A Nova Ciência da Política

Citation preview

A N O V A C IÊ N C IA DA P O L ÍT IC A

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ......................................................................................................... PREFÁCIO ...................................................................................................................... AGRADECIM ENTOS .................................................................................................. INTRODUÇÃO .............................................................................................................

5 11 13 17

1. A teoria política e a filosofia da história. O declínio da ciência política e sua restauração. 2. A destruição da ciência política através do positivismo. Premissas positivis­ tas. A subordinação da pertinência ao m étodo. A natureza do positivismo. Manifestações d o positivismo. Acum ulação de Fatos irrelevantes. In terp reta­ ção errônea de fatos pertinentes. O m ovim ento da m etodologia. A objeti­ vidade através da exclusão dos julgam entos de valor. 3. A posição transitiva de Max W eber. A ciência isenta de valores de Weber. O dem onism o dos valores. As contradições da posição de W eber. A reapresentação dos valores. O tabu das metafísicas clássica e cristã. O positivismo desencantado. 4. A restauração da ciência política. O bstáculos e êxito. I — REPRESENTAÇÃO E EXISTÊNCIA

...............................................................

33

1. O procedim ento aristotélico. Os sím bolos da realidade e os conceitos da ciência. 2. A representação no sentido elem entar. 3. A insuficiência do conceito elem entar da representação. 4. A representação no sentido existencial. A sociedade capaz de atuar. A distin­ ção entre representante e agente. 5. A representação e a articulação social. A M agna C arta. Notificações ao Parlam ento. O caso Ferrers. A fórm ula dialética de Lincoln. 6. A teoria ocidental da representação. A consolidação dos reinos no século XV. A teoria de Fortescue. A erupção e a p ro rru p ção . O corpo mysticum. A intendo populi. 7. As fundações m igratórias. O m ito de Tróia. Paulus Diaconus. 8. A desintegração. M aurice H auriou. A idée directrice. O p o d er e o direito. O representante constitucional e o existencial. 9. Sum ário. A definição de existência. Das instituições representativas. O provincianism o da teoria contem porânea da representação.

II — REPRESENTAÇÃO E VERDADE ..................................................................

49

1. A sim bolização social e a verdade teórica. 2. A sociedade com o representante da ordem cósmica. A verdade e a m entira. A Inscrição de Behistun. A ordem m ongol de Deus, O m onadism o da ver­ dade im perial. 3. O desafio à verdade im perial. O tem po crucial da história hum ana de Jaspers. As sociedades fechadas e abertas de Bergson. 4. O princípio antropológico de Platão. C om o princípio p a ra a interpretação da sociedade. Com o instrum ento de crítica política. O p ad rão da verdadei­ ra ordem da alm a. 5. O significado da teoria. A teoria aristotélica do hom em m aduro. A teoria com o explicação de experiências. A base experiencial da teoria. 6. A au to rid ade da verdade teórica. A abertura da alm a. A psique com o o cen­ tro da transcendência. O princípio teológico. Platão e os tipos de teologia. 7. A representação trágica. Os Suplicantes de Esquilo. O significado da tra ­ m a. A atuação persuasíva do G overno. A decisão em favor de Dike, O so ­ frim ento representativo. 8. Da tragédia à filosofia. 9. Sum ário. A representação no sentido transcendental. A teoria com o a ciên­ cia da ordem . O critério da verdade na ciência.

III — A LUTA PELA REPRESENTAÇÃO N O IM PÉRIO RO M A N O

............

65

1. Problem as teóricos. Os tipos concorrentes da verdade. Distinção entre a verdade antropológica e a verdade so ter io lógica. Definição da substância da história. A dependência da teoria com relação à gam a de experiências clássicas e cristãs. 2. V arro, Santo A gostinho e os tipos de teologia. 3. A função política do Civitas Dei. O ataque ao culto ro m an o . A questão do Altar de Vitória. As posições de Símaco e Santo A m brósio, o imperator felix de Santo Agostinho. O culto ro m an o com o problem a candente. 4. O p ro b lem a existencial na teologia civil rom ana. A incom preensão de Santo A gostinho com relação à posição de V arro. Cícero e a contraposição do princeps civis ao princeps phüosophiae. O arcaísm o de Rom a. A verdade ro m a ­ na contra a verdade d a filosofia. 5. O princeps com o representante existencial. O p atro n ato e o principado. Os príncipes com o chefes políticos e m ilitares no fim da republica. O s triúnviros. O principado im perial. 6. A debilidade sacram ental do principado im perial. Experiências com a teo ­ logia im perial. A experiência com o Cristianism o. 7. Celso e o caráter revolucionário do Cristianism o. 8. O m onoteísm o m etafísico de Fílon. A teologia política de Eusébio de Cesaréia. O trinitarism o e o fim da teologia política.

IV — G N O STICISM O — A NATUREZA DA M ODERNIDADE

.....................

85

1. A vitória do Cristianism o. Desdivinizaçâo da esfera política e redivinizaçâo.

2.

3.

4.

5.

O m ilênio da Revelação e a teoria da Igreja de Sto. Agostinho- R epresenta­ ção espiritual e tem poral. A sobrevivência da idéia ro m an a na sociedade ocidental. O sim bolism o da redivinizaçào. A especulação trinitária de Jo a q u im de Flora. Os sím bolos de Jo a q u im : (a) o T erceiro R eino; (b) o L íder; (c) o Profeta G nóstico, (d) a Irm andade de Pessoas A utônom as. O T erceiro Reino nacional-socialista. M oscou — a Terceira Rom a. Reconhecim ento ocidental do problem a russo. O tipo russo de representação. O conteúdo teórico dos novos sím bolos. O significado de história tran s­ cendental em Sto. Agostinho. A im anentização do significado da história em Jo aq u im . Secularização. O eidos da história com o construção falaciosa. Os tipos de im anentização falaciosa do eschaton: progressivism o, utopism o, ativismo revolucionário. Motivos e alcance do im anentism o gnóstico, O desejo da certeza e a incer­ teza da fé. O êxito social do C ristianism o e a queda da fé. O recurso à autodivinização gnóstica. O espectro psicológico de tipos: contem plativo, em o ­ tivo, ativista. O espectro da radicalização: do paracleto ao super-hom em . O espectro civilizacional: do m onasticism o ao cientificismo. A evolução da m odernidade. O rigens no século IX. O problem a do p r o ­ gresso e declínio sim ultâneos. O prêm io da salvação à ação civilizacional. A im ortalidade da fam a e os poços de esquecim ento. M orte espiritual e assassinato de Deus. O T otalitarism o com o form a final d a civilização p ro gressivista.

V — A REVOLUÇÃO G N Ó STICA — O CASO PURITANO

...........................

101

1. Periodização da história ocidental. A m odernidade com o o crescim ento do gnosticism o. A era m oderna com o um sím bolo gnóstico. A era m oderna com o revolução gnóstica. 2. O retrato do p u ritan o p o r H ooker. A causa e o m ovim ento. 3. A revolta contra a cultura intelectual. A cam uflagem das Escrituras. A codi­ ficação da verdade gnóstica. A interdição dos instrum entos de crítica. A proibição do argum ento teórico. A reação de H ooker. A solução islâmica. Apelo à a u to rid ad e governam ental. 4. O anjo da Revelação e o exército p uritano. Um Vislumbre da Glória de Sion. O hom em com um . Q reino gnóstico dos santos. O p ro g ram a da revolução. As Perguntas a Lord Fairfax. A liquidação do Velho M undo. A guerra entre os m undos. Reflexões m etodológicas. 5. A teoria da representação de H obbes. O rdem pública contra a revolução gnóstica. A ressurreição da theoiogia dvilis. A abertura da alm a reexam inada. A tensão essencial entre a verdade da sociedade e a verdade da alm a. A so ­ lução de Platão. Vacilações cristãs. A idéia hobbesiana d a constituição perene. VI — O FIM DA M ODERNIDADE

..........................................................................

119

1. A verdade da ordem cósmica reafirm ada. O gnosticism o com o um a teologia civil. Sua tendência de rep rim ir a verdade da alm a. O ciclo de advento e recessão. Dinâm ica futura da civilização ocidental. 2. A negligência gnóstica para com os princípios da existência. Criação de um

3.

4.

5. 6.

m undo de fantasia. Suas motivações. O resultado pneum opatológico. A ta­ que às virtudes do intelecto e p ropaganda em prol da insanidade m oral. As causas do estado perm anente de guerra. A im possibilidade da paz. L iberalism o e com unism o. A situação dos intelectuais liberais. Dinâmica da revolução gnóstica. O perigo com unista. As causas da paralisia ociden­ tal. H obbes. Im anência radical da existência. A vida do espírito com o iibido dominandi. A abolição do summum bonum. Paixão e m edo da m orte. A pessoa e o Leviatã. O sim bolism o hobbesiano. A psicologia do hom em desorientado. A enfer­ m idade com o natureza do hom em . O Leviatã com o destino do intelectual. Resistência contra o gnosticism o. A relação das revoluções nacionais no O cidente com o gnosticism o. C onservadorism o inglês e norte-am ericano. A restauração das tradições.

índice onom ástico

135

APRESENTAÇÃO

NAS PROFUNDEZAS DO PENSAMENTO POLÍTICO: REALIDADES HISTÓRICAS E MITOS IDEOLÓGICOS

O s hom ens concretos, n a sua convivência histórica, eis o d ad o fundam ental da ciência política. Por isso m esm o, a teoria política é um a teoria d a história. As diver­ sas form as m ediante as quais se estruturam a sociedade e o p o d e r que a governa representam essa realidade, cuja significação mais pro fu n d a decorre do p ró p rio destino hum ano. Mas o subjetivismo d o pensam ento m oderno, ap artan d o a inteligência do seu objeto natural — o ser — e enclausurando-a no m u n d o das idéias p o r ela m esm a forjadas, deu origem , n o cam po da filosofia política e da T eoria do Estado, às construções esvaziadas de todo o conteúdo histórico, num abstracionism o fechado, incapaz de alcançar o transcendente. Nas ideologias daí resultantes bem pode ver-se um a reprodução da gnose dos prim eiros tem pos do cristianism o. Tal a tem ática desenvolvida ao longo das páginas deste volum e, a qual pode reduzir-se a três im portantíssim os tópicos, a saber: 1) historicidade das sociedades políticas; 2) teoria d a rep resen tação ; 3) gnosticism o, essência da "m o d ern id ad e” . Considerem os brevem ente esses três p ontos capitais p a ra concluirm os com um a referência à personalidade do a u to r e à atualidade da o b ra.

/. A historicidade do conviver humano A conexão entre o histórico e o político resulta da p ró p ria natureza das sociedades, isto é, do conviver hum ano. Se o hom em é o "anim al político” do conceito aristotélico, é tam bém e, p o r isso m esm o, um ser histórico. O que distingue os a g ru p a ­ m entos hum anos dos agregados anim ais é a sua variedade no espaço e no tem po, decorrente precisam ente do que há de específico no hom em , diferenciando-o dos dem ais seres da natureza: a razão. Sendo racional e, p o rtan to , livre, o hom em coopera livrem ente com os seus sem elhantes, constituindo assim as diversas socie­

dades de que faz parte. C abe à razão o rd en ar as coisas e as açôes para um fim, e q u an d o reunidos os indivíduos racionais, isto é, as pessoas, eles têm conhecim ento do fim ou bem com um a atingir, determ inando eles m esm os os m eios adequados. Com os seres destituídos de razão isto não se dá, e se vivem gregariam ente — com o ocorre, p o r exem plo, com as form igas, as abelhas e os castores — são m ovidos pelo instinto e sujeitos a leis naturais que atuam p o r um processo de determ inação n e ­ cessária. Só p o r analogia m etafórica o sociólogo francês Espinas podia dar ao conhecido livro que escreveu, a respeito, o título Les soáétés animales. Sociedade, no sentido p ró p rio , supõe racionalidade e liberdade, donde lhe decorre tam bém a nota da historicidade. N ão se pode confundir a história natural dos anim ais com a história do hom em e das civilizações. A organização de um a colm éia é sem pre a m esm a, em todas as épocas e em q u alq u er parte do m undo. Q ue contraste com a m ultiplicida­ de de form as hum anas de convivência e com a diversificação dos regim es políticos desde a trib o prim itiva até ao Estado nacional de nossos dias! A sucessão de tais form as, em m eio aos episódios tam bém os m ais variados da vida em sociedade, faz a história. Esta em erge da ordem dos acontecim entos que se vão sucedendo no decurso do tem po e, p o r sua vez, serve de lastro para a ordem instituída pelos hom ens n u m a correlação com os costumes, as tradições, o legado de cultura recebido e transm itido. O hom em é, p o r isso m esm o, naturalm ente tradicionalista. Vive e se aperfeiçoa graças à educação que lhe é dada e ao acervo de bens acum ulados pelos seus ances­ trais. Sem herança, sem tradição, não há progresso, isto é, sem a entrega de um p a ­ trim ônio de cultura de um a geração a outra. O riginariam ente a palavra traditio significa exatam ente essa transm issão ou entrega, sem a qual as sociedades se im o ­ bilizariam ou retrocederiam à barbárie. Por onde vemos q u e a tradição, longe de ser conservadorism o estático, é a p ró p ria m ovim entação da dinâm ica social, ligan­ do o presente ao passado e ao futuro. Se nos colocarm os, p o r exem plo, no terreno das ciências, com o será possível conceber aí o progresso sem a tradição, ou seja, sem aprenderm os com a experiência dos que nos precederam e sem tom arm os co­ nhecim ento das suas descobertas e invenções? Se um cientista fizesse tábua rasa destas aquisições e pretendesse com eçar tudo de novo, estaria regressando à idade do hom em das cavernas. O ra, as ideologias difundidas, sobretudo a p artir do século XVIII, representam um a ru p tu ra com a tradição. Eis p o r que, no dizer de Voegelin, não são apenas um a revolta co n tra Deus, m as tam bém u m a rebelião co n tra o hom em . Ao contrário da filosofia, que tem p o r objeto o ser, isto é, a realidade, a ideologia leva o hom em para um m u n d o de quim eras, substituindo-se à história e substituindo a realidade pela idéia en q u an to m ero p ro d u to da m ente, sem aquela "ad eq u ação ” com a coisa, segundo a definição clássica d a verdade. As ideologias revolucionárias de nossa época criaram novos m itos — os m itos da H um anidade, do Povo, da Raça, da Classe (ou do Proletariado), da Liberdade, da Igualdade, do Paraíso na T erra — , mas m itos que não sim bolizam entidades concretas com o eram os das antigas religiões, e sim abstrações que, aplicadas à p o ­ lítica real na vida dos povos, acabam p o r se dissolver na Realpolitik, na política do poder, na força totalitária. A firm ar a historicidade não é cair no erro do historicism o, pelo qual o hom em é subm etido aos im pulsos de um a pretensa consciência coletiva, nem tam pouco incidir na grosseira superstição desse progressism o que faz dos hom ens cata-ventos m ovidos pelos ventos da história e considera sem pre o m o d ern o superior ao antigo.

A teoria política sem base histórica será um a concepção desencarnada, inspirad o ra de form as de governo e de Estado desajustadas das condições reais dos povos, Ê o que tem os visto freqüentem ente, daí resultando o conflito entre o "país legal” e o "país real” , entre a constituição ju rídico-form al e a constituição social e histórica, entre o Estado e a Nação. N ote-se finalm ente qu e além e acima da ordem dos fatos — no dom ínio da história — e im prim indo-lhe um sentido, está a o rdem dos princípios e dos valores, no plano da ética e do direito natural. A política é um a ciência prudencial, a p r u ­ dência ord en a para os fins hum anos e esta ordenação só é válida e eficaz q u an d o leva em conta a situação concreta do hom em com o ser histórico.

2 . O significado político da representação A representação é um a idéia-chave da ciência política. T enho feito ver, nos m eus cursos de T eoria Geral d o Estado, que esta disciplina pode ser dividida em três partes, concernentes à sociedade, ao po d er e à representação. A sociedade civil ou política, constituída p o r famílias e outros grupos, é o m eio em que se form a o Es­ tado. O p o d er é o elem ento organizador da sociedade, princípio de unidade social, centro p ro p u lso r e coordenador. E a representação é um vínculo entre a sociedade e o poder, sintonizando a ação dos governantes e as aspirações dos governados. Mas tem os aí apenas o prim eiro sentido da representação política, dizendo respeito às denom inadas instituições representativas. T rata-se da sociedade represen­ tada junto ao poder. Além disso, cum pre considerar o p oder en q u an to ele representa a sociedade, ou, p o r outras palavras, a sociedade representada pelo poder. Assim, m es­ m o num país o nde não existam instituições representativas, o p o d er que o governa não deixa de representá-lo perante os outros Estados, sendo reconhecido p o r estes no plano das relações internacionais. A este segundo tipo de representação, Eric Voegelin cham a de representação no sentido existencial. Finalm ente, a representação assum e ainda um terceiro significado, com o valor sim bólico m anifestando um a ordem transcendente. O que claram ente se verifica não apenas na A ntiguidade oriental, desde o faraó, tido p o r u m a divindade presen­ te na terra, até os reis babilônicos, considerados comissários de M arduk, e os aquêm enides, representantes de A huram azda, mas tam bém em povos prim itivos nas áreas do Pacífico, da Am érica e da índia. A m esm a concepção reflete-se nos califados islâmicos e na China e no Ja p ã o até o nosso século. Caso singular é o do povo hebreu, q u er sob a teocracia, quer sob a m onarquia. Nas m on arq u ias cristãs medievais, a sagração real apresenta um aspecto novo, e observa-se a distinção entre as esferas do p o d e r eclesiástico e do p o d er civil, o que não ocorre no cesaropapism o bizantino e nas "m o n arq u ias de direito divino” de inspiração pro tes­ ta n te 1. C om a secularizaçào das sociedades' m odernas, há um a deslocação do tran s­ I. C f’ a respeito J E A N D E P A N G E , Le R oi très C h rétien , Arthème Fayard, Paris, 1949- Sobre os três aspectos da representação, ver J . P. GALVÀO D E SO U SA , D a R ep resen tação P o lítica , Edição S araiva, São Paulo, 1971. O primeiro aspecto - referente ao sistema representativo - ê o que mais tem sido focalizado pelos tratadistas, em consi­ derações sobre suas variantes no parlamentarismo ou no presidencialismo, sobre o regime de partidos, sobre eleições diretas e indiretas, etc. Um labirinto de questões, em meio ao qual se perdeu o fio de Ariadne e não se encontra mais a saída. O liberalismo reduziu a sociedade política a uma soma de indivíduos, preparando o caminho para o totalitaris­ mo, que dela f a z a massa manipulada pelo Estado. A sociedade há de ser representada não segundo visões ideológicas, mas como ela é na realidade, composta de fam ílias e corpos intermediários. Do contrário, nunca haverá representação autêntica.

cendente para o im anente, surgindo aqueles m itos que representam a deificação de entidades ou valores tem porais. É o caso típico do totalitarism o, deificando o Esta­ do. O que nos faz passar ao terceiro tópico acim a indicado.

3 . O fu n d o gnóstico do pensamento moderno A ru p tu ra d o pensam ento m oderno com o transcendente encontra, no dom ínio político, suas prim eiras grandes expressões em M aquiavel e H obbes, sem falarm os n o p recursor medieval de am bos, M arsílio de Pádua, Em H obbes há um a sistematização rigorosa da concepção naturalista do universo, reduzido este a um m ecanis­ m o co rp ó reo ou físico e sendo o Estado igualm ente regido p o r norm as de leis físi­ cas, com total subordinação do hom em ao corpo político, o Leviatã. Isso n ão q u er dizer que, na sua significação mais profunda, seja o pensam ento político especificam ente m o d ern o destituído de qualquer vinculaçào com m otiva­ ções religiosas. D onoso Cortés — que, com quase um século de antecipação, previu genialm ente a propagação do socialismo e o expansionism o im perialista da Rússia — fez ver nas concepções revolucionárias de sua época, de Rousseau a P ro udhon, a prática de um a filosofia panteísta e afirm ou que entre os erros contem porâneos não há nen h u m que não se resolva num a heresia2. E ainda recentem ente o renom ado m atem ático soviético Igor Chafarévitch estudou as origens do socialism o entre os cátaros e albigenses (do século XI ao XIV}, nas heresias panteístas do século XIII ao século XV e em seitas ligadas ao m ovim ento protestante, com o a dos valdenses e a dos anabatistas3. Eric Voegelin, neste p o n to co ntinuador de D onoso C ortés, em análise p r o ­ funda do im anentism o m o d ern o , filia-o à gnose dos prim eiros séculos cristãos- Na Idade M édia, esta heresia reaparece em alguns pensadores, entre os quais é de se destacar Jo a q u im de Flora, cuja interpretação da história segundo as três idades, é um a antecipação do progressism o de T urgot, C ondorcet, Com te, Hegel e Marx. O m arxism o é tam bém im anentista, e aliás M arx, u n indo a dialética de Hegel ao m aterialism o de Feuerbach, transpõe p ara a M atéria o que Hegel afirm ava da Idéia. A gnose apresenta várias form as. Em sua m odalidade p redom inantem ente intelec­ tual, pro cu ra p en etrar especulativam ente no m istério da criação e da existência. Tal é a gnose especulativa de Schelling e do sistema hegeliano. A gnose volitiva, vol­ tada p ara a ação e estabelecendo o prim ad o da praxis, destina-se a redim ir o h o ­ m em e a sociedade- É o caso de Com te, M arx, Lenin e H itler, "ativistas revolucio­ nários’\ Note-se que a expressão gnose é palavra grega que significa o conhecim ento, sendo usada para designar não o processo discursivo p ró p rio da razão, m as um a re ­ velação da verdade divina, alcançada p o r via intuitiva e trazendo ao "in iciad o ” alegria e certeza de salvação. O m ovim ento gnóstico rem onta a Sim ão M ago, cuja história nos foi transm itida pelos Atos dos Apóstolos- Desenvolveu-se no século II, mas, longe de desaparecer ante a refutação de seus erros p o r Irineu, T ertuliano, Clem ente de A lexandria e outros, ficou sendo um a vegetação religiosa parasitária ao longo da história da Igreja, corroendo a dou trin a cristã e suscitando outras tan-

2. Ver de D O N O S O C O R TÊ S , além do conhecido E n sayo so b re e l C a to lic ism o , el L ib e ra lism o y el S o c ia lism o , o Discurso sobre a Europa e principalmente a Carla ao Cardeal Fornari sobre o princípio gerador dos mais graves erros do nosso tempo, no segundo volume de suas Obras Completas, editadas pela B .A .C . ( M adrid). J . IG O R C H A F A R É V IT C H , Le P h e n o m è n e S o cia liste, Éditions du Seuil, Paris, 1977.

tas heresias4. E xtraordinariam ente reavivado em nosso século, palpita no fundo da heresia m odernista e do cham ado "progressism o” 5. Dai resultou a 'teologia da li­ bertação” , difundida hoje especialm ente na América Latina e cujo significado essencial foi anunciado p o r Eric Voegelin, antes m esm o de ter sido elaborado sis­ tem aticam ente pelos seus adeptos, com o se pode depreender do seguinte trecho do livro cuja apresentação aqui está sendo feita: "A especulação gnóstica venceu a incerteza da té recuando da transcendência e d o tan d o o hom em e seu raio de ação íntram undano com o significado da realiza­ ção escatológica. Na m edida em que essa imanentização avançou sobre o terreno da experiência, a atividade civilizadora transform ou-se num trab alh o místico de auto-salvação. A força espiritual da alm a, que no Cristianism o se devotava à santifi­ cação da vida, podia agora ser desviada rum o à criação do paraíso terrestre, tarefa esta mais atraente, mais tangível e, acima de tudo, m uito mais fácil” (IV, 5).

4. 0 autor e o Uvto Eric Voegelin e, sem dúvida, um dos mais penetrantes pensadores de nossa época. G raduado pela Universidade de Viena em 1922, fam iliarizou-se com a vida univer­ sitária na Alem anha, na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. C om o m uitos de seus com patriotas, teve de deixar o Velho M undo, em circunstâncias aflitivas e entre trágicas perturbações, pro cu ran d o refúgio na América, onde encontraria condições p ara consagrar-se à vocação de um schoiar, atraído pelas questões mais altas da filosofia política e da filosofia da história. Um e o u tro desses dois tipos de conhecim ento conjugam -se na sua obra, que ficará assinalando um m arco na trajetória do pensam ento político. É o que se pode n o tar desde logo, às prim eiras linhas da introdução p o r ele escrita para o seu livro The New Science of Poiitics, agora traduzido entre nós: "A existência do hom em na sociedade política é a existência histórica; e a teoria política, desde que penetre no terreno dos princípios, deve ser, ao m esm o tem po, um a teoria da história” . D escortinando horizontes novos para o perfeito entendim ento do assunto ver­ sado, Voegelin ultrapassa a tentativa de Haller, q u an d o este teórico do Estado suíço escreveu sobre a restauração da ciência política. C um pre lem brar, neste sen­ tido, sua notável^ obra Order and History, um m onum ento do nosso século, na ex­ pressão de G erhart Niemever, recenseando-a em The Review of Poiitics, e a propósito da qual Crane B rinton não hesitou em colocar Voegelin no p lan o de Toynbee, Spengler, Sorokin e Collingwood. No prim eiro volum e daquele tão alentado estudo — volum e tendo p o r objeto Israel e a Revelação, rem o n tan d o à M esopotâm ia e ao Egito, em mais de quinhen•/. H ouve no gnosticismo uma confluência de elementos heterogêneos:filosofia heleníslica, hermetismo e correntes mági­ co-astrológica* orientais, crenças, religiosas da ín d ia , da Pérsia e do Egito. Mas a descoberta no Egito, perto de Nag H ammadi, em 1946, de uma biblioteca copia, permitiu melhor compreensão do que tenha sido a gnose: não simples re­ sultado do sincretismo oriental, mas produto nutrido de um pensamento especificamente ju d a ico , calcado no Antigo Testamento, com vocabulário grego e fórmulas egípcias ou persas. Entre as várias seitas e doutrinas gnósticas há alguns pontos comuns: o emanatismo Ipara explicar a origem dos seres), o dualismo do princípio do bem e do princípio do mal fpara decijrar o problema do m al) e a idéia de redenção, negando-se a união hipostática e a humanidade de Jesus Cristo. 5. O modernismo fo i condenado por São Pio X na memorável Encíclica P ascendi d o m in te i g reg is de 8 de setembro de 1907, à qual deve ser acrescentada a Carla do mesmo Pontífice sobre Le S illo n (25 d e agosto de 1 9 1 0 ). Quanto ao progressismo, ele teve grande impulso na Renascença e "tornou-se uma teoria bem definida no século X V III, p rin ­ cipalmente com as obras de Condorcet e de Lessing, para se depositar comofermento ativo nos sistemas filosóficos e cien­ tíficos que, no século X IX, haviam de ser elaborados por H egel, M arx, Comte e Spencer. ” É o q u efa z ver j . VAN D E N

tas páginas, e sendo os dois tom os im ediatam ente seguintes dedicados ao m undo da "Polis” e a Platào e Aristóteles — o a u to r começa p o r delinear ao leitor a pers­ pectiva histórico-filosófica em que se situa. Vam os às suas palavras textuais: "A ordem da história em erge da história da o rd em ” . E logo a seguir: "C ada sociedade leva sobre si o peso da tarefa de criar um a ordem que dará ao fato de sua existência histórica um sentido em term os de fins divinos e h um anos” 6. Dessa ordem as sociedades m odernas têm sido afastadas pela deform ação ideo­ lógica da realidade do hom em , não só no dom ínio político, m as tam bém no cientí­ fico. Voegelin rçfere-se especialm ente aos liberais e socialistas, a M arx e Freud, às variedades de nacionalism o, progressism o e positivism o, às m etodologias neokantianas, p ara concluir: "A ideologia é a existência em rebelião contra Deus e o h o m em ” 7. Em face de tal rebelião, m arcada com o signo da gnose, ele apela para a filoso­ fia en q u an to "am o r ao ser através do am or ao Ser divino” , fonte da ordem® No que lem bra Santo A gostinho ao dizer que, sendo a sabedoria o p ró p rio Deus, ver­ dadeiro filósofo é o que am a a Deus9. José Pedro Galvâo de Sousa

BESSELAAR, em O P ro g r essism o de Sèn eca (publicação da Faculdade de Filosofiat Ciências e Letras da U niver­ sidade de Assis), ponderando que os progressistas convidam todos os homem a colaborar com o que chamam "sentido da história" variando suas motivações, conforme se trate de cristãos, positivistas ou marxistas (p p . I I e 12). 6. E. VO EGELIN, O rd er an d H istory, vol. I, Louisiana State University Press, 1956, prefácio, p . IX. 7. O p . cit., pág. XIV. Em artigo publicado por T h e R eview o f P o litics (vol. 12, n° 3 , julho de 1950, pp. 2 7 b 3 0 2 ) sob o título T h e F orm a tio n o f the M arxian R ev o lu tio n a ry Idca, VO E G E L IN estuda a posição gnóstica de M arx, herdada de Hegel, e que o leva a afirmar a "autoconsciênãa hum ana” (das m e n sc h lic h e S elb stew u sstscin) como a suprema divindade ( KARL M A RX, Ü b er d ie DifFcrenzen d er d em o k r itisch en u n d ep tk u reisch cn ~ N a tu r p h ilo so p h ie , Gesamtausgabe, 1, /) .

8 . Loc. cit. 9. D e C ivitate D ei, VIII, 1. Não nos devemos esquecer de que etimologicamente "filósofo" quer dizer "amieo da sabedoria”. 6

PREFÁCIO D urante os últim os trinta anos ou mais têm surgido, d en tre os estudiosos da política, aqueles que se opõem à m aneira tradicional de considerar o governo e a política e que rem onta aos tem pos de Aristóteles. Houve, assim, os que Fundam en­ taram a ciência política sobre bases estatísticas, psicológicas e sociológicas. Os p ro pugnadores das novas teorias ignoraram ou rejeitaram a consideração de qualquer sistema de valores ao ab o rd arem a política p o r um ângulo científico. Apesar de sua g rande aceitação nos dias de hoje, essa corrente vem enfrentando incisiva co n ­ testação em vários setores, sobretudo no p ró p rio berço da escola científica, a U ni­ versidade de Chicago. Neste livro, o Professor Voegelin presta um a contribuição inovadora e estim ulante aos objetivos e m étodos da política. Seu renom e no cam ­ po da teoria política é u m a garantia do tratam ento exaustivo e objetivo dado ao tema. A o b ra baseia-se n um a série de conferências pronunciadas d urante o inverno de 1951 na U niversidade de Chicago, sob o patrocínio da Fundação Charles R. W algreen. A cooperação do a u to r e da U niversidade de Chicago perm itiu à F un­ dação publicar essas conferências sob a form a de livro. Je ro m e G. Kerwin, Presidente da Fundação Charles R. Walgreen para o Estudo das Instituições Norte-Americanas

AGRADECIMENTOS Por ocasião do lançam ento deste livro, gostaria de expressar m inha gratidão à John Simon Guggenheim Memorial Foundation p o r rne haver p erm itido atualizar a análise dos problem as nele tratados m ediante estudos realizados na E uropa, d u ra n ­ te o verão de 1950. Esses estudos foram tam bém facilitados p o r um auxílio do C onselho de Pesquisa da Louisiana State University. Meu colega, o Professor Nelson E. Taylor, teve a gentileza de ler o m anuscri­ to; agradeço-lhe os conselhos que m e foram dados em m atéria estilística. A gra­ deço tam bém a colaboração secretarial da Srta. Josep h in e Scurria. A Viking Press gentilm ente perm itiu a citação de trechos de um livro p o r ela publicado, O presente livro foi desenvolvido a p artir de seis conferências sobre "A V er­ dade e a R epresentação” , dadas em 1951 sob os auspícios da Charles R. Walgreen Foundation. Aproveito essa agradável o portunidade para renovar meus ag rad e­ cim entos à Fundação, assim com o a seu ilustre Presidente, Professor Je ro m e G. Kerwin. Baton Rouge, Louisiana

Eric Voegelin

A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

INTRODUÇÃO 1

A k x i s t k n c i a do hom em n a sociedade política é a existência histórica; e a teoria política, desde que penetre no terreno dos princípios, deve ser, ao m esm o tem po, um a teoria da história. Por conseguinte, os capítulos que se seguem , referentes ao problem a centra! da teoria política, o da representação, estender-se-ão além da descrição das cham adas instituições representativas, ocupando-se da natureza da representação com o a form a pela qual a sociedade política passa a existir e atuar na história. Além disso, a análise não se interrom perá nesse p o n to , mas prossegui­ rá na exploração dos sím bolos pelos quais as sociedades políticas interpretam -se a si mesmas com o representantes de um a verdade transcendente. Finalm ente o conjunto desses sím bolos não representará um a m era listagem, prestando-se, pelo contrário, a um esforço de teorizaçao, com o um a sucessão compreensível de fases num processo histórico. Q ualquer investigação sobre a representação, desde que suas implicações teóricas sejam consistentem entc desdobradas, tornarse-á, na verdade, um a filosofia da história. N ão é usual, hoje em dia, levar a discussão de um problem a teórico até o p o n ­ to cm que os princípios da política se encontram com os princípios da filosofia da história. Este procedim ento não pode, no entanto, ser considerado com o um a inovação em ciência política; seria antes um a restauração, se se tem em conta que os dois cam pos, hoje cultivados separadam ente, estavam indissoluvelm ente liga­ dos q u an d o a ciência foi fundada p o r Platão. Esta teoria integral da política nasceu da crise da sociedade hclênica. As horas de crise, q u an d o a ordem da sociedade fraqueja e se desintegra, são mais propícias à consideração dos problem as fun­ dam entais da existência política em perspectiva histórica que os períodos de m aior estabilidade relativa. Pode-se dizer que, desde então, a concepção estreita da ciên­ cia política com o a descrição das instituições existentes e a apologia dos seus p rin ­ cípios, ou seja, a degradação da ciência política a um instrum ento do poder, têm si­ do típicas das situações de estabilidade, enquanto a concepção am pliada até os li­ mites de sua grandeza, com o a ciência da existência Inumana na sociedade e na história e dos princípios da ordem em geral, tem sido típica das grandes épocas de natureza revolucionária e crítica. Três dessas épocas ocorreram no desenrolar da história ocidental. A fundação da ciência política por Platão e Aristóteles m a r­ cou a crise helênica; o Civitas Dei, de Santo A gostinho, m arcou a crise de Rom a e do C ristianism o; e a filosofia hegeliana da lei e da história m arcou o prim eiro

grande terrem oto da crise ocidental. Estas são apenas as grandes épocas e as g ra n ­ des restaurações; os períodos m ilenares que as separam caracterizam -se p o r é p o ­ cas m enores e restaurações secundárias; com relação ao p erío d o m oderno, em particular, deve ser lem brada a grande tentativa de Bodin na crise do século XVI. A restauração da ciência política deve ser entendida com o um a volta à cons­ ciência dos princípios, mas não necessariam ente o reto rn o ao conteúdo específico de um a tentativa anterior. N ão se pode restaurar hoje a ciência política através de um a volta ao platonism o, ao augustinism o ou ao hegelianism o. Evidentem ente, m uito se pode ap ren d er dos filósofos anteriores no que concerne à extensão dos problem as e a seu tratam ento teórico; mas a p rópria historicidade da existência h um ana, ou seja, o d esdobram ento do que é típico em instâncias significativas e concretas, im pede que um a reform ulação válida dos princípios se faça através da volta a um a instância concreta anterior. Portanto, a ciência política não pode ser restaurada em sua dignidade com o ciência teórica, em sentido estrito, p o r m eio de um renascim ento literário das conquistas filosóficas do passado; os p rin ­ cípios devem ser retom ados através de um trabalho de teorização que tenha o ri­ gem na situação histórica concreta do seu p ró p rio tem po e leve em conta a a m p li­ tude global do conhecim ento em pírico desse tem po. Form ulado nesses term os, o em preendim ento parece gigantesco sob todos os pontos de vista; e p o d e parecer fadado ao fracasso devido à fabulosa quantidade do m aterial que a história e as ciências em píricas da sociedade põem à nossa dis­ posição atualm ente. N o entanto, esta im pressão é, na verdade, enganosa- Sem subestim ar de m o d o algum as dificuldades, o em preendim ento começa a tornarse factível em nossa época em virtude d o trabalho p rep a rató rio realizado no ú l­ tim o m eio século. J á há duas gerações as ciências hum anas e sociais estão envol­ vidas em um processo de renovada teorização. O novo desenvolvim ento, inicial­ m ente lento, cobrou força após a prim eira guerra m undial e hoje tom ou velocida­ de alucinante. A em presa se aproxim a agora da factibilidade porque, em grande m edida, é o p ro d u to da teorização convergente de m ateriais pertinentes apresen­ tados em estudos m onográficos. O título destas exposições sobre a representa­ ção, A Nova Ciência da Política, indica a intenção de co n fro n tar o leitor com um desenvolvim ento da ciência política até aqui praticam ente desconhecido do p ú ­ blico em geral e tam bém de m ostrar que a exploração m onográfica dos problem as alcançou um p o n to tal que a aplicação dos seus resultados a um problem a teórico básico em política pode ser tentada.

2

O n o v o esforço de teorização não é bem conhecido nem em seu alcance nem em suas realizações. Esta n ã o é, porém , a ocasião de em preender um a descrição que, para ser adequada, teria de ser consideravelm ente longa. N ão obstante, podem se apresentar algum as indicações a respeito de suas causas c de suas intenções, a fim de resp o n d er a algum as das questões que inevitavelm ente oco rrerão ao leitor. A restauração dos princípios da ciência política im plica que esse trabalho é necessário p o rq u e a consciência dos princípios foi perdida. O m ovim ento no r u ­ m o da nova teorização deve ser com preendido, com efeito, com o um a recuperação

a partir da destruição da ciência que caracterizou a-época positivista, na segunda m etade d o século XIX. A destruição causada p elo p ositivism o é conseqüência de duas prem issas Fundamentais. Em prim eiro lugar, o esplênd id o d esenvolvim en­ to das ciências naturais foi responsável, juntam ente com outros fatores, pela p re­ missa segun do a qual o s m étodos utilizados nas ciências m atem atizantes d o m un ­ d o exterior possuíam uma virtude inerente, razão por que todas as dem ais ciên ­ cias alcançariam êxitos com paráveis se lhe seguissem o exem pio e aceitassem tais m étodos co m o m od elo. Essa crença, por si só, era uma idiossincrasia inofensiva, e teria desaparecido q uan do os entusiasm ados adm iradores d o m éto d o -m o d elo se pusessem a trabalhar em sua própria ciência e n ão obtivessem os resultados esperados. Ela torn ou -se perigosa por se haver com b in ad o com uma segunda prem issa, qual seja a de q ue os m étodos das ciências naturais constituíam um cri­ tério para a pertinência teórica em geral. A com b inação desses dois conceitos re­ sultou na bem conhecida série de afirm ações no sentid o d e que qualquer estudo da realidade som en te poderia ser qualificado com o científico se usasse os m étodos das ciências naturais; de que os problem as colocad os em outros term os eram a p e­ nas ilusórios; de que as questões metafísicas, em especial, que não adm item res­ posta através dos m étodos das ciências fen om enológicas, nao deveriam ser for­ m uladas; de que os d om ín ios da existência que não fossem acessíveis à exp lora­ ção por m eio d os m éto d o s-m o d elo não eram pertinentes; e num p o n to extrem o, de q ue tais d om ín ios da existência nem ao m enos existiam . A segunda prem issa é a verdadeira fonte d o perigo. É a chave para a co m ­ preensão da destrutividade positivista e n ão tem recebido, de m o d o algum , a aten­ ção q ue merece. Isto porque essa segunda prem issa subordina a pertinência te ó ­ rica ao m étod o e, por conseguinte, perverte o significado da ciência. A ciência é a busca da verdade com respeito aos vários d o m ín ios da existência. Para ela, é pertinente o que quer q u e contribua para o êx ito dessa- busca. O s fatos são pertinentes na m edida em que seu con h ecim ento contribua para o estu do da es­ sência, enquanto que os m étod os são ad equados na m edida em q ue possam ser usados efetivam ente com o m eios para chegar a esse fim . O b jetos diferentes re­ querem m étod os diferentes. Um cientista p olítico q u e deseje com preender o sig­ nificado da República de Platão n ão encontrará m uita utilidade na m atem ática; um b ió lo g o q ue estude a estrutura da célula n ão julgará convenientes os m étod os da filologia clássica ou os princípios da herm enêutica. Isto p o d e parecer trivial, mas ocorre q ue a desatenção para com as verdades elem entares é um a das caracterís­ ticas da atitude positivista; daí que se to rn e necessário elaborar o óbvio. Talvez sirva com o co n solo lembrar que essa desatenção é um problem a perene na h is­ tória da ciência, uma vez q ue o próprio A ristóteles teve d e recordar a alguns e le­ m entos nocivos d o seu tem po que “ um hom em ed u cad o” não deve esperar ex a ­ tidão d e tipo m atem ático em um tratado sobre política. Se n ão se m edir a adequação d e um m éto d o pela sua utilidade com relação a o p rop ósito da ciência; se, ao contrário, se fizer d o uso de um m éto d o o critério da ciência, en tão estará perdido o significado da ciência co m o um relato verda­ deiro da estrutura da realidade, com o a orientação teórica d o hom em em seu m un do e com o o grande instrum ento para a com preensão da posição d o hom em n o universo. A ciência parte da existência pré-científica do hom em , de sua par­ ticipação no m u n d o com o seu corpo, sua alm a, seu intelecto e seu espírito, e da apreensão prim ária de tod os os d om ín ios da existência, que lh e é assegurada por­ q ue a própria natureza hum ana é a síntese desses d om ín ios. E dessa participação cognitiva prim ária, prenhe de paixão, nasce o cam inho árduo, o methodos, ru m o à

contem plação desapaixonada da ordem da existência, que constitui a essência da atitude teórica. A questão de saber se, no caso concreto, o cam inho é correto só p o d e porém ser resolvida ao se olhar para trás, do fim para o co m eço . Sc o m é ­ tod o trouxe clareza essencial ao q ue era apenas vislum brado, en tão era a d eq u a­ d o; se não conseguiu fazê-lo, ou m esm o se rrouxe clareza essencial a algo sobre o que não havia interesse concreto, então ele sc revelou inadequado. Se, por exem p lo, em nossa participação pré-científica na ordem de uma sociedade, em nossas experiências pré-cientificas do que seja certo ou errado, do que seja justo òu injusto, sentim os o desejo de penetrar no en ten dim en to teórico da fonte da ordem e da sua validade, p od em os chegar, n o curso de nossos labores, à teoria de que a justiça da ordem hum ana depende de sua participação n o Agatkon p la­ tônico, no Nous aristotélico, no Logos estóico, ou na ratio aeterna tom ista. Por d i­ versas razões, nenhum a dessas teorias talvez nos satisfaça com pletam ente; mas sabem os que estam os em busca de uma resposta desse tipo. Se, no en tanto, o cam inho nos levar à noção de que a ordem social 6 m otivada pela ânsia do poder e p elo m edo, saberem os que a essência d o problem a perdeu-se em algum p o n to no transcurso da nossa investigação — ainda que os resultados ob tid os sejam va­ liosos para o esclarecim ento de outros aspectos essenciais da ordem social. Exa­ m inan do a pergunta a partir da resposta, verificam os, p ortanto, que os m étod os da psicologia das m otivações não são ad equados à exploração d o problem a e que, neste caso concreto, seria m elh or confiar nos m étod os da especulação m etafísica e da sim bolização teológica. A subordinação da pertinência teórica ao m éto d o perverte o significado da ciência em matéria de princípio. A perversão ocorrerá qualquer q ue seja o m éto ­ do escolh id o com o m odelo. Assim , o principio deve ser cuidadosam ente distingu id o de sua m anifestação especial. Sem essa distinção torna-se extrem am ente d i­ fícil com preender o fen ôm eno histórico d o positivism o em sua natureza e em seu alcance; e, provavelm ente porque essa distinção não tem sido feita, o estudo ad e­ quado desta im portante fase da história intelectual do O cidente ainda se faz esp e­ rar. Em bora tal análise não possa ser em preendida nesta ocasião, im p õe-se expor as regras que teriam de ser seguidas nesse caso, de m o d o a proporcionar o en fo ­ que dos vários fenôm enos d o positivism o. A análise com eçaria inevitavelm ente mal sc o positivism o fosse definido co m o a doutrina deste ou daquele destacado pensador positivista — se fosse definido, p or exem plo, nos termos d o sistema de Com te. A form a especial da perversão tornaria obscuro o princípio e os fen ô m e­ nos correia tos não poderiam ser recon hecidos co m o tal porque, ao nível da d o u ­ trina, os adeptos de diferentes m étod os-rn od elo tendem a discordar entre si. Assim, seria aconselhável com eçar p elo im pacto q ue o sistem a n ew toniano causou sobre intelectuais ocidentais com o V oltaíre; tratar esse im pacto co m o um centro em ocional a partir do qual o princípio da perversão, assim com o a forma esp e­ cial d o m odelo da física, p ôd e irradiar-se, seja in dependentem ente, seja em c o m ­ binação com outros conceitos, e identificar o s eleitos, qualquer que seja a forma que eles assum am . Este p rocedim ento é especialm ente recom endável p orque, a rigor, não se tentou ainda a transferência dos m étod os da física matemática, em qualquer sentido estrito da palavra, para as ciências sociais, pela sim ples razão de que tal intento estaria claram ente con d en ad o a o fracasso. A idéia de en co n ­ trar uma "lei” dos fenôm enos sociais q ue correspondesse funcionalm ente à lei da gravitação da física new toniana nunca passou do estágio de tema de conver­ sas extravagantes na era napoleônica. A o tem po de Com te, essa idéia já se havia reduzido à "lei” das três fases, ou seja, a uma especulação falaciosa a respeito

do significado da história, que se auto-interpretava com o a descoberta de um a lei em pírica. Característico da diversificação precoce do problem a é o destino que tom ou o term o phyúque soàale. Com te queria usá-lo em sua especulação positivis­ ta, mas viu-se im pedido de fazê-lo p o rq u e Q uételet ap ro p rio u -se da expressão em suas próprias investigações estatísticas; a área dos fenôm enos sociais que efe­ tivam ente se prestam à quantificação com eçou a diferenciar-se d a área em que brincar com imitações da fisica constitui um passatem po para diletantes de am bas as ciências. Assim, se o positivismo for encarado, em sentido estrito, com o um d e ­ senvolvim ento da ciência social que usa m odelos m aternatizantes, pode-se chegar à conclusão de que o positivism o nunca existiu; se, no entanto, ele for entendido com o o propósito de to rn ar as ciências sociais "científicas” através do uso de m étodos que se assem elhem o mais possível aos m étodos em pregados nas ciên­ cias do m u n d o exterior, então os resultados desse p ropósito (em bora não inten­ cionais) serão m uito variados. Os aspectos teóricos do positivismo com o fenôm eno histórico devem ser ex­ postos com algum cuidado; a pró p ria variedade de suas m anifestações pode ser brevem ente descrita, um a vez que o vínculo que as une tenha sido explicitado, O uso do m étodo com o critério da ciência elim ina a pertinência teórica. Em conse­ qüência, todas as proposições referentes a quaisquer fatos serão alçadas à digni­ dade de ciência, independentem ente de serem ou não pertinentes, desde que re ­ sultem do correto uso do m étodo. Uma vez que o oceano dos fatos é infinito, tornase possível um a prodigiosa expansão da ciência no sentido sociológico, que dá em prego a pretensos técnicos científicos e leva a um a acum ulação fantástica de conhecim entos irrelevantes através de grandes "projetos de pesquisa” , cuja ca­ racterística mais interessante é o gasto quantíficável acarretado p o r sua realização. É grande a tentação de exam inar mais atentam ente estas flores de estufa do positi­ vismo recente e acrescentar algum as reflexões a respeito do ja rd im acadêm ico onde elas crescem, m as o ascetism o da teoria não perm ite esses prazeres b o tâ ­ nicos. A preocupação presente é com o princípio de que todos os fatos são iguais — com o já houve quem dissesse — desde que possam ser determ inados através de algum m étodo. Esta igualdade dos fatos é independente do m étodo usado no caso especial. A acum ulação de fatos irrelevantes não requer o em prego de m é­ todos estatísticos; pode perfeitam ente ocorrer no contexto dos m étodos críticos usados na história política, na descrição de instituições, na história das idéias ou nos vários ram os da filologia. A acum ulação de fatos nào digeridos teoricam ente, e talvez indigeríveis, excrecência para a qual os alemães inventaram o term o M aterialhuberei, é, p o rtan to , a prim eira das m anifestações do positivism o e, p o r estar tão difundida, tem im portância m uito m aior que excentricidade atraentes com o a "ciência unificada” . A acum ulação de fatos irrelevantes, no entanto, está inextricavelm ente li­ gada a o utros fenôm enos. Na verdade, é raro, se não impossível, encontrar g ra n ­ des em preendim entos de pesquisa que contenham apenas m aterial irrelevante. O pio r dos exem plos produzirá um a página ou outra de análises pertinentes, e pode m esm o haver pepitas de o u ro enterradas em m eio ao m aterial, à espera de sua descoberta acidental p o r algum estudioso que lhes reconheça o valor. Isto p o r­ que o fenôm eno do positivism o ocorre num a civilização que tem tradições teó­ ricas; e é praticam ente impossível encontrar um caso de irrelevância absoluta p orque, sob a pressão do am biente, até m esm o a coleção mais volum osa e inútil de m aterial de pesquisa tem de sustentar-se p or um fio, ainda que tênue, que a ligue com a tradição. M esm o o mais ferrenho positivista en co n trará dificuldades

em escrever um livro totalm ente sem valor sobre o direito constitucional am eri­ cano, desde q ue, com um m ín im o d e consciência, siga as linhas de raciocínio e os precedentes indicados pelas decisões da Suprema Corte; ainda q u e o livro seja um trabalho árido e que n ão relacione o raciocínio d os juizes (que nem sem pre são os m elhores teóricos) com um a teoria crítica da política e d o direito, o m a ­ terial terá obrigatoriam ente de subm eter-se p elo m en os a o seu p róp rio sistema de pertinência. A segunda m anifestação d o p ositivism o tem atingido a ciência com m uito m aior profundidade que o facilm ente identificável acú m ulo d e trivialidades. C o n ­ siste ela na elaboração de m aterial pertinente a partir de princípios teóricos d efi­ cientes. H á exem p los de estudiosos altam ente responsáveis q ue se dedicaram a um im enso trabalho de erudição na absorção d e m aterial histórico e q u e desp er­ diçaram quase totalm ente seus esforços p orq ue os princípios utilizados na seleção e interpretação d o m aterial n ão tinham fundam ento teórico correto, derivando, p elo contrário, d o Zeitgeist, de preferências políticas o u idiossincrasias pessoais A esta classe pertencem as histórias da filosofia grega que, de suas fontes, só conseguiram extrair um a "contribuição” para a criação da ciência ocidental; os tratados escritos sobre Platão, nos quais ele é visto co m o um precursor da lógica neo-kantiana o u , de acordo com a voga política da época, co m o um constitucionalista, um u tóp ico, um socialista ou um fascista; as histórias d o pensam ento p olítico que definem a política n os term os do con stitucionalism o ocidental e são p or isso incapazes de descobrir q u e tenha havido teoria política na Idade M édia; o u ainda a outra variante, q ue descobriu na Idade M édia um a b oa d ose d e " co n ­ tribuição” para a doutrina constitucional, m as ignora com p letam en te os m o v im en ­ tos p olíticos sectários que culm inaram na R eform a; o u um em p reen dim en to g i­ gantesco com o o Genossenshaftsrecht, de Gierke, seriam ente viciado pela convicção d o autor de que a história d o pensam ento político e legal estava providencialm en te en cam in han do-se em direção a o clím ax, m aterializado na sua própria teoria da Realperson. N esses casos, o d ano não é devido à acum ulação de matéria! inútil; ao contrário, os tratados deste tipo são, com m uita freqüência, indispensáveis p or conter inform ações fidedignas a respeito d e fatos (referências bibliográficas, com provações críticas de textos, etc). O dano é produzido pela interpretação. O con teú d o de determ inada fonte p o d e estar expresso corretam ente e, n o entanto, o trabalho p o d e produzir um a im agem totalm ente falsa porque partes essenciais foram om itidas. E foram om itidas p orque os princípios não-críticos da interpre­ tação não perm item que sejam reconhecidas co m o essenciais. As o p in iõ es não-críticas, públicas ou privadas {doxa, n o sentido platônico), não p odem preencher o lugar da teoria na ciência. A terceira m anifestação d o p ositivism o foi o desenvolvim ento da m eto d o lo g ia , sobretudo n o m eio sécu lo que vai d e 1870 a 1920. Este m ovim en to foi claram ente u m a fase d o positivism o na m edida em que a perversão da pertinência, através d o d eslocam ento da teoria para o m étod o, foi o princípio responsável p or sua ex is­ tência. Por ou tro lado, foi tam bém útil na superação do p ositivism o porque, ao generalizar a pertinência d o m étod o, fez ressurgir o en ten dim en to de que m étodos diferentes são especificam ente ad eq uad os a ciências diferentes. Pensadores co m o HusserI ou Cassirer, por exem plo, eram ainda positivistas d e tendência com tiana no q ue concerne à filosofia da história; mas a crítica d o p sico lo g ism o , de HusserI, e a filosofia das form as sim bólicas, de Cassirer, foram passos im portantes n o rum o da restauração da pertinência teórica. O m ovim ento co m o um to d o é t portanto, dem asiado com p lexo para adm itir generalizações sem qualificações extensas e cui-

dadosas. Um único problem a pode, e deve, ser selecionado p o r ter im portância específica na destruição da ciência: trata-se da tentativa de to rn ar f'objetiva” a ciência política (e as ciências sociais em geral) através da exclusão m etodológicam ente rigorosa de todos os 'ju lg a m e n to s de valor” . Para analisar-se com clareza esta m atéria é necessário, em prim eiro lugar, que se saiba que as expressões "julgam ento de valor” e "isento de valores” , referidos à ciência, não faziam parte d o vocabulário filosófico antes da segunda m etade do século XIX. A noção de ju lg am en to de valor (Werturteil) é em si carente de sentido: ganha sentido a p artir de um a situação em que se contrapõe a um ju lg am en to co n ­ cernente a fatos ( Tahachenurteile). E esta situação foi criada pelo conceito positivis­ ta de que apenas as proposições relativas a fatos do m u n d o exterior eram "o b je ti­ vas” , enquanto que os julgam entos referentes ao o rdenam ento correto da alm a e da sociedade eram "subjetivos” . Som ente as proposições do prim eiro tipo poderiam ser consideradas "científicas” , en q u an to qu e as do segundo tipo expressariam apenas preferências e decisões pessoais, não passíveis de verificação crítica e p o r­ tanto despidas de validade objetiva. Essa classificação só poderia ser válida se o dogm a positivista fosse aceito p o r princípio; e tal dogm a só poderia ser aceito p o r pensadores que não dom inassem a ciência clássica e cristã do hom em . Isto p o r­ que nem a ética nem a política clássica e cristã contém "julgam ento de valor” , mas sim elaboram , em pírica e criticam ente, os problem as da ordem derivados da a n tro ­ pologia filosófica, com o p arte de um a ontologia geral. Som ente q u a n d o a o n to lo ­ gia se perdeu com o ciência e q u an d o , em conseqüência disso, a ética e a política já não podiam ser entendidas com o ciências da ordem na qual a natureza hum ana alcança sua m áxim a realização, passou a ser possível considerar este cam po do conhecim ento com o suspeito de ser o repositório de opiniões subjetivas e não-críticas. Na m edida em que os m etodologistas aceitaram o dogm a positivista, eles p a r­ ticiparam da destruição da ciência. Ao m esm o tem po, no entanto, tentaram valen­ tem ente salvar as ciências históricas e sociais do descrédito em que estavam prestes a cair p o r causa da destruição de que eles pró p rio s participaram . Q u a n d o o episteme se arru in a, os hom ens não p aram de falar em política; m as agora eles são obrigados a expressar-se à m aneira da doxa. Os cham ados julgam entos de valor poderiam to r­ nar-se um a séria preocupação para os m etodologistas p o rq u e, em linguagem filo­ sófica, eram doxai, opiniões não-críticas a respeito do problem a da o rd em ; e a ten­ tativa dos m etodologistas no sentido de to rn ar novam ente respeitáveis as ciências sociais, pela elim inação do o p in ar nao-crítico da época, ao m enos despertou a consciência para os padrões críticos, em bora nâo fosse suficiente p ara restabelecer um a ciência da ordem . Assim, tanto a teoria dos "julgam entos de valor” q u an to a tentativa de estabelecer um a ciência "isenta de valores” foram am bivalentes em seus efeitos. Na m edida em que o ataque aos julgam entos de valor foi um ataque às opiniões não-críticas disfarçadas de ciência política, produziu um efeito p u rifi­ cador sobre a teoria. Na m edida em que o conceito de julgam ento de valor incluía to d o o co rp o da metafísica clássica e cristã e especialm ente da a n tro p o lo g ia filosó­ fica, o ataque só p oderia resultar na confissão de que não existia q u alq u er ciência de ordem hum ana e social. A variedade das tentativas concretas perdeu já grande parte d o seu interesse agora que as grandes batalhas m etodológicas são coisa do passado. Elas eram em geral orientadas pelo princípio de expulsar os "valores” da ciência, colocando-os na posição de axiom as ou hipóteses não questionadas. Por exem plo, de acordo com a prem issa de que o "estad o ” era um valor, a história política e a ciência p o ­

lítica seriam legitim adas com o "objetivas” na m edida em qu e explorassem as m o ti­ vações, ações e condições que se correlacionavam com a criação, a preservação e a extinção dos estados. Evidentem ente, o princípio levaria a resultados duvidosos se o valor legitim ador fosse deixado ao arb ítrio do cientista. Se a ciência fosse definida com o a exploração dos fatos com relação a um valor, haveria tantas histórias e ciências políticas quantos são os estudiosos que diferem em suas idéias a respeito do que seja valioso. Os fatos tratados com o pertinentes p o r terem relação com os valores de um progressista não são os m esm os considerados pertinentes p o r um conservador; e os fatos pertinentes para um econom ista liberal não o serão para um marxista. Nem o mais escrupuloso cuidado no sentido de m an ter o trabalho co n ­ creto "isento de valores” , nem a observância mais consciente do m étodo crítico na determ inação dos fatos e das relações causais poderiam im pedir que as ciências históricas e políticas naufragassem num m ar de relativismo. N a verdade, chegou-se a form ular a idéia, que aliás obteve am pla aceitação, de que cada nova geração teria que reescrever a história, um a vez que os "valores” determ inantes da seleção dos problem as e dos m ateriais são mutáveis. A confusão resultante só não foi m aior p orque, um a vez m ais, a pressão das tradições da nossa civilização m anteve a d i­ versificação das opiniões não-críticas dentro de seus limites gerais.

3 O m o v i m e n t o da m etodologia, no que concerne à ciência política, atingiu o extre­ m o de sua lógica im anente na pessoa e no trabalho de M ax W eber. N ão se pode tentar, no contcxto desta obra, um a corroboraçâo integral desta'afirm ação. Serão traçadas apenas algum as linhas que o caracterizam com o um pensador situado e n ­ tre o fim de um estágio e um novo começo. Uma ciência isenta de valores significava para W eber a exploração das causas e efeitos, a construção de tipos ideais que perm itissem distinguir as regularidades das instituições, assim com o seus desvios, e, sobretudo, a construção de relações causais típicas. Tal ciência não estaria em condições de dizer a ninguém se ele deve­ ria ser um liberal ou um socialista em m atéria econôm ica, um constitucionalista dem ocrática ou um revolucionário m arxista, mas poderia indicar-lhe quais seriam as conseqüências se tentasse aplicar os valores de sua preferência à prática política. De um lado estavam os "valores” da ordem política, insuscetíveis cíe avaliação c rí­ tica; do o u tro lado estava um a ciência da estrutura da realidade social que podia ser usada com o conhecim ento técnico p o r um político. Com esse pragm atism o, W eber agudizou a discussão em to rn o da ciência "isenta de valores” e deslocou os d e ­ bates p ara além das escaram uças m etodológicas, focalizando novam ente a ordem de pertinência, Ele queria a ciência p o rq u e queria clareza sobre o m u ndo do qual participava apaixonadam ente; percorria assim, novam ente, a estrada no rum o da essência. A busca da verdade, no entanto, cessava ao nível da ação pragm ática. No clima intelectual d o debate m etodológico, os "valores” tinham que ser aceitos com o inqüestionáveis e a procura não podia avançar até a contem plação da o r ­ dem . Para W eber, a ratio da ciência se estendia não aos princípios, mas apenas à causalidade da ação. Por isso, o novo sentido de pertinência teórica podia expressar-se apenas na

criação das categorias de ‘'responsabilidade" e "d em on ism o” na política. Weber reconheceu os valores p elo que eram , ou seja, idéias ordenadoras da ação política, mas atribui-lhes a condição de decisões "dem oníacas” , insuscetíveis d e argum en­ tação racional. A ciência só poderia confrontar o d cm o n ism o da política alertando os políticos sobre as conseqüências de suas ações e despertando neles o senso de responsabilidade. Esta "ética da responsabilidade” w eberiana n ão deve ser n e ­ gligenciada. Foi ideada para m itigar o ardor revolucionário dos polem istas in te­ lectuais políticos, especialm ente depois d e 1918; para ressaltar que o s ideais não justificam nem os m eios nem o s resultados da ação, que açào envolve culpa e que a responsabilidade pelos efeitos p olíticos cabe exclusivam ente ao hom em que se transforma num a causa. Mas ainda, o diagnóstico "d em on íaco” revela que não se p odia derivar "valores” inqüestionáveis de fontes racionais de ordem , e que a política da época tinha-se transform ado efetivam ente num cam po de desordem d e ­ m oníaca. A rematada sutileza com que este aspecto d o trabalho de W eber tem sido, e ainda é, ignorado por aqueles aos quais se dirige constitui talvez a m elh or prova de sua im portância Caso W eber se houvesse lim itado a revelar que a ciência política "isenta d e va­ lores” não é uma ciência da ordem e que os "valores” são decisões dem oníacas, a grandeza d o seu trabalho {que é mais sentida que com preendida) poderia ser posta em dúvida. A marcha ascendente em direção à essência ter-se-ia interrom ­ pido no p on to em que, da estrada principal, sai um cam inho convencionalm ente d en om in ad o "existencialism o” — uma saída para os perplexos q ue, nos anos re­ centes, entrou em m oda internacional através d o trabalho de Sartre. W eber, n o en ­ tanto, foi m uito além — em bora o pesquisador se encontre 11 a difícil p osição de ter que extrair os resultados a partir d os conflitos e contradições intelectuais em que W eber se envolveu. A m aneira de considerar o problem a da ciência isenta de v a lo ­ res, q u e acaba d e ser descrita, suscita mais de um a questão. O conceito w eberiano da ciência, por exem plo, supunha uma relação social entre o cientista e o p olítico, ativada na instituição da universidade, on d e o cientista, com o professor, inform a seus estudantes, os homines politiá potenciais, a respeito da estrutura da realidade política. P ode-se então perguntar: que p rop ósito deve ter essa inform ação? Os valores p olíticos dos estudantes supostam ente não poderiam ser tocados pela ciên ­ cia de W eber, um a vez que os valores estão além da ciência. Os princípios p olíticos d os estudantes não poderiam ser form ados por uma ciência que não se estendia aos princípios da ordem . Poderia ela talvez ter o efeito in direto de incentivar os es­ tudantes a rever seus valores» quan do verificassem as insuspeitadas e talvez indesejadas conseqüências que suas idéias políticas trariam na prática? N esse caso, então, os valores dos estudantes não estariam tão dem oniacam ente fixados. Poder~se-ía fazer um apelo à reflexão e ao julgam en to; e o que seria um julgam en to q u e resul­ tasse na preferência racional por um valor com relação a outro senão um ju lg a ­ m en to de valor? Afinal d e contas, seriam possíveis os julgam en tos de valor racio­ nais? O ensino da ciência política isenta de valores na universidade seria um em ­ p reendim ento sem sentido a m enos que fosse con cebido d e m aneira a influenciar o s valores d os estudantes, colocan d o a sua disposição um con h ecim ento objetivo da realidade política. C om o grande professor que era, W eber p ô d e desm entir sua idéia dos valores com o decisões dem oníacas, Até que p onto seu m étod o de ensino poderia ser efetivo é outra questão. Em prim eiro lugar, era um en sin o por vias indiretas, porque ele evitou deliberadam en­ te um enunciado explícito dos princípios positivos da ordem ; em segun do lugar, o en sin o, m esm o através da elaboração direta dos princípios, não poderia ser eficaz se

o estudante estivesse na verdade dem oniacam ente preso às suas atitudes. C om o educador, W eber poderia confiar apenas na vergonha (o aidos aristotélico) do estu ­ dante com o o sentim ento cjue o induziria à consideração racional. Mas o que fazer, se o estudante estivesse além da vergonha? Se o a p elo a seu senso de responsabili­ dade som ente o fizesse sentir-se desconfortável, sem resultar num a m udança de ati­ tude? O u se nem sequer lhe provocasse tal sentim ento, m as sim o fizesse cair n o que W eber chamava a "ética da intenção” (Geúnnungiethik), ou seja, na tese de que sua .crença contém sua própria jusúficação e d e q ue as conseqüências não im portam se a intenção da ação é correta? T am p ou co esta questão foi esclarecida por Weber. C om o ilustração de sua "ética da intenção” ele usou uma m oralidad e cristã "extra terrena” que nunca foi bem d efin id a; jam ais considerou o problem a de q ue seus valores d em oníacos talvez fossem d em oníacos precisam ente porque tinham a ver com a "ética da intenção” , c não com a "ética da responsabilidade” , uma vez que conferiam a qualidade de um com an do divino a uma veleidade hum ana. A discussão dessas questões som en te seria possível ao nível da an tropologia filosófica, que Weber evitou. N ão obstante, enquanto fugia dessa discussão, ele tomara a decisão d e entrar em con flito racional com os valores pela sim ples existência de seu em ­ preendim ento. O con flito racional com os valores inqüestionáveis dos intelectuais p olíticos era inerente a seu em p reen dim en to de atingir a ciência politica objetiva. A concepção original de um a ciência isenta de valores estava em dissolução. Para os m eto d o lo gistas que precederam Max Weber, a ciência social ou histórica p odia ser isenta de valores p orque seu ob jeto consistia na "referência a um valor ” (Wertbeziehende NLethode); n o cam po assim constituído, o cientista devia trabalhar, supostam ente, sem julgam entos de valor. W eber reconheceu que havia um a série de "valores” conflitantes na política de seu tem po; cada um deles poderia ser tom ado para co n s­ tituir um ''ob jeto” . O resultado teria sid o o relativism o antes m en cion ad o, c a ciência política ter-se-ia degradado, transform ando-se em um a ap o lo g ia dos ca­ prichos duvidosos dos intelectuais políticos, co m o era de fato o caso, e ainda o é em larga m edida. C om o W eber escapou a essa degradação — pois é certo q ue o fez? Se nenhum d os valores conflitantes constituía para ele o cam po da ciência e se ele preservava sua integridade crítica perante os valores p olíticos correntes, quais eram en tão os valores que constituíam sua ciência? A resposta exaustiva a estas perguntas transcende o p rop ósito da presente obra. Apenas o princípio de sua téc­ nica será ilustrado. A "objetividade” da ciência de W eber, on d e existia, poderia derivar apenas dos autênticos princípios da ordem , tais co m o haviam sido d esco ­ bertos e elaborados n o transcurso da história da hum anidade. Uma vez que, na si­ tuação intelectual de W eber, nao se p odia adm itir a existência de um a ciência da ordem , seu con teú do (ou tanto quanto possível de seu conteúdo) tinha de ser apre­ sentado p or m eio d o reconhecim ento de suas expressões históricas co m o fatos e fa­ tores causais da história. Se, por um lado, W eber, co m o m etod ologista da ciência isenta de valores, professaria não ter objeções contra um intelectual político que houvesse assum ido "dem oniacam ente” o m arxism o co m o o "valor” de sua p refe­ rência, por ou tro lado p od ia dedicar-se tranqüilam ente ao estudo da ética p r o ­ testante e dem onstrar q u e certas convicções religiosas desem penharam um papel m uito m ais im portante q ue o da luta de classes na form ação do capitalism o. R es­ saltou -se p or diversas vezes nas páginas anteriores q u e a arbitrariedade d o m éto ­ d o n ão degenerou na total irrelevância da p rodução científica porque a pressão das tradições teóricas perm aneceu com o um fator determ inante na seleção dos m ate­ riais e dos problem as. P od e-se dizer que essa pressão foi elevada por W eber à con -

dição de princípio. Os três volum es da sua sociologia da religião, p o r exem plo, lançaram no debate stpbre a estrutura da realidade um a enorm e q u an tid ad e de ver­ dades, vistas com m aior ou m enor clareza, a respeito da ordem hum ana e social. A objetividade da ciência p odia ser possivelm ente retom ada através da explicitação d o fato indiscutível de qu e as verdades a respeito da ordem eram fatores da ordem da realidade — e talvez não apenas o desejo de p o d er e riqueza ou o m edo e a frau ­ de — , m uito em b ora os princípios tivessem que en trar pela p o rta dos fundos das "crenças” , em com petição e em conflito racional insolúvel com os f'valores” co n ­ tem porâneos de W eber. Uma vez mais, W eber ignorou as dificuldades teóricas qu e esse procedim ento lhe acarretaria. Se o estudo "objetivo” dos processos históricos revelasse, p o r exem plo, que a interpretação m aterialista da história estava errada, entào, obvia­ m ente, existiria um p a d rao de objetividade na ciência que im pediria a constituição do objeto da ciência pela "referencia” dos fatos e problem as ao "valor” de um m arxista; ou — sem o ja rg ã o m etodológico — um hom em de saber não p oderia ser m arxista. Mas, se a objetividade crítica tornava impossível que um hom em de saber fosse m arxista, seria possível para qualquer pessoa ser m arxista sem a b rir m ão dos padrões de objetividade crítica que todos estam os obrigados a observar com o seres h um anos responsáveis? N ão há respostas a essas perguntas no trabalho de W eber. N ão havia ain d a chegado o tem po de dizer claram ente que o "m atéria lism o histórico” não é um a teoria, mas sim um a falsificação d a história, ou que o intérprete "m aterialista” da política é um ignorante que m elh o r faria se estudasse os fatos elem entares. C om o segundo com ponente do "d em o n ism o ” dos valores, transparece um a boa dose de ignorância, não reconhecida com o tal p o r W eber. E o intelectual político que se decide, ele p ró p rio , "dem oniacam ente” p o r seu "va­ lo r” nada m ais é que um ignorante m egalom aníaco. Pareceria q u e o "d em o n ism o ” é um a qualidade que o hom em possui em p ro p o rção inversa ao alcance de seu co­ nhecim ento pertinente. T odo o com plexo de idéias — "valores” , "referência a valores” , "ju lg am en ­ tos de valor” e "ciência isenta de valores” — pareceria estar a p o n to de desinte­ grar-se. H avia-se reto m ad o um a "objetividade” científica que claram ente não se enquadrava nos padrões do debate m etodológico. E, no en tan to , nem m esm o os estudos sobre a sociologia da religião chegaram a induzir W eber a tom ar o passo decisivo no ru m o da ciência da ordem . A razão últim a de sua hesitação, se nao foi o m edo, talvez seja inescrutável; m as o pon to técnico onde ele se deteve pode ser claram ente discernido. Seus estudos sobre a sociologia da religião sem pre desper­ taram adm iração, q u an d o nada p o r representar um tour de force. O volum e do m a ­ terial analisado nesses alentados estudos sobre o protestantism o, o confucionism o, o taoísm o, o hinduísm o, o budism o, o jainism o, Israel e o ju d aísm o , a serem com ­ pletados com um estudo sobre o islam ism o, é, na verdade, assom broso. Talvez não se tenha ressaltado suficientem ente, em vista do im pressionante vulto da ob ra, que essa série de estudos ganha seu tom geral através de um a om issão signi­ ficativa» qual seja, a do cristianism o anterio r à Reform a. A razão dessa om issão p a ­ rece óbvia. É praticam ente impossível efetuar um estudo sério do cristianism o medieval sem descobrir, entre os seus "valores” , a crença n um a ciência racional da ordem hum ana e social e, sobretudo, do direito natural. Além disso, tal ciência não constituía sim plesm ente um a crença, pois era elaborada n a prática com o um trabalho de construção racional. Nesse ponto, W eber ter-se-ia defrontado com a ciência da ordem com o um fato objetivo, com o teria acontecido se ele se houves­ se dedicado seriam ente ao estudo da filosofia grega. A disposição de W eber p a ­

ra apresentar verdades a respeito da ordem sob a form a de fatos históricos ces­ sava antes de chegar à m etafísica grega e medieval. Para po d er degradar a p o lí­ tica de Platão, Aristóteles ou Sào Tom ás ao nível de "valores” , um estudioso res­ ponsável teria prim eiram ente que dem onstrar não ter fundam ento a consideração daquelas form ulações com o científicas. E essa dem onstração é impossível. Q uando o pretendente a crítico houver penetrado no significado da m etafísica com p ro fu n ­ didade suficiente para que a sua crítica tenha peso, ele já se terá transform ado em um metafísico. A m etafísica só pode ser acacada de sã consciência q u an d o o crítico se coloca a um a distância suficiente, que lhe garanta o conhecim ento im ­ perfeito. O horizonte da ciência social de W eber era im enso; assim, sua cautela em aproxim ar-se dem asiado do centro decisivo dessa ciência é a m elhor prova de suas limitações positivistas. Deste m odo, o resultado do trabalho de W eber foi am bíguo. Ele havia reduzido ad absurdum o princípio da ciência isenta de valores. A idéia da ciência isenta de valores, cujo objeto se constituísse pela "referência a um valor” , som ente poderia concretizar-se caso o cientista estivesse disposto a decidir-se a respeito de um ' va­ lo r” com o referência. Se, ao contrário, o cientista se recusasse a o p ta r p o r um "valor” , se tratasse todos os "valores” com o iguais (com o fazia Max Weber) e se, além do mais, os tratasse com o fatos sociais entre outros — então não restariam "valores” que pudessem constituir o objeto da ciência, p o rq u e se teriam tran sfo r­ m ado em parte do p ró p rio objeto. A abolição dos "valores” com o elem entos cons­ tituintes da ciência levava a um a situação de im possibilidade teórica porque, afinal, o objeto da ciência tem u m a "constituição” , isto é, a essência ru m o à qual nos deslocam os em nossa busca da verdade. No entanto, um a vez qu e a ressaca positi­ vista nao perm itia a adm issão de um a ciência da essência, de um verdadeiro episteme, os princípios da ordem tinham de ser apresentados com o fatos históricos. Q u an d o construiu o grande edifício da sua "sociologia” (isto é, a fuga positivista à ciência da ordem ), W eber nâo considerou seriam ente todos os "valores” com o iguais. Ele nao se dedicou a organizar um a inútil coleção de quinquilharias, mas sim m ostrou preferências bastante sensatas p o r fenôm enos "im p o rtan te s” da his­ tória da hum an id ade; ele sabia distinguir perfeitam ente as principais civilizações de o u tro s desenvolvim entos periféricos e secundários, assim com o as "religiões m u n ­ diais” dos fenôm enos religiosos sem im portância. Na ausência de um princípio de teorização bem fu ndam entado, ele deixou-se guiar nao p o r "valores” , m as sim pela auctoritas majorum e p o r sua própria sensibilidade com respeito à qualidade do tra ­ balho intelectual. Até aqui o trabalho de W eber pode ser caracterizado com o u m a tentativa bem sucedida de desem baraçar a ciência política das im pertinências da m etodologia e de restaurar-lhe a ordem teórica. No entanto, a nova teoria em direção à qual cam i­ nhava não pôde ser explicitada, porque W eber observou religiosam ente o tabu p o ­ sitivista a respeito da metafísica. Ao invés disso, outras coisas foram explicitadas, pois W eber desejava ser explícito sobre os seus princípios, com o o deve ser um teó ­ rico. Ao longo de toda sua o b ra ele se esforçou p o r elab o rar um a explicação de sua teoria m ediante a construção de "tip o s” . Não se podem considerar nesta oca­ sião as diversas fases pelas quais passou esse esforço. N a últim a fase, ele usou tipos de "ação racional” com o os tipos padrões e construiu os o u tro s tipos com o desvios da racionalidade. O procedim ento ter-lhe-á ocorrido p o rq u e W eber com ­ preendia a história com o um a evolução ru m o à racionalidade e sua época com o o po n to mais alto até então alcançado na "au to-determ inação racional” do hom em . Esta idéia foi desdobrada em diferentes graus de desenvolvim ento, com relação

à história econôm ica, política e religiosa, e, de m aneira mais com pleta, com rela­ ção à história da música. Sua concepção global derivava claram ente da filosofia da história de Com te; e a interpretação weberiana da história p o d e ser vista com ju s ­ tiça com o o últim o dos grandes sistemas positivistas. N ota-se, no entanto, um a to ­ nalidade nova na execução que W eber deu ao plano. A evolução da hum anidade em direção à racionalidade da ciência positiva era para C om te um processo niti­ dam ente progressista; para W eber, era um processo de desencantam ento (Entiauberung) e de desdivinizacão ( Entgottlichung) do m undo. Por seu sentim ento de pena de que o encantam ento divino houvesse desaparecido do m undo, p o r sua resignação ao racionalism o com o um a sina a ser aturada, m as não desejada, p e ­ las queixas ocasionais d e que a sua alm a não estava em sintonia com o divino (religios un.musikQ.lhch) , W eber deixou revelar sua afinidade com os sofrim entos de Nietzsche — m uito em bora, apesar de tal confissão, sua alm a estivesse suficiente­ m ente em sintonia com o divino para que ele não seguisse Nietzsche em sua trá ­ gica revolta. W eber sabia o que almejava, mas, p o r algum a razão, nao conseguiu chegar ao objetivo. Ele viu a terra prom etida, m as não lhe foi dado nela entrar.

4 o trabalho de Max W eber, o positivism o foi tão longe q u a n to podia e se to r­ naram visíveis as linhas através das quais a restauração da ciência política teria q u e' ser em preendida. A correlação entre o "valor” constituinte e a ciência constituída "isenta de valores” se havia rom p id o ; os "julgam entos de valor” haviam re to rn a ­ do à ciência sob a form a de "crenças legitim adoras” que criavam unidades de o r­ dem social. O últim o baluarte foi a convicção de W eber de q u e a história evoluía em direção a um tipo de racionalism o qu e relegava a religião e a m etafísica ao reino do "irracional” . E m esm o esse baluarte nao era tão inexpugnável, desde que se com preendesse que ninguém estava o b rigado a nele penetrar se podia sim plesm en­ te dar-lhe as costas e redescobrir a racionalidade da m etafísica em geral e da a n ­ tropologia filosófica em particular, ou seja, das áreas da ciência com relação às quais W eber se havia conservado deliberadam ente distante. A fórm ula do rem édio é mais simples que sua aplicação. A ciência não é a c o n ­ quista individual deste ou daquele estudioso: é um esforço de cooperação. O tra ­ balho efetivo só é possível se inserido num a tradição de cultura intelectual. Q u an d o a ciência fica com pletam ente arruinada, com o foi o caso po r volta de 1900, a sim ­ ples reconquista do artesanato teórico é um a tarefa de m onta, para não m encionar as quantidades de m aterial que deve ser reelaborado para reconstituir a ordem de pertinência dos fatos e problem as. Além disso, as dificuldades pessoais não d e ­ vem ser ignoradas; a exposição de idéias novas, aparentem ente aberrantes, inevi­ tavelm ente desperta resistências. Um exem plo ajudará a com preender a natureza dessas dificuldades. W eber, com o se assinalou acim a, ainda concebia a história com o um aum ento do racionalism o no sentido positivista. Do p o n to de vista de um a ciência da ordem , no entanto, a exclusão da scientia prima dos dom ínios da razão não constitui um aum ento, m as sim um a dim inuição do racionalism o. O que W eber, na esteira de Com te, entendeu p o r racionalism o m od ern o teria de ser reinterpretado com o irracionalism o m oderno. Esta inversão dos significados socialm ente aceitos dos term os C

om

despertaria um a certa hostilidade. Mas a reinterpretação não pod eria in te rro m ­ per-se nesse po n to. A rejeição de ciências que já se encontravam desenvolvidas e o reto rn o a um nível inferior de racionalidade devem ter m otivações experiencialm ente profundas. Uma investigação mais m inuciosa revelaria que certas experiên­ cias religiosas estavam na origem da resistência a reconhecer a ratio da ontologia e da an tro p o lo g ia filosófica; e, na verdade, na últim a década do século XIX com eçou a exploração do socialism o com o m ovim ento religioso, exploração que mais tarde se transform ou no estudo extensivo dos m ovim entos totalitários com o um novo ‘'m ito ” ou religião. A investigação levaria ainda ao problem a geral da conexão entre tipos de racionalidade e tipos de experiência religiosa. Algum as experiências religiosas teriam de ser classificadas com o superiores e outras com o inferiores pelo critério objetivo do grau de racionalidade que adm item na interpretação da reali­ dade. As experiências religiosas dos filósofos místicos gregos e do cristianism o se­ riam considerados de nível elevado p o r perm itirem o desenvolvim ento da m etafí­ sica; as experiências religiosas de Com te e M arx seriam classificadas com o inferio­ res p o r pro ib irem a colocação de perguntas metafísicas. Estas considerações afeta­ riam radicalm ente a concepção positivista da evolução da h u m an id ad e de um a fase religiosa ou teológica prim itiva para o racionalism o e a ciência. A evolução não só teria o co rrid o de um grau m ais elevado de racionalism o para o u tro inferior, pelo m enos no que concerne ao período m o d ern o , mas, além disso, esse declínio da r a ­ zão teria de ser in terpretado com o conseqüência da regressão religiosa. Seria neces­ sário revolucionar um a interpretação tradicional da história ocidental, desenvol­ vida ao longo de séculos; e um a revolução dessa m agnitude enfrentaria a oposição dos "progressistas” , que, repentinam ente, se encontrariam na posição de irracionalistas retrógrados. As possibilidades de u m a reinterpretação do racionalism o e da concepção p o ­ sitivista da história foram colocadas no m o d o condicional de m aneira a indicar o caráter hipotético da restauração da ciência política na passagem do século. C ir­ culavam idéias deste tipo, m as havia um a grande distância entre a certeza de que a l­ go estava p ro fu n d am ente e rra d o com o estado da ciência e o entendim ento preciso da natureza do m al que a acom etia. Igualm ente longa era a distância entre as c o n ­ jecturas inteligentes a respeito da direção a ser tom ada para a consecução do o b jeti­ vo. Era necessário preencher um bom núm ero de condições antes que as p ro p o si­ ções, neste caso, pudessem ser apresentadas no m odo indicativo. T inha-se que re ­ tom ar o entendim ento da ontologia e o artesanato da especulação metafísica, e, sobretudo, cum pria restabelecer a antropologia filosófica com o ciência. Pelos padrões assim reconquistados, era possível definir com precisão os pontos técnicos de irracionalidade da posição positivista. Com esse pro p ó sito , os trabalhos dos principais pensadores positivistas tinham de ser analisados com cuidado a fim de se explicitar sua rejeição crítica de argum entos racionais; era preciso, p o r exem ­ plo, trazer à luz as passagens dos trabalhos de Com te e Marx em qu e estes p en sad o ­ res reconheciam a validade das questões metafísicas, m as se recusavam a considerálas p o rq u e tal consideração tornaria impossível a articulação de sua opinião irra ­ cional. Q u an d o o estudo chegasse às m otivações do irracionalism o, o pensam ento positivista teria de ser caracterizado com o um a variente da teologização, novam ente com base nas fontes, e as experiências religiosas subjacentes teriam que ser diagnós­ tico som ente po d eria ser feito com êxito se estivesse suficientem ente elaborada um a teoria geral dos fenôm enos religiosos que perm itisse o e n q u ad ram en to do caso concreto num tipo. A generalização u lterior relativa à conexão en tre graus de r a ­ cionalidade e experiências religiosas, bem com o a com paração com exem plos g re­

gos e cristãos, requereriam um estudo renovado da filosofia grega, que revelasse a ligação entre o desenvolvim ento da metafísica grega e as experiências religiosas dos filósofos que a elaboraram ; e um novo estudo da metafísica medieval teria de com ­ provar a ligação correspondente no caso cristão. Deveria ainda d em onstrar as d i­ ferenças características entre as metafísicas grega e cristã capazes de serem atrib u í­ das a diferenças religiosas. E, q u an d o todos esses estudos p rep arató rio s estivessem pro n to s, q u an d o os conceitos críticos para o tratam ento dos problem as estivessem estabelecidos e as proposições tivessem apoio nas fontes, ter-se-ia que enfrentar a tarefa final de buscar um a ordem histórica teoricam ente inteligível na qual estes m últiplos fenôm enos pudessem ser organizados. Na verdade, essa tarefa de restauração já teve início; e hoje alcançou um p o n to em que se pode dizer q u e já foram lançados ao m enos os alicerces sobre os quais se construirá a nova ciência da ordem . A descrição em detalhe desse ousado emp rendim ento está além d o escopo desta o b ra — e, além disso, tom aria a form a de um a volum osa história da ciência na prim eira m etade do século XX1. Os capítulos seguintes, a respeito do problem a da representação, pretendem apresentar ao lei­ tor esse m ovim ento, bem com o a prom essa de restauração da ciência política nele contida.

I A h istória in telectu al da p rim eira m eta d e d o sécu lo X X é ex tr em a m e n te c o m p le x a , p o r ser a h istó ria d e u m a lenta recu p eração (c o m m u itas ten tativas q u e term in aram em im p a sses) da c o m p le ta d estru içã o da cultura in telectu al o c o r r id a a o fin al d o sécu lo X IX . T alvez seja p rem a tu r o efetu a r o estu d o crítico d e sse p ro ce sso e n q u a n to a p o eir a d o s co m b a te s ain d a n ã o a sse n to u ; e, c o m e fe ito , n en h u m e s tu d o a b ra n g en te n esse se n tid o fo i fe ito até aq u i. H á, n o e n ta n to , u m a recen te in tr o d u ç ã o à filo so fia c o n ­ tem p o râ n ea q u e (apesar d e certas im p e rfeiçõ e s técnicas) d em o n stra o q u a n to p o d e ser fe ito a tu a lm en te. T r a ta -se d e Europãhche Philosophie der Gegenwart (Berna, 1947), d e I. M. B o ch en sk i. A in terp reta çã o d o a u ­ tor tem c o m o g u ia d o is m o to s c o lo c a d o s na p ágin a in icia l d o seu livro — u m , d e M arco A u rélio : f,0 f iló s o fo , este sa cerd o te e a ju d a n te d o s d eu ses” ; o u tr o , d e B ergson : " T a m b ém a filo so fia tem seu s escrib as e seu s fariseus” . As várias filo so fia s sã o classifica d a s se g u n d o seu v a lo r c o m o o n to lo g ia s , d o s n ív eis m a is b a ix o s ao s m ais a lto s, e m ca p ítu lo s in titu la d o s “ M atéria” , " Id éia ” , " V id a ” , " E ssên cia ” , " E x istên ­ cia ” e "Ser” . O ú ltim o c a p itu lo , so b re as filo so fia s d o ser, trata d o s m e ta físic o s in g leses e a lem ã es (Sa­ m u e l A lex a n d er, A lfred N . W h iteh ea d , N ic o la i H artm a n n ) e d o s n eo to m ista s. O p r im e ir o ca p ítu lo trata d a s filo so fia s situ adas n o s n ív eis in ferio res, c o m e ç a n d o p o r b a ix o c o m B ertrand R ussell, o n e o p o sitiv ism o e o m a te ria lism o d ia lé tic o .

1 A c i ê n c i a p o l í t i c a sofre de uma dificuldade que tem origem em sua própria n atu ­ reza, com o ciência do hom em em sua existência histórica. Um a vez q ue o hom em não espera pela ciência até que ela lhe exp liq u e a própria vida, q u an d o o teórico aborda a realidade social encontra um cam po já ocu p ad o p elo q ue poderia ser cham ado de auto-interpretação da sociedade. A sociedade hum ana n ao é sim ples­ m ente um fato ou uma ocorrência do m u n d o exterior, que o observador devesse estudar com o se fosse um fen ôm en o natural. Em bora a exterioridade seja um de seus com p onentes im portantes, ela é em seu todo um p eq ueno m undo, um cosmion, cujo significado provém d o seu próprio interior, através dos seres hum anos que continuam ente o criam e recriam, com o m o d o e condição de sua auto-realização. A sociedade é ilum inada por um com p lexo sim b olism o, com vários graus de c o m ­ pactação e diferenciação — desde o rito, passando p elo m ito, até a teoria — e esse sim b olism o a ilum ina com um significado na m edida em que os sím b o lo s tornem transparentes ao m istério da existência hum ana a estrutura interna desse p eq ueno mundo» as relações entre seus m em bros e grupos de m em bros, assim co m o sua existência com o um todo. A au to-ilu m inação da sociedade através d os sím b olos é parte integrante da realidade social, e p o d e-se m esm o dizer q ue é um a parte essen­ cial dela, porque através dessa sim bolização os m em bros da sociedade a vivenciam com o algo m ais que um acidente ou um a conveniência; vivenciam -na co m o p er­ tencendo a sua essência hum ana. Inversam ente, os sím b olos exprim em a experiên­ cia de que o h om em é inteiram ente hom em em virtude de sua participação em um tod o que transcende a sua existência particular, em virtude de sua participação no xynon, o com u m , na expressão de H eráclito, o prim eiro pensador ocidental que d e­ senvolveu esse conceito. E, em conseqüência, toda sociedade hum ana com preende a si m esm a através de uma variedade de sím bolos, alguns deles sím b o lo s lin gü ís­ ticos altam ente diferenciados, independentes da ciência política; tal au tocom preensâo precede historicam ente d e alguns m ilênios o surgim ento da ciência p o lí­ tica, d o episteme politike, n o sentido aristotélico. Assim , ao se iniciar, a ciência p o lí­ tica não parte de uma tabula rasa na qual pudesse inscrever seus conceitos; com eça inevitavelm ente a partir d o rico conjunto de auto-interpretações da sociedade e prossegue através do esclarecim ento crítico dos sím b olos sociais preexistentes. Q u and o Aristóteles escreveu as obras Ética e Política, q u an d o form ulou seu concei^ to da polis, da constituição, do cidadão, das várias form as d e governo, de justiça, de felicidade, etc., ele não inventou esses term os nem os d o to u d e significados arbi­ trários; ao invés, recolheu os sím b olos encontrados em seu am biente social, exam i­ nou cuidadosam ente a variedade d os significados que tom avam na conversação

com um e organizou e esclareceu esses significados com os critérios de sua teo ­ ria 1. Estas prelim inares de m o d o algum esgotam a situação peculiar da ciência p o ­ lítica, mas abrem suficientes perspectivas para o p ro p ó sito m ais im ediato, pois perm itirão algum as conclusões teóricas que, p o r sua vez, podem ser aplicadas ao tópico da representação. Q u an d o um teórico reflete sobre sua p rópria situação teórica, defronta-se com dois conjuntos de sím bolos: os sím bolos da linguagem produzidos com o parte integrante do m u ndo social em seu progresso de auto-ilum inação, e os sím bolos da linguagem da ciência política. Am bos se relacionam entre si, na m edida em que o segundo conjunto se desenvolve a p artir do prim eiro através de um processo provisoriam ente cham ado de esclarecim ento crítico. N o transcurso desse processo, alguns dos sím bolos que ocorrem na realidade serão ab an d o n ad o s p o r não se pres­ tarem à utilização científica, en q u an to novos sím bolos se desenvolverão dentro da p ró p ria teoria para a descrição crítica adequada dos sím bolos que fazem parte da realidade. Se, p o r exem plo, o teórico descrever a idéia m arxista do reino da liberdade, a ser estabelecida pela revolução com unista, com o a hipóstase im anentista de um sím bolo escatológico cristão, o sím bolo "rein o da lib erd ad e” è parte da realidade; é parte de um m ovim ento secular do qual o m ovim ento m arxista é um a subdivisão, en q u an to que term os com o "im an en d sta” , "hipóstase” e "escatologia” são conceitos da ciência política. O s term os usados na descrição não o c o r­ rem na realidade do m ovim ento m arxista, en q u an to que o sím bolo "rein o da li­ b erd ade” não tem valor p a ra a ciência crítica. N ão há, p o rtan to , nem dois co n ju n ­ tos de term os com significados diferentes, nem um conjunto de term os com dois conjuntos diferentes de significados; o que há são dois conjuntos de sím bolos com um a grande área de fonem as que se superpõem . Além disso, os sím bolos da realidade são, eles p ró p rio s, em grande parte, o resultado de processos de esclare­ cim ento, de m o d o que os dois conjuntos tam bém sc ap ro x im arão com freqüên­ cia um do o u tro com respeito aos seus significados, e, em alguns casos, chegarão a alcançar a identidade. Esta com plicada situação é um a inevitável fonte de c o n fu ­ sões, entre as quais a ilusão de que os sím bolos usados na realidade política são conceitos teóricos. Infelizmente, esta ilusão e a confusão dela resultante co rro eram p ro fu n d am e n ­ te a ciência política contem porânea. Por exem plo, ninguém hesita ao referir-se à "teoria contratual de governo” , ou à "teoria da soberania” , ou à "teoria m arxista da h istó ria” , m uito em bora, na realidade, seja m uito duvidoso que qualquer dessas cham adas teorias possa ser considerada com o tal, em sentido crítico; e volum osas historiografías sobre "teo ria política” dão tratam ento a sím bolos que, na m aior parte das vezes, encerram escasso conteúdo teórico. Essa confusão chega a anular alguns avanços logrados pela ciência política desde a antiguidade. Veja-se, a p ro p ó ­ sito, a cham ada teoria contratual. Neste caso, ignora-se o fato de que Platao já realizara um a análise exaustiva do sím bolo contratual, não só estabelecendo seu caráter nao-teórico, com o ainda explorandò o tipo de experiência do qual se o ri­ gina. Mais ainda, ele introduzira o term o técnico doxa para a classe de sím bolos da qual a "teoria co n tratu al” é um exem plo, a fim de distingui-los dos sím bolos teóticos2. Os teóricos de hoje não usam o term o doxa com esse p ro p ó sito nem desen­

1. A ristó teles, Potitics, 1280 a 7 c seg. 2. P latão, RepubíiCj 3 5 8 e — 367e.

volveram um term o equivalente. A diferenciação foi perdida. P or o u tro lado, e n ­ trou em m oda o term o "ideologia” , que, em alguns aspectos, se relacioná com a doxa platônica. Mas justam en te esse term o tornou-sc um a nova fonte de confusão porque, sob a pressào d o que M annheim cham ou allegemeine Ideologieverdacht, a suspeita geral da ideologia, seu sentido se estendeu de tal m aneira que cobre todos os tipos de sím bolos usados para proposições políticas, inclusive os pró p rio s sím ­ bolos teóricos; hoje, há num erosos cientistas políticos que classificariam com o ideologia até m esmo o episteme platônico-aristotélico. O u tro sintom a dessa confusão c d ado p o r certos hábitos de discussão. A con­ tece com certa freqüência que, em discussões sobre um tema político, um estudan­ te — na verdade, nem sem pre um estudante — me pergunte com o eu defino o fas­ cismo, o socialism o ou q u alq u e r o u tro ismo do gênero. Com igual freqüência sou forçado a su rpreender o m eu interlocutor — que aparentem ente absorveu, com o parte da sua educação universitária, o conceito de que a ciência é um depósito de definições de dicionário — com m inha afirm ação de que não m e sentia obrigado a fazer esse tipo de definição p o rque os m ovim entos do tipo m encionado, assim com o os seus simbolismos» eram parte da realidade; que apenas os conceitos podiam ser objeto de definições, e não a realidade; e era altam ente duvidoso que os sím bolos de linguagem em questão pudessem ser criticam ente esclarecidos até o p o n to em que tivessem algum a utilidade cognitiva na ciência. O terreno está agora p rep a rad o para a consideração d o tem a da representa­ ção. À luz das reflexões anteriores torna-se claro que a tarefa não será m ais sim ­ ples se a investigação for realizada de acordo com os padrões críticos da busca da verdade. O s conceitos teóricos e os sím bolos que form am parte da realidade devem ser cuidadosam ente distinguidos; na transição da realidade à teoria, os critérios em pregados no processo de esclarecim ento devem ser bem definidos; e o valor cognitivo dos conceitos resultantes deve ser verificado, colocando-os em contextos teóricos m ais am plos. O m étodo assim esboçado é, substancialm ente, o procedi­ m ento aristotélico.

2 £ a p r o p r i a d o iniciar pelos aspectos elem entares do tema. De m o d o a determ inar o que é teoricam ente elem entar, cabe reco rd ar o início desta exposição. A socieda­ de política foi caracterizada com o um cosmion, um pequeno m u n d o , ilum inado in­ ternam ente; esta caracterização foi, no entanto, qualificada com a ênfase dada ao fato de que a exterioridade é um dos com ponentes im portantes da sociedade p o lí­ tica, Tal cosmion tem um reino interior de significado, m as esse reino existe tangivelm ente no m u n d o exterior, em seres hum anos dotados de corpos e que p artici­ pam fisicamente da exterioridade orgânica e inorgânica do m u ndo. A sociedade política p ode dissolver-se não apenas pela desintegração das crenças que fazem d e ­ la um a unidade atuante na história, m as tam bém p ode ser destruída pela disper­ são de seus m em bros de tal m aneira que a com unicação entre eles se torne fisica­ m ente impossível ou, m ais radicalm ente, p o r sua elim inação física; pode, igual­ m ente, sofrer danos sérios, destruição parcial da tradição o u paralisia p rolongada m ediante o exterm ínio o u opressão dos m em bros ativos que constituem as m in o ­

rias políticas e intelectuais que dirigem a sociedade. A existência exterior da socie­ dade será entendida neste sentido q u an d o , p o r razões a serem dadas proxim am ente, falarm os do aspecto teoricam ente elem entar do nosso tema. Nos debates políticos, na im prensa e nas obras de direito internacional, as instituições políticas de países com o os Estados U nidos da Am érica, o Reino U ni­ do, a França, a Suíça, os Países Baixos e os reinos escandinavos são norm alm ente consideradas representativas. Nesses contextos, o term o instituição representativa é usado com o um sím bolo na realidade política. Caso alguém que usa esse sím bolo fosse solicitado a explicar o que entende p o r ele, certam ente responderia que as instituições de um país podem ser consideradas representativas q u an d o os m em ­ bros da assembléia legislativa ocupam seus lugares em virtude de eleições p o p u la ­ res. Se a pergunta se referisse ao excutivo, tal pessoa aceitaria a eleição p o p u lar do chefe do governo, com o nos Estados U nidos da América, m as tam bém estaria de acordo com o sistema inglês, em que um com itê da m aioria p arlam en tar com põe o m inistério, ou com o sistema suíço, em que o executivo é eleito pelas duas casas em sessão conjunta; e provavelm ente não consideraria que a presença de um m o ­ narca afete o caráter representativo, desde que tal m onarca só possa atu ar convalidado p o r um m inistro responsável. Caso se pedisse ao nosso interlocutor que fos­ se um pouco m ais explícito a respeito do significado da expressão "eleição p o p u ­ lar” , ele inicialm ente se referiria à eleição de um representante p o r todas as pessoas de m aior idade que residam em determ inado distrito territorial; mas, provavel­ m ente, não negaria o caráter representativo do processo se as m ulheres estivessem excluídas do sufrágio ou se, em um sistema de representação p ro p o rcio n al, a representatividade fosse pessoal e não territorial. Finalm ente, ele poderia sugerir que as eleições se realizassem com freqüência razoável e m encionaria os partidos com o o r­ ganizadores e m ediadores d o processo eleitoral. Q ue pode o teórico fazer com um a resposta desse tipo, em term os de ciência política? Tem ela algum valor cognitivo? Evidentem ente, trata-se de um a resposta im portante. A rigor, a existência dos países enum erados deve ser tom ada com o um ponto pacífico, sem m aiores q u es­ tões a respeito do que os faz existir ou do que se deve entender p o r existência. N ão obstante, ilum ina-se um a área de instituições que existem d en tro de um a m oldura existencial, em bora a p ró p ria m o ldura perm aneça na obscuridade. Existem, sem dúvida, m uitos países cujas instituições podem ser incluídas en tre as do tipo esb o ­ çado; e, se há algum a validade na exploração das insitituiçoes, a resposta certa­ m ente sugere um gigantesco conjunto de conhecim entos científicos. Ademais, esse conjunto de conhecim entos existe com o um fato insofismável da ciência, sob a fo r­ ma de num erosos estudos m onográficos a respeito das instituições de diferentes países, nos quais se descrevem as ram ificações e instituições auxiliares necessárias ao funcionam ento de um governo representativo m oderno, e tam bém sob a form a de estudos com parativos, que elaboram o tipo institucinal e suas variantes. Não pode tam pouco haver dúvidas a respeito da pertinência desses estudos, pelo m e­ nos em princípio, um a vez qu e a existência exterior da sociedade política é parte de sua estrutura ontológica. O s tipos de realização exterior da sociedade têm sem pre algum grau de pertinência, independentem ente da pertinência que possam ter qu an d o colocados em um contexto teórico mais am plo. Neste nível de teorização, os conceitos que entram na construção do tipo des­ critivo das instituições representativas referem -se a dados sim ples do m u ndo exte­ rio r: distritos geográficos, os seres hum anos que neles vivem, hom ens e m ulheres, suas idades, seus votos {que consistem na m arcação de pedaços de papel no lado

que tem nom es impressos), operações aritm éticas e m atem áricas das quais resulta a designação de outros seres hum anos com o representantes, o com portam ento dos representantes que resulta em atos form ais reconhecidos com tal através de ele­ m entos exteriores, etc, U m a vez que, neste nível, os conceitos não são p ro b lem á­ ticos em term os de auto-interpretação interna da sociedade, este aspecto do nosso tem a p o d e ser considerado elem entar e o tipo descritivo de representação desenvol­ vido neste nível será, p o rtan to , considerado o tipo elem entar. A pertinência desse enfoque elem entar é aceita em princípio. A extensão real de seu valor cognitivo, no entanto, só pode ser m edida colocando-se o tipo no con­ texto teórico mais am plo antes m encionado. O tipo elem entar, com o dissemos, ilum ina apenas um a área de instituições que ocorrem num contexto existencial, o qual deve ser aceito com o dado, sem outras indagações. P ortanto, devem -se fazer algum as perguntas com respeito à o u tra área, que até aqui perm aneceu na obscuridade.

3 A o s u s c i t a r estas questões, novam ente será seguido o procedim ento atistotélico de exam inar os sím bolos tal com o ocorrem na realidade. Um tema adequado p ara este questionam ento é o caráter representativo das instituições soviéticas. A U nião Soviética tem um a constituição, aliás de grande beleza, q u e estabelece insti­ tuições que podem ser, com o um todo, incluídas no tipo elem entar. Apesar disso, conflitam vivamente as opiniões em itidas p o r dem ocratas ocidentais e p o r com u­ nistas sobre seu caráter representativo. Os ocidentais dizem q u e o m ecanism o de representação p o r si só não é suficiente, que o eleitor deve ter acesso a um a escolha genuína e que o m o n o p ó lio p artidário estabelecido pela constituição soviética im ­ pede tal escolha. Os com unistas dizem que o verdadeiro representante deve efeti­ vam ente zelar pelo interesse do povo, que a exclusão dos partidos que represen­ tam interesses especiais é necessária para que as instituições sejam verdadeiram ente representativas e que som ente os países nos quais o m o n o p ó lio da representação é assegurado ao partido com unista são dem ocracias populares autênticas. Deste m odo, a discussão se fundam enta na função m ediadora do p a rtid o no processo de representação. A m atéria n ão é suficientem ente simples para perm itir um ju lg am en to im edia­ to. Ao contrário, torna-se necessária um a reflexão m ais profunda, pois, com efeito, pode-se facilm ente au m en tar a confusão ao recordar que, q u a n d o da fundação da República Am ericana, em inentes estadistas eram de opinião q u e a verdadeira r e ­ presentação só seria possível se não houvesse p artid o algum . O u tro s pensador s, além do m ais, atribuem o funcionam ento do sistema b ip artid ário inglês ao fato de que, originalm ente, os dois partidos eram , na verdade, duas facções da aristocracia inglesa; outros, ainda, verão no sistema bipartidário norte-am ericano um a h o m o ­ geneidade ulterior que leva os dois partidos a parecer duas facções de um m esm o partido. R esum indo as várias opiniões pode-se, p o rtanto, co m p o r um a série: o sistema representativo é verdadeiram ente representativo q u an d o não há partidos, q u an d o há um partido, q u a n d o há dois ou mais partidos, q u an d o os dois partidos podem ser considerados com o facções de um m esm o partido. Para com pletar o

q u ad ro , pode-se, finalm ente, acrescentar o conceito-tipo de Estado plu rip artid ário que en tro u em m oda após a Prim eira G uerra M undial, com sua im plicação de que o sistema representativo não p o d e funcionar q u an d o há dois ou mais partidos que discordam em m atéria de princípios. A parti,r dessa variedade de opiniões, podem -se tirar as seguintes conclusões. O tipo elem entar das instituições representativas não exaure o problem a da re p re ­ sentação. Através do conflito de opiniões, pode-se discernir um consenso segundo o qual o processo representativo só é significativo q u an d o certos requisitos referen­ tes à sua substância são satisfeitos, razão pela qual o estabelecim ento do processo, p o r si só, não p ro p o rcio n a a substância desejada. H á consenso tam bém q u an to ao fato de que certas instituições m ediadoras, os partidos, tem algo a ver com a conso­ lidação ou a corrupção da substância da representação. Além desse ponto, no e n ­ tanto, a m atéria se torna confusa. A substância em questão está vagam ente associa­ da com a vontade do povo, mas o que significa precisam ente o sím bolo "p o v o ” não está claro ainda. O sím bolo deve ser provisoriam ente deixado p ara exam e poste­ rior. Além disso, a discordância a respeito do núm ero de partidos que garantirão, ou nao, o fluxo da substância sugere um novo tema, ainda nâo suficientem ente analisado, e que não p o d erá ser equacionado sim plesm ente contando-se os p a rti­ dos. Segue-se daí que um conceito-tipo com o o do Estado m o n o p artid ário deve ser considerado com o de valor teórico duvidoso; ele poderá ter algum uso prático para breves referências n o transcurso de um debate político, m as obviam ente nâo está suficientem ente esclarecido a p onto de ser pertinente em term os científicos. Pertence à classe elem entar, com o o conceito-tipo elem entar das instituições re ­ presentativas. Estas prim eiras questões m etodológicas nao levam a um im passe, m as o p ro ­ gresso ob tid o é inconclusivo devido à consideração sim ultânea de um a q uantidade dem asiado grande de m aterial. A m atéria deve ser analisada em sua essência para que possa ser esclarecida; e, para esse propósito, convém fazer qm a reflexão mais profunda sobre o tema ten tad o r que é a União Soviética.

4 Se, p o r u m l a d o , pode haver desacordos radicais a respeito de se o G overno soviético representa efetivam ente o povo ou não, p o r ou tro lado nâo há nenhum a dúvida de que o governo soviético representa a sociedade soviética com o sociedade política capaz de atu ar na história. Os atos legislativos e adm inistrativos do G o ­ verno soviético são internam ente efetivos, no sentido de que as ordens governa­ m entais são obedecidas pelo povo, desprezando-se um a m argem politicam ente irrelevante de ineficácia; e a União Soviética é um a potência no cenário histórico p o rq u e o G overno soviético pode o perar efetivam ente um a en o rm e m áquina m ili­ tar alim entada pelos recursos hum anos e m ateriais da sociedade soviética. À prim eira vista, pareceria que com estas proposições a discussão alcançou ter­ renos m uito mais férteis d o pon to de vista teórico. Isto p o rq u e, sob o título "socie­ dades políticas capazes de a tu a r” entram em foco unidades históricas de po d er cla­ ram ente identificáveis. Para serem capazes de atuar, as sociedades políticas devem ter um a estrutura interna que possibilite a alguns dos seus m em bros — o gover­

nante, o governo, o príncipe, o soberano, o m agistrado, etc., de acordo com a ter­ m inologia da época — o b ter obediência natural a suas ordens e essas ordens devem servir às necessidades existenciais da sociedade, tais com o a defesa do reino e a aplicação da justiça — se se perm ite um a classificação medieval dos propósitos, Essas sociedades, organizadas internam ente para atuar, não são entes perm anentes e estáticos, e sim crescem historicam ente; o processo pelo qual os seres hum anos se incorporam num a sociedade capaz de atu ar será denom inado a articulação da so­ ciedade. Em conseqüência da articulação política, há seres hum anos, os governan­ tes, que podem atu ar em nom e da sociedade, hom ens cujos atos não são atribuídos às suas p ró p rias pessoas m as à sociedade com o um todo — o que resulta, p o r exem plo, em que a em issão de um a n o rm a geral que regule um a área da vida h u ­ m ana não será vista pelos m em bros da sociedade com o um exercício de filosofia m oral, m as sim com o o estabelecim ento de um a norm a de cum prim ento o b rig ató ­ rio. Um a pessoa representa a sociedade q u an d o seus atos são percebidos dessa m aneira. Neste contexto, o significado da representação tem p o r base um a atribuição efetiva, o que torna necessário distinguir a representação de ou tro s tipos de a tri­ buição, estabelecendo a diferença entre agente e representante. Neste sentido, p o r agente deve-se entender um a pessoa a quem seu superior a trib u iu determ inado p o d er para tratar, sob instruções determ inadas, de um assunto específico, e n q u an ­ to que p o r representante deve-se entender um a pessoa que tem o p o d er de agir em nom e da sociedade em virtude de sua posição na estrutura da com unidade, sem instruções determ inadas referentes a um assunto específico, e cujos atos não sejam efetivam ente repudiados pelos m em bros da sociedade. Um delegado ju n to às N a­ ções Unidas, p o r exem plo, é um agente de seu G overno que age sob instruções, e n q u an to que o G overno que o designou é o representante da respectiva sociedade política.

5

o governante representativo de um a sociedade articulada não pode representá-la com o um todo sem im por-se, através d e a íg u m tipo de relação, aos outros m em bros da sociedade. Esta é um fonte de dificuldades para a ciência política de nossa época p o rq u e, sob a pressão do sim bolism o dem ocrático, a resis­ tência a estabelecer um a distinção entre as duas relações, do p o n to de vista term i­ nológico, tornou-se tão forte que chegou a afetar a teoria política, O p o d er gover­ nante é um p o d er governante m esm o num a dem ocracia, apesar das hesitações em encarar esse fato. O G overno representa o povo e o sím bolo "p o v o ” absorveu os dois significados que, na linguagem medieval, p o r exem plo, p o d iam ser distinguidos um do o u tro , sem resistência em ocional: o "re in o ” e os "súditos” . A atual pressão do sim bolism o dem ocrático é a últim a fase de um a série de com plicações term inológicas que com eçam nos m eados da Idade M édia, com a incipiente articulação das sociedades políticas ocidentais. A M agna Carta, p o r exem plo, se refere ao Parlam ento com o o "commune consilium regni nostri" o "co n se­ lho com um de nosso rein o ” 3. Exam inem os esta fórm ula. Ela designa o Parlam ento E v id e n t e m e n t e ,

3 M agna C arta, cap . 12.

com o o conselho do reino e nào necessariam ente com o a representação do povo, visto que o reino, em si, é um a possessão do rei. A fórm ula é característica de um a época p ara a qual convergem dois períodos de articulação social. N um a prim eira fase, o rei é o único representante do reino e o sentido deste m o n o p ó lio da rep re ­ sentação está preservado no p ro n o m e possessivo acoplado ao sím bolo '"reino” . N um a segunda fase, as com unas do reino — condados, burgos e cidades — com e­ çam a articular-se até que se tornaram capazes de atu ar com o representantes delas m esm as; os p ró p rio s barões deixaram de ser senhores feudais isolados e se associa­ ram no baronagium, um a com una capaz de atuar, com o se vê na forma securitaíis da M agna Carta. Não é necessário assinalar os detalhes desse processo com plicado; o p o n to de interesse teórico é que, q u an d o os representantes das com unas articu la­ das se encontram no conselho, form am com unas de um a ordem superior, e assim sucessivamente até o P arlam ento de duas casas, q.ue se vè a si m esm o com o o co n ­ selho representante de um a sociedade ainda m aior, o reino com o um todo. Com a progressiva articulação da sociedade, desenvolve-se, assim, um a representação com posta peculiar, ju n ta m en te com um sim bolism o que expressa sua estrutura hierárquica interna. A parte principal da representação perm aneceu com o rei nos séculos que se seguiram à M agna C arta. Os writs of summons, notificações dos séculos X III e XIV, revelam um a term inologia consistente, reconhecendo a articulação da sociedade m as incluindo ainda os novos participantes da representação d en tro da represen­ tação m onárquica pro p riam en te dita. N ão só o reino pertence ao rei; tam bém os prelados, os m agnatas e as cidades lhe pertencem . O s com erciantes independentes, p o r o u tro lado, não estão incluídos no sim bolism o representativo; eles não sao do rei, m as sem pre " d o re in o ” , ou "d a cidade” , ou seja, do todo ou de um a su b ­ divisão articu lad a4. Os indivíduos com uns, m em bros da sociedade, sao sim ples­ m ente "h ab itan tes” ou "cidadãos do rein o ” 5. O sím bolo " p o v o ” nào é utilizado com referencia a um nível de articulação e representação; é usado apenas, e o ca­ sionalm ente, com o sinônim o do reino, com o na frase "o bem -estar geral do re i­ n o ” 6. A fusão dessa hierarquia representativa em um único representante, o rei no Parlam ento, to m o u um tem po considerável; o fato de que esse processo de fusão estava oco rren d o só se to rn o u teoricam ente tangível séculos depois, num a fam osa passagem d o discurso de H enrique V III ao Parlam ento a p ro p ó sito d o caso Ferrers. Nessa ocasião, em 1543, o rei disse: "Som os inform ados p o r nossos Juizes de que em tem po algum nos elevam os mais em nossa condição real d o que q u an d o o P ar­ lam ento está reunido, ocasião em que, nós com o cabeça e vós com o m em bros, nos entrelaçam os e nos articulam os form ando um só corpo político, de tal m aneira que qualquer ofensa ou ataq u e (durante esse tem po) dirigido contra o mais inferior dos m em bros da Casa deve ser ju lg ad o com o se fosse feito contra a nossa pessoa e c o n ­ tra toda a C orte do P arlam ento” . A diferença de nível entre o rei e o Parlam ento ainda é preservada, m as já pode ser sim bolizada através da relação entre a cabeça e os m em bros de um c o rp o ; o representante com posto transform a-se em "u m só corpo político” ; a condição real se engrandece com sua participação na represen­ tação parlam en tar e o Parlam ento se engrandece com sua participação na m ajes­ tade da representação real. 4 Notificação de um "coüoqutum” de comerciantes (5303), in S tu b b s, Select Charters (8# ed .) p . 5 0 0 . 5 Notificação do Arcebispo e do Clero ao Parlamento (1295 ), in S tu b b s, op. cit., p. 48 5 . 6 Notificação ao Parlamento de Lincoln {1301), in S tu b b s, op. á t . , p . 49 9 .

A direção em que os sím bolos se deslocam deve ter-se to rn ad o clara com esta passagem : q u an d o a articulação se expande p o r toda a sociedade, tam bém o rep re­ sentante se expandirá até que se alcance o limite determ inado pela articulação p o ­ lítica total da sociedade, até o últim o indivíduo, e pelo fato correspondente de que a sociedade se torna o representante de si m esm a. Sim bolicam ente, esse lim ite é alcançado na m agistral descrição do governo feito p o r Lincoln — "d o povo, pelo povo, para o povo” . O sím bolo "p o v o ” nesta fórm ula significa sucessivamente a sociedade política articulada, seu representante e a com unidade afetada pelos atos do representante. A fusão inigualável do sim bolism o dem ocrático com o conteúdo teórico é o segredo do efeito dessa fórm ula. O processo histórico no qual se alcança o lim ite da articulação expressada através do sim bolism o do "p o v o ” nos ocupará, em detalhe, num a etapa posterior desta obra. Por ora, deve-se n o ta r que a transi­ ção para o lim ite dialético pressupõe um a articulação da sociedade até o nível do indivíduo com o unidade representável, Este tipo particular de articulação não ocorre em toda p arte; com efeito, existe apenas nas sociedades ocidentais. De m odo algum é ela um a qualidade da natureza hum ana, não po d en d o ser separada de cer­ tas condições históricas que, um a vez m ais, só se deram no O cidente. N o O riente, onde essas condições específicas estão historicam ente ausentes, esse tipo de articu ­ lação sim plesm ente não ocorre — e o O riente abrange a m aio r p arte da h u m an i­ dade.

6

A a r t i c u l a ç ã o é, pois, a condição da representação. Para chegar a existir, a so­ ciedade deve articular-se. A fim de produzir um representante que aja p o r ela. Pode-se prosseguir agora com o esclarecim ento desses conceitos. Por trás do sím ­ bolo "articulação” esconde-se nada m enos que o processo histórico através do qual as sociedades políticas, as nações e os im périos ascendem e caem , assim com o as evoluções e revoluções qu e ocorrem entre os dois pontos extrem os. A individualização de tal processo em cada exem plo de sociedade política não chega ao p o n to de to rn ar impossível e n q u ad rar suas m últiplas variedades em alguns tipos gerais. Mas este é um vasto tópico ITovnbee já escreveu seis volum es p a ra expô-lo) que deve ser posto de lado. A preocupação n o m om ento deve concentrar-se em exam inar se as implicações do conceito da articulação podem ser diferenciadas ainda mais. Isto evidentem ente p ode ser feito e existem diversas tentativas interessantes nesse sentido. Com efeito, essas tentativas são feitas q u a n d o a articulação da sociedade chega a um p o n to crítico; o problem a cham a atenção q u a n d o a sociedade está prestes a com eçar a existir, q uando está prestes a se desintegrar, ou q u an d o está atravessando um a fase crucial de sua história. Um a fase crucial d o desenvolvim ento das sociedades ocidentais ocorreu aproxim adam ente na m etade do século XV, com a consolidação dos reinos nacionais, após a G uerra dos Cem Anos. Nessa e ta ­ pa crítica, um dos m elhores pensadores políticos ingleses, Sir J o h n Fortescue, ten­ tou teorizar o problem a da articulação. Vale a pena exam inar o que ele tinha a dizer. A realidade política que interessava particularm ente a Fortescue eram os reinos da Inglaterra e da França. Sua am ada Inglaterra era um dominium politicum et regale, o que hoje se cham aria u m governo constitucional; a perversa França de Luis XI era um dominium tantum regale, algo com o um a tirania — boa apenas com o exílio,

q u an d o o paraíso constitucional se to rn o u dem asiado in ó sp ito 7, O m érito de Fortescue foi o de nao se ter lim itado a um a descrição estática dos dois tipos de gover­ no. É bem verdade que ele usou a analogia estática do organism o q u an d o insistiu em que o reino deve ter um governante assim com o o corpo tem um a cabeça, mas tam bém é verdade que, em um a brilhante página do seu livro De laudibus legum Anglie, ele to rn o u a analogia dinâm ica, com parando a criação do reino com o cres­ cim ento de um corpo articulado a p a rtir do em b rião 8. Um estado social politica­ m ente inarticulado dá lugar à articulação do reino, ex popuio erumpit regnum. Fortescue usou a palavra "e ru p ç ã o ” com o term o técnico para designar a articulação ini­ cial da sociedade e " p ro rru p ç ã o ” para designar os progressos da articulação, tais com o a transição de um reino m eram ente m onárquico para um reino político. Esta teoria da erupção d o povo não supõe que, p artin d o de um estado natural, o povo, p o r m eio de um contrato, em erja já organizado e sob o im pério da lei. Fortescue conhecia a diferença perfeitam ente bem . Para m arcar sua posição com cla­ reza, ele criticou a definição de Santo A gostinho, segundo a qual o povo era um a m ultidão associada p o r consentim ento a um a ordem ju sta e à com unhão de inte­ resses. Esse povo, dizia Fortescue, seria acephalus, constituído apenas do tronco de um corpo sem cabeça; só se pode chegar ao reino através do estabelecim ento de um a cabeça para governar o c o rp o : rex erectus esL A criação dos conceitos de erupção e p ro rru p ção constitui um avanço teórico significativo, p o rque nos perm ite distinguir o com ponente da representação que ficou quase totalm ente esquecido onde quer que o sim bolism o ju ríd ico dos séculos seguintes p red o m inou na interpretação da realidade política. Mas Fortescue foi ainda além. Ele com preendeu que a analogia orgânica poderia aju d ar a construção d o conceito da erupção, m as que, afora isso, tinha pouca utilidade cognitiva. Havia algum a coisa no reino articulado, um a substância interior que proporcionava a força vinculatória da sociedade, a qual nao podia ser ap reendida através da a n alo ­ gia orgânica. Para aproxim ar-se dessa substância m isteriosa, ele transferiu o sím ­ bolo cristão do corpus mysticum para o reino. Esse foi u m passo fundam ental em sua análise, que desperta interesse em mais de um aspecto. Em p rim eiro lugar, o sim ­ ples fato de que tal passo tenha sido dado já era sintom ático do declínio da socie­ dade cristã, articulada na Igreja e no im pério; p o r conseguinte, era tam bém sinto­ m ático da consolidação progressiva dos reinos nacionais com o sociedades autocentradas. Em segundo lugar, o passo revelou que os reinos haviam adquirido um significado particularm ente fundam ental. Na transferência do corpus mysticum para o rein o pode-se apreciar a evolução ru m o a um tipo de sociedade política que su ­ cederá não apenas ao im pério, m as tam bém à Igreja. Logicam ente, estas im plica­ ções não foram sequer vagam ente visualizadas p o r Fortescue; m as a transferência apontava em direção ao estabelecim ento de um representante d a sociedade com relação a todos os segm entos d a existência hum ana, inclusive a sua dim ensão espi­ ritual. Ao contrário, Fortescue estava bastante consciente de que o reino só poderia ser cham ado de corpus mysticum num sentido analógico. A tertium comparationis seria o vínculo sacram ental da com unidade, distinto tanto do Logos de Cristo, que vive nos m em bros do corpus mysticum cristão, q u ãn to de um Logos pervertido com o o que vive nas com unidades totalitárias m odernas. No entanto, em b o ra não estivesse consciente das im plicações de sua busca de um Logos im anente da sociedade, ele

7 F o rtescu e, The Govemance o f EngUmd, ed . P iu m m er (O x fo r d , 1885), cap s. I e II. 8 F o rtescu e, D e laudibus legum Anglte, ed S. B. C h rim es (C a m b rid g e, 1942), cap. X III.

lhe deu um nom e, c h am an d o -o intendo populi. A intendo populi é o centro d o corpo m ístico do rein o ; novam ente com um a analogia orgânica, ele o descreve com o o coração a p artir d o qual se transm ite à cabeça e aos m em bros d o corpo, com a c o r­ rente nutriente do sangue, a provisão política do bem estar d o povo. N ote-se a função da analogia orgânica neste contexto; ela não serve p a ra identificar m em ­ bros da sociedade com partes correspondentes d o corpo, mas, ao contrário, tenta m o strar que o centro an im ad o r do corpo social não será e n co n trad o em nenhum dos seus m em bros hum anos. A intendo populi não se localiza nem no representante real, nem n o povo com o m ultidão de súditos; é, porém , o intangível centro vital do reino com o um todo. A palavra "p o v o ” nesta fórm ula não significa a m u lu d ão exterior de seres hum anos, m as a substância m ística que "e n tra em erupção” na articulação; e a palavra "in ten ção ” significa o im pulso ou a necessidade dessa subs­ tância em ergir e conservar sua existência articulada, com o u m a entidade que* p o r m eio de sua articulação, p o d e p ro p o rcio n ar seu p ró p rio bem -estar. Q u an d o Fortescue aplicou concretam ente sua concepção, em The Govemance of England, esclareceu um pouco m ais a idéia do representante real, contrastando-a com a concepção feudal hierárquica da organização real. N a concepção feudal, o rei era " o mais alto estado tem poral sobre a terra” : inferior, em nível, ao estado eclesiástico, m as superior aos feudatários que existem dentro d o rein o 9. Fortescue aceitou a ord em dos estados da Christianitas; estava longe de conceber a idéia de um estado soberano e fechado, m as introduziu o novo corpus mysticum no corpo m ís­ tico de Cristo, a trib u in d o ao representante real um a dupla função. N a ordem da Christianitas, o rei perm anecia com o o mais alto estado tem poral, mas, ao m esm o tem po, a casa real deveria ser vista com o um a instituição que provê a defesa e a justiça do reino. Fortescue cita Santo T om ás dè A quino: "O rei é dado ao reino, e não o reino ao rei” ; e daí parte para concluir: o rei é em seu reino o que o Papa é na igreja, um servus servorum Dei; e, p o r conseguinte; "tu d o o q u e o rei faz deve ser referido ao seu rein o ” — a form ulação m ais com pacta do problem a da represen­ tação ,0.

7 A e l a b o r a ç a o desse sim bolism o foi o grande êxito pessoal de Fortescue com o teórico. Os reinos da Inglaterra e da França causaram grande im pressão na época p o r existirem com o unidades de po d er depois que a G uerra dos Cem Anos des­ m antelou a estrutura feudal do po d er e propiciou a fixação territorial dos reinos. Fortescue tentou explicar o que eram , na verdade, os reinos, essas novas e curiosas entidades. Sua teoria foi a solução original de um p roblem a qu e se apresentava na realidade. Seu trabalho foi facilitado, no entanto, p o r um a tradição de articulação política que sobrevivera desde o p eríodo da G rande M igração, anterio r à fundação do im pério ocidental. Em um a seção pouco estudada de The Govemance of England ele usou com o m odelo d e articulacãojsolítica um a das m uitas versões a respeito da fundação dos reinos resultantes da m igração de um g rupo de refugiados troianos. O m ito da fundação de reinos no O cidente p o r um b ando de troianos chefiados p o r um filho ou neto de Enéias era bastante conhecido; e servira, no início da civi­

9 F ortescu e, The GôVtmúnce o f England, cap. V III. 10 Ibid.

lização do ocidente, para em prestar às novas colônias um a origem digna, com pa­ rável à de Roma. No m odelo de Fortescue, um desses bandos, chefiados p o r Brutus, que deu origem ao nom e britânico, fundou a Inglaterra. Q u an d o esse "g ran d e g ru ­ p o ” , escreveu ele, "q u e chegou a esta terra com Brutus, m ostrou-se desejoso de unir-se e co m p o r um corpo político cham ado reino, com um a cabeça para governá-lo, o p ró p rio Brutus foi escolhido cabeça e rei. £ eles e o rei, em conseqüência de sua incorporação, instituição e união com o reino, o rdenaram que o m esm o reino tivesse governo e justiça de acordo com leis às quais todos eles assentissem ” 11, O com ponente tro ian o do m ito, a rivalidade com Rom a, tem interesse apenas secundário para o p ro p ó sito atual; mas, sob a aparência exterior do m ito, está re ­ gistrada a efetiva articulação dos bandos m igratórios em sociedades políticas. O m ito ressalta a fase inicial da articulação, e convida a um a rápida consulta às n a rra ­ tivas originais das fundações das colônias, assim com o à term inologia em que a articulação é descrita. Selecionarei para este fim algum as passagens da "História dos Lombardos", de Paulus D iaconus, escrita na segunda m etade do século V III. Segundo a narrativa de Paulus, a história ativa dos lom bardos teve início q u a n ­ do, após a m orte de dois duques, o povo decidiu que nao queria mais viver em p e ­ quenos grupos federados, dirigidos pelos duques, m as sim "conferir se um rei, com o as outras nações” 12. A linguagem revela a influência do desejo israelita, ex presso n o livro de Sam uel, de ter um rei com o as outras nações, m as o processo prático da articulação das tribos em um reino é registrado com m uita clareza. Q u a n d o , no decurso da m igração, a federação tribal m ostrou-se dem asiado frouxa e fraca com o estrutura, elegeu-se um rei com o p ropósito de o b ter um a direção m ais eficaz dos assuntos m ilitares e adm inistrativos; e o rei foi escolhido de um a fam ília " q u e era tida entre eles com o particularm ente n o b re” . A narrativa chega a alcançar a articulação inicial, historicam ente concreta. Nessa situação estava p re ­ sente o que se pode cham ar de m atéria-prim a social, que consistia em a g ru p a m en ­ tos de nível tribal, suficientem ente hom ogêneos para articularem -se em um a socieda de m aior. Pode-se identificar, adem ais, a pressão das circunstâncias, que p ro ­ porciona o estím ulo para a articulação; e, finalm ente, havia m em bros do grupo que se destacavam o bastante, em term os de carism a sangüíneo e pessoal, para to r­ narem -se representantes bem sucedidos. Sigamos um pouco m ais o histo riad o r dos lom bardos. Após a eleição do rei, com eçaram as guerras vitoriosas. Prim eiram ente os hérulos foram derrotados e seu p o d e r fragm entado a tal p o n to que "eles já não tinham rei” 13. A essa seguiu-se a guerra com os gépidas, cujo fato decisivo foi a m orte do filho do rei gépida, "o qual havia sido um dos fatores principais na causaçâo da g u erra” 14. Após a m orte do jovem príncipe, os gépidas fugiram e, com o no caso anterior, "finalm ente ab ate­ ram -se tanto que já não tinham rei” . Podem -se acum ular ou tras passagens sim i­ lares de o utros historiadores do período das m igrações. L im item o-nos a um bom exem plo apenas: Isidoro n arra com o os alanos e os suevos perd eram a indepen­ dência do seu reino p o r o b ra dos godos, mas, p o r estranho que pareça, conserva­ ram seu rei na Espanha p o r longo tem po, "em b o ra disso não tivessem necessidade, em sua in interrupta q u eitude” . Em toda a historiografia das m igrações, do século V ao V III, a existência histórica da sociedade política era expressa sistem aticam ente 11 Ibid.y cap. 3; tam b ém De laudibus, cap. X III. 12 Pauli H istoria Langobardorum (H a n o ver, 1878), I, 14. 13. Ibid., p. 20. 14. Ibid., p. 23.

em term os da aquisição, posse e perda do rexy o representante real. Estar articulado p ara agir significava ter r e i; p erder o rei significava p erder a capacidade de atuação; q u an d o o gru p o não agia, não precisava de re i15.

8 As f o r m u l a ç o s teóricas que acabam os de exam inar pertencem aos períodos da da fundação e da p o sterio r consolidação das sociedades políticas ocidentais na Id a ­ de Média. O problem a da articulação representativa voltou a despertar um grande interesse q u an d o as sociedades passaram a m over-se no ru m o perigoso da desinte­ gração. A debilidade da Terceira República foi o clima no qual M aurice H auriou desenvolveu sua teoria da representação. Farei um breve sum ário da teoria, tal com o form ulada p o r H au rio u no seu livro Précis de droit constitutionnel16. O p o d er do governo é legítim o, de acordo com H au rio u , p o r funcionar com o representante de um a instituição, especificam ente o estado. O estado é um a co m u ­ nidade nacional na qual o p o d er governante conduz os negócios da res publica. A prim eira tarefa do p o d e r governante é a criação de um a nação politicam ente unifi­ cada, pela transform ação do todo desorganizado preexistente em um corpo o rg a ­ nizado p a ra agir. O núcleo dessa instituição será a idéia, a idée directrice, de realizála e de expandi-la au m en tan d o seu p o d er; e a função específica d o governante é a concepção dessa idéia e sua realização histórica. A instituição se aperfeiçoa q u an d o o governante se subordina à idéia e q u an d o , ao m esm o tem po, o conseníement coúlumier dos m em bros é o b tid o . Ser representante significa o rien tar, desde um a p o ­ sição dirigente, o trabalho de realizar a idéia através da sua encarnação institucio­ nal; e o p o d er do governante tem au to rid ad e na m edida em qu e ele consiga tornálo representativo da idéia* A p artir dessa concepção, H auriou deriva um conjunto de proposições referen­ tes às relações entre o p o d er e a lei: (1} A autoridade do p o d er representativo prece­ de existencialm ente a regulam entação desse po d er pelo direito positivo. (2) O p o ­ der, p ro p riam en te dito, é um fenôm eno juríd ico em virtude de sua base institucio­ nal; na m edida em que o p oder tiver au to rid ad e representativa, poderá produzir o direito positivo. (3) A origem do direito nao pode ser en co n trad a nas regulam en­ tações legais, senão que deve ser buscada na decisão pela qual u m a situação litigiosa é superada pelo p o d er organizado. A teoria recém -resum ida, assim com o o subseqüente conjunto de proposições, era dirigida contra certas fraquezas bem conhecidas da Terceira R epública; a lição da análise de H au rio u p ode ser concentrada na seguinte tese: para ser representa­ tivo, nâo basta que o governo o seja no sentido constitucional (nosso tipo elem entar de instituição representativa); deve sê-lo tam bém no sentido existencial de realizar a idéia da instituição* E a advertência im plícita pode ser explicitada na seguinte tese: se um governo é representativo apenas no sentido constitucional, um gover­ nante representativo n o sentido existencial, m ais cedo ou m ais tarde, por-lh e-á fim ; e, m uito possivelm ente, o novo governante existencial nâo será dos m ais r e ­ presentativos no sentido constitucional. 15. Para u m e x a m e a m p lo d o p r o b le m a , ver A lfred D o v e, Der W iederintria des naíionalen P rim ips in die Weltgeschichte (1890), em Ausgewàhlte Schriften ( 1898). 16 M au rice H a u rio u , P réà$ de droit comtitutionnei (2* ed ., 1929).

9 A a n á l i s e da representação neste nível chega ao Fim. O sum ário dos resultados pode ser breve. C onsideram os, sucessivamente, a representação no sentido elem entar e no sen­ tido existencial. A transição de um tipo ao o u tro foi necessária p o rq u e a m era des­ crição da realização exterior da sociedade política não toca a questão fundam ental da sua existência. A investigação das condições da existência levou, então, ao p ro ­ blem a da articulação, assim com o a um entendim ento da correspondência íntim a entre tipos de articulação e de representação. O resultado da análise pode ser ex­ presso na definição de que a sociedade política com eça a existir q u a n d o se articula e produz um representante. Aceita essa definição, seguir-se-á que o tipo elem entar de instituições representativas abrange apenas a realização exterior de um tipo es­ pecial de articulação e representação. N a ciência crítica, p o rta n to , será aconselhá­ vel restringir o uso do term o "representação” ao seu sentido existencial. Só com essa restrição a articulação social pode ser vista com nitidez com o o principal p ro ­ blem a existencial; e apenas desse m odo se obterá um a com preensão clara das c o n ­ dições históricas m uito especiais sob as quais podem -se desenvolver as instituições convencionalm ente cham adas de representativas. Assinalou-se qu e elas ocorrem apenas nas civilizações greco-rom ana e ocidental; e postulou-se prelim inarm ente qu e a condição do seu desenvolvim ento é a articulação do indivíduo com o unidade representável. Incidentalm ente à análise, surgiram diversos problem as que nao puderam ser objeto de exam e m ais pro fu n d o no m om ento — tais com o o sím bolo do "p o v o ” , a intendo populi de Fortescue, com suas implicações im anentistas, e a relação do reino fechado com a representação espiritual do hom em na igreja. Es­ tes fios soltos serão reunidos no decurso dos próxim os capítulos. A diferenciação ad eq u ad a dos conceitos, no entanto, m ostrou ser mais que um m ero tem a de preocupação teórica. O bservou-se que a distinção insuficiente entre problem as elem entares e existenciais é um fato da realidade política. Com o ocorrência da realidade, essa confusão faz em ergir um problem a p ró p rio . A vinculação persistente do sím bolo "representação” a um tipo especial de articulação é um sintom a de provincianism o político e civilizacional. E, q u an d o provincianism os desse tipo chegam a obscurecer a estrutura da realidade, podem tornar-se perigosos. H au rio u sugeriu claram ente que a representação no sentido elem entar não consti­ tui garantia contra a desintegração e a rearticulação existenciais da sociedade. Q u an d o um representante não cum pre com a sua tarefa existencial, a legalidade constitucional da sua posição não o salvará; q u an d o um a m inoria criativa, na lin­ guagem de Toynbee, torna-se um a m inoria dom inante, com eça a correr o risco de ser substituída p o r o u tra m in o ria criativa. A pouca atenção que na prática tem sido d ad a a esse problem a em nosso tem po tem contribuído m uito p ara os sérios dis­ túrbios internos das sociedades políticas ocidentais, assim com o p a ra suas trem en­ das repercussões internacionais. A nossa p ró p ria política exterior foi um fator de agravam ento da desordem internacional através do seu pro p ó sito , sincero m as ingênuo, de curar os males d o m u n d o pela dissem inação das instituições represen­ tativas, n o sentido elem entar, em áreas em que as condições existenciais necessárias ao seu funcionam ento não se faziam presentes. Esse provincianism o, persistente m esm o face às suas conseqüências, é, em si m esm o, um problem a interessante para o cientista. As estranhas políticas das potências dem ocráticas ocidentais, que leva-

ram a guerras contínuas, n ào p odem ser explicadas peias fraquezas dos estadistas considerados individualm ente — em bora tais fraquezas sejam dem asiado evidentes. Elas são, antes, sintom áticas de uma resistência geral a encarar a realidade, forte­ m ente enraizada nos sentim entos e op in iõ es das grandes massas das nossas socied a­ des ocidentais contem porâneas. É apenas p orq ue elas constituem sintom as de um fen ôm en o de m assas que se justifica falar de um a crise da civilização ocidental. As causas deste fen ôm eno receberão atenção cuidadosa no desenrolar desta obra; m as sua exp loração crítica pressupõe um en ten dim en to m ais com p leto da relação entre a teoria e a realidade. D evem os, portanto, retom ar a descrição da situação teórica deixada incom pleta a o in ício d o presente capítulo.

REPRESENTAÇÃO E VERDADE

1 N u m a p r i m e i r a aproxim ação, a análise utilizou o m étodo aristotélico de exam inar os sím bolos da linguagem tal com o ocorrem na realidade política, na esperança de que o processo de esclarecim ento levasse a conceitos criticam ente sustentáveis. A sociedade era um cosmion, um conjunto global de significados, ilum inado in terio r­ m ente p o r sua p rópria auto -in terp retação ; e, com o esse pequeno m undo de signi­ ficados era precisam ente o objeto a ser explorado pela ciência política, o m étodo de com eçar pelos sím bolos da realidade pareceria ao m enos assegurar a apreensão do objeto. No entanto, assegurar-se do objeto não é mais que o prim eiro passo da inves­ tigação e, antes que se possa aventurar pelo cam inho, é necessário determ inar se tal cam inho realm ente existe e para onde leva. Foram aceitas diversas prem issas que não podem perm anecer sem discussão. T om ou-se com o pon to pacífico que se pode falar da realidade social e do pensador teórico que a explore; de esclarecim ento crítico e de contextos teóricos; de sím bolos teóricos que não parecem ser sím bolos da realidade; e de conceitos que se referem à realidade en q u an to , ao m esm o tem po, seu significado é derivado da realidade, através do m isterioso esclarecim ento críti­ co. Evidentem ente, im põe-se toda um a série de questões. O teórico é um a pessoa fora da realidade social, ou, na verdade, p arte dela? E se efetivam ente ele o for, em que sentido p o d e essa realidade ser seu objeto? E que faz ele exatam ente ao escla­ recer os sím bolos que ocorrem na realidade? Se não faz mais que apresentar d is­ tinções, elim inar equívocos, extrair o verdadeiro cerne de proposições dem asiado abrangentes, to rn ar logicam ente consistentes os sím bolos e as proposições, etc, então qualq u er pessoa que participe da auto-interpretação da sociedade não será tam bém um teórico, pelo m enos em term os tentativos? E a teoria, em sentido técnico, não seria apenas um a auto-interpretação feita com m ais reflexão? O u será que o teórico possui padrões próprios de interpretação, pelos quais aferiria a autointerpretação da sociedade? E, nesse caso, o esclarecim ento significa que vez p o r o u tra o teórico efetua um a interpretação qualitativam ente superior dos sím bolos da realidade? E, nessa hipótese, não surgirá daí um conflito entre as duas in terp re­ tações? O s sím bolos pelos quais a sociedade interpreta o significado de sua existência são form ulados com o verdades; se o teórico faz um a interpretação diferente, ele chega a um a verdade diferente com respeito ao significado da existência hum ana em sociedade. Nessa circunstância, haveria que perguntar: Q ual é essa verdade re ­ presentada pelo teórico, essa verdade que o dota de padrões pelos quais ele pode aferir a verdade representada pela sociedade? Q ual é a fonte dessa verdade que

aparentem ente se desenvolve em oposição crítica à sociedade? E se a verdade re ­ presentada pelo teórico for diferente da verdade representada pela sociedade, com o pode um a ser desenvolvida a partir da o u tra p o r m eio de algo qu e parece tão in ó ­ cuo q u an to o esclarecim ento crítico?

não se pode responder a todas essas questões ao m esm o tem po; m as sua enum eração é indicativa das com plexidades da situação teórica. A análise concentrar-se-á, convenientem ente, sobre o p o n to em que a enum eração parece a p ro ­ xim ar-se mais do presente tópico, ou seja, nas questões referentes ao conflito de verdades. Uma verdade representada pelo teórico contrapõe-se a o u tra verdade re ­ presentada pela sociedade. Estarem os usando um a linguagem vazia, ou poder-se-á de fato en co n trar algo com o a representação de verdade nas sociedades políticas através da história? Se. esse for o caso, o problem a da representação não estaria esgotado pela representação no sentido existencial. T ornar-se-ia então necessário distinguir entre a representação da sociedade p o r seus representantes articulados e um a segunda relação, na qual a p ró p ria sociedade se torna o representante de algo que está além dela, de um a realidade transcendente. Pode-se e n co n trar concretam ente essa relação nas sociedades através da história? Na verdade, essa relação pode ser en contrada desde que teve início o registro da história das principais sociedades políticas que ultrapassaram o nível tribal. T odos os im périos antigos, tanto os do O riente Próxim o q u a n to os do Extrem o O riente, viam -se com o representantes de um a ordem transcendente, a ordem do cosm os; e alguns deles chegaram a perceber essa ordem com o um a "verdade” . Q u an d o se recorre às mais antigas fontes chinesas do Skú King, ou às inscrições egípcias, babilônias, assírias ou persas, verifica-se que a ordem d o im pério é invarialvelm ente interpretada com o a representação da ordem cósm ica na sociedade hum ana. O im pério é análogo ao cosmos, um pequeno m u ndo qu e reflete a ordem do m u n d o m aior e envolvente. O ato de governar passa a ser a tarefa de assegurar a harm o n ia entre a ordem da sociedade e a ordem cósm ica; o territó rio do im pério é um a representação analógica do m undo com todos os seus q u ad ran tes; as g ra n ­ des cerim ônias do im pério representam o ritm o do cosm os; os festivais e os sacri­ fícios são um a liturgia cósm ica, um a participação sim bólica do cosmion no cosm os; e a pessoa do governante representa a sociedade, p o rq u e ele representa na terra o p o d e r transcendente que m antém a ordem cósmica. A palavra cosmion, pequeno m u n d o , usada neste sentido, reflete a dupla significação da situação, referindo-se ao m esm o tem po à sociedade e seu território e à representação da o rd em cósmica. Ê inevitável que o em preendim ento da ordem representativa esteja exposto à resistência de inim igos internos e externos; e o governante é apenas um ser h u m a ­ no, que pode falhar, seja pelas circunstâncias, seja p o r seu p ró p rio descontrole, do que podem resultar revoluções internas ou derrotas externas* A experiência real da resistência, da d erro ta possível ou efetiva, é a ocasião em qu e o significado da verdade se to rn a mais claro. N a m edida em que a ordem da sociedade não existe autom aticam ente, mas precisa ser fundada, preservada e defendida, aqueles que es­ tão do lado da ordem representam a verdade, en q u an to seus inim igos representam a desordem e a m entira. C

ertam en te,

Este nível de auto-interpretação do im pério foi alcançado pelos aquem ênidas. Segundo a inscrição de Behistun, que celebra os feitos de D ario I, o rei venceu p o r­ que era o legítim o instrum ento de O rm uzd; ele "n ão era perverso nem riiem iroso” ; nem ele nem sua fam ília eram servos de A hrim an, a M entira, senão que " g o ­ vernavam de acordo com a justiça” 1. Com relação aos inim igos, p o r o u tro lado, a inscrição afirm a que "as m entiras os fizeram revoltar-se, de m o d o que eles ilu d i­ ram o povo. Assim, O rm uzd os entregou em m inhas m ãos” 2. A expansão do im ­ pério e a subm issão dos inim igos torna-se, nesta concepção, o estabelecim ento do reino terrestre da paz, pelo rei que atua com o representante d o divino Senhor da Sabedoria. Além disso, a concepção tem ram ificações que levam a o ethos da conduta política. Os rebelados co n tra a V erdade, com efeito, são identificados com o tal p o r sua resistência ao rei, m as tam bém são reconhecidos com o representantes da M entira pelas m entiras de p ropaganda que dissem inam com o objedvo de iludir o povo. Ao rei, p o r o u tro lado, cabe o dever de ser escrupulosam ente correto em seus p ró p rio s pronunciam entos. A inscrição de Behistun contém esta tocante passa­ gem : "Pela graça de O rm uzd há tam bém m uitas outras coisas que p o r m im foram feitas e que nào estão gravadas nesta inscrição; e não foram inscritas para que a q u e ­ le q u e leia esta inscrição n o futuro não possa sustentar que o qu e p o r m im foi p ra ­ ticado é dem asiado e p o r isso não acredite em m eus feitos, considerando-os m e n ­ tiras” 3. Além de não p o d e r m entir em hipótese algum a, o representante da verda­ de ainda tem de esforçar-se para nem ao m enos parecer m entiroso. Diante de um a conduta tão ostensivam ente virtuosa, é de p erguntar-se o que o o u tro lado teria a dizer se tivesse a o p o rtu n id ad e de fazê-lo. Seria interessante sa­ ber que tipo de am enidades seriam trocadas entre dois ou m ais desses representan­ tes da verdade que entrassem em com petição para estabelecer a única ordem ver­ dadeira da hum anidade. Os choques dessa natureza são raro s; há, no entanto, um belo exem plo, p o r ocasião da expansão m ongol que am eaçou extinguir o Im pé­ rio do O cidente n o século X III. O Papa e o rei da França enviaram em baixadas à corte m ongol com o objetivo de sondar as intenções dos perigosos conquistadores e de estabelecer contatos com eles; as notas levadas pelos em baixadores, tal com o suas exposições verbais, certam ente apresentavam queixas a respeito dos massacres m ongóis na E u ro pa oriental, insinuações quanto à im oralidade dessa conduta, especialm ente q u ando as vítimas eram cristãs, e até m esm o a solicitação de que os m ongóis recebessem o batism o e reconhecessem a au to rid ad e d o Papa. Os destina­ tários, no entanto, revelaram -se m estres da teologia política. A história preservou um a carta de Kuyuk K han a Inocêncio IV, na qual as afirm ações dos em baixadores são cuidadosam ente respondidas. Cito, a seguir, um a passagem da m esm a: "Vós dissestes q u e seria bom que eu recebesse o batism o; Vós m e inform astes disso e m e enviastes o pedido. Esse p edido vosso, nós não o com preendem os. O u tro p o n to : Vós m e enviastes estas palavras: 'Vós tom astes os reinos dos m agiares e dos cristãos em sua totalidade; esse fato m e surpreendeu. Dizei-me que falta com eteram os cristãos?’ Essas palavras vossas, nós nào as com preendem os. (Para evitar, no entanto, q u alq u er aparência de 1 L.W. King e R.C. Thom pson, The Sculptures and Inscriptions (Londres, 1907), $ L X III,p . 72. 2 Ibid., $ L IV ,p . 65. 3 I b i d § LVHI, p. 68.

ú f D útíus the Great cn the Rock o f Behistun

que tenham os evitado este p o n to com o silencio, falam os em resposta a vós desta m aneira:) A O rdem de Deus, tanto Genghis Khan q u an to Kha Khan a enviaram para torná-la conhecida, Mas na O rdem de Deus eles nào acreditaram . Aqueles de quem vós falais chegaram a reunir-se em um grande conselho, M ostraram -se arrogantes e assassinaram os em baixadores que lhes envia­ mos. O Deus eterno m atou e destruiu os hom ens daqueles reinos. Salvo para cum prir a O rdem de Deus, com o po d eria alguém , p o r sua p ró p ria força, m atar e conquistar? E se vós dizeis: 'E u sou cristão; eu a d o ro Deus; eu desprezo os dem ais1, C om o podereis saber a quem Deus p erd o a e sobre quem Ele derram a sua graça? C om o sabeis que pronunciais tais palavras? Pela virtude de Deus, Desde que o sol nasce até que se põe, T odos os reinos nos foram concedidos. Sem a O rdem de Deus C om o po deria q u alq u er pessoa fazer o que quer que seja? A gora, vós deveis dizer com a sinceridade no c o ra ç ã o : 'N ós serem os vossos súditos; Nós vos darem os nossa força’. Vós, em pessoa, à frente dos reis, todos ju n to s, sem exceções, vinde e oferecei-nos serviço e hom enagem ; Então nós reconhecerem os vossa submissão. E se vós nao observais a O rdem de Deus, E desobedeceis nossas ordens, Saberem os que vós sois nossos inimigos. Isso é o que nós dam os a conhecer. Se desobedecerdes* Q ue saberem os en tão ? Deus o saberá” 4. Esse enco n tro de duas verdades tem um tom fam iliar, que se to rn ará ainda mais fam iliar se tom arm os em consideração alguns corolários d a teoria ju ríd ica m ongol. A O rdem de Deus, em que se baseava a construção do im pério, foi p re ­ servada nos editos de Kuyuk Khan e de M angu Khan : " P o r ordem do Deus vivo Genghis Khan, o doce e venerável Filho de Deus, diz: Deus está no alto, acim a de tudo, Ele, só Ele, o Deus im ortal, E na terra, G enghis Khan é o único S enhor” 5.

4. O o rig in a l persa e u m a tra d u çã o fran cesa d essa carta e n c o n tr a m -se em P aul P e iiio t, Lei Mongols et la p ap a u lé ("R evue d e 1’O rien t C h r étie n ” , 3* série, v o l. III (1923). A p a ssa g em en tre p a rên teses foi retirada d e u m a versão latina d a m esm a carta, p u b lica d a em Crônica fra tris Salimbene, ed . O . H o ld er -E g g er , M G H , SS, X X X II, 208. O s d o c u m e n to s m o n g ó is a in d a ex isten tes fo ra m c o lig id o s e e d ita d o s em £ n c V o e g e lin , The Mongol Orders o f Submisúon to F.uropean Powers, 12 4 5 - 1255 (" B v za n tio n ” , V o l. X I, 194-1). 5. D o e d ito d e Kuyuk K han, em V in c e m d e B eauvais, Speculum historiale (s. 1., 1474), L ivro X X X I, caps. 5 1, 5 2 ; V o e g e lin , op> á L , p. 389.

O im pério do S enhor Genghis Khan tem existência de jure ainda que nào es­ teja concretizado de Jacto. T odas as sociedades hum anas fazem parte do im pério m ongol em virtude da O rd em de Deus, m esm o que elas não tenham sido ainda conquistadas- A expansão prática do im pério segue, p o rtan to , um estrito proces­ so jurídico. As sociedades cuja hora de integrar-se de fato ao Im pério é chegada devem ser notificadas p o r em baixadores da O rdem de Deus e instadas a oferece­ rem sua subm issão. Se recusarem ou se, talvez, assassinarem o em baixador, serão consideradas com o rebeldes e contra eles serão tom adas sanções m ilitares. O im pério m ongol, assim, de acordo com a sua p ró p ria ordem jurídica, nunca se engajou em guerras, m as apenas em expedições punitivas co n tra súditos reb ela­ dos do Im p ério 6. Deve ser evidente, a esta altura, que a Inscrição de Behistun e as O rdens M ongóis não são m eras curiosidades de um passado rem oto, m as exem plos de um a estrutura política que pode ocorrer em qualquer época, especialm ente na nossa. O au to -en ten d im ento de um a sociedade com o representante da ordem cósmica tem início no período dos im périos cosm ológicos, no sentido técnico, m as não está lim itado a esse período. A representação cosm ológica sobrevive, nâo só nos sím bolos im periais da Idade M édia ocidental ou em sua presença contínua na China até o século XX; seu princípio tam bém pode ser reconhecido em contextos em que verdade a ser representada é sim bolizada de um a m aneira inteiram ente diferente. Na dialética m arxista, p o r exem plo, a verdade da ordem cósm ica é substituída pela verdade da ordem im anente da história. E, n o entanto, o m ovi­ m ento com unista é representante dessa verdade sim bolizada d e m odo diferente no m esm o sentido em que um Khan m ongol era o representante da verdade con­ tida na O rdem de Deus; e a consciência dessa representação leva às m esm as cons­ truções políticas e jurídicas encontradas nos outros exem plos de representação im perial da verdade. Sua ordem está erh harm onia com a verdade histórica; seu objetivo é o estabelecim ento do reino da liberdade e da paz; seus oponentes opõem se à verdade histórica e serão, p o r fim, derro tad o s; ninguém pode em preender um a guerra legítim a co n tra a União Soviética p o rque passa a ser um representante da inverdade histórica, ou, usando a linguagem contem porânea, um agressor; e as vítimas não são conquistadas, m as libertadas de seus opressores e, em c o n ­ seqüência, da inverdade de sua existência.

3 As s o c i e d a d e s políticas com o representantes da verdade são, p o rtan to , um fato real da história. Mas, assim que esse fato é reconhecido, novas questões se im põem . Serão todas as sociedades políticas entidades m onadárias, q u e expressam a u n i­ versalidade da verdade através de suas reivindicações universais com o im périos? Pode o m onadism o des^a representação resistir ao questionam ento da validade da verdade em cada caso? Será o choque dos im périos o único teste da verdade, com o resultado de que a potência vitoriosa é a que tem a razão? Evidentem ente, o simples enunciado dessas questões já é, em parte, a resposta. O ato m esm o de enunciá-las q u eb ra o encanto da representação m onadária; com nosso questiona 6. V o e g e tin , op> à t., p p . 404 e se g u in tes.

m ento, estabelecem o-nos com o os representantes da verdade, em cujo nom e enunciam os as questões — m uito em b o ra não haja clareza a respeito da fonte dessa verdade. A partir deste p o n to , no entanto, as dificuldades com eçam . O desafio à verdade im perial e a afirm ação da verdade teórica desafiante constituem m atéria bastante com plexa, que requer um exam e mais detalhado. A descoberta da verdade capaz de desafiar a verdade dos im périos cosm ológicos é, em si, um evento histórico de grandes dim ensões. Ê um processo que ocupa cerca de cinco séculos da história da hum anidade, correspondendo ap ro x im ad a­ m ente ao perío d o de 800 a 300 a.C .; esse processo ocorre sim ultaneam ente nas várias civilizações sem influências m útuas aparentes. Na C hina, corresponde à idade de C onfúcio e L ao-tsé e de outras escolas filosóficas; na índia, à idade dos Upanishads e de B uda; na Pérsia, ao zoroastrism o; em Israel, aos Profetas; na Grécia, aos filósofos e à tragédia. Pode-se identificar com o fase específica e característica desse longo processo o p eríodo em torno do ano 500 a.C., q u an d o viveram H eráclito, Buda e Confúcio. Essa irrupção sim ultânea da verdade de fi­ lósofos m ísticos e profetas tem atraído a atenção dos historiadores e dos filóso­ fos, desde que ficou plenam ente evidenciada com o alargam ento do horizonte histórico, nos séculos XVT1I e XIX. Alguns inclinam -se a considerá-la com o a época decisiva da história da hum anidade. Karl Jaspers, em um estudo recente — Ursprung und Ziel der Geschichte — denom inou^a a fase crucial da história h u ­ m ana, a única grande época que é im portante para toda a hum anidade, no que se distingue da época de Cristo, supostam ente im portante apenas para os cris­ tãos7. E, na o b ra-p rim a clássica da filosofia contem porânea da sociedade, Les deux sources de la morale et de la religion, H enri Bergson concebeu os conceitos de socie­ dades fechadas e abertas com o p ro p ó sito de caracterizar os dois estados sociais do desenvolvim ento da hum anidade criados p o r aquela ép o ca8. A orientação geral do problem a terá q u e ser vista apenas à luz destas breves indicações, pois tem os que nos dedicar à form a especial que essa irrupção tom ou no Ocidente. Apenas no O cidente, devido a circunstâncias históricas específicas que não se fize­ ram presentes em ou tras civilizações, esse m ovim ento culm inou no estabeleci­ m ento da filosofia, no sentido grego do conceito, e da teoria política em p a rti­ cular.

4 conhece a frase m uito citada de Platão, segundo a qual a polis é o hom em em escala am p liad a9. Pode-se dizer que essa fórm ula sintetiza o credo da nova é p o ­ ca. É a prim eira palavra de Platão a respeito da m atéria, e está longe de ser a ú l­ tima. Mas, apesar da necessidade de qualificar esse princípio com a introdução de o utros e de fazer concessões à interpretação cosm ológica e à verdade que tal interpretação encerra, ele é o centro dinâm ico da nova teoria. O princípio é um a cunha que deve ser perm anentem ente ap o n tad a contra a idéia de que a so­ ciedade representa apenas a verdade cósmica, tanto hoje q u an to no tem po de Pla­ O

l e it o r

7. Karl J asp ers, Ursprung und Z iel der Geschichte (Z urique, 1949), pp. 18 e se g u in tes. 8. H en ri B ergson , Les deux sources de la morale et de la religion (Paris, 1 9 3 2 ),passim, esp . p p . 287 e seguin tes. 9. P la tã o, Republic, 368 c-d .

tão. A sociedade política real tem de ser um cosmion ord en ad o , m as não a expensas do hom em ; ela deve ser n ã o só um m icrocosm o, m as tam bém um "m acro an th ro pos” . As referências a esse princípio platônico serão feitas pelo nom e de p rin cí­ pio antropológico. Dois aspectos do princípio devem ser distinguidos. Sob o prim eiro deles, tra ­ ta-se de um princípio geral para a interpretação da sociedade; sob o segundo, é um instrum ento de crítica social. C om o princípio geral significa que toda sociedade reflete em sua ordem o tipo hu m an o de que se com põe. T er-se-ia de dizer, p o r exem plo, que os im pé­ rios cosm ológicos consistem de um tipo de hom em que vivência a verdade da sua existência com o a h arm onia com o cosmos. Evidentem ente, trata-se de um princípio heurístico da m aior im portância; q uando um teórico busca com preender um a sociedade política, um a das suas prim eiras tarefas, se não a prim eira, será sem pre a de d eterm inar o tipo h um ano que se expressa na ordem dessa sociedade concreta. Platão usou seu princípio sob o prim eiro aspecto ao descrever a so ­ ciedade ateniense, na qual vivia, com o sofista e explicou as peculiaridades da o r ­ dem ateniense relacionando-as com o tipo hum ano sofista, socialm ente p re d o ­ m in a n te 10; utilizou-o ainda nesse sentido ao desenvolver a sua Cidade da Idéia com o construção paradigm ática da ordem social na qual seu tipo filosófico de hom em deveria encontrar expressão11; finalm ente, usou-o sob o prim eiro aspec­ to na República, viii-ix, ao interpretar as sucessivas m udanças da ordem política com o a expressão de m udanças correspondentes nos tipos hum anos socialm ente pred o m in an tes12. O uso do princípio com o instrum ento de crítica social é inseparável do aspec­ to interpretativo que acabam os de ver. As diferenças de ordem social podem ser vistas com o diferenças de tipos hum anos devido à descoberta d e um a ordem ver­ dadeira da psique hum ana e ao desejo de expressar essa ordem verdadeira no a m ­ biente social do descobridor. O ra, a verdade nunca é descoberta num espaço va­ zio; a descoberta é um ato de diferenciação praticado em um am biente bastante denso de opiniões; e, se a descoberta se refere à verdade da existência hum ana, chocará o am biente em u m am plo leque de suas mais arraigadas convicções. Assim que o descobridor comece a com unicar, a solicitar concordância, a persuadir, passará inevitavelmente a encontrar resistências que se p o d e rã o revelar fatais, com o no caso de Sócrates. Assim com o nos im périos cosm ológicos o inim igo era ap o n tad o com o o representante da M entira, tam bém aqui, através da expe­ riência da resistência e do conflito, o oponente é ap o n tad o com o o representante da inverdade, da falsidade, do pseudos13, com relação à ordem da alm a. Portanto, os diversos tipos platônicos não com põem um catálogo árido de variedades h u ­ m anas, m as constituem um a diferenciação entre um único tipo verdadeiram ente hum ano e diversos tipos de desordem da psique. O tipo verdadeiro é o filósofo, enquanto que o sofista encarna o p ro tó tip o da d eso rd em 14. A identificação entre o tipo verdadeiro e o filósofo é um p o n to que deve ser bem com preendido» um a vez que seu sentido tornou-se obscuro devido a alguns preconceitos m odernos. H oje, num retrospecto da história da filosofia, o pen10. 11. 12. 13. 14.

492b. 435e. 544d*e. 382a. Distinção entre philophos e philodoxoi (ibid. 480).

Ibid. Ibid. Ibid. ibid.

sarnento de Platão aparece com o um dentre m uitos. Platão não tinha a intenção de que a sua teoria gerasse uma filosofia do hom em . Ele se havia dedicado concretam ente ã exploração da alm a hum ana e a ordem verdadeira da alm a m o s­ trou-se, afinal, dependente da filosofia no sentido estrito do am o r do divino sophon1S. É o m esm o sentido que ainda aparece vivo em Santo A gostinho q u an d o ele traduz para o latim o filósofo grego, cham ando-o amator sapientiaexi>. A ver­ dade da alm a seria alcançada através da sua orientação am orosa com relação ao sophon. A verdadeira ordem hum ana é, pois, a constituição da alm a, a ser definida em term os de certas experiências que se tornam predom inantes a tal p o n to que form am o caráter. A verdadeira ordem da alm a, neste sentido, fornece o p ad rão para a m edida e a classificação da variedade em pírica dos tipos hum anos, assim com o da ordem social na qual eles encontram sua expressão.

5 é o p o n t o crucial do qual depende o significado da teoria. Um a teoria não é apenas a emissão de um a opinião q u alq u er a respeito da existência hum ana em sociedade; é um a tentativa de form ular o sentido da existência, explicando o conteúdo de um gênero definido de experiências. Os argum entos usados não são arbitrários, e sim derivam sua validade do conjunto de experiências ao qual a teoria deve perm anentem ente referir-se para possibilitar o controle em pírico. Aristóteles foi o p rim eiro pensador a reconhecer esta condição das teorizações a respeito do hom em . C riou um term o para designar o hom em cujo caráter é fo r­ m ad o pelo agregado das experiências em questão, ch am an d o -o spoudaios, o hom em m a d u ro 17. O spoudaios é o hom em que realizou ao grau m áxim o as p o ­ tencialidades da natureza hum ana, que form ou seu caráter na realização das vir­ tudes intelectuais e éticas, o hom em que, no auge do seu desenvolvim ento, a tin ­ ge o bios theoretikos. Assim, a ciência da ética, no sentido aristotélico, é o estudo do spoudaios18. Além disso, Aristóteles tinha aguda consciência dos corolários p rá ­ ticos dessa teoria do hom em . E m prim eiro lugar, a atividade teórica não pode ser desenvolvida em todas as condições p o r todas as pessoas. O teórico talvez não precise ser a encarnação do p ró p rio m odelo da virtude, m as deve ao m enos ser capaz de reproduzir im aginativam ente as experiências que sua teoria busca explicar; e essa faculdade só p ode ser desenvolvida sob certas condições, tais com o a inclinação, um a base econôm ica que perm ita o investim ento de anos de trabalho nos estudos teóricos e um am biente social que não oprim a o hom em que a eles se dedique. E m segundo lugar, a teoria com o explicação de certas experiências só é inteligível para aqueles em que a explicação desperte experiên­ cias paralelas com o base em pírica para testar a verdade da teoria. Se a exposição teórica não chegar, pelo m enos em parte, a ativar experiências correspondentes, dará sem pre a im pressão de ser conversa fiada ou poderá ser rejeitada com o ex­ pressão irrelevante de opiniões subjetivas. O debate teórico só pode ser co n ­ E

ste

15. 16. 17. 18.

P la tã o , Phaedrus 2 7 8 d -e ; cf. c o m o c o m p le x o d o s fra g m en to s d e H e r á c lito B 3 5 , B 4 0 , B 5 0 , B 108. S anto A g o stin h o , Cívilas Dei viii, 1. A ristóteles, Nicomachean Ethics, 1 1 13a, 2 9 -3 5 . Ibid . 1 176a, p. 17 e seg u in tes.

duzido entre spoudaios, no sentido aristotélico; a teoria não tem argum entos contra o hom em que se sente, ou finge sentir-se, incapaz de reproduzir a expe­ riência. Conclui-se p o rtan to que, historicam ente, a descoberta da verdade teórica pode nào encontrar aceitação algum a na sociedade. Aristóteles não tinha ilusões a esse respeito. É verdade que, com o Platão, ele tentou construir, nos livros V IIV III de Política vii-viii, um paradigm a da ordem social que expressaria a verdade do spoudaios; mas tam bém afirm ou com m uita tristeza que em nenhum a das cida­ des helênicas de seu tem po podiam encontrar-se cem hom ens que fossem capa­ zes de form ar o núcleo dirigente de tal sociedade; qualquer tentativa nesse sen­ tido seria totalm ente inútil, O resultado prático parece ser um im passe19. Ê impossível em preender um estudo das experiências no presente contexto. Devido à vastidão do assunto, m esm o um longo esboço pareceria inapelavelm ente inadequado. Pode-se apenas fornecer um a pequena relação tom ando p o r base o conhecim ento histórico do leitor. Ao am o r de sophon, an teriorm ente m encionado, devem acrescentar-se agora as variantes do Eros platônico dirigidas ao kalon e ao agathon, assim com o à Dike platônica, a virtude da correta superordinação e su b o r­ dinação das forças da alm a, que se opõe à polypragmosyne sofista; sobretudo, deve-se acrescentar a experiência de Tanatos, a m orte, com o experiência catártica da alm a, que purifica a conduta, colocando-a na mais longa de todas as perspectivas, a pers­ pectiva da m orte. Sob esse aspecto, a vida do filósofo se torna, para Platão, um a p reparação para a m o rte; as alm as dos filósofos são alm as m ortas — no sentido dado no Gorgias — e, q u an d o o filósofo fala com o representante da verdade, ele o faz com a autoridade da m orte sobre a m iopia da vida. Às três forças fundam entais de T anatos, Eros e Dike, devem -se acrescentar, ainda no plano platônico, as expe­ riências em que as dim ensões interiores da alm a são dadas em term os de altura e profundidade. A dim ensão da altura dá a m edida da ascensão mística, ao longo da via negativa, ru m o ao lim ite da transcendência — o tema do Symposion. A dim ensão da profundidade refere-se à decada anam nética ao inconsciente, de onde são ex­ traídos os "verdadeiros logoi” do Timeu e do Critias. A descoberta e a exploração dessas experiências com eçaram séculos antes de Platão e prosseguiram depois dele. A descida platônica às profundezas da alm a, p o r exem plo, correspondia à diferenciação de experiências que havia sido explorada p o r Heráclito e Èsquilo. E o nom e de H eráclito nos faz lem brar qu e ele já havia descoberto a tríade fé, am o r e esperança que reapareceu com São Paulo. Para che­ gar à via negativa, Platão p ô d e recorrer aos m istérios, assim com o ao cam inho r u ­ m o à verdade que Parm ênides havia m ostrado em seu poem a didático. E cabe a in ­ da m encionar, p o r ser próxim a ao plano platônico, a jbhilia arístotélica, o núcleo ex ­ perim ental da verdadeira com unidade de hom ens m aduros; e tam bém o am or aristotélico do eu noético rem onta ao culto de H eráclito ao Logos com um da h u m an i­ dade.

6 P o r b r e v e s e incom pletas que sejam estas indicações, devem ser suficientes para evocar o tipo de experiências que com põem a base da teoria no sentido platônico-

19. A ristóteles, Politics, 1286b 8*21 e 1302a, 2.

aristotélico. Resta agora determ inar p o r que tais experiências deveriam tornar-se p o rtad o ras de um a verdade do antigo m ito, e p o r que o teórico, com o represen­ tante dessa verdade, deveria ser capaz de o p o r sua autoridade à a u to rid ad e da socie­ dade. A resposta a essa questão deve ser buscada na natureza da experiência em dis­ cussão. A descoberta da nova verdade não constitui um avanço do conhecim ento psicológico no sentido im anentista; ter-se-ia, na verdade, que dizer que a psique é vista com o um novo centro do hom em , através do qual ele se percebe aberto em relação à realidade transcendental. Além disso, a descoberta desse centro nâo pode ser com parada à de um objeto, que sem pre estivera presente e sim plesm ente não fora notado. A psique, com o a região na qual a transcendência é experim entada, teve de ser diferenciada de um a estrutura mais com pacta da alm a, a fim de ser d e ­ senvolvida e denom inada. Mesmo levando em conta o problem a das estruturas com pactas e diferenciadas, pode-se dizer que, antes da descoberta da psique, o h o ­ m em não tinha alma. T rata-se, p o rtan to , de um a descoberta que produz seu m ate­ rial experim ental ju n tam en te com sua explicação; a qualidade q u e a alm a tem de abrir-se é percebida através da abertura da p ró p ria alm a. Essa ab ertu ra, que tem tanto de ação quanto de paixão, nós a devemos ao gênio dos filósofos m ísticos20. Estas experiências se tornam a fonte de um a nova autoridade. Através da a b e r­ tura da alm a o filósofo se encontra em um a nova relação com Deus; não apenas descobre sua p ró p ria psique com o instrum ento de percepção da transcendência senão que tam bém descobre, sim ultaneam ente, a divindade em sua transcendên­ cia radicalm ente n ão -h u m an a. Desta m aneira, a diferenciação da psiquè é insepará­ vel de um a nova verdade a respeito de Deus. A verdadeira ordem da alm a pode tornar-se o p ad rão p ara m ed ir tanto os tipos hum anos quanto os tipos de ordem social, p o rq u e representa a verdade sobre a existência hum ana n o limite da tran s­ cendência. O sentido do princípio antropológico deve, p o rta n to , ser qualificado pelo entendim ento de que não se trata de um a idéia arb itrária do*homem com o ser im anente do m u n do que se torna instrum ento da crítica social, mas sim da idéia do hom em que encontrou sua verdadeira natureza através do encontro de sua ver­ dadeira relação com Deus. A nova m edida utilizada p ara a crítica social não é mais, na verdade, o hom em em si, m as o hom em que, através da diferenciação de sua psique, se to rn o u o representante da verdade divina. A interpretação teórica da sociedade requer, assim, que o princípio a n tro p o ló ­ gico seja suplem entado p o r um segundo princípio. Platão o expressou ao criar a fórm ula "D eus é a m edida1’, em oposição à definição de P rotágoras " o hom em é a m edida” 25. Ao fo rm u lar tal princípio» Platão arrem atou um longo processo de desenvolvim ento. Sólon, um de seus antecessores, já havia buscado a verdade que pudesse ser im posta com au to rid ad e sobre as facções de Atenas e adm itira com re ­ signação ser "m u ito difícil conhecer a m edida invisível do julg am en to ju sto ; e, no entanto, essa é a única m aneira de conhecer os limites corretos de todas as coi­ sas” 22. C om o estadista, ele viveu em tensão entre a m edida invisível e a necessidade de encarná-la na ordem social concreta; p o r o u tro lado, " a m ente dos im ortais é

20. Sobro a o v o liu à o d o sig n ific a d o cia p si(|u o, ver W erner J a eg o r, The Tkeotogy o f the Early Greek Philosopkers (O x fo r d , 1947), e sp e c ia lm e n te o cap. V ; e B ru n o S n ell, Oie Entdeckung dei Geistes: Studien zur E n h tehungdes europàischen Denkens bei den Griechen (H a m b u r g o , 1948).

2 1. Platão, Laws, 716c. 22. Elegy andlam òus f'L o eb Classical Librarv” ), Vol I, Sólon 16.

totalm ente invisível para os hom ens” 23 e, p o r o u tro lado, "instado pelos deuses fiz o que fiz” 24. Por sua vez, H eráclito, que sem pre aparece com o um a grande so m ­ bra p o r detrás das idéias de Platão, aprofundou-se m ais nas experiências que levam à m edida invisível. Reconheceu sua validade suprem a: "A harm onia invisível é m elhor (ou m aior, ou m ais poderosa) que a visível” 25. Mas a h arm onia invisível é difícil de encontrar, e não será encontrada a m enos que a alm a seja anim ada p o r um im pulso prévio na direção correta: "Sem esperan­ ça, não se encontra o que não se tem esperança de encontrar, um a vez que a tarefa é difícil e o cam inho praticam ente intransponível” 26; e "através de falta de fé (apistia) o divino evita ser conhecido” 27. Finalm ente, Platão absorveu a crítica feita p o r Xenofane à sim bolizaçào im própria dos deuses. E nquanto os hom ens criarem d eu ­ ses à sua p ró p ria im agem , argum entava Xenofane, a verdadeira natureza do Deus único, " o m aior entre os deuses e hom ens, e diferente dos m ortais em corpo e p e n ­ sam ento” terá dc perm anecer oculta28; e som ente q u an d o Deus for o único com ­ preendido em sua transcendência inform e com o o m esm o Deus de todos os h o ­ m ens, a natureza de todos os hom ens será com preendida com o um a coisa única, p o r ser idêntica a relação de cada um deles com a divindade transcendente. Dentre todos os pensadores gregos prim itivos, Xenofane talvez tenha sido o que com m ais clareza percebeu a idéia universal do hom em p o r m eio da experiência da tran s­ cendência universal29. A verdade cío hom em e a verdade de Deus são um a só coisa, una e inseparável. O hom em viverá a verdade de sua existência q uando a b rir sua psique à verda­ de de Deus; e a verdade de Deus tornar-se-á m anitèsta na história q u an d o houver m oldado a psique do hom em para se fazer receptiva à m edida invisível. Esse é o grande tem a da República; no am âgo do diálogo, Platão colocou a parábola da ca­ verna, com sua descrição da periagoge, a conversão, o pon to de inflexão a partir do qual a inverdade da existência hum ana, tal com o prevalecia na sociedade sofista ateniense, é superada pela verdade da Idéia30. Platão com preendeu, adem ais, que a m elhor m aneira de assegurar a verdade da existência era a educação adequada desde a prim eira infância; p o r essa razão, no segundo livro da República, ele quis elim inar da educação dos jovens as simbolizações im próprias dos deuses, tais com o propagadas pelos poetas, e substituí-las p o r sím bolos a d eq u a d o s31. Nessa oca­ sião, desenvolveu o vocabulário técnico necessário ao trato de tais problem as. Pa­ ra falar dos vários tipos de sim bolizacão inventou o term o "teo lo g ia” e cham ou-os tipos de teologia, typoi peri theologias32. Nessa m esm a ocasião, Platão isolou o com ponente gnoseológico do problem a. Se, d u ran te a juventude, a alm a for exposta ao tipo errad o de teologia, ficará d e ­ form ada em seu centro decisivo, no qual se form a o conhecim ento da natureza de Deus; a alm a se tornará presa da "arq u i-m en tira ” , o alethos pseudo$> que é a con-

2 3 . Ibid., S ó lo n 17.

24. Ibid., Sólon 34, vs. 6. 25. D iels-K ran z, Fragmente der Vorsokratiker (5* e d iç ã o ; B erlim , 1 9 3 4 -3 8 ), H e r á c lito B 54. 26. 27. 28. 29.

Ibid* H erá clito B 18. Ibid. H erá clito B 86. Ibid. X e n o fa n e B 23. J a eg er, op. cit., cap . III— r'A d o u trin a divin a d c X e n o fa n e ” .

3 0. P la tão. Republtc 5 18 d -c . 31. Ibid. 3 7 8 -7 9 . 32. Ibid. 379a.

cepção errônea d os d eu ses33. Esta nào é um a m entira com um e quotidiana, para a qual pudesse haver circunstâncias atenuantes; é a suprem a m entira da "ignorân ­ cia, da agnoia, na alm a” 34. A dotand o-se agora a term inologia platônica, p ode-se dizer, portanto, q ue na interpretação teórica da sociedade e princípio a n tro p o ló ­ gico requer o princípio teológico co m o seu correlato. A validade dos padrões d e­ senvolvidos por Platão e Aristóteles dep en de da concepção de um h om em que p o ­ de ser a m edida da sociedade porque Deus é a m edida da sua alma.

7 O t e ó r i c o é o representante da nova verdade que rivaliza com a verdade repre­ sentada pela sociedade. Até aí chegam os. Mas resta aparentem ente a dificuldade adicional d o im passe causado p elo fato de que a nova verdade tem pouca chance de se tom ar socialm ente efetiva, ou de formar um a sociedade à sua m argem . Esse im passe, na verdade, existiu. Surgiu com o resultado do desapontam ento d e Platão com Atenas. Em seu tem po, a cidade realm ente nào era m ais capaz de s o ­ frer um a grande reform a espiritual — mas ela nao fora sem pre tào estéril quanto parece ao se concentrar a atenção apenas cm sua resistência a Sócrates e Platão. A elaboração p latônico-aristotélica cia nova verdade m arcou o fim de uma longa história; representou o trabalho de pensadores atenienses que dificilm ente p o d e ­ riam ter realizado suas generalizações teóricas sem a atividade prática dos p o líti­ cos atenienses que os precederam . As construções paradigm áticas de Platão e A ris­ tóteles pareceriam fantasias estranhas a seus con tem porâneos se a Atenas de M ara­ tonas e a tragédia n ão fossem a lem brança viva de uma representação efêm era da nova verdade. Ali, num m om en to d ourado da história, acontecera o m ilagre de um a sociedade política articulada até o nível do cidadão co m o unidade representável, o m ilagre de uma geração que experim entou individualm ente a resp onsab ili­ dade de representar a verdade da alm a e expressou essa experiência através da tra­ gédia co m o um culto público. D evem os exam inar uma dessas tragédias para c o m ­ preender o novo tipo de representação; e nada m elhor para este p rop ósito que os Suplicantes de Esquilo. O ep redo de os Suplicantes gira em torno de um problem a ju ríd ico e sua so lu ­ ção através da ação política. As filhas de D ânaos fogem com seu pai d o Egito para Argos porque os filh os d e Aegyptus tentaram forçá-las a casar-se contra a vontade. Em A rgos, cidade de seu antepassado Io, esperam obter asilo. Pelasgo, o rei de A r­ gos, aparece e os fugitivos lhe exp õem sua situação. Im ediatam ente ele percebe o dilem a: ou nega o asilo, d eixan do q ue os suplicantes sejam levados pelos eg íp ­ cios, q ue os seguem de perto, e provocando com isso a ira de Zeus; ou se envolve num a guerra contra os egípcios que, na m elh or das hipóteses, será um a em preita­ da custosa para sua cidade. Ele enuncia as alternativas: "Sem d an o, n à o sei com o ajud á-los; e, n o entanto, n ão é aconselhável desprezar estas súplicas” . Descreve-se

33. ibid. 382a. 34. Ibid. 382b.

irancam ente em estado de indecisão perplexa; sua alm a está tom ada pelo m edo de "ag ir ou não agir e aceitar o que o destino traga” 35. A decisão não é fácil. Pela lei, o nomos de seu país, as donzelas não têm nenhum direito contra os egípcios que querem desposá-las; m as os suplicantes rap id a m e n ­ te lem bram o rei que existe um a justiça mais elevada, Dihey que o casam ento é um a ofensa para eles e que Zeus é seu Deus. Por um lado, o rei é instado a tom ar Dike com o sua aliada ao decidir o caso, p o r o u tro lado, deve considerar os interesses da cidade de Argos. Se ele engajar sua cidade na guerra, será acusado de h o n ra r os fo ­ rasteiros às custas de seu p ró p rio povo; se ab an d o n a r os suplicantes, seus filhos e sua casa terão de pagar p o n to p o r p o n to essa violação de Dike. O rei reflete grave­ m ente: " H á necessidade de um conselho pro fu n d o e salvador, com o o de um m er­ g u lh ad o r que baixa às profundezas, com olhos atentos e sem grande p e rtu rb a ­ ção ” 36. Som os lem brados do "conhecim ento p ro fu n d o ” de H eráclito, a concep­ ção segundo a qual o lim ite da alm a não pode ser alcançado p o rq u e seu Logos é dem asiado p ro fu n d o 37. As linhas de Esquilo traduzem a concepção de p ro fu n d i­ dade de H eráclito na ação de m erg u lh ar38. Nesse po n to , no entanto, a questão do G overno constitucional aparece com o um fator com plicador. Do ponto de vista do rei, o m ergulho traz o desejado ju lg a ­ m ento em favor dos suplicantes; mas Pelasgo é um rei constitucional e não um ti­ rano. O povo, o demos, q u e terá de assum ir o ônus da guerra inevitável, deve ser consultado e chegar a um consenso. O rei deixa os suplicantes para reunir o p o ­ vo e subm eter o caso à assem bléia geral, o Koinon, a fim de persuadir seus m em bros a co n co rd ar com a decisão a que chegara em sua alm a. O discurso do rei tem êxito; os decretos ap ropriados, psepkismata, são aprovados p o r unanim idade. O povo capta o argum ento do discurso sutilm ente elaborado e segue o m ergulho do rei na pro fu n d id ad e da alm a. O Peitho, a persuasão do rei, form a as lam as de seus ouvin­ tes, que estão dispostos a deixar-se form ar, e faz que a Dike de Zeus prevaleça so ­ bre a paixão, de tal m aneira que a decisão m adura representa a verdade do deus. O coro resum e o significado desse fato com a linha: "Ê Zeus quem faz o fim acon^_ yy i g tecer . A tragédia era um culto público — e um culto caro. Pressupunha que a platéia fosse constituída p o r pessoas que pudessem seguir a peça com agudo senso de identificação e projeção — lua res agitur. A platéia deveria com preender o sentido da tram a, do dram a, com o um ato de obediência à Dike è considerar a saída fá­ cil do escapism o com o um a antítese da ação. Ela deveria com preender a prostasia ateniense com o a organização do povo sob um chefe — na qual o chefe trata de re ­ presentar a Dike de Zeus e usa o seu p o d e r de persuasão para criar no povo o m es­ m o estado de espírito da sua alm a, p o r ocasião das decisões concretas, enquanto o povo deseja seguir essa orientação persuasiva que leva à representação da verdade através da ação m ilitar contra um m u n d o dem oniacam ente desordenado, sim ­ bolizado nos Suplicantes pelos egípcios. A tragédia, em seu p erío d o de glória, é um a

35. E sq u ilo , Supplianis, v. 380. 3 6 . Ibid. 4 0 7 -8 . 3 7 . D iels-K ranz, op. cit., H e r á c lito B 45. 38. S o b r e a o r ig e m da c o n c e p ç ã o da p r o fu n d id a d e da a lm a ver Snell, op. cit., e sp e cia lm e n te p p . 3 2 e seg u in tes. 39. A a n á lise d e Os Suplicante* feita p o r Erik W olf. em Grieckischt» Rechlsdenkm, V o l. I: Vonokratiker und Frühe Dichter (Frankfurt a. M ., 1950), pp. 3 4 5 -5 6 , era d em a sia d o recen te para p o d e r ser u sada na p r e se n ­ te o b ra .

literatura que revive a grande decisão a favor da Dike. Ainda que a platéia não se­ ja com posta de heróis, os espectadores devem, pelo m enos, estar dispostos a ver a ação trágica com o paradigm ática; a busca heróica da alm a e a aceitação das conse­ qüências devem conter, aos olhos da platéia, um a m ensagem válida; o destino do herói deve fazer trem er o espectador, com o se se tratasse do seu p ró p rio destino. O sentido da tragédia com o culto do estado consiste no sofrim ento representati­ vo 40.

8 O m i l a g r e da Atenas trágica durou pouco; sua glória desapareceu nos h o rrores da G uerra do Peloponeso. Com o declínio de Atenas, os problem as da tragédia tran s­ form aram -se. Um dos últim os trabalhos de Eurípides, Tróades, escrito p o r volta de 415 a.C ., tem p o r tem a a vileza, os abusos, a vulgaridade e as atrocidades praticadas pelos gregos p o r ocasião da queda de T róia; a aventura heróica desliza para um pântano que term ina p o r sugar os próprios gregos. Na prim eira cena já a catás­ trofe é antecipada pelo diálogo entre Atena e Posídon; Atena, que antes p ro te ­ gia os gregos, m uda de lado, p o rque seu tem plo foi insultado, e com bina com P o ­ sídon a destruição dos vencedores em seu cam inho de volta à casa. A tragédia aco n ­ tece no ano seguinte ao da carnificina de Meios, que revela a co rru p ção do ethos ateniense, com o se sabe através do inesquecível diálogo sobre Meios em Tucídites; e acontece no m esm o an o da expedição à Sicília, que term inaria em desastre. Foi o ano que selou o destino de Atenas; os deuses, com efeito, haviam m u d ad o de lad o 41. A representação da verdade passou da Atenas de M aratona aos filósofos. Q u an d o Aristófanes se queixou de que a tragédia m o rrera com a filosofia recolheu pelo m enos em p arte o sentido do que realm ente acontecera, ou seja, a translado da verdade do povo de Atenas para Sócrates. A tragédia m o rre ra p o rq u e os cida­ dão de Atenas já não eram representáveis peíos heróis sofredores- E o drama, a ação no sentido dado p o r Ésquilo, encontrava agora seu herói no novo representante da verdade, o Sofrido Servo Sócrates — se nos é p erm itido usar o sím bolo de Dêutero-Isaías. À tragédia, com o gênero literário, seguiu-se o diálogo socrático. A n o ­ va verdade teórica tam pouco era ineficaz no sentido social. Ê verdade que Atenas já não podia ser sua representante; m as os próprios Platão e Aristóteles criaram o novo tipo de sociedades qu e poderia p ro p ag ar sua verdade, ou seja, as escolas de filosofia. As escolas sobreviveram à catástrofe política da cidade e influenciaram de form a capital não só o pensam ento das sociedades helenísdcas e rom ana, com o tam bém , através dos tem pos, das civilizações islâmica e ocidental. Um a vez mais, a ilusãò do im passe é criada apenas p elo fascínio despertado pelo destino de A te­ nas.

4 0 . S o b r e o so fr im e n to re p r esen ta tiv o p o r m e io d o m e r g u lh o na p r o fu n d id a d e , ver e sp e c ia lm e n te És­ q u ilo , Prometkeus 10 2 6 e seg u in tes. 4 1. S o b r e as im p lica ç õ es p o lític a s da ob ra Tróades, ver A ltred W eb er, Das Tragische und die Geschichle (H a m b u r g o , 1943}, p p . 3 8 5 e seg u in tes.

9

da investigação pode ser agora resum ido. Ao significado existencial da representação, deve-se acrescentar o sentido de que sociedade é a representante de um a verdade transcendente. Am bos os significados se referem a diferentes aspec­ tos de um m esm o p roblem a: em prim eiro lugar, na m edida em que o representan­ te existencial da sociedade é seu chefe ativo na representação d a verdade; e, em se­ gu ndo lugar, na m edida em que o governo obtido pelo consenso do corpo de ci­ dadãos pressupõe a articulação dos cidadãos individualm ente considerados até o p o n to em que eles se possam to rn ar participantes ativos n a representação da verdade através d o peithoy a persuasão. A natureza precisa deste problem a m ultifacetado chegou à consciência reflexiva através da descoberta da psique com o o centro de percepção da transcendência. O descobridor, o filósofo m ístico, tornouse, em conseqüência, o representante de um a nova verdade; e os sím bolos através dos quais ele explicou sua experiência form aram o núcleo de u m a teoria da ordem social. Finalm ente, foi possível penetrar no m istério do esclarecim ento crítico. G e­ neticam ente ele consiste na descoberta da psique e de sua verdade a n tro p o ló g i­ ca e teórica, en quanto q u e criticam ente consiste na m ensuração dos sím bolos da realidade pelos padrões d a nova verdade. O

resultado

A LUTA PELA REPRESENTAÇÃO NO IMPÉRIO ROMANO I c a p í t u l o an terio r m ostrou que os problem as da representação não se esgo­ tam com a articulação interna da sociedade em sua existência histórica. A socie­ dade com o um todo representa tam bém um a verdade transcendente. Por conse­ guinte, o conceito de representação no sentido existencial teve que ser suple­ m entado pelo conceito de representação transcendental. E, nesse novo nível do problem a, surgiu o u tra dificuldade, com o desenvolvim ento d a teoria com o um a verdade do hom em , em oposição à verdade representada pela sociedade. Esta d i­ ficuldade ainda não é a últim a. O cam po dos tipos conflitantes de verdades am pliou-se historicam ente com o surgim ento do Cristianism o. Esses três tipos de verdades conflitantes participaram da grande luta pelo m o n o p ó lio da representa­ ção existencial no Im pério R om ano. Tal luta constituirá o tem a do presente capí­ tulo; mas, antes de a b o rd a r o tem a prop riam en te dito, devem -se esclarecer alguns pontos sobre a term inologia e a teoria em geral. Este procedim ento p re ­ parató rio à discussão dos tem as gerais evitará digressões e explicações incôm o­ das que, de o u tro m o d o , interrom periam o estudo especificam ente político no m om ento em que as questões se tornassem agudas. Do p o n to de vista da term inologia, será necessário estabelecer a distinção entre três tipos de verdades. O prim eiro deles é o da verdade representada pelos antigos im périos, que será designado com o "verdade cosm ológica” . O segundo tipo de verdade aparece na cultura política de Atenas, especificam ente na tragé­ dia, e será d enom inado "verdade an tropológica” — no entendim ento de que o term o cobre integralm ente o cam po dos problem as ligados à psique considera­ da com o o centro de percepção da transcendência. O terceiro tipo de verdade surge com o Cristianism o e será cham ado "verdade soteriológica” . A diferenciação term inológica entre o segundo e o terceiro tipo é necessária para o desenvolvim ento da teoria p o rq u e o com plexo de experiências platônicoaristotélicas foi am pliado pelo Cristianism o em um p onto decisivo. Talvez esse p o n to possa ser m elhor determ inado através de um a rápida reflexão sobre a con­ cepção aristotélica da philia politike, a am izade política1. Para Aristóteles, tal am i­ zade é a substância da sociedade política; consiste na hoinonoiat o acordo espiri­ tual entre os hom ens, e só pode concretizar-se se esses hom ens viverem em har-

O

l. A ristóteles. Nicomachean Etkics, 1 167b 3 -4 .

m onia com o nous, ou seja, a parte mais divina que existe neles próprios. T odos os hom ens participam do nous, em bora em diferentes graus de intensidade; desse m odo, o am o r dos hom ens pelo seu p ró p rio eu noético transform ará o nous no vínculo com um entre eles2. A am izade só é possível se os hom ens forem iguais através do am o r do seu eu noético; o vínculo social entre desiguais será fraco. Por essa razão, Aristóteles form ulou sua tese de que é impossível a am izade entre Deus e o hom em , dada a desigualdade radical existente entre eles3. A im possibilidade da phiha entre Deus e o hom em pode ser considerada tí­ pica p ara todo o cam po abran gido pela verdade antropológica. As experiências cujo desenvolvim ento resultou na teoria dos filósofos m ísticos a respeito do h o ­ m em tinham com o traço com um a ênfase dada ao lado h u m an o da orientação da alm a p ara a divindade. A alm a orienta a si p ró p ria para um Deus que p e rm a ­ nece imóvel em sua transcendência; em sua busca, ela se a b re para a realidade divina, m as nunca encontra um m ovim ento de resposta p o r p a rte desta. A in ­ clinação de Deus em sua graça na direção da alm a, que caracteriza o Cristianism o, não se en q u ad ra no cam po dessas experiências — m uito em b o ra seja verdade que, ao ler Platão, tem -se a sensação de estar perm anentem ente prestes a pen etrar nessa nova dim ensão. A experiência da m utualidade na relação com Deus, da amidtia no sentido tom ista, da graça que im põe um a form a sobrenatural à natureza do hom em , constitui a diferença específica da verdade cristã4. A revelação histórica dessa graça, através da encarnação do Logos em Cristo, com pletou de m odo inte­ ligível o m ovim ento espiritual adventício dos filósofos m ísticos. A autoridade crítica sobre a antiga verdade da sociedade que a alm a obtivera através da sua a b e r­ tura e da sua orientação ru m o à m edida invisível foi assim confirm ada pela reve­ lação da p ró p ria m edida. Neste sentido, pode-se dizer p o rta n to que o fato da revelação é o seu c o n teú d o 5. Q u an d o se fala nestes term os sobre as experiências dos filósofos místicos e de sua realização com pleta com o C ristianism o, está im plícita u m a prem issa rela­ tiva à história que cum pre exam inar. T rata-se da prem issa segundo a qual a subs­ tância da história consiste nas experiências pelas quais o hom em alcança a com p m nsão de sua h um an id ad e e, sim ultaneam ente, de seus limites. A filosofia e o C ristianism o dotaram o hom em com um a estatura que o capacita a desem pe­ nh ar com eficácia histórica o papel de contem plador racional e senhor p rag m á­ tico de um a natureza que perdeu seus terrores dem oníacos. Com a m esm a eficá­ cia histórica, no entanto, colocaram -se os limites à grandeza h u m an a; o C ristia­ nism o concentrou o dem onism o no perigo perm anente de um a queda das a ltu ­ ras do espírito — qu e o hom em só possui pela graça de Deus — p a ra a autonom ia do p ró p rio eu, a queda do amor Dei para o amor sui. A percepção de que o hom em , em sua m era condição hum ana, sem a fid.es caritate formata, é apenas um nada de­ m oníaco foi levada pelo C ristianism o ao lim ite derradeiro da clareza, o qual é p o r tradição cham ado revelação. Essa prem issa a respeito da substância da história traz conseqüências p ara a teoria da existência h u m an a em sociedade que m esm o os filósofos de m aio r n í­ 2. Ibid., U 6 6 a l e se g u in tes; 1167 a 22 e se g u in tes; 1177 a 12 -1 8 ; 117 7 b 2 7 -1 178 a 8. 3. Ibid., 1 158b 29 — 1159a 13. 4. T o m á s d e A q u in o , Contra Gentites iii, 91. 5. Esta c o n c e p ç ã o d a revelação, a ssim c o m o d e sua fu n ç ã o n a filo so fia d a h istó ria , fo í ela b o r a d a em m a io r d eta lh e p o r H . R ichard N ie b u h r , The Meaning o f Revelation (N o v a Y ork, 1946), e sp e cia lm e n te pp. 9 3 , 109 e segu in tes.

vel, sob a pressão da civilização secularizada, hesitam , com freqüência, em aceitar sem reservas. Vimos, p o r exem plo, que Karl Jaspers considerou a época dos filó­ sofos místicos com o o p erío d o crucial da hum anidade, e não a época cristã, igno­ ran d o a clareza últim a dad a pelo Cristianism o à conditio humana. H enri Bergson tam bém m ostrou hesitações com respeito a este tem a — em b o ra em seus últim os diálogos, publicados postum am ente p o r Sertillanges, parecesse inclinado a acei­ tar a conseqüência de sua p ró p ria filosofia da história6. Essa conseqüência pode ser descrita com o o princípio segundo o qual a teoria da existência do hom em em sociedade deve ter p o r base o cam po das experiências que passaram p o r um p r o ­ cesso histórico de diferenciação. H á um a correlação estrita en tre a teoria da exis­ tência hum ana e a diferenciação histórica das experiências através das quais esta existência chegou à autocom preensào. O teórico não se pode perm itir desconsi­ derar p arte algum a dessa experiência, seja p o r que razão for; tam pouco pode to ­ m ar posição em um p o n to arquim édico anterio r à substância da história. A teo ­ ria é conduzida pela história no sentido das experiências diferenciadoras. Uma vez que a diferenciação m áxim a foi alcançada com a filosofia grega e o Cristianis­ m o, tem -se concretam ente com o conseqüência que a teoria deve circunscreverse ao horizonte histórico das experiências clássica e cristã. V oltar atrás depois da diferenciação m áxim a seria um retrocesso teórico, conduzindo a um dos diver­ sos tipos de descarrilam ento que Platão caracterizou com o doxa1, N a história intelectual m oderna, sem pre que ocorreu algum a revolta sistemática contra a d i­ ferenciação m áxim a, o resultado foi a queda no niilism o anticristão, na idéia do super-hom em em q u alquer das suas variantes — seja o super-hom em p ro g res­ sista de C ondorcet, o super-hom em positivista de Com te, o super-hom em m ate­ rialista de M arx ou o super-hom em dionisíaco de Nietzsche. O problem a dos descarrilam entos antiteóricos será, contudo, tratado em m aio r detalhe na segun­ da parte desta obra, p o r ocasião do estudo dos m ovim entos políticos de massa m odernos. Para o atual propósito, já deve estar suficientem ente esclarecido o princípio da correlação en tre a teoria e a diferenciação experiencial m áxim a, que orientará a análise seguinte.

2

a análise será efetuada de acordo com o procedim ento aristotélico. C om eçará pela au to-interpretação da sociedade — no entendim ento, porém , de que a au to -in terp retação inclui agora as interpretações dos teóricos e dos santos.

N

ovam ente

6. A. D. Sertillanges, Avec Henri Bergion (Paris, 1941). 7. A dependência do progresso da atividade teórica com relação às experiências de diferenciação da transcendência tornou-se um problem a im portante da história intelectual. Charles N. Cochrane, em Chrislianity and Clasúcal Culture: a Study ofTkought and Acticn Jrom Augustus to Augustine (Nova York, 1944), especialmente caps. XI e XII, por exemplo, dá grande importância ao papel da superioridade teórica como fator causai da vitória d o Cristianismo sobre o paganismo no Im pério Rom ano. A superioridade técnica da metafísica crista sobre a grega, por outro lado, foi cuidadosamente considerada em fetienne Gilson, VEsprit de la philosophie médiévale (2? e d .; Paris, 1948), especialmente caps. III, IV e V. Por sua vez, a continuidade evolutiva entre as explicações teóricas das experiências de transcendência gregas e cristãs foi esclarecida por W erner Jaeger em Theology ojth e Early Greek Philosophers (Oxford, 1947). Este debate contem porâneo traz novamente à lu 2 o grande problem a do praparado evangelica, que Clemente de Alexandria já com preendera ao referir-se às Escrituras hebreias e à filosofia grega com o os dois Ve­ lhos Testamentos do Cristianismo (Stromates vi). Sobre esta questão ver ainda Serge Boulakof, Le Pa Tãclet (Paris, 1946), pp. 10 e seguintes.

O s vários tipos de verdade, os typoi peri theologias de Platão, que entraram em com petição entre si, tornaram -se objeto de um a classificação form al. A mais antiga das classificações que sobreviveram até os dias de hoje é a n te rio r à era cris­ tã; foi form ulada p o r V arro em Antiquities, trabalho concluído p o r volta de 47 a.C. Santo A gostinho levou a efeito um a reclassificação no Civitas Dei, próxim o ao fim do p erío d o rom ano. O s dois trabalhos se interrelacionam , um a vez qu e a classificação de V arro foi preservada justam ente pela descrição e crítica de Santo A gostinho8. De acordo com essa versão, V arro identificou três tipos (genera) de teologia — o m ítico, o físico e o civil9, A teologia m ítica é a dos poetas; a física, dos filósofos; e a civil, dos po v o s10 ou, em outra versão, dos prindpes ávitatis11. A term inologia grega, assim com o a form ulação detalhada, indicam que V arro não inventou a classificação, m as sim to m o u -a de um a fonte grega, provavelm ente estóica. P or sua vez, Santo A gostinho ad o to u os tipos de V arro com algum as m odifi­ cações. Em prim eiro lugar, traduziu as teologias m ítica e física do grego para o latim com o teologia labulosa e natural, divulgando assim o term o teologia n a ­ tu ral” , em uso até os dias de h o je 12. Em segundo lugar, tratou a teologia fa b u ­ losa com o p arte da teologia civil dado o caráter de culto apresentado pela poesia dram ática referente aos deuses13. Em conseqüência, os tipos de V arro estariam re ­ duzidos a dois: a teologia civil e a natural. E interessante observar que essa re d u ­ ção provavelm ente se deve, através de vários interm ediários, à influência de um a frase de Antístenes que dizia que "segundo nomos há m uitos deuses, mas, segundo physis, há apenas u m ” . Nomos, ao contrário de physis, engloba tanto a cultura p o é ­ tica q u an to a política com o o b ra do hom em — um a ênfase na origem hum ana dos deuses pagãos que deve ter atraído Santo A gostinho14. Finalm ente, com o o C ristianism o e sua verdade sobrenatural tinham de ser incluídos entre os tipos de teologia, o resultado foi um a nova divisão tripartite em civil, natural e so b re ­ natural.

3 As c l a s s i f i c a ç õ e s surgiram incidentalm ente à luta pela representação e estavam carregadas das tensões provocadas pela autoconsciência e pelos choques. A análise de tais tensões p ode ser iniciada com proveito pela reflexão a respeito de um a curiosidade do Civitas Dei. Do p o n to de vista de sua função política, a obra

8. E n co n tra -se u m a r e c o n stitu iç ã o parcial d o tra b a lh o d e V arro, c o m b ase n o rela to d e S anto A g o s ­ tin h o , em R. A g a h d , De Varronu reram divinarum Hbm I,.X lV , XV, X V t (L eipzig, 1896). 9. S a n to A gostinh o» Civitas Dei (ed . D om b art} vi. 5. 10. Ibid 5. 11. Ibid iv. 27. 12. Ibid iv. 5. S o b re o u so d o ter m o " te o lo g ia n a tu ra l” p o r S a n to A g o stin h o , v er W erner J a eg e r, The Tkeology o f lhe Early Greek Philosophers {O x fo r d , 1947), p p . 2 e seg u in tes. 13. Op. cit. vi. 6. 14. V er a este re sp eito J a eg e r, op. à t., p. 3, n n. 8 -1 0 . A cla ssifica çã o de A n tísten es, ju n ta m e n te c o m su as c ita ç õ es em M in ú c io F elix, L actâ n cio e C lem e n te d e A lex a n d ria e n c o n tr a m -se em E duard Zeller, D ie Pkilosophie der Griechen, I I /l (5? e d . ; L eip zig, 1922), 3 2 9 , n. 1.

era um livre de circonstance. A conquista de Rom a p o r Alarico em 410 d.C. havia alvoroçado a população pagã do Im pério; a queda de Rom a foi considerada co­ m o um a punição dos deuses pela negligência aos cultos que lhes eram devidos. Essa perigosa o nda de ressentim ento parecia req u erer a critica e a refutação a m ­ plas da teologia pagã em geral e dos argum entos contra o C ristianism o em p a r­ ticular. A solução dada p o r Santo A gostinho a essa tarefa foi curiosa, pois assum iu a form a de um ataque crítico ao Antiquities de V arro, um a o b ra escrita quase q u i­ nhentos anos antes com o propósito de reviver o entusiasm o cada vez mais débil dos rom anos p o r sua religião civil. Desde os tem pos de V arro, tal entusiasm o não dera sinais de aum ento significativo; e dificilm ente poder-se-ia suspeitar que a população n ão -ro m ana fosse mais devota que os p róprios rom anos. Ao tem po de Santo Agostinho, a vasta m aioria dos pagãos do Im pério era de fato com posta de adeptos dos m istérios de Eleusis, Isis, Atis e M itra, ao invés de cultores das d i­ vindades da Rom a republicana; ele, no entanto, mal m encionou esses m isté­ rios, ao m esm o tem po em que subm etia a teologia civil à crítica detalhada dos livros vi e vii. Não se deve buscar a solução desse enigm a nas estatísticas sobre filiações religiosas, e sim na questão da representação pública da verdade transcendente. O s leais à religião civil de Rom a constituíam realm ente um g ru p o relativam ente pequeno, mas o culto ro m an o perm anecera com o o culto oficial do Im pério até bem depois da m etade d o século IV. Nem C onstantino nem seus sucessores cris­ tãos consideraram aconselhável ab an d o n a r suas funções de pontijex maximus de Rom a. É verdade que, sob os filhos de C onstantino, im puseram -se sérias lim ita­ ções à liberdade do culto pagão, m as o golpe decisivo foi desferido apenas p or T eodósio com a famosa lei do ano 380, que tornou o Cristianism o o rto d o x o a reli­ gião obrigatória para todos os súditos do Im pério, ro tu lo u d e tolos e insanos todos os dissidentes e am eaçou-os com a eterna ira de Deus além da punição do im p e rad o r15. Até então, a im plem entação da legislação im perial em m atéria reli­ giosa havia sido pouco sistemática, com o era de esperar num m eio p red o m in an te­ m ente pagão; e, a ju lg ar pelo núm ero de leis repetitivas, nâo deve ter sido m uito efetiva m esm o depois de 380. De q u alq u er m aneira, na cidade de Rom a, as leis eram sim plesm ente postas de lado e o culto oficial perm aneceu pagão. Nessa época, no entanto, o ataque concentrou-se nesse centro sensível. N o ano de 382, G raciano, o im perador d o Ocidente, a b an d o n o u o título de pontijex maximus, r e ­ jeitan d o , com isso, a responsabilidade do G overno pelo sacrifício de R om a; além disso, foram extintas sim ultaneam ente as dotações para o culto, de m odo que os custosos sacrifícios e festivais já não podiam realizar-se; e, num ato ainda mais decisivo, a im agem e o A ltar de V itória foram rem ovidos da sala de reuniões d o ' Senado. O s deuses de R om a não m ais eram representados nem m esm o na capi­ tal do Im p ério 16. Em 383 a situação m elh o ro u do p o n to de vista pagão: G raciano foi assassi­ nado, a cidade foi am eaçada pelo an tiim perador M áxim o e um a m á colheita p ro ­ vocou crise e fome. Era evidente que os deuses estavam m ostrando sua ira e o m o ­ m ento parecia propício a que se pedisse ao jovem V alentiniano II a revogação das 15. Codex Theodosianus xvi, i. 2. 16. S o b re o caso d o A ltar d e V itó ria , ver H en d rik B erk hof, Kirche und Kaiser: Ein-e Untersuchung der Ents * tehung der byzanttnischen und der theokratischen Staatsauffassung im viertem Jahrhundert, trad. G o ttfried M. L och er (Z ollik on - Z urique, 1947) p p . 174 e se g u in tes; G a sto n B oissier, La Fin du Paganisme, vol. 11 (2* e d .; Paris, 1894).

m edidas anteriores e, em particular, a restauração do A ltar de V itória. A petição do p artid o pagão no Senado foi apresentada ao im perador p o r Símaco, em 384; lam entavelm ente, no en tan to , a colheita desse an o foi excelente, fornecendo um fácil arg u m en to a Santo A m brósio, que defendeu o lado cristão 11. O m em o ran d o de Sím aco constituiu um a nobre defesa da tradição rom ana, baseado no antigo p rin c ip io -do-ut-des. A negligência do culto leva ao desastre; V itória, sobretudo, beneficiou o Im pério e não deve ser desprezada18; então, num toque de tolerância, o a u to r pede que a cada um seja p erm itido venerar a divin­ dade à sua m an e ira 19. Santo A m brósio, em sua resposta, pôde valer-se facilmente do m esm o princípio do-ut-des20 e nào teve dificuldades em m ostrar que a nobre tolerância de Símaco não era tão im pressionante caso se considerasse que, na p rá ­ tica, implicava a participação com pulsória dos senadores cristãos nos sacrifícios a V itória21. O argum ento decisivo, no entanto, estava contido na sentença que fo r­ m ulou o princípio da representação: "E n q u an to todos os hom ens que são súdi­ tos da lei ro m an a servem (militare) a vós, im peradores e príncipes da terra, vós p ró p rio s servis (militare) ao Deus onipotente e à sagrada fé22>\ Chega a parecerse com a O rdem de Deus m ongol, discutida no capítulo an terio r, mas é, na ver­ dade, seu inverso. A form ulação de Santo A m brósio não justifica a m onarquia im ­ perial a p o n tan d o ao governo m onárquico de Deus — em b o ra este problem a tam bém se tenha to rn ad o agudo no Im pério R om ano, com o verem os dentro em pouco. Ela não fala de governar, mas de servir. Os súditos servem ao príncipe na terra com o seu representante existencial, e Santo A m brósio não tinha ilusões a respeito da fonte da posição im perial; sao as legiões que fazem V itória, o b se r­ vou com desprezo, e não Vitória que faz o Im p ério 23. Começava a aflorar concretam ente na sociedade política o conceito da tem poralidade com o algo dis­ tinto da o rdem espiritual. Acima dessa esfera tem poral do serviço p o r parte dos súditos, surge o Im perador, que serve apenas a Deus. O apelo de Santo A m b ró ­ sio nao se dirige ao governante im perial, m as ao cristão que, porventura, ocupa esse lugar. O governante cristão é advertido no sentido de não perm itir, p retex­ tando ignorância, que as coisas sigam seu p ró p rio curso; se ele nào der dem ons­ trações positivas de zelo pela fé, com o seria correto, deve, pelo m enos, negar e n ­ dosso à idolatria e aos cultos pagãos24. O im perador cristão sabe que deve vene­ rar apenas o altar de C risto e que