A infelicidade do século: sobre o comunismo, o nazismo e a unicidade da Shoah 8528607674

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A infelicidade do século: sobre o comunismo, o nazismo e a unicidade da Shoah
 8528607674

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ALAIN

BESANÇON

Do autor: A Imagem Proibida Uma História Intelectual da Iconoclastia

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ALAIN BESANÇON

A INFELICIDADE DO S É C U L O S O B R E O C O M U N IS M O , O N A Z IS M O E A U N IC ID A D E D A SH O A H

Tradução E m ir S a d e r

B

BERTRAND BRASIL

Copyright © 1998, Librairie A rthèm e Fayard T ítu lo original: Le Malheur du Siècle C ap a: Rodrigo Rodrigues

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Fdicoração: A rt Line

> r 2000 Impresso no Brasil

Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALO GAÇÃO-NA-FONTE SIN D ICATO N ACIO N AL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ B465Í

Besançon, Alain A infelicidade do século: sobre o comunismo, o nazismo e a unidade da Shoah / Alain Besançon; tradução Em ir Sader. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000 144p.

I raduçâo de: Le malheur du siècle Anexo: Discurso no Instituto ISB N 85-286-0767-4 1. Holocausto judeu (1939-1945) - Aspectos sociais. 2. Com unism o. 3. Nazismo. I. Título. 00-0600

C D D 303-485 C D U 3 16.485.26

Todos os direitos reservados pela: B C D U N IÀ O D F F D IT O R A S S .A . A v. R io Branco, 99 — 20? andar — C entro 20040-004 — R io de Janeiro - RJ Tel.: (Oxx21) 263-2082 Fax: (0xx21) 263-6112 N ão é perm itida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Fditora.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9 I. A DESTRUIÇÃO FÍSICA 21

Seis nomes, 21 - A expropriação, 11 - A concentra' ção, 23 - As "operações móveis de assassiruito” , 25 A deportação, 16 - A execução judiciária, 19 - A fome, 3 0 - 0 nome e o anonimato, 31 II. A DESTRUIÇÃO MORAL 35

A inépcia, 35 - A falsificação nazista do bem, 39 A falsificação comunista do bem, 48 - Avaliação, 62 III. A DESTRUIÇÃO DO POLÍTICO 65

A política de destruição do político, 6 5 - 0 resto do poli' tico, 67 - A utopia, 68 - O s fins ilimitados do nazismo, 70 - O s fins ilimitados do comunismo, 73 - Usura e autodestruição, 76

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IV.

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T E O L O G IA 81

O mal, 8 1 - 0 demônio e a pessoa, 84 - A salvação, 87 - “Biblismo” nazista, 90 - “Biblismo" comunista, 94 Heresias, 97 V.

A M E M Ó R IA 103

O esquecimento “pagão” do comunismo, 103 - O es­ quecimento cristão do comunismo, 105 - O esqueci­ mento judeu do comunismo, 107 - A memória judaica do nazismo, 108 - A memória cristã do nazismo, 122 - A unicidade da Shoah, 131 A N E X O . D IS C U R S O N O IN S T I T U T O 135

À memória de Annie Kriegel e de Michel Heller

^ M jfo fy á v e f< ^ i£ íic te c a

Introdução

Este ensaio aborda duas questões vinculadas entre si, mesmo que não pretenda Ibes dar uma resposta exaustiva. A prim eira tem a ver com a con sciên cia histórica, que me parece, hoje, sofrer gravemente de falta de unidade. O desa­ cordo tem a ver com o que este século tem de mais caracte­ rístico em relação aos outros: a extraordinária amplitude do massacre de hom ens feito por homens, que só foi possível pela tom ada do poder pelo comunismo de tipo leninista e pelo nazismo de tipo hitlerista. Esses “gêmeos heterozigotos” (Pierre C haunu), ainda que inimigos e originários de histó­ rias diferentes, têm vários traços em comum. Eles se colocam com o objetivo chegar a uma sociedade perfeita, destruindo os elem entos negativos que se opõem a ela. Eles pretendem ser filantrópicos, pois querem, um deles, o bem de toda a humanidade, o outro, o do povo alemão, e esse ideal suscitou adesões entusiásticas e atos heróicos. M as o que os aproxima mais é que ambos se dão o direito — e mesmo o dever — de matar, e o fazem com m étodos que se assem elham , num a escala desconhecida na história. A memória histórica, no entanto, não os trata de forma igual. O nazismo, apesar de completamente desaparecido há

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mais de meio século, é, com razão, objeto de uma execração que não diminui com o tempo. A reflexão horrorizada sobre ele parece até aum en tar a cad a an o em profundidade e extensão. O comunismo, em com pensação, apesar de muito mais recente, e apesar inclusive de sua queda, se beneficia de uma am nésia e de uma anistia que colhem o consentim ento quase unânim e, não apenas de seus partidários, pois eles ainda existem , com o também de seus inimigos mais determ i­ nados e até mesmo de suas vítimas. N em uns nem outros se acham com direito de tirá-lo do esquecimento. A con tece às vezes que o caixão de Drácula se abre. Foi assim que, no final de 1997, uma obra (O livro negro do comunismo)* ousou cal­ cular a som a dos m ortos que era p ossível atribuir-lhe. Propunha-se um a cifra de 85 a 100 milhões. O escândalo durou pouco e o caixão já se fecha, sem que, no entanto, essas cifras tenham sido seriamente contestadas. Tive oportunidade de abordar recentem ente esse con ­ traste entre a am nésia do comunismo e a hiperam nésia do nazism o. Eu o abordei brevem ente sob o ân gu lo m uito estreito das condições históricas e políticas às quais poderia ser imputado o esquecim ento do com unism o.' O tema exi­ gia argumentos mais desenvolvidos e outros pontos de vista. Este é o tema da primeira parte deste ensaio. A segunda questão se refere à Shoah. Em que medida.

* Steph an ie C ourtois et al., O livro negro do comunismo, R io de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999. ' Em um discurso pronunciado no Instituto da França em outubro de 1997. O leitor encontrará o texto no Anexo. Ele foi simultaneamente publicado na revista Commentaire (n : 80, 1997-1998) e na revista Commentary (janeiro de 1998), publicada em N ova York com o patrocínio do American Jeivish Commictee. A s duas revistas publicaram, nos números seguintes, as reações dos leitores.

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no imenso m assacre do século, ela deve ser considerada à parte? Pode-se classificá-la com o um túmulo entre os outros túmulos no cem itério comum? E, se não, por que razão? E mais fácil constatar do que explicar que a questão da Sh oah assusta não só a consciência histórica do século em geral, mas também especificamente a relação ou a com para­ ção entre a memória do comunismo e a do nazismo. Eu mes­ mo o senti fortemente, sublinhando no meu discurso por que o povo judeu tinha se encarregado da memória da Shoah: por uma obrigação moral que se inscrevia na longa memória das perseguições; por uma obrigação religiosa ligada ao elogio ou ao questionam ento apaixonado, à maneira de Jó, do Senhor que prometeu proteger seu povo e que pune a injustiça e o crime. A humanidade deve dar graças à memória judaica por ter conservado piedosamente os arquivos da Shoah. O enig­ ma está do lado dos povos que esqueceram. A dificuldade decorre do fato de que, para responder à segunda questão, é preciso mudar de nível de análise. Podese, de fato, com parar o com unism o com o nazismo com o duas espécies do mesmo gênero, o gênero ideológico. A sedu­ ção, a natureza e o modo de seu poder, o tipo de seu crime, vinculam-se à form ação mental de que eles dependem intei­ ramente: a ideologia. Eu entendo por essa palavra uma dou­ trina que prom ete, por meio da conversão, uma salvação temporal, que se pretende conforme a uma ordem cósm ica decifrada sistem aticam en te em sua evolução, que impõe uma prática política que visa a transformar radicalm ente a sociedade. Pode-se levar muito longe a com paração entre o com unism o e o nazismo, destacar as diferenças e as sem e­ lhanças, sem sair da análise histórica e política.

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C om a S h o a h , ao con trário, saím os im ed iatam en te desse plano. A pesar de que a política, particularm ente na França, busca fazer da Sb oab um tema de debate, de fazê-la entrar no com bate eterno entre a “direita” e a “esquerda”, esta catástrofe se situa em outro lugar, com o algo muito mais grave e delicado que vive sua própria vida, longe dos confli­ tos jurídicos. A consciência da Sb oah não se acom oda den­ tro da análise puramente política; ela se sente mal diante de um estudo com parativo, neutro, “científico” . Ela mantém inevitavelm ente o sentimento de um acontecim ento único neste século e em todos os tempos, requerendo algo distinto de um estudo objetivo: uma reverência especial, um silêncio sagrado. N ão estamos mais na história da ideologia, mas na história da religião - isto é, na história da própria religião, a judaica, em primeiro lugar e, por reflexo, a cristã. N o entanto, as duas questões - a consciência histórica comparada das duas ideologias destruidoras e a consciência da Sh oah - estão ligadas entre si. O fato único da Sh oah emergiu lentam ente da confusa memória do nazismo. O que não deixa de ter relação com o tratamento diferente que foi reservado ao comunismo. É perigoso seguir duas séries de acontecimentos que não têm a mesma natureza, não se situam no mesmo espaço nem no mesmo tempo, e que, no entanto, a história obscuramen­ te vinculou. Para iluminar, na medida das minhas forças, essa obscuridade, traçarei brevemente a genealogia do problema. Em seguida, compararei passo a passo o comunismo e o nazis­ mo do ponto de vista das destruições que eles provocaram nos planos físico, moral e político. C onfesso que, tendo já tratado em demasia o tema, esperava, na realidade, na medi­

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da do possível, pelo doloroso que representa, não voltar a ele. Foram as circunstâncias que me levaram a isso. Em seguida, me arriscarei na teologia para tentar determinar onde exata­ mente se situa a unicidade da Shoah. C oncluo com a unici­ dade, mas tenho dúvidas de que seja possível entender-nos daqui a muito tempo sobre o sentido desta unicidade.

A questão da unicidade da Shoah, de que creio que as vítimas tiveram imediatamente a intuição, não emergiu na consciência pública com toda a sua amplitude senão vários anos depois do acontecimento. O testem unho de Primo Levi, Se questo è un uomo, reco­ nhecido universalmente como um dos mais em ocionantes jam ais escritos sobre Auschwitz, foi redigido logo depois do regresso do autor à Itália. Ele foi recusado por vários edito­ res im portantes. Foi publicado, apesar de tudo, em 1947, com um a tiragem de 2 .500 exem plares por um a editora pequena que faliu logo depois, deixando o livro no esqueci­ mento. Reeditado pela Einaudi em 1958, teve a glória tão m erecida que sua obscuridade anterior nos introduz a um aspecto do enigma. “N esse duro período do pós-guerra” , explica Levi, “as pessoas não tinham muito a reviver dos anos dolorosos que acabavam de term inar.” A exp licação é verdadeira, mas vaga e insuficiente. É verdade que, no final da guerra, todos os cam pos de deportação foram objeto do mesmo terror, e não se separava nitidamente o campo de trabalho (por exem­ plo, Buchenwald) do cam po de exterm ínio (por exemplo.

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T reblinka). Todas as vítim as bastavam com o denúncia, e ninguém pensava em distinguir as categorias. N o julgam en­ to de Nuremberg, só se evocara a “perseguição” dos judeus. L en d o Prim o L ev i, vê-se que, em seu cam po e em seu com ando, os judeus ocupavam com pletam ente o último cír­ culo do inferno, m as havia outros círculos, e tam bém aos não-judeus - pois h avia muitos em Auschw itz - e a todo preso, inclusive o kapo mais criminoso, a qualidade de ser hum ano era negada. É isso que constitui o fundo m etafísico do livro, anunciado desde o seu título. C om o todo acon te­ cim ento que supera a im aginação, a deportação atravessou uma fase de am nésia ou uma mistura de am nésia e afasia, que não poupava os deportados nem, entre eles, os judeus sobreviventes. O inefável não pode ser dito facilm ente. O tem po perm itiu a todos se acomodarem sobre esse tem a impossível de ser olhado fixam ente. Mas para que o tema de uma especificidade da Shoah, de sua unicidade, chegasse à consciência histórica comum, era preciso produzir um grande acontecim ento. Foi necessário logo um segundo acontecim ento para que o tema da compa­ ração entre nazismo e comunismo também pudesse surgir. O primeiro acontecim ento foi um aum ento considerá­ vel da “visibilidade” do povo judeu. Em ancipados no decor­ rer do século X IX , os judeus viram ser reconhecidos seus direitos religiosos, a liberdade do “culto israelita”, da mesma forma que os outros cultos, mas não os direitos cívicos par­ ticulares. M as o judaísmo, desde os tempos bíblicos, sempre se con cebeu in dissociav elm en te com o relig ião e com o povo. Esta segunda metade da identidade judaica tivera que ser abandonada, até mesmo esquecida, nas dem ocracias o ci­

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dentais, ou suportada com o um fardo nos países em que a n o ção de “c aráter é tn ic o ” n ão tin h a sid o ap ag ad a pela noção moderna de cidadania. O nazismo substituíra o con ­ ceito de povo pelo de raça, e essa raça tinha sido excluída da humanidade comum. N a Europa do pós-guerra, a noção de “povo judeu” não tinha mais nenhum fundamento. Do lado ocidental, h avia apenas cidadãos ingleses, franceses, ita ­ lianos etc., de “origem ” ou de “confissão” judaica. Do lado com u n ista, o ju d aísm o dos judeus e stav a em p rin cíp io condenado ao desaparecim ento e, na sua espera, era proi­ bido declará-la. H avia um terceiro elem ento na consciência judaica: a terra. Eis então que, em 1948, o povo judeu se manifestou ao m undo sob a form a m oderna de um E stado n acion al, am plam ente laico, usufruindo da independência total que ele havia perdido no m om ento da conquista assíria e depois b ab ilôn ica e de um a presença territorial quase liquidada depois das guerras judaicas de Tito e de A driano. Devido à Lei do R etorn o, o E stado judeu con stitu ía-se de direito com o a pátria de todos os judeus do mundo. O s países sob dom inação com unista reconheceram o Estado de Israel por razões políticas sujeitas a mudanças. O s países democráticos reconheceram-no de maneira mais está­ vel porque, além dos motivos políticos, se afirmavam m oti­ vos que podem ser chamados de religiosos. O sentim ento de culpabilidade do mundo cristão nascia e estava destinado a aumentar. A consciência religiosa do fato judeu, cuja direção tom ada pela interpretação das Escrituras e pelo ensino dos Patriarcas fora obscurecida durante séculos, ressurgia e agia sobre o mundo católico. Esse foi o ponto de partida de uma

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grande reviravolta de que o Concilio Vaticano II foi apenas uma etapa, até agora não concluída. O mundo ocidental aceitou, então, de certa forma sem dificuldade, a nova im agem assum ida pelos judeus, logo após a fu n dação de Israel. A ceitou em particular que os judeus, que nutriam desde sempre um grande patriotism o em relação a suas diversas pátrias de diáspora, desenvolves­ sem um segundo m ovim ento na direção de Israel, sem, aliás, se tratar de um mesmo sentimento, nem de um mesmo tipo de lealdade. Esse direito ao duplo patriotismo, que a opinião pública não aceitara, então, de nenhuma outra minoria, eu o com pararia n atu ralm en te ao p rivilégio, igualm en te excepcion al e precário, desta vez de natureza puram ente religiosa, ob tido pelos judeus, n o tem po de H erodes, o G ran d e, de serem dispen sados do cu lto im perial e da religião cívica. Essa nova consciência da identidade judaica afirmou-se por um m ovim en to esp on tân eo e progressivo. É preciso m encionar, no entanto, uma data im portante: 1960. A té aquela data, os sentim entos patrióticos de Israel nutriam-se das lembranças da resistência armada contra o nazismo. A insurreição do gueto de V arsóvia era m ais n aturalm ente evocada do que o genocídio sofrido passivamente. O proces­ so a Eichmann, tornado público com todas as repercussões pelas autoridades israelenses, marcou uma virada. A Shoah tornou-se um acontecim ento central e, sob certos aspectos, fundador, base de legitimidade. Tornou-se assim o ponto de partida de uma discussão jurídica, moral, filosófica, teológi­ ca em que se engajaram espíritos ilustres do mundo inteiro H annah A rendt, Raym ond Aron, Gershom Scholem - até hoje longe de terminar.

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O segundo acon tecim ento, o relatório Kruschev, em 1956, tornou inevitável a comparação. O conhecim ento do com unism o bolchevique com o sistem a criminoso já existia desde 1917. M as por causa do poder de difusão da idéia, por causa da capacidad e de desinform ação e d a m entira dos órgãos do m ovim ento, este saber não estava validado. Ele nasceu da boa-fé de uma multidão de pessoas honestas. O segredo n azista sobre a destru ição dos judeus da Europa é um segredo “sim ples”, obtido por meios clássicos: o isolam ento dos centros de extermínio, o assassinato periódi­ co dos executantes entre as vítimas, o juram ento que liga os corpos exterminadores, a estreiteza relativa de seus efetivos. O segredo bolchevique é mais com plexo. Ele incluía tam ­ bém uma parte simples, clássica, de ordem militar e policial. M as esse núcleo era protegido por uma brum a ideológica extrem am ente espessa que fazia com que, mesmo se o segre­ do que cobria as operações de destruição fosse rompido, a fuga seria en cob erta por um a vo n tad e de incredulidade geral, e a separação estanque reconstituir-se-ia um pouco mais adiante. H ouve momentos, por exemplo, entre a guer­ ra da Espanha e a vitória sobre o nazismo, em que o saber sobre o com unism o não existia mais, fora de suas fronteiras, sen ão n a cab eça de alguns in divíduos, em geral velh os comunistas que tinham a experiência íntima, velhos esquer­ distas decepcionados e revoltados, a maioria dos quais inca­ pazes de transmitir seu saber e freqüentemente também de pensá-lo até o fim. A té 1956, o número interminável de testemunhos, ape­ sar de docum entados e irrefutáveis, ficou isolado e sem auto­ ridade em relação às autoridades acadêm icas, guardiãs do

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espírito crítico, e, em relação aos homens políticos, mesmo os estranhos e hostis à idéia com unista. S e eles tivessem acreditado naqueles testem unhos, teriam sido obrigados a proceder a uma am pla m odificação de suas concepções do m undo, porque esses testem unhos (da m esm a form a que aqueles filtrados do nazismo) os introduziam em um univer­ so inverossím il, obedecendo a uma racionalidade descon ­ certante em que, para captar seus traços, teriam que realizar um enorme esforço. A lém disso, eles não se sentiam am ea­ çados. Para tom ar um exem plo, a questão dos cam pos de concentração, levantada por David Rousset pouco antes de 1950, foi considerada escandalosa. Sartre não teve dificul­ dade em dem onstrar que, com o conceito de cam po de con ­ cen tração sendo filosoficam ente con trad itório com o de socialism o, eles não podiam existir. Em 1948, no m om ento do processo Kravtchenko, a Sra. Buber-Neumann suscitou violentas reações de revolta quando afirmou que subsistiam, no cam po de trabalho alemão, resíduos de direito que não existiam no cam po soviético em que ela havia sido detida antes que Stalin a entregasse a Hitler. O relatório de Kruschev não expressa o menor arrepen­ dim ento pelas vítim as não-com unistas do com unism o. O único crime verdadeiro do sistem a stalinista, e que o encheu de in dignação, é o de ter assassinado, em grande escala, com unistas fiéis à causa. N o en tan to, essa con fissão tão incom pleta introduziu um senão na lógica rígida da ideolo­ gia e provocou uma fissura na muralha que envolvia o segre­ do. O s crimes contra os com unistas só eram verdadeiram en­ te condenáveis, segundo o secretário-geral, na m edida em que eles prejudicavam o projeto e enfraqueciam o próprio

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poder com unista. M as depois do relatório perguntava-se sobre os crimes com etidos pelos com unistas. O sistem a se tornou objeto de um questionam ento geral, de uma investi­ gação a partir de uma suspeita legítim a im possível de ser detida. A investigação se desenvolveu, ainda que debilm en­ te e de form a d esco n tín u a, porque o poder com u n ista m anteve-se ain da durante cerca de trinta anos, período quase tão longo quanto aquele que o separava de seu nasci­ mento. Durante todo esse tempo, ele negou absolutamente, ao mesmo tem po que procedia ao lento desm antelam ento do sistema dos campos. O arquipélago do Gulag (1974) teve um efeito reprodutor contra a falsidade da m entira. M as aquele era apenas um texto: faltava o que os romances poli­ ciais ingleses cham am de “the evidence ofthe corpse", a prova do cadáver. N inguém no mundo tinha visto ou tocado os campos comunistas, senão os raros sobreviventes. A s valas comuns do C am boja foram a exceção. A pesar de tudo, no mom ento da queda pode-se dizer que o segredo tinha sido revelado - apesar de que a continuidade da negação no que se refere ao comunismo continua a ser muito mais forte do que a que protege o nazismo.

Assim, em meados dos anos 60, os horrores do século, o nazismo e o com unism o encontravam -se juntos no banco dos réus. A cusados das mesmas culpas? E o aspecto da dis­ cussão que vai se seguir. Dividi o tema em várias partes, o que não deixa de ter seus inconvenientes, porque os cortes podem fazer perder de

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vista a unidade do objeto. Eu o examinarei sob o ângulo da destruição. De fato, só sobrevive do nazismo e do com unis­ mo o que resistiu a eles, como uma literatura “dissidente”. O mais é um cam po de ruínas a ser varrido e despoluído. A destruição é material: pessoas vivas foram transformadas em cadáveres. M oral: alm as honestas e razoáveis se tom aram criminosas, loucas, estúpidas. Política: a sociedade foi arran­ cada de sua forma, remodelada conforme o projeto ideológi­ co. Depois, abandonando a análise histórica, será necessário retomar a mesma investigação do ponto de vista da filosofia e da teologia. Finalmente, retornarei ao tema do meu dis­ curso na A cadem ia e descreverei o trabalho da memória. E terminarei com a unicidade da Shoah.

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C a p ítu lo I A D E ST R U IÇ Ã O

FÍSICA

Seis nomes A n tes de qualquer com paração en tre a exp eriên cia com unista e a experiência nazista, seis palavras devem ser ditas: Auschwitz, Belzec, C helm no, M ajdanek, Sobibor e Treblinka. São os seis centros de extermínio industrial dos judeus. A seqüência típica: transporte; seleção na descida do trem; tatuagem, câm ara de gás ou fossa comum imediata para as mulheres, as crianças e os inaptos para o trabalho. Esta seqüência, até onde sei, não está presente no mundo comunista. N ão se pode pronunciar essas seis palavras sem que voltem à memória os docum entos, as testemunhas, os estudos, as meditações, os poemas, os cantos, as preces que buscaram com unicar o incomunicável. E a partir desse abso­ luto - e, se posso falar metaforicamente, desse zero absoluto tomado com o terminus a quo de toda medida posterior - que se pode ensaiar a avaliação da destruição física produzida pelo regime comunista. Raul Hillberg é o autor de uma obra infinitamente d o­ cumentada, escrupulosa, controlada: A destruição dos judeus

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europeus A Ele teve tan ta dificuldade q u an to Prim o L evi para encontrar um editor, e só a publicou em 1985. N ão existe, e não poderá existir tão cedo, uma obra tão rigorosa e detalhada sobre as destruições comunistas. Eu usarei seu plano. A destruição dos judeus europeus, segundo H illberg, deu'Se em cinco etapas: - a expropriação; - a concentração; - as “operações móveis de assassinato”; - a deportação; - os centros de extermínio. Seguindo o mesmo plano, constata-se que a destruição com unista utiliza os quatro primeiros meios, ainda que com variações que têm a ver com a sua natureza do projeto. Ela omite a quinta, mas acrescenta duas outras de que o nazismo não teve necessidade: a execução judiciária e a fome.

A expropriação A expropriação é a primeira medida do poder com unis­ ta. Ela procede da definição do com unism o de que o mal social tem raízes na propriedade privada. A dos “meios de produção” é então imediata. M as, com o é preciso arrancar do povo a idéia de propriedade e submetê-lo completamen-

' Raul Hillberg, The Destruction of the European Jews, edição revista e defini­ tiva, 1985.

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te ao novo poder, a expropriação de casas, contas bancárias, terra, gado é uma conseqüência lógica. A os poucos, as pes­ soas foram ficando apenas com pouco mais que suas roupas e móveis. Sem pre houve ricos nos países comunistas, mas sem que se possa dizer que fossem proprietários. Eles eram ou pro­ prietários “ ilegais” de bens escassos, ou privilegiados que, em recompensa de uma fidelidade política e em virtude de sua p o sição no sistem a, gozavam de certas vantagens. O direito, estando ligado à propriedade privada, desaparece subitam ente: só restam decisões “jurídicas” do partido. N a A lem an h a nazista, a expropriação e a proscrição só afe­ taram inicialm ente os judeus. O direito e a propriedade sub­ sistiram para os “arianos” , mas espremidos, residuais e desti­ nados a desaparecer na lógica do sistema.

A concentração A filtragem e o registro n ão eram feitos no regim e com unista da mesma forma que no regime nazista. O nazis­ mo considerava os judeus como pessoas físicas, focos indivi­ duais de infecção. Era preciso então encontrá-los, com o se faz num a operação de desratização ou de com bate a insetos, até nos lugares m ais in acessíveis onde eles pudessem se esconder, e o regime destinou a essa tarefa dinheiro, pessoal e meticulosidade. O comunismo, por seu lado, se encarre­ gava de um a tarefa m ais am pla, porque m ais vaga e com contornos pouco definidos. Ele devia destruir o “inimigo do socialism o” , “o inim igo do povo”. Era necessário, em pri­

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meiro lugar, deixar sem condição de causar dano o inimigo previam ente designado, o inimigo institucional: o rico, o nobre, o burguês, o capitalista, o camponês rico etc. Depois era a vez dos que podiam abrigar sentimentos hostis, “fora da linha”, até mesmo indiferentes. Eles podiam ser localizados no “proletariado” , no cam pesinato “m édio” e “pobre”, na intelligemsia “progressista”. Eram encontrados tam bém no partido, no exército, na polícia. O s inim igos escondidos não têm características visí­ veis, nem marcas físicas com o a circuncisão, e não perten­ cem a uma com unidade bem-delimitada, a uma linhagem. E preciso reconhecê-los, fazê-los confessar seus pensam en­ tos escondidos, seus desígnios sabotadores, “elim iná-los”. É um trabalho contínuo e bem mais considerável. É essa a razão de os órgãos de polícia e de repressão em um regime com unista serem mais numerosos do que os órgãos encarre­ gados sim plesm ente de controlar os judeus e de levá-los aos cam pos de concentração. A lguns milhares de policiais bas­ tam para a G estap o , con tra cerca de q u in h en tos m il da K G B . S ó a Stasi, na República Democrática A lem ã, empre­ gava bem m ais gente do que a G estap o em toda a A le ­ manha. Segu n d o R au l H illberg, bastaram dois an os (1941 e 1942) para que a “solução final” fosse executada para cerca de três quintos do seu total. Para os “órgãos” soviéticos, a tarefa nunca foi concluída. De novembro de 1917 até o últi­ mo dia, eles tiveram de fazer a triagem, recensear, manter dossiês, filtrar e refiltrar toda uma população.

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As “operações móveis de assassinato" C erca de um quarto dos judeus assassinados, segundo Raul Hillberg, talvez até mais, o foram por unidades espe­ ciais: os Einsatzgruppen e os Kommandos, que avançavam atrás das tropas regulares e os executavam , a m aioria das vezes com metralhadora. Unidades da W ehrmacht também fizeram, ocasionalm ente, a mesma coisa. Essas “operações móveis de assassinato” foram pratica­ das abundantemente pelos regimes comunistas. A s chacinas a céu aberto acom panharam as reconquistas, pelo exército verm elho, da U crânia, do C áu caso, da Sibéria e da Á sia Central. Elas foram maciças e sistemáticas durante a guerra camponesa, com eçada em 1910 e que durou até 1921. C o n ­ tra os camponeses expropriados, submetidos à fome, e con ­ tra os cossacos (que foram quase exterminados como povo), o Exército Vermelho empregou grandes métodos, como tan­ ques e gases asfixiantes. U m livro de V ladim ir Zazubrin, redigido em 1923, descreve as operações de um a tcheka local.2 Vêem-se assim os caminhões levarem as pessoas para a morte, a execução em série, impessoal, por bala na nuca, em uma grande cova, a evacuação dos cadáveres e a roldana dos caminhões. O s fuzilamentos a céu aberto recomeçaram durante a coletivização e, no transcurso do grande expurgo, empregaram-se cam inhões a gás. N a C hina, as execuções coletivas e públicas se multiplicaram várias vezes nos dois primeiros anos após a tomada do poder, na época do “Gran-

2 Vladimir Zazubrin, Le Tchékisce, Paris, Christian Bourgois, 1990.

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de S alto para a Frente”, depois na Revolução Cultural. Elas aconteceram tam bém na Coréia, no Vietnã e na Etiópia. Foi no Cam boja, porém, que elas se tornaram mais m aci­ ças. À falta de um equipamento moderno, as execuções eram realizadas com faca, martelo, machado ou porrete. Freqüente­ mente, os carrascos, que se haviam tornado hábeis também na tortura, eram crianças cuja educação era garantida pelo Angkar. A s valas comuns são atualmente objeto de escavação.

A deportação A deportação para os campos de trabalho foi inventada e sistem atizada pelo regime soviético. O nazismo apenas a copiou. A palavra Lager é comum ao russo e ao alem ão. O s prim eiros cam pos foram abertos n a R ú ssia em ju n h o de 1918, cerca de seis m eses depois da tom ada do poder por Lenin e seu partido. A deportação soviética foi um fenôm eno mais am plo e mais com plexo do que a deportação nazista. N a A lem anha, havia diferenças informais entre os cam pos com m ortalida­ de relativam ente pequena (D achau) e aqueles com m ortali­ dade tão alta (D ora), que se aproxim ava do extermínio. N a U n ião S o v iética , a gam a é m ais exten sa, e as categorias nitidam ente separadas. Podem-se distinguir três: A primeira é a deportação de povos inteiros - tártaros, chechenos, alem ães do Volga etc. - ou categorias “sociais” inteiras: os dez milhões de kulaks. O s picos de m ortalidade ocorriam durante o transporte, realizado mais ou menos nas

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mesmas condições que as dos trens nazistas de deportação, mas com distâncias m uito mais longas; depois, durante o primeiro ano, quando os deportados eram deixados em uma estepe da Á sia Central, em uma taiga ou num a tundra siberiana, sem qualquer tipo de aquecim ento, aparelhos de refri­ geração ou alim entos. H ouve casos em que todos morreram - deportados, guardas e cães. A tribui-se habitualm ente a esse tipo de deportação uma taxa de mortalidade de 50% . A deportação de povos é uma prática russa que não se con he­ ce em outros países com unistas, por falta de espaço ou por­ que a heterogeneidade étn ica não atrapalh ava o projeto socialista. Pode-se m uito bem atribuir-lhe o deslocam ento brutal e m ortífero dos alem ães fora da P o lôn ia ou da Tchecoslováquia ao término da guerra. Segunda categoria: a deportação para um cam po de tra­ balho. O gulag tornou-se uma vasta construção adm inistra­ tiva que encontrou a sua forma clássica nos anos 30. Ela foi capaz de gerar uma notável parcela (estima-se em 11%) da força de trabalho do país. A literatura, relativam ente abun­ dante, oferece uma descrição sim ilar àquela do cam po de trabalho nazista. A alvorada, a cham ada, o com ando de tra­ b alh o, a “ n orm a” e a ração alim en tar prop orcion al à “norm a”, a fome, os maus-tratos, as torturas, as execuções: o dia de Chalam ov, em Kolyma, segue exatam ente o de Primo Levi em Auschwitz. O s detalhes concretos são os mesmos: o roubo generalizado, o cada um por si, o esgotam ento físico, a lenta ou m uito rápida degradação moral, o mesmo acam ­ pamento, as mesmas trapaças para fugir do trabalho, o m es­ mo sono, os mesmos sonhos. Para se designar o detento que chegou ao fim da sua resistência, já não se defende mais e

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vai morrer, no cam po nazista se dizia muçulmano, no cam po soviético, dokhodiaga. Algumas variantes têm a ver com o grau de organização e com o clima. Em Auschwitz se é despertado por um sino; em Kolyma bate-se num pedaço de trilho de trem. O s mortos não são incinerados num fom o crematório, mas, no inverno, são empilhados, em grupos, com uma etiqueta presa no dedão do pé, esperando que o degelo permita cavar as fossas. N o vasto arquipélago de cam pos que ocupa o nordeste da Sibéria, o horror do frio, da paisagem desolada, da distância infinita que separa a área habitada pelos homens agrega um tom de desespero. Em alguns campos, a mortalidade chega a 30% ou 40% ao ano, o que, levando em conta a duração das penas e a longevidade do regime soviético, chega às raias do extermínio - mas sem que se chegue ao extermínio imediato, que não dá nenhuma “chance”, no estilo de Treblinka. Terceira categoria; em torno do gulag propriamente dito estende-se uma zona de trabalho forçado e de residência vigiada. A mão-de-obra é empregada nos grandes canteiros de obras, barragens, canais, arsenais militares secretos. O s contornos são imprecisos: afinal, em regime com unista nin­ guém desfruta de liberdade. É por isso que Bukovski, à per­ gunta “Q uantos prisioneiros há na U R S S ?” , respondeu em tom de gracejo: “ 270 milhões”. O campo existiu em quase toda a extensão dos domínios com unistas. N a Rom ênia, por exem plo, a con strução do canal Danúbio-mar Negro produziu 200 mil mortos, isto é, serviu de túmulo às velhas elites. Sobre o campo vietnam ita e sobre o campo chinês (o Laogai), as informações chegam em fragmentos. Um antigo zek soviético relatou-me o seguinte:

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um preso do Laogai, que tinha fugido para a Sibéria, acredi­ tara ter chegado ao paraíso quando foi jogado no campo de concentração da minha testemunha! De fato, o gulag o havia condenado a uma pena definida, enquanto que na C hina sua detenção era sem um limite preciso, subordinada ao seu “pro­ gresso m oral” (o cam po é considerado uma “esco la” ). À noite, ele era levado para os acampamentos, enquanto que na C hina ele era acorrentado em seu local de trabalho. O pouco que se sabe dos campos da Coréia do Norte deixa os cabelos em pé. E eles estão funcionando atualmente a pleno vapor.

A execução judiciária Dois procedimentos de execução foram empregados de m odo regular pelo com unism o e apenas acessoriam en te pelo nazismo. O primeiro é a execução judiciária. O nazismo não o praticou com os judeus, pois, na sua opinião, eles não pertenciam à espécie hum ana e não mere­ ciam , portanto, nenhum a “ju stiça”. Ele o usou contra os opositores, os resistentes, os militantes, depois de um exam e mais ou menos sumário, mas realista, dos fatos. A execução no comunismo (fuzilamento, tiro na nuca, enforcam ento) deve, em princípio, proceder de um exame jurídico, a fim de que o “povo” possa reconhecer e condenar o inimigo declarado ou oculto. A s execuções sumárias dos primeiros tem pos foram progressivamente assumindo uma forma cada vez mais judiciária à medida que o aparelho (a prokuratura) se aperfeiçoava. N a época chamada do “Grande Terror”, que se iniciou em 1934, a confissão era buscada e

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obtida por diversos meios, sendo a tortura o mais simples e o mais corrente deles. O que caracterizou esse período foi que a maioria das pes­ soas presas - freqüentemente para completar uma cota de de­ tenções decidida previamente - era totalmente estranha aos termos da acusação: seja porque elas eram passivas e incapazes de conceber uma oposição qualquer, seja porque eram since­ ramente comunistas e tivessem por Stalin todo o amor e ve­ neração requeridos. Daí o medo torturante que pesava sobre a totalidade da população. Daí também o sentimento de pesa­ delo e de loucura, porque ela não chegava a penetrar na racio­ nalidade daquela vasta máquina de destruir e de matar. A s pessoas esperavam ser presas porque viam desaparecer silen­ ciosamente seus vizinhos e, à noite, tinham embaixo da cama a trouxa de roupa de preso, assim que elas ouviam passos na escada. A maioria dos países comunistas, democracias popula­ res da Europa e sobretudo da Ásia, atravessou períodos desse tipo. H á razões para pensar que Hitler se inspirou na idéia do “Grande Terror”. A “ noite dos longos punhais” (1934), aque­ la depuração relâmpago do partido nazista, fez talvez oitocentas vítimas. Stalin multiplicou essa cifra por mais de mil.

A fome A fome, diferentem ente da penúria, que é constante, é um espectro reiterado que acom panha a história dos regimes com u n istas. Ela está presente na U R S S , na C h in a , n a Etiópia, na Coréia. A fome é, na maior parte do tempo, uma conseqüência

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J a política comunista. É da essência dessa política estender seu controle à totalidade de seus súditos. N ão é tolerável dei­

xar os camponeses se organizarem espontaneam ente à mar­ gem do poder. A o expropriá-los, fazendo-os entrar nos qua­ dros artificiais do kolkoz, da C om u n a Popular, provoca-se inevitavelmente uma crise de subsistência. N ão se pode, no entanto, dizer que o poder deseja a fome como tal, mas é o preço que ele aceita pagar para atingir seus objetivos políticos e ideológicos. N o Cazaquistão, a população caiu pela metade. Entretanto, houve casos em que a fome foi desejada e organizada com um fim preciso de exterm ínio. Foi o que aconteceu na U crânia, durante os anos 1932-1933. O ob je­ tivo era o de terminar não com uma resistência qualquer do cam pesinato, porque a coletivização já a quebrara, mas com a existên cia nacion al do povo ucraniano. Falou-se a esse respeito e, com razão, de genocídio. C onsentida com o meio ou desejada com o fim, a fome foi o procedim ento mais mortífero da destruição com unista das pessoas. Ela responde por mais da m etade dos mortos imputáveis ao sistem a na U R S S , e por três quartos, talvez, na C hina.

O nome e o anonimato Dos judeus exterm inados pelo nazismo, conhece-se o número com uma precisão constantemente rigorosa pela pes­ quisa e pela piedade judaicas. Existem registros que indicam o efetivo de cada trem, a data de sua partida. O s nomes são preciosam ente guardados e conservados. Dos mortos pelo

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com unism o, conhece-se apenas um a estim ativ a em uma aproxim ação de cerca de várias dezenas de milhões. A mos­ tra admitida pelo Livro negro vai de 85 a mais de 100 milhões. Essa diferença terrível, que faz com que uns, exterm ina­ dos com o an im ais, sejam hon rad os com o pessoas, e os outros, assassinados talvez de forma mais hum ana (na medi­ da em que se lhes atribuía pelo menos o estatuto de “inim i­ g o s” ), sejam esquecidos com o an im ais, n ão tem a ver som ente com a piedade ou a im piedade da mem ória. Ela tem a ver também com o fato de as pesquisas serem impos­ síveis ou proibidas na quase totalidade do território antes ou ainda hoje sob o dom ínio comunista; e ainda com a vonta­ de geral de am nésia do com unism o e de hiperam nésia do nazismo. Tem a ver, finalmente, com a natureza de um e de outro. O nazism o procede por catego rias determ in adas, adm inistrativam ente delimitáveis, sucessivas (os deficientes físicos n a véspera da guerra, os judeus, os c ig a n o s...); o com unism o por dizim ações vagas, sim ultâneas, aleatórias, podendo incidir sobre o conjunto da população submetida.

O modo de execução não é um critério de avaliação. É preciso resistir à tentação de julgar uma morte mais atroz em si mesma do que outra; nenhuma pode ser vista de perto. Ninguém pode saber o que sentia uma criança ao inalar o gás zyklon B ou ao morrer de fome em uma cabana ucrania­ na. U m a vez que se matavam pessoas à margem de qualquer justiça, é preciso afirmar que todas elas morreram horrivel­

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mente, tanto umas quanto as outras, porque eram inocen­ tes. É quando há justiça que se pode imaginar que algumas execuções são mais honrosas - a espada, por exem plo, mais que a corda. M as um a vez que os exterm ín ios do século foram alh eios à idéia de honra, classificar os su plícios é impossível e indecente.

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Capítulo I I A DESTRUIÇÃO MORAL

Em torno da d estru ição física - o im enso ossário, a dem olição da terra, aspecto mais evidente do desastre, sobre o qual se concentram os estudos e as medições - estende-se um dom ínio invisível em que a devastação é provavelm en­ te maior, afeta mais gente e dem andará ainda mais tempo para ser reparada: a destruição das inteligências e das almas.

A inépcia Pode-se esboçar - e isso foi feito - a genealogia intelec­ tual das duas principais formas ideológicas que dominaram neste século uma parte da humanidade. O perigo é o de se acreditar que as idéias vastas e profundas de que elas tiraram alguma coisa para se formar subsistem ainda nelas. E dar-lhes uma dignidade, cartas de nobreza que elas não merecem. Seria ir na sua direção, pois elas reivindicam essa genealogia. O m arxismo-leninismo se considera o herdeiro de uma tra­ dição que vem de H eráclito e de Demócrito. Ele descende, segundo sua preten são, de Lucrécio, do llu m in ism o, de Hegel, de todo o movim ento científico. Ele os resumiria e os

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realizaria. O nazismo buscava suas referências na tragédia grega, em Herder, N ovalis, num outro Hegel, em Nietzsche e, claro, se garantia no m ovim ento científico posterior a Darwin. E preciso não levá-los a sério. E uma ilusão, que comporta, além disso, o perigo de comprometer a linhagem reivindicada: arrisca-se a se atribuir a Hegel, ou a qualquer filósofo ou cientista citados por eles, tais descendentes. Essa ilusão se dissipa caso se queira olhar bem o genuíno funcionam ento intelectual dos dirigentes nazistas e com u­ n istas. Ele é in teiram ente dom inado por um sistem a de interpretação do mundo de uma extraordinária indigência. U m com bate d u alista é levado adian te en tre classes ou raças. A definição dessas classes ou dessas raças só tem sen­ tido no e pelo sistema, se bem que o que pode ter objetivo na noção de classe ou de raça perde-se de vista. Essas noções loucas explicam a natureza do com bate, ju stificam -n o, guiam-no no espírito da ideologia a ação dos adversários e dos aliados. Pode haver ardis e astúcias nos meios utilizados para atin gir o fim e, de fato, o com unism o com L en in , Stalin , M ao H o C h i M inh beneficiou-se de atores mais com petentes do que Hitlet: a lógica do conjunto do sistema permanece absurda; seu fim, inatingível. O estado psíquico do militante distingue-se pelo inves­ tim ento fan ático no sistem a. A visão central reorganiza todo o cam po intelectual e perceptivo, até na periferia. A linguagem transforma-se. Ela não serve mais para com uni­ car ou expressar, e sim para mascarar a solução de continui­ dade entre o sistema e a realidade. Assume o papel mágico de sujeitar a realidade à visão do mundo; é uma linguagem litúrgica, em que cada fórmula indica a adesão do locutor ao

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sistema e intim ida o interlocutor a aderir. A s palavras reveladoras são, então, ameaças e figuras de um poder. N ão se pode perm anecer inteligente sob a ideologia. O nazismo seduziu alguns grandes espíritos: Heidegger, C arl Schm itt. Isso porque eles projetavam sobre o nazismo pen­ sam en tos próprios que lhe eram estran hos, um antim odernism o profundo, um antidem ocratism o profundo, um n acio n alism o transform ado em m etafísica, tudo que o nazismo parecia ter assumido, salvo o que produzia seu valor na vida intelectual desses filósofos, o pensam ento, a profun­ didade, a m etafísica. Eles também cediam à ilusão da genea­ logia. O m arxism o-leninismo só recrutou espíritos de segundo escalão, um Lukács, por exemplo: eles não tardaram a per­ der seu talento. O s partidos comunistas podiam se vanglo­ riar de c o n ta r com adesões ilustres - A rago n , B recht, Picasso, Langevin, Neruda: eles tinham o cuidado de m an­ tê-los à m argem para isolá-los num a adesão de acaso, de humor, de interesse, de circun stância. Porém, apesar do caráter superficial dessa adesão, a pintura de Picasso (ver os Massacres da Coréia) e a poesia de N eruda e de A ragon não deixaram de sofrer os efeitos. Ela pode subsistir artistica­ mente em um registro de provocação. A adesão à ideologia dos espíritos superiores produz-se a favor de uma confluên­ cia aleatória de paixões diversas cuja natureza é externa à ideologia. M as, aproxim ando-se de seu cerne, tais paixões se debilitam , não restando às vezes sen ão um resíduo de inépcia. N a zona comunista, os dirigentes tiveram às vezes que resumir sob seu nome o esquema fundamental, com o foi o

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caso Stalin e M ao, que se resume em algumas páginas e con ­ tém a totalidade da doutrina: não existem tratados superio­ res a esses manuais, qualificados às vezes de “elem entares” para se fazer crer que haja outros mais profundos; eles seriam apenas a diluição dos primeiros. Nem por isso deixam de ser impostos com o objetos de “estudo”, isto é, que os sujeitos têm a obrigação de passar algum as horas a repeti-los e a papagueá-los. N a zona nazista, tais com pêndios não existi­ ram. O pensam ento deveria estar subordinado ao do líder, que se apresentaria com o oracular e inspirado. Q uando se analisa o teor, constata-se uma misteriosa mistura de darwinismo social, de eugenismo, de ódio vagam ente nietzschiano pelo cristianism o, religião do “ressentim ento” , do antisem itism o patológico. O homem nazista e comunista oferece-se ao exam e clí­ nico do psiquiatra. Ele parece fechado, desligado do real, capaz de argum entar indefinidamente em círculo com seu interlocutor, obscurecido, persuadido, no entanto, de ser racional. E por isso que os psiquiatras associaram esse estado de delírio crônico sistematizado à esquizofrenia, à paranóia. Se nos aprofundamos no exame, vemos que esta caracteriza­ ção perm anece m etafórica. O sinal mais evidente de esta loucura ser artificial é que ela é reversível: quando a pressão cessa e as circunstâncias mudam, nós saímos dela im ediata­ mente, com o de um sonho. M as é um sonho desperto, que não bloqueia a motricidade e mantém uma certa coerência de caráter racional. Fora da zona atingida, que, no homem sadio, é a parte superior do espírito, aquela que elabora a religião, a filosofia, as “ idéias diretrizes da razão”, diria Kant, as funções do entendim ento parecem intactas, mas polariza­

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das e sujeitas ao lado delirante. De tal m odo que, quando despertamos, a cabeça está vazia, a aprendizagem da vida e do saber deve ser com pletam ente retomada. A A lem anha, que tin h a sido a A ten as da Europa durante um século, despertou em brutecida por doze an os de nazismo. O que dizer d a R ússia, bem m ais sistem aticam en te subm etida durante setenta anos à pedagogia do absurdo, e cujas bases intelectuais eram menos estabelecidas e mais frágeis? Essas doenças mentais artificiais são também epidêm i­ cas e contagiosas. Elas foram comparadas à difusão repenti­ na da peste ou da gripe. Form alm ente, a n azificação da A lem anha, em 1933, e a Revolução Cultural chinesa desen­ volveram-se de fato com o uma espécie de doença contagio­ sa. Esperando sabermos mais sobre essas pandem ias psíqui­ cas, atribuamos a essas com parações um valor simplesmente metafórico. A inépcia é o cenário de fundo da destruição moral. Ela é sua con dição. O desaju stam ento m oral da con sciên cia natural e comum só pode existir se a concepção do mundo, a relação com a realidade, forem previam ente perturbadas. S e essa cegueira é uma circunstância atenuante ou se ela é uma parte integrante do mal, eu não discutirei aqui. Ela não suspende o julgam ento moral.

A falsificação nazista do bem Se buscamos olhar atentam ente o conjunto das opera­ ções que se praticavam contra um povo nos seis cam pos enumerados anteriormente, nos faltam palavras, conceitos.

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a im agin ação recusa-se a con ceber e a m em ória a reter. E stam os fora do hum ano, com o se nos en co n trássem os diante de uma transcendência negativa. A idéia do dem o­ níaco aparece então irresistivelmente ao espírito. O que assinala a nossos olhos o dem oníaco é que estes atos foram realizados em nome de um bem, sob a cobertura de uma moral. A destruição moral tem com o instrumento uma falsificação do bem tal que o criminoso, em uma m edi­ da impossível de precisar, possa manter a distância a cons­ ciência de que pratica o mal. Him m ler pronunciou durante a guerra numerosos dis­ cursos diante dos oficiais superiores e dos chefes de serviço da S S .i O tom é sempre o da exortação moral. Eis um texto que se eleva acim a das contingências da época, acim a m esm o dos interesses im ediatos do R eich e que se eleva ao plano do universal: “Tudo o que fazemos deve ser justificado em relação a nossos ancestrais. Se não en con trarm os este vín culo m oral, o m ais profundo e o m elhor porque m ais natural, não serem os capazes a esse nível de vencer o cristianism o e de constituir esse R eich germ ânico que será uma bênção para toda a Terra. H á m ilê­ nios é o dever da raça loura dominar a terra e sempre lhe propiciar felicidade e civilização.” (9 de junho de 1942) O bem, segundo o nazismo, consiste em restaurar uma ordem natural corrom pida pela história. A correta hierar­ quização das raças foi transformada por esses acontecim en­ tos funestos que são o cristianismo (“esta peste, a pior doen­ ça que nos tem atingido em toda a nossa história” ), a demo-

' Heinrich Himmler, Discours secrets, Paris, Gallim ard, 1978.

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cracia, o reino do ouro, o bolchevism o, os judeus. A ordem natural é coroada pelo Reich alemão, mas reserva um lugar aos outros germânicos, que são os escandinavos, os holande­ ses, os flamengos. Pode-se mesmo deixar intacto o império britânico, que é “um império mundial criado pela raça bran­ ca”. A baixo, os franceses e os italianos. M ais abaixo ainda os eslavos, que serão escravizados e reduzidos em número; Him m ler encara uma “dim inuição” de trinta milhões. N o interior da sociedade, restaurar-se-á assim a ordem natural que quer que dom inem os melhores, os mais duros, os mais puros, os mais cavalheirescos, cujos exem plos vivos são for­ necidos pela elite da W affen-SS. Q uando Himmler pronun­ ciou esse discurso, os incuráveis, os deficientes, os alienados da “raça” alem ã já haviam sido eutanasiados clan destin a­ mente nos hospitais e nos asilos. Tudo isso não poderá ser feito, continua Himmler, sem um com bate extrem am ente duro. Em seus discursos, ele apela constantem ente ao heroísm o, à superação de si, ao sentido do dever superior com o R eich , particularm ente quando se trata de executar ordens dolorosas: “N ós devemos atacar as tarefas ideológicas e responder ao destino, qual­ quer que seja ele; devem os estar sem pre de pé, n ão cair nunca, não nos enfraquecermos nunca, mas estarmos sem ­ pre presentes até que o cam inho termine ou que a tarefa de cada um tenha sido cumprida.” A “solução final”, em certos aspectos, é apenas um pro­ blem a técnico, com o a desinfecção quando há perigo de tifo: “ Destruir os piolhos não decorre de uma concepção do mundo. É uma questão de higiene. [...] Logo não teremos mais piolhos.” (24 de abril de 1943) A metáfora do inseto a

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destruir aparece regularm ente n o cam po do exterm ín io ideológico. Lenin já a usara. M as Himmler, grande líder, diz isso para fortalecer e encorajar seu auditório. Ele sabe que não é tão simples, que falsos escrúpulos podem ser superados e que para se realizar um certo tipo de tarefa “é sempre pre­ ciso ter consciência do fato de que nos encontram os em um com bate racial, primitivo, natural e original” (IPde dezem­ bro de 1943). Esses quatro adjetivos descrevem de m odo apropriado a característica da ética nazista. Em seu discurso de 6 de outubro de 1943, Himmler enun­ cia sua concepção da solução final; “A frase ‘os judeus devem ser exterminados’ comporta poucas palavras, ela é dita rapi­ damente, senhores. M as o que ela necessita da parte daqueles que a colocam em prática é o que há de mais árduo e de mais difícil no mundo. Naturalm ente, são judeus, não são senão judeus, é evidente; m as pensem no núm ero de pessoas mesmo de camaradas do partido - que dirigiram a não impor­ ta que serviço, ou a mim mesmo, estes famosos pedidos, di­ zendo que, claro, todos os judeus são porcos, exceto fulano ou sicrano, que são judeus decentes, aos quais não se deve fazer nada. Eu ouso dizer que, a julgar pelo número desses pedidos e pelo número dessas opiniões na Alem anha, há mais judeus decentes do que propriamente judeus. [...] Eu lhes peço então com insistência para simplesmente ouvir o que eu digo aqui neste círculo fechado, e nunca falem disso com ninguém. Foinos feita a seguinte pergunta: o que fazer com as mulheres e as crianças? —Eu decidi, e também neste caso, encontrei uma solução evidente. Eu não me sentia no direito de exter­ minar os homens - se vocês preferem, matá-los ou mandá-los matar - e deixar crescer as crianças que se vingariam em nos­

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sas crianças e em nossos descendentes. Foi preciso tomar a grave decisão de fazer desaparecer esse povo da Terra. Foi, para a organização que teve de realizar essa tarefa, a coisa mais dura que já conhecera. Eu creio poder dizer que isso foi realizado sem que os nossos hom ens e os nossos oficiais tenham sofrido em seus corações ou em suas almas. Esse peri­ go era, no entanto, real. A via situada entre as duas possibili­ dades: tornar-se duro demais, agir sem coração e não respei­ tar mais a vida humana, ou então se tom ar muito brando e perder a cabeça até ter crises de nervos —a via entre Caribde e C ila é desesperadamente estreita.” Este justo m eio virtuoso que Him m ler reclam a foi, às vezes, atingido: vários grandes carrascos, de fato, foram ter­ nos pais de família, maridos sentim entais. Ele exige que a “tarefa” seja realizada sem intervenção de m otivos “egoís­ tas”, calm am ente, sem fraqueza nervosa. Entregar-se à bebi­ da, violar uma jovem , roubar os deportados, entregar-se a um sadism o inútil revela indisciplina, desordem, esqueci­ mento do idealismo nazista, que são condenáveis e devem ser punidos.

A moral nazista impõe a busca da ordem que indica a natureza. M as a ordem natural não é contem plada, mas sim deduzida do saber ideológico. O pólo do bem é representado pela “raça loura”, o pólo do mal pela “raça judia”. O com ba­ te cósm ico terminará pela vitória de uma ou de outra. Mas tudo isso é falso. N ão há raças, no sentido em que o entendem os nazistas. O grande ariano alto e louro não exis­

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te, mesmo que se possam exibir alemães que sejam grandes e louros. O judeu, conforme eles o entendem, não existe, pois a representação racial que é feita pelo nazismo só tem rela­ ções de coincidência com a verdadeira identidade do povo da A liança bíblica. O nazista crê ver a natureza, mas a natu­ reza se esconde atrás do esquema interpretativo. A situação histórica e militar não é mais percebida sem deformação. Por causa de seu “nazismo”, Hitler entra em guerra e, por causa do próprio nazismo, ele a perde. A superioridade de Stalin residiu em ter conseguido colocar sua ideologia de lado o tempo necessário para preparar a vitória. A ideologia leni­ nista era “melhor” porque permitia essas pausas e autorizava uma paciência política de que o nazismo, impulsivo e con­ vulsivo, se mostrou incapaz. A ética nazista se m anifestava com o uma negação da tradição ética de toda a hum anidade. N o m áxim o alguns pensadores marginais ousaram lançar, por provocação esté­ tica, alguns de seus temas. De fato, o gênero de naturalismo que ela propõe, o super-homem, o sub-homem, o desejo de poder, o niilismo, o irracionalismo, fazem-na recair no terre­ no da estética. É o kitsch artístico que embriaga, as encena­ ções de Nuremberg, a arquitetura colossal ao estilo de Speer, o som brio esplendor da força bruta. Enquanto moral, ela não pode produzir um correlato sério na História. Su a per­ versidade se torna evidente; ela não é universalizável: estas duas fraquezas se opõem à moral comunista. Isto explica o m otivo de a moral nazista ter sido menos contagiosa que a moral comunista e de a destruição moral ter sido mais limitada. A s raças “ inferiores”, “sub-hum anas”, viam nessa doutrina uma am eaça m ortal im inente e não

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podiam ser tentadas. O próprio povo alemão, na medida em que seguiu Hitler, o fez mais por nacionalism o do que por nazismo. O nacionalism o, que é uma paixão natural, singu­ larmente estim ulada há dois séculos, forneceu às formações artificiais do regime nazista, como aliás às do regime comu­ nista, sua energia, seu carburante. A lguns membros da elite alem ã tinham apoiado a chegada ao poder do chanceler: o aristocratism o indolente das tropas hitleristas n ão tinha n ada a ver com a an tiga elite. A q u ele que reiv in d icava Nietzsche caiu na armadilha, com o todo mundo. Q uanto à lealdade do corpo de oficiais, ela se explica pela tradição militar, reforçada por um pouco de kantism o ou de hegelianismo. O s soldados obedeceram como obedecem os solda­ dos. É por isso que a abordagem teórico-simbólica do nazis­ mo, a destruição física do povo judeu, e depois, por ordem hierárquica, a dos outros povos, foi um segredo, e dos mais bem guardados, do Reich. A “N oite de C ristal”, que foi um teste, uma tentativa para convocar e unir o povo alem ão no grande projeto, não se constituiu um sucesso político. H itler também decidiu construir fora dos territórios da A lem anha histórica os seis grandes centros de extermínio. O desgaste moral nazista pode ser descrito em círculos concêntricos em torno de um núcleo central que os propó­ sitos citados por Himmler permitem imaginar. Ele é forma­ do por aqueles que se converteram plenam ente ao nazismo. Eles são pouco numerosos. É o coração do partido, o coração da W affen-SS, o coração da Gestapo. O s executores do ex ­ termínio são ainda menos numerosos. N ão tinham necessi­ dade de sê-lo: o alto desenvolvim ento industrial e tecnoló­

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gico alem ão perm itia econom ia de mão-de-obra. A lgum as centenas de S S que governavam os campos da morte dele­ gavam as tarefas “ m an u ais” às próprias vítim as. O s Einsatzgruppen eram recrutados sem q u alificação prévia. Percebeu-se que eles poderiam teoricam en te ab an don ar esse corpo de assassinos. M as grandes problemas os espera­ vam então, o primeiro dos quais o de com bater n a frente soviética. Esses hom ens eram, ou tinham se tornado, m ons­ tros. N ão é certo que todos eles tinham feito adesão à ideo­ logia nazista. Em toda população é fácil recrutar tantos torturadores e assassinos quanto se necessita. O verniz ideoló­ gico facilitava sua vocação ou lhes permitia desabrocharem. Já observam os que a atividade das Einsatzgruppen não podia ser ignorada pela W ehrmacht, em cuja som bra elas operavam ; que o destino dos trens, a liquidação dos guetos, não deixavam m uita margem a suposições; que, apesar da no man’s land que envolvia os campos da morte, alguma coisa term inava por transparecer. Hillberg escreve que o segredo era “um segredo conhecido por todo mundo”. O que é, sem dúvida, verdade, mas é preciso considerar dois pontos. U m segredo conhecido por todo mundo não é a mesma coisa que uma política proclam ada e um fato público. O s alem ães seguiam, por disciplina militar e cívica, por n acio­ nalismo, por medo, por im potência em conceber ou em rea­ lizar um ato de resistência. O segredo, m esm o ventilado, livrava-os da respo n sabilidade m oral im ed iata, ou pelo m enos perm itia desviar, voltar a cabeça para outro lado, fazer com o se tudo aquilo não existisse. Sob o nazismo sub­ sistia uma sociedade que vivia sobre as relíquias do direito. O corpo de oficiais com preendia um número de homens que

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perm aneciam fiéis aos cânones da guerra e se esforçavam , com maior ou m enos sucesso, para manter uma certa honra. Porque a propriedade não tinha sido ainda elim inada, uma sociedade civil sobrevivia. O filme A lista de Schindler repou­ sa no fato de que podia existir, na A lem anha, um proprietá­ rio de em presa em condições de recrutar e de abrigar uma mão-de-obra judia. Desde os primeiros anos do comunismo, algo desse tipo não era mais concebível na Rússia. O conteúdo do segredo não era algo em que poderia crer um espírito norm alm ente constituído. O fato de que uma grande parte da A lem anha vivia ainda em uma sociedade e sob um a moral naturais, e de não avaliar bem o que a espe­ rava, tornava mais difícil acreditar na realidade do que lhe escondiam , na consistência das suspeitas, na evidência dos indícios. O s próprios judeus, que tinham passado pela e x ­ propriação, concentração, deportação, quando chegavam diante das câm aras de gás ainda não podiam acreditar. A pedagogia nazista teve apenas alguns anos de exercí­ cio. Q uando a A lem an h a foi ocupada, o nazism o rapida­ m ente se evaporou - pelo m enos n a zona o cid en tal; no leste, ele foi, em parte, utilizado de novo. Em primeiro lugar porque foi julgado e condenado por todas as justiças alemãs e internacionais. Em seguida, porque a m aioria da popula­ ção não tinh a ficado profundam ente im pregnada. Enfim, porque os próprios nazistas, despertos, não viam nitidam en­ te a relação entre o que eles tinham sido sob a influência mágica da ideologia e o que eles eram agora que essa influ­ ên cia tinha se dissipado. Eichm ann voltou à sua natureza básica de quadro médio, o que ele era antes e o que teria sido depois se não tivesse sido preso e condenado. Punição que

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ele recebeu de forma passiva, conforme seu caráter apagado. O s fato s relatad os, com o m ostrou com razão H an n ah A rendt, eram incomensuráveis para a consciência estreita daquele ser banal.

A falsificação comunista do bem O com unism o é m oral. O im perativo m oral sustenta toda a pré-história do bolchevism o (o socialism o francês e alem ão, o populismo russo), e sua vitória é celebrada como uma vitória do bem. A estética não predomina sobre a ética. O nazista se acha um artista; o comunista, um virtuoso. O fundam ento dessa moral está no sistema interpretativo. Ela é deduzida do saber. A natureza prim itiva, afirma ele, não é a natureza hierarquizada, cruel, implacável com que se encanta o homem superior nazista. Ela se parece com a natureza boa de Rousseau. Ela se perdeu, mas o socialismo a recriará, levando-a a um nível superior. O homem se rea­ lizará com pletam ente nela. Trotski afirmava que o nível de base da hum anidade nova seria M ichelangelo e Leonardo da Vinci. O com unism o democratiza o super-homem. O progresso natural é um progresso histórico, pois o materialismo histórico e dialético garante a unidade entre a natureza e a história. O comunismo faz seu o grande tema do Iluminismo, o Progresso, em oposição, então, aos temas da decadência que assombram o nazismo; mas progresso dra­ mático, que passa por imensas e inevitáveis destruições. R e­ con h ecem os aqui vestígios do pan tragism o h egelian o e sobretudo do darwinismo árduo da luta pela sobrevivência

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aplicada à sociedade. A s “relações sociais de produção” (“escravism o”, “feudalism o”, “capitalism o” ) se sucedem à m a­ neira dos grandes reinos no mundo animal, com o os m am í­ feros sucedem aos répteis. É um terreno de acordo secreto entre o nazismo e o comunismo: não se chora sobre o leite derramado; não se faz omelete sem quebrar os ovos; quando o gato sai, os ratos fazem a festa, todas expressões familiares a Stalin. De um lado e do outro, a história é dona da verda­ de. O nazism o restab elecerá o m undo em sua beleza; o comunismo, em sua bondade. O restabelecimento depende da vontade hum ana ilumi­ nada pela ideologia. O leninism o, mais claram ente ainda que o nazismo, obedece ao esquema gnóstico dos dois prin­ cípios antagônicos e dos três tempos. N o momento inicial era a com una primitiva; no momento futuro será o com unis­ mo, e hoje é o momento da luta entre os dois princípios. A s forças que fazem “avançar” são boas; as que “atrasam” , ruins. A ideologia (cientificam ente garantida) designa o princípio ruim. N ão se trata de uma entidade biológica (a raça infe­ rior), mas social, que se tece na realidade em toda a socie­ dade: a propriedade, o capitalismo, o com plexo dos costu­ mes, do direito, da cultura que se eleva sobre o princípio ruim e que resume a expressão “o espírito do capitalism o”. A queles que com preenderam os três m om entos e os dois princípios, que conhecem a essência da ordem natural e his­ tórica, e que conhecem o sentido de sua evolução e os meios para acelerá-la, reagrupam-se e formam o partido. É bom então o conjunto dos meios que fazem advir o fim que o revolu cion ário prevê. C o m o o processo é tão natural quanto histórico, a destruição da velha ordem é em

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si um a possibilidade para fazer advir o novo. A fórmula de B akunin, que resum ia o que ele tin h a com preendido de Hegel, é a m áxim a do bolchevismo: o espírito de destruição é o mesmo que o espírito de criação. N a pré-história do bol­ chevism o, os heróis narodnik eram m uito con scien tes da revolução moral que suas concepções continham . Tchemychevski, N etchaiev e T katchev desenvolveram uma litera­ tura do “hom em n ovo”, de que D ostoievski satirizou e de que ele compreendeu o sentido metafísico. O homem novo é aquele que faz sua a nova moral de dedicação absoluta aos fins, que se dedica a expulsar de si mesmo os restos da velha m oral, aquela que os “ inim igos de classe” propagam para perpetuar o seu domínio. Lenin canonizou a ética com unis­ ta, e Trotski escreveu um pequeno livro cujo título já diz tudo: A moral deles e a nossa. O fato assustador é que essa ruptura moral não é perce­ bida por todos de fora desse meio revolucionário. De fato, para descrever a nova moral, o comunismo serve-se de pala­ vras da velha: justiça, igualdade, liberdade... É fato que o mundo que ele se apresta a destruir está repleto de injustiça e de opressão. O s hom ens de bem não podem deixar de acei­ tar que os comunistas denunciam esses males com extremo vigor. Eles concordam que a justiça distributiva não é res­ peitada. G uiando-se pela idéia de justiça, o homem de bem busca promover uma melhor distribuição das riquezas. Para o com unista, a idéia de justiça não consiste num a divisão “justa”, e sim no estabelecim ento do socialism o, na supres­ são da propriedade privada, anulando assim todo tipo de divisão, a própria divisão e, enfim, o direito das partes. O s comunistas dedicam-se a fazer nascer a consciência da desi­

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gualdade, n ão ten do com o o b jetiv o fazer co n statar um a falta de direito, mas fazer desejar um a sociedade em que a regulação não passará pelo direito. D a mesma forma, a idéia com unista de liberdade tem por fim estimular a consciência de um a op ressão onde o in divíduo, vítim a d a alien ação capitalista, crê ser livre. Finalm ente, todas as palavras que servem para expressar as m od alid ades do bem - ju stiça, liberdade, hum anidade, bondade, generosidade, realização - são instrumentalizadas em vista do fim único, que contém todas elas e as realiza: com unism o. D o ponto de vista da idéia com unista, essas palavras m antêm com as antigas ape­ nas um a relação de homonímia. H avia, no entanto, critérios sim ples que deveriam ter dissipado essas confusões. Eu cham o de moral natural ou comum aquela à qual se referem os sábios da A ntiguidade, e também os da C hina, da índia ou da África. N o mundo constituído pela Bíblia, essa m oral é resum ida na segunda tábua dos m andam entos de M oisés. A ética com unista opõe-se a ela de forma frontal e m uito consciente. Ela se propõe a destruir a propriedade e, com ela, o direito e a liberdade que se vinculam a ela, e re­ formar a ordem familiar. Ela se dá o direito de todos os meios de m entira e de violência para derrubar a velh a ordem e fazer surgir a nova. Ela transgride abertamente, em seu prin­ cípio, o quinto m andam ento (“honrarás pai e m ãe” ), o sexto (“não m atarás” ), o sétim o (“não com eterás adultério” ), o oitavo (“não roubarás” ), o nono (“não darás falso testem u­ nho con tra teu próxim o” ) e o décim o (“não cobiçarás a mulher do próxim o” ). N ão é absolutam ente necessário crer na revelação bíblica para aceitar o espírito desses preceitos

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que se encontram em todo o mundo. A maioria dos homens considera que existem comportamentos que são verdadeiros e bons porque correspondem ao que eles con hecem das estruturas do universo. O com unism o con cebe um outro universo e vincula a ele sua moral. É por isso que ele recusa não só os preceitos, mas também seu fundamento, o mundo natural. Dizíamos que a moral com unista baseia-se na natu­ reza e na história; é falso. Baseia-se numa supernatureza que não existe e num a História sem verdade.

“ O regim e so v ié tic o ” , escreveu R aym on d A ron , em Democracia e totalitarismo P “originou-se de um a vontade revolucionária inspirada em um ideal humanitário. O obje­ tivo era o de criar o regime mais hum ano que a H istória já tivesse con h ecid o, o prim eiro regim e em que todos os hom ens poderiam ter acesso à humanidade, em que as clas­ ses teriam desaparecido, em que a hom ogeneidade da socie­ dade permitiria o reconhecim ento recíproco dos cidadãos. M as esse m ovim en to tendeu para um fim absoluto, n ão hesitando diante de qualquer meio, porque, segundo a dou­ trina, apenas a violência poderia criar essa sociedade abso­ lutamente boa, e o proletariado estava engajado numa guer­ ra impiedosa contra o capitalism o. Dessa com binação entre um fim último e uma técnica impiedosa surgiram as diferen­ tes fases do regime soviético.” Estas linhas refletem , com toda a clareza possível, a ambigüidade e o engodo do comunismo. Pois o que é cha-

- Raymond Aron, Démocratie et totalitarisme, Paris, Gallim ard, 1965, p. 302.

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m ado de h u m an o e de h u m an itário é, de fato , o so b re­ hum ano e o sobre-humanitário que promete a ideologia. O hum ano e o hum anitário não têm nem direito nem futuro. A s classes não se reconciliam , elas desaparecem. A socieda­ de não se torna hom ogênea, ela é destruída em sua autono­ mia e em sua dinâm ica própria. N ão é o proletariado que faz a guerra ao capitalism o, é a seita ideológica que fala e age em seu nome. Enfim, o capitalism o só existe por oposição a um socialism o não existente senão na ideologia, e, em con ­ seqüência, o conceito de capitalism o é inadequado para des­ crever a realidade que deve ser derrubada. O objetivo não é sublim e: ele assum e as cores do sublim e. O m eio, que é matar, se tom a o único fim possível. A o fim de um longo e admirável paralelo entre o nazis­ mo e o comunismo, Raymond A ron escreve: “Eu manterei, no ponto de chegada, que, entre esses dois fenômenos, a di­ ferença é essencial, quaisquer que sejam as similitudes. A diferença é essen cial à causa da idéia que an im a os dois em preen dim entos. N um caso, o p o n to de ch eg ad a é o cam po de trabalho; no outro, a câm ara de gás. N um caso, é a vontade de construir um regime novo e talvez um outro hom em , n ão im portando quais os m eios; n o outro, um a von tad e propriam ente dem on íaca de destru ição de um a pseudo-raça.”3 Eu também adm ito a diferença na base de argumentos que exporei m ais adiante. A queles que são m encionados aqui não me convencem . O nazismo também projetava um regime novo e um homem novo, não importando quais os

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meios. N ão é possível decidir qual o mais dem oníaco: des­ truir uma pseudo-raça, inclusive a “superior”, porque elas são todas poluídas; ou destruir uma pseudoclasse e, depois, sucessivam ente, as outras, todas contam inadas pelo espírito do capitalism o. Raym ond A ron, enfim, conclui: “Se eu tivesse que resu­ mir o sentido de cada uma dessas empresas, acho que estas são as fórm ulas que eu sugeriria: a propósito da em presa soviética, eu recordaria a fórmula banal ‘quem quer se passar por anjo, passa por anim al’; a propósito da empresa hitlerista, eu diria: ‘O hom em erraria ao se colocar com o objetivo assemelhar-se a um anim al de rapina, porque ele o consegui­ ria perfeitam ente’.” É melhor ser um animal que se passa por anjo ou ser um homem que se faz de animal, tendo-se confessado que todos os dois são de “ rapina” ? E impossível decidir. N o primeiro caso, o grau de m entira é maior e a sedução mais atraente. A falsificação do bem é mais profunda, dado que o crime se assem elha mais ao bem do que o crime do nazismo, o que permite ao com unism o difundir-se mais am plam ente e tocar corações que teriam recuado diante de um a vo cação S S . T om ar maus hom ens bons talvez seja mais dem oníaco que tornar pior hom ens já m aus. O argum ento de R aym ond A ron vincula-se à diferença de intenções. A intenção nazis­ ta contradiz a idéia universal do bem. A intenção com unis­ ta perverte-a, pois ela tem um jeito bom e permite a muitas almas desatentas aderir ao projeto. O projeto sendo inacessivel, só restam , para q u alificar o ju lg am en to m oral, os meios, que, sendo im potentes para atingir o seu fim, tor­ nam-se o fim efetivo. Agregando-se ao crime, a mentira o torna mais tentador e mais perigoso.

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M ais tentador: o com unismo leninista rouba a herança de um ideal muito antigo. N em todos estão em condição de discernir, no m om ento da adesão, a corrupção que ele ope­ rou. A contece que se permanece por m uito tem po com unis­ ta, até toda a vida, sem se dar conta disso. A confusão da velha moral (com um ) com a nova nunca é com pletam ente dissipada. Se bem que ainda resta nos partidos comunistas uma proporção de “gente boa” , que resiste à deterioração moral e cuja presença joga a favor da anistia coletiva. O excom unista é mais facilm ente perdoado do que o ex-nazista, já que este é suspeito de ter, desde sua adesão, rompido cons­ cientem ente com a moral comum. M ais perigoso porque a educação com unista é insidiosa, progressiva, e transforma em bons os atos ruins que ela faz cometer. M ais perigoso também por ser imprevisível com as suas futuras vítimas. Todo mundo, de fato, pode assumir vir­ tualm ente, de um m om ento para o outro, a qualidade do inimigo. O nazismo designava por antecipação seus inim i­ gos. Ele lhes atribuía uma natureza fantástica sem relação com a verdadeira, mas por trás do sub-hom em h avia um judeu real, por trás do eslavo desprezível um polonês ou um u cran ian o de carne e osso. A q u eles que n ão eram nem judeus nem eslavos dispunham de um sursis. O universalis­ mo, que é, antes da tomada do poder, a grande superiorida­ de do com unism o sobre o exclusivism o nazista, se torna, uma vez no poder, uma am eaça universal. O capitalism o, com o esta palavra é empregada, só tem uma existência ideo­ lógica, e não há categoria da humanidade que não possa cair sob a m aldição que se abate sobre ele: o cam ponês “m édio” e “pobre” , a intelligentsia, o “proletariado” , o próprio partido.

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enfim. Todos podem ser contaminados pelo espírito do capi­ talismo. Ninguém está a salvo da suspeita.

C om um certo realismo, os líderes nazistas prometiam sangue e lágrimas, previam um combate mortal para resta­ belecer a hum anidade em sua correta ordem racial. A o con ­ trário, Lenin achava que os tempos estavam maduros e que a escatologia se realizaria assim que o “capitalism o” tivesse sido derrubado. A revolução iria inflamar o mundo inteiro. U m a vez expropriados os expropriadores, os quadros do socialism o iriam espontaneam ente ocupar seu lugar. M as nada disso se passou em seguida ao 7 de novembro de 1917, e a cortina subiu sobre um palco vazio. Para onde foram o proletariado, o cam pesinato pobre e médio, o internacionalismo proletário? Lenin está sozinho com seu partido, alguns guardas vermelhos, em um mundo hostil ou indiferente. N o entanto, o marxismo-leninismo é científico. É pre­ ciso então que a experiência prove a teoria. C om o o capita­ lism o foi derrubado, é necessário que o socialism o chegue. C om o , aparen tem en te, ele não chega, resta con stru í-lo segundo as linhas indicadas pela teoria e verificar que em cada mom ento o resultado será conforme a previsão. A ssim se con strói, pedra sobre pedra, um universo falso que se supõe que deveria substituir o verdadeiro. A ssim se torna espessa um a atm osfera de m entira generalizada, à m edida que os fatos se afastam das palavras encarregadas de des­ crevê-los. O bem se afirma freneticamente para negar a rea­ lidade do mal.

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É principalm ente por esta via que se produz a destrui­ ção moral no regime comunista. C om o no regime nazista, ela se estende em círculos concêntricos em torno do núcleo inicial. N o centro se encontra o partido, e, no partido, seu cír­ culo dirigente. N os primeiros tem pos do poder, ele ainda está sob o dom ínio total da ideologia. N esse momento é que ele se dedica a eliminar “o inimigo de classe”. Em uma into­ xicação absoluta da consciência moral, ele destrói em nome da utopia categorias inteiras de pessoas. U m a olhada retros­ pectiva mostra que, nos casos russo, coreano, chinês, rome­ no, polonês, cam bojan o, esta sangria inicial foi um a das m ais im portantes da h istória desses regim es: às vezes da ordem de 10% da população, ou até mais do que isso. Q uando parece que o sonho utópico já não se realizará, que a dizimação propiciatória não serviu para nada, observase um deslizamento da utopia para a simples conservação do poder. O inimigo objetivo estando já exterminado, é preciso cuidado para que não se reconstitua, até mesmo para que não reapareça nas fileiras do próprio partido. É o momento de um segundo terror, que parece absurdo porque não responde a uma resistência social e política, e visa a um controle total de todos os homens e de todos os pensamentos. O medo então se torna universal, ele se alastra no próprio partido, onde cada mem bro se sente am eaçado. Todo m undo denuncia todo mundo; todo mundo trai em cadeia. Depois vem o terceiro estágio, o partido previne-se con ­ tra o expurgo permanente. Ele se contenta com uma gestão rotineira do poder e de sua segurança. Ele não crê mais na ideologia, mas continua a falar sua linguagem, e cuida para

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que essa linguagem , que ele sabe que é m entirosa, seja a única falada, pois ela é o sinal de sua dom inação. Ele acu­ mula os privilégios e as vantagens; transforma-se em casta. Ele entra em uma corrupção generalizada. Entre o povo, não se com param mais seus membros a lobos, mas a porcos. A periferia é constituída pelo restante da população. N a sua totalidade, de fato, esta é im ediatam ente convocada e mobilizada para a construção do socialismo. A in da na sua totalidade ela sofre a am eaça, ela está exposta à mentira, ela é solicitada a participar do crime. Ela está, antes de tudo, fechada. Todo governo com u­ nista fecha as fronteiras, esse é um de seus primeiros atos. O s nazistas, até 1939, autorizavam as partidas, a troco de resga­ te. A “pureza” da A lem anha ganhava com isso. M as jam ais os com unistas. Eles têm necessidade do fecham ento absolu­ to das fronteiras para proteger o segredo de suas matanças, de seu fracasso; mas, sobretudo, porque o país supostamente se tornou uma vasta escola em que todos devem receber a educação que extirpará o espírito do capitalism o e filtrará, em seu lugar, o espírito socialista. O segundo passo é conttolar a infotmação. A população não deve saber o que se passa fora do cam po socialista. Ela não deve tam pouco saber o que se passa dentro. Ela não deve conhecer seu passado. Ela não deve conhecer seu pre­ sente: som ente seu futuro radioso. O terceiro é substituir a realidade por uma pseudo-realidade. Todo um corpo especializado no falso produz falsos jornalistas, falsos historiadores, uma falsa literatura, uma falsa arte que finge refletir fotograficam ente uma realidade fictícia. U m a falsa econom ia produz estatísticas im aginá­

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rias. A con tece às vezes que as necessidades da cenografia chegam à adoção de m edidas de estilo nazista. A ssim , na U R S S , os mutilados de guerra e do trabalho eram afastados da vista do público, transportados para asilos longínquos onde eles não cham avam mais atenção. N a C oréia, recorde­ mos, são os anões, cuja “raça” deve desaparecer, que são de­ portados e impedidos de procriar. A construção dessa cen o­ grafia ocupa milhões de homens. Para que serve isso? Para provar que o socialism o não só é possível, mas que se cons­ trói, se afirma, mais do que isso, que já está realizado: que existe uma sociedade nova, livre, auto-regulamentada, em que crescem os “hom ens novos” que pensam e agem espon­ taneam ente conform e os cânones da realidade-ficção. O instrumento mais poderoso do poder é a confecção de um novo idioma em que as palavras assumem um sentido dife­ rente do habitual. Sua elocução, seu vocabulário especial lhe dão o valor de um a linguagem litúrgica: ela denota a transcendência do socialismo. Ela assinala a onipotência do partido. Seu emprego pelo povo é a marca imediatamente visível de sua servidão. N o com eço, uma parte importante da população recebe de boa-fé a pedagogia da mentira. Ela entra na nova moral com seu patrim ônio moral antigo. Ela am a os dirigentes que lhe prom etem a felicidade, ela crê que é feliz. Ela pensa viver na justiça. Ela detesta os inimigos do socialism o, ela os denuncia, aprova que eles sejam expropriados, que sejam mortos. Ela apóia seu extermínio com dureza. Ela participa do crime sem se dar conta. A o mesmo tempo, ela se embrutece por ignorância, desinformação, raciocínios falsos. Ela perde suas referências intelectuais e suas referências morais.

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A incapacidade de distinguir o comunismo do ideal moral com um faz com que, quando seu sentim ento de ju stiça é ferido, ela atribua o abuso ao inimigo externo. A té a queda do comunismo, na Rússia, era freqüente os hom ens que sofriam maus-tratos pelos policiais ou pelos militantes os tra­ tarem de “fascistas” . N ão passava chamar-lhes por seu ver­ dadeiro nome - comunistas. E a vida, na cenografia socialista, em vez de se tornar “mais alegre, mais feliz”, com o dizia Stalin, enfaticamente, em p len o “ grande expurgo” , se torna m ais sinistra, m ais lúgubre. O medo invade tudo e é preciso sobreviver. O avil­ tam ento moral, até ali inconsciente, penetra na consciên­ cia. O povo socialista, que fazia o mal acreditando que fazia o bem, sabe agora que o faz. Ele denuncia, rouba, se hum i­ lha, se torna mau, covarde e tem vergonha. O regime com u­ nista não esconde seus crimes, com o fez o nazismo; ele os proclam a, convida a população a se associar a eles. C ad a condenação é seguida de uma reunião de aprovação. O acu­ sad o é p u b licam en te renegado por seus cam aradas, sua mulher, seus filhos. Estes se unem à cerim ônia por medo, por interesse. O stakhan ovism o en tusiasta dos prim eiros tempos - se ele chegou a existir foi apenas com o elemento cenográfico - é revelado no Homo sovieticus com o um indo­ lente, servil, im becil. A s m ulheres sen tem horror pelos homens. A s crianças por seus pais, e sentem que se tornam aos poucos com o eles. O último estágio nos é descrito pelos escritores do fim do sovietism o, Erofeev, Zinoviev. O s sentim entos mais di­ fundidos são o desespero e a repugnância de si mesmo. R es­ ta aproveitar-se dos prazeres específicos que esse regim e

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proporciona: a irresponsabilidade, a preguiça, a passividade vegetativa. N ão vale mais a pena praticar o duplo pensa­ mento, procura-se na verdade não pensar em nada. A s pes­ soas se fecham sobre si mesmas. O sentim entalism o ch o­ roso, a selppity são uma maneira, com o fazem os bêbados, de tomar os outros testemunhas de sua degradação. Estamos sem pre no “ratorium " de Z inoviev, n a luta h o b b esian a de todos co n tra todos, m as com m uito po u ca en ergia. Z inoviev estim ava que o Homo sovieticus era o produto de uma m utação irreversível da espécie. Provavelm ente um erro. N ão h á lugar protegido para escapar à pedagogia da mentira. O s quadros sociais da velha sociedade foram des­ truídos, juntam ente com a propriedade, e substituídos por novos quadros que são outras tantas escolas e lugares de vigilância: o kolkhoz, a comuna popular chinesa para o cam ­ ponês, o “sin d icato ” para o operário, as “U n iõ es” para o escritor e o artista. Pode-se descrever a história desses regi­ mes com o uma corrida permanente para o controle univer­ sal e, do lado dos indivíduos, como uma corrida perdida para encontrar refúgios ou pelo menos alguns recantos. Eles sem ­ pre existiram. Foi assim que na Rússia algumas famílias da velha intelligemsia souberam preservar suas tradições. U m A ndrei Sakharov apareceu. N as universidades, houve cáte­ dras mais ou menos tranqüilas de assiriologia ou de filologia grega. N as igrejas subjugadas, golpes de ar puro. N o fim do regime, eram encontrados em M oscou pequenos grupos de jovens que, tendo recuperado a vida moral e intelectual, vi­ viam voluntariam ente de expedientes, não pegando n e ­ nhum trabalho, não brigando por nenhum posto, reduzindo

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ao m ínim o os con tatos com o exterior soviético. Eles se m antiveram assim até o fim. N o império soviético, o espírito reeducativo do com u­ nista deter-se-ia na porta do campo. Para os nazistas, a con ­ versão não tinha lugar, mas os bolcheviques praticam ente renunciaram a converter os presos. Se bem que Soljenitsyn tenha podido afirmar que o campo era, apesar de seu horror, um lugar de liberdade intelectual e de respiração espiritual. O com unism o asiático fez dele, ao contrário, o lugar em que a pedagogia se exerce da maneira mais obsessiva, mais tortu­ rante. A s autoridades observam o progresso do preso. Ele só sairá morto ou reeducado.

Avaliação Pode-se tentar, nos limites que impõe o ponto de vista h istórico, av aliar com parativ am en te a d estru ição m oral produzida neste século pelo nazismo e pelo comunismo. Por destruição m oral, não entendo a desestruturação dos costumes, no sentido em que reclamam desde sempre as pessoas velhas olhando os costumes dos mais jovens. Eu não quero tam pouco fazer um juízo sobre este século em com pa­ ração com outros. N ão há nenhum a razão filosófica para pensar que o homem tenha sido mais virtuoso ou menos vir­ tuoso. R esta que o com unismo e o nazismo buscaram mudar, agindo sobre os costumes, a regra moral, a consciência do bem e do mal. Por causa disso, algumas coisas que a expe­ riência hum ana jam ais tinha registrado foram cometidas. Apesar de a intensidade no crime ser levada pelo nazismo

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a um grau que o comunismo talvez jam ais se igualou, deve-se, no entanto, afirmar que este último a levou a uma destruição moral mais extensa e mais profunda. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque a obrigação de interiorizar a nova regra moral se estende à população inteira subm etida à reeducação. A s testem unhas nos dizem que esta interiorização ob rigató ria é a parte m ais in su portável da op ressão comunista: que todo o resto - a ausência das liberdades polí­ ticas e civis, a vigilância policial, a repressão física, o pró­ prio medo - não é nada ao lado desta pedagogia mutilante, que se torna louca porque contradiz as evidências dos sen ti­ dos e do entendim ento. Que toda a panóplia das “m edidas” e dos “órgãos” lhe está finalm ente subordinada. C o m o o comunismo, à diferença do nazismo, teve o tem po para ele, a pedagogia foi até o fim. Sua queda ou sua retirada de cena deixaram com o herança uma hum anidade arruinada, e o envenenam ento das alm as é mais difícil de ser expurgado que na A lem anha, que, afetada por uma alienação tem porá­ ria, despertou de seu pesadelo pron ta para o trabalh o, o exam e de consciência e o arrependimento purificador. Em seguida, porque a confusão permanece insuperável entre a moral comum e a moral com unista, esta se escon­ dendo atrás daquela, tornando-se parasita dela, gangrenando-a, fazendo dela o instrum ento de seu c o n tágio . U m exem plo recente: nas discussões que se seguiram à publica­ ção do Livro Negro, um editorialista do LH um anité declarou à televisão que os oitenta milhões de mortos não m ancha­ vam em nada o ideal comunista. Eles representavam apenas um lam entável desvio. Depois de Auschwitz, continuou ele, não se pode ser mais nazista; mas depois dos cam pos soviéti-

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COS,

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pode-se continuar sendo comunista. Esse homem que

falava com consciência não se dava de forma alguma conta de que ele acabava de formular sua mais fatal condenação. Ele não percebia que a idéia comunista tinha pervertido de tal forma o princípio de realidade e o princípio moral, que ela n ão poderia de fato sobreviver a oite n ta m ilhões de cadáveres, ao passo que a idéia nazista tinha sucumbido sob os seus. A creditando falar como um homem muito honesto, idealista e intransigente, ele tinha pronunciado uma pala­ vra monstruosa. O com unismo é mais perverso que o nazis­ mo porque ele não pede ao homem que atue con scien te­ mente com o um criminoso, mas, ao contrário, se serve do espírito de justiça e de bondade que se estendeu por toda a terra para difundir em toda a terra o mal. C ad a experiência com unista é recom eçada na inocência.

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Capítulo I I I

A D EST R U IÇ Ã O DO P O LÍT ICO

A nalisei a destm ição das pessoas em sua natureza cor­ poral, em sua natureza moral de seres humanos capazes de discernirem entre o bem e o mal. E preciso ainda encará-la em sua natureza política, isto é, em sua capacidade de esta­ belecer entre si vínculos familiares, sociais, relações organi­ zadas de governantes e governados, a fim de constituir uma cidade, um Estado.

A política de destruição do político A n tes de tom ar o poder e, para tom á-lo, os partidos com unistas e os nazistas utilizam todos os meios da política. Eles se instalam no jogo político, apesar de eles mesmos, segundo seus próprios critérios e sua disciplina interna, se colocarem fora do jogo. Por exemplo, quando o partido bolchevique reivindica a terra para os camponeses e a paz ime­ diata, não é para se contentar com o êxito dessas duas rei­ vindicações. Trata-se de colocar os camponeses e os solda­ dos do seu lado a fim de lançar o processo revolucionário. Feita a revolução, a terra é expropriada dos camponeses e a

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guerra está ativam ente preparada sem que o partido veja n isso a m enor con trad ição. N en h u m a aç ão term in a no objetivo que ela atinge. Ela é englobada em um m ovim ento indefinido e só existe para propiciar uma outra ação situada para além do limite proclamado. U m a vez no poder, a política do partido fica mais do que nunca voltada para a destruição do político. A s formas orgâ­ nicas da vida social, a família (se o poder tem a força para isso, mas ela resiste por todos os lados, não sem se desgastar e se degradar), as classes, os grupos de interesse, os corpos cons­ tituídos são suprimidos. A s pessoas, a partir de agora privadas de todo direito de associação, de agregação espontânea, de representação, reduzidas à condição de átomos, são colocadas num novo enquadramento. Este enquadramento se modela sobre aquele que deveria existir se o socialism o existisse com o sociedade. Ele assume então o nome de sovietes, de uniões, de com unas. C om o o socialism o só existe virtual­ mente, esse enquadramento só existe como coação. E a opor­ tunidade po lítica que decide se os n ovos quadros devem expressar por seu nome o socialismo virtual ou, bem se lhe convém, deixar-lhes seu antigo nome para fazer crer que o velho mundo ainda é, de alguma maneira, atual: lhes darão o nome de sindicatos, de academias, de parlamentos, de coope­ rativas, a hom oním ia podendo ser “explorada politicam en­ te”. Q uantas delegações de parlamentares ou prefeituras oci­ dentais são assim enganadas porque acreditam ter sido rece­ bidas por parlamentares e vereadores, e não por funcionários do partido que tinham se apropriado desses nomes! O partido nazista im itou sum ariam ente a destruição com unista do político. Ele também tomou o poder escon­

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dendo seus objetivos reais, enganando seus aliados provisó­ rios (da direita conservadora) para em seguida liquidá-los. Ele também criou quadros novos e integrou neles a juventu­ de e as “m assas”. N ão era necessário para seus objetivos des­ truir im ediatam ente os velhos. C ontentou-se em neutralizálos e subm etê-los. So b reviv eram assim n o nazism o os empresários, um mercado, juizes, funcionários do tipo an ti­ go que já tinham um posto, que não foram mudados, que continuaram a se orientar pelas velhas regras. A seguir veio a guerra, que acentuou e acelerou o controle nazista. N ão sabemos o que teria acontecido se ela tivesse sido ganha.

O resco do político O Führerprinzip era uma peça essen cial do retorno à natureza com o o concebia o nazismo. A trama social deve­ ria se organizar em torno de uma hierarquia de chefes leais, devotados ao Reich, ligados por um juramento, e isto até o fundo da escala a partir do chefe supremo, cuja exaltação era coerente com o espírito do sistema. O partido com unista também era hierarquizado, mas em princípio numa base dem ocrática e eleitoral. De fato, a originalidade do partido de Lenin residiu no fato de que desde a sua fundação o centro designava à “base” aqueles que deveria eleger, de tal modo que a eleição dem ocrática se tornava simplesmente um teste do poder absoluto do cen ­ tro. E que a consciência gnóstica, o saber científico funda­ dor do partido, se concentrava teoricamente no organismo dirigente e se difundia a partir desse ponto para a “base” .

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que, rem etendo o poder para o “centro” , m anifestava seu progresso na assim ilação da doutrina e da “linha”. Viu-se, en tão, au m en tar um culto ao chefe desde os tem pos de Lenin e que chegou ao seu apogeu com Stalin. O culto sub­ sistiu, mas, no tempo de Brejnev, o ídolo mostrava as suas fraquezas. O culto do chefe é contrário à doutrina com unis­ ta, e os puristas trotskistas recusam-no com indignação. M as trata-se de um reaparecimento da natureza real em um siste­ ma fundado numa sobrenatureza irreal. Está mais de acordo com o caráter hum ano de venerar seu sem elhante do que um corpo abstrato de doutrina evidentemente falso. Assim , na única forma em que os poderes comunista e nazista encarnavam nas pessoas reais, subsistia um resto de político no seio do partido, única organização real sobrevi­ vente. A política se reduz ao que M ontesquieu im aginava do palácio otom ano ou persa: um a m istura de ódio e de intriga entre pessoas e clãs precariamente unidos em vista do poder pessoal, justificado ou não por uma m udança de linha no interior da mesma política de conjunto. Trotski, Bukharin, Zinoviev, Stalin buscavam o mesmo objetivo: o socialism o; mas seria necessário que um ou outro fosse o número um. Sucederam -se, então, em circuito fechado as traições e os assassinatos.

A utopia A atividade incansável, astuciosa, às vezes frenética do centro dirigente só pode ser qualificada de política, porque ela é submetida à realização de uma utopia.

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O s dois regimes se referem a um passado m ítico sobre o qual se modela um futuro imaginário. Antigam ente, houve o tem po dos arianos, os melhores segundo a natureza: am a­ nhã os germanos reinarão novam ente e, sobre eles, os mais puros. O com unism o insiste menos n a restauração do passa­ d o - a com una prim itiva - do que sobre sua reprodução a um “nível superior”. E preciso então dar um espaço maior à velha noção de progresso, herdada do lluminism o e dram a­ tizada pelo Romantism o. A idéia de M arx, segundo as pala­ vras de Raym ond Aron, era ir de Rousseau a Rousseau, pas­ san do por S a in t-S im o n , isto é, pelo progresso técn ico e in du sttial. O hitlerism o é v o lu n tarista: é apen as a obra demiúrgica da vontade que pode restaurar a boa selva, em equilíbrio biológico. O leninismo conta com o automovimento da história para dar à luz a A rcádia moderna (com a eletricidade e a abundância), Aufhebung da A rcádia prim iti­ va. M as o auto-m ovim ento produz naturalmente o Partido, que é o instrumento desse parto. O voluntarismo é também necessário, mas ele é ao mesmo tempo exaltado e negado, um a vez que o partido en carn a apenas a co n sciên cia da necessidade, que se confunde (e Lenin in voca Sp in o za!) com a liberdade. Entre esse passado fabuloso e esse futuro ideal, o tempo presente não tem valor próprio. A arte política, enquanto consiste em ordenar o presente, gerindo cuidadosam ente a herança do passado considerado precioso e vivo, guiando-se por previsões curtas e sem pretensão a longo prazo, não tem nenhum sentido para uma direção nazista ou comunista. O passado próxim o é o inimigo, o presente não conta, tudo fica submetido ao futuro escatológico, aos fins últimos.

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O s fins ilimitados do nazismo É preciso perguntar-se se o cam po de expansão e de ação do nazismo podia se limitar ou se era ilimitado por natureza. A política de apaziguamento conduzida por C ham berlain, e em certa medida a política de divisão seguida por Stalin em 1940, repousavam sobre a hipótese de que H itler poderia se satisfazer com o que já havia obtido. N ão havia ele rasgado o Tratado de Versalhes, adquirido suficientemente “terras a L este” para não faltarem ocupações durante alguns anos? Tendo reorganizado a A lem anha, elim inado os inaptos, os judeus, os inferiores, ele tinha necessidade de ir mais longe. Para conquistar a Polônia, ele correu o risco da guerra mun­ dial. É provável que ele não tivesse visto aonde o seu plano o conduzia. M as aceitou suas conseqüências, com o que leva­ do por um destino superior, e deu incessantem ente con ti­ nuidade ao jogo. O único parceiro com quem poderia ter chegado a uma divisão duradoura do mundo era Stalin, que, atrib uin do a H itler um a racion alid ad e an álo ga à sua e consciente do vínculo natural entre os dois regimes, tinha toda a razão em confiar na aliança. M as H itler o traiu, e Stalin jam ais conseguiu compreender por quê. Em seguida, com uma leviandade incompreensível, declarou guerra aos Estados U n ido s. A partir daqu ele m om ento, ele estav a com prom etido em um jogo que ou lhe daria a vitória e o dom ín io do m undo, ou a derrota e a ruína total da A lem anha. N essa guerra, o nazismo revelou a si mesmo a sua voca­ ção para exterm inar fatia a fatia toda a H um anidade. A medida que o mundo resistia, a polaridade ariano-judia se

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tornava cada vez mais evidente. O judeu aparecia com o o indício de resistência à realização do grande plano. Ele se com punha com o bolchevismo, que havia se tornado um judeu-bolchevism o, e com o capitalism o, transform ado em ju deu -capitalism o. O judeu tin h a en tão corrom pido o mundo inteiro, conspurcado tudo, “enjudeusado” tudo. Era a totalidade da humanidade que deveria ser purificada; por­ tanto, exterminada. O último esforço de Hitler, com o mos­ trou Sébastien Haffner, foi dirigir a inevitável derrota de tal forma que ela desembocasse na destruição da A lem anha.* A ofensiva das Ardennes teve também com o objetivo, segun­ do esta interpretação, atrasar o avanço dos norte-am erica­ nos a fim de entregar o país aos soviéticos. “A s ordens de aniquilam ento dadas por Hitler, em 18 e 19 de m arço de 1945, não visavam uma luta final heróica, como havia acon ­ tecido no outono de 1944. Para uma luta desse tipo, não adiantava nada colocar centenas de milhares de alemães no cam inho da morte, na direção do interior do país, nem fazer destruir sim ultaneam ente tudo o que poderia servir à mais hum ilde das sobrevivên cias. Esse últim o gen o cíd io de H itler, agora vo ltad o con tra a própria A lem an h a, tin h a como único objetivo punir os alemães por sua recusa em agir com o voluntários na direção de uma luta final heróica, no desempenho do papel que Hitler lhes tinha atribuído. A os olhos de Hitler, isso constituía, e tinha sempre constituído, um crime passível de pena de morte. U m povo que não assu­ mia o papel que lhe era destinado devia morrer.” N o entanto, a estrutura de com ando do nazismo, que faz

' Sébastien Haffner, Un certain Adoíf Hitler, Paris, Grasset, 1979, p. 242.

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tudo repousar na decisão do líder, dá à sua história um cará­ ter aleatório. Era concebível, em teoria, que ele tivesse se aliado à Inglaterra em 1939, que se tivesse contentado com o que Stalin lhe havia concedido. Isso não aconteceu, e ele se recusou a construir o “nazismo num só país” . Da mesma forma, o partido nazista e o império S S não tinham necessi­ dade de se substituir aos centros de iniciativa norm ais da indústria alem ã, que obedecia disciplinadam ente. A in d a assim se apropriaram dos instrumentos de comando, o que introduziu uma tramóia de tipo soviético muito prejudicial ao esforço de guerra do Reich. O rem anejam ento do mundo poderia ser feito por eta­ pas sucessivas e as destruições concom itantes seguirem-se com ordem. O s nazistas de fato praticaram a “tática do sala­ m e” (segundo a expressão atribuída a R ak o si), dado que cada “raça”, antes poupada, via em seguida chegar a sua vez. M as rapidam ente o m ovim ento desembocou num massacre geral. Eles não poderiam, como teria feito Stalin, prometer à U crânia a independência, dispostos a acertar suas contas com ela depois da vitória: foi necessário que eles tratassem de exterminá-la imediatamente, o que levou os ucranianos a ficarem contra eles. O esteticism o da doutrina é provavel­ m ente a causa desse “tudo ao mesmo tem po” arruinador. H itler se acreditava artista e, com o tal, marcado pela estéti­ ca rom ântica do gênio. “O gênio”, escrevia Kant, “não pode expor cientificam ente com o ele realiza a sua obra, mas ele dá a regra en quanto natureza. A ssim , o próprio autor de uma obra que ele deve a seu gênio não sabe com o lhe vie­ ram as idéias e tam pouco tem poder para form ar outras idéias similares à vontade e metodicam ente, nem com uni­

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car aos outros preceitos que lhe possam facilitar a produção de obras sim ilares.”^ Por isso H itler não sabia bem o que fazia nem de onde lhe vinham suas inspirações e suas deci­ sões. Ele se via com o um dem iurgo prom etéico, e essa embriaguez era em parte com unicada a seu povo. Ele acredi­ tava ser o veículo genial do Volksgeist e que suas ordens, no início prudentes, depois insanas, vinham de algo situado acim a dele. Daí essa impaciência e essa precipitação nazistas que Stalin não conseguia compreender. Por isso a irraciona­ lidade na condução da guerra. Algumas decisões desejadas por seus excelentes generais teriam podido ganhá-la, senão pelo m enos levá-la a um em pate, sob a condição, nunca dada, de que ela se propusesse fins lim itados, fa lta que acabou, por culpa de Hitler e de seu wagnerismo doentio, levando-o à derrota.

Os fins ilimitados do comunismo O projeto com unista é declaradamente total. Ele busca em extensão a revolução mundial, compreendendo por isso uma m utação radical da sociedade, da cultura, do próprio ser humano. M as autoriza a colocação em prática de meios racionais para obter esses fins alheios à razão. Lenin, duran­ te a guerra, era um sonhador quimérico que sobrepunha às realidades do mundo as entidades abstratas do capitalismo, do imperialismo, do oportunismo, do esquerdismo e de mui­ tos outros “ ismos” que, na sua opinião, explicavam tudo. Ele

2 Kant, A crítica da razão, § 46.

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OS

aplicava tanto

à

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Suíça, com o

quando ele retornou

à

à

A lem anha e

à

Rússia. Mas

Rússia, não havia nada tão rigorosa­

mente “político” , no sentido maquiavélico, quanto sua con ­ quista do poder. A tom ada do poder por um partido com unista é prepa­ rada por uma luta puramente política no seio de uma socie­ dade norm alm ente política. E lá que ele treina nas táticas que coloca em prática depois da vitória do partido. A quela, por exem plo, cham ada “tática do salam e” , que consiste em fazer alian ças com forças p o líticas n ão-com u n istas, de maneira que force o aliado a participar na elim inação dos adversários: primeiro, a “extrema direita”, com a ajuda de toda a esquerda; depois, a fração moderada dessa esquerda e, assim, sucessivamente, até a última “fatia”, que deve se sub­ meter e “fundir-se” sob pena de ser, por sua vez, eliminada. Esse profissionalism o, que inclui a astúcia, a paciência, a racionalidade, quanto ao objetivo buscado, faz a superiori­ dade do leninismo. M as se trata apenas de destruição, e a construção é impossível porque esse objetivo é insensato. Tom ado uma espécie de ditador, mas sem poder tomar consciência disso, Lenin continuava a pôr sobre suas situa­ ções mais instáveis suas categorias fantasm áticas e, em con ­ seqüência, tom ava suas decisões. A prática com unista não segue uma inspiração estética, mas procede a cada instante de uma deliberação “cien tífica”. A falsa ciên cia copia da verdadeira seu caráter dem onstrativo e seus procedimentos lógicos. E apenas torna mais louca a empresa, mais im placá­ vel a decisão e mais difícil a correção, pois a falsa ciência, que não é empírica, impede que se constatem os resultados da experiência.

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Pouco a pouco, a destruição se am plia e se tom a total, igualando-se, para retomar a fórmula de Bakunin, à vontade de criação. Ela seguiu na Rússia seis etapas. Primeiro, a destruição do adversário político: órgãos do governo, da antiga adm inistração. Isso se fez num piscar de olhos, logo em seguida ao putsch de outubro de 1917. D epois, a destruição das resistên cias sociais, reais ou potenciais: corpos organizados, partidos, exército, sindica­ tos, coo perativas; corpos culturais, universidade, escola, academ ia, igreja, editora, imprensa. N o entanto, o partido se dá conta de que o socialism o nem sempre existiu com o sociedade livre e auto-regulada, e que a coerção é, mais do que nunca, necessária para fazê-lo surgir. M as a doutrina prevê que há apenas duas realidades o socialism o e o capitalismo. É nesse m om ento, então, que a realidade se confunde com o capitalism o, e que é preciso, terceira etapa, destruir toda a realidade: a aldeia, a família, os restos da edu cação burguesa, a língua russa. É preciso estender o controle sobre cada indivíduo tornado solitário e desarm ado pela destruição de seu sistem a de vida, levá-lo para um novo sistema em que ele será reeducado, recondi­ cionado. Eliminar, enfim, os inimigos escondidos. O fracasso da construção do socialismo no interior vem do ambiente externo hostil. Pela sua simples existência, ele é uma ameaça, quaisquer que sejam as cores desse espectro hos­ til: democracia burguesa, socialdemocracia, fascismo. E pre­ ciso, então, quarta etapa, criar em cada país organizações de tipo bolchevique (os partidos comunistas), com um organis­ mo central para coordená-los e adaptá-los ao modelo central, o Kom intem . Quando, valcndo-se das circunstâncias, o co­

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munismo pôde se estender, as novas zonas agregadas ao “cam ­ po socialista” conheceram etapas análogas de destruição. Porém, em toda a extensão do campo, o partido (pela voz de Stalin ) constata que “o capitalism o está mais forte que nunca”. Ele se infiltra e se estende no próprio partido, que perde a sua virtude. C abe então ao líder do partido, e apenas a ele, destruir o partido (quinta etapa), para recriar um outro com seus restos. Essa perigosa operação requer um a prom oção do carism a do líder que o assem elh a ao Führer nazista. U m a vez concentrado em sua pessoa o espí­ rito da história, com o o outro espírito da “raça” , ele pode se permitir, em um esplêndido isolamento e em uma relação “d ireta” com as m assas, liquidar o seu carrasco coletivo. Stalin fez isso uma vez, não sem imitar H itler e a sua “noite dos longos pu n h ais” . Ele se preparava para fazê-lo uma segunda vez (e tam bém deportar o con jun to dos judeus) quando a morte o surpreendeu. M ao Zedong fez duas vezes, no mom ento do “grande salto para a frente” e, depois, mais nitidam ente ainda, na Revolução Cultural.

Usura e autodescruição N a lógica pura dos dois sistemas levada ao limite está con tido o exterm ínio de toda a população da Terra. M as essa lógica não se aplica e não pode se aplicar até o fim. O princípio do com unism o é o de subordinar tudo à tom ada e conservação do poder, pois é ao poder que cabe a responsabilidade de realizar o projeto. Para con servar o poder, é preciso poupar o que é necessário à subsistência.

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M as as destruições causam um tal desgaste que o poder do partido corre o risco, não de enfrentar uma revolta geral, porque sabe preveni-la, mas de ver desaparecer a m atéria hum ana sobre a qual ele se exerce. E o que aconteceu no final do “com unism o de guerra”: a Rússia se fundia, se liqüe­ fazia quando Lenin decretou a trégua da N ER Enquanto a revolução não vence em escala mundial, o mundo exterior, mesmo reduzido a uma ilhota minúscula, é uma am eaça mortal. Por sua simples existência, ele corre o risco de fazer explodir a bolha de sabão da ficção socialista; e pouco importa que ele seja verdadeiramente hostil, como ele só foi uma vez com Hitler, ou que ele queira apenas a tranqüilidade e o statu quo, como desejou o O cidente depois da derrota do nazismo. Para manter o mundo real a distân­ cia, para eventualm ente destruí-lo, é preciso uma força real à disposição do partido, e esta só pode ser tirada da realida­ de que ele controla. Ele tem necessidade de um mínimo de econom ia real para nutrir a população de um m ínim o de tecnologia e de indústria para equipar o exército. Subsistem então produtores, técnicos, cientistas. O partido não pode fazer passar para o outro lado do espelho tudo o que ele é, pois seria vítim a do nada que ele mesmo produziu. Enfim, a última etapa, a destruição do próprio partido, colide com os reflexos vitais de sobrevivência. Depois dos grandes expurgos de Stalin e de Mao, o partido define algu­ mas garantias e medidas conservadoras. N ão se matam mais comunistas, eles apenas caem em desgraça. N a Rússia, tudo isso levou à decadência do sistema. O partido envelheceu, porque a conservação do poder termina por se identificar com a conservação dos postos e dos cargos.

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A s táticas colocadas em prática em tempos dramáticos só ser­ vem para isso. Brejnev apodrece lentamente na direção m áxi­ ma. O partido se corrompe: ele não se dedica mais aos objeti­ vos do comunismo, mas quer usufruir do poder e desfrutar das riquezas. Ele sai da irrealidade e entra na realidade devastada por sua ação, onde só encontra, em abundância, mercadorias vulgares, que nem a arte consegue embelezar, como a vodca, as datchas e as grandes limusines. Q uanto ao povo, este se atola na porção da realidade que lhe foi sempre concedida, se vira como pode, se desinteressa de um regime que não lhe ofe­ rece mais a consolação da queda dos poderosos e a oportuni­ dade de substituí-los. A degradação geral chega a um limite. Quando um piparote aleatório faz desabar o castelo de cartas, que poderia ter desabado m uito antes ou m uito depois, descobre-se uma paisagem pós-comunista: m afiosa e semiindolente, esgotada em sua energia, até para se recordar. N a C h in a , os so brev iven tes dos expu rgos m ao ístas tomaram um cam inho diferente. A s necessidades do poder puro se misturaram aos cuidados de desenvolver o poder da C h in a enquanto tal, e o com unismo morto é infiltrado pelo n acio n alism o vivo. C o n tem p o rân eo s da d ec ad ên c ia do sovietismo, eles lamentaram ter seguido um m odelo errado de desenvolvim ento, enquanto que outras partes do mundo ch in ês, e em sua periferia, tinh am segu ido um m odelo melhor. D aí o caráter am bíguo da C h in a atual, em pleno desenvolvim ento, mas sem que o partido abandone seu pro­ jeto e sem que se saiba se esse partido ainda é com unista. A s circunstâncias fizeram restar apenas um regime com unista puro, que, até hoje, preferiu a lógica do auto-aniquilam ento: a C oréia do Norte.

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N ós não sabem os com o teria evoluído o nazismo. Ele não chegou a seu clím ax. Foi derrubado nos primeiros pas­ sos de sua expan são. A ordem de suas destruições n ão é aquela que seguiu o com unismo soviético. Ele se voltou para a realidade externa antes de ter terminado com a sociedade alemã. Enquanto a U R S S preferia a subversão organizada, o desencorajam ento program ado do inim igo “externo” , e o Exército Verm elho chegando som ente para selar a vitória política, o nazismo, por seu lado, recorreu im ediatam ente à guerra. A guerra acelerou de modo formidável o programa nazista, m as su scitan d o uma resistên cia m undial rap id a­ mente vitoriosa. A s características do nazismo permitem eventualm ente imaginar que H itler teria podido chegar a uma paz de com ­ prom isso, que lhe teria deixado uma área vasta e estável. Nesse caso, morto o Führer, o regime teria se com portado de form a an áloga à do regim e leninista. Leszek K olakow ski pôde escrever um opúsculo sobre esse tema. Ele imaginou um artigo do New York Times, redigido nos anos 80, no esti­ lo dos artigos que no mesmo m om ento esse jom al publicava sobre a U R S S de Brejnev. O jornalista felicitava-se da ate­ nuação dos costumes políticos e dos progressos notáveis do nazismo com fisionom ia humana. C ertam ente as brutalidades daquela época eram deploráveis, principalm ente o trata­ m ento muito cruel reservado aos judeus. M as isto pertencia a um passado já muito distante e não devia permitir esque­ cer brilhantes realizações pelas quais era necessário dar cré­ dito a um regime em vias de normalização...

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N a usura e no fracasso dos regimes totalitários, o fator externo é inegavelm ente importante. Ele foi decisivo no caso da A lem anha nazista, esmagada por vários exércitos. Em contrapartida, raramente o mundo “capitalista” consti­ tuiu perigo para os regimes comunistas. O nazismo aumen­ tou a legitim idade do com unismo aos olhos do O cidente. Durante a época da cham ada “guerra fria”, a política do roll back foi imediatamente afastada a favor daquela do contaiU' ment. Essa opção não impediu vastas expansões territoriais com unistas na Á sia, na África, até na Am érica. Finalmente, o único ponto do mundo em que o comunismo foi derruba­ do da maneira com o o foi o nazismo, por uma invasão m aci­ ça devidam ente organizada, em meio, é verdade, a um con ­ certo de protestos de algumas potências não-comunistas, foi a minúscula ilha de G ranada.

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Capítulo IV

TEOLOGIA

Este é um ponto da investigação em que é preciso deixar a análise histórica, caso se queira fazer justiça à experiência dos homens. De fato, diante do excesso de iniqüidade, eles sentiram que seu coração vacilava e que a razão soçobrava; que faltava um precedente histórico; que eles estavam dian­ te de uma espécie nova e desconhecida. A maior parte das grandes testem unhas deste século X X gritaram aos céus. Alguns estimaram que ele estava vazio; outros, que se pode­ ria suplicar-lhe, jurar-lhe, esperar. N a realidade, quando se lê Orwell, Platonov, A khm atova, M andelstam , Levi, ad iv i­ nha-se que essas duas respostas ao desafio metafísico coabitam ou altem am-se obscuramente nas mesmas almas.

O mal Plotino definia o mal com o “a privação do bem ” . O s escolásticos precisaram : a privação de um bem devido. A cegueira, por exem plo, é um m al, porque faz parte do homem o direito de ver. Se ele é incapaz de ver o invisível, apesar de ter bons olhos, ele não pode se lamentar, pois a

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vista não é feita para ver as coisas mais além de um cam po limitado. A idéia é então de que o mal se define negativa­ mente. Ele é puro nada, um vazio no ser. Parece-me que essa definição não dá conta suficientem ente do horror que se apoderou das pessoas diante do que o comunismo e o nazis­ mo lhes infligiram. O que causava esse horror era menos o mal do que, prin­ cipalm ente, a vontade do mal. O homem quer naturalm en­ te ser feliz. Su a vontade está normalmente voltada para o que ele considera com o seu bem. C om o sua im aginação é curta, não custa imaginar - e os filósofos mais antigos expli­ caram-no - que o homem se engana facilm ente sobre o que é o seu bem, que ele comete atos ruins porque ele não vê o que isso pode lhe custar. A o roubar, se busca evidentem en­ te um bem, a violação produz prazer, matar apazigua a cóle­ ra, mentir permite sair de uma situação embaraçosa. É pre­ ciso, porém, pagar um preço. N o entanto, nós reencontra­ mos uma outra categoria de atos que não são seguidos por nenhum prazer im aginável pelo homem comum, atos que parecem desum anam ente desinteressados. A queles que os praticam parecem atraídos pela pura transgressão da regra. Eles causam medo porque não são compreendidos, parecem estar alheios à humanidade comum. Com preendem os mui­ to bem o ladrão, o violador, o assassino, porque encontra­ mos em nossa alm a pontos de ressonância, e não é necessá­ rio adentrar-se profundamente em nós mesmos para encon­ trarm os em algum grau a avidez, a luxúria, a violên cia. Porém, diante deste tipo de atos, ficam os desconcertados com o ficaríamos diante de um milagre, um milagre ao con ­ trário, uma exceção negativa às leis comuns da natureza. O

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homem deseja seu bem, mas não há lá nenhum bem conce­ bível. E porque aqueles que sofreram o com unism o ou o nazismo, ou que apenas o estudaram com alguma aplicação, foram perm anentem ente perseguidos pela indagação: por quê? Por que com prometer o esforço de guerra, dispender dinheiro, sobrecarregar os transportes, mobilizar soldados para irem descobrir num celeiro uma menina judia escondi­ da apenas para assassin á-la? Por que, quando não existe nenhum a op osição organizada, tudo estan do subm isso e obediente, prender milhões de pessoas, mobilizar o aparato policial e judiciário para fazê-los confessar crimes inim agi­ náveis e m anifestam ente absurdos e, uma vez que confessa­ dos, reunir o povo para fazê-lo representar a com édia da indignação e obrigá-lo a participar na execução? Por que, na véspera de um a guerra program ada, fuzilar a m etade do corpo de oficiais generais? M as o que parecia ainda mais incom preensível é que esses crimes enormes e ineptos eram cometidos por homens medíocres, e até particularmente medíocres, mediocremente inteligentes e morais. Encontravam-se às vezes na im en­ sa m assa de ex ecu tan tes in dividu alidades perversas por caráter, sádicos que sentiam prazer em fazer sofrer. Eram a exceção. C om o os perversos certamente prosperavam, eles eram utilizados para certas tarefas, m as só até um certo ponto; no m ais, eram afastados em nom e da disciplin a e algumas vezes até punidos. Em seu desejo de compreender, as vítimas não podiam mais apegar-se à explicação da per­ versidade de que o homem é capaz e freqüentemente porta­ dor. Era preciso ir mais alto, na direção do “sistem a”. M as a racionalidade, ainda que delirante, do sistema era desm en­

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tida por essas ações autodestrutivas que iam contra o inte­ resse do projeto. É por essa razão que a personalidade criminosa de alguns dirigentes - sobretudo Stalin

restituindo-lhes uma certa

parte de humanidade, contava a seu favor e lhes valia uma certa gratidão: dava uma certa explicação e restabelecia uma certa coerência. Porque a história oferece numerosos exem plos de tiranos criminosos; havia então precedentes e nada de novo sob o sol: a angústia diante do desconhecido ficava atenuada. N o entanto, os mais lúcidos sabiam que o pretenso tirano não era o único, pois ele não agia em função de seu interesse particular. Ele próprio era tiranizado por algo de caráter superior. Era necessário concluir, então, que o crime estava encadeado à loucura. M as não se tratava de uma loucura normal, com o aquela que vem os nos tiranos loucos, porque a loucura comporta um elem ento aleatório e afeta zonas em que o repouso e o jogo podem se alojar. Assim , os romenos ficaram por um momento aliviados pelas trapalhadas do casal Ceausescu. Mas, nos piores momentos, a loucura ideológica criou um bloco com pacto, sem o menor interstício em que se refugiar, e tudo andava mal.

O demônio e a pessoa Foi assim espontaneam ente que espíritos, mesmo pouco religiosos, eram tentados a olhar por cima da ordem hum a­ na inteligível e entrever a direção superior de uma ordem diferente. N ão era só o peso da injustiça, a proximidade do mal, mas também a impotência de referi-los ao que quer que

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fosse de conhecido que os levava a interrogar os céus. Eles eram levados a isso, porque os dois regimes professavam um ódio ativ o con tra todas as religiões que honrassem uma ordem divina diferente daquela estabelecida pelos homens. O nazismo odiava o Deus de A braão; o com unism o, todo tipo de deus e particularmente aquele Deus. A organização religiosa dos países conquistados foi sempre imediatamente modificada. Ela foi liquidada (a A lbânia proclamou-se o pri­ m eiro país ateu do m undo), freqü en tem en te reduzida à servidão e pervertida. Cristãos, judeus, muçulmanos, budis­ tas, taoístas, confucionistas foram perseguidos com o tais, e a perseguição não foi temporária, mas perm anente. Ela não tinha nenhuma utilidade política, sendo antes uma loucura inconveniente, que durou até o último dia. Foi assim que vários mártires desses regimes encararam a ação de uma ordem sobre-humana, “angelical”, capaz de exercer um poder direto. Um poder que não passaria verda­ deiram ente pela m ediação da vontade ruim dos hom ens, mas que os levaria a agir à sua revelia de forma que eles não soubessem, talvez apenas confusamente, o que faziam. Que adormeceria o senso comum e a consciência moral, e trans­ formaria o homem, submetido a um tipo de encantam ento, em uma marionete da qual ele puxaria os fios. N essa intui­ ção, o últim o tirano não é nem H itler, nem Lenin, nem M ao, mas o Príncipe desse mundo em pessoa. Em pessoa: a palavra é ambígua. Boécio deu uma defini­ ção da pessoa que tem servido muito: “uma substância individuada de natureza racional”. N essa linha teológica, podese estimar que essa substância criada, se ela perde sua orde­ nação a seu Criador e a seu próprio fim, sofre contradições

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que a mutilam ou decompõem. Pode-se especular, dado que não se sabe nada de positivo sobre o mundo angelical, que a substância do anjo ruim, por causa de seu nível superior, é muito mais devorada do que a do homem dom inado pela vontade ruim. O ato de aniquilam ento que ele provoca se realiza primeiro sobre si mesmo, de forma que sua substância - que para nós, os hom ens, evoca uma natureza positiva, indestrutível, arruinada, mas não destruída pelo pecado - se reduz progressivamente à sua pura vontade do mal. Em razão da capacidade de mal superior de que ele é dotado, o que subsiste nele de cúmplice natural, a pessoa, tenderia assintoticam ente para a impessoalidade. A pessoa angelical decaí­ da suportaria o m áxim o possível de impessoalidade. Especulação, sem dúvida, mas ela dá razão à noção de pessoa impessoal que se encontra tão universalmente na lite­ ratura das testemunhas, sufocadas pelo tédio, pela pobreza, pela banalidade daqueles que as fazem sofrer, morrer, com o pela impessoalidade de toda a hierarquia do poder, incluída até m esmo sua cúpula. Elas ficavam assim assustadas pelo contraste entre o incrível poder de destruição desses apare­ lhos, de uma maravilhosa engenhosidade, capaz de entrar no maior detalhe, e seu incrível poder de organizar, de construir ou simplesmente de deixar existir as coisas mais humildemen­ te necessárias à vida, até para sua própria perdurabilidade. Qu e m tem o poder no regim e nazista ou com u n ista puro? Esta simples pergunta, à qual pareceria mais fácil de responder em relação a não importa que regime, porque o possuidor de todos os poderes é visível em todos os lados, até mesmo de uma visibilidade obsessiva - o Führer, o Secretário-Geral, o Partido - , constituía um profundo enigm a para

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aqueles que eram capazes de uma profunda reflexão filosófi­ ca: Jünger, Platonov, Orwell, Milosz, Zinoviev... Eles deixa­ ram entender o que as almas religiosas - M andelstam, Akhmatova, Bulgakov, Rauschning, Herbert, Soljenitsyn - pro­ clamaram: é o diabo! Era ele quem comunicava a seus súditos sua inumana a impessoalidade. Dostoievski e Vladimir Soloviev tinham tido antecipadamente a intuição. N ão fazer refe­ rência a esse personagem seria não ouvir fielmente todas essas testemunhas, m antendo a consciência da reserva em que nós devemos nos manter em relação ao centro misterioso que eles chamaram dessa maneira e cuja proximidade conhecem por experiência e por evidência.

A salvação N ada m arca mais o traço bíblico no com unism o e no nazism o que sua vontade com um de salvar o m undo, in ­ cluindo nos meios de salvação a supressão de qualquer traço bíblico. N as religiões “pagãs”, a ordem natural contém em si m esm a a idéia divina e basta para fazê-la conceber. Ela é eq u iv alen te à ordem d ivin a. B asta co n tem p lá-la, teconhecê-la, imitá-la. A filosofia antiga - e, tanto quanto eu saiba, a hindu e a chinesa - não prometia uma salvação uni­ versal, só aquela de uma pequena elite através de exercícios espirituais longos e difíceis, ao final dos quais a pessoa se tornava apta a viver feliz, em conformidade com a natureza, suas estruturas eternas. A idéia de salvação, enquanto supõe um “ êx o d o ” em relação ao m undo, ou ain d a a idéia de “mudar” o mundo em sua totalidade, lhe são inconcebíveis.

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A salvação m arxista-leninista é otimista. Ela é com pa­ rável à salvação anunciada pela profecia bíblica. Seu objeti­ vo é superar a natureza com o ela é, o homem com o ele é; chegar a um tempo messiânico de paz e de justiça, em que o lobo conviva com o cordeiro, em que as disciplinas e as frus­ trações do casam ento, da família, da propriedade, do direi­ to, da penúria sejam abolidas. Finalmente, é a própria morte que é vencida: houve devaneios sobre esse tem a no com eço da revo lu ção bolch eviqu e, alim en tad os por um certo Fedorov, um quim érico da ressurreição científica dos corpos e da imortalidade. “O homem novo” , produto do socialis­ mo, é um tipo de corpo glorioso tal com o a profecia o entre­ vê. E sua salvação está nas mãos do homem. Ela é obtida por meios políticos. Non Domino sed nobis. A penas uma pequena minoria acredita hoje na existên­ cia dos m andam entos divinos. Se ela ainda acredita nisso com o acreditavam muitos judeus e cristãos que mais tarde se tornaram - deveria ver no primeiro piscar de olhos a contra­ dição entre o progresso de que o homem assume a direção e a lição bíblica. O conceito de progresso, entendido no sen­ tido de uma transformação em profundidade do ser hum a­ no, sob a ação da h istória ou de um a vo n tad e políticohistórica, não pode ser aceito, pois ele faz depender da ação p o lítica uma transform ação que, segundo a B íblia, só se deve a uma graça divina. Q uando o que só é possível pela ação divina se tom a o objetivo da ação hum ana, esta visa realizar o impossível. A ação violenta contra a natureza fra­ cassa e logo se transforma em destruição da natureza e, com ela, do humano. Pelágio pensava que, numa certa medida, o homem poderia salvar a si próprio, pela força de vontade e

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de ascese. S an to A gostin h o estim ava que o pelagiano se oprimia sem com isso melhorar. Assim fazia o “herói positi­ vo” da lenda bolchevique. De fato, ele piorava, pois o pela­ gian o p en sav a atin gir a virtude, n o sen tid o com um do termo, e o herói positivo uma virtude definida pela ideolo­ gia, isto é, um vício. A lém disso, o velho pelagiano não visa­ va, da mesma forma que a filosofia antiga, senão a um pro­ gresso individual. O novo é coletivizado. A transferência ao poder político da idéia pelagiana é mais destruidora, pois é o outro, enfim, são todos os outros, que serão corrigidos pela educação, se necessário pela reeducação, em um muro cer­ cado por arame farpado. A salvação nazista é pessimista. Ela requer superar as ilu­ sões introduzidas na humanidade pelo veneno bíblico, e par­ ticularmente evangélico, fruto do “ressentimento”. Trata-se de retornar a uma ordem natural concebida na luz negra do tragicismo romântico: reencontrar a pureza original da terra e do sangue, corrom pida pela sociedade m ercantil e tecnicista e a mistura bastarda das raças. O apelo do nazismo se dirige aos heróis que aceitam morrer, àqueles que renuncia­ ram à ilusão da verdade e da justiça e que estão prontos para seguir até o fim a vontade da raça, do Volk, encarnada no líder. O super-homem é um cavaleiro impassível, leal, vence­ dor ou vencido, mas sempre nobre e belo. N ós já vimos sufi­ cientemente que o ideal desembocou num regimento de S S descerebrados, em uma hierarquia de indolentes coroada por um demente, em uma guerra maluca de aniquilamento. A s duas doutrinas opostas compartilham ainda assim a idéia de uma salvação coletiva advinda da história - idéia bíblica - , se opondo ao a-historicismo dos filósofos antigos.

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hindus e chineses. Nesse esquema, as duas doutrinas junta­ ram uma coleção de noções tiradas das ciências naturais, das ciências históricas, transformando o imenso saber acumulado pelo século X IX em um automatismo mental de uma pobreza sobrenatural. De fato, não é algo, em conform idade com a natureza da inteligência humana, que esses dois sistemas in­ sanos possam se apresentar como sendo seu produto. N ão se pode explicar que tantos espíritos normal e às vezes superior­ mente constituídos - professores, cientistas, pensadores c a­ pazes e eminentes - tenham sofrido uma paralisia e um des­ vio similares do senso comum. A s explicações pela psiquia­ tria são tão metafóricas quanto a imagem empregada a propó­ sito do nazismo, aquela do flautista de Hamelin. Mas, ao evo­ car essa lenda, estamos bem próximos de citar aquele que está por trás do flautista, aquele que, segundo as Escrituras, é o “pai da mentira” , “homicida e mentiroso desde o com eço”.

"Biblismo” nazista Afirma-se que G obineau e Nietzsche, de quem às vezes os nazistas reclamavam, não eram anti-semitas. De fato, eles faziam profissão de fé de adm iração pelos judeus, porque estes eram um a “ raça su perior” , um a “ a risto c rac ia” (G ob in eau ); porque eles não se dissolviam n a m assa dos “últimos hom ens” engendrados pela dem ocracia, porque o anti-sem itism o era no máximo uma vulgaridade dem ocráti­ ca (Nietzsche). N ão é necessário aprofundarmo-nos muito para adivinhar, sob a aparência de adm iração, a inveja, o ciúme. N o nacionalism o alemão, a exaltação da nação e do

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povo assume ou im ita a forma da eleição providencial do povo judeu. E uma eleição que não deve nada à providên­ cia, mas que é um produto da história e da natureza, e faz com que o p o vo alem ão receb a a h eran ça pan -h u m an a transmitida pela sucessão dos povos. O nacionalism o russo contentou-se em transpor aos eslavos e ao povo russo o que era prometido aos germanos e aos alemães. Porque são a natureza e a terra que fazem a eleição, é coerente que o povo judeu seja a negação viva da natureza e da terra. E o que sublinha o jovem Hegel; “O primeiro ato pelo qual A braão se torna o pai de uma nação é uma cisão que dilacera os vínculos entre a vida comum e o amor, a totali­ dade dos vínculos das relações nas quais ele viveu até ali com os hom ens e a natureza.” “A braão era um estranho na Terra [...]. O mundo inteiro, seu oposto absoluto, era m anti­ do vivo por um Deus que lhe era estranho, um Deus de que nenhum elem en to da natureza d ev ia particip ar

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som ente graças ao Deus que ele entraria também em relação com o mundo [...]. Era impossível para ele não amar nada.” “H avia no Deus invejoso de A braão e de sua descendência a exigência espantosa de que ele e sua nação fossem os úni­ cos a ter um Deus.” Sua relação com Deus suprime os judeus da hum anida­ de. Eles não podem pertencer a nenhuma comunidade, pois o sagrado, por exem plo, o eleusiniano, dessa com unidade lhes é eternamente estranho, “eles não o vêem nem o sen­ tem ” . Eles não participam tam pouco do heroísm o épico. “N o Egito, grandes coisas foram realizadas para os judeus, mas eles mesmos não empreenderam ações heróicas; por eles.

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Egito sofreu todo tipo de calamidades e de misérias, e foi

em meio a essas lam entações universais que eles, expulsos pelos infelizes egípcios, se retiraram, embora só sentindo a alegria maligna do covarde cujo inimigo se acha aniquilado sem que ele mesmo intervenha.” Seu último ato no Egito é também um “roubo”.' H egel considera intolerável a pretensão dos judeus à eleição, a absoluta dependência que eles confessam em rela­ ção a um Deus que ele julga, por seu lado (pelo menos em sua ju ven tu de, porque depois ele ev o lu iu ), estran h o ao homem, inimigo de sua nobreza e de sua liberdade. O espí­ rito de A braão, porque ele continha a idéia desse Deus, faz do judeu “o único favorito”, convicção de que também é a raiz de seu “desprezo pelo mundo inteiro”. Escravos procla­ mados de seu Deus, os judeus não podem ter acesso à digni­ dade do homem livre: “O s gregos deviam ser iguais porque são todos livres; os judeus, porque são todos incapazes de independência.” E por isso que Hegel, abertamente adepto de M arcião, considera o Deus dos cristãos com o fundam en­ talm ente diferente do Deus judeu: “Jesus não com batia só uma parte do destino judeu, pois ele não tinha vínculo com nenhuma parte dele, opondo-se a ele em sua totalidade.” Hegel traduz, no tom da grande filosofia, sentimentos, conscientes ou não, que existem na alma pagã quando ela é colocada na presença do mistério sobrenatural de Israel, que ela sente, de fato, com o estranho, inimigo de toda natureza; que existem tam bém nas alm as batizadas. Esses obscuros

' G . W. Hegel, UEsprit du christianisme et soti destin. Paris, Vrin, 1971, pp. 626 passim.

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afetos foram bem mais conceitualizados pelo pensam ento alem ão do que pelos outros. Harnack, que foi a grande auto­ ridade teológica da A lem anha wilhelmiana e do protestan­ tismo liberal europeu, fez, na Universidade de Berlim, dian­ te de todos os estudantes, conferências reunidas sob o título A essência do cristianismo. Esta essência se desenvolve em quatro grandes m omentos históricos: o m om ento judeu, o m om ento grego, o m om ento latino e, enfim, o m om ento alemão, que é a realização mais pura.^ Ele escreveu um livro a favor de M arcião, não hesitou em fazer um paralelo com M artin Lutero, o fundador do “cristianism o alem ão” . O s russos, por seu lado, produziriam uma abundante literatura sobre o cristian ism o russo, o C risto russo, até m esm o a Rússia-Cristo. Léon Bloy e Péguy reclamam para a França um privilégio de preferência da parte de Deus. N o entanto, neste país, a tem ática antijudaica não foi orquestrada pelos grandes espíritos, só pelos medíocres. O dram a foi que ela se instalou nas almas ruins e de­ m entes dos líderes nazistas. Eis H itler, caricaturizando Hegel diante de Rauschning^: “O judeu é uma criatura de um outro Deus. É preciso que ele tenha saído de uma outra origem humana. O ariano e o judeu, eu os oponho um ao outro e, se eu dou a um o nome de homem, sou obrigado a dar um nome diferente ao outro. Eles estão tão afastados um do outro quanto as espécies anim ais da espécie hum ana. N ão que eu cham e o judeu de animal. Ele está muito mais

2 Adolphe Harnack, L ’Essence du christianisme, Paris, Librairie Fischbacher, 1907. 3 Hermann Rauschning, Hitler m’a dit, Coopération, Paris, 1939, p. 269.

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abaixo do anim al do que nós, arianos. É um ser estranho à ordem natural, um ser fora da natureza.” R auschn in g afirm a ain da a esse respeito: “N ão pode haver dois povos eleitos. N ós somos o povo de Deus.” E pura retórica, pois H itler era absolutamente ateu do Deus judeu e do Deus cristão. M as mostra como o anti-semitismo deliran­ te de H itler se adapta bem à forma bíblica de uma perversa imitatio da história sagrada judaica. O povo ariano, eleito, a raça germ ânica escolhida purifica a terra alem ã com o Israel purificou a terra de C anaã. É a primeira etapa da história da salvação. A segunda é a elim inação do cristianismo judaizado, que leva ao cúm ulo a covardia judaica e o abastardamento dem ocrático. A terceira é o triunfo das almas m agnâ­ n im as, que poderão a rigor referir-se a um cristian ism o germanizado ou, melhor ainda, aos velhos deuses do pan ­ teão natural pré-cristão. N ietzsche e W agner, depois de terem passado pela centrifugadora da ideologia nazista, poderiam ser propostos, m utilados, torn ados selvagen s, embrutecidos, com o os padroeiros da nova cultura.

"Biblismo” comunista Se o nazismo oferece uma farsa do A ntigo Testamento, o com unism o oferece ao mesmo tem po a do A n tigo e do N ovo. A perversa imitatio do judaísmo e do cristianism o, que faz parte do seu “charm e”, é um fato tão reconhecido que bastam algumas palavras para caracterizá-lo. Esta ideologia propõe um mediador e um redentor. O “proletariado” , o “explorado”, aquele que não tem nada, vai

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abrir ao mundo a porta de sua libertação. Ele é para as outras classes o que Israel é entre as nações, o que o “resto de Israel” é para Israel. Ele é o servidor de Isaías que sofre e é o Cristo. Ele é o fruto da história naturalizada, com o o outro é a his­ tória sagrada. O comunismo é, sob diversos aspectos, sedutor tanto para o judeu com o para o cristão que crê reconhecer a boa nova anunciada aos pobres e aos fracos. Ele é um univer­ salism o, porque nele não há m ais nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre, nem homem nem mulher, tal com o prometeu São Paulo. Ele abole as barreiras n acio­ nais, o que eqüivale à salvação prometida às “nações”. Ele contribui para a paz e a ju stiça do reino m essiânico. Ele supera o regime do interesse, termina com “as águas glaciais do cálculo egoísta”. O amor puro de Fenelon e o desinteres­ se kantiano vão desabrochar nesse clim a novo. O com unism o prom etia aos judeus a supressão da carga dos m an dam en tos, do ód io da T orá, d a segregação das nações. Ele lhes tirava o peso de ser judeu. Suprim ia tam ­ bém, de fato, as causas perm anentes da opressão. Era uma alternativa à vida judaica que não era uma passagem ao cris­ tianism o e ao islamismo, igualmente desprezados, e que não os protegia, porque a marca judia subsistia depois da conver­ são, com o a história havia demonstrado. O com unism o era en tão um a entrada em um mundo novo, sem no en tan to haver lugar para pagar uma traição ou uma apostasia for­ mais, porque o objetivo religioso da Torá, a paz e a justiça, era supostam ente garantido e porque a comunidade poderia continuar existindo idealm ente, de forma que o nom e de judeu pudesse ser usado sem pudor, não im plicando respon­ sab ilid ad e e ob rigaçõ es particulares, m as sim plesm en te

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com o a marca de uma origem gloriosa, pois, pela opressão, ele estava aparentado com o “proletariado”. Enfim, a passa­ gem ao com unism o - estamos tentados a dizer: o Êxodo poderia parecer a realização da em ancipação e da secularização, cujo élan era, há um século, irresistível. Os cristãos, por seu lado, eram diretamente intimados a renegar a sua fé em Deus. Mas ela estava, com o uma fruta madura, a ponto de cair. Diante das vagas de assalto que se sucediam desde o com eço do lluminismo, a fé tinha cada vez mais dificuldade em conservar um status defensável em term os racion ais. N en hum outro grande espírito, desde Leibniz, se apoiava na autoridade dos dogmas, nem buscava a verdade aprofundando-se neles. Se grandes autores ainda confessavam a fé cristã, ou, como K ant e Hegel, lhe davam uma interpretação racional no m arco de seu sistem a, ou, com o Rousseau, Kierkegaard e Dostoievski, admitiam a sua com pleta irracionalidade. O u ainda pensavam deduzi-la das necessidades da moral, da ação prática, das obras. M as ela era desalojada desse último refúgio pela idéia com unista, que tinha bons argumentos para acusar o cristianismo de ser o ópio do povo, de ser uma fuga ilusória, um consolo im po­ tente diante de um estado de injustiça de que a fé cristã, por sua simples existência, era cúmplice. U m a importante parte do pensam ento cristão, durante todo um século, de Lamennais a Tolstoi, e para além deles, era muito mais tentada a se fundir com o h u m an itário do que a ap resen tação deste com o mais verdadeiramente cristão e anim ado por um entu­ siasmo e um fervor que tinham desaparecido da religião tra­ dicional. Tornar-se com unista dá o sentim ento de realizar, de forma enfim realista, o mandam ento de amor ao próxi­

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mo, enquanto a razão era garantida porque agora ela era res­ tabelecida na base certa da ciência.

Heresias A religião cristã é instável desde o seu nascimento. Ela abriga um conjunto de dificuldades, uma massa de motivos de dúvida, e tem necessidade de um esforço constante para manter seu equilíbrio. M as raramente as crises que apare­ cem sucessivam ente ao sabor das circunstâncias históricas obedecem a esquem as regulares já con h ecid os. H á, no com um dos cristãos, corredores de avalan ch e que foram seguidos desde os primeiros séculos da nossa era e que sem ­ pre perm anecerão ali. A s grandes heresias inaugurais são retom adas com outras roupagens por corren tes que se julgam novas e por pessoas inconscientes de seguirem ten­ dên cias an tigas. E las não sabem que estão trilh an do os cam inhos dos heréticos de que eles ignoram o nome e, mais ainda, o parentesco doutrinário que as liga a eles. N o caso que analisam os, os cam inhos heréticos estão entre os mais antigos do cristianismo: o gnosticismo, o marcionism o e o milenarismo. O gnosticismo, na verdade, não é especificamente cris­ tão. Ele é parasita tanto do judaísmo quanto do islamismo. Ele ocupa um dom ínio tão vasto que não posso abordá-lo aqui de outra forma senão por alusão. O marxismo-leninismo é, antes de tudo, eu já o afirmei, uma visão central do mundo natural e histórico, polarizado entre um bem e um mal, que discernem e separam os iniciados no verdadeiro

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saber. S ão eles que fazem penetrar no espírito dos hom ens o conhecim ento salvador e fazem o mundo se mover na dire­ ção do bem definitivo. Essa estrutura-mãe está presente na maior parte dos gnosticismos, principalmente naqueles que, no tempo de C orinto, horrorizavam São Jo ão ou, nos tem ­ pos de Valentim, o Santo Irineu. Que esse núcleo gnóstico pretenda se apoiar, a partir de Marx, na ciência positiva, que perca sua luxúria mitológica, sua cor poética, e mesmo que caia na repetição prosaica de Lenin, isso não significa que ele tenha desaparecido. É verdade que muitos “cristãos pro­ gressistas” desejavam render-lhe homenagem por sua atitu­ de religiosa primitiva e tinham dificuldade em compreender por que o com unism o se considerava ateu de forma m ilitan­ te, enquanto que eles aprovavam a ação prática, o “método de análise”, como eles diziam, isto é, a teoria do conjunto. Outros terminaram aceitando este ateísm o por um tipo de “salto da fé” ao contrário, e como um sacrifício supremo que eles faziam à lógica de sua persuasão. O marcionismo, que é uma espécie do gênero do gnosticismo, pertence ao mundo cristão. Ele é um produto histó­ rico precoce (do com eço do século II) da separação conten­ ciosa da Igreja com a Sin agoga. M arcião estim ava que o D eus de A b raão , o Deus criador e ju sticeiro, n ão era o mesmo que o Deus do amor salvador de que Jesus era a em a­ nação. Ele tinha en tão arrancado do corpo escriturário o A ntigo Testam ento e a parte do N ovo que lhe estava dire­ tam ente vinculada. A revelação cristã se dissocia então da revelação mosaica, de que M arcião nega que ela tenha eta­ pas históricas que levaram à chegada do Messias. O messias de M arcião não encontra as suas provas, a sua genealogia na

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profecia b íblica. S u a legitim id ade está co n d icio n ad a ao valor da persu asão da “ m en sagem ” tirada ap en as do E vangelh o (aliás, depurado) e dos adendos d a m itologia gnóstica que o com pletam e guiam a sua interpretação. Esse C risto traz uma mensagem anticósm ica e antinom ista: uma m oral d iferen te, sublim e, h eró ica, p arado xal. E la tem a vocação de substituir a moral comum que os m andam entos b íblicos tin h am ratificado . O inferno tam bém , segundo M arcião, albergava os justos do A ntigo Testam ento, servi­ dores do Deus criador, enquanto que o Deus salvador rece­ bia em seu paraíso os sodom itas e os egípcios que tinham se recusado a aderir à Lei antiga. O s judeus, à luz desta heresia, representavam adequadam ente a figura do mundo extinto e da ética ultrapassada, obra do mau Deus. G nosticism o e marcionismo, sempre associados, jam ais deixaram de trabalhar a imaginação e de subverter o pensa­ m ento cristão. A in d a que con den ados a seu n ascim ento com o a pior das heresias, subsistiram com o uma tentação perm anente, saltando de um século ao outro e nunca tanto quanto no nosso. Eles foram o ponto fraco do ensino, uma fissura no terreno da fé, que perm itiram a tantos cristãos lançarem -se no gnosticism o político do com unism o e no m arcionism o frenético do nazismo. C om o estavam sempre intim am ente ligados, sua asso­ ciação provocou um novo ponto de contato entre o nazismo e o comunismo. N o gnosticism o com unista, o esquem a historicista su­ planta abertam ente o sentido bíblico da história, e tanto o Deus criador com o o Deus salvador são recusados: o prim ei­ ro sendo substituído pela história natural da hum anidade, e

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segundo pela ação voluntária do Partido. O assalto contra

a Igreja cristã foi então imediato e fez em poucos anos mais mártires do que os que ela tivera desde o seu nascim ento. M as todos os deuses e todas as religiões eram igualm ente inim igos, o que fez com que a Sinagoga fosse igualm ente atacada, assim com o a própria idéia de comunidade. O antisemitismo puro e simples sucedeu, desde o fim dos anos 30, ao antijudaísm o inicial. Depois de 1945, foi proibido distin­ guir os judeus entre as “vítimas do fascism o”, m encionar a Shoah, tolerar o sionismo a partir do m om ento em que ele se afirmou com o um movimento nacional independente. O com unism o é cium ento e não aceita “outros deuses diante de si” . O nazismo se concentrou na versão m arcionita do gnosticism o. Ele aceitou form al e provisoriam ente um outro Deus diferente do de Abraão. Ele perseguiu os cristãos fiéis. Ele tratou de se enriquecer com elementos tomados do eso­ terismo e do ocultism o do final do século. Ele quis despertar o neopaganism o dos velhos deuses alemães, fazendo assim injúrias por essa outra contrafação ao que a m itologia alem ã tin h a de hon roso, de belo e de com um com aq u ela de Homero. N os dois sistemas de salvação, com unista e nazis­ ta, é difícil distinguir, no ódio que confunde judeus e cris­ tãos, se os primeiros são detestados por estarem na origem dos segundos ou os segundos por serem os filhos dos prim ei­ ros. Qualquer que seja a ordem seguida, a perseguição atin ­ ge um depois do outro. A terceira heresia é o milenarismo. Em seus efeitos his­ tóricos, ele conflui com o messianismo. Ele é uma expectati­ va de mudança radical no interior da história. O messianis­

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mo bíblico espera o advento de uma figura real capaz de res­ taurar uma aliança de paz em Israel e nas N ações. O milenarismo prim itivo cristão acreditava que C risto retornaria à Terra para reinar gloriosamente mil anos com os justos res­ suscitados. Essas doutrinas sofreram no século X X derivações seculares. Foi assim que a idéia m essiânica contam inou as formas m ais extrem as do nacionalism o: o povo alem ão, o povo russo, tinham esperanças da redenção final da história humana. O milenarismo é uma impaciência de fazer advir o Reino de Deus e uma vontade de tomar em suas mãos esse acontecim ento. Ele pode ser compreendido com o um tipo de pelagianismo paroxístico, coletivizado e politizado. A histó­ ria moderna é abalada por essas crises heróicas: os taboritas da Boêm ia, os anabatistas de Münster, a ala extrem ista da revolução inglesa, Sabb atai Zvi. Elas são mais sangrentas quando, livres da idéia de Deus, visam à instauração de um regnum hominis. É raro que, valendo-se dessas crises, a separa­ ção entre judeus e cristãos não seja envenenada por aqueles mesmos que atacavam suas respectivas religiões, das quais não subsiste mais nenhum sinal senão o ódio recíproco.

Capítulo V

A MEMÓRIA

Eu queria agora tentar colocar em paralelo o trabalho da m em ória sobre o nazism o e aquele desen volvid o sobre o comunismo, olhando-o principalm ente de um ângulo reli­ gioso. Eu só o fiz, até aqui, sob o ângulo político. M as a gra­ vidade desses dois acontecim entos mobiliza, com o eu disse, a consciência religiosa. O leque de posições religiosas é tão aberto quanto o de posições políticas, mas é diferente. Eles não coincidem. C onsiderarei o paganism o - entendido com o o que não se vincula, ou não se vincula mais, ao tronco bíblico - , o judaísm o e o cristianismo. C onstata-se im ediatam ente que, no interior de cada uma dessas categorias, há lugar para ati­ tudes diversas e até mesmo opostas.

O esquecimento “pagão" do comunismo

Tom em os o exem plo da C hina. A s tradições filosófica e religiosa (que são estreitamente interligadas) têm com o h o­ rizonte um cosm o impessoal, normal e idealmente govem a-

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do pela harm onia, mas que é suscetível de uma desordem, até mesmo de um regresso m omentâneo ao caos. A história chinesa, mais que a européia, é de fato pontuada por cata­ clism os de uma violência extraordinária, capazes de fazer diminuir a população à metade. A inda no século XIX, a re­ volta dos Taiping causou, direta ou indiretamente, a morte de 70 milhões de chineses. É uma catástrofe que eqüivale àquela dos anos de Mao. Em ambos os casos um líder caris­ mático, um partido fanatizado por uma doutrina sincrética em que entram elementos estranhos à tradição, cristãos nos tempos dos Taiping, marxistas depois, fizeram a ordem ch i­ nesa cair em um caos sem fundo. Essas catástrofes históricas e políticas são colocadas em relação com as catástrofes naturais - inundações, tremores de terra, colheitas ruins - que abalam caprichosam ente a terra chinesa. Tem-se a impressão - mas talvez seja a impres­ são superficial de um observador distante - de que basta que a situação melhore, que os ventres se dilatem, que os prazeres retornem, que se possa de novo investir e enriquecer, para que o tecido social entre em um processo de cicatrização quase biológico e que a dinâm ica reencontrada da vida torne supérfluo o trabalho da memória. Por outro lado, o regime, que permaneceu formalmente comunista, continua a controlar sempre a informação sobre o passado. De longe, se diria que a perm anência do caos, aquém e além dessas perturbações, abranda o sentido histórico e dá à crônica o caráter de um boletim meteorológico, com seu ciclo regular, afetado pelas tempestades.

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O esquecimento cristão do comunismo O mundo cristão, em princípio, deveria ter-se sentido envolvido - e até mesmo responsável - face ao destino da aventura comunista. Foi na sua área que se desenvolveu a idéia de um sentido da história orientado para uma salvação universal; que se aguçou a espera de uma libertação definiti­ va, de uma purificação geral, de um triunfo do bem. Jam ais, no entanto, a perversão dessas mesmas idéias tinha im plica­ do um tal grau de iniqüidade, e jam ais o pecado tinha a tal ponto dom inado a terra. H avia muito sobre o que refletir. M as o mundo cristão não só se esqueceu, mas também, sob a pressão de seus pastores, considerou o esquecim ento com o uma obra de piedade. Para falar a verdade, a massa cristã - mais ainda, póscristã - reagiu como a massa “pagã”, na medida em que ela se distinguiu muito pouco e em que seu batismo, como aconte­ ce sempre, é mais ou menos superficial. O comunismo durou tanto tempo que foi assimilado a uma geleira, a uma série de invernos excepcion alm en te frios. O clim a esquentando, pensa-se mais e se retomam sob o sol os trabalhos cotidianos. Mas é preciso levar em conta também um esquecimento pro­ priamente cristão. Ou melhor, dois esquecimentos opostos. O primeiro enraíza-se no ramo mais original da fé cris­ tã, particularmente no sentim ento que esta tem do mal e do pecado. Por um lado, ensinou-se aos cristãos que eles são pecadores; que o pecado, original e pessoal, está presente na vida hum ana ao lado do bem, desde o com eço, e hoje mais do que nunca; que eles procedem da cruz de C risto, isto é, de uma história em que todos os homens associados fizeram o

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máxim o concebível de mal ao matarem o único verdadeira­ mente inocente, uma história em que o Verbo do próprio Deus foi vencido entre uma sexta-feira e um domingo; que, por outro lado, por esta mesma história são perdoados, recon­ ciliados, mesmo que, ainda e sempre, sujeitos ao pecado. Esse tipo cristão de familiaridade tanto com o mal quanto com o bem faz com que se assombrem menos um com o outro; que eles esperem sempre o pecado e o perdão, e que não haja falta tão grave que, arrependendo-se, não possa ser perdoada. Nesse caso, o esquecimento sucede normalmente ao perdão. A o lado desse esquecimento virtuoso - ou em seu lugar - pode existir um outro esquecimento que não o é. N orm al­ mente, o perdão só vale se ele é pedido a Deus e à vítima, se a falta é preliminarmente reconhecida e o pedido formula­ do. Se essas condições não são preenchidas e ainda assim um perdão é con ced id o u n ilateralm en te, este tem boas chances de ser nulo e de ser uma falta a mais. Esse perdão dem asiado fácil pode partir de uma sublim ação moral que faz vista grossa da justiça e que autoriza o autor a se favore­ cer de sua grandeza de alma. Ele pode partir de uma simples preguiça em exam inar os fatos ou de uma falta de coragem diante das exigências da justiça; ou ainda de uma repugnân­ cia em exam inar a sua própria cumplicidade ativa ou passi­ va com aqueles aos quais se perdoa tanto mais facilm ente quanto se atribui ao mesmo tempo uma absolvição sem con ­ fissão. N ão se vê qualquer preparação de cerim ônia pública de arrependimento a esse respeito. A extraordinária anistia de que se beneficiou o crime com unista me parece provir sobretudo deste último tipo de esquecimento. A in da que tenha havido sob o com unism o

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mais mártires da fé do que em qualquer outra época da his­ tória da Igreja, não se constatam pressa nem zelo para elabo­ rar o martirológio. O com unism o cresceu graças a uma m aciça apostasia dos cristãos. N ão é certo que esta apostasia, e menos ainda os com prom issos e as cum plicidades de gravidade variável, sejam considerados com o verdadeiros culpados. Eles são, em geral, considerados pecados venais e freqüentemente louvá­ veis pelas intenções generosas. A razão simples é que os cris­ tãos não foram ainda totalm ente purgados das idéias com u­ nistas misturadas no seu espírito com as idéias humanitárias e introduzidas por estas últimas entre os fiéis e no clero. Sob formas dissimuladas e inconscientes, através das tendências heréticas já citadas, elas são sempre ativas. M esm o atu al­ mente ouve-se falar de uma “terceira via” entre capitalismo e socialismo. E porque não se tomou ainda consciência de que subsumar nosso mundo sob o conceito de “capitalism o” significa que já se entrou no mundo dicotôm ico da ideolo­ gia, da qual, no entanto, se crê estar muito distante. A sobre­ vivência desses hábitos de pensam ento é uma razão a mais para o esquecimento. De fato, não se sabe ainda claramente qual parte do mundo cristão seria necessário recordar.

O esquecimento judeu do comunismo O que acaba de ser dito do esquecim ento cristão vale também para o esquecimento judeu - salvo, claro, no que se refere ao núcleo da fé. O comunismo não foi uma invenção judia. É mais fácil traçar suas origens no cristianismo do que

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no judaísmo, que só fez, a esse respeito, seguir-lhe os passos. Mas numerosos judeus aderiram a ele desde seu nascim ento na metade do século XIX, associando-se em seguida com o mesmo zelo e a mesma inquebrantável convicção, abando­ nando assim a sua comunidade, a sua história e a sua fé, da mesma forma que os cristãos abandonaram a deles. Nessa aventura, os judeus desempenharam um papel im­ portante, mas raramente principal. Em 1917, a maioria dos judeus da R ússia não seguiu o partido bolch evique. Eles foram vítimas tanto quanto quaisquer outros. Nesse partido, eles ocuparam durante m uito tempo posições de primeiro plano, mas cada vez mais subordinados à medida que se de­ senvolvia o anti-semitismo. O que não impede que persona­ gens com o lagoda, Kaganovitch e muitos outros na Rússia, na Europa Central e Oriental rivalizem com os mais assusta­ dores criminosos deste século. Abre-se assim, portanto, espa­ ço para a memória e o arrependimento, se pelo menos consi­ derar-se que esses judeus apóstatas continuam a ser judeus. A té aqui a amnésia e o esquecimento parecem tão espalha­ dos, e a consciência tão em paz, quanto no mundo cristão.

A memória judaica do nazismo N o mom ento de abordar esse tema, convém, me parece, sublinhar um ponto raramente destacado. Sabe-se que, des­ de que ele retornou pela em ancipação na história comum do O cidente, no final do século XVIII, o povo judeu, ou pelo menos alguns de seus membros, se associou a todas as empresas, boas ou más, dos povos aos quais ele estava mes-

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d a d o . N a história feliz ou desastrosa do pensam ento, da vida política, social, econôm ica, os judeus estão presentes. Mas não no nazismo, por definição. N esta empresa, de que não existe neste século uma outra mais puramente voltada para o mal senão o comunismo, os judeus são vítimas, não são culpados. O s profetas bíblicos teriam considerado isso uma grande graça, pois sua lição era a de que seria preferível a morte a um tal pecado. O s judeus ficaram então isentos de um a ten tação em que outros caíram em grande núm ero entre as “nações”. Desse ponto de vista, eles se sentem com razão inocentes e excluídos. Sobre o fato nazista, dois fatores extrínsecos exacerbam a memória judaica. O nazismo, sendo dado com o o inimigo declarado da dem ocracia - en quanto que o com unism o se apresentou com o seu realizador - , tomou-se o pólo negativo em relação ao qual se determina o movimento dem ocrático que con ti­ nua de forma acelerada e universal desde 1945. A lém disso, tendo sido classificado na extrema direita, o nazismo é, por excelência, repelido pela esquerda. N a França, que foi ocu­ pada, onde existiram compromissos e cumplicidades, onde um regime fascista se instaurou durante a guerra, a esquerda tem interesse em pretender o m onopólio do “anti-fascism o”, confundido com o antinazismo. Interesse então em colocar do seu lado a opinião judaica e em pôr forte pressão sobre essa memória, o que implica esta opinião sobre territórios que são mais os da esquerda do que aqueles onde se encon­ tram os interessados da comunidade judia. A memória judaica sente-se alarmada, com toda a razão, por correntes de pensam ento que a ofendem diretamente. O

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“negacionism o” é o tipo extremo disso. Ele se distancia a tal ponto da verdade e do bom senso histórico que só pode ser apoiado por alguns indivíduos sem a menor autoridade inte­ lectual. É desagradável que essa corrente seja proibida na França por uma lei, que leva além disso o patrocínio do par­ tido comunista. U m a questão de verdade não deve ser reti­ rada legalmente do cam po moral da discussão. A queles que negam os fatos m ais so lid am en te con fessados podem se lam entar, m ais do que isso, valer-se de uma privação de liberdade de pensam ento e assim escapar à desonra a que essa liberdade os expõe. A banalização da Shoah é uma outra causa de dor. N o uso corrente, a palavra “genocídio” assumiu uma extensão abusiva. Ela é aplicada a tantas coisas, sérias ou não, seja à m atança de bebês focas ou à caça às baleias. Desde que os homens sejam suficientemente numerosos para lutar, eles se massacram uns aos outros. A s leis da guer­ ra antiga previam a morte para os homens em idade de guer­ rear, a redução das m ulheres e crian ças à escravidão . Seguindo o uso atual, a guerra de Tróia e as guerras púnicas são genocídios. Eurípides, em As troianas, e Tucídides, ao relatar a punição dos melianos, descreviam os genocídios. O Drang nach Osten da A lta Idade M édia alemã fez desapare­ cer, entre o Elba e o Oder, vários povos eslavos e bálticos. A s guerras tribais africanas, agora que as armas modernas substituíram as azagaias, chegam a um milhão de mortos em poucos meses. Muitos povos que já tiveram sua glória, hoje estão com pletam ente dizimados. Um massacre não é um genocídio. Num sentido jurídi-

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ratificado por uma convenção internacional, o genocí­

dio é “a destruição metódica de um grupo étnico”. Definição insuficiente: muitos massacres entrariam nesta definição; e, por outro lado, se se coloca em dúvida que os judeus sejam um “grupo étnico” - , o que significaria retomar a concepção nazista - a Sh oah não se encaixa nesta categoria! Para ficar na positividade h istórica e nos lim ites do século XX, proponho aceitar por convenção que um geno­ cídio no sentido próprio do termo, relativam ente ao simples massacre, requer o seguinte critério: é preciso que a m atan­ ça tenha sido premeditada no quadro de uma ideologia que coloque com o objetivo o aniquilam ento de uma parte da hum anidade a fim de impor a sua con cepção do bem. O plano de destruição deve englobar a totalidade do grupo visado, mesmo se ele não é levado até o fim por razões de impossibilidade material ou de reviravolta política. O único precedente conhecido poderia m uito bem ser a Vendéia, que, segundo as ordens dadas pela C onvenção, deveria ser “destruída” em sua totalidade. Carrier escrevia: “É por prin­ cípio de hum anidade que eu expurgo a terra da liberdade desses monstros.” De fato, na zona de destruição expurgouse cerca de um quarto da população, o que está bem próxi­ mo dos desempenhos do século XX. A plicando-se esse critério, distingue-se primeiro o ge­ nocídio nazista dos judeus e dos ciganos, genocídio “puro”, ao qual se pode juntar o dos deficientes físicos de que H itler se livrou às vésperas da Segunda G uerra M undial. Ju n to também o genocídio ucraniano de 1932-1933, que se une ao genocídio da Vendéia na medida em que ele foi realizado enquanto os cam poneses tinham cessado toda resistência e

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interrom pido quando o objetivo político foi considerado atingido. A crescentem os também os genocídios armênio de 1915, e o cam bojano. Todos os genocídios foram objeto de um planejam ento prévio e resguardados pelo segredo. Esses segredos não resistiram à derrota militar ou à queda dos regi­ mes responsáveis. N o entanto, o segredo sobre o genocídio ucraniano só foi revelado de form a con fidencial e ain da hoje está longe de ser documentado com precisão. Estima-se geralmente que ele produziu entre cinco e sete milhões de mortos. Pode-se pensar que houve ainda outros genocídios de que não se ouviu falar. O genocídio armênio, por mais incontestável que seja, mantém ainda algo do massacre “clássico”. O s jovens turcos projetavam construir seu país com o nação nos m oldes do modelo jacobino e, para realizar a unidade, mobilizaram os bachi'buzuks, uma antiga receita de império que eles tinham aplicado várias vezes, particularmente em 1895, contra os mesmos armênios. Essa receita herdava regras impiedosas da guerra an tiga. N a C h in a, os japon eses fizeram a m esm a coisa. O s genocídios ucraniano e judeu, por seu lado, repou­ sam unicam ente sobre o projeto ideológico, o que os reúne em um mesmo tipo. N o primeiro, se trataria de alargar e de obter o controle com unista aniquilando a força de resistên­ cia que era o sentim ento nacional, ou simplesmente a exis­ tência da nação ucraniana. U m a vez atingido esse objetivo, não era necessário ao projeto em seu conjunto, nem mesmo desejável, “liquidar” o resto da população. À véspera de sua morte, Stalin pensava em retomar a operação. N o segundo, o projeto de pureza racial supunha a elim inação física de todos os judeus, sem exceção. N o que ele se assem elhava.

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desta vez, aos massacres tradicionais, com o em particular ao m assacre-genocídio arm ênio, em que mulheres e crianças com punham pirâmides de cadáveres; ou, mais recentem en­ te, ao massacre dos tutsis pelos hutus. N o entanto, há uma diferença. N a verdade, a imensa maioria dos judeus - mas não ape­ nas os judeus - tem consciência de uma diferença irredutí­ vel entre o que lhes aconteceu e o que aconteceu aos outros povos. C onsciência inextirpável, mas obscura, fonte de uma in terrogação perm an ente sobre a qu al n ão h á resposta unânime. H ouve n um erosas vozes ju dias, e n ão das m enores, desde Raym ond A ron, Boris Suvarine e H annah A rendt, para dirigir aos dois horrores do século um olhar equânim e e um julgam ento imparcial. O recente e nobre artigo de A n n e Applebaum , “A Dearth o f Feeling”,! refuta de início a opi­ nião daqueles que deixam entender que os judeus, egoisticam ente fech ados em sua dor, ficam in sen síveis à dor dos outros. Em um de seus últimos textos, A nnie Kriegel recor­ d av a que, a respeito do stalin ism o , alguns ju deu s n ão tinham interesse em cultivar excessivam ente a lenda de sua “inocência fundam ental de vítim as”.^ N ão creio, no entanto, que, naqueles que eu acabo de citar, o espírito de justiça apagasse o sentim ento da diferen­ ça. Para que seja com pletamente obliterado, é preciso seguir até o fim a tendência “ assim ilacionista”. U m tal ponto de

1 Anne Applebaum, Neu