci ] conceitos estáticos, apenas sincrónicos, definindo duas zonas d o mundo: Gramsci toma cons ciência d e que o fortalecimento da 'sociedade civil' e o conseqüente surgimento de uma estrutura social e estatal mais complexa são processos históricos, diacrônicos, que se desenvolvem no tempo. Isso significa que regiões ou países específicos, que num primeiro momento apresentavam formas sociais essencialmente 'Orientais', podem evoluir no sentido de se tornarem 'Ocidentais'." (COUTINHO, 2003, p. 7)

23 IN1RODUÇÃO

Gramsc i (200 1 , p. 241 -282) observou que no período posterior a 1 870, com a expansão colonial européia, o rápido desenvolvimento da grande indústria, a difu­ são da organização científica do trabalho, do fordismo e do "americanismo" e, mais especificamente, a socialização da participação política, ocorre uma mudança qua­ litativa na estruturação e na dinâmica das relações de poder. A partir de então, inúmeros sujeitos políticos coletivos passam a se constituir, direta ou indiretamen­ te, com níveis distintos de consc iência política coletiva, em torno dos dois blocos antagônicos em disputa pela direção política e cultural das formações sociais em rápido processo de urbanização. Sob esse conjunto de determinações, a sociedade c ivil, que até então era primitiva e gelatinosa, isto é, pouco organizada politic amente, politiza-se, ou seja, os vários grupos que a compõem passam, organicamente, de forma m ais efetiva, a defender seus múltiplos interesses e seus projetos de sociabilidade, interferindo, assim, mais diretamente nas decisões do Estado. A mesma soc ie&ade civil, de es­ paço primordial de interação humana no trabalho e no cotidiano, pa�a a se cons­ tituir também em locus de organização da vontade coletiva. Os múltiplos sujeitos políticos coletivos começam, progressivamente, a se organizar em aparelhos priva­ dos de hegemonia civil, na tentativa de obter do conjunto da sociedade o consen­ timento passivo e/ou ativo para seus projetos antagônicos de sociabilidade, e a exi­ gir do Estado a criação e/ou ampliação de direitos, alargando os limites estreitos da democracia liberal dos anos de capitalismo concorrencial. Desse movimento de organização política dos vários sujeitos políticos do ca­ pitalismo central aglutinados em torno do projeto oe sociabilidade proletário, re­ sultam, nos anos finais do século XIX e nas décadas iniciais do século XX, conquis­ tas como a jornada de trabalho de oito horas semanais, as férias remuneradas, o sufrágio universal (inclusive o voto femihino) e o direito de livre associação. Essa mesma politização da sociedade c ivil contribui para que o consenso, ou adesão espontânea de indivíduos ou grupos aos projetos das classes sociais em disputa na sociedade civil (e também no Estado em sentido estrito4), passe a se constituir, ao mesmo tempo, em importanté instrumento de dominação da classe burguesa para a consolidação de sua hegemonia nas sociedades contem­ porâneas, e em poderoso meio de emancipação política das classes. dominadas 4 Ao desenvolver, nos anos 1 970, a teoria relac ional do Estado inspirado nos ensinamentos gramscianos das

décadas iniciais do século XX, Poulantzas (1 980) acrescenta à teoria marxista de Estado uma outra importante determinação. Ele considera que, no capitalismo monopolista de Estado, com a criação e o predom!nio dos aparelhos econômicos sobre o conjunto da aparelhagem estatal, a luta de classes passa a ter uma presença mais significativa nesse espaço superestrutura!.

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na construção de uma outra hegemonia: a direção intelectual e moral, política e cultural da classe trabalhadora. Isso porque, conforme o próprio conceito de hegemonia gramsciano, será através de sua disputa pela direção da sociedade e, conseqüentemente, pelos apa­ relhos responsáveis pela colocação em prática das teses mais afeitas aos interes­ ses das classes sociais (aparelhos privados de hegemonia), que as mesmas classes obterão maiores ou menores chances de convencerem a totalidade da sociedade quanto à legitimidade de seus interesses específicos. Mais ainda, a batalha pelo convencimento e a busca do consenso contribuirão diretamente para que os ho­ mens adquiram ou não uma maior consciência quanto a seu efetivo lugar na histó­ ria, o qual, no caso, equivalerá não sómente ao tipo de identificação produzido acerca das relações sociais, como também ao desejo de transformação ou de con­ servação da ordem. A politização da so ciedade c ivil propi ciou à burguesia um novo conteúdo e uma nova forma às suas estratégias de dominação, transformando-a, simultaneamente, de modo mais equilibrado, em classe dominante e classe dirigente. Com a conquis­ ta dos aparelhos privados de hegemonia de tipo tradicional, a criação de novos apa­ relhos ou o controle e a refuncionalização de espaços difusores,de idéias das classes dominadas, essa burguesia vem conseguindo, historicamente, traduzir seu domínio econômico-político em direção de toda a vida social. Mais ainda, a politização da sociedade civil demanda um novo formato às disputas pelo próprio poder, uma vez . que a balança entre coerção e consenso ou repressão e convencimento terá de ser direcionada pela busca incessante de legitimação de um conjunto de práticas e idéi­ as destinadas à tentativa de conversão de interesses particulares em gerais, a qual, ' se dotada de êxito, irá colaborar para que a classe burguesa constga resolver a seu favor a possível (e sempre presente) contradição entre domínio e direção, tornando esses termos complementares e, para a sociedade, não-conflitantes. O sempre complexo e provisório processo de tentativa de conquista da hegemonia dos processos sociais demanda, para Gramsci, o êxito na difíciparefa de alcançar o consentimento e a adesão em torno das idéias/práticas desenvolvi­ das, sem dúvida, p elos aparelhos criados com esse fim, bem como com a refuncionalização de determinados espaços originalmente pertencentes às clas­ ses dominadas. Caberia frisar, entretanto, que tal processo não perde de vista tam­ bém a busca pela utilização, por parte das c lasses dominantes, de aparelhos que outrora representavam importantes meios de dominação. Em uma palavra, a bus­ ca de se tornar dirigente não pode abrir mão, em nome de sua própria hegemonia, da utilização de aparelhos difusores de idéias, as quais, embora não dando mais conta integralmente dos atuais processos históric os, representam ainda importan·

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25 INTRODUÇÃO

tes espaços a serem conquistados, até mesmo, mas não apenas, por sua capacida­ de de resposta, novamente não total, a certos anseios da sociedade. A crescente politização da sociedade civil, ao consubstanciá-Ia também em expressão da vontade coletiva, constituiu-a em uma dimensão superestrutura! nova, à qual Gramsci se referirá sistematicamente quando de suas análises acerca das modificações da estrutura e da dinâmica política das sociedades contemporâneas, denominadas por ele de "soc iedades o cidentais" ou aquelas nas quais força e con­ sentimento, em justa relação, garantem a dominação de classe. Nas so c iedades ocidentais, o Estado se amplia, adquirindo uma nova materialidade: complexificação da burocracia civil e militar da aparelhagem esta­ tal ou do Estado em sentido estrito e crescente expansão qualitativa e quantitativa 9os aparelhos privados de hegemonia da sociedade civil. O Estado redefine, ainda, suas funções, acrescentando às tarefas de comando, governo e �mínio a função de direção cultural e política das classes dominadas (hegemonia ci'l!I), por meio da adesão espontânea (consenso), passiva e indireta e/ou ativa e direta ao projeto de sociabilidade da classe dominante e dirigente. É nessa perspectiva que Gramsci (2000a, p. 20-21 ) enuncia: Por enquanto, podem-se fixar dois grandes "planos" superestruturais: o que pode ser cha­ mado de "sociedade civil", isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como "privados" e o da "sociedade política ou Estado", planos que correspondem, respectiva­ mente, à função de "hegemonia" que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de "domínio direto" ou de comando, que se expressa no Estado e no governo "jurídico".

. Do mesmo m odo que estrutura e superestrutura, enquanto força material e for,.., ma ético-política,').fonstituem-se em uma. totalidade histórica, Estado stricto sensu e sociedade civil (organismos políticos da sociedade civil) se consubstanciam em um bloco histórico. É nessa perspectiva que Gramsci (2000b, p. 244) define os Estados democráticos contemporâneos como "sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção". O conceito de bloco histórico, utilizado para indicar a relação entre sociedade civil e Estado em sentido estrito, assegura um tratamento metodológico no estudo da sociedade civil que a coloca em relação com as idéias, ideais e práticas governamen­ tais. Para a compreensão da natureza e do grau de desenvolvimento da sociedade civil no processo de luta de classes em cada formação social, faz-se imprescindível estudá­ Ia em contato direto com o conjunto das estratégias de reprodução ampliada do capi­ tal, assim como em relação às práticas coercitivas e diretivas governamentais para a conquista, consolidação e aprofundamento do consentimento, sempre provisório, do conjunto da sociedade ao projeto de sociabilidade da classe dominante e dirigente.

26 --------1L:Uuêic1iÃA°NiNEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

Gramsci (2002a, p. 1 39) m ais uma vez contribui para o entendimento da natu­ reza das relações capitalistas na atualidade quando observa que o Estado moder­ no, "por substituir o bloco mecânico dos grupos sociais por uma subordinação des­ tes à hegemonia ativa do grupo dominante e dirigente", redefine suas práticas, tor­ nando-se educador. Ao Estado capitalista impõe-se a complexa tarefa de formar um certo "homem coletivo", ou seja, conformar técnica e eticamente as massas populares à sociabilidade burguesa. É nessa perspectiva que o pensador italiano assegura ser papel do Estado educador: "Criar novos e mais elevados tipos de civi­ lização, de adequar a ' civilização' e a moralidade das mais amplas massas popula­ res às necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho econômico de pro­ dução e, portanto, de elaborar também fisicamente tipos novos de humanidade" (GRAMSCI, 2000b, p. 23). O Estado educador, como elemento de cultura ativa, deve servir para deter­ minar a vontade de construir, no invólucro da sociedade política, uma complexa e bem-articulada sociedade c ivil, em que o indivíduo particular se governe por si sem que, por isso, esse autogoverno entre em conflito com a sociedade política, tornando-se, ao contrário, sua normal continuação, seu complemento orgânico (GRAMSCI, 2000b, p. 279). Para Gramsci (1999, p. 94), somos ao mesmo tempo seres singulares e ho­ mens coletivos, conformes ao nosso tempo e lugar.· "Somos conformistas de al­ gum conformismo". Nas sociedades urbano-industriais contemporâneas, um novo conformismo social foi-se instaurando paulatinamente, tendo como elementos constitutivos: (i) "a estandardização do modo de pensar e de atuar em dimensões nacionais ou até mesmo continentais"; (ii) sua formação "essencialmente de bai­ xo para cima, à base da posição ocupada pela coletividade no mundo da produ­ ção", que permite novas possibilidades de autodisc iplina; (iii) a organização da . vida individual e coletiva fundamentada no máximo rendimento do aparelho pro­ dutivo, tendo o mundo da produção e o trabalho como referências; (iv) o máximo utilitarismo como referência da organização das instituições morais e intelectuais (GRAMSCI, 2000b, p. 259-261). Sob a hegemonia burguesa, o Estado capitalista vem realizando a adaptação do conjunto da sociedade a uma forma particular de civilização, de cultura, de moralidade. No decorrer do século XX, diante das mudanças qualitativas na or­ ganização do trabalho e nas formas de estruturação do poder, o Estado capitalis­ ta, mundialmente, vem redefinindo suas diretrizes e práticas, com o intuito de reajustar suas práticas educativas às necessidades de adaptação do homem indi­ vidual e coletivo aos novos requerimentos do desenvolvimento do capitalismo monopolista.

27 INTRODUÇÃO

Na condição de educador, o Estado capitalista desenvolveu e desenvolve uma com ações concretas na aparelhagem estatal e na soci­ edade civil. Esse conceito, embora não tenha sido utilizado explic itamente por Gramsci, é por ele inspirado. Segundo ele, "toda relação de 'hegemonia' é neces­ sariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo o campo internacio­ nal.e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais" (GRAMSCI, J.999, p. 399). D.ado o caráter contraditório e conflituoso das sociedades de classes, desenvolve-se simultaneamente no Estado stricto sensu e, majoritariamente, na sociedade civil, uma pedagogia da contra-hegemonia, por parte das classes domi­ nadas, sob a direção de partidos polític os comprometidos com a formação de uma 01� tra sociabilidade, os par�idos revolucionários. Nas sociedades orientais, a pedagogia da hegemonia era ex�cida principal­ mente por meio de ações que tinham funções educativas regressivas..,\:! negativas (em especial, por intermédio dos tribunais); nas sociedades ocidentais, mais po­ liticamente estruturadas, a pedagogia da hegemonia passa a se exercer mais sis­ tematicamente por meio de ações com função educativa positiva, que se desen­ volvem primordialmente na sociedade civil, nos aparelhos de hegemonia políti ca e . cultural das classes dominantes, sendo, para Grams ci, a escola o mais impor­ tante deles. Por intermédio de ações, proposições e concepções, instituições como a Igreja Católica, os meios de comunicação de massa, as associações recreativas e sindi­ cais, as associações de defesa de interesses corporativos distintos, dentre outras, articulam-se às c lasses socialmente dominantes, constituindo-se num bloco histó­ rico responsável pela dupla e complexa t.arefa de, preservando suas maneiras es­ pecíficas e próprias de atuação nas questões sociais, harmonizar os interesses das c lasses e frações de classes em nome das quais atuam, como também organizar e organicizar as proposições mais afeitas a esses interesses particulares, constituin­ do-os como gerais. O que não implica, evidentemente, afirmar que os aparelhos privados de hegemonia, na visão grams c iana, sejam meros instrumentos reprodutores de uma lógica que lhes é imputada externamente. Sob perspectiva radic almente distinta, tais aparelhos guardam em si mesmos a possibilidade de, conforme a conjuntura históric a, responder contraditoriamente a determinadas demandas e orientações, abrindo espaço para a possibilidade de construção de .uma contra-hegemonia. Vale frisar, entretanto, ainda nessa direção, que as disputas historicamente travadas no interior dos aparelhos privados de hegemonia, pela adesão mais ou . menos espontânea dos homens a um determinado projeto de sociedade e mesmo

pedagogia da hegemonia,

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28 LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

por uma educação de suas consciências, não são, para Gramsci, disputas entre iguais, razão fundamental pela qual o terreno de disputas da sociedade civil não se constitui necessária e forçosamente em espaço o qual, sendo de adesão espontânea e carac­ terizado mais pelo consenso do que pela coerção, definir-se-ia como território unica­ mente de conquista e ampliação das vontades das grandes massas e, muito menos, garantia de alarg_ª1flento de suas chances de contra-hegemonia. Nesse sentido, valeria a pena não perder de vista uma das contribuições fundamentais do pensamento grams ciano, qual seja a vinculação entre o con­ ceito de hegemonia, os responsáveis por sua formulação e execução (os apare­ lhos privados de hegemonia) e os temas definidos como relacionados à "gran­ de políti c a"5• Enquanto nas sociedades urbano-industriais6 esses aparelhos em seu conjun­ to contribuem para a formação do homem coletivo, a escola, mais especificamen­ te, responsabiliza-se pela formação de intelectuais de diferentes níveis, tanto em sentido amplo como em sentido estrito. Em sentido amplo, todos os homens são intelectuais. Todos têm uma concepção de mundo, integram organismos sociais, trabalham, realizam uma atividade criadora qualquer, deliberam sobre os rumos de sua vida em graus distintos de organicidade do pensamehto, que vão desde uma visão fragmentária a uma visão unitária de mundo. A escola, especialmente nas sociedades urbano-industriais, teria como objetivo, portanto, elevar o grau de consciência individual atingido pela humanidade. É intrínseca a toda atividade in� telectual nas sociedades urbano-industriais uma certa capacidade técni ca e diri­ gente, organizadora e a escola é o espaço social de formação desse novo tipo de humanidade. A escola forma também aqueles que vão exercer na sociedade, es­ pedfica e diretamente, a função de intelectuais, ou seja, os intelectuais orgânic os em sentido estrito7•

5 Por "grande pol!tica", Gramsci (2000b, p. 21) entende "as grandes questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais"; por "pequena política", "as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida ( ... ] ". 6 A civilização urbano-industrial cria um intelectual de novo tipo, tanto no sentido amplo como no sentido estrito, diferente dos intelectuais da civilização agrária. Para Gramsci (2000a, p. 53), "o modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloqüência, motor externo e momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, 'persuasor permanente' já que não apenas orador puro - mas superior ao espirita m"atemático abstrato ( ... ] ". 1 "Por intelectuais deve-se entender não só aquelas camadas comumente compreendidas nesta denominação, mas, em geral, todo o estrato social que exerce funções organizativas em sentido lato, seja no campo da produção, seja no da cultura e no político-administrativo: correspondem aos suboficiais e oficiais subalternos do Exército e também, em parte, aos oficiais superiores de origem subalterna." (GRAMSCl, 2002a, p. 93)

29 INIB.ODUÇÃO

Sendo o Estado capitalista um Estado de classes, tende a organizar a escola em todos os níveis e modalidades de ensino, conforme a concepção de mundo da classe dominante e dirigente, embora, contraditoriamente, dependendo do grau de difusão da pedagogia da contra-hegemonia na sociedade civil, a mesma escola esteja permeável à influência de outros projetos político-pedagógicos. A escola, no capitalismo monopolista, sob a hegemonia burguesa, espec ialmente após a Se­ gunda Guerra Mundial, vem-se estruturando com vistas a formar, tanto em sentido amplo como em sentido estrito, um intelectual urbano de novo tipo, que apresenta como características principais o aumento da capacitação técnica necessária à re­ produção ampliada das relações capitalistas de produção e uma nova capacitação dirigente, com vistas a "humanizar" as relações de exploração e de dominação bm:guesas, enquanto possibilidades históricas concretas. . Sob a hegemonia burguesa, ao formar intelectuais orgânicos efft sentido am­ plo e em sentido estrito segundo os ideais, idéias e práticas da classe dominante e dirigente, a escola torna-se importante instrumento de difusão da pedagogia da hegemonia, ou pedagogia da conservação, e, concomitantemente, em veículo que limita e emperra a construção e a vei c ulação de uma pedagogia da contra­ hegemonia8. Embora estivesse se defrontando apenas com os primórdios da formação do Estado capitalista monopolista, período em que a legislação e as políti cas econô­ micas e sociais circunscrevem o âmbito da pedagogia da hegemonia no Estado em sentido estrito, Gramsci já previa a expansão do processo de intervenção do Esta­ do na conformação técnica e ético-política da classe trabalhadora. Analisando o. fordismo nos anos inic iais do século XX, o pensador afir mava categori camente que "a americanização exige[ia] um determinado ambiente, uma determinada ,estrutura social e um determinado tipo de Estado" (GRAMSCI, 200 1 , p . 258), isso porque " a racionalização determinou a necessidade d e elaborar um novo tipo humano, adequado ao novo tipo de trabaÍho e de processo produtivo", elaboração que estava àquela época em sua fase inicial (GRAMSCI, 200 1 , p. 248). Mesmo assim, a força (destruição do sindicalismo operário de base territorial) e a persuasão (altos salários, diversos benefícios sociais, habilíssima propaganda ideo­ lógica e política) já faziam parte destacada das tarefas educadoras desse novo Es­ tado (GRAMSCI, 200 1 , p. 247). 8 Os intelectuais orgânicos do proletariado, via escola sob a direção burguesa, realizam a ultrapassagem da técnica-trabalho à técnica-ciência, mas não conseguem construir uma concepção humanista histórica, sem a qual permanecem especialistas e não se tornam dirigentes de sua classe.

30 LÚCIA NEVES (ORG.) - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

Durante todo o período da Guerra Fria e de desenvolvimento do fordismo e do "americanismo'', os Estados capitalistas centrais e periféric os, de modo especí­ fico, sob a forma de Estado de bem-estar social, desenvolveram, além das ativida­ des coercitivas inerentes ao Estado em sentido estrito, estratégias educadoras no. sentido da garantia de direitos, visando a reduzir a desigualdade real do acesso à riqueza e ao poder nas formações sociais burguesas, de forma a garantir a reprodu­ ção do modo capitalista de convivência social é evitar a adesão ao projeto socialis­ ta de so ciabilidade por amplos segmentos da classe trabalhadora. Contraditoria­ mente, portanto, a luta contra-hegemônica de parcela do proletariado e de seus aliados por direitos políticos e sociais e pela construção de uma nova sociabilidade consubstanciou-se em importante determinante de uma ampliação dos direitos de cidadania. Guiada por pressupostos teóricos keynesianos, a pedagogia da hegemonia se desenvolve no sentido de ampliar os direitos sociais por trabalho, moradia, alimen­ tação, saúde, educação, transportes das massas trabalhadoras, com políticas soci­ ais diretamente executadas pelo aparato governamental, tendo por intuito obter o decisivo consenso da maioria da população ao projeto burguês de sociabilidade e aumentar, concomitantemente, a produtividade da força d�.Jrabalho. Tais políticas governamentais constituíram-se, ainda, em importante veículo de redefinição dos graus ou momentos da correlação das forças políticas nas formações sociais con­ temporâneas, no sentido de impedir que a c lasse trabalhadora ultrapassasse o ní­ vel econômico-corporativo de organização das suas lutas sociais. graus i) , 1 De acordo com Gramsci, há nas so.ciedades contemporâneas diferentes . 1dr1, 11 1:"\rou momentos de relações de forças: uma relação de forças sociais estreitamente . / \ 1: ligada à estrutura objetiva, independente da vontade dos homens, na qual cada :i. i 1. !. grupo social representa uma função e ocupa uma posição determinada na própria 1[ / 1 ! produção; uma relação de forças políticas, com graus ou momentos distintos de :11 1 11 consciência política coletiva, de acordo com o grau de homogeneidade, de \\ �utoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais; e uma 1\ \relação de forças militares. 1 A estratégia política de cada grupo social em disputa deve levar em conta a análise das manifestações concretas desses três momentos (GRAMSCI, 2000b, p. 40-42). Mais particularmente, a pedagogia da hegemonia e a da contra-hegemonia, · por motivações distintas, devem levar em conta os graus de cons ciên cia políti ca dos grupos sociais que, na história real, implicam-se reciprocamente. O primeiro e mais elementar é o econômico-corporativo, quando é percebida individualmente uma unidade homogênea entre os componentes de um mesmo grupo social e sente-se o dever de organizá-lo. Nesse momento, não é realçada a .

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31 IN1RODUÇÃO

unidade entre esse grupo específico e a classe social. Um segundo momento é aquele em que os grupos específicos atingem a consciência da solidariedade entre todos os membros da classe, mas ainda no campo meramente econômico. Reivin­ dica-se, em tal estágio, o direito de participar da legislação e da administração e até de modificá-las, de reformá-las, porém, nos quadros fundamentais existentes, isto é, nos marcos do capitalismo. Um terceiro momento é aquele em que se al­ cança a consciência de que os interesses corporativos podem e devem tornar-se os interesses dos grupos sociais subordinados. Ultrapassa-se o plano econômico­ corporativo e atinge-se o plano "universal", criando, assim, a hegemonia de uma c lasse social sobre uma série de grupos subordinados. Nesse momento percebe­ se com nitidez a natureza de classe do Estado capitalista e suas formas de atuação �G RAMSCI, 2000b, p. 4 1 -42). Apenas nesse momento

mlru

O Estado é certamente concebido como organismo próprio de u po, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este cl'êsenvolvimen­ to e esta expansão são concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias "nacionais", isto é, o grupo domi­ nante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instá­ veis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos gru­ pos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo. [ .. ] Estas relações internas de um Estado-nação entrelaçam-se com as relações internaci­ onais, criando novas combinações originais e historicamente concretas. (GRAMSCI, 2000b, p. 4 1 -42) .

Em linhas gerais, a pedagogia da hegemonia nos anos de fordismo e de "americanismo" consistiu em um alargamento da cidadania político-social, de modo a impedir que o nível de consciência e de organização das classes dominadas ul­ trapassasse o segundo momento econômic o-c9rporativo das relações de força política. Foi assim que os partidos revolucionários que atingiram o nível éti co-polí­ tico de consciência coletiva foram-se transformando, espec ialmente na Europa, em social-democratas, hegemonizando, sob a batuta do capital, a classe trabalha­ dora. O sindicalismo classista foi dando espaço ao sindicalismo de resultados, re­ duzindo o nível de consciência coletiva do segundo momento do grau econômico­ corporativo para o primeiro momento, quando se desconhece a unidade entre o específico e a classe .social . Especialmente após a Segunda Guerra Mundial, movimentos sociais que de­ fendiam interesses específicos não diretamente ligados às relações de trabalho foram institucionalizados em aparelhos privados de novo tipo, dando lugar, na are-

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na política, a novos sujeitos políticos coletivos, genericamente denominados de organizações não-governamentais (ONGs). Tais organizações, devido ao grau de especificidade de seus interesses, já se instituem no nível mais elementar de cons­ ciência política. Algumas delas, no erytanto, em especial as de nível internacional e nacional, atingem o segundo nível sem, contudo, ultrapassarem o nível econômi­ co-corporativo. Por meio desse triplo movimento, o projeto de sociabilidade bur­ guesa foi-se consolidando e chegou vitorioso ao século XXI, momento em que uma larguíssima faixa da população mundial aceita as relações sociais vigentes como a única solução possível de convivência social. A pedagogia da contra-hegemonia, por sua vez, apesar de garantir expressi­ vas vitórias em formações sociais periféricas, foi perdendo seu poder de persuasão nas formações capitalistas centrais e, finalmente, com a queda do muro de Berlim e com o fim da União Soviética, vem tendo muita dificuldade para convencer a . classe trabalhadora de que processos como a expropriação, a exploração e a do­ minação por ela vivenciadas são historicamente construídos, como resultado da hegemonia burguesa. Mesmo assim, em todos os cantos do planeta, embora de forma minoritária, aparelhos privados de hegemonia proletária - nos quais se in­ cluem partidos, sindicatos, movimentos sociais e até algumas organizações não­ governamentais - continuam sua tarefa de persuadir o conjunto da população de que um outro mundo é possível. O fim da Guerra Fria, a crise estrutural de acumulação capitalista e o nível de racionalização alcançado pelo modo de produção so cial capitalista nas déca­ das finais . do século XX, consubstanc iado na mundialização da produção, na difu­ são do paradigma da acumulação flexível de organização produtiva, assim como na introdução e na difusão aceleradas da mi croeletrônica e da informáti ca na organização do trabalho e no cotidiano dos cidadãos, determinaram a elabora­ ção de um novo tipo humano, de um novo homem coletivo, conforme· aos novos requerimentos da reprodução das relações sociais vigentes. Por outro lado, o desemprego estrutural, a precarização das relações de trabalho e das condições de vida de um contingente cada vez maior de trabalhadores levam o capital a redefinir suas estratégias de busca do consenso da maioria das populações no limiar do século XXI. Tais mudanças qualitativas nas relações sociais de produção passaram a de­ mandar do Estado novos formatos em seu papel educador. Sob a direção das fra­ ções financeira e industrial monopolista da burguesia mundial iniciadas no período Reagan!fhatcher de governo de países centrais no capitalismo mundial, apoiando­ se nas formulações de Hayek e Friedman (MELO, A., 2004) e posteriormente atualizadas por Anthony Giddens para a nova social-democracia mundial, teve iní-

33 IN'IRODUÇÃO

cio um processo de reestruturação do Estado, tanto no que respeita a suas funções econômicas quanto a seus objetivos de legitimação social. O Estado de bem-estar social perdeu espaço para o Estado neoliberal. De pro­ dutor de bens e serviços, o Estado passou a assumir a função de coordenador das iniciativas privadas da sociedade civil. De promotor direto da reprodução do conjunto da força de trabalho, admitindo-a como sujeito de dir.eito, o Estado passou a provedor de serviços sociais para uma parcela da sociedade definida agora como "excluídos", ou seja, aquele contingente considerável que, potencialmente, apre­ senta as condições objetivas para desestruturar o consenso burguês. Para o restan­ te da população, o Estado transfigura-se em estimulador de iniciativas privadas de prestação de serviços sociais e de novas formas de organização social que .pesatrelam as várias formas de discriminação das desigualdades de classe. Nesse ponto, pode-se ver com clareza uma outra contribuição do pensamen,

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oferece os elementos necessários para compreender a realidade em sua com­ plexidade e contradição. É nessa perspectiva que a Terceira Via toma a reforma da aparelhagem estatal como outro importante princípio. O pressuposto que o fundamenta baseia-se na compreensão de que as formas estatais inspiradas no modelo do welfare State atingiram o ápice da incapac idade política e econômica frente aos desafios do mundo contemporâneo, o que exige uma reestruturação de sua organização e di­ nâmica em termos jurídicos, políticos e econômicos. Assim, a reforma do Estado, ou seja, da aparelhagem estatal, enquanto "um princípio orientador básico da polí­ tica da Terceira Via" (GIDDENS, 200 1 a, p. 79), deveria ser responsável por um con­ junto de medidas inovadoras, tais como promover a sociedade civil ativa e, com isso, assegurar um modelo de inclusão soci al em bases distintas do que foi tentado 1) 1';!lo Estado de bem-estar social, aprofundar e ampliar os espaços de convivência " democrática e de colaboração social, incentivar e fortalecer a ecêfiomia �ista, regular, por meio de leis modernas, as atividades que representerri riscoS'para a socie­ dade. Com essas referências, "uma das principais tarefas do governo (seria] preci­ samente conciliar as reivindicações divergentes de grupos de interesse especial" (GIDDENS, 2001 a, p. 63), isto é, promover a concertação social. Para a Terceira Via, existiria um descontentamento profundo dos indivíduos com os partidos políticos, com as eleições, com os governós e os sindicatos em . função do distanciament� que tomaram da vida cotidiana. Por outro lado, ela de­ fende a idéia de que as experiências organizativas que despontam por fora das relações de produção (raça, etnia, gênero) deveriam ser interpretadas como ex­ pressão do esgotamento da política tradic ional de tipo fordista no m�do atual e . também como pulso emancipatório que seria capaz de renovar a política e de cons­ truir novas relações sociais mais dialógicas, portanto, menos conflitivas. "O des­ contentamento [dos indivíduos] com as instituições democráti.cas liberais aumen­ ta ao mesmo tempo, e pelas mesmas razõE'.s, em que essas instituições se tornam generalizadas. As pessoas tornam-se desiludidas com a 'política' porque áreas fun­ damentais da vida social [ ... ] não mais correspondem a quaisquer domínios aces­ síveis de autoridade política." (GIDDENS, 1 996, p. 34) Partindo dessa compreensão, a Terceira Via entende que o "novo Estado democrátic o" deveria estar aberto a essa tendência, incentivando e aprofundando o surgimento de novas organizações. Isso deveria ocorrer por intermédio da defi­ nição de espaços de participação direta na aparelhagem estatal, incorporando as novas organizações em sua estrutura por meio de parcerias, de modo ,. a transformá.las em propulsores da "confiança ativa", do equilíbrio harmônico entre indivíduos e a esfera da nova política, fortalecendo, assim, os laços de convivênc ia pacífi-

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ca e construtiva. A Terceira Via denomina essa perspectiva de "democracia dia­ lógica". Para ela, [ J a democracia dialógica não [seria) a mesma coisa que a situação ideal de discurso. Em primeiro lugar, a democratização dialógica não está [ria) ligada a um teorema transcendental [conforme proposto na teoria de Jürgen Habermas]. Em segundo, a de­ mocracia dialógica não [seria) necessariamente o rientada para obtenção de consenso. [ ... ) [Ela) pressupõe apenas que o diálogo em um espaço público fornece um modo de viver com o outro em uma relação de tolerância mútua, seja esse outro um indivíduo ou uma comunidade global de fiéis religiosos. (GIDDENS, 1996, p. 133) •••

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Portanto, seu objetivo é "criar a confiança ativa por meio de uma avaliação da integridade do outro [pois] a confiança é um meio de ordenação das relações soci­ ais no tempo e no espaço" (GIDDENS, 1 996, p. 1 33). Diante dessas formulações, é importante em primeiro lugar reconhecer a exis­ tência, nas diferentes partes do mundo, de organizações que expressam uma pluralidade de interesses específicos, intercruzando os tecidos sociais dos países e regiões nos quais estão inseridas. É verdade também que se trata de um fenômeno novo, despertado nos países centrais no pós-guerra e na periferia do sistema prin­ cipalmente a partir dos anos 1 980. Contudo, é necessário considerar que um processo efetivo de emancipação coletiva do homem só ocorrerá quando esses movimentos - mantidas suas identi­ dades e especificidades - forem capazes de convergir seus interesses em torno de um projeto maior, que envolva a vontade coletiva majoritária, combinando hegemonia e pluralismo (COUTINHO, 2000). Qualquer programa polític o que vise a estimular e a orientar a organização da sociedade civil a partir dos interesses específicos e corporativos em um nível de consciên cia coletiva mais elementar contribuirá apenas para criar movimentos sociais que não sejam antagônicos ao capitalismo ou mesmo que assumam uma postura que favoreça sua dinâmi ca (WOOD, 2003). A Terceira Via propõe também que o Estado assuma seu papel pedagógico fundamental de impulsionar uma nova cultura c ívi ca por meio da renovação organizativa da so c iedade c ivil, visando a consolidar a coesão social, o empreendedorismo social e a ação voluntária dos indivíduos.A tônica dessa pers­ . pectiva política é sintetizada na seguinte expressão: "o Estado não deve remar, mas assumir o leme: não apenas controlar, mas desafiar" (GIDDENS, 2001b, p. 1 6, grifo nosso). Isso não significa, segundo a Terceira Via, a re-inauguração do planejamen­ to estatal de grande porte, minuciosamente definido, coercitivo e totalizador das ações nos campos social, políti co, econômi co e cultural. De fato, o que se propõe é . que a capacidade racional de planejar esteja a serviço da eficiência, do envolvimento

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das organizações na solução de seus próprios problemas em parceria com o apare­ lho de Estado e do desenvolvimento da iniciativa privada como forma de incentivar a livre concorrência, pois "hoje os mercados de produto, capital e trabalho devem ser flexíveis para que uma economia seja competitiva" (GIDDÉNS, 2001b, p. 80). Nessa linha, " [ ... ) o pensamento da terceira via enfatiza que uma economia forte 1pressupõe uma sociedade forte, mas não entende essa conexão como provenien­ te do intervencionismo do antigo estilo. O objetivo da políti ca macroeconômi ca é manter a inflação baixa, limitar os empréstimos governamentais e usar vigorosas medidas de incentivo fiscal para fomentar o cresc imento e altos níveis de empre­ go:" (GIDDENS, 200 1 b, p. 78) Mais do que ,uma coin c idên c ia, esse postulado muito se aproxima das teorizações de Hayek (1 987), em que pesem, talvez, algumas diferenças mais pon­ ttl riis. Vejamos:

� doutrina liberal é a favor do emprego mais efetivo das forças da concm:rência como meio de coordenar os esforços humanos, e não deixar as coisas como estão. Baseia-se c . na convi ção de que, onde exista a concoJTência efetiva, ela sempre se revelará a melhor maneira de orientar os esforços individuais. Essa doutrina não nega, mas até enfatiza que, para a concorrência funcionar de forma benéfica, será necessária a criação de uma estru­ turalegal cuidadosamente elaborada, e que nem as normas legais existentes, nem as do passado, estão isentas de graves falhas. [ ... ) Considera a concorrência um método superi­ or, não somente por constituir, na maioria das circunstâncias, o melhor método que se conhece, mas sobretudo por ser o único método pelo qual nossas atividades podem ajus­ .tar-se umas às outras sem a intervenção coercitiva ou arbitrária da autoridade. Com efei­ to, uma das principais justificativas da concorrência é que ela dispensa a necessidade de um "controle social consciente" e oferece aos indivíduos a oportunidade de decidir se as perspectivas de determinada ocupação são suficientes para compensar as desvantagens e riscos que as acompanham. O bom uso da concorrênc ia como princ ípio de organização so c ial exc lui certos tipos de intervenção coercitiva na vida econômica, mas admite outros que, às vezes, podem auxi­ liar consideravelmente seu funcionamento, e mesmo exigem determinadas formas de ação governamental. (HAYEK, 1987, p. 58, grifo nosso) A

Terceira Via e doutrina liberal compartilham os mesmos princípios. Isso fica · mais evidente quando a Terceira Via defende que tanto a promoção da igualdade . com inclusão social quanto a do bem comum deveriam ser asseguradas pela pro­ ''dução de "políticas [so ciais) gerativas" que desenvolvam o chamado "capital soci­ al" dos grupos de indivíduos para aação, incutindo neles o espírito empreendedor, a autoconfiança, a capac idade de administrar riscos e rompendo em, definitivo com ; a cultura da dependência criada pelo Estado de bem-estar social e suas políticas

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Nesse sentido, as críticas formuladas por Laurell (2000) à concepção de políti­ cas sociais que vêm sendo desenvolvidas pelo Estado neoliberal aplicam-se integral­ mente a esse postulado da Terceira Via, pois em ambos é comum a recusa dos "di­ reitos sociais" e do princípio da universalidade como categorias válidas, bem como a defesa da mercantilização e submissão dos bens sociais à lógica do mercado. O argumento central da Terceira Via e do neoliberalismo é o de que se deve eliminar toda e qualquer política estatal que imobilize os indivíduos, gere obstáculos à expan­ são do mercado e crie dificuldades para o pacto entre capital e trabalho. Essas doutrinas reforçam a suposição do Estado como um "sujeito" dotado de vontade e iniciativa próprias e legitimado por um "contrato social", e também como instância imparcial e imune aos interesses particulares, mas capaz de garan­ tir os direitos individuais e com discernimento racional para governar o conjunto da sociedade sob a inspiração de valores ditos universais e naturais. Entretanto, a Terceira Via introduz elementos que ampliam a teoria liberal de Estado. Enquanto os teóricos clássicos dessa corrente acreditavam que o poder só se efetiva dentro do Estado e a partir dele, essa doutrina política afirma ser a socie­ dade civil a "parceira" do Estado na obtenção da coesão social. Nessa teoria liberal de Estado "ampliado", a Terceira Via reafirma o Estado 'tcomo "o responsável pela �,t(t criação da sociedade civil", "como encarnação da vontade coletiva geral", e "como o reino do universal" e acrescenta a noção de parcerias entre as esferas do políti co e do social, acreditando criar, assim, uma ligação daquilo que permanecia des­ conectado no liberalismo. Nessa perspectiva teórica, o instrumento central seria a chamada "democrac ia dialógica" e os objetivos primordiais seriam a expansão de uma nova economia, denominada "economia mista". Considerando que o Estado não pode ser compreendido como um ser em si mesmo - pois sua origem está localizada nas relações sociais concretas - e que o fenômeno estatal corresponde à síntese de múltiplas mediações (GRAMSCI, 1 999), é possível afirmar que a concepção teórica de Estado que norteia a Terceira Via é extraordinariamente funcional às estratégias burguesas de elaboração de uma nova pedagogia da hegemonia. Esse modelo se constitui, na verdade, como alternativa conservadora de bus­ ca da recuperação do ciclo produtivo do capital e da definição de uma nova cultu.ra burguesa referenciada em novas bases. Nessa perspectiva, as ações estatais têm como elementos de cisivos a definição de um marco regulatório mais flexível e uma estrutura menos burocrática, ambas voltadas a dois objetivos: impulsionar a economia capitalista e repolitizar a política. Em relação ao primeiro, seu mais expressivo indicador é a defesa da parceria entre público e privado, destinada tanto ao incentivo à eficiência e agilidade do

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mercado quanto à cobertura de um amplo leque de ações que envolvem as em­ presas em obras e serviços e as genericamente chamadas organizações não-go­ vernam entais na provisão de bens soc iais para o estabelecimento de novos parâmetros econômicos. Já em relação ao segundo, destaca-se a necessidade de criação de uma nova subjetividade e de novos sujeitos políticos coletivos, com as tarefas de assumir as responsabilidades sociais até então restritas à aparelhagem estatal, eliminar as re­ sistências sociais à ordem burguesa e disseminar valores caros a essa doutrina. É nessa direção que o Estado da Terceira Via assume sua função educativa. Uma das estratégias propostas pela Terceira Via para a realização dessa tarefa educativa consiste na promoção de um novo pacto (ou contrato) social, que na definição desse projeto corresponde a "[ ... ] um acordo de esforços baseado na mu­ &1nça de estilo da vida. Suas forças motivadoras seriam a aceitação da responsabi­ Udade mútua de enfrentar os males que o desenvolvimento trol!X� consigo; uma necessidade de mudança de estilo de vida por parte de ambos, os privil"egiados e os menos privilegiados; e uma concepção ampla de providência afastando o conceito de provisão econômica para os despossuídos." (GIDDENS, 1 996, p. 221) A realização do novo pacto social no plano interno envolve a redefinição sociopolíti c o-econômica das famílias e dos grupos comunitários; a reforma no êlrcabouço legal nas áreas trabalhista e social (principalmente na previdência, as­ sistência, saúde e educação); o incentivo à economia de mercado e à expansão de organizações da sociedade civil compromissadas com a ideologia burguesa. Já no plano externo, um novo ordenamento mundial, com ênfase na constituição de um governo da economia global, da gestão ecológica global, do controle do poder empresarial e da promoção da democracia transnacional, tudo partindo de uma repactuação do poder . entre as nações e da criação do chamado "nacionalismo cosmopolita" (GIDDENS, 1996, 2001 a, 2001 b). Afirma a Terceira Via que [ ... ] precisamos reconectar essas três esferas por meio de um novo contrato social, ade­ quado para uma era em que a globalização e o individualismo andam lado a lado. O novo contrato ressalta os direitos e as responsabilidades dos cidadãos. As pessoas não devem se limitar a receber da sociedade, mas se voltar para ela também. [ ... ] O governo deve manter um papel regulamentador em muitos contextos, mas tanto quanto possível deve se tornar um facilitador, proporcionando recursos para que os cidadãos assumam a res­ ponsabilidade pelas conseqüências de seus atos. ( GIDD ENS, 200 1 b, p. 16 7, g rifo nosso)

Por sua vez, essa reconexão - na verdade um pacto social proposto pela Tercei­ ra Via - exige a implantação de algumas medidas concretas, como a ,ampliação dos laços de união entre burguesia internacional e nacional; o estímulo, a valorização e a legitimação dos sujeitos políticos coletivos do campo do trabalho que assumam uma

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postura menos conflitiva frente ao capital; bem como o enfrentamento político àque­ las organizações que, mesmo abaladas pelos efeitos diretos e indiretos da ofensiva neoliberal, mantêm-se ligadas aos princípios do socialismo revolucionário. Portanto, para o pacto social de que fala a Terceira Via, a chamada "nova po­ lítica de liberdade para o indivíduo" assume a maior relevância enquanto estraté­ gia de estruturação de poder. Definida como resposta ao novo individualismo esti­ mulado pela globalização cultural, essa nova política voltada ao indivíduo é apre­ sentada como a peça-chave para a edificação da sociedade civil ativa e do novo Estado democrátic o (GIDDENS, 2001a). Com essas teses, a Terceira Via parece com­ partilhar com Hayek o seguinte apelo: [ ... ] para construir um mundo melhor, devemos ter a coragem de começar de novo mesmo que isso signifique, como dizem os franceses, "reculer por miex sauter"6 [ ] Se fracassamos na primeira tentativa de criar o mundo de homens livres [como propalavam os liberais clássicos] , devemos tentar novamente. O princípio orientador - o de que uma política de liberdade para o indivfduo é a única polftica que de fato conduz ao progresso permanece tão verdadeiro hoje como foi no século XIX. (HAYEK, 1 987, p. 2 1 4, grifo nosso) •••



Alinhando-se a essa concepção, a Terceira Via não só relança um dos mais importantes fundamentos doutrinários do liberalismo, o "irttlividúalismo como valor moral radical", como também o elege, ainda que com algumas atualizações, como um de seus princípios centrais. Para ela, não se trata de uma centralização do indiví­ duo no mercado ou mesmo a polarização em relação às formas coletivas de organi­ zação social, mas sim a redescoberta do individualismo "como reconciliação da au­ tonomia e interdependência [do homem] nas diversas esferas da vida social, inclusi­ ve no domínio do econômico" (GIDDENS, 1 996, p. 2 1 ). Em síntese, o novo individua­ lismo significaria estar aberto e sensível a " [ ... ] uma gama mais ampla de inquieta­ ções morais do que as gerações anteriores" (GIDDENS, 200 1 a, p. 45). É certamente em uma concepção limitada de liberdade para o indivíduo que a Terceira Via e o neoliberalismo se aproximam mais uma vez, compartilhando a mesma concepção: [ ... ] não tem grande importância se os objetivos de cada indivíduo visam apenas às suas necessidades pessoais ou se incluem as de seus amigos mais próximos, ou mesmo dos mais distantes - isto é, se ele é egoísta ou altruísta na acepção comum de ambas as palavras. O fundamental é que cada pessoa só se pode ocupar de um campo limitado, só se dá conta da premência de um número limitado de necessidades. Quer seus interesses girem apenas em torno das próprias necessidades físicas, quer se preocupe com o bem-

0 De acordo com a nota do tradutor: "recuar para melhor avançar".

61 1 - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA estar de cada ser humano que conhece, os objetivos que lhe podem dizer respeito corresponderão sempre a uma parte infinitesimal das necessidades de todos os homens. Este é o fato fundamental em que se baseia toda a filosofia do individualismo. Ela não parte do pressuposto de que o homem seja egoísta ou deva sê-lo, como muitas vezes se afirma. Parte apenas do fato incontestável de que os limites dos nossos poderes de imagi­ nação nos impedem de incluir em nossa escala de valores mais que uma parcela das necessidades da sociedade inteira; e como, em sentido estrito, tal escala só pode existir na mente de cada um, segue-se que só existem escalas parciais de valores, as quais são inevitavelmente distintas entre si e mesmo conflitantes. " [ ... ] Esse reconhecimento do indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos é a convicção de que suas idéias deveriam governar-lhe tanto quanto possível a conduta que constitui a essência da visão individualista". (HAYEK, 1 987, p. 76)

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uma abstração .do homem de sua condição histórica, na sua atomizGl&ão diante da realidade e na sua negação enquanto síntese de um processo dinâmico deter­ minado pelas condições objetivas e subjetivas que envolvem a produção de sua própria existência. Entretanto, incorporando a essência desse pressuposto sistematizado por Hayek, a Terceira Via amplia-o, por acreditar que o indivíduo pode ser capaz, e ve,m demonstrando isso, de ampliar seus interesses, passando a se ocupar com número maior de questões ou mesmo de questões mais complexas, ainda que sem ser capaz de envolver no rol de suas preocupações as demandas da soc iedade inteira. Nesse sentido, as evidências indi cam que a Terceira Via incorpora e supera a ·· concepção de individu.alismo do pensamento (neo)liberal quando defende a idéia . de que .o indivíduo renovado seria capaz de ir além de seus limites de poder de imaginação, envolvendo um conjunto maior de. questões, sem que isso significas­ se uma perda de sua capacidade de exercer seu autogoverno. Para a Terceira Via, esse indivíduo renovado seria mais inteligente, mais sensível, mais flexível e aberto às · influências do mundo, dado que sua existênc ia se realizaria em um mundo "globalizado" e marcado por "perturbações e incertezas". Com esse condiciona­ mento cultural, esse indivíduo estaria mais apto do que o de tempos atrás a com­ partilhar valores e participar de organizações sociais presentes em seu universo e lig�das à sua identidade não-econômica. Por suas características, é possível afirmar que essa concepção tem como ob­ jetivos práticos: (i) construir uma certa consciência política que não perrr:iita ao indi­ :\'.Í.duo compreender seu real papel sociopolítico-econômico no mundo a partir de (' ,sua posição nas relações de produção; (ii) induzir a percepção de que seus valores ·

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são gerados pela "capacidade suprema de se autogovernar" e que é possível definir e realizar os próprios objetivos e metas, independentemente das condições concre­ tas que o envolvam; (iii) orientar e estimular a possibilidade de associação a um outro indivíduo ou a pequenos grupos próximos para participação em processos políticos mais simples. Pretende-se romper, dessa forma, com a apatia política e o isolamento e criar os pressupostos necessários a um tipo determinado de participa­ ção na vida social e política, sem que isso signifique incentivo a níveis mais elevados de consciência política e a senso de pertencimento a uma classe social. Nessa construção, o desemprego e a pobreza são interpretados como in­ fo rtúnios ou conseqüênc ia da incapac idade individual e devem ser enfrentados por intermédio de valores morais positivos universalmente válidos e mecanis­ mos relac ionados à ajuda mútua. Trata-se, aqui, como indi ca a própria Terceira Via, de uma articulação da " teoria do capital humano" com aquilo que vem sendo denominado "capital so cial" (GIDDENS, 2 00 1 b) no cenário de um capita­ lismo dito responsável. Com essa proposição, a Terceira Via recupera e articula duas noções impor­ tantes para as estratégias capitalistas de dominação. Inicialmente, retoma a teoria do "capital humano", difundida por Theodore Schultz nos anos 1 960, em que se definia o conhecimento e as capacidades técnicas dos trabalhadores como uma forma de capital capaz de gerar lucro e riqueza. Para a teoria do capital humano, existiria uma associação direta, portanto não-histórica, entre produtividade, efici­ ência, desenvolvimento e riqueza capaz de explicar as diferenças de crescimento econômico entre países e empresas e de salários entre os indivíduos. Nessa concepção, o homem-trabalhador é reduzido a um tipo de capital. De posse dessa questionável compreensão, é proposto que todos seriam capitalistas: alguns por serem os proprietários dos meios de produção (a burguesia) e outros por serem proprietários do capital humano (os trabalhadores). Partindo desse pres­ suposto, a teoria do capital humano chega a uma impressionante conclusão: no capitalismo não existem c lasses sociais. Nas palavras de Schultz (1 973, p. 1 5), "[ ... ) a característica distintiva do capital humano é a de que ele é parte do homem. É humano porquanto se acha configurado no homem e é capital porque é uma fonte de satisfações futuras, º11 de rendimentos futuros, ou ambas as coisas." A segunda noção, denominada "capital social", vem sendo difundida por in­ telectuais estadunidenses (como Francis Fukuyama, James S. Coleman, Robert D. Putnam) e empregada nos receituários de organismos internacionais como Orga­ nização das Nações Unidas (ONU) e Banco Mundial (BM) para designar a capaci­ dade de articulação dos grupos de pessoas ou de toda uma comunidade local, na busca de solução de seus problemas mais imediatos. Ela é utilizada junto às no-

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ções de "pobreza" e de "desenvolvimento social sustentado" para orientar a defini­ ção das políticas sociais neoliberais focalizadas. Em geral, seus defensores afirmam que o desenvolvimento do "capital soci­ al" de diferentes grupos seria capaz de reverter a situação de pobreza das comuni­ dades e gerar atitudes não�passivas diante do aparelho de Estado. Trata-se de uma concepção cunhada no modelo de Estado neoliberal e que tem por objetivo edu­ car.as frações da classe trabalhadora para uma nova realidade em que as políticas sociais universais não responderiam positivamente às necessidades e capacida­ des das pessoas. Nessa linha, a solução dos problemas e a realização de demandas deveriam ser buscadas na mobilização social de pequenos grupos e por intermédio de "par­ ceri�.s" com a aparelhagem estatal e outros organismos da sociedade civil, e não 1T1ais nas políticas universalizantes. J,.. Por essas características, o "capital social", associado ao "capital ilumano", seria o remédio para minimizar os efeitos perversos e degradantes inerentes ao modo de produção capitalista na sua fase atual e, ao mesmo tempo, introduzir estrategicamente novas referências sociais7• O aprofundamento da sociabilidade ancorada nessas indicações serve para .estimular e orientar a natureza e a intervenção política de novos agrupamentos sociais que, mesmo organizados sob o lema da "emancipação" ou "liberdade'', não agem no centro da vida social, isto é, no cerne das contradições do capitalis­ mo, e passam a conviver sob a tolerância do sistema e até mesmo em harmonia • com ele. Orientados para lutar a partir de um nível mais primitivo de cons c iên c ia política coletiva, esses movimentos, em geral, acabam desempenhando um im­ .portante papel na reafirmação da ideologia qurguesa. Não é por outro motivo que o ' individualismo como valor moral radical se arti cula de maneira tão decisiva à '. . . edificação da sociedade civil ativa e da reforma do Estado. ••••.·•· ···... Em contraposição a essa concepção de individualidade reformada, pode-se .afirmar, com Gramsci, que o homem deve ser concebido •

[ ... ] como uma série de relações ativas (um processo), no qual, se a individualidade tem a máxima importância, não é todavia o único elemento a serconsiderado. A humanidade que se reflete em cada individualidade é composta por diversos elementos: (1) o indiví­ duo; (2) os outros homens; (3) a natureza. [ ... ] [e que] o indivíduo não entra em relação

7 ,Um bom exemplo sobre o caráter político-ideológico e o significado prático dessa noção pode ser encontrado , em: COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; UNIVERSIDADE DO ESTADO D E MICHIGAN (2003).

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64 LÚCIA NEVES (ORG.) - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA com os outros homens por justaposição, mas organicamente, isto é, na medida em que passa a fazer parte de organismos, dos mais simples aos mais complexos. (GRAfvíSCl, 1999, p. 4 1 3, grifo nosso)

natureza humana é composta pelo conjunto das relações soc iais globais que não se manifestam imediatamente no indivíduo como ser auto-suficiente, mas sim na história da humanidade, pois "a essência do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo singular [ .. . ] ela é o conjunto das relações sociais" (MARX, 1 990, p. 33). Portanto, A.

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[ ... ) o homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa - objetivos ou materiais - com os quais o indivíduo está em relação ativa. Transformar o mundo exterior, as relações gerais, signi­ fica fortalecer a si mesmo, desenvolver a si mesmo. É uma ilusão e um erro supor que o "melhoramento" ético seja puramente individual: a síntese dos elementos constitutivos da individualidade é "individual", mas ela não se realiza e desenvolve sem uma atividade para fora, transformadora das relações externas, desde aquelas com a natureza e com os outros homens em vários níveis, nos diversos círculos em que se vive, até à relação máxi­ ma, que abarca todo o gênero humano. (GRAMSCI, 1 999, p. 406, grifo nosso)

Desconsiderando a concepção de homem como bfüco histórico e reforçando a tese do individualismo reformado, a Terceira Via estabelece a educação como importante estratégia de formação de diferentes tipos de intelectuais responsáveis por cimentar as novas relações entre os homens. Para esse projeto, " [ . .. ] a principal força no desenvolvimento de capital humano obviamente deve ser a educação. É o principal investimento público que deve estimular a efic iência econômica e a coe­ são cívica [ ... ]. A educação precisa ser redefinida de forma a se concentrar nas capacidades que os indivíduos poderão desenvolver ao longo da vida." (GIDDENS, 2001b, p. 78) Nessa lógii::a , são necessárias ações variadas que assegurem a formação inte­ lectual, moral, ético-política e técnica ao longo de toda a vida das pessoas, com ênfase no "desenvolvimento de competência cognitiva e emocional" (GIDDENs; 200 l a, p. 1 35), ou seja, uma educação que difunda os novos hábitos mentais e comportamentais que tornem os indivíduos sempre abertos acriticamente às no­ vas aprendizagens. O que se define nessa estratégia de realização do projeto da Terceira Via é a afirmação da escola e os demais meios de difusão e espaços educativos como instrumentos de formação e atualização do intelectual urbano, tendo na concep­ ção de mundo burguesa o eixo central. A Terceira Via parece desejar que, por inter­ médio das reformas educacionais, não só seja realinhado todo o processo formativo a partir das novas exigências de perfil humano demandadas pelo estágio atual do

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capitalismo monopolista, mas também sejam diminuídas ao máximo as possibili­ dades de difusão da contra-hegemonia no espaço escolar. Assim, temas antigos, como "cidadania", "igualdade", "participação", "democra­ cia", e novos, como "empreendedorismo", voluntariado", "responsabilidade", den­ tre tantos outros, são tratados sob uma abordagem pedagógica que os distancia do conflitivo e antagônico processo de construção social que os define. Trata-se de uma ação orientada por uma concepção pedagógica que procura criar novas ancoragens teóricas e simbólicas responsáveis por estabelecer mediações entre sujeito e reali­ dade social em uma perspectiva de conservação de relações sociais. Com essa indi cação, a Terceira Via inova as concepções conservadoras até então dominantes. Ela não se limita a difundir imediatamente os valores dominan­ t�s a partir da incorporação das demandas sociais dos trabalhadores para impulsi­ ofiar o seu projeto. Enquanto o pensamento liberal tradicional apgntava para uma espécie de "utopia", em que todos os homens se realizariam se dgissem segundo ... as leis do mercado, a Terceira Via, ampliando a perspectiva neoliberal, considera, a priori, que isso não seria mais possível. As ações, portanto, deveriam estar voltadas para gerir o sofrimento por meio do amparo social ancorado pela noção de capital social. Assim, a Terceira Via desresponsabiliza o capital, desresponsabiliza.a histó­ ria e responsabiliza os sujeitos e suas associações pela garantia da estabilidade social, políti ca e psicológica profundamente abalada pela eliminação de um hori­ zonte de transformação. Os princ ípios e estratégias aqui tratados ganham unidade com a costura de diversos elementos teóricos realizada pelo conceito de democracia. Como citado, a democracia idealizada pela Terceira Via significa "regime de governo" (democracia formal) combinado com algumas formas de "parti cipação" popu­ lar (democracia dialógica) sobre certa·s temáticas que envolvam os interesses

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A ampliação proposta pela Terceira Via em relação à teoria liberal é utilizada para designar os novos espaços ou experiências que englobam diversos fenômenos sociais, tais como a pressão pela tomada de decisão de baixo para cima, a mobilização para soluções de problemas que afligem um grupo de indivíduos, a valorização da justiça social, as novas relações interpessoais na esfera da família e do trabalho. Pres­ supõe a mobilização e o alargamento da confiança entre os indivíduos, um maior intercâmbio de emoções, idéias e reflexões. À prática democrática, portanto, cabe­ ria a conciliação dos inconciliáveis interesses históricos das classes para consolidar a legitimação social do novo bloco histórico "pós-tradicional". Assim, o principal desafio da Terceira Via, definido como a "democratização da democracia" (GIDDENS, 1 996, 200 l a, 2001 b), é nada mais do que a tentativa de

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combinar os principais aspectos de um certo tipo de "democracia institucional" com a "democracia participativa", ressignificando as formas de participação e o sentido histórico da política e das lutas sociais. Em outros termos, é proposto que o aprofundamento combinado e progressi­ vo dos dois tipos de democracia sirva de base para um novo modelo de Estado, para um novo envolvimento cívic o voltado ao pacto entre proprietários e trabalha­ dores, e a instituição de um novo modelo polític o em que esquerda e direita dei­ xem de ter um sentido de localização de projetos e das lutas históricas. Essa posi­ ção não se mostra muito diferente da concepção hayekiana de democracia: "a democracia é, em essência, um meio, um instrumento utilitário para salvaguardar a paz interna e a liberdade do indivíduo" (HAYEK, 1 987, p. 84). A Terceira Via e a doutrina teórica que, de fato, a inspira - o liberalismo -, insistem na organização da vida social em esferas autônomas e independentes que, em última instância, não só reforçam o processo de isolamento do produtor dos meios de produção como também despolitizam o econômico, apresentado como salvaguarda dos intocáveis direitos burgueses. A partir dessas referências, é possível concluir que a noção de democracia apresentada serve como forma de aperfeiçoamento das'relações de poder domi­ nante que aparecem dissociadas e independentes das relações econômicas, por­ tando regras próprias e asseguradas por seus estatutos jurídicos. Como tem sido na história moderna do capitalismo, reafirma-se que "a desigualdade e a exploração socioeconômica coexistem com a liberdade e a igualdade cívicas" (WOOD, 2003, p. 1 73). Assim, o conceito de " cidadania reflexiva" (GIDDENS, 2001a) , que emerge do binômio "democracia/capitalismo", não pretende alterar o fundamento da me­ diação entre o homem e o Estado na perspectiva liberal. Os princípios e estratégias da Terceira Via, ao se consubstanciarem nas estra­ tégias burguesas para obtenção do consenso em nível mundial, configuram-se como passos fundamentais da pedagogia da hegemonia na atualidade. [ ... ] a chamada "terceira via" me parece um sintoma de que o neoliberalismo começa a relevarseus limites. Os defensores da "terceira via" são pessoas que aplicam uma política neoliberal [ ... ], mas que têm ou tiveram no passado um certo compromisso com valores de esquerda e tentam propor, como se isso fosse possível, um neoliberalismo com rosto humano. Isso, evidentemente, é ideologia no sentido ruim da palavra, ou seja, uma ma­ neira de encobrir políticas que continuam a ser estritamente neoliberais. [ ... ] . A meu ver, trata-se de uma manifestação hipócrita do neoliberalismo. [ ... ] A "terceira via" é isso: uma manifestação hipócrita do neoliberalismo, que sabe muito bem que a virtude está com outro tipo de política. É um fenômeno indicativo de qut;! aquela hegemonia pura e simples do neoliberalismo, aberta e escancarada, está sofrendo abalos. (COUTINHO, 2004, p. 328)

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O projeto político da Terceira Via representa uma perspectiva de "moderniza­ ção política", que procura orientar o ajustamento dos cidadãos, do conjunto socie­ dade civil e da aparelhagem de Estado na justa medida das demandas e necessi­ dades do reordenamento do capitalismo. As referências indicadas pela Terceira Via como de modernização estão ligadas organicamente ao (neo)liberalismo. Por­ tanto, ela pode ser apresentada como um programa comprometido com a atuali­ zação do projeto burguês de sociedade e pela geração de uma pedagogia voltada a criar. uma unidade moral e intelectual comprometida com essa concepção. Suas interpretações sobre fenômenos presentes no mundo atual - em temas como mundialização financeira, hegemonia burguesa, mudanças nas correlações de forças, crise do capitalismo, projeto neoliberal, etc. - tentam criar a ilusão de Q\te se atingiu um estágio superior do capitalismo em que as contradições e antago­ ni �J'.nos, explorações e desigualdades, os projetos societários em cjisputa, não fa­ zem mais sentido. Por conseqüência, as referências teóricas para açãe política tais como "novo Estado democrático", "sociedade civil ativa", " democracia dialó­ .. gica", "participação", "políticas [sociais] gerativas", etc. - na forma de princípios e diretrizes nada mais são do que os balizadores do processo de ajustamento da vida e do trabalho, das instituições e organizações em um mundo que aparente­ mente "atingiu seus limites históricos no capitalismo". Por essas delimitações, a Terceira Via - definida como "estrutura de pensa­ mento e de prática política que visa a adaptar a social-democracia a um mundo que se transfo rmou fundamentalmente nas duas ou três últimas décadas" (GIDDENS, 2001 a, p. 36) - constitui-se de fato um neoliberalismo de terceira via,. portador de princípios e estratégias que fundamentam na atualidade o novo proje­ to de sociabilidade burguesa e as estratégias da nova pedagogia da hegemonia nos marcos do neoliberalismo.

ÜS ORGANISMOS INTERNACIONAIS NA CONDUÇÃO DE UM NOVO BLOCO HISTÓRICO Adriana Almeida Sales de Melo

Para os principais organismos internacionais que representam uma frente de defesa e condução dos interesses sociais do capitalismo mundial, o neoliberalismo jált;stá ultrapassado desde os anos 1 990. Para esses organismos (como o Fundo M.onetário Internacional e o Banco Mundial, com todas as sua� agêooias), a neces­ s.idade de sobreviver e aprofundar o processo de o cidentalização de uma ótica con­ servadora, do ponto de vista dos interesses do capitalismo, de continuar a determi­ nar, a dominar, a fazer o mundo à sua semelhança, à semelhança de seu projeto de sociabilidade, fez com que a direÇão e o ritmo de suas ações de planejamento social se ampliassem e consolidassem desde a década passada. Essas mudanças se materializaram na inserção da ci�ncia e da tecnologia na produção social, na reprodução ampliada do capital e do trabalho, bem como de­ linearam transformações nas relações de poder no Estado. As diferenças entre público e privado, entre indivíduo e coletividade, os movi­ mentos de socialização da política e do trabalho confundem-se nesse novo projeto capitalista de sociabilidade. Manter a realização de uma hegemonia ativa (sob uma leitura gramsciana), de direção e dominação indissociadas, exige uma complexa disciplina de planejamento e formaçãff de consenso, a fim de destruir paulatina­ mente o nível de consciência atingido pela classe trabalhadora e substituir seus desejos e ações pelo projeto hegemônico de sociabilidade capitalista. Investiga-se sob que condições históricas se consolidou e se aprofundou o . ' domínio e a direção do Fundo Monetário Internac ional e do Banco Mundial como organismos internacionais que representam os interesses do capitalismo no mun­ do inteiro; desde o fim da Segunda Guerra Mundial e, principalmente, a partir dos anos 1 970, no aprofundamento e consolidação do processo de mundialização do capital, mais especificamente na consolidação de um projeto de construção de um novo homem coletivo. 1 Objetivando instituir uma nova linguagem hegemônica nos anos 1 990, orga. nismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial fazem a apologia de uma

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cidadania ativa, dirigindo as ações entre países e indivíduos para ações de interdependência, de colaboração, evocando a imagem de uma sociedade harmo­ niosa, em que instituições sociais, comunidades e cidadãos participariam ativa­ mente de seus destinos e de seu progresso e sucesso no mundo do trabalho a partir de suas habilidades e competências. Saberes que cada um, de forma indivi­ dual, teria a responsabilidade de construir para si próprio, como a aquisição de um capital de conhecimento. ·A função educadora dos organismos internacionais (construindo a

miséria no século XX) A criação dos organismos internacionais atuais acompanhou o movimento de transformação geopolítica do pós-Segunda Guerra Mundial e ámpliou os pode­ res de planejamento e ações de sociabilidade dos países vencedores. A condução do processo de dependência e associação de países ao mundo capitalista foi cui­ dadosamente pensada a partir dos conceitos de planejamento da época, centrali­ zando decisões e consolidando a hegemonia dos Estad·os Unidos no mundo, sob o conceito de interdependência. Enfim, na direção da realização do consenso keynesiano, a interdependência e a multinacionalização estavam garantidas enquanto relação de dependência, para os paí­ ses da América Latina; não só de dependência financeira, mas também econômica, polí­ tica e cultural: na direção da industrialização voltada para o fortalecimento do mercado interno; na conformação e fortalecimento da burocracia estatal; na ampliação das políti­ cas sociais; na tentativa proclamada de realização do pleno emprego. Todos estes aspec­ tos do consenso keynesiano deveriam culminar com o objetivo do pleno emprego e do desenvolvimento econômico, que tanto seriam resultado de reivindicações e lutas traba­ lhistas quanto uma forma de conter estas mesmas.reivindicações, bem como fator funda­ mental de composição dos mercados internos nacionais. (MELO, A., 2004, p. 92)

Nas décadas que se seguiram, o m ovimento de consolidação dessa interdependência se aprofundou ainda m ais, fundamentando a política de "ajuste, por meio de reformas, para o crescimento" (MELO, A., 2004) dos organismos inter­ nacionais e incorporando demandas das classes trabalhadoras (NEVES, 1 994). Esse novo bloco histórico foi conduzido por uma coalizão de empresas· e corporações estadunidenses, em consonância com o "keynesianismo militar glo­ bal [ . . . ] [dos Estados Unidos) " (ARRlGHI, 1 996, p, 3 1 6) e a anuência dos países as­ sociados. Os objetivos macroeconômicos de criação do Banco Mundial e do FMI - como a promoção de uma economia aberta mundial, o encorajamento da cooperação

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monetária, a conversibilidade das moedas, a liquidez internacional, a eliminação de restrições de câmbio, o encorajamento dos investimentos externos diretos e o provimento de garantias para investimentos privados (KIRSHNER, 1 996) - associa­ ram-se à necessidade de recuperar o poder de compra dos assalariados e o merca­ do dos p aíses, envolvendo a condução de suas políticas para o que se denominou, na época, "desenvolvimentismo". As condições da interdependência entre 1 945 e os anos 1 960 envolveram al­ tas somas de empréstimos com objetivos pouco focalizados, concomitantemente ao incentivo à internacionalização das empresas dos Estados Unidos, paulatina­ mente associadas a corporações semelhantes em outros países, fortalecendo ali­ anças em torno das agências criadas em Breton Woods (MELO, A., 2004). Na mes­ ma, época, a montagem do Estado de bem-estar social realizou-se de forma diferendada nos países centrais e periféricos do capitalismo. Para os p,Çiíses centrais, ""' estabelecendo políticas integradas de intervenção social e com um nível m ais ele.... vado de conformação, tanto com relação às entidades representativas dos patrões e trabalhadores quanto com relação à incorporação de demandas das classes po­ pulares, no sentido de consolidar os limites para o arcabouço jurídico-legislativo da democracia formal. Ao mesmo tempo, nos países periféricos, o Estado de bem­ estar social se estruturou a partir de ações seletivas e de políticas não-integradas com as demandas sociais, em uma relação de confronto cada vez mais intenso com a formação de demandas das classes populares. A conformação social ao projeto de interdependência no período fordista/desenvolvimentista nesses países m ais pobres, conduzida e legitimada principalmente pelas ações do Estado em sentido estrito, não permitiu o aprofundamento de ações de colaboração social até meados dos anos 1 980. Assim, a "'revolução' keynesiana, articulada com o próprio fordismo, tomou um sentido de aprofundar o desenvolvimento do m odo de produ­ ção social capitalista, levando-o, gradualmente, a um nível mais complexo de orga­ nização econômica e social, envolvendo em seu movimento histórico as dimen­ sões da ciência, vida e trabalho" (MELO, A., 2004, p. 63). No entanto, a partir dqs anos 1 970, com o acirramento da crise do petróleo, o colapso no equilíbrio da balança de pagamento dos países endividados e o risco de dilação ou mesmo moratória das dívidas, com um risco concomitante de insolvên­ cia dos p aíses doadores, um novo tipo de condução hegemônica internacional se fez necessário, a fim de ga�antir novamente a sobrevivência do capitalismo eternamen­ te em crise. "Um novo tipo de liberalização do capital e do trabalho" (MELO, A., 2004, p. 67) começava a se delinear a partir desse período em todo o munqo. As reformas e ajustes do FMI e do Banco Mundial, impostos aos países deve­ dores desde os anos de 1 970, traziam em suas condicionalidades obrigações tanto ,'.! ' n

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de garantias de pagamento quanto de garantias de desenvolvimento, que se traduzi­ am ha obrigação da realização de políticas sociais compensatórias com o objetivo de diminuir a desigualdade social, sob a forma de "pacotes" para o desenvolvimento com os quais os países anuíam. No entanto, o resultado desses pacotes de ajustes foi claramente nefasto, provocando uma forte reação social nos países em desenvolvi­ mento, que exigiam, por sua vez, novas condições para futuros contratos. Em todo o mundo em desenvolvimento há um padrão consistente e comum: o pacote de reformas do FMI-Banco Mundial constitui um programa coerente de colapso econômico e social. As medidas de austeridade levam à desintegração do Estado, remodela-se a eco­ nomia nacional, a produção para o mercado doméstico é destruída devido ao achata­ mento dos salários reais e redireciona-se a produção nac ional para o mercado mundial. Essas medidas implicam muito mais que a gradual eliminação das indústrias de substitui­ ção de importações: elas destroem todo o tecido da economia domés tica. (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 60)

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Nessa época, mudanças intensas no modo de produção .social capitalista in­ cluíram a incorporação cada vez maior da ciência e da tecnologia na produção, distribuição e consumo de mercadorias; o fortalecimento do capital privado e da chamada esfera pública nos países; e mudanças nas rela'.Ções de trabalho associa­ das a um desemprego crescente que, a partir dos anos 1 980, começou a tornar-se "estrutural", trazendo a necessidade de manter e conformar um exército industrial de reserva com um mínimo de qualificação, cada vez mais necessário para a re­ produção ampliada do capital. N a década de 1 980, aprofundaram-se os processos de liberalização, desregulamentação e privatização de cunho anti-social, ou seja, em detrimento dos interesses da maioria da população dos países. A implantação de medidas macroeconômicas cada vez mais conservadoras e a intensa exploração pelos países capitalistas periféricos fizeram com que ficassem cada vez mais claras e decla­ radas as intenções dos representantes do grande capital mundial na exploração e conformação da classe trabalhadora, estabelecendo um discurso legitimador que, incorporando demandas das classes populares, planeja a condução de ações es­ tratégicas focalizadas e restritivas e, ao mesmo tempo, de incentivo ao pluralismo e à democracia de caráter universalista. O aumento da concentração de renda e a crescente desigualdade social nos países em desenvolvimento começaram a se apresentar como uma fonte de preo­ cupação com o ordenamento social pelo FMI e pelo Banco Mundial, sob uma nova perspectiva. A visão mais ortodoxa do neoliberalismo não permitia o uso de estra­ tégias de consenso que atingissem os novos problemas causados por suas próprias políticas econômi cas. A social-democracia da Terceira Via - assim denominada

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(GIDDENS, 2001 a) por se propor como um terceiro caminho entre o neoliberalismo e a antiga social-democracia - começou a ser adotada intensamente por esses organismos a partir dos anos 1 990. A nova agenda da governação para o século XXI

políti c a de reformas estruturais para os países que fazem p arte da interdependênc ia capitalista, mas estão em suas margens como periféricos, conduzi.da pelo FMI e Banco Mundial em torno das condicionalidades para seus empréstimos e pacotes de ajuda para o desenvolvimento, intensificou-se a partir de. 1 985, interferindo na direção das políticas de desenvolvimento nacionais, esti­ roulando a realização de processos de estabilização, liberalização do comércio, rêforma tributária, reforma financeira, privatização, reforma trabalhista e reforma -"" previdenciária (THORP, 2000). ..... A

Não será fác il criar um Estado mais efetivo para apoiar o desenvolvimento sustentável e a redução da pobreza. Em qualquer situação, muitas pessoas terão interesse em manter o Estado tal como é, mesmo que isso traga maus resultados para o bem-estar de todo o país. Para superar essa oposição, será preciso tempo e esforço político. Mas o relatório mostra que é possível abrir oportunidades para a reforma, com a ajuda de uma seqüência cuidadosamente ordenada de reformas e mecanismos para compensar aqueles que saem perdendo. Mesmo nas piores situações, passos ainda que muito pequenos rumo a um Estado mais efetivo podem ter um grande impacto no bem-estar econômico e social. Ao nos aproximarmos do século XXI, o desafio para o Estado consiste em não se encolher até tomar-se insignificante, nem em dominar os mercados, mas em dar esses pequenos pas­ sos. (BANCO MUNDIAL, 1 997)

Uma nova relação entre o Estado· em seu sentido restrito e a sociedade é ge�tada para esse fim. Na linguagem do Banco Mundial, desde a década de 1 990 novas funções do Estado são necessárias para conduzir um mundo em transforma­ ção. Um novo bloco histórico conservador em defesa do capital é gestado. Os organismos internacionais lançam mão de novas estratégias de ação, tan­ to na condução da política econômica quanto na conformação social dos países. As "novas funções do Estado" envolvem desde a gestão das pequenas reformas para implantar as grandes reformas (BANCO MUNDIAL, 1 997) até a formulação de uma nova conformação social. O Estado aparece para os países "pobres" novamente como gestor de com­ pensações. "Mínimo", mas capaz de garantir tanto a execução de uma nova forma de relacionamento social como a ordem social, preocupação constante tanto mais se se agravam as conseqüênc ias das reformas com relação ao empobrec imento dos países. A presença de "novos atores sociais", na linguag� m do Banco Mundial,

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começa a ser louvada como uma saída para a inefi ciência do Estado que, sempre comparado a um animal grande, pesado, sem agilidade e ineficiente, seria o gran­ de opositor das reformas sociais por vir. Essa presença de novos sujeitos políticos coletivos não só é reconhecida pelo Banco Mundial como são estimuladas cada vez mais as ações de associações de natureza extra-econômica na condução de diversas políticas sociais. Embora desde a década de 1 970 em diversos boletins informativos do Con­ selho Diretivo do FMI e em relatório de 1 972 do Banco Mundial (BANCO MUNDIAL, 1973) já se possa detectar a necessidade da participação social das comunidades na gestão dos programas financiados pelo Banco Mundial e FMI como estratégia para aumentar a eficiência e o retorno social da aplicação do financiamento, nos anos 1 990 essa participação adquire nova natureza e função. No relatório sobre o desenvolvimento mundial do Banco Mundial de 1 997, O Estado num mundo em transformação, uma das preocupações fundamentais é garantir que o Estado dos países periféricos se modifique para apoiar e legitimar as reformas que seriam necessárias para a sobrevivência do próprio capitalismo. Alia­ da ao argumento da inefi ciência do Estado desses países estaria sua incapacidade de lidar com o crescente aumento das demandas sociaisrp or serviços e direitos. O fortalecimento das instituições públicas seria, assim, um ponto focal para essa trans­ formação e sobrevivência. Para garantir esse movimento, seria necessário que o Estado se aproximasse dessas demandas: "Isso significa inserir a voz do povo na formulação de políticas: abrir campo para que indivíduos, organizações do setor privado e outros grupos da sociedade civil expressem as suas opiniões. No cenário apropriado, também pode significar maior descentralização do poder e dos recur­ sos do governo." (BANCO MUNDIAL, 1 997, p. 1 1 7) Dividindo a sociedade entre Estado e atores sociais e estes em cidadãos e comunidade empresarial, o relatório sugere aos países: (i) ampliar a discussão so­ bre a avaliação dos rumos das políti cas e reformas, disponibilizando informações e criando canais de consulta; (ii) encorajar a participação de organizações de usuári­ os e beneficiários, estimulando a ação de organizações locais; (iii) a descentralização da prestação de serviços por etapas, "começando em áreas prioritárias como as da saúde, educação ou infra-estrutura" (BANCO MUNDIAL, 1 997, p. 1 37); (iv) estimu­ lar, em nível local, processos para melhorar a responsabilidade e a competição. Para o Banco Mundial, um Estado mais próximo do povo e a incorporação de necessidades e demandas, assim como sua participação nos processos de plane­ jamento, monitoramento e avaliação de programas, facilitariam a realização e con­ solidação das reformas. -

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Em uma soc iedade em processo intenso de o c identalização, a luta de clas­ ses adquire um aspecto menos homogêneo, no sentido de que tanto os sujeitos políti c os coletivos representantes da burguesia financeira e industrial quanto os trabalhadores expressam seus projetos de sociabilidade em uma multiplicidade de demandas e estratégias de ação para realizar essas demandas. Os organismos internacionais utilizam-se desse aspecto de heterogeneidade da luta de classes atual para reafirmar sua concepção de mundo, que inc lui uma intensa divisão de interesses soc iais e, ao mesmo tempo, a defesa de um pensamento úni co em favor do capital. A presença de sujeitos políticos coletivos de origens de classe diversas como parceiros fundamentais do Estado em sentido estrito é detectada nos documentos do FMI e do Banco Mundial de maneiras as mais diversas. Essa nova forma de parceria procura também a harmonia e a concórdia entre os inte�sses públicos e privados sob movimentos mais sutis de ordenamento e conduÇão ....de interesses sociais, em um processo de conformação social que tem como objetivo final a manutenção dos interesses do capital . As novas funções do Estado exigem um grau cada vez m aior de eficiência e eficácia, de restrições de gastos públicos e controle de salários, mas não do mercado. As ações que deveriam ser priorizadas e eleitas como mais prementes seriam: a garantia da lei e da ordem, a normatização jurídica, a proteção da propriedade privada, a presta­ ção de serviços sociais básicos - como a educação básica e a saúde - e a proteção do meio ambiente. As soluções para a restrição das funções do Estado e a restrição dos gastos públicos devem, de acordo com este documento, envolver a participação de ou­ tros provedores: as empresas, os sindicatos, as famílias e os grupos comunitários, no apoio voluntário aos movimentos de desregulação, descentralização e privatização. Outra fun­ ção básica do Estado seria o aumento de·sua própria credibilidade interna e internacional. (MELO, A., 2004, p. 137)

No entanto, manter países pobres em funcionamento competitivo estável sig­ nifica submetê-los às dificuldades e riscos pelos quais os países ricos não passam. Para cobrir esse tipo de problema, far-se-ia necessária a manutenção de uma buro­ cracia forte, fundamentada em ações do Poder Executivo, centralizadora de deci­ . sões e condutora de interesses sociais. Dessa forma, nos anos 1 990 as ações dos organismos internacionais em defe­ sa do capital mundial se modificam, exigindo uma ação mais "participativa" e "humanizadora" do capitalismo para os países periféricos. Um capitalismo cujo discurso valorizaria tanto a sobrevivência dos irtdivfduos quanto a dos mercados, valorizaria a normalidade democrática, a eficiência da burocracia estatal, uma relação "saudável" de parceria com atores sociais governamentais e não-governa-

76 LÚCIA NEVES (ORG.) - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA mentais, e a proteção ambiental; buscando diminuir as tensões sociais causadas pela austeridade dos ajustes e reformas em mudanças que, afinal, têm com motivo principal manter e ampliar a capacidade dos países de pagamento da dívida externa, de cumprir com os serviços desta dívida, de fornecer mercados funcionando de forma estável e de manter uma ordem social sem sublevações nem possibilidades de mudança desta deci­ são dos países quanto à aceitação de sua própria expropriação. (MELO, A., 2004, p. 1 43)

As características principais das ações dos organismos internacionais nessa época seguiram a agenda da nova social-democracia (GIDDENS, 200 1 a): implanta­ ção de um novo individualismo, o individualismo como um valor moral radical em suas dimensões individual e coletiva, o que não implica necessariamente atomização de ações sociais, mas estímulo a formas despolitizadas de associativismo (MELO, A., 2004) 1; aprofundamento da mundialização "excludente" e dos processos de liberalização, privatização e desregulamentação dos países pobres; e a questão básica da instituição da governança. 1 1 1

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O conceito de governance, governação, governabilidade é espec ialmente caro aos social­ democratas desta nova geração; conceito que abrange tanto o poder institucional-admi­ nistrativo dos governos dos países, os vários níveis de sua burocracia estatal, quanto o poder da formação de demandas e indução de polític as, de1atores que - deste ponto de vista particular - não faziam parte do Estado nem do governo, assim como sindicatos e associações privadas e ONGs, que trabalhariam com ações voluntárias e solidárias. O conceito de governance abrange algumas dimensões centrais na nova relação que a soci­ al-democrac ia quer traçar diretamente entre os indivíduos e grupos sociais que expres­ sam uma representatividade restrita, ou mesmo inexistente. (MELO, A., 2004, p. 1 49)

Essas características incluem também as mudanças na conceituação do que significa "pobreza" em todo o mundo. Dentre tantos documentos destinados à veiculação de informações e aproxi­ mação da "comunidade de países pobres" aos objetivos e ações dos "países doa­ dores", bem como à realização de auto-avaliação dos programas de ajuda para o desenvolvimento, pode-se vislumbrar no documento Desenvolvimento e redução da pobreza (BANCO MUNDIAL, 2004) algumas conseqüências para essa condução . de ações de conformação social desde os anos 1 990. A nova definição de pobreza articula-se diretamente à agenda da Terceira Via, no sentido de que " [ ... ] a pobreza é agora vista como a incapacidade de alcançar os

1 O conceito de individualismo como valor moral radical está revisto e ampliado no capítulo "Pressupostos, princípios e estratégias", neste livro.

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padrões básicos de nutrição, saúde, educação, meio ambiente e participação nas decisões que afetam a vida de pessoas de baixa renda" (BANCO MUNDIAL, 2004, p. 4). Assim, a pobreza e o aumento da desigualdade social acabariam sendo res­ ponsabilidade e culpa não só de países, mas também de indivíduos incapazes de, em um mundo cheio de possibilidades, informar-se e participar. A incorporação dos pobres à "comunidade do desenvolvimento" se daria a partir de programas de incentivo e promoção de oportunidades (programas focalizados para os mais ca­ rentes), facilitação do empoderamento (estimulando a estabilidade de regimes democráticos participativos) e aumento da segurança (de manutenção da proprie­ dade, não necessariamente do emprego). No sentido de recuperar as características principais do que o Banco Mundial denomina "novo consenso pragmático", necessário para se modificarem as ações em defesa do capital em todo o mundo, renovando estratégias de" empréstimos e traçando estratégias de conformação social, eis alguns argument� apresentados "" no documento do Banco Mundial (2004): • Complementaridade de Estados e mercados. Entre o neoliberalismo (que se reconhece nas ações do FMI-Banco Mundial durante os anos de 1 980-1 990), que via o fracasso dos governos, e os planejadores, que viam o fracasso dos mercados, esse documento propõe um consenso entre Estados e mercados no sentido de que a iniciativa privada incorporada no mercado mantenha o crescimento econô­ mico, para que o governo garanta um ambiente propício a investimentos e a estra­ tégias de empoderamento das pessoas, pois "a exclusão de grandes segmentos da sociedade desperdiça recursos potencialmente produtivos e gera o conflito social" (BANCO MUNDIAL, 2004, p. 5). Conc lui-se que a nova e principal função do Estado seria ajudar o mercado e compensar o efeito de excesso de atividades socialmente improdutivas. • As instituições e a governança assumem papel central. Instituições frágeis e governança deficiente seriam prejudi ciais tanto para a inic iativa privada dos ricos, os quais se tornariam inseguros para investir na produção, quanto para a iniciativa privada das pessoas e países pobres, que Sofreriam com o clientelismo e a desregulamentação, com o agravamento de que frágeis instituições indicam a exis­ tência de frágeis direitos de propriedade, fator prejudicial ao próprio desenvolvi­ mento institucional. Esse ponto esclarece nuances do que significa governação para o FMI e o Banco Mundial e consolida a afir mação de que a atuação da esfera do público nos países é considerada uma forma de gerir melhor os interesses dos representantes do grande capital mundial. • Especificidade do país. Para que os países tenham ritmos 1específicos de liberalização, sem pacotes padronizados predefinidos, controlando, de forma es­ pecífica, expansões e vulnerabilidades macroeconômicas.

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Maior integração dos aspectos econômicos e sociais do desenvolvimento. ''A incerteza reduz o investimento e desvia o esforço para a autopreservação e a segurança" (BANCO MUNDIAL, 2004, p. 8), consumindo o capital social dos países pobres. Assim, relações e vínculos entre etnia, gênero e func ionamento econômi­ co, na visão atual do Banco Mundial, têm de ser considerados para a condução de estratégias de conformação. • O aumento da importân cia da eqüidade. O aumento da renda e a redução da pobreza em relação ao crescimento teriam de se dar em paralelo: seriam ne­ cessidades concomitantes à equiparação de oportunidades, no sentido de que " [ ... J a garantia de acesso à educação e aos cuidados de saúde aumenta a produtivida­ de das pessoas de baixa renda, melhorando sua qualidade de vida e, potencial­ · mente, o dinamismo da sociedade. O acesso a oportunidades de trabalho reduz a possibilidade de as pessoas ingressarem na criminalidade." (BANCO MUNDIAL, 2004, p. 9) • Reconhecimento de interdependên cias globais. Nesse item, o documento levanta argumentos que valorizam os processos que fizeram a globalização desde os anos 1 980, enfatizando: (i) as vantagens de liberalização e barateamento dos fluxos de comércio; (ii) a rapidez do aumento de acessibilidade a informações; (iii) a rapidez e intensificação do fluxo do capital em carteira para responder a deman­ das imediatas de movimentação do mercado financeiro. Simultaneamente, ressal­ ta como pontos negativos da globalização a agressão ao meio ambiente e sua des­ truição, bem como a insegurança doméstica e internacional, argumentos que já fazem parte da autocrítica da condução da globalização do Banco Mundial e do FMI desde a década de 1 990 (MELO, A., 2004). O documento, entretanto, não considera a crítica aos resultados alcançados durante as décadas de 1 980-1990 como conseqüência da condução desse projeto de sociabilidade: (i) a luta dos países desenvolvidos contra a proteção ao comércio e à produção dos países pobres; (ii) o corte e a redução dos fluxos de transferência tecnológica para os países pobres (CHESNAIS, 1 996); (iii) o aprofundamento da desi­ gualdade da renda entre os p aíses e o aumento da pobreza para os p aíses pobres. Entre os "malefícios públicos" citados nesse documento, deveriam constar as dificuldades para o cumprimento das obrigações da dívida externa dos países po­ bres e os efeitos nefastos das polític as de liberalização, desregulamentação e privatização no sentido de solapar a capacidade de crescimento e condução sobe­ rana de políticas de conformação social. Novamente, a saúde do ambiente de governação e a ineficiência das institui­ ções públicas e privadas são apontadas como grandes vilãs do processo de mundialização harmoniosa do capital. A articulação da governança torna-se uma •

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preocupação central para os programas de empréstimos e ajuda dos organismos internacionais atuais para o desenvolvimento. O conceito de desenvolvimento abrangente é utilizado para ressaltar a falta de integração e continuidade entre os programas e, principalmente, o papel das parcerias entre as dimensões sociais (pública e privada) e ampliação da ação de sujeitos da sociedade civil, demonstrando uma preocupação específica com a sustentabilidade da dívida, mais do que com seu alívio. A estratégia de redução da pobreza proposta nesse documento é baseada no controle local, na coordenação e harmonização das ações dos países doadores, na contrapartida dos países em programas específicos e focalizados em redução da pobreza, assim como em uma mudança profunda nos objetivos da prestação de ajl,lda aos países periféricos. Para o Banco Mundial, a agenda para a próxima década temJ.Çomo direção c prin ipal a construção de uma comunidade global de cidadãos do mlJt!dO agindo pelo bem da comunidade, impedindo o nacionalismo ou regionalismo causados pela necessidade de segurança e defesas particulares. Para alcançar os objetivos dessa comunidade global, indivíduos e países em desenvolvimento teriam de se empenhar no avanço da governação, combatendo a corrupção, melhorando seu ambiente de investimento, realizando uma prestação de serviços sociais eficiente e eficaz e estimulando o empoderamento de toda a população (BANCO MUNDIAL, 2004, p. 38). Para os p aíses desenvolvidos, a tarefa para as próximas décadas seria a de aprimorar e cumprir seus compromissos de ajuda e abrir seus mercados. Assim, destaca-se novamente que as mudanças nos objetivos do FMI e do Banco Mundial em relação a uma auto-avaliação e resolução do problema da sustentabilidade da dívida dos países em. desenvolvimento baseiam-se tanto na preocupação em garantir uma conformação social ao seu projeto conservador, capitalista, de sociabilidade quanto em garantir a lucratividade de seus investimen­ tos passados e, principalmente, futuros. . ''/,

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preocupação com a necessidade da realização de reformas continua e se aprofunda no século XXI. A questão da sustentabilidade, do "crescimento sustentá­ vel" continua sendo uma questão tanto da realização de reformas macroeconômicas quanto de reformas estruturais para os países periféricos. Assim, o conceito de sustentabilidade aparece no projeto neoliberal da Terceira Via, de forma cada vez m ais explícita, como estabilidade e continuidade de crescimento. A

80 LÚ CIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA O objetivo principal dos programas de empréstimos e ajuda do

FMI e do Ban­ co Mundial, com todas as suas condicionalidades, seria manter seus novos investi­ mentos em crescimento, garantindo lucros futuros em ritmo crescente e acelera­ do. Quando o ritmo do crescimento dos países periféricos desacelerou nos anos 1 990, para o FMI a culpa foi da não-implantação completa da agenda das reformas preconizadas (SINGH, 2005). Como o próprio FMI reconhece, as reformas criam nos países pobres situações de vulnerabilidade doméstica, bem como choques externos, problemas que seriam sanados pelo aprofundamento e implantação com­ pletos das reformas. Para superar as dificuldades com a implantação das reformas, o Banco Mundial e o FMI apontam a necessidade de se encorajar, nos países periféricos, o "fortaleci­ mento de instituições de governança", de apoio à iniciativa privada e à reforma do "mercado de trabalho", a fim de reestruturar seu "crescimento sustentável" de longo prazo, em conjunto com o apoio popular para as reformas (SINGH, 2005). Para o FMI, é a falta de estabilidade dos países na condução da implantação das reformas que acarreta níveis crescentes de desigualdade, provocando o "não­ crescimento econômico" associado ao "não-desenvolvimento social". De modo a realizar uma agenda futura, seriam indisp,çnsáveis, nessa nova fase, mudanças nas "instituições de governança", centralizando decisões e esclarecendo objetivos de formação de consenso, "especialmente porque mudanças constitucio­ nais poderão ser necessárias para implementar mui tas das reformas listadas" (SINGH, 2005), exigindo, também, novas formas de convencimento da população. Seguindo as propostas fundamentais do neoliberalismo da Terceira Via, a inten­ ção mais direta entre os projetos e condução do Estado em seu sentido estrito com as demandas da população desloca o foco das causas da desigualdade social da esfera econômica para a esfera social, responsabilizando as comunidades locais e a própria população pelo não-cumprimento das reformas. Se na população está a cau­ sa dos problemas, na população também poderiam estar suas soluções. Entre os organismos internacionais2 que parti c ipam ativamente desse novo bloco históri c o, conservador, que se constitui desde os anos 1 990 refo rçando o processo de mundialização do capital, o Banco Interamericano de Desenvolvi­ mento (BID) produz, em suas diversas parcerias, documentos de pesquisa e discussão para subsidiar ações de financiamento e ajuda, que sinalizam para a '

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Diálogo lnteramericano em Washington, Corporação para o Desenvolvimento da Pesquisa (Cinde), Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internac ional (Usaid), Centro Internacional de Desenvolvimento de Pesquisa do Canadá (IDRC) e diversas instituições semelhantes em todo o mundo

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operacionalização do processo de desenvolvimento com estabilidade para os países periféricos. Uma das discussões presentes neste início de milênio é sobre as formas de estimular e desenvolver as características do empoderamento em áreas de ação e locais diversos em todo o -mundo. Na série de debates especiais do Programa de Promoção da Reforma Educativa da América Latina (Preal) , um dos textos escolhi­ dos para compor as discussões atuais sobre o tema "desenvolvimento" é o de Bernardo Kliksberg3 (2002), Capital social e cultura: as chaves esquecidas do de­ senvolvimento, que se soma a tantos outros resultantes de observações realizadas, nesse caso, nos países da América Latina e Caribe. Nessa discussão, coloca-se em relevância a necessidade de utilizar o "capital SOfial e cultural" que existiria de forma latente nos países periféricos como uma chà\le, uma alavanca para o desenvolvimento e, conseqüentementq,, o crescimen.... to, a sustentabilidade e a estabilidade. ... Antes.de apresentar ações de empoderamento virtuosas em alguns dos países periféricos, Kliksberg (2002) analisa as maneiras de se escapar das formas con­ vencionais de se pensarem soluções do ponto de vista de um pensamento econô­ mico mais ortodoxo e as "formas básicas de capital" que poderiam contribuir para o processo. Com relação à "crise do pensamento econômico convenc ional" e à relação entre "capital social, cultura e desenvolvimento", uma das preocupações centrais de Kliksberg (2002, p. 9, 1 9) é com uma complexidade crescente de fatores que envolvem as questões do desenvolvimento, ampliando-se as "oportunidades reais dadas aos seres humanos para desenvolverem suas potencialidades" (KLIKSBERG, 2002, p. 1 0). "Complexidade" apresenta-se aqui mais com um sentido de indeterminação, de inespecificidade, de difusão, do que de agregação de fatores diversos; um sentido de desagregação que deveria ser superado com a valorização dos fins principais do de­ senvolvimento que, na visão do autor, realizar-se-iam no aumento da expectativa de vida, na qualidade de vida e no desenvolvimento do potencial das pessoas, assim como na capacidade da realização de atividades livremente escolhidas e valorizadas. A importância do desenvolvimento econômico estaria, assim, vinculada ao empoderamento das pessoas e comunidades para o desenvolvimento social. A heterogeneidade é vista como carência não só de desenvolvimento econômico "

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3 Coordenador-geral da Iniciativa lnteramericana de Capital Social, Ética e Desenvolvimento do Banco lnteramericano de Desenvolvimento e consultor da Unesco.

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como também de decisões acertadas e determinadas para o desenvolvimento so­ cial. Para eliminar essas carências, o autor afirma que as decisões tomadas por meio da participação democrática da população serviriam diretamente para au­ mentar a eqüidade. Uma nova visão do capital humano, para além das determinações econômi­ cas, é apregoada, no sentido da valorização da aquisição de informações, da vida das pessoas, das famílias, bem como do aumento da produtividade das empresas. Estes são fatores que deveriam ser agregados ao capital e ao capital humano para promover a eqüidade: " [ ... ] os diversos componentes invisíveis do funcionamento cotidiano de uma sociedade relacionados com a situação de seu tecido social bá­ sico afetam silenciosamente as possibilidades de crescimento e desenvolvimento" (KLIKSBERG, 2002, p. 1 5). Estes seriam os componentes do capital social a serem agregados ao capi­ tal humano, fundado nas inter-relações cotidianas de indivíduos portadores de escolhas e atitudes em sua coletividade - que refletiria ela mesma as ações dos indivíduos. No sentido de estimular o empoderamento, a relação entre democracia e parti cipação social nas decisões como fator dependente de estabilidade políti ca também aparece como peça importante na composição do desenvolvimento soci­ al. Ações que contribuiriam para a construção de uma sociedade que funcionaria sem resistências, sem confronto social, plena de ações virtuosas em defesa do pro­ jeto de sociabilidade do capital. Agências e organismos internacionais representantes do projeto do neoliberalismo da Terceira Via consideram como fatores essenciais para o aprofundamento da mundialização do capital a harmonia social e uma realização cada vez mais intensa das estratégias de conformação social. A confiança que a po­ pulação depositaria em si mesma se aliaria à confiança que a população teria de construir com relação aos valores dos empresários do capital industrial e financeiro. Essa aquiescência e identificação ampliam a realização do individualismo como va­ lor moral radical em suas dimensões individual e coletiva, tentando encobrir a corre­ lação de forças sociais, contribuindo para distorcer o nível de consciência social e as relações entre as classes sociais fundamentais do próprio capitalismo, tomando o partido do capitalismo internacional, o partido dos países que se consideram como "comunidade do desenvolvimento" e "países doadores" desse desenvolvimento, e que atuam como condutores do desenvolvimento para os países periféricos.

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Dormia a nossa pátria-mãe tão distraída sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações. Chico Buarque, Vai passar

A SOCIEDADE CIVIL COMO ESPAÇO ESTRATÉGICO DE DIFUSÃO DA NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA Lúcia Maria Wanderley Neves

É consensual na literatura brasileira que o país emergiu do período de ditadu­ ra militar (1964-1985) muito mais complexo econômica e político-ideologicamen­ Embora o processo de o c identalização brasileiro ainda pr,,eserve traços de .autorita�ismo1, não resta dúvida de que o processo de soc ializaçã� da participação . política se alargou consideravelmente a partir dos anos de abertura...... Analisando o fenômeno da socialização da partic ipação políti ca, ou seja, a crescente organização de grupos e classes sociais na defesa de seus interesses por meio de aparelhos privados de hegemonia na sociedade civil, Coutinho (1994, p. 77) observa que, [ ... ] com a multiplicação das organizações dos trabalhadores (partidos, sindicatos, etc.), a própria burguesia tem também de criar organismos fora do Estado, a fim de concorrer com os operários. Também ela cria associações profissionais, cria ou hegemoniza parti­ dos de massa que defendem seu projeto de classe. O mesmo ocorre, em seguida, com as camadas médias. [ . ] Já não existem mais, de um lado, indivíduos atomizados, puramente "privados", lutando por seus interesses econômicos imediatos, e, de outro, o Estado e seus aparelhos, como únicos represenrantes dos interesses ditos "públicos". Surge uma complexa rede de organizações de massa, de sujeitos políticos coletivos. ..

Asociedade civil brasileira: do desenvolvimentismo ao neoliberalismo da Terceira Via O Brasil chega ao século XXI, portanto, como uma sociedade de tipo ociden­ tal, ou seja, uma formação social que mantém uma relação equilibrada entre a

1 Coutinho (1 999, p. 2 1 1 -2 1 2), concordando com as indicações de Portanteiro (1 983, p. 1 24), considera o

Brasil como um caso de um "Ocidente" periférico e tardio, o que implica reconhecer ql!e, 11º âmbito nacional, coexistem ainda fortes elementos de autoritarismo, como um Executivo forte em detrimento do Parlamento, o uso de formas de populismo e de mecanismos transformistas e a recorrência à tutela militar. Essa idéia é reforçada nos seguintes termos: "[ ... ) emergimos da ditadura [ ... ) como uma sociedade de tipo oc idental,

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utilização de estratégias coercitivas e diretivas na estruturação do poder. Na verda­ de, a politização da sociedade civil veio ocorrendo paulatinamente, mesmo que de forma não-linear, ao longo do século XX, à medida que o país foi-se constituindo em uma formação urbano-industrial. Tanto o bloco de forças que se veio agregando historicamente em torno do projeto de sociedade - e, portanto, também de sociabilidade burguesa, em cada conjuntura do nosso processo de urbanização e de industrialização - quanto o blo­ co de forças que se agrega em torno das idéias, ideais e práticas do proletariado foram-se constituindo em sujeitos políticos coletivos que passaram a disputar a hegemonia política e cultural, intelectual e moral da sociedade brasileira na apare­ lhagem estatal e na sociedade civil. Em parte devido aos amplos períodos ditatoriais da história republicana bra­ sileira ou mesmo ao fortalecimento da organização social contra a ditadura mili­ tar, no plano empírico, em parte devido à conceituação restrita do Estado capita­ lista, como comitê da burguesia, no plano teóri c o, desenvolveu-se em larga es­ cala no Brasil dos anos 1 980 uma visão di c otômica da relação entre Estado e sociedade civil, na qual a aparelhagem estatal, espaço exclusivamente burguês, era responsável pela perpetuação do poder das classes 'apropriadoras2, enquan­ to a "sociedade civil organizada" , de forma homogênea, constituir-se-ia no espa­ ço de redenção das classes produtoras diretas, supervalorizando seu papel trans­ fo rmador. Sobre o caráter homogêneo da sociedade civil nos anos 1 980, Duriguetto (2003, p. 208) observa que [ . ] teceram-se loas à esfera da sociedade civil como esfera de potencial transformador, autonomista, de representação homogênea dos interesses populares, de aversão a toda forma de representação político-institucional e que se contraporia ao caráter autoritário, repressivo e burocrático do Estado. Nessa direção, tem-se a valorização, em seu interior, das ações espontâneas, fragmentárias, que, no seu conjunto, configurariam uma convi..

bastante peculiarmente ocidental: trata-se, decerto, de um 'Ocidente periférico', como Gramsci, nos Cadernos designava países como a Itália, a Espanha, Portugal e a Grécia de seu tempo, sem excluir a própria França. Em suma: um 'Ocidente' atravessado por 'Orientes'. Sem dúvida, o Brasil não é os Estados Unidos de hoje, não é a União Européia, mas é uma formação sociopolítica parecida com a Itália de 1 930, que Gramsci não hesitou em chamar de 'Ocidente', ainda que 'periférico'." (COUTINHO, 2002, p. 24-25) 2 Wood (2003) utiliza as expressões "classes apropriadoras" e "produtoras diretas" para caracterizar o antagonismo de classes no modo capitalista de produção da existência, salientando, com propriedade, a inversão existente na caracterização liberal de classes produtoras. Os chamados 'produtores', na perspectiva liberal, são, na realidade, os apropriadores da riqueza gerada pelos trabalhadores, estes os produtores diretos do trabalho. do cárcere,

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vênc ia democrática pautada na solidariedade, na identidade e no reconhêcimento mú­ tuo, caracterizações que deram produto a uma visão de democracia eminentemente exercida e vivenciada nos espaços de convivência de uma sociedade civil "popular".

Essa percepção dicotômica, ao mesmo tempo em que vem dificultando a reflexão . e o debate sobre as estratégias a serem adotadas pelas forças reunidas em torno do projeto emancipatório da classe trabalhadora em relação ao Estado em sentido estrito, tem simultaneamente impedido que essas mesmas fo rças apreendam os movimentos de reorganização das várias frações da burguesia bra­ sileira e de seus aliados, com vistas a superar a crise de hegemonia instalada no país nos anos de pós-"milagre econômi co". Em suma, essa visão dic otômica tem impedido uma percepção da soc iedade c ivil também como locus importante de consolidação da hegemonia da burguesia brasileira nos tempos de neoliberalismo, �ôu seja, como espaço privilegiado de consolidação de uma nova pedagogia da hegemonia. Ja, Tal visão restrita da natureza do Estado capitalista e essa visãG..redentora da / sociedade civil têm levado ainda parcela significativa das forças progressistas na atualidade brasileira a supervalorizar o caráter emancipador dos instrumentos da democracia direta e, com isso, aceitar acriticamente as novas estratégias da peda­ gogia da hegemonia, que têm no estimulo à ampliação dos instrumentos da demo. cracia direta, na organização da sociedade civil um vetor importante da legitimação social ao projeto burguês de desenvolvimento e de soc iabilidade p ós-desen­ volvimentismo. A história do Brasil desenvolvimentista (1 930-1 989) foi, ao mesmo tempo, a história da apropriação burguesa do Estado, para induzir o processo de moderniza­ ção capitalista e desenvolver estratégias com vistas a sua legitimação social, quer seja ampliando de forma segment�da os direitos de cidadania, quer seja inviabilizando a organização autônoma da classe trabalhadora3• A história da hegemonia burguesa no Brasil, porém, não se restringe à sua atuação na aparelhagem estatal. Ela se amplia por meio da construção, na socieda­ de civil, de uma diversificada rede de organismos de obtenção do consentimento ativo e/ou passivo do conjunto da sociedade, comprometidos, em níveis diversos, com diferentes projetos societários, e também da atração de outros sujeitos políti­ cos coletivos e de seus aparelhos a esses projetos. Ao longo desse período históri­ co, tais aparelhos privados de hegemonia, culturais e políticos, ao mesmo tempo 3 Coutinho (1999) observa que, no Brasil, as c lasses dominantes preferiram delegar a: função de dominação política ao Estado, ao qual coube a tarefa de "controlar" e, quando necessário, reprimir as classes subalternas.

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em que disputavam a hegemonia na sociedade em seu conjunto, representavam, concomitantemente, interesses das várias frações da classe apropriadora na dispu­ ta pela condução do projeto de desenvolvimento'1• Fontes (2005, p. 6) observa com muita propriedade que [ ... ) a ampliação do Estado, se exigiu a mediação partidária, ocorreu prioritariamente atra­ vés da integração desses setores organizados ao aparelho estatal, através de instâncias especialmente criadas para atender a tais interesses e que se recobriam de um aspecto "técnico" ou de defesa de "interesses nacionais", posto que, incrustadas no Estado, dele emanavam. Organizavam-se os interesses econômicos e uma formatação da institucionalidade do Estado de forma a serem minimamente perturbados por eventuais modificações introduzidas pela expressão eleitoral. Em outros termos, instaurava-se uma separação entre econômico (o mercado e a propriedade) e o alcance da política, desvalo­ rizando-a. Porém, sua efetivação demanda a mediação de formas ativas, que são tam­ bém políticas - organizativas e ligadas ao Estado.

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A história do Brasil desenvolvimentista foi também a história das várias ten­ tativas da classe trabalhadora de se tornar protagonista da sua história, tentativas em boa parte inviabilizadas pelas estratégias burguesas de repressão ostensiva, de cooptação individual e de grupos e até mesmo pelo atendimento molecular de suas demandas, por intermédio de processos de revÓlução passiva5• Apesar disso, contraditoriamente, a modernização capitalista empreendida pelo Estado sob a orientação burguesa ofereceu as pré-condições objetivas para que a classe trabalhadora, no final desse período, com diferentes níveis de consciência políti­ ca, edificasse na sociedade civil uma significativa rede de aparelhos privados de hegemonia (partidos, sindicatos, movimentos sociais, etc.) com vistas a dif�ndir e consolidar uma proposta contra-hegemônica de sociabilidade para a socieda­ de brasileira. O grau de correlação de forças alcançado nos anos finais de 1 980, caracteri­ zado pelo avanço das forças progressistas e pelo refluxo momentâneo das forças de conservação, espelhado em boa parte nos resultados do processo constituinte e da primeira eleição direta para a presidência da República pós-ditadura militar, vem-se alterando consideravelmente a partir dos anos 1990, em um processo ace­ lerado de ampliação da hegemonia burguesa e de retrocesso de uma certa robustez

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Nessa perspectiva, merece destaque o excelente trabalho de pesquisa desenvolvido pela historiadora Sônia Mendonça. Do conjunto de sua obra, destaca-se aqui O ruralismo brasileiro (1888-1931) (MENDONÇA, 1 997), por analisar a natureza da atuação da burguesia na sociedade civil já nos anos iniciais do século XX. 5 Com enfoques diferenciados, Werneck Vianna (1 997) e Coutinho (1 999) tratam dos processos de revolução passiva no Brasil.

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conquistada pelo projeto de sociedade do bloco de forças aglutinado em torno da classe trabalhadora6• De modo geral, pode-se afirmar que a história política do Brasil a partir dos anos 1 990 tem sido a história de recomposição, consolidação e aprofundamento da hegemonia da burguesia brasileira nesse momento de mudanças qualitativas na organização do trabalho e da produção e da reestruturação do Estado no capita­ lismo monopolista internacional e nacional. Essa história tem sido também a histó­ ria de tentativas de segmentos minoritários das forças políticas de esquerda de manterem viva a utopia socialista, em face da adesão cada vez mais significativa de segmentos da classe trabalhadora a postulados e ações neoliberais da Terceira Via, que fundamentam a nova pedagogia da hegemonia. Essa pedagogia que se vem efetivando por intermédio da repolitização das . rci:lações de produção está se consolidando também por meio das "redefinições da relação entre sociedade política e sociedade civil, indicando que o ·�mericanismo" . . que já vinha conformando a maneira de trabalhar e o cotidiano brasile�os começa também a conformar a nossa maneira de fazer política. No Brasil do neoliberalismo da Terceira Via, materializam-se de forma cristalina duas. observações de Antonio Gramsci. A de que a hegemonia, na cultura urba­ . no-industrial, nasce da fábrica e necessita, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia (GRAMSCI, 200 1 , p . 247-248); e a que ressalta o significado e o alcance objetivo d o "fenômeno ame­ ricano", que é também o maior esforço coletivo até agora realizado para criar com rapidez inaudita e com uma consciência de fim jamais vista na história, um tipo :novo de trabalhador e de homem (GRAMSCI, 2001 , p. 266). De fato, em vista da predominância do emprego de estratégias de superex. ploração da força de trabalho em detrimento das estratégias de aumento da sua produtividade, as estratégias fordistas de obtenção do consenso ao trabalho alie­ nado, largamente utilizadas na Europa e nos Estados Unidos da Améric a, mas só de modo incipiente no Brasil naquele período, passam a ser mais largamente adotadas entre nós nos anos de automação flexível . Os segmentos da classe trabalhadora brasileira que se mantêm empregados, além de serem 'contemplados com as aplicações atualizadas dos princípios e dire'.• 6 Analisando a vida polític a do país nos anos iniciais da década de 1 990, Coutinho (1992) observou que, por ' •trás da diversidade das propostas em disputa durante a eleição presidencial, poder-se-ia reconhecer a ;:. presença conflitante de dois projetos principais de organização societária, com vistas a conformar a nova ' ' sociedade ocidental brasileira de acordo com um ou outro dos dois modelos de estrutur�ção do poder e de representação de interesses: o liberal-corporativo, ou neoliberal, e o democrático de massas; o primeiro , aglutinando interesses da burguesia e, o segundo, os interesses da classe trabalhadora.

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trizes psicológicas que embasam as relações humanas no trabalho industrial, vêm sendo convidados, juntamente com seus patrões, harmonicamente, a realizar direta­ mente junto à sociedade civil os denominados "programas de responsabilidade so­ cial", doando aos projetos sociais da empresa horas de seu trabalho. O trabalhador contemporâneo vai paulatinamente abdicando de sua função militante e transmutando-se em voluntário. Ele vai, no seu próprio ambiente de trabalho, transfi­ gurando-se em um cidadão colaborador, que abdica espontaneamente do enfrentamento ao patrão na defesa de seus direitos e das condições de trabalho. Sua indignação frente ao aumento da miséria, do desemprego, da precarização das relações de trabalho e do achatamento da massa salarial não o encaminha à porta do sindicato ou ao partido político, mas à porta do setor de pessoal da empre­ sa, em um gesto que pode assegurar sua manutenção no posto de trabàlho, ou mesmo garantir sua progressão funcional e, ao mesmo tempo, melhorar a situação . da empresa no ranking nacional e internacionaF. Essa ação circunscrita ao espaço diretamente produtivo se constitui, no en­ tanto, em peça importante de um conjunto de estratégias de legitimação burguesa que visam a enfraquecer politicamente a classe trabalhadora no espaço nacional, evitando que o aguçamento das contradições resultantes das condições objetivas da exploração e da expropriação capitalistas nos tempos de pensamento únic o transforme-se em pressupostos objetivos para a organização de um bloco de for­ ças que questione os fundamentos da relação social vigente, consubstanciada no imperialismo hegemônico global (MÉSZÁROS, 2003). As redefinições da relação entre sociedade política e sociedade civil p,ressu­ põem alterações na estruturação da aparelhagem estatalª e mudanças na natureza da sociedade civil, que, juntas, são responsáveis pela redefinição dos marcos do processo brasileiro de ocidentalização - de uma ocidentalização de tipo europeu para uma ocidentalização de tipo americano (COUTINHO, 2000, 2002). Ou seja, .da instauração de um modelo de estruturação do poder que pressupõe ao mesmo tempo a despolitização da política e a repolitização da sociedade civil. Despolitização

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Respondendo à pergunta-título de seu trabalho realizado no lpea - Bondade ou interesse? Como e por que p. 33), sem descartar as motivações humanitárias, conclui que o crescente envolvimento dos empresários com os problemas sociais nos anos 1 990 faz parte das mudanças nas suas estratégias, com o objetivo de atender às novas exigéncias da economia globalizada na qual o país se inseria. Entre as novas estratégias, surge a questão da responsabilidade social como fator de competitividade, ou seja, empresas socialmente ativas promovem sua imagem junto aos consumidores, melhoram o relacionamento com as comunidades vizinhas e percebem ganhos de produtividade de seus trabalhadores. 8 Ver o texto "Reforma da aparelhagem estatal: novas estratégias de legitimação social", neste livro. as empresas atuam na área social, Peliano (2001 ,

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da política, no sentido da inviabilização de projetos de sociedade contestadores das relações capitalistas de produção da existência, limitando as possibilidades de mu­ dança aos marcos de um reformismo político. E repolitização da sociedade civil, no sentido de fortalecimento de práticas que induzam à conciliação de classes. A metamorfose da sociedade civil: sua arquitetura Embora os intelectuais orgânicos do projeto de sociabilidade neoliberal da Terceira Via se esforcem para situar a esfera da sociedade civil como uma esfera . autônoma do ser social, separada do mercado e do Estado, como uma esfera pú­ blica homogênea que deve ser alargada, democratizada, para atender ao interesse .cpmum9, as evidências históricas começam a demonstrar, em primeiro lugar, a . intl.issociabilidade entre economia e política nas práticas dos vários sujeitos políti­ cos coletivos e, em segundo, a reciprocidade entre sociedade políti' A terceira etapa desse projeto de sociabilidade neoliberal da Terc�ira Via iniciou-se com a vitória de Lula da Silva para a Presidência da República no período .de 2003 a 2006. Ela tem por objetivo dar continuidade à execução de reformas estruturais, em especial daquelas que visam à desregulamentação das relações de trabalho (reformas da Previdência, trabalhista e sindic al) e aprofundar o modelo , por meio da colaboração de todos os níveis de governo e da "sociedade civil organizada" (BRASIL, 2004d, p. 36). Vale ressaltar que aqui "sociedade civil organizada" não mais se refere a uma êsfera de potencial transformador, autonomista, de representação homogênea dos interesses populares, de aversão a toda forma de representação polílrco-institucional que se contraporia ao caráter autoritário, repressivo e burocrático do"Estado, con­ forme foi concebida por significativas forças progressistas do cenário político naci­ on.al dos anos 1 980 e que, inclusive, fazem parte do bloco de sustentação política d.o atual governo. Essa "nova" sociedade civil organizada é concebida como uma esfera pública não-estatal de cidadania, como espaço de interação social que, tam­ bém homogeneamente, aglutina esforços na direção do bem comum, do interesse p(1blico (DURIGUETTO, 2003). Essa segunda acepção vem norteando parcela majoritária das ações do Pro­ grama Fome Zero. Com vistas a cuidar da parceria com a sociedade civil organiza­ da, o governo Lula da Silva criou um gabinete de mobilização social do Programa Fome Zero, que, ao lado do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, congregou empresas, denominações religiosas, ONGs, sindicatos e escolas em um mutirão de combate à fome. Dess.e mutirão resultaram: doações em di­ n.heirn e equipamentos na ordem de R$ 25 milhões no perío do de janeiro de 2003 éÍ àbril de 2004; a apresentação de projetos de inclusão social por parte de 96 erri­ presas; a autorização do uso da logomarca do Programa Fome Zero por parte de . 2 1.412 instituições. . A mobilização social criou, ainda, uma rede de mais de 600 educadores po­ /pulares - o Talher -, formados sob a orientação da Fundação Roberto Marinho, que, > em .todos os estados do Brasil, cuida da educação cidadã dos agentes e dos b.enefi ciários do Programa Fome Zero, realizando capacitação, direitos humanos e dvis, para promover o fortalecimento dos movimentos sociais, o ac�mpanhamenJode políticas públicas e a implementação dos programas. O Ministéifo do Desen­ . volvimento Social e Combate à Fome articula, ainda, parcerias para a viabilização
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Amigos da Escola, já que, ao envolver na sua divulgação astros de televisão muito queridos da população, consegue dar credibilidade a essas duas ideologias26• O Amigos da Escola, iniciado em 2000, tem por objetivos, segundo a emisso­ ra, contribuir com a �ducação pública fundamental por meio da mobilização da sociedade para o exercício da responsabilidade social, e fortalecer a formação de ações voluntárias para colaborar com a educação pública. Também de abrangência nacional, o Amigos da Escola já conta com mais de 27 mil escolas cadastradas nas várias regiões do p aís27• A Rede Globo e o Comunidade Solidária, e posteriormente a ONG Comunitas28, tiveram papel relevante na difusão das idéias e práticas do voluntariado no espaço nacional. Ao canalizar a indignação e o sentimento de impotência do homem em ';f!lce das profundas injustiças sociais, o voluntariado tende a evitar que esses impul­ sos se transformem em impulso de constituição de sujeitos gglíticos coletivos contestadores da ordem estabelecida. De forma cristalina, o Portal do Voluntário29 expõe os objetivos individualizantes dessa ação política, nos seguintes termos30: "Ao doarem sua energia e sua generosidade, os voluntários estão respondendo a um impulso humano básico: o desejo de ajudar, de colaborar, de compartir alegri­ as, de aliviar sofrimentos, de melhorar a qualidade da vida em comum. Compaixão e solidariedade, altruísmo e responsabilidade são sentimentos profundamente hu­ manos e são também virtudes cívicas." Dentre as ações desenvolvidas pela Rede Globo, vale destacar, ainda, o Merchandising Social31 • Esse tipo de publicidade é feito por meio de mensagens inseridas na teledramaturgia da emissora. Para que se possa ter umà noção mais exata da dimensão educadora desse tipo de publicidade, vale registrar que de 1 999

26 Disponivel em: . Acesso em: 12 nov. 2004. 27 Disponivel em: . Acesso em: 12 nov. 2004. 28 No âmbito do Programa Voluntários da Comunidade Solidária, foram construidos 36 centros de voluntariado, que já atuam nas principais cidades de 1 7 unidades da Federação. O BNDES, inclusive, destinou R$ 1 ,4 milhão para a ampliação desses centros em 2004. Disponivel em: . Acesso em: 20 jun. 2004 . 29 Sitio de conteúdos, experiências e oportunidades de ação voluntária, lançado em dezembro de 2000 para comemorar o inicio do Ano Internacional do Voluntário (2001 ), consagrado pela ONU, em parceria com a Embraiei, Bank of Boston e IBM. 30 Disponivel em: . Acesso em: 12 nov. 2004. 31 A Rede Globo desenvolve, ainda, a partir de 2002, o projeto Geração da Paz, em parceria com: Fundação Roberto Marinho, Sesc, Viva Rio, Firjan, Fecomércio, Conselho dos Direitos da Crian1ça e do Adolescente do Rio de Janeiro, com vistas à aceleração da aprendizagem, concessão de bolsas e estágios e fortalecimento da auto-estima para reduzir o indice de violênc ia.

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a 2003 foram contabilizadas 1 .468 inserções "socioeducativas" no seriado Malha­ ção, destinado ao público jovem32. Embora as chamadas ações sociais da Rede Globo tenham maior visibilidade social, o papel educativo na conformação de uma nova cultura cívica das Organiza­ ções Globo se estende pelas demais empresas, merecendo destaque, tanto pelo pioneirismo, volume e abrangência das iniciativas, como pelo foco de sua atuação, a FRM. Criada em 1 977, essa fundação vem atuando na preservação e revitalização do patrimônio histórico e cultural, na educação de jovens e adultos (com vistas à sua inclusão social) e em meio ambiente, por meio de projetos de conscientização e valorização33• Com esse objetivo vem desenvolvendo, desde 2000, 35 projetos, dos quais 23 voltados especificamente para a educação:i.1• É intensa a colaboração entre governo e FRM na execução de projetos. De fato, tal colaboração se constitui em uma via de mão dupla: ora o governo financi­ ando ações da fundação, ora a FRM participando de iniciativas governamentais, nas três esferas administrativas35• O projeto Educação à Mesa, por exemplo, nasceu como uma ação do Programa Fome Zero, com o objetivo de capa c itar os mobilizadores sociais do programa, e conta com recursost:dos ministérios do De­ senvolvimento Social e Combate à Fome, Saúde e Educação. O Telecurso 200036, que abrange o ensino fundamental, o ensino médio e a profissionalização na área de Mecânica, interage com o Ministério da Educação e mais 8 ministérios, além de 27 secretarias estaduais de Educação. O Multicurso Ensino Médio de Matemática, seguindo as diretrizes curriculares do MEC e abrangendo mais de 1 00 mil alunos e professores da rede estadual de ensino médio de Goiás, é uma ação conjunta com 32 Em 2002, essa iniciativa recebeu o prêmio Business in lhe Commu�ity, concedido pela primeira vez a uma empresa não-européia ou dos Estados Unidos pelas associações empresariais inglesas (CARTA CAPITAL, p. 26). 33 Disponível em: . Acesso em: 5 nov. 2004. 3'1 São os seguintes os projetos voltados para a educação: Acelerar Jovem, Aprender a Empreender, Casa da Família, Casa da Família de Goiás, Ciranda da Educação, Globo Ciência, Maré do Saber, Meu Negócio é Turismo, Multicurso, Poronga, Prêmio Gestão Escolar, Prêmio Jovem Cientista, Prêmio Jovem Cientista do Futuro, Rocinha do Saber, Série Educação à Mesa, Sexualidade - Prazer em Conhecer, Tá na Roda, Tecendo o Saber, Telecurso 2000, Telecurso Comunidade, Tempo de Acelerar, Tempo de Avançar. Disponível em: . Acesso em: 5 nov. 2004. 35 São os principais "parceiros" da FRM na área de educação: Fiesp, CNI, governo federal, governos estaduais, Sebrae, TV Globo, Schering. Disponível em: . Acesso em: 5 nov. 2004. 36 O Telecurso 2000 é uma iniciativa conjunta da FRM e do Sistema Fiesp, contando, ainda, entre outros colaboradores, com 26 federações de indústrias, 74 universidades e três centrais sindicais: CUT, CGT e Força Sindic al. Disponível em: . Acesso em: 5 nov. 2004.

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o governo desse Estado, a secretaria de Educação e a Fundação Pró-Serrado. O governo federal e a Radiobrás associam-se à Fundação Roberto Marinho também no projeto Roc inha do Saber. O projeto Tá na Roda, que é um programa educativo da TV Futura, é realizado com o governo do Estado de São Paulo e sua Secretaria de Educação. O projeto Poronga, por seu turno, é executado com o governo do estado do Acre. O Prêmio Jovem Cientista é fruto do trabalho conjunto entre a FRM e o CNPq37• Tais evidências contribuem para corroborar, no nível empírico, o conceito gramsciano de Estado ampliado e, simultaneamente, para refutar a tese liberal da despolitização da sociedade civil. Aliás, a repolitização da sociedade civil sob a direção da burguesia fica evidenc iada, ainda, na execução do Telecurso 2000 e ta,J!! bém na programação da TV Futura. O Telecurso 2000, tendo como importante "garoto-propaganda" Vicente de Paulo da Silva (Vicentinho38), ex-presidente da CUT e deputado mderal (PT/SP), constitui-se no maior programa de educação à distância em execuçâ:h no país39• Dez emissoras de televisão transmitem em sua programação as aulas do Telecurso 2000, que segue as orientações curriculares do Ministério da Educação. Além de assistir ao programa em casa, o aluno pode-se dirigir a uma de suas inúmeras telessalas, localizadas em empresas, igrejas, escolas públicas e comunidades es­ palhadas pelo território nacional, sob a regência de orientadores de aprendizagem devidamente capacitados no uso da sua metodologia de ensino e, também, na difusão de noções sobre trabalho e a nova cidadania. A TV Futura, segundo a própria emissora, é um empreendimento conjunto da FRM com CNI, CNN, CNT, Fiesp, Firjan, Fundação Bradesco, Fundação ltaú Social, Fundação Vale do Rio Doce, Instituto Airton Senna, Rede Globo, Schering, Sebrae e Votorantim. Único canal de televisão a desenvolver um trabalho presencial por meio de audiência dirigida, é uma rede formada por mais de 1 O mil instituições, entre escolas, creches, presídios e hospitais, que utilizam seus programas como ferra­ mentas de educação. A TV Futura dispõe de um elenco apreciável de 73 progra­ mas educativos, cujos conteúdos abrangem as alternativas de oportunidades de ingresso e permanência no mercado de trabalho'm e temas formadores da nova

37 Disponlvel em: . Acesso em: 5 nov. 2004. 38 A íoto e o texto de Vicentinho abrem o sitio do Telecurso 2000 na internet. 39 Transmitem atualmente o Telecurso 2000: 1V Futura, 1V Globo, 1VE, 1V Cultura, 1VVida, 1V Minas, Sistema 1 Sest/Senai, Globo Internacional, 1V Ceará e 1V Escola. ''º Pequenas Empresas Grandes Negócios; Vestibular Mercado de Trabalho, Como Abrir seu Próprio Negócio; Juntos Somos Fortes; Feito a Mão e Futura Profissão.

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cultura cívica, como, por exemplo, o programa Ação {série comandada por Serginho Groisman, apresentador de televisão dedicado ao público jovem), que discute a situação educacional do Brasil, sugerindo soluções baseadas, em geral, em ini cia­ tivas privadas; o Brava Gente Brasileira, programa jornalístico que apresenta expe­ riên cias comunitárias bem-sucedidas para solução dos problemas sociais e educa­ cionais que possam ser aproveitadas em outras localidades; Telecurso 2000: A Hora do Brasileiro, série integrante do Telecurso 2000, que tem por objetivo abordar a participação de todos os cidadãos brasileiros nos temas polític o-sociais. Jornal Fu­ tura, telejornal que noticia os acontecimentos na área da educação41 • Os progra­ mas da TV Futura, em especial os relativos às questões de trabalho e de cidadania, são, em boa parte, veic ulados pela Rede Globo, o que amplia consideravelmente seu alcance ético-político. Tal como os meios de comuni c ação de massa, o aparelho escolar também tem tido um papel pedagógico fundamental na conformação do novo homem coletivo requerido pelo neoliberalismo da Terceira Via. Sob essa perspectiva, de modo mais sistemático a partir de 1 995, vêm sendo postas em práti ca reformas cas e políti coeducacionais que alteram substantivamente as funções ;ljetivo. Nesse sentido, primeiramente a Igreja construirá uma pauta de atuação sociopolítica destinada a promover o esvaziamento de um determmado modelo de ação que, predominante na década de 1 970 e em parte dos anos 1 980, havia sido destinado a, preservando e valorizando a maneira particular encontrada pelo catoli­ cismo de interpretar e atuar na realidade, promover um certo compromisso com as classes subalternas da sociedade brasileira. Como prova inconteste de tal fato, vale lembrar a sensível diminuição do es­ paço dentro do aparelho católico, a partir dos anos 1 990, para as ações que anteri­ ormente, por intermédio das Comunidades E clesiais de Base (CEBs), haviam pos­ to uma parte não-negligenciável dos católicos ao lado dos movimentos sociais questionadores do status quo. Um olhar menos atento veria em tal fato uma dimi­ nuição da presença social da Igreja Católica. Essa impressão, contudo, deve ser descartada, apontando para o redire cionamento da ação católica, posto que uma das originalidades principais do conceitQ de "evangelização" consiste precisamen­ te no fato de que, mantendo sua presença junto às classes subalternas em inúme­ ras e variadas ações - sem abrir mão, mas, ao contrário, valorizando como elemen­ to ideológico central a necessidade de ratificação da mensagem católica, promo­ vendo discursos/práticas responsáveis, nessas mesmas ações, pela ênfase em uma visão de mundo defensora da fraternidade, do bem comum, do estímulo ao senti­ do de doação entre os homens -, o sujeito político coletivo católico acaba por con­ tribuir decisivamente para um novo modelo de sociedade.45 41 ·

Ver, a respeito, os seguintes textos constantes deste livro: "Parâmetros curriculares nacionais para a educação básica e a construção de uma nova cidadania" e "Fundação Belgo·Mineira: o empresariado em 1 ação". o1S Ver "Igreja Católica e educação no Brasil de FHC e Lula da Silva: tempos modernos, sonhos antigos", neste livro.

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Esse fato aponta, ainda, para uma nova idéia de política, não mais voltada para o que, sob o olhar católico, havia sido anteriormente definido como compro­ misso com a "libertação", e sim para a ênfase em um compromisso entre as clas­ ses sociais, o qual, estimulando nas classes dominantes o desejo de doação aos pobres, manifesta-se nesses últimos pela convicção do pertencimento à mesma teia de relações sociais responsável não por sua exploração, mas por sua - sempre futura - inclusão social. O saldo das ações católicas durante os anos 1 990 resume-se às ações sociais que, colocando em cena com o apoio maciço da hierarquia da Igreja sujeitos polí­ ti cos como, por exemplo, a Renovação Carismátic a e a Caritas, dentre outros, pro­ curam evangelizar por distintos e complementares caminhos, todos voltados para a construção do consenso em torno do projeto societário neoliberal. O segundo objetivo estará, obviamente, vinculado aos pontos já referidos. A verificação quantitativa da diminuição do contingente de instituições educacio­ nais escolares católicas, compensada, claramente e com folgas, pelo crescimen­ to nas matríc ulas no ensino superior'16, demonstra o quanto a Igreja Católica inter­ pretará de maneira eficaz para seus interesses particulares o processo históri co brasileiro dos anos 1 990. Isso porque, dentre outros0importantes motivos, seu esforço fundamental consistirá em direcionar seu contingente de adeptos, seus recursos financeiros e materiais, enfim, seus meios institucionais para ações so­ ciais que, abrangendo uma parcela da sociedade sensivelmente maior que a que freqüentava seus bancos escolares (insiste-se: descontadas as universidades), conseguem colocar o catolicismo como importante difusor das propostas mais caras ao projeto societário hegemôni c o no Brasil dos anos 1 990. Valeria lembrar, apenas a título de interessante e sintomático exemplo, o apoio veemente, bastan­ te noticiado pela imprensa, da Igreja a projetos sociais por ela impulsionados desde os anos 1 990 até os dias atuais, tais como o Comunidade Solidária, os programas de renda mínima e o Fome Zero. As ações sociais da Igreja mobilizaram em 1 998 um total de 4 1 . 1 00.01 4 pesso­ as consideradas atendidas, das quais 3.957.806 foram contempladas com ações educac ionais informais (creche, alfabetização, supletivos, formação profissional .;.. incluindo cursos de enfermagem, alimentação alternativa, informática, corte e cos­ tura, etc.); 6.962.087 na área da saúde; 9.326.272 com distribuição de alimentos; 12.1 76.647 em assistência social. O restante das atividades vincula-se a distribuição ""

Entre 1 996 e 1 999, houve uma redução de 9,3% das instituições escolares católicas dedicadas à educação básica.

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de roupas, abrigo, produção e geração de renda e distribuição de material de cons­ trução (CENTRO DE ESTATÍSTICA RELIGIOSA E INVESTIGAÇÕES SOCIAIS; ASSO­ CIAÇÃO NACIONAL DE MANTENEDORAS DE ESCOLAS CATÓLICAS, 1 999). Quanto às ações sociais na educação escolar, a Igreja Católica vem concentrando sua atu­ ação na concessão de bolsas de estudo integrais e parciais. As primeiras, com fi­ nanciamento governamental; as últimas, oferecidas com recursos próprios47• Além da igreja, da escola e da mídia - aparelhos privados de hegemonia clás­ sicos na organização da cultura brasileira -, vêm sendo criados e multiplicados novos aparelhos difusores da cultura hegemônica, constituídos diretamente pela burguesia por meio de suas fundações empresariais e de sua organização sindi­ cal'18 e também pelo governo do Estado, por intermédio de subsídios financeiros d.as empresas estatais ou dos próprios organismos da administração direta e, ain­ dià, por organizações não-governamentais. Tais aparelhos privados de hegemonia ,. \Têm financiando atividades esportivas49 e manifestações artística�como a dança, a música, o artesanato, com vistas a favorecer a coesão social e mefl'lorar a auto­ estima dos c idadãos brasileiros, em especial daqueles que habitam as periferias dos grandes centros urbanos50• Segundo pesquisa da revista Carta Capital (2004) que divulga o ranking das empresas e bancos socialmente responsáveis51 , destacam-se, no segmento cultu.

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47 Embora defasados, os dados oferecem uma idéia do nível de intervenção da Igreja na formação de intelectuais de diferentes níveis. As bolsas de estudo foram distribuídas da seguinte forma: 127.528 bolsas integrais e 1 67 .227 bolsas parciais para a educação básica em 1 996, e 25.082 bolsas (integrais e parciais) na educação superior em 1 995. Vale ressaltar, ainda, que 1 9.171 alunos foram contemplados com o crédito educativo nesse mesmo ano (CENTRO D E ESTATÍSTICA RELIGIOSA E INVESTIGAÇÕES SOCIAIS; ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MANTENEDORAS DE ESCOLAS CATÓLICAS, 1 997). 4.' A partir dos anos 1 990, os organismos assiste"nciais do Sistema S, em especial o Sesc e o Sesi, refuncionalizados, ampliaram seu papel educador, estendendo o raio de sua influéncia dos familiares dos · funcionários da indústria e do comércio para o conjunto da população urbana. Ver o texto "Estratégias burguesas de obtenção do consenso nos anos de neoliberalismo da Terceira Via", neste livro. 49 Ver o texto "Vila Olímpica da Maré e as políticas públicas de esporte em favelas no Rio de Janeiro", neste .· livro. 50 O projeto Dança-Comunidade Sesc-SP materializa com grande propriedade esse tipo de intervenção ético­ pol!tica da burguesia brasileira. Associando-se à Escola de Reeducação do Movimento, à Petrobras, à Votorantim e a sete ONGs paulistas, o Sesc São Paulo e o Sesc Rio financiaram e apresentaram em diversas cidades paulistas e no Rio de Janeiro, em 2004, o belo espetáculo Samwaad ...: Rua do Encontro, representado por 54 jovens de diversas "comunidades" de São Paulo, em um trabalho que funde elementos rítmicos e expressivos das culturas indiana e brasileira. Esse projeto, que se autodenomina artístico e social, pretende, segundo folder do espetáculo, contribuir para a construção da auto-estima dos segmentos excluídos da . sociedade e, também, para a construção de um todo social harmônico, tendo como base o respeito às diferenças. Ou seja, pretende difundir os valores caros ao projeto hegemônico de sociabilidade. 5 1 Ocupam os dez primeiros lugares, respectivamente: Natura, Petrobras, Banco do Brasil; Nêstlé/Rede Globo/ Vale do Rio Doce (empatados), Bradesco, ltaú, Pão de Açúcar, Caixa Econômica Federal, Votorantim e Belgo­ Mineira. ·

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ral, em primeiro lugar a Petrobras; em segundo, a Rede Globo; em terceiro, o Ban­ co do Brasil; em quarto, o Banco ltaú. Já no ranking dos esportes, conquistaram do primeiro ao quarto lugares, respectivamente: Banco do Brasil, Petrobras, Fiat, Pão de Açúcar. Vale registrar, ainda, o ranking das empresas que atuam na área de lazer e recreação. Conquistaram, do primeiro ao quarto lugares, respectivamente: Petrobras, Banco do Brasil, Coca-Cola e Rede Globo. Esse ranking empresarial per­ mite vislumbrar a forte presença das empresas estatais e do capital financeiro na execução das estratégias educadoras do Estado, que tomam a cultura, o lazer e o esporte como expressão.

Repolitizando a organização da classe trabalhadora A importância atribuída pelos formuladores e difusores dos postulados do neoliberalismo ao chamado "terceiro setor" acaba por minimizar a importância de outra estratégia significativa da pedagogia da hegemonia, a saber, os esforços bem­ sucedidos da burguesia na cooptação de lideranças e de fração substantiva das instâncias globalizadoras da classe trabalhadora, comprometidas com a constru­ ção do modo socialista de produção da existência, no contexto dos anos de abertu­ ra política, em especial dos partidos políti cos e do novorsihdicalismo. Depois de duas décadas de um bipartidarismo imposto pela ditadura militar, os anos da abertura política foram palc o da instalação de um pluripartidarismo próprio de uma conjuntura caracterizada pela disputa acirrada pela direção cultu­ ral e política, inserida no contexto de crise hegemônica da burguesia e crescimen­ to do consenso em torno de um projeto de sociedade democrático de massas diri­ gido pela organização autônoma da classe trabalhadora. Mais de 70 partidos políticos nacionais foram constituídos em menos de 15 anos, embora nem todos tenham sobrevivido nos anos de neoliberalismo. Alguns não tiveram seu registro definitivo, outros se fundiram ou foram incorporados por outras agremiações partidárias. Essa pluralidade foi concretamente expressa na composição polític o-partidária da eleição presidencial pós-constitucional de 1 989. Participaram do primeiro turno 24 partidos políticos. Dentre estes, destacaram-se: Partido da Reconstrução Nacional (PRN), com 30,48% dos votos válidos; Partido dos Trabalhadores (PT)/Partido Comunista do Brasil (PCdoB)/Partido Socialista Bra­ sileiro (PSB), com 1 7, 1 9%; Partido Democrátic o Trabalhista (PDT), com 1 6,5 1 %; Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), com 1 1 ,52%; Partido Democrático Social (PDS), com 8,85%; Partido Liberal (PL), com 4,84%; Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com 4,74%; Partido Comunista Brasileiro (PCB), com 1 , 1 4%; Partido da Frente Liberal (PFL), com 0,89%; e Partido Trabalhista Brasi­ leiro (PTB), com 0,56% (SANTOS, 1990). Esses partidos se agruparam em três gran-

1 1 1 li -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

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des blocos de forças: um conservador, constituído por PRN, PL, PDS, PFL e PTB; um de centro e de centro-esquerda, formado por PMDB, PSDB e PDT; e um de esquerda, composto por PT, PSB, PCdoB e PCB (NEVES, 2002, p. 1 04). À medida que a crise de hegemonia burguesa foi sendo superada - como expressaram os arranjos político-partidários das sucessivas vitórias eleitorais majo­ ritárias e proporcionais em âmbito federal e até mesmo estadual nos anos 1 990 -, a fragmentação da representação político-partidária foi sendo progressivamente su­ perada. Mesmo assim, até o ano 2000, 25 diferentes partidos políticos conseguiram eleger pelo menos um deputado federal, um senador ou um governador. A eleição de 1990 representou o ponto culminante da fragmentação partidária no Brasil: nada menos do que 1 9 partidos fizeram-se representar no Congresso. Já em 1 998, eram sete os partidos de maior expressão eleitoral: o PMDB e o PFL como os maiores, s€� uidos por PSDB, PPB, PT, PDT e PTB, caracterizados como de pQrte médio. Em ... seu conjunto, esses partidos foram responsáveis, na legislatura de t 99� por 9 1 , 1 % das cadeiras da Câmara dos Deputados e por 96,3% do Senado Federal (SCHMITT, 2000, p. 82). A década de 1 990 protagonizou, além de uma redefinição da estrutura e da dinâmica eleitorais, profundas redefinições político-ideológi cas das práticas parti­ dárias à medida que a burguesia consolidava sua hegemonia nos marcos de um projeto neoliberal de sociedade. Coutinho (2000, p. 98) observou ser condição de êxito do projeto neoliberal ' de estruturação do poder a preponderância de partidos não-ideológicos, de base soda! heterogênea, constituídos como cartéis de diferentes lobbies. A julgar pelo comportamento dos representantes partidários no Congresso Nacional na atual legislatura, essa pré-condição já se materializa na dinâmica das relações de poder . dos anos iniciais deste século. Da eleição majoritária de 2002 até 26 de novembro de 2004, os parlamentares já haviam procedido a 1 79 mudanças partidárias na Câ­ mara de Deputados. Entre a eleição, no final de 2002, e a posse, em janeiro de 2003, todas as bancadas já se haviam alterado, para mais ou para menos, com exceção da bancada do PCdoB e do Prona52• Embora a "dança das cadeiras" não se configure em especificidade do modelo neoliberal de estruturação do poder no Brasil, ela se constituiu em peça fundamental para a repolitização da política no século que se ini cia. A maioria dos partidos políticos que se constituíram nos anos de abertura po­ lítica sofreu alterações significativas em seus propósitos políti co-ideológicos na úl.

·52 Dispon(vel em: . Acesso em: 26 nov. 2004.

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lima década do século XX53• Merecem destaque as trajetórias do PSDB e do PT, por terem exercido nesse período o papel de aglutinadores das forças políti cas em torno de dois projetos de sociedade que se contrapuseram em três embates políti­ cos consecutivos: as eleições presidenciais de 1 994, 1 998 e 2002 . O PSDB surgiu em 1 988, durante os trabalhos da Assembléia Constituinte, como uma dissidência do PMDB. Propôs-se inicialmente a difundir no Brasil as postulações da social-democracia clássica, mas ao longo da década de 1 990 atualizou seu dis­ curso, acolhendo os postulados do neoliberalismo da Terceira Via, elegendo e ree­ legendo com essas postulações, em 1 994 e 1 998, Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da República, com 54,3% e 53, 1 % dos votos válidos, respectivamen­ te. Concorreu novamente, em 2002, contra as forças políticas aglutinadas em torno do PT, perdendo a eleição. Coube ao PSDB a tarefa políti ca de reaglutinação da burguesia em crise nos anos de abertura políti ca. A aproximação do PSDB com o neoliberalismo já se fez. sentir ainda no governo Collor de Mello (1 990-1992), quando ocupou pastas no pri­ meiro escalão do governo federal. Nessa conjuntura, ainda possuía uma represen­ tação pequena no Congresso (38 deputados e 1 senador) e ainda não tinha con­ quistado nenhum governo estadual (SCHMITT, 2000,rB· 79-81). Já no governo Itamar. Franco, além de participar de duas importantes pastas ministeriais - Relações Ex-

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Se em 1 989 o PMDB integrava o bloco de forças políticas de centro e de centro·esquerda, ao longo dos anos 1 990 foi-se tornando cada vez mais conservador, passando a gravitar fisiologicamente em torno das diferentes forças políticas eleitas para comandar o país. Já o PFL, que representava nos anos de abertura frações da oligarquia agrária, durante os anos 1990 coligou-se ao PSDB e assumiu as diretrizes modernizantes do projeto neoliberal da Terceira Via. No governo Lula da Silva, apresenta-se como oposição. O PTB, que nos anos 1 980 disputava a direção do trabalhismo brasileiro com o PDT, apresentou candidatura própria na eleição presidencial de 1989 e integrou a coligação que por duas vezes elegeu Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da República. Curiosamente, . passou a fazer parte da base aliada ao governo Lula da Silva a partir de 2002. O PL, por sua vez, após lançar também candidatura própria na eleição presidencial de 1 989, não se associou formalmente a nenhuma das forças antagonistas na eleição de 1 994, mas tornou-se um aliado eventual do primeiro governo FHC, apoiando, no entanto, a candidatura Ciro Gomes (PPS) na eleição presidencial de 1 998. Em 2004, coligou·se ao PT, assumindo a Vice-Presidência da República. O PDT, por sua vez, apresentou por duas vezes candidatura própria para a Presidência da República, em 1 989 e 1 994. Na eleição de 1998, coligou-se com o PT e na última eleição presidencial voltou a se aliar às forças políticas aglutinadas em torno do PT. O PPB, surgido em 1 980 como sucessor da antiga Arena, apresentou candidatura própria nas eleições presidenciais de 1 980 e 1 994 e passou a integrar a coligação que elegeu Fernando Henrique Cardoso para um segundo governo, em 1 998. Parece ter acompanhado essa posição política na última eleição presidencial. Nos anos 1990, surgiram duas novas forças político-partidárias: o PPS, sucessor histórico do PCB, que recebeu um novo vigor político com a apresentação de candidatura própria na eleição presidencial de 1 998, está atualmente participando do governo Lula da Silva. O PCdoB e o PSB, por sua vez, mantiveram-se fiéis ao PT em todos os pleitos presidenciais desde 1 989; atualmente, integram o governo pelista. Já o PRN, que elegeu Collor de Mello em 1 989, teve seu registro cancelado pelo TSE em 1999. Dois pequenos partidos, Prona e PV, tiveram trajetórias distintas. O primeiro optou por lançar. candidatura própria em todos os embates eleitorais, obtendo resultados inexpressivos; o segundo ora coligou com o PT, ora lançou candidatura própria ao longo da década (SCHMITT, 2000).

1 13 II -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL T, por ts em políti-

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teriores e Economia -, o PSDB, na pessoa de Fernando Henrique Cardoso, um dos principais intelectuais do partido, conquistou, após o sucesso político-ideológico do Plano Real, a adesão da burguesia em seu conjunto à sua candidatura presiden­ cial. A candidatura de Fernando Henrique Cardoso atraiu também boa parte da intelectualidade brasileira e de setores das camadas médias seduzidas pelo cará­ ter modernizante de suas propostas . O PSDB não só fez o presidente da República em dois governos consecutivos como ampliou consideravelmente sua presença no Congresso e junto aos gover­ nos estaduais. Em 1 998, atingiu o número de 1 99 deputados e 1 4 senadores e con­ seguiu eleger 1 7 governadores (SCHMITT, 2000, p. 79-81). Assim, progressivamen­ te, com as forças políticas que o apoiaram, consolidou a hegemonia política e cul­ tural do projeto neoliberal de organização societária (SCHMITT, 2000). Embora te­ nha perdido a eleição presidencial de 2002, foi o partido que nas eleições munici" pais de 2004 obteve o maior número de votos, apresentando-llm crescimento de 39% em relação aos votos das eleições municipais anteriores. Con�eguiu eleger os prefeitos das cidades de São Paulo e de Porto Alegre, ambas redutos políticos do PT. Mesmo reduzindo em 1 2% o número de prefeitos em relação às eleições muni­ cipais anteriores, assumiu o posto de segundo maior partido em número de prefei­ tos eleitos (87 1 prefeituras), perdendo apenas para o PMDB, que fez 1 .057 prefeitu­ ras, reafir mando sua liderança política no cenário nacional. O PT, por sua vez, foi fundado em 1 980, a partir da conjugação de três movi­ mentos simultâneos: o fortalecimento das greves dos metalúrgicos do ABC Paulista, como expressão da reorganização da dasse trabalhadora nos anos finais da dita­ dura militar; o desenvolvimento da Teologia da Libertação no âmbito da Igreja Ca.: tólica; bem como o retorno à vida política de intelectuais e de correntes de opinião, como resultado da anistia de 1 979. Nàsceu como uma alternativa política que com­ binou soci alismo com democracia, em contraposição a dois modelos organizativos . dos partidos populares no país - o modelo comunista e o modelo do trabalhismo (FONTES, 2005) - e como uma opção à esquerda do Movimento Democrático Bra­ sileiro (MDB), partido criado sob a ditadura que pouco a pouco se foi transforman­ d . o em uma frente oposicionista ao regime. O PT registrou um crescimento eleito­ ral constante. Passou de 8 deputados federais e nenhum senador em 1 982 para 60 deputados e 7 senadores em 1 998 (COUTINHO, 2000), elegendo nesse mesmo anc 5 governadores. Mesmo perdendo as eleições presidenciais de 1 989, 1 994 e 1 998, teve seu p ercentual de votos acrescido a cada disputa: 1 7,2% em 1 989, 27% em .1994 e 31, 7% em 1 998. Em 2002 finalmente conseguiu eleger Lula da Silva ao cargc 1 de presidente do país, com cerca de 53 milhões de votos no segundo turno aglutinando amplas forças do cenário político nacional. .

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sucesso eleitoral conquistado, no entanto, efetivou-se sacrificando a tarefa c históri a que lhe coube nos anos pós-ditadura de aglutinar no cenário nacional as forças políticas que se dispunham a consolidar no Brasil um projeto societário con­ .tra-hegemônico. Embora se tenha constituído como referência para a esquerda da Amériea Latina e interlocutor privilegiado da esquerda européia no Brasil (COUTINHO, 2000), foram-se fortalecendo no seu interior durante a década de 1990 tendências políticas mais sintonizadas com a nova social-democracia ou nova es­ querda, culminando com a incorporação desses postulados à resolução política aprovada no Congresso do PT realizado em Belo Horizonte em novembro de 1999. Esse profundo processo de correção de rumos, sob a direção da corrente política Articulação, iniciou-se a partir do momento em que o PT não se contrapôs à nova agenda política da classe dominante em nível internacional e nacional, que incor­ porava, subalternizando, os setores populares em uma agenda de cunho democrá­ tico-filantrópico a qual substituiu o tema da igualdade pelo tema da pobreza como foco a partir dos anos 1 990 (COUTINHO, 2000). Nesse processo, o PT foi abandonando a estratégia política dos seus dez primeiros anos, baseada na precedência da organização de classe sobre a repre­ sentação eleitoral, e deslocou seu eixo de atuação,�átribuindo centralidade ao âmbito eleitoral e afastando-se, com isso, do terreno no qual sua existênc ia en­ contrava originalmente sentido: o da organização de classe (FONTES, 2005). A partir de então, não sem contradições internas, o PT associou-se a frações da burguesia e de seus aliados na defesa do capitalismo com justiça social, arrastan­ do em torno de si várias correntes políticas comprometidas, na história recente, com o socialismo (PSB, PCdoB e PPS). Com essa ideologia e esse programa, o PT disputou e venceu a eleição presidencial de 2002, embora, devido a sua histó­ ria de lutas em defesa dos interesses da classe trabalhadora, amplos segmentos populacionais e grupos políticos não se tenham dado conta dessa metamorfose recente no decorrer da campanha eleitoral para a Presidênc ia da República. O PT, como j á advertia Coutinho (2000, p. 1 1 1 - 1 1 8), chega ao governo, mas não governa de acordo com um programa verdadeiramente alternativo, estruturado de modo a construir o socialismo, mas por meio de uma polític a de alianças que o levou a descaracteri�ar seu programa, coletivamente construído ao longo dos anos 1 980 e boa parte dos anos 19905'1• O

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Leher (2004b) analisa o primeiro ano do governo Lula da Silva, reconstruindo o processo eleitoral, a composição da equipe do governo, os rumos da política macroeconômica do governo, seus encaminhamentos políticos e as contradições, criticas e enfrentamentos.

1 15 1 - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

Dois anos depois de governar com um amplo arco de forças que inclui desde representantes de frações do capital até, minoritariamente, forças da esquerda tra­ dicional e dissidente, o PT não mais se apresenta como um partido construtor e · organizador da contra-hegemonia, mas como uma força política reformista que disputa a hegemonia brasileira nos marcos estritos do capitalismo55• De acordo com a trajetória políti c o-ideológica de PT e PSDB, pode-se depreender que na atualidade essas forças político-partidárias não mais representam ideologias antagônicas no cenário político nacional; ao contrário, disputam entre si a direção do projeto neoliberal da Terceira Via56• o primeiro, dando maior ênfase, por meio de uma ideologia nacionalista, ao capital produtivo, em especial o setor exportador, e o segundo, cultuando o processo de internacionalização eco' t]ômica e político-social, sob a direção do capital financeiro. Essa nova tendência !' ; ,:) ' vem sendo constatada por analistas polític os a partir dos result�f!os das eleições municipais de 2004. ..., Werneck Vianna e Denis Lerrer Rosenfield (2004) respondem, o primeiro afir­ m . ativamente e o segundo negativamente, à pergunta da Folha de S. Paulo: "O Bra­ sil caminha para um bipartidarismo?" Fernando Henrique Cardoso (2004), em en­ . . trevista concedida a Cristovam Buarque, senador pelista e ex-ministro da Educa­ ção do governo Lula da Silva, questionado sobre a possibilidade de aliança entre os dois partidos, responde: ''Acho que sim. Porque a Juta é política, não ideológica. [ .. . ] Não discutimos nem disputamos ideologia. É poder, é quem comanda." Se confirmada a tendência das últimas eleições municipais, pode-se assegu­ rar que, no plano partidário, já se vem efetivando um processo de repolitização da política, no sentido de consolidar no país o "americanismo" nessa nova dimensão. Essa repolitização da política partidária parece evidenc iar, simultaneamente, o es­ .tabelecimento de uma nova relação entre classes dominadas e Estado, a vitória . das estratégias consensuais da burguesia brasileira e, ainda, a perda do poder polí­ . tico das forças contra-hegemônicas na atual conjuntura. •

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Nas eleições municipais de 2004, PT e PSDB obtiveram primeira e segunda colocação, respectivamente, · na disputa dos votos das cidades com mais de 1 50 mil eleitores. O PT, partido do governo, elegeu 23 prefeitos e o PSDB, 1 7. No cômputo geral, o PSDB (cerca de 26 milhões) e o PT (aproximadamente 1 7 milhões) foram os partidos que conquistaram o maior número de votos. Vale ressaltar que, enquanto o PSDB ampliou em 39% o número de votos nessa eleição em relação às eleições de 2000, o PT reduziu esse número em 21% (BR{GIDO; CAMAROTTI; GALHARDO, 2004). SG Já em 2003, essa nova tendência foi registrada em um jornal (GALHARDO, 2003), erp matéria que discute, à partir de Francisco de Oliveira e Arthur Giannoti, intelectuais ligados respectivamente a pelistas e tucanos, a aproximação ideológica dos dois partidos. A grande imprensa tem registrado também a retirada individual ou coletiva de intelectuais de esquerda dos quadros do PT.

1 16 LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

Esse movimento de desconstrução da estratégia contra-hegemônica petista espalha-se, de modo específico, pela organização sindical dos trabalhadores, moti· vado por pressupostos objetivos (mudanças na divisão internacional do trabalho, alterações no conteúdo e nas relações de trabalho, etc.) e por pressupostos subje­ tivos, em especial o crescimento da burocracia partidária e sindical e a predomi­ nância da corrente política Articulação Sindical - difusora das teses e propostas reformistas da nova esquerda - na definição dos rumos da organização da classe trabalhadora na atualidade. A repolitização do sindicalismo dos trabalhadores veio se processando a par­ tir dos anos 1 990, em especial por meio de dois movimentos simultâneos: a forma­ ção de uma base sindical para legitimação das idéias, ideais e práticas neoliberais e a redefinição do conteúdo e das práticas da Central Única dos Trabalhadores (CUT), central sindical comprometida na história recente com a construção de um projeto de sociedade contra-hegemônico no país. Os anos de abertura política, no âmbito sindical das lutas populares, caracte­ rizaram-se pela emergência de um novo sindicalismo que tinha como horizonte, em um plano específico, romper com a estrutura sindical corporativa criada ainda nos anos de Estado Novo e derrotar a ditadura militari e, em um plano geral, a contraposição às relações sociais vigentes. Falar de sindicalismo autônomo nos anos 1 980 é citar a CUT57, que emergiu das articulações do sindicalismo brasileiro combativo em 1 983 (SOUZA, 2002, p. 1 30-1 41), anos finais da ditadura militar58• A CUT, nos dias atuais a maior organização sindical do país e da América Latina, manteve um ritmo expressivo de crescimento de sindicatos filiados durante os anos de neoliberalismo. De 1 .668 sindicatos filiados em 1 992, passou para 2.834 em 2001, o que corresponde a uma expansão de 70% do número de filiados (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSITICA, 2002).

57 Embora não tenha sido a única organização sindical criada nos anos de abertura política, a CUT foi a primeira central sindical brasileira (fundada em agosto de 1 983) e a mais expressiva organização sindical do período. Nesse mesmo ano, em novembro, deu-se a criação da Conclat. A partir de dissidênc ias dessa última, surgiram a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), em novembro de 1 986, e a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), entre o final de 1989 e o início de 1 990. A Confederação Geral dos Trabalhadores é atualmente denominada Central Geral dos Trabalhadores Brasileiros (CGTB). Em setembro de 1 985, nasceu também a União Sindical Independente (US!). A USI e a Central Geral dos Trabalhadores foram extintas no decorrer dos anos 1 990. 58 Analisando a composição de forças políticas no processo de c riação da CUT, Antunes (1995, p. 30) destaca a participação de um sindicalismo independente sem militância política, anterior ao qual se somaram amplos contingentes da esquerda católica, sob o influxo da Teologia da Libertação e da op,ção preferencial pelos pobres, e tendências socialistas e comunistas várias, dissidentes da esquerda tradicional ou vinculadas às postulações de Leon Trotski.

1 17 11 -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

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Já nos primeiros anos de implantação do novo projeto de sociedade pela bur­ guesia, mais precisamente em 1 99 1 , foi criada por um segmento da direita sindical a Força Sindical (FS), representante do denominado sindicalismo de resultados, com vistas a difundir no meio sindi cal os postulados neoliberais. Começando timi­ damente com apenas 294 sindicatos filiados, a FS ampliou sua base de filiados em 526% ao longo dos anos de neoliberalismo, chegando a filiar 1 .839 sindicatos em 2001 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2002). A relação estreita entre FS e neoliberalismo pode ser aferida pelo conteúdo e pela forma de elaboração da proposta dessa central para o desenvolvimento brasileiro e para a organização sindical e pelo montante de recursos financeiros destinados pelos go­ vernos neoliberais à sua estruturação. A proposta da Força Sindical encontra-se consubstanciada no livro Um pro­ ;'t!to para o Brasil: a proposta da Força Sindical (FORÇA SINDIÇAL, 1 993). Sua coordenação técnica foi entregue ao professor Antônio Kandir;que assumiu o posto de ministro do Planejamento do governo Collor. A proposta define um novo modelo de organização sindical pautado "na retirada definitiva da interferênc ia do Estado nas relações entre capital e trabalho" e na instauração "dos moldes e instrumentos da livre negociação". Ainda, "a dinamização das relações entre as partes deverá se dar a partir da reformulação do conjunto de regras, formais e informais, que ordenam as relações entre os trabalhadores e os empresários, as­ sim como entre as organizações desses atores sociais e entre essas organizações e o Estado" (FORÇA SINDICAL, 1 993, p. 107-1 08). Nessa perspectiva, a FS propõe a prevalência da livre organização sindical, nos moldes da convenção OIT, sendo vedadas a intervenção e a interveniência do Poder Público em sua organização; a criação de novos mecanismos, tais como contrato coletivo de trabalho, parti cipa­ ção dos trabalhadores na produtividadé e nos lucros das empresas, contrato de gestão no setor público e revisão das responsabilidades no caso de greve, partic i­ pação definitiva de trabalhadores na gestão de instituições e programas públicos, particularmente no que diz respeito à formação, qualificação e rec iclagem pro­ fissional, polític a de capacitação tecnológic a e política social; revisão da figura da · · càrteira de trabalho e da atual CLT; reformulação da Justiça classista (FORÇA SIN­ DICAL, 1 993, p . 1 08). Algumas dessas propostas incluem-se nos projetos de refor­ ma sindical e trabalhista apresentados à sociedade pelo governo Lula da Silva. A FS é, nos dias atuais, a segunda expressão polític a do movimento sindical dos trabalhadores. Ao longo dos anos 1 990 foram, ainda, criadas três novas C\'!ntrais sindicais que, embora pouco representativas, reforçam as idéias e práticas de um sindicalismo · conservador, contribuindo para o rebaixamento do nível das demandas dos traba-

1 18 LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

lhadores, atuando no nível mais elementar de consciência política coletiva, ou seja, no nível da defesa de interesses específicos, estritamente corporativos59• O aumento no número de centrais e de sindicatos a elas filiados na década de 1 990 no país é mais uma importante confirmação empírica do aprofundamento do processo de ocidentalização brasileira nos anos de neoliberalismo. Embora essas informações sobre o aumento de volume dos organismos do sindicalismo dos trabalhadores ofereçam indicações do aprofundamento de nos­ so processo de socialização da participação política, elas não oferecem uma com­ provação mais efetiva da natureza do processo. É certo que o fato de a CUT ter passado a disputar a direção política da classe trabalhadora com mais cinco cen­ trais sindicais que se encaixam direta ou indiretamente no modelo neoliberal de organização sindical já indica uma mudança na natureza da organização sindical dos anos 1 980 para os 1 990; contudo, uma mais completa visão da metamorfose da organização sinqical dos trabalhadores será oferecida pela análise das mudafü ças de rumo da própria CUT nesse mesmo período. O avanço do processo de internacionalização do capital e a formação de novos blocos de poder em nível mundial; o refluxo e/ou repolitização da organização sindi� cal em nível internacional; a difusão no Brasil de inovações na organização da produf'-tW ção e no processo de trabalho e o conseqüente aumento do desemprego e da precarização das relações de trabalho; a redefinição das diretrizes políticas mundiais e nacionais da Igreja Católica, de feição mais conservadora; .a redefinição das estra­ tégias políticas do PT e dos movimentos sociais em seu conjunto; a constituição for­ mal de um Estado de direito no país; a crescente adesão espontânea das massas . trabalhadoras ao ideário e proposições neoliberai$; a propaganda midiática contra a organização popular na defesa de direitos no plano externo à organização sindical; a filiação da CUT à Confederação Internacional das Organizações Sindicais Livres (Cios)), uma central mundial de caráter notadamente social-democrata60; a redefinição da estratégia política da central, da perspectiva reativo-reivindicativa para a perspectiva afirmativo-propositiva, durante o Quarto Congresso Nacional da CUT (IV Concut), em 199 1 ; a progressiva preponderância da corrente Articulação Sindical61 e a simui-

Em 1995, foi criada a Central Autônoma dos Trabalhadores (CAT), agregando, em 2001 , 86 sindicatos filiados. Em 1 997, foi criada a Social Democracia Sindical (SOS), devido a uma ruptura na FS; reunia, em 2001, 286 sindicatos filiados. Mais recentemente, foi criada também a Central Sindical dos Trabalhadores. (CST). "" Tal filiação, já anunciada no Quarto Congresso Nacional - IV Concut -, foi reafirmada durante a realização da Quinta Plenária Nacional da entidade, em 1992. m A Articulação Sindical constituiu-se como corrente organizada no li Concut, em 1 986, com forte influência do sindic alismo católico e social-democrata europeu e com vigorosa penetração no sindicalismo do ABC Paulista. 59

1 19 Il -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

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tânea perda de poder político das correntes socialistas e comunistas tradicionais e dissidentes no plano interno à organização da Central são as principais determina­ ções da metamorfose ocorrida no conteúdo e nas práticas da organização cutista nos anos de neoliberalismo, apontadas por vários estudiosos da organização sindical brasileira na atualidade, dentre eles Antunes (1 995), Boi to Júnior (1999), Costa (1995) e Souza (2002). A metamorfose da organização sindical cutista, ocorrida de forma lenta, ten­ sa e com significativos avanços e recuos62, engloba um processo que se estende da transformação de uma CUT classista, nos anos 1 980, para a configuração de uma CUT cidadã nos anos 1 990 até os dias atuais, em uma trajetória que desloca o eixo de suas, da predominância da organização das massas trabalhadoras para o con­ fronto com o projeto burguês de sociedade, para a predominância da negociação política no campo institucional63 nos marcos societais vigentes. " Dessa forma, a CUT acompanha movimento semelhante re�Iizado pelo PT, tão bem-analisado por Fontes (2005). Mantendo, também, sua especificidade en­ quanto sindicato, a CUT parece propensa a acatar a diretriz política do Banco Mun­ dial para a nova relação entre governo e sociedade civil no Brasil de hoje, na qual esse organismo propõe aos movimentos soc iais de trabalhadores que abandonem l1ma posição de confronto em relação aos governos e assumam junto a estes uma posição de colaboração. O processo de construção da CUT c idadã teve início ainda durante a primeira metade dos anos 1990 e ganhou maior organicidade durante os governos neoliberais da Terceira Via de Fernando Henrique Cardoso. O primeiro passo nessa direção foi dado pela mudança da estratégia política da entidade no decorrer do IV Concut, em 1 99 1 , quando a CUT se definiu como entidade propositiva. Outro passo signifi­ cativo foi a proposta do V Concut de "abertura de um processo de discussão de transformação ou não dos sindicatos filiados em sindicatos orgânicos" (CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES, 1 994)64, a partir da crític a à "excessiva" autonomia

m No VI Concut, realizado em 1 997, em uma conjuntura de disputa eleitoral para a Presidência da República, a CUT propôs ainda a elaboração de um projeto alternativo ao neoliberalismo, a partir da evidência de que o socialismo coloca-se como a única saída progressista para a humanidade, a única alternativa à degradação social (CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES, 1 997, p. 20). 63 Contraditoriamente, no VI Concut, de 1 997, a entidade reforçou sua posição de enfrentamento aos neoliberais pela via da institucionalidade, quando destacou sua atuação nos diversos conselhos públicos (Conselho da Saúde, Conselho Curador do FGTS, Conselho de Defesa do FAT, Conselho de Administração . do BNDES) (CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES, 1 997, p. 26). 1 •H O desejo da construção de uma CUT orgânic a foi constatado por Boito Júnior (1 999) e Souza (2002) antes mesmo da realização do V Concut, em maio de 1994. •

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dos sindi catos em relação à Central65• A Sétima Plenária Nacional Zumbi dos Palmares, realizada em agosto de 1995, além de assumir a tarefa de transformar os sindicatos filiados em sindicatos orgâni cos, redefinindo uma série de propostas organizativas para tal fim (CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES, 1 995), introdu­ ziu a discussão de uma CUT cidadã ao defender uma atuação combinada da luta institucional com a luta de massas e pela atuação em novas frentes, agregando à sua pauta sindical elementos essenciais para a conquista da plena cidadania, e, principalmente, construindo uma política de alianças com o movimento social e com os partidos políticos para forjar uma alternativa ao governo neoliberal e a suas políticas (CENTRAL Ú NICA DOS TRABALHADORES, 1 995). Foi nesse contexto, por exemplo, que a CUT abandonou paulatinamente a discussão sobre uma proposta cutista de estruturação escolar e até mesmo de criação de centros públicos de formação profissional e passou a executar a política neoliberal de educação profis­ sional com os recursos advindos do FAT (SOUZA, 2002; CÊA, 2003). A Nona Plená­ ria Nacional, realizada em 1 999, por sua vez, encerrou e consolidou a discussão da organização sindical sob a forma de sindicato orgânico, tese, aliás, contemplada na proposta de reforma sindical do governo Lula da Silva. A culminância do processo de constituição da CUT cidadã parece efetivar-se por intermédio da forte sintonia A'l��v entre as ações desenvolvidas pelo governo Lula da Silva no campo social e as teses majoritárias do campo cutista na atual conjuntura. A criação da CUT cidadã, que a princípio poderia se constituir em uma frente de unificação do conjunto dos movimentos sociais populares no enfrentamento às políticas neoliberais da Terceira Via, na realidade parece um reforço à sua imple­ mentação, devido, em boa parte, às profundas mudanças na estrutura e na dinâmi­ ca dos movimentos sociais a partir de 1 990.

Redirecionando o foco da luta política social de base popular nos anos de neoliberalismo não cami­ nhou majoritariamente para a construção de uma contra-hegemonia no Brasil con­ temporâneo, qual seja: em primeiro lugar, a organização em associações de inte­ resses capazes de, simultaneamente, manter sua autonomia de classe e penetrar nos espaços estatais para assegurar a generalização de tais reivindicações, em um A organização

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O V Concut considerou, em relação à proposta de redefinição organizativa, que a CUT não definiu um conjunto de pontos para constar dos estatutos dos sindicatos filiados, nem sequer tem um conjunto de pontos paramanter um sindicato filiado, a não ser um genérico "cumprimento dos estatutos e das deliberações das instâncias", cuja desobediência não tem sanções além da suspensão e possibilidade de desfiliação (CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES, 1 994).

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procedimento denominado "nacionalização", isto é, tornar nac ional um tema ou questão até então circunscrito a demandas de um grupo específico, ainda que majoritário, e, em segundo lugar, construir partido político voltado para consolidar sua organização em dois níveis: como instância de formulação conjunta de visão de mundo, de pensamento crítico e de elaboração de propostas capazes de tornar nacionais um universo de questões e demandas com caráter distinto daquelas dos grupos dominantes (FONTES, 2005). Assim como o PT e a CUT cidadã, os movimentos sociais populares vêm-se organizando, predominantemente, com uma dinâmica que reforça a fragmentação de suas lutas e a subordinação de suas iniciativas às diretrizes burguesas para a soci­ edade brasileira contemporânea. Eles vêm atuando simultaneamente em duas dire­ ções: na prestação de serviços sociais, em especial às camadas ditas "excluídas" da sociedade, financiados em grande parte por recursos públicos e também provenien­ tes dos denominados programas de responsabilidade empresariaJ�e na luta contra as várias discriminações extra-econômicas, também financiada em b�a parte com recursos públicos nacionais e internacionais e das fundações empresariais66• Além de desenvolver ou estimular ações voltadas para a educação da cultura cívica do homem coletivo brasileiro, de estimular a reeducação política dos apare­ lhos privados de hegemonia proletária construídos ou refuncionalizados nos anos 1980 para combater o capitalismo, o Estado neoliberal vem estimulando a criação de novos sujeitos políticos coletivos, responsáveis prioritários pela difusão de suas estratégias de legitimação, no papel de educadores da coesão social . Nunca é de­ mais lembrar, com Gramsci (2000b, p. 41 -42), que [ ] o Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimen­ to e esta expansão são concebidos e apresentados como força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias "nacionais", isto é, o grupo domi­ nante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de um equilíbrio instável (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e dos grupos subor...

r;; As ações governamentais e empresariais vêm priorizando o atendimento aos Objetivos do Milênio definidos pela ONU que, procurando responder à pergunta: "O que nós podemos fazer para mudar o mundo?", prescreve metas ditas sociais, de forte apelo moral, para serem atingidas por todos os países do mundo até 2015: !) acabar com a fome e a miséria; 2) educação básica de qualidade para todos; 3) igualdade entre os sexos e a valorização da mulher; 4) reduzir a mortalidade infantil; 5) melhorar a saúde das gestantes; 6) combater a Aids; 7) qualidade de vida e meio ambiente; 8) todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento. O Brasil assinou esse "pacto mundial de sustentabilidade do planeta e da huma�idàde", baseado no desenvolvimento de ações conjuntas entre governo e sociedade, e incorporou, no carnaval de 2005, os objetivos do milênio por intermédio do enredo da tradicional escola de samba carioca Portela.

1 22 LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA dinados, equilíbrio em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico corporativo.

As ONGs, fundações67 e associações civis sem fins lucrativos que compõem o chamado "terceiro setor" constituem-se em sua maioria em aparelhos priva­ dos de hegemonia que, direta ou indiretamente, reproduzem a concepção de mundo burguesa mundial no espaço nacional68• Dados de pesquisa realizada pelo IBGE69 revelam que entre 1 996 e 2002 o número dessas instituições cresceu 1 57%. Elas perfazem um total de 275.895 instituições, fo rmalmente classificadas como sem fins lucrativos, que exercem, simultaneamente, várias funções de legitimação políti co-social. Em primeiro lugar, elas vêm absorvendo um contingente significativo de tra­ balhadores excluídos do mercado de trabalho em decorrência da crise estrutural que atravessa o país nas duas últimas déca.das. A mesma pesquisa traz à luz que, além de injetarem na atualidade cerca de R$ 1 7 ,5 bilhões na economia provenien­ tes de pagamento de salários e de remunerações, as ONGs empregam 1 ,54 milhão de trabalhadores assalariados com um salário médio de R$ 871 ,00, sendo seu efe­ tivo superior a três vezes o total de servidores públicos federais na ativa em 2002. O valor médio do salário pago pelas fundações e associações em áreas sociais pare/, t1•' ce indicar que as ONGs absorvem um contingente expressivo da força de trabalho qualificada com formação em ciências humanas, um contingente de "prestadores de serviços sociais" que se constituem, também, potencialmente, em militantes políticos da c idadania neoliberal, já que, para garantirem seu trabalho, acabam por seguir as idéias e ideais de seus empregadores. Em segundo lugar, essas ONGs consubstanciam-se em espaço privilegiado de difusão do trabalho precário no país, uma vez que absorvem cerca de 1 4 mi­ lhões de trabalhadores informais, um contingente da população majoritariamente

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Sobre fundações empresariais, ver o texto "Estratégias burguesas de obtenção do consenso nos anos de neoliberalismo da Terceira Via", neste livro. 68 Contraditoriamente, diversas ONGs continuam seu trabalho, em uma abordagem inic iada nos anos 1 980, de cimentar a organização específica popular com a direção unitária da organização da classe em nível nacional. Esse movimento de construção de contra-hegemonia desses novos sujeitos políticos coletivos nos anos de neoliberalismo não se constitui em objeto desta pesquisa, mas demanda estudos e pesquisas por parte dos analistas políticos da realidade brasileira. "" Adotando a construção teórica e ideológica de "terceiro setor", o IBGE selecionou do Cadastro Geral das Empresas do IBGE (Cempre) as empresas que satisfazem aos seguintes critérios: privadas, sem fins lucrativos; institucionalizadas (ou seja, legalmente constituídas), auto-administradas (controlam suas próprias atividades) e voluntárias. Mesmo que se possa criticar os fundamentos da metodologia empregada, essa iniciativa do IBGE oferece uma noção mais clara do grau de difusão desses novos aparelhos privados de hegemonia que vêm contribuindo efetivamente para contrabalançar a correlação das forças sociais no Brasil contemporâneo em favor da conservação das relações sociais de produção vigentes.

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urbana que, ao invés de reivindicar coletivamente melhores condições de traba­ lho, premidos pela falta de emprego acabam por viabilizar as políticas neoliberais de superexploração da força de trabalho. As ONGs são também parceiras do Estado em sentido estrito na implementação das políticas sociais neoliberais, mesmo que não recebam financi­ amento governamental. Em outros termos, as ONGs são veículo privilegiado de construção e sedimentação da sociedade civil ativa, proposição do neoliberalismo da Terceira Via. Os dados da pesquisa do IBGE atestam tal argumento. Das 275.895 fundações e associações existentes no Brasil hoje, apenas 4% foram criadas antes de 1970. Mais de um quinto delas (22,46%) surgiu ainda na década de 1 980, e 50% foram estabelecidas entre 1 99 1 e 2000. Só em 2001 e 2002 foram criadas 1 1 ,1 9%, indicando, assim, o ritmo acelerado de seu crescimento nos anos inic iais deste ' �éculo. Embora concentrando sua atuação na região Sudeste do,.país (44% do to.... tal), elas se espraiam por todo o território nacional, evidenciando o crescimento de .... c um asso iativismo de novo tipo no processo de ocidentalização da sociedade brasileira. O governo Lula da Silva destinou, em 2004, R$ 1 ,2 bilhão para as ONGs que executam suas políticas "prestando serviços sociais" (RODRIGUES, 2004). Especificamente as associações civis privadas sem fins lucrativos vêm-se constituindo, desde que eclodiram no cenário político nacional, como instrumen­ tos de ampliação dos marcos da democrac ia direta nos anos de abertura política, em importantes veículos de repolitização da políti ca, pois, por intermédio do fi­ nanciamento externo de suas atividades70, passaram, em boa parte, a disseminar os postulados e proposições neoliberais já hegemônicos à época em âmbito in­ ternacional. Contribuíram, nesse sentido, a t�cita divisão, no campo da luta contra­ hegemônica da abertura política, entre movimentos sociais voltados para a trans­ formação das relações de trabalho e movimentos sociais voltados para a constru­ ção da cidadania - que dissociando, na prática, as dimensões de trabalho e vida nas indissociáveis relações sociais capitalistas de produção da existência, concor­ riam para a fragmentação movimentista e a introdução de novas formulações apa­ rentemente progressistas - e a necessidade de sobrevivência financeira das asso­ ciàções enquanto empresas sociais e sua adesão progressiva ao pragmatismo da ideologia da responsabilidade social.

Essas associações foram quase exclusivamente financiadas nos anos 1 970 e .1980 pcir ONGs estrangeiras, por governos de países centrais, pela ação internacional da Igreja Católica e por organismos financeiros internacionais.

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As fundações empresariais, por sua vez, ganharam visibilidade tardiamente, a partir dos governos FHC, como forma de ampliar, atualizando, os aparelhos tradic i­ onais de hegemonia burguesa dos anos de desenvolvimentismo. Vale ressaltar que a natureza fragmentária das ONGs por si só não constitui um problema no campo popular, desde que se construam elementos de ligação entre estas e instrumentos de síntese que considerem igualmente importantes temas tradicionais das lutas no campo da esquerda e as novas temáticas abraçadas por esses novos sujeitos polí­ ticos coletivos (MELO, M., 2004), superando a falsa dic otomia entre interesses éti­ co-políticos e econômicos na luta pela emancipação política da classe trabalhado­ ra. Nessa mesma perspectiva, Wood (2003, p. 224-225) alerta que [ ... ] o projeto socialista deve ser enriquecido com os recursos e as idéias dos "novos mo­ vimentos sociais" (que não são tão novos), e não empobrecidos pelo uso desses recursos e idéias como desculpa para desintegrar a resistência ao capitalismo. Não devemos con­ fundir respeito pela pluralidade da experiência humana e das lutas sociais com a dissolu­ ção completa da causalidade histórica, em que nada existe além de diversidade, diferen­ ça e contingência, nenhuma estrutura unificadora, nenhuma lógica de processo, em que não existe o capitalismo e, portanto, nem a sua negação, nem um projeto de emancipa­ ção humana.

No movimento de expansão da democracia direta na década de 1 990, o im­ portante princípio da participação política, ressignificado pela burguesia mundial, ganha um caráter "asséptico" de participação social em boa parte das ONGs preexistentes. As novas ONGs, surgidas do estímulo da política de parceria dos go­ vernos neoliberais, por sua vez, já nascem com essa nova mentalidade. Reportan­ do-se a essa nova configuração histórica, Arantes (2000, p. 3), no belíssimo ensaio Esquerda e direita no espelho das ONGs, registra essa nova forma de interação entre aparelhagem estatal e sociedade civil: De uns tempos para cá, autoridades governamentais desandaram a gesticular e arengar como se fossem militantes de uma ONG, de todas as ONGs, misteriosamente eleitos pela mão invisível do destino para advogar a boa causa da soc iedade, ocupando, po­ rém, graças sabe-se lá a que manobras astuciosas da razão, postos-chave no aparelho de Estado, sobretudo os diretamente concernidos por uma enteléquia cívica denomina­ da "o social". Ato contínuo, têm se dedicado a lançar "programas" de fortalecimento da "sociedade civil", como se esta fosse uma área de fomento e, pelo visto, em promoção. É um tal de abrir e construir "espaços", nos quais "interagem" atores (novos, de prefe­ rência) que trocam juras de "compromisso" e "envolvimento" mútuos, tudo num regis­ tro altamente "pró-ativo".

Grande parte das ONGs, em sua nova dimensão interativa e moralizante, cer­ tamente desempenha no cenário nacional da atualidade papel de protagonista de

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uma grande política que tem nas forças políticas da nova social-democracia, agru­ padas em torno do PT e do PSDB, no âmbito partidário, e da CUT cidadã e da Força Sindic al, no âmbito sindical, importantes formuladores e difusores. O êxito obtido até então pela nova pedagogia da hegemonia resulta, em parte considerável, da capacidade que vem tendo a burguesia mundial e também a brasi­ leira de levar em conta os interesses e .as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia é exercida, pelo atendimento, embora molecular, das demandas econô­ mico-corporativas das classes dominadas. Esse equilíbrio instável conseguido entre interesses antagônicos, no centro e na periferia do capitalismo sob a direção burgue­ sa nos anos recentes, pode, no entanto, em tempo ainda não-divisado, ser interrom­ pido em decorrência do agravamento da precarização das condições de trabalho e d.e .vida de um contingente considerável da população mundial e nacional, pondo erii xeque os limites próprios da socialização da riqueza e do poderjROS marcos es­ treitos das relações sociais de produção capitalista, favorecendo com issq, o fortaleci­ mento de uma proposta contra-hegemônica de organização societária.

ESTRATÉGIAS BURGUESAS DE OBTENÇÃO DO CONSENSO

NOS ANOS DE NEOLIBERALISMO DA TERCEIRA VIA André Silva Martins

Desde os primórdios do século XX, a burguesia brasileira viu-se forçada a cri­ ar organizações para defender e representar seu� interesses de classe, contribuin­ db' de maneira singular para o longo e complexo processo de "ocidentalização" do )'!> Estado brasileiro. Em especial a burguesia ligada à indústria, ao optar P.trlo caminho da adaptação passiva ao modelo capitalista de desenvolvimento subordinado e dependente, deu sua parcela de contribuição ao se ver diante de dois grandes pro­ blemas políticos: primeiramente, tinha de disputar, no interior da aparelhagem es­ tatal, medidas de proteção à frágil indústria nacional, em face das fortes oscilações cambiais e do grande favorecimento ao setor agrário e de importação. Em segundo lugar, tinha a necessidade de conter, no âmbito da sociedade civil, a expansão e o fo rtale c imento do m ovimento operário que desde a fase embrionária do industrialismo apresentava uma certa capac idade de se organizar autonomamente e implementar suas lutas políticas. Em relação a esse desafio, a estratégia utilizada foi restrita às formas autoritárias e policialescas, revelando que o fundamental para essa classe era assegurar seu enriqueci01ento, independentemente dos meios uti­ lizados (FERNANDES, 1 981). Entretanto, ao longo do industrialismo no país, as formas efêmeras de organi­ zação burguesa do setor industrial evoluíram paulatinamente em decorrência das moderna� relações sodais que se iam estabelecendo, resultantes das lutas trava­ das nas diversas conjunturas. Esse processo foi decisivo para que estratégias mo­ dernas de convencimento político-social fossem aprimoradas em substituição aos mecanismos baseados preponderantemente na força. Assim, lentamente a bur­ guesia foi desenvolvendo mecanismos políticos mais sofisticados e eficientes de dominação cuja tônica foi deslocada para o convencimento. O refinamento das estratégias de obtenção do consenso em torno do projeto societário burguês só foi possível porque essa classe foi capaz de aperfeiçoar pro­ gressivamente as suas organizações em cada conjuntura e, com isso, refinar suas ações políticas. Assim, a história das estratégias de obtenção do consenso como

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mecanismos para a realização de um determinado projeto hegemônico de socie­ dade passou a se confundir com a história das organizações burguesas no país.

Estratégias burguesas de obtenção do consenso nos anos de desenvolvimentismo As primeiras organizações burguesas foram decisivas para o acúmulo de ex­ periências políticas após os anos 1 930. O Centro Industrial do Brasil, criado em 1 904, e o Centro Industrial de São Paulo, criado em 1 928 pela ruptura dos empresá­ rios da indústria com a Associação Comercial localizada naquela cidade, são con­ siderados marcos significativos da organização burguesa nos anos iniciais do Brasil urbano-industrial (LEOPOLDI, 2000)1 • Após alguns anos e m que a atuação dessas primeiras entidades já s e tornava expressiva para a realidade da época, e que outras entidades locais e regionais foram criadas acompanhando o crescimento da atividade industrial, a vigência de um novo ordenamento político orquestrado pelo governo de Getúlio Vargas esta­ beleceu que as entidades existentes e todas aquelas criadas com a idéia de repre­ sentação de interesses fossem submetidas ao Decreto nº 1 9.770/1931 , que, além de alterar as formas de atuação e de organização, subm�teu tais entidades à tutela do Estado. Como decorrência do imperativo legal, aperfeiçoado por outros decretos, como os de números 24.694/1934 e 1 .402/1939, um novo desenho da estrutura de representação dos interesses fo i criado no Brasil com o objetivo de regular, institucionalizar e oficializar as práticas sindicais no país2• Assim, a representação passou a ser organizada de forma vertical e tutelada pelo Estado, oferecendo novas bases para a implementação das estratégias políticas. Segundo Leopoldi (2000), embora a legislação sindical tenha gerado, em um primeiro momento, certas discordâncias de setores da base empresarial, os ajus­ tes legais demandados pela Confederação Industrial do Brasil foram suficientes para acomodar as inquietações burguesas. Nesse sentido, a autora afirma que o Decreto nº 24.694/1934, destinado a adequar a legislação sindical à Constituição de 1 934, incorporou as propostas empresariais aparando as arestas políticas geradas pelo arcabouço jurídico de 1931.

1 De acordo com essa autora, algumas entidades serviram d e base para a organização d o Centro Industrial do Brasil: Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (1 870); Associação Industrial (1881 ); Centro Industrial (1890-1892); Centro de Fiação e Tecelagem de Algodão do Rio de Janeiro (1 902-1904). 2 O Centro Industrial do Brasil foi transformado, em 1 933, em Confederação Industrial do Brasil. Em 1 938, essa entidade foi substituída pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI), até hoje existente.

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No campo da burguesia, as determinações legais possibilitaram .a formação, alguns anos mais tarde, de uma complexa estrutura - sistema sindical patronal formada por sindicatos por ramo de produção (congregando empresas de um tipo de atividade econômica), federações estaduais (responsáveis pela aglutinação de todos os sindi catos localizados nos estados) e uma confederação nacional (res­ · ponsável p ela convergênda das federações, órgão máximo da representação da burguesia industrial no país). Seguindo um processo de consolidação da nova estrutura sindical ao longo da Era Vargas, a burguesia industrial brasileira passou a desempenhar um papel polític o-social de grande importância à medida que foi estabelecendo laços de cooperação intensos com a aparelhagem estatal na definição de políticas públicas. Um dos resultados mais concretos da importância do papel político da bur­ guesia industrial foi a destinação, a essa fração da classe, representada na Confe­ de;ação Nacional das Indústrias (CNI), da tarefa de educar a força,,.de trabalho in­ dustrial brasileira por intermédio de um organismo criado em 1 942: b'Serviço Nacio"" nal de Aprendizagem Industrial (Senai). Essas estratégias de convencimento e de educação da força de trabalho fo­ ram mais adiante. No contexto do . recrudescimento da luta de classes no país, das medidas repressivas do governo central sobre os trabalhadores nos anos do pós­ guerra e do crescimento vertiginoso do parque industrial brasileiro, foi criado, por intermédio do Decreto-Lei nº 9.043/1946, um outro organismo responsável por importantes ações de educação da classe trabalhadora, o Serviço Social da Indús­ tria(Sesi), também sob o comando da burguesia industrial representada pela CNI. Os objetivos político-ideológicos desse organismo, o qual se mantém em atividade até hoje, eram muito claros e de grande relevância para o sistema sindical patronal. Conforme definido no Artigo 1 ° do citado decreto-lei, o Sesi deveria " [ ... ) estudar, planejar e executar, direta ou indiretamente, medidas que contribuam para o bem­ .estar social dos trabalhadores na indústria e nas atividades assemelhadas, concor­ rendo para o aperfeiçoamento moral e cívic o do padrão geral da vida do p aís, e. bem assim, para o aperfeiçoamento moral e cívico e o desenvolvimento do espírito de solidariedade entre as classes" (BRASIL, 1 946b). Difundindo conhecimentos, técnic as, hábitos comportamentais e normas exigidas pelo paradigma taylorista-fordista, o Sesi disseminava a cultura urbano­ industrial, conformando os trabalhadores dentro de referências modernas de vida e de trabalho. A educação política, tendo como base a "colaboração" ao invés do confronto classista, constituía-se já naquele momento no eixo central do trabalho desse organismo por meio da promoção de ações sociabilizantes ligadas a saúde, educação e lazer dos trabalhadores da indústria e de seus dependentes, com vistas a implantar em larga escala um determinado modo de vida e cidadania.

13 0 LÚCIA NEVES (ORG.) - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

O Sesi, sob o comando do sistema CNI, por sua característica e trabalho polí­ ti co pode ser apontado como o principal organismo de adaptação psicofísica de parcelas significativas de trabalhadores e de seus familiares aos padrões burgue­ ses de mundo racionalizado nos tempos do desenvolvimentismo. A partir da década de 1 950, período em que todo o sistema sindical patronal já estava consolidado, e mais especificamente ao longo do governo de Juscelino Kubitschek, em que se processaram significativas mudanças na industrialização brasileira com o crescimento vertiginoso do setor industrial de bens de consumo, um novo movimento foi inaugurado por setores do empresariado da indústria. Dele foram gerados organismos como: Associação da Indústria de Autopeças (1951}, Associação Brasileira de Cerâmi ca (1 953), Associação Brasileira de Indústria de Base (1955), Associação Nacional dos Fabri cantes de Veículos Automotores (1 956), dentre outras. Tais organismos de interesse de classe nasceram a partir do crescimento e complexificação da atividade industrial e seus desdobramentos nas relações de comércio interno e externo e, principalmente, do aprofundamento extraordinário da atuação polític o-econômica do Estado capitalista monopolista na reprodução do capital em termos globais, bem como das disputas entre as frações do capital. Esse novo tipo de organização, nascida a partir da intervenção direta do Esta­ do no processo produtivo e das tensões internas da burguesia industrial, décadas mais tarde passaria a integrar o sistema CNI. Embora estivessem mais voltados a inscrever demandas diretas e específicas dos diferentes setores no âmbito da apa­ relhagem estatal do que, de fato, sedimentar na sociedade civil uma representa­ ção mais geral de seus interesses, esses organismos indicam a existência de dispu­ tas pela direção do projeto societário burguês3• A partir de 1 940 e, principalmente, nos anos 1 950, o .trabalho do Sesi seguiu a linha de aprofundamento e consolidação das ações técnic o-políticas de formação e adaptação humana necessárias ao desenvolvimento do industrialismo segundo o paradigma taylorista-fordista em diversas partes do país. O conjunto de ações socioeducativas e de atendimentos de saúde desenvolvido por esse organismo entrou em uma escala de crescimento quantitativo e qualitativo, acompanhando o próprio ritmo de crescimento industrial.

3 Com as mudanças no paradigma produtivo das últimas décadas do século XX, essas entidades acu­ mularam, além da representação setorial, a função de atualizar e tornar mais competitivas as empresas do setor por meio de difusão de orientações técnicas, de informações tecnológicas, de promoção de cursos e seminários, etc.

131 li - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

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Contudo, os investimentos financeiros e p olíticos executados p el o empresariado industrial n a busca d a adaptação e formação humana e d e obtenção do consenso em torno de seu projeto societário parecem não ter sido suficientes para reverter os determinantes da mobilização popular que nos anos 1 960 passa­ ram a "perturbar" a ordem capitalista brasileira. O achatamento salarial e o aumen­ to do exército industrial de reserva decorrentes dos crescentes fluxos migratórios, a precarização das condições de vida nas cidades, as crises de abastecimento e a insatisfação popular com as condições concretas de v.i da - fatores catalisados pe­ las lutas sindicais - criaram um clima de instabilidade polític a nada favorável aos setores dominantes. Mediante as pressões que vinham da classe trabalhadora e da "insuficiência" dos organismos que já atuavam na obtenção do consenso, e levando em conta o ;l:icúmulo das experiências de organização burguesa desenvolvidas desde os anos iniciais do industrialismo brasileiro - muito influenciado por níve&. mais elementa­ res de consciência política coletiva -, os diversos segmentos empresariais tiveram de apostar em outras organizações para além da esfera da produção, mantendo um único objetivo: resguardar as condições políticas e econômicas que assegurari­ am a posição da burguesia como classe dominante e dirigente do país. Nessa linha, nos anos 1 960 destaca-se a criação e atuação política do Institu­ to de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e do Instituto Brasileiro de Ação Demo­ crática (Ibad). Segundo Dreifuss (1981, p. 1 64), esses organismos formaram um complexo político que se tornou o " [ .. ] verdadeiro partido da burguesia e seu Estado-maior para ação ideológic a, políti c a e militar". Reunindo as frações monopolistas e não-monopolistas da burguesia brasileira no combate às restri­ ções ao capital estrangeiro que se desenhavam nas políticas do governo de João Goulart e no enfrentamento das forças sociais que demonstravam vontade de de­ sestabilizar a ordem capitalista brasileira, o lpes e o Ibad atuaram decisivamente na organização e sustentação política do golpe de 1 964, assegurando nos anos seguintes a supremacia do capital monopolista na direção do processo políticoeconômico brasileiro (DREIFUSS, 1 981). É possível registrar, ainda, que a complexificação da estrutura partidária brasi­ leira no período de 1 945 a 1 964, mesmo com seus fortes traços de regionalismo, de pouca clareza ideológica e de muita fragilidade organizativa, pode ser tomada como pequeno esboço de tentativas de diversas frações de c lasse burguesa na definição de canais de inserção política na sociedade civil brasileira. Entretanto, tal tendên­ cia não se confirmou, porque o golpe de 1 964 impôs um novo ordenamento para a organização partidária no país, que prevaleceu por 1 5 anos. 1 No âmbito da sociedade c ivil, outras organizações foram portadoras de certas concepções de mundo que convergiam com as bandeiras políticas do sistema sin.

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LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

di cal patronal. Esses organismos contaram com a importante presença, embora não-exclusiva, de membros da burguesia brasileira. Os chamados " clubes de ser­ viço" que passaram a func ionar no Brasil desde as primeiras décadas do século XX - Rotary e Lions -, cujos princípios organizativos e de intervenção social esta­ vam submetidos às indi cações de suas matrizes estadunidenses, foram respon­ sáveis por disseminar determinadas formas de partic ipação privada nas ques­ tões sociais, em espe cial em projetos sociais que procuram minimizar, dentro do ordenamento capitalista, os problemas do campo social, configurando-se como mecanismos compensatórios de assistência social dentro do modelo do Estado de bem-estar social". Contudo, a movimentação política de amplos setores da burguesia brasileira indicou que havia um projeto de sociedade que se desejava consolidar. Tal conso­ lidação só seria possível se as organizações burguesas no âmbito da sociedade civil estivessem comprometidas com as estratégias políticas de ap rimoramento e con­ solidação em um novo patamar do padrão desenvolvimentista. Nesse modelo, o aparelho estatal assumiu o papel de importante organizador da acumulação priva­ da, impulsionando e fortalecendo o capital estrangeiro e o capital nacional, locali­ zado principalmente no setor de bens de consumo. As�Irn, o capitalismo brasileiro atingiu taxas extraordinárias de crescimento à custa da exploração da classe traba­ lhadora, aprofundando ainda mais a concentração da riqueza no país. No quadro de crescente repressão política e de precarização das condições de vida dos trabalhadores brasileiros, o Sesi desempenhou um papel importante na acomodação social e na contenção da insatisfação dos trabalhadores fabris, o que demandou certas adequações em sua estrutura. A partir de 1 969, o Sesi mu­ dou o modelo gerencial até então implementado por outro mais moderno, com o objetivo de acompanhar as demandas industriais no período conhecido como "milagre econômico" (SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA, 2004). Entretanto, quando as políticas desse período davam claros sinais de esgota­ mento, aprofundando ainda mais os problemas sociais do país, e a classe trabalha­ dora iniciava um rico processo de reorganização e enfrentamento ao quadro esta­ belecido, pressionando a burguesia industrial brasileira com greves e protestos, o Sesi foi orientado a estabelecer programas sociais compensatórios mais agressivos para atenuar os conflitos e recompor um nível satisfatório de coesão social (SERVI­ ÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA, 2004).

4 Sobre o significado e papel po!Hico do Rotary Club no contexto de consolidação do fordismo nos Estados

Unidos, cujos princípios eram os mesmos praticados no Brasil, ver Gramsci (2001 , p. 295-297; 369, nota 1 1 ).

1 33 li -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

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Embora a orientação da burguesia em seu conjunto se caracterizasse pelo duro enfrentamento aos trabalhadores organizados por intermédio dos aparelhos repressivos do Estado, suas ações específicas de obtenção do consenso dos traba­ lhadores atomizados continuaram a se expandir. O quadro que emergiu após o "milagre econômic o" foi marcado por diversos aspectos que comprometeram o modelo econômico praticado, bem como a "legi­ timidade" do regime ditatorial. Registrou-se nesse período um aumento substanti­ vo da dívida externa brasileira, decorrente da aquisição de volumosos emprésti­ mos acordados em taxas de juros exorbitantes, devido à crise mundial instalada em todo o sistema, principalmente nos centros mais dinâmicos. Com esse pano de fundo, existiam nítidos sinais de que o Estado capitalista monopolista, como indutor principal do sistema, era incapaz de manter o ritmo :\ �acelerado de crescimento econômic o como registrado no período anterior, abrin" do um longo período de recessão econômi ca. No plano políti�o, a repressão foi intensificada e a expli citação dos antagonismos exacerbou a lutaentre capital e trabalho. Por fim, esse conjunto de determinantes repercutiu intensamente nas rela­ ções internas do bloco no poder5, criando tensões e disputas entre as diversas fra­ ções do capital. Os interesses imediatos do capital financeiro conflitavam com os interesses também imediatos do capital industrial. Na fração industrial, os interes­ ses do setor monopolista eram distintos se comparados aos do setor não­ monopolista. Por sua vez, as demandas do capital agroexportador também entra­ vam em linhas de atrito com as demais frações. As tentativas de ajustamento do padrão desenvolvimentista não lograram su­ cesso, aprofundando o clima de instabilidade do pacto entre as forças que compu­ nham o bloco no poder. Essa instabilidade polític a foi crescendo à medida que as críticas do campo burguês sobre a centralização do poder ganharam força. ao lado de denúncias de que o Estado. havia crescido muito e que sua presença na econo­ mia estrangulava qualquer tentativà de retomada do crescimento econômic o. Além disso, as pressões oriundas do campo do trabalho foram-se tomando cada vez mais intensas, tanto pela ampliação considerável da mobilização popular quanto pelo nascimento do "novo sindicalismo", frutos da elevação do nível de consciência política coletiva da classe trabalhadora.

idos 1 1).

5 Empregamos o conceito de "bloco histórico" no sentido atribuído por Poulantzas (1 980), qual seja a unidade entre frações de uma mesma classe social em torno de interesses gerais que se fazem representar no Estado, sem que sejam eliminadas as disputas de interesses dessas frações dentro de um mesmo projeto político­ econômico mais amplo.

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1 34 LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

Tais fatores foram determinantes para que se instalasse . um processo de aber­ tura política, ainda que comandado pelo alto, e uma forte crise de hegemonia bur­ guesa que se estendeu para além dos anos 1 980. Esse contexto criou novos desafi­ os para a burguesia brasileira como um todo. No perío do em que predominou a falta de unidade política por parte da bur­ guesia em torno das perspectivas de seu projeto para o Brasil, registrou-se um novo processo de modernização das organizações burguesas, de criação de novos orga­ nismos e de movimentos de atualização de sua agenda política em conformidade com as recentes diretrizes e estratégias internacionais delineadas nos países cen­ trais do sistema capitalista. Nos anos 1 980, o sistema CNI passou por um processo de modernização para responder de maneira mais efetiva aos desafios da indústria brasileira em um con­ texto de crise mundial e de substituição do paradigma taylorista-fordista por outro de base mais flexível. Assim, [ '... ] empenhado na promoção de uma moderna política de capacitação de recursos hu­ manos em todo o país, [ a presidência do sistema] mobilizou o potencial da CNI para aplicar um choque de competência nas estruturas e nos programas das três entidades que representam o capitalismo social no Brasil: Sesi, Senai e IEL'.'W filosofia de atuação do Sesi tomou-se mais abrangente, evoluindo da assistência para a promoção social em sentido amplo. (SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA, 2004, grifo nosso)

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Fica evidente que o órgão máximo da representação dos interesses da bur­ guesia industrial brasileira procurou incorporar, em seu discurso e em suas práti­ cas, algumas referências técnicas, organizativas e políticas mais compatíveis com o novo modelo de desenvolvimento que se processava em algumas partes do mun­ do capitalista, reformulando suas estratégias de obtenção do consenso em tempos de esgotamento do desenvolvimentismo. Por fora do sistema sindical patronal, outras iniciativas ilustram o quadro de crise de hegemonia burguesa e de redefinição de suas estratégias políticas. Desta­ ca-se a articulação de setores das frações monopolistas e não-monopolistas do capital industrial e financeiro para a criação, em 1983, de uma rede de aparelhos . privados de hegemonia: o Instituto Liberal (IL)6• Fundado no Rio de Janeiro, ex­ pandiu-se posteriormente para São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Ge­ rais, Pernambuco, Ceará e Brasília. Sua atuação mais sistemática concentrou-se nos três primeiros estados, tendo na sede do Distrito Federal a ponta-de-lança na

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Em Gros (2003), encontra-se a relação dos empresários fundadores do primeiro Instituto Liberal.

1 35 11 -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

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relação com a aparelhagem estatal . Desde s.u a criação, o IL esteve integrado a uma rede internacionaF comprometida com a difusão do pensamento ne.oliberal pelo mundo. Sua principal tarefa política foi a "[ ... ] divulgação da doutrina neoliberal, especialmente dos preceitos da Escola Austríaca de Economia, entre seus pares e nos meios formadores de opinião - universitários, jornalísticos, políticos, milita­ res, jurídicos e intelectuais em geral -, e de formulação de propostas de projetos de políticas públicas de cunho liberal" (GROS, 2003). Fundamentado nos preceitos morais, polític os e econômic os da doutrina neoliberal, esse organismo exerceu um papel educativo sobre setores da socieda­ de, formulando e difundindo referênc ias para um novo projeto de desenvolvimen­ to e de sociabilidade para o país. Com mais de uma década de antecedência, o IL ntqstrou-se empenhado em defender o paradigma que alguns anos mais tarde subs.i:... tituiria o modelo desenvolviinentista no Brasil. . ...;:" O trabalho educativo desse aparelho privado de hegemonia deu-se em várias r f entes, podendo ser sintetizado nas seguintes pontos: (i) intensificação da divulga­ . ção de obras clássicas da doutrina neoliberal por meio de tradução e publicação de autores como Friedrich von Hayek, Ludwig vori Mises e outros; (ii) realização de colóquios e seminários, com o objetivo de convencer empresários, juristas, econo­ .mistas, jornalistas e militares de alta patente em torno da chamada " modernização capitalista", assegurando, assim, um corpo de "funcionários" responsáveis pela di­ fusão e convencimento da superioridade do capitalismo frente ao socialismo e do Estado neoliberal frente ao modelo de Estado de bem-estar social; (iii) cursos de doutrina liberal (abertos ao público) e formação de grupos comunitários para di­ vulgação dessa doutrina; (iv) implementação de ações diretas: na educação bási­ . ca, especificamente no Estado de São Paúlo - centro dinâmico da economia brasi­ : leira e local de forte organização operária -, por meio de cursos de capac itação de professores e da produção de material didático; na educação superior, por inter­ médio de parcerias com universidades (Universidade de São Paulo, Filosofia; Uni­ \;: versidade Estadual de Campinas, Economia; Universidade Mackenzie, Economia; Universidade Santa Ú rsula, Economia, entre outras), com o objetivo de "desi. deologizar" os cursos de graduação; (iv) avaliação das implicações econômicas e políticas dos projetos que tramitavam no Legislativo Federal; (v) proposição de novos projetos de lei e políticas públicas.

rede internacional integrada pela rede brasileira de Institutos Liberais é composta por entidades estadunidenses e latino-americanas. A relação dessas entidades encontra-se em Gros (2003).

1 36 LÚCIA NEVES (ORG.) - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

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Esse organismo foi importantíssimo na difusão do neoliberalismo na década de 1 980 e nos anos inic iais da de 1 990, contando com o apoio de grandes grupos empresariais em atividade no país (GROS, 2003)8• Além disso, ele representou a inovação das estratégias burguesas na disputa pela hegemonia no país naquele momento de crise. Sua criação expressa, ainda, a incapacidade de o sistema sindi­ cal patronal da indústria dirigir sozinho as ações burguesas de obtenção do con­ senso no período. Essa pequena, mas significativa coalizão de empresários reunidos no Instituto Liberal inaugurou uma nova forma de representar os interesses de classe, ao defi­ nir estratégias modernas de obtenção de consenso e de incentivo à elevação da consciência política coletiva burguesa para além dos interesses mais imediatos. Anos mais tarde, também no vácuo deixado pelo aparelho sindical patronal, empresários de diversos setores da indústria nacional criaram uma outra entidade com o objetivo de dinamizar a representação de seus interesses junto à aparelha­ gem estatal, de modo a influenciar as políticas econômicas que redefiniriam os rumos do desenvolvimento brasileiro. Com a tarefa de produzir conhe cimentos e definir estratégias de pressão política, o Instituto de Estudos para o Desenvolvi­ mento Industrial (Iedi), criado em 1 989, passou a atuar no cenário brasileiro como protagonista da defesa da indústria nacional e de uma determinada perspectiva de funcionamento da economia, sem assumir ofi cialmente uma postura de oposição ao sistema tradicional de representação e sem definir ações políticas dirigidas di­ retamente aos campos político e social (DINIZ; BOSCHI, 2003)9• Os relatórios desse organismo indicam que a grande preocupação de seus articuladores era garantir o rearranjo do capitalismo brasileiro frente ao contexto internacional de crise, tendo como referência do processo a indústria nacional (INS­ TITUTO DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL, 1999, 2001 ). O relatório de 2001 afirma ter sido esse instituto a primeira entidade empresarial a defender políticas para uma reestruturação macroeconômica, visando ao aumen­ to da competitividade do país, além de introduzir no debate nacional outros temas ligados aos interesses da indústria e ao desenvolvimento brasileiro. De fato, todas as indicações contidas nesses documentos revelam preocupações estratégicas mais gerais para o reordenamento interno do país diante das mudanças do sistema ca-

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De acordo com Gros (2003), são responsáveis pelo financiamento do Instituto Liberal, entre outros: Xerox do Brasil, Hoechst do Brasil, Dow Química, Gessy Lever, Nestlé, Carrefour, Grupo Fenícia, Indústrias Villares, Bradesco, Banco de Crédito Nacional, Banco Noroeste, Citibank, Bank of Boston, Shell. 0 O primeiro presidente do fedi foi o empresário José Ermfrio de Moraes Filho, do grupo Votorantim. Em Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (2001 ) consta a relação de seus fundadores.

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1 37 11 -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

pitalista. No documento "Mudar para competir", de 1 990, encontra-se a seguinte afirmação: [ ... ] a competitividade de um país baseia-se evidentemente na capac idade de suas em­ presas de serem competitivas a nível internacional. Mas essas empresas não são elemen­ tos isolados. Elas fazem parte do sistema sócio-econômico da nação em que se encon­ tram. A competitividade, portanto, inclui decisivamente elementos coletivos e estruturais pertinentes ao ambiente em que trabalha a empresa. Elementos essenciais, concretos, como a disponibilidade de linhas de financiamento, de infra-estrutura de comunicações, de energia, de meios de transporte, de recursos tecnológicos básicos. Elementos culturais como o sistema educacional, o aparato institucional público e privado, as relações entre capital e trabalho. Tudo aquilo que constrói um tecido industrial competitivo. (INSTITUTO DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL, 200 1 , p. 5)

É importante destacar que a entidade surgiu em um contexto,,d e incertezas e tensões. No plano econômico, o período era ainda marcado por uiTI forte quadro .... recessivo e de baixos índices de crescimento da atividade industrial, tanto no pia. no interno quanto no externo, associado às fortes sinalizações de uma nova fase de mundialização do capital, tendo a fração financeira a direção do processo. No ter­ : .reno sociopolítico, a burguesia convivia com a falta de um projeto de desenvolvi­ . m.ento capitalista capaz de assegurar a unidade política das diferentes frações de ·. . .sua classe e de assimilar toda a sociedade em torno de um único projeto. Esse · quadro de crise de hegemonia burguesa fol caracterizado pelo próprio ledi nos seguintes termos:

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[ . . ] as entidades de classe então existentes, organizadas segundo os setores industriais, estavam, naquela época, excessivamente envolvidas com questões específicas e com o curto prazo, algo que era imposto pela crise econômic a e sua rápida evolução. A percep­ ção dos empresários que vieram a criar o'Iedi era a de que se tornava necessário reunir forças e pensamentos para além dos desdobramentos conjunturais ou de curto prazo da crise da economia brasileira. O diagnóstico era de que a crise apresentava dimensão e profundidade estruturais e que simbolizava o fim de um modelo de desenvolvimento sem que um modelo alternativo tivesse sido ainda implantado no país. Em outras palavras, foram a percepção da gravidade da crise dos anos [ 19]80 e o entendimento de que era necessário conceber um modelo alternativo de desenvolvimento para o país os fatores determinantes da criação do Iedi. (INSTITUTO DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMEN­ TO INDUSTRIAL, 200 1 , p. 4)

A criação do ledi configurou-se como expressão dessas tensões entre as fra­ .sões políticas burguesas. Apesar das justificativas e aproximações recentes entre a · • .entidade e o sistema sindical patronal, a disputa naquele momento expressou a '. .esse organismo é> papel de liderar o fórum e mediar as relações entre os trabalhadores, j,> os empresários e o governo, e sempre que necessário, buscar espaços formais e infor­ . mais de interlocução política (BIANCHI, 2001 ). Embora o pacto social não tenha alcan. Çado todos os objetivos desejados pelo governo, é possível afirmar que o PNBE acu­ . mulou valiosas experiências no papel de articulador nacional. Em um contexto ainda fortemente marcado pelos efeitos da crise do • •desenvolvimentismo e das incertezas do novo padrão de desenvolvimento, ganham 'destaque as reuniões de entendimento político entre governo, empresários e tra{'

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14 2 LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA

balhadores, sob a coordenação do PNBE. Ao criar um clima de diálogo e de coope� ·;. ração, educando os diversos sujeitos políticos coletivos para uma nova convivêneia, foi capaz também de arrefecer as críticas e as pressões populares sobre o go- :.: vemo; estabelecer "acordos" de curto prazo entre as partes; indicar políticas setoriais�� . sob a matriz neoliberal de desenvolvimento. Com essa movimentação, foi-se firmando uma nova concepção política mui< to próxima do postulado da Terceira Via - de que no mundo atual só há espaço ; para as saídas negociadas. Nessa linha, o PNBE empenhou-se na difusão, para toda · a sociedade, inclusive para as lideranças da Central Única dos Trabalhadores (CUT)�\� de que os "antagonismos de classe" devem ceder lugar ao reconhecimento das;\11 "diferenças de interesses" e que a energia empregada no "confronto político" dev�1 ser convertida em uma nova postura, a da "colaboração social". Isso revela que a· idéia de "entendimento nacional''., como proposto pelo governo Collor de Melo difundido pelo PNBE, foi uma estratégia para enfrentar o clima de instabilidade política agravada por uma crise econômica de larga escala, em um contexto dej:'.J�! introdução de um novo padrão de desenvolvimento no país. Partindo dessa constatação e acrescentando a ela as contribuições de Bianch(7. (2001) acerca do detalhamento da movimentação pólítica do PNBE, bem como a;: reflexões críticas apresentadas por Boito Júnior (1999) sobre a participação da CUT;� no chamado "entendimento nacional" no início dos anos 1 990, pode-se concluir; que os primeiros passos em torno da "democracia dialógica" e de valorização de novos "arranjos democráticos", em que a relação capital-trabalho foi convidada· assumir novas significações, foram dados no Brasil, ainda que embrionariamentef a partir dessas experiências em sintonia com as tendências mundiais de renova; ção da social-democracia que já estavam em curso em países europeus. Isso indi· ca que os princípios políticos norteadores desse movimento mundial já estavam] >01 sendo incorporados por organizações empresariais brasileiras antes mesmo de seq programa orientador, a Terceira Via, assumir um grau mais elevado de sistematiza' ção, isto é, na forma de programa, o que ocorreu alguns anos mais tarde. Sob essai influências, passos importantes foram dados pelos empresários na definição d estratégias que geraram laços políticos significativos para a repolitização da políti� ca e a atualização da ideologia burguesa. ;,� Nessa linha, destaca-se a criação de uma entidade, sob a chancela de algú;'.l mas das lideranças do PNBE, voltada a mobilizar empresários de postura progreS:fi sista interessados em fortalecer os canais efetivos de diálogo e de construção políi' tica com o Partido dos Trabalhadores (PT). •. Com o acúmulo de experiências vividas nos anos 1 980, quando certos empr�1 sários se aproximavam do PT de forma ainda muito constrangida, e mais tarde, ef!JJ

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14 3 II-A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

1990, década em que as relações foram assumidas claramente, lideranças empre­ sariais do PNBE que viveram intensamente essas relações resolveram avançar po­ liticamente com a criação da Associação Brasileira de Empresários para a Cidada­ nia (Cives11). Cumpre registrar que, antes de sua fundação, cogitou-se a possibili­ �ade de se criar um "núcleo" dentro do PT ao invés de uma organização. Essa p()ssibilidade foi descartada porque: (i) restringiria a participação de outros empre­ .s.ários não interessados na filiação ao PT; (ii) como corpo partidário, as regras (ou amarras) poderiam bloquear certas ações e projetos de interesses. Com muito pres­ tígio e legitimidade política junto à direção nacional do PT, a Cives assumiu o com­ promisso de estabelecer relações mais duradouras, portanto, não meramente elei­ tôrais, com esse partido (POMAR, 1 995). (1 Assim, enquanto o PNBE manteve-se como ponto de inflexão no debate da agir!nda política empresarial e na forma de organização e trabalhq, da representa­ ' Ção de classe no âmbito do sistema sindi cal patronal, a Cives foi criâda como pon"" ,tà:.de"lança das relações burguesas modernas para fora da própria c lasse, ainda fo, re1s e iem > do : da 1mi­ sivo sso, 1pel ada eci­ ! da ões :o e na �ru·do­ eia­ 'e o co2), JOU­ ndi­ ., de 1al é eus ntal iais.

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ra fluxo de informações e possibilidade de articulação política, permitindo, inclusi­ ve, que seus representantes diretos integrem cargos estratégicos, como a presi­ dência do Banco Central (MINELLA, 2003). O novo estágio do capitalismo impôs em todas as p artes do mundo o aprofundamento da unidade entre as frações do capital de modo que indústrias, por meio de fusões ou aquisições, passem ao controle de grupos cuja predominân­ cia da atividade lucrativa concentra-se na esfera financeira. Resulta dessa diretriz a formação de conglomerados de empresas de diferentes ramos da economia (in­ dustrial, agroindustrial, comercial, serviços) controlados por poucos grupos finan­ ceiros de predominância internacional. Vale destacar que no mundo, mesmo den­ tro desses grupos, as tensões entre capital industrial e financeiro não são elimina­ ,das, mas assumem novos significados (CHESNAIS, 1 996). ' ::'" O que se destaca como importante é que a fração industrial da classe burgue­ . sa no Brasil, acompanhando a tendência mundial, internacionaliz�-se para asse­ guràr sua continuidade no poder ainda que em uma condição subordinada. Assim, a partir de 1 995, as forças empresariais foram politic amente acomodadas e uma ' nova unidade burguesa foi construída, sem que isso representasse a eliminação de tensões internas no novo bloco de poder formado. O aspecto mais marcante desse processo é.que outras idealizações parecem ter sido abandonadas, na medida em que a fração industrial aceitou passivamente uma posição secundária na coalizão política, reafirmando sua incapacidade de as­ sumir o papel de protagonista da implantação do padrão de desenvolvimento, re­ petindo, ainda que de forma específica, uma postura de subordinação aos parcei­ ros internacionais nos anos de desenvolvimentismo. No contexto do primeiro ciclo de reformas neoliberalizantes - cujos princípi­ os eram defendidos pelo Instituto Liberal desde 1 983 , já eram visíveis as novas dinâmicas no universo da representação empresarial e de suas estratégias de ob� tenção do consenso. Isso porque, na posição de sócios "menores" da aliança, a burguesia industrial nacional sentiú os efeitos do forte e intenso processo de desnacionalização da indústria. A pesquisa realizada pela empresa de consultoria KPMG (2001) comprova que diversos setores da economia fo ram impactados pelo fenômeno da desnacionalização da indústria brasileira. -

O setor de alimentos teve forte participação em toda a década e

ocupou por anos segui­ dos a liderança [ ... ] em número de transações. Grandes organizações, como Cargill, Arisco, Sadia e Parmalat encheram o carrinho de compras de pequenas e rf\édi.as empresas du­ rante a década. No total geral do estudo, ''.ll.limentos" ficou em primeiro lugar no ranhing, com 269 operações, 57% delas com a presença do capital estrangeiro. Em segundo lugar

1. 48 . LÚCIA NEVES (ORG.) -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA aparecem as instituições financeiras, com 1 76 negócios realizados, 56% com participação de estrangeiros. Em terceiro, ficou o setor de telecomunicações: 136 operações, 70% com investimentos externos. Em seguida, aparecem tecnologia da informação (127 69%), produtos químicos e petroquímicos ( 1 1 0 59,5%), metalurgia e siderurgia (98 63%), seguros (87 75%), partes e peças automotivas (81 68%), publicidade e editoras (78 58%) e eletroeletrônica (72 67%). (KPMG, 200 1 , p. 5) =

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A presença efetiva do capital estrangeiro marca a internacionalização da eco­ nomia nacional em todos os setores de atividade. Em que pesem as fusões ocorri­ das entre empresas nacionais, houve uma nítida predominância do capital estran­ geiro nesse processo. No período compreendido entre 1 995 e 1 998, foi intensa a entrada de capital internacional no Brasil, como revela a citada pesquisa: [ . . . ] a liderança da década ficou com os Estados Unidos [ . .. ]. Os americanos totalizaram 457 transações nos últimos dez anos. O segundo lugar ficou com a França, com 1 1 1 negó­ cios. Em seguida aparecem o Reino Unido (69), Alemanha (60), Argentina (57), Itália (48), Portugal (44), Espanha (43) e Canadá (34). Vieram às compras, também, Suíça, Japão, Holanda, Suécia, Chile, Mé.\'.ico, Bélgica, Dinamarca, Venezuela, Coréia, Luxemburgo, Áu.s­ tria, Finlândia, Israel, Peru, Malásia, Arábia Saudita, Austrália, Bahamas, Bolívia, África do Sul, China, Singapura, Nova Zelândia, Iraque e Porto Rico. (KPMG, 200 1 , p. 5) ,•·+t1'

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Nesse contexto de internacionalização e financeirização da economia brasileira e na fase de estabilização econômica conduzida pelo governo federal, o ledi entrou em um processo de enfraquecimento político por vários motivos. Primeira­ mente, os empresários industriais viram-se "forçados" a se submeterem às regras das fusões e das aquisições impostas pelo novo modelo econômi co, com o objeti­ vo de preservar o patrimônio e sua condição de membro da classe proprietária, dominante e dirigente, ainda que sob novas condições. Com efeito, não só perdi­ am a identidade - "industriais brasileiros" - como também o motivo central de sua . organização - "a defesa da grande indústria nac ional". Em segundo, como agra­ vante, o modelo de desenvolvimento centrado na regulação de mercado parecia "imune" às pressões setoriais para definição de políticas de incentivo e defesa da indústria nacional. Nesse novo modelo, caberia a cada grupo empresarial estabele- ·.. cer-se no cenário aberto e competitivo sem os auxílios e aberturas típicos do Esta­ do desenvolvimentista. O Instituto Liberai;· que desde sua fundação unia o capital industrial e o finan­ ceiro, mesmo com a implantação do neoliberalismo no país manteve seu trabalho educativo de divulgação e convencimento da superioridade do neoliberalismo, atu­ ando junto a grupos criteriosamente escolhidos: empresários, executivos de gran­ des empresas, juízes federais, jornalistas, estudantes de economia e direito, reali­ zando um trabalho importante, embora de pouca visibilidade. Mantendo-se ligada

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aos grandes grupos econômicos no país e no exterior e alinhada às instituições neoliberais internacionais, a rede Instituto Liberal constitui-se até hoje no oráculo da doutrina neoliberal no país, não obstante sua presença e trabalho político sejam desconhecidos de grande parte da população. Por sua vez, o PNBE,. que havia cumprido um importante papel no auge da .crise de hegemonia burguesa, foi assumindo um novo estilo e, conseqüentemen­ te, um novo espaço nas relações de' poder. A movimentação desse organismo na tentativa de construção do chamado "entendimento nacional" no início dos anos 1990 já revelava a postura adesista dessa entidade. Mais tarde, essa tendência foi confirmada tanto no posicionamento integrativo e cooperativo junto ao sistema CNI, particularmente na Fiesp, quanto, no .\,. plano geral, no apoio explícito ao governo Fernando Henrique Cardoso e na entidade foi ?P fOximação efetiva do PSDB. Com efeito, na medida em que es� filo. abrindo mão de uma posição crítica e propositiva, revelando uma·nítida mudan. � ça polític a para se ajustar ao poder, deixou de lutar pela direção ético-política da • dasse burguesa no Brasil. Na interpretação de Bianchi (2001), esse processo não significou o fracasso da entidade: pelo contrário, sua realização. Primeiramente, porque o sistema sindical patronal alcançara níveis satisfatórios de modernização a partir da incorpora­ ção de novos pressupostos políticos, assumindo, assim, um grau considerável de democracia interna, como reivindicava o PNBE. Em segundo lugar, porque o governo Fernando Henrique Cardoso, ao signifi­ car a efetiva e poderosa coalizão de poder comprometido com um novo projeto de .· sociedade mais orgânico, atendeu às demandas da entidade na reconstrução da hegemonia burguesa, ainda que sob a direção da fração financeira. Em terceiro, porque o PNBE, como espaço político empresarial, possibilitou a f�rmentação de idéias que já se faziam presentes nos países centrais da economia capitalista: a ampliação da organização empresarial para além das fronteiras das atividades setoriais, envolvendo principalmente o setor de serviços. Por fim, porque, ao longo de sua existência, o PNBE serviu de laboratório po­ líti.co responsável pelo desencadeamento da formação de intelectuais orgânicos da burguesia, comprometidos com a reeducação política da sociedade brasileira; �ela promoção da ressignificação dos conceitos de "democracia" e de "participa­ .ção" no país, principalmente junto às organizações sindicais do capital e do trabalho; e pela experimentação de novas bases para a relação entre Estado e socieda­ . de civil de acordo com as tendências internacionais. Diante de tantas realizações delimitadas em um quadro de superação de cri­ { se de hegemonia, foi possível ao PNBE redefinir sua atuação política na segunda :,

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metade dos anos 1 990. Isso não só gerou a transformação significativa da entidade, envolvendo a composição de sua base e de suas funções políticas, como permitiu, após sua mudança, que seus principais intelectuais fossem desenvolver outras im­ portantes ações estratégicas comprometidas de forma orgânica com os movimen­ tos de repolitização da política. Considerando essas entidades em seu conjunto, seus significados políti cos no contexto de crise de hegemonia e da implantação de um novo modo de "fazer política", os conhe cimentos produzidos ou reproduzidos ao longo de anos e, por fim, as conseqüentes intervenções na realidade, é possível crer que a burguesia no \ Brasil não só ampliou a consciência de sua condição e de seus desafios, mas foi . paulatinamente alterando o conhecimento sobre si mesma para mudar sua postu­ ra nos anos mais recentes de nossa história, em associação com os parceiros inter­ nacionais. Isso revela que frações importantes da burguesia tomaram consciência dos limites e das possibilidades históri cas em que se encontravam para ampliar a unidade das ações também no âmbito da sociedade civil. Entretanto, o sistema sindical patronal não ficou imune. De sua parte, esse sujeito políti co coletivo sobreviveu ao período de crise e de mudanças, além de ter sido capaz de assimilar os pontos críticos de sua orgafílzação e de sua forma de fazer políti ca. Como resultado, ocorreu a consolidação da modernização de sua estrutura interna, a definição de uma nova agenda política e de intervenção na realidade e, por fim, o desenvolvimento da capacidade de trabalhar juntamente com os novos movimentos burgueses que surgiram com pautas específicas e de­ mandas. mais voltadas ao campo econômic o13• Isso possibilitou, entre outras coisas, o seu fortalecimento como referência política de representação do setor industrial, agora modernizado e mundializado, e a incorporação de novas estratégias de obtenção do consenso. Assim, reformado e comprometido com nova coalizão que se constituiu como bloco no poder, o siste­ ma sindi cal patronal selou sua parti cipação política com ações pedagógi cas de consolidação da hegemonia burguesa em tempos de neoliberalismo. O esvaziamento político do ledi, a refuncionalização do PNBE e o fortaleci­ mento do sistema sindical patronal sob novas bases deram-se em um contexto em que as políticas do governo Fernando Henrique Cardoso estiveram destinadas a iniciar um processo de redefinição das relações entre aparelhagem estatal e socie­ dade civil, a partir das noções de "colaboração" e de "parcerias", visando com isso ·

13 A título de exemplo, apontam-se: "Ação Empresarial", "Movimento Compele Brasil", "Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica".

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li - A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

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a desenvolver ações educadoras da sociabilidade neoliberal de forma mais orgâni­ . · ca. Foi nessa direção que surgiram novas organizações burguesas que passaram a ·somar esforços decisivos na tarefa de reeducar a sociedade. Muito embora a burguesia tenha continuado a se organizar em pautas mais emergendais de caráter econômico, a partir das novas políticas do governo fede­ ral proliferaram as organizações empresariais comprometidas com a questão social, dando um novo caráter às experiênc ias políti co-sociais difusas das déca­ das anteriores. Assim, sob o lema da chamada "responsabilidade social empresarial", ou sim­ plesmente "responsabilidade social" - que representa a superação da noção de "filantropia empresarial" por algo m ais orgâni co e que tem força ideológica -, no­ '�(l.S práticas políticas ganharam presença no cenário brasileiro em sintonia com Ú� movimento preexistente em nível mundial e incorporado pelo g_Q.verno Fernando Henrique Cardoso. """ A "responsabilidade social empresarial" é uma ideologia'" que expressa o encerramento de crise e tensões hegemônicas e indic a novas acomodações políti­ cas e novas movimentações qualitativamente superiores que penetram o campo das políticas de Estado e envolvem todas as frações de c lasse burguesa, reordenando as relações políticas mais amplas localizadas no interior da sociedade civil. A intervenção social dos empresários, realizada de forma tópica, fragmenta­ da e difusa, em geral motivada pelo desprendimento ou espírito altruísta do burgu­ ês, transformou-se em algo orgânic o à classe proprietária, operacionalizando, por­ tanto, seu projeto de sociabilidade. Trata-se de uma nova perspectiva da atuação educativa da classe burguesa rumo à consolidação de sua condição de dirigente de toda a sociedade. Essa nova perspectiva política dirigida pelas ações do governo Fernando Henrique Cardoso impulsionou dois tipos de organização empresarial. O primeiro concentra as organizações produtoras de ideologia comprometidas com a elabo­ ração e a sistematização da nova pedagogia da hegemonia, podendo ser compara­ das aos think tanks estadunidenses. A atuação desses organismos desdobra-se nos seguintes planos: (i) formulação de idéias e projetos dentro da matriz neoliberal da Terceira Via, para orientar a ação empresarial; (ii) convencimento e mobilização : dos empresários dos mais diferentes setores em torno da ideologia da "responsa­ bilidade social"; (iii) representação política junto à aparelhagem estatal, para de-

14 Esse conceito de ideologia deve ser entendido no sentido gramsc iano, isto é, conjunto de concepções e idéias que, sistematizadas, impulsionam os homens para a intervenção na realidade (GRAMSCI, 2000b).

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senvolver e fortalecer concepções e políticas sociais referenciadas na "responsabi­ lidade social empresarial"; (iv) disseminação, junto a toda a sociedade, de que as empresas são sensíveis às "causas sociais"; (v) convencimento de que qualquer melhoria de vida da população só será possível com o envolvimento de todos em "trabalhos voluntários", em "campanhas comunitárias", nas "doações em dinhei­ ro", ou seja, na conscientização de que todos devem ser movidos pela "responsa­ bilidade social". As organizações empresariais mais expressivas que atuam nesse nível são o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) e o Instituto Ethos de Responsabilidade Social. O segundo tipo reúne as fundações e institutos ligados ao mundo dos negócios, responsáveis por ações diretas de diferentes tipos, em geral nas regiões onde estão inseridos. Mesmo em se tratando daquelas organizações criadas em uma outra con­ juntura - por exemplo, Fundação Bradesco (1955) e Fundação Belga-Mineira ( 1 988) -, todos os institutos e fundações empresariais parecem ter incorporado, ainda que em níveis distintos, os preceitos dessa nova ideologia como referência definidora de seus,projetos educativos. Diferentemente das entidades de abrangência nacional que funcionam como elaboradoras e sistematizadoras das estratégias de obtenção do consenso, as do segundo grupo podem ser caracterizadas''tomo "organizações .exe­ cutoras e difusoras", isto é, aquelas cuja missão é transformar a concepção ideológi­ ca e linhas estratégicas em ações político-sociais concretas. Em ambos os casos, não se trata da reinauguração da idéia de "filantropia em­ presarial" inspirada em preceitos cristãos, puritanos, altruístas, mas sim em algo mais orgânico, cujo nexo assegura a mudança da conduta burguesa em relação às ques­ tões sociais, sem perder a conexão com os objetivos históricos e imediatos dessa classe. O trabalho de elaboração e de execução desenvolvido por essas organiza­ ções se dá no plano da confluência de concepções políticas, valores e propósitos, materializados no compartilhamento de conhecimentos, nas·trocas de experiências e na adoção de condutas comuns referenciadas no pressuposto da "colaboração" e da "ação cidadã-voluntária". Trata-se, portanto, de algo que unifica os empresários de diferentes setores na perspectiva da consolidação de um novo e .único modelo de sociabilidade, indicando uma mudança da cultura empresarial. Na visão de Antonio Carlos Martinelli - ex-diretor do Instituto C&A de Desen­ volvimento Social, conselheiro político-estratégic o do Gife e diretor da Martinelli Consultoria -, existem três concepções e práticas sobre empresa presentes no mundo burguês. Refletindo os diferentes níveis de consciência política coletiva alcançada pela burguesia, Martinelli (2000) faz referência a: (i) um estágio mais elementar, em que predomina a concepção da "empresa como negócio"; (ii) um estágio intermediário, cuja denominação é a "empresa como organização social";

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(iii) um estágio mais avançado, caracterizado como "empresa-cidadã", que age diretamente na sociedade ou por intermédio de seus institutos e fundações. Martinelli sintetiza esse quadro nos seguintes termos:



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[ ... ] as.empresas podem relacionar-se com a sociedade assumindo diferentes posturas:





algumas adotam uma atitude predatória, exploradora, em relação ao bem comum - por exemplo, prejudicando pessoas, poluindo o meio ambiente etc.-; outras, assumem uma posição de neutralidade, considerando que lhes basta recolherem seus impostos, reme­

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tendo ao governo a responsabilidade pela eliminação das mazelas sociais; a empresa cidadã, no outro extremo, adota posição pró-ativa de querer contribuir para encaminhar

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soluções para os problemas sociais. (MARTlNELLI, 2000, p. 84, grifos do autor)

. . Essa mudança no plano ideológico é decorrente da crise de hegemonia vivi1da'·pela classe burguesa, da formação da coalizão de poder que permitiu a vitória _1'11> do bloco histórico do capital organizado em torno da candidatura d � Fernando Henrique Cardoso nas eleições de 1994 e, por fim, dos fortes laços dessa coalizão . ao movimento internacional de renovação da social-democracia. As primeiras definições na busca do estabelecimento do nexo orgânico entre . .ação empresarial, questões sociais (educação, saúde, assistência, etc.) e novo pro­ jeto de sociabilidade deram-se a partir do esforço para superar a visão estreita de '!filantropia", substituindo-a por algo mais substantivo que, ao mesmo tempo, ca­ nalizasse as ações individuais e voluntaristas dos empresários para algo de maior impacto e significado social em perfeita sintonia com as polític as do governo ; F�rnando Henrique Cardoso.

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Um grupo de grandes proprietários qtie vinha desde 1 989 discutindo informalmente as práticas filantrópicas do mundo empresarial evoluiu para a formalização, . \ em 1995, do Gife. É importante registrar que as raízes dessa organização da socieda­ > de civil estão ligadas à história do Prêmio · Empresa e Sociedade, mais conhecido C:omo Prêmio Eco, promovido pela Câmara Americana de Comércio. O concurso, iniciado em 1 982, tinha como objetivo estimular e divulgar a "filantropia empresari­ .al" e, nos anos 1 990, a "responsabilidade social empresarial". O Gife, resultado do salto qualitativo da "filantropia empresarial" à "respon­ sabilidade social empresarial", é a primeira e, provavelmente, uma das melhores i expressões da mudança da concepção burguesa sobre educação p olítica na 1 �.ontemporaneidade. Se num primeiro momento os empresários agiam por inici­ 1 )itiva própria, de maneira voluntariosa, em ações fragmentadas, pontuais e, muitas vezes, descontínuas, com a criação desse organismo foi estabelecida uma

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nova forma de arti culação empresarial e definido um novo conteúdo para os pro­ jetos implementados. Essa experiência foi decisiva para aprimorar a organização e a intervenção empresarial. Vale destacar que, em 22 anos do Prêmio Eco (CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, CULTURA E AÇÃO COMUNITÁRIA, 2004), foi registra­ da a participação de 1 .442 empresas, 1 . 727 projetos e 1 23 premiações responsá­ veis pela movimentação de U S$ 2,6 bilhões. De acordo com os dados contidos no relatório Estudo avaliativo dos 20 anos do Prêmio Eco (CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, CULTURA E AÇÃO COMUNITÁRIA, 2002) e com as atu­ alizações dos dois últimos anos a partir dos dados disponíveis na página eletrônica da Câmara Americana de Comércio, é possível chegar a outros números relevan" tes. Em 1 2 anos (1 982 a 1 994), participaram do referido concurso 697 empresas e projetos; já no período seguinte (1 995 a 2004), isto é, em 9 anos, foi registrada a. participação de 1 .030 empresas e projetos, o que significa que as ações empresari­ ais foram intensificadas na ordem de 4 7, 78%. A esse respeito, o relatório supracitado é categóri co ao afirmar que no perío� dçi de 1 982 a 1 990 houve "um número significativo de ações e projetos que [ ... ] tinham ainda uma visão da ação so c ial como uma prática compensatória e assistencialista". Já na fase seguinte, "os projetos começam a se voltar para ques, toes mais abrangentes" (CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, CUL­ TURA E AÇÃO COMUNITÁRIA, 2002, p. 46-47). O Gife reuniu inicialmente 25 grandes empresas e saltou, no ano de 2004i para um conjunto de 32 fundações, 27 institutos e 1 O grupos empresariais. Seu pioneirismo pode ser constatado não só no modelo de organização, mas também( na definição de um "código de ética" responsável por demarcar as bases de ação fundamentadas na nova ideologia. Esse documento é ímpar, pois na delimitação inicial das intenções empresariais demonstra, de maneira clara, o momento de transição da "filantropia" para a "responsabilidade social". Nessa linha, procura desvincular o trabalho social das empresas e dos seus institutos e fundações da idéia do lucro, aproximando-se da curiosa definição de "empresa-cidadã" defendi­ da por Martinelli (2000). O "código de ética" afirma que: [ ... ] as práticas de investimento social são de natureza distinta e não devem ser confundi� das nem usadas como ferramentas de comercialização de bens tangíveis e intangíveis (fins lucrativos), por parte da empresa mantenedora, como são, por exemplo, marketing1 promoção de vendas ou patrocínio, bem como políticas e procedimentos de recursos humanos, que objetivam o desenvolvimento e o bem-estar da própria força de trabalho, portanto, no interesse da empresa. [ ... ) No entanto, é justo que o associado do Gife espe· re, como subproduto de um investimento social exitoso, um maior valor agregado para sua imagem. (GRUPO DE INSTITUTOS, FUNDAÇÕES E EMPRESAS, 1 995, p. 2)

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distinção que o Gife estabeleceu entre atividade social e produção de mer­ cadoria é, de fato, inovadora, mas ainda não contém no seu enunciado uma p olíti­ ca clara de intervenção burguesa nas relações sociais contemporâneas. É impor­ tante registrar que somente após um ano de sua fundação a noção de "filantropia empresarial" - que na avaliação dos fundadores não dava conta de expressar o significado das novas ações empresariais no campo social - foi substituída por um · conceito mais abrangente, ainda que pouco preciso. A primeira evidência dessa mudança foi a reformulação de um evento internac ional patrocinado pela entida­ de; O Encontro Ibero-Americano de Filantropia passou a ser denominado, em 1 996, de Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor. O evento realizado no Brasil mar­ . cou a mudança no título e a forma de conceber a ação empresarial nas questões s2c iais. Com isso, a noção de "filantropia" deu espaço à noção de "desenvoivimen­ ; td social sustentável" e "responsabilidade social"15• A segunda evi!i\ência está rela­ . cionada à importância e, ao mesmo tempo, à imprec isão do termo "investimento social privado" que somente seria definido em 2000, como explica Rebecca Rapo­ so, ex-diretora executiva do Gife: [ . . ] a expressão "investimento social" nasce junto com o Gife - ele consta do código de .

ética, o primeiro documento aprovado pela mesma assembléia que instituiu o Grupo. Mas na realidade, naquela época [ abril de 1 995] , não era ainda um conceito, mas sim uma expressão. O que se desejava era deixar claro que a rede Gife se diferenciava do conceito de filantropia. O que tive o privilégio de fazer no início da minha gestão execu­ tiva [ . . ] foi focar todo o trabalho do Gife nesse conceito. [ ... ] Definimos o conceito com .

mais precisão e desenvolvemos uma estratégia de três anos para sua disseminação e fixação. Os resultados conquistados até aqui me permitem afirmar que deu certo. (RA­ POSO, 2004, p. 1 )

Antes dessa data, porém, o Gife já havia definido que seu papel polític o-social estaria centrado no estímulo, orientação, capacitação e assessoramento técnic o­ .· políti c o de fundações, institutos e empresas privadas comprometidas com a ;destinação de recursos próprios às causas sociais. Em seu Artigo 3°, o estatuto da organização estabelece: "O Gife tem por objetivo contribuir para a promoção do desenvolvimento sustentável do Brasil, através do fortale c imento p olítico­ . c institu ional e do apoio à atuação estratégica de institutos e fundações de origem

i; O primeiro e segundo Encontro Ibero-Americano de Filantropia foram realizados na Es'panha (1992) e no ';México (1 994), respectivamente. O evento, com nova denominação, encontra-se na sétima edição, tendo · passado por vários países: Argentina (1998), Colômbia (2000), Espanha (2002), retornando ao Brasil em 2004. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2004.

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empresarial e de outras entidades privadas que realizam investimento social vo­ luntário e sistemático, voltado para o interesse público" (GRUPO DE INSTITUTOS, FUNDAÇÕES E EMPRESAS, 1 999, p. 1). Querendo substituir a idéia de "filantropia empresarial" por outra mais orgâni­ ca, o Gife atribuiu, então, um sentido muito próprio ao conceito de "responsabilida­ de social empresarial". Para ele, esse conceito deve orientar e estimular projetos para fora do âmbito da empresa, sempre em direção à comunidade, envolvendo aplicação de recursos originados das atividades empresariais, sem vínculos diretos dessa ação com o marl�eting e taxas de retorno, além das medidas relacionadas à melhoria das condições de trabalho. Na interpretação de Voigt e Raposo (2003), a. ênfase do Gife relaciona-se ao investimento privado com fins públicos para promo­ ver o desenvolvimento social sustentável. Segundo dados do próprio Gife, essa modalidade de atuação empresarial tem c cres ido significativamente. Após três anos de crescentes índices de investimento privado, os associados ao Gife foram responsáveis por aplicar em 2004 um total R$ 800 milhões em projeto sociais. Apesar da diversificação dos projetos (saúde, ;,, >; cultura, meio ambiente, cidadania, desenvolvimento comunitário), 85% dos asso- " · dados investem na educação escolar, em seus diferefltes níveis e modalidades. O '"/; campeão de investimentos vem sendo o ensino fundamental, seguido pelos outros .;:� níveis e modalidades da educação escolar, a saber: ensino médio, educação infan- i; til, educação profissional e educação de jovens e adultos. Trata-se, segundo o gruA po, de uma contribuição voluntária dos empresários para o desenvolvimento do; � país. A justificativa para tal política pode ser apreendida na seguinte idéia: "Os em- Í presários brasileiros vêm percebendo que é inconciliável, tanto do ponto de vista ,tf ético, como dos negócios, um cenário social em que coabitam empresas saudá- '.� veis e em crescimento, inseridas em uma sociedade enferma, com um fosso cada � vez maior a separar cidadãos ricos e pobres" (VOIGT; RAPOSO, 2003). · Com esse horizonte, o Gife vem não só procurando capacitar seus associados.1� por meio de diferentes táticas como também estimulando a busca e consolidação 1; \s de parcerias com o aparelho de Estado e com outras entidades da sociedade civil'� para o desenvolvimento de ações sociais. Contudo, o que merece destaque são os,;'; apelos e as investidas desse organismo na mudança do aparato legal que regula:.;� ., menta a participação burguesa nas questões · sociais. Ao mesmo tempo em que afirma serem os empresários conscientes de seu,:j papel social na construção de um desenvolvimento sustentável para o país, o Gife '.< reivindica de forma veemente a concessão, pelo Estado, de subsídios públicos.'1� Nessa perspectiva, as fundações e institutos empresariais associados ao Gife vêm:. obtendo o título de Utilidade Pública Federal ou se transformando em Organiza:

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ções Sociais de Interesse Público (Oscip) para obterem isenções fiscais, ou mes­ mo estarem formalmente aptas a ter acesso às verbàs públicas para realização de seus projetos sociais. O número de associados do Gife que . conquistaram o título de Osc ip saltou de 5% em 2001 para 22% em 2004. No mesmo perío do, cresceu de 56% para ()8% a obtenção do título federal que dá direito a significativas isenções fiscais (REDE GIFE ON-LINE, 2004). Trata-se, na verdade, de medidas que no campo ideológico reforçam, difun­ . dem e aprofundam a idéia neoliberal da Terceira Via, de que o Estado não é capaz de se responsabilizar sozinho por educação, saúde, assistência social, e que cabe aos diferentes organismos da nova sociedade civil - o chamado terceiro setor - a tarefa de partilhar responsabilidades a partir de uma rede de parcerias. No campo \da ação políti ca, significa uma forma extremamente inovadora de obtenção do c�l�senso em torno de um determinado projeto de sociabilidade di,tigido pela elas""" se proprietária. Vale lembrar que o período de amadurecimento . õrganizacional e / . · • · conceituai do Gife coincide com o início da implementação das políticas do governo Fernando Henrique Cardoso que procuraram redefinir as relações entre apare­ lhagem estatal e sociedade civil. Considerando o horizonte apresentado pelo Gife, o contexto de crise estrutu­ ral do sistema capitalista e as novas determinações para as políticas públicas, é possível afirmar que o "lucro" e a "responsabilidade social empresarial" se relacio­ nam positivamente não como ações voltadas à obtenção de resultados imediatos, mas como medidas de alcance de longo prazo, inseridas em um projeto internaci. onal de recuperação da hegemonia burguesa. Essa observação reafirma-se inclusi­ ve pela natureza da composição do Gife: grandes empresas controladas pelo capi­ tal internacional. Por essa atuação, é possível afirmar que o Gife, na condição de aparelho pri­ vado de hegemonia, inaugurou . uma importante ação política destinada a promo. ver e difundir a coesão social e uma nova sociabilidade inspirada nos mesmos prin­ cípios que compuseram o projeto da Terceira Via. Contudo, esse organismo burguês não vem sendo o único a atuar sob essa . perspectiva, já que em 1 998 foi fundado o Instituto Ethos de Responsabilidade So' · cial Empresarial. Após verem cumprido o papel formal do PNBE e de posse do acúmulo de experiências adquiridas, em especial na Fundação Abrinq de Defesa . dos Direitos da Criança e do Adolescente, as principais lideranças políticas e inte­ lectuais desse movimento alteraram sua linha de intervenção para assegurar sua mais ampla penetração em todo o tecido social. 1 · A Fundação Abrinq iniciou suas atividades em 1 990 como um departamento • da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), para depois ser ·

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transformada em uma organização independente, com estatuto jurídi c o e atuação políti ca próprios. Esse fato foi marcante, pois, como pensar que um organismo res­ ponsável por representar os interesses mais imediatos dos fabri cantes de brinque­ dos pudesse ser o berço da criação de um outro organismo portador de uma agen­ da política mais abrangente? Essa pequena, mas significativa obra de engenharia política foi possível graças à atuação precisa de intelectuais orgânicos como Oded Grajew e Emerson Kapaz. Logo nos anos iniciais de sua criação, a Fundação Abrinq tornou-se referên� eia política ao protagonizar, ao lado de outras entidades, a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, impulsionada, em um primeiro momento, pela apro­ vação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Além de ter inaugurado uma nova forma de intervenção empresarial nas questões sociais, a fundação implantou, ainda que de forma embrionária, concepções que mais tarde, reunidas e siste­ matizadas, compuseram a ideologia da "responsabilidade social empresarial". O fato de ter-se tornado uma fundação independente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos foi decisivo para congregar os empresários em torno de causa tida como nobre. Com isso, a Fundação Abrinq pelos Oireitos da Criança e do Adolescente deixava de ser um simples departf:u;nento da Abrinq para ser um órgão ampliado para o qual convergiam as forças do campo empresarial em torno de uma agenda política inovadora, jamais registrada na história da c lasse burguesa brasileira. Os dados evidenciam que a fundação inspirou a criação do Instituto Ethos. A defesa da criança e do adolescente representou um alargamento da consciência política coletiva da classe burguesa para além dos interesses econômi c o" corporativos. Os fabricantes de brinquedos vislumbravam que seria tão importante a defesa dos interesses específicos do setor junto à aparelhagem estatal quanto uma atitude mais aberta de defesa daqueles que, potencialmente, em última esca­ la, movimentam o setor - as crianças. Embora em uma primeira instância buscasse a defesa de um mercado a partir do emprego de uma tática inteiramente nova, foi por atribuir uma dimensão mais ampla, de cunho moral, de combate às formas de exploração e agressão aos menores de 1 8 anos que conseguiu aglutinar empresá­ rios de diversos setores. A linha de atuação política desse instituto voltou-se para duas direções: (i) o campo empresarial, na medida em que buscou alertar os em­ presários .para os problemas relativos à exploração da força de trabalho desses menores, convidando-os a introduzir em suas empresas e disseminar em suas ca� · deias produtivas o combate à exploração dos menores; (ii) o conjunto da socieda­ de, na medida em que desenvolveu campanhas e mobilizações de respeito e pro­ teção aos futuros cidadãos contra as diversas forrrias de violência.

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1 59 II -A NOVA PEDAGOGIA DA HEGEMONIA NO BRASIL

Essas ações foram significativas para a educação· política da classe empresa­ rial. Contudo, seus principais intelectuais acreditavam que era importante ir mais além, traduzindo essas novas atitudes relacionadas às crianças e aos adolescentes para os demais trabalhadores, às comunidades, aos grupos de risco social, aos grupos étnicos, entre outros. Em síntese, era necessário e estratégico transformar as experiências desenvolvidas pela Fundação Abrinq - experiências estas que já naquela época não cabiam no conceito de "filantropia empresarial" - em uma es• · C ?ia maior, de forma a congregar todas as frações da classe burguesa por meio de . temáticas mais abrangentes, de maneira a construir uma nova sociabilidade dirigida ' pela.burguesia. . A Fundação Abrinq continua em plena atividade e segue desenvolvendo seus projetos e campanhas, muito embora o que se tem constatado é o crescimento das��liversas e mais perversas formas de exploração do trabalho infantil e juvenil . b porparte dos empresários, além dos incontáveis registros de violêne'fu contra me):lores, seja ela policial, doméstica ou urbana. É importante ter claro que �tualmen­ ' t� o Instituto Ethos não substituiu a fundação, ou mesmo minimizou sua atuação; :pelo contrário, o instituto reforçou a presença da Fundação Abrinq no campo em­ :pr,esarial, na medida em que destinou a ela as questões relativas aos menores den­ ;tro da responsabilidade social. Nos últimos tempos, a Fundação Abrinq ampliou seu leque de filiações ao permitir que qualquer organização da sociedade civil ou .cidadão passe a integrar seu quadro. Cumpre ressaltar ainda que, no cruzamento ; dos nomes das atuais diretorias, bem como das anteriores, é possível encontrar empresários que participam das duas entidades. Nascido dessas experiências e definido como uma organização não-governa­ mental, o Instituto Ethos atribuiu para si a seguinte missão: "mobilizar, sensibilizar e nal Valor Econômico, "acreditamque os jovens universitários, por serem formado­ res de opinião e futuros líderes, podem contribuir fundamentalmente para que as empresas e toda a sociedade estabeleçam padrões étic os de relacionamento"2º. Nesse caso, objetiva-se, por intermédio do concurso, influenciar a formação de :i ;novos intelectuais urbanos e as práticas das instituições de ensino superior segun­ do os preceitos da ideologia da "responsabilidade social". Recorrendo à justificativa para realização do concurso apresentada pelo Insti1 'luto Ethos e o V alor Econômico, primeiramente é necessário lembrar que os "pa-

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18 O Instituto Ethos partilha a promoção do Prêmio Balanço Social com as seguintes organizações: Aberje, 1 Apimec,·Fides e !base. . 19 Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2004. 20 Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2004.

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drões éticos de relacionamento" não são universais e imutáveis como se imagina no senso-comum, justamente porque são produtos da cultura, portanto impregna• dos da intencionalidade dos sujeitos históri cos, seus criadores, e inscritos nos dife­ rentes projetos societários. Em segundo lugar, é importante ter em mente que, em geral, não apreende­ mos nem nos preocupamos com as origens e vínculos (culturais, sociais e políti­ cos) da ética, "porque somos educados (cultivados) para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos" (CHAUI, 1 995, p. 336). Assim sendo, os padrões éticos de relacionamento advindos de um organis­ mo burguês não são outros a não ser aqueles originários no interior dessa c lasse e propostos como referência para o meio acadêmico e para a sociedade. A quarta linha de ação adotada pelo instituto refere-se aos diferentes tipos de cursos destinados à formação técnico-política de empresários e de seus intelectu­ ais que atuam em diferentes níveis da reorganização da sociabilidade burguesa. Trata-se de um enfoque voltado ao treinamento segundo os novos parâmetros da atuação empresarial. Entre as seis modalidades de cursos, chamam a atenção os destinados à capacitação dos docentes das instituições de ensino superior, das chamadas universidades corporativas e dos centros de�capacitação técnica e profissionalizante. Essas medidas indicam uma certa mudança no conteúdo da relação entre empresários e instituições de ensino superior. Nas décadas de 1 970 e 1 980, o siste­ ma oficial de representação patronal, sob o comando da fração industrial da bur­ guesia brasileira - por meio do Instituto Euvaldo Lodi, integrante do sistema CNI -, buscou influenciar as políticas para educação superior e o trabalho acadêmico nas instituições conveniadas, visando a uma "aliança entre a competência empresarial e o saber acadêmico para favorecer o aprimoramento da indústria nacional e da futura elite dirigente do país" (INSTITUTO EUVALDO LODI, 1 999). No entanto, essa relação manteve-se centrada na idéia da cooperação técnica - inovação tecnológica e preparação técnica de quadros dirigentes. O Instituto Ethos, por sua vez, repolitizou a relação com o mundo acadêmico ao introduzir referências m ais amplas que aque­ las experimentadas nos anos anteriores, na tentativa de difundir, nas instituições de ensino superior, parâmetros do mundo empresarial para que a subordinação da escola à empresa se tornasse mais efetiva, inclusive naqueles temas considerados de caráter técnico. Em outras pàlavras, procura-se com esses mecanismos tornar mais orgânica a produção de conhecimento científico e tecnológico às definições éticas do mundo empresarial. Essa é mais uma evidência de'que as inic iativas de "responsabilidade social empresarial" traduzem uma ampliação do grau de cons­ ciência política coletiva empresarial em direção ao nível ético-polític o.

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Essa elevação do nível de consciência política coletiva da burguesia brasileira pode ser apreendida também na própria reestruturação interna do instituto que, no ano de 2004, criou o chamado Uniethos. Este é um organismo responsável pelo desenvolvimento de pesquisas, capac itação, documentação, informação e desen­ volvimento de convênios nacionais e internacionais de cooperação voltados ao apoio · · nas ações do Ethos, e provavelmente a ponte de relações mais estreitas com o mundo acadêmico. Segundo afir mam, a criação do Uniethos21 "representa uma inovação que res­ ponde ao crescimento exponenc ial do movimento de responsabilidade social em­ presarial no Brasil e às novas demandas que ele tem gerado". Entretanto, cabe ressaltar que tal justificativa revela somente uma parte da questão. O fato não revelado é que a criação do Uniethos corresponde à tentativa de se criar um espaço próprio de produção de conhecimentos que não fique sujeito aos ritmos e contra� dições internas das instituições de ensino superior, em especial da�públicas, e à dependência de seus docentes-pesquisadores. O que se busca com es"Se organismo é a criação de um espaço de pesquisa e formação organicamente vinculado à ideologia burguesa, logo, de caráter instrumental, centrado em objetivos e metas pre · cisas, de preferência quantificáveis, que seja eficiente no plano ,político, que prime pela particularidade e que, de modo específico e paulatinamente, influencie o trabalho acadêmico das instituições de ensino superior. Talvez esta venha a ser a estratégia m ais refinada de sedução de intelectuais tradicionais para se tornarem orgânicos do projeto burguês de sociedade. No novo desenho organizac ional em vigor, o Instituto Ethos está voltado à mobilização dos empresários e à disseminação da nova ideologia na sociedade civil e na aparelhagem estatal, enquanto o Uniethos concentra seu trabalho de ela­ boração e produção intelectual para subsidiar a ação do primeiro. Embora o Uniethos tenha seu próprio estatuto e seja apresentado como entida­ . de autônoma frente ao instituto, sua dependência é assegurada pelo compar­ tilhamento ideológico, pelo financiamento de suas ações e pela composição política das diretorias. Por exemplo, seu Conselho Deliberativo é composto por 1 4 empresá. rios. Entre eles, pelo menos sete tiveram passagem marcante no PNBE: Odéd Grajew (presidente do Conselho); Emerson Kapaz; Eduardo Capobianco; Guilherme Peirão Leal; Helio Mattar; Sérgio Ephim Mindlin; Jorge Luiz Numa Abrahão. Outro membro que merece ser destacado é Horácio Piva L afer, por sua passagem na presidência da Fiesp com o apoio do grupo históric o do PNBE, responsável pela renovação 21 Disponivel em: . Acesso em: 25 out. 2004.

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interna daquela federação. Os demais membros do conselho são: Antoninho Marmo Trevisan, Celina Borges Torrealba Carpi, José Luciano Duarte Penido, Maria Cristina Nascimento, Mauro Farias Outra e Pedro Moreira Salles. Trata-se, portanto, de um aprimoramento da forma de organizar e de agir do campo empresarial em que o chamado Uniethos nada mais é do que um departamento do Instituto Ethos. O crescimento e o aperfeiçoamento do trabalho político em torno da "res­ ponsabilidade social empresarial" no Brasil foi-se consolidando na direção indicada pelos dois governos Fernando Henrique Cardoso, o que significa dizer que o Insti­ tuto Ethos é uma das maiores expressões de uma política que visa a redefinir a natureza da sociedade c ivil brasileira na atualidade, reforçando a tese gramsciana de que o Estado capitalista contemporâneo desempenha plenamente o seu papel de educador22• Avaliando o período janeiro de 2003 a dezembro de 2004, correspondente à primeira metade do governo Lula da Silva, é possível afirmar que existe uma sintonia política entre o instituto e o governo. As ações implementadas nesse período desti­ nadas a consolidar uma nova relação entre o Estado em sentido estrito e a socieda­ de civil seguiram a mesma direção do governo antecessor. Nesse sentido, repete­ se a mesma técnica política. Em resumo, os procediment