A Mulher no Século XX

Table of contents :
Capa
Índice
Prólogo
1. A realidade histórica da mulher
2. A instalação no mundo “vitoriano”
3. As fissuras: revolução, industrialização, emancipação
4. As possibilidades femininas na sociedade do século XIX
5. A incorporação da mulher à cultura universitária
6. Vigências gerais e vigências femininas
7. Idéias e crenças no mundo feminino
8. Homem e mulher: o processo de nivelação e sua ambigüidade
9. A interpretação freudiana e seus pressupostos filosóficos
10. A corporeidade da mulher e suas conseqüências pessoais
11. A humanidade da mulher
12. A mulher como forma de vida humana
13. Mulher e projetos: a busca de identidade
14. A mulher e o tempo: as idades
15. A nivelação criadora: a amizade intersexual
16. Amor e enamoramento: o argumento da vida pessoal

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A MULHER NO SÉCULO XX

LIVROS DE J ULIAN MARIAS TRADUZIDOS NO BRASIL: Introdução à Filosofia - Livraria Duas Cidades 4.ª edição no prelo.

A estrutura social

-

Livraria Duas

Cidades

- São Paulo , 1960

- São Paulo, 1963 -

(esgotado).

( título no original: Los Estados escorzo) - Editora Presença - Estado da Guanabara,

Um mundo novo, os Estados Unidos Unidos 1964.

en

Biografia da Filosofia e Idéia da Metafísica - São Paulo, 1966 - (esgotado).

-

Livraria Duas Cidades

Meditações do Quixote, José Ortega y Gasset (Comentário por Julíán Marías) - Livro Ibero-Americano Ltda. - São Paulo, 1967. Antropologia metafísica - Livraria Duas Cidades - São Paulo, 1971.

O

tenw

do homem - Livraria Duas Cidades - São Paulo, 1975.

Litemtura e gerações

-

Livraria Duas Cidades - São Paulo , 1977.

Prohlenws do cristianismo - Editora Convívio - São P.aulo, 1979.

JULIÃN MARTAS

A

MULHER NO SECULO XX

Tradução de DIVA RIBEIRO DE TOLEDO

EDITORA CONVfVIO São Paulo 1 981

PIZA

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP

M286m

Marías, Julián, 1914 A mulher n o século X X / Jul!án �farías ; tradução dt; Diva Ribeiro de Toledo Piza. - São Paulo : Convívio, 1981. 1. Mulheres

1.

Título.

CDD - 3 01. 412

81-0476

1.

1ndices para catálogo sistemático: Mulheres : Sociologia 301.412

Título do original: LA MUJER EN EL SIGLO XX Aliança Editorial S.A., Madrid, 1980 Copyright by Editora Convívio Convívio - Sociedade Brasileira de Cultura Alameda Eduardo Prado, 705 - S. Paulo CEP 01218 SP -

A Lolita na memória na esperança

íNDICE Prólogo

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IX

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1

I.

A realidade h!stórica da mulher

2.

A instalação no mundo "vitoriano" .....................

rn

3.

As fissuras:

revolução, industrialização, emancipação ..... .

31

4.

As possibilidades femininas na sociedade do século

XIX .. .

46

........

5.

A incorporação da mulher à cultura un:versitária

6.

Vigências gerais e vigências femininas ................. .

67 78

5.5

7.

Idéias e crenças no mundo feminino ................... .

8.

Homem e mulher: o processo de nivelação e sua amb:güidade

90·

u.

A interpretação freudiana e seus pressupostos filosóficos ... .

101

10.

A corporeidade da mulher e suas conseqüências pessoais .. .

115-

11.

A humanidade da mulher

.

127

12.

A mulher como forma �e vida humana ................. .

137

13.

Mulher e projetos: a busca de identidade .............. .

147

14.

A mulher

164

e

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o tempo: as idades . . ..................... .

15.

A nivelação criadora:

16.

Amor e enamoramento: o argumento da vida pessoal ......

a amizade intersexual

172 182.

VII:

PROLOGO

Em 1970 publiquei um livro intitulado Antropología meta­ física, o mais pessoal entre todos que escrevi, resultado de vinte anos de meditação e esclarecimento.

Se não estou equivocado,

é o primeiro livro filosófico em que se leva em conta, a sério e com conseqüências, o fato de que no mundo não há somente homens mas também mulheres, de que a vida humana se rea­ liza em duas formas inseparáveis mas irredutíveis:

varão

e

mulher. Creio que nesse livro encontram-se conceitos e métodos que permitem acercar-se, um pouco de verdade, da realidade humana; que se podem fazer, a partir dele, estudos antropo­ lógicos fiéis ao que é o homem.

E, portanto, a mulher.

Du­

rante meio século, desde que tive o uso da razão vital com um mínimo de maturidade, a mulher me interessou profunda­ mente. E, por isso mesmo, perguntei-me por sua condição, suas possibilidades, suas variedades, seus matizes. Fui teste­ munha, ao longo desse tempo, de profundas mudanças sobre­ vindas à mulher, na Europa e na América: algumas esperan­ çosas, outras ameaçadoras. Assisti abrir-se e fechar-se, e ialvez abrir-se de novo, possibilidades que me pareciam prodigiosas; vi a maravilhosa realidade da mulher interpretada, desfigurada, manipulada, admirada por uns e por outros; senti declinar à minha volta o entusiasmo que sempre tive, que sempre me pa­ recw justo e exigido. Vivi, em suma, o que se chamou a crise da mulher em nosso tempo. Sobre este tema dei um curso de conferências em Madrid cm 1976-77. Dois anos depois decidi enfrentar a fundo a questão, realizar uma dessas possibilidades antropológicas. Em Madrid, no campus da Indiana University, Bloomington, em Madrid novamente, escrevi este livro, que não deve muito a

IX

outros livros, mas indizivelmente a muitas mulheres: a uma sobretudo, mas também a minhas amigas de todas as idades e de vários países. Julián Marías Madrid, outubro de 1 979

X

1 A REALIDADE HISTóRICA DA MULHER

Menciona-se a toda hora a "crise da mulher no século XX". Não valerá a pena pensar um pouco no que significa "crise"? E não será preciso esclarecer, se possível, o que significa "mu­ lher" como realidade histórica que, numa determinada época, pode entrar ou estar em crise?

A palavra "crise" tem a mesma raiz que "crítica"; trata-se de juízo, julgar, distinguir. "Crise" significa em primeiro lugar desorientação. Está-se em crise quando se está desorientado, quando não se sabe o que fazer; sobretudo, quando não se sabe o que pensar.

Ou, empregando uma fórmula coloquial

da língua espanhola, que a filosofia muito tem usado desde Ortega, "não saber a que se ater", a fórmula mais profunda e radical de saber. Podem-se ter muitos conhecimentos teóricos, muitas notí­ cias, possuir uma ampla informação, e estar contudo perdido nessa multidão de saberes, conhecimentos, notícias e opiniões. No momento decisivo não se sabe com o que ficar, o que fazer. É então que se produz esse fenômeno da desorientação. E quando a desorientação tem um caráter coletivo, quando não afeta a uma pessoa em particular e sim a uma sociedade, ou a um grupo de sociedades, ou ao mundo inteiro; quando, por outro lado, não é uma desorientação momentânea mas se estende por um período mais ou menos longo, então falamos de crise. É isto uma crise histórica. O que nos faz ver que ''crise", em seu sentido pleno, é sempre uma crise histórica, ·crise de uma realidade que tem caráter histórico. Se não, não é crise; poderá ser uma situação difícil, penosa, perigosa ou desesperada, mas não propriamente uma crise. Esta se produz quando não sabemos o que pensar e então nos perguntamos:

1

de que se trata, que é isto, que podemos fazer, que temos d� fazer?

Dir­

No século XX, a mulher se pergunta por si mesma. se-á: não o fazia antes? mesma? sidade.

A muiher não se perguntava por si

Não no mesmo grau, com a mesma freqüência e inten­ Cada mulher - como cada homem - se pergunta por

si mesma.

A vida humana consiste em cada um perguntar-se

por si mesmo e ir dando um significado ao nome próprio que cada um de nós possui: isso é nossa biografia.

Mas normal­

mente as mulheres perguntavam cada uma por si mesma; outras épocas dava-se por suposto o que acreditavam saber o que

em

é mulher; as mulheres

é mulher (ou o que deve ser).

Era­

lhes pois questão, sua própria realidade pessoal ou sua figura, o grau de aproximação com o qual acercar-se ao que parecia uma forma valiosa de mulher, isto é, um modelo.

Porém,

o

que era ser mulher, inclusive mulher exemplar, pareceu óbvio na maioria das épocas, um pressuposto do qual se pôde partir.

Atualmente, não o é.

Ao lado da pergunta que cada mu­

lher faz a respeito de si mesma, singularmente, há uma ques­ tão prévia: Que quer dizer ser mulher?

Que significado tem?

Agora, precisamente agora, nesta época em que vivemos.

Mas

esta questão da mulher, esta pergunta sobre a mulher, não é exclusiva dela, porque o homem está referido

à mulher - nisso

consiste ser homem, do mesmo modo que ser mulher consiste em estar referida ao varão -.

A crise em que a mulher se

encontra quanto à sua própria condição envolve imediatamente o homem. A falta de clareza no tocante ao que quer dizer ser mulher inclui, como um de seus traços preliminares, o não saber com exatidão como se haver com o homem, o que é a mulher rela­ tivamente ao homem.

E isto põe em questão, de modo auto­

mático, o que é ser homem relativamente à mulher. Imagine-se a perplexidade que acarreta ao homem haver-se com a mulher quando esta não se vê a si mesma claramente, isto é, quando ela começa por perguntar-se o que é ser mulher. O homem, normalmente, relacionou-se com a mulher dando por suposto que a condição feminina já estava dada, era algo com que podia contar, do que se podia partir. E que, por conseguinte, a mulher esperava ou temia certas coisas dele, não

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forçosamente as mesmas. Havia uma tipologia que o homem, naturalmente, procurava identificar e discernir. Mas uma vez isto feito, ficava bastante nítido o que era "mulher" para o homem, pelo menos o que na mulher era próximo ao ho­ mem, e o relacionamento como tal não era problemático. Podia o ser o deste homem particular com aquela mulher particular, porém o do homem com a mulher, como tal, não foi proble­ mático em muitas épocas. Não digo que nossa situação seja única na história; mas possui uma extensão e amplitude que, provavelmente, nunca teve antes.. A instalação do homem e da mulher em suas con­ dições respectivas, e por conseguinte o relacionamento entre ambos, estavam normalmente claros, de maneira genérica, e os problemas surgiam unicamente no contato pessoal, individual, de cada um com cada uma. Hoje é inteiramente distinto, e a situação é de dupla desorientação: desorientação da mulher a respeito

de si mesma, desorientação do homem a respeito da mulher, e portanto de cada um a respeito do outro. Por que aconteceu isto? Por que a situação é crítica no século XX? Ocorreram várias mudanças de particular alcance que é pre­ ciso recordar. Costuma-se pensar que a mulher é uma realidade natural, ou que na natureza existem mulheres, como há homens. Em primeiro lugar, atenta-se para a condição biológica. Há uma diferença anatômica e fisiológica entre homens e mulheres.

Ao

nascer uma criança, o obstetra ou a parteira, o pai e um pouco depois a mãe, fazem uma inspeção ocular e dizem: "É um menino" ou "É uma menina". Baseia-se isto num reconheci­ mento sumário de sua estrutura anatômica, da qual derivam-se mumeras consequencias. Isto parece ser o substancial, o pri­ mário e fundamental. Sim, não deixa de haver acerto nisso; não creio que seja o mais importante, porém é decisivo. Pois bem, a mulher no século XX mudou profundamente do ponto de vista biológico. Nada menos. A condição biológica da mulher teve uma mudança decisiva no século XX. Aco nteceu um fato histórico capital: a dissociação entre a sexualidade e a reprodução, nem mais nem menos. Este é um fato de enorme vulto, cujas conseqüências ainda não aca­ bamos de assimilar - temo que nem sequer começamos -. O homem e a mulher vivem imersos em um sistema de pres­ supostos que, milenarmente, associaram a sexualidade e a re3

produção. Pois bem, neste século e não antes, ambas as coisas estão dissociadas. Não digo que sejam independentes, nem que sejam separáveis; digo somente que estão dissociadas. Isto cons­ titui uma mudança biológica, estritamente biológica, absoluta­ mente fundamental e de conseqüências imprevisíveis. Acontece porém que essa mudança biológica não é bioló­ gica. Quer dizer, não é por motivos biológicos; não que se haja produzido uma mutação biológica, que houvesse um pro­ cesso natural no sentido de alterar a constituição biológica da espécie humana. Nada disto aconteceu. A natureza não expe­ rimentou nenhuma variação importante. A origem dessa mu­ dança biológica está na psicologia, na sociologia, na estética, na moral, na religião, na ciência. Isto é,. naquilo que o homem tem de não biológico; no que tem de biográfico: social, histó­ rico, estritamente pessoal. As conseqüências são biológicas, gravissimamente biológi­ cas; porém esta mudança biológica não se origina na biologia. Um exemplo fundamental do tipo de problemas com os quais é preciso defrontar-se e cujo desconhecimento leva a nã.o enten­ der nada. Ao negar-se ou ocultar-se o caráter biológico dessa dissociação, não se compreende de que se trata; ao interpretar-se em termos de "conduta", não se entende porque tem uma reper­ cussão estritamente biológica. Porém, ao procurar-se entendê-lo biologicamente, derivá-lo da biologia e não do caráter histórico­ social, torna-se incompreensível. A biologia não teve nenhum papel neste processo que conduziu a uma mudança biológica fundamental. E, uma vez produzida esta mutação biológica, ela age sobre todo o resto da personalidade e sobre todo o social e histórico. Os projetos humanos, masculinos e femininos, estão pois afetados pela presença desse n ovo fato biológico que vem mo­ dificar a situação milenar em que se viveu. É um processo de ida e volta. Gera-se esta mudança no histórico-social, sem nenhuma participação da biologia: algo especificamente huma­ no, pessoal, biográfico; porém essa variação biológica conver­ te-se num dado capital que deve ser levado em conta, que modifica todas as possibilidades de projeção humana e, é cla­ ro, de projeto entre os dois sexos. Como se vê, as coisas são um pouco mais complicadas do que parece, mas são entendidas unicamente na medida em que se lhes admite sua complexidade: a vontade de simplifi-

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cação impede a compreensão da realidade. Se a realidade é complexa, a única maneira de entendê-la é reconhecer sua com­ plexidade, não omiti-la. Se perguntamos o que é ser mulher, vemos que é uma Toda realidade é interpretada, se me apresenta como uma interpretação, primariamente vital, secundariamente intelectual. Mas toda interpretação é em si mesma real, for­ ma parte da realidade. E essa interpretação que chamamos "a mulher" é dupla, porque a mulher não se interpreta só mas em vista da interpretação do homem, que não é forçosa­ mente uma teoria e sim, antes de tudo, de caráter prático. O homem comporta-se diante da mulher de certa maneira, com um repertório de maneiras diferentes, e essa é sua inter­ pretação. E a mulher encontra esse conjunto de interpreta­ ções masculinas ; vê-se nelas como num espelho, e ao mesmo tempo vê a si mesma e interpreta-se em sua solidão ( ou no isolamento plural do sexo, isto é, "entre mulheres" ) . Ser mulher é, portanto, algo interpretativo, porém consiste numa dupla interpretação. E diríamos o mesmo do homem, que tam­ bém se vê a si mesmo e no espelho da mulher. Lembrem-se os versos de Antonio Machado: interpretação.

Dicerti que el hombre no es hombre hasta que no oye su nombre de labios de una mujer. Puede ser. (º)

Exatamente igual. f: a única igualdade que provavelmente existe entre os dois sexos : a essencial dependência que um tem do outro. Essa interpretação, que é uma realidade, é uma realidade histórica e mutante. A mulher interpreta-se a si mesma e é interpretada pelo homem em cada sociedade, em cada época, de uma maneira, ou de várias maneiras mais ou menos coe­ rentes : dever-se-ia procurar, dentro dos vários momentos, o ( ")

Dizem que o homem não é homem até que ouça seu nome dos lábios de uma mulher. Pode ser.

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"sistema" dessas interpretações. Imagine-se, em uma época determinada, os tipos de mulher existentes (desde logo, na mente dos homens e das mulheres ) . São mulheres muito dife­ rentes, mas são mulheres ; isto é, cada tipo é entendido dentro de um complexo de figuras que compõem uma realidade vital­ mente sistemática (embora logicamente não o sej a ) . São figu­ ras coerentes porque funcionam dentro de uma mesma forma de vida. Porém se passamos para outra época, do século XVIII para a época romântica, por exemplo, muda o sistema; cada um dos tipos femininos do século XVIII vari a ao passar para o Romantismo, ou para a época vitoriana, ou para a nossa. Não digamos se se trata da Grécia ou de Roma ou d a Idade Média, o u da cultura chinesa diante da ocidental. As diferenças são imensas. O que significa que os dados bioló­ gicos - que são fundamentais - sã o apenas dados para um a interpretação, para certas pautas d e conduta, para p rojet o s hu­ manos. E ainda mais, esses d ados - como acabamos de ver - são modificáveis, não permanentes, e precisamente por r a­ zões históricas. Imagine-se que o homem fosse simplesmente - como al­ guns pensam agora - uma espécie animal ; que homem e mu­ lher fossem o macho e a fêmea de uma espécie biológica . O que aconteceria? Muitas coisa s ( porém, sobretudo, não acon­ teceriam inúmeras outras ) . Provavelmente haveria uma época de cio, talvez n a primavera, ou em novembro, que n a Espanha é o mês de Don Juan Tenorio. As espécies animais têm nor­ malmente uma época de cio, fora d a qual o macho e a fêmea são indiferentes um ao outro, isto é, não funcionam como ma­ cho e fêmea. Dizia Beaumarchais que "beber sem sede e fazer o amor em qualquer tempo é o que distingue o homem dos a nimai s . Se as coisas fossem assim, a mulher só seria mulher ocasionalmente, transitoriamente. A existência da con­ dição feminina em forma permanente é de origem cultural, histórica e não biológica ; quero dizer não meramente bioló­ gica. Se quisermos entender teremos que procurar os concei­ tos antropológicos adequados para pensar a realidade humana. "

É notória a insuficiência de quase todas as doutrinas contempo­

râneas, porque se fundam em idéias biológicas e, sobretudo, fisiológicas arcaicas, que não levam em conta os passos deci­ sivos d ados pela filosofia em nosso século para entender o que é a vida humana. 6

A conseqüência disto é que o problema da mulher é bas­ tante nebuloso. E se o ser da mulher é uma intepretação his­ tórica, pode ter lugar uma história da mulher. Dir-se-á que já se escreveram livros sobre e sse tema; porém, na realidade, não passam de apêndices à história geral, entendida primaria­ mente como história do varão, como história masculina ; escre­ veu-se a história como se houvesse apenas homens, com uma nota ao pé da págin a que adverte que também há mulheres, caso contrário as coisas não andariam. E logo mais, dan do-se o caso de haver um apêndice em que figura a história de algu­ mas mulheres, apontam-se algumas variações particulares da realidade mulher. Porém, como a quinta roda do carro, por­ que essas precisões sobre a mulher não são postas a funcionar na compreensão geral da história . Essa "história da mulher" nada mai s é que história do homem, com um aditamento ino­ perante. É que é difícil fazer a mulher intervir realmente na interpretação da realidade. Eu tenho o modesto orgulho de haver escrito um livro chamado Antropología metafísica, que é o único estudo antropológico filosófico que conheço em que comparece realmente a mulher e não como um apêndice inerte e inoperante. Isto é, em meu livro nada se entende sem levar em contà a figura da mulher ( que é, justamente, o que acontece na realidad e ) .

Poder-se-á adiantar que essa maneira tradicional de enten­ der a mulher como apêndice da história do homem é um erro. Claro que é, mas é um erro verdadeiro, isto é, um verdadeiro erro que faz parte da realidade histórica, e não podemos omi­ ti-lo. O fato de que as coisas assim tenham sido entendidas milenarmente é um fato, e deve ser levado em conta. Ao afirmá-lo um erro não o eliminamos; podemos retificá-lo e não cair nele, porém tem-se de contar com ele porque foi um in­ grediente da realidade histórica; é tão real quanto a estrutura biológica. Toda perspectiva justifica-se e é verdadeira, com uma con­ dição : que não se creia única. Cada um tem um ponto de vista particular, isto é inevitável e não tem inconveniente en­ quanto souber-se que é um ponto de vista particular , e que

1971.

( 0)

Antropologia metafísica, Livraria Duas Cidades, São Paulo,

(N. do T.)

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Cad a v1sao é verdadeira, mas a realidade não se à tot alidade de pontos de vista 'lue somente Deus possui. A deformação imposta pela pers­ pectiva particular não é um mal quando se leva em conta que

há outros.

reduz a nenhuma delas e sim

ela deve integrar-se com outras. Elas têm a impres­ em todas as épocas; que ela foi oprimida e feita mais ou menos escrava. Talvez isto queira dizer que se elas tivessem vivido naquelas condições teriam achado horrível, se sentissem oprimidas e como escravas. Nada há a objetar. Agora, que as mulheres do século XIII acharam tão horrível o que lhes acontecia, isto teria de ser averiguado; as mulheres do tempo de Cervantes estavam oprimidas? Algumas sim, outras diriam que não. É um erro semelhante ao dos progressistas, que vêem a história inteira da humanidade como um longo processo destinado a produzi-los. Tudo o que é anterior parece-lhes tremendo, in­ válido, lamentável. Mas os homens do século XXI, se forem progressistas, pensarão o m esmo do século XX, e assim suces­ Pensemos na atitude d as f eministas.

são de que a condição da mulher tem sido horrível

sivamente. Os liberais do século passado acreditavam haver inventado a liberdade e que os homens não haviam sido livres antes. Pode-se pensar isto seriamente? É imaginável que os homens tivessem vivido desde a pré-história até o século XIX sem liberdade? O que acontece é que a idéia de liberdade l!los liberais do século XIX fazia-lhes ver como falta de liber­ dade a situação d as demais epocas. Mas para os homens des­ tas épocas talvez houvesse parecido que os do século XIX tinham muito pouca liberdade. Muitas épocas houve em que foi obrigatório ter certa reli­ gião ou admitir uma ideologia determinad a. Pense-se na Es­ panha durante a Inquisição, especialmente no século XVI .e t:omeços do XVII. Ou na situação dos ingleses no tempo de Henrique VIII: se alguém era católico, o enforcavam ou quei­ mavam, ou cortavam-lhe a cabeça se fosse nobre, porque não admitia a supremacia do rei; porém se era protestante faziam­ lhe o mesmo, porque Henrique VIII considerava-se católico e não aceitava a Reforma. Imagine-se o difícil que era conser­ var a cabeça na Inglaterra do século XVI, por culpa da teo­ {ogia. Parece-nos isto uma tremenda opressão; porém, um súdito de Henrique VIII podia atravessar a rua onde quisesse, e nós apenas no sinal verde. Imagine-se o que seria para um

8

súdito de Henrique VIII ou de Felipe II obrigarem-no a atra­ vessar a rua por um lugar e não por outro. Parece-nos opres­ são ter de crer (ou não crer) n a transubstanciação; porém, temos de crer na imunologia, e permitir que introduzam em nosso organismo o exsudato de um bezerro doente ou outras coisas piores; porque se não nos vacinamos não nos permitem ir à escola, não nos dão o passaporte, não podemos atravessar a fronteira, não nos deixam viver. Pode-se pensar que ler é uma desgraça e que quase tudo o que se lê é m au; porém, não nos permitem ser analfabetos: obrigam-nos a aprender a ler, ainda que acreditemos que se é m ais f eliz não lendo. O mais liberal dos Estados não permite não ensinar a ler a nos­ sos filhos. Podemos ter filhos católicos, protestantes, judeus, maometanos, budistas, ateus; mas não analfabetos. Parece-nos irritante que nos perguntem por nossas cren­ ç as religiosas, mas não por nossas rendas e nossos gastos. As declarações de imposto sobre a renda só podem ser equipa­ radas a um manual de confessores do século XVI. "E quan­ tas vezes?" "Quantas vezes cobrou? Quantas vezes sacou di­ nheiro do país? Quantas vezes viajou? Quantas vezes convi­ dou seus clientes? Quantas vezes foi operado?" A liberdade v ai por água abaixo. Quando projetamos nossa idéia parti­ cular da liberdade sobre as demais épocas, achamos que nãõ a tinham; não tinham aquela a que aspir amos, mas nós não temos a que elas gozavam. Transfira-se isto ao tema da mulher e dar-se-á o mesmll'l... Uma boa feminista de 1970 ach a horrível a vida da mulher em todas as outras épocas, sobretudo quando não as conhece bem, o que é tão freqüente. Mas imagine-se o que diriam as mulheres do século XV ou do XVII ou do XVIII ou do Ro­ mantismo da vida dessa feminista. Provavelmente lhes pare­ ceria o inferno. Ranke, o gr ande historiador alemão, dizia que todas as épocas estão à mesma distância de Deus: é uma consideração que não se deve perder de vista. Cada época é válida em si mesma; tem sua lógica interna, segundo a r aiã1J histórica, naturalmente, não segundo a razão abstrata, tem seus títulos de justificação, suas possibilidades de felicidade, seus riscos de infelicidade, seu sentido ou- seu sem-sentido, e convém não projetar levianamente sobre outras épocas nossa maneira particular de julgar a realidade. Sobretudo quando aquela nã1J se funda na realidade mesma, por exemplo na conduta huma-

na, e sim em certas idéias que se supõem válidas e t alvez não o sejam. A literatura, da qual se deriya grande parte da informa­ ção sobre outras épocas, costuma ser exagerada e tendenciosa, corno o é a política. É e deve ser, tem de ser. A literatura, com propósitos artísticos, deforma a realidade. O quotidiano, o de todos os dias, não parece interessante. A própria histó­ ria, durante muito tempo, só contou o extraordinário, o "me­ morável"' ou digno de ser recordado: o que acontece a per­ sonagens egrégios, os grandes eventos como b atalhas ou revo­ luções; ou o insólito, como uma criança com duas cabeças. Foram precisos séculos para ver que a vida quotidian a é inte­ ressante. A literatura de quase todas as épocas relata-nos o infreqüente, o estranho, o maravilhoso. Ao mencionarmos Calderón, pensamos em E/ médico de su honra, ou El mayor monstruo, los celos, estes dramas horripilantes, abstratos, de honra, ciúme e morte. Pensamos: é este o homem c aldero­ niano (e a mulher calderoniana, é claro) . Era esta a situa­ ção da mulher entre 1630 e 1680 ( C alderón viveu nada me­ nos que de 1600 a 1681, ocupa quase todo o século XVII) . Sim, mas não se pensa nas comédias de cap a e espada e n as comédias de intriga do mesmo Calderón, em que aparecem algumas damas que, em lugar de serem sangr adas misteriosa­ mente para lavar uma imaginária mancha da honra de seu m a­ rido, praticam todo gênero de travessuras e burl as, são diver­ tidíssimas, o próprio diabo. São também da mesma época, do mesmo país, do mesmo autor; o que mud a é o gênero l ite­ Qual é a época de Calderón? A dos dramas de rário. honra e de ciúmes ou a das comédias de intriga? As duas, e provavelmente mais a das comédias. Se não, como teria sido possível que já desde o princípio do século XVIII o cortejo ou o chichisbéu