A Milícia Cidadã: A Guarda Nacional de 1831 a 1850

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AMILÍCIA CIDADÃ: aGuarda Nacional

de 1831 a1850 JEANNE BERRANCE DE CASTRO

brasiliana volume 359

A MILÍCIA CIDADÃ A Guarda Nacional de 1831 a 18~0

BRASILIANA Volume 359

* Direção: AMÉRICO ]ACO!lINA LACO:MIJE

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Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

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Revista do Centro de Sciências, Letras e Artes de Campinas

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Re,•ista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Tempos Imperiais

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AGRADECIMENTOS

Várias pessoas tornaram possível este meu trabalho, emprestando uma colaboração ativa e sobretudo construtiva, marcada pela solidariedade e compreensão. A elas apresento o meu reconhecimento e, em especial : ao Professor Doutor Sérgio Buarque de Hollanda, que com a riquúa de sua inteligência e cultura proporcionou-me um:1 orientação segura e paciente na elaboração desta pesquisa apresentada como tese de doutoramento; ao Professor Doutor Eurípedes Simões u a Constituinte. Um 1.,rasileiro, o general José Manuel de Morais, comandou então as tropas que cercaram aquela assembléia. ~fas em 1831. o mesmo general, feito ministro ela Guerra.. foi assistir no dia 25 de março às comemorações do aniversário da Constituição promovidas pelos liberais, que de propósito deixaram de convidar o imperador, e disse: "Pois eu vou porque sou um homem do povo". Não parecia difícil associar a grande redução ocorrida ultimamente nos efetivos do exército à má vontade dos homens que subiram ao poder com a Regência, onde o brigadeiro Francisco de Lima e Silva, figura de proa do regime, tinha um irmão na pasta da Guerra, cop.tra numerosos oficiais nascidos no Reino europeu. A imputação é pelo menos exagerada, porque a maioria XIV

dos cortes resultou de iniciativa reclamada e devidamente aprovada já ao tempo do imperador, como remédio para a situação calamitosa das finanças públicas e por ser desnecessário insistir em grandes despesas nesse particular depois de encerradas as campanhas do Sul. Seja como for, ninguém perdia de vista a necessidade crescente do que poderia chamar-se a nacionalização das forças armadas como complemento daquela nacionalização da Independência. Durante as agitações de 1830-31, segundo resulta das pesquisas desenvolvidas pelo jovem historiador John Schu ltz, em dissertaçfo ainda inédita que preparou para doutorar-se na Universidade de Princeton, mais da metade dos 44 generais do exército brasileiro, isto é, exatamente 26, eram naturais de Portugal, e havia ainda dois outros europeus, um inglês e um francês, quando os bra~ileiros natos não passavam de dezesseis, quer dizer, pouco mais da terça parte do total. Em 1830 foi morto um dos adotivos portugueses e dois ''resignaram", um quarto acompanhará D. Pedro ao exílio e oito resignarão ou se verão forçados a tanto durante os dois anos subseqüentes. Contudo, ainda ficaram quatorze generais nascidos no Reino para dezesseis brasileiros natos, além do francês, que continuou a serviço do Império ao passo que seu colega inglês se retirou. É possível que os adotivos que não se viram afastados. e sabe-se de vários que foram promovidos com o tempo, tivessem abraçado sinceramente a nacionalidade brasileira. Na opinião, todavia, dos chapéus de palha mais intransigentes, a continuada presença lusitana nos altos postos militares, e que tão cedo não irá desaparecer, tende a ser encarada como um perigo para a situação. Desse ponto de vista, os resultados da série de refor111:1s processadas àquele tempo, e que não tinham em mira unicamente expurgá-las de partidários reais ou supostos da volta do impenidor, mas também prevenir a formação de focos de opinião republicana ou federalista, tião deixavam de ser muito magros, uma vez que se equipar.avam quase, nmpericamente, os generais nascidos no Brasil e os naturais de Portugal. Aliús. mesmo entre brasileiros natos, não eram poucos os que, por se inclinarem ao conservantismo, ou por temerem o atrevimento de inovações que mergulhariam o país no desconhecido, pareciam fazer coro com os pés-de-chumbo. Não é por acaso que, em 1833, quando circularam boatos da próxima volta de D. Pedro I, a vanguarda da campanha restauradora na Corte se chamou Sociedade Conservadora e nela, segundo ioi voz corrente, se abrigaria, além do estado-maior dos caramur11s civis, cerca de três centenas de militares, ou que, logo depois, o

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núcleo mais atuante do movimento restaurador tomou o ·nome de Sociedade Militar. A paisagem política sofrerá algumas mudanças a partir cte 1834, o ano do Ato Adicional, mas o ano, também, da: morte do antigo imperador, o que tira naturalmente qualquer sentido ao movimento restaurador. É certo que o "regresso", nascido pouco depois, e para o qual o regente Feijó, disfarçado ert1bora pela capa da moderação, não passa de um sans-culotte; vai absorver boa parte dos caramurus, mas não é menos exato que ele deixa pouco lugar para uma posição ele hostilidade aos grandes princípios nacionais. Todos sabem que os mentores do regressismo, cotí.vertid_o agora em Partido Conservador, e que se chamàin Bernardo de Vasconcelos e Honório Hermeto, também foram homens do 7 de abril. Seja como for, já ninguém mais acreditava seriamente na perspectiva de algum 7 de abril às avessas, ele sorte que o desaparecimento do antigo monarca pôde servir paradoxalmente à reação monárquica em preparo, segundo notou um publicista da época, :sem machucar aqueles irascíveis melindres de nacionalidade que em fins do Primeiro Reinado e nos primeiros tempos da Regência andaram na ordem do dia. Para situar bem e melhor entender a nossa Guarda :\'acional, isto é a nossa primeira Guarda Nacional - porque outras houve durante a vida longa dessa corporação, ou antes dessa denominação, até ir desmanchar-se melancolicamente na ''Briosa", que este século ainda conheceu, é preciso considerar que em 1831, o ano de seu nascimento, tudo levava a crer que seriam eternos e inexpugnáveis aqueles melindres brasileiros. Quando a professora Jeanne Berrance de Castro me convidou para orientador .no concurso de doutoramento que devia realizar, tratamos de passar em revista primeiramente várias questões históricas mal sabidas 01,1 inexploradas que permitissem a elaboração de uma tese original. Ao fixar-se no tema da milícia cívica ou milícia "cidadoa", como a nossa Guarda Nacional também foi chamada, não creio que ela tivesse bem em vista o clima de opinião dominante no país já durante a terceira década do século passado e que serve comô de pa,no- de. fundo da instituição. Pensávamos, eu ao menos pensava, e foi minha afinal a sugestão aceita, entre outras que também fiz, num estudo que abarcasse principalmente as formas que assumiu durante o Império o mandonismo local com suas conseqüências que ainda perduram em grande parte. Seria, em suma, um estudo a mais, além dos n,mitos que já existem, dos setores rurais dominantes na paisagem social qra~iléira. XVI

A existência desse tipo de potentados não é aliás uma especialidade nossa. Para procurar outro exemplo, ocorre logo a lembrança daqueles "coronéis" do Kentucky e de outros lugares dos Estados Unidos, onde o símile é manifesto até na patente assumida pelos personagens. E isso leva a pensar nos possíveis modelos estrangeiros da Guarda Nacional brasileira de 1831, que tanto podia ter tirado sua inspiração da Carde Natiio11ale como da National Guard. A questão há de parecer irrelevante à primeira vista, dado que uma e outra, a francesa e a norte-americana, procediam das mesmas matrizes revolucionárias, mas o certo é qUe, a partir desse ponto, a pesquisa podia levar a rumos imprevistos. Porque, se os princípios que as hão de reger são fundamentalmente semelhantes, parece fora de dúvida que a maior ou menor ênfase dada a tal ou qual princípio tem muito a ver com a estrutura das sociedades que irão suportá-las. Assim, numa terra onde eram pouco pronunciadas relativamente as barreiras de classe ou, segundo um dito de Stuart Mill, onde toda gente pertencia à classe média, e é o caso dos Estados Unidos, muito embora fosse um país que admitia o trabalho escravo (.mas os escravos, por isso mesmo que não tinham o estatuto de cidadãos, ficavam naturalmente excluídos da milícia cívica), o problema da composição das guardas nacionais ou o da sua distribuição entre comandantes e comandados, segundo o critério da aptidão para o serviço, independentemente de considerações relativas à linhagem ou ao prestígio social dos indivíduos, não devia esbarrar em imensas dificuldades. Outro tanto não parecia suceder na França onde se fazia sentir vivamente, ainda em 1830, a presença de pesadas hierarquias e onde, apesar da Revolução, o sonho da sagrada Égalité estava mais nas aspirações do que nos costume... A esse propósito lembro-me de um Du Bousquier, personagem de Balzac em mna das Cenas da vida de província, o qual, sendo secretamente republicano, saudava, não obstante, no advento de Luís Filipe, a vitória dos ideais da Revolução. Para ele, a bandeira tricolor que revivia a Montanha, já simbolizava a liquidação final das ordens privilegiadas através de processos mais eficazes, porque menos violentos, do que a guilhotina, como se podia esperar das várias invenções legislativas de agosto de 30 : supressão do senado hereditário, abolição dos morgados, mas, particularmente, criação da nova Guarda Nacional, que acabaria por juntar, sob a mesma tenda de campanha, o vt:nderro da esquina com o marquês. X V II

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Que o modelo francês aparecesse em primeira linha nos figurinos a que recorreram os criadores da nossa Guarda Nacional de 1831 era plausível. Numa época em que o sistema parlamentarista, ou melhor, as exterioridades do parlamentarismo, ainda não se tinha imposto pa política imperial, era a França, sobretudo, que ditava normas tanto aos donos do poder como à oposição no Brasil. Já os nossos constitucionalistas de 1824 se deixaram guiar largamente pelo modelo da Restauração, atenuado, embora, pel::is idéias do franco-suíço Benjamin Constant. E os que se opunham ao regime tinham quase sempre em mente a cartilha da oposição liberal francesa ao regime de um Luís XVIII e principalmente de Carlos X. Ninguém ignora que a revolução de julho produziu aqui forte impressão e que a queda, na França, dos Bourbon do ramo primogênito, aponta o caminho que levará, no ano seguinte, à abdicação de D. Pedro I. Esses fatos hão de importar certamente para quem se proponha estudar a gênese de nossa milícia cidadã. Uma estada que se prolongou por vários meses no estrangeiro privou-me de acompanhar essa fase da pesquisa da professora Berrance de Castro, mas tenho certeza de que ela não se fiou muito nas primeiras aparências. Suspeito mesmo que a bibliografia estrangeira sobre o assunto, com que se ia rapidamente familiarizando, enquanto desenvolvia suas aturadas pesquisas nas bibliotecas e principalmente nos arquivos do Rio e de São Paulo, a teria levado, por momentos, a hesitar entre as fontes francesas e as norte-americanas. E uma hesitação, neste caso, seria explicável quando se sabe que na fermentação política dos anos que se seguem à Independência, aos influxos do liberalismo monárquico francês andavam confusamente mescladas certas aspirações federais e republicanas. Que o próprio Feijó, um exaltado entre os moderados, e cujo nome, mal ou bem, tem sido associado à criação da milícia cidadã, sempre se comportou muito menos como um parlamentarista do que como um presidencialista, e presidencialista à americana, no resistir constante à preeminência da câmara temporária na ação executiva, de que dará mostras eloqüentes quando regente do Império, e no favorecer as autonomias provinciais que queria ainda mais amplas do que o estabelecido no Ato Adicional. Aos poucos, porém, a autora teve de abandonar as hesitações e inclinar-se para o modelo francês. Não o francês de 1789, que definhara progressivamente sob a monarquia legitimista até que em 1827 foi finalmente extinta a corporação, e sim o da nova XVIII

Guarda Nacional, a do reinado de Luís Filipe, que surge no rescaldo da revolução de julho, como a nossa aparece como um prolongamento do 7 de abril. O que chama atenção nesse caso é a rapidez quase inverossímil com que os nossos legisladores tomaram conhecimento da cartilha francesa e trataram de adaptá-la às nossas peculiaridades nacionais. Na França, a lei da Guarda Nacional foi promulgada a 22 de março de 1831, e já a 9 de maio do mesmo ano o projeto oferecido ao legislativo, será em linhas gerais o aprovado em agosto, também de 1831. Ora, a distância de um mês e dezoito dias entre a apr(,vação de um texto de lei na Europa e sua chegada ao Brasil já requeria uma navegação de velocidade excepcional para a época, e isso sem considerar que o te.xto de\'Ía ser ainda assimilado, estudado e discutido antes de chegar à sua redação definitiva. Só posso supor que as comissões incumbidas, no Rio, de estudar a organização, puderam examinar os sucessivos projetos franceses - e foram nada menos do que guatro entre outubro e dezembro de 1830 -, assim como a lei votada em Paris pela Câmara dos Deputados em janeiro de 31 e que, emendada e homologada pelos pares se converteria no texto de março. A dificuldade do prazo para absorvê-la e adaptá-la no Brasil continuava a existir, mas se era uma dificuldade, não era uma impossibilidade. O exame, ainda que sumário, das raízes exógenas da milícia cidadã ( e seria preciso acrescentar que elas se imbricam na velha tradição das milícias e ordenanças coloniais, mas não se explicam só por elas) não é ocioso quando se intente compreender os encontros e desencontros a que dá lugar sua implantação num meio estranho e, ao cabo, a evolução que irá sofrer mais tarde. O que ela encontra no Brasil é uma nação que chegou a emancipar-i;e de sua metrópole européia sem ter passado, a rigor, por uma revolução e sem a ter desejado. Apesar de algumas aparências ilusória::, faltava-lhe o sentimento igualitário exigido naturalmente por uma corporação que, devendo reunir em suas fileiras indivíduos de várias camadas sociais, não pode respeitar muito as formas de convivência tradicionais e nem, sobretudo, as venerandas hierarquias, capazes de distraí-la de sua missão. Nos Estados Unidos, canonizado de certo modo pelos Founding Fathers, esse sentimento era, ao contrário, suficientemente poderoso para sobrepor-se, em caso de necessidade, a quaisquer barreiras, mesmo nos tempos ela chamada "dinastia da Virgínia" e, sem embargo, dos brahmins de Boston, por exemplo, onde há Cabots que só costumam falar com Deus. Não seria bem esse o caso francês, mas é mister não' XIX

esquecer que a França de Luís Filipe, do "rei cidadão", se chàmou com razão a "monarquia burguesa", e mais não seria necessário para situá-la no pólo oposto ao do Império sul-americano que, além de não ter conhecido uma revolução, também não comportava o que se poderia chamar uma burguesia. Um dos distintivos de nossa Guarda Nacional de 1831, pode-se dizer lítico. Contudo, a formação dos quadros com elementos das classes populares, a eleição de indivíduos socialmente desprestigiados pela cor ou por suas atividades econômicas, para cargos de liderança, abalaram a confiança dos que pensavam contar com uma fon;a fiel à manutenção do status quo. O otimismo inicial não perdurou por muito tempo. Advertiu o ministro da Justiça, em uma proclamação à Guarda Nacional do Rio de Janeiro, que não era pelo fato de a Lei ter confiado armas aos cidadãos escolhidos que esses poderiam arvorar-se em inimigos da Lei, para seguir os próprios sentimentos, pois, nesse caso, cairia o cidadão-soldado na senda das arbitrariedades, as quais seriam seguidas da ana::-quia ou despotismo, independentemente elo pretexto sobre o qual pudesse apoiar-se. Terminava a autoridade por conclamar os guardas nacionais a continuarem a !er o apoio ela Lei e a merecer a confiança dos seus concidadãos, a fim ele não darem motÍV()S à censura dos inimigos ela ordem e da tranqiiitidacle pública. A Aurora Flt11ni11e11se publicou inúmeros outros artigos sobre a Guarda Nacional, sempre tientro elo pensamento ela defesa nacional confiada a uma tropa ele ciclatiãos interessados na manutenção da ordem e tranqiiiliclacle gerais. As modificações posteriores na legislação da Guarda Nacional marcaram-na tão profundamente que aoagaram a lembrança de sua origem e da ação popular e democrática que desenvolveu nl)s primeiros anos. Por outro lado. o Império brasileiro. na far;;e nacional ela Menoridade. necessitava prestigiar e estimular a formação de uma elite ligada ao Ttv1no e ao imoeraclor. instituin~o a sua nobreza. Embora a constituição ele 1824 tivesse abolido todos os privilégios (!Ue não fossem essenciais e inteiramente li~aclos a cargos de utilidade p{1blica. a Casa de Bragança foi pródi.'!a em agraciar títulos nobiliár