A formação do candomblé

Table of contents :
continuidades e diferenças entre os ritos africanos e o candomble
processos culturais modificados no novo contexto colonial
práticas da África Ocidental
modelo organizacional dos ccultos de vodum
sujeitos históricos do candomblé
marcas e escarificações: identidade étnica ou comunitária
diferenças entre iorubás e adjas
diferentes hábitos
associações religiodas: identificação étnica
família de santo: laços e vínculos religiosos
ancestralidade comum: irmãos de santo
tradição oral
assimilação e resistência
diferença nos ritos das nações: principalmente no toque
rituais: importantes para demarcar os limites das nações africanas
Nação: padrão ideológico e ritual de terreiro
iniciação
tocar pra mais de uma nação
nação: significadp mais ideológico que ritual
identidade religiosa: compartilha lógica dos processos de diferenecição étnica
religião: interação entre mundo dos homens e outro mundo
ritual
África Ocidental: práticas religiosas institucionalizadas
oferendas
sociedades da África: instituições religiosas fundamentais para organização sociopolítica-economica
características do vodum
cultos periféricps
praticas perifericas
comunidade afro-brasileira: resultado de reconstrução de instituições religiosas por meio da pluralidade de fragmentos culturais
batuques, cantos e irmandades católicas
calundus e candomblé
formação do candomblé e calandu
religião: meio de enfrentar tempos dificeis
questão da saúde: cura e trabalho assistencial
toleração dos rituais africanos: festas e folias das irmandades
procura por visibilidade social
irmandades de negros
devoção aos santos
paralelismo e identificação com o catolicismo
devoção como parte da religiosoidade
calundus
dupla participação dos africanos nos desfiles e procissões
feitiçaria: cura e "stricto sensu"
adivinhação
calandu: XVIII: atividades religiosas de várias índoles
Sem título
calundus: práticas rituais coletivas
"bailes com altares de ídolos": antecessor do candomblé
amuletos
altar-oferenda
nascimento do candomblé: Costa da Mina, calundus
rituais jeje
objetos utilizados nos rituais jeje
assentamento
espaço organizado
institucionalização da religião afrobrasileira
congregações familiares ou domésticas: culto de uma só divinidade
congregações: interação comunidade afrobrasileira e surgimento do candomble
formação do candomblé: transferencia direta e indireta de elementos da africa p o brasil
condições semelhantes brasil=[africa
congregações religiosas: XIX
"ajuntamento"
primeiro registro da palvra candomblé
tese de Harding sobre a origem do candomble
candomblé: resultado do encontro intra-africano, possuindo autonomia em relação à sociedade mais abrangente
institucionalização do cargo de ogã (representante da congregação religiosa)
mestiçagem no blé
status legais, identidade étnico-racial e condição social
livre, libertos e o candomblé
participação das mulheres
matriarcado do candomble: fenômento recente
criolização do blé
resistência e isolamento x abertura e incliusão
fim das irmandes: candomblé: agragação social, identidade e resistência cultural
candomblé nos centros urbanos
assento-ebó
culto de várias entidades
origem do culto à multiplos orixas: áfrica
festas
candomblé: interpenetração do iorubá e vodun
influência jeje nos outros ritos
influência jeje nos nomes dos orixas
jeje nos ritos: lista de ingredientes
Gantois
memória histórica preservada pela tradição oral
supremacia nagô
africanidade: fator diferencial
"raça-nação" ioruba
intercomunicação bahia-ioruba
escassez de documentos
1860: ritual Bogum
iniciação durava 18 meses
candomblés liderados por mulheres crioulas
bogum
Maria Agorensi: Seja Hundé
diminuição do tempo de iniciação
ogã
rito funerário
sinhá Abalhe: nova gaiaku da casa seja hundé
1920: repressão policial do candomblé
"drama social" no candobmlé
Bogum (1890-1950): direção feminina
Valentina
Maria Emiliana da Piedade
Romana
Bogum (tempos modernos)
Runhó
migração para SP e RJ
nova visibilidade do candombl
reafricanização do candomblé
canto a orixás
yabas
candomble: reproduz e adpta principios básicos dos cultos de multiplas divinidades e formas e performance ritual
sakpata: varíola; nanã e omulu
culto de nana e omulu na Bahia: vestimentas especificas
caboclos
ritos jeje
não há dogmas a serem seguidos por todos: rito pela tradulção
culto de série de divinidades
benção e terminologia hierarquica
benção
ogã
instrumentos e ritmos
atabaque
toque
etnomusicólogo
iniciação
roupas
obriga;
coreografia
corte

Citation preview

o UNI CAM P

UNIVERSIDADE

ESTADUAL

DE

CAMPINAS

Reitor JOSÉ TADEU

JORGE

C o o r d e n a d o r Geral da Universidade F E R N A N D O FERREIRA

B

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I

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COSTA

O ff

A

Conselho Editorial Presidente PAULO ALCIR PÉCORA JOSÉ A .

FRANCHETTI ARLI-Y R A M O S

R. GONTIJO -

L U I S F E R N A N D O CF.RIBF.U.I SFDI

HIRANO -

MORENO

JOSÉ ROBERTO MADI WILSON

ZAN

MARCF.I.O CANO

KNOBEI.

LUIS NICOLAU PARÉS

T O O

A F O R M A Ç Ã O DO C A N D O M B L É H I S T Ó R I A E RITUAL DA N A Ç Ã O JEJE NA B A H I A

2° EDIÇÃO REVISTA

F I C H A C A T A L O G R Á F I C A E L A B O R A D A PELA BIBLIOTECA

P216f

CENTRAL

DA

UNICAMP

Pares, Luis N i c o l a u . A f o r m a ç ã o d o C a n d o m b l é : h i s t ó r i a e ricual d a n a ç ã o j e j e n a Bahia / L u i s N i c o l a u Pares. - 2* e d . rev. - C a m p i n a s , SP: E d i t o r a da UNICAMP, 2 0 0 7 . 1. C a n d o m b l é - B a h i a . 2. V o d u - B a h i a . 3. E t n i c i s m o . I. T í t u l o . CDD

ISBN 9 7 8 - 8 5 - 2 6 8 - 0 7 7 3 - 0

299.6098142 390

índices para catálogo sistemático:

1. Candomblé — Bahia

299.6098142

2. V o d u -

299.6098142

Bahia

390

3. E t n i c i s m o C o p y r i g h t © b y Luis N i c o l a u Parés C o p y r i g h t © 2 0 0 7 by E d i t o r a d a UNICAMP

N e n h u m a p a r t e d e s t a p u b l i c a ç ã o p o d e ser gravada, a r m a z e n a d a em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos o u o u t r o s q u a i s q u e r s e m a u t o r i z a ç ã o prévia d o e d i t o r .

In m e m o r i a m Vicente Paulo dos

Santos

1

AGRADECIMENTOS

Este trabalho é resultado de um longo processo de pesquisa que não teria sido possível sem a colaboração de um grande número de pessoas e instituições, às quais gostaria de expressar o meu agradecimento. Em primeiro lugar, devo lembrar muito especialmente os nomes dos mais velhos, que, pacientemente, partilharam seu tempo e sua sabedoria comigo: o finado humbono Vicente Paulo dos Santos, a finada gaiaku Luiza Franquelina da Rocha e seu irmão carnal, Eugénio Rodrigues da Rocha, ogã kuto Ambrosio Bispo Conceição, ogã impe Bernardino Ferreira e agbagigan Everaldo Conceição Duarte. Agradeço também a todos os outros membros das congregações religiosas jejes e de outros candomblés que aceitaram minha presença em suas cerimónias, assim como a todas aquelas pessoas do povo-de-santo que, em alguma ocasião, ajudaram na minha pesquisa, e que aqui seria impossível enumerar. N o âmbito académico, agradeço a inestimável ajuda e o apoio dos professores João José Reis, Vivaldo da Costa Lima, embaixador Alberto da Costa e Silva, Maria Inês Cortes de Oliveira, Renato da Silveira, Luiz M o t t , Mariza de Carvalho Soares, Silvia H u n o l d Lara, e aos membros da linha de pesquisa Escravidão e Invenção da Liberdade, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, no qual foram apresentadas versões preliminares dos capítulos 1, 2 e 3. Sou igualmente grato aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, em particular Maria Rosário de Carvalho, Graça Druck e Miriam Rabello, que sempre propiciaram um ambiente académico estimulante para minha pesquisa. Agradeço a ajuda de outros pesquisadores e amigos, como Hypolite Brice Sogbossi, Roger Sansi, Liza Earl Castillo, Luiz Cláudio Nascimento, Fernando Araújo e Peter C o h e n . Também aos funcionários do Arquivo Regional de Cachoeira, Arquivo Público do Estado da Bahia e Instituto Geográfico Histó-

rico da Bahia, pela a j u d a na pesquisa d o c u m e n t a l . Meus agradecimentos, ainda, a Sheila Cavalcante dos Santos, pela paciente revisão do meu p o r t u guês, e a Bete C a p i n a n , pelo esforço na busca de recursos para publicação. Esta pesquisa não teria sido possível sem a bolsa de pesquisador visitante concedida pelo C N P q nos anos 1999-2002 e, a n t e r i o r m e n t e , a bolsa de professor visitante concedida pela C A P E S no período 1998-1999. T a m b é m , em 2003, a Fundação de A m p a r o à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) concedeu-me u m auxílio de publicação. Meu grato reconhecimento, por seu apoio, a essas instituições brasileiras de f o m e n t o à pesquisa.

SUMÁRIO

ABREVIATURAS

11

PREFÁCIO

13

1 ENTRE DUAS COSTAS: NAÇÕES, ETNIAS, PORTOS E TRÁFICO DE ESCRAVOS

23

2 FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA DOS SÉCULOS XVIII E XIX

63

3 DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ: O PROCESSO FORMATIVO DA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA

101

4 A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ NO SÉCULO XIX

125

5 O BOGUM E A ROÇA DE CIMA: A HISTÓRIA PARALELA DE DOIS TERREIROS JEJES NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

169

6 LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNDÉ NO SÉCULO XX

213

7 O PANTEÃO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

271

8 O RITUAL: CARACTERÍSTICAS DA LITURGIA JEJE-MAHI NA BAHIA

313

CONCLUSÃO

365

BIBLIOGRAFIA

373

ABREVIATURAS

AAPBa ACMS

AHU ANTT APEBa

ARC ASMPAC

CEAO

ED FTFC iHGBa

UFBa

Anais d o Arquivo Público d a Bahia Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador Arquivo Histórico Ultramarino Arquivo Nacional da Torre do Tombo — Lisboa Arquivo Público do Estado da Bahia — Salvador, Bahia Arquivo Regional da Cachoeira — Cachoeira, Bahia Arquivo da Sociedade Montepio dos Artistas Cachoeiranos Cachoeira, Bahia Centro de Estudos Afro-Orientais Études Dahomeénnes Fórum Texeira de Freitas — Cachoeira, Bahia Instituto Histórico e Geográfico da Bahia — Salvador, Bahia Universidade Federal da Bahia

II

PREFÁCIO

Resultado de mais de sete anos de pesquisa, este livro é uma contribuição para a recuperação da memória histórica de um grupo geralmente esquecido, tanto nos estudos afro-brasileiros como entre o povo-de-santo. O prestígio da nação jeje de C a n d o m b l é 1 é ainda reconhecido entre os especialistas religiosos, e os pesquisadores não deixaram de se referir ocasionalmente a aspectos parciais do seu rito. No entanto, não houve até agora n e n h u m livro dedicado a estudar em p r o f u n d i d a d e e de forma pormenorizada essa "raiz" da cultura afro-brasileira. O livro enquadra-se ao mesmo tempo na área da história e da antropologia da religião afro-brasileira. Interdisciplinar, portanto, incide numa pluralidade de temas diversos, mas internamente entrelaçados, incluindo, entre outros: a construção da etnicidade jeje no Brasil Colónia, a contribuição dos cultos de voduns no processo formativo do Candomblé, a micro-história de dois terreiros de nação jeje e uma etnografia seletiva do panteão e do ritual vodum contemporâneo na Bahia. Um outro aspecto significativo deste trabalho diz respeito ao uso complementar de fontes escritas e orais, em combinação com a análise dos comportamentos rituais. E m b o r a não seja uma metodologia t o t a l m e n t e nova, essa interface entre história e etnografia foi utilizada com pouca frequência nos estudos afro-brasileiros. O cruzamento crítico dessa variedade de fontes se mostrou bastante fértil e abriu caminhos interpretativos que teriam sido impossíveis a partir da análise de um único tipo de fonte. Esse exercício foi especialmente relevante na reconstituição da história dos terreiros Bogum de Salvador e Seja H u n d é de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, ambos fundados por africanos jejes, ainda na época da escravidão. O recorte do objeto de estudo responde a critérios de natureza linguística. Pode-se dizer que o livro trata da historiografia de duas palavras: jeje e vo13

L U I S N I C O L A U PAR ÉS

d u m — a p r i m e i r a de c o n t e ú d o p r i n c i p a l m e n t e étnico e a s e g u n d a de conteúdo n o t a d a m e n t e religioso. Essas palavras orientaram e balizaram a pesquisa d o c u m e n t a l , assim como a seleção dos terreiros o n d e foi realizado o trabalho de campo, já que essas congregações religiosas se a u t o d e f i n e m c o m o pert e n c e n d o à "nação jeje" e se distinguem de outras por cultuar certas divindades chamadas v o d u m . Para demarcar a área geográfica africana da q u a l p r o v i n h a m os g r u p o s étnicos que no Brasil foram conhecidos como jejes (tema do capítulo 1), também utilizei critérios essencialmente linguísticos. Nesse sentido, segui a sugestão de H . B. C a p o e adotei a expressão "área dos gbe falantes" (Gbespeaking areà), ou simplesmente "área gbe", para designar a região setentrional do atual Togo, República do Benim e o sudoeste da Nigéria, o n d e habitam os povos tradicionalmente designados na literatura como adja, ewe, fon ou combinações desses termos c o m o adja-ewe. " G b e " é o vocábulo c o m p a r t i l h a d o p o r todos esses grupos para designar língua e, embora não seja um t e r m o de auto-identificação a u t ó c t o n e , tem a vantagem de não ser u m termo "etnocêntrico" que privilegia o n o m e de u m s u b g r u p o para designar o c o n j u n t o . 2 E precisamente entre esses povos com parentesco linguístico que desde tempos antigos o termo "vodum" é usado para designar as divindades ou forças invisíveis do m u n d o espiritual. A demarcação de u m a área geográfica c o m base em critérios linguísticos r e s p o n d e a u m a n e c e s s i d a d e descritiva e analítica, mas cabe n o t a r q u e a área gbe s e m p r e c o n s t i t u i u u m a s o c i e d a d e p l u r i c u l t u r a l e p o l i é t n i c a , em q u e o sistema m e r c a n t i l , as guerras e o sistema escravocrata f a v o r e c i a m fluxos p o p u l a c i o n a i s de u m a zona p a r a o u t r a , q u e c o n t r i b u í a m para essa d i v e r s i d a d e . 3 C i d a d e s c o m o U i d á e A b o m e y eram c e n t r o s r e l a t i v a m e n t e c o s m o p o l i t a s , comparáveis, salvando as distâncias, com os núcleos u r b a n o s d o Brasil C o l ó n i a , o n d e t a m b é m p o r razões de o r d e m m e r c a n t i l , ligadas ao sistema escravocrata a t l â n t i c o , se p r o d u z i a a m e s m a c o n f l u ê n c i a e o enc o n t r o de grupos h u m a n o s c u l t u r a l m e n t e diversos. Essa semelhança estrut u r a l sugere que certas d i n â m i c a s d e i d e n t i d a d e coletiva de g r u p o s m i n o ritários, b e m c o m o suas estratégias de assimilação e resistência em relação aos g r u p o s d o m i n a n t e s , p o d i a m ter-se r e p r o d u z i d o de f o r m a paralela na Bahia e na área gbe. Fredrik Barth fala de sistema social englobante para referir à estrutura social ou ao c o n j u n t o de relações sociais compartilhadas por todos os membros de u m a sociedade plural (o consenso macrossocial), e fala da m a n u t e n ç ã o de fronteiras entre grupos étnicos como "organização da diversidade cultural" (a diferença microssocial). Esse autor insiste na necessidade de não se c o n f u n dir cultura e etnicidade, pois a última seria uma dinâmica desenvolvida a par14

PREFÁCIO

tir da valorização de apenas alguns elementos culturais, os sinais diacríticos q u e expressam as diferenças. Porém a persistência dos grupos étnicos precisa de "um c o n j u n t o sistemático de regras dirigindo os contatos interétnicos"; em outras palavras, é preciso q u e exista " u m a c o n g r u ê n c i a de códigos e valores", o q u e em ú l t i m a instância requer e cria u m a "similaridade ou c o m u n i d a d e de cultura". 4 O s sistemas sociais multiétnicos c o m p o r t a m , p o r t a n t o , u m a relativa simbiose cultural, u m consenso de base a partir do qual se articula a diferença. C o m o veremos, o C a n d o m b l é é u m claro exemplo dessa d i n â m i c a de progressiva homogeneização institucional, a c o m p a n h a d a de u m a d i n â m i c a paralela de diferenciação "étnica" estabelecida a partir de u m a série discreta de elementos rituais. U m dos problemas centrais deste trabalho é c o m p r e e n d e r a génese e a m a n u t e n ç ã o das identidades étnicas dos africanos no Brasil. Para abordar essa questão optei por utilizar as teorias da etnicidade de caráter "relacional" propostas por Barth, em d e t r i m e n t o daquelas de caráter "primordial" sustentadas por autores c o m o Max Weber ou Clifford Geertz. 5 A teoria "situacional" proposta por Barth entende a i d e n t i d a d e étnica c o m o u m a d i n â m i c a relacional, ou dialógica, s e g u n d o a qual "o nós se constrói em relação a eles". A i d e n t i d a d e étnica não seria, p o r t a n t o , simplesmente u m conglomerado de sinais diacríticos fixos (origem, parentesco biológico, língua, religião etc.), mas um processo histórico, dinâmico, em que esses sinais seriam selecionados e (re)elaborados em relação de contraste com o "outro". 6 C o m o sugere Carneiro da C u n h a , "a cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se f u n d e simplesmente, mas adquire u m a nova f u n ç ã o , essencial e que se acresce às outras, e n q u a n t o se torna uma cultura de contraste" J Por seu lado, Abner C o h e n concebe os grupos étnicos c o m o grupos de interesses que m a n i p u l a m elementos da sua cultura "tradicional" como meio para incentivar a u n i d a d e do g r u p o na busca pelo poder. 8 Nesse sentido, a análise realizada no capítulo 2 sobre a construção da identidade jeje na Bahia dos séculos XVIII e XIX sugere que os africanos desenvolviam "estratégias de identidade" nas quais os atores sociais, em f u n ç ã o da sua avaliação da situação, utilizavam seus recursos de identidade de maneira estratégica, geralmente com o i n t u i t o de atingir algum objetivo. Por exemplo, u m escravo ou liberto podia identificar-se, d e p e n d e n d o do contexto e do interlocutor, como savalu, jeje, mina ou africano, indo da categoria mais particular à mais genérica. As diversas categorias de identidade f u n c i o n a r i a m , por assim dizer, de f o r m a superposta, ou como as bonecas russas encaixadas umas nas outras.

15

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Desse p o n t o de vista, não existiria t a n t o u m a i d e n t i d a d e única, fixa e rígida, mas m ú l t i p l o s e cruzados processos de identificação gerados p o r contextos e i n t e r l o c u t o r e s específicos. Nessas interações sociais, certos sinais diacríticos, fluídos e flexíveis, seriam valorizados em f u n ç ã o da utilidade de u m a d e t e r m i n a d a identificação e de a c o r d o com as preferências e os interesses d o m o m e n t o . Mas essa i n s t r u m e n t a l i z a ç ã o da i d e n t i d a d e tem seus limites n o s e n t i d o de que a i d e n t i d a d e é t a m b é m resultante da identificação i m p o s t a pelos o u t r o s , e o i n d i v í d u o ou g r u p o deve considerar esses limites na sua estratégia. 9 A c o n f l u ê n c i a do caráter "situacional" dos processos de i d e n t i f i c a ç ã o , c o m a existência de um r e p e r t ó r i o variado de categorias referenciais, p e r m i t e m postular a noção de u m a identidade multidimensional. O caso jeje sugere que a plasticidade e m u l t i p l i c i d a d e identitárias, q u e norm a l m e n t e se a t r i b u e m à m o d e r n i d a d e tardia, f o r a m um f e n ó m e n o que já se dava pelo m e n o s desde o século XVIII. Ainda no capítulo 2 aponta-se para a i m p o r t â n c i a crítica das dinâmicas associativas e a formação de instituições sociais, tais como irmandades católicas, grupos de trabalho ou candomblés, como espaços de sociabilidade nos quais os processos contrastivos de identificação étnica encontravam um campo de expressão fecundo. Aliás, o âmbito das práticas e valores religiosos foi um dos espaços culturais mais ricos para a articulação das diferenças étnicas. E assim que, intimamente imbricado com o problema da identidade étnica dos africanos no Brasil, nos capítulos 3 e 4 abordo o processo de institucionalização do Candomblé e a sua contribuição para a formação de uma "cultura afro-brasileira". Um dos temas centrais dos estudos comparativos sobre a religião afro-americana é o relativo grau de c o n t i n u i d a d e ou de m u d a n ç a sofrido pelas culturas religiosas de origem africana no Novo M u n d o . E n q u a n t o autores c o m o Melville Herskovits ou Roger Bastide deram ênfase especial à c o n t i n u i d a d e das formas culturais africanas e à "tenacidade da tradição", mais recentemente outros autores têm notado as "dramáticas" mudanças que ocorreram no processo de transferência, concluindo que a experiência do Novo M u n d o praticamente diluiu a herança africana. O dilema está em saber se a cultura negra ou, no caso mais concreto que nos ocupa, a religião afro-brasileira deve ser entendida como retenção ou sobrevivência de africanismos, ou como adaptação criativa à dureza da escravidão e do racismo. A primeira corrente interpretativa valoriza o conceito de sobrevivência cultural, i n t r o d u z i d o por Herskovits, para designar aqueles elementos da antiga cultura conservados "idênticos" na nova cultura "sincrética", buscando provar a qualquer preço a c o n t i n u i d a d e da cultura apesar das m u d a n ç a s aparentes. Essa interpretação, assumida t a m b é m pelo setor "tradicionalista" dos prati16

PREFÁCIO

cantes de C a n d o m b l é , tem reforçado a ideologia da "pureza" étnica e ritual dessa instituição e, legitimada por "mitos" históricos, sustenta u m a idéia da tradição como repetição invariável. Nos estudos afro-americanos essa postura se alinha n o r m a l m e n t e com u m a ideologia afro-cêntrica. 1 0 Já a segunda corrente interpretativa encara a tradição como estímulo para a inovação e a m u d a n ç a ; destaca a hibridez, ou crioulização, da religião afrobrasileira e a necessidade de estudá-la e entendê-la não em relação às origens africanas, mas d e n t r o da especificidade do processo histórico e do contexto sociocultural brasileiro. Esse m o d e l o critica a obsessiva busca por "africanismos" ou sobrevivências culturais africanas empreendida pelos pesquisadores, o que, em certos casos, é visto como uma forma de "exotizar" a religião. Vale notar que a tese "crioulista" não nega a continuidade com a Africa, mas enfatiza os processos culturais que, no novo contexto colonial, modificaram consideravelmente algumas práticas rituais, m a n t e n d o outras, e b u s c a n d o paralelos entre diferentes tradições religiosas. 11 Nesse â m b i t o teórico, Sidney M i n t z e Richard Price, influenciados pela antropologia simbólica americana, sugerem um novo enfoque nos estudos sobre continuidade e mudança. Mais que comparar as formas e a funcionalidade dos elementos religiosos, eles chamam a atenção para a necessidade de comparar o sentido dos "africanismos" e a persistência de certas orientações cognitivas ou "visões do m u n d o " (world views); enfim, sugerem comparar não os aspectos estruturais das representações culturais africanas e diaspóricas, mas o que essas representações significam, pretendem e expressam. 12 O p r o b l e m a da permanência e da m u d a n ç a , ou da interação entre estrutura e ação, é um dos temas recorrentes nos estudos antropológicos. C o m certas especificidades, essa problemática é aplicável t a m b é m à religião afrobrasileira. Comprova-se, na história do C a n d o m b l é , a persistência de certos valores e práticas j u n t o à ressignificação ou criação de outros. Há, p o r t a n t o , alguma coisa que permanece ao lado de o u t r a que m u d a . D e f e n d o a necessidade de entender a simultaneidade ou sincronia dos processos de continuidade e descontinuidade, assim c o m o a necessidade de entender a proporção entre essas dinâmicas. O problema é uma questão de ênfase, e o meu acento não cai sobre os "africanismos" ou as "invenções", mas sobre a complexa interação entre ambos. Herskovits definiu a noção de reinterpretação (ou, na sua versão atualizada, ressignificação) como "o processo pelo qual antigas significações são atribuídas a elementos novos ou pelo qual novos valores m u d a m a significação cultural de formas antigas". 1 3 O interesse dos culturalistas em d e m o n s t r a r a continuidade dos significados (inclusive nas mudanças) levou-os a dar uma ênfase 17

LUIS NICOLAU

P A R ÉS

na primeira parte da definição. D o seu lado, os defensores da tese crioulista tenderiam a destacar a segunda parte da definição, privilegiando o conceito de agência, do envolvimento ativo e t r a n s f o r m a d o r dos próprios participantes. Sahlins fala da c o n t í n u a "reavaliação f u n c i o n a l " das categorias culturais e de c o m o "a cultura é alterada historicamente na ação". 14 Sabemos que nem todos os legados culturais são contínuos e n e n h u m deles é primordial. O r a , poderíamos nos perguntar se o C a n d o m b l é seria o mesmo se os grupos africanos i m p o r t a d o s para o Brasil tivessem sido outros. N ã o há como responder com precisão a essa questão, mas é provável que sem a contribuição dos grupos da Africa ocidental o C a n d o m b l é dificilmente teria che- g a d o às formas de organização conventual pelas quais é reconhecido hoje em dia. E m outras palavras, a especificidade de certas tradições religiosas africanas foi tão i m p o r t a n t e q u a n t o o sistema da escravidão para d e t e r m i n a r a formação dessa instituição religiosa. U m a das teses centrais deste trabalho, exposta nos capítulos 3 e 4, sustenta que f o r a m as tradições religiosas da Costa da M i n a , e em especial as da área gbe, isto é, os cultos de v o d u m , os que providenciaram no Brasil setecentista os primeiros referentes para a organização do g r u p o religioso n u m a estrutura eclesial ou conventual. O tipo de atividade devocional desenvolvido a partir da consagração de devotos às divindades mediante processos de iniciação, com a instalação de altares fixos em espaços sagrados estáveis, contrastava com as práticas terapêuticas e oraculares de caráter mais individualizado e itinerante, próprias da maioria dos calundus coloniais. Através da análise cronológica da documentação sobre as práticas religiosas dos africanos nos séculos XVIII e XIX percebe-se u m processo de progressiva complexidade, t a n t o no aspecto ritual como na organização do g r u p o religioso. C o m o sugeri, penso que os especialistas religiosos jejes, com sua experiência e m e m ó r i a das tradições do culto de v o d u n s na área gbe, p r o p o r cionaram i m p o r t a n t e s referentes para a institucionalização do C a n d o m b l é , particularmente no que tange à organização de congregações extradomésticas de tipo eclesial. Essa tese é complementada com o argumento, desenvolvido no capítulo 7, de que a justaposição de várias divindades n u m m e s m o t e m p l o e a organização de performance ritual seriada, características do C a n d o m b l é c o n t e m p o râneo, e n c o n t r a m nas tradições v o d u n s da área gbe um claro a n t e c e d e n t e desde pelo menos o século XVIII, sobretudo no âmbito dos cultos reais ou das linhagens socialmente d o m i n a n t e s em cidades c o m o Uidá ou Abomey. Portanto, a constituição de cultos de múltiplas divindades não seria, como tem sustentado a literatura, l 5 apenas uma "invenção" local resultado das novas con18

PREFÁCIO

dições socioculturais do Brasil, especificamente da Bahia, mas encontraria nos cultos de v o d u m na Africa u m modelo organizacional que teria sido replicado por variados grupos étnicos com suas divindades particulares. Estou, então, apesar de ciente das transformações, enfatizando de algum m o d o certas continuidades, no que se refere às linhas estruturais dos cultos, e a i m p o r t â n c i a de algumas tradições religiosas africanas nesse processo. Porém, é preciso insistir que não estou d e f e n d e n d o um único "modelo p r i m o r dial" do C a n d o m b l é , nem quero reduzir a sua formação a u m simples conglomerado de continuidades diretas. Sabemos, por exemplo, c o m o o carisma de um líder religioso pode ser d e t e r m i n a n t e na legitimação de um novo comp o r t a m e n t o ritual e na sua posterior réplica por parte de outros. Assim, o indivíduo c o m o transmissor de cultura se converte em agente de m u d a n ç a , e por isso a história do C a n d o m b l é precisa fazer um esforço de aproximação aos sujeitos históricos que foram seus protagonistas. É sob essa perspectiva que os capítulos 5 e 6 ensaiam u m a reconstituição histórica, em longue durée, desde a segunda m e t a d e do século XIX até nossos dias, de duas congregações de C a n d o m b l é jeje-mahi, o Bogum e o Seja H u n d é . U m dos objetivos foi organizar com o m á x i m o de rigor possível os escassos dados d o c u m e n t a i s e os m ú l t i p l o s e c o n t r a d i t ó r i o s t e s t e m u n h o s orais sobre a história dessas comunidades jejes. Trata-se de uma tentativa provisória que, sem dúvida, poderá ser acrescida e refinada por futuras pesquisas. C o m base nesse c r u z a m e n t o de fontes escritas e orais, o esforço para a recuperação da m e m ó r i a histórica dos jejes alinha-se com o interesse geral da Nova História por estudar a história cultural dos grupos minoritários, dos grupos subalternos, dos excluídos e dos "sem-história". Esses capítulos t a m b é m fornecem um material interessante para examinar a dinâmica de cooperação, conflito e c o m p l e m e n t a r i d a d e das lideranças religiosas no C a n d o m b l é . A articulação de redes de solidariedade e alianças estratégicas se mistura com a luta pelo poder nos períodos de sucessão, as rivalidades entre facções concorrentes, as acusações de feitiçaria e as sanções das divindades para dirimir os c o n f r o n t o s . A micropolítica no C a n d o m b l é , e no jeje em particular, revela-se e x t r e m a m e n t e d i n â m i c a e complexa. Util i z a n d o c o n c e i t o s de V i c t o r T u r n e r , p o d e r í a m o s dizer que o c o n f l i t o se desenvolve no â m b i t o dos "dramas sociais" (com os q u a t r o estágios de r u p tura, crise, solução e reintegração ou cisma) e é resolvido através do ritual, por sua vez e n t e n d i d o como algo regenerador e criativo. 1 6 No capítulo 7 e, sobretudo, no 8, ambicionei e n t e n d e r o fator diferencial da identidade religiosa jeje dentro do C a n d o m b l é , r e t o m a n d o certas ideias expostas em relação aos processos de identificação étnica. O objetivo é identi19

LUIS NICOLAU

PAR ÉS

ficar o que t o r n a a nação jeje diferente das outras, e esse interesse decorre, em primeiro lugar, da constatação de que esta é u m a preocupação c o m u m entre o povo-de-santo, expressa de variadas formas pelos próprios praticantes. Esse fator diferencial p o d e ser pensado c o m o incluindo p r i n c i p a l m e n t e dois aspectos simultâneos: 1) certos elementos específicos da área gbe que, embora ressignificados ou n ã o , a i n d a p e r s i s t e m ; e 2) u m processo relacional de contraste com grupos concorrentes (isto é, jeje versus nagô). Privilegiei o seg u n d o aspecto, no qual as relações de contraste demarcam fronteiras entre as nações, do mesmo m o d o c o m o acontece com os grupos étnicos. A identidade religiosa é, p o r t a n t o , relacional e se expressa no contexto de um con~ senso institucionalizado. O capítulo 7 examina o panteão jeje em relação a seus antecedentes africanos, focalizando as divindades voduns que, sem dúvida, constituem um dos sinais diacríticos da liturgia jeje. N o capítulo final há uma aproximação mais etnográfica e descritiva do ritual jeje. Cabe alertar que essa etnografia — resultado de um dado observador, n u m certo m o m e n t o e n u m dado lugar — não deixa de ser aproximativa e está longe de ser exaustiva. Sabe-se que o povo jeje é muito reservado e não conversa com facilidade sobre a sua religião, o que talvez constitua outro de seus sinais diacríticos. Em diferentes m o m e n t o s , minha condição de estrangeiro, de não-iniciado, ou até de branco, gerou resistência mais ou menos explícita por parte de certos indivíduos, e foi só com m u i t a paciência e persistência que consegui ganhar a confiança de outros. Inúmeros aspectos da liturgia interna das casas jejes permaneceram ocultos, e outros que p o r v e n t u r a cheguei a conhecer foram censurados no texto por d e m a n d a explícita dos praticantes. Foi assim, através da assídua observação participante dos sucessivos ciclos de festas anuais, que, aos poucos, consegui e n t e n d e r c o m p o r t a m e n t o s e práticas rituais de intricada complexidade e identificar as singularidades da nação jeje. Para finalizar, cabe notar que este trabalho, pelo seu foco e recorte, tende a valorizar o jeje. Ora, essa valorização não responde a n e n h u m a proposta de "purificar" ou reificar essa tradição, c o m o p o d e r i a m pensar alguns leitores inadvertidos, mas é resultado de u m interesse em reconhecer e calibrar na sua justa medida a sua contribuição (claro que não única!) no processo formativo do C a n d o m b l é . A valorização aqui elaborada em t o r n o dos jejes não responde a qualquer noção de "superioridade cultural" dessa tradição, mas a u m demorado trabalho de inferências a partir de dados empíricos relativamente confiáveis e à comprovação de que efetivamente os cultos de v o d u m tiveram u m papel crítico na formação do C a n d o m b l é . A perspectiva histórica é importante na medida em que permite entender ou avaliar o jogo das continuidades

20

PREFÁCIO

e mudanças. Não foi a minha intenção utilizar "a História" de forma ideológica, a p o n t a n d o origens e defendendo continuidades diretas entre a Africa e 0 Brasil para justificar ou legitimar qualquer hierarquia cultural, como certa literatura e tradições orais tendem a sugerir em relação a outras nações.

NOTAS 1

Ao l o n g o deste t r a b a l h o , utilizo o t e r m o " C a n d o m b l é " c o m inicial maiúscula para me referir à i n s t i t u i ç ã o religiosa c o m o u m t o d o , e o m e s m o t e r m o c o m inicial m i n ú s c u l a para m e referir a c o n g r e g a ç õ e s religiosas ou terreiros específicos.

2

Capo,

i

Fredrik B a r t h d e f i n e u m a sociedadepoliétnica

Comparative.... c o m o aquela " i n t e g r a d a no espaço mer-

c a n t i l , sob o c o n t r o l e de u m sistema estatal d o m i n a d o por u m dos g r u p o s , mas deix a n d o a m p l o s espaços de diversidade cultural nos setores de atividade religiosa e d o méstica". B a r t h , " G r u p o s . . . " , p. 197. 4

B a r t h , " G r u p o s . . . " , pp. 196, 200.

5

Para Weber, a " c o m u n h ã o étnica" se reduz, em ú l t i m a análise, à crença subjetiva n u m a origem c o m u m , real ou i m a g i n a d a (Economia...,

p. 270). Para Geertz, a ligação étnica

"possui u m p o d e r de coação indescritível e p o r vezes e s m a g a d o r de e em si p r ó p r i a " e decorre "de certo s e n t i d o a b s o l u t o e inexplicável a t r i b u í d o ao p r ó p r i o laço em si" (Old societies..., Raça..., 6

p. 109); para a d i s t i n ç ã o e n t r e teorias p r i m o r d i a i s e relacionais, ver Rex,

p. 49.

B a r t h , " G r u p o s . . . " , p. 194. Para estudos sobre a e t n i c i d a d e c o m o interação social, com u m a a b o r d a g e m c o n s t r u t i v i s t a e u m a a t e n ç ã o para a f o r m a ç ã o h i s t ó r i c a , ver, e n t r e outros, Roosens, Creating ethnicity...-,

Eriksen, Ethnicity

and nationalism-,

c i d a d e . . . " . E m e s t u d o s a f r o - b r a s i l e i r o s , D a n t a s , Vovó...;

C u n h a , "Etni-

M. I. C. de O l i v e i r a , Re-

trouver...; Slenes, " M a l u n g u . . . " . 7

C u n h a , " E t n i c i d a d e . . . " , pp. 35-39 (grifo nosso).

8

C o h e n , Urban...

Para teorias da e t n i c i d a d e c o m o expressão de interesses, ver t a m b é m

Giazer e M o y n i h a n , '

Beyond...

Sobre as teorias de e t n i c i d a d e i n s t r u m e n t a l i s t a s , ver, por exemplo, B a n t o n ,

Racial....

C a b e n o t a r q u e há dois tipos de " o u t r o s " em relação ao i n d i v í d u o : aqueles de seu próp r i o g r u p o e os de o u t r o s g r u p o s . 10

Herskovits, "African...", pp. 635-43; The myth..., Orixás...-,

Elbeim dos Santos, Os

p. xxxvii; Bastide, Sociologia...-, Verger,

Nagô...

" Ver, p o r e x e m p l o , D a n t a s , Vovó...-, C a p o n e , La 12

M i n t z e Price, An anthropological...,

13

H e r s k o v i t s , Acculturation...-,

14

Sahlins, Ilhas...,

11

p. 118.

pp. 7, 17.

Por e x e m p l o , Verger, Notas.., Turner, Schism

pp. 9-10.

c i t a d o e t r a d u z i d o em C u c h e , A noção...,

p. 15; " R a i s o n s . . . " , pp. 144-45; Bastide,

p p . 113, 316. 16

quête...

pp. 5-7; Barnes, Africas...,

Ver t a m b é m Maggie,

Guerra...

21

Sociologia...,

1

ENTRE DUAS COSTAS: NAÇÕES, ETNIAS, PORTOS E TRÁFICO DE ESCRAVOS

NAÇÕES " A F R I C A N A S " E D E N O M I N A Ç Õ E S " M E T A É T N I C A S " O presente capítulo apresenta algumas informações e reflexões sobre a chamada "nação" jeje a partir de uma análise do contexto da Africa ocidental e da historiografia desse e t n ô n i m o em relação ao tráfico de escravos. Mas, antes de avaliar quem eram os jejes, é importante entender o que foi considerado como "nação" nos séculos XVII e XVIII. Ao lado de outros nomes como país ou reino, o termo "nação" era utilizado, naquele período, pelos traficantes de escravos, missionários e oficiais administrativos das feitorias européias da Costa da Mina, para designar os diversos grupos populacionais autóctones. O uso inicial do termo "nação" pelos ingleses, franceses, holandeses e portugueses, no contexto da África ocidental, estava determinado pelo senso de identidade coletiva que prevalecia nos estados monárquicos europeus dessa época, e que se projetava em suas empresas comerciais e administrativas na Costa da Mina. Esses estados soberanos europeus encontraram um forte e paralelo sentido de identidade coletiva nas sociedades da África ocidental. Essa identidade baseava-se, sobretudo, na afiliação por parentesco a certas chefias normalmente organizadas em volta de instituições monárquicas. Por outra parte, a identidade coletiva das sociedades da África ocidental era multidimensional e estava articulada em diversos níveis (étnico, religioso, territorial, linguístico, político). Em primeiro lugar, a identidade de grupo decorria dos vínculos de parentesco das corporações familiares que reconheciam uma ancestralidade comum. Nesse nível, a atividade religiosa relacionada com o culto de determinados ancestrais ou de outras entidades espirituais era o veículo por excelência da identidade étnica ou comunitária. 1 Tal pertença era normalmente assinalada por uma série de marcas físicas ou escarificações no rosto ou em outras partes do corpo. 23

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

A cidade ou território de moradia e a língua t a m b é m eram i m p o r t a n t e s fatores e denominações de identidades grupais. Na Africa ocidental existe u m sistema geral de nomeação pelo qual as cidades c o m p a r t i l h a m o mesmo n o m e com seus habitantes. 2 Finalmente, alianças políticas e dependências tributárias de certas monarquias também configuravam novas e mais abrangentes identidades "nacionais". Essa diversidade de identidades coletivas estava sujeita a transformações históricas, devido a diversos fatores, tais como alianças matrimoniais, guerras, migrações, agregação de linhagens escravas, apropriação de cultos religiosos estrangeiros ou m u d a n ç a s políticas. Em muitos casos, as d e n o m i n a ç õ e s de "certos grupos eram criadas por povos vizinhos ou poderes externos, sendo subs e q u e n t e m e n t e a p r o p r i a d a s pelos m e m b r o s dos grupos assim designados. Cabe notar t a m b é m que a imposição dessas denominações externas muitas vezes incluía u m a pluralidade de grupos originalmente heterogéneos. É nessa perspectiva que devemos e n t e n d e r a formação de u m a série de "nações" africanas no contexto colonial brasileiro. N o século XVI falava-se de "gentio da G u i n é " ou de "negro da G u i n é " para referir-se de u m a f o r m a genérica aos africanos. Mas já na primeira metade do século XVII começam a distinguir-se as várias nações. Em Recife, em 1647, na época da guerra contra os holandeses, H e n r i q u e Dias, chefe do Regimento dos H o m e n s Pretos, escreveu uma carta em que mencionava: " D e q u a t r o nações se c o m p õ e esse regimento: Minas, Ardas, Angolas e Crioulos". 3 A menção aos crioulos (descendentes de africanos nascidos no Brasil) como u m a "nação" já sugere que no século XVII esse conceito não respondia a critérios políticos ou étnicos prevalecentes na Africa, mas a distinções elaboradas pelas classes d o m i n a n tes na colónia em f u n ç ã o dos interesses escravistas. A n d r é João Antonil, padre jesuíta que viveu no século XVII e p u b l i c o u a obra Cultura e opulência do Brasil, em 1706, escreveu: "E p o r q u e c o m u m e n t e [os escravos] são de nações diversas [...]. Os que vêm para o Brasil são Ardas, Minas, Congos de S. T h o m é , d'Angola, de Cabo Verde, e alguns Moçambique, que vêm nas naus da índia". 4 N o século XVIII deixa-se progressivamente de falar em "gentio da Guiné", embora a denominação "gentio da Costa" seja ainda c o m u m em Salvador, e a classificação dos africanos por nações parece imporse, coincidindo com o i n c r e m e n t o e diversificação do tráfico, sujeito agora a u m a maior complexidade de rotas e portos de origem. Os nomes de nação, como vimos na citação de Antonil, não são homogéneos e p o d e m referir-se a portos de embarque, reinos, etnias, ilhas ou cidades. Eles foram utilizados pelos traficantes e senhores de escravos, servindo aos seus interesses de classificação administrativa e controle. Em muitos casos, os portos 24

ENTRE DUAS

COSTAS

ou a área geográfica de embarque parece ter sido um dos critérios prioritários na elaboração dessas categorias (Mina, Angola, Cabo Verde, São Tomé etc.). Tratava-se, portanto, de denominações que não correspondiam necessariamente às autodenominações étnicas utilizadas pelos africanos em suas regiões de origem. C o m o aponta Maria Inês Cortes de Oliveira, as nações africanas, "tal como ficaram conhecidas no Novo M u n d o , não guardavam, nem no nome nem em sua composição social, u m a correlação com as formas de auto-adscrição correntes na Africa".^ Talvez, cabe frisar, o processo não fosse tão unilateral ou radical, pois existiram casos em que as denominações utilizadas pelos traficantes correspondiam efetivamente a denominações étnicas ou de identidade coletiva vigentes na Africa, mas que, aos poucos, foram e x p a n d i n d o a sua abrangência semântica para designar uma pluralidade de grupos anteriormente diferenciados. Esse parece ter sido o caso de d e n o m i n a ç õ e s como jeje e nagô, entre outras. Analisarei em detalhe o caso jeje mais adiante. N o segundo caso, por exemplo, sabemos que nagô, anagô ou anagonu era o e t n ô n i m o ou a u t o d e n o m i nação de u m g r u p o de fala iorubá que habitava a região de Egbado, na atual Nigéria, mas que emigrou e se disseminou por várias partes da atual República do Benim. Ao m e s m o t e m p o , os habitantes do D a o m é , reino que se manteve desde meados do século XVII até o final do século XIX, começaram a utilizar o termo "nagô", que na língua fon tinha provavelmente um sentido derrogatório, para designar u m a pluralidade de povos iorubá-falantes sob a influência do reino de Oyo, seu vizinho e temido inimigo. Desse modo, u m a autodenominação étnica, restrita a u m grupo particular, passou a ser utilizada por m e m b r o s alheios a essa c o m u n i d a d e para assinalar u m g r u p o de povos mais amplo. 6 A lógica dessa generalização reside no fato de esses povos compartilharem u m a série de c o m p o n e n t e s culturais, como língua, hábitos e costumes. C o m o tempo, esse grupo de povos de fala iorubá passou a assimilar a denominação externa imposta pelos daomeanos e, uma vez desprendida do seu sentido derrogatório inicial, a utilizá-la como autodenominação. Por sua vez, os traficantes europeus apropriaram-se do uso local que os daomeanos faziam do termo "nagô", e este foi assim transferido ao Brasil, preservando a dimensão genérica e inclusiva estabelecida pelos daomeanos. Para analisar esse tipo de processo, parece útil tentar distinguir entre denominações "internas", utilizadas pelos membros de um determinado grupo para identificar-se, e denominações "externas", utilizadas, seja pelos africanos ou pelos escravocratas europeus, para designar uma pluralidade de grupos inicialm e n t e heterogéneos. Para o primeiro caso, poderíamos utilizar a expressão 25

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"etnônimo" ou simplesmente "denominação étnica"; para o segundo caso, poderíamos utilizar a expressão "denominação metaétnica", que, segundo o pesquisador cubano Jesus Guanche Pérez, seria a denominação externa utilizada para assinalar um c o n j u n t o de grupos étnicos relativamente vizinhos, com u m a comunidade de traços linguísticos e culturais, com certa estabilidade territorial e, no contexto do escravismo, embarcados nos mesmos portos. 7 Cabe notar que as d e n o m i n a ç õ e s metaétnicas (externas), impostas a grupos relativamente heterogéneos, p o d e m , com o tempo, transformar-se em denominações étnicas (internas), q u a n d o apropriadas por esses grupos e utilizadas c o m o f o r m a de a u t o - i d e n t i f i c a ç ã o . O conceito de d e n o m i n a ç ã o met a é t n i c a é útil apenas para descrever o processo pelo qual novas identidades coletivas são geradas a partir da inclusão, sob u m a d e n o m i n a ç ã o de caráter abrangente, de identidades inicialmente discretas e diferenciadas. Utilizando essa terminologia, poderíamos dizer que os traficantes e senhores do Brasil colonial foram responsáveis pela elaboração de uma série de denominações metaétnicas — em função dos p o n t o s de compra ou embarque de escravos — , e n q u a n t o outras, como o caso nagô, já operativas no contexto africano, foram apropriadas e gradualmente modificadas n o Brasil. Desse modo, os africanos chegados ao Brasil encontravam uma pluralidade de denominações de nação — umas internas e outras metaétnicas — que lhes permitia múltiplos processos de identificação. Aqueles africanos não habituados às denominações metaétnicas já na própria África, u m a vez no Brasil, rap i d a m e n t e as assimilaram e passaram a utilizá-las pela sua operacionalidade na sociedade escravocrata, e n q u a n t o geralmente reservavam o uso das denominações étnicas vigentes nas suas regiões de origem para o contexto social mais restrito da c o m u n i d a d e negro-mestiça. Mariza de Carvalho Soares utiliza o conceito de grupo de procedência para referir-se ao c o n j u n t o de povos englobados sob uma mesma denominação metaétnica. Essa autora distingue e n t r e o uso do termo "nação" como emblema da identidade de procedência (nação angola, nação mina) e o uso do termo "nação" c o m o referência a u m a identidade étnica (nação ketu, nação makii). 8 Trata-se de outra terminologia para analisar o m e s m o problema. Aqui evitarei falar de grupos de procedência ou identidades de procedência p o r q u e me parece que os processos identitários c o n s t r u í d o s em t o r n o das d e n o m i n a ç õ e s metaétnicas (mina, angola, nagô) não se restringiam exclusiva ou principalmente à consciência de u m a p r o c e d ê n c i a geográfica c o m u m . O conceito de procedência, como fator d e t e r m i n a n t e na construção da idéia de nação, está ligado a teorias da etnicidade de caráter primordial que privilegiam a origem, e n q u a n t o a m i n h a perspectiva se situa mais no â m b i t o das teorias da etni-

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ENTRE DUAS

COSTAS

cidade relacionais. A formação de nações africanas no Brasil é aqui e n t e n d i da especialmente c o m o o resultado de um processo dialógico e de contraste cultural ocorrido entre os diversos grupos englobados sob as várias d e n o m i nações metaétnicas. O resultado dessa dinâmica é que as denominações de nação adquiriram conteúdos distintos segundo as diferentes épocas e regiões do Brasil. Consideremos, como ilustrativo, o caso do termo "mina". Assim como a expressão "gentio da Guiné", utilizada no século XVI, "mina" foi uma denominação que, ao longo do tempo, ampliou o seu domínio semântico até quase se transformar em u m sin ó n i m o de africano. Mas isso não foi sempre assim. Inicialmente, "mina" tinha significado restrito e designava os escravos embarcados no Castelo de São Jorge da M i n a (ou São Jorge d'Elmina). Esse forte foi construído na Costa do O u r o , atual Gana, pela Coroa portuguesa, entre 1482 e 1484 e, até 1637, quando os holandeses o ocuparam, foi o enclave português mais i m p o r t a n t e para o comércio de ouro e o tráfico de escravos. O Forte de São Jorge da M i n a constituía u m centro para o qual escravos de várias partes da costa o c i d e n t a l africana eram levados. A c o r r e s p o n d ê n c i a de Duarte Pacheco Pereira, capitão do forte entre 1520 e 1522, menciona a presença de escravos chegados do distante reino do Benim, localizado na atual Nigéria, na área que os ingleses já então denominavam Costa dos Escravos. Também escravos vindos do C o n g o passavam pelo forte antes de serem embarcados para as Américas. Já na década de 1660, W i l h e l m J o h a n n Muller, sacerdote da D a n i s h African C o m p a n y , por exemplo, alude à presença de escravos de Aliada na Costa do O u r o . Vemos assim que, desde o início, "mina" identificava um p o r t o de e m b a r q u e e que os escravos ali comprados podiam ter procedências bem diversas. 9 A partir de 1680, os gãs de Accra e os fante-anés de Elmina chegaram à área de Pequeno Popo e Glinji, na costa do atual Togo, escapando das guerras com os akwamus. Os fugitivos gãs, dada a sua procedência da Costa do O u r o , foram chamados minas pelos europeus, já no século XVII. 10 Esses minas se misturaram com os moradores locais, como os hulas e uatchis, constituindo, n o século XVIII, o reino Gen ou Genyi, cujo maior p o r t o se situou em Peq u e n o Popo (Aneho). O reino Gen esteve envolvido no tráfico de escravos, sendo que a denominação "mina", principalmente nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do XIX, também podia designar escravos embarcados em Aneho e em outros portos da zona ocidental do rio M o n o . C o m o foi n o t a d o por Verger, a expressão "Costa da Mina" passou paulatin a m e n t e a designar não a Costa do O u r o , mas, mais precisamente, a Costa dos Escravos, isto é, a costa a sotavento do Castelo de São Jorge da M i n a , 27

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

que se estendia do delta do rio Volta, em Gana, até a desembocadura do rio Niger (rio Lagos), na Nigéria. Consequentemente, como bem observou Nina Rodrigues, mina ou "preto mina" podia designar africanos não só da Costa do O u r o como também da Costa do M a r f i m e da Costa dos Escravos, esta última incluindo Togoland, Benim e Nigéria ocidental." Desse m o d o , a abrangência semântica do termo "mina" passou a incluir quase todos os povos do Golfo do Benim, desde um ashante até um nagô. Esse processo de m u d a n ç a semântica explica por que o termo significou coisas distintas no Rio, em Minas Gerais, na Bahia ou no Maranhão. N o Rio de Janeiro, referências a escravos da Costa da Mina aparecem desde inícios do século XVII e, como demonstram os compromissos de irmandades católicas de homens pretos do século XVIII, mina parece corresponder aos povos da atual República do Benim, chamados jeje na Bahia, sendo que essa denominação era então desconhecida no Rio de Janeiro. Já no século XIX, Debret menciona os mina, mina-callava, mina-maí e. mim-nejos. A denominação "mina-callava", que Rodrigues transcreve como mina-cavalos, é provavelmente uma referência a escravos embarcados no porto de Calabar, embora Oliveira pense que possam ser também escravos de Abomey-Calavi, às margens do lago Nokué. Os néjos equivaleriam provavelmente aos nagôs, ou talvez aos minas de Aneho (Pequeno Popo), e n q u a n t o os maí ou mahij seriam os mahis. Todos esses povos habitavam a área oriental do G o l f o do Benim, o que confirma a ampliação da abrangência semântica e domínio geográfico da denominação "mina". 12 N o século XVIII, em Minas Gerais como no Rio, mina parece designar os povos que na Bahia eram chamados jejes. Q u a n d o em 1741 António da Costa Peixoto escreveu a Obra nova da língua geral de mina, a língua identificada como tal corresponde àquela falada ao Sul da atual República de Benim. Aliás, a expressão "gente mina" é identificada com o termo "guno", referindo-se especificamente aos habitantes guns de Porto Novo. 1 3 Já no Maranhão, autores do século XX como Nunes Pereira mencionam os "minas-achantis, minas-nagôs, minas-cavalos, minas-santé, minas-mahys" e os mina-jeje. Otávio da Costa E d u a r d o d o c u m e n t a expressões c o m o m i n a - n a g ô , m i n a - j e j e , m i n a - p o p o , m i n a - f u l u p a e até mina-angola e m i n a - c a m b i n d a . 1 4 Isso significa que, em certos lugares, entre os quais o Maranhão, mina chegou a designar simplesmente africano, sem n e n h u m a especificidade de procedência. Esse caso d e m o n s t r a c o m o as d e n o m i n a ç õ e s metaétnicas variam em conteúdo segundo as diversas épocas e regiões. Uma segunda consideração deve ser feita. A medida que as denominações metaétnicas crescem em generalidade, elas são qualificadas com um segundo termo de c o n t e ú d o mais restrito (cavalo, maí, nagô, jeje...). Essa segunda denominação pode até ser uma outra 28

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COSTAS

d e n o m i n a ç ã o metaétnica, porém de caráter mais específico. Cabe reter aqui que o termo "mina", a partir do século XVIII, abrangia a população africana da Costa dos Escravos ou Golfo do Benim, e dentre esta, muito especialmente, povos do reino de D a o m é e de suas imediações, os quais na Bahia f o r a m conhecidos por jejes. As denominações metaétnicas utilizadas e impostas pela elite escravista, embora na maioria estivessem fortemente associadas a determinados portos ou áreas geográficas de embarque, podiam também fazer referência a uma certa homogeneidade de componentes culturais e linguísticos compartilhados pelos povos assim designados. E precisamente o reconhecimento dessa comunidade de componentes culturais o que vai favorecer a adoção dessas denominações externas e a subsequente configuração de uma identidade coletiva (nação) assumida pelos próprios africanos. Cabe frisar que os c o m p o n e n t e s culturais não eram necessária ou exclusivamente de origem africana. C o m o já foi a p o n t a d o , no século XVIII os escravos minas de Minas Gerais eram aqueles que falavam o que se convencionou chamar a "língua geral da Mina". Portanto, na base do significado do termo "mina" estava não só a procedência de e m b a r q u e como t a m b é m o fator linguístico e, implicitamente, outras semelhanças culturais. Entretanto, a "língua geral da Mina", embora correspondente em especial ao gun, língua por sua vez derivada do aizo, o idioma original de Aliada, parece ter sido u m a espécie de língua franca desenvolvida no Brasil através de um processo de inclusão de itens lexicais de outras línguas do grupo gbe, tais como o fon, e até mesmo do nagô. 1 5 U m caso semelhante se dá com a língua nagô falada na Bahia do século XIX. Essa língua não correspondia inteiramente àquela falada pelos nagôs ou anagôs de Egbado, mas parece ter evoluído, n o contexto brasileiro, para u m a f o r m a de "patois" a partir de vários dialetos iorubás e da contribuição lexical de outras línguas africanas e até mesmo do português. Assim, vemos c o m o os povos incluídos sob u m a mesma d e n o m i n a ç ã o de nação são definidos a partir de vários fatores i n t i m a m e n t e relacionados, a saber: as zonas ou portos o n d e os escravos eram comprados ou embarcados, u m a área geográfica relativamente c o m u m e estável de moradia e u m a semelhança de c o m p o n e n t e s lingtiístico-culturais. C o n t u d o , foi a língua — a possibilidade de os africanos se c o m u n i c a r e m e se e n t e n d e r e m — o que levou, no Brasil, à absorção dessas denominações como formas de auto-inscrição e à consequente criação de novas comunidades ou sentimentos de pertença coletivos.

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L U I S N I C O L A U P A R ÉS

OS P O V O S DO GOLFO DO B E N I M E A ÁREA V O D U M O termo "jeje" aparece d o c u m e n t a d o pela primeira vez na Bahia nas primeiras décadas do Setecentos para designar um grupo de povos provenientes da Costa da Mina. Mas quais eram esses povos jejes? Os jejes têm sido usualmente identificados, ao menos a partir do século XIX e, posteriormente, na literatura afro-brasileira, como daomeanos, isto é, grupos provenientes do antigo reino de Daomé. Mas, na verdade, o termo "jeje" parece ter designado originariamente um grupo étnico minoritário, provavelmente localizado na área da atual cidade de Porto Novo, e que, aos poucos, devido ao tráfico, passou a incluir uma pluralidade de grupos étnicos localmente diferenciados. Trata-se, portanto, de u m a outra denominação metaétnica.

Mapa

1—

Área dos g b e - f a l a n t e s e principais grupos

étnicos

Em função das idéias apresentadas acima, caberia considerar os possíveis fatores pelos quais os jejes eram identificados como tal. Seria esse termo uma referência ao fato de morarem esses povos numa área geográfica determinada? 30

ENTRE DUAS

COSTAS

Qual teria sido essa área? Seria a palavra "jeje" uma referência a povos que compartilhavam uma certa homogeneidade linguística e cultural? O u essa palavra estaria talvez relacionada a fatores intrinsecamente ligados ao escravismo, tais como os portos de embarque ou o grupo de comerciantes que se encarregava da sua venda? Para discutir em maior detalhe essas questões, será útil apresentar um breve p a n o r a m a da história e da composição étnica d o G o l f o d o Benim, b u s c a n d o esclarecer alguma coisa a esse respeito. C o m o aponta Claude Lepine, toda a área do Golfo do Benim, do rio Volta ao rio Niger, "constitui uma grande área cultural, onde podem ser observadas marcantes semelhanças ao nível das instituições sociais e políticas, dos costumes, das práticas e crenças religiosas. A unidade cultural desta região explica-se pela história do seu povoamento, pelo seu passado de migrações e contatos". 1 6 O s historiadores contemporâneos que se dedicam a essa área da Africa ocidental falam de u m a série de migrações sucessivas realizadas pelos c h a m a d o s grupos p r o t o - i o r u b á s que, chegados do leste, se estabeleceram no G o l f o do Benim a partir do século VII. U m a migração posterior, liderada por O d u d u a , instalou-se por volta do ano 1000 em Ilê Ifé. D e lá, os netos de O d u d u a , em migrações subsidiárias, teriam ocupado a costa e o interior da região que mais tarde viria a ser o reino de D a o m é . Alguns autores sugerem que os primeiros habitantes da costa, os hulas ou popos, seriam os descendentes de O l u p o p o ou O l u k p o k p o , sexto filho de O k a m b i e neto de O d u d u a . O u t r o s grupos proto-iorubás, c o m o os guedevis, cujo e t n ô n i m o deriva do n o m e do seu rei Iguede, e os fons teriam o c u p a d o , nessa época, o planalto de Abomey. 1 7 Fala-se de u m a outra onda migratória, provavelmente contemporânea à de O d u d u a . Ela envolveu o grupo ancestral dos adjas, sob a liderança de TogbinAnyi. Proveniente da região de N u p e ou do rio Kwara (Niger), esse grupo veio a se instalar na área da futura Oyo. Por rivalidade com um outro grupo protoiorubá vindo de Ilê Ifé, o grupo de Togbin-Anyi iniciou uma longa migração r u m o ao oeste. Após estabelecer-se t e m p o r a r i a m e n t e em Ké (localização da futura Ketu) e em Savè, esse grupo chegaria a Tado, cidade situada na margem ocidental do rio M o n o , no atual Togo, a uns cem quilómetros do litoral. Ali, os descendentes de Togbin-Anyi se encontraram com os azanus, cujos ancestrais seriam os za, provenientes da área cultural Sonrai, na nascente do rio Niger. É e n t r e t a n t o possível que em Tado houvesse já outros moradores, como os ferreiros alu. 18 Dessa confluência em Tado entre os descendentes de Togbin-Anyi, vindos do leste, e os azanus, vindos do noroeste, grupos subsequentemente conhecidos como adjas, embora provavelmente integrando uma pluralidade de povos, iniciaram novas migrações. A mais antiga se supõe ser a de um grupo conhecido 31

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c o m o huisi, que, por volta do século XIII, se estabeleceu na planície entre os rios Koufo e O u e m é , f u n d a n d o ali o reino de Davie, que precedeu ao de Aliada. Esses grupos foram mais tarde c o n h e c i d o s como aizã ou, na sua versão moderna, aizos. 19 As tradições orais dos grupos hula e hueda indicam que também eles teriam saído de Tado. Porém, como j á apontei, esses grupos que ocuparam a lagoa litorânea teriam vindo d o leste com as migrações proto-iorubás em datas anteriores. Assim, o mito de u m a origem em Tado talvez tenha f u n d a m e n t o em reminiscências deixadas p o r invasões ou alianças posteriores em que estivessem envolvidos grupos adjas vindos de Tado. 2 0 Mapa 2 —

Migrações dos

adjas

N o século XVI, novas migrações adjas provenientes de Tado o c u p a r a m o território dos aizos, p r o m o v e n d o a f u n d a ç ã o d a cidade de Togudo, capital do reino de Aliada, que nessa época se c o n v e r t e u no poder hegemónico da região, c o n f o r m e sugere a aparição do seu n o m e ("Árida" e "Arda") em cartas de navegação portuguesa de 1570 em diante. Segundo as tradições orais, um g r u p o dos chamados agassuvi saiu de Aliada na primeira metade do século XVII e r u m o u em direção ao norte. Após submeter as populações locais c o m o os guedevis e os fons, esse g r u p o teria f u n d a d o o reino de D a o m é , estabele32

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COSTAS

cendo Abomey (Agbomé) como sua capital. A população desse reino foi subsequentemente conhecida pela denominação étnica "fon", ou seja, o n o m e de um dos grupos autóctones do planalto submetidos pelos agassuvi. Q u a n d o os fons ou daomeanos conquistaram Aliada, em 1724, a família real desse reino e seus seguidores fugiram para o leste, vindo a se estabelecer na região oriental do lago Nokué, onde fundaram o reino de Adjaché ou Adjasé, conhecido entre os europeus como Porto Novo. Os adjas ali estabelecidos foram chamados guri ou gunnu. Cabe notar que essa versão histórica sobre a fundação do reino de Porto Novo no século XVIII, mantida por Akinjogbin, contradiz as tradições dos reinos de Aliada, D a o m é e Porto Novo. 2 1 Sujeitos a múltiplas variações, que aqui sintetizo, os mitos de f u n d a ç ã o desses reinos c o i n c i d e m em a f i r m a r que a d i n a s t i a real de Aliada estava conectada por linha materna com a de Tado, sendo o seu f u n d a d o r um estrangeiro que casou com u m a princesa da família real de Tado, que segundo as tradições do D a o m é se teria chamado Aligbonon. Após um conflito pela sucessão do trono de Tado, os agassuvi — descendentes dessa princesa e do estrangeiro Agassu, por vezes identificado com u m a pantera mítica — tiveram que fugir daquela cidade, sob a liderança de Ajahuto, n o m e geralmente traduzido como "o assassino dos adja". A j a h u t o foi o f u n d a d o r do reino de Aliada. Passadas algumas gerações, três príncipes irmãos se separaram após u m a disputa sucessória. U m deles teria ficado em Aliada, um o u t r o teria ido para o norte, para f u n d a r o D a o m é , e o terceiro teria ido em direção ao leste, para f u n d a r Porto Novo. Segundo essas tradições, a fundação do reino de Porto Novo seria a p r o x i m a d a m e n t e c o n t e m p o r â n e a à f u n d a ç ã o do Daomé. 2 2 Estudos históricos recentes mostram que esses mitos de fundação poderiam ser uma construção relativamente tardia, provavelmente do século XVIII, mas só d o c u m e n t a d a no século XIX, e originalmente elaborada pela família real daomeana — de m o d o a legitimar o seu poder real, f u n d a m e n t a n d o - o n u m a ascendência em Tado — , sendo s u b s e q u e n t e m e n t e apropriada e reelaborada pelas dinastias reais de Porto Novo e Aliada, esta última já sujeita ao domínio do Daomé. 2 3 Seja como for, essas narrativas sugerem que, por volta do século XVI, grupos adjas originários de Tado migraram para o leste e, d o m i n a n d o e absorvendo populações autóctones preexistentes, f u n d a r a m o reino de Aliada, a partir do qual se legitimou, posteriormente, o poderio do D a o m é e Porto Novo. Essas migrações de Tado para o leste foram seguidas por outras, no início do século XVII, mas desta vez na direção oeste. Em um m o m e n t o não determinado, provavelmente, segundo Spieth, por volta de 1610, grupos oriundos de Tado f u n d a r a m a cidade de Notsé, centro de migrações subsidiárias que nas 33

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

décadas seguintes resultaram na ocupação da região setentrional da atual Togo e Gana. Esses grupos foram conhecidos pela d e n o m i n a ç ã o metaétnica "ewe", originada no e t n ô n i m o de um desses grupos. 2 4 Foi o coronel Alred Ellis, com o seu livro The Ewe-speakingpeople, publicado em 1890, q u e m popularizou o termo "ewe" para designar todos os povos linguisticamente relacionados que ocupavam a região do rio Volta em Gana, e as partes meridionais de Togo e Benim. Assim, o termo "ewe" viria a designar não só os povos saídos de Notsé, mas todos aqueles originários de Tado. Posteriormente, o linguista alemão Diedrich Westermann, trabalhando em Togo, veio consolidar o uso do termo "ewe". N a literatura francófona, termos como "adja", "aja" ou "aja-Tado" têm sido mais f r e q u e n t e m e n t e utilizados para designar esses grupos. Mais recentemente, ocorre a utilização de termos como "fon-ewe" ou "ewe-fon", "adja-ewe" ou "ewe-aja", "foja ( f o n - a d j a ) " e " E G A F (ewe-gen-aja-fon)". 2 5 D e maneira geral, no presente trabalho, a d e n o m i n a ç ã o "adja" será usada de m o d o restrito para designar aqueles povos que reclamam u m a origem de Tado e emigraram para o leste, instalando-se na área da atual República do Benim e no sudoeste da Nigéria. Entre eles, os fons foram o g r u p o d o m i n a n t e a partir da expansão do reino do D a o m é . Por o u t r o lado, o termo "ewe" será utilizado para designar os povos que saíram de N o t s é e se expandiram em direção ao oeste, no Togo e em Gana. Em 1980, n u m a conferência celebrada em C o t o n u , H o u n k p a t i B. C. Capo propôs utilizar a expressão "área dos gbefalantes" (Gbe-speaking area) para designar a região ocupada por esses povos linguisticamente relacionados, sendo que gbe é um termo c o m u m para significar língua na maioria dos 51 dialetos registrados. C o m essa expressão mais neutra e genérica se pretende evitar o e t n o c e n t r i s m o de designar uma pluralidade de povos com o n o m e de um deles. C o m o já foi dito no prefácio, a expressão "área gbe" será aqui utilizada para designar a zona geográfica ocupada pelos povos a n t e r i o r m e n t e chamados de adja-ewe (ou variantes). Todavia, essa região não foi habitada apenas por povos gbe-falantes. C o m o já foi dito, o substrato cultural dos povos proto-iorubás permaneceu forte, sobretudo na área oriental da região. Desde as migrações de Ilê Ifé, na virada do milénio, vários desses grupos se deslocaram em direção oeste, f u n d a n d o diversas cidades-estado que aos poucos se converteram em reinos. Os nagôs, anagôs ou a n a g o n u , o r i g i n á r i o s da área de E g b a d o (Nigéria), estabeleceram-se na área da f u t u r a Porto Novo (Adjaché) e nas áreas de Sakété e Pobé (sudeste e centro), chegando a constituir uma das maiores populações iorubás no Daomé. O u t r o s grupos proto-iorubás f u n d a r a m a cidade de Ké, onde mais tarde surgiria o reino de Ketu. Os savès f u n d a r a m o seu reino (onde eles se 34

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chamam Tchabè) em ambas as margens do rio Okpara, mas as fronteiras entre Nigéria e D a h o m e y estabelecidas pelos poderes coloniais dividiram o seu território, ficando os grupos da margem ocidental (no D a h o m e y ) , sob o círculo de Savè, atualmente sous-préfecture de Savè. Os dassas f u n d a r a m o seu reino (onde eles se c h a m a m Dassa ou Idatcha) na área M a h i , ao norte do rio Z o u . A noroeste de Dassa, os ifès, os itchas e os manigris constituíram outros grupos proto-iorubás. Os ohoris (idjè ou holli) instalaram-se na região de Hollidjè, entre Pobé e Ketu. 2 6 Mapa 3 —

A área dos gbe-falantes e seus

dialetos

Fonte: H, B. C. Capo, Comparalive phonology of Gbe. Berlim, Nova Iorque: Foris Publications, 1991. Nota: Exceto os g l o s s ô n i m o s (escritos n a ortografia gbe, u n i f o r m i z a d a por Capo), todos os outros n o m e s aparecem na ortografia "oficial" inglesa ou francesa.

A influência cultural desses povos é c o n f i r m a d a pelo uso frequente, entre os povos de língua gbe, de alguns dos muitos dialetos iorubás, fato já docum e n t a d o desde meados do século XVII. Em 1668, Olfert Dapper comentava: "E curioso que estes negros [de Aliada e Jakin] despreciam a sua língua materna que utilizam pouco, aprendendo uma outra de uso mais corrente que chamam U l k u m y [ a n a g ô ] " . r Aliada era inicialmente tributária do reino do Benim, fato d o c u m e n t a d o em 1 6 7 0 , m a s desde finais do século XVII era o reino de O y o que exercia o poder. Em 1698, Aliada foi invadida pelos oyos, em consequência do massacre dos mensageiros do rei de O y o enviados para Aliada.' 9 As incursões dos oyos em território adja c o n t i n u a r a m d u r a n t e o

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século XVIII. Em consequência disso, D a o m é se manteve como um reino tributário de O y o de 1712 até o início do século XIX, q u a n d o o rei Glele conseguiu libertar o seu povo desse domínio. Por outro lado, depois da conquista da costa pelo rei Agaja, em 1724-27, grupos gbe-falantes de huedas, ouemenus, hulas e aizos se deslocaram para as zonas habitadas pelos nagôs, em Porto N o v o , Badagri e Lagos. 30 Temos, p o r t a n t o , uma área em que dependências políticas, diplomacia, comércio, guerras, escravidão e migrações cruzadas c o n t r i b u í r a m para gerar u m a situação de intenso contato cultural nagô-adja. Trata-se de um território de fronteira, onde valores e práticas, tradições e línguas convivem e se influenciam, n u m a apropriação e reelaboração mútuas. Essa área culturalmente heterogénea e multilingue, em que se misturam os gbe-falantes com os iorubá-falantes, se tornou um espaço propício para que a sua população desencadeasse processos de diferenciação étnica, mas a convivência continuada levou também a processos paralelos de complementaridade e assimilação cultural. Nessa sociedade poliétnica, os adjas e os iorubás, apesar de compartilharem semelhanças político-culturais importantes, p o d e m ser distinguidos por algumas diferenças significativas, o que d e m o n s t r a , como a p o n t a Aguessy, que "mesmo as populações saídas de um substrato c o m u m acabam por diferenciar-se através de séculos de vida própria". 3 1 Pazzi aponta algumas dessas diferenças. Os iorubás têm como bebida tradicional o vinho de palma (deha), enq u a n t o a bebida tradicional dos adjas é a cerveja de milho (liha). O t r o n o real dos iorubás é de três pés, e n q u a n t o o dos adjas é de cinco pés, como acontece entre alguns povos blus, localizados ao n o r t e e oeste da área gbe. Entre os iorubás, o ciclo semanal é de quatro dias, e n q u a n t o entre os adjas esse ciclo, e m b o r a m a n t i d o para os ritos dos ancestrais e o repouso da terra, é combin a d o com o ciclo de sete dias característico dos blus, que se aplica para a celebração dos aniversários de nascimento. Pazzi sugere que essas semelhanças em relação a práticas dos povos blus (em particular dos ashantes de Kumasi) e de outras populações do nascente do Niger (antigamente relacionadas ao império Mali) seriam resultado da influência exercida pelos azanus sobre os adjas em Tado e justificariam a hipótese segundo a qual os azanus seriam oriundos da área Sonrai. Entretanto, iorubás e adjas praticam a circuncisão e, em ambos os casos, o parentesco é estabelecido por descendência patrilinear, excetuando os ewés que praticam um sistema misto. Talvez a origem dessa diferença dos ewés possa ser também explicada como uma influência dos blus, entre os quais o parentesco se organiza por descendência matrilinear. 3 2 N o âmbito religioso t a m b é m há diferenças e semelhanças entre as instituições e manifestações religiosas dos iorubás e dos adjas. U m a das diferenças 36

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mais significativas é de ordem linguística. E n q u a n t o os grupos iorubás utilizam o termo "orixá" para referir-se às divindades, todos os grupos gbe-falantes, não apenas os adjas, utilizam o termo "vodum". Essa palavra aparece registrada pela primeira vez na tradução da Doctrina Christiana para a Lengua Arda, realizada pelos c a p u c h i n h o s espanhóis em 16 5 8. 33 A sua etimologia é incerta, mas, de m o d o geral, o termo evoca u m a ideia de mistério, o inefável que não p o d e ser conhecido. 3 4 O u t r a palavra utilizada na área gbe para designar os v o d u n s é hun, termo polissêmico que t a m b é m significa sangue. Já no extremo ocidental da área gbe, p r i n c i p a l m e n t e no Togo, os voduns são designados pelo t e r m o yehwe. Entre os gens, yehwe parece ser aplicado a divindades do p a n t e ã o do m a r e do trovão de origem hula e aizo. 3 ' Naquelas partes da área gbe onde habitam grupos iorubá-falantes há possibilidade de achar cultos de orixás. O s orixás não são divindades de origem adja, como ocorre com os yehwe. Ao contrário, é mais provável que certos voduns t e n h a m origem iorubá. Por exemplo, na tradução da Doctrina Christiana aparece a expressão Lisa (Toi Lisa, Elisa) para traduzir o n o m e de Jesus Cristo. Sendo Lissá um v o d u m associado à cor branca, não é estranho que os tradutores de Aliada escolhessem esse referente para designar o deus dos brancos. Ora, Lissá deriva do nagô orisa, pois os vocábulos nagôs, q u a n d o apropriados pelos gbe-falantes, perdem a vogal inicial e t r a n s f o r m a m o r em l. i h Essa evidência indica que em meados do século XVII o sistema religioso nagô já tinha forte penetração no sistema religioso v o d u m . Aguessy afirma que, "além de u m a homologia na estrutura de seus panteões, há t a m b é m uma correspondência termo a termo de numerosas divindades". 3 7 O que interessa reter é que os processos de interpenetração cultural que se deram no Brasil entre os jejes e os nagôs já t i n h a m u m a longa tradição na própria África. Apesar da c o m u n i d a d e de elementos conceituais e rituais que e s t r u t u r a m o sistema religioso da maioria das sociedades do Golfo do Benim, a fronteira linguística permite demarcar u m a hipotética área dos cultos de v o d u n s entre os cultos de yehwe dos mina-gens e os cultos de orixás dos nagôs. Essas fronteiras, estabelecidas em f u n ç ã o das palavras utilizadas para designar as divindades, são reforçadas pelos nomes dados às práticas oraculares que n o r m a l m e n t e a c o m p a n h a m esses cultos: fala-se de Ifá nos cultos de orixás, de Fa nos cultos de voduns, e de Afa na área ewe. 38 E m b o r a não seja possível falar de limites geográficos precisos, as diferenças na terminologia religiosa permitiriam falar de uma "área vodum", inserida no sistema religioso-cultural mais amplo que abarca desde G a n a até Nigéria. O interesse em circunscrever uma área do v o d u m , praticamente coincidente com a área linguística dos gbe-falantes, deriva do fato de que o C a n -

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d o m b l é jeje no Brasil p o d e ser d e f i n i d o c o m o uma instituição religiosa caracterizada pelo culto de entidades espirituais chamadas voduns. Sendo assim, definir u m a área do v o d u m p o d e a j u d a r a identificar a procedência dos jejes. Se considerarmos as divindades jejes que são cultuadas nos candomblés atuais (Hevioso, Sakpata, Dan) e levarmos em conta as diversas "subnações" jejes que ainda hoje são lembradas (mahi, savalu, m u n d u b i , dagomé, minap o p o ) , todos esses elementos poderão levar-nos a circunscrever a área de procedência dos jejes à região que vai de A n e h o a Badagri, entre os rios H o h o e o rio Yewa, incluindo a zona interior dos mahis e a área litoral dos mina-gens, talvez deixando de lado os povos ewés do norte, que Capo identifica com os " V h e lects" (kplen, dayin, gbin, agu, ho, peei). Nesse s e n t i d o , a área do v o d u m seria a dos povos gen, u a t c h i , a d j a , f o n , h u e d a , h u l a , aizo, g u n , o u e m e n u , mahi e outros a eles ligados. Esses grupos étnicos correspondem principalmente aos povos gbe-falantes que, a partir do século XVIII, foram submetidos ou estiveram sob a influência e o controle do reino do D a o m é . A composição étnica do reino de D a o m é e imediações é bastante complexa e se presta a várias tipologias ou classificações. Paul H a z o u m è menciona, entre as etnias do reino de Daomé, pelo menos 14 povos: adjas, hulas (pias), uatchis, kotafons, huedas (pedas), aizos, tofinus, fons, guns, o u e m e n u s , além dos iorubás, nagôs e hollis, que vieram do leste. Segundo Tidjani, o grupo étnico mais i m p o r t a n t e do Baixo D a o m é é o g r u p o adja-aizo-fon e m i n a (gen); e assinala que, q u a n d o se fala de "daomeano", se trata essencialmente desse grupo. 3 9 Cabe frisar que o que entendemos por área v o d u m abarca uma extensão algo maior que o D a o m é , i n c l u i n d o povos que, e m b o r a sujeitos às incursões dos d a o m e a n o s na p r o c u r a de escravos, não p e r t e n c i a m estritamente aos seus limites políticos. T o m e m o s para ilustrar esse p o n t o o caso dos povos mahis, que aliás foram u m dos grupos com presença mais expressiva na Bahia. A k i n j o g b i n chama o país M a h i um "campo de caça a escravos". 40 Efetivamente, desde Agaja até Glele, todos os reis do D a o m é realizaram nessa área c a m p a n h a s militares de maior ou m e n o r sucesso. A expressão "mahi" parece ter surgido no século XVIII c o m o d e n o m i n a ç ã o utilizada pelos d a o m e a n o s para referir-se a u m a pluralidade de povos localizados ao n o r t e do rio Z o u . E m b o r a questionável, Bergé e C o r n e v i n nos dão como etimologia de mahi a expressão ma-hi-nou, que significaria "as vítimas da fúria" ou "a destruição da fúria", talvez u m a alusão a esse passado de caça a escravos. 41 A primeira referência escrita conhecida sobre os mahis aparece n u m a carta redigida ao vice-rei da Bahia por João Basílio, diretor do forte português em Uidá, em 8 de setembro de 1732: " C o m o o Rei de D a o m é teve a felicidade 38

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de vencer o país dos Mauis [...]". 42 O u t r a referência aparece mais tarde no relato de Norris, escrito em 1773: "os mahis são u m a poderosa confederação de muitos estados i n d e p e n d e n t e s e unificados, cuja f o r m a de governo parece ser de tipo feudal. Seus líderes possuem vassalos ou escravos, mas não os tratam com a dureza dos daomeanos. Porém os vendem em n ú m e r o s consideráveis aos negociantes daomeanos". 4 3 Portanto, mesmo m a n t e n d o u m a relativa independência, a "confederação" dos mahis esteve em constante contato com seus vizinhos. Muitas vezes estabeleceram alianças com os oyos para defender-se dos daomeanos, mas t a m b é m , já no século XVIII, certos grupos mahis constituíram parte i m p o r t a n t e do exército daomeano. 4 4 Mapa 4 —

0 país

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Bergé coletou as tradições orais dos reinos de Fitca (ou país de Fellattah), Dassa e de o u t r o s povos da área M a h i , assim c o m o as d o vizinho reino de Savalu, que, e m b o r a localizado ao n o r t e do rio Z o u , esse autor não considere c o m o p a r t e do país M a h i . D e s c r e v e n d o em detalhe as múltiplas migrações desses povos, Bergé conclui que os mahis c o n s t i t u e m "um verdadeiro coquetel de raças", resultado de u m a lenta miscigenação e simbiose cultural das populações nagô-iorubás originais com sucessivos grupos adjas e fons vindos d o sul. 45 Por exemplo, o reino de Dassa (Idassa), com o seu centro mais i m p o r t a n t e em Dassa Z o u m é , e c u j a d i n a s t i a real r e m o n t a a 1700, foi f u n d a d o pelos nagô-egbas p r o v e n i e n t e s da zona da atual A b e o kuta. 4 6 Os fittas e os savalus (Tchevelou) eram t a m b é m de origem nagôiorubá; outros povos p o d i a m ter ascendência adja (guedevis, gbanlis, dovis) e se teriam r e f u g i a d o na região m o n t a n h o s a dos mahis com o s u r g i m e n t o do reino de D a o m é no p l a n a l t o de A b o m e y , na p r i m e i r a m e t a d e do século XVII. O caso de Savalu merece especial atenção, já q u e o t e r m o aparece c o m o e t n ô n i m o no Brasil a p a r t i r do século XVIII e ainda h o j e designa u m a das " s u b n a ç õ e s " do C a n d o m b l é jeje. Savalu é, na a t u a l i d a d e , a c i d a d e mais i m p o r t a n t e da região M a h i , e a família G b a g u i d i tem sido o clã dirigente desde provavelmente finais do século XVII. Segundo tradições locais, os ancestrais dos Gbaguidi eram originários do lago Aheme, na ilha M i t o g b o d j i , habitada pelos pescadores dovis (filhos da rede), que, por sua vez, eram de origem h u e d a . Depois de u m a disputa fratricida, Ahossu Soha emigrou para o norte, passando pela região do rio O u e m é , o planalto de Abomey, até finalmente chegar a Savalu, ou T c h e b e l o u , "uma cidade nagô originalmente" habitada pelos ifès. Essa migração deve ter a c o n t e c i d o nos t e m p o s dos reis d a o m e a n o s H w e g b a j a (1650-1680) ou Akaba (1680-1708). Savalu, como outras partes do país Mahi, foi atacada em várias ocasiões pelos reis daomeanos em sua busca por escravos e manteve um relacionamento t a n t o de conflito q u a n t o de cooperação com esse reino, a l t e r n a n d o períodos de independência e de submissão tributária. Foi só durante a vigência do reino de Ghezo (1818-1858) que Savalu e grande parte do país M a h i (exceto os reinos de Dassa e Fitta) foram ocupados pelo D a o m é . Naquele tempo, Savalu era considerada terra anagô, mas os seus d i r i g e n t e s de origem h u e d a , os Gbaguidi, que ajudaram o rei Ghezo a dominar os mahis, preservaram grandes privilégios. Em 1845, D u n c a n i n f o r m o u que, depois do c h a c h a de Uidá, G b a g u i d i era a segunda pessoa mais poderosa do D a o m é e m a n t i n h a u m a relativa independência no controle político não só da região de Savalu, mas t a m b é m das vizinhas cidades mahis. 4 8

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Por essas relações privilegiadas com os f o n s , os m e m b r o s da f a m í l i a G b a g u i d i c o n s i d e r a m - s e h o j e f o n s : "embora o nosso ancestral seja peda [hueda] de Mitogbodji, nós, seus descendentes, nos consideramos como fons. A nossa passagem por Wavè, no território fon, fez com que t o m á r a m o s os hábitos dos fons. Nós não somos mahis. Ao contrario, nós c o m a n d a m o s toda essa gente". 4 9 Portanto, embora estabelecidos entre povos anagôs, os savalus (ou pelo menos seus dirigentes), que falam uma língua parecida com o fon e preservam os costumes fons, parecem ter c o n s t r u í d o u m a identidade étnica diferenciada dos mahis. O comentário dos Gbaguidi mostra claramente como as identidades étnicas p o d e m ser resultado de u m a orientação ideológica que responde aos interesses políticos do grupo, n o caso, a identificação com os fons serviria para legitimar a sua hegemonia sobre os povos vizinhos mahis e nagôs. E m b o r a esses povos pertençam à mesma área geográfica, a diferenciação étnica entre os savalus e os mahis explicaria a diferenciação que se mantém no C a n d o m b l é baiano entre a nação jeje-mahi e a nação jeje-savalu. O u t r o grupo cuja presença no Brasil foi bastante significativa era o dos chamados "agolin", correspondentes aos agonlis ou agonlinus, estabelecidos a este de Abomey, ao redor de cidades como Zagnanado e Cové. Ainda que Bergé não reconheça essa área como parte do país Mahi, é provável que, por estar localizada ao norte do rio Zou, os daomeanos assim o fizessem. Foi no contato com povos dessa região, próxima do lago Azili, que os daomeanos se apropriaram de práticas religiosas associadas aos espíritos dos rios que eles identificam como mahis. O culto das divindades tohosu e das tobosi, que constituem uma importante base ritual do culto aos ancestrais reais de Abomey (Nesuhue), provém dos agonlis. 50 Todavia, outra modalidade de rito no C a n d o m b l é de nação jeje é o jejem u n d u b i . " M u n d u b i " (ou as suas variantes m u d u b i , m a n d u b i , m o n d u b i , m o n d o b i , m e n d o b i ou m o d o b ê ) é u m a d e n o m i n a ç ã o étnica que surge registrada na Bahia a partir de 1812 e que, embora pouco frequente, parece mais utilizada a partir de 1830. S1 De toda forma, não encontrei o t e r m o documentado na área dos gbe-falantes. Alguns autores têm identificado erroneamente m u n d u b i com um g r u p o banto, S 2 mas o e t n ô n i m o certamente designa grupos da área gbe e isso porque no contexto religioso brasileiro esse termo se aplica especificamente à família dos voduns do trovão e do mar (Hevioso, Sogbo, Averekete etc.), procedentes dessa área. Verger identifica os m u n d u b i com os h u e d a e hula, y ' o que é provável por serem essas etnias dois dos grupos que originariamente cultuavam essas divindades. Mas outros grupos do litoral que no início do século XIX também as cultuavam (i.e., ai'zo, fon, tori, dovi, gen, anlo) não devem ser descartados (ver cap. 7). Embora a etimologia

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de m u n d u b i seja confusa, não seria impensável que o e t n ô n i m o fosse uma criação brasileira. 54 Vemos, assim, como no Candomblé, associadas à denominação genérica "jeje", se acrescentaram denominações étnicas de "províncias" ou "terras" da área vodum. Tendo demarcado a área geográfica aproximada dos povos adjaewés, delineado a grandes traços a sua complexa composição étnica, apontado a sua unidade linguística referida como a área dos gbe-falantes, e a sua unidade cultural, aqui essencialmente definida em termos religiosos como a área v o d u m , foi possível identificar e localizar os principais grupos que deram n o m e às "subnações" ou "modalidades de rito" do C a n d o m b l é jeje. A saber: jeje-marrim ou marrino (mahi), jeje-savalu, jeje-dagomé (daomé), jeje-mundubi e jeje-mina-popo. 5 5 Do mesmo modo que as denominações metaétnicas eram qualificadas com um segundo termo de caráter mais restrito (i.e. minanagô, mina-jeje etc.), essa dinâmica denominacional se perpetua no âmbito das nações de Candomblé.

0 TRÁFICO PORTUGUÊS D E ESCRAVOS MA ÁREA V O D U M ANTERIOR AO SÉCULO X V I I I A história do tráfico de escravos escapa ao propósito desta pesquisa. Entretanto, é preciso apresentar um breve panorama desse processo para demarcar os períodos e portos de embarque a partir dos quais os povos da área vodum foram trazidos para a Bahia. Precedendo Verger, Luiz Viana Filho já estabelecera uma divisão cronológica do tráfico português em três grandes ciclos. Esses ciclos teriam sido os seguintes: o ciclo da Guiné, durante a segunda metade do século XVI, o ciclo de Angola e do Congo, no século XVII, e o ciclo da Costa da Mina, durante os três primeiros quartos do século XVIII. A isso Verger acrescenta o ciclo da baía de Benim, entre 1770 e 1850, incluindo aí o período do tráfico clandestino. 5 6 Aqui nos interessam, sobretudo, o terceiro e o quarto ciclos, que estão compreendidos ao longo do século XVIII e durante a primeira metade do século XIX, período em que o maior contingente de escravos da área vodum chegou à Bahia. Vamos, no entanto, analisar brevemente o período anterior. O comércio de ouro e escravos realizado por portugueses na Costa da Mina tem início por volta de 1470, mas é só em 1553 quando temos notícia do primeiro contacto português com os povos litorâneos da área gbe, os papouès ou popos, provavelmente no atual Grande Popo. 5 " É possível presumir que pouco tempo depois os portugueses tenham estabelecido contato com o reino de Aliada (Ardra), o qual detinha um poder hegemónico naquela zona, na segunda

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metade do século XVI. H á documentos que indicam a presença de escravos denominados "Aradas" ou "Araras" no Peru, já a partir de meados da década de 1560. O negociante holandês De Merees, descrevendo as condições do comércio de escravos no ano de 1601 (ou antes), nota que os portugueses estavam comprando "muitos escravos" de Aliada, para as plantações de açúcar de São Tomé e Brasil. Outras referências mostram que o comércio português em Aliada continuou ativo, tanto c o m escravos como com outros produtos, pelo menos até o final da década de 1620, quando os holandeses passaram a controlar a região. 58 As Províncias Unidas dos Países Baixos, em guerra de independência contra o rei de Castela desde 1568, aproveitaram a forçada submissão dos p o r t u gueses ao Império Espanhol, em 1580, como um pretexto para atacar os seus territórios de ultramar, tanto nas Américas c o m o na África. Aos holandeses importava o fato de que Portugal não só competia com os Países Baixos n o tráfico de escravos, c o m o agora fazia parte do inimigo Império Espanhol. Deu-se assim u m a tentativa frustrada de invadir a Bahia (1624-25) e, poucos anos depois, em 1630, foi invadido o nordeste do Brasil (Pernambuco, em 1630, Rio G r a n d e do N o r t e e Paraíba, em 1634). A necessidade de prover escravos para os engenhos de açúcar brasileiros levou os holandeses a invadir os entrepostos portugueses na costa da Africa. O forte de São Jorge da Mina foi c o n q u i s t a d o em 1637. Em 1641, apesar da trégua então firmada entre o rei João IV e os holandeses, as ilhas de São Tomé e Príncipe foram ocupadas. O m e s m o aconteceria a Angola (Luanda até 1648). Desse m o d o , desde a década de 1630 até 1653 a C o m p a n h i a H o l a n d e s a das í n d i a s O c i d e n t a i s (WIC) d o m i n o u o comércio na Costa da Mina, vindo ocasionalmente a se estabelecer nos portos de O f f r a (Offer para os holandeses) e Apa. Entre 1636 e 1647 a W I C c o m p r o u u m a média anual de 800 escravos de Aliada, levados p r i n c i p a l m e n t e para o Brasil, mas t a m b é m para São T o m é . ' 9 As primeiras levas de escravos da área gbe para o Brasil d a t a m , p o r t a n t o , desse período, que vai de 1570 a 1647. São esses os escravos que, vindos de Aliada, foram recrutados em regimentos paramilitares d u r a n t e a guerra da independência contra os holandeses em P e r n a m b u c o . Já mencionei a carta de H e n r i q u e Dias, de 1647, em que há u m a primeira referência aos Ardas, "tão fogosos que t u d o querem cortar de u m só golpe". T a m b é m em 1647, Gaspar Barléus menciona os Ardrenses, "que são m u i t o ignorantes, teimosos e estúpidos, têm horror ao trabalho se excetuarmos pouquíssimos que, m u i t o pacientes no trabalho, a u m e n t a m o seu preço". Antonil menciona os Ardas, mas ja entre uma pluralidade de denominações de procedência, o que evidencia o incremento paulatino do tráfico intercontinental. Esse autor faz comentário segundo o qual "os Ardas e os Minas são robustos". 6 0

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Arda designava o centro comercial o n d e os escravos t i n h a m sido vendidos aos portugueses. Da mesma f o r m a que mina, arda ou arada foram d e n o m i nações metaétnicas elaboradas a partir do n o m e do lugar de procedência "comercial". C o m o aponta Labat, no Voyage du Chevalier des Marchais en Guinée, p u b l i c a d o em 1730, arada não designava necessariamente u m a p o p u l a ç ã o indígena desse reino. "Os Aradas são os melhores escravos que p o d e m ser comprados nos reinos de Juda [Uidá] e Ardres [Aliada]; mas não devem ser c o n f u n didos com os naturais de Ardres, eles não vêm desse reino. São trazidos a Juda de um país que fica a umas 150 léguas ao nordeste." 6 1 , D u r a n t e a segunda metade do século XVII, a concorrência comercial entre holandeses, ingleses e franceses, centrada s o b r e t u d o no tráfico de escravos, "provocou u m a transformação político-econômica sem precedentes na costa da área gbe, que ameaçou e acabou por solapar o poder hegemónico de Aliada. Favorecidos pela localização costeira, pelas o p o r t u n i d a d e s comerciais e pelas armas oferecidas pelos europeus, surgiram outros reinos menores, como Popo e, sobretudo, o reino Hueda, com capital em Savi e porto em Uidá. Esses reinos viviam em constante disputa com O f f r a e depois Jakin, os portos de embarque dos comerciantes de Aliada. A partir de 1680, com a chegada dos gãs e dos fante-anés e a subsequente f u n d a ç ã o do reino Gen, com o seu p o r t o em Pequeno Popo (Aneho), essas disputas interétnicas viriam a se exacerbar. Foi uma época de grande instabilidade social, com guerras constantes entre Coto, Aneho, Popo, Uidá, Aliada, O f f r a e Jakin. Essas guerras tanto poderiam ter como objetivo a procura de escravos q u a n t o a desestabilização e o consequente controle do comércio dos vizinhos em benefício próprio. A principal disputa entre o reino de Aliada e o reino H u e d a foi ainda complicada por O f f r a que, instigada pelo lucro do tráfico, rebelara-se em várias ocasiões contra o seu soberano. C o m o estratégia contra-ofensiva, Aliada bloqueava de f o r m a recorrente as rotas que vinham do interior, desviando o tráfico ora para Uidá ora para O f f r a , segundo os interesses do m o m e n t o . Foi a a t i t u d e rebelde do fidalgo de O f f r a — que em 1690 tinha assassinado o feitor holandês Van H o o l w e r f f — que levou o rei de Aliada a convocar o exército de Pequeno Popo, o qual deveria resolver a questão. Em 1692, O f f r a foi totalmente destruída. A partir desse m o m e n t o , holandeses, franceses e ingleses passaram a desenvolver o comércio principalmente em Uidá, em detrimento de Aliada. Em 1703, indicando o seu crescente poderio, os huedas negaram-se a pagar os tradicionais tributos a Aliada. Após 1714, q u a n d o as condições comerciais em Uidá se tornaram difíceis, devido às novas pressões exercidas por Aliada, as feitorias foram de novo transferidas para os portos desse reino, desta vez para Jakin e não mais para O f f r a . 6 '

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Entretanto, c o m o já foi bem descrito por Pierre Verger, o comércio português e baiano na Costa da M i n a estava sujeito ao controle e c o n ó m i c o e militar dos holandeses. O tratado de trégua de dez anos, assinado em 1641 entre Portugal e os Países Baixos, reconhecia a soberania holandesa na costa da Guiné. O Tratado de Miinster (Westphalia), de 1648, exigia que os p o r t u gueses comprassem qualquer escravo africano diretamente à W I C , exceto na área de Luanda (Angola). Esse acordo apenas desapareceria com o tratado de 1661, que reconhecia o livre comércio português na Africa, mas o proibia explicitamente na Costa da Mina. C o m o resultado, qualquer barco português que quisesse comerciar a sotavento do Forte de São Jorge d ' E l m i n a deveria pagar aos holandeses, nesse porto, u m a taxa equivalente a 10% da sua mercadoria. Além disso (depois do Tratado de Miinster, segundo Pazzi), cada barco teria que solicitar um passaporte em Elmina para poder comerciar. A taxa de 10% é d o c u m e n t a d a já em 1717, mas corria o boato de que essa obrigação datava de 1654, q u a n d o os holandeses deixaram P e r n a m b u c o . O r a , essa saída foi na verdade o resultado de u m a expulsão e, desse m o d o , dificilmente poderia ter dado lugar a uma tal imposição. Por o u t r o lado, sempre que possível, os comerciantes brasileiros procuravam evitar esse p a g a m e n t o . Em 15 de j u n h o de 1733, o vice-rei da Bahia escrevia ao secretário de Estado, explicando que "as embarcações do Brasil não c o s t u m a m fazer negócio senão nos portos de Jaquin, A j u d a [Uidá] e Apá e outros que c h a m a m de Baixo [Pequeno Popo], em que os holandeses não têm d o m í n i o nem presentemente feitorias [...] sem irem ao Castelo [d'Elmina] a pagar-lhe dez por cento do tabaco que levam". N ã o existe certeza acerca do m o m e n t o em que o direito dos barcos portugueses de comerciar na Costa da M i n a foi restrito pelos holandeses aos q u a t r o portos de Popo, Uidá, Jakin e Apa, mas a medida permaneceu efetiva até pelo menos 1770. 63 Apesar das restrições e da vigilância naval dos holandeses, nas últimas décadas do século XVII os vasos, patachos e sumacas portuguesas e baianas comerciavam de f o r m a clandestina, mas fluída, em outros portos menores como o do reino de C o t o , ao leste do rio Volta, ou Pequeno Popo (Aneho). 6 4 Todavia, em 1711, como atesta a correspondência da WIC, "os portugueses tem de fato livre comércio [ao longo da Costa] e mais q u a n d o conseguem escapar aos navios da C o m p a n h i a , navegando sob a proteção dos canhões dos fortes de outras nações estrangeiras". 6 3 A taxa de 10% era paga necessariamente em tabaco, sendo proibido aos portugueses o comércio de outros produtos europeus. C o m o informa Antonil, o plantio do tabaco na Bahia teve início no final do século XVI. Em 1644, 45

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dom João IV "tinha autorizado seus vassalos a irem às costas da Guiné, a fim de levar tabaco de terceira categoria e trazer escravos aos portos do Brasil". Os holandeses adquiriam o tabaco baiano de terceira qualidade, o chamado tabaco refugo, proveniente d o Recôncavo, para comerciar com os africanos que apreciavam esse p r o d u t o mais que qualquer outro. C o m o já foi estudado em detalhe por Verger, essa preferência teve importantes repercussões, favorecendo especialmente aos comerciantes baianos que dispunham de tabaco, em detrimento dos comerciantes portugueses e de outras partes do Brasil que, sem esse produto, viram reduzidas as suas possibilidades de comerciar nessa parte da costa. Portugal encorajou seus comerciantes coloniais e metropolitanos a comprar escravos em Angola, C o n g o ou Guiné, onde o poder holandês era menos evidente, mas os baianos não estavam autorizados a vender o seu tabaco nesses portos. D u r a n t e a segunda metade do século XVII e todo o século XVIII, os escravocratas de Salvador e da zona fumageira d o Recôncavo continuaram a desenvolver na área gbe o comércio do tabaco e, em menor volume, o comércio do açúcar e da cachaça, i m p o r t a n d o , de forma sistemática e em grande quantidade, escravos gbe-falantes para os engenhos de açúcar e as plantações de tabaco do Recôncavo Baiano. 66 A partir de 1698, com a descoberta de o u r o em Minas Gerais, a d e m a n d a de escravos a u m e n t o u . Embora, como aponta Braz do Amaral, as opiniões dos poderes coloniais nem sempre concordassem, havia uma crescente preferência pelos negros minas aos angolas. Em 27 de n o v e m b r o de 1718, o vice-rei da Bahia, d o m Sancho Faro, escrevia a Lisboa: "Os negros da Costa da Mina são mais procurados para as minas e os engenhos que os de Angola, pela facilidade com que estes morrem e se suicidam". 6 Já em 1726, em relação a uma revolta escrava em Minas Gerais que fracassara devido a dissidências internas entre minas e angolas, o governador do Rio ponderava, os n e g r o s m i n a são os de m a i o r r e p u t a ç ã o para a q u e l e t r a b a l h o , d i z e n d o os m i n e i ros q u e são os m a i s f o r t e s e v i g o r o s o s , m a s eu e n t e n d o q u e a d q u i r i r a m a q u e l a r e p u t a ç ã o p o r s e r e m t i d o s p o r f e i t i c e i r o s e t ê m i n t r o d u z i d o o d i a b o q u e só eles d e s c o b r e m o u r o e pela m e s m a c a u s a n ã o hã m i n e i r o q u e possa viver sem unia n e g r a m i n a , d i z e n d o q u e só c o m elas t ê m f o r t u n a . 6 8

Embora a mescla com angolas seja ainda recomendada, de m o d o a evitar a união subversiva dos escravos, a d e m a n d a dos minas sofre um incremento. Inicia-se, assim, o ciclo da Costa da Mina, que c o n v e n c i o n a l m e n t e corresp o n d e aos três primeiros quartos do século XVIll. Esse fato também dá início ao c o n t r a b a n d o de ouro com a Costa da Mina que, ao lado do comércio de tabaco e de aguardente, constituiu a base do comércio baiano. E precisamente 46

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na primeira década do Setecentos que no Recôncavo Baiano começa ser utilizado o termo "jeje".

HIPÓTESES S O B R E A O R I G E M GEOGRÁFICA E E T I M O L O G I A S OA D E N O M I N A Ç Ã O "JEJE" "Luiza geige", avaliada em 80 mil réis, aparece registrada no inventário de Antonio Sardinha, datado de 3 de setembro de 1711, na freguesia de Muritiba, no Recôncavo. 69 Esse é o primeiro registro conhecido do e t n ô n i m o jeje no Brasil. Encontrei uma segunda referência, em 1714, na freguesia de São Gonzalo dos Campos, a "Joanna Gege doente e com uma perna inchada e com uma ferida avaliada em trinta mil réis"; e uma terceira em 1717, ainda em Muritiba, a uma escrava "Catherina gege"."0 A partir de 1719, os registros de escravos jejes nos inventários do Recôncavo começam a aumentar progressivamente (ver adiante). Como os inventários só são redigidos com a morte do proprietário dos bens, podemos inferir que o termo "gege" era já conhecido e utilizado alguns anos antes de 1711, q u a n d o se realizou a compra de "Luizi geige", provavelmente na primeira década do Setecentos. O primeiro fato notável a destacar é que o uso do termo "jeje" está restrito ao Brasil e não aparece documentado em Haiti, Cuba, Trinidad ou outras partes das Américas, enquanto outros etnônimos da área gbe, como alada (lada, arada, rada, ardra) ou mahi (mai, makii), têm sido preservados em diversas partes do Novo M u n d o (Cuba, Haiti, Trinidad). Aliás, no Brasil, no século XVIII, o uso do etnônimo parece estar restrito à Capitania da Bahia e, em menor grau, ao estado do Maranhão (comarca do Piauí), onde achamos uma primeira e única referência a escravos jejes em 1758. 1 Já na Obra nova da língua geral de mina, um vocabulário da língua falada pelos escravos provenientes da área gbe em Minas Gerais, escrito por Peixoto em 1741, não há qualquer menção do termo "jeje". No Rio, é só em 1835 que aparece a primeira referencia ao e t n ô n i m o "gege", significativamente em relação a escravos importados da Bahia." 2 Talvez seja também nesse período tardio, e como consequência do tráfico interno, que o termo foi "exportado" da Bahia para Pernambuco. Isso leva a pensar que o uso do etnônimo, na sua origem, esteve relacionado com o tráfico baiano e talvez, mais especificamente, com o Recôncavo, e que de lá teria sido d i f u n d i d o para outras regiões. Na Africa ocidental, o termo "jeje" só aparece documentado como djédji partir da segunda metade do século XIX, principalmente nos escritos dos padres das Missions Africaines de Lyon. Aplicava-se normalmente para designar os guns, os habitantes adjas de Porto Novo, ou à sua língua e, mais raraa

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m e n t e , c o m o n o caso de D'Albeca, para se referir de u m a f o r m a genérica à área gbe, f a l a n d o da "costa D j e d j i " . Ainda n u m mapa de 1892, "realizado a partir das mais recentes expedições", o t e r m o "djedjis" aparece designando os povos das margens do lago Aheme, a maioria de composição hula e hueda. 7 1 Cornevin conclui que jeje, grafado como djedje, era o n o m e dado aos guns, em P o r t o Novo, pela a d m i n i s t r a ç ã o colonial francesa." 4 H o j e , o t e r m o não é mais usado, mas ainda é l e m b r a d o em relação aos guns. C a b e p o r é m n o tar que, q u a n d o surge o t e r m o "jeje" n o Recôncavo, P o r t o N o v o ainda não existia. Lorand M a t o r y sugere que a historiografia da palavra escrita m o s t r a n d o precedência no Brasil poderia indicar a formação do termo no país e a sua possível i n t r o d u ç ã o no Benim pelos ex-escravos africanos para lá retornados n o século X I X . O r a , sendo que o uso do e t n ô n i m o era c o m u m entre traficantes e senhores de escravos, assim como entre os próprios africanos, é mais provável que, e m b o r a falte d o c u m e n t a ç ã o escrita, o t e r m o "jeje" se tenha originado na Africa, como acontece com quase todas as outras denominações de nações étnicas africanas no Brasil. Mais precisamente se poderia pensar que o termo resultou de uma adaptação aportuguesada que os traficantes baianos fizeram de algum vocábulo africano. Já que o termo "jeje" surge no Recôncavo na primeira década do Setecentos e o seu uso é generalizado na segunda, interessa-nos saber o que estava acontecendo naquele período na costa da área gbe e qual dos portos de embarq u e utilizados pelos portugueses (Popo, Uidá, Jakin, Apa) poderia ter sido a origem geográfica d o termo. Essa análise talvez nos ajude a identificar que povos eram d e n o m i n a d o s como jeje. C o m o já foi dito, a partir de 1692, com a destruição de O f f r a , as feitorias européias e o comércio concentraram-se em Uidá. Os holandeses estabeleceram-se lá em 1703 e calcula-se que eram embarcados 30 mil escravos por ano. E m 1704, os franceses construíram o Forte de St. Louis de Grégoy. C o m o a u m e n t o da demanda, entre 1700 e 1701, o preço dos escravos em Uidá tinha d u p l i c a d o . 7 6 Apesar da ameaça c o n s t a n t e dos holandeses, os comerciantes baianos, embora sem o apoio da metrópole portuguesa, atuavam t a m b é m em U i d á . Entre 1698 e 1702 eles tinham intenção de construir um forte lá (ou, alternativamente, em Popo) e estabelecer uma companhia que monopolizasse o tráfico dessa parte da costa, para prejuízo dos negociantes portugueses. Mas o projeto não prosperou. 7 7 Porém o tráfico c o n t i n u o u crescendo e, no período de 1701 a 1710, 216 navios provenientes da Bahia aportaram na Costa da Mina. 7 8 A atuação ind e p e n d e n t e e sem r e g u l a m e n t o dos comerciantes baianos, que, na sua avi48

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dez por encher os seus barcos com rapidez, p o d i a m comprar por preços acima do c o m u m , acabou por gerar um certo caos comercial e a oposição generalizada das nações europeias à sua presença em Uidá. E m 1714, C o l o m b i e r , diretor do forte francês, escrevia sobre "a c o n f u s ã o que os portugueses causam nestas bandas pela falta de ordem". 7 9 Portanto, a p r o x i m a d a m e n t e entre 1700 e 1714, o tráfico na área gbe esteve centralizado em Uidá, em d e t r i m e n t o de Aliada e Jakin, o seu p o r t o naquele m o m e n t o . O fato de que o termo "jeje" começou a aparecer no Recôncavo p r e c i s a m e n t e nessa época, q u a n d o , s i g n i f i c a t i v a m e n t e , o t e r m o "Arda" tendeu p a u l a t i n a m e n t e a desaparecer, sugere u m a primeira hipótese segundo a qual "jeje" seria um t e r m o surgido em relação direita com a emergente hegemonia do comércio em Uidá. No entanto, q u a n d o Labat, no relato da viagem realizada pelo Chevalier de Marchais, em 1725, listou os nomes das diversas denominações atribuídas aos escravos em Uidá e Aliada — aradas, nagô, foin (fon), tebou (ijebu), guiamba, mallais (malês), ayois (oyo), minois (mina) e aqueras 80 —, não aparecia qualquer menção ao termo "jeje". Já que os comerciantes negreiros distinguiam perfeitamente entre os diversos grupos de escravos que estavam c o m p r a n d o e que, como aponta Labat, "as colónias da América aprenderam a conhecê-los através de uma longa experiência", a ausência do termo "jeje" nessa lista sugere que sua utilização estava restrita aos comerciantes baianos ou lusófonos, e não aos traficantes franceses ou de outras nações. Alternativamente, devemos procurar o surgimento do termo em outros portos fora de Uidá. 8 1 Nina Rodrigues, no já clássico Os africanos no Brasil, identificou os jejes com os daomeanos e, influenciado pela leitura do trabalho de Ellis, The Ewéspeakingpeople, sugere uma hipótese etimológica segundo a qual jeje derivaria do e t n ô n i m o gen. A d e n o m i n a ç ã o Gêge vem d o n o m e da zona ou território da C o s t a dos Escravos q u e vai d e B a g e i d a [ e m T o g o , a o e s t e d e A g b o d r a f o ( P o r t o S e g u r o ) ] a A k r a k u [ e n t r e P e q u e n o e G r a n d e P o p o ] e q u e os i n g l e s e s e s c r e v e m G e n g , m a s q u e os n e g r o s p r o n u n c i a m antes egége.82

Para Rodrigues, jeje designaria, principalmente, os povos gens, localizados na área M i n a - P o p o , na costa a oeste do rio M o n o , cujos maiores portos eram Aneho e Agoué, "donde veio para o Brasil avultado n ú m e r o de escravos . No e n t a n t o , as leis de transformação fonética não corroboram a hipótese, já que o termo "gen" é p r o n u n c i a d o como "guen", inclusive — contrariamente à opinião de Rodrigues — pelos próprios nativos, e sua reduplicação guenguen" dificilmente derivaria em jeje. 83 A ocorrência de egége nessa re49

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gião poderia dever-se à difusão tardia do termo pelos retornados brasileiros que se instalaram nessa parte da costa na segunda m e t a d e do século XIX. Vivaldo da Costa Lima sugere que a expressão "jeje" deriva da palavra âjèji, que em língua iorubá significa forasteiro ou estrangeiro. Esse autor explica que os nagôs da área de Porto Novo chamavam ajeji ou, na forma abreviada, jeji, os invasores adjas vindos do oeste. Subsequentemente, os adjas instalados em Porto Novo, isto é, os guns, apropriaram-se do termo para se a u t o d e n o m i n a r e, c o m o já c o m e n t a m o s , o t e r m o foi f i n a l m e n t e a p r o p r i a d o pelos a d m i nistradores e missionários franceses. 8 4 Essa hipótese etimológica que atribui uma origem iorubá ao termo "jeje" é bastante convincente. Porém caberia u m a objeção de ordem histórica, já que as migrações de "estrangeiros" adjas na área de Porto Novo se deram só a partir de 1724, após a conquista de Aliada por Agaja e, portanto, após o surgimento do termo "jeje" no Brasil. A mesma hipótese etimológica poderia f u n c i o n a r m e l h o r no contexto de Apa, que, no século XVII, constituía o porto mais oriental d o reino de Aliada na sua fronteira com o reino do Benim, na área da atual Badagri. Em 1682, lá compravam escravos comerciantes de Aliada, O f f r a , Uidá e Popo, e se vendiam panos trazidos de Benim, indicando a presença de mercadores iorubáfalantes. 8 5 Q u a n d o em 1707 os holandeses em Uidá consideraram deslocar-se a Apa, o rei de Aliada lhes prometeu a exclusividade do comércio, com "exceção dos portugueses", sugerindo que, nessa época, os traficantes baianos estavam c o m e r c i a n d o em Apa. 8 6 Já em 1715, Apa tinha conseguido u m a certa independência de Aliada, e lá vendiam seus escravos t a n t o os comerciantes fons do emergente reino do D a o m é como os iorubá-falantes do reino do Benim. 8 7 Existe então a possibilidade de que a d e n o m i n a ç ã o âjèji — aplicada, talvez, aos escravos trazidos pelos d a o m e a n o s — fosse popularizada pelos mercadores iorubá-falantes no p o r t o de Apa e apropriada depois pelos traficantes portugueses. Pierre Verger ainda sugere que o termo "jeje" derivaria do e t n ô n i m o adja, mas, mais uma vez, as leis fonéticas não explicam facilmente u m a evolução de adja pura. jeje.88 Está claro que o termo "jeje" acabou por designar uma pluralidade de povos adjas; porém inclino-me a pensar que na sua origem a denominação estava restrita a um grupo ou a u m a geografia, mais específicos. Nesse sentido, Brice Sogbossi sugere uma outra etimologia relacionada com um g r u p o proto-iorubá chamado idjè, localizado na área entre Pobé e Ketu, ao norte de Porto Novo. Idjè é a a u t o d e n o m i n a ç ã o étnica desse g r u p o , e n q u a n t o os iorubás os chamavam ohoris ou ahoris, termo que os fons pronunciavam "holli". A administração colonial francesa acabou por d e n o m i n a r o grupo com o termo com50

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posto " h o l l i d j è " , que, além de e t n ô n i m o , virou t o p ó n i m o e g l o s s ô n i m o . Sogbossi argumenta que jeje poderia ser a reduplicação desse etnoglossônimo (idjè > djè ou idjè > djèidjè > d j è d j è ) . A reduplicação o n o m a t o p a i c a de termos indígenas monossilábicos parece ter sido uma prática c o m u m entre os portugueses para designar os povos autóctones. Pazzi dá vários exemplos como popo, que p o d e r i a ser u m a reduplicação de kpo ou, na C o s t a do M a r f i m , quaqua, que seria u m a reduplicação da saudação local kwa.89 Os idjès são conhecidos pelo seu espírito de independência e sua resistência contra o poder colonial francês, mas se o seu e t n ô n i m o está na origem do termo "jeje", significa que eles o c u p a r a m a área de hollidjè, com anterioridade ao século XVIII. Uma tradição oral dos vizinhos adja-wérés explica que os idjès eram descendentes de um g r u p o de caçadores nagôs chegados de Méko, na atual Nigéria, e que o c u p a r a m a área entre Pobé e Ketu, só após a chegada dos adjas, a partir de 1730. N o entanto, os próprios idjès se declaram os primeiros habitantes dessa região, tese que seria corroborada pelas suas características fenotípicas diferenciadas daquelas dos nagôs. Merlo e Vidaud também falam da existência de caçadores idjès mais ao sul, na área de Akron e Adjachè ( f u t u r a Porto Novo), antes do século XIV. A partir de diversas evidências etnográficas, esses autores sugerem que os hulas e os huedas, povos hoje considerados c o m o originários de Tado, teriam na verdade surgido desse povo p r o t o - i o r u b á , o que provaria u m a antiga presença dos idjès na região. Embora Tidjani identifique a sua língua como um "dialeto iorubá modificado", isso seria resultado do longo processo de aculturação entre os idjés e seus vizinhos nagôs. Ainda o missionário francês Laffitte, no fim do século XIX, parece referir-se aos idjès q u a n d o , no relato de tradições relativas à f u n dação do reino de Porto Novo, menciona "os Djedgis, povo feroz vindo do interior", que teria perseguido e expulsado do seu território os nagôs responsáveis pela f u n d a ç ã o desse reino em meados do século XVII. 90 Para contribuir com esse debate etimológico, já apresentei, em trabalho anterior, u m a o u t r a possível interpretação segundo a qual jeje decorreria do t o p ó n i m o Adjaché. 9 1 A d j a c h é (grafado por diversos autores c o m o Ajâcé, Adjacé, Ajase, Adjatchè ou Jasin) foi a capital de uma área que os oyos chamavam Adjaché Ipo, região o n d e os adjas de Aliada se refugiaram após a conquista do seu reino pelas tropas de Agaja, em 1724. Segundo Pazzi, Ajâcé significaria "os adjas se instalaram aqui" e segundo Akindélé e Aguessy, Adjatchè significaria "conquistados pelos adjas". Segundo u m a outra versão, Adjaché e Akron eram os povoados originais onde surgiu mais tarde Xògbónú, capital do reino de Porto Novo, que os nagôs c o n t i n u a r a m a chamar Adjaché. 9 2 É sabido que as palavras iorubás perdem a vogal inicial q u a n d o são apropria-

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das pelos povos gbe-falantes. Uma possível transformação fonética poderia ser: adjaché > djaché > djedjé > jeje. Essa hipótese só seria válida se, como sustentam Merlo e Vidaud, Akindélé e Aguessy, esse topónimo fosse anterior à fundação do reino de Porto Novo. 93 Ao mesmo tempo explicaria também por que, no século XIX, o termo "djedje" foi aplicado aos guns de Porto Novo. Resumindo, vemos que o debate etimológico, apesar de não resolver a questão de uma forma conclusiva, parece relacionar a origem da denominação "jeje" c o m povos capturados na margem oriental do rio O u e m é , seja na área de Adjatché (Porto Novo) ou, mais provavelmente, na área dos idjè, entre Pobé e K e t u . Na primeira década do Setecentos, esses escravos poderiam ter sido vendidos aos portugueses, no vizinho porto de Apa, pelos traficantes fons, os iorubás do reino do Benim, ou por outros grupos que ali comerciavam, sendo embarcados para o Brasil, subsequentemente, ali ou em outros portos, c o m o Uidá, Jakin ou Popo. C o m o tempo, o e t n ó n i m o idjè, ou o t o p ó n i m o Adjaché, apropriado e transformado pelos comerciantes baianos sob a forma jeje, passou a denominar, na Bahia, uma pluralidade de povos adjas, enquanto no Benim ficou restrito aos guns do reino de Porto Novo. A outra possibilidade seria que o termo fosse utilizado pelos traficantes baianos para designar escravos embarcados no porto de Uidá. Nesse caso, a origem etimológica do t e r m o permanece em aberto e será preciso esperar futuros estudos para resolver o problema.

0 T R Á F I C O B A I A N O NA ÁREA V O O U M A P Ó S A C O N Q U I S T A OA COSTA POR AGAJA ( 1 7 2 4 - 1 8 5 0 ) R e t o m a m o s agora a história do tráfico baiano na Costa da Mina, que interrompemos por volta da década de 1710. Em 1721, um ano após a chegada de Vasco Fernandez César de Menezes como governador da Bahia e vice-rei do Brasil, o capitão de mar e guerra Joseph de Torres consegue os recursos para construir finalmente o Forte de Ajuda em Uidá, apesar da oposição das outras nações europeias. Pouco depois, em j u n h o de 1723, é criada a Companhia do Corisco pelos negociantes baianos para monopolizar e solidificar as bases do tráfico negreiro na Costa da Mina. No entanto, as iniciativas baianas não vão f r u t i f i c a r até anos depois, após a c o n q u i s t a da costa pelos daomeanos. 9 4 Sob o reinado de Agaja, o exército daomeano, seguindo o propósito estabelecido por Hwegbaja de continuar a expansão, invadiu Aliada, em 1724. N u m a clara tentativa de ampliar o seus contatos e relações comerciais com os europeus, três anos depois, em 1727, os daomeanos atacaram Savi, a 52

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capital do reino H u e d a , sendo que Uidá (Glehue), o seu p o r t o , caiu pouco tempo depois. 9 5 Essas campanhas militares provocaram importantes migrações dos huedas e hulas para o oeste, na área Popo, o n d e os huedas se envolveram em uma longa guerra civil, além de tentar reconquistar o seu reino em várias ocasiões. Outros grupos hulas, aizos e ouemenus t a m b é m escaparam para o leste, na área de Porto Novo, Apa e Badagri. A devastação provocada pelas guerras e as invasões periódicas de O y o Fizeram entrar em decadência o comércio em Uidá até pelo menos 1733. Jakin, o centro escravocrata litorâneo de Aliada, conseguiu, n u m primeiro m o m e n t o , manter certa atividade comercial, declarando a sua submissão ao poder dos fons. Joseph Torres, em oposição aos interesses do Forte de Ajuda, então sob a direção de João Basílio, c o n s t r u i u , em 1731, u m a nova feitoria com a bandeira portuguesa em Jakin. Todavia, em 2 de abril de 1732, Jakin foi invadida e completamente destruída pelo exército de Agaja, após a conspiração do feitor holandês Hertog que, aliado à população local e alegando a f u t u r a a j u d a dos huedas e dos oyos, pretendia acabar com o d o m í n i o d a o m e a n o sobre o tráfico. Os daomeanos passam, assim, a controlar os principais portos na área gbe, Uidá e Jakin, e n q u a n t o G r a n d e Popo e Apa, portos menores, perdiam importância. O tráfico de escravos passa a ser a principal atividade económica do reino do Daomé. 9 6 Entre 1727 e 1740, as guerras daomeanas pelo d o m í n i o da costa, apesar dos estragos causados no comércio nos primeiros anos, geraram grande q u a n tidade de prisioneiros. Fala-se de 11 mil cativos na conquista de Uidá em 172.7, e de 4 .538, em Jakin, em 1732. 9 7 Historiadores da escravidão têm notado que, no período de 1700-1730, as exportações de africanos da Costa da Mina para a Bahia conheceram um grande crescimento, sendo que, após 1730, com a crise da economia do açúcar, elas entraram em declínio. 9 8 Pode-se supor que, nesse período, grande n ú m e r o de escravos das etnias que moravam no litoral, c o m o os hulas, huedas e aizos, foram transportados nas embarcações baianas. Ao mesmo t e m p o , q u a n d o o recesso dos ataques de O y o o permitia, as incursões daomeanas no país Mahi e na região do rio O u e m é continuaram. Essa progressiva chegada de escravos gbe-falantes, na primeira metade do século XVIII, aos poucos iria constituir na Bahia um estrato de população escrava demograficamente significativo para estabelecer a matriz de uma nova identidade coletiva, que viria a consolidar-se c o m o a "nação jeje" na segunda metade do século. Além dos tradicionais portos de Grande Popo, Uidá, Jakin e Apa, os negociantes baianos traficavam ocasionalmente em outros enclaves fora da área 6

Afluência fon, como Aneho ou o novo p o r t o de Epe (Ekpe), localizado

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p e r t o de Porto Novo. A partir da década de 1750, como já foi bem d o c u m e n tado por Verger, o tráfico de escravos na Costa da Mina deslocou-se paulatinam e n t e dos portos m e n c i o n a d o s para Porto Novo, Badagri e O n i m (Lagos). Nesse ano, o rei d a o m e a n o Tegbesu, talvez pressentindo essa m u d a n ç a , m a n dou, via Bahia, uma embaixada a Portugal p e d i n d o a exclusividade do comércio nos seus portos. O marquês de Pombal não c o n c o r d o u com esse m o n o pólio, t e m e n d o o progressivo a u m e n t o d o preço dos escravos, já altamente inflacionado desde a c o n q u i s t a de U i d á por Agaja. Nesse sentido, Pombal p o d e ser considerado o m e n t o r político do deslocamento do comércio português aos portos orientais. O tráfico de Porto Novo estaria controlado pelo reino de Oyo, e n q u a n t o o tráfico em O n i m estaria c o n t r o l a d o pelo reino de Benim. Em 1758, T h e o dozio Rodrigues da Costa, diretor do Forte de A j u d a , escrevendo ao vice-rei de Portugal, m e n c i o n a o "novo porto" (Porto Novo) pela primeira vez, notando que os escravos eram mais baratos lá, onde se trocavam por 8 a 12 rolos de f u m o , do que em A j u d a , o n d e o preço era de 13 a 16 rolos. Em 1776, o diretor francês em U i d á escrevia ao Ministério das Colónias c o n s t a t a n d o as maiores vantagens económicas de Porto Novo e Badagri, "onde o tráfico rende desde alguns anos". João de Oliveira — ex-escravo iorubá em Recife, que residiu e serviu de cabeceira99 na Africa ocidental entre 1733 e 1770 — foi i n s t r u m e n t a l nessa abertura do tráfico nos portos orientais. Por volta de 1775, o comércio em Uidá entrou em sério declínio. Em 1777, o novo m o n a r c a d a o m e a n o , Kpengla, i n t e n t o u revitalizar o p o r t o de Jakin para atrair o interesse dos europeus, mas sem sucesso. N o mesmo ano, o diretor do forte francês, Ollivier M o n t a n g u è r e , nota que "os daomeanos estão em u m estado de e n f r a q u e c i m e n t o que não lhes p e r m i t e obter cativos de guerra". O s p o r t o s orientais não p o d i a m ser atacados i m p u n e m e n t e pelo D a o m é , pois estavam sob a proteção de Oyo, mas Kpengla utilizou subterfúgios e estratégias combinadas para a consecução dos seus fins. Por exemplo, em 1781, atacava Epe, K e t o n o u (não c o n f u n d i r com C o t o n u ) e outras localidades sob a i n f l u ê n c i a de P o r t o N o v o , "sob pretexto de que haviam participado das depredações cometidas pela gente de Badagris, na praça de Porto Novo". Ao mesmo t e m p o , em 1783, aliava-se com O y o e Porto Novo para atacar Badagri. Apesar, ou talvez p o r causa dessa política desestabilizadora, a decadência do comércio em Uidá alastrou-se d u r a n t e toda a década de 1780. O resultado foi um significativo declínio da importação de escravos jejes na Bahia (ver Tabela 1, cap. 2). 100 A rivalidade entre os portos controlados pelo D a o m é e os portos orientais no G o l f o do Benim prolongou-se até o fim do tráfico. Em 1795, o rei dao54

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m e a n o A g o n g o l o e n v i o u dois embaixadores à Bahia com uma nova p r o p o s t a de c o n f e r i r ao p o r t o de U i d á o m o n o p ó l i o d o comércio de escravos. O p r o jeto foi recusado, e n t r e o u t r a s razões, pelo m e d o de u m a concentração excessiva de "escravos de u m a m e s m a nação, do q u e facilmente p o d e r i a m resultar perniciosas c o n s e q u ê n c i a s " . 1 0 1 T a m b é m o rei d a o m e a n o Adadozan insistiu nesse m o n o p ó l i o com os portugueses, c o m o mostra sua carta ao rei p o r t u g u ê s d o m J o ã o e m n o v e m b r o de 1804. 1 0 2 Cabe n o t a r q u e foi a p a r t i r desse ano que os fulanis iniciaram a jihad

ou

guerra santa c o n t r a os hauçás, o que resultou em muitos prisioneiros de a m bos os lados a serem vendidos nos portos do golfo, por intermédio de traficantes de O y o . Paralelamente, o reino de Oyo, devido a diversos conflitos i n t e r n o s iniciados c o m a revolta de A f o n j a (c. 1797), vinha p e r d e n d o progressivamente o seu poderio, e sucessivas guerras civis resultaram t a m b é m em grande n ú m e ro de cativos. C o m o consequência, muitos escravos hauçás e nagôs f o r a m e m barcados em Porto N o v o para a Bahia — principalmente por negociantes p o r tugueses e brasileiros e inclusive afro-brasileiros — c o n t r i b u i n d o de m a n e i r a significativa para as revoltas de africanos que aconteceram entre 1807 e 1835. 103 Em 1807 os p o r t u g u e s e s a b a n d o n a r a m o forte de Uidá e os ingleses aboliram u n i l a t e r a l m e n t e o tráfico. E n t r e 1807 e 1809, o tráfico em U i d á pratic a m e n t e cessou. A d a d o z a n p r o c u r o u formas alternativas de comércio na agricultura, mas n o t r a t a d o a n g l o - p o r t u g u ê s de 1810 permitia-se a c o n t i n u a ç ã o do tráfico no p o r t o de Uidá, e n q u a n t o era interditado em Aneho, Porto Novo, Badagri e Lagos, o que revitalizou os interesses escravistas daomeanos. E precisamente em 1810 que o baiano Francisco Felix de Souza retorna a Uidá, passando a ser, a partir de então, o traficante mais i m p o r t a n t e da área. 104 Calculase que 45 barcos baianos comerciavam em Uidá em 1812. , 0 5 Essa situação fez com que a i m p o r t a ç ã o de escravos jejes à Bahia, que vinha decrescendo desde 1780, conhecesse, na década de 1810, o segundo e último m o m e n t o d o seu esplendor (ver Tabela 1, cap. 2). A p a u l a t i n a desintegração de O y o ocasionou u m a desestabilização geral do poder político e e c o n ó m i c o na região, a c o m p a n h a d a , a partir de 1830, do s u r g i m e n t o de cidades de r e f u g i a d o s c o m o N o v o O y o , Ibadan e A b e o k u t a . É o p e r í o d o das grandes exportações clandestinas de escravos nagôs à Bahia através dos p o r t o s orientais de Porto Novo, Badagri e Lagos, mas t a m b é m de Uidá, o n d e o c h a c h a Felix de Souza, sob a proteção do rei Ghezo, exerceu, ate o início da década de 1840, um controle quase absoluto sobre o tráfico. 1 0 6 Paralelamente, desde 1835 existia u m refluxo regular de ex-escravos africanos do Brasil para a C o s t a da M i n a , que se p r o l o n g o u até o final do século. Alguns deles se deslocavam p e r i o d i c a m e n t e entre as duas costas do A t l â n t i c o ,

55

LUIS NICOLAU

P A R ÉS

estabelecendo relações comerciais e c o n t a t o s regulares q u e m a n t i n h a m a p o p u l a ç ã o africana da Bahia i n f o r m a d a sobre os a c o n t e c i m e n t o s da costa africana. As colónias desses libertos retornados (nagôs, hauçás e jejes) em Aneho, Agoué, Uidá, Porto Novo e Lagos, c o n t r i b u í r a m t a n t o para a continuação do tráfico ilegal até a sua extinção c o m o para o desenvolvimento de uma economia agrícola alternativa, baseada na produção de azeite de dendê. 107 Em 1850, declara-se o fim do tráfico no Brasil, embora na Bahia haja notícias de aprisionamento de fragatas e brigues com carregamentos h u m a n o s clandestinos ainda em 1851 e 1856. 108 Resumindo, p o d e m o s dizer que, como resultado da expansão do reino do D a o m é , de 1720 a 1780 e nas primeiras décadas d o século XIX, o comércio negreiro nos portos da área gbe foi constante, gerando u m fluxo c o n t i n u a d o de escravos jejes para a Bahia. Pode-se pensar que, n u m primeiro m o m e n t o , a p r o x i m a d a m e n t e até meados de século XVIII, os diversos grupos, como os huedas, hulas, aizos ou guns, do litoral, e os o u e m e n u s , agonlis e mahis, do interior, m a n t i n h a m ainda u m a marcada diferenciação étnica e eram povos relativamente i n d e p e n d e n t e s . Já na segunda m e t a d e do século XVIII, na medida em que o D a o m é solidificou o seu poder centralizado, esses grupos tenderam a miscigenar-se, t a n t o no que diz respeito às áreas de moradia (devido a m a t r i m ó n i o s exogâmicos, migrações forçadas, tráfico i n t e r n o de escravos etc.) como nos seus componentes culturais. Por exemplo, no aspecto religioso o D a o m é a d o t o u u m a política de assimilação dos cultos dos povos sob o seu controle, i m p o n d o ao mesmo tempo um modelo hegemónico e hierarquizado das instituições religiosas. A partir do século XIX, o culto dos ancestrais da família real de Abomey (Nesuhue) adquiriu um caráter de culto "nacional' , ao qual estavam s u b o r d i n a d o s os outros cultos de v o d u n s "públicos". Aos poucos, a organização do culto de voduns imposta pelos fons foi influenciand o os cultos dos povos sob o seu d o m í n i o (ver cap. 3). Esse processo de crescente homogeneização cultural que se deu no D a o m é talvez possa ter contrib u í d o para que os grupos provenientes dessa área, u m a vez n o Brasil, assimilassem com relativa facilidade a d e n o m i n a ç ã o genérica "jeje" como forma de identidade coletiva. Desse m o d o , a d e n o m i n a ç ã o "jeje", no início restrita a u m g r u p o adja particular, provavelmente localizado na região de Porto Novo ou imediações, com a expansão do D a o m é e no contexto do tráfico lusófono passou a adquirir um significado mais genérico, para designar aqueles povos controlados ou sob a influência desse reino, mas que podiam ser embarcados como escravos em portos fora do seu território. Nessa expansão semântica do termo, certos c o m p o n e n t e s culturais, como a semelhança de línguas, converteram-se em 56

ENTRE DUAS

COSTAS

elementos definidores do conteúdo da denominação, em detrimento de outros fatores como os portos de embarque. Em 1848, no final da época do tráfico clandestino, Francis Castelnau, cônsul da França na Bahia, escreveu: "os jejes ou daomeanos, que f o r m a m uma nação poderosa, têm numerosos representantes na Bahia: antigamente embarcavam em Uidá, mas a maior parte hoje em dia vem por Porto Novo". 109 O próximo capítulo examina a presença dos jejes na Bahia.

NOTAS 1

Peei, "A c o m p a r a t i v e . . , " , p. 263.

2

A k i n j o g b i n , Dahomey...,

3

Rodrigues, Os africanos...,

p. 213. p. 35; Freire, Casa-grande,

p. 301. S e g u n d o Rodrigues, a carta

data de 1648. 4

A n t o n i l , Cultura...,

5

M . I. C. de Oliveira, "Viver...", p. 175.

6

p. 123; a p u d Freire, Casa-grande,

Mercier, "Notice...", p. 30; S m i t h , Kingdoms...,

p. 389.

pp. 55, 70-71; Lima, A família..., p. 16;

Law, "Ethnicity...". 7

Pérez, C o n t r i b u c i ó n . . . , pp. 3-4. O t e r m o é t a m b é m utilizado pelo p e s q u i s a d o r b e n i nense H y p o l i t e Brice Sogbossi: M i n a - j e j e . . . , p. 19.

8

Soares, Devotos...,

pp, 1 1 4 e s e g s . , 189.

9

Soares, Devotos...,

pp. 45, 47, 49; cf. D . P. Pereira, Esmeraldo...,

duction..., 10

pp. 74-75; Law, The Kingdom...,

pp. 69-70; Pazzi,

Intro-

p. 10.

Pazzi, "Aperçu,..", p. 13.

" Verger, Os libertos...,

p. 17; Rodrigues, Os africanos...,

pp. 35, 108. Ver t a m b é m M . I. C .

de Oliveira, " Q u e m eram...", pp. 58-60. 12

Soares, Devotos...,

pp. 66, 116-17; D e b r e t , Voyage..., vol. II, p. 76; M . I. C . de Oliveira,

" Q u e m e r a m . . . " , p. 59; Karasch, A vida...,

pp. 63-66.

13

Peixoto, Obra nova...,

14

Pereira, A Casa...,

p. 24; E d u a r d o , The Negro...,

15

Soares, Devotos...,

p. 118. Sogbossi, M i n a - j e j e . . . , p. 41. M a t o r y sugere q u e essa l í n g u a

pp. 20, 29, 69.

poderia ser o f o n (Black Atlantic...,

p. 10.

p. 308, n. 6). Lopes a identifica c o m o gunu

ou

ewe ("Os t r a b a l h o s . . . " , pp. 45 e segs.). Pessoa de C a s t r o c o n s i d e r a o fon a língua pred o m i n a n t e no vocabulário (A língua...,

p. 68).

Lepine, "As m e t a m o r f o s e s . . . " , p. 122. J o h n s o n , The history..., p. 59.

p. 8; M e r l o e V i d a u d , " D a n g b é . . . " , p. 272; Iroko,

Mosaiques...,

Pazzi, "Aperçu...", p. 18; Lepine, "As m e t a m o r f o s e s . . . " , pp. 122-23. 19

20

T

.

«

r

l e p i n e , As m e t a m o r f o s e s . . . " , p. 123; C o s t a e Silva, A manilha..., Verger, Notas..., p. 540.

^ A k i n j o g b i n , Dahomey..., Le H e r i s s é , VAncièn..., PP- 20-28.

pp. 535-38.

p. 22. pp. 106, 274, 279 ; A k i n d é l é e Aguessy, " C o n t r i b u t i o n . . . " ,

57

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

23

Law, The Kingdom...,

pp. 29-32, 37-40. Por exemplo, e m relação ao episódio Aligbonon-

Agassu, Law sustenta que Agassu seria u m a divindade autóctone dos fons e Aligbonon estaria essencialmente associada à localidade de Wassa, perto de Abomey, sem qualquer vínculo com Tado; cf. B u r t o n , A mission...,

p. 297; Le Herissé, LAncièn...,

p. 277; Blier,

" T h e p a t h . . . " , pp. 40L-2. 24

Pazzi, "Aperçu...", p p . 15-16. C a p o , Comparative...,

p. xxv. Para u m a análise d o s t e r m o s " a d j a - e w e - f o n " , ver Me-

deiros, "Le c o u p l e . . . " , pp. 35-46; A s i w a j u , " T h e A j a - s p e a k i n g . . . " , pp. 87-102. 26

T i d j a n i , " N o t e s . . . " , p p . 36-38. S m i t h , Kingdoms...,

pp. 55-72. Elisée A. S o u m o n n i

c o m e n t a : " O s iorubás do D a o m é c o n s t i t u e m - s e dos seguintes s u b g r u p o s : Sabe, Ketu, A w o r i , I f o n y i n , O h o r i , I d a i s a , Ife, Isa, M a n i g r i e A j a s e ( P o r t o - N o v o ) "

{Daomé...,

P- 19). 27

D a p p e r , Naukeurie...,

p. 307, a p u d Pazzi, Introduction...,

28

Van D a n t z i n g , Dutcb

Documents...,

29

B o s m a n , A new...,

p. 208.

p. 1.

p . 397; a p u d D a l z e l , History...,

p. 13; Verger, Fluxo...,

p. 128;

D u n g l a s , " C o n t r i b u t i o n . . . ", p p . 143-44. 30

A s i w a j u , " T h e A j a - s p e a k i n g . . . " , p p . 87-102.

31

Aguessy, " C o n v e r g e n c e s . . . " , p. 235.

12

Pazzi, Introduction...,

33

C o m o i n t u i t o de atrair o c o m é r c i o E u r o p e u ao p o r t o de Jakin, em d e t r i m e n t o de Uidá,

pp. 51, 158.

o rei de A r d r a , T o h o n u , e n v i o u , em 1658, dois e m b a i x a d o r e s — Bans, q u e falava port u g u ê s , e seu serviçal — à c o r t e de Felipe IV, em M a d r i . Por seu lado, os c a p u c h i n h o s e s p a n h ó i s , c o m o i n t u i t o de c o n v e r t e r ao c a t o l i c i s m o o rei a f r i c a n o , a p r o v e i t a r a m os c o n h e c i m e n t o s linguísticos dos dois e m b a i x a d o r e s para t r a d u z i r a Doctrina

christiana

d o e s p a n h o l à lengua arda. Nesse texto, a p a r e c e m 60 referências a t e r m o s c o m o vodu ( D e u s ) , vodugue te), vodunu, 34

(S. M a d r e Iglesia, de vodunhue

voduti,

Sobre osyehwe, A mission...,

(sacerdo-

royaume...).

Para u m a análise d o t e r m o " v o d u m " e suas e t i m o l o g i a s , vet M a u p o i l , La p p . 52-54; Blier, African...,

36

= casa do v o d u m ) , voduno

voduto etc. ( L a b o u r e t e Rivet, Le

géomancie...,

p p . 37-47.

ver H e r s k o v i t s , Dahomey...,

vol. II, pp. 190, 192. Ver t a m b é m B u r t o n ,

p. 292.

Verger, Notas...,

p. 439. O u t r o e x e m p l o seria o n o m e d o orixá I r o k o , q u e entre os gbe-

falantes é c o n h e c i d o c o m o v o d u m Loko. 37

Aguessy, " C o n v e r g e n c e s . . . " , p. 236.

38

As práticas d i v i n a t ó r i a s de Fa f o r a m trazidas da área i o r u b á para a área gbe, p r i m e i r a m e n t e nas cidades da costa, no século XVII; e, para A b o m e y , n o início d o século XVIII ( M a u p o i l , La géomancie...),

pp. 4, 45-56.

39

H a z o u m e , " L ' â m e . . . " , p p . 65-86; T i d j a n i , " N o t e s . . . " , p. 33.

40

A k i n j o g b i n utiliza a expressão "slave r a i d i n g g r o u n d " (Dahomey...,

p. 93). A t r a d u ç ã o

é de Reis, " M a g i a . . . " , p. 69. 41

D o francês, "les démagés de la rage" ou "les damages de la rage": Bergé, "Érude...", p. 711; C o r n e v i n , Histoíre,

42

Verger, Fluxo...,

p. 47, a p u d Lima, A família..., p. 42.

p. 154; cf. A H U - L i s b o a , São T o m é , cx. 4.

13

N o r r i s , Memoirs...,

44

Ver, p o r e x e m p l o , Verger, Fluxo...,

p. 138. p. 251, n. 26. Ver t a m b é m B u r t o n , A

p p . 147, 262.

58

mission...,

ENTRE DUAS

COSTAS

45 B e r g é , " É t u d e . . . " , pp. 712, 723. 46 47

Smith, Kingdoms..•, p. 59. Merlo e V i d a u d , " D a n g b é . . . " , pp. 287-90. Bergé apresenta u m a v a r i a n t e da m e s m a tradição em " É t u d e . . . " , pp. 733-55. Sobre os ifès, ver I r o k o , Mosaiques...,

p. 98.

48

D u n c a n , Traveis...,

49

Karl, Traditions...-, Merlo e V i d a u d , " D a n g b é " , pp. 287-90; Bergé, " É t u d e " , pp. 710-11.

vol. II, pp. 222, 229-30.

50

Parés, " O t r i â n g u l o . . . " , pp. 193-96.

51

O t t , " O n e g r o . . . " p p . 144-45; A n d r a d e , "A m ã o - d e - o b r a . . . " , T a b e l a 4 (2); Verger, Fluxo..., p. 670; Q u e r i n o , Costumes..., p. 72.

52

Em Angola, há f o r m a s fonéticas similares a m u n d u b i , c o m o m u n d ó m b e ( n d o m b e ) , u m grupo étnico b a n t o localizado n o interior de Benguela: C u r t o , " T h e story of N b e n a . . . " , pp. 44-64; Figueira, Africa Bantu..., pp. 241-64. N o Brasil, R a m o s , As culturas..., p. 224, refere-se aos m u n d o m b e s c o m o "cafres b a n t u s em Angola".

53

Verger, Notícias...,

54

T a n t o na Bahia c o m o no M a r a n h ã o , mindubim (var. midubi) é u m t e r m o p o p u l a r para designar o a m e n d o i m (Arachis hipogaea, Lin.). C u r i o s a m e n t e , o a m e n d o i m é u m a das comidas rituais dos v o d u n s da família de Hevioso. S e g u n d o a ialorixá Olga de Alaketu, as escarificações dos m u n d u b i s c o n s i s t i a m em sete p o n t i n h o s em cada lado da face e um na barba, e a sua s e m e l h a n ç a c o m a m e n d o i n s g e r o u o e t n ô n i m o no l i n g u a j a r p o pular (Olga de Alaketo, Salvador, entrevista em 3/1/1996). N a Casa das M i n a s , em São Luís d c M a r a n h ã o , o t e r m o mindubim aplica-se t a m b é m aos v o d u n s da f a m í l i a d e Hevioso. U m p r i m e i r o s i g n i f i c a d o do t e r m o é a m e n d o i m ; o s e g u n d o , " m u d o " . A exceção de Averekete e Abé, os v o d u n s de H e v i o s o , c o n h e c i d o s ali c o m o a f a m í l i a de Nagô, são tidos p o r m u d o s (mindubim), e acredita-se q u e eles n ã o falavam para ocultar aos jejes os segredos dos nagôs: Ferretti, Querebentan..., pp. 300, 120-26. A l t e r n a t i vamente, para Pessoa de Castro (A língua..., p. 146), m u n d u b i decorreria de xogbonuvi, filhos de X o g b o n u (i.e. Porto N o v o ) .

55

Todavia, no t r a b a l h o de c a m p o , ouvi falar ora de jeje-agabí (em relação a u m terreiro de Santo A m a r o ) , ora de nagô-agabi (em relação a a n t i g o s terreiros do R e c ô n c a v o ) : Jaime M o n t e n e g r o , 10/8/1999; gaiaku Luiza, 26/2/2001. N a l i t e r a t u r a afro-brasileira, fala-se t a m b é m de j e j e - e f o n (efan), mas essa i d e n t i f i c a ç ã o dos e f o n s c o m o jejes é u m erro que decorre da semelhança f o n é t i c a dos e t n ô n i m o s fon e e f o n . Q u e r i n o falava dos

p. 228.

efon ou cara q u e i m a d a " , e R o d r i g u e s considerava os "efan" c o m o negros do D a o m é , e m b o r a notasse que eles "se m o s t r a m d i s t i n t o s dos d a o m e a n o s " — c o m razão, pois é sabido que os efons e r a m u m g r u p o i o r u b á - i j e x á localizado p e r t o de Ekiti, na Nigéria: Q u e r i n o , Costumes..., p. 31; Rodrigues, Os africanos..., p. 105; A k i n j o g b i n , Dahomey..., P- 10. Para o r i t o ou n a ç ã o efon de C a n d o m b l é , c o m o uma variável do t r o n c o nagô, ver V. G. da Silva, Orixás..., pp. 84-88; C a p o n e , La quête..., pp. 126-29. * Viana Filho, O negro...-, Verger, Fluxo..., Law, The kingdom...,

p. 9.

p p . 5, 87; cf. Brásio, Monumenta...,

vol. 2, n 2 97; J á c o m e Leite,

ão Tomé, 8/8/1553. O s popos, e r a m povos p r e d o m i n a n t e m e n t e do g r u p o é t n i c o hula 5s

e dedicavam-se à pesca e à p r o d u ç ã o de sal, d e s e n v o l v e n d o seu c o m é r c i o às m a r g e n s d a la g ° a litorânea. Law, The kingdom..., cnption..., 16 vo

p. 87; cf. Bowser, The African...,

pp. 224-25; Brásio, Monumenta...,

pp. 40-43; D e Marees, Des-

vol. 5, n a 197, Relação da Costa da G u i n é ,

0 7 , vol. 6; Garcia M e n d e s Castelo B r a n c o , " R e l a t i o n de la C o s t a de Africa", 1620; • 7, n s 39, Decree of C o u n c i l of State, Lisboa, 27/6/1623.

59

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

^ Law, The kingdom...,

p. 87. C á l c u l o s a p a r t i r de d a d o s de Van den B o o g a a r t e Emmer,

" T h e d u t c h . . . " , pp. 353-75. 6

" Rodrigues, Os africanos...,

pp. 35-36; Freire, Casa-grande...,

gestae..., p. 128; A n t o n i l , Cultura...,

pp. 301, 389; cf. Barlei, Res

p. 123. R o d r i g u e s oferece uma t r a d u ç ã o do texto

de Barlei d i f e r e n t e d a q u e l a de Freire; "com exceção de u m n ú m e r o l i m i t a d o q u e , pela excessiva paciência n o t r a b a l h o , c o n t r i b u i para a u m e n r a r - s e o seu valor". 1,1

Labat, Voyage..., vol. II, p. 125. A m e s m a ideia é e n f a t i z a d a n u m a o u t r a p á g i n a : " N ã o deve i m a g i n a r - s e q u e t o d o s os cativos c o m p r a d o s em J u d a e Ardres, sejam originários desses reinos. Esses dois reis não v e n d e m seus s ú b d i t o s [...] eles são trazidos de regiões v i z i n h a s " , m u i t a s vezes p o r n e g o c i a n t e s m u ç u l m a n o s (malês).

62

Law, The kingdom...,

"

Verger, Fluxo...,

64

B a r b o t , A description...,

pp. 6-9, 53-54, 87-88.

p p . 30-38, 49, 77; Pazzi, Introduction...,

p. 208.

pp. 321-22. A m e s m a referência ao tráfico p o r t u g u ê s de má

q u a l i d a d e em P e q u e n o P o p o é d o c u m e n t a d a em 1698, por B o s m a n , A new..., 6

- Van D a n t z i g , Dutch...,

66

Verger, Fluxo...,

p. 334.

p. 106.

pp. 19-30; Pazzi, Introduction...,

p. 208; W i m b e r l y , T h e A f r i c a n . . . ,

c a p . 4. 67

A m a r a l , "As t r i b o s . . . " , p. 57; Verger, Fluxo...,

68

Lara, " L i n g u a g e m . . . " , p. 6; cf. "Carta do g o v e r n a d o r do Rio de j a n e i r o ao rei de 5 de j u l h o de 1726", in Documentos

p. 63.

interessantes para a história e costumes de São Paulo, n a 50,

1929, p p . 60-61; "Parecer do C o n s e l h o U l t r a m a r i n o de 18 d e s e t e m b r o de 1728", ín Documentos

históricos, n 2 94, 1951, pp. 28-30. Sobre o m e s m o i n c i d e n t e ver, Verger, Flu-

xo..., p. 68. 69

I n v e n t á r i o de A n t o n i o S a r d i n h a , M u r i t i b a , 1711-1713, fl. 3 v; Seção C o l o n i a l

Judiciá-

ria, 01 / 5 6 / 5 6 / 4 4 2 , ARC. Na p a r t i l h a (fl. 10), aparece c o m o Luzia gege. "" I n v e n t á r i o de Ana da Silva A n d r a d e , São G o n z a l o dos C a m p o s , 1714-1749, Seção Colonial J u d i c i á r i a , 01/65/65/495, ARC. 1

T e s t a m e n t o de M a n o e l B a r b o s a de A b r e u , m o r a d o r "da o u t r a b a n d a da P a r a n a í b a , Freguesia de São B e n t o das Balzas, e s t a d o do M a r a n h ã o " , 5/9/1758, a p u d M o t a et al., Cripto maranhenses...,

1

K a r a s c h , A vida...,

pp. 102-6. p. 94. U m a o u t r a r e f e r ê n c i a a u m n e g r o " n a ç ã o geje" aparece em

7/4/1835, no Diário do Rio de Janeiro,

p. 4, a p u d Soares e G o m e s , G é n e r o . . . , p. 22. j á

e m 1879, há u m a r e f e r ê n c i a a u m a gunhõde,

ou s a c e r d o t i s a " M i n a Gègi", de n o m e

L e o p o l d i n a J a c o m o da C o s t a : " D e s a c a t o à realeza — T i r a m o s da ' G a z e t a ' de 28", Província de São Paulo, 30/9/1879, pasta 16.017, A r q u i v o s de O Estado de S. Paulo,

apud

M a t o r y , M a n . . . , pp. 166-67. 3

B o r g h e r o , " R e l a t i o n . . , " , p p . 419-44; D e s r i b e s , L'Evangelie...\

B o u c h e , La

côte...',

D Al beca, "Essai...", vol. II, p p . 5, 83, 129-37. H a n s e n , " D a h o m e y . . . . " . 4

C o r n e v i n , Histoire...,

p. 79; Segurola, Dictionnaire...,

M a t o r y , Black Atlantic..., 76

Van D a n t z i g , Dutch...,

77

Verger , Fluxo...,

80

Verger , Fluxo...,

pp. 66-67.

pp. 59-61.

" S c h w a r t z , Segredos..., 79

p. 264.

pp. 79-81, 299-300; "Jeje...", pp. 62-63.

p. 282; cf. Verger, Fluxo...,

p. 651.

pp. 129-30.

"Acquérat" designaria os escravos

ligados ao forte francês q u e n ã o p o d i a m ser vendi-

dos, pois faziam p a r t e dos " b e n s móveis": Verger, Fluxo...,

60

p. 207.

ENTRE DUAS

COSTAS

81

Labat, Voyage...,

82

R o d r i g u e s , Os africanos...,

83

A tese de R o d r i g u e s parece ser c o r r o b o r a d a p o r m e m b r o s d o terreiro " m i n a - p o p o " , P o ç o

vol. II, p p . 125-27. p. 103.

Beta de Salvador. O filho p r i m o g é n i t o de M a n o e l Falefá, f u n d a d o r d a casa, explica q u e jeje seria u m a c o r r u p t e l a d e guégué,

q u e é a l í n g u a de P o p o ( g e n ) : I t a m o a c y Falefá,

c o m u n i c a ç ã o pessoal. S a l v a d o r , 1 3 / 1 2 / 1 9 9 8 . 84

A k i n d é l é e Aguessy, " C o n t r i b u t i o n . . . " ; L i m a , A f a m í l i a . . . , p p . 14-15; Pereira, A p. 68; cf. A b r a h a m , Dictionary..., a d v é r b i o i o r u b á jéjé,

Casa...,

p. 38. B o l o u v i t a m b é m s u g e r e q u e jeje d e r i v a d o

q u e s i g n i f i c a r i a " s u a v e m e n t e , s i l e n c i o s a m e n t e , sem r u í d o " . Se-

g u n d o esse a u t o r , esse n o m e seria d a d o aos f o n s p e l o s i o r u b á s , e m m e m ó r i a da t á r i c a de a t a q u e s - s u r p r e s a l e v a d o s a c a b o p e l o s d a o m e a n o s c o n t r a as c i d a d e s d e A b e o k u t a , Ketu etc. ( B o l o u v i , Nouveau...,

p. 102). S o g b o s s i r e b a t e essa h i p ó t e s e ( M i n a - j e j e . . . ,

p. 44). Para u m a a n á l i s e d e t a l h a d a s o b r e o t e m a , ver t a m b é m M . C . I. d e O l i v e i r a , " Q u e m eram...", pp. 67-72. 85

Law, The Kingdom...,

p p . 16, 112; cf. Law, Further...-. A r t h u r W e n d o v e r , Apa, 17/7/1682;

Pazzi, " A p e r ç u . . . " , p. 14; i d e m , Introduction..., 86

Van D a n t z i g , Dutch...,

87

A k i n j o g b i n , Dahomey...,

p p . 202-3.

p. 89. p. 64; Law, The Kingdom...,

p p . 16, 112; cf. Law,

Further...:

Du Colombier, Uidá, 17/4/1715. 88

Verger, Notas...,

p. 23. S o g b o s s i a v a n ç a a h i p ó t e s e d a o r i g e m d o t e r m o " j e j e " a p a r t i r

da palavra ajaji ( M i n a - j e j e . . . , p. 47). R a y m o n d O k é c o n t a q u e ajaji v e m d e u m a f r a s e s e n t e n c i o s a : " A j a h u t o t o n wè h o n j a t a - d o t o n ; a j a - h u t o wè a x o l u a j a t o n , wè j a n n y i a j a j i " ( " O t r o n o real d e T a d o p e r t e n c e a A j a h u t o ; A j a h u t o é o rei de t o d o s os A j a ; ele se s e n t o u s o b r e os Aja [ A j a j i ] " ) . D e s s a frase, foi t i r a d o o n o m e A j a j i - H o n j a , p a r a designar u m a r e g i ã o l o c a l i z a d a a cerca de 12 q u i l ó m e t r o s d e D a v i é - S è m è ( A l i a d a ) , o n d e A j a h u t o v e n c e u os a d j a de T a d o (R. O k é , "Les siècles...", p. 57). T o d a v i a , Yeda Pessoa de C a s t r o s u g e r e u m a o u t r a h i p ó t e s e , u m t a n t o " f o r ç a d a " , e m m i n h a o p i n i ã o , s e g u n d o a q u a l jeje d e c o r r e r i a de gédéji ( o r i u n d o s o u n a s c i d o s de G u e d e , a n c e s t r a l d o s g u e d e v i s ) (A língua...,

p. 62).

A n ó n i m o , " L a r e g i o n . . . " , p. 26; S o g b o s s i , M i n a - j e j e . . . , p. 48; Pazzi, Introduction..., PP- 41, 74. Le Herissé ( a p u d Verg er, Notas..., p. 524) e H e r s k o v i t s ( a p u d M a u p o i l , La géomancie..., p. 65) f a l a m d o s D j e t o v i . A n ó n i m o , "La r e g i o n . . . " p p . 17-19. M e r l o e V i d a u d , " D a n g b é . . . " , p p . 269-70; T i d j a n i , N o t e s . . . , p. 38; L a f f i t t e , Lepays..., p. 90. Para a t r a d i ç ã o de i n d e p e n d ê n c i a d o s i d j é s e p o s t e r i o r r e s i s t ê n c i a à d o m i n a ç ã o f r a n c e s a , ver S o u m o n n i , "A I o r u b a l â n d i a . . . " , PP- 13-14. " Parés, " T h e J e j e . . . " , p 95 92

o

.

r

^ s adjas c o n t i n u a r a m a c h a m a r sua nova c a p i t a l de A l i a d a ( A r d r a , o u A r d r e s p a r a os e u r o p e u s ) , e a seu p o r t o n o l i t o r a l , P e q u e n o A r d r a o u N o v o A r d r e s ( P o r t o N o v o , p a r a os p o r t u g u e s e s ) . 93 «1 • . K i n j o g b i n , Dahomey..., p. 214; Pazzi, " A p e r ç u . . . " , p. 15; A k i n d é l é e Aguessy, " C o n t r i b u t i o n . . . " , p p . 17, 1 8 i 7 1 ; D j S S O U ; "Essai...", p p . 83, 87; F. M . O k e , " N o t i c e . . . " , p. 89. B a n c o l é e Soglo, " P o r t o N o v o . . . " , p. 76; Verger, Os libertos..., p p . 10-11. 94 Verger, Fluxo..., p p , 59,70. Aki t," rijogbin q u e s t i o n a a tese, s u s t e n t a d a p o r S n e l g r a v e , N o r r i s e a h i s t o r i o g r a f i a c o n e m p o r â n e a , de q u e essa p r o c u r a p o r u m a saída ao m a r r e s p o n d e s s e e x c l u s i v a m e n t e a interesses escravistas (Dahomey..., pp. 73-81).

61

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

96

Snelgrave, A new...,

pp. 14-15, 20-23, 149-52; Verger, Notas...,

pp. 150-55; Van Dantzig, Dutch...,

p. 540; Verger,

pp. 176-78; Akinjogbin, Dahomey...,

Fluxo...,

pp. 91-92, 97-100.

97

Verger, Fluxo...,

98

S c h w a r t z , Segredos...,

1)9

T í t u l o d e r i v a d o da l í n g u a p o r t u g u e s a , utilizado na C o s t a da Africa para designar pes-

100

Verger, Fluxo..., p p . 211-23, 257-63 ( p a r a a e m b a i x a d a de T e g b e s u ) ; Verger, Os libertos..., p p . 10-11, 101-4 ( p a r a J o ã o d e O l i v e i r a ) . Ver t a m b é m M a n n i n g , Slavery..., p p . 36, 43.

101

Rodrigues, Os africanos..., p. 31; cf. " D o i s embaixadores africanos m a n d a d o s à Bahia pelo rei do D a g o m é . C a r t a de D . F e r n a n d o José de Portugal ao E x m o . Sr. Luís Pinto de Sousa em 21 d e o u t u b r o de 3795", Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, vol. 69, p a r t . 1, 1895, p. 413. Existe u m a " C a r t a do e m b a i x a d o r do rei do D a h o m e . Pedido para casar-se. Palácio d e Q u e l u z 3 abril 1796, N ú c l e o Governo da Capitania da Bahia", série O r d e n s Regias 1763-1822, vol. 81, d o e . 07, APEBa (apud Verger, Fluxo..., pp. 265-71).

102

Verger, Fluxo...,

p p . 144, 154. > pp. 283-84.

soas de alta h i e r a r q u i a .

p p . 271-75; Verger, Os libertos...,

" " J o h n s o n , The history...,

pp. 14, 106-10.

p p . 193-205; A k i n j o g b i n , Dahomey...,

p. 188; Videgla, "Le

R o y a u m e . . . " , pp. 137-38. Para as revoltas escravas na Bahia n o p e r í o d o 1807-1835, ver Reis,

Rebelião...

104

A k i n j o g b i n , Dahomey...,

p p . 197-98, Law, Francisco Felix...., p p . 5-11.

105

A k i n j o g b i n , Dahomey...,

p. 193.

106

A p a r t i r da década de 1830, na área gen o u m í n a - p o p o , t a m b é m f o r a m i m p o r t a n t e s os p o r t o s d e A n e h o (Pequeno P o p o ) , A g o u é e Porto Seguro (ver Jones, "Little Popo...").

107

Sobre os r e t o r n a d o s , ver, e n t r e o u t r o s , Verger, Fluxo...-, ]. M . Turner, Les brésiliens...; C u n h a , Negros...;

G u r a n , Agudas....

M a n n i n g , Slavery..., 108

S o b r e a t r a n s i ç ã o à e c o n o m i a do azeite de d e n d ê ,

pp. 50-55.

M . I. C. d e O l i v e i r a , R e t r o u v e r . . . , p p . 120-21; cf. P r e s i d e n c i a P r o v í n c i a , Escravos a s s u n t o s , m a ç o 2 . 8 8 0 / 1 , c a d e r n o ( . 8 6 1 , e m a ç o 2.891, c a d e r n o s 1.863-79, APF.Ba. Verger, Fluxo...,

109

Verger, Fluxo...,

p p . 434-38. p. 15.

62

1

FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA DOS SÉCULOS X V I I I E XIX

NOTAS S O B R E AS FLUTUAÇÕES D E M O G R Á F I C A S DOS JEJES NO RECÔNCAVO E EM SALVADOR Após nosso percurso sobre o tráfico português e baiano na Costa da Mina, o presente capítulo examina os possíveis processos que levaram à formação de uma identidade étnica jeje entre a população africana na Bahia do século XVIII e da primeira metade do XIX. Caberia perguntar, em primeiro lugar, qual foi a importância demográfica dessa migração forçada dos jejes na Bahia. Infelizmente, os dados disponíveis sobre a estrutura demográfica e a evolução da população baiana no século XVIII são praticamente inexistentes ou muito imprecisos. Segundo Kátia Mattoso, os recenseamentos dessa época são pouco confiáveis, sem poder quantificar-se com um mínimo de segurança o seu total nem a proporção de negros e mestiços livres ou escravos. Já para o século XIX, baseando-se n u m recenseamento de 1808, encontrado no Arquivo Regional de Cachoeira pela historiadora norte-americana Catherine Lugar, e no recenseamento oficial de 1872, Mattoso conclui que a população negra e mestiça constituía uma maioria de 78,3% (43% livres e 35,3% escravos) em 1808, decrescendo para 72,4% (60,2% livres e 12,2% escravos) em 1872. Quanto à proporção da população escrava, observa-se uma queda significativa à medida que avança o século. 1 Se as informações disponíveis não são satisfatórias, permitindo apenas "trabalhar com ordens de grandeza", o problema se agrava quando queremos saber alguma coisa sobre o contingente de africanos nessa população e mais especificamente sobre os jejes, um entre os muitos grupos africanos. As estimativas mais recentes sugerem que, entre 1701 e 1810, aproximadamente 656 mil escravos teriam saído da Costa dos Escravos em barcos portugueses com destino à Bahia, dos quais teriam chegado uns 598.200. 2 Já para o Período de 1801 a 1851, calcula-se que entraram 328.500 escravos africanos 63

LUIS NICOLAU

P A R ÉS

no p o r t o de Salvador. 3 As estimativas da média anual de importação para esse p e r í o d o oscilam, segundo os diversos autores, entre 5.600 e 7.700 africanos, constatando-se um nítido crescimento a partir da década de 1840, quando o tráfico era ostensivamente p r o i b i d o pelos ingleses. Por exemplo, n o período de 1846-1850, às vésperas da abolição do tráfico atlântico, a média anual calcula-se em 8.700 africanos. 4 Parte dessa p o p u l a ç ã o era f l u t u a n t e ou em trânsito para outros destinos, p o d e n d o permanecer vários meses nos entrepostos da cidade construídos pelos comerciantes para esse fim. Poucos autores têm apresentado informações sobre as categorias étnicoraciais da população escrava no século XVIII, e os dados disponíveis são geralm e n t e insuficientes. 5 Para cobrir parcialmente essa lacuna, consultei os inventários do período 1698-1820, correspondentes à zona fumageira do Recôncavo ( m u n i c í p i o de Cachoeira e seus termos), depositados n o Arquivo Regional de Cachoeira, e os do período 1750-1800, correspondentes à zona açucareira (municípios de São Francisco d o C o n d e e Santo A m a r o da Purificação), depositados no Arquivo Público do Estado da Bahia/' Os dados desses inventários f o r a m c o m p l e m e n t a d o s com os de u m a pesquisa similar desenvolvida pelo professor João José Reis para o período 1801-1820, do que resultaram as tabelas 1 e 2. 7 E m b o r a se trate de uma amostragem relativamente densa, é preciso lembrar que os resultados representam apenas estimativas aproximadas. Observa-se que, d u r a n t e a segunda m e t a d e do século XVIII, mais da metade da população escrava do Recôncavo Baiano era brasileira, ou seja, crioulos (negros nascidos n o país de progenitores africanos) e mestiços, incluindo nessa categoria mulatos, pardos e cabras. C i t a n d o as estimativas de Patrick M a n n i n g sobre as exportações da Costa da M i n a para a Bahia, Schwartz nota que o decréscimo da importação de africanos coincidiu com o declínio da econ o m i a açucareira entre 1730 e 1780. 8 Nesse sentido, a "crioulização" demográfica da população escrava esteve influenciada, e até estimulada, pela crise do açúcar. Foi apenas a partir de 1790, c o m a recuperação das exportações desse p r o d u t o , que os senhores de engenho dispuseram de capital para renovar suas escravarias com novas levas de africanos. Essa situação levou, nas primeiras décadas do Oitocentos, a u m a relativa "africanização" demográfica na zona d o açúcar e, sobretudo, em Salvador (ver Tabela 3), embora na zona fumageira continuasse a p r e d o m i n â n c i a do elemento crioulo, assim como um crescente processo de miscigenação racial. 9 Fernando O r t i z já falava, em relação à agricultura de exportação em Cuba, que "o açúcar e o tabaco são todo contraste". Segundo Schwartz, a população escrava da área do açúcar baiano no século XVIII caracterizava-se por urna 64

F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E É T N I C A J E J E N A B A H I A

Tabela 1 —

Composição étnico-racial da

escrava. Cachoeira (área fumageira),

população 1698-1820

— 1698-1729



/o

1730-1749

N

s

;

%

1750-1779



%

1780-1800 !

N

!

/O

Gentio do Guiné

32

; 9,3

Angola

59

17,1

51

16,6

85

21,9

87

Benguela

36

10,4

10

3,2

10

2,6

Outros África central

46

13,3

13

4,2

23

Mina

122

35,4

128

41,6

Jeje

39

11,3

106 5

Nagô







%

29,8

1 55

19,3

9

3,1

14

1,7

5,9

6

2,1

10

1,2

105

27,0

72

24,7

102

12,7

27,1

115

29,6

60

20,5

237

29,5

1,6

35

9,0

51

17,5

159

19,8

2

0,7

81

10,1

Hauçá Outros África ocidental

1801-1820

11

3,2

20

6,5

15

4,2

5

1,7

46

5,7

Total africanos

345

100,0

308

100,0

388

100,0

292

100,0

804

100,0

Subtotal África central

141

25,2

74

12,4

118

9,4

102

11,7

179

8,0

Subtotal África ocidentol

172

30,7

234

39,3

270

21,4

189

21,7 ; 6 2 5

27,9

Crioulo

192

34,3

225

37,8

645

51,2

365

42,0

44,9

Mestiço

55

9,8

62

10,4

227

18,0

214

24,6

560

100,0

595

870

100,0

Total

1 0 0 , 0 | 1 . 2 6 0 100,0

!

1.005

429 ; 19,2 2.238 1 0 0 , 0

Fonte: Para o p e r í o d o de 1698-1800, i n v e n t á r i o s , ARC. F o r a m c o n s u l t a d o s 2 6 4 i n v e n t á r i o s : 1 7 3 de C a c h o e i r a 3 2 de S ã o G o n z a l o d o s C a m p o s , 2 6 d e S ã o P e d r o d e M u r i t i b a , 12 d e B e l é m , 7 d e S a n t o A n t o n i o d e T i b i n , 5 d e Nossa Senhora d o D e s t e r r o d o O u t e i r o R e d o n d o , 3 d e S a n t o E s t e v ã o d e J a t u í p e , 2 d e C o n c e b o d a i-eira, de tapoeiruçu, 1 de S â o Félix e 1 M a r a g o g i p e . P a r a o p e r í o d o d e 1801-1820, i n v e n t á r i o s , A P E B O , Pro|eto R e i s Nigerian H i n t e r l a n d . Obs.-. " M e s t i ç o " i n c l u i : m u l a t o s , p a r d o s , c a b r a s e mestiços. alta porcentagem de africanos, escassez de mulheres e poucas crianças. Essa distribuição era maior nos grandes engenhos do que nas fazendas de cana e indica a dependência direta da economia do açúcar do tráfico transatlântico de escravos. 10 As fazendas de tabaco, geralmente com menor poder económico e acesso a créditos, empregavam menos escravos e provavelmente absorviam aqueles mais baratos (mulheres, crianças e idosos), porque o cultivo do f u m o

65

LUIS N I C O L A U PAR ÉS

Tabela 2 —

Composição

étnico-racial da população escrava. São

do Conde e Santo A m a r o da Purificação (área d o açúcar),

17S0 1779

N Angola

s

1780 • 1 8 0 0



%

%

Francisco

1750-1820

1801 -1820

N!

X

100

36,5

126

27,5

168

4

1,5

34

7,4

25

Outros Africo central

10

3,6

4

0,9

12

2,2

Mina

26

9,5

15

3,3

28

5,)

Jeje

111

40,5

166

36,2

122

22,0

Nagô

10

3,6

97

21,1

102

18,5

4

0,9

60

10,9

Benguela

Hauco Outros África ocidental





:

30,4 LJ1:5

13

4,7

13

2,9

35

6,3

Total africanos

274

100,0

459

100,0

552

100,0

Subtotal África central

114

21,3

164

15,8

205

18,8

Subtotal África ocidental

152

2», 4

291

28,1

347

31,9

Crioulo

201

37,5

411

39,7

Mestiço

69

12,9

169

16,3

172

15,8

•i 1.035 100,0

1.089

100,0

Totol

536

100,0

"' " 1 365 33,5

Fonte: Inventários, A P E B O . Para o período de 1 7 5 0 - 1 8 0 0 foram consultados 4 8 inventários de Santo A m a r o e 1 1 8 de S ã o Francisco d o Conde. Para o período de 1801-1820, dados extraídos do Projeto Reis-Nígerían Hinterland.

requer relativamente menos esforço físico que o do açúcar. Essa circunstância favoreceu uma proporção mais equilibrada entre h o m e n s e mulheres e, presumivelmente, o estabelecimento de um maior n ú m e r o de núcleos familiares. J u n t o com a possibilidade de u m a dieta mais rica — devido à criação de gado e à p r o d u ç ã o de farinha, feijão e milho nas fazendas de f u m o — , o resultado foi maior fecundidade, que resultou na crescente presença de "crioulinhos, m u l a t i n h o s e cabrinhas". Nesse sentido, a economia do tabaco pareceria d e p e n d e r menos do tráfico transatlântico do que a economia do açúcar, sem, no entanto, deixar de estar sujeita a ele." De qualquer m o d o , uma grande proporção dos crioulos e mestiços (em t o r n o de 44% para a segunda

66

FORMAÇÃO

OE UMA IDENTIDADE

ÉTNICA JEJE NA BAHIA

metade do século XVIII) eram crianças menores de doze anos, e não constituíam, em princípio, parte da força de trabalho. Passemos agora a examinar os grupos africanos. O s dados disponíveis não são fáceis de interpretar em virtude da abrangência semântica das categorias étnicas utilizadas e da variabilidade no uso desse sistema de classificação. Fora expressões genéricas c o m o gentio da G u i n é ou gentio da Costa, a g r a n d e maioria de escravos era referida com um p e q u e n o repertório de termos ou nomes de "nação": angola, benguela, mina, jeje, nagô e hauçá. Havia u m número considerável de outros termos — alguns referentes a portos ou regiões de embarque e outros que p o d e m ser identificados p r o p r i a m e n t e como etnicidades vigentes na Africa 1 2 — , mas eles se aplicavam a u m a q u a n t i d a d e relativamente pequena de escravos (ver categoria "outros" nas Tabelas 1 e 2). Etnônimos como arda ou lada (aliada), coda ou codavi, fon, sabaru (savalu) e maqui (mahi) faziam referência a grupos da área gbe, porém eles aparecem em contadas ocasiões nos inventários. A categoria "arda", por exemplo, foi bastante frequente na primeira década do Setecentos, mas o seu uso decresceu à medida que foi suplantada pela denominação "jeje", processo que, como vimos, correspondeu ao declínio do reino de Aliada e à crescente hegemonia de Uidá no comércio da Costa da Mina. Já o registro ocasional de termos como "sabaru" e "maquim" refletia as incursões regulares do exército daomeano no país Mahi na procura de cativos de guerra. A expressão "gentio de Guiné", praticamente a única no século XVII, também desapareceu drasticamente na década de 1710, q u a n d o outras denominações mais específicas passaram a ser usadas para diferenciar a crescente diversificação do tráfico. Todavia, certas categorias genéricas parecem ter sido privilegiadas em regiões específicas. Por exemplo, a expressão "gentio da Costa" foi muito utilizada na cidade de Salvador (ver Tabela 3), mas era praticamente desconhecida no Recôncavo. Isso implica, por um lado, que minas e muitos jejes eram classificados em Salvador apenas como gentio da Costa e, por outro, indica que a denominação "jeje" era mais característica do Recôncavo. Já na área do açúcar, especialmente em Santo Amaro, chama a atenção a baixa porcentagem dos minas, compensada por altas porcentagens de jejes e nagôs. Mais do que indicar redes de tráfico diferenciadas para as zonas do açúcar e do tabaco, o -ato sugere um uso regional diferenciado do sistema de classificação étnicoracial. Talvez os senhores de engenho, ao comprar lotes de cativos maiores, no seu interesse por identificar a mercadoria, tenham favorecido o uso de denominações como "jeje" e "nagô", de abrangência semântica mais restrita do que mina. Essa variabilidade diacrônica e geográfica do sistema de classificação étnica dificulta a análise, e será preciso um estudo f u t u r o mais detalhado para elu67

LUIS NICOLAU

PAR ÉS

cidar a sua complexidade. C o n t u d o , os dados disponíveis p e r m i t e m confirmar a p r e d o m i n â n c i a na Bahia dos escravos da Africa ocidental, em relação àqueles da África central. Na área do açúcar, porém, a p r o p o r ç ã o de angolas, benguelas e outros grupos de língua banto era maior do que aquela registrada pelos mesmos grupos na área d o tabaco. A partir de 1750, em Cachoeira, a porcentagem dos africanos centrais em relação aos africanos ocidentais oscilava entre 22% e 35%, e n q u a n t o em Santo Amaro e São Francisco ela oscilava entre 35% e 41%. Essa diferença faz com que a proporção relativa entre jejes e angolas, os dois grupos africanos predominantes até 1820, variasse não apenas em função dos períodos mas t a m b é m segundo as regiões. Uma das mudanças mais notórias da primeira metade do século XVIII é o significativo a u m e n t o dos jejes, que passam de 11,3%, nas três primeiras décadas do Setecentos, a 27,1%, no período 1730-1750 (Tabela 1). Esse aumento reflete a conquista do litoral gbe por Agaja e o consequente cativeiro de muitos prisioneiros de guerra embarcados em Uidá. A partir de 1750 até 1780, esse grupo atinge a sua proporção mais alta, constituindo, com quase 30% na área fumageira e 40% na área açucareira, o grupo africano demograficamente majoritário. A grande exportação dos jejes corresponde, portanto, aos reinos de Agaja (1708-1740) e Tegbesu (1740-1775), no D a o m é . C o m os reis Kpengla e Agongolo, nas duas últimas décadas do século, a proporção dos jejes nos engenhos e fazendas de cana baianas decresce para 36%, em favor de u m a u m e n t o dos nagôs, que começam a ter u m peso demográfico significativo. Essa tendência p o d e ser explicada pelo declínio do tráfico em Uidá, motivado, em parte, pelo crescimento dos portos orientais do Golfo do Benim (Porto Novo, Badagri e O n i m ) que, sobretudo a partir de 1780, concorreram e limitaram o tráfico no maior porto daomeano. Esse fato também explicaria o progressivo crescimento dos nagôs a partir de 1760 e também de outros grupos da África ocidental, incluindo os primeiros hauçás, tapas e baribas (Borgu) a chegarem na Bahia. C o n t u d o , os jejes ainda constituíam o grupo africano demograficamente majoritário. Já no Recôncavo fumageiro houve nesse período um declínio dos jejes, constituindo apenas 20% dos africanos, contra 30% de angolas. O crescimento dos angolas e , em menor grau, dos benguelas, nas últimas décadas do S e t e c e n t o s , é c o n f i r m a d o pelos n ú m e r o s de Carlos O t t , que no período 1778-1797 docum e n t a para o interior do estado u m a clara superioridade dos "bantos", com 2.163 registros, e n q u a n t o que os "sudaneses" (minas, nagôs, jejes) c o n s t a m em apenas 681 registros. 1 3 E m b o r a a proporção dos "bantos" que se deriva dos dados de O t t pareça inflacionada, não cabe dúvida de que na virada do século XIX os angolas recuperavam uma presença significativa. A r e v i t a l i z a ç ã o 68

F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E

ÉTNICA JEJE NA BAHIA

do tráfico subequatorial coincidia, como foi dito, com a recuperação da economia do açúcar e a d e m a n d a de mão-de-obra escrava africana. Nas duas primeiras décadas do Oitocentos, na Costa da Mina, o comércio de escravos continuou a prosperar. O tratado anglo-português de 1810, que interditava o tráfico nos portos de Aneho, Porto Novo, Badagri e Lagos — favorecendo momentaneamente Uidá — , e a subsequente proibição de 1815 de traficar acima do equador, foram pouco efetivos. Os negreiros não interromperam o embarque clandestino de jejes e outros povos vizinhos, como tapas, bornus, carabaris, benins, nagôs e hauçás. Os últimos começaram a chegar à Bahia em números significativos a partir de 1804, ano em que os fulanis lançaram a jihad islâmica contra esse povo. 14 Todavia, os jejes e angolas continuaram a ser os grupos africanos mais importantes, embora se constate u m a nova inversão na sua proporção relativa. Enquanto na zona fumageira os jejes recuperam a superioridade demográfica, chegando a constituir quase 30% da p o p u lação africana, na zona do açúcar se produz um movimento oposto, com uma ascensão dos angolas e um declínio dos jejes. Já em Salvador, no mesmo período de 1800-1820, jejes e angolas mantêm proporções similares (ver Tabela 3). No seu conjunto, essas oscilações respondiam às dinâmicas da economia do açúcar brasileiro e suas interligações com as flutuações do tráfico atlântico, dependente, por sua vez, das variáveis políticas do D a o m é e da c o n j u n t u r a internacional. As razões para explicar a variabilidade regional baiana são mais difíceis de identificar e podem incluir desde dinâmicas do tráfico interno sujeitas à lei da oferta e da demanda, mudanças nas preferências étnicas dos senhores, condicionadas talvez pela propaganda dos traficantes em favor de um ou outro grupo africano, ou até simples distorções estatísticas. Seja como for, interessa destacar que, deixando de lado os minas, que, aliás, certamente incluíam escravos da área gbe, entre 1730 e 1780 os jejes constituíram o grupo africano demograficamente mais importante entre a população escrava do Recôncavo e provavelmente da Bahia como um todo. Entre 1780 e 1820, apesar da presença expressiva dos angolas, os jejes c o n t i n u a r a m a ter destaque, m a n t e n d o ou recuperando em certos m o m e n t o s e lugares a supremacia numérica. Já a partir de 1820, a chegada maciça dos nagôs desbancou tanto jejes como angolas. antes . de comentar esse estágio, convém analisar algumas características da população jeje. Para o período 1750-1800 foram contabilizados 452 escravos dessa nação em um total de 3.737, constituindo, assim, 12,1% da P pulação escrava toda ela e 32% da população escrava africana. Em dois nao roi possível identificar o género, e o resto dividia-se em 232 homens mulheres, o b t e n d o u m a taxa de masculinidade ( n ú m e r o de homens a

69

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

cada 100 m u l h e r e s ) de 95 na área d o tabaco e de 114 na área d o açúcar. Esses são n ú m e r o s baixos em relação àqueles do c o n j u n t o da p o p u l a ç ã o escrava, que na área de tabaco seria a p r o x i m a d a m e n t e de 123 p a r a o m e s m o período e na área d o açúcar teria u m a m é d i a de 185 no século X V I I I . 1 5 F o r a m i d e n t i f i c a d o s 77 i n d i v í d u o s casados, 47 m u l h e r e s e 30 homens, s i g n i f i c a n d o que a p e n a s 17% da p o p u l a ç ã o jeje escravizada estava casada f o r m a l m e n t e pela igreja. N o t a - s e q u e as m u l h e r e s casavam c o m mais facil i d a d e do q u e os h o m e n s , p r o v a v e l m e n t e d e v i d o à relativa falta de mulheres e n t r e a p o p u l a ç ã o escrava c o m o u m t o d o . Esse f a t o j u s t i f i c a r i a t a m b é m o alto n u m e r o de uniões interétnicas. E n t r e os 71 indivíduos casados para os quais identifiquei a etnicidade do c ô n j u g e , 28 c o n s t i t u í a m 14 casais jejes ou i n t r a - é t n i c o s ( i n c l u i n d o d o i s casais j e j e - s a v a l u ) ; os d e m a i s 4 3 jejes estavam casados c o m i n d i v í d u o s de o u t r a s categorias é t n i c o - r a c i a i s . A l g u n s , de pref e r ê n c i a as m u l h e r e s , p o d i a m casar c o m c r i o u l o s (14 casos) e até com cabras e p a r d o s (2 casos), mas e r a m mais f r e q u e n t e s as u n i õ e s c o m outros afric a n o s . N a a m o s t r a o b t i d a , os parceiros dos jejes eram 8 angolas, 3 benguelas, 3 c o n g o s , 1 m a s a n g a n o , 4 m i n a s , 5 nagôs e 3 São T h o m é s . A baixa prop o r ç ã o de e n d o g a m i a é t n i c a (14 casais i n t r a - é t n i c o s c o n t r a 4 3 interétnicos) e a alta p r o p o r ç ã o d e casais e n v o l v e n d o p a r c e i r o s da A f r i c a c e n t r a l não parece c o n f i r m a r o viés é t n i c o q u e S c h w a r t z a t r i b u i à escolha d o c ô n j u g e nos c a s a m e n t o s e s c r a v o s da á r e a d o a ç ú c a r . 1 6 P o r é m vale n o t a r q u e fatores c o m o a i m p o s i ç ã o s e n h o r i a l o u a escassez de p o t e n c i a i s p a r c e i r o s nas esc r a v a r i a s p e q u e n a s p o d i a m f a c i l m e n t e c o m p r o m e t e r a p r e f e r ê n c i a étnica endogâmica.17 E n t r e as 4 7 m u l h e r e s jejes casadas, apenas algo mais da m e t a d e (27) tin h a registrada descendência, s o m a n d o u m total de 72 "crioulinhos", o que dá u m a média de 1,5 filhos por casal. E m b o r a faltem dados para estimar com precisão a taxa d e fertilidade da p o p u l a ç ã o jeje — c o m o índices de abortos ou m o r t a l i d a d e i n f a n t i l (que não deviam ser baixos) — , parece que os jejes estavam longe de s u s t e n t a b i l i d a d e por m e i o da r e p r o d u ç ã o n a t u r a l . Todavia, sete das mães jejes, c u r i o s a m e n t e p e r t e n c e n t e s a casais i n t r a - é t n i c o s , eram prog e n i t o r a s de 37 filhos, ou seja, mais da m e t a d e do total e s t i m a d o . P a r a l e l a m e n t e f o r a m i d e n t i f i c a d a s 40 mães "solteiras" c o m u m total de 75 filhos, o q u e dá u m a taxa de f e r t i l i d a d e de 1,9 filho p o r m u l h e r , algo inferior à taxa das mães casadas, q u e era de 2,6. 1 8 C o m o já vimos, na segunda m e t a d e do século XVIII os crio ulos e mestiços e r a m maioria, o que sugere q u e os fazendeiros de f u m o , e até alguns senhores de e n g e n h o , a c r e d i t a v a m e p r o v a v e l m e n t e i n c e n t i v a v a m os c a s a m e n t o s cotn° estratégia para a reposição parcial d o c o n t i n g e n t e escravo. Se a esse cresci70

F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E

mento

ÉTNICA JEJE NA BAHIA

crioulo a d i c i o n a m o s a miscigenação i n t e r é t n i c a dos c a s a m e n t o s jejes,

há elementos para q u e s t i o n a r a separação da p o p u l a ç ã o escrava em f u n ç ã o da sua cultura de o r i g e m . Ao c o n t r á r i o , os d a d o s sugerem q u e na s e g u n d a m e tade do Setecentos h o u v e u m a f o r t e simbiose de valores africanos, a qual foi certamente h e r d a d a pelos crioulos. Os jejes eram t a m b é m u m a p o p u l a ç ã o a d u l t a e e m m u i t o s casos d o e n t e . Apenas achei u m a referência a u m " m o l e q u e " e u m a " m e n i n a " jejes, e, e m bora em geral não constasse a idade, 2 2 , 5 % dos escravos são i d e n t i f i c a d o s como "já velhos" ou "de m a i o r " . Aparece t a m b é m u m a s u r p r e e n d e n t e q u a n tidade de doentes ou aleijados, em t o r n o de 27,5%, devido às duras condições de trabalho e à falta de q u a l q u e r a t e n d i m e n t o m é d i c o . As patologias são variadas, mas figuram com frequência aqueles "quebrados da virilha" pelo carrego excessivo de peso na cabeça, os q u e p a d e c e m de gota, de dores de peito, de estômago, asma, " c o r r i m e n t o de b a b a nas pernas", "calor de fígado nas m ã o s e pés" e também aqueles "doentes de cansaço". Em r e l a ç ã o à o c u p a ç ã o dos e s c r a v o s j e j e s , a g r a n d e m a i o r i a ( 7 2 % ) estava e m p r e g a d a n o "serviço da e n x a d a " , isto é, e m a t i v i d a d e s d e l a v o u r a da cana, t a b a c o o u p r o d u t o s de s u b s i s t ê n c i a . S e g u i a m - s e a q u e l e s e m p r e gados no "serviço d a casa" e em m e n o r n ú m e r o a p a r e c e m o u t r o s com o c u pações mais especializadas, c o m o f u m e i r o , c o z i n h e i r o , c a r r e i r o , c o r d o e i t o ou marinheiro. Essas h a b i l i d a d e s são n o r m a l m e n t e r e f l e t i d a s n o preço m a i s alto desses escravos. Até aqui falei p r i n c i p a l m e n t e da p o p u l a ç ã o escrava jeje d o R e c ô n c a v o , mas p o u c o foi d i t o em relação a Salvador o u à p o p u l a ç ã o l i b e r t a . Até o n d e sei, Carlos O t t foi o ú n i c o a u t o r a a p r e s e n t a r d a d o s s o b r e as c a t e g o r i a s etnico-raciais da p o p u l a ç ã o escrava, e m Salvador, n o s é c u l o XVIII. Pelo limitado da a m o s t r a , esses d a d o s d e v e m ser c o n s i d e r a d o s c o m e x t r e m a cautela, mas, s e n d o os ú n i c o s d i s p o n í v e i s , f o r a m i n c l u í d o s na T a b e l a 3 a p e nas c o m o i n d i c a t i v o s . As i n f o r m a ç õ e s relativas ao século X I X são m a i s "cas, p e r m i t i n d o e x p a n d i r o p e r í o d o de análise até 1850, o q u e a i n d a n ã o e

possível para o R e c ô n c a v o . Para esse p e r í o d o , n a T a b e l a 3, a d a p t e i os

dados extraídos dos i n v e n t á r i o s p o r M a r i a José d e Souza A n d r a d e e J o ã o José Rei s . Todavia, na Tabela 4, adaptei os dados apresentados por M a t t o s o sobre as °ngens étnicas de escravos e m a n c i p a d o s e m Salvador e n t r e 1779 e 1850. U m a /1 •

,

I

lse c

° m p a r a t i v a das tabelas 3 e 4 p e r m i t e identificar quais eram os g r u p o s

etnico-raciais mais favorecidos pelas alforrias na cidade. Essa i n f o r m a ç ã o é importante, já que, c o m o vimos no início do capítulo, n o século XIX a p o p u l a ne

g r a e mestiça livre o u liberta era superior à escrava. 71

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Tabela 3 —

C o m p o s i ç ã o é t n i c o - r a c i a l d a p o p u l a ç ã o e s t r a v a . S a l v a d o r , 1702-1850 1702 - 1 7 9 9

N Africano

1

Angola i

]

í

J

Mina

! N

2,3

!

10

1821 - 1 8 5 0

!%

N!





22,8 i 4 0 2

%

10 J 0,3

0,4; ,

i

I

i

-

18,0

292

10,5

53

5,7 '

91

4,0 !

44 !

16

41

4,4 1

57

2,6!

280 I

10,0

80 !

2,9

_L

Outros África central Gentio da Costa

15 211

1

1800 - 1 8 2 0

|

i

Gentio da Guiné

Benguela

%

!

457

49,3

465

102

11,0

166

20,9

137

7,5 í

4,9

Jeje

í

32

3,5

420

18,9

331

Nagô

;

5

0,5

286

12,8

1.204

43,2

168

6,0

243

8,7

2.789

100,0

616

15,1

_

Hauçó Outros África ocidental Total africanos

í

221

9,9!

1,2

109

4,9 i

100,0

2.227



n

] 927

1 1

100,0

i

Subtotal África central

_

550

Subtotal África ocidental

1.667;

1

15,5!

4 7 , 0 ; 2.163

Crioulo

905;

25,5!

Mestiço

422!

1 1,9

Total

1

11,8

53,2

8 3 1 20,4 449

3.544 11 00,00 : 4.059

1

1 1,0 100,0

Fonte: Inventários, APEBQ. Paro o período 1702-1799: Ott, " O negro", p. 143. Para o período 1800-1820: Projeto Reis-Nigerian Hinterland. Para o período 1821-1850: Andrade, A mào-áe-obra, pp. 189-90. Obs..- Os 20 "africanos da primeira linha da tabela foram descontados nos subtotais de africanos centrais e ocidentais, e os "gentio do Costa" foram contabilizados como africanos ocidentais.

N ã o se trata aqui de fazer uma discussão pormenorizada desses dados, mas apenas de destacar algumas generalidades significativas. Em primeiro lugar, obsetva-se que a porcentagem de africanos entre a população liberta era menor que entre a população escrava, o que permite inferir que os crioulos nascidos no país e, sobretudo, os mestiços, tinham mais chance de alcançar a liberdade. Essa assimetria indica um sistema de relações sociais hierarquizado q u e 72

FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA

Tabela 4 —

C o m p o s i ç ã o é t n i c o - r a c i a l d o s l i b e r t o s . S a l v a d o r , 1779-1850 1779-1800

%





| %

Africano

1

0,3

1

Gentio da Guiné

8 ;

2,2

15

1,6

0,1 '

N*

%

119 |

6,9

5 ; 0,3

Angola

61

17,0 i

108

12,0

122

6,7

Benguela

23

6,4

34

3,7

13

0,7

1

0,3

7

0,8

77

4,2

11

3,0

22

2,4

2

0,1

Mina

169

47,0

314

34,8

138

7,6

Jeje

63

17,5

236

26,2

318

17,6

: 20

5,6

96

10,6

754

41,7

43

4,8

110

6,0

Outros África central Gentio da Costa

Nagô Hautá

i —

Outros África ocidental Total a f r i c a n o s

Subtolal África central Subtotal África ocidental Crioulo/mestiço Total

Forte-, Cartas

1821-1850

1801-1820

,

;

2

0,5

26

2,9

150

8,3

359

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• W inclui 6 dahomes e 11 maquinas (mahis); "Outros Afrca»a Lá fez muitos filhos de santo e, embora tenha m o d i f i c a d o muitos aspectos rituais, converteu-se na "raiz carioca" do jeje-mahi (ver adiante). Uma das pessoas mais influentes n o Seja H u n d é dessa época foi seu Miguel Rodrigues da Rocha, casado com a descendente de nagôs Cecília Ovídia de Almeida e pai carnal de seu G e n i n h o , gaiaku Luiza e Joana, iniciada para o v o d u m Azonsu em tempos de Pararasi. Em 1914, seu Miguel foi confirmado c o m o pejigã, o chefe d o peji, cargo correspondente à segunda pessoa depois da mãe-de-santo. A sua participação nas atividades religiosas d o candomblé, j u n t o com a sua condição de protetor, mediador e m a n t e n e d o r do terreiro, lembram, de certa forma, o carisma de Zé de Brechó. Segundo relato da sua filha gaiaku Luiza, seu Miguel era de Badé com Oxalá e t i n h a Iemanjá. Era u m h o m e m fisicamente i m p o n e n t e , alto e forte. T i n h a açougue em Cachoeira. Por volta de 1918, trabalhou como marinheiro e dizem que viajou para a Africa. Ele esteve envolvido em política e foi guarda do c o m e n d a d o r U b a l d i n o N a s c i m e n t o de Assis. Segundo expressão da sua filha, "ele era um Getúlio Vargas", acrescentado que "vivia com balas no cinto". As eleições, naquela época, envolviam frequentes distúrbios e tiroteios entre facções rivais." Depois de uma dessas eleições, seu Miguel teve que fugir para o Rio, t r a b a l h a n d o lá como mestre-de-obras e pedreiro na c o n s t r u ç ã o do Palácio do Catete, voltando a Cachoeira só em 1922. Faleceu em 1966, como fiscal da prefeitura. Ele conseguiu um certo poder político e económico e ajudava a custear as festas em tempos de Maria Agorensi. Q u a n d o pejigã Miguel chegava ao terreiro, era saudado com toque de tambor. 1 2 Ogã Caboco, conhecido c o m o Caboco Acaçá, de n o m e Tomás de Aquino Bispo, era filho de deré Custódia e do ogã seu Agapito, mas teve por mãe de leite a d o n a Cecília, mulher de seu Miguel. Aos 11 anos foi confirmado como ogã senevi, j u n t o com o pai carnal, seu Agapito, e seu Miguel. Era também hunto (tocador de atabaque) m u i t o bom. Com o tempo, ogã Caboco viria a ser ogã impe, encarregado das matanças. Ele t a m b é m "deu mão", isto é, ajudava em outras casas jejes como o Bogum, a casa de gaiaku Luiza, sua irmã de criação, ou a de humbono Vicente. Segundo hurnbono Vicente, ele era quem 216

L I D E R A N Ç AE D I N Â M I C A

INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA

Pejigõ seu Miguel (sentado), ogã seneviCaboto

HUNOÉ

Acaça (com relógio) e outros ogãs do Seja Hundé (c. 1960}

mais sabia no Seja H u n d é , "acabou ele, acabou tudo". Ogã C a b o c o faleceu na década de 1970, em Belo Horizonte. 1 3 Seu irmão, João, t a m b é m era ogã bunto e a irmã, Gina, era vodúnsi de N a n á . Dessas informações se percebe uma complexa malha de relações de parentesco entre os m e m b r o s da congregação religiosa, que se irá acrescentando e imbricando ao longo da história do terreiro. Essa parece ser u m a característica geral dos terreiros jejes, tanto na Bahia q u a n t o na Casa das Minas de São Luís do M a r a n h ã o . Um n ú m e r o significativo de vodúnsis, ogãs e equedes são recrutados entre m e m b r o s de certas famílias com ascendência africana e esses vínculos de sangue se perpetuam ao longo das gerações. Seu G e n i n h o fala do "povo da veia" para se referir a essas pessoas, em contraposição aos "frequentadores" ou participantes que não pertenciam a tais famílias. No primeiro período do Seja H u n d é , tem destaque a participação i m p o r t a n t e de parentes de Maria Agorensi e de deré Custódia, assim como a influência do pejigã seu Miguel. E ssa d i n â m i c a associativa baseada no parentesco, talvez a forma de solidariedade intergrupal mais básica, é, em geral, sabiamente utilizada pela liderança religiosa para reforçar e manter o poder. N ã o me parece que esse f e n ó m e n o seja recente nem exclusivo dos jejes. C o m o sugeri no capítulo 4, foram precisamente esses vínculos de parentesco (no século XIX, entre africanos e sua descendência crioula) que p e r m i t i r a m a formação de congregações religiosas domésticas e, mais tarde, o surgimento dos candomblés. J u n t o com o parentesco de sangue, o parentesco religioso 217

LOIS NICOLAU

FARES

estabelecido através dos processos de iniciação c o n t r i b u i para a formação d e alianças internas entre vários grupos da congregação que, nos períodos de conflito, c o m o p o d e m ser as disputas de sucessão, vêm a se manifestar na forma de facções c o n c o r r e n t e s . R e c a p i t u l a n d o , o p e r í o d o q u e vai de 1914 até a m o r t e de M a r i a Agorensi em 1922, p a r e c e m a r c a r u m dos m o m e n t o s de e s p l e n d o r d o Seja Hundé. Após, talvez, duas décadas desde a sua f u n d a ç ã o , o terreiro atinge uma das "épocas d o u r a d a s " . Seu G e n i n h o , nascido e m 1906, foi t e s t e m u n h a , na sua infância, desses eventos. E m d e p o i m e n t o s recolhidos p o r Lopez de Carvalho, ele l e m b r a c o m s a u d a d e e vividez o e s p l e n d o r d o c a n d o m b l é d o Ventura daquela época. M o r a m o s n o V e n t u r a p o r m u i t o t e m p o [...] n o s s a casa f i c a v a d e f r o n t e ao peji [altar] d e c i m a . E r a u m a casa d e d o i s q u a r t o s , d e t e l h a d o d e p a l h a e foi m e u pai quem c o n s t r u i u . T i n h a u m c o r r e i o d e casas, t o d a s d e p a l h a s , o n d e m o r a v a m os antigos, c o m o o Sr. A r i s t i d e s , T i a C u s t ó d i a , d o f o n a G i n a [...]. O c a n d o m b l é lá n a R o ç a do V e n t u r a a m a n h e c i a o dia. T i n h a m a q u e l a s v e n d e d o r a s q u e v i n h a m d e C a c h o e i r a vender a q u e l a s b o b a g e n z i n h a s delas. A n o i t e t o d a , c o m o fifó i l u m i n a d o , v e n d i a m amend o i m c o z i d o , c o c a d a , p é - d e - m o l e q u e [...]. D e n t r o d a r o ç a , e m é p o c a d e festa, tinha u m a b i r o s c a q u e v e n d i a c h a r u t o s , b o l a c h a s [...]. A R o ç a d o V e n t u r a , e m C a c h o e i r a , n ã o e x i s t i a o u t r a i g u a l . Q u a n d o e r a o B o i t á , n e m q u e i r a s a b e r ! C a c h o e i r a e m peso s u b i a , a q u e l e s n e g o c i a n t e s t o d o s : Sr. R i c a r d o P e r e i r a , Sr. L u i s Reis e a q u e l a s famílias todas v i n h a m apreciar o Boitá. Era o c a n d o m b l é que abalava Cachoeira. Vinham m u i t a s a u t o r i d a d e s , c o m o S i n h á P o r f i r i a d a T e r r a V e r m e l h a , A l e i j a d i n h a d a Lagoa E n c a n t a d a , Z é d e V a p o r d a Terra V e r m e l h a [...]. E!e t i n h a u m

filho-de-santo

cha-

m a d o E d g a r d e O y á , q u e era m u i t o c o n s i d e r a d o n a R o ç a d o V e n t u r a [...]. S i n h á A b a l h e s e m p r e estava p r e s e n t e , ela n u n c a a b a n d o n o u M a r i a A g o r e n s i , a s s i m c o m o Possusi R o m a n i n h a . Essa só falava n o jeje, n ã o falava e m p o r t u g u ê s n ã o ! O p o v o t o d o d o B o g u m v i n h a , e q u a n d o t i n h a f e s t a lá, o p o v o d ' a q u i ia p a r a lá. V i n h a u m o g a n q u e c h a m a v a B o m f i m e d o m i n a v a m u i t o o jeje. Chegava no C a q u e n d e , para t o m a r b a n h o , c o m o g a n C a b o c o , e só f a l a v a m n a l í n g u a d o jeje. E u g a r o t o l e m b r o deles p a s s a n d o folhas no corpo e falando no dialeto jeje.14

Esse t e s t e m u n h o evidencia a extensa rede social q u e existia e n t r e o cand o m b l é e a sociedade civil, assim c o m o , m u i t o e s p e c i a l m e n t e , a i n d i s p e n s á vel c o m u n i c a ç ã o e i n t e r c â m b i o de visitas e n t r e os vários terreiros da região, m u i t o s deles nagôs, mas t a m b é m alguns jejes de Salvador, c o m o o B o g u m e o C a m p i n a de Boskeji. E através desses laços de c o m p l e m e n t a r i d a d e que se m e n sura e legitima a visibilidade social de u m c a n d o m b l é e, q u a n t o mais variados, m a i o r o prestígio da congregação religiosa. Em relação às visitas do pessoal d o C a m p i n a , humbono

V i c e n t e c o m e n t a que, q u a n d o chegavam, c a n t a v a m ,

218

LIDERANÇA E DINÂMICA

INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA

HUNOÉ

pedindo licença para entrar na roça, salvando o Seja H u n d é , que, segundo ele seria um n o m e do v o d u m Azonsu, d o n o da casa ou barracão: Ere ere bi oyo C a m p i n a tere n a d o Ere ere bi oyo Seja H u n d é m i n a d o . 1 5

Como já foi dito, Maria Agorensi faleceu em 1922, fechando-se, assim, um dos capítulos mais notáveis da história do Seja H u n d é . C o m o é de costume na tradição jeje, com a morte da mãe-de-santo são iniciados os rituais funerários, chamados sirruns ou zelins (axexés na tradição nagô), com u m a primeira obrigação de corpo presente que dura u m a semana e outras posteriores um mês, três meses, seis meses, um ano, três anos e sete anos após o falecimento. Nesses sete anos as atividades do candomblé são normalmente paralisadas, isto é, não são celebradas festas públicas nem são iniciadas novas vodúnsis, embora certos rituais internos, como oferendas de comidas secas no peji, possam ser m a n tidos. Em todo caso, esses períodos de transição em que deve ser escolhida a nova mãe-de-santo estão normalmente marcados por conflitos internos de luta pelo poder.

OS TEMPOS DE A B A L H E Após 1922, o Seja H u n d é paralisou suas atividades por mais de uma década. Uns falam que foram 11 anos e outros, que foram 15. 16 Segundo gaiaku Luiza, "a tia morreu. A roça ficou onze anos fechada. O pessoal foi saindo, muitos já não voltaram. Abalhe recolheu as suas". 17 Foi, p o r t a n t o , por volta de 1933 ou 1937 que Maria Epifânia dos Santos, sinhá Abalhe, conseguiu, finalmente, assumir como a nova gaiaku do c a n d o m b l é . Não deixa de ser significativo que a década de 1920, q u a n d o o Seja H u n d é e também o Bogum permaneceram inativos, tenha coincidido com o período de maior repressão policial do C a n d o m b l é , tanto em Salvador q u a n t o no Recôncavo, 18 e que em meados da década de 1930, q u a n d o ambos os terreiros reiniciam suas atividades, o fato tenha coincidido com uma época de progressiva tolerância dos cultos afro-brasileiros. Em 1937, intelectuais como Edison Carneiro e A y d a n o do C o u t o Ferraz, com a participação de pais-de-santo como Eliseu M a r t i n i a n o do B o m f i m , p r o m o v e r a m o S e g u n d o Congresso Afro-Brasileiro, em Salvador, que em m u i t o contribuiu para o reconhecimento social e a valorização dessa tradição religiosa. U m ano depois, em 1938, 219

LUIS NICOLAU

PARÉS

"liberava-se a prática de c a n d o m b l é , b a t u q u e s e o u t r a s manifestações religiosas negras, graças à i n t e r v e n ç ã o d o chefe da Casa Civil d o governo Vargas, O s w a l d o A r a n h a , ligado à filial d o Axé O p ô A f o n j á no Rio". 1 9 N ã o sei até q u e p o n t o essa d i n â m i c a externa favoreceu a reabertura do Seja H u n d é e do B o g u m , mas outras dinâmicas de caráter interno, além da repressão policial, parecem ter sido mais críticas para explicar o longo período de interregno que se p r o l o n g o u além dos sete anos de luto. Ao que t u d o indica, essa d e m o r a foi devida a dissidências internas em t o r n o de q u e m p o d i a e devia assumir o cargo de gaiaku. Lopez de Carvalho resume a versão dada por gaiaku Luiza, que coincide com aquela c o n t a d a a m i m : As vodunsi

da c a s a , ou s e j a , as f i l h a s d e M a r i a O g o r e n s i , n ã o a c e i t a r a m q u e Sinhá

A b a l h e a s s u m i s s e a d i r e ç ã o d o V e n t u r a e foi p o r isso q u e a r o ç a ficou t a n t o t e m p o f e c h a d a . N ã o se t e m certeza d o m o t i v o dessa n ã o aceitação, das a n t i g a s filhas d e Maria O g o r e n s i p a r a c o m S i n h á A b a l h e , m a s a p o p u l a ç ã o d e C a c h o e i r a fala q u e era pelo f a t o d e S i n h á A b a l h e não t e r s i d o i n i c i a d a ali n o V e n t u r a e s i m n a R o ç a d e C i m a . Q u e a h e r d e i r a d o t e r r e i r o d e v e r i a ser u m a filha da casa e n ã o u m a i r m ã d e M a r i a O g o r e n s i ( n o caso t i a das vodunsi).

T a m b é m se fala, q u e S i n h á A b a l h e s o f r e u m u i t o

p a r a c o n s e g u i r j u n t a r todas as vodtinsi

da casa d e v o l t a , e q u e p a r a t o m a r p o s s e teve

f a c ã o riscado n o c h ã o e até c h i n e l a d a n o rosto d e S i n h á A b a l h e , p o r p a r t e das s o b r i n h a s . S e g u n d o G a i a k u L u i z a , q u e m c o n s e g u i u r e u n i r as filhas d e volta f o i o A z o n s u de u m a das vodunsi antiga [Luiza M o r e i r a de A v i m a j e ] 2 0 q u e "virou" e disse q u e a roça de Bessen n ã o p o d i a virar p a s t o para g a d o , e q u e já era t e m p o das filhas v o l t a r e m a a c e i t a r e m a n o v a G a i a k u . E foi assim q u e as vodunsi

foram

voltando pouco a pouco.2'

Mas nem todos voltaram. O pejigã seu Miguel, com sua família, por exemplo, afastou-se do Seja H u n d é a partir dessa época. Sabe-se que, após a morte de Maria Agorensi, a chave d o peji, talvez o emblema m á x i m o do poder n u m terreiro, passou p r i m e i r o p a r a o pejigã M i g u e l , mas depois, m a r c a n d o as diferenças surgidas entre Abalhe e seu Miguel, passou para o ogã impe Caboco Acaçá. 22 Esse seria um b o m exemplo de "drama social" com as q u a t r o fases descritas por Turner de r u p t u r a , crise, reparação e, no presente caso, u m a c o m b i n a ç ã o de reintegração e cisma. Vemos t a m b é m , c o n f o r m e a teoria de Turner, c o m o se recorre ao ritual (adivinhação, manifestação das divindades e provavelmente outras atividades) p a r a d i r i m i r o c o n f l i t o e restabelecer a o r d e m i n t e r n a da congregação. 2 3 Em última instância, são as divindades que, apelando à communitas ou à união dos m e m b r o s do grupo, sancionam a solução do problema. O ritual e o sistema de crenças operam de forma dialética, tanto q u a n t o mecanismos de transformação e superação do conflito, c o m o mantenedores da coesão e da ordem social. No entanto, c o m o veremos mais adiante, a reparação seria apenas parcial e, sob a aparente reintegração do g r u p o , p e r m a n e c e m latentes a divisão 220

LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA

DOS TERREIROS BOGUM E SEJA

HUNOÉ

e as tensões entre facções rivais, dissidências que reapareceram de f o r m a recorrente com novas rupturas, geralmente ocasionadas pela m o r t e da líder da congregação ou o a f r o u x a m e n t o do poder religioso. A rivalidade entre Abalhe e as filhas-de-santo de Maria Agorensi talvez derivasse de antigas diferenças entre Abalhe e a mesma Maria Agorensi. C o m o já notei, é possível que nos primeiros tempos Abalhe permanecesse fiel a Zé de Brechó, na Roça de C i m a . E t a m b é m provável que, após a m o r t e dele, Abalhe funcionasse como especialista religiosa independente. Aguesi contava que um h o m e m do jeje, de n o m e E p i f â n i o Santa Rita, deu o decá a Abalhe e que essa c e r i m o n i a foi realizada no Corral Velho (atual praça Marechal Deodoro), pois não podia ser celebrada no Seja H u n d é "por causa da o u t r a [Maria Agorensi]". Essa festa durou três dias e foi m u i t o concorrida.* 4 O r a , a partir de certo m o m e n t o i n d e t e r m i n a d o , Abalhe passou a tomar parte no Seja H u n d é . C o n f o r m e seu G e n i n h o , segundo ouviu dos mais velhos, Maria Agorensi fez u m a obrigação com Abalhe para "tirar a mão da cabeça" de seu pai-de-santo original (tio Xarene ou Zé de Brechó), que era m u n d u b i . Daí, Abalhe passou a ser a segunda pessoa de Agorensi, a j u d a n d o e a c o m p a n h a n d o todas as atividades do candomblé. 2 5 Em todo caso, a partir do m o m e n t o em que assumiu como gaiaku, por volta de 1934 ou 1937, Abalhe conseguiu que o Seja H u n d é voltasse a ser o que era antes, com muitas filhas-de-santo, muitos rendeiros e caseiros m o r a n do e zelando pela roça, com festas concorridas que atraíam a presença de importantes m e m b r o s de outras congregações religiosas da região e de Salvador. A gestão de sinhá Abalhe, no período de 1935 a 1950, constituiu a segunda e talvez a última "época dourada" do Seja H u n d é .

Maria E p i f â n i a dos Santos, sinhá A b a l h e , i r m ã da Congregação de N . S. da Boa Morte (c. 1950) Autor-. Pierre Verger

221

Bessen e seu nome africano era arrunsi Lufame (hunsi Lufame), mais conhecida como fomotinha Agorensi Abalhe, ou simplesmente Abalhe, pronunciado às vezes Abalia, Abalha ou Abalié, que seria um título honorífico. 2 6 No seu registro de óbito consta que nasceu em Cachoeira, onde m o r o u em várias casas. Ogã Boboso menciona u m a na Recuada, que tinha u m quarto que "fechou de tanta pedra guardada". Acrescenta que Zé de Brechó, que esteve amasiado com ela na última década do século XIX, morava em cima. 2 7 Ela era irmã da devoção da Boa M o r t e e m e m b r o das irmandades do Martírio e do Rosarinho. 2 8 Segundo seu G e n i n h o , " t u d o o m u n d o t i n h a m e d o da língua de sinhá Abalhe", mas ela não vivia da religião; em palavras de humbono Vicente, "não botava mesa nem ebó". 2 9 Segundo Miguel Santana, respeitado comerciante e ogã do Axé O p ô Afonjá, "ela era pequenininha, preta, negrinha [...] possuía u m a q u i t a n d a ao lado da igreja do Rosário, o n d e vendia a m e n d o i m , beiju, cavaco, pinha. Não, não vendia artigo da Costa, ninguém vendia artigos da Costa em Cachoeira, t u d o era vendido aqui em Salvador". 30 Miguel Santana namorava naquela época Maria Cidreira da Anunciação, cujo n o m e de santo era Badesque (provavelmente Badesi, devota do v o d u m Badé) e que, segundo ele, era "a segunda pessoa da mãe-de-santo lá do Engenho do Rosário". Por esse motivo, ele ficou hospedado durante oito dias no Seja H u n d é , o n d e teve oport u n i d a d e de confirmar a reputação de Abalhe como devota do v o d u m Bessen. T i n h a um n e g ó c i o q u e eu n ã o sabia o q u e era, só o u v i a o r u í d o : chiii... chiii... chiii... e n a d a . D e p o i s é q u e v i m a s a b e r q u e era a c o b r a q u e Abali t o m a v a c o n t a . M a i s q u e coisa, h e m ? F r a n c a m e n t e , fiquei c o m m e d o , m a s ela disse: " N ã o t e n h a m e d o , n ã o t e n h a s u s t o , p o d e ficar a q u i d e s c a n s a d o " . Ela criava t a m b é m u m a s c o b r a s n o rio C a q u e n d e , e n t ã o q u a n d o e r a de m a n h ã levava as c a r n e s c o r t a d a s n u m b a l a i o , e ia a o rio, p e r t o de u n s pés d e m a n g a b e i r a a p a n h a v a u m a s folhas, n ã o sei q u e f o l h a s e r a m ; m a c h u c a v a , passava pelo c o r p o , se p r e p a r a v a t o d a e e n t ã o cheirava e dava b a f o r a d a s p r a d e n t r o d a água e c h a m a v a as c o b r a s p e l o n o m e . E n t ã o elas s a í a m d e d e n t r o da água, b o t a v a m a c a b e ç a p r a f o r a . Q u a n d o a c o n t e c i a sair u m a q u e ela n ã o t i n h a c h a m a d o , ela dizia: " N ã o , p r i m e i r o essa, você espera". E n ã o é q u e esperava? Era lá, n o célebre C a q u e n d e . 3 1

N ã o c o n s e g u i i n f o r m a ç õ e s precisas sobre q u a n t o s barcos b o t o u sinhá Abalhe. Humbono

Vicente falava que foram dois ou três, gaiaku Luiza diz que

foram três. E n t r e as vodúnsis iniciadas nesse período são lembradas decerto: 1) dofona Adalgisa de Parara (Pararasi), que viria a ser a sucessora de Abalhe, nos anos 1960; 2) fomotinha

Valentina de Nanã, irmã carnal de Aguesi; 3)

gamo Augusta Maria da Conceição Marques de Loko (Lokosi), a atual gaiaku do Seja H u n d é ; 4) um h o m e m , dofono de Bessen; 5) Edith Moreira, filha de 222

LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA D O S TERREIROS BOGUM E SEJA

HUNOÉ

a Caboco. Provavelmente t a m b é m foram iniciadas por Abalhe: 6) Maria José de Oiá; 7) tia D a d a de Azonsu; 8) Valentina de Bessen e 9) sua filha carnal, de A k o t o q u e m , que nasceu no

hunco?1

A m b r ó s i o Bispo Conceição, ogã Boboso (c. 1999) Autor-. F e r n a n d o A r a ú j o

Entre 1936 e os primeiros anos da década de 1940 foram c o n f i r m a d o s simultaneamente: 1) Ambrósio Bispo Conceição, seu Boboso de Sogbo, como ogã kutó, e 2) seu B e r n a r d i n h o de Lissá, primo carnal de Aguesi, como pejigã. 33 Eles dois são os m e m b r o s mais antigos, ainda na ativa, que preservam o conhecimento ritual do Seja H u n d é . São lembrados t a m b é m c o m o participantes dessa época: 3) ogã José de Abalhe, s o b r i n h o desta e criado por ela na Recuada; 4) Sátiro H u m b e r t o da Silva, apelidado de Pássaro Preto, ogã yninazon e ogã do v o d u m Loko de Augusta da Conceição Marques; 5) José Magno Ferreira dos Santos, apelidado de Zé Careca, ogã da Oiá da supramencionada Maria José, irmão de seu Bernardinho e do sargento Edinho, antigo ogã em tempos de Maria Agorensi; e 6) ogã Baba, que morava no Rio. Entre as equedes, são lembradas, por exemplo, tia Dadi, irmã do pejigã seu Miguel; Maria Ana do C a r m o de Bessen, irmã por parte de pai da finada Aguesi e sobrinha de Maria Agorensi; sua filha, Maria São Pedro dos Santos, conhecida como Valdelice de Agué, confirmada como equede de Bessen, e Bela, mulher de ogã José de Abalhe, ainda na ativa. 34 Vale notar como, em tempos de Abalhe, as relações de parentesco seguem c o n s t i t u i n d o um dos fatores i m p o r t a n t e s no r e c r u t a m e n t o dos m e m b r o s e na estrutura social do candomblé.

223

LUIS NICOLAU

PARÉS

B e r n a r d i n o Ferreiro dos Santos, atual pejigõ do Seja H u n d é (c. 1999J Autor-. F e r n a n d o A r a ú j o

C o m o explica ogã B o b o s o , s i n h á A b a l h e era u m a m ã e - d e - s a n t o muito q u e r i d a e se relacionava m u i t o b e m com as pessoas. O c a n d o m b l é nagô de Anacleto, n o Capivari, em São Félix, tinha u m a ligação m u i t o boa com o Ventura. Ela era t a m b é m m u i t o amiga de seu Aprígio de Sogbo, do terreiro Pó Z e r r e m de nação jeje m u n d u b i . O s fortes vínculos com o dirigente do Pó Zerr e m são compreensíveis, já q u e sinhá Abalhe tinha ascendência religiosa na m e s m a tradição. As visitas de Tata Aprígio ao Seja H u n d é são lembradas com saudade e, conta-se, nessas ocasiões sinhá Abalhe, calçando tamancos de unha, dançava o m u n d u b i , n o m e de u m a dança p r ó p r i a dessa nação. 3 5 C o m o vimos, a tradição m u n d u b i se caracterizava por dar m u i t a importância ao culto dos ancestrais, e, de fato, seu Aprígio a j u d o u Abalhe a instalar ou "assentar" no Seja H u n d é o kututo,

a "casa das almas" ou dos espíritos de

d e f u n t o s . Essa inovação é vista por alguns especialistas religiosos c o m o uma m u d a n ç a indesejada, pois trata-se de u m a prática alheia à tradição jeje-mahi, em que se faz t u d o "em Aizan, toda obrigação com os m o r t o s é através de Aizan" (ver cap. 8). 36 N o Seja H u n d é existia o peji original de Maria Agorensi, localizado n u m q u a r t o na p a r t e posterior d o barracão, mas Abalhe foi tamb é m responsável pela instalação de um segundo peji, n u m a dependência const r u í d a ao lado do barracão. Ali p r o v a v e l m e n t e instalou os assentos q u e ela t i n h a na casa da Recuada, talvez alguns provenientes da Roça de C i m a , fato que, de novo, sugere i m p o r t a n t e s alterações na liturgia do terreiro. E m b o r a o Seja H u n d é estivesse ainda fechado, no início da década de 1930 Abalhe e seu pessoal a j u d a r a m na f u n d a ç ã o e na feitura do primeiro barco do 224

LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA

HUNOÉ

Ilê Ibece Alaketu Axé O g u m Megege que, como já comentei, foi o primeiro terreiro de nação ketu a funcionar na região de Cachoeira. 3 7 A colaboração com o pessoal do terreiro jeje é um bom exemplo da flexibilidade nas dinâmicas de cooperação religiosa além das supostas "fronteiras" das nações de C a n d o m b l é . P a r a l e l a m e n t e a esses processos de colaboração "transnacional", o pessoal do Seja Hundé podia manter relações conflituosas com terreiros da sua própria nação. São conhecidas as disputas entre Abalhe e a temida Badesi Arcanja, antiga vodunsi do Ventura, feita por Maria Agorensi, que tinha um terreiro "jeje dahomé" em Maragogipe. Gaiaku Luiza fala de "guerra" e "uma política danada" entre os dois terreiros. A morte de Badesi Arcanja, na década de 1940, é atribuída por alguns a essas brigas, envolvendo atividades de "feitiçaria". 38 A estrutura altamente hierarquizada das congregações de c a n d o m b l é está sempre centralizada na figura da mãe-de-santo. O d i n a m i s m o e a visibilidade social adquirida pelo Seja H u n d é , d u r a n t e a gestão de Abalhe, estiveram marcados pela capacidade dessa líder religiosa em articular e manejar u m a rede de relações políticas que envolvia ora alianças, ora dissidências com indivíduos ou grupos que se estendiam além do â m b i t o do C a n d o m b l é . A participação de Abalhe na devoção da Boa M o r t e de Cachoeira, por exemplo, oferecia-lhe um espaço paralelo para a gestão dessa micropolítica. Em todo caso, com o falecimento da líder de u m candomblé, é como se a c o m u n i d a d e perdesse o centro de referência, o magnetismo que agrega as partes em u m todo. Às 5 horas do dia I a de dezembro de 1950, Silvia França de Jesus, antiga vodunsi da Roça de Cima, amiga e vizinha de Abalhe na Recuada, 39 declara que na rua dos R e m é d i o s [antiga R u a Belchior] n® 15, na c i d a d e d e C a c h o e i r a , faleceu Maria E p i f â n i a dos Santos, do sexo f e m i n i n o , de cor p r e t a , c o m n o v e n t a a n o s de i d a de — estado civil solteira, de profissão d o m é s t i c a , d o m i c i l i a d a e m C a c h o e i r a e n a t u ral de C a c h o e i r a , d e p a i s f a l e c i d o s — a m o r t e foi n a t u r a l , c u j a causa foi a t e s t a d a : m o r t e s ú b i t a s e m assistência m é d i c a , p o r D o u t o r A g u a l d o S a m p a i o e o s e p u l t a m e n to se v e r i f i c a n o C e m i t é r i o da P i e d a d e e m c a r n e i r o . N ã o d e i x o u b e n s , h e r d e i r o s menores ou interditos.40

Sua irmã de esteira, R o m a n a Moreira, encarregou-se da obrigação que precede ao enterro, embora t e n h a chegado tarde de Salvador, q u a n d o o caixão já estava no cemitério. M e s m o assim, realizou o ato. 4 1 C o m o falecimento de sinhá Abalhe, finalizava-se toda u m a época do candomblé, e o Seja H u n d é não conheceria mais aquele esplendor antigo. C o m o veremos, a m o r t e de Abalhe foi sucedida de novas disputas pela sucessão e liderança da comunidade religiosa. Cabe notar que três semanas antes da morte de Abalhe, falecia em Salvador, em 10 de novembro de 1950, Maria Emiliana 225

LUIS NICOLAU

PARÉS

da Piedade, doné do Bogum. Esse fato também causou importantes mudanças na dinâmica interna do Bogum, que teve como resultado, entre outros, a in terrupção das estreitas relações que t r a d i c i o n a l m e n t e t i n h a m existido entre os dois terreiros j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a e Salvador. A década de 1950 p o r t a n t o , parece marcar u m p o n t o de inflexão na história desses terreiros e o início do que poderíamos chamar a sua "época moderna", em oposição aos "tempos antigos". Aproveito essa circunstância para levar a narrativa de volta a Salvador e retomar a reconstituição histórica do Bogum, desde a sua reabertura, n o período pós-abolição, até os anos 1950.

0 B O G U M N O P E R Í O D O P Ó S - A 6 0 L 1 Ç Ã 0 : O E V A L E N T I N A A E M I L I A N A (C. 1 8 9 0 - 1 9 5 0 ) C o m o vimos no capítulo anterior, até 1870 o Bogum estava funcionando sob a direção de José Moraes, Isidoro Melandras e a preta Rachel, contando provavelmente com a participação de Ludovina Pessoa. O que aconteceu no Bogum nas três últimas décadas do século XIX fica um enigma ainda por esclarecer. A tradição oral do Bogum fala que, após Ludovina, o candomblé fechou por vários anos até u m a nova retomada das atividades religiosas, por volta de 1890.42 Embora não exista evidência que possa confirmar essa data, ela coincide com a época em que o Seja H u n d é supostamente teria sido f u n d a d o . Em 17 de janeiro de 1961, em entrevista concedida a pesquisadores do C E A O , Valentina Maria dos Anjos (Runhó), naquele t e m p o dirigente do Bogum, e o filho, o ogã Amâncio de Melo, q u a n d o perguntados pela ascendência religiosa da casa, resp o n d i a m : "A mãe-de-santo é Valentina, esqueceram o sobrenome dela. O santo dela é Adaen [Sogbo Adan], que corresponde a Xangô no Ketu. O pai-desanto é Manuel da Silva, que era de O g u n , mas santo não descia nele". 43 Certamente Valentina e Manoel da Silva estavam atuando na primeira década do século XX, mas bem pouco se sabe sobre o processo e o m o m e n t o de reabertura do Bogum no pós-abolição. Antes de proceder a um exame desse período e, para ajudar a sistematizar a exposição, apresento, na Tabela 6, uma lista cronológica das donés14 ou mães-de-santo que lideraram o Bogum no século XX. Sobre as origens de Valentina, nada sabemos. Porém alguns falam que era crioula e foi iniciada por Ludovina Pessoa. Alguns c o m e n t a m que Valentina e Manoel da Silva viveram amasiados, embora outra tradição oral da casa diga que M a n o e l da Silva estava casado com D o m i n g u i n h a . 4 5 C o n s t a t a m o s que Runhó e o filho falavam de Manuel de Silva como "pai-de-santo", mas, segundo Everaldo Duarte, seria só uma forma coloquial e respeitosa de falar. A finada equede Santa de Nanã, irmã carnal de R u n h ó , contava que "Manoel da Silva

226

LIDERANÇA

E DINÂMICA

INTERNA

Tabela 6 —

DOS TERREIROS

Liderança

do

BOGUM

E SEJA

HUNOÉ

Bogum 1

t. 1890 c - 1 9 2 0

Apelido

Nome

Período Valentina



Vodum i !

Sogbo Adaen

i 1.1937-1950

Maria Emiliana da Piedade

Miliona

|

Agué

1953-1956

Maria R o m a n a Moreira

Romaninha

j

Kpo

1960-1975

Valentina Maria dos Anjos

Runhó

j

Sogbo Adaen

1978-1994

Evangelista dos Anjos Costa

Nicinha

|

Loko

2002-oluol

Zaildes Iracema de Mello

índia

j

Azonsu

morava de frente do Bogum, era rapazinho, tinha uma casinha lá. Ele vivia cortando dendê, de fazer azeite, cuidava a roça [...] caiu [aconteceu de] ele ir lá pelo Bogum [...] e foi suspenso como ogã". As mesmas fontes n o t a m que, quando reabriu o B o g u m , M a n o e l da Silva não era ainda ogã c o n f i r m a d o . Segundo D u a r t e , M a n u e l da Silva "era o feitor daquelas terras. Ele fez u m a promessa a Oxalá que se ganhasse em u m juízo ia reabrir o terreiro". Parece que conseguiu resultados favoráveis com a justiça e c u m p r i u a promessa. 4 6 Essa colaboração na abertura do terreiro e sua relação sentimental com Valentina p o d e m explicar por que M a n u e l da Silva, embora oficialmente apenas um ogã suspenso, desfrutava de grande poder na congregação religiosa, até o p o n t o de ser l e m b r a d o como "pai-de-santo". C o m o no caso d o Seja H u n d é , os primeiros anos da gestão de Valentina no Bogum são obscuros, mas é razoável pensar que, na primeira década do século XX, o terreiro já estava f u n c i o n a n d o com uma certa estabilidade, pois por volta de 1910 Valentina recolheu u m primeiro barco de oito vodúnsis, celebrando a sua saída em j u n h o de 1911. 47 A m e m ó r i a oral só conserva o nome de três mulheres desse barco, que ficaram na ativa até os anos 1960: Runhó de Sogbo, D a d u de O g u m e Anita. 4 8 Runhó enfatizava que "no tempo que eu fiz o santo ainda foi com africanos na casa [...] Tiana Gege, m ã e - p e q u e n a daqui, é anterior à f i n a d a Emiliana, tinha marca de t r i b o no rosto. T i a n a vem do t e m p o do m e u pai-de-santo [Manuel da Silva]". Os entrevistadores c o m e n t a v a m que R u n h ó e o filho "fazem notar m u i t a diferença q u a n d o falam de africanos e brasileiros. Valentina d e m o n s t r a verdadeira veneração q u a n d o se refere aos africanos". 4 9 Portanto, no B o g u m , o convívio entre africanos e crioulos se alastrou até bem entrado o século XX. 227

LUIS NICOLAU

PARÉS

A reconstituição histórica do período de transição entre a gestão de Valeu tina e a sua sucessora, Maria Emiliana da Piedade, apresenta novas dificuldadet pela falta de evidências documentais confiáveis. Segundo as tradições orais d» casa, Valentina e Manuel da Silva faleceram por volta de 1920 e o terreiro ficou inativo por vários anos, até 1935, quando assumiu Emiliana. 5 0 Ora, Runhó explicava que "houve a primeira casa que foi dos africanos, depois foi ficando nós caboclos [os brasileiros]. Esta casa foi construída em 1927". 51 Nada impede que o levantamento da nova casa se tenha produzido no período de interregno, para satisfazer às necessidades de moradia de membros da congregação. Mas, se o que foi levantado era um novo barracão, a obra poderia indicar a retomada das afin i d a d e s religiosas, quando Emiliana assumiu como nova gaiaku. Fica por saber se a memória de Runhó, que data esse evento em 1927, é totalmente confiável. O escritor português E d m u n d o Correia Lopes, o primeiro autor a escrever sobre o Bogum d o período pós-abolição, fez uma visita ao terreiro em setembro de 1937, d u r a n t e a celebração de um zelim ou ritual funerário, e comenta que, naquele m o m e n t o , o B ô g ú m d e s p e r t a v a d e u m s o n o l o n g o . V i a casa e m o b r a s , n ã o sei d i z e r se para a a m p l i a r a p e n a s , se p a r a a e r g u e r das r u í n a s . U m a n o o u m a i s s o b r e o p a s s a m e n t o d a q u e ali i m p e r a v a c o m o " m ã e - d e - t e r r e i r o " — o u v i d i z e r q u e u m a p r e t a q u e tinha v i n d o d o D a o m é d e e n c o m e n d a p a r a u m i n g l ê s — a c o m u n i d a d e i a - l h e c e l e b r a r as e x é q u i a s , fazer o s o l e n e " d e s p a c h o " . 5 2

Segundo essa versão, Emiliana assumiu em 1937, o que me parece uma hipótese plausível, pois, além de coincidir a p r o x i m a d a m e n t e com a tradição oral da casa, que data o evento em 1935, trata-se de u m a evidência contemporânea dos fatos, fornecida por u m a t e s t e m u n h a ocular. O fato de que naquele m o m e n t o a casa estivesse em obras sugere q u e a construção do novo barracão se deu em 1937, e não 1927, embora, c o m o a p o n t a Correia Lopes, poderia tratar-se apenas de u m a ampliação. Mais problemática parece a identificação da falecida com a "mãe-de-terreiro", que ali i m p e r o u até "um ano ou mais". Isso implicaria que Valentina viveu até a p r o x i m a d a m e n t e os anos 1930 e q u e ela era africana, o que contradiz as versões orais segundo as quais ela era crioula e faleceu p o r volta de 1920. Nesse p o n t o , as informações de Correia Lopes, que, aliás, ele mesmo reconhece incertas por apenas "ouvir dizer", me parecem p o u c o confiáveis. Poderíamos especular que a "preta" vinda "do D a o m é de e n c o m e n d a para u m inglês" não fosse Valentina, mas a africana Tiana Gege que, segundo R u n h ó , estava na ativa em 1911 e era a m ã e - p e q u e n a do Bogum, "anterior à finada Emiliana". Apesar da providencial longevidade dos africanos, e n c o n t r a r em 228

LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS B O G U M E SEJA

HUNOÉ

Salvador uma africana por volta de 1911 era já u m fato bastante excepcional- encontrar uma na década de 1930, m u i t o mais, e se ela chegou ao Brasil antes do fim do tráfico, em 1850, ela era m u i t o provavelmente centenária. 5 3 Quanto à data da m o r t e da que s u p o n h o ser a "mãe-pequena" e não a "mãe-de-terreiro", Correia Lopes deixa aberta a dúvida de ser 1936 "ou mais" e, nesse sentido, cabe lembrar a possibilidade de se tratar de um zeleim realizado três ou sete anos após o falecimento, c o n f o r m e acontece no C a n d o m blé com os membros de alta hierarquia. T a m b é m não seria impensável que Tiana Gege, como m ã e - p e q u e n a , tivesse a t u a d o como regente após a m o r t e de Valentina e que certas atividades religiosas fossem conduzidas p o r ela durante o período de interregno, o que por sua vez poderia explicar a c o n s t r u ção do novo barracão em 1927, c o m o sugeria R u n h ó . Em todo caso, além da possível concordância cronológica na i n t e r r u p ç ã o das atividades religiosas no início dos anos 1920, a reabertura do Bogum sob a liderança de Maria Emiliana da Piedade, em 1937, coincidiu aproximadamente com a reabertura do Seja H u n d é com Abalhe, o que poderia sugerir uma estratégia c o n j u n t a n o f u n c i o n a m e n t o de ambas as congregações religiosas. C o m o vimos, tem q u e m afirme que os dois terreiros eram u m só e, nesse tempo, o pessoal do B o g u m realizava a n u a l m e n t e visitas ao Seja H u n d é e o pessoal de Cachoeira retribuía as visitas indo a Salvador. Correia Lopes c o m e n t a que "Bôgúm é o n o m e por que os adeptos do rito gêge na C i d a d e de Salvador designam a casa de culto. A filial de Cachoeira, no mesmo Estado da Baía tem o mesmo n o m e . Esta filial foi f u n d a d a por u m adepto do terreiro do Salvador". 54 N ã o sabemos quem poderia ser esse adepto do Bogum, talvez Manoel da Silva. Mas o comentário sugere que membros do Bogum participaram na f u n d a ç ã o do Seja H u n d é , o que, por sua vez, implicaria que o terreiro de Salvador estava f u n c i o n a n d o , provavelmente, sob a liderança de Valentina já em 1896, a data que estimei para a abertura do Seja H u n d é (ver cap. 5).

A gestão de Maria Emiliana da Piedade é lembrada como u m a das épocas mais importantes do Bogum. Ela era u m a preta crioula, filha de Manoel Ramiro e Maria Claudina Magalhães; nasceu entre 1858 e 1867 e estaria com aproximadamente 70 anos q u a n d o assumiu a chefia da casa, por volta de 1935. Era analfabeta e ficou solteira. 55 Miliana de Agué, filha do v o d u m Agué, o caçador e dono das florestas. 56 Em 1987 ogã Celestino Augusto do Espírito Santo e doné Nicinha declaravam que "Emilia foi nascida e criada n o terreiro [Bogum]". Humbono Vicente corrobora essa opinião ao dizer que "Emiliana tinha pai e mãe no Bogum", ambos t a m b é m de Agué, e acrescenta que ela ia ser iniciada no Pó Zerrem, mas "caiu" no Bogum durante uma obrigação de Zo e foi "feita"

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LUIS NICOLAU

PARÉS

M a r i a E m i l i a n a da Piedade (sem data)

lá por Ludovina. Everaldo D u a r t e também sugere que Ludovina tenha iniciado Emiliana no Bogum pré-abolição, embora não seja impossível que ela realizasse t a m b é m alguma obrigação em Cachoeira. 5 7 D u a r t e a lembra como "alta e forte" e t a m b é m como "brigante". Nos últimos anos da sua vida teve problemas n u m joelho e andava com bengala. Vicente conta que Emiliana olhava com búzios que deixava cair n u m a gamela, e que tinha uma cabaça com a qual fazia Agué assobiar. 58 E provável que Romana, fdha-de-santo da Roça de Cima, frequentasse o Bogum em tempos de Valentina, mas certamente a j u d o u Emiliana a reabrir a casa nos anos 1930, tornando-se, a partir de então, a mãe-pequena ou segunda pessoa de Emiliana. Segundo humbono Vicente, a estreita colaboração de Romana no Bogum, às vezes acompanhada por ogã Caboco Acaçá, não era bem vista por Abalhe no Seja H u n d é e esse teria sido um dos fatores que c o n t r i b u í r a m para as subsequentes diferenças entre ambos os terreiros. 59 Segundo consta em seus estatutos, a Sociedade Afro-Brasileira Fiéis de São Bartolomeu (órgão civil do terreiro) teria sido f u n d a d a em 28 de julho de 1937/'° Infelizmente, não achei o antigo registro dessa f u n d a ç ã o , mas a informação reforça a hipótese de que, nesse ano, coincidindo com a posse de Emiliana, h o u v e um sério esforço para c o n s o l i d a r a o r g a n i z a ç ã o i n t e r n a d o terreiro. A fundação da sociedade sucedeu à celebração do Segundo Congresso Afro-Brasileiro em janeiro de 1937, e precedeu à constituição, sob iniciativa de Edison C a r n e i r o , da União das Seitas Afro-Brasileiras, em setembro do m e s m o ano. N ã o é improvável, p o r t a n t o , q u e a formação da Sociedade Fiéis de São Bartolomeu fosse incentivada pelos organizadores do congresso. Em todo caso, o Bogum foi um dos 9 candomblés jejes (8 jejes e 1 dahoméa), de um total d e 67, registrados na União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, em setembro de 1937. Já em 1948, ano da publicação de Candomblés da Bahia., Edison Carneiro reduz sensivelmente o número de terreiros jejes: "Os candomblés desta nação, na Bahia, são apenas três — o da velha Emiliana, no 230

LIDERANÇA

E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS

BOGUM E SEJA

HUNDÉ

Bôgiín> o mais i m p o r t a n t e de todos, o Pôço Bètá ( M a n u e l Falefá), na Formiga jêje-marrim (mahi), e o de M a n u e l Menez, em São Caetano. Estas casas têm resguardado

g a l h a r d a m e n t e a pureza d o culto jêje". 6 1 C o m e n t a r e i sobre esses e

outros terreiros jejes n o Final d o capítulo. Por enquanto, o q u e convém notar é que a década de 1940 foi u m dos períodos de apogeu e esplendor do B o g u m . Aliás, é nesse p e r í o d o que os p r i m e i r o s pesquisadores c o m e ç a m a interessar-se pelo terreiro. Já m e n c i o n e i o caso de Correia Lopes e C a r n e i r o , mas t a m b é m em 1941-42 o B o g u m recebeu a visita do casal de a n t r o p ó l o g o s americanos Frances e Melville Herskovits que realizaram gravação de várias cantigas rituais. 62 E t a m b é m a partir dos t e m p o s de E m i liana que a tradição oral do B o g u m conserva lembranças mais precisas sobre a história do terreiro. 6 3 Emiliana p r e p a r o u pelo m e n o s três barcos — o p r i m e i r o de sete vodúnsis e o segundo e terceiro de três — , o que vem a c o n f i r m a r a capacidade de recrutamento de novos m e m b r o s e a boa d i n â m i c a da congregação. O p r i m e i r o barco celebrou a sua saída em 28 de j u l h o de 1940, 6 4 e nele f o r a m preparadas: N i cinha de Loko (filha carnal de R u n h ó ) ; M a r t i n h a de A j o n s u (Azonsu); Tomázia de O x u m ; Teresa de O g u m ; Lourdes e u m a o u t r a filha de Bessen. Essa obrigação de saída foi m u i t o concorrida, o q u e indica u m a p o p u l a r i d a d e e visibilidade social d o terreiro já afiançada pela gestão de Emiliana. 6 5 N o segundo barco, cuja saída deve ter acontecido em 1944, f o r a m iniciadas: Roxinha de O x u m , c o n h e c i d a c o m o dofona da Vitória; M a r i a de Azonsu e Luiza F r a n q u e l i n a da Rocha de Oiá. 6 6 Luiza Franquelina, ou gaiaku Luiza, a quem já m e referi em várias ocasiões, foi criada n o Seja H u n d é e trazida ao Bogum p o r M a r i a R o m a n a , p a s s a n d o a integrar esse barco q u a n d o já estava recolhido. Esse fato deu o que falar e parece que surgiram certas diferenças entre Romana e R u n h ó p o r causa disso. 6 7

Luiza Franquelina da Rotha, Autor: Photini

Papahatzi

231

gaiaku

L u i z a ( f e v . 2002)

LUIS NICOLAU

PARÉS

O terceiro barco de três teve a sua saída em 21 de setembro de 1947 e foram preparadas: Dezinha de O x u m (hunsó ou mãe-pequena durante a gestão de Nicinha), Clarice de Ajonsu e Luizinha de Ossaim. 6 8 Em 1999, dessas 13 vodúnsis, tinham falecido Roxinha, Tomazia e Luizinha. Cabe notar que a partir de Emiliana o n ú m e r o de vodúnsis nos barcos de iniciação passa a ser u m n ú m e r o ímpar, e n q u a n t o em t e m p o s de Valentina e de Maria Agorensi e Abalhe no Seja H u n d e era u m n ú m e r o par, n o r m a l m e n t e 8 ou 12. bíoje a prática de iniciar um n ú m e r o ímpar de vodúnsis nos terreiros jeje-mahis parece prevalecer. Da época de Emiliana é l e m b r a d o o Velho R o m ã o , o ogã mais entendido do Bogum, Gregório Bigodeiro e t a m b é m o ogã Saiu que, mesmo sem ser confirmado, foi uma pessoa m u i t o respeitada. 6 9 C o m o no Seja H u n d é , durante a chefia de Emiliana existia uma complexa rede de relações sociais com outros terreiros da cidade e do Recôncavo. Já foi comentada a presença de Romana e de Caboco Acaçá, d o Seja H u n d é , em muitas obrigações do Bogum. Quando o pessoal de Cachoeira visitava o Bogum em grupo, subia a ladeira do terreiro cantando, pedindo licença para entrar, sendo recebido com outros cantos de boas-vindas. O g r u p o p o d i a passar mais de u m mês h o s p e d a d o n o Bogum e participava das festas e obrigações da casa, c o m o a q u i t a n d a e as "romarias" ao parque São Bartolomeu para celebrar o v o d u m Bessen. 70 Existiam t a m b é m relações com o vizinho terreiro do Pó Zerrem, sob a direção de seu Aprígio, e com Antônio de O x u m a r é e C o t i n h a , do terreiro Oxumaré na Mata Escura da Vasco da Gama. O famoso pai-de-santo Procópio, "de ascendência jeje" mas chefe do terreiro O g u n j á , de nação ijexá (ketu, segundo Carneiro), frequentava também o Bogum. Lá, ele participou na feitura de uma vodúnsi, já que o santo dela precisava de um preparo próprio da nação de Procópio. 71 Existiam contatos com a Cacunda de Yaya de nação jeje-savalu e com os terreiros nagô-ketus mais famosos, como a vizinha Casa Branca ou Engen h o Velho. M e n i n i n h a do G a n t o i s e M a r i q u i n h a Lembá de Angola frequentavam t a m b é m as festas d o Bogum. 7 2 E, p o r t a n t o , n o período de Emiliana que o Bogum se consolidou como u m dos terreiros mais importantes de Salvador. O prestígio d o terreiro estava baseado na competência ritual de seus líderes, mas afiançava-se e era legitimado por essa rede social de c o n t a t o s e colaborações com sacerdotes de outras "nações de c a n d o m b l é " que contribuíam para acrescentar o reconhecimento social, ritual e espiritual do Bogum entre o povo-de-santo.

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LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS

B O G U M E SEJA

HUNOÉ

CONFLITOS DE S U C E S S Ã O E CISÕES: A R E G Ê N C I A D E R O M A N A N O B O G U M Emiliana faleceu c o m 92 anos, em IO de n o v e m b r o de 19 5 0. 7 3 Três s e m a n a s depois, falecia Abalhe, em C a c h o e i r a . O B o g u m f e c h o u p o r três anos e esse per/odo de transição foi m a r c a d o p o r d i s p u t a s pela liderança. Pelo q u e sei, os antagonismos c e n t r a v a m - s e e m t o r n o de duas das pessoas mais i n f l u e n t e s da congregação n a q u e l a época: R o m a n a e R u n h ó . Por idade n o santo e s e n d o mãe-pequena o u hunsó, R o m a n a devia suceder a Emiliana. 7 4 Antes de morrer, Emiliana ia n o m e a r R o m a n a c o m o sucessora, mas R u n h ó , c o m q u e m R o m a n a sempre teve p r o b l e m a s (já c o m e n t e i certas diferenças surgidas por causa da iniciação de Luiza), o p u n h a - s e a tal sucessão. 7 ' R u n h ó alegava q u e R o m a n a náo tinha sido iniciada n o B o g u m e q u e estava lá só e n c o s t a d a , o m e s m o argumento utilizado c o n t r a A b a l h e n o Seja H u n d é . Parece q u e as desavenças também envolviam acusações m ú t u a s de feitiçaria. C o n t a - s e que, d e p o i s d o zelim de seis meses de E m i l i a n a , R o m a n a a b a n d o n o u o B o g u m l e v a n d o seus santos para a casa de humbono

V i c e n t e , u m de seus f i l h o s - d e - s a n t o , e n q u a n -

to o pessoal d o Seja H u n d é , em C a c h o e i r a , reclamava esse privilégio. C o m o é frequente nessas situações, parece q u e R o m a n a a b a n d o n o u o B o g u m a c o m panhada por u m g r u p o de rodantes. 7 6 O u t r a versão c o n t a q u e R u n h ó a i n d a náo t i n h a c u m p r i d o todas as obrigações para p o d e r assumir c o m o doné e que, finalmente,

foi R o m a n a quem,

após reconciliação com R u n h ó , assumiu c o m o

regente, na espera de q u e esta concluísse suas obrigações. 7 7 Por volta de 1953, M a r i a R o m a n a M o r e i r a a s s u m i u e f e t i v a m e n t e c o m o zeladora, mas n u n c a foi doné n e m b o t o u v o d ú n s i n o B o g u m . 7 8 M a r i a R o m a na Moreira de K p o s u Batan A j a í era mais c o n h e c i d a c o m o R o m a n i n h a Pó o u R o m a n i n h a Pósu (Pó-Ossum). 7 9 Humbono

Vicente dizia q u e ela "era de O x u m ,

mas q u e m t o m o u c o n t a foi K p o " e q u e foi o p r i m e i r o K p o s u " p r e p a r a d o " n o Brasil. C o m o já foi d i t o , ela foi iniciada por volta de 1875, na Roça de C i m a , com tio X a r e n e e Z é de Brechó. Humbono

V i c e n t e c o n t a v a q u e , u m dia, Z é

de B r e c h ó e n c o n t r o u u m a t r o u x a n u m a e n c r u z i l h a d a , mas c o m o ele era " d o n o do e b ó " n ã o teve m e d o e a d e s m a n c h o u , a c h a n d o no i n t e r i o r u m a m e n i n a . Era R o m a n a e ele a "criou e fez o s a n t o dela". 8 0 R o m a n a era v e n d e d o r a de acaçá, pipoca com coco e o u t r a s iguarias. Ela teve u m filho carnal q u e foi t e n e n t e do exército e u m a filha da qual teve vários netos. 8 1 R o m a n a foi u m a m u l h e r carismática e de g r a n d e c o n h e c i m e n t o d o f u n d a m e n t o , não só da nação jeje, mas t a m b é m das outras "nações". Ela t r a n sitava livremente entre o B o g u m , o n d e estava encostada, e o Seja H u n d é , o n d e nada se fazia sem sua presença. Além disso, R o m a n a t a m b é m foi m ã e - p e q u e n a do terreiro Bate Folha, de n a ç ã o angola ( m u x i c o n g o ) , f a t o que, n o v a m e n t e ,

233

LUIS NICOLAU

PARÉS

a p o n t a para as estreitas relações e n t r e as nações jeje e angola. 8 2 F r e q u e n t a v a com a s s i d u i d a d e o terreiro O x u m a r é . A l g u n s falam q u e R o m a n a fez a l g u m a o b r i g a ç ã o de iniciação para A n t ô n i o O x u m a r é , u m dos p r i m e i r o s chefes daquela casa. 83 R o m a n a t a m b é m t i n h a livre acesso à C a c u n d a de Yayá e ao cand o m b l é d o P i n h o , em M a r a g o g i p e , de nação nagô.

Maria R o m a n a M o r e i r a , R o m a n i n h a de P ó ( 1 9 4 1 )

Essa m o b i l i d a d e de u m a experiente sacerdotisa através de c a n d o m b l é s de nações diversas, na p r i m e i r a m e t a d e do século XX, a p o n t a para u m fator que p o d e explicar certos f e n ó m e n o s de assimilação ou transferência de valores e práticas rituais de u m a nação para outra. O r a , são precisamente esses especialistas religiosos conhecedores d o f u n d a m e n t o dos vários ritos ( o u t r o caso seria o da sua filha-de-santo gaiaku Luiza) os mais conscientes e cientes das diferenças litúrgicas. N o e n t a n t o , essa prestação de serviços em vários terreiros, que às vezes podia responder a interesses materiais, n ã o era sempre vista com bons olhos, e alguns acusaram R o m a n a de ser u m a " b o é m i a da religião".

Aparente-

m e n t e , essa a t i t u d e foi u m dos motivos das disputas q u e surgiram com

R u n h ó

e a n t e r i o r m e n t e t a m b é m com Abalhe e Emiliana. 8 4 R o m a n a p a r t i c i p o u na iniciação de m u i t o s barcos e m terreiros mas

filhos-de-santo

diferentes,

p r ó p r i o s só f o r a m q u a t r o . O p r i m e i r o foi Vicente Paul°

dos Santos, iniciado e m 1935, com 12 anos de idade. Ele recebeu uma p r l ' meira obrigação n o B o g u m c o m E m i l i a n a , mas foi p o s t e r i o r m e n t e p r e p a ' 3 ' d o p o r R o m a n a em sua casa d o M a t a t u , o n d e viveu até a m o r t e , em 200ÍR o m a n a foi a j u d a d a p o r Velho R o m ã o , ogã d o B o g u m , e p o r o eã Caboco, d o Seja H u n d é . C o m o já foi d i t o , Luiza F r a n q u e l i n a da Rocha foi i n í c 1 ^ * 234

LIDERANÇA

E DINÂMICA

INTERNA

DOS TERREIROS

BOGUM

E SEJA

HUNOÉ

em 1944. Existem a i n d a mais dois f i l h o s - d e - s a n t o : V i t o r i n o , q u e m o r a v a em M i n a s Gerais, e M á r i o , q u e m o r o u n o sertão baiano. 8 5

áA-

V^*

" n

Vicente P a u l o dos Santos,

humbono

Vicente de O g u m (2001)

Nos ú l t i m o s a n o s de v i d a , R o m a n a se h o s p e d o u em casa de

humbono

Vicente, mas veio a falecer de diabetes na casa da filha carnal, na Ladeira do C a n t o da C r u z , em o u t u b r o de 19 5 6. 8 6 Seus

filhos-de-santo

V i c e n t e e Luiza

afirmam q u e ela t i n h a e n t ã o 115 o u 120 anos, mas é mais provável q u e tivesse uns 90 anos. Antes de sua m o r t e , R o m a n a d e i x o u a V i c e n t e t o d o s os seus objetos religiosos, entre eles o assento de Kpo, u m xaxará de Azoani e u m itacara de Bessen. Essa entrega foi realizada d i a n t e d o pessoal do Seja H u n d é . Antes de ela morrer, t a m b é m , vários ogãs d o B o g u m f o r a m pedir-lhe a chave do peji d 0 terreiro, q u e e n t ã o estava f e c h a d o , mas ela faleceu sem entregar esse símbolo do poder. 8 7 Esses eventos sugerem q u e R o m a n a , a p o i a d a pelo Pessoal do Seja H u n d é , m a n t e v e até o final dos dias u m a relação tensa c o m a facção do B o g u m l i d e r a d a p o r R u n h ó . e m °Utr° C a c h o e i r a , R o m a n a t a m b é m e n f r e n t o u certas d i f i c u l apos a m o r t e de Abalhe, em 1950. R o m a n a apoiava a c a n d i d a t u r a de ra rarasi, filha-de - s a n t o de Abalhe, n o p o s t o de gaiaku, mas e n f r e n t o u a c o n v e n c i a de gamo E d v i r g e m de O x u m , f i l h a - d e - s a n t o de M a r i a Agorensi. A rtv a | jfi j ade entre a facção de Maria Agorensi e a de Abalhe, iniciada na década 192o ' c o r >tinuava na década de 1950. F i n a l m e n t e , parece q u e gamo Edvir-

d

es

lue ^ a n c ^ o n o u e t e r ac

qUe p ar

a

briga deixando o c a m i n h o livre para a sucessão de Pararasi,

o n t e c i d o no fim dos anos 50, após a m o r t e de Romana. 8 8 Fala-se

arasi assumiu "por conta própria" e que não foi "muito bem aceita pela 235

LUIS NICOLAU

PARÉS

c o m u n i d a d e d e Cachoeira". 8 9 Em Salvador, R u n h ó t a m b é m não quis legitimar a sucessão de Pararasi, talvez por ser u m a pessoa ligada a R o m a n a . Desse m o d o , e m b o r a com novos atores, o m e s m o " d r a m a social" do passado reemergia com características semelhantes e a reintegração parcial da congregação era a c o m p a n h a d a de um novo cisma. Foi a partir dos anos 1950, e mais concretamente nos últimos anos da regência de Romana no Bogum, que as relações entre o Bogum e o Seja H u n d é se esfriam e cessa a comunicação entre os dois terreiros. As causas são confusas, mas fala-se que existiram acusações mútuas de incompetência ritual. 9 0 O que um dia f o i "um só terreiro" desmembra-se em dois, pelas brigas micropolíticas na procura do poder religioso. C o m a morte de Romana, que ainda f u n c i o n o u como u m elo entre ambas as congregações, R u n h ó se afastou e interrompeu as relações com o Seja H u n d é . Alguns falam que ela não queria mais depender d o Seja H u n d é , que fora o feudo de Romana. Q u a n d o em 1960 R u n h ó assumiu como nova doné do Bogum, já não apareceu ninguém de Cachoeira na cerimónia de posse. 91 Naquela c o n j u n t u r a , sua filha carnal, Nicinha, foi escolhida mãe-pequena; R u n h ó colocou nos postos de mais responsabilidade pessoas de confiança. 9 2 A partir de sua chefia, outros m e m b r o s d a família dos A n j o s c o m e ç a m a o c u p a r cargos de importância, constituindo o parentesco biológico uma forma de garantir a estabilidade d o poder religioso e a continuidade do terreiro.

OS TEMPOS " M O D E R N O S " N O B O G U M : D E R U N H Ó A N I C I N H A Maria Valentina dos Anjos, mais conhecida como R u n h ó , nasceu em 1877, filha de A n a Maria dos Anjos. Ela deve ter ido morar no terreiro Bogum após sua iniciação em 1911, q u a n d o tinha por volta de 30 anos. R u n h ó esteve casada ou viveu maritalmente com Gonçalo Alpiniano de Melo, filho-de-santo da falecida Mariquinha Lembá, de nação angola, e, nessa época, já tinha dois de seus q u a t r o filhos — o p r i m o g é n i t o A m â n c i o Angelo de Melo, que viria a ser um dos ogãs mais importantes da casa, e Evangelista dos Anjos Costa (Nicinha), q u e viria a suceder a mãe biológica na chefia religiosa. 9 3 Valentina dos Anjos era filha do vodum Sogbo Adan e seu n o m e africano era Mere Doji. 9 4 O seu apelido, Runhó, que não deve ser c o n f u n d i d o com hunsó (título da mãe-pequena no Bogum), deriva do termo gun ou aizo hunyó, n o m e próprio de uma pessoa consagrada a uma divindade, ou sinónimo de hunsi (i.e., vodúnsi). 9 5 Os que a conheceram descrevem seu caráter como firme, responsável, alegre e com m u i t a fé. 96 Ela se declarava católica e com "simpatia por

236

L I D E R A N Ç A E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA

HUNOÉ

São J e r ô n i m o " , o q u e n ã o é de estranhar, se l e m b r a m o s o s i n c r e t i s m o de São J e r ô n i m o c o m X a n g ô e Sogbo. 9 7 R u n h ó não gostava d o C a n d o m b l é q u a n d o era moça, mas após a iniciação aceitou a r e s p o n s a b i l i d a d e religiosa c o m total dedicação. E q u e d e Santa, sua irmã carnal, c o m e n t a v a que o "Sogbo de R u n h ó não aceitava convites de q u a l q u e r pessoa", a l u d i n d o à sobriedade de seu c o m p o r t a m e n t o . J o r g e A m a d o a r e v e r e n c i o u c o m o e x e m p l o da "discrição e o recato t r a d i c i o n a i s da n a ç ã o jeje" e o u t r o s d e s t a c a r a m a " a u s t e r i d a d e com q u e c o n d u z i u seu C a n d o m b l é " . 9 8

Valentina M a r i a dos Anjos,

doné

Runhó (1975)

E possível q u e R u n h ó tivesse i n i c i a d o d u a s

filhas-de-santo

p o r volta de

1918, antes de assumir c o m o doné, pois ela c o m e n t a v a q u e " m i n h a s m e s m o fiz d u a s filhas d e p o i s de sete anos [de ser iniciada]". 9 9 N a d a mais sei sobre essas duas f i l h a s - d e - s a n t o , mas n a q u e l e t e m p o as iniciações p o d i a m ser realizadas fora d o terreiro, f r e q u e n t e m e n t e em casas p a r t i c u l a r e s ou lugares isolados fora da cidade. C a p o n e m e n c i o n a t a m b é m o caso de mãe Lindinha (Arlinda Lopes dos Santos), filha biológica de Cristóvão de O g u n j á , dirigente do Ilê O g u m Anauegi Belé I o m a n , terreiro de nação e f o n localizado no bairro de Ubaranas, em Salvador. U m a das quizilas do C a n d o m b l é é que u m pai-de-santo não pode iniciar os seus parentes biológicos mais imediatos, o que teria levado Cristóvão a pedir a R u n h ó , como amiga desse terreiro, que iniciasse a sua filha. Essa obrigação teria acontecido antes de 1947- 100 E m 1961, R u n h ó c o m e n t a v a que d o seu barco ficaram vivas apenas três vodúnsis e "com as da casa, feitas pela finada Emiliana, são seis mais ou m e n o s 237

LUIS NICOLAU

PARÉS

na ativa". 101 Essa escassez de rodantes foi parcialmente resolvida no ano seguinte, em 1962, q u a n d o Pararasi, a candidata de Romana, assumiu a chefia no Seja H u n d é . A posse foi considerada ilegítima por algumas rodantes de lá e fala-se que um grupo de aproximadamente dez mulheres passou então a frequentar o Bogum. C o m esses eventos as relações entre o Bogum e o Seja H u n d é pioraram e o contato entre ambos os terreiros cessou definitivamente. Entretanto, remediar a escassez de rodantes da casa parece ter sido u m a das prioridades do m a n d a t o de R u n h ó . Entre 1964 e 1972 R u n h ó iniciou 6 barcos, com um total de 16 vodúnsis. Apresento em seguida a lista de iniciadas e as datas das obrigações de saída citadas por Everaldo Duarte. Em 22 de julho de 1964 realizou-se a saída do primeiro barco de duas vodúnsis: Maria de O m o l u e Teresa de Aziri Tobosi. Em 1966, teve a saída do segundo barco de três vodúnsis: Maria Odília de Ajonsu, Eunice de O g u m e Jacira de Badé. Em 1967, o terceiro barco de três: Marlene de Toquem, Margarida de Oiá e Anita de Agué. Em 21 de dezembro de 1970, o quarto barco de três: u m a filha de Aziri, Adelina de Bessen e Zildete de Ode. Em I a de agosto de 1971, o q u i n t o barco de dois: Nizette de Logun e Arlinda de Lissá (Oxalá). Em 20 de o u t u b r o de 1972 realizou-se a saída do sexto e último barco de R u n h ó de três vodúnsis: Ivone de O g u m , Beatriz de O x u m e Nilce da Silveira de Ajonsu. 1 0 2 Comprovamos, portanto, uma grande atividade nessa época e também uma grande diversidade de voduns, sendo todos os voduns diferentes, exceto dois Aziri (Iemanjá), dois Ajonsu (Azonsu) e dois O g u m . Isso indica, até certo ponto, u m a vontade implícita de preservar a riqueza d o panteão jeje e ao mesmo tempo u m a grande competência ritual de Runhó. C o n h e c i m e n t o esotérico que ela fazia questão de preservar da curiosidade alheia: "quem não sabe não entende, mas eu não m u d o e não ensino". 1 0 3 Mãe R u n h ó , que sofria do coração, veio a falecer no sábado, 27 de dezembro de 1975, às 9 horas da m a n h ã . Era a véspera exata do início do ciclo de festas da casa. Segundo a imprensa da época, R u n h ó tinha então 98 anos. Seu s e p u l t a m e n t o ocorreu na m a n h ã do d o m i n g o , na Q u i n t a dos Lázaros; "o féretro, as coroas, o cântico e o choro desceram a ladeira e, a pé, atravessaram ruas e avenidas, à frente Iansã a b r i n d o o c a m i n h o , com seu grito terrível". 1 0 4 As 21 horas foi iniciado o sirrum no terreiro. N a última noite, no sábado 3 de janeiro, compareceram representantes de muitos terreiros e i m p o r t a n tes personalidades da cultura baiana c o m o Valdeloir Rego, Jorge A m a d o e Caribé. A missa de sétimo dia, na m a n h ã seguinte, foi celebrada na Igreja de São João Batista na Vila América. Nesse m o m e n t o , já se sabia que sua filha gamo Lokosi seria a sucessora. "Na verdade, a direção do Terreiro do Bogum

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LIDERANÇA E DINÂMICA

INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA

HUNOÉ

J* Sirrum de R u n h ó : m ã e Nicinho (em pé) junto ao filho E d i v a l d o dos Anjos Costa Acervo

Jornal da Bahia, 12/12/75

já estava nas suas m ã o s desde q u a n d o M a r i a V a l e n t i n a dos A n j o s , ' R u i n h ó ' , se encontrava d o e n t e . M a s essa realidade não aparecia, 'pois m e n i n o não p o d e aparecer d i a n t e dos m a i s velhos'." 1 0 5 Pela p r i m e i r a vez, o B o g u m vive u m período de t r a n s i ç ã o sem brigas pela sucessão. A política de aliança do p o der religioso a u m a m e s m a f a m í l i a parece q u e d e u resultados. Após três a n o s d o f a l e c i m e n t o de R u n h ó , o terreiro foi r e a b e r t o no dia 2 de janeiro de 1979, e n o dia 21 "foi e m p o s s a d a a sucessora G a m o Lokosse". Foi humbono

V i c e n t e q u e m "sentou na cadeira" e deu posse a N i c i n h a . N o

dia 20 de fevereiro "o p r e f e i t o E d v a l d o B r i t o foi h o m e n a g e a d o d u r a n t e o e n c e r r a m e n t o d o ciclo de festas q u e m a r c o u a a b e r t u r a d o c a n d o m b l é " . 1 0 6

Evangelista dos Anjos Costa,

doné gamo Lokosi

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(Nicinho)

LUIS NICOLAU

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Evangelista dos A n j o s Costa, N i c i n h a de Loko, nasceu e cresceu no Bog u m . Seu nascimento ocorreu em circunstâncias peculiares. Ela mesma explicava que sua mãe dizia "que eu nasci n u m a rua, debaixo de u m pé de loôco (gameleira)". D a í a posterior consagração de N i c i n h a ao v o d u m Loko que, como vimos, foi iniciada por Emiliana em 1940. Jehová de Carvalho acrescenta que ela recebeu ainda algum o u t r o preparo posterior com R u n h ó , provav e l m e n t e para poder assumir c o m o doné.wl Na sua gestão, N i c i n h a preparou q u a t r o barcos. O p r i m e i r o foi recolhido em j u n h o de 1985 e teve a sua saída em janeiro de 1986, com u m a duração de sete meses. Humbono Vicente p a r t i c i p o u como p a i - p e q u e n o . Nele, foram iniciadas dofona Zaildes Iracema de Mello, sobrinha de Nicinha, conhecida c o m o í n d i a de O j o n s u (Azonsu), com 14 anos, e dofonitinha Kelba Carvalho de Agontolu, filha do ogã Jehová de Carvalho. O segundo barco foi recolhido provavelmente após o ciclo de festas, em fevereiro de 1986, e teve sua saída em o u t u b r o do mesmo ano. Nele foram iniciadas dofona Sara Jesus de O x u m e dofonitinha Gislene Jesus de Bessen. O terceiro barco teve sua saída em setembro de 1989, com dofona Valdete Jesus de G u n , dofonitinha Jubiacira Jesus de Nanã, forno Rita de Cassia de Kpo e fomotinha Conceição Gonçalves de Iansa. O q u a r t o e ú l t i m o barco teve sua saída em fevereiro de 1990, com dofona Georgina de Sogbo e dofonitinha Albertina de Agué. P o r t a n t o , dez vodúnsis com dez voduns diferentes. 1 0 8 D u r a n t e o t e m p o de Nicinha, o terreiro perdeu alguns de seus m e m b r o s mais i m p o r t a n t e s , como a equede Santa, que faleceu pouco depois de 1981, e o ogã huntó A m â n c i o Angelo de Melo, filho de R u n h ó , falecido em 26 de d e z e m b r o de 1983. E n t r e t a n t o , N i c i n h a soube enfrentar as dificuldades com grande determinação. Incentivada pela iniciativa do Projeto M A N M B A , coord e n a d o pelo professor O r d e p Serra, ela foi responsável pela reorganização da Sociedade Fiéis de São Bartolomeu, órgão civil gestor do terreiro, colocando a sua frente o ogã mais velho, Lídio Pereira de Santana, com a assistência de dois de seus filhos, Edvaldo e H a m i l t o n dos Anjos Costa, Everaldo Duarte, o professor Jaime Sodré, Celestino do Espírito Santo, Ana Maria Costa e Gilberto Leal. 109 Essa época, c o m o veremos em detalhe mais adiante, esteve marcada por u m esforço persistente da c o m u n i d a d e em promover maior visibilidade social do terreiro. Nessa perspectiva, mãe N i c i n h a foi anfitriã da I a Semana de Palestras: O Povo Malê e suas Influências, celebrada no terreiro entre 21 e 26 de julho de 1986. Nesse fórum, começaram a conceber medidas contra a especulação imobiliária e a organizar u m a c a m p a n h a a fim de conseguir recursos para restaurar o terreiro. 1 1 0 240

LIDERANÇA

E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS

BOGUM E SEJA

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Nicinha t a m b é m promoveu encontros com altos dignitários religiosos da África. Em 23 de julho de 1983, após o encerramento da II Conferência Mundial sobre a Tradição Orixá, celebrada em Salvador, Nicinha recebeu no terreiro o Obá (rei) Oyesis Xagulan de Ejigbo, Nigéria.'" Em julho de 1988, recebeu a visita de H u n o n Dagbo, o supremo responsável dos cultos voduns no Benin, vindo a Salvador como delegado beninense participar da inauguração da Casa do Benin. 112 Em ambas as ocasiões, mãe Nicinha puxou cânticos aos voduns em língua africana, que foram imediatamente reconhecidos por seus interlocutores africanos.

Visita de H u n o n D a g b o a o Bogum (jul., 198B). Sentados, da esquerda para a direita: Everaldo D u a r t e , mãe Nicinha, Hunon D a g b o e Píerre Verger A u t o r : Arlete Soares

Nicinha, que sofria uma anemia profunda e já tinha sido internada por duas vezes, faleceu às 2 horas da madrugada da quarta-feira, 5 de o u t u b r o de 1994, com 82 anos de idade. O cortejo fúnebre, celebrado a pé, como prescreve a tradição jeje, foi do terreiro até o Cemitério da Q u i n t a dos Lázaros, onde foi sepultada. Realizou-se o zelim d u r a n t e sete noites seguidas, a contar do dia da morte da mãe-de-santo, e uma missa de sétimo dia na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. 1 1 3 Na ausência da doné, assumiu provisoriamente como responsável da casa a mãe-pequena hunsó Dezinha de O x u m . O terreiro permaneceu fechado para o público leigo por mais de sete anos. Foram t e m p o s difíceis para a congregação religiosa, que ainda perdeu, em 1995, o ogã bundeva Edvaldo dos Anjos Costa, filho carnal de Nicinha. Surgiram diferenças entre a facção dos mais tradicionalistas e conservadores e u m a outra dos mais novos que queriam reiniciar as atividades com mais pressa. 241

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Uma das características mais admiráveis dessa congregação tem sido a sua capacidade para superar os longos períodos de inatividade, às vezes de mais de 15 anos, gerados pelas disputas sucessórias. C o m o falava R u n h ó em 1961: "A gente quer acabar mas tem t a n t o santo por aí que a gente tem que continuar [...]. Nós não fazia questão de continuar mas diziam — terreiro é do gege!"114 Em 2001, aproveitando a c a m p a n h a lançada pela Fundação Palmares para a recuperação dos terreiros de Salvador, o Bogum obteve recursos do Ministério da C u l t u r a para consertar o barracão e os pejis, que nesse t e m p o sofreram sério estrago. Finalizadas as obras, em 16 de dezembro de 2001, veio a falecer humbono Vicente Paulo dos Santos, que deveria jogar os búzios para confirmar a nova doné. D i a n t e dessa adversidade, foi convidado do Rio de j a n e i r o o famoso olowo Agenor M i r a n d a Rocha, 94 anos, que em 30 de maio de 2002, dia de C o r p u s Christi, após olhar os búzios de Ifá, a p o n t o u como nova doné do Bogum a dofona Zaildes Iracema de Mello, 38 anos, conhecida como índia de Ajonsu (Azonsu), sobrinha de N i c i n h a e neta de R u n h ó . Legitimada pelos poderes do mais prestigiado e respeitado olowo do C a n d o m blé c o n t e m p o r â n e o , a liderança religiosa do Bogum permanecia ligada à família de R u n h ó , já na sua terceira geração. As atividades públicas da casa foram retomadas em d e z e m b r o de 2002, e em 17 de agosto de 2003 a sucessora t o m o u posse do cargo de doné, com o título de Naa Doji, para inaugurar u m a nova etapa do B o g u m .

OS T E M P O S " M O D E R N O S " N O SEJA H U N D É : DE PARARASI A L O K O S I E A I M I G R A Ç Ã O CARIOCA Voltamos agora a Cachoeira para examinar o período que vai de 1960 até nossos dias. A gestão de Pararasi, Adalgisa C o m b o Pereira, à frente do Seja Hundé, marca uma nova etapa na história do terreiro. Ela nasceu em Castro Alves, perto de Muritiba. Foi iniciada por Abalhe e consagrada ao vodum Parara, uma qualidade de Sakpata ou Azonsu, "dançava de palha da Costa". Segundo Vicente, ela era já "moderna".

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humbono

C o m o vimos, a sua posse como gaiaku foi con-

testada por alguns membros da congregação. C o m o escreve Lopez de Carvalho, "segundo a população de Cachoeira, o reinado de gaiaku Pararasi não foi dos melhores. Dizem que ela possuía um génio muito difícil, chegando a ser m u i t o autoritária. Muitas vodunsi da casa haviam já falecido e Pararasi teve uma certa dificuldade na administração do terreiro". 116 A duração da chefia de Pararasi é difícil de estimar. Ela deve ter assumido no fim da década de 1950, ou bem no início dos anos 1960. C e r t a m e n t e em

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1962 ela já estava f u n c i o n a n d o com certa regularidade. Foi nesse ano que gaiaku Luiza c o m p r o u terras no bairro do Caquende, em Cachoeira, e iniciou as primeiras atividades do terreiro R u m p a y m e Agono H u n t o l o j i . 1 1 Essa circunstância deu lugar a sérias disputas entre ambos os candomblés, sendo que o Seja H u n d é não aceitava a instalação de o u t r o terreiro da mesma nação em Cachoeira. As brigas e os d e s e n t e n d i m e n t o s se prolongam até hoje. A idéia de que n u m a determinada localidade só possa existir u m candomblé jeje-mahi e, p o r t a n t o , u m a só gaiaku ou doné, é replicada no B o g u m . Essa n o r m a parece estar associada à noção de que os assentos instalados pelos africanos no Seja H u n d é e Bogum não têm possibilidade de ser duplicados em outros lugares, pois as "pedras" supostamente trazidas da Africa seriam a única e legítima moradia de d e t e r m i n a d o s v o d u n s . Mas t a m b é m parece que essa "regra" teria sido utilizada e enfatizada c o m o a r g u m e n t o para evitar o d e s m e m b r a mento das congregações jeje-mahis nas suas sucessivas disputas internas durante os períodos de sucessão. Isso explicaria, em parte, o sucesso da expansão das casas nagôs, que não são tão rígidas a esse respeito. Segundo ogã B e r n a r d i n o , Pararasi b o t o u q u a t r o barcos, e segundo ogã Boboso foram só dois ou três. O primeiro barco foi recolhido em 1964. Nele foram preparadas: 1) dofona Maria da Conceição de Azonsu, esposa do ogã Zé Careca; 2) fomotinha Joana de Azonsu, irmã carnal de gaiaku Luiza e seu G e n i n h o ; 3) u m a vodúnsi de Averekete; 4) u m a vodúnsi de O x u m ; 5) uma vodúnsi de Logun Edé. Sabe-se ainda de mais três vodúnsis preparadas por Pararasi: 6) dofono Edivaldo de Bessen; 1) forno Alda de Oiã; e 8) dofonitinha Alaíde de Oiã. As duas últimas m o r a m no Rio, mas até recentemente viajavam com regularidade para participar das festas do Seja H u n d é . Todavia, a menção de um segundo dofono (Edivaldo) indicaria a existência de pelo menos dois barcos,118 O primeiro barco causou grandes problemas a Pararasi e, segundo alguns, "estrambalhou a roça", iniciando a decadência do Ventura. U m a explicação dada por Luis Magno, f d h o carnal da dofona Maria da Conceição, é que foram iniciadas u m a vodúnsi de O x u m e outra de Logun Edé, voduns que, no jeje, segundo ele, só poderiam ser consagrados na cabeça de uma vodúnsi depois de a mãe-de-santo ter preparado já vários barcos. "Ela começou por onde outras terminam." 1 1 9 Alternativamente, outras pessoas explicam que, n u m barco, o noviciado de Averekete deve ser feito em último lugar: "Averekete é o último; Pararasi b o t o u em primeiro lugar e daí a casa foi arriando". 1 2 0 N e n h u m desses argumentos parece inteiramente convincente, mas são interpretações que apontam para o fato de que Pararasi teve problemas e críticas pela forma como organizou esse barco.xu

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C o i n c i d i n d o com o m o v i m e n t o migratório da população nordestina para as cidades do Sul, Pararasi foi a primeira mãe-de-santo do Seja H u n d é a viajar para fora de Cachoeira e a profissionalizar suas atividades religiosas. Ela morou por algum tempo no Rio, na casa de um ogã do Seja H u n d é de nome José, e também em Belo Horizonte, onde vivia oferecendo serviços religiosos. 122 O período no Rio foi o início do desenvolvimento de uma rede social que, como veremos, acabou por m u d a r de forma significativa a base social do Seja H u n d é nas décadas seguintes. A data do falecimento de Pararasi, ao que t u d o indica, ocorreu entre 1969 e 1971, q u a n d o ela tinha 84 anos de idade. Uns dizem que faleceu em Cachoeira e outros que faleceu em Belo Horizonte, mas humbono 'Vicente assegurava que foi em Salvador: "morreu de uma doença na barriga, dizem que enfeitiçada". Contudo, o sirrum de sete dias, dirigido por Nezinho do Portão, foi realizado numa casa alugada na Rua do Carmo, em Cachoeira. 123 Após a morte de Pararasi, Eliza Gonzaga de Souza, Vivi Aguesi, filha-desanto de Maria Agorensi, assumiu como "regente" do Seja Hundé. 1 2 4 Humbono V i c e n t e , talvez n u m a m a n o b r a política no processo de sucessão de Pararasi, a p a r e n t e m e n t e fez alguma obrigação para c o n f i r m a r Aguesi nesse cargo, mas t a m b é m afirma que "ela não recebeu posse", pois não podia assumir c o m o gaiaku}1'' Segundo a tradição jeje, a qualidade do Agué carregado por Aguesi, Agué Aboro, que é um v o d u m m e n i n o , não permite que sua vodúnsi assuma esse cargo. T a m b é m se diz que a pessoa desse v o d u m , embora capacitada para dirigir ou supervisar processos de iniciação, não p o d e raspar nem pintar, isto é, "botar mão na cabeça" de n i n g u é m . E n t r e t a n t o , em 1980, Aguesi b o t o u u m barco e iniciou dois filhos-de-santo, um dofono de Azonsu e uma dofonitinha de O x u m , o que é considerado por alguns como causa de suas enfermidades e posterior demência senil. 126 D u r a n t e a década de 1980, parece que o Seja H u n d é c o n t i n u o u com certa estabilidade e se batia a n u a l m e n t e , porém já com um n ú m e r o reduzido de vodúnsis. Em 9 de maio de 1992, Aguesi foi convidada ao Rio de Janeiro pelo pai-de-santo Zezinho da Boa Viagem, um dos filhos-de-santo de fomotinho Kntônio Pinto, irmão-de-esteira de Aguesi. Foi recebida no aeroporto por mais de cem pessoas e a presença da mídia local, causando grande ressonância entre o povo-de-santo carioca. 1 2 7 N o e n t a n t o , foi p o s t e r i o r m e n t e esquecida, sem receber atenção q u a n d o , na sua velhice, mais a necessitava. C o m o sobrinha de Maria Agorensi, Aguesi era a legítima herdeira das terras do Seja H u n d é , e é por isso que alguns a consideravam a verdadeira "dona da roça". N o s inícios de 1990, eia começou a sofrer problemas de saúde, o que foi aproveitado por outros membros da congregação religiosa para afastá-la da liderança do candomblé. Ela morava, então, na Ladeira da Cadeia (na casa que 244

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fora da sua tia Maria Agorensi), e posteriormente sozinha na ladeira Manoel Vitorio, na Recuada, onde foi progressivamente esquecida e abandonada.'"" Foi nesse período que Augusta Maria da Conceição Marques, gamo Lokosi, filha-de-santo de Abalhe, assumiu como nova. gaiaku. Humbono Vicente lhe deu posse na sua casa do Matatu, em Salvador. 129 C o m o Aguesi ainda estava viva, há q u e m sugira que "o trono da Roça do Ventura estava ocupado [...] paralelamente por duas gaiakus: Aguesse e G a m o Lokossi". 130 Trata-se de um eufemismo retórico, pois Aguesi já não tinha n e n h u m a participação nas atividades religiosas e faleceu em 14 de janeiro de 1998, com 95 anos de idade. Lokosi foi iniciada n o Seja H u n d é p o r q u e a natureza de seu santo, Loko, exigia u m a feitura na nação jeje, no e n t a n t o ela já t i n h a assentado anteriormente um Xangô no terreiro nagô-ijexá, o n d e dançava sua mãe biológica. Na atualidade, além de ser a gaiaku do Seja H u n d é , ela também lidera um outro terreiro de nação ijexá em Salvador. Essa simultaneidade de adscrições religiosas não deixa de ser significativa e indica a permeabilidade entre os diversos ritos de C a n d o m b l é . As diferenças litúrgicas entre u m a e outra nação p o d e m ser mantidas em cada terreiro; por exemplo, no terreiro de Salvador Lokosi se recebe caboclo, mas isso não acontece no Seja H u n d é , onde os caboclos não são aceitos. Porém, pelo menos um filho-de-santo preparado no rito ijexá acompanha Lokosi regularmente nas obrigações do Seja Hundé. 1 3 1 Desde 1995, q u a n d o assisti pela primeira vez a obrigações do Seja H u n d é , as atividades desse c a n d o m b l é têm-se desenvolvido com regularidade. Nesse mesmo ano, foram c o n f i r m a d o s dois ogãs e foi recolhido u m barco de uma só pessoa, um neto de ogã Boboso, pertencente ao v o d u m Bessen. O jovem N e t i n h o , como era conhecido, estava predestinado a assumir a f u t u r a liderança do Seja H u n d é , pois seu santo, d o n o da nação jeje-mahi, o indicava como tal. Infelizmente, ele morreu u m ano depois, em julho de 1996, truncando essas perspectivas. Para Lokosi esse não foi m u i t o bom augúrio e parecia confirmar a tendência ao declínio, iniciada nos tempos de Pararasi. N u m aparente esforço para corrigir essa situação, em j u n h o de 2003 foram confirmados dois novos ogãs e foi recolhida para ser iniciada uma nova vodúnsi de Bessen originária do Rio de Janeiro. C o m o Pararasi, gamo Lokosi t a m b é m manteve contato periódico com o Rio, o que contribuiu para gerar uma presença cada vez maior de pessoas desse estado e, em m e n o r medida, de São Paulo, tanto como ogãs q u a n t o como vodúnsis. A complexa rede de parentesco que estruturava e que de certa forma garantia os recursos para o f u n c i o n a m e n t o do candomblé na primeira metade do século começou a desintegrar-se em favor de um fluxo de participantes cariocas e paulistas que supre essa função. E m b o r a alguns m e m b r o s da famí245

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lia de ogã Boboso e de ogã Bernardino sigam d e s e m p e n h a n d o um papel imp o r t a n t e nas atividades litúrgicas, os participantes cariocas, m u i t o s deles filhos ou netos-de-santo de fomotinho A n t ô n i o Pinto de O x u m , têm mudado a estrutura social e a dinâmica interna da congregação religiosa. Se, no passado, o Seja H u n d é se caracterizava por ter u m a maioria de mulheres negras feitas no próprio terreiro e moradoras em Cachoeira ou imediações, nos últimos anos houve crescente participação de vodúnsis homens, por sinal adés (homossexuais), relativamente jovens, brancos e feitos nas cidades do Sul d o país. N o ciclo de festas em janeiro de 2000, por exemplo, dançaram três homens do Rio, um de São Paulo, outros dois visitantes locais, acomp a n h a d o s por apenas u m a m u l h e r da casa. A m u d a n ç a de procedência social dos agentes do ritual religioso tem afetado certos aspectos litúrgicos (toques de tambor mais rápidos, o que é visto como u m a influência dos candomblés cariocas), certas formas de convívio (os ogãs têm hoje u m casebre com dois quartos, camas e banheiro e não d o r m e m mais no barracão) e, indiretamente, as relações internas de poder. Everaldo D u a r t e nota que no Bogum a presença de cariocas e paulistas já se experimentava antes da suspensão das suas atividades em 1993. N o entanto, as ligações do Seja H u n d é com o jeje carioca são bem mais antigas. Fala-se que no Rio de Janeiro o primeiro terreiro jeje foi o Kwe Simba de gaiaku Rozenda, u m a africana chegada ao Brasil por volta de 18 5 0. 132 Porém, quem mais contribuiu para a difusão do rito jeje no C a n d o m b l é carioca foi Tata fomotinho de O x u m i l a ( O x u m ) , iniciado em 1913 por Maria Agorensi. Ainda sem ter concluído sua iniciação, com apenas 17 anos ele se m u d o u para o Rio, estabelecendo-se em São João de N i t e r ó i , o n d e iniciou g r a n d e q u a n t i d a d e de fil h o s - d e - s a n t o . D e n t r e os mais conhecidos figura Z e z i n h o da Boa Viagem, q u e por sua vez iniciou alguns dos atuais p a r t i c i p a n t e s das festas do Seja H u n d é . Fomotinho t a m b é m p r e p a r o u m u i t o s filhos-de-santo em São Paulo, c o m o J a m i l R a c h i d de O b a l u a ê , i n f l u e n t e líder da u m b a n d a paulista. 1 3 3 Segundo explicam seus netos e bisnetos-de-santo, " f o m o t i n h o já vagunzou com ketu e angola" e essa seria u m a das razões que os teriam levado ao Seja H u n d é na procura das "autênticas" raízes do jeje-mahi. 1 3 4 E m t e m p o s mais recentes, t a m b é m f i l h o s - d e - s a n t o de gaiaku Luiza c o n t r i b u í r a m para a d i f u s ã o d o rito jeje-mahi n o Rio de Janeiro. Por exemplo, D o t é Nelson de A z u n z u a b r i u um p o p u l a r terreiro n o Parque São José Belford Roxo e foi d i r e t o r presidente da Rádio M a r r y m FM, dedicada à "divulgação de programas espíritas" nos anos 1996-1998. T a m b é m A m a o r i de Oxóssi e Marcos A n t ô n i o Lopez de Carvalho de Bessen, ambos preparados pot gaiaku Luiza, têm terreiros jeje-mahis n o Rio. 1 3 5

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Além dos conhecimentos rituais adquiridos em Cachoeira, é sobretudo o contato com as "origens" o que confere a esses especialistas religiosos um prezado prestígio e status, u m a vez de volta para as suas respectivas comunidades. Na verdade, a afluência de pessoas do Sul aos terreiros jejes da Bahia insere-se num movimento muito mais amplo e complexo que vem afetando as religiões afro-brasileiras desde as décadas de 1970 e 1980. O C a n d o m b l é passou de uma religião marginalizada e discriminada a ser percebido como uma prática cultural digna de reconhecimento social. Essa nova visibilidade e prestígio da instituição religiosa se deu com base na valorização da "tradição" e "pureza africana" das casas baianas de fundação mais antiga. Por sua vez, a nova conjuntura levou ao chamado processo de "reafricanização", que se expressou no discurso contra o "sincretismo" católico, o incremento das viagens de especialistas religiosos à Africa e a implantação de cursos de iorubá, para citar apenas alguns dos aspectos mais conhecidos. N o conjunto, essas circunstâncias contribuíram para que nas cidades do Sul houvesse uma paulatina transferência de praticantes da Umbanda para o Candomblé, percebido agora como uma tradição de mais "força" e eficácia, o que no mercado religioso significava também a possibilidade de maior clientela. Nesse contexto, a Africa ou, alternativamente, na impossibilidade de chegar até lá, as casas "tradicionais" do C a n d o m b l é baiano, que ficavam mais perto e acessíveis, passaram a ser prestigiadas como a alvejada fonte de conhecimento esotérico e "pureza africana" que podia legitimar as práticas e, em definitivo, o poder dos novos especialistas religiosos. 136 Foi nessa dinâmica sócio-histórica que, no âmbito da nação jeje, o Seja H u n d é e o Bogum, como casas antigas de raiz africana, foram dimensionados e associados ao ideal de pureza que, por sua vez, gerou a afluência do pessoal do Sul. N o caso do Seja H u n d é , muitos desses visitantes justificam essa escolha f u n d a m e n t a n d o - a na sua genealogia religiosa, que através de. fomotinho os ligaria por ascendência a essa casa. T a m b é m o pessoal d o Seja H u n d é , com suas viagens ao Rio, São Paulo, Minas Gerais e outras partes dos país, não deixaram de reforçar u m a rede social que encoraja, pelos benefícios materiais que reporta, essas visitas d u r a n t e os períodos de festa. Ora, essa presença maciça de pessoas de fora não deixa de provocar certas tensões e resistência por parte dos membros mais antigos da casa. Mais de uma vez escutei certos "visitantes" se queixando de que "os velhos não explicam nada" e de terem sido afastados de certas obrigações internas. N o e n t a n t o , os "velhos" são t a m b é m conscientes da necessidade de ceder e chegar a um compromisso ou consenso, pois sabem que, na situação atual as atividades do terreiro, tanto em nível material como para garantir o número suficiente de participantes, dependem dessas pessoas. O povo jeje tem demonstrado amplamente a sua capacidade de per-

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sistência e adaptação, superando m o m e n t o s difíceis, como, por exemplo, os longos conflitos de sucessão; p o r é m os desafios dos novos tempos são bem diferentes e as consequências, imprevisíveis.

A POSSE DA TERRA: P R O B L E M A S F U N D I Á R I O S D O B O G U M ( 1 9 6 0 - 1 9 9 0 ) Os problemas do Bogum parecem ser de outra natureza. Nesse caso, o contexto urbano tem sido o grande inimigo dessa congregação. A partir da década de 1960, com a chefia de R u n h ó , inicia-se o que chamei a "época moderna" do Bogum, jnarcada por mudanças importantes relacionadas com os efeitos do crescimento urbanístico de Salvador e a especulação imobiliária. Em 1890, na arrecadação da propriedade de Maria Julia Figueiredo, ialorixá do Ilê Iyá Nassô, consta que o "lugar denominado Engenho Velho, estrada do Rio Vermelho [estava] em terreno arrendado e de propriedade do doutor José Carneiro de Campos". C o m o o Ilê Iyá Nassô era vizinho do terreiro Bogum, poder-se-ia inferir que o doutor José Carneiro de Campos tenha sido o proprietário das terras de ambos os candomblés, até pelo menos a última década do século XIX.' 3 " Provavelmente, no início do século XX, 13S as terras do Engenho Velho da Federação foram compradas pelo comendador Bernardo Martins Catharino, cuja propriedade incluía os terreiros do Bogum, Pó Zerrem e Casa Branca e se estendia até o Gantois. Por volta de 1930, essa área de 226.526 metros quadrados foi herdada por Eduardo Martins Catharino, filho do comendador, e, em 1953, após a morte de Eduardo, passou a pertencer à filha do comendador, Maria Laura Martins Catharino, e o esposo Hermógenes Príncipe de Oliveira. Após a separação do casal, em 1989, as terras passaram a ser propriedade de Hermógenes Príncipe de Oliveira, o atual proprietário. 1 3 9 C o m o indiquei no capítulo anterior, originalmente, a extensão do terreiro Bogum abarcava uma grande área de mato. As terras iam do alto da Federação — hoje Praça Valmir Barreto — e se estendiam, descendo o morro, até chegar na antiga estrada Dois de Julho — hoje Avenida Vasco da Gama —, onde passava o rio Lucaia. Existiam, nas imediações, perto do rio, duas fontes dedicadas às obrigações rituais. O barracão, localizado no alto do morro, era dividido do resto das terras pela Ladeira do Bogum, um antigo caminho público. N o final da década de 1950 ou princípios dos anos 1960, esse caminho foi asfaltado pela prefeitura de Salvador, convertendo-se na atual via pública Ladeira Manoel B o m f i m . Essa primeira m u d a n ç a urbanística contribuiu para partir ao meio o terreiro. Desde então, o Bogum "teve o seu espaço físico d i m i n u í d o cinco vezes ao que era originalmente". 1 4 0

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M a p a S — O sítio terreiro B o g u m , área original aproximada (linha pontilhada) e área atual (sombreada)

Fonte: S I C A R / C O N D E R ; Projeto M A M N B A , Prefeitura Municipal de Salvador, sef., 1981.

A progressiva perda de terras ocorreu devido, sobretudo, à construção de casas e casebres, iniciada em finais dos anos 1950, e se agravou na década de 1960. As terras que ficavam do outro lado da Ladeira Manoel B o m f i m foram aos poucos ocupadas por terceiros, a partir de vendas realizadas pela família Catharino (proprietários nominais das terras), concessões que fazia R u n h ó a pessoas que vinham pedir-lhe ajuda, e vendas ocasionais que realizava por conta própria Elísio, irmão de Nicinha. Ao mesmo tempo, havia certa negligência da prefeitura, que não controlava a situação. 141 Em janeiro de 1961 R u n h ó já lamentava que parte das árvores sagradas tivessem sido "separadas" do terreiro e queixava-se dos problemas imobiliários pelos quais passava o terreiro. Ela comentava que "o senhor Catarino parece 249

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

q u e q u e r v e n d e r o t e r r e n o d o n d e está s i t u a d o o b a r r a c ã o " e a c r e s c e n t a v a que a c o m u n i d a d e n ã o p o d i a c o m p r á - l o , pois " n ã o se p o d e p a g a r o q u e ele quer". 1 4 2 E m p r i n c í p i o s dos 1970 p a r e c e q u e o B o g u m a p e n a s p o s s u í a as terras do barracão e, d o l a d o este da Ladeira M a n o e l B o m f i m , a p e n a s dois p e q u e n o s pedaços: u m deles s e p a r a d o u n s 50 m e t r o s d o b a r r a c ã o , o n d e estava a á r v o r e sagrada do v o d u m A z o n o d o , e u m o u t r o o n d e t i n h a a casa de Agorensi, u m a a n t i g a vodúnsi d o B o g u m . P o u c o s dias a n t e s d a sua m o r t e , R u n h ó , e m d e c l a r a ç õ e s feitas ao p r o f e s s o r J u a r e z Paraíso d u r a n t e as f d m a g e n s d e " T e n d a d o s M i l a g r e s " , d o cineasta N e l s o n Pereira, declarava: " C a d a d i a vai f i c a n d o mais difícil fazer as obrigações d o gege, aos n o s s o s v o d u n s (orixás). É q u e estão f a l t a n d o m a t o e rio, p r ó x i m o s de n o s s o terreiro. A n t e s t í n h a m o s u m rio p o r aqui; m a s foi e n t u l h a d o . E p a r a 'fazer s a n t o ' , só t e n d o m a t o e água". 1 4 3 E m 1978, a i n d a sob o l u t o p e l a m o r t e d e R u n h ó , a á r v o r e de A z o n o d o , de g r a n d e i m p o r t â n c i a r i t u a l , t o m b o u sob as c h u v a s i n v e r n a i s , d i z e m q u e i n j e t a da c o m a g e n t e s q u í m i c o s q u e a c a b a r a m c o m a s u a v i d a (ver cap. 8). P o u c o t e m p o d e p o i s esse p e d a ç o d e t e r r a de A z o n o d o f o i v e n d i d o e os b e n e f í c i o s , d i s t r i b u í d o s e n t r e vários m e m b r o s d o terreiro. O g ã C e l e s t i n o c o m e n t a v a : "nos d e s f i z e m o s de p a r t e d o t e r r e n o p o r q u e f a z í a m o s m u r o e d e r r u b a v a m , além de j o g a r e m lixo nele". 1 4 4 C o m o já c o m e n t e i , e m 20 d e f e v e r e i r o d e 1979 o p r e f e i t o E d v a l d o B r i t o v i s i t o u o t e r r e i r o e foi h o m e n a g e a d o p e l a c o m u n i d a d e . N i c i n h a i n i c i a v a sua g e s t ã o c o m a l i a n ç a s p o l í t i c a s d o m a i s a l t o nível, e m b o r a J e h o v á d e C a r v a l h o , e m seu d i s c u r s o , a f i r m a s s e q u e "esse c a n d o m b l é n u n c a h o m e n a g e o u a n t e r i o r m e n t e n e n h u m a a u t o r i d a d e e recebe o prefeito, n ã o pelo cargo q u e ocupa, m a s p o r sua c o n d i ç ã o d e h o m e m i n t e g r a d o ao c a n d o m b l é " . 1 4 5 E n t r e t a n t o , essas ações i n d i c a m u m a v o n t a d e d a c o m u n i d a d e p a r a c h a m a r a a t e n ç ã o d o s p o d e r e s p ú b l i c o s s o b r e a s i t u a ç ã o d o t e r r e i r o e v e i c u l a r as suas d e m a n d a s . E m 1981, a p r e f e i t u r a de Salvador, e m c o n v é n i o c o m o SpHAN/Pró-Memória d o M i n i s t é r i o d e C u l t u r a e sob a d i r e ç ã o d o p r o f e s s o r O r d e p Serra, lança o Projeto

MAMNBA

( M a p e a m e n t o de M o n u m e n t o s N e g r o s da Bahia), q u e visava p r e -

servar, c o m o p a t r o c í n i o d o s órgãos p ú b l i c o s , as áreas sagradas dos terreiros d e Salvador. Esse p r o j e t o c o n s e g u i u o t o m b a m e n t o d a C a s a B r a n c a , e m 1984, e o início d o s t r a b a l h o s d e p r e s e r v a ç ã o d o P a r q u e São B a r t o l o m e u . O r d e p Serra e o Projeto

MAMNBA

e m m u i t o c o n t r i b u í r a m p a r a a r e o r g a n i z a ç ã o da S o c i e d a d e

de Fiéis de São B a r t o l o m e u , q u e deveria ser i n s t r u m e n t a l pela c o o r d e n a ç ã o d o s esforços d o terreiro na luta pela subsistência. O s esforços de ogãs c o m o Everaldo D u a r t e , J a i m e S o d r é e G i l b e r t o Leal, e n t r e o u t r o s , f o r a m d e g r a n d e i m p o r t â n cia nesse p r o c e s s o . E m 1985, sob a i n i c i a t i v a do P r o j e t o

MAMNBA, O

e n t ã o p r e f e i t o d e Salva-

dor, M a n o e l Figueiredo Castro, e n c a m i n h o u à C â m a r a Municipal o projeto de

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HUNDÉ

lei n 2 3.591/85, para declarar o B o g u m , a Casa Branca, o G a n t o i s e o C a n d o m blé Ipatirió Gallo c o m o Área de Proteção C u l t u r a l e Paisagística. Essa lei declarava

Área de Proteção Rigorosa a extensão do c a n d o m b l é de uso religioso e resi-

dencial, assim c o m o as árvores isoladas e seu entorno. Prescrevia que não seriam permitidas edificações maiores de dois p a v i m e n t o s nas áreas vizinhas.

N6

Um s e g u n d o p r o j e t o de lei da m e s m a época d e t e r m i n a v a q u e os terreiros não deviam pagar m a i s décimas à p r e f e i t u r a . Existem cópias de recibos de impostos pagos pelo B o g u m dos anos 1960, n o n o m e de M a r i a E m i l i a n a da Piedade, o q u e sugere q u e esses i m p o s t o s e r a m pagos desde os t e m p o s da sua gestão, nos anos 1940. Em declarações ao j o r n a l A Tarde, N i c i n h a se c o n g r a tulava: "pelo m e n o s , nós n á o vamos pagar i m p o s t o s . H o j e em dia, além dos impostos, nós p a g a m o s l a u d ê m i o s , pois o t e r r e n o não é nosso, até e n t ã o " . A p r o v e i t a n d o a c o n j u n t u r a e s e g u i n d o o c o n s e l h o da d i r e ç ã o d o P r o j e t o MAMNBA, o B o g u m deixa de pagar t a m b é m o aluguel das terras. D e s d e então, a família Príncipe de Oliveira, p r o p r i e t á r i o s oficiais d o t e r r e n o , t a m b é m não reclamou mais o p a g a m e n t o do aluguel. Porém os m o r a d o r e s do B o g u m ainda não t ê m n e n h u m registro de p r o p r i e d a d e das terras. 1 4 '

Laterol do terreiro Bogum antes da recuperação

do telhado (22/7/87)

A lei q u e declarava o B o g u m Área de Proteção C u l t u r a l e Paisagística foi aprovada, mas não foi regulamentada. Devido à falta de controle e meios de implementação da lei por parte da prefeitura, as edificações de mais de dois pavimentos proliferaram nas imediações do terreiro, prejudicando seriamente a privacidade das práticas religiosas. N o marco da já comentada U Semana de Palestras:

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L U I S N I C O L A U P A R ÉS

O Povo Malê e suas Influências, celebrado em 1986, Jaime Sodré c h a m o u a atenção para a área cada vez mais reduzida d o terreiro, e N i c i n h a se queixava dizendo que "isso na maioria das vezes atrapalha a realização das cerimonias secretas do culto, pois estas ficam à vista de curiosos". A lei existia, mas sua eficácia era nula. Sodré t a m b é m reclamou da "situação precária de conservação em q u e se encontram as instalações físicas do terreiro", c o m necessidade de obras urgentes, e sugeriu o t o m b a m e n t o para preservá-lo e evitar esses problemas. 1 4 8 Se por u m lado o p r o j e t o d e t o m b a m e n t o n ã o p r o s p e r o u , d e v i d o a u m a decisão interna dos m e m b r o s d o B o g u m , q u e t e m i a m desse m o d o n ã o p o d e r preservar a privacidade das áreas sagradas, a c a m p a n h a l a n ç a d a através da imp r e n s a e outras iniciativas políticas parece ter s u r t i d o a l g u m efeito. E m m a r ç o de 1987 a F u n d a ç ã o G r e g ó r i o de M a t o s , sob a p r e s i d ê n c i a de G i l b e r t o Gil e a direção de A n t ô n i o Risério, lançava u m a c a m p a n h a para a r e c u p e r a ç ã o dos principais terreiros da c i d a d e . N o B o g u m , essa iniciativa c o n t r i b u i u p r i n c i p a l m e n t e para refazer o t e l h a d o d o barracão e levantar m u r o s em t o r n o do terreno, p o r q u e , c o n f o r m e declarava o ogã C e l e s t i n o Santos, "o d i n h e i r o d a casa é insuficiente para os reparos". N a q u e l e m o m e n t o de e n t u s i a s m o esperava-se ainda o b t e r o u t r o s apoios em níveis estadual e federal. I n f e l i z m e n t e , a p e n a s d u r a n t e a gestão da prefeita Lídice, em n o v e m b r o de 1993, f o r a m realizadas a l g u m a s r e f o r m a s na Praça da Federação, nas i m e d i a ç õ e s d o terreiro, q u e passou a se c h a m a r Praça M ã e R u n h ó , i n s t a l a n d o - s e ali u m b u s t o d a doné R u n h ó . 1 4 9 P o r t a n t o , na d é c a d a de 1980 o B o g u m se m o b i l i z o u através de c o n t a t o s p o l í t i c o s e do uso da m í d i a para l u t a r c o n t r a a especulação i m o b i l i á r i a e o b t e r benefícios dos órgãos p ú b l i c o s . A utilização da i m p r e n s a pelos terreiros (e viceversa) merece u m p e q u e n o parêntese. Ela foi iniciada nos anos 1970, e em 1973 o j o r n a l A Tarde, por e x e m p l o , c o m e ç o u a a n u n c i a r r e g u l a r m e n t e vários dos terreiros mais famosos da cidade, e n t r e eles o B o g u m , "a fim de facilitar àqueles q u e desejam visitar os terreiros de C a n d o m b l é " . 1 ^ 0 Esse p e r í o d o c o r r e s p o n d e ao m o m e n t o em q u e a política d o G o v e r n o da Bahia c o m e ç a a p r o j e t a r o C a n d o m b l é c o m o sinal de i d e n t i d a d e c u l t u r a l b a i a n a , e q u e o C a n d o m b l é começa a se p r o m o v e r c o m o e s p e t á c u l o t u r í s t i c o e p r o d u t o d e marketing

cultural.

S i m u l t a n e a m e n t e a essa m a n i p u l a ç ã o externa, as c o m u n i d a d e s religiosas, esp e c i a l m e n t e através de seus ogãs, n ã o d e i x a r a m passar a o p o r t u n i d a d e a b e r t a p o r esse processo, u t i l i z a n d o , p o r sua vez, a i m p r e n s a c o m o a r m a para sensibilizar a o p i n i ã o pública e reivindicar ajudas dos órgãos oficiais. A década de 1980 parece ser a mais ativa nesse s e n t i d o . N o caso d o B o g u m , a a n t i g u i d a d e do terreiro e a p r e t e n s ã o de ser "o único c a n d o m b l é da n a ç ã o Jeje no e s t a d o da Bahia", "o último

de u m a série de sítios históricos"

o u " u m a espécie d e

museu

jeje" (grifo nosso), além de ser f o r m a s de legitimar a a u t o r i d a d e religiosa entre

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LIDERANÇA. F DINÂMICA

INTERNA

DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA

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o p o v o - d e - s a n t o , f o r a m os valores críticos utilizados na estratégia do terreiro para dar c r e d i b i l i d a d e a suas d e m a n d a s , d e f e n d e r seus direitos e reivindicar apoio dos órgãos p ú b l i c o s . 1 M Paralelamente, a outra idéia que c o n t r i b u i u para a c o n s t r u ç ã o d o prestígio da casa através da i m p r e n s a foi apelar para a idéia de q u e o B o g u m era u m "matriarcado". C o m o já vimos, a liderança f e m i n i n a do B o g u m data do período pós-abolição, e n q u a n t o na segunda m e t a d e do século XIX, apesar da significativa presença de L u d o v i n a Pessoa e da preta Raquel, a liderança masculina parece ter p r e d o m i n a d o . 1 5 2 D e i x a n d o de lado o d e s c o n h e c i m e n t o desses fatos históricos, o apelo c o n t e m p o r â n e o d i a n t e dos poderes p ú b l i c o s ao "matriarcado" d o B o g u m r e s p o n d e r i a , em parte, à percepção de q u e u m p o d e r religioso f e m i n i n o seria para as elites brancas mais atrativo e aceitável, por ser m e n o s a m e a ç a d o r q u e u m p o d e r religioso c o n t r o l a d o por h o m e n s . Nesse s e n t i d o , são p e r t i n e n t e s as ideias de M a t o r y q u a n d o sugere q u e desde a década de 1930 intelectuais c o m o G i l b e r t o Freyre c o n t r i b u í r a m para criar na sociedade brasileira a i m a g e m m a t e r n a l , b o n d a d o s a e p r o t e t o r a da "mãe preta". Autores c o m o C a r n e i r o ou Landes associaram essa imagem benéfica da m u l h e r negra à "pureza" dos rituais africanos, s o b r e t u d o nagôs, em oposição à i m a g e m d o h o m e m "feiticeiro", h o m o s s e x u a l e envolvido em práticas sincréticas, associados p r i n c i p a l m e n t e à tradição angola. 1 1 ' O B o g u m , em suas reivindicações de a n t i g u i d a d e e m a t r i a r c a d o , e i m p l i c i t a m e n t e de "pureza africana", parece alinhar-se c o m a ideologia das h e g e m ó n i c a s casas de nação k e t u mais "tradicionais".

OUTROS TERREIROS JEJES NO SÉCULO XX N i n a R o d r i g u e s , n o f i m d o século XIX, apesar de r e c o n h e c e r a i n f l u ê n c i a da t r a d i ç ã o jeje no C a n d o m b l é , o q u e o levou a c u n h a r a expressão "jeje-nagô", n ã o cita e x p l i c i t a m e n t e n e n h u m terreiro dessa "nação". Aliás, esse a u t o r não fala em nações de C a n d o m b l é , apenas m e n c i o n a o terreiro de Livaldina, "onde foi mais a c e n t u a d a a i n f l u ê n c i a dos jeje", por e n c o n t r a r nessa casa u m a

figura

de s e r p e n t e que i d e n t i f i c o u c o m o p e r t e n c e n d o ao c u l t o de D a n . 1 , 4 D e v e m o s esperar a d é c a d a de 1930 para e n c o n t r a r as p r i m e i r a s referências a terreiros jejes. Correia Lopes, em trabalho p u b l i c a d o em 1943, d o c u m e n t a v a sua visita ao B o g u m em 1937, e Carneiro, em obra publicada em 1948, m e n c i o n a v a o Bogum, o Poço Béta e o candomblé de M a n u e l Menez c o m o inscritos, em 1937, na União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia. 1 5 5 Em relação ao terreiro de M a nuel Menez, em São C a e t a n o , infelizmente não consegui maiores informações.

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LUIS NICOLAU

P A R ÉS

O terreiro Poço Beta, a i n d a na ativa, foi f u n d a d o p o r M a n u e l Vitorino da C o s t a , mais c o n h e c i d o c o m o M a n u e l Falefá o u M a n u e l da F o r m i g a . Ele nasceu em S a n t o A m a r o , e m 21 de d e z e m b r o de 1900, e faleceu em 18 de maio de 1980. Existem versões c o n t r a d i t ó r i a s q u a n t o a sua f e i t u r a n o s a n t o . Segundo d e p o i m e n t o d o p r ó p r i o Falefá, ele teria sido i n i c i a d o c o m 11 anos de idade e c o n s a g r a d o ao v o d u m N a n á , p r o v a v e l m e n t e em São Francisco d o C o n d e . Por o u t r o lado, s e g u n d o Itamoacy, seu filho p r i m o g é n i t o , o pai foi feito com 7 anos de i d a d e pela avó, C l a r i c e C o n s t a n z a B a r b o s a , em P o j u c a , n a Fazenda Pau G r a n d e , p e r t o de S a n t o A m a r o . 1 ' 6 As i n f o r m a ç õ e s disponíveis, e m b o r a c o n f u s a s , p a r e c e m sugerir a existência de u m p r i m e i r o t e r r e i r o , " f u n d a d o p o r X a n g ô " , talvez e m M a t a d e São João, c h a m a d o Poço Bêtá. A avó de Falefá, C l a r e B o r b o s a (sic), era q u e m deveria a s s u m i r a c h e f i a dessa casa, m a s n ã o a c e i t o u o cargo, i n d i c a n d o Falefá como " h e r d e i r o " . P o s t e r i o r m e n t e , Falefá a b r i u u m c a n d o m b l é em Salvador, chamado P o ç o Béta (com u m a d i f e r e n ç a de a c e n t u a ç ã o e m relação ao n o m e original), s e n d o o " p a d r o e i r o da casa" o v o d u m S o g b o A d a , g r a f a d o pelo próprio Falefá c o m o " C ô bô A d a n d a V i r d ê " . E m b o r a filho de N a n ã , o m e s m o Falefá declarava: " E u s o u h e r d e i r o d e S o g b o " . Isso sugere q u e ele teve i n i c i a l m e n t e r e s p o n s a b i l i d a d e n o t e r r e i r o d o R e c ô n c a v o , f u n d a d o p o r terceiros. 1 5 A e t i m o l o g i a d o P o ç o Béta se p r e s t a a várias i n t e r p r e t a ç õ e s . Poço, provav e l m e n t e é u m a e v o l u ç ã o f o n é t i c a de K p o s u , o v o d u m - p a n t e r a . Bêtá, ou béta, é u m t e r m o m a i s difícil de i d e n t i f i c a r , e m b o r a n o s t e r r e i r o s jejes d a Bahia o v o d u m K p o seja t a m b é m c o n h e c i d o c o m o P o ç u B a t a n A j a í , q u e s e g u n d o gaiaku

Luiza seria o pai d o v o d u m S o g b o . Essa m e p a r e c e a h i p ó t e s e e t i m o -

lógica m a i s plausível, e m b o r a h a j a o u t r a s . 1 5 8 S e g u n d o I t a m o a c y , e m S a l v a d o r Falefá a b r i u u m a p r i m e i r a casa na Barra, c h a m a d a O r i F u n j i . P o u c o d e p o i s , p r o v a v e l m e n t e na d é c a d a de 1930, m u d o u o t e r r e i r o p a r a a R u a da F o r m i g a , n a 118, em São C a e t a n o , o n d e p e r m a n e ceu a t é 1970, q u a n d o N a n ã p e d i u p a r a f e c h a r o t e r r e i r o p o r falta d e espaço, e foi d e s l o c a d o p a r a a R u a São M a r t i n s , n o b a i r r o de São M a r c o s , e m Pau de Lima, o n d e p e r m a n e c e até h o j e . N a j u v e n t u d e , M a n o e l Falefá t r a b a l h o u na M a r i n h a , v i a j a n d o em várias ocasiões para a Á f r i c a , a p r e n d e n d o a falar o i o r u b á , ao t e m p o q u e c o m e r c i a v a em p a n o - d a - c o s t a , o r o b ô , obi e o u t r o s p r o d u t o s a f r i c a n o s . Falefá foi u m pers o n a g e m p o p u l a r e n t r e o p o v o - d e - s a n t o , e m b o r a e n t r e o p o v o jeje seu c o n h e c i m e n t o da l i t u r g i a dessa n a ç ã o suscite a i n d a certas reservas. E m 1937 escreveu u m t e x t o i n t i t u l a d o " O m u n d o religioso d o n e g r o d a Bahia" p a r a o Seg u n d o C o n g r e s s o A f r o - B r a s i l e i r o , e seu t e r r e i r o esteve i n s c r i t o na U n i ã o das Seitas A f r o - B r a s i l e i r a s d a Bahia. 1 5 9 E m 1968, s e n d o já p r o f e s s o r d e i o r u b á ,

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Manuel Falefá (de chapéu) e sua primeira mulher (c. 1950) Autor: Pierre Verger

recebeu u m a bolsa p a r a v i a j a r à região de P o p o , n o T o g o , e Lagos, na N i g é r i a . De volta dessa v i a g e m , d e s e n h o u nas p a r e d e s d o t e r r e i r o i m a g e n s de c o b r a s , e m b l e m a d e Bessen, q u e f o r a m p o s t e r i o r m e n t e e l i m i n a d a s . E m b o r a em 1948 C a r n e i r o i d e n t i f i q u e o c a n d o m b l é c o m o " j ê j e - m a r r i m ( m a h í ) " , é provável q u e t e n h a sido a p a r t i r dessa v i a g e m q u e ele c o m e ç o u a i d e n t i f i c a r sua casa c o m o de n a ç ã o m i n a - p o p o . C a b e n o t a r q u e na ficha d o

CEAO

ele já i d e n t i f i c a a avó

c o m o "gêge p o p ô " . M a n o e l Falefá e s t e v e c a s a d o c o m d u a s m u l h e r e s , t e n d o c o m elas p e l o m e n o s 17 filhos. N a d é c a d a de 1960, nove deles já p a r t i c i p a v a m das atividades d o t e r r e i r o , o q u e sugere a i m p o r t a n t e d e p e n d ê n c i a d a c o n g r e g a ç ã o religiosa nessa e s t r u t u r a f a m i l i a r . F u n d o u n o c a n d o m b l é a S o c i e d a d e C i v i l A y a b a O k e r e , q u e a i n d a f u n c i o n a . 1 6 0 C o m a m o r t e de Falefá, em 1980, sua

filha-

d e - s a n t o m a i s v e l h a , S i b e b o t a n , d e Aziri T o b o s s i , a s s u m i u a l i d e r a n ç a d o t e r r e i r o , m u d a n d o seu n o m e para Ilê O m ó Ketá Poço Béta (Casa dos Filhos d o Poço Béta) e a s s e n t a n d o c o m o " r e g e n t e " do t e r r e i r o a I e m a n j á o u Aziri Tobossi. Q u a n d o S i b e b o r a n faleceu, em 1992, sua filha c a r n a l , E d v a l t í n a Alves d e Souza ( d o n a V a d i n h a ) , p a s s o u a ser a zeladora, p e r m a n e c e n d o nesse c a r g o até h o j e . A t u a l m e n t e , o c a l e n d á r i o d e festas t r a n s c o r r e n o s meses de maio, julho, agosto, o u t u b r o e dezembro.161 O u t r o i m p o r t a n t e t e r r e i r o das p r i m e i r a s d é c a d a s d o século XX foi a C a c u n d a de Yaya (Yava). M a t o r y fala da o r i g e m d o C a c u n d a c o m o s a i n d o de

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LUIS NICOLAU

P A R ÉS

u m t e r r e i r o na vila de A c u p í , p e r t o de S a n t o A m a r o . J a i m e M o n t e n e g r o , inic i a d o n a C a c u n d a , o u v i u d i z e r q u e o p e s s o a l d e S a n t o A m a r o era C a s a r a n g o n g o (o q u e p a r e c e u m t e r m o b a n t o ) e f a l a v a m q u e e r a m jeje a g a b i . 1 6 ' A C a c u n d a de Yaya foi f u n d a d a i n i c i a l m e n t e n o b a i r r o de S u s s u a r a n a , em Salvador, em 6 de j a n e i r o d e 1920. D e p o i s , q u a n d o o g o v e r n o e x p r o p r i o u as terras, foi t r a n s f e r i d a p a r a São C a e t a n o . Foi d i r i g i d a p o r S i n f r ô n i o Eloi Pires, d e s c e n d e n t e d e a f r i c a n o s , filho de O b a l u a ê , c o m a d i j i n a Z u n t ô n o . Sinf ô n i o m o r r e u em I a de j u n h o de 1938, d e i x a n d o c o m o sucessora sua m u l h e r , C o n s t a n ç a da R o c h a Pires, mais c o n h e c i d a c o m o m ã e Tança, f d h a de N a n ã , cuja d i j i n a era Ajausse. M ã e T a n ç a m o r r e u e m 2 de o u t u b r o de 1978 e foi su- cedida pela sua filha n a t u r a l , M a r i a Pires, filha de O x u m c o m a d i j i n a I a - O m i N i - Q u e , t e n d o p o r pejigã (e a x o g u m ) Pedro de A l c a n t a r a R o c h a ( P e d r i n h o ) , filho de O g u m , c o m d i j i n a O g u m Leé, c o n f i r m a d o em abril de 1933. S e n d o filho n a t u r a l de m ã e T a n ç a , após a m o r t e dela P e d r i n h o p a s s o u a ser c h a m a d o de babalaxé. As festas mais i m p o r t a n t e s e r a m a Festa das F r u t a s e o amalá de X a n g ô , celebradas em 6 de j a n e i r o , e a Festa de O b a l u a ê , c o m m a t a n ç a de boi e cabritos, n o s á b a d o de Aleluia, na Páscoa. E m b o r a a casa preserve os assentos, d e s d e 1991 n ã o se c e l e b r a m festas lá. 163 E m t e m p o s de m ã e T a n ç a existia u m a estreita c o m u n i c a ç ã o c o m o Seja H u n d é , q u a n d o g e r i d o p o r A b a l h e e Pararasi. M ã e T a n ç a v i a j o u t a m b é m para o Rio e parece q u e se f o r m a r a m d u a s facções q u e d e r a m lugar a d i s p u t a s internas. O p r i m e i r o barco de m ã e T a n ç a foi r e c o l h i d o em 1954 c o m sete v o d ú n s i s , depois a i n d a teve u m s e g u n d o barco de q u a t r o vodúnsis."' 4 O terreiro Ilê Axé Jitolú de m ã e H i l d a Dias dos S a n t o s , f u n d a d o por volta de 1960, n o C u r u z u , c e n t r o espiritual d o bloco a f r o Ilê Ayé, e o terreiro Inlegedá J i g e m i n de pai A m i l r o n C o s t a , f u n d a d o em 1974, na Boca d o Rio e t r a s l a d a d o em 1985 ao C u r u z u , t ê m a s c e n d ê n c i a religiosa n a C a c u n d a de Yaya. T a n t o a C a c u n d a de Yaya q u a n t o aqueles t e r r e i r o s a ela a f i l i a d o s são n o r m a l m e n t e i d e n t i f i c a d o s c o m o jeje-savalus. As diferenças litúrgicas e n t r e o jejem a h i e o jeje-savalu n ã o são m u i t o a c e n t u a d a s , e m b o r a h a j a b e n ç õ e s , c a n t o s d e sacrifício e de saída de iaôs, e h i n o s de n a ç ã o q u e são d i f e r e n c i a d o s . D e m o d o geral, o jeje-savalu a p r e s e n t a a t u a l m e n t e f o r t e s i n f l u ê n c i a s d a l i t u r g i a n a g ô - k e t u . N o t e r r e i r o J i g e m i n de pai A m i l t o n , p o r e x e m p l o , c e l e b r a m - s e o b r i g a ç õ e s c o m o a "procissão para O d u d u a " , s e m e l h a n t e às águas d e O x a l á d a n a ç ã o k e t u , q u e n ã o são n o r m a l m e n t e c e l e b r a d a s n o j e j e - m a h i . N e s s e terreiro, os rituais d o zandró

e d o boitá,

importantes obrigações do rito mahi

(ver cap. 8), são r a r a m e n t e c e l e b r a d o s e o boitá, por e x e m p l o , é p r i v a d o e n ã o envolve a p r o c i s s ã o em volta das árvores sagradas, c a r a c t e r í s t i c a d o s t e r r e i r o s m a h i s . O jeje-savalu r e c o n h e c e c o m o "os v e r d a d e i r o s d o n o s " de sua n a ç ã o

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LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA

DOS TERREIROS

BOGUM £ SEJA

HUNDÉ

O m o l u ( A z o n s u ) e N a n á , e n ã o Bessen, c o m o o m a h i . A l é m desses e l e m e n tos, a l í n g u a r i t u a l , t o q u e s de a t a b a q u e , c â n t i c o s sagrados e a p r á t i c a r i t u a l são m u i t o parecidos. 1 6 '' C o n s t a t a m o s q u e n o s a n o s 1920 e 1 9 3 0 v á r i a s casas jejes de S a l v a d o r s u r g i r a m c o m o c o n t i n u a ç ã o de t e r r e i r o s l o c a l i z a d o s n o R e c ô n c a v o ( S a n t o A m a r o , São F r a n c i s c o d o C o n d e , M a t a de São J o ã o ) . N o c a p í t u l o a n t e r i o r já m e n c i o n e i o t e r r e i r o j e j e - d a g o m é da F a z e n d a C a j u , nas m a r g e n s d o r i o P a r a g u a ç u , p e r t o d e M a r a g o g i p e . Era d i r i g i d o p o r d o n a V i t ó r i a , q u e p o r v o l t a de 1970 t i n h a u n s 90 a n o s , e devia f u n c i o n a r já nas p r i m e i r a s d é c a d a s d o s é c u l o . S e g u n d o L u i z M a g n o , d o n a V i t ó r i a "era d e A b e r i g ã c o m N a n ã . A b e r i g ã é o n o m e q u e eles c h a m a m o v o d u m B e s s e n lá n o j e j e d a g o m é " . A p e s a r d o d i f í c i l acesso, n a é p o c a d o s c a n d o m b l é s , e r a m m u i t a s c a n o a s e b a r c o s p a r a levar o p e s s o a l à roça. 1 6 6 E m M a r a g o g i p e , nas d é c a d a s de 1930 e 1 9 4 0 , a b r i u t e r r e i r o a t e m i d a B a d e s a A r c a n j a , f i l h a d e M a r i a A g o r e n s i , q u e , c o m o já c o m e n t e i , teve sérias d i s p u t a s c o m A b a l h e n o s últ i m o s a n o s da sua v i d a . Gaiaku Luiza t a m b é m l e m b r a a existência de u m terreiro "jeje-efon" n a ilha de Itaparica. 1 6 7 U v a l d o O s s ó r i o , a p e s a r de c o m e n t a r q u e "na ilha a i n f l u ê n cia dos Gêges foi q u a s e n u l a " , diz q u e " a b o l i d o o c a t i v e i r o c o n s e r v a r a m - s e eles na a n t i g a p o v o a ç ã o da P o n t a das Baleias, t r a b a l h a n d o c o m o tarefeiros, nos C o n t r a t o s e nas D e s t i l a r i a s de A g u a r d e n t e . E r a m na sua m a i o r i a , t a n o e i r o s e f o r j a d o r e s " , e m e n c i o n a o " t e r r e i r o d o M e s t r e E v ó d i o , v e l h o a d o r a d o r de Avrikiti, d i v i n d a d e m a r i n h a " , e seus c o m p a n h e i r o s t i o C a s s i a n o , m e s t r e J o r ge, tia H e n r i q u e t a e m e s t r e A n t ô n i o Laê. Nessa c o n g r e g a ç ã o religiosa c u l t u a vam-se t a m b é m O b e s s é m (Bessen) e I r o k o (Loko). 1 6 8 N ã o são f o r n e c i d o s mais d e t a l h e s , p o r é m a r e f e r ê n c i a de seu líder ao v o d u m A v e r e k e t e p e r m i t e s u p o r q u e o t e r r e i r o t i n h a a s c e n d ê n c i a e n t r e os povos da costa da área gbe. Já e m Salvador, n o s a n o s 1930, t e m o s t a m b é m n o t í c i a de tio V i d a l , c o m c a n d o m b l é n o E n g e n h o Velho de Brotas. A l g u n s d i z e m q u e ele era k e t u e o u tros q u e ele era jeje. M e s t r e D i d i , l e m b r a q u e , em 10 de m a r ç o de 1937, m ã e A n i n h a d o Axé O p ô A f o n j á , realizou " u m a g r a n d e o b r i g a ç ã o p a r a o babalorixá V i d a l , q u e era de X a n g ô na n a ç ã o Jeje, e fez O x a l á ( O x a g u i ã ) " . P o u c o s a n o s d e p o i s , e m 1 9 4 1 - 1 9 4 2 , o casal H e r s k o v i t s r e g i s t r o u várias c a n t i g a s i d e n t i f i cadas c o m o " G ê g e " i n t e r p r e t a d a s pelo " g r u p o d o V i d a l " . A t r o c a d e s a n t o e de n a ç ã o (de jeje p a r a k e t u ) , s o m a d a ao c o n t r o l e de r e p e r t ó r i o s rituais de várias n a ç õ e s , i n d i c a a relativa p e r m e a b i l i d a d e e f l u i d e z de i n d i v í d u o s e n t r e as nações de Candomblé.169 Nesse t e r r i t ó r i o de f r o n t e i r a cabe situar u m a série de terreiros, c o m o o Ilê M a r o i a l a j e ou c a n d o m b l é d o Alaketo, n o M a t a t u , e o terreiro O x u m a r é , na M a -

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L U I S N I C O L A U P A R ÉS

ta E s c u r a , q u e , s e m se d e c l a r a r e m e x p l i c i t a m e n t e j e j e s , a p r e s e n t a m f o r t e i n f l u ê n c i a da t r a d i ç ã o dessa n a ç ã o . N o caso d o A l a k e t o , t e r r e i r o d o s m a i s a n tigos d e S a l v a d o r , essa j u s t a p o s i ç ã o d e r i t o s t e r i a seus a n t e c e d e n t e s na c i d a d e de K e t u , d e o n d e seus f u n d a d o r e s e r a m o r i g i n á r i o s , p o i s lá os c u l t o s d e o r i x á c o n v i v e r a m c o m os c u l t o s d e v o d u m d e s e u s v i z i n h o s d e s d e t e m p o s i m e moriais. E m b o r a a literatura afro-brasileira identifique geralmente o Alaketo c o m o c a n d o m b l é n a g ô - k e t u , sua dirigente, a f i n a d a O l g a Francisca Régis, o identificava c o m o n a g ô - v o d u m e explicava: N a g ô - v o d u n é jeje e ketu, uma parte de jeje e uma parte de ketu, é dizer, dois coisas juntas [...]. Tanto faz a gente fazer um candomblé só para jeje, como faz um candomblé só para ketu e t a m b é m podemos misturar, fazemos uma obrigação de jeje, fazemos uma obrigação de ketu. A gente faz uma obrigação de O x u m a r é , mais para à parte de jeje; e de Azoónu, é mais para à parte de jeje; de Iroko é mais para à parte de jeje. T a m b é m fazemos Xangô que é mais para à nossa parte de ketu. [...] Pelas cantigas, pelas obrigações, [o jeje] é diferente, as danças são diferentes das de ketu. Mas agora o povo não separa nada, então eles cantam u m b o c a d i n h o de jeje, um bocadinho de ketu, quer dizer, tem uns que fazem as coisas diferente. [...] Nos temos a separação d e l e s . 1 0 Esse interessante c o m e n t á r i o ilustra que, apesar do crescente processo de "nagoização" do C a n d o m b l é , ainda existem diversos graus de "sincretismo j e j e - n a g ô " e e m a l g u m a s casas a c o e x i s t ê n c i a n ã o i m p l i c a p u r a e s i m p l e s i d e n tificação o u s u b s t i t u i ç ã o dos v o d u n s pelos orixás. O caso d o t e r r e i r o O x u m a r é , n a M a t a E s c u r a ( h o j e V a s c o d a G a m a ) , é a l g o d i f e r e n t e . Foi f u n d a d o , a n t e s d e 1 9 1 1 , p e l o l e g e n d á r i o a f r i c a n o t i o S a l a c ó de X a n g ô e p o r A n t ô n i o O x u m a r é , s e u f i l h o - d e - s a n t o . 1 7 1 V i v a l d o d a Costa Lima c o m e n t a q u e A n t ô n i o O x u m a r é é " l e m b r a d o , ainda hoje, pelos 'mais a n t i g o s ' , p o r suas ligações c o m chefes políticos b a i a n o s n o t e m p o da C a m p a n h a Civilista". D o n a C o t i n h a ( M a r i a das M e r c ê s ) , f i l h a - d e - s a n t o de A n t ô n i o O x u m a r é e m ã e d o t e r r e i r o n a d é c a d a d e 1930, era d e E u á e c a s o u c o m seu Jacinto.1

2

L i m a i n d a g a p o r q u e C a r n e i r o o m i t i u o n o m e d e C o t i n h a na sua o b r a ,

u m a "vez q u e o p r ó p r i o C a r n e i r o cita, e m Religiões Negras,

o t e r r e i r o de O x u -

maré, que f r e q u e n t a v a " , i n c l u i n d o , n o A p ê n d i c e desse livro, u m a colorida descrição da festa do "Presente à M ã e d'Agua" celebrada em 1934.173 E s s e c a n d o m b l é , h o j e a u t o d e n o m i n a d o n a ç ã o k e t u , teve f o r t e i n f l u ê n c i a da n a ç ã o jeje, n o i n í c i o . Verger c o m e n t a q u e "os c u l t o s G e g ê e N a g ô se f u n d i a m e m t e r r e i r o s c o m o o de O x u m a r é " . Sabe-se q u e nas p r i m e i r a s d é c a d a s d o s é c u l o XX e x i s t i a m e s t r e i t a s r e l a ç õ e s e n t r e o B o g u m e o O x u m a r é , e q u e os h o m e n s q u e n ã o p o d i a m ser i n i c i a d o s n o B o g u m , p o i s lá só d a n ç a v a m m u -

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HUNDÉ

lheres, eram feitos n o O x u m a r é . É possível q u e A n t ô n i o O x u m a r é realizasse a l g u m a o b r i g a ç ã o d o rito jeje c o m R o m a n a , q u e f r e q u e n t a v a m u i t o seu terreiro. O atual d i r i g e n t e da casa, S i l v a n i l t o n da M a t a , declarava em 1995: "no começo o terreiro era Jeje. Mas por questão de m u d a n ç a s , h o j e se c u l t u a Q u e t o . O t e r r e i r o p a s s o u por d i f i c u l d a d e s m u i t o g r a n d e s e h o u v e a necessidade de m u d a n ç a de nação". Isso deve ter a c o n t e c i d o na década de 1940, talvez após o f a l e c i m e n t o de d o n a C o t i n h a , mas os m o t i v o s n ã o f o r a m i d e n t i f i c a d o s . 1

4

A l é m d o s t e r r e i r o s a q u i r e f e r i d o s , h o u v e e há a i n d a vários o u t r o s q u e se d e c l a r a m jejes. A d a p t a n d o u m a série de estatísticas dos t e r r e i r o s de Salvador s e g u n d o as n a ç õ e s , e l a b o r e i a T a b e l a 7. Tabela

7 —

Estatísticas

Ijexá

%

dos

Angola

jejes

Caboclo

em

Salvador

Ano

Jeje

1937

9

13,40

6

13

22

15

1969

14

4,57

16

107

61

105

2

1981

4

0,27

14

660

350

271

50

1983

30

2,47

47

447

384

41

1

1992

19

2,02

22

415

200

245

37

1998

18

3,60

8

282

137

14

11

Fontes: Poro 1937: Corneiro,

Candomblés,

Ketu

terreiros

Umbanda

Outro !

Total 67

2 1

'

306 1.349

261

!

1.211

! 938 26

500

p. 44. Poro 1969: "Pesquisa sobre os Candomblés de S a l v a d o r " ,

0 dono, 0 dono, p.

dirigida por Vivaldo da Costa L i m a , CEAO, 1960-1969, apud J. T. dos Santos, Baiana do Culto Afro-Brasileiro (Barbosa, 1984), apud J. T. dos Santos,

p. 21. Para 1981: Federação 21. Para 1983: adaptado dos

dados da pesquisa realizada pela S I C - I P A C na Região Metropolitana de Salvador, apud J. T. dos Santos,

0 dono,

p. 19. Para 1992: Livros de registros, Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro, Salvador, jun., 1992. Para 1998: Mott e Cerqueira,

As religiões,

Esses dados devem

p. 13.

ser tomados

com cautela, já q u e as a u t o d e n o m i n a ç õ e s

de nação p o r vezes r e s p o n d e m mais aos interesses de legitimação dos líderes q u e a u m efetivo v í n c u l o de d e s c e n d ê n c i a religiosa. Por e x e m p l o , na estatística de 1998 há terreiros c o m n o m e s q u e i n c l u e m t e r m o s a p a r e n t e m e n t e jejes, c o m o o Ilê Savaluê de Azanssun, na Liberdade, ou o Ilê Axé Gêge, que se declaram ketus. T a m b é m há terreiros q u e se declaram jejes, mas q u e têm "donos da casa" pertencentes a outras nações ou cuja filiação a candomblés jejes seria questionável. Apesar dessas n u a n ç a s , a tabela m o s t r a u m claro d e c l í n i o da p o r c e n t a g e m dos terreiros jejes ao l o n g o d o século. D e s d e os a n o s 1930, q u a n d o os jejes tin h a m u m a p r e s e n ç a s i g n i f i c a t i v a d e 13%, até as d é c a d a s d e 1980 e 1990, em q u e eles r e p r e s e n t a m s o m e n t e cerca de 2% o u 3 , 6 % , a t e n d ê n c i a t e m sido

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L U I S N I C O L A U P A R ÉS

baixar. Esse f a t o se deve, em p a r t e , à g r a n d e e x p a n s ã o de t e r r e i r o s o c o r r i d a a p a r t i r dos a n o s 1970, q u a n d o m u i t o s t e r r e i r o s sem filiação religiosa d e f i n i d a se d e c l a r a m k e t u s p o r ser essa "nação" a de mais prestígio e visibilidade social. Isso explicaria o 0 , 2 % d o s jejes, e m 1981, q u a n d o as casas k e t u s a p r e s e n t a m um grande crescimento, chegando a atingir quase 50%. C o m o declarava a f i n a d a R u n h ó , "os terreiros de Gege a c a b o u " , p e r c e p ç ã o nostálgica c o m p a r t i l h a d a por humbono

V i c e n t e , q u e m a f i r m a v a q u e "na Bahia

o jeje já foi. H o j e n i n g u é m sabe r e s p o n d e r às cantigas". 1 7 5 A m e m ó r i a d o rito jeje está se p e r d e n d o , m a s , p a r a d o x a l m e n t e , a "nação" jeje a i n d a d e s f r u t a de g r a n d e prestígio entre o p o v o - d e - s a n t o e de u m a presença n o s meios de c o m u n i c a ç ã o , p r i n c i p a l m e n t e a i m p r e n s a , c o m p a r á v e l à das n a ç õ e s n a g ô - k e t u s o u c o n g o - a n g o l a s . E m p a r t e isso se deve à v i s i b i l i d a d e social de t e r r e i r o s c o m o o B o g u m , mas esse p r e s t í g i o t a m b é m está e n r a i z a d o na p r ó p r i a h i s t ó r i a d o C a n d o m b l é , q u e r e c o n h e c e a tradição d o c u l t o v o d u m c o m o u m a das matrizes c o n s t i t u t i v a s dessa i n s t i t u i ç ã o religiosa. É difícil predizer a evolução f u t u r a da "nação jeje". Por u m lado, existe t o d o u m processo de revitalização dessa n a ç ã o nos terreiros j e j e - m a h i s d o Rio de J a n e i r o e de o u t r a s cidades d o Sul. Por o u t r o lado, em Salvador, o B o g u m está r e i n i c i a n d o suas atividades litúrgicas e, j u n t o c o m terreiros c o m o o H u n t o l o j i da f i n a d a gaiaku

Luiza em C a c h o e i r a ou o J i g e m i n de pai A m i l t o n n o C u r u z u ,

q u e t a m b é m d e s f r u t a m de certa v i s i b i l i d a d e social, p o d e m c o n t r i b u i r p a r a u m n o v o r e n a s c i m e n t o dessa i d e n t i d a d e de nação. C o m o já foi n o t a d o , vários p e s q u i s a d o r e s c o m o L o r a n d M a t o r y , L o p e z C a r v a l h o ou D i a s d o N a s c i m e n t o p u b l i c a r a m nos ú l t i m o s anos obras dedicadas a terreiros jejes, e t a m b é m o presente t r a b a l h o se inscreve nessa d i n â m i c a . Esse n o v o e c r e s c e n t e i n t e r e s s e n u m a n a ç ã o até agora p o u c o p e s q u i s a d a p o d e c o n t r i b u i r p a r a c o n s o l i d a r u m a t e n d ê n c i a q u e se p e r c e b e em c e r t o s setores d o p o v o - d e - s a n t o , q u e r e c l a m a m c o n t r a o n a g o c e n t r i s m o d o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o . N o m o m e n t o atual, a c o n s t r u ç ã o d e i d e n t i d a d e a p a r t i r de u m a " e s p e c i f i c i d a d e d i f e r e n c i a d a " q u e c o n t r a s t e c o m os r e f e r e n t e s d o m i n a n t e s p o d e ser vista c o m o u m a estratégia a l t e r n a t i v a p a r a i n c r e m e n t a r o a t r a t i v o e l e g i t i m a r o p r e s t í g i o de c e r t o s terreiros. N e s s e s e n t i d o , a t r a d i ç ã o d o c u l t o de v o d u m , c o m seus r e c o n h e c i d o s a n t e c e d e n t e s h i s t ó r i c o s e sua s i m u l t â n e a " r a r i d a d e " , é u m a o p ç ã o c o m u m p o t e n c i a l a i n d a p o r ser d e s e n v o l v i d o .

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LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA

HUNDÉ

NOTAS 1

2 1 I

5

6

8

Hunsi é sinónimo de vodúnsi. O termo agorensi, que utilizo ao longo deste trabalho, é pronunciado e grafado de várias maneiras: ogurinsi, agorinsi, ogorinse, ogorensi, ungoroci, gorência, angorense. Trata-se, provavelmente, de uma corruptela de angorâsi, a mulher (si) de Angorô, sendo este o nome da divindade cobra nos terreiros angolas, correspondente a Dan ou Bessen nos jejes e Oxumaré nos nagôs. Para uma discussão do termo e a possível interpenetração das tradições jeje e angola, ver cap. 7. Aguesi, 21/8/1996; gaiaku Luiza, 17/12/1998, 16/2/1999; Geninho, 5/3/2000. Registro de Óbitos, livro C23, n 2 460, FTFC. Gaiaku Luiza, 7/11 /1999. Dere Isidora era prima carnal da mãe de Luiza: gaiaku Luiza, 5/5/2003. Aguesi, 9/8/1996; gaiaku Luiza, 17/12/1998, 8/8/2001 Os títulos dofona, dofonitinha, fomo, etc. indicam a ordem de entrada no grupo de iniciados e a sua ordem de preparação ritual e comportam diferentes graus hierárquicos: o primeiro a entrar é considerado o mais velho e o último, o mais novo (ver cap. 4). Gaiaku Luiza, 7/11/1999. Pelo menos Badesi Arcanja e Miúda de Kposu foram feitas no segundo barco. Para uma outra versão sobre a composição desse barco: Lopez de Carvalho, Gaiaku Luiza..., p. 82. Gaiaku Luiza mencionou também os nomes de Luzia Moreira de Azonsu ou Avimaje (3/1/2000) e de Norberta de Iemanjá (5/5/2002). C o m o vemos, aparecem várias vodúnsis a mais das vinte de que teoricamente constariam os dois barcos. Essa diferença ocorre porque a lista apresentada por gaiaku Luiza pode incluir rodantes mais antigas da Roça de Cima, como deré Custódia de Oiá, ou rodantes iniciadas em outros terreiros (talvez o Bogum) que, por qualquer motivo, acabaram se encostando no Seja Hundé. O fato de aparecer na lista duas dofonas teria a mesma explicação e não implica necessariamente a existência de um terceiro barco. Gaiaku Luiza, 17/12/1998, 7/11/1999. Geninho menciona nesse grupo de cinco o alabe Leardino, talvez o mesmo Ermírio: Geninho, 23/6/2000, 5/5/2002. Gaiaku Luiza, 7/11/1999; Geninho, 5/3/2000.

'' Segundo humbono Vicente, era Virgilio de Oxóssi e tinha quitanda no Gravata: 13/11/1999. 10 Humbono Vicente, 22/8/1999. Kelé é um colar ritual que os neófitos usam durante a iniciação; indica a sujeição e obediência à divindade e à mãe-de-santo. II Ver, por exemplo, "Ubaldino de Assis e pleito presidencial", A Ordem, 1 5/3/1922, ARC. 12 Gaiaku Luiza, 17/12/1998, 29/7/1999. 13

Gaiaku Luiza, 17/12/1998; humbono Vicente, 19/2/1999, 16/1/1999. Segundo seu Geninho, ogã Caboco faleceu em Belo Horizonte, em 1977, com 77 anos (5/5/2002). Geninho, apud Lopez de Carvalho, Documento..., pp. 8-9.

15

Humbono Vicente, 29/4/1999, 3/7/2000. '' Aguesi dizia que foram quinze anos-, gaiaku Luiza afirmava que foram onze anos; ainda, Geninho diz que foram só sete: Aguesi, 9/8/1996; gaiaku Luiza 17/12/1998, 16/8/1999. Gaiaku Luiza, 7/1 1/1999.

18 19

Braga, A gamela..., p. 22. Ver também, Lúhning, 'Acabe...". Dias do Nascimento, A capela..., p. 16. Matory comenta sobre essa iniciativa de Aninha, atribuída também por certos pais-de-santo a Joãozinho da Gomeia ou Procópio: Matory, Black Atlantic..., p. 186.

261

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Gaiaku Luiza, 3/1/2000. Lopez de Carvalho, Documento..., p. 6; confirmado por gaiaku Luiza, 16/8/1999, 7/1 1/1999. Dias do Nascimento, 16/2/1999. A sucessão foi confirmada por humbono Vicente, 19/2/1999. Turner, Schism... Aguesi, 20/8/1996. Segundo ogã Boboso, Epifânio Santa Rita foi o pejigã de Abalhe. Geninho, 22/1/2000. Em outra ocasião sugeriu que foi a mesma Ludovina quem "fez o trabalho" em Abalhe, 5/5/2003. Ogã Boboso, entrevista 4/2/1999. N o Seja H u n d é , em 26/12/1999, c a n t a r a m uma cantiga na parte de Bessen, em que se mencionava o nome abalha. Humbono Vicente também falava abalha, e não confundir com Abale ou Balé, que seria uma "qualidade" de Oiá (humbono Vicente, 7/12/1999). Ogã Joãozinho, da casa de humbono Vicente, dizia que a pronúncia correta é abalié (Joãozinho, 16/4/1999). No Benim, agbalia pode designar a "recade" ou cetro do Rei Tegbesu (Glélé, Le daxomé..., p. 56); porém, o termo corresponde mais provavelmente a agbálè, nome dado à filha nascida logo depois da iniciação da sua mãe ou seu pai num convento Sakpata (Segurola, Dictionnaire..., p. 17). Registros de Óbito, vol. C37, n" 4.771, FTFC. Mãe Baratinha sustentava que ela era natural de Castro Alves (Dias do Nascimento, 25/6/1999). Ogã Boboso também conta que o casal Brechó-Abalhe morou no primeiro andar de um sobrado conhecido como Sete Portas, perto do atual mercado (entrevista 4/2/1999). Na parte superior da fachada tem uma águia de pedra, que alguns dizem ser um urubu ou a garça, na qual Zé de Brechó se transformava (dona Anália, 2/3/1999). Essa hipótese é questionável, já que a casa Sete Portas só foi construída em 1902, ano da morte de Zé de Brechó. Segundo gaiaku Luiza, era Salaco, irmão de Zé de Brechó, quem morava lá {gaiaku Luiza, 7/11/1999). Ogã Boboso, 7/11/1999; Dias do Nascimento, Candomblé..., p. 18. Seu Geninho, 5/3/2000; humbono Vicente, 7/12/1999. C. Castro, Miguel Santana..., p. 27. Ibidem. Dona Francesa Arlinda da Silva, Cachoeira, entrevista 4/2/1999. Humbono Vicente, 19/2/1999, 1 1/7/2000. Em 1996, ogã Boboso falou ter sido confirmado 60 anos atrás, isto é, em 1936, enquanto seu Bernardinho falou de 50 e poucos anos, portanto no início da década de 1940. Ogã Boboso teria nascido em 8 de dezemb r o de 1912 (ogã B o b o s o , 1 6 / 2 / 1 9 9 9 ) .

Todavia gaiaku Luiza menciona os ogãs Nozinho, Gregório e Matias e as equedes Nininha e Mareeiina (gaiaku Luiza, 7/11/1999, 3/1/2000). O g ã j e n i n h o , da Casa Branca, diz que seu pai Benzinho foi ogã do Seja H u n d é (14/6/2001). Aguesi, 20/8/1996; ogã Boboso, entrevista 4/2/1999; Geninho, 1/2/2000. Gaiaku

Luiza, 3/1/2000, 26/9/2000.

O líder desse terreiro, Manoel Cirqueira de Amorim, apelidado de Nezinho do Portão, foi criado por tio Anacleto, no terreiro nagô do Capivari, mas sua ascendência religiosa estava estreitamente ligada ao Gantois de mãe Menininha, em Salvador. Ele também participava com assiduidade nas festas e rituais funerários do Uê Axé O p ô Afonjá (Kadia Tali, 26/4/1999; Gaiaku Luiza, 25/6/1999; Dias do Nascimento, 22/6/2000; D. M. dos Santos, História..., pp. 29, 32). Humbono Vicente, 8/10/1998; Gaiaku Luiza, 17/12/1998; ogã Boboso, 18/12/1998. Ogã Boboso, 7/1 1/1999. R e g i s t r o s de Ó b i t o , vol. C 3 7 , n a 4.771, FTFC.

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LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA

Humbono

HUNDÉ

V i c e n t e , 2 2 / 8 / 1 9 9 9 ; 13/1 1/1999.

Everaldo Duarte, 23/8/1996. F i c h a n a 1, C E A O ,

17/1/1961.

O u t r o dos títulos utilizados no jeje para designar a mãe-de-santo ou chefa da casa (ver cap. 8). Everaldo D u a r t e , 10/11/2001. Informações obtidas de equede Santa. Equede Santa, Salvador, entrevista 1981; Everaldo D u a r t e , 13/12/1998, 21/4/1999. Infelizmente, a pesquisa para achar alguma referência a Manoel da Silva nos processos da justiça depositados no APEBA resultou i n f r u t í f e r a . O ogã Batuta da Casa Branca comentou que Manoel da Silva foi também ogã da Casa Branca, o que indicaria uma interessante fluidez de relações entre o Bogum e o terreiro nagô-ketu, mas numa outra ocasião não c o n f i r m o u essa versão: ogã Batuta, 3/6/1999; 8/10/1999. F i c h a n 2 1, C E A O ,

17/1/1961.

Everaldo Duarte, 13/12/1998. Everaldo D u a r t e lembra ter ouvido dizer que em tempos de Valentina um padre com duas virgens foi benzer o terreiro (10/1 1/2001). F i c h a n 2 1, C E A O ,

17/1/1961.

Everaldo D u a r t e , 23/8/1996. Ficha n 2 1, CEAO, 17/1/1961. O antigo barracão, chamado "bosteiro" por ter o chão de terra batida misturada com esterco de bovinos, folha de pitangueira e caroço de dendê (]. de Carvalho, Reinvenção..., p. 37; Everaldo D u a r t e , 13/12/1998). Lopes, "Exéquias...", p. 559. N o mesmo ano de 1937, q u a n d o Correia Lopes foi visitar a Casa das M i n a s de São Luís, c o n t a que se apresentou à mãe Andresa d i z e n d o "Sei cantigas geges da Baía", n o t a n d o entre parênteses "(Sabia p o u c o , ainda não estava reconstituído, ao t e m p o , o Bogum do E n g e n h o Velho)". Esse c o m e n t á r i o confirma que, em s e t e m b r o de 1937, o B o g u m estava em obras e sugere u m a reabertura do terreiro ou pelo menos u m f u n c i o n a m e n t o precário antes dessa data (Lopes, "A p r o p ó s i t o . . . " , p. 79). Segundo humbono Vicente, Tiana Gege era de O x u m e morava na Barroquinha. O Exu e a O x u m dela ainda estariam assentados no Bogum (humbono Vicente, 13/9/2000). Lopes, "Exéquias...", p. 559. Em 1945, confirmava que o Bogum "tem filial em Cachoeira" ("Os trabalhos...", p. 53). "Rascunhos de filhos dos terreiros de seita africanas e cabocla existentes na Bahia", manuscrito produzido por Deoscóredes Maximiliano dos Santos para o CEAO em 1966. No registro n 2 532, datado em 25/9/1946, consta que Emiliana tinha 75 anos — o que colocaria seu nascimento em 1871 —, mas ao lado está escrito "6/1/1867" como provável data de nascimento. Por outro lado, sabemos que Emiliana faleceu em 1950 e, segundo R u n h ó , estaria com 92 anos de idade — o que colocaria seu nascimento em 1 8 5 8 (ver n. 7 3 ) . Humbono Vicente, 12/11/2001; gaiaku Luiza diz que Emiliana é "filha de Aman Beunim Ló" (CEAO, 2° Encontro..., p. 70). Segundo Everaldo Duarte (10/11/2001), Emiliana era de Bafono e tinha o título de Donaci. Deoscóredes dos Santos, no registro n 2 532 do já citado manuscrito Rascunhos de filhos dos terreiros de seita africanas e cabocla existentes na Bahia, registra "Miliana de O g u n " . Valéria Auada, "A rica história dos terreiros de candomblé da Bahia que o tempo ameaça destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987. Humbono Vicente, 3/7/2000, 22/9/2001, 12/1 1/2001; Everaldo Duarte, 27/1 1/1999, 23/8/1996, 13/12/1998. Ogã Boboso diz que Emiliana foi feita antes de Abalhe, junto com Tatiana Fateira, falecida em 1869. Outras informações

263

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

menos confiáveis apontam Emiliana como irmã-de-santo de Abalhe e Romana e, portanto, filha-de-santo de tio Xarene e/ou Brechó. Humbono Vicente, 18/1/1999, 12/1 1/2001. Humbono Vicente, 8/9/2001. Estatutos da Sociedade Afro-Brasileira Fiéis de São Bartolomeu, publicados no Diário Oficial nm 10.777 e 10.778, em 16 de outubro de 1977. Carneiro, Candomblés da Bahia..., pp. 44-45, 64. Herskovits e Herskovits, "Afro-Bahian religious songs...". Valéria Auada, "A rica história dos terreiros de candomblé da Bahia que o tempo ameaça destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987. Everaldo Duarte, 13/12/1998; "Cirrum começou no Bogum e Gamo é a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975. Outras informações datam a saída em 1941 ou 1938: "Sepultada mãe-de-santo d o mais antigo terreiro jeje", A Tarde 6/10/1994; " M u n d o jeje comemora cinquentenário de sua mãe-de-santo", A Tarde, 26/7/1988. Considero 1940 a data mais provável da saída desse barco. Everaldo Duarte, 13/12/1998. Tomázia de O x u m era sobrinha de Regina de Oxum, por sua vez vinda do terreiro Pó Zerrem (equede Santa, entrevista 1981). A Oxum de Tomázia suspendeu Everaldo Duarte como ogã (Everaldo Duarte, 27/11/1999). Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 3/1/2000. Esse barco não consta no organograma de Everaldo Duarte. Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 3/1/2000. Luiza Franquelina da Rocha tinha sido iniciada no rito ketu em 1937, no Ilê Ibece Alaketu de Nezinho do Portão, e tinha já preparado alguma filha-de-santo no rito angola e ijexá em 1944. A feitura de Luiza no rito jeje foi concluída por Romana fora do Bogum e um ano depois, em 1945, "recebeu a posse" (decá) das mãos de Romana, na presença de algumas filhas-de-santo de Maria Agorensi (não de Abalhe). Luiza falava que sua santa (Oiá) não aceitou ficar "nem no oriente, nem no poente", referindo-se ao Seja Hundé e ao Bogum, e ordenou que abrisse o próprio axé. Por um tempo funcionou na sua casa particular, no bairro da Liberdade, até que em 1952 conseguiu abrir candomblé no Cabrito, passando a ser conhecida como gaiaku Luiza. Everaldo Duarte, 13/12/1998, 27 /11/1999. A qualidade do Ossaim de Luizinha não era Agué, sendo provavelmente uma qualidade nagô. Equede Santa, entrevista 1981; humbono Vicente, 23/2/1 999. Nicinha também comentava ter ouvido falar de outros ogãs antigos da casa "filhos de africanos", citando os nomes de Romão, Basilio, Mariano e Bonifacio ("Terreiro Bogum, testemunho vivo da resistencia jêje \ Jornal AfroBrasil, ano 2, n" 37, 6-12/1 1/1985, p. 12). Everaldo Duarte, 13/12/1998; Duarte, "O terreiro...", pp. 19-22. Pierson, Brancos e pretos..., 27/11/1999.

p. 324; Carneiro, Candomblés...,

p. 45; Everaldo Duarte,

Equede Santa, entrevista 1981. Nos anos 1930, parece que Emiliana também ajudou Manuel Ciriáco de Jesus a iniciar, em Santo Amaro, seu primeiro barco nos preceitos da nação jeje, embora Ciriáco viesse a ser conhecido mais tarde como líder do terreiro Tumbajuçara, de nação congo-angola (Cleo Martins, 17/8/2003). Em 3/3/2000, gaiaku Luiza me mostrou o cartão de in memoriam de Maria Emiliana da Piedade, falecida ao 10/11/1950. Em janeiro de 1961, Runhó declarava: "Emiliana morreu há 10 anos e tinha 92 de idade" (ficha nQ 1, CtAo, 17/1/1961). Humbono Vicente, 19/2/1999.

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HUNDÉ

Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 3/1/2000. Everaldo Duarte lembra que um grupo liderado por equede Raimunda e ogã João Bernardo também contestou as aspirações de Runhó. Gaiaku Luiza, 16/2/1999; humbono Vicente, 7/12/1999. Segundo humbono Vicente (23/2/1999), as obrigações foram realizadas em Cachoeira. Já segundo Everaldo Duarte (16/2/2003), elas foram realizadas no Bogum, em presença de Romana. Humbono Vicente, 23/2/1999. Humbono Vicente, 4/5/1999; gaiaku Luiza, in CEAO, 2°- Encontro..., p. 70. Humbono

Vicente, 6/12/1998, 4/5/1999.

Humbono Vicente, 23/2/1999. Gaiaku Luiza, 28/1/1998. Conta-se que, nas terras do Batefolha, há um assento de Azonsu que seria anterior à fundação do terreiro por Manoel Bernardino da Paixão em 1916. Talvez Romana fosse chamada para tomar conta das obrigações desse antigo assento de nação jeje. Bernardino faleceu em 1946 (gaiaku Luiza, 2/3/2000). Everaldo Duarte, 13/12/1998. Ibidem. Gaiaku Luiza, 28/1 1/1998. Humbono Vicente, 23/2/1999. Segundo gaiaku Luiza, a data do óbito seria 16 de outubro de 1956; já segundo Lopez de Carvalho, seria 23 de outubro de 1956. Humbono Vicente, 23/2/1999. A chave parece que passou primeiro pela mão de ogã João Bernardo, que, juntamente com equede Raimunda, se o p u n h a m à sucessão de Runhó, mas foi depois recuperada por Antonio Monteiro, que a entregou à nova doné (Everaldo Duarte, 21/10/2002). Gaiaku Luiza, 17/12/1998; Dias do Nascimento, 23/1/1999; humbonoVicente, 19/2/1999. Everaldo Duarte, 13/12/1998. Ibidem; humbono Vicente, 18/1/1999. Everaldo Duarte, 1 3/12/1998; Jaime Montenegro, 10/8/1999. "Cirrum começou no Bogum e Gamo e a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975. R u n h ó estava com 98 anos q u a n d o faleceu, em 1975. Nessa ocasião, numa primeira notícia em A Tarde, fala-se que Nicinha ia celebrar o 66 a aniversário, mas, numa nota do mesmo jornal, ao dia seguinte, fala-se em 64 anos: " R u i n h ó quer mato e rio para 'voduns' do Bogum", A Tarde, 5/12/ 1975; "Calam-se atabaques do Bogum: começa o ' C i r r u m ' por Ruinhó", A Tarde, 29/12/1975; " C i r r u m começou no Bogum e Gamo É a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975; ficha n* 1, CEAO, 17/1/1961; Everaldo Duarte, 4/1/1999. Gaiaku Luiza, 17/12/1998. "Em breve chegou, do lugar do sacrifício, a ordem, que uma voz. feminina repetiu: 'Mêrê dó ji' (Hanji, cantar). E o coro principiou" (Lopes, "Exéquias...", p. 560). Segurola, Dictionnaire..., p. 250. Neném de Mello, 3/11/1999. F i c h a n a 1, C E A O ,

17/1/1961.

Equede Santa, entrevista 1981; "Acabado Cirrum, o Bogum fica fechado por um ano", A Tarde, 5/1/1 976; Jorge Amado, "A solidão do povo jeje", Manchete, 7 / 2 / 1 9 7 6 , p. 38. Ficha nE 1, CEAO, 17/1/1961. Capone, La quête, pp. 126-27. Segundo Everaldo Duarte, essa iniciação foi mais recente (21/10/2001).

265

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

01

Ficha n u 1, CEAO, 17/1/1961.

02

Everaldo D u a r t e , 27/1 1/1999. N o o r g a n o g r a m a de D u a r t e , a data do ú l t i m o barco é 20/10/1974, mas Ivone de Ogum (Ogunsi) cumpriu, em 20 de outubro de 1998, 26 anos de feita, sendo humbono Vicente o pai-pequeno (Ogunsi, humbono Vicente, 8/10/1998). " M ã e R u i n h ó vai bem, graças aos orixás", Jornal da Bahia, 23/9/1975.

03 04

J o r g e A m a d o , "A solidão do povo jeje", Manchete, 7/2/1976, p. 38; "Ruinhó quer mato e rio para 'voduns' do Bogum", A Tarde, 5/12/1975; "Calam-se atabaques do Bogum; começa o 'Cirrum' por Ruinhó", A Tarde, 29/12/1975; J. de Carvalho, "Nação...", p. 58. "Acabado C i r r u m , o Bogum fica fechado por um ano", A Tarde, 5/1/1976; "Sucessão" e " C i r r u m começou no Bogum e G a m o é a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975. 1,6 " C a n d o m b l é do B o g u m faz festa em h o m e n a g e m ao prefeito da cidade", A Tarde, 20/2/1979, humbono Vicente, 7/12/1999. " " C i r r u m começou no Bogum e G a m o é a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975; " M u n d o Jeje c o m e m o r a c i n q u e n t e n á r i o de sua mãe-de-santo", A Tarde, 26/7/1988. 08 Everaldo D u a r t e , 16/2/2003. 09 J. de Carvalho, Reinvenção..., p. 37. Projeto MAMNBA (relatório e outros documentos). Prefeitura M u n i c i p a l de Salvador, Casa Civil, G r u p o de C o o r d e n a ç ã o de Assuntos Culturais, 1981-1985. Nos estatutos da Sociedade Afro-Brasileira Fiéis de São Bartolomeu (fundada em julho de 1937), publicados no Diário Oficial n - 10.777 e 10.778 em 16 de o u t u b r o de 1977, assinaram Edvaldo dos Anjos Costa c o m o presidente, Everaldo Conceição Duarte como vice-presidente, Ailton Conceição Nascimento como I a secretário, Renato Gonzaga dos Santos como 2° secretário, H a m i l t o n Domingos dos Anjos Melo como l 2 tesoureiro, Celso Santana como 2 a tesoureiro e, como membros do Conselho Deliberativo, Lydio Pereira de Santanna, Roverval José Marinho, Celestino Augusto do Espirito Santo, Jorge Antonio Fontes Santos e Jorge Gusmão dos Santos. 10 22, 23 e 25 de julho de 1986, A Tarde; J. de Carvalho, Reinvenção..., p. 37. 11 J. de Carvalho, Reinvenção, p. 38. 12

"Pierre Verger comenta reportagem sobre Jêje", A Tarde, 31/7/1988.

13

Segundo a imprensa, N i c i n h a faleceu com 83 anos; "Sepultada mãe-de-santo do mais antigo terreiro jeje", A Tarde, 6/10/1994; "Terreiro do Bogum inicia cerimónias de preparação" , A Tarde, 7/10/1994.

"' Ficha n" 1, CEAO, 17/1/1961. 15 Humbono Vicente, 19/2/1999. 16

Lopez de Carvalho, D o c u m e n t o . . . , p. 11.

1

Após fechar o candomblé do Cabrito em Salvador, gaiaku Luiza voltou a Cachoeira em o u t u b r o de 1961. A pedido de Oiá e com a ajuda material do pai, seu Miguel, em 1962, gaiaku Luiza comprou, por 176 cruzeiros, as terras da nova roça e celebrou algumas missas. Em 1964, com o jogo de búzios realizado por humbono Vicente, determinou o que correspondia a cada atinsa, realizando-se as primeiras obrigações. Em 1966 m o r r e u o pai e, em 1967, ela viajou a São Paulo e Rio de Janeiro, onde ficou até 1970. Neste ano, realizou a primeira confirmação de uma equede no H u n t o l o j í e começou a bater tambor. Foi só em 1980 que recolheu o primeiro barco e que humbono Vicente plantou o axé do abassa (gaiaku Luiza, 16/8/1999, 7/11/1999, 3/1/2000).

18

B e r n a r d i n o , 16/2/1999. Ogã Boboso, 16/2/1999, 7/1 1/1999. Luis M a g n o , entrevista 4/2/1999; gaiaku Luiza, 28/1 1/1998. S e g u n d o humbono Vicente, Pararasi preparou apenas um barco (16/1/1999, 1 1/7/2000). Segundo seu Geninho, Alda e Alaíde perten-

266

LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA D O S TERREIROS BOGUM £ SEJA

HUNDÉ

ciam ao primeiro barco, que seria então de sete vodúnsis (Geninho, 1 a /2/2000, 5/3/2000); segundo Aguesi, Alaíde era fomotinha e irmã de esteira de um fominho (sic) de Azonzu (Aguesi, 20/8/1996). Luiz Magno, entrevista 4/2/1999, Dias do Nascimento, 23/1/1999. 120 Gaiaku Luiza, 6/5/2003. 121 Luiz Magno, por exemplo, atribui a morte da sua mãe, um ano depois, aos erros dessa iniciação (Luiz Magno, entrevista 4/2/1999). 122 Humbono Vicente, 16/1/1999; ogã Iasana do Seja H u n d é , 23/6/1999. 123 Antonio Moraes, 14/11/2004; humbono Vicente, 11/7/2000, l t t /l/2001. Lopez de Carvalho afirma, sem citar a fonte, que o falecimento aconteceu em 3 de março de 1969, em Salvador: Lopez de Carvalho, Gaiaku Luiza..., p. 50. Bernardinho também diz que Pararasi faleceu em Salvador (23/6/1999). 124 Segundo humbono Vicente, a roça fechou durante 1 5 anos, o que parece ser um período excessivo. 125 HumbonoVicente, 16/1/1999, 19/2/1999, 13/11/1999. !2Í ' Gaiaku Luiza, 16/2/1999. !27 Olu A yé, "Nação Jeje Marrym perde gaiaku Agu esse 1900-1998", Orixás & Africanos, n a 45, ano XI, 1998 (Rio de Janeiro), p. 3. 128 Humbono Vicente, 19/2/1999, 30/6/1999. 129 Ogã Joãozinho, 16/4/1999; gaiaku Luiza, 7/11/1999. 130 Olu Ayé, "Nação Jeje Marrym perde gaiaku Aguêse 1900-1998, Orixás & Africanos, n 2 45, ano XI, 1998 (Rio de Janeiro)", p. 3. 131 Humbono Vicente, 23/2/1999, 6/10/2001. 1,2 Conferências de Nilton Feitosa sobre o Candomblé do Rio, apud Capone, La quête..., p. 125. O Kwe Simba, ainda na ativa, seria de nação jeje kaviono ou alternativamente axépodaba. Rozenda foi sucedida por Natalina de Aziri Tobosi e depois pela líder atual, Helena de Oxumaré (dona Nancy de Souza e Silva, 27/8/1999). Algumas das características da nação podaba seriam o culto de divindades como o vodum Jo, um tipo de Iansã, ou o vodum Gotolu, um tipo de Oxóssi; a ausência do culto de Badé ou Averekete (o que questionaria a suposta pertença dessa casa à nação jeje kaviono); a iniciação de noviços para Ogum Xoreque (o que não ocorre no rito jeje-mahi); e os cantos para Ogum e Nanã em "jeje" (não em nagô, como no rito jeje-mahi) (Eduardo de Olissá, Cachoeira, 26/12/1999). 131 V. G. da Silva, Orixás..., p. 91. Também em São Paulo funciona o Dâmbalá Kuere-RhóBecem Akóy Vodu, terreiro de pai Dancy. Embora iniciado na tradição do Vaudou haitiano, pai Dancy foi outro dos assíduos participantes do Seja Hundé, nos últimos anos. 13 ' Dadu de Olissá, 26/12/1999; pai Francisco, 26/12/1999. 131 Gaiaku Luiza, 22/6/1999; Orixás ér Africanos (órgão oficial de divulgação do culto e da cultura afro-brasileiras), n e 45, ano XI, 1998, p. 15. 1,6 Sobre a passagem da Umbanda para o Candomblé em São Paulo, ver Prandi, Os candomblés.... Para uma análise da dinâmica competitiva que se dá no processo de "reafricanização" entre aqueles que procuram a raiz da tradição na Africa e aqueles que a procuram na Bahia, ver V. G. da Silva, Orixás...-, Capone, La quête...-, Parés, "The nagôization...". lr "Arrecadação da propriedade de Maria Julia Figueiredo, 1890", 03/101 1/1480/20, APEB3. 138 Há menção das terras do Comendador Bernardo Martins Catharino na Vitória pelo menos desde 1930: "Inventário de Joaquim José da Silva Fialho, 1930", 6/2366/2866/2,

267

L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Porém, não há menção dessa propriedade no testamento da sua mulher ("Testamento de Úrsula Martins Catarino, 1922", 7/2950/0/8, APEBa). C a r t ó r i o do l 2 O f í c i o de Registro de Imóveis de Salvador, apud Maia, "Projeto Fundiário...", documentos vários. "Bogum quer tombamento para preservar o seu bissecular terreiro", A Tarde, 24/7/1986. Everaldo Duarte, 1 l / l 1/1999. Ficha n 2 1, CEAO, 17/1/1961. "Ruinhó quer mato e rio para 'voduns' do Bogum", A Tarde, 5/12/1975. "Mataram árvore africana adorada no terreiro Gêge" (jornal não identificado), 1978; "Locose toma assento na cadeira de Ruinho", A Tarde, 6/1/1979; J. de Carvalho, Reinvenção..., p. 69; Valéria Auada, "A rica história dos terreiros de candomblé da Bahia que o tempo ameaça destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987. Nesse artigo de jornal, ogã Celestino data a venda do terreno em 1977, mas, segundo Duarte, os problemas com o muro e o lixo deram-se com o terreno de Azonodo; portanto, sua venda aconteceu depois de 1978 (Everaldo Duarte, 22/9/2001). "Candomblé do Bogum faz festa em homenagem ao prefeito da cidade", A Tarde, 20/2/1979. "Projeto de Lei n u 3.591/85"; cf. Projeto MAMNBA (relatório e outros documentos). Prefeitura Municipal de Salvador, Casa Civil, G r u p o de Coordenação de Assuntos Culturais, 1981-1985. "Terreiros querem proteção para manter culto a orixás", A Tarde, 10/12/1985. "Terreiros querem proteção para manter culto a orixás", A Tarde, 10/12/1985. Everaldo APEBa.

1,9

140 141 142 143 144

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Duarte, 148 149

1511 ,SI

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111

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l2/8/l999.

"Bogum quer tombamento para preservar o seu bissecular terreiro", A Tarde, 24/7/1986. "Gil vai lançar campanha para recuperar terreiros", Tribuna da Bahia, 13/3/1987; "Campanha para recuperar terreiros de candomblé", A Tarde, 13/3/1987; "O chamado do Bogum", Jornal da Bahia, 18/3/1987; "A rica história dos terreiros de candomblé da Bahia que o tempo ameaça destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987; "Trono de Ruinhó", Cidade da Bahia, 28/8/1993; "Decreto de Lídice autoriza m o n u m e n t o à Revolta dos Malês", Diário Oficial do Município, ano VIII, n a 1.145, 22/1 1/1993. Em 2001, graças à iniciativa de Everaldo Duarte, Gilberto Leal e Raul Lody, o Bogum consegue novos recursos da Fundação Palmares para a restauração do terreiro, viabilizando assim a sua reabertura em 2002. "Seção Serviço Total", A Tarde, 19/1/1973. "Bogum quer tombamento para preservar o seu bissecular terreiro", A Tarde, 24/7/1986; "O chamado do Bogum", Jornal da Bahia, 18/3/1987. Considerando o século XX, estatísticas levantadas em 1983 mostram que o percentual de líderes masculinos que se declaravam jejes constituía importantes 40%, contra 60% de líderes femininas (J. T. dos Santos, O dono..., p. 19). Também citado por Matory, Black Atlantic..., p. 230. Freyre, Casa-grande..., p. 283; Matory, Black Atlantic..., pp. 191-207, 229-30; Carneiro, Candomblés..., pp. 96-98; Landes, "A cult...", pp. 386-97. Ver também Dantas, Vovó..., cap. 4; Parés, " T h e nagòization...". Rodrigues, Os africanos..., pp. 230-34. Lopes, "Exéquias..."; Carneiro, Candomblés..., pp. 45, 64. Ficha s.n., CEAO, s.d. [1961-1968]. Entrevista com Falefá realizada por Vivaldo da Costa Lima. Na seção "ascendência religiosa", constam os nomes de Maria Julia (Duke)

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LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA

HUNDÉ

de Oxum e do "pai de santo Manoel [ou] José Domingos, de Ogun (24 anos de morto) (Ife) (Jakáibê)". Na mesma ficha, menciona-se a Maria Nenem, famosa mãe-de-santo da nação angola que teria pretendido iniciar Falefá, mas "o santo fugiu, não aceitando os cargos da nação" (Itamoacy da Costa, 13/12/1998). 1,7

F i c h a s . n . , CEAO, s . d .

[1961-1968].

158

No século XVIII, em Uidá, por exemplo, Labat documenta beta como o nome atribuído às vodúnsis do vodum-cobra Dangbe (Voyage..., vol. II, p. 188). O padre Steinmetz, em relação à etimologia do termo Nesuhue no Benin, reporta o uso da expressão Lensu-hue Kpo-vêta, que significaria a casa (hué) do grande (su) Len, filho da pantera (kpo) da cabeça (ta) vermelha (vê) (Falcon, "Religion...", p. 143). No panteão da família de Sogbo, também é conhecido o vodum Abetá Yoyo (gaiaku Luiza, em CEAO, 2" Encontro..., pp. 70, 75). 159 M. V. dos Santos, "O mundo...". 160 Itamoacy, 13/12/1998; Gambovi, sobrinha de Manoel Falefá, 6/12/1998. Gaiaku Luiza, em CEAO, Encontro..., pp. 73-74; Mott E Cerqueira, Candomblés..., p. 157. Existem dúvidas quanto à ascendência religiosa de Sibeboran. Segundo Yeda Machado, ela foi feita no Ketu; era amiga da casa de Falefá, mas não era filha de santo dele. Segundo um ogã da casa, ela teria sido efetivamente feita por Falefá, em São Caetano. Esse ogã acrescenta que o nome português de Sibeboran era Josefina (13/12/1998). 162 Jaime Montenegro, 10/8/1999. Todavia, no trabalho de campo ouvi falar de nagô-agabi (em relação a antigos terreiros do Recôncavo) (gaiaku Luiza, 26/2/2001). 163 Matory, Man..., pp. 211-13; cf. Pedro de Alcântara Rocha, entrevista 10/9/1992; pai Amilton, 26/12/1995. 164 Jaime Montenegro, 10/8/1999. 165 Pai Amilton, entrevista 26/12/1996. 166 Luiz Magno, entrevista 4/2/1999. Segundo outra transcrição da entrevista, Averigã seria um nome de Oxaguian. 161 Gaiaku Luiza, 1996. No cap. 1, comentei a frequente associação que o povo-de-santo faz entre a denominação étnica efan ou efon (povo do país Ekiti, na área iorubá) e o etnònimo fon e a tendência a c o n f u n d i r esses terreiros com os terreiros jejes. 168 Ossorio, A ilha..., p. 130. Fico grato a Renato da Silveira que chamou minha atenção para a existência desse texto (16/6/2001). ir 9 ' D. M. dos Santos, História..., p. 14; Lima, A família..., p. 140; Herskovits e Herskovits, "Afro-Bahian...". ro Olga de Alakero, Salvador, entrevista 3/1/1996. 1 1 A primeira referência conhecida a "Antonio, vulgo Euxumaré" aparece no Diário de Noticias, 18/9/1911, p. 1 (apud M. L. A. dos Reis, A cor..., p. 133). Encontrei uma segunda reportagem referente ao "conhecido curandeiro Osumaré'' em A Tarde, 3/10/ 1922, p. 2. Em 1934, João da Silva Campos menciona entre "os feiticeiros mais antigos da Bahia de 1 875 para cá", os "mais temidos [...] Salocó, m u l a t o e A n t ô n i o Oxumaré (Cobra Encantada) crioulo" ("Ligeiras...", p. 305). Ficha s.n., CF.AO, 1960. 172 As informações sobre o relacionamento de seu Jacinto com dona Gotinha são de Milton Moura, l 2 /9/2001. 17i Lima, "O candomblé...", p. 41; cf. Carneiro, Religiões..., pp. 106-9. Em "Uma revisão na ethnographia religiosa afro-brasileira", trabalho apresentado no Congresso AfroBrasileiro de 1937 (p. 66), e em Negros bantos, Carneiro cita o candomblé do Oxumaré,

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na Mata Escura, "do pai-de-santo Jacinto" (Religiões..., pp. 166-67). Mas, como foi dito, Jacinto era apenas o marido de dona Cotinha. Verger, "Orixás da Bahia...", p. 208; Silvanilton da Mata, em CFAO, 2a Encontro..., p. 26. Dona Cotinha faleceu em 2 de julho de 1944. Durante um breve tempo, assumiu a chefia ou regência dona Francelina, até que, por volta de 1950, foi sucedida por Simplicia, que faleceu em 18 de setembro de 1967 (Milton Moura, l a /9/200l). Ficha n a 1, CEAO, 17/1/1961; humbono Vicente, 17/11/1994.

270

7

O PANTEÃO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

CULTOS D E M Ú L T I P L A S D I V I N D A D E S , P A N T E Õ E S E H I E R A R Q U I A S Após a r e c o n s t i t u i ç ã o m i c r o - h i s t ó r i c a dos terreiros j e j e - m a h i s de Salvador e C a c h o e i r a , passo a examinar seu sistema religioso, c o m e ç a n d o , neste capítulo, pelas entidades espirituais ou v o d u n s , e a dinâmica interna dos "panteões" em que elas são organizadas. R e t o m a n d o u m tema já a p o n t a d o no capítulo 4, na primeira parte d o c a p í t u l o analiso u m dos aspectos q u e c o n t r i b u í r a m de forma mais d e t e r m i n a n t e para o processo de progressiva complexidade ritual que se deu na institucionalização do C a n d o m b l é . Esse aspecto é a reunião, no seio de u m a m e s m a c o n g r e g a ç ã o religiosa, de cultos c o r r e s p o n d e n t e s a várias divindades, a c o n s e q u e n t e j u s t a p o s i ç ã o de diversos assentos n u m m e s m o espaço físico e a organização de f o r m a s de performance

seriada, para celebrar, si-

m u l t â n e a ou c o n s e c u t i v a m e n t e , essa pluralidade espiritual. Interessa, p o r t a n to, distinguir os cultos de múltiplas divindades a u m a só e n t i d a d e espiritual.

dos cultos monoteístas,

dedicados

1

Antes do século XIX n ã o há e v i d ê n c i a d o c u m e n t a l , na Bahia, de c o n g r e gações que cultuassem mais de u m a d i v i n d a d e , e m b o r a desse fato não se possa inferir sua i n e x i s t ê n c i a . C o m o já c o m e n t e i , a t r a d i ç ã o oral c o n s i d e r a q u e foi d u r a n t e a f u n d a ç ã o d o Ilê Iyá N a s s ô — o c o r r i d a , s e g u n d o os cálculos mais arriscados, na ú l t i m a década do século XVIII, ou, s e g u n d o os mais conservadores, nas p r i m e i r a s décadas do século XIX — q u e se p r o d u z i u , pela primeira vez na Bahia, a reunião simultânea de cultos de várias divindades n u m m e s m o terreiro. O r a , c o m o t a m b é m foi n o t a d o , o p r i m e i r o indício d o c u m e n tal de u m c u l t o de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s só aparece em 1858, q u a n d o , em u m c a n d o m b l é nas Q u i n t a s da Barra, no d i s t r i t o da V i t ó r i a em Salvador, a polícia e n c o n t r o u diversas vestes e e m b l e m a s r i t u a i s q u e s u g e r e m esse culto coletivo. 2

271

LUIS NICOLAU

P A R ÉS

A u t o r e s c o m o Verger ou Bastide, c o m p a r a n d o essa s i t u a ç ã o b a i a n a c o m e v i d ê n c i a s e t n o g r á f i c a s d o s c u l t o s de orixás da área i o r u b á , q u e pelo m e n o s no p a s s a d o p r é - c o l o n i a l e r a m d e c a r á t e r g e r a l m e n t e m o n o t e í s t a ( u m a ú n i c a divindade por templo ou congregação), concluem que a reunião n u m mesmo espaço físico de c u l t o s de d i v i n d a d e s de origens diversas, c o m o a c o n t e c e u n o Ilê Iyá Nassô, seria r e s u l t a d o de u m processo g e n u i n a m e n t e "crioulo" o u u m a i n o v a ç ã o e s s e n c i a l m e n t e brasileira, d e v i d o às novas c o n d i ç õ e s s o c i o c u l t u r a i s i m p o s t a s pela s o c i e d a d e escravista ao e n c o n t r o i n t e r é t n i c o de g r u p o s sociais h e t e r o g é n e o s e à n e c e s s i d a d e de e c o n o m i z a r e c o m p a r t i l h a r recursos em t e m pos d e o p r e s s ã o . O u t r o s a u t o r e s , c o m o J o ã o Reis, t ê m s u s t e n t a d o q u e a devoção aos vários s a n t o s p r a t i c a d a nas igrejas católicas t a m b é m servira c o m o m o d e l o o u r e f e r e n t e p a r a o e s t a b e l e c i m e n t o dos c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n dades n o C a n d o m b l é . 3 Sem negar a possível i n t e r v e n ç ã o desses fatores, cabe n o t a r q u e havia e n t r e os g r u p o s africanos q u e chegaram na Bahia alguns c o m claros antecedentes religiosos nesse â m b i t o particular. E f e t i v a m e n t e , u m a das características da religião v o d u m é a c o n c e i t u a l i z a ç ã o d o m u n d o espiritual em constelações o u grupos de d i v i n d a d e s , e u m dos seus elementos estruturais é a organização de congregações religiosas dedicadas ao culto coletivo de u m n ú m e r o variável de v o d u n s , com rituais públicos q u e utilizam formas de performance

seriada. Paralelamente, a análise

histórica e etnográfica d o c u l t o de v o d u n s m o s t r a c o m clareza a n a t u r e z a essenc i a l m e n t e d i n â m i c a desses grupos de d i v i n d a d e s , e x i s t i n d o u m a t e n d ê n c i a rec o r r e n t e a incluir, assimilar ou agregar novas d i v i n d a d e s aos "panteões" existentes. O q u e p o d e r í a m o s c h a m a r de " p r i n c í p i o de agregação" seria, p o r t a n t o , u m a terceira p r o p r i e d a d e d o sistema religioso v o d u m . O p r o c e s s o de r e u n i ã o i n t e r é t n i c a de d i v i n d a d e s , q u e c a r a c t e r i z o u a form a ç ã o d o Ilê Iyá N a s s ô e q u e , m u i t o p r o v a v e l m e n t e , o c o r r e u n o m e s m o per í o d o e m o u t r o s terreiros c o n t e m p o r â n e o s , p o d e r i a ser i n t e r p r e t a d o , e m parte, c o m o r e s u l t a d o i n t r í n s e c o da c o n f l u ê n c i a de g r u p o s s o c i a l m e n t e h e t e r o g é n e o s q u e se d e u na sociedade c o l o n i a l e escravista. Nesse s e n t i d o , c o m o já a p o n t e i , o p r o c e s s o de agregação d e s e n v o l v i d o n o C a n d o m b l é b a i a n o e a q u e l e d e s e n v o l v i d o nas c i d a d e s c o m e r c i a i s da área g b e em relação aos c u l t o s d e v o d u n s p o d e r i a m ser i n t e r p r e t a d o s c o m o respostas paralelas, e m b o r a i n d e p e n d e n t e s , a c o n d i ç õ e s sociais s e m e l h a n t e s . C e n t r o s c o m o U i d á ou A b o m e y , p o r exemplo, c o m p a r t i l h a v a m c o m Salvador a m e s m a h e t e r o g e n e i d a d e , m o v i m e n t a ç ã o e e s t r a t i f i c a ç ã o social, o q u e de a l g u m m o d o teria c o n t r i b u í d o p a r a a síntese ou justaposição de cultos. N o e n t a n t o , d e v i d o à a n t e c e d ê n c i a h i s t ó r i c a desse f e n ó m e n o na área gbe, p o d e r í a m o s a r g u m e n t a r q u e os c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s n o C a n d o m b l é

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O PANTEAO JEJE E SUAS

f o r a m r e s u l t a d o também

TRANSFORMAÇÕES

de i n f l u ê n c i a s lineares e d i r e t a s d o " p r i n c í p i o de

agregação", c a r a c t e r í s t i c o d o s c u l t o s de v o d u n s , a i n d a q u e a p l i c a d o a u m a d i v e r s i d a d e é t n i c a m a i s extensa. E m o u t r a s palavras, c e r t o s especialistas religiosos jejes v e n d i d o s c o m o escravos na Bahia t i n h a m r e f e r e n t e s rituais e con h e c i m e n t o e s o t é r i c o para o r g a n i z a r c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s e, o q u e é m a i s i m p o r t a n t e , e s t a v a m h a b i t u a d o s a agregar novas d i v i n d a d e s nesses c u l t o s . N u m c o n t e x t o social q u e p r o p i c i a v a a r e u n i ã o de g r u p o s h u m a n o s h e t e r o g é n e o s , essa e x p e r i ê n c i a dos a f r i c a n o s jejes foi, sem d ú v i d a , de m u i t a u t i l i d a d e p a r a especialistas religiosos de o u t r a s origens q u e , fosse em associação c o m os s a c e r d o t e s jejes, fosse i m i t a n d o suas p r á t i c a s , r e p l i c a r a m f o r m a s de c u l t o coletivas p a r e c i d a s . Essas c o n s i d e r a ç õ e s vêm c o r r o b o r a r desse o u t r o â n g u l o a tese, s u s t e n t a d a n o c a p í t u l o 4, de q u e a t r a d i ç ã o v o d u m teve p a p e l determinante no processo formativo do C a n d o m b l é . Vejamos c o m mais detalhe essas questões. Ao lado dos ancestrais divinizados das l i n h a g e n s (hennu-voduns) e das d i v i n d a d e s ou forças de caráter pessoal (Fa, Legba), H e r s k o v i t s d i v i d e as "grandes d i v i n d a d e s " ou d i v i n d a d e s "públicas" d a o m e a n a s em q u a t r o g r u p o s principais: o p a n t e ã o celeste de M a w u - L i s s á , o p a n t e ã o da terra de Sakpata, o p a n t e ã o da s e r p e n t e de D a n e o p a n t e ã o d o t r o vão d e H e v i o s o . H e r s k o v i t s comem

a q u e "o d a o m e a n o não c o n c e b e u m a só

d i v i n d a d e c u m p r i n d o todas as f u n ç õ e s de cada u m dos e l e m e n t o s . Ele c o n c e be s o b r e t u d o grupos de divindades, n a d o p o r u m chefe de panteão"

f o r m a n d o cada g r u p o u m p a n t e ã o gover-

(grifo nosso).4

C o m o explica M a u p o i l , "o tro-

vão, a terra, t o d o s os g r a n d e s v o d u n s p o s s u e m u m c o n j u n t o de satélites

entre

os quais se r e p a r t e m os deveres sob a sua responsabilidade". > O q u e interessa destacar é a ideia de q u e os v o d u n s são c o n c e b i d o s c o m o f o r m a n d o grupos, às vezes ligados por v í n c u l o s genealógicos, e q u e os seus assentos o u altares são agregados n u m m e s m o t e m p l o ou espaço sagrado, s e g u n d o u m a lógica de eficácia religiosa e de a c u m u l a ç ã o de p o d e r espiritual (acè). Olabiyi Yai alerta q u e c h a m a r "panteões" a esses g r u p o s de d i v i n d a d e s p o d e levar a equívocos, já q u e o t e r m o " p a n t e ã o " " i n t r o d u z de f o r m a e n c o b e r t a os novos e p o t e n c i a l m e n t e subversivos c o n c e i t o s gémeos de verticalidade e hier a r q u i a c o m o d i m e n s õ e s o u traços d e f i n i d o r e s das d i v i n d a d e s na visão d o m u n d o dos h a b i t a n t e s da região" — características q u e n e m s e m p r e p o d e r i a m ter existido. 6 N o e n t a n t o , d e v e m o s a d m i t i r q u e idéias de verticalidade e hierarquia n ã o eram estranhas à religião v o d u m , e isso n u m a variedade de f o r m a s . C o m o já foi referido no capítulo 3, n o século XVII Bosman notava, em Uidá, a s u p r e m a c i a d o c u l t o da s e r p e n t e sobre os cultos das árvores e d o mar, suger i n d o u m a análoga h i e r a r q u i a e n t r e os respectivos sacerdotes. E n t r e t a n t o , foram os reis f o n s os responsáveis por estabelecer no D a o m é , já desde o i n í c i o

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LUIS NICOLAU

P A R ÉS

d o século XVIII, u m sistema religioso a l t a m e n t e c e n t r a l i z a d o e h i e r a r q u i z a d o . V i m o s c o m o M a u p o i l falava de u m "plano de s u b m i s s ã o dos altares ao t r o n o " , e M a u r i c e Glele, de u m " c o n t r o l e de polícia a d m i n i s t r a t i v a " d o e s t a d o s o b r e as c o n g r e g a ç õ e s v o d u n s . 7 Esse c o n t r o l e p o l í t i c o d a vida religiosa r e s u l t o u n a c e n t r a l i z a ç ã o e o r g a n i z a ç ã o h i e r á r q u i c a da c a s t a s a c e r d o t a l . A m ã e d o rei T e g b e s u , N a H u a n j i l e , é g e r a l m e n t e t i d a c o m o r e s p o n s á v e l pela i n t r o d u ç ã o , p o r v o l t a de 1740, d o c u l t o M a w u - L i s s á , em A b o m e y , t r a n s f o r m a n d o esse casal d e v o d u n s em divindades genitoras e supremas, colocando-as na cumeeira d e u m p a n t e ã o cada vez mais vertical e h i e r a r q u i z a d o . Ao m e s m o t e m p o , a i n t r o d u ç ã o d o sistema de a d i v i n h a ç ã o Fa, c o n t r o l a d o e x c l u s i v a m e n t e p o r h o m e n s , e a p r o m o ç ã o d o c u l t o N e s u h u e dos ancestrais reais c o m o c u l t o "nacion a l " , c o m p r e c e d ê n c i a s o b r e o c u l t o d o resto de d i v i n d a d e s " p ú b l i c a s " , c o n t r i b u í r a m p a r a u m a c r e s c e n t e e s t r u t u r a ç ã o p i r a m i d a l d o s i s t e m a religioso. 8 O p r o g r e s s i v o e s t a b e l e c i m e n t o , d u r a n t e os séculos XVIII e XIX, de u m " p a n t e ã o oficial" em A b o m e y foi a c o m p a n h a d o pela e l a b o r a ç ã o de v í n c u l o s c o n c e i t u a i s e rituais e n t r e as suas p a r t e s c o n s t i t u i n t e s , isto é, as d i v i n d a d e s "públicas" ou "divindades d o reino". O s cultos de M a w u - L i s s á , H e v i o s o e D a n , p o r e x e m p l o , até e n t ã o i n d e p e n d e n t e s , f o r a m r e l a c i o n a d o s através de m i t o s , c o m o i n t u i t o de estabelecer c o s m o l o g i a s coerentes. O r a , esses esforços dirigidos p a r a criar u m sistema coeso f o r a m p r i n c i p a l m e n t e restritos a A b o m e y e a sua área de i n f l u ê n c i a . 9 E m b o r a n ã o d e v a m o s s u b e s t i m a r o i m p a c t o desses esforços f o r a de Abomey, o q u e parece ter prevalecido na região é u m a série d o q u e J o h n Peei, r e f e r i n d o - s e à área i o r u b á , c h a m a de "complexos de cultos locais" (local cult complexes),

definidos c o m o "um c o n j u n t o de cultos que ten-

de a i n c l u i r t a n t o u m b o m n ú m e r o dos orisas [ v o d u n s ] c o n h e c i d o s em t o d o o país [...] c o m o o u t r o s de caráter mais local, talvez até exclusivos d o lugar". 1 0 Faz-se, p o r t a n t o , útil p a r a a análise d i s t i n g u i r e n t r e u m " c o m p l e x o de c u l t o s nacional", estabelecido por Abomey, p r o m o v e n d o um panteão altamente h i e r a r q u i z a d o e vertical, e vários " c o m p l e x o s de c u l t o s locais", capazes de assimilar e l e m e n t o s d o m o d e l o oficial, m a s q u e p o d i a m t a m b é m m a n t e r certas e s p e c i f i c i d a d e s locais. D e m o d o geral, os s a c e r d o t e s de cada t e m p l o o u c o n g r e g a ç ã o v o d u m tin h a m relativa a u t o n o m i a p a r a instalar os assentos o u altares das d i v i n d a d e s q u e eles a c h a v a m o p o r t u n o . E m b o r a a m a i o r i a d o s v o d u n s c u l t u a d o s n u m t e m p l o tendessem a pertencer à m e s m a categoria genérica (hunve ou v o d u n s v e r m e l h o s , c o m o H e v i o s o ; atimevodun

o u v o d u n s das árvores; D a n ; S a k p a t a ;

N e s u h u e etc.), novos v o d u n s , p o r m o t i v o s variados, p o d i a m ser " a d q u i r i d o s " o u " c o m p r a d o s " e a g r e g a d o s aos já existentes c o m o "satélites". Essa d i n â m i ca resultava n u m c o n t í n u o m o v i m e n t o e t r a n s f o r m a ç ã o d o " p a n t e ã o " de qual-

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

q u e r t e m p l o e, c o n s e q u e n t e m e n t e , de q u a l q u e r " c o m p l e x o de c u l t o s local". A c o m p a r a ç ã o das listas de v o d u n s r e c o l h i d a s em várias regiões da área gbe, tanto no interior como fora do D a o m é , mostra contradições recorrentes no n ú m e r o , i d e n t i d a d e , g é n e r o , a t r i b u t o s , f u n ç õ e s o u p o s i ç ã o relativa de p a r e n tesco das d i v i n d a d e s de q u a l q u e r " p a n t e ã o " q u e seja. Essa e v i d ê n c i a i n d i c a c l a r a m e n t e q u e , apesar da c e n t r a l i z a d a o r g a n i z a ç ã o religiosa p r e v a l e c e n t e e m A b o m e y , os " p a n t e õ e s " n ã o e r a m n u n c a estáticos o u h o m o g é n e o s . A análise dessa d i n â m i c a e m relação aos v o d u n s c u l t u a d o s n o s c a n d o m b l é s jejes da Bahia será d e s e n v o l v i d a m a i s a d i a n t e . A l é m dessa v a r i a b i l i d a d e , em c a d a t e m p l o v o d u m u m a d i v i n d a d e é n o r m a l m e n t e i n d i c a d a c o m o a l i d e r a n ç a d o g r u p o e s p i r i t u a l . Esse m í n i m o elem e n t o h i e r á r q u i c o é g e r a l m e n t e , m a s n e m s e m p r e , expresso em t e r m o s genealógicos. A figura d o pai o u de u m casal g e n i t o r original expressa h a b i t u a l m e n t e a p r e e m i n ê n c i a de certos v o d u n s sobre o resto d o g r u p o . E m a l g u n s casos, as h i e r a r q u i a s prevalecentes e n t r e as d i v i n d a d e s r e f l e t e m c o r r e s p o n d e n tes h i e r a r q u i a s e n t r e os seus sacerdotes. As n a r r a t i v a s q u e e n f a t i z a m certas h i e r a r q u i a s são e l a b o r a d a s o u c o n s t r u í d a s , m u i t a s vezes, p a r a l e g i t i m a r u m a d i v i n d a d e ou u m g r u p o de d i v i n d a d e s ( n o r m a l m e n t e aquelas c o m as q u a i s o n a r r a d o r está ligado), p e r a n t e o u t r a s de congregações religiosas c o n c o r r e n t e s . P o d e m o s c o n c l u i r q u e o c o n c e i t o de g r u p o s ou "famílias" de d i v i n d a d e s , lideradas p o r u m a figura p r i n c i p a l e c u l t u a d a s n u m m e s m o t e m p l o , g e r a l m e n t e sob a s u p e r v i s ã o c e n t r a l i z a d a de u m casal h o m e m - m u l h e r d e vodunons

(sa-

cerdotes, literalmente "donos" do v o d u m ) , constitui elemento f u n d a m e n t a l da religião v o d u m . Essas características d o c u l t o de v o d u n s na área gbe p a r e c e m c o n t r a s t a r , até c e r t o p o n t o , c o m os c u l t o s de orixás da área i o r u b á , o n d e a i n t e r c o n e c t i v i d a d e e n t r e orixás é, a p a r e n t e m e n t e , m e n o s f o r t e . S e g u n d o Verger, cada c u l t o de orixá c o n s t i t u i u m a i n s t i t u i ç ã o i n d e p e n d e n t e , o q u e resulta n o q u e ele c h a m o u u m a série de " m o n o t e í s m o s j u s t a p o s t o s " . E m o u t r a s palavras, cada c o n g r e g a ç ã o religiosa, o u até cada vila o u c i d a d e , estaria d e d i c a d a à v e n e r a ção exclusiva de u m a ú n i c a d i v i n d a d e a u t ó n o m a . E m b o r a na área i o r u b á e n c o n t r e m o s c o m p l e x o s de vários c u l t o s e m m u i t a s localidades e até, e m certos casos, o c u l t o de mais de u m orixá n u m a m e s m a c o n g r e g a ç ã o religiosa, a h i p ó t e s e de Verger, de u m a certa i n d e p e n d ê n c i a e n t r e os vários cultos de orixá, parece c o n f i r m a d a n u m e s t u d o de M c k e n z i e . Baseado na análise dos

orikis

dos orixás e dos versos d e Ifá, M c k e n z i e c o n c l u i q u e , f o r a o caso de X a n g ô , O b a t a l á e a "tríade de Ifá" (Exu, O r u n m i l á e O l o d u m a r é ) , os cultos de orixás não a p r e s e n t a m quase n e n h u m a alusão verbal a o u t r a s d i v i n d a d e s , s u g e r i n d o u m relativo "separatismo" e n t r e eles e a ausência de u m p a n t e ã o fixo ou esta-

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L U I S N I C O L A U PAR ÉS

belecido. Mckenzie, que critica anteriores modelos unitários do p a n t e ã o i o r u b á , é m e n o s radical q u e Verger e a d o t a u m a p o s t u r a i n t e r m e d i á r i a mais c o n c i l i a t ó r i a , f a l a n d o de "constelações de orixás e m t o r n o de a l g u n s o u t r o s p r o e m i n e n t e s " , e x i s t i n d o e n t r e eles " u n i f o r m i d a d e s parciais, mas s e m c o n templar qualquer quadro cosmológico completo"." A h i p ó t e s e de Verger leva ã c o n c l u s ã o de q u e a j u s t a p o s i ç ã o de u m a pluralidade de cultos individuais n u m a m e s m a congregação religiosa, c o m o acontece n o C a n d o m b l é brasileiro, o V a u d o u h a i t i a n o e a Santeria c u b a n a (o q u e ele c h a m a d e "politeísmo", em oposição aos " m o n o t e í s m o s justapostos"), seria u m a criação característica do N o v o M u n d o , r e s u l t a d o das novas c o n d i ç õ e s socioc u l t u r a i s i m p o s t a s pelo escravismo, s i t u a ç ã o e m q u e recursos h u m a n o s e m a teriais l i m i t a d o s t e r i a m favorecido a r e u n i ã o inclusiva de cultos i n i c i a l m e n t e discretos ou separados. Esse f e n ó m e n o constituiria, assim, u m a diferença f u n d a m e n t a l e n t r e o C a n d o m b l é e as tradições orixá da Á f r i c a o c i d e n t a l . A i n t e r p r e tação "nagocêntrica" de Verger tem sido aceita e replicada de f o r m a acrítica pela l i t e r a t u r a afro-brasileira, e s p e c i a l m e n t e p o r Bastide, para citar apenas u m dos autores m a i s significativos. 1 2 N o e n t a n t o , essa i n t e r p r e t a ç ã o n ã o leva em consideração a a m p l a evidência coletada na área gbe (parte dela pelo p r ó p r i o Verger), q u e m o s t r a u m a a n t i g a e f e c u n d a t r a d i ç ã o de cultos de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s . 1 3 Aliás, t a m b é m n a área i o r u b á , ao m e n o s na a t u a l i d a d e , e n c o n t r a m o s cultos d e m ú l t i p l o s orixás e f o r m a s de performance

seriada, c o m o f o i d o c u m e n t a d o

p o r A n d r e w A p t e r n o r e i n o de A y e d e , na região de E k i t i , e p o r M a r g a r e t T h o m p s o n D r e w a l em I g b o g i l a , u m a vila na região d e E g b a d o . A p t e r chega a t é a a f i r m a r q u e os cultos d e m ú l t i p l o s orixás p o d e r i a m c o n s t i t u i r u m a car a c t e r í s t i c a c o m u m da área i o r u b á , e a p a r t i r desse p r e s s u p o s t o q u e s t i o n a t a m b é m a h i p ó t e s e de Verger, s u g e r i n d o q u e o c u l t o d e m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s d o C a n d o m b l é e n c o n t r a r i a os seus a n t e c e d e n t e s nas p r á t i c a s e i n s t i t u i ç õ e s religiosas da área i o r u b á . C o n q u a n t o p r e c i s a m o s de u m a análise histórica mais d e t a l h a d a , cabe n o t a r q u e os c u l t o s de m ú l t i p l o s orixás na área i o r u b á parec e m u m f e n ó m e n o r e l a t i v a m e n t e r e c e n t e , talvez r e s u l t a d o das m i g r a ç õ e s e r e e s t r u t u r a ç õ e s sociais o c o r r i d a s a p ó s a q u e d a d o r e i n o de O y o , p o r v o l t a de 1830. N o caso de A y e d e , p o r e x e m p l o , os c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s em v o l t a de a l g u n s orixás p r i n c i p a i s s u r g i u só a p ó s 1845, p e r í o d o da f o r m a ç ã o desse r e i n o , e já q u e o t r á f i c o t r a n s a t l â n t i c o brasileiro cessou e m 1850, parece difícil q u e as p r á t i c a s religiosas de A y e d e tivessem q u a l q u e r i n f l u ê n c i a na f o r m a ç ã o d o C a n d o m b l é . N o caso d e I g b o g i l a , c o m o sugere D r e w a l , o c u l t o d e m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s p o d e r i a ter sido, na sua o r i g e m , u m a p r á t i c a v o d u m , a p r o p r i a d a dos g u n s de P o r t o N o v o , pelos a h o r i s ( h o l l i - i d j è ) e s u b s e q u e n t e m e n t e r e p l i c a d a pelos seus v i z i n h o s de E g b a d o . 1 4

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TRANSFORMAÇÕES

U m a característica desses c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s i o r u b á s é a c o n d u ç ã o d o r i t u a l p o r u m a p l u r a l i d a d e de especialistas religiosos, cada u m responsável por u m orixá, e n q u a n t o , nos templos voduns, e n c o n t r a m o s u m a l i d e r a n ç a c e n t r a l i z a d a n u m casal de vodunons

responsável pela t o t a l i d a d e d o

g r u p o de d i v i n d a d e s . S e g u n d o R o d r i g u e s , na Bahia d o final d o século XIX n ã o havia s a c e r d o t e s especializados; s e n d o q u e cada ialorixá o u b a b a l o r i x á dirigia o c u l t o de t o d a s as d i v i n d a d e s a s s e n t a d a s n o t e r r e i r o , c o m exceção de ocasiões especiais, c o m o a l g u m a festa i m p o r t a n t e , em q u e vários líderes religiosos p o d i a m r e u n i r - s e n u m a m e s m a c a s a . E s s a nova s e m e l h a n ç a e s t r u t u ral e n t r e a t r a d i ç ã o v o d u m e o C a n d o m b l é v e m r e f o r ç a r a m i n h a tese de base de u m a s i g n i f i c a t i v a c o n t i n u i d a d e e n t r e os dois sistemas religiosos. É preciso salientar q u e a ênfase d a d a aqui à i m p o r t â n c i a da t r a d i ç ã o v o d u m r e s p o n d e à o r i e n t a ç ã o da p e s q u i s a , mas n ã o deveria l e v a r - n o s a m i n i m i z a r a c o m p l e x i d a d e d o p r o b l e m a . Pensar em t e r m o s d e u m a p o l a r i z a ç ã o e n t r e u m sistema de o r g a n i z a ç ã o religiosa d a o m e a n o , vertical e "politeísta", e u m o u tro iorubá, horizontal e "multimonoteísta", é certamente reducionista e anal i t i c a m e n t e i n c o r r e t o . Processos de h i e r a r q u i z a ç ã o e c e n t r a l i z a ç ã o n ã o e r a m exclusivos d o s f o n s , e a e v i d ê n c i a h i s t o r i o g r á f i c a e e t n o g r á f i c a p r o v a q u e f o r mas c e n t r a l i z a d a s de o r g a n i z a ç ã o religiosa f o r a m t a m b é m c o m u n s e n t r e os g r u p o s i o r u b á s . 1 6 D e m o d o similar, c o m o foi m o s t r a d o , c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s e f o r m a s de performance

seriada t a m b é m n ã o e r a m exclusivas dos

c u l t o s de v o d u n s . N o e n t a n t o , a d o c u m e n t a ç ã o d i s p o n í v e l sugere q u e essas práticas e r a m c o m u n s n a área gbe pelo m e n o s desde o século XVIII, e n q u a n t o na área i o r u b á a p a r e c e m de u m a f o r m a restrita, n u m p e r í o d o r e l a t i v a m e n t e tardio. T a m b é m é claro q u e o p r o c e s s o f o r m a t i v o d o C a n d o m b l é n ã o r e s p o n d e u a u m a simples réplica de u m a o u o u t r a t r a d i ç ã o a f r i c a n a , mas existiu t o d a u m a série de c o n d i c i o n a n t e s s o c i o c u l t u r a i s q u e o b r i g a r a m e e s t i m u l a r a m u m a " c r i a t i v i d a d e " q u e r e s u l t o u em c a r a c t e r í s t i c a s i n s t i t u c i o n a i s p r o p r i a m e n t e brasileiras, a l é m , ou ao l a d o , dos possíveis processos de c o n t i n u i d a d e . E n t r e t a n t o , p e n s o q u e o " p r i n c í p i o de agregação", b a s e a d o na d i n â m i c a de i n cluir novas d i v i n d a d e s n u m c o m p l e x o ritual p r e e x i s t e n t e , p r i n c í p i o q u e n o sistema religioso v o d u m c o n s t i t u i a regra (em vez da exceção, c o m o p a r e c e a c o n t e c e r n o s c u l t o s d e orixás p r é - c o l o n i a i s ) , p e r s i s t i u c o m o u m a i n f l u ê n c i a jeje q u e o f e r e c e u u m m o d e l o o r g a n i z a c i o n a l m a r c a n t e n a c o n s t i t u i ç ã o d o Candomblé.

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PAR ÉS

O CULTO D O S V O D U N S D O M A R E D O T R O V Ã O N A Á R E A G B E A l é m das p r á t i c a s r i t u a i s q u e serão e x a m i n a d a s n o p r ó x i m o c a p í t u l o , o " p a n t e ã o " , ou a i d e n t i d a d e das e n t i d a d e s espirituais, é talvez o mais i m p o r t a n t e f a t o r de d i f e r e n c i a ç ã o e n t r e as diversas "nações de C a n d o m b l é " . Atualm e n t e , os vários terreiros j e j e - m a h i s da Bahia p o d e m c u l t u a r u m a c o m p l e x a v a r i e d a d e de divindades, t a n t o v o d u n s c o m o orixás, c o m certas diferenças de detalhe de u m a casa para o u t r a . N o e n t a n t o , existe u m certo consenso em destacar três grandes grupos de v o d u n s c o m o d o m i n a n t e s e característicos dessa "nação". Esses três grupos o u "famílias" são liderados pelos c h a m a d o s "reis da nação jeje": 1) o v o d u m serpente Bessen (a família de D a n ) ; 2) o v o d u m do trovão Sogbo (a f a m í l i a de H e v i o s o ou K a v i o n o ) e 3) o v o d u m da varíola A z o n s u (a família de S a k p a t a ) . C o m o explicava o falecido N e t i n h o , v o d ú n s i d o Seja H u n d é , as três famílias são c o m o os dedos índice, m é d i o e a n u l a r ; os três p e r t e n c e m à m e s m a m ã o (a m e s m a nação), mas o m é d i o ( D a n ) é o maior. gaiaku

Luiza, a l t e r a n d o a h i e r a r q u i a , falava q u e Sogbo é o rei, Bessen, o

p r í n c i p e , e A z o n s u , o conde. 1 7 N a n ã , "a mais velha das mães d'água"; Loko, associado à gameleira; Aziri, Agué, Lissá, Aizan ou Elegba são o u t r o s v o d u n s b e m c o n h e c i d o s , e existem m u i t o s o u t r o s preservados na m e m ó r i a , mas as três famílias acima m e n c i o nadas, i n c l u i n d o cada u m a delas u m variado n ú m e r o de v o d u n s , c o n s t i t u e m os sinais de i d e n t i d a d e mais i m p o r t a n t e s d o p a n t e ã o jeje c o n t e m p o r â n e o . J u s t a p o s t o s a esses v o d u n s c u l t u a m - s e t a m b é m u m a série de orixás nagôs, esp e c i a l m e n t e as yabas ou orixás f e m i n i n o s , r e s u l t a n d o n u m p a n t e ã o m i s t o , f r e q u e n t e m e n t e c h a m a d o " n a g ô - v o d u m " . Essa j u s t a p o s i ç ã o i n t e r é t n i c a , que c a r a c t e r i z o u não apenas as casas jejes c o m o t a m b é m , de u m m o d o geral, o processo f o r m a t i v o do C a n d o m b l é , p o d e r i a ser i n t e r p r e t a d a , s e g u n d o sugeri acima, c o m o u m a d i n â m i c a i n s p i r a d a no " p r i n c í p i o de agregação", o p e r a t i v o n o sistema religioso v o d u m da área gbe. Para m e l h o r e n t e n d e r e m que consiste esse " p r i n c í p i o de agregação", será útil analisar, de u m a perspectiva histórica, u m caso específico. O exemplo dos v o d u n s associados com o trovão e o mar, c o r r e s p o n d e n t e à família de Hevioso n o Brasil, ilustra c o m o essas divindades f o r a m progressivamente inseridas em p a n t e õ e s m u l t i é t n i c o s cada vez mais a b r a n g e n t e s , p r i m e i r o na área gbe e depois nos terreiros jejes da Bahia. Esse caso t a m b é m sugere q u e tais m u d a n ças, o c o r r i d a s n o nível das e n t i d a d e s espirituais, em q u e novas e n t i d a d e s são a d i c i o n a d a s e outras "esquecidas", relacionando-as em diferentes hierarquias, p o d e m expressar d i s t i n t a s interações étnicas de seus agentes sociais, assim c o m o m u d a n ç a s na organização de suas lideranças religiosas. E m o u t r a s pa-

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lavras, a o r g a n i z a ç ã o d o m u n d o e s p i r i t u a l p o d e r e f l e t i r c e r t o s a s p e c t o s da d i n â m i c a social. U m e s q u e m a s i m p l i f i c a d o d o nosso caso em e s t u d o p o d e ser d i v i d i d o e m q u a t r o estágios: 1) I n i c i a l m e n t e , os c u l t o s dos v o d u n s d o m a r e d o t r o v ã o e r a m i n s t i t u i ções religiosas i n d e p e n d e n t e s , a d s t r i t a s a l i n h a g e n s o u g r u p o s é t n i c o s específicos, os h u l a e os a í z o - s e t o , r e s p e c t i v a m e n t e . 2) M a i s t a r d e , esses c u l t o s f o r a m p r o g r e s s i v a m e n t e assimilados p o r o u t r o s g r u p o s étnicos, e x p a n d i n d o - s e p o r t o d a a área gbe, v i r a n d o cultos "públicos". N e s s e p r o c e s s o , os d o i s g r u p o s de v o d u n s f o r a m c o n c e i t u a i e r i t u a l m e n t e r e l a c i o n a d o s de f o r m a d i f e r e n c i a d a , s e g u n d o cada região. E m m u i t o s casos, os v o d u n s d o m a r e d o t r o v ã o f o r a m i n t e g r a d o s n u m ú n i c o " p a n t e ã o " e cultuados nos mesmos templos. 3) N o s t e r r e i r o s jejes d o Brasil, pelo m e n o s na Bahia e n o M a r a n h ã o , o g r u p o já i n t e g r a d o d e v o d u n s d o t r o v ã o e d o mar, c o n h e c i d o c o m o K a v i o n o o u H e v i o s o , v i r o u u m " p a n t e ã o " i n c l u s i v o , a g r e g a n d o u m a série de d i v i n d a des q u e na área gbe e r a m alheias a esse g r u p o . 4) F i n a l m e n t e , n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s d a Bahia a f a m í l i a d e K a v i o n o (também conhecida como M u n d u b i ) , embora identificada como um grupo d i f e r e n c i a d o , foi r i t u a l m e n t e j u s t a p o s t a a o u t r o s g r u p o s de v o d u n s m a h i s , c o m o o da s e r p e n t e D a n e o d o v o d u m da t e r r a S a k p a t a , assim c o m o a certos orixás nagôs, c o m o as jyabas O i á e O x u m , p o r e x e m p l o . O p r i m e i r o p r o b l e m a ao e n c a r a r esse p r o g r e s s i v o e variável p r o c e s s o d e agregação de d i v i n d a d e s é o de localizar esse m o v i m e n t o n o t e m p o e n o espaço. A análise h i s t ó r i c a de q u a l q u e r g r u p o de v o d u n s , em p a r t i c u l a r a d o s vod u n s d o t r o v ã o e d o m a r , a p r e s e n t a sérias d i f i c u l d a d e s m e t o d o l ó g i c a s d e v i d o à ausência, até a s e g u n d a m e t a d e do século XIX, de dados precisos e confiáveis. Essas d i f i c u l d a d e s só p o d e m ser c o n t o r n a d a s r e c o r r e n d o à análise l i n g u í s t i c a , à t r a d i ç ã o oral e à p r o j e ç ã o n o passado de d a d o s e t n o g r á f i c o s do século XX. A c o m b i n a ç ã o cautelosa dessas f o r m a s de evidência indireta, j u n t o c o m a i n f o r m a ç ã o d o c u m e n t a l d i s p o n í v e l p e r m i t e m , n o e n t a n t o , esboçar u m q u a d r o geográfico e c r o n o l ó g i c o r a z o a v e l m e n t e plausível. O c u l t o d o m a r está d o c u m e n t a d o , d e s d e a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o XVII, e m várias p a r t e s d o G o l f o d o B e n i m . 1 8 E m m u i t o s casos, o f e r e n d a s ao m a r e r a m realizadas p a r a i n v o c a r a c h e g a d a d o s b a r c o s e u r o p e u s , o u p a r a a c a l m a r a f ú r i a das águas e p e r m i t i r o e m b a r q u e de m e r c a d o r i a s e escravos. P o r t a n t o , o c u l t o ao m a r estava a p a r e n t e m e n t e ligado ao c o m é r c i o c o m os

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P A R ÉS

e u r o p e u s e a suas v a n t a g e n s e c o n ó m i c a s . O r a , há evidências q u e s u g e r e m q u e a v e n e r a ç ã o m a r í t i m a estava associada a c r e n ç a s a u t ó c t o n e s a n t e r i o r e s , pois e m r e i n o s d o i n t e r i o r c o m o os de A l i a d a , O y o o u D a o m é existiam p r e c e i t o s religiosos explícitos q u e p r o i b i a m aos seus reis e n t r a r em c o n t a t o o u o l h a r para o mar.19 N a área gbe, o c u l t o ao m a r p a r e c e ter sido i n i c i a l m e n t e u m a p r e r r o g a t i v a d o s h u l a s ; s i g n i f i c a t i v a m e n t e , os v o d u n s d o m a r são c o n h e c i d o s c o m o lahun,

hu-

e h o j e em d i a os h u l a s r e c l a m a m ser os seus " p r o p r i e t á r i o s " o r i g i n a i s .

O s h u l a s , t a m b é m c o n h e c i d o s c o m o p o p o s , f u l a o s , pias, flàs o u afias, e r a m , p r i n c i p a l m e n t e , p e s c a d o r e s da lagoa litoral e p r o d u t o r e s de sal, t e n d o a sua c a p i t a l p o l í t i c a e m A g b a n a n k i n , n o d e l t a d o rio M o n o . G r a ç a s às suas h a b i lidades de n a v e g a ç ã o e ao f a t o de ser a lagoa litoral u m a das mais i m p o r t a n t e s r o t a s c o m e r c i a i s locais, os h u l a s r a p i d a m e n t e se e s t a b e l e c e r a m ao l o n g o de t o d a a c o s t a da área gbe. A d o c u m e n t a ç ã o e x i s t e n t e p e r m i t e s u p o r q u e pelo m e n o s a p a r t i r de 1630 eles já t e r i a m c r i a d o diversos n ú c l e o s p o p u l a c i o n a i s d e s d e A f l a w u até J a k i n e, p r o v a v e l m e n t e , a i n d a m a i s a leste, até A p a (Badagri). 2 0 P o r t a n t o , apesar d a ausência de d o c u m e n t a ç ã o escrita, é possível q u e o c u l t o de d i v i n d a d e s m a r í t i m a s se tivesse e s t e n d i d o e m t o d a essa área a p a r t i r desse p e r í o d o . O c u l t o do t r o v ã o está m e n o s d o c u m e n t a d o , e as p r i m e i r a s f o n t e s d o séc u l o XVII f a l a m , s o b r e t u d o , da C o s t a d o O u r o . B a r b o t d o c u m e n t a , e m terr i t ó r i o a k a n , a associação e n t r e o t r o v ã o e u m a d i v i n d a d e celeste c o n h e c i d a c o m o J e a n G o e m a n ou J a n k o m é (Onyankome).

B o s m a n , r e f e r i n d o - s e à mes-

m a região, m e n c i o n a q u e os "negros" são d a o p i n i ã o q u e "a f o r ç a d o t r o v ã o está c o n t i d a em certa pedra", e sugere a sua associação c o m "coisas s o b r e n a t u rais". 2 1 E m b o r a esses c o m e n t á r i o s n ã o p e r m i t a m a f i r m a r a existência de u m c u l t o o r g a n i z a d o d o trovão, i n d i c a m u m a a n t i g a d i v i n i z a ç ã o desse f e n ó m e n o n a t u r a l n a região. N a área gbe, a p r i m e i r a referência ao c u l t o d o trovão aparece n u m m a n u s c r i t o f r a n c ê s d a t a d o e n t r e 1708 e 1724. M e n c i o n a - s e , n o reino d e U i d á , o c u l t o d o t r o v ã o e a c r e n ç a de q u e ele m a t a v a os ladrões c o m as suas "pedras", i n s i n u a n d o - s e já a sua associação c o m o d i v i n d a d e da justiça. 2 2 N o e n t a n t o , é só n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o XIX q u e e n c o n t r a m o s d o c u m e n t a d o s os p r i m e i r o s n o m e s de d i v i n d a d e s d o t r o v ã o . F. E. F o r b e s é o p r i m e i r o a u t o r , e m 1851, a m e n c i o n a r o n o m e de So ("Soh") c o m o d i v i n d a d e d o t r o v ã o . H e v i o s o é m e n c i o n a d o pela p r i m e i r a vez p e l o p a d r e B o r g h e r o em 1 8 6 3 : " n a l í n g u a G e g i , o d e u s d o t r o v ã o se c h a m a K e v i o s o . E o m e s m o Schango dos Nagos". Richard B u r t o n , que visitou Uidá e Abomey n o mesm o a n o , fala t a m b é m de "So o u K h e v i o s o , o f e t i c h e d o t r o v ã o , c u l t u a d o em W h y d a h , n o So A g b a j y í , o u q u i n t a l d o t r o v ã o " . 2 3

280

O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

S e g u n d o Le Herissé, na área gbe coexistia u m a variedade de cultos sôs, ou cultos do trovão (sô = trovão). H a v i a o d j i s ô (trovão do céu), c u l t u a d o pelos d j e t o v i , p r o v a v e l m e n t e u m g r u p o p r o t o - i o r u b á , m o r a d o r n o p l a n a l t o de Abomey. H a v i a t a m b é m o hevieso ou hevioso, o sô de Hevie, que, pelo m e n o s desde o século XIX em d i a n t e , parece ter sido o c u l t o do trovão mais p o p u l a r na região. E m Hevie, u m a cidade na região Aízo, entre Aliada e Uidá, os v o d u n s heviosos são d e n o m i n a d o s setohun,

ou d i v i n d a d e s dos setos. Se-

g u n d o T i d j a n i , os setos eram u m g r u p o é t n i c o de A t h i e m é , nas m a r g e n s d o rio M o n o , q u e no século XVII e m i g r a r a m para Hevie. S e g u n d o Pazzi, a dif u s ã o do c u l t o sô a p a r t i r Hevie só se p r o d u z i u no século XIX. 2 4 E m b o r a essas i n f o r m a ç õ e s baseadas na t r a d i ç ã o oral d o século XX devam ser t o m a d a s c o m cautela, o q u e emerge dessa breve exposição é q u e os cultos dos v o d u n s do mar e d o trovão eram i n i c i a l m e n t e instituições religiosas indep e n d e n t e s , adstritas a g r u p o s étnicos específicos. E m o u t r a s palavras, eles eram hennu

o u ako v o d u n s e seu culto, r e s p o n s a b i l i d a d e exclusiva de certas

linhagens. A l é m da evidência linguística — os v o d u n s do m a r são d e n o m i n a d o s hulahun

e os d o trovão setohun

— a documentação etnográfica con-

t e m p o r â n e a vem c o r r o b o r a r esse f a t o . Verger c o l e t o u as listas de v o d u n s c u l t u a d o s em H e v i e e várias localidades orientais dos h u l a s . E m Hevie, ele não a c h o u n e n h u m a m e n ç ã o das divindades d o mar (exceto A h u a n g a n , i d e n tificado ora c o m o v o d u m do m a r ora c o m o do trovão), e n q u a n t o em cidades hulas c o m o K e t o n o u , G o d o m e y e Avlekete, o v o d u m hevioso é d e s c o n h e c i d o ou f i g u r a apenas de f o r m a periférica, a p a r e n t e m e n t e c o m o u m a apropriação tardia associada à de o u t r o s v o d u n s "públicos", c o m o Lissá ou Sakpata. E m Aliada, em território aízo, Herskovits t a m b é m d o c u m e n t o u a presença dos vod u n s heviosos e apenas u m só t e m p l o i n d e p e n d e n t e d e d i c a d o ao v o d u m marin h o Agbé. Esses dados reforçam a idéia de que o culto h u l a dos v o d u n s do mar e o culto áízo-seto dos v o d u n s do trovão f o r a m , no passado, instituições religiosas separadas e diferenciadas. 2 '

VARIAÇÕES REGIONAIS E DINÂMICA INTERNA DOS "PANTEÕES" DO MAR E DO TROVÃO C o m o t e m p o , os cultos do m a r e do trovão f o r a m p r o g r e s s i v a m e n t e a p r o priados p o r o u t r o s g r u p o s étnicos, c o m o os huedas, fons, gens, ewes ou anlos, d i s p e r s a n d o - s e p o r quase t o d a a área gbe e c o n v e r t e n d o - s e , desse m o d o , em cultos "públicos" o u i n t e r é t n i c o s . Nesse processo, os dois g r u p o s de v o d u n s f o r a m c o n c e i t u a i e r i t u a l m e n t e r e l a c i o n a d o s em d i f e r e n t e s graus, s e g u n d o cada região. Em m u i t o s casos, os v o d u n s do mar e d o trovão passaram a in-

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LUIS NICOLAU

P A R ÉS

tegrar u m ú n i c o " p a n t e ã o " , c u l t u a d o nos m e s m o s t e m p l o s , o q u e p o d e r í a m o s c o n s i d e r a r u m p r i m e i r o estágio o u expressão d o " p r i n c í p i o de agregação". E m U i d á , e m b o r a H e v i o s o seja c u l t u a d o em certas f a m í l i a s h u e d a s , o seu t e m p l o mais i m p o r t a n t e e n c o n t r a - s e na concessão d o H u n o n D a g b o , o g r a n d e s a c e r d o t e dos v o d u n s d o m a r . A c o l e t i v i d a d e f a m i l i a r d o H u n o n é h u l a e m o r i g e m , mas a sua p r e s e n ç a em t e r r i t ó r i o h u e d a p r e c e d e u a c h e g a d a dos d a o m e a n o s na década de 1720. Fala-se q u e o H u n o n D a g b o "possui pessoalmente" os v o d u n s heviosos, m a s a sua j u s t a p o s i ç ã o aos v o d u n s m a r i n h o s da sua l i n h a gem sugere q u e , desde o início, os v o d u n s d o t r o v ã o estiveram s u b o r d i n a d o s às d i v i n d a d e s d o mar. Essa relação h i e r á r q u i c a foi e x p r e s s a m e n t e s a n c i o n a d a q u a n d o o H u n o n D a g b o foi p r o m o v i d o pelo rei d a o m e a n o c o m o a m á x i m a a u t o r i d a d e religiosa de U i d á , e t o d o s os c u l t o s de H e v i o s o p a s s a r a m a d e p e n der d i r e t a m e n t e dele. A s u b o r d i n a ç ã o dos v o d u n s d o trovão aos d o m a r é c o n c e i t u a l m e n t e expressa q u a n d o o H u n o n a f i r m a q u e t o d o s os v o d u n s heviosos são v o d u n s d o mar, filhos de Agbé. 2 6 U m a s i t u a ç ã o inversa p a r e c e ter-se d a d o e m A b o m e y , o n d e os v o d u n s d o m a r a p a r e c e m sob a j u r i s d i ç ã o religiosa dos sacerdotes d o t r o v ã o . Le Herissé, em 1911, foi o p r i m e i r o a u t o r a n o t a r q u e o p a n t e ã o d o m a r estava i n t e g r a d o e i m p l i c i t a m e n t e s u b o r d i n a d o ao p a n t e ã o d o t r o v ã o . " N a c o r t e de H e b i o s o estão i n c l u í d o s H u , o m a r e a sua família. H u , o u Agbé ou H u a l a h u n , é, c o m o i n d i c a o seu ú l t i m o n o m e , de o r i g e m H u a l a [ G d . P o p o ] [ . . . ] H u é o m a r i d o de N a - è t é , a m b o s g e n i t o r e s d e A v r e k e t e ; esta t r i n d a d e é l o u v a d a n o s t e m plos d o t r o v ã o e u t i l i z a as m e s m a s sete f o l h a s c o n s a g r a d a s ao t r o v ã o . " Aliás, nos t e m p l o s d o t r o v ã o , o casal A g b é e N a e t é é c o n s i d e r a d o " f i l h o " de S o g b o (o g r a n d e So). 2 7 E m A g b a n a n k i n e H e v e , n o t e r r i t ó r i o h u l a , b e r ç o de A g b é e d o s v o d u n s do mar, e n c o n t r a m o s t a m b é m o c u l t o de H e v i o s o , mas em t e m p l o s separados. Nas c o n g r e g a ç õ e s de H e v i o s o em H e v e , os v o d u n s d o t r o v ã o são c h a m a d o s yehwe,

s u g e r i n d o u m a i n t e r p e n e t r a ç ã o c o m o os c u l t o s yehwe de T o g o l a n d i a .

C o m o n o t a H e r s k o v i t s , "os c u l t o s y e h w e , em t e r m o s da c u l t u r a d a o m e a n a , não são mais d o q u e c u l t o s de v o d u n s c o m u m a ênfase regional p a r t i c u l a r nos deuses d o t r o v ã o e d o mar, e m e n o s s e p a r a t i s m o n o c u l t o de o u t r a s d i v i n d a des afiliadas" ( c o m o G b a d e , L o k o o u D a n ) . 2 8 E f e t i v a m e n t e , em T o g o l a n d i a , p r o v a v e l m e n t e e n t r e os anlos ou ewes, Spieth l e m b r a a liderança c o m p a r t i l h a d a do p a n t e ã o yehwe, e n t r e o v o d u m m a s c u l i n o do t r o v ã o So, i m p o r t a d o de Hevie, e a sua m u l h e r , o v o d u m d o m a r A g b u i (Agbé), i m p o r t a d o de Avlekete ( u m a l o c a l i d a d e h u l a ) . V e m o s c o m o fora d o t e r r i t ó r i o h u l a A g b é p o d e virar u m a d i v i n d a d e f e m i n i n a , s i m b o l i c a m e n t e sub o r d i n a d a ao seu esposo, o v o d u m d o trovão. A l é m de variações de género e

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

relações de p a r e n t e s c o , o g r u p o i n t e g r a d o de v o d u n s d o trovão e do m a r apresenta, c o m o em A b o m e y , u m a a p a r e n t e s u p e r i o r i d a d e h i e r á r q u i c a do trovão. 2 9 F i n a l m e n t e , em A n e h o ( P e q u e n o Popo) e G l i d j i , em t e r r i t ó r i o gen, e n c o n t r a m o s u m casal m i s t o de v o d u n s d o t r o v ã o e d o mar, o m a s c u l i n o H e v i o s o e o f e m i n i n o T o k p a d o u n , p r o g e n i t o r e s de u m a d e s c e n d ê n c i a m i s t a de v o d u n s m a r i n h o s (Avlekete, A g b o e o u A n a t ê ) e d e v o d u n s d o t r o v ã o , c o m o G b e d e ( G b a d é ) e A k l o b è ( A k o l o m b é ) , o ú l t i m o c o n s i d e r a d o o pai de o u t r o s v o d u n s do trovão, como Sogbo e Da Ahwanga.30 A e v i d ê n c i a c o l e t a d a em U i d á , A b o m e y , o delta d o M o n o e T o g o l a n d i a d e m o n s t r a claramente a m o b i l i d a d e das práticas e valores associados aos v o d u n s através das f r o n t e i r a s geográficas e étnicas e o leque de variações regionais resultado desse m o v i m e n t o . E m K e t o n o u , capital de u m a l i n h a g e m real h u l a , o culto d o m a r é s u p r e m o e n ã o há evidência do c u l t o de H e v i o s o , e n q u a n t o n o território gen e n c o n t r a m o s u m casal misto m a r - t r o v ã o com descendência igualm e n t e m i s t a . A m e d i d a q u e n o s d e s l o c a m o s p a r a oeste, d e K e t o n o u p a r a Togolandia, parece existir m a i o r i n t e r p e n e t r a ç ã o , c o m o se a integração dos dois g r u p o s fosse crescente fora dos t e r r i t ó r i o s originais desses c u l t o s . C o m e n t a n d o u m a d i n â m i c a s e m e l h a n t e nos cultos de orixás, Peei observa: "a m o b i l i d a d e dos orisas, seja em c o n s e q u ê n c i a de migrações dos seus d e v o t o s o u através d o zelo p r o m o c i o n a l d o s seus s a c e r d o t e s , t a m b é m p r o m o v e m u d a n ç a s n o c a r á t e r d o orisa. U m orisa r e c é m - c h e g a d o p o d e e n c o n t r a r o seu n i c h o especial já o c u p a d o , e p o d e t e n t a r criar u m n o v o n i c h o " . 3 1 As m u d a n ças de g é n e r o , laços de p a r e n t e s c o e h i e r a r q u i a a p o n t a d a s e m r e l a ç ã o aos v o d u n s d o m a r e d o t r o v ã o p a r e c e m seguir u m p r i n c í p i o similar. O m a s c u l i n o Agbé, p o r e x e m p l o , p o d e s o f r e r u m a m u d a n ç a de g é n e r o e d e p o s i ç ã o de par e n t e s c o q u a n d o é u m a a p r o p r i a ç ã o t a r d i a em c o m u n i d a d e s q u e já t i n h a m uma d o m i n a n t e divindade masculina do trovão. Nesse s e n t i d o , a i n v e r s ã o de status h i e r á r q u i c o e n t r e os v o d u n s d o m a r e do t r o v ã o em U i d á e A b o m e y p o d e r i a ser explicada e m t e r m o s c r o n o l ó g i c o s ; o g r u p o de d i v i n d a d e s r e c é m - c h e g a d o estaria s e m p r e s u b o r d i n a d o ao g r u p o p r e v i a m e n t e e s t a b e l e c i d o . Isso é claro em U i d á , o n d e os v o d u n s de H e v i o s o f o r a m os " h ó s p e d e s " , s e n d o q u e os v o d u n s d o m a r e r a m os p r ó p r i o s da l i n h a gem h u l a . Isso i m p l i c a r i a t a m b é m q u e os v o d u n s d o m a r f o r a m i m p o r t a d o s em A b o m e y q u a n d o o c u l t o de H e v i o s o já estava ali e s t a b e l e c i d o . Além dessa g e n e r a l i d a d e , sobre o m o m e n t o em q u e se p r o d u z a agregação m a r - t r o v ã o e o seu m o v i m e n t o através de fronteiras étnicas e geográficas, m u i t o p o d e ser especulado, mas p o u c o se p o d e a f i r m a r c o m certeza. Foi, sem d ú v i d a , u m processo assistemático, q u e aconteceu em períodos sucessivos em diferentes áreas. O m e s m o v o d u m poderia ser i m p o r t a d o em t e m p l o s diferentes da m e s m a

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L U I S N I C O L A U PA R É S

localidade por famílias d i s t i n t a s e m m o m e n t o s d i s t i n t o s , seja por m e i o s violentos, c o m o guerras e c a p t u r a de escravos, seja p o r estratégias pacíficas, c o m o m a t r i m ó n i o s , alianças e n t r e l i n h a g e n s ou migrações dos sacerdotes. S e g u n d o M e r l o , a i n c l u s ã o dos v o d u n s de H e v i o s o nos t e m p l o s h u l a s do m a r em U i d á p r é - d a t a v a a invasão da costa, realizada p o r Agaja em 1727. C e r t a m e n t e essa assimilação h u e d a - h u l a dos v o d u n s heviosos devia ser b e m a n tiga, já q u e os d e v o t o s de H e v i o s o , n o final da sua i n i c i a ç ã o , são c h a m a d o s huedanu

( h a b i t a n t e h u e d a ) e a sua l í n g u a r i t u a l secreta é o h u e d a g b e . Essa

t e r m i n o l o g i a é t n i c a associada à i n i c i a ç ã o p o d e , às vezes, i n d i c a r o l u g a r de o r i g e m d o c u l t o , m a s nesse caso i n d i c a u m dos seus p o n t o s de d i f u s ã o . ' 2 As tradições orais d a t a m a instalação dos cultos de H e v i o s o em A b o m e y e Kana de f o r m a variável d u r a n t e os reinados de Agaja, Tegbesu e Agonglo, o q u e p r o v a v e l m e n t e reflete a i m p o r t a ç ã o sucessiva de d i s t i n t o s heviosos. As tradições orais são t a m b é m c o n t r a d i t ó r i a s em relação ao lugar de o n d e o c u l t o de H e v i o s o teria sido i m p o r t a d o . E m b o r a U i d á seja u m a possibilidade, H e v i e é a l o c a l i d a d e mais vezes c i t a d a . O u t r a s versões c i t a m as l o c a l i d a d e s h u l a s de H e v e , A h l a H e v e , J a k i n e A g b a n a n k i n , i n d i c a n d o , c o m o e m U i d á , u m a antiga a p r o p r i a ç ã o h u l a dos v o d u n s aizo-seto. C o m o t e m p o , Hevioso virou a mais i m p o r t a n t e " d i v i n d a d e pública" de A b o m e y e c o m o v o d u m g u e r r e i r o e deus d a justiça foi e m b l e m a da d o m i n a ç ã o d a o m e a n a . A i m p o r t â n c i a c o n f e r i d a a H e v i o s o e m A b o m e y — c o n h e c i d o t a m b é m c o m o A g b o h u n , o u " d i v i n d a d e de Abomey" — é comparável à importância outorgada a Xangô em Oyo.33 E m relação aos v o d u n s d o mar, Le H e r i s s é diz q u e f o r a m i m p o r t a d o s em A b o m e y d u r a n t e o r e i n o d e T e g b e s u e logo i n s e r i d o s nos t e m p l o s d o t r o v ã o . N o e n t a n t o , em 1727, d u r a n t e o r e i n a d o de Agaja, já h á indícios de q u e m e m bros da elite d a o m e a n a p a r t i c i p a v a m dos cultos m a r i n h o s realizados em Jakin. E m m e a d o s do s é c u l o XIX, a a p r o p r i a ç ã o d o c u l t o m a r i n h o pela realeza f o n parece i n s t i t u c i o n a l i z a d a . 3 4 O s h u l a s e h u e d a s da c o s t a s e g u r a m e n t e f o r a m os g r u p o s é t n i c o s q u e prim e i r o i n t e g r a r a m os dois "panteões" e f o r a m responsáveis por sua s u b s e q u e n t e d i f u s ã o g e o g r á f i c a . P o r é m , e m m e a d o s d o século XVIII — p e r í o d o e m q u e a t r a n s f e r ê n c i a t r a n s a t l â n t i c a desses c u l t o s p o d e ter c o m e ç a d o — e c e r t a m e n te n o i n í c i o d o s é c u l o XIX — q u a n d o p r e s u m i v e l m e n t e c o n t r i b u í r a m n o p r o c e s s o f o r m a t i v o d o C a n d o m b l é — , esses c u l t o s d o m a r e d o t r o v ã o já est a v a m d i f u n d i d o s ao l o n g o de t o d a a costa d e s d e o rio Volta até Badagri e e r a m p r a t i c a d o s p o r diversos g r u p o s étnicos i n c l u i n d o os hulas, h u e d a s , fons, aizos, toris, dovis, gens, ewes e anlos. O r a , c o m o v i m o s no c a p í t u l o 1, na Bahia, os v o d u n s d o t r o v ã o e d o mar passaram a ser c o n h e c i d o s c o m o m u n d u b i , u m a d e n o m i n a ç ã o étnica registra-

284

O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

da nas primeiras décadas do século XIX. D o m e s m o m o d o que m a h i , savalu ou dagomé, m u n d u b i t o r n o u - s e o n o m e de u m a das "subnações" do C a n d o m blé jeje, isto é, m u n d u b i passou a designar u m a m o d a l i d a d e de rito específica associada aos v o d u n s da tamília Kaviono. O t e r m o " K a v i o n o " é i n t e r p r e t a d o por vários especialistas religiosos jejes c o m o u m a evolução f o n é t i c a de H e vioso ou Kevioso, e m b o r a se possa t a m b é m pensar n u m a relação com a expressão kaviecile

(ou kawo kabiyecile),

utilizada para salvar os v o d u n s e orixás do

trovão. C o m o explicava humbonoNicente, ooo, ooo, ooo, Daomé,

o Kavieceli

" m u n d u b i é Kaviono, e eles cantam:

vodun daome" ,35

N o Brasil, a família de Hevioso, K a v i o n o ou m u n d u b i refere-se s e m p r e ao p a n t e ã o i n t e g r a d o dos v o d u n s do trovão e do mar, com p r e d o m i n â n c i a hierárquica e n u m é r i c a dos p r i m e i r o s , c o m o sugere o seu n o m e . O v o d u m mais i m p o r t a n t e desse g r u p o é Sogbo (Sobo), seguido da sua d e s c e n d ê n c i a (Badé, A k o l o m b é etc.), e n q u a n t o os v o d u n s do mar, Averekete, Agbé (Abé) ou N a e t é (Naté) são m e n o s c o n h e c i d o s e n o r m a l m e n t e relegados a posições secundárias. Essa h e g e m o n i a dos v o d u n s do trovão r e p r o d u z a p a u t a a c h a d a em A b o m e y , no baixo M o n o e T o g o l a n d i a (e não a inversa p r e v a l e n t e em Uidá), o q u e p o d e r i a levar-nos a p e n s a r n u m a i d e n t i f i c a ç ã o d o t e r m o m u n d u b i com g r u p o s localizados nessas áreas.

0 "PRINCÍPIO DE A G R E G A Ç Ã O " N O PANTEÃO J E J E - M A H I DA BAHIA Para dar c o n t i n u i d a d e à análise do "princípio de agregação" característico da tradição dos cultos de v o d u n s , vamos e x a m i n a r os dois ú l t i m o s estágios do processo, agora já no Brasil. Por u m lado, a "família" de Hevioso ou Kaviono, t a n t o nos terreiros jejes da Bahia c o m o nos d o M a r a n h ã o , c o n v e r t e u - s e n u m "nicho" ou categoria conceituai inclusiva, agregando u m a série de divindades c o m o o v o d u m - p a n t e r a Kpo, ou o v o d u m - á r v o r e Loko ( t a m b é m Lissá e N a n ã no M a r a n h ã o ) , que na área gbe não p e r t e n c i a m e s t r i t a m e n t e a esse g r u p o . C a b e n o t a r q u e na Africa e n t i d a d e s espirituais c o m o Legba, K p o , Loko ou D a n não d e s i g n a m u m ú n i c o v o d u m , mas são t e r m o s genéricos, i n c l u i n d o u m a p l u r a l i d a d e de e n t i d a d e s individualizadas que p o d e m estar associadas a vários v o d u n s . Por exemplo, p o d e haver u m K p o que se m a n i f e s t a ou "vem pelo lado" dos voduns da terra Sakpata, e um o u t r o que "vem pelo lado" dos voduns do trovão Hevioso. Ambos são Kpo ou panteras, mas se manifestam nos diferentes t e m p l o s c o m o "qualidades" distintas com a t r i b u t o s p r ó p r i o s . D o m e s m o m o d o , certos v o d u n s p o d e m ter a sua "qualidade" de D a n , L o k o ou Legba. Esse fato explicaria a inclusão de K p o e Loko na família de H e v i o s o

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L U I S N I C O L A U PA R É S

n o Brasil. M a s a l é m desse p r i m e i r o nível de a g r e g a ç ã o , a " f a m í l i a " K a v i o n o o u m u n d u b i , e m b o r a i d e n t i f i c a d a c o m o u m g r u p o d i f e r e n c i a d o de v o d u n s , foi r i t u a l m e n t e j u s t a p o s t a a o u t r o s g r u p o s d e v o d u n s j e j e - m a h i s e orixás n a g ô s . Consideremos c o m o p o n t o de partida a organização do panteão do Bogum n a a t u a l i d a d e . N e s s e t e r r e i r o d i s t i n g u e m - s e três g r a n d e s g r u p o s d e e n t i d a d e s e s p i r i t u a i s : 1) os Kaviono,

c o n s i d e r a d o s a " f a m í l i a real", i n c l u i n d o v o d u n s

c o m o S o g b o , B a d é , L o k o , K p o e o u t r o s ; 3 6 2) os "Voduns",

incluindo diferentes

"qualidades" d o v o d u m - c o b r a D a n (Bessen, T o q u e m , Q u e n q u é m etc.), d o v o d u m - v a r í o l a Sakpata (Azonsu ou A j o n s u , Azoani etc.) e outros, c o m o T o b o s s i , A g u é e t c . ; e 3) os Nagô-vodum,

i n c l u i n d o orixás nagôs f e m i n i n o s ,

c o m o N a n ã , Iansã, O x u m , I e m a n j á e outros masculinos, c o m o O m o l u , Oxóssi etc. D i s t i n t a s " q u a l i d a d e s " d e u m a m e s m a e n t i d a d e e s p i r i t u a l p o d e m c o r r e s p o n d e r a g r u p o s d i f e r e n t e s e t e r a s s e n t o s s e p a r a d o s . Por e x e m p l o , o v o d u m A j o n s u p e r t e n c e ao g r u p o d o s " v o d u n s " , m a s O m o l u , s e u c o r r e s p o n d e n t e orixá n a g ô , p e r t e n c e ao g r u p o " n a g ô - v o d u m " e t e m o p r ó p r i o a s s e n t o . O m e s m o a c o n t e c e c o m o v o d u m A g u é e o o r i x á O x ó s s i . D i z - s e a i n d a q u e as e n t i d a d e s n a g ô s "são orixás m a s t ê m p r e c e i t o s jeje". 3 " C e r t o s v o d u n s c o m o Bessen o u A j o n s u , pela s u a i m p o r t â n c i a h i e r á r q u i c a , são, às vezes, c o n f u n d i d o s c o m m e m b r o s da " f a m í l i a real", m a s seria talvez mais c o r r e t o falar deles c o m o " s ú d i t o s " o u " h ó s p e d e s " de S o g b o . J e h o v á d e C a r v a l h o d o c u m e n t a u m m i t o da casa q u e e x p l i c a r i a a a m i z a d e e n t r e S o g b o e D a n . Sobô estava em suas terras e, de repente, surge uma caravana. E esta caravana tinha um chefe chamado Dâ. E Dâ chega às terras de Sobô e pede pousada por aquela noite. Mas Sobô se preocupou com o cansaço dos que seguiam a Dâ e lhe disse: "Você pode ficar mais um dia, aqui". A partir desse contacto, foram contadas histórias do seu povo, m u t u a m e n t e , de tal maneira que descobriram que havia, entre eles, interesses comuns. [...] Então Dâ disse: "Se você me permitir, nunca mais eu vou sair daqui". E Sobô consentiu. A partir desse encontro, a terra dos jeje-mahins, a terra de Sobo, passou a ser t a m b é m a terra de Dâ. 3 8 Essa h o s p e d a g e m d o p o v o d e D a n n a s t e r r a s d e S o g b o e n c o n t r a p a r a l e l o na t r a d i ç ã o m í t i c a d o s c o r r e s p o n d e n t e s o r i x á s n a g ô O x u m a r é e X a n g ô , n o q u a l , c o m o v e r e m o s m a i s a d i a n t e , o p r i m e i r o , r e s p o n s á v e l pelas c h u v a s , é c o n s i d e r a d o "o c r i a d o " d o s e g u n d o . Essa t r a d i ç ã o m í t i c a q u e liga e s u j e i t a D a n a S o g b o ( o u O x u m a r é a X a n g ô ) talvez t e n h a s u r g i d o a p a r t i r d a c e n t r a l i z a ç ã o e h i e r a r q u i z a ç ã o d o s c u l t o s d e v o d u n s e s t a b e l e c i d a e m A b o m e y , n a q u a l os cultos de D a n foram i n t r o d u z i d o s nos templos de Sogbo. Alternativamente, essa n a r r a t i v a seria u m a a d a p t a ç ã o jeje d o m i t o i o r u b á o c o r r i d a n o Brasil, q u e r e f l e t i r i a , talvez, o e n c o n t r o e c o l a b o r a ç ã o e n t r e s a c e r d o t e s m u n d u b i s e m a h i s .

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O PANTEAO JEJE E SUAS

J á gaiaku

TRANSFORMAÇÕES

Luiza, líder do terreiro H u n t o l o j i , q u e segue de p e r t o a tradi-

ç ã o d o Seja H u n d é , e x p l i c a : Lá em casa nós temos o modubi ou kaviono, o dan e o nagô vodun. E vamos na linha certa, como quando nós abrimos o zandro "valu, valu nu kulu...'\ aí vai seguindo, q u a n d o termina entra 110 nagô-vodun "ago, ago nilê", pedindo licença aos Kaviono porque o jeje é entrosado com os três. Não existia a merê [mulher] no jeje. Só existia homem. Foi o motivo porque entrou o nagô-vodun. Como sejam: Oiá, Iemanjá, O x u m , Nanã, para que haja iabás [vodum feminino em nagô], E por isso que, quando acaba o zandro e entra o dorozan se canta "Ago nilê, nilê madá, ago ni bibi o e ki iu íle madá ago', pedindo ao d o n o da nação, Kavioso, licença. 39 E f e t i v a m e n t e , a j u s t a p o s i ç ã o d o s v o d u n s m u n d u b i s e m a h i s c o m os orixás nagôs e n c o n t r a expressão n o nível ritual, na o r d e m da sequência de c a n t o s d o zandró,

o b r i g a ç ã o d e a b e r t u r a d a s festas n o s c a n d o m b l é s j e j e - m a h i s q u e

será e x a m i n a d a n o p r ó x i m o c a p í t u l o . O zandró

i n i c i a - s e c o m u m a série de

cantos associados a Bessen, seguidos de o u t r o s para Legba e O g u m X o r o q u e , d i v i n d a d e s q u e a b r e m os c a m i n h o s , e a p a r t i r d a í se c a n t a p a r a A i z a n , T o b o s s i e a f a m í l i a K a v i o n o . F i n a l m e n t e , c o m o c a n t o "Ago n i l ê " i n a u g u r a - s e a seq u ê n c i a c o r r e s p o n d e n t e ao l a d o " n a g ô - v o d u m " . A p a r t e " n a g ô - v o d u m " d o zandró

q u e , aliás, c o n s t i t u i a s e q u ê n c i a q u e es-

t r u t u r a as festas p ú b l i c a s , n a v e r d a d e i n c l u i c a n t o s e m l o u v o r t a n t o de v o d u n s c o m o d e orixás, e segue d e p e r t o , m a s n ã o e x a t a m e n t e , a o r d e m d o x i r ê dos c a n d o m b l é s n a g ô - k e t u s : 1) o orixá da g u e r r a e d o s m e t a i s O g u m ; 2) os v o d u n s c a ç a d o r e s A g u é e O d é ; 3) os v o d u n s d a t e r r a e d a v a r í o l a S a k p a t a - A z o n s u ; 4) as yabas

o u o r i x á s f e m i n i n o s O x u m - I e m a n j á - O i á ; 5) os v o d u n s d o t r o v ã o

S o g b o - B a d é - L o k o - K p o ; 6) a m ã e m a i s velha das águas, N a n ã ; 7) O l i s s á - O x a l á e 8) o v o d u m - c o b r a D a n - B e s s e n . O ú l t i m o , p o r ser c o n s i d e r a d o o " d o n o " o u "rei" d a n a ç ã o j e j e - m a h i , e n c e r r a a s e q u ê n c i a c o m o sinal d e d i s t i n ç ã o , c a r a c t e rística essa p r ó p r i a d o s t e r r e i r o s jejes d e C a c h o e i r a n ã o r e p l i c a d a n o s c a n d o m blés n a g ô - k e t u s , q u e f i n a l i z a m o xirê c a n t a n d o p a r a O x a l á . Esse c o m p l e x o p r o cesso de a g r e g a ç ã o m u l t i é t n i c a p o d e ser r e p r e s e n t a d o p e l a F i g u r a 2. C o m p r o v a m o s q u e o " p r i n c í p i o d e a g r e g a ç ã o " se a r t i c u l a e m d o i s níveis p r i n c i p a i s : 1) a j u s t a p o s i ç ã o d o g r u p o m u n d u b i c o m o g r u p o m a h i e 2) a j u s t a p o s i ç ã o d o s v o d u n s jejes c o m os o r i x á s n a g ô s . A p r i m e i r a j u s t a p o s i ç ã o foi p r o v a v e l m e n t e resultado da reunião de especialistas religiosos de diversos g r u p o s é t n i c o s da área gbe, d e t e r m i n a d a pela n e c e s s i d a d e de c o m p a r t i l h a r os l i m i t a d o s r e c u r s o s d i s p o n í v e i s d u r a n t e o r e g i m e o p r e s s i v o d a e s c r a v i d ã o . U m e x e m p l o d e s s a d i n â m i c a p o d e ser p e r c e b i d o n a R o ç a de C i m a , n o r m a l m e n t e identificada c o m o de nação j e j e - m u n d u b i , mas que c e r t a m e n t e con-

287

L U I S N I C O L A U PA R É S

tava c o m a p r e s e n ç a de especialistas religiosos m a h i s c o m o L u d o v i n a Pessoa, q u e mais tarde a j u d o u a f u n d a r o Seja H u n d é , terreiro i d e n t i f i c a d o c o m o jejem a h i . E m q u a l q u e r caso, insisto, essa r e u n i ã o i n t e r é t n i c a foi f a v o r e c i d a pela t r a d i ç ã o d o s c u l t o s de v o d u n s da área gbe, o n d e o " p r i n c í p i o de agregação" era p r á t i c a h a b i t u a l . T r a t a r - s e - i a a p e n a s d e u m a e x t e n s ã o da e s t r u t u r a i n c l u siva d o s c u l t o s d e m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s e das f o r m a s de performance

seriada

q u e o p e r a v a m a u m nível m a i s r e s t r i t o na A f r i c a .

N a g ô (orixás)

Jeje (voduns)

Mahi

Mundubi

Hevioso

Dan

»

Sogbo

Sakpata

Outros

Yabas +

Outros

T

+

+

1

Bessem

Azonsu

Legba

Oiá (lansã)

Ogum

Badé

Bafono

Azoani

Agué

Oxum

Oxóssi

Loko

Toquem

Avimanje

Aziri

Iemanjá

Omolu

Kpo

Akotoquem

Averekete

Nanã

Xangô

Olissá

Oxalá

Figura 1 — 0 processo de agregação jeje-nagô e m u n d u b i - m a h i nos terreiros jeje-mahis

P a r a l e l a m e n t e , a j u s t a p o s i ç ã o de v o d u n s jejes c o m orixás nagôs p o d e r i a e n t e n d e r - s e d o m e s m o m o d o . O r a , esse s e g u n d o nível de agregação a p r e s e n t a características m a i s c o m p l e x a s . D u r a n t e as c e r i m ó n i a s p ú b l i c a s , c a n t o s e m l o u v o r a orixás n a g ô s p o d e m ser i n s e r i d o s n o s s e g m e n t o s c o r r e s p o n d e n t e s às suas c o n t r a p a r t e s v o d u n s (i.e., p o d e c a n t a r - s e p a r a O x ó s s i n o s e g m e n t o de Agué, cantar-se para O m o l u n o de S a k p a t a etc.). Esse é u m processo q u e t e n d e a crescer c o m a h e g e m o n i a n a g ô c o n t e m p o r â n e a e ao q u a l os especialistas | !

religiosos a t r i b u e m a p e r d a de c o n h e c i m e n t o d o p o v o - d e - s a n t o , q u e já n ã o sabe r e s p o n d e r às cantigas jejes, o q u e o b r i g a a utilizar o r e p e r t ó r i o n a g ô - k e t u m a i s p o p u l a r . M a s , além desse f a t o , o q u e c h a m a a a t e n ç ã o é a i n c l u s ã o no p a n t e ã o jeje das yabas,

c o m d e s t a q u e de O i á e O x u m , e n t i d a d e s f e m i n i n a s

q u e n ã o e n c o n t r a m e q u i v a l e n t e claro na t r a d i ç ã o v o d u m . C e r t a m e n t e essa p e n e t r a ç ã o de e l e m e n t o s n a g ô s na l i t u r g i a jeje foi r e s u l t a d o da i m p o r t â n c i a !

da t r a d i ç ã o dos c u l t o s de orixás n o p r o c e s s o f o r m a t i v o d o C a n d o m b l é , e isso n o s o b r i g a a e n s e j a r u m a n o v a análise h i s t ó r i c a p a r a d e t a l h a r u m a possível explicação.

288 í

O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

É d i f í c i l s a b e r se a j u s t a p o s i ç ã o m u n d u b i - m a h i p r e c e d e u o u f o i c o n t e m p o r â n e a da jeje-nagô, mas é claro que a heterogénea agregação de divindades q u e o b s e r v a m o s h o j e estava já l a t e n t e e m m e a d o s d o s é c u l o X I X e, d e c e r t o , c o n s o l i d a d a n o f i n a l d o s é c u l o , c o m o a t e s t a o c o m e n t á r i o de R o d r i g u e s s o b r e a " í n t i m a f u s ã o " e n t r e as m i t o l o g i a s jeje e n a g ô , até o p o n t o e m " q u e se t o r n o u hoje impossível distingui-las".40 J á n a d é c a d a d e 1 8 6 0 , o j o r n a l O Alabama

documentava explicitamente

os n o m e s d e S o g b o , L e g b a e L o k o , i n d i r e t a m e n t e os d e A g u é e N a n ã , e fazia r e f e r ê n c i a ao c u l t o d a " s e r p e n t e " e d a " v a r í o l a " (ver c a p . 4 ) , o q u e s u g e r e q u e a e s s ê n c i a d o p a n t e ã o j e j e c o n t e m p o r â n e o já estava c o n f i g u r a d a n a q u e l a é p o ca. Aliás, n a festa l i d e r a d a p o r L u d o v i n a Pessoa, na C r u z d o C o s m e , e m 1869, q u a n d o o jornalista chegou: Estavam c o m e n d o amald E entoavam u m hino Em graça e louvor de 0/a.4] A p a r t i c i p a ç ã o d e L u d o v i n a c o m o d i r i g e n t e dessa f e s t a s u g e r e t r a t a r - s e d e u m c a n d o m b l é jeje ou, pelo m e n o s , c o m forte influência do culto de v o d u n s . O f a t o d e f a l a r e m e m O i á i n d i c a r i a q u e , já nesse p e r í o d o , os o r i x á s n a g ô s faziam parte do "panceão" jeje. D e fato, n u m a nota ao pé de página do texto o r i g i n a l a p a r e c e a s s o c i a d o ao n o m e d e O i á o s e g u i n t e c o m e n t á r i o : "a m u l h e r do santo maior — Soubô". C o n t r a r i a m e n t e à tradição nagô, que considera O i á a m u l h e r d o o r i x á X a n g ô , n o s t e r r e i r o s j e j e s ela é i d e n t i f i c a d a c o m o esposa do v o d u m Sogbo. A p e s a r d a " í n t i m a f u s ã o " e n t r e as m i t o l o g i a s j e j e e n a g ô , n a v i r a d a d o s é c u l o X I X R o d r i g u e s r e g i s t r o u os n o m e s d e v á r i o s v o d u n s c u l t u a d o s n o s t e r r e i r o s jejes de S a l v a d o r . Além de M a w u , Khêbiosô, Legba, Anyi-ewo, Loko, H o h o , Saponan e Wu (mar), c o n f u n d i d o s com os orixás nagôs correspondentes O í o r u m , Xangô, Elegbá, Oxumarê, Irôco, Ibeji, X a p o n ã e O l o k u m , existe um n ú m e r o crescido de vodus ou divindades jejes menos conhecidas c o m o Dsô, fogo, Nati e Avrikiti, divindades marinhas; Ba, deus dos guerreiros, e animais como o crocodilo, o leopardo etc. 4 ~ A m e n ç ã o d e H e v i o s o , A n y i - e w o ( A i d o - h w e d o o u D a n ) e Saponan

(um

no-

m e i o r u b á d e S a k p a t a ) c o n f i r m a a v e n e r a ç ã o d o s três g r u p o s h e g e m ó n i c o s a t u a l m e n t e . A a l u d i d a " c o n f u s ã o " c o m os c o r r e s p o n d e n t e s o r i x á s n a g ô s p o d e r i a indicar a crescente p r e d o m i n â n c i a da cosmologia nagô no C a n d o m b l é soterop o l i t a n o d o f i n a l d o s é c u l o X I X , m a s t a m b é m p o d e r i a ser i n t e r p r e t a d a c o m o

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PA R É S

u m e s f o r ç o dos i n f o r m a n t e s jejes para falar em t e r m o s c o m p r e e n s í v e i s p a r a Rodrigues, mais familiarizado c o m a tradição nagô. C o m e n t a r e i mais adiante os o u t r o s v o d u n s c i t a d o s p o r R o d r i g u e s , c o m o Legba, L o k o , M a w u , o leop a r d o e as d i v i n d a d e s m a r i n h a s ( W u , N a t i , A v r i k i t i e o c r o c o d i l o ) . Por e n q u a n t o , o q u e c a b e reter é q u e já n a s e g u n d a m e t a d e d o O i t o c e n t o s , n o s terreiros jejes c u l t u a v a m - s e as três g r a n d e s famílias d o p a n t e ã o atual, e q u e estas e r a m r i t u a l m e n t e j u s t a p o s t a s a u m a série de orixás nagôs. O g r a u de p e r s i s t ê n c i a o u i m p o r t â n c i a de u m a d e t e r m i n a d a d i v i n d a d e na religião p o d e c a l i b r a r - s e pela o c o r r ê n c i a o u a u s ê n c i a de q u a t r o f e n ó m e n o s , a saber, e m o r d e m crescente de i m p o r t â n c i a : a d i v i n d a d e 1) p o d e ser l e m b r a d a a p e n a s p e l o n o m e ; 2) p o d e ser l o u v a d a nas c a n t i g a s rituais; 3) p o d e ter u m assento n o terreiro; o u 4) p o d e ter d e v o t o s c o n s a g r a d o s e m a n i f e s t a r - s e através da "possessão" nas festas públicas e obrigações i n t e r n a s da casa. O ú l t i m o caso, q u e i m p l i c a a e x i s t ê n c i a d o s três a n t e r i o r e s , expressa o nível m a i s alto de p r e s e n ç a o u a t u a l i d a d e de u m a d i v i n d a d e na c o m u n i d a d e religiosa. Nesse sentido, c o m o v i m o s n o c a p í t u l o anterior, e n t r e 1913 e 1920, n o Seja H u n d é havia u m a s 26 d a n ç a n t e s (20 delas iniciadas nesse período). 4 3 Sete delas, mais de u m q u a r t o d o total, estavam consagradas a v o d u n s p e r t e n c e n t e s à família K a v i o n o (dois Sogbo, três Badé, u m K p o e u m A k o l o m b é ) . Ao m e s m o t e m p o , u m n ú m e r o igual d e iniciadas estava c o n s a g r a d o aos orixás f e m i n i n o s O x u m e O i á , f a t o q u e i n d i c a a progressiva p e n e t r a ç ã o do c u l t o das yabas

no

culto jeje. Essa situação é t a m b é m r e p r o d u z i d a n o B o g u m d o p e r í o d o p ó s - a b o lição, e m q u e , d e f o r m a s i g n i f i c a t i v a , d u a s das q u a t r o m ã e s - d e - s a n t o e r a m devotas d e Sogbo e a presença de devotas de O i á e O x u m é t a m b é m n o t ó r i a . E m b o r a a i n c l u s ã o das yabas n a l i t u r g i a jeje fosse já efetiva em m e a d o s d o século XIX, c o m o sugere a n o t í c i a de O Alabama

a c i m a citada, é provável q u e

o n ú m e r o de d e v o t a s desses orixás f e m i n i n o s t e n h a i n c r e m e n t a d o d e v i d o à s u p e r i o r i d a d e n u m é r i c a das m u l h e r e s e n t r e as pessoas i n i c i a d a s , s o b r e t u d o q u a n d o m u l h e r e s crioulas a s s u m i r a m de f o r m a p r e d o m i n a n t e a l i d e r a n ç a dos t e r r e i r o s na v i r a d a d o século XIX (ver cap. 4). C o m o explica gaiaku

Luiza,

n o jeje só existiam v o d u n s m a s c u l i n o s e n ã o e x i s t i a m v o d u n s f e m i n i n o s , daí p o r q u e foi a p r o p r i a d o o c u l t o das yabas, i n s t i t u i n d o n o p a n t e ã o jeje o g r u p o " n a g ô - v o d u m " . 4 4 E m b o r a n ã o seja t o t a l m e n t e c o r r e t o dizer q u e nos c u l t o s de v o d u n s da área g b e n ã o existiam v o d u n s f e m i n i n o s , é v e r d a d e q u e havia u m a p r e d o m i n â n c i a de v o d u n s masculinos. A m i n h a sugestão é que a crescente i m p o r t â n c i a das d e v o t a s de O i á e O x u m n o s terreiros jejes esteve d i r e t a m e n t e r e l a c i o n a d a ao p r o g r e s s i v o c o n t r o l e f e m i n i n o das c o n g r e g a ç õ e s religiosas. N e s s e caso, a agregação das yabas nagôs e a c o n s e q u e n t e t r a n s f o r m a ç ã o d o p a n t e ã o jeje refletiria ou expressaria n ã o as i n t e r a ç õ e s i n t e r é t n i c a s d o s espe-

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Q PfkSTtí.0 J E J t í SUAS

UMtSfOmÇOES

cialistas r e l i g i o s o s , c o m o n o caso d a j u s t a p o s i ç ã o d e v o d u n s m u n d u b i s e m a h i s , m a s alterações nas p r o p o r ç õ e s d o g é n e r o dos p a r t i c i p a n t e s e, especialm e n t e , d a l i d e r a n ç a das c o n g r e g a ç õ e s religiosas. A c r e s c e n t e i m p o r t â n c i a dos orixás f e m i n i n o s n o u n i v e r s o e s p i r i t u a l jeje p ô d e t a m b é m ter c o m o causa f a t o r e s c o n c e i t u a i s c o m p l e m e n t a r e s . N a m i t o logia n a g ô , O i á e O x u m são tidas c o m o m u l h e r e s d o orixá X a n g ô e, p o r associação, c o m o v i m o s , n o s terreiros jejes elas são t a m b é m tidas c o m o esposas do correspondente v o d u m Sogbo.45 Além do papel central do v o d u m - c o b r a D a n e d o v o d u m - v a r l o l a S a k p a t a , a h e g e m o n i a de X a n g ô p r e v a l e c e n t e nos t e r r e i r o s n a g ô s e n a c o m u n i d a d e religiosa m a i s a m p l a p o d e ter c o n t r i b u í d o p a r a privilegiar o v o d u m m u n d u b i S o g b o n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s e, p o r ext e n s ã o , a a s s i m i l a ç ã o de suas esposas. O r a , ao t e m p o q u e novas d i v i n d a d e s são i n c o r p o r a d a s ao p a n t e ã o , o u t r a s vão d e s a p a r e c e n d o ; em o u t r a s palavras, o p r i n c í p i o de agregação i n e r e n t e aos cultos de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s é c o m p l e m e n t a d o p o r u m p r i n c í p i o paralelo de seletividade o u exclusão q u e explicaria o progressivo e s q u e c i m e n t o de certas d i v i n d a d e s . A i m p o r t â n c i a decrescente dos v o d u n s jejes d o m a r na Bahia seria u m e x e m p l o dessa d i n â m i c a . R o d r i g u e s m e n c i o n a pelo m e n o s q u a t r o v o d u n s do m a r : H u , N a e t é , Averekete e T o k p o d u n (o crocodilo, n o r m a l m e n t e i n c l u í d o n o p a n t e ã o d o m a r na área gbe). Mas, na lista das d a n ç a n t e s d o Seja H u n d é , é n o t ó r i a a ausência de d a n ç a n t e s de q u a l q u e r u m desses v o d u n s m a r i n h o s . H u (Agbé) e T o k p o d u n f o r a m t o t a l m e n t e esquecidos; o n o m e de N a e t é é v a g a m e n t e l e m b r a d o , mas é r a r a m e n t e e v o c a d o nas cantigas rituais. Averekete é o ú n i c o v o d u m da f a m í l i a d o m a r l o u v a d o nas cantigas e c o m assento n o Seja H u n d é , mas n ã o n o B o g u m , q u e , c o m o vimos, celebrava os seus rituais n o v i z i n h o Pó Z e r r e m . N o e n t a n t o , o c o n h e c i m e n t o ritual para a i n i c i a ç ã o de d e v o t a s de Averekete parece q u e foi aos p o u c o s se p e r d e n d o . 4 6 C a b e n o t a r q u e n o M a r a n h ã o a persistência dos v o d u n s do m a r é mais i m p o r t a n t e , e A g b é (Abé), N a e t é e p r i n c i p a l m e n t e Averekete, são a i n d a i m p o r t a n t e s e p o p u l a r e s v o d u n s . O orixá m a s c u l i n o O l o k u m , a d i v i n d a d e d o m a r n a g ô na área de I j e b u Awori e E g b a d o , c o m o seus pares jejes, t a m b é m p e r d e u i m p o r t â n c i a na Bahia p a r a a f e m i n i n a I e m a n j á , d i v i n d a d e d o rio O g u m , o r i g i n a l m e n t e c u l t u a d a pelos E g b a d e A b e o k u t a , q u e g r a d u a l m e n t e v i r o u a d i v i n d a d e d o m a r m a i s i m p o r t a n t e n o Brasil. N o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s , a f e m i n i n a Aziri T o b o s s i , o r i g i n a l m e n t e u m e s p í r i t o dos rios c u l t u a d o pelos m a h i - a g o n l i s , foi associada a I e m a n j á , e c o m o tal p e r s i s t i u c o m o a m a i s i m p o r t a n t e d i v i n d a d e das águas e n t r e os jejes (ver c a p . 8). Essas t r a n s f o r m a ç õ e s i n t e r - r e l a c i o n a d a s , c o m o no caso de O x u m e O i á , s u g e r e m q u e h o u v e u m a progressiva " f e m i n i z a ç ã o " d o p a n t e ã o o r i x á - v o d u m ,

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PA R É S

n a qual d i v i n d a d e s masculinas do m a r c o m o Agbé e O l o k u m f o r a m aos p o u cos s u b s t i t u í d a s p o r d i v i n d a d e s f e m i n i n a s das águas doces. D o m e s m o m o d o q u e no século XVIII, no D a o m é , a justaposição de v o d u n s do mar e do trovão refletia processos de apropriação de cultos alheios, e que na Bahia do século XIX a justaposição ritual de voduns m u n d u b i s e mahis refletia a reunião de especialistas religiosos de diversos grupos étnicos da área gbe; p o d e m o s pensar que a "feminização" d o p a n t e ã o o r i x á - v o d u m , q u e se deu p r i n c i p a l m e n t e n o final d o século XIX, foi u m a resposta à crescente i m p o r t â n c i a das m u l h e r e s na liderança do C a n d o m b l é . Essas dinâmicas estão em consonância com a tese de Bastide s e g u n d o a qual a seleção e a ênfase de certos a t r i b u t o s das divindades n o N o v o M u n d o f o r a m condicionadas pelas características socioculturais do novo contexto. 4 7 S u m a r i z a n d o , m o s t r e i c o m o o processo f o r m a t i v o do C a n d o m b l é , apesar de ser u m a criação g e n u i n a m e n t e brasileira, c o n d i c i o n a d a e m o l d a d a pela sociedade colonial e escravista, r e p r o d u z i u e a d a p t o u os p r i n c í p i o s básicos dos cultos de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s e f o r m a s de performance

ritual seriada caracte-

rísticos d o sistema religioso v o d u m . Esses p r i n c í p i o s p e r s i s t i r a m na Bahia c o m o traços essenciais q u e p r o v i d e n c i a r a m os meios e s t r u t u r a i s para agregar u m a p l u r a l i d a d e de cultos m u l t i é t n i c o s em u m a i n s t i t u i ç ã o religiosa relativam e n t e coesa. T a m b é m p r e t e n d i mostrar, através de u m a análise h i s t ó r i c a da d i n â m i c a i n t e r n a de u m g r u p o p a r t i c u l a r de d i v i n d a d e s na área gbe e nos terreiros jejes da Bahia, c o m o a t r a n s f o r m a ç ã o de qualquer "panteão" está sempre baseada em processos s i m u l t â n e o s de c u m u l a ç ã o - i n t e g r a ç ã o e seleção-disc r i m i n a ç ã o de d i v i n d a d e s . Aliás, foi s u g e r i d o q u e esses processos, q u e se dão ao nível conceituai das entidades espirituais, refletem interações étnicas e m u danças específicas na organização d o c o r r e s p o n d e n t e c o r p o sacerdotal. Nesse s e n t i d o , a análise histórica da d i n â m i c a i n t e r n a dos "panteões" p o d e revelar aspectos da organização sociopolítica de seus devotos, e em p a r t i c u l a r de seus líderes religiosos. C a b e agora e x a m i n a r o u t r o s g r u p o s de v o d u n s , c o m o as famílias de D a n e Sakpata, p a r a c o m p l e m e n t a r a análise levantada a p a r t i r da família H e v i o s o .

SAKPATA-SHAPANA, OMOLU E NANÃ BURUKU: FLUXOS E REFLUXOS AFRICANOS E SUA C O N T I N U I D A D E N O C A N D O M B L É N A G Ô - V O D U M U m m i t o bem c o n h e c i d o n o C a n d o m b l é n a g ô - k e t u fala de N a n ã B u r u k u , "a mãe mais velha das águas", sincretizada com S a n t a n n a , c o m o a mãe de O m o l u (Shapana)

e

O x u m a r é , sendo que as três divindades são geralmente

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consideradas

O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

d e o r i g e m jeje o u j e j e - m a h i . N o t e r r e i r o Axé O p ô A f o n j á , p o r e x e m p l o , essas três e n t i d a d e s t ê m o b r i g a ç õ e s c o n j u n t a s na s e g u n d a - f e i r a , e d u r a n t e o xirê, às vezes, canta-se para elas de m o d o consecutivo. 4 8 Até certo p o n t o , nessa associação r i t u a l , explícita t a m b é m em t e r m o s d e p a r e n t e s c o m i t o l ó g i c o , t e r í a m o s u m a o u t r a e x p r e s s ã o d o p r i n c í p i o de agregação. Verger q u e r ver nessa t r a d i ç ã o dos t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s u m a c o n t i n u i d a d e d i r e t a d o q u e se passa n a c i d a d e de K e t u , o n d e " N a n ã B u r u k u fica n o m e s m o t e m p l o q u e O s u m a r e e é c o n s i d e r a d a a m ã e de O m o l u ( S o p o n n a ) " . Este últim o orixá, n u m t e m p l o separado, é t a m b é m r e p r e s e n t a d o j u n t o a e m b l e m a s de O x u m a r é e Iroko. S h a p a n a teria v i n d o da área gbe, o n d e é c o n h e c i d o c o m o Sakpata e, s e g u n d o Verger, Ketu seria a ú n i c a cidade o n d e essa e n t i d a d e é i d e n tificada c o m O m o l u . 4 9 D i a n t e desse p a r a l e l i s m o n ã o p o d e m o s descartar u m a possível relação de c o n t i n u i d a d e entre as tradições de Ketu e as práticas d o C a n d o m b l é baiano. O r a , é i m p o r t a n t e n o t a r — d e i x a n d o de lado o caso de O x u m a ré, q u e será t e m a d a p r ó x i m a seção — q u e N a n ã B u r u k u , S h a p a n a e O m o l u c o n f i g u r a m n a A f r i c a u m a c o m p l e x a t r í a d e de d i v i n d a d e s , c o m i n ú m e r o s cultos i n t e r - r e l a c i o n a d o s das f o r m a s m a i s diversas e r e p a r t i d o s n u m a vasta área q u e vai d o país N u p é , n o leste, até além d o rio Volta, na região n o r d e s t e do país A s h a n t i , n o oeste. R e d u z i r a i n f l u ê n c i a dessa tríade n o C a n d o m b l é a p e n a s às tradições de u m a ú n i c a localidade seria arriscado. A t é a q u i m e referi a S a k p a t a c o m o o " v o d u m da terra", mas seria mais correto falar dele c o m o o " d o n o da terra". S e g u n d o L e p i n e , os c u l t o s s a k p a t a s h a p a n a (e o u t r a s variantes c o m o O b a l u a ê , A i n o n , Iye, B u r u k u ) representariam o r i g i n a l m e n t e u m c u l t o ao "rei da terra", associado aos ancestrais f u n d a d o r e s (nascidos o u m o r a d o r e s no f u n d o da terra) e aos ciclos agrícolas, e r e m o n t a r i a m a u m a n t i g o sistema religioso p r é - O d u d u a . Por sua vez, esses c u l t o s t e r i a m a c o m p a n h a d o as migrações dos d e s c e n d e n t e s de O d u d u a e dos adjas, na virada do p r i m e i r o m i l é n i o , d i f u n d i n d o - s e e m t o d a a área i o r u b á e gbe. Esse m o v i m e n t o implicaria "origem" n a região t a p a ( n u p é ) , n o leste, e teria p r o g r e d i d o para o oeste, p a s s a n d o p o r O y o - I f é , Ketu, Savè, Dassa Z o u m é , Savalu até T a d o e A t a k p a m e , n o oeste. Verger a p r e s e n t a u m a exaustiva d e s c r i ç ã o da d i s t r i b u i ç ã o d o s c u l t o s de S a k p a t a - S h a p a n a , O m o l u e N a n ã B u r u k u t a n t o na área gbe c o m o em d i f e rentes l o c a l i d a d e s i o r u b á s , m o s t r a n d o a i n t r i c a d a d i v e r s i d a d e regional, m a s c o n s t a t a u m a relativa s e p a r a ç ã o e n t r e os c u l t o s de S a k p a t a - S h a p a n a e a q u e les de O m o l u e B u r u k u . C o m o já foi d i t o , a p e n a s na c i d a d e de K e t u S h a p a n a é i d e n t i f i c a d o c o m O m o l u , s e n d o q u e e m vários casos localiza-se a o r i g e m de O m o l u , M o l u o u M o r u n o oeste, n a área A j a - P o p o . 5 0 Verger sugere d u a s hipóteses:

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L U I S N I C O L A U PA R É S

Estaríamos presenciando um sincretismo, talvez hoje desaparecido, entre duas divindades de origem diferente e pertencentes a antigos grupos culturais diferentes, divindades essas que vieram uma do leste (Soponna) e outra do oeste ( O m o l u ou Molu), unindo-se e assumindo um caráter único em Ketou? O u ao contrário, tratar-se-ia de uma divindade única, de origemyoruba e de origem tapa (nupé) mais longínqua, trazida para o oeste por uma das numerosas e antigas migrações que as tradições mencionam, e do retorno, em seguida, dessa divindade para seu p o n t o de partida, trazendo um novo nome [Omolu], que, originariamente, não passava de simples epíteto? 5 1 A s e g u n d a h i p ó t e s e d o " s u r g i m e n t o " d e O m o l u n a área o c i d e n t a l d o g o l f o do B e n i n , a p a r t i r da nova caracterização de u m a d i v i n d a d e mais antiga v i n d a d o leste, s e r i a p e r t i n e n t e t a m b é m p a r a N a n ã B u r u k u . E s s a d i v i n d a d e teria t a l v e z p a r t i d o de Ilê Ifé, c o m o s u g e r e Verger, e o seu c u l t o t e r i a s i d o ass o c i a d o p a u l a t i n a m e n t e a d i v i n d a d e s d a t e r r a c o m o S h a p a n a . Essa ligação c o m o e l e m e n t o t e r r a persiste n o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o , pois N a n ã B u r u k u é associada à lama e é considerada a "venerada yaba da m o r t e e profundezas" ou " u m m o n s t r o q u e sai d o f u n d o d a terra". 5 2 N a área i o r u b á , B u r u k u ( B u k u ) é n o r m a l m e n t e i d e n t i f i c a d o c o m o entid a d e m a s c u l i n a , s e n d o f r e q u e n t e m e n t e relacionado e até c o n f u n d i d o c o m S h a p a n a e, às vezes, c o m O m o l u . C o m o estes, B u r u k u p o d e ser a s s o c i a d o à v a r í o l a e d i z - s e q u e seu c u l t o foi t r a z i d o d o p a í s E g u n o u D a o m é , e n q u a n t o o u t r a s v e r s õ e s a p o n t a m c o m o o r i g e m Savé o u D a s s a Z o u m é , n o p a í s M a h i . 5 3 As v a r i a ç õ e s q u e v ã o d a j u s t a p o s i ç ã o à i d e n t i f i c a ç ã o d e S h a p a n a e B u r u k u , o género m a s c u l i n o e a associação c o m a varíola q u e o b s e r v a m o s na área i o r u b á p a r e c e m c o n t r a s t a r c o m a caracterização de B u r u k u na área gbe. Nessa região, a e n t i d a d e é de género f e m i n i n o , c o n h e c i d a por vários nomes, c o m o N a n ã B u l u k u , A n a b u r u k u ou M i n o n a , associada a ideias de m a t e r n i d a d e e f e c u n d i d a d e e b e m diferenciada e n q u a n t o e n t i d a d e de Sakpata. P o d e r í a m o s p e n s a r q u e essa t r a n s f o r m a ç ã o e f e m i n i z a ç ã o d e B u r u k u a c o n t e ceram, c o m o c o m O m o l u , no oeste do G o l f o do Benim, no país Ashanti. C o m efeito, há indícios que sugerem u m a "origem" ou pelo m e n o s u m trânsito de B u r u k u p e l o p a í s A s h a n t i . Por e x e m p l o , as s a c e r d o t i s a s d e N a n ã B u r u k u e m P i r a e D j a g b a l o , ao n o r t e d e S a v a l u , u t i l i z a m u m t r o n o a s h a n t i , e s a b e m o s q u e N a n ã é o t e r m o r e s p e i t o s o q u e os a s h a n t i s e m p r e g a m p a r a as p e s s o a s d e i d a d e . A t r a v é s de m i g r a ç õ e s s u b s e q u e n t e s , o c u l t o d e N a n ã teria r e t o r n a d o p a r a leste, a d q u i r i n d o especial i m p o r t â n c i a n a área d e A t a k p m é , n o T o g o . D e lá, o c u l t o teria se d i f u n d i d o n o país M a h i e e m A b o m e y e K e t u , talvez se s u p e r p o n d o a c u l t o s locais s e m e l h a n t e s m a i s a n t i g o s . 5 4 Seria só a p ó s a " f e m i n i z a ç ã o " d e N a n ã B u r u k u n a área a s h a n t i q u e , t r a z i d a de v o l t a n a área g b e , ela se t e r i a c o n v e r t i d o e m " m ã e " d e S a k p a t a . C o m o já

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

v i m o s , a c o n c e i t u a l i z a ç ã o e a r e u n i ã o dos v o d u n s e m f a m í l i a s são h a b i t u a i s na área g b e e m e n o s c o m u n s nos c u l t o s de orixás. E m A b o m e y e Z a n g n a n a d o m e n c i o n a - s e N y o h w e A n a n u c o m o p r o g e n i t o r a da f a m í l i a d e S a k p a t a . E m o u t r a versão de A b o m e y e e m Vedji, n o país M a h i , N a n ã B u r u k u é c o n s i d e r a d a a m a t r i a r c a d a f a m í l i a S a k p a t a . T a m b é m M i n o n a , q u e e m f o n significa "nossa m ã e Na", é u m a d i v i n d a d e f e m i n i n a c o n h e c i d a na área g b e q u e p o d e ria ser associada ao c o m p l e x o de N a n ã . N o Brasil diz-se q u e S h a p a n a é filho d e N a n ã B u r u k u o u de I y a b a y i n ( Y a b a n h i ) . Trata-se p r o v a v e l m e n t e d e dois n o m e s da m e s m a e n t i d a d e , já q u e I y a b a y i n derivaria da expressão i o r u b á iyá àgbà yin,

a m ã e m a i s velha d e t o d a s . 5 5

Se e m K e t u N a n ã B u r u k u está a s s o c i a d a a S h a p a n a - O m o l u e O x u m a r é , n a t r a d i ç ã o de A b o m e y — e m b o r a c o n s i d e r a d a m ã e de S a k p a t a em a l g u n s t e m p l o s — ela está t a m b é m v i n c u l a d a ao p a n t e ã o celeste d e M a w u e Lissá, s e n d o , às vezes, c o n s i d e r a d a a m ã e desse casal p r i m o r d i a l , o u a i n d a i d e n t i f i c a d a c o m M a w u , a p a r t e f e m i n i n a r e s p o n s á v e l pela criação d o m u n d o . 5 6 E m certas t r a d i ç õ e s de A b o m e y , p o r t a n t o , N a n ã B u r u k u t e m u m p a p e l de p r o g e n i t o r a ligada a idéias d e f e c u n d i d a d e , c o m o n o T o g o , sem q u a l q u e r relação direita c o m a varíola, c o m o a c o n t e c e na área i o r u b á . N a área de i n f l u ê n cia d o s i s t e m a religioso c r i a d o em A b o m e y ela estaria mais p r ó x i m a de Lissá (Olissá) d o q u e de S a k p a t a . Essas v a r i a n t e s r e g i o n a i s na t r a n s f o r m a ç ã o d e N a n ã B u r u k u talvez a i n d a sejam perceptíveis em certos elementos rituais do C a n d o m b l é c o n t e m p o r â neo. Se, c o m o já v i m o s , n o c a n d o m b l é n a g ô - k e t u valoriza-se a t r í a d e N a n ã O m o l u - O x u m a r é ; t a m b é m em d a d a s ocasiões N a n ã é tida c o m o esposa de O x a l á (Lissá). 5 7 T e r í a m o s , assim, a l é m da i n f l u ê n c i a das t r a d i ç õ e s de K e t u , o u t r a s p r o v e n i e n t e s das tradições d o D a o m é . N a nação j e j e - m a h i se c a n t a para N a n ã n o final das c e r i m ó n i a s antes de c a n t a r para Lissá (Oxalá), o q u e expressaria o v í n c u l o p r e v a l e c e n t e em Abomey, mas t a m b é m é r e c o n h e c i d a a relação filial e n t r e S a k p a t a e N a n ã . E s t a m o s , p o r t a n t o , d i a n t e de u m claro e x e m p l o de i n t e r p e n e t r a ç ã o e n t r e os c u l t o s d e v o d u n s e orixás, d e s e n v o l v i d a d u r a n t e séculos na A f r i c a o c i d e n t a l e t r a n s f e r i d a p a r a a Bahia, o n d e em m u i t o c o n t r i b u i u para a c o n s o l i d a ç ã o de u m sistema religioso q u e os p r ó p r i o s p a r t i c i p a n t e s n ã o h e s i t a m em c h a m a r n a g ô - v o d u m . M a s v o l t e m o s a S a k p a t a . C o m o já m e n c i o n e i , em várias localidades da área i o r u b á , c o m o K e t u , considera-se q u e S h a p a n a foi trazido do país M a h i . O r a , o c u l t o S a k p a t a em país M a h i m u i t o p r o v a v e l m e n t e foi trazido p r i m e i r a m e n t e d a área n a g ô . E m Savalu, diz,-se q u e o c u l t o de S a k p a t a A g b o s u foi a p r o p r i a d o ou assimilado p o r A h o s u Soha ( f u n d a d o r da dinastia real em Savalu), p o r volta da s e g u n d a m e t a d e d o século XVII, q u a n d o este passava pela região d o rio

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L U I S N I C O L A U PA R É S

O u e m é , o n d e m o r a v a m os k a d j a n u s , nagôs v i n d o s d a área E g b a d o , p e r t o de Badagri. O reino de Dassa, o u t r o i m p o r t a n t e c e n t r o d o c u l t o S a k p a t a , r e m o n ta sua d i n a s t i a real pelo m e n o s a 1700, e os seus h a b i t a n t e s t a m b é m se dizem o r i g i n á r i o s da região dos anagôs, e m volta de Badagri. Aliás, a i n d a h o j e os iniciados de S a k p a t a são c h a m a d o s " a n a g o n u " ( h a b i t a n t e s anagôs), e a sua língua ritual é u m a f o r m a de i o r u b á arcaico. Fala-se q u e n o D a o m é o c u l t o a S a k p a t a f o i i m p o r t a d o p e l o rei A g a j a e c i t a m - s e Savalu, Dassa Z o u m é e, mais t a r d i a m e n t e , P i n g i n i V e d j i ( p e r t o de Dassa Z o u m é ) c o m o possíveis origens d o s cult o s i n t r o d u z i d o s e m A b o m e y . O país M a h i , assim, foi u m d o s p o n t o s de disp e r s ã o d o c u l t o e é p o r esse m o t i v o q u e S a k p a t a , apesar da sua a n t i g a o r i g e m n a g ô , c o n s i d e r a - s e n o r m a l m e n t e u m a d i v i n d a d e de o r i g e m m a h i . 5 8 C o m o já foi c o m e n t a d o n o c a p í t u l o 3, é só a p a r t i r d o século XVII q u e o c o m p l e x o de d i v i n d a d e s S a k p a t a - S h a p a n a - O m o l u (e na área i o r u b á t a m b é m B u r u k u ) começa a associar-se c o m as epidemias da varíola i m p o r t a d a s pelos eur o p e u s , até o p o n t o de q u e e m f o n g b e c o n t e m p o r â n e o sakpata significa varíola e sakpata

kpevi o u " p e q u e n o sakpata", varicela. Segurola acrescenta q u e , pelo

m e d o q u e inspiravam as epidemias d a varíola, n ã o se ousava p r o n u n c i a r o n o m e d e S a k p a t a , u t i l i z a n d o - s e o u t r o s apelativos c o m o : me (pessoa), ahosu aihosu (rei da terra), dohosu, dokuno

o u doença). As pessoas consagradas a Sakpata são c h a m a d a s sakpatasi, azonsi.59

(rei),

(senhor d a m o r t e ) ou àzon ( e n f e r m i d a d e anagô ou

T a m b é m vimos as variáveis d i n â m i c a s de a p r o p r i a ç ã o e c o n t r o l e dos

cultos de S a k p a t a pelos reis d a o m e a n o s , e c o m o os seus t e m p l o s v i r a r a m foco de resistência dos povos s u b m e t i d o s ao D a o m é . E n t r e o u t r a s c o n s e q u ê n c i a s , essa c i r c u n s t â n c i a p o d e r i a explicar o g r a n d e n ú m e r o de sacerdotes de S a k p a t a q u e f o r a m v e n d i d o s c o m o escravos para as A m é r i c a s . N a Bahia, em 1870, O Alabama

registra u m a p r i m e i r a r e f e r ê n c i a a "Xa-

p a n a m " , a versão n a g ô d o n o m e S a k p a t a , e e m 1871 há u m a s e g u n d a refer ê n c i a "a varíola a d o r a d a c o m o u m a d i v i n d a d e " n o c a n d o m b l é d o M o i n h o ( G a n t o i s ) , de n a ç ã o nagô. 6 0 E m relação aos jejes, já v i m o s , na d é c a d a de 1860, o caso d a Roça d e C i m a , c o m a sua j a q u e i r a c o n s a g r a d a a A z o n s u o u D a n d a g o j i , v o d u m p e r t e n c e n t e a tio X a r e n e . N o c a n d o m b l é d o C a p i v a r i , e m São Félix, tio A n a c l e t o de O m o l u a d q u i r i u f a m a c o m o c u r a d o r d u r a n t e a e p i d e m i a d e cólera m o r b o q u e assolou a região e m 1855. D e s t e m o d o , p o d e m o s s u p o r q u e o c u l t o dos v o d u n s e orixás d o n o s d a t e r r a e das e p i d e m i a s já estava inst i t u í d o n a Bahia pelo m e n o s a m e a d o s do s é c u l o XIX. N i n a R o d r i g u e s , n o final desse século, m e n c i o n a os n o m e s d e " S a p o n a n , W a r i - W a r ú , A f o m a n ou O m o l u " . 6 1 N o s anos 1950, em Salvador, Verger colet o u , a p a r t i r de vários i n f o r m a n t e s , u m a lista d e 21 n o m e s associados a essas d i v i n d a d e s , o n d e se m i s t u r a m a l g u n s t e r m o s n a g ô s e u m a m a i o r i a de t e r m o s

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

jejes, e n t r e eles v á r i o s t o p ó n i m o s d o país M a h i , c o m o Savalu o u D a s s a . 6 2 C o m o na Africa, n o s terreiros jejes evita-se falar o n o m e de S a k p a t a p o r m e d o d o s possíveis castigos da d i v i n d a d e . E m b o r a a d e n o m i n a ç ã o apareça em algum a s c a n t i g a s , p a r a d e s i g n a r o c h e f e dessa f a m í l i a u t i l i z a - s e m a i s f r e q u e n t e m e n t e o n o m e d e A z o n s u , o u as suas v a r i a n t e s f o n é t i c a s (Azonze, A z u n z u , A z u n s u m ) . Azon

( e n f e r m i d a d e ) t a m b é m c o n s t i t u i a raiz d o s n o m e s d e o u -

tros v o d u n s da m e s m a categoria, c o m o Azoani (variante Azoanu), A j o n s u (variantes Ajansur, O j o n s u , Ajunsó) ou Azonodo (variantes Azoanodo, A z a u n o o d o r , Z a n o d ô , A z a n a o d ô , O z a n a A d o ) . S o b r e o r i t u a l dessa ú l t i m a d i v i n d a d e n o B o g u m f a l a r e i e m d e t a l h e n o p r ó x i m o c a p í t u l o . N o Seja H u n d é , A z o n s u ( a s s e n t a d o n u m pé de m u l u n g u o u o m o l o n g u ) e A z o a n i são c o n s i d e r a d o s v o d u n s d i s t i n t o s , m a s e m o u t r o s terreiros a l g u m a s dessas " q u a lidades" p o d e m ser c o n f u n d i d a s . N o B o g u m , p o r e x e m p l o , A z o n s u p a r e c e ser identificado c o m o A j o n s u . O u t r o s v o d u n s da mesma família lembrados nos t e r r e i r o s jejes c o n t e m p o r â n e o s são S a k p a t a L o g u a , Parara, A v i m a n j e , D a d a Lansu (relacionado com Kpo), Ajagonu e Jagun. A t u a l m e n t e , na Bahia, o v e s t u á r i o c a r a c t e r í s t i c o de S a k p a t a - O m o l u c o n siste e m u m c a p u z e u m a saia de p a l h a d a C o s t a q u e c o b r e m t o d o seu c o r p o , s u p o s t a m e n t e para e s c o n d e r as chagas e d e f o r m i d a d e s físicas. O r a , cabe n o t a r q u e essa v e s t i m e n t a p o d e r i a ser u m a c r i a ç ã o r e l a t i v a m e n t e r e c e n t e , pois n ã o h á e v i d ê n c i a clara d e seu uso n o c u l t o dessas e n t i d a d e s n a Á f r i c a o c i d e n t a l e, n o Brasil, essa p r á t i c a está d o c u m e n t a d a s o m e n t e na d é c a d a de 1930. 6 3 N o s terreiros jejes, a p a l h a da C o s t a , além de A z o n s u , é utilizada por o u t r o s v o d u n s c o m o K p o e L o k o , e é n o r m a l m e n t e t i n g i d a c o m t i n t u r a "cor d e v i n h o " , técn i c a q u e e n c o n t r a p a r a l e l o s n a área gbe e q u e c o n s t i t u i u m e l e m e n t o d i s t i n tivo d o v e s t u á r i o jeje. A i n s í g n i a r i t u a l d e S a k p a t a - O m o l u é u m a vassoura d e f i b r a s d e p a l h a o u palitos de d e n d e z e i r o c h a m a d a xaxará,

e m b l e m a q u e na Á f r i c a aparece asso-

c i a d o p r i n c i p a l m e n t e aos c u l t o s d e O m o l u . 6 4 S a k p a t a p o d e levar t a m b é m p e q u e n a s cabaças f e c h a d a s (adô) p e n d u r a d a s nas suas vestes e colares de búzios b r a n c o s c r u z a d o s n o p e i t o . 6 5 Utiliza, às vezes, u m colar n e g r o c h a m a d o laguidibá.

O u t r a s vezes o seu colar a l t e r n a c o n t a s p r e t a s e v e r m e l h a s . As suas

cores são, p o r t a n t o , c o m o n a Á f r i c a , b r a n c o , v e r m e l h o e p r e t o . S e g u i n d o o p r i n c í p i o a m b i v a l e n t e das d i v i n d a d e s a f r i c a n a s , S a k p a t a , Shap a n a , O m o l u o u O b a l u a ê , d i v i n d a d e s das bexigas, das e n f e r m i d a d e s da pele, das d o e n ç a s c o n t a g i o s a s , a t u a l m e n t e t a m b é m associados à aids, t ê m o p o d e r t a n t o de infligir esses castigos c o m o , s o b r e t u d o , de curá-los. S a k p a t a - O m o l u , t a m b é m c o n h e c i d o c o m o o "velho" o u o " s e n h o r das flores", e m alusão à pip o c a , u m d o s seus a l i m e n t o s rituais e i m a g e m das bexigas, foi s i n c r e t i z a d o ,

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L U I S N I C O L A U PA R É S

s e g u n d o suas várias "qualidades", c o m São R o q u e , São Lázaro, São Sebastião e, a n t i g a m e n t e , c o m São B e n t o . As moscas, m o s q u i t o s , b e s o u r o s e b o r b o letas pretas são insetos a ele associados. Pelos seus d o n s de cura, foi d e n o m i n a d o o " m é d i c o dos negros", 6 6 " m é d i c o dos p o b r e s " ou o " m é d i c o - f e r i d o " . A d i m e n s ã o t e r a p ê u t i c a de S a k p a t a - O m o l u , q u e a d q u i r i u os seus poderes de cura p o r ter sido ele m e s m o v í t i m a da d o e n ç a , já foi t r a t a d a em d e t a l h e pela l i t e r a t u r a a f r o - b r a s i l e i r a e r e m e t o o leitor aos t r a b a l h o s mais r e c e n t e s de C l a u d e Lepine, Pedro Ratis e Silva e A n d r e a C a p r a r a . 6 7

A FAMÍLIA OE D A N E BESSEN, 0 D O N O OA NAÇÃO JEJE MAHI O terceiro g r a n d e g r u p o de divindades q u e caracteriza o p a n t e ã o dos terreiros jeje-mahis é a família de D a n (variante O d a n ) , liderada pelo v o d u m - s e r p e n t e Bessen (variante O b e s s é n ) , c o n s i d e r a d o p o r m u i t o s o "rei", " p r í n c i p e " , o u " d o n o da nação m a h i " . A sua saudação é "Arobobo Bessen"; ele é t a m b é m salvo c o m a expressão "seu a h o l o Bessém D o k u m i , O g o r e n s i M i s i m i , O g o r e n s i N u j a m i " , s e n d o q u e aholo deriva do t e r m o gbe aholu, o m e s m o q u e p r í n c i pe. 6 8 N o Seja H u n d é , se A z o n s u é considerado o " d o n o d o barracão", Bessen é tido c o m o o "dono do terreiro" ou "dono da roça". D o m e s m o m o d o n o B o g u m , c o n q u a n t o a família de Sogbo é c o n s i d e r a d a a "família real", o v o d u m Bafon o D e k a (Bafon n o de ka), " m u i t o c o n h e c i d o p o r q u e t e m Bessen", é t i d o com o o " p a d r o e i r o " ou " d o n o da casa". U m m e m b r o d o B o g u m sintetiza: "Bessen é o d o n o d a nação, d o terreiro, mas Sogbo é a cumeeira". 5 9 C o m o já foi dito, a i m p o r t â n c i a de Bessen se expressa ao nível ritual pela posição q u e ocupam os seus cantos nas distintas c e r i m ó n i a s . E m C a c h o e i r a , as p r i m e i r a s cantigas d o zandró

estariam associadas a esse v o d u m , e na p a r t e " n a g ô - v o d u m "

desse r i t u a l e nas festas públicas Bessen é a ú l t i m a d i v i n d a d e a ser louvada. A posição final de D a n n o r e p e r t ó r i o de c a n t o s é u m signo de d i s t i n ç ã o e u m dos e l e m e n t o s q u e d i s t i n g u e m a s e q u ê n c i a jeje d o xirê n a g ô - k e t u , q u e finaliza c o m cantos para O x a l á . O hoitá, obrigação q u e m a r c a o p o n t o alto d o ciclo de cerimónias jeje-mahi, e q u e será e x a m i n a d a no p r ó x i m o capítulo, está t a m b é m d e d i c a d o a Bessen. " D a n " é u m t e r m o genérico q u e em f o n g b e significa c o b r a o u s e r p e n t e . N a área gbe, v o d u n s de diversas categorias p o d e m ter associada u m a "qualid a d e " i n d i v i d u a l i z a d a de D a n , do m e s m o m o d o q u e cada v o d u m t e m o seu p r ó p r i o Legba p a r t i c u l a r . Trata-se de u m a d i v i n d a d e m ú l t i p l a e p o l i f o r m e , a d o r a d a sob f o r m a s diferenciadas por diversos g r u p o s étnicos. N o Brasil, D a n persiste c o m o t e r m o genérico para designar aqueles v o d u n s q u e se m a n i f e s -

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

t a m sob a f o r m a d e s e r p e n t e . E m b o r a os especialistas religiosos p o s s a m dist i n g u i r e n t r e c o b r a s de t e r r a e c o b r a s d ' á g u a , q u a l q u e r espécie o f í d i c a , seja a sucuri o u s u c u r u j u b a de rio, a coral de terra o u a jibóia, todas são identificadas como Dan. D a n , o u na sua " q u a l i d a d e " i n d i v i d u a l i z a d a o v o d u m Bessen, é e q u i p a r a d o c o m o orixá n a g ô O x u m a r é , e o i n q u i c e a n g o l a A n g o r ô . A l é m d o seu a s p e c t o o f í d i c o , essas d i v i n d a d e s são t a m b é m i d e n t i f i c a d a s c o m o a r c o - í r i s , e n a área gbe, q u a n d o D a n a s s u m e essa q u a l i d a d e , é c h a m a d o A y i d o - W e d o , a r c o - í r i s e m f o n g b e . A i d e n t i f i c a ç ã o e n t r e " O u t c h o u - M a r è " e " A i d o k o u é d o " já foi n o tada na A f r i c a o c i d e n t a l pelo p a d r e B o u c h e , e m 1868. 7 0 C o m o vimos, a m e s m a identificação entre Anyi-ewo e O x u m a r é é replicada p o r N i n a Rodrigues em Salvador. N a a t u a l i d a d e , A y i d o - W e d o é p o r vezes l e m b r a d o c o m o A n i ê v o . E n q u a n t o Bessen é i d e n t i f i c a d o c o m o v o d u m m a s c u l i n o , c o n s i d e r a - s e O x u maré composto por uma parte masculina e uma outra feminina. Bessen, O x u m a r é e A n g o r ô são n o r m a l m e n t e s i n c r e t i z a d o s c o m São B a r t o l o m e u , s a n t o q u e na i c o n o g r a f i a católica aparece j u n t o a u m a c o b r a . Por isso, i m p o r t a n t e s r o m a r i a s em l o u v o r a essas d i v i n d a d e s e r a m realizadas n o a t u a l P a r q u e São B a r t o l o m e u , e m P i r a j á . N o s a n o s 1930, C a r n e i r o c o m e n t a c o m o e r a m f e s t e j a d a s " r u i d o s a m e n t e , n o d i a 24 d e a g o s t o , n a p o v o a ç ã o q u e , nas i m e d i a ç õ e s d e Pirajá, t e m o seu n o m e e é u m d o s m a i o r e s c e n t r o s c o n v e r g e n t e s d a d e v o ç ã o n e g r o - f e t i c h i s t a n a Bahia". T a m b é m P e a r s o n m e n c i o n a a f o n t e "sagrada" c o n h e c i d a p o r " M i l a g r e d e S. B a r t o l o m e u " . 7 1 N o C a n d o m b l é , Bessen, O x u m a r é e A n g o r ô simbolizam a c o n t i n u i d a d e e a f o r ç a vital q u e i m p r i m e o m o v i m e n t o ao m u n d o . Esse " p r i n c í p i o de mobilidade" é expresso n u m mito cosmológico escutado no B o g u m , segund o o q u a l n o i n í c i o d o s t e m p o s só existia u m a c a b a ç a c o n s t i t u í d a p e l a s i m b i o s e d o casal M a w u - L i s s á , d i v i n d a d e h e r m a f r o d i t a ou m a c h o - f ê m e a n ã o d i f e r e n c i a d a . D a n , a s e r p e n t e , se e n r o l o u e m v o l t a dessa c a b a ç a p r i m o r d i a l e, c o m o se fosse a c o r d a d e u m p i ã o , a fez r o d a r , g e r a n d o o m o v i m e n t o q u e d e u o r i g e m ao m u n d o e à n a t u r e z a . E n t ã o , M a w u o u t o r g o u o c o n t r o l e d o s d i v e r s o s â m b i t o s n a t u r a i s — a t e r r a , o f o g o , os raios, o mar, os rios, as á r v o res — a v á r i o s v o d u n s c o m o S a k p a t a , S o g b o o u L o k o . A s s o c i a d o s às f o r ç a s da n a t u r e z a , os v o d u n s f o r a m a n t e r i o r e s aos h o m e n s e, p o r t a n t o , o seu c u l t o n ã o deve ser c o n f u n d i d o c o m o d o s a n c e s t r a i s . Q u a n d o o h o m e m foi c r i a d o s u r g i r a m n o v o s p r o b l e m a s c o m o as e n f e r m i d a d e s e n o v a s a t i v i d a d e s , c o m o a p e s c a , a caça e t c . M a w u c r i o u n o v a s d i v i n d a d e s p a r a t o m a r c o n t a dessas q u e s t õ e s , r e t i r a n d o - s e d e p o i s a u m l u g a r a f a s t a d o d o m u n d o . Essas d i v i n d a des m a i s t a r d i a s s e r i a m os orixás, c o m o O x ó s s i , l i g a d o à caça, o u O g u m , l i g a d o à c i v i l i z a ç ã o d o s m e t a i s . 7 2 N o t a - s e nessa l e n d a u m a o r i e n t a ç ã o jeje-

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L U I S N I C O L A U PA R É S

c ê n t r i c a q u e r e l e g a r i a os o r i x á s n a g ô s a u m a p o s i ç ã o s e c u n d á r i a d i a n t e d o s v o d u n s , primordiais agentes da d i n â m i c a da natureza. A p ó s a c r i a ç ã o d o m u n d o , D a n ficou i d e n t i f i c a d o c o m o a r c o - í r i s , r e s i d i n d o s i m u l t a n e a m e n t e na terra e no céu, c o n e c t a n d o o d o m í n i o de Sakpata e S o g b o e s e n d o r e s p o n s á v e l p e l a c h u v a q u e fertiliza e g a r a n t e a v i d a n a t u r a l . Por isso, D a n , O x u m a r é e A n g o r ô são d i v i n d a d e s q u e p r o p i c i a m a r i q u e z a , a f o r t u n a e a p r o s p e r i d a d e . S e g u n d o R o d r i g u e s , O x u m a r é seria "o c r i a d o de X a n g ô " , o c u p a d o e m t r a n s p o r t a r á g u a d a t e r r a p a r a as n u v e n s , m o r a d a d o seu a m o . 7 3 Essa idéia é replicada e m relação a A n g o r ô . S e g u n d o Valdina P i n t o , "Angorô é o responsável pelo ciclo das águas, a continuidade da vida, a força da vida contida na água. E Angorô q u e m transporta a água para o céu e faz cair em forma de chuva; por isso é que nos terreiros de Angola nós fazemos u m círculo d'água no meio do barracão quando cantamos para Angorô e em alguns terreiros de outra nação, coloca-se uma quartinha com água no centro do barracão quando se canta para Oxumaré. 7 4 Essa c o n v e r g ê n c i a d e i d e i a s e m v o l t a d e D a n , O x u m a r é e A n g o r ô c o m o d i v i n d a d e s d o m o v i m e n t o , d a r i q u e z a , d o a r c o - í r i s e r e s p o n s á v e i s p e l o ciclo d a s á g u a s s u g e r e u m a a n t i g a i n t e r p e n e t r a ç ã o d e v a l o r e s e n t r e as d i s t i n t a s " n a ç õ e s " , s e n d o p r o v á v e l u m a i n f l u ê n c i a da t r a d i ç ã o j e j e na c o n c e p ç ã o a n g o l a de A n g o r ô . Por e x e m p l o , n a área gbe a t r a n s f o r m a ç ã o da s e r p e n t e D a n e m arco-íris ( m i t o talvez de o r i g e m m a h i ) é m e n c i o n a d a p o r B u r t o n em 1863. A a s s o c i a ç ã o d e D a n c o m a r i q u e z a d e r i v a da c r e n ç a g b e , d o c u m e n t a d a p o r Ellis, d e q u e "seus e x c r e m e n t o s t r a n s f o r m a m os g r ã o s d e m i l h o e m b ú z i o s " . V e r g e r e x p l i c a q u e " a l g u m a s c o n t a s a z u i s , d i t a s Nana n a v a m - s e Dan

Mi

o u p e d r a s d e Aigry,

denomi-

( e x c r e m e n t o s d e D a n ) e s ã o d e i x a d a s p o r ele n o c h ã o , à

s u a p a s s a g e m ; d i z e m q u e elas v a l e m seu p e s o e m o u r o " . D a n c o m o s í m b o l o d e c o n t i n u i d a d e t e m s u a e x p r e s s ã o e m v á r i o s b a i x o s - r e l e v o s d o p a l á c i o de Abomey, o n d e A y i d o - H w e d o aparece representado c o m o u m a serpente eng o l i n d o a s u a c a u d a . Esse s í m b o l o c i r c u l a r q u e s i n t e t i z a a i d é i a d e q u e t o d o final

é p r i n c í p i o , e vice-versa, e n c o n t r a u m a exata c o r r e s p o n d ê n c i a na

ra d o Uroboros

figu-

da t r a d i ç ã o d a A l q u i m i a e u r o p é i a . Le H e r i s s é m e n c i o n a o u -

t r a s d u a s figuras d e s s e v o d u m e n t r e a c o l e ç ã o d e o b j e t o s d o s reis d ' A b o m e y : duas serpentes de madeira, ligeiramente recurvadas em arco e p i n t a d a s em v e r m e l h o e b r a n c o . C a b e n o t a r q u e essas são as cores d e H e v i o s o e s i n a l a m a ligação de D a n c o m o v o d u m do trovão e o ciclo das águas, relação m i t o l ó gica p r o v a v e l m e n t e d e s e n v o l v i d a e m A b o m e y e m a n t i d a n o Brasil, o n d e D a n O x u m a r é é c o n s i d e r a d o "o c r i a d o d e X a n g ô " . 7 5 N o e n t a n t o , o u t r o s indícios sugerem u m a influência s i m u l t â n e a da tradição angola nos cultos jejes da serpente. C o m o vimos no capítulo anterior,

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

o t e r m o "Agorensi" ( v a r i a n t e s A n g o r i n s e , U n g o r o c i , O g o r e n s i , A n g o r e n s e , G o r e n c i a ) é u m t í t u l o u t i l i z a d o , ao m e n o s d e s d e a s e g u n d a m e t a d e d o século XIX, pelas d e v o t a s de Bessen nos t e r r e i r o s j e j e - m a h i s . A palavra parece u m c o m p o s t o d e A n g o r ô m a i s o s u f i x o si, q u e e m f o n g b e s i g n i f i c a "esposa de", o q u e i n d i c a r i a q u e A n g o r ô era u m i n q u i c e c o n h e c i d o já n a q u e l e t e m p o e sugere u m a n t i g o p r o c e s s o de i n t e r p e n e t r a ç ã o j e j e - a n g o l a . S e g u n d o

humbono

V i c e n t e , A g o r i n e A n g o r ô são o m e s m o , "o jeje e a n g o l a se j u n t a m " . ' 6 Aliás, Binon Cossard oferece u m a etimologia angola para Angorô, que derivaria d e ãngolo: nkongolo,

"esse n o m e d e c o r r e d o t e r m o ngolo,

a b r e v i a ç ã o d e kongolo

ou

q u e d e s i g n a o arco-íris. B i t t r e m i e u x , q u e cita M g r . A. D e c l e r q , diz:

'o arco-íris é u m a g r a n d e s e r p e n t e nkongolo q u e m o r a nas n u v e n s e a chuva'". 7 7 P o r t a n t o , a associação d e A n g o r ô c o m a s e r p e n t e , o arco-íris e a c h u v a , seria t a m b é m o r i g i n á r i a da A f r i c a c e n t r a l . A l é m d o s a t r i b u t o s a s s o c i a d o s ao g e n é r i c o v o d u m D a n o u Bessen, n ã o d e v e m o s e s q u e c e r q u e n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s essa d i v i n d a d e é a p e n a s a cabeça m a i s visível de u m a "família" c o m u m a p l u r a l i d a d e de m e m b r o s . A l g u n s de seus n o m e s são: 1) B a f o n o D e k a ( B o f u m ) ; 2) D a n A k a ç u ( A k a s s u ) ; 3) A j a ç u ; 4) T o q u é m ( T o q u e n , T o q u e i n ) ; 5) D o q u é m ; 6) Q u e m q u e m ; 7) C o t o q u e m ( A c o t o q u e m ) ; 8) C o q u e m (talvez u m a v a r i a n t e de C o t o q u e m ) e 9) J i k u . A finada gaiaku

Luiza dizia q u e Bessen é o pai d e C o t o q u e m , m a r i d o

da f e m i n i n a Q u e n q u é m . Já Aguesi dizia q u e A c o t o q u e m era o pai de Bessen.

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E i m p o r t a n t e n o t a r q u e esses n o m e s n ã o c o n s t a m nas e t n o g r a f i a s da área g b e q u e c o r r e s p o n d e m p r i n c i p a l m e n t e ao l i t o r a l o u A b o m e y . Isso i n d i c a r i a tratar-se de v o d u n s m e n o s c o n h e c i d o s d o i n t e r i o r , s e n d o o país M a h i , pela sua t r a d i ç ã o em relação a esse c u l t o , a região de o r i g e m m a i s provável. N o Seja H u n d é e n o H u n t o l o j i , o v o d u m D a n g i b i o u D a n j e b ê , u m a evol u ç ã o f o n é t i c a de D a n g b é , é t a m b é m c u l t u a d o c o m o d i v i n d a d e i n d i v i d u a l i zada, c o m a s s e n t o p r ó p r i o e d i f e r e n c i a d a de Bessen. Esse f a t o é s i g n i f i c a t i v o , pois D a n g b é é o v o d u m p í t o n , ancestral m í t i c o dos h u e d a s de U i d á , na área l i t o r a l . A j u s t a p o s i ç ã o de v o d u n s - c o b r a de o r i g e m m a h i e m u n d u b i d e n t r o d o g r u p o de D a n seria u m o u t r o e x e m p l o d o " p r i n c í p i o de agregação". E u á , orixá f e m i n i n o de o r i g e m n a g ô , é u m a d i v i n d a d e d o rio d o m e s m o n o m e (Yewa o u Iyéwa) n a área E g b a d o , mas, a t u a l m e n t e , n o Brasil, ela é p o r vezes i d e n t i f i c a d a c o m o u m v o d u m - c o b r a de o r i g e m jeje, e m u l h e r d o orixá O x u m a r é . O r a , c o m o a p o n t a gaiaku

Luiza, E u á "no jeje c h a m a - s e J i k u " .

9

A

associação e n t r e O x u m a r é e E u á deriva talvez d o t e r r e i r o O x u m a r é , na M a t a E s c u r a . C o m o já v i m o s , A n t o n i o O x u m a r é , u m dos f u n d a d o r e s da casa, teve por

filha-de-santo

d o n a C o t i n h a de Euá, q u e veio a lhe suceder e c o m q u e m ,

a l g u n s d i z e m , teve t a m b é m u m a relação s e n t i m e n t a l . 8 0 P o d e r i a o v í n c u l o ri-

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L U I S N I C O L A U PA R É S

t u a l e t a l v e z s e n t i m e n t a l e n t r e os d o i s d i r i g e n t e s e x p l i c a r a p o s t e r i o r a s s o c i a ç ã o m i t o l ó g i c a d o s seus r e s p e c t i v o s s a n t o s ? A i n d a h o j e , d u r a n t e a f e s t a d e O x u m a r é (Bafono), em agosto, a presença de Euá é de destaque, e há u m a c o r e o g r a f i a e m q u e os d o i s o r i x á s d a n ç a m n o c h ã o c o m o s e r p e n t e s , c h u p a n d o á g u a d e u m a g a m e l a e d e p o i s a s p e r g i n d o - a n o ar. Esse g e s t o r i t u a l é p r o v a v e l m e n t e u m a l e m b r a n ç a d o m i t o c o n h e c i d o n a área d e P o r t o N o v o s e g u n d o o q u a l A y d o H w e d o - O x u m a r é "só a p a r e c e q u a n d o q u e r beber, e s e n t a d o n o c h ã o s o b r e a s u a c a u d a , j o g a sua b o c a n a água". 8 1 N o t e r r e i r o O x u m a r é diz-se q u e essa á g u a a s p e r g i d a n o ar p o r E u á e O x u m a r é r e p r e s e n t a o a r c o - í r i s , e q u e m é m o l h a d o p o r ela " b o l a n o s a n t o " n o i n s t a n t e . N o s t e r r e i r o s jejes, Bessen e os o u t r o s m e m b r o s d a f a m í l i a D a n v e s t e m - s e d e b r a n c o e u s a m , c o m o n a área g b e , colares c o m p o s t o s d e várias fileiras de b ú z i o s a t r a v e s s a d o s n o p e i t o . O seu e m b l e m a , p a r e c i d o c o m u m f a c ã o , é c h a m a d o takara,

itakara

o u a i n d a hungo.

Humbono

V i c e n t e diz q u e as c o n t a s de

Bessen são b r a n c a s e n ã o r i s c a d a s d e v e r d e e a m a r e l o , c o m o g e r a l m e n t e u s a m os d e v o t o s d e O x u m a r é . 8 2 Bessen d a n ç a ao s o m d e v á r i o s r i t m o s de t a m b o r c o m o o bravum

o u o sato, e às vezes d a n ç a n o c h ã o o u a j o e l h a d o , i m i t a n d o c o m

os b r a ç o s e s t e n d i d o s p o r c i m a da c a b e ç a o m o v i m e n t o s i n u o s o das s e r p e n t e s . P a r a c o n c l u i r e s t a s e ç ã o , a p r e s e n t o u m a b r e v e r e f l e x ã o h i s t ó r i c a s o b r e os c u l t o s o f í d i c o s n a B a h i a . N a v i r a d a d o s é c u l o XIX, R o d r i g u e s a f i r m a v a q u e o c u l t o d a s e r p e n t e d o s jejes " p a r e c e n ã o t e r e x i s t i d o n o Brasil, p e l o m e n o s c o n v e n i e n t e m e n t e o r g a n i z a d o " . N a s u a p e s q u i s a , ele só e n c o n t r o u u m "vestígio" d o culto n o terreiro de Livaldina, o n d e achou c o m o u m dos ídolos uma h a s t e o u l â m i n a d e f e r r o " t e n d o as o n d u l a ç õ e s d e u m a c o b r a e t e r m i n a n d o nas duas extremidades em cauda e cabeça de serpente". E m b o r a Livaldina i d e n t i f i c a s s e o o b j e t o c o m o o r i x á d o f e r r o , O g u m , essas

figuras

serpentinas

de metal n o r m a l m e n t e f o r m a m parte do assento de D a n ou D a n g b e , c o m o é o caso d o Seja H u n d é a i n d a h o j e , e m q u e esse e m b l e m a se c h a m a pé

dagoméP

C o n t u d o , a p a r t i r da d é c a d a de 1930, diversos a u t o r e s c o m o R a m o s , Pierson e C o u t o Ferraz c o m e ç a r a m a i d e n t i f i c a r e l e m e n t o s d o c u l t o o f í d i c o e m vários t e r r e i r o s . C a r n e i r o , p o r e x e m p l o , f a l a n d o d e O x u m a r é e das festas d o P a r q u e São Bartolomeu, comenta que "nem m e s m o N i n a Rodrigues poderia imaginar a i m p o r t â n c i a q u e o c u l t o desse o r i x á iria ter, a t u a l m e n t e " e, e m 1948, a f i r m a : no candomblé da velha Emiliana [Bogum] há uma serpente pintada na parede do barracão; Manuel Menez me afirmou que "as cobras não o mordem"; e Manuel Falefá, c o n t a n d o - m e o nascimento do arco-íris, lhe deu o n o m e de Sôbôadã, que entretanto s u p o n h o seja apenas uma Dã especial de Sôbô (Sogbo), pois, no Dahomey, todos os vôdúns têm uma. De qualquer m o d o , Dã está presente em todos os candomblés jêjes ainda existentes na Bahia. O seu estudo ainda está por se fazer. 84

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

Essa e v i d ê n c i a d o c u m e n t a l , q u e c o n f o r m e R o d r i g u e s sugere a a u s ê n c i a d o c u l t o d e D a n n a v i r a d a d o s é c u l o XIX e a sua p o s t e r i o r a p a r i ç ã o n a d é c a d a de 1930, t e m levado L o r a n d M a t o r y a a f i r m a r q u e "a c o m u n i c a ç ã o n o com e ç o deste século [XX] e n t r e a Bahia e o G o l f o da G u i n é i m p l i c a o ressusc i t a m e n t o d a n a ç ã o jeje e a a d o r a ç ã o p o r p a r t e da m e s m a d o d e u s - s e r p e n t e c o m o seu e m b l e m a " . S e g u n d o M a t o r y , os m a h i s " p r a t i c a r a m p o u c o a a d o r a ç ã o d o d e u s - s e r p e n t e " n o seu país de o r i g e m , mas, q u a n d o r e t o r n a r a m da Bahia p a r a a A f r i c a , i n s t a l a r a m - s e nas c i d a d e s d o litoral, o n d e os c u l t o s o f í d i c o s e r a m m u i t o c o m u n s , e deles se a p r o p r i a r a m . Esse fato e o s u b s e q u e n t e c o n t a to dos retornados c o m os seus "parentes" baianos explicaria o "ressuscitamento", n ã o só d o c u l t o de D a n c o m o t a m b é m da i d e n t i d a d e j e j e - m a h i n o C a n d o m blé. 8 ' O r a , essa tese, e m b o r a útil para a r g u m e n t a r as d i n â m i c a s t r a n s n a c i o n a i s na c o n s t r u ç ã o de i d e n t i d a d e s étnicas, a p r e s e n t a alguns p r o b l e m a s sérios. E m p r i m e i r o lugar, a idéia de q u e os m a h i s d o G o l f o da G u i n é " p r a t i c a r a m p o u c o a a d o r a ç ã o d o d e u s - s e r p e n t e " é d i s c u t í v e l . C e r t a m e n t e , d e s d e o século XVII o c u l t o d a s e r p e n t e está d o c u m e n t a d o p r i n c i p a l m e n t e e n t r e os g r u p o s d o litoral, c o m o os h u l a s e os huedas. 8 6 O r a , isso n ã o significa q u e o culto ofídico n ã o fosse i m p o r t a n t e e n t r e os m a h i s da região m o n t a n h o s a d o interior. A e t n o g r a f i a religiosa da área gbe é u n â n i m e em a t r i b u i r o r i g e m m a h i a D a n , o u A y i d o - H w e d o , e m b o r a seja possível q u e a d i v i n d a d e fosse i m p o r t a d a d o s h u e d a s n a s e g u n d a m e t a d e d o século XVII e q u e d a í o país M a h i se t o r n a s s e u m d o s p o n t o s de d i f u s ã o d o culto. Aliás, só u m a antiga i m p l a n t a ç ã o d o c u l t o n o país M a h i e x p l i c a r i a p o r q u e , em t o d o o b a i x o D a o m é , os a d e p t o s d o v o d u m D a n são c h a m a d o s , após a iniciação, de mahinu

(habitantes mahis).87

E m s e g u n d o lugar, a s u p o s t a ausência d o culto de D a n na Bahia n o final d o século XIX é t a m b é m questionável. O Alabama

em 1870, por exemplo, d o c u -

m e n t a e x p l i c i t a m e n t e os cultos r e n d i d o s "a u m a serpente". 8 8 H á o u t r a s evidências i n d i r e t a s (não escritas), m a s n ã o p o r isso m e n o s c o n v i n c e n t e s . C o m o já vimos, o " d o n o espiritual" d o B o g u m , q u e estava f u n c i o n a n d o pelo m e n o s desde 1867, é o d e u s - s e r p e n t e B a f o n o ou Bessen. A i d e n t i f i c a ç ã o d o " d o n o espiritual" de q u a l q u e r c a n d o m b l é é u m p r o c e s s o s e m p r e d e t e r m i n a d o d u r a n t e a f u n d a ç ã o do terreiro, e n o r m a l m e n t e coincide c o m o v o d u m ou orixá " d o n o da cabeça" do seu f u n d a d o r . Logicamente se pode supor que o culto de Bessen dataria pelo m e n o s dessa época. O m e s m o a r g u m e n t o é aplicável ao Seja H u n d é , f u n d a d o na última década do século XIX, c u j o " d o n o espiritual" é t a m b é m Bessen e cujas duas primeiras gaiakus ou mães-de-santo p e r t e n c i a m a esse v o d u m . Aliás, elas f o r a m iniciadas na Roça de C i m a nas décadas de 1860 e 1870. S u m a r i a n d o , os d a d o s disponíveis d e i x a m s u p o r a presença d o culto da serp e n t e n o país M a h i desde pelo m e n o s o século XVIII, e n o Brasil t e m o s provas

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L U I S N I C O L A U PA R É S

claras de cultos h o m ó l o g o s nos terreiros jeje-mahis, desde a segunda m e t a d e d o século XIX e, e m b o r a Rodrigues não tivesse c o n h e c i m e n t o , c o n t i n u a r a m com a l g u m a i m p o r t â n c i a na virada do século XIX e primeiras décadas do XX. Esses fatos p e r m i t e m a r g u m e n t a r u m a c o n t i n u i d a d e do culto a partir do tráfico de escravos e são suficientes para q u e s t i o n a r a tese de M a t o r y de u m a suposta "morte" e "ressuscitamento" do culto na Bahia nas primeiras décadas do século XX. Isso n ã o invalida a idéia desse a u t o r sobre a i m p o r t â n c i a da c o m u nicação transatlântica na c o n s t r u ç ã o transnacional de identidades étnicas, mas os seus efeitos nas práticas religiosas não p o d e m ser s o b r e d i m e n s i o n a d o s .

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OUTROS VODUNS JEJES Para f i n a l i z a r este c a p í t u l o , c o m e n t a r e i b r e v e m e n t e s o b r e a l g u n s o u t r o s v o d u n s c o n h e c i d o s nos terreiros jejes. Por e x e m p l o , Q u e r i n o m e n c i o n a o n o m e de Niçasse c o m o s i n ó n i m o jeje de O l o r u m o u Z a m b i , o d e u s supremo. 8 9 M u i t o p r o v a v e l m e n t e , trata-se de u m a c o r r u p t e l a de Lissasi, alusão a Lissá o u Olissá, a c o n t r a p a r t e jeje de O x a l á , o deus da criação. E m b o r a a m i tologia d o casal Mawu-Lissá prevalecente no sistema religioso de A b o m e y não seja t o t a l m e n t e d e s c o n h e c i d a na B a h i a (ver a c i m a m i t o c o s m o l ó g i c o n o B o g u m ) , a sua expressão ritual não parece significativa. Lissá t e m a d e p t o s e é c u l t u a d o em í n t i m a relação c o m O x a l á , mas a presença de M a w u parece ter p e r d i d o i m p o r t â n c i a . C o m o já foi d i t o , N a n ã B u r u k u p o d e ter a s s u m i d o o papel f e m i n i n o o u t r o r a o c u p a d o por M a w u . C a b e e n f a t i z a r a i m p o r t â n c i a n o culto jeje de d u a s e n t i d a d e s q u e já m e n cionei relacionadas à família Kaviono; trata-se de Loko e Kpo. A i m p o r t â n c i a da fitolatria nos cultos de v o d u n s foi a p o n t a d a em relação ao reino de U i d á n o século XVII. E m b o r a a sacralização de árvores e o u t r a s espécies vegetais não seja exclusiva dos cultos de v o d u n s , ela é, sem d ú v i d a , u m dos aspectos valorizados e cultivados nos terreiros jejes, o n d e g r a n d e n ú m e r o de

assenta-

mentos o u altares são fixados r i t u a l m e n t e nos pés de d e t e r m i n a d a s árvores sagradas, c h a m a d a s atinsa na n a ç ã o jeje. Veremos a sua significação n o ritual d o boitá n o p r ó x i m o c a p í t u l o . N a Bahia, o v o d u m - p a n t e r a K p o , que d a n ç a c o m os dedos da m ã o em form a de garra, é n o r m a l m e n t e r e l a c i o n a d o c o m a família de H e v i o s o , mas ele p o d e t a m b é m se m a n i f e s t a r c o m o " q u a l i d a d e " d i f e r e n c i a d a da f a m í l i a de S a k p a t a . N a área gbe, a figura da p a n t e r a representa os v o d u n s Agassu, em Abomey, e A j a h u n t o , em Aliada, q u e p o r sua vez são deificações dos míticos ancestrais das linhagens reais desses reinos (ver cap. 1). A i m a g e m da p a n t e r a

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

associada à realeza, c o n s t i t u í a u m f o r t e í c o n e de poder, o q u e c e r t a m e n t e c o n t r i b u i u p a r a q u e K p o se " i n f i l t r a s s e " o u fosse a p r o p r i a d o p o r o u t r o s c u l t o s , c o m o os de H e v i o s o e S a k p a t a . D o m e s m o m o d o , nos terreiros jejes da Bahia, K p o o u K p o s u p o d e a p a r e c e r c o m o o pai de S o g b o , a s s o c i a d o aos v o d u n s d o t r o v ã o , o u ter o seu a s s e n t o f o r a da casa, n o m a t o , r e c e b e n d o o f e r e n d a s sem e l h a n t e s às de S a k p a t a . E m b o r a Agassu n ã o seja c o n h e c i d o na Bahia, o v o d u m A j a u t o (variantes J u n t o , J a u n t o , U j a u n t o ) é u m a das d i v i n d a d e s mais singulares d o p a n t e ã o jeje. Essa e n t i d a d e n ã o t e m a d e p t o s a ela c o n s a g r a d o s , mas preside u m i m p o r t a n t e r i t u a l d e i n i c i a ç ã o c h a m a d o " t o m a r hunvé"

o u " t o m a r ajauntó",

que comen-

tarei b r e v e m e n t e n o c a p í t u l o s e g u i n t e . N a área gbe, o seu c u l t o está d o c u m e n t a d o n o final d o século XIX, e m P o r t o N o v o , m a s foi e m A l i a d a o n d e t r a d i c i o n a l m e n t e a d q u i r i u m a i o r relevância e p r o v a v e l m e n t e i n s p i r o u os cultos reais d o v o d u m - p a n t e r a Agassu, e m A b o m e y . 9 0 E n t r e os v o d u n s c a ç a d o r e s e das florestas c u l t u a d o s n o s t e r r e i r o s jejes dest a c a m - s e A g u é e O d é . O p r i m e i r o é n o r m a l m e n t e associado c o m o orixá n a g ô das f o l h a s O s s a i m e o s e g u n d o , c o m o orixá c a ç a d o r O x ó s s i . 9 1 A g u é , a l é m de d i v i n d a d e da m a t a , é c a ç a d o r e os a n i m a i s estão sob o seu c o n t r o l e . S e g u n d o d o c u m e n t a H e r s k o v i t s , na área gbe "aqueles q u e d a n ç a m p a r a A g u é t r e p a m nas árvores c o m o f a z e m os caçadores". Ele p o d e ser r e p r e s e n t a d o p o r u m pássaro, a n i m a l n o q u a l p o d e t r a n s f o r m a r - s e , c o n f o r m e m e foi e x p l i c a d o em U i d á . A g u é c u l t u a - s e n o s t e m p l o s d e M a w u - L i s s á e m a n t é m u m a estreita relação c o m O g u m , c a r a c t e r í s t i c a q u e p e r s i s t e n o s t e r r e i r o s jejes, o n d e A g u é é sempre louvado após O g u m . 9 2 E m i o r u b á odé s i g n i f i c a c a ç a d o r e é i n t e r e s s a n t e c o m p r o v a r c o m o u m n o m e c o m u m i o r u b á vira n o m e p r ó p r i o d e v o d u m . O d é seria, p o r t a n t o , u m a a p r o p r i a ç ã o o u a d a p t a ç ã o jeje de a l g u m a d i v i n d a d e c a ç a d o r a n a g ô . T o d a v i a , e m t e r r e i r o s jejes c o m o o B o g u m o u o P o ç o B é t a , é c o n h e c i d o o v o d u m Agangá-Tôlú (variantes G o n g a t o l u , O n t o l u ) , considerado u m Oxóssi j e j e . N o t e r r e i r o O x u m a r é d e S a l v a d o r e n o Kwe S i m b a d o R i o de J a n e i r o esse v o d u m é c o n h e c i d o c o m o A t o l u . V o d u m c a ç a d o r , n o P o ç o Béta ele d a n çava c o m p a n o s c o l o r i d o s a m a r r a d o s n a c i n t u r a c o m o u m a saia e c o m u m a fita com penas na fronte.93 C o n f o r m e diz gaiaku humbono

Luiza, "no jeje n ã o t e m L o g u m E d é " . 9 4 N o e n t a n t o

V i c e n t e l e m b r a v a u m v o d u m p a r t i c u l a r dos t e r r e i r o s jejes já e s q u e -

cido. Trata-se de Bagô, u m s a n t o d ' á g u a q u e usava u m a c a m p a n o p e s c o ç o e q u e q u a n d o q u e r i a á g u a b a l b u c i a v a c o m o u m m e n i n o . Era c u l t u a d o a p e n a s n o Seja H u n d é e n ã o n o B o g u m . H e r s k o v i t s m e n c i o n a B a g b ó c o m o " d i v i n dade relacionada c o m Sagbata". Por o u t r o lado, no p a n t e ã o h u l a de d i v i n d a d e s

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L U I S N I C O L A U PA R É S

m a r i n h a s figura S a h o , m a s u m a e v o l u ç ã o f o n é t i c a desse v o c á b u l o p a r a Bagô parece improvável.95 N ã o p o d e r í a m o s finalizar este c a p í t u l o s o b r e as d i v i n d a d e s jejes sem u m a m e n ç ã o aos caboclos. A l i t e r a t u r a afro-brasileira t e m s o f r i d o até r e c e n t e m e n t e de u m a c e r t a t e n d ê n c i a a privilegiar os t e r r e i r o s q u e s u p o s t a m e n t e p r e s e r v a r a m a "pureza" da t r a d i ç ã o a f r i c a n a , v a l o r i z a n d o suas d i v i n d a d e s a f r i c a n a s c o m o orixás e v o d u n s , m a s s e m p r e s t a r a d e v i d a i m p o r t â n c i a às a d a p t a ç õ e s e i n f l u ê n c i a s locais d o s c a n d o m b l é s m a i s " m i s t u r a d o s " . A p r o l i f e r a ç ã o n o C a n d o m b l é das e n t i d a d e s "brasileiras" c h a m a d a s c a b o c l o s — s e j a m e s p í r i t o s d e í n d i o s , s e j a m encantados

associados a t i p o s p o p u l a r e s c o m o b o i a d e i r o s , pes-

c a d o r e s , m a r i n h e i r o s etc., m a s em t o d o caso e n t i d a d e s "criadas" n o Brasil — p a r e c e ter a c o n t e c i d o , s o b r e t u d o , n o f i n a l d o século XIX, e m b o r a sua p r e s e n ç a em a l g u n s c u l t o s de o r i g e m a f r i c a n a possa ser m u i t o m a i s a n t i g a . Q u a n d o e m 1937 C a m a r g o G u a r n i e r i r e c o l h e u e m S a l v a d o r 152 c a n t i g a s de c a n d o m b l é , 46 f o r a m especificadas c o m o de nação k e t u , jeje o u ijexá, 14 de a n g o l a - c o n g o e 92 de caboclo. 9 6 A m a i o r i a de cantigas de caboclo p o d e ser u m i n d í c i o da i m p o r t â n c i a dessas e n t i d a d e s n o c a n d o m b l é da é p o c a . N o e n t a n t o , c e r t o s t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s c o n s i d e r a d o s " t r a d i c i o n a i s " , até a d é c a d a de 1950 e a i n d a m a i s r e c e n t e m e n t e , p r e t e n d i a m o c u l t a r e n e g a v a m q u e a l g u m a s das suas f i l h a s - d e - s a n t o e m ocasiões d e t e r m i n a d a s p u d e s s e m r e c e b e r c a b o c l o s . N o s três p r i n c i p a i s t e r r e i r o s jejes a q u i p e s q u i s a d o s — B o g u m , Seja H u n d é e H u n t o l o j i — há t a m b é m u m relativo s i l e n c i a m e n t o s o b r e a p o s s i b i l i d a d e de a l g u m a v o d ú n s i r e c e b e r c a b o c l o , e m b o r a em p a r t i c u l a r se t e n h a c o n f i r m a d o m a i s d e u m caso. D e q u a l q u e r m o d o , nesses t e r r e i r o s , diz-se q u e os c a b o c l o s n u n c a se m a n i f e s t a m n o b a r r a c ã o , p e l o m e n o s d u r a n t e as o b r i g a ç õ e s d o s v o d u n s , o q u e s e g u n d o as m i n h a s o b s e r v a ç õ e s é v e r d a d e . T a m b é m se a r g u m e n t a q u e os cab o c l o s n ã o t ê m i n i c i a ç ã o , isto é, as v o d ú n s i s n ã o r e c e b e m u m p r e p a r o especial p a r a fixar seus c a b o c l o s . O r a , a c e i t a - s e q u e essas e n t i d a d e s p o s s a m m a n i f e s t a r - s e e m s i t u a ç õ e s e s p e c í f i c a s p a r a avisar d e a l g u m p e r i g o , d a r c o n s e lhos o u a d v e r t ê n c i a s . N o B o g u m , p o r e x e m p l o , s a b e - s e q u e m ã e N i c i n h a recebia caboclo.97 C o n c l u i n d o , o p a n t e ã o n a g ô - v o d u m dos terreiros j e j e - m a h i s c o n t e m p o r â n e o s , apesar da p r e s e n ç a p e r i f é r i c a d o s c a b o c l o s e da c o m p l e x a a g r e g a ç ã o de orixás nagôs — d i n â m i c a q u e já v i n h a a c o n t e c e n d o n a área gbe d e s d e vários séculos atrás e q u e n o Brasil s e g u i u d e s e n v o l v e n d o - s e d u r a n t e t o d o o século XIX — , segue caracterizando-se pela i d e n t i d a d e de certas d i v i n d a d e s singularizadas c o m o v o d u n s , as quais estão associadas a n o m e s e práticas rituais diferenciados. Apesar de todas as suas t r a n s f o r m a ç õ e s e processos m i m é t i c o s c o m os

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

orixás n a g ô s , v o d u n s c o m o S o g b o , A z o n s u e Bessen c o n t i n u a m c o n s t i t u i n d o 0 f a t o r d i f e r e n c i a l m a i s i m p o r t a n t e p a r a d e m a r c a r o q u e seria a n a ç ã o j e j e d e C a n d o m b l é . Dedicarei o p r ó x i m o capítulo a examinar outros elementos, desta vez r e l a c i o n a d o s c o m a s p e c t o s r i t u a i s q u e c o n t r i b u e m p a r a a r t i c u l a r esse f a t o r d i f e r e n c i a l d o s jejes p e r a n t e o u t r a s n a ç õ e s .

NOTAS 1

2

3

4 5 6 7 8

9 10 11

12 13 14

15

16 17 ,s

Utilizo a expressão "cultos de múltiplas divindades" para enfatizar a pluralidade de divindades existente em cada uma das congregações religiosas, evitando o termo "politeísta", normalmente associado à religião como um todo. Uma versão ampliada desta primeira parte do capítulo foi publicada em inglês (Parés, "Transformations..."). Silveira, Iyá...; Harding, A refuge..., p. 59, Candomblé..., pp. 76, 99, 316. Harding também cita o terreiro de pai Anacleto, em São Félix (Recôncavo), como evidência de um culto de múltiplas divindades em meados do século XIX (A refuge..., p. 58); cf. Wimberly, "The expansion...", pp. 82-83. Verger, Notas..., p. 15; "Raisons...", pp. 144-45; Bastide, Sociologia..., pp. 113, 316; Reis, The politics..., p. 15. Herskovits e Herskovits, "An outline...", pp. 9-10, apud Maupoil, Lagéomancie..., p. 56. Maupoil, La géomancie..., p. 56. Yai, "From Vodun...", p. 246. Bosman, A new..., p. 368a; Maupoil, La géomancie..., p. 64; Glèlè, Le danxome,.., p. 75. Le Herissé, LAncién..., pp. 126-27; Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 103-5; Yai, "From Vodun...", pp. 254, 256; Bay, Wives..., pp. 92-96. Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 150-51, 163. Peei, "A comparative...", pp. 275-76. Verger, Notas..., pp. 15, 39; "The Yoruba...", p. 24; Mckenzie, "O culto...", pp. 134-35, 137, 139. Bastide, Sociologia..., pp. 113, 316; Verger, Notícias..., pp. 228-29. Ver, por exemplo: Merlo, "Hiérarchie..."; Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 304. Apter, "Notes...", pp. 373, 392-93, 396-97; Drewal, "Dancing...", pp. 211, 230-31. Cabe notar que a coreografia circular de Igbogila e a identidade e ordem em que são celebradas as divindades (Elegba, Ogum, Eyinle, Iroko, Ondo, Omolu) apresentam uma surpreendente semelhança com o xirê (sequência inicial de cantos e danças) praticado nos candomblés ketus da Bahia. Ou bem as práticas de Igbogila foram introduzidas por libertos retornados do Brasil, ou, alternativamente, poder-se-ia pensar que os egbados foram também importantes agentes sociais na formação do candomblé nagô-ketu. Rodrigues, Os africanos..., p. 236. Essa afirmação também é confirmada pela documentação de O Alabama, no período 1863-1871. Por exemplo, em relação ao orixá Xangô, em Oyó, ver Apter, Black Critics..., pp 24-25Gaiaku Luiza, 26/2/2001. Sobre o reino do Benim, ver Dapper, Naukeurie..., apud Verger, Notas..., p. 50. Para a região de Popo, Barbot, Barbot on Guinea..., pp. 620-21. Para Uidá, Bosman, A new..., p. 383. Para a Costa do Ouro, ver também Bosman, A new..., p. 153; Isert, Voyage..., p. 45.

307

LUIS NICOLAU

PA R É S

Em relação a Aliada, ver Bosman, A new..., p. 383. Em relação a Oyo, Snelgrave, A new..., p. 59. Em relação aos fon, Borghero, Journal..., p. 123. Ver também Isert, Voyage..., p. 123. Pazzi, "Aperçu...", pp. 13-14; e Introduction..., pp. 172-74, 199-200; Moulero, "Histoire...", p. 43; Law, The Kingdom..., pp. 6-9; Gayibor, Les peuples..., pp. 29-30. Barbot, Barbot on Guinea..., pp. 581, 589; Bosman, A neu>..., p. 113. B u r t o n (A mission..., p. 78) cita em Uidá que o "arbusto do trovão" é chamado ayyan ou soyan. Baudin (Fetichism..., p. 23) afirma que, segundo a legenda iorubá, ayan é a arvore em que Xangô se pendurou para suicidar-se. Adam Jones (apud Barbot, Barbot on Guinea..., pp. 582-83) nota que Jean Goeman o u j a n k o m é corresponde ao termo akan Onyankome. Se a raiz desse termo, onyan, fosse uma evolução fonética akan de ayyan ou soyan, teríamos uma evidência indireta da expansão do culto do trovão desde a área iorubá até a Costa do Ouro, já no século XVII, se concordamos que esse culto se expandiu do leste para o oeste. Anónimo (p. 52), citado por Law, "The slave...", p. 111. Para outra referência ao culto das "pedras caídas do raio", em Uidá: Archives Nationales, Section d ' O u t r e - M e r , Depot des Fortifications des Colonies, Côtes d'Afrique, ms. 111, "Réflexions sur Juda par les Sieurs De Chenevert et Abbe Bullet", l 2 /6/l776, p. 74. Agradeço a Robin Law que me alertou para a existência desses documentos. Forbes, Dahomey..., vol. I, p. 171. Esse autor (op. cit., pp. 104-6) relata também um incidente com os sacerdotes do trovão em Agoue, em fevereiro de 1850. Em abril de 1863, o barracão do forte português de Uidá, onde estavam instalados os padres das Missões Católicas francesas, foi atingido por um raio. Borghero, fiel aos seus princípios anti-fetichistas, recusou-se a pagar a multa exigida pelos sacerdotes de Hevioso e foi preso temporariamente (Borghero, Journal..., pp. 129-34). Burton também aponta ser Hevioso uma "adaptação" do Xangô iorubá do trovão (A mission..., p. 295). A primeira referência explícita a Xangô na área iorubá é de Bowen em 1858, emyl Grammar..., p. 16. Le Herissé, LAncièn..., pp. 115-16; Tidjani, "Notes...", p. 35; Pazzi, Introduction..., p. 123. Le Herissé, LAncièn..., p. 108; Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 157. Para as listas de voduns, ver Verger, Notas..., pp. 521, 528-29, 542-45; Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 304. Merlo, "Hiérarchie...", pp. 6-8; H u n o n Daagbo, Uidá, entrevista 16/7/1995. Le Herissé, LAncièn..., p. 109; Herskovits, Dahomey..., vol. II, 151, 302. Para Agbanakin, ver Karl, Traditions..., p. 236. Para Heve, Verger, Notas..., pp. 529, 541; Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 193. Spieth, Die Religion..., p. 173, apud Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 193. Fio Agbonon II, Histoire..., pp. 164, 168; Verger, Notas..., p. 529. Peei, "A comparative...", p. 275. Merlo, "Hiérarchie...", pp. 6-8; Verger, Notas..., p. 105; Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 188; Segurola, Dictionnaire..., p. 482. Le Herissé, LAncièn..., p. 108; Segurola, Dictionnaire..., p. 484; Verger, Notas..., pp. 525-30. Le Herissé, LAncièn.., p. 108; Snelgrave, A new..., pp. 101, 104. Em 1851, Forbes descreve a cerimónia em que soldados postados na estrada entre Abomey e Uidá disparavam os seus fuzis em sucessão como "uma saudação ao Fetiche das Grandes Aguas, ou Deus do Comércio Exterior" (Forbes, Dahomey..., vol. II, p. 18). Em 1860, sacrifícios humanos ao mar eram promovidos pelo rei Glele desde Abomey como parte das cerimónias funerárias em louvor do seu pai, Ghezo (Peter Bernasko, Uidá, 29/1 1/1860,

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

Archives of the Wesleyan Methodist Mission Society (SOAS). Fico grato a Robin Law por ter chamado minha atenção sobre essas referências. Ver também Burton, A mission..., p. 295. 35

Humbono

36

No jeje-mahi da Bahia, a família Kaviono inclui outros voduns como: Zo (vodum do fogo); Sogbo Baba Guidi (ou So Baguidi, talvez uma evolução fonética de Gbaguidi, a família dirigente de Savalu. Em Oyo, Verger [Notas..., p. 129], documenta Baba Sigidi como uma forma de Exu associada aos ilari)-, Jogorobossu (Jogoroboçú na Casa das Minas pertence à família Davice, filho de Zomadonu); Bossu (talvez uma evolução fonética de Besu, vodum do panteão do trovão no Benin, ou de bossum, nome genérico das divindades em território akan. Maupoil {La géomancie..., p. 73) menciona Bosu Zoho como vodum Sakpata, e no templo de Avimanje [Sakpata], em Uidá, cultua-se o vodum Bosú, guardião da porta do templo); Jokolatin (joko atin, a arvore joko) e Betá Yoyo (ou Beta Oyo). Essas divindades secundárias, até onde sei, não têm devotos iniciados e não se manifestam nas festas públicas. Everaldo Duarte, 4/1/1996, 21/8/1996, 27/11/1997. J. de Carvalho, "Nação Jeje", p. 51.

37 38 39

40 41 42 43 44 45

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50

Gaiaku

Vicente,

8/10/1998.

L u i z a , e m C E A O , 2 A Encontro...,

pp.

81-82.

Rodrigues, Os africanos..., p. 230. O Alabama, 19/5/1869, p. 3. Rodrigues, Os africanos, p. 234. Gaiaku Luiza, 7/11/1999. Gaiaku Luiza, em CEAO, 2e Encontro..., p. 82. Na Africa ocidental, o mito sobre as três esposas de Xangô, Oiá, O x u m e Oba, aparece d o c u m e n t a d o por primeira vez em 1858, na obra de Bowen, A grammar... (p. 16). Na área gbe, Averekete é considerado o filho mais novo do casal Agbé e Naeté e, como caçula, tem fama de mimado, astuto, caprichoso e de desempenhar o papel de "trickster". Averekete é tido como o mensageiro entre os homens e as divindades e, nos rituais, ele sempre vem na frente, abrindo o caminho para os outros voduns; ele gosta de brincar, de difundir rumores e imitar de forma cómica os outros voduns (Herkovits, Dahomey..., vol. II, pp. 155, 158). Compartilhando com Legba a mesma funcionalidade ritual e versatilidade de caráter, nos terreiros jeje-mahis baianos, Averekete é raramente louvado na sequência de cantos dedicados a Sogbo, mas nunca é esquecido quando se canta para Legba. Esse fato pode ter contribuído para a sua persistência. Bastide, Sociologia..., pp. 120-21. Esse autor comenta, por exemplo, como o trabalho forçado nas plantations propiciou a desaparição de divindades da agricultura que nen h u m benefício traziam aos escravos; mas também como a desigualdade social e a opressão dos senhores favoreceu a hegemonia de divindades da justiça, como Xangô; da guerra, como O g u m ; ou das dinâmicas de comunicação, como Exu. Verger, Notas..., p. 276; D. M. dos Santos, História..., pp. 67-69. Segundo diferentes versões, Sakpata teria sido importado de Dassa Zoumé, Adja Popo, ou Aise, na região Hollidjè. Verger, Notas..., pp. 249-50, 272. Por exemplo, um mito do reino Fitta, na área Mahi, conta que os voduns M o r o u ( O m o l u ) , Dan e Loko chegaram de Adja-Popo e ali se instalaram no tempo do primeiro rei Oba Tchérékou (Anónimo, "Le Royaume des Fittas", pp. 78, 83). O mesmo mito é citado em Bergé, "Étude...", p. 724. No entanto, cabe notar que O m o l u é uma expressão iorubá (òmò ò/à).

309

L U I S N I C O L A U PA RÉS

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,!5 57 58

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Verger, Notas..., p. 252. Gaiaku Luiza, 28/11/1998; M. S. de A. Santos, Meu tempo..., p. 54. Para evidência da diversidade regional do culto de Buruku, ver Burton, A mission...., p. 297; Abekuta..., p. 107; Ellis, TheYoruba..., p. 73; Frobenius, Mythologie..., pp. 191,218; Verger, Notas..., pp. 257-59. A náo-utilização de faca de ferro nos sacrifícios dedicados a Omolu e Nanã Buruku indicaria a existência desses cultos anteriormente à época do ferro. Essa característica persiste nos cultos de Nanã no Brasil e já foi notada por Querino (Costumes..., p. 94). O tema é discutido em detalhe por Verger, Notas..., pp. 272, 278. Verger, Notas..., p. 274. Verger, Notas..., pp. 239-40; Pessoa de Castro, Falares..., p. 246; Rodrigues, O animismo..., p. 50. Herskovits, Dahomey..., vo 1. II, pp. 101-2. D. M. dos Santos, H i s t ó r i a . . . , p. 67. Lepine, "As metamorfoses...", pp. 126-28; Verger, Notas..., p. 240; Le Herissé, LAncièn..., p. 128; Herskovits, Dabomey..., vol. II, p. 38. Segurola, Dietionnaire..., p. 456. O Alabama, 29/10/1870, p. 2; 24/11/1871, p. 4. Rodrigues, O animismo..., p. 50. Saponan e O m o l u são denominações nagôs. Há dúvidas no caso de Wari-Warú e Afoma. Cacciatore atribui ao último termo uma etimologia iorubá: afomó, contagioso, infeccioso: Diecionario..., p. 40. No entanto, Verger documenta uma cantiga de Sakpata em Abomey que fala de Afomado Zogi (Notas..., p. 247). Esses nomes são: 1) Jagun Agbagba; 2) Omolu; 3) Obaluaye (literalmente o "rei da terra"); 4) Soponna; 5) Afoman; 6) Savalu; 7) Dassa; 8) Arinwarun (o mesmo Wari-Warú citado por Rodrigues); 9) Azonsu ou Ajansur; 10) Azoani; 11) Posun ou Posuru (Kposu ou Kpo, o vodum-pantera na sua "qualidade" de Sakpata); 12) Agoro (provavelmente uma confusão, já que Angorô é a divindade cobra dos angolas); 13) Telu ou Etutu (provavelmente do nagô ile titu, o mesmo que "chão frio"); 14) Topodun (provavelmente uma confusão, já que Tokpodun é o vodum crocodilo do panteão do trovão ou do mar); 15) Paru; 16) Arawe (localidade no país Mahi); 17) Ajoji (no Bogum lembra uma vodúnsi de Ojoji, "um Omolu jeje", talvez uma corruptela de Daa Zodji); 18) Avimaje; 19) Ahoye; 20) Aruaje; e 21) Ahosuji (uma corruptela do termo fon ahosusi, "mulher do rei") (Verger, Notas..., p. 252). Outras denominações de Sakpata são Jeholu (Senhor das pérolas) ou Ainon (Senhor da terra).

6i

Nas primeiras décadas do século XX, nem Rodrigues nem Querino mencionam a palha da Cosra ao falar de Omolu ou Shapana (Rodrigues, O animismo...., p. 74; Querino, Os costumes..., p. 38). Em Religiões negras, publicado em 1936, Carneiro também não toca no assunto. E só em Candomblés da Bahia, quando Carneiro comenta que Omolu "traz sempre um capuz de palha da Costa (filá), que lhe cai até os ombros e lhe oculta a face" (Candomblés..., p. 59). Pierson foi o primeiro autor a comentar: "as iniciadas de O m a n l u [sic] estavam vestidas principalmente com tons vermelhos. Cordões de fibra, cintos de cor marrom avermelhada, iam da cabeça até abaixo dos joelhos, cobrindo completamente o rosto" (Brancos..., p. 327).

04

Rodrigues, O animismo..., p. 50; Querino, Os costumes..., pp. 38-39; Carneiro, Religiões..., p. 40; Ortiz, Los bailes..., p. 216; Verger, Notas..., pp. 258-50.

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O PANTEAO JEJE E SUAS

TRANSFORMAÇÕES

Na área gbe, os colares de Sakpata (hunkan) alternam pares de búzios brancos com sementes pretas d o f r u t o c h a m a d o atinkuin ou atekun. Essa característica parece ter desaparecido nos terreiros jejes. Carneiro, Religiões..., p. 59. P. R. e Silva, "Exu-Obaluaiê..."; Lépine, "As metamorfoses..."; Caprara, "Médico...". Gaiaku Luiza, em CEAO, 2l Encontro...,

p. 78.

Ficha n B 1, CEAO, 17/1/1961; N e n é m de Mello, 3/11/1999. "Carta do padre Bouche ao padre superior, de Uidá a Porto Novo", Arquivos da Societé des Missions Apostoliques-, ref. 20.393, rubrica 12/80200, 31 jul., 1868, pp. 3-4, apud Matory, " M a n . . . " , pp. 161-62. Carneiro, Religiões (Negros bantos), pp. 166-67. Pierson, Brancos..., p. 307. Para uma m e m ó r i a dos anos 1940 sobre as romarias do pessoal do Bogum ao Parque de São Bartolomeu, ver D u a r t e , " O terreiro...", pp. 19-22. Everaldo D u a r t e , 18/12/1994. Rodrigues, Os africanos..., p. 223. Valdina Pinto, em CEAO, 2 ' Encontro...,

pp. 56-57.

Ellis, Tbe Ewe..., pp. 47-49; Verger, Notas..., pp. 231, 235; Le Herissé, LAncien..., p. 118; Burton, A mission..., p. 298; H a z o u m é , Le pacte..., p. 143; Maupoil, La géomancie..., p. 73. Humbono Vicente, 6/12/1998. A presença de Angorô no culto angola está documentada pelo menos desde 1937 (Carneiro, Religiões [Negros bantos]..., pp. 166-67). Braga menciona angorossi como uma "louvação nos candomblés de Angola" (Nagamela..., p. 185). Cossard, C o n t r i b u t i o n . . . , p. 24; cf. Bittremieux, "La societé secrete des Baknimba au M a t o m b é . . . " , p. 245. Para outra etimologia, ver t a m b é m Valdina Pinto, em CF.AO, 2°Encontro..., p. 56. Gaiaku Luiza, em CEAO, 2- Encontro..., pp. 75, 82; J. de Carvalho, "Nação...", p. 52. Waldeloir Rego (19/11/1994) m e n c i o n o u Abalu como uma "forma de Dan". Fala-se também de Toquéni, talvez uma variante de Toquem. Segundo Waldeloir Rego, Toqiiéni seria uma cobra venenosa do tipo surucucu de gancho. Na Casa da Minas em São Luís, o termo toqúém é utilizado para designar os voduns mais novos, meninos ou adolescentes, sobretudo da família real Davice, que vem na frente, abrem os caminhos aos mais velhos e levam e trazem recados (Ferretti, Querebentan..., p. 307). Já segundo Olga de Alaketo, "Tokuenu não é uma entidade. Tokuenu é uma obrigação que se faz na raiz de um pau, aí vem as pessoas que é de direito, vem pra botar mão e tal [...]" (entrevista 3/1/1996). Gaiaku Luiza, em CEAO, 2 ' Encontro..., p. 82. Ficha s.n., CEAO, 1960; dona Nancy de Souza e Silva, 28/10/98. Milton Moura, W9/2001. Baudin, Fetichism, pp. 44, 47; Ellis, The Ewe..., pp. 47-48. Observação pessoal: obrigação de Bafono e Euá, Terreiro O x u m a r é , 18/8/1996. Humbono Vicente, 20/10/2000, 12/1 1/2001; gaiaku Luiza, em CEAO, 2o- Encontro..., pp. 72, 74. Gaiaku Luiza chama os búzios de ajés e os colares de búzios enfiados, balajás (var. barajás). Os balajás são atributos t a m b é m de Nanã, Azonsu e Euá: gaiaku Luiza, 8/8/2001. Em fon, ajé significa "coquillages", derivado de jé, pérola ou conta (Segurola, Dictionnaire..., pp. 34, 260). Rodrigues, Os africanos..., pp. 231-33. C a r n e i r o , Religiões..., pp. 166-67; Candomblé..., pp. 64-55; Ramos, " I n t r o d u ç ã o . . . " , pp. 12-13: cf. Ramos, O negro..., p. 43, e Ferraz, "Vestígios..." pp. 271 e segs.

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Matory, "Jeje...", pp. 66-67; Black Atlantic..., pp. 87-89, 93, 96-98, 101-2. Matory, ret o m a n d o a tese defendida por Gois Dantas, ainda acrescenta que intelectuais como Carneiro, conhecedores da obra de Herskovits sobre a religião da área gbe, poderiam ter passado informações aos sacerdotes jejes, c o n t r i b u i n d o para o processo de "ressuscitamento". Ora, a suposta agência dos intelectuais não é aplicável no contexto dos terreiros jejes das primeiras décadas do século XX, já que essas casas só receberam visitas ocasionais de intelectuais a partir de 1937. Ver, entre outros: De Sandoval, Naturaleza..., apud Gayibor, Les peuples...', Bosman, A new..., pp. 368a-82 ; Barbot, A description..., pp. 340-45; Labat, Voyage..., vol. II, pp. 163-99, Pommegorge, Description..., p. 195; Snelgrave, A new..., pp. 11-12; Atkins, A voyage..., p. 113-18; Norris, Memoirs..., pp. 69, 105; Duncan, Traveis..., vol. I, 126-28, 195-97; Burton, A mission..., pp. 73-76; Le Herissé, LAncien..., p. 110; Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 240-55; Falcon, Religion..., pp. 66-70; Verger, Notas..., pp. 503-16. Sobre a instalação de Dangbé como divindade dos hueda: Labat, Voyage..., vol. II, p. 163; Law, The Kingdom, pp. 24-25. Le Herissé, UAancien..., p. 118; Verger, Notas.., pp. 105, 231, 235; Jaques Bertho, apud Merlo, "Hiérarchie...", p. 12. Merlo e Vidaud, "Le peuplement...", pp. 287-90; Falcon, Religion..., p. 38; Bergé, "Étude...", pp. 720-21, 724, 740. Práticas rituais do culto Nesuhue, envolvendo os voduns Dan e Dambada Hwedo, foram apropriadas dos agonlis no país Mahi. Já que o culto real dos Nesuhue estava instaurado em Abomey no século XVIII, podemos supor que o culto da serpente no país Mahi datava pelo menos dessa época (Parés, "O triângulo...", pp. 193 e segs.; Verger, Notas..., p. 232). Sobre Dambada Hwedo, ver Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 203, 207-8. O Alabama, 28/5/1870, p. 3. Há também, no mesmo jornal, uma referência a um tal Luis Gomes da Saúde, "criador de cobras" (10/12/1870, p. 5). Ver também Jornal da Bahia, 13/3/1854, apud Verger, Fluxo..., p. 532. Querino, Costumes..., p. 37. Baudin, Fetichism..., p. 37; Ellis, The Ewe..., pp. 83, 89. Alguns autores identificam Agué com Oxóssi (Verger, Notas..., p. 215). Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 107, 121; Verger, Notas..., pp. 215-18. Frobenius, comentando sobre o orixá Enjille (Erinle, Inle, associado a Oxóssi), diz que ele é "representado por figurinhas de ferro forjado, sob a forma de um candelabro em cuja ponta foi forjado um pássaro" (Mythologie..., p. 222). Dona Nancy de Souza e Silva, 27/9/2000. Gaiaku Luiza, 28/4/2001. Humbono Vicente, 8/10/1998, 30/3/1999, 7/12/1999. Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 271. Liihning, "O compositor...", p. 66. Everaldo Duarte, 10/8/1996.

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O RITUAL: CARACTERÍSTICAS DA LITURGIA JEJE-MAHI NA BAHIA

COMO DEFINIR UMA LITURGIA JEJE? Este ú l t i m o c a p í t u l o tem p o r o b j e t i v o e x a m i n a r algumas das características litúrgicas dos terreiros j e j e - m a h i s de Salvador e C a c h o e i r a , c o m o p r o p ó s i t o de avaliar aqueles e l e m e n t o s rituais q u e d i f e r e n c i a m a "nação jeje" de o u t r a s tradições religiosas d e n t r o do C a n d o m b l é . A tarefa t e m u m caráter e m i n e n t e m e n t e etnográfico e descritivo, mas não é fácil. C o m o em m u i t a s outras instituições sociais, n o C a n d o m b l é o saber é poder, e a lógica do segredo é a estratégia q u e s u s t e n t a os processos de iniciação e a organização h i e r á r q u i c a d o g r u p o . Nesse s e n t i d o , os especialistas religiosos jejes t ê m a m e r e c i d a r e p u t a ção de ser os mais "fechados" e sigilosos n a preservação dos seus "segredos". C o m o diz seu G e n i n h o , "o jeje é u m a m a ç o n a r i a " . 1 O esforço p o r o c u l t a r as suas práticas aos olhos dos curiosos é providencial, n ã o só para c o m os pesquisadores, com q u e m se p o d e lidar c o m certa facilidade, mas, especialmente, com aqueles iniciados q u e vêm de o u t r a s casas e são suspeitos de estarem lá p a r a "espiar". Essa a t i t u d e de reserva e d e s c o n f i a n ç a , i n t r í n s e c a a q u a l q u e r religião iniciática, foi exacerbada pelos longos anos de repressão e clandestinidade a q u e foi s u b m e t i d a a religião. C o n t u d o , parece que os jejes se o r g u l h a m e fazem q u e s t ã o de m a n t e r essa f a m a e t r a d i ç ã o . D i a n t e dessa s i t u a ç ã o e, na m i n h a c o n d i ç ã o de n ã o - i n i c i a d o , a " m e t o d o logia" q u e a d o t e i n o t r a b a l h o de c a m p o foi a de observação "ativa" e participação "passiva". Nesse s e n t i d o , segui u m a dica q u e m e d e r a m repetidas vezes d u r a n t e a m i n h a pesquisa sobre o T a m b o r de M i n a em São Luís: "na M i n a , olho aberto, o u v i d o a t e n t o e boca fechada". Essa atitude, baseada no "estar lá", t e n t a n d o criar o m í n i m o de interferência e evitando fazer entrevistas formais ou p e r g u n t a s demais, c e r t a m e n t e resultou n u m a p r e n d i z a d o l e n t o e requereu paciência e persistência. Porém, de u m a f o r m a gradual, tive acesso a certas

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práticas rituais de caráter p r i v a d o e i n f o r m a ç õ e s c o n s i d e r a d a s d e " f u n d a m e n to". As f r o n t e i r a s e n t r e o q u e é dizível e o q u e deve ser calado são a m b í g u a s , e poucas vezes f o r a m discutidas c o m os praticantes, c a b e n d o - m e o difícil trabalho d e estabelecer os limites. E m b o r a para certas pessoas seja possível q u e na narrativa q u e se segue t e n h a e x c e d i d o o permissível, espero q u e para as pessoas com as quais conversei o a q u i escrito n ã o ultrapasse os limites d o tolerável. A l é m desse d e l i c a d o exercício d e a u t o - c e n s u r a e t n o g r á f i c a ( e x e m p l o de c o m o o p e s q u i s a d o r se c o n t a g i a d o s c o m p o r t a m e n t o s d o s s u j e i t o s p e s q u i sados), o m e u p o s i c i o n a m e n t o d i a n t e da religião foi e s s e n c i a l m e n t e "de fora", o u talvez "das f r o n t e i r a s " , c o m a c o n s e q u e n t e l i m i t a ç ã o a t o d a u m a série de conhecimentos esotéricos f u n d a m e n t a i s para a compreensão do significado p r o f u n d o d a religião. A isso se s o m a m a e x t r e m a c o m p l e x i d a d e e a inesgotável r i q u e z a d e d e t a l h e s q u e c o m p õ e m o u n i v e r s o r i t u a l d o C a n d o m b l é e q u e só u m c o n v í v i o de m u i t o s a n o s p e r m i t i r i a a p r e e n d e r . Essas d i f i c u l d a d e s e l i m i t a ç õ e s são insaliváveis, e o leitor as deve levar e m c o n t a na h o r a d e avaliar os c o n t e ú d o s deste c a p í t u l o . Feitas essas ressalvas de c a r á t e r reflexivo, às quais caberia a d i c i o n a r o p r o b l e m a e p i s t e m o l ó g i c o m a i s geral d o r e c o r t e s u b j e t i v o i n e r e n t e a q u a l q u e r r e p r e s e n t a ç ã o d a r e a l i d a d e , as d i f i c u l d a d e s na análise da l i t u r g i a j e j e d e r i v a m de o u t r a série d e f a t o s d e o r d e m m a i s o b j e t i v a . O C a n d o m b l é não é u m a religião s u b m e t i d a a u m a h i e r a r q u i a i n s t i t u c i o n a l q u e i m p o n h a d o g m a s a serem s e g u i d o s p o r t o d o s e, c o m o se diz, "cada casa t e m o seu r e g i m e " . T u d o é f e i t o de a c o r d o c o m a " t r a d i ç ã o " , p o r é m esta perm i t e , e até exige, u m a c o n s t a n t e a d a p t a ç ã o às c i r c u n s t â n c i a s d e cada m o m e n to. N a realidade, a religião afro-brasileira é caracterizada p o r uma grande f l e x i b i l i d a d e e e c l e t i s m o , e os t e r r e i r o s jejes n ã o e s c a p a m a essa d i n â m i c a de m u d a n ç a progressiva. A p e s a r de ser u m g r u p o m i n o r i t á r i o , as casas jejes apres e n t a m u m a rica v a r i e d a d e de p r á t i c a s r i t u a i s e d i v i n d a d e s q u e d i f e r e n c i a m u m a c o n g r e g a ç ã o da o u t r a . O p r o b l e m a se agrava q u a n d o s a b e m o s q u e , a l é m dessa d i v e r s i d a d e "int e r n a " , os t e r r e i r o s jejes p r a t i c a m o b r i g a ç õ e s e c u l t u a m d i v i n d a d e s p r ó p r i a s d e o u t r a s nações e q u a n d o , ao m e s m o t e m p o , s a b e m o s q u e t e r r e i r o s q u e n ã o se d e c l a r a m jejes p o d e m p r a t i c a r o b r i g a ç õ e s e c u l t u a r d i v i n d a d e s o r i g i n á r i a s dessa n a ç ã o . P o r t a n t o , seria e r r a d o falar d e u m a l i t u r g i a jeje c o m o u m a u n i d a d e h o m o g é n e a , estática e e s t a n q u e , só p r a t i c a d a pelos t e r r e i r o s q u e assim se d e c l a r a m . Esse fato c o l o c a u m sério p r o b l e m a n a h o r a d e d e f i n i r o q u e e n t e n d e m o s por l i t u r g i a jeje. S e r i a m aquelas p r á t i c a s rituais e n c o n t r a d a s nos t e r r e i r o s q u e se d e c l a r a m jejes, o u s e r i a m aquelas p r á t i c a s r i t u a i s associadas aos v o d u n s e n c o n t r a d a s e m t e r r e i r o s de várias nações? N o p r e s e n t e t r a b a l h o , o p t e i p o r e s t u d a r aquelas p r á t i c a s q u e se associam aos v o d u n s nos t e r r e i r o s

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O

RITUAL

que se d e c l a r a m jejes e, s e g u n d o os p a r t i c i p a n t e s , expressam e c a r a c t e r i z a m a liturgia jeje p e r a n t e aquelas de o u t r a s nações. Nesse sentido, o trabalho não é u m exercício para identificar "africanismos", depósitos o u sobrevivências culturais da área dos gbe-falantes, mas a m b i c i o n a analisar os elementos litúrgicos que c o n f i g u r a m a i d e n t i d a d e c o n t e m p o r â n e a dos terreiros jejes vis-à-vis

o u t r o s terreiros c o m o os angolas ou ketus. S e n d o

essa i d e n t i d a d e u m f e n ó m e n o dialógico e c o n t e x t u a l c o n s t r u í d o s e m p r e em relação aos "outros", será i m p o r t a n t e e n t e n d e r o que os praticantes jejes consid e r a m c o m o p r ó p r i o da sua nação, e n t e n d e r c o m o eles p r o b l e m a t i z a m a sua diferença. Paralelamente, faz-se necessário analisar o u t r o s elementos que, não sendo explícitos no discurso dos praticantes jejes, c o n s t i t u e m , de fato, elementos g e n u i n a m e n t e jejes pela sua ascendência da área dos gbe-falantes. C o m o v i m o s no c a p í t u l o p r e c e d e n t e , a i d e n t i d a d e dos terreiros jejes articula-se em p r i m e i r a i n s t â n c i a nas suas d i v i n d a d e s , os v o d u n s . Por sua vez, o c u l t o dos v o d u n s c o m p o r t a u m a diversidade de m o d o s de expressão, c o m o a l í n g u a e os cantos, os r i t m o s de t a m b o r , as danças, o vestuário, o c o m p o r t a m e n t o e interações sociais dos v o d u n s e dos m e m b r o s da c o m u n i d a d e religiosa, as o f e r e n d a s (animais sacrificiais, a l i m e n t o s , sementes, folhas etc.), assim c o m o u m a série de s e g m e n t o s rituais o u obrigações, em q u e é possível i d e n tificar e l e m e n t o s q u e d i s t i n g u e m as práticas jejes daquelas de o u t r o s terreiros. E v i d e n t e m e n t e , t o d o s esses m o d o s de expressão estão i n t e r l i g a d o s e i n t e g r a d o s n o que p o d e r i a ser c h a m a d o de u m a "cultura religiosa", mas para fins expositivos é útil m a n t e r essas distinções ou categorias analíticas. Vamos, p o r t a n t o , analisar esses diferentes aspectos da atividade ritual t e n t a n d o salientar os e l e m e n t o s d i s t i n t i v o s da t r a d i ç ã o jeje.

LÍNGUA OU DIALETO JEJE: BÊNÇÃOS E TERMINOLOGIA HIERÁRQUICA D e s d e os estudos de Rodrigues, persiste na literatura afro-brasileira u m a tendência errónea a associar a língua jeje com o ewe. "Ewe" foi u m t e r m o p o p u l a rizado por Ellis a partir de 1890 para designar, sobretudo na literatura germana, a totalidade de povos da área gbe, p o r é m , na realidade, é o n o m e de apenas u m dos g r u p o s originários de Notsé. C o m o a p o n t a o m e s m o Rodrigues, na virada do século XIX o jeje incluía cinco dialetos: "1.- o M a h i ; 2.- D a h o m ê ou E f f o n [fon]; 3.- o A u f u e h [Agoué]; 4.- o Awunã ou Aulô [Agouna ou Anlo]; 5.- o W h y d a h ou Wetá [hueda]". Nessa lista, apenas o aulô, talvez u m a variante do e t n ô n i m o anlo, p o d e r i a ser considerado ewe. N a década de 1940, C a r n e i r o c o m e n t a que a i n d a se falava "o jêje (inclusive a variação mahi, q u e se p r o n u n cia m a r r i m ) " . 2

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L U I S N I C O L A U PA R É S

C o m o v i m o s n o c a p í t u l o 3, o " n a c i o n a l i s m o " d a d i á s p o r a a f r i c a n a n o Brasil, n a a u s ê n c i a d o f a t o r t e r r i t o r i a l ( q u e só p o d i a ser v i v e n c i a d o c o m o lembrança de u m a procedência perdida), estruturou-se, sobretudo, c o m o um " n a c i o n a l i s m o l i n g u í s t i c o " . D e igual m o d o , as l í n g u a s a f r i c a n a s p e r s i s t i r a m n o â m b i t o da religião c o m o u m d o s sinais d i a c r í t i c o s m a i s i m p o r t a n t e s na f o r m a ç ã o e i m a g i n a ç ã o das n a ç õ e s d e C a n d o m b l é . J á analisei n o c a p í t u l o 4 a i n f l u ê n c i a da t e r m i n o l o g i a religiosa j e j e n o C a n d o m b l é c o m o u m t o d o . T o d a v i a , a l é m dos v o c á b u l o s jejes q u e c r u z a r a m f r o n t e i r a s de n a ç ã o , os terreiros jejes m a n t ê m u m l i n g u a j a r o u "dialeto" p r ó p r i o q u e c o n t r i b u i para estabelecer a e s p e c i f i c i d a d e i d e n t i t á r i a dessa t r a d i ç ã o religiosa d i a n t e das o u t r a s nações. H o j e e m dia, são os c a n t o s p a r a louvar as d i v i n d a d e s , as cantigas de "mat a n ç a " , as c a n t i g a s d e "saída de i a w ô " etc., e as rezas ( q u e se d i f e r e n c i a m das a n t e r i o r e s ) , u m d o s â m b i t o s mais i m p o r t a n t e s sob os quais se e s t r u t u r a o f a t o r d i f e r e n c i a l dos jejes. E m b o r a seja difícil falar d e u m a "língua" p r o p r i a m e n t e dita, h á t a m b é m "dialeto" jeje na t e r m i n o l o g i a h i e r á r q u i c a e litúrgica e e m certas f ó r m u l a s orais c o m o as bênçãos, saudações o u outras expressões para conversar c o m os v o d u n s , p a r a c h a m a r a gaiaku-, para p e d i r licença ao e n t r a r n o terreiro, o u na casa (ago nu kwe vi o u ago no kwé vé). O u t r a s f ó r m u l a s são utilizadas pela gaiaku

para

saber se u m a v o d ú n s i está d o e n t e , e assim p o r d i a n t e . O r e p e r t ó r i o l i n g u í s t i c o é bastante extenso, e um vocabulário provisional, e certamente incompleto, r e c o m p i l a d o nesta pesquisa, a p o n t a para m a i s de c e m palavras, i n c l u i n d o term o s para d e s i g n a r as diversas p a r t e s d o c o r p o , a n i m a i s , a l i m e n t o s , folhas, o b jetos rituais, espaços sagrados etc. A q u i v o u considerar, de m o d o ilustrativo, a p e n a s as b ê n ç ã o s o u saudações rituais e os t e r m o s da h i e r a r q u i a sacerdotal. T o m a r a b ê n ç ã o ( d o l a t i m benedictione,

ação de benzer, o u d e a b e n ç o a r )

é u m a p r á t i c a m u i t o c o m u m n a s o c i e d a d e p a t r i a r c a l brasileira, c o m f o r t e i n f l u ê n c i a d o C a t o l i c i s m o . N o c o n t e x t o d o C a n d o m b l é , esse gesto ritual se c o n f u n d e c o m u m a n ã o m e n o s e x t e n s a t r a d i ç ã o a f r i c a n a de s a u d a ç õ e s e c u m p r i m e n t o s r i t u a i s . E m geral, o p e d i d o de b ê n ç ã o e o u t r o s c u m p r i m e n t o s express a m s u b o r d i n a ç ã o e r e s p e i t o d a q u e l e q u e a p e d e para q u e m a c o n c e d e e estão, p o r t a n t o , d e t e r m i n a d o s p e l o p r i n c í p i o h i e r á r q u i c o d e s e n i o r i d a d e , regra essencial das c u l t u r a s d a A f r i c a o c i d e n t a l . A t u a l m e n t e , n o C a n d o m b l é jeje o p e d i d o d e b ê n ç ã o p o d e a p r e s e n t a r várias f o r m a s . F o r a d o r i t u a l , p o d e c o n s i s t i r n u m s i m p l e s b e i j a - m ã o e, t r a t a n d o - s e d e m e m b r o s d e u m m e s m o nível h i e r á r q u i c o , a i n t e r a ç ã o é r e p l i c a d a pela seg u n d a p e s s o a . N o c o n t e x t o das o b r i g a ç õ e s , d i a n t e d o s m a i s v e l h o s , a pessoa p o d e a p e n a s c u r v a r l i g e i r a m e n t e o c o r p o , b a i x a n d o o olhar, ao t e m p o q u e est e n d e os b r a ç o s m o s t r a n d o as p a l m a s das m ã o s para c i m a , sem existir n a i n t e -

316

O RITUAL

r a ç ã o n e n h u m c o n t a t o físico. N o caso e m q u e se p r e t e n d a expressar m a i o r grau de s u b o r d i n a ç ã o o u respeito, o i n d i v í d u o p o d e a j o e l h a r - s e d i a n t e d o superior, b e i j a n d o o u t o c a n d o c o m a f r e n t e o c h ã o , ao t e m p o q u e o s u p e r i o r p o d e t o c a r l i g e i r a m e n t e c o m a m ã o o p e s c o ç o o u o d o r s o da pessoa. C a b e n o t a r q u e n o jeje c a c h o e i r a n o n ã o se observa, p e l o m e n o s h o j e em dia, o c o m p l e x o d o b a l e u t i l i z a d o n o s t e r r e i r o s k e t u s , n o q u a l a p e s s o a se p r o s t r a de f o r m a s v a r i a d a s d i a n t e d o s u p e r i o r . 3 Esses gestos c o r p o r a i s vão n o r m a l m e n t e a c o m p a n h a d o s de u m a f ó r m u l a oral c a r a c t e r í s t i c a e d i f e r e n c i a d a s e g u n d o a nação ou a categoria d o v o d u m a q u e p e r t e n c e o superior. O p e d i d o de b ê n ç ã o c o m p o r t a s e m p r e u m a r e s p o s t a , q u e seria a b ê n ç ã o p r o p r i a m e n t e d i t a . N o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s d i s t i n g u e m - s e três f ó r m u l a s p r i n c i p a i s , q u e c o r r e s p o n d e m às três g r a n d e s c a t e g o r i a s de v o d u n s : n a g ô - v o d u m , m a h i e kav i o n o . N a t r a d i ç ã o n a g ô - v o d u m diz-se c o l o f é , e a r e s p o s t a p o d e ser s i m p l e s m e n t e c o l o f é o u Olorum

modokivé.

E provável q u e c o l o f é seja u m a expressão

de o r i g e m i o r u b á , s e n d o q u e esse p e d i d o de b ê n ç ã o t a m b é m se p o d e e s c u t a r em a l g u m a s casas k e t u s . B i n o n C o s s a r d , p o r e x e m p l o , m e n c i o n a a expressão Olorum

kolofe c o m o n a g ô . 4

Benoi é o p e d i d o d e b ê n ç ã o n o l a d o m a h i e é u t i l i z a d o p a r a se dirigir aos f d h o s de D a n o u Bessen. A r e s p o s t a é benoi éganji.

Existe a i n d a a expressão

p a r a s a u d a r esse v o d u m , "de n a g ô - v o d u m p a r a D a n " , q u e seria arrobo eborrei éganji,

o u a v a r i a n t e o benoi, arrobo benoi. C a b e n o t a r q u e

benoi, aroboboi

é a s a u d a ç ã o de O x u m a r é n o k e t u . N o l a d o de k a v i o n o , para a q u e l a s pessoas q u e p e r t e n c e m à f a m í l i a d o v o d u m S o g b o , utiliza-se a expressão aóoo, seguida da r e s p o s t a aotí o u

aotín?

E i m p o r t a n t e n o t a r q u e os p e d i d o s de b ê n ç ã o são n o r m a l m e n t e p r e c e d i d o s p e l o t í t u l o h i e r á r q u i c o da pessoa a q u e m se p e d e (i.e., ogã c o l o f é , e q u e d e c o l o f é ) . Q u a n d o se t r a t a d a m ã e - d e - s a n t o , usa-se o t í t u l o c o r r e s p o n d e n t e a esse cargo, s e g u n d o c a d a u m a das t r a d i ç õ e s . N o n a g ô - v o d u m é gaiaku n o m a h i , mejito "eu sou gaiaku

benoi; e n o k a v i o n o , doné aóoo. C o m o dizia gaiaku n o n a g ô - v o d u m ; eu s o u mejitó

Kevioso, eu sou doné".6

colofé; Luiza,

na t e r r a d e D a n ; n a t e r r a de

Essa d i v e r s i d a d e d e b ê n ç ã o s e t í t u l o s h i e r á r q u i c o s

d e m o n s t r a e c o r r o b o r a a já m e n c i o n a d a divisão d o p a n t e ã o jeje nas três tradições, m a h i , m u n d u b i e n a g ô - v o d u m . Para os títulos doné e gaiaku

(provavel-

m e n t e u m t e r m o nagô) n ã o e n c o n t r e i u m a e t i m o l o g i a clara, já o t e r m o u t i l i z a d o "na t e r r a d e D a n " , v e m d o f o n g b e ( o u m a h i g b e ) mjijíto,

mejito,

q u e signifi-

caria m ã e , " a q u e l a q u e traz a l g u é m ao m u n d o " . 7 S e g u r a m e n t e a p a r t i r da leitura de Ellis, R o d r i g u e s fala d o t e r m o

vodunon

o u vodunõ como o " n o m e d a d o às sacerdotisas jejes d o culto D ã n h - g b i " . E m b o ra esse autor, ao t r a d u z i r nó p o r m ã e e vodu p o r santo o u orixá, veja n o t e r m o

317

L U I S N I C O L A U PA R É S

vodunõ u m a n t e c e d e n t e da expressão brasileira " m ã e - d e - s a n t o " , cabe n o t a r que e m f o n g b e o s u f i x o nó, além d e s i g n i f i c a r " m ã e de", expressa a idéia de "poss u i d o r de, p r o p r i e t á r i o de, d e t e n t o r d e " . Se n a área g b e o t e r m o vodunõ

não

é f e m i n i n o , e é u t i l i z a d o s o b r e t u d o p a r a d e s i g n a r o c h e f e religioso masculin o , a t r a d u ç ã o d o t e r m o p o r " d o n o " , " p r o p r i e t á r i o " ou "zelador" d o v o d u m seria m a i s c o r r e t a . C a b e n o t a r q u e o u s o desse t e r m o é m u i t o r a r o n o s terreiros jejes c o n t e m p o r â n e o s e parece restrito apenas a pessoas familiarizadas com a literatura d o Daomé.8 M a i s c o m u m para designar o chefe religioso m a s c u l i n o é o t e r m o

humbono.

N o capítulo 4 já m e n c i o n e i o uso, no C a n d o m b l é d o século XIX, das suas evoluções f o n é t i c a s gumbônde

o u gombono,

e a sua versão f e m i n i n a gumbonda.

sas variantes d e r i v a m d o t e r m o f o n hunbonÕ,

Es-

q u e t r a d u z i d o l i t e r a l m e n t e sig-

nifica o d o n o o u zelador {no) d o "talismã" (bo) da d i v i n d a d e ( h u n ) . O u t r o s t í t u l o s h i e r á r q u i c o s f e m i n i n o s q u e a p a r e c e m e m O Alabama, donunce,

c o m o guncô ou

p a r e c e m ter sido esquecidos.

N o Seja H u n d é , o t e r m o deré é u t i l i z a d o p a r a d e s i g n a r a m ã e - p e q u e n a ou a s e g u n d a pessoa da gaiaku.3

N o terreiro B o g u m é usado m a i s f r e q u e n t e m e n t e

o t e r m o hunsó p a r a a l u d i r a esse c a r g o . N o B e n i m , c o n f o r m e r e g i s t r a Segurola, o hunsó p o d e ser m u l h e r o u h o m e m e d e s i g n a o a d j u n t o d o

vodunon,

responsável p o r i m p o r t a n t e s funções rituais c o m o dançar "segurando no o m b r o os a n i m a i s q u e serão s a c r i f i c a d o s . Nesse m o m e n t o se diz: é só hun\ ele p e g o u o f e t i c h e " . 1 0 Essa f u n ç ã o p r ó p r i a d o r i t u a l c h a m a d o vodun

só gbo (o

v o d u m pega o b o d e ) é s e m p r e r e s e r v a d a às pessoas m a i s idosas e de m a i s exp e r i ê n c i a na religião. A i n d a no B e n i m é u s a d o o t e r m o hungan

( l i t e r a l m e n t e chefe da d i v i n d a d e )

p a r a designar a s e g u n d a pessoa, o u m ã o direita, d o vodunon. ou m u l h e r e, a l é m de s u b s t i t u i r o vodunon

P o d e ser h o m e m

e m caso de necessidade, a t u a c o m o

o seu p o r t a - v o z d i a n t e das v o d ú n s i s . Esse t e r m o é c o n h e c i d o n o B o g u m , m a s a p a r e n t e m e n t e designa pessoas d e b a i x o nível h i e r á r q u i c o . A l é m da c h e f a ou c h e f e da c o n g r e g a ç ã o religiosa, existem os ogãs, ou d i g n i t á r i o s m a s c u l i n o s q u e , sem d a n ç a r o u " r e c e b e r " o v o d u m na cabeça, f o r a m i n i c i a d o s p a r a s e c u n d a r o líder religioso em diversas f u n ç õ e s . N o s t e r r e i r o s jejes, os t í t u l o s de mais alto status são pejigã, ogã huntó e, e m C a c h o e i r a , o g ã impé. E m p r o p r i e d a d e o pejigã é o z e l a d o r o u c h e f e d o p e j i (altar), o huntó

é

o c h e f e dos t o c a d o r e s d e a t a b a q u e e o ogã impé seria o responsável pelos sacrifícios a n i m a i s e o u t r a s o b r i g a ç õ e s i n t e r n a s , c o r r e s p o n d e n t e ao a x o g u m d o s t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s . " S e g u n d o as c i r c u n s t â n c i a s , a m e s m a pessoa p o d e ass u m i r vários cargos. Por e x e m p l o , A m â n c i o M e l o era ogã huntó

do Bogum,

" c h e f e d o s a t a b a q u e s e a b a t e d o r de a n i m a i s e m h o l o c a u s t o aos v o d u n s " . 1 2

318

O

RITUAL

O u t r a s vezes esses títulos a d q u i r e m significados variáveis. Por e x e m p l o ,

huntó,

o " d o n o d o t a m b o r " , p o d e , às vezes, ser e m p r e g a d o c o m o s i n o n i m o d e p a i - p e q u e n o , o u p o d e d e s i g n a r u m simples t o c a d o r . O t e r m o doté é t a m b é m u t i l i z a d o de f o r m a variável, às vezes c o m o s i n ó n i m o d e ogã — d a í se p o d e falar d e doté impé e m vez de ogã impé — , o u t a m b é m c o m o s i n ó n i m o de humbono,

zelador do santo, ou pai-de-santo. Em

P o r t o N o v o , A k i n d e l e e A g u é s s y m e n c i o n a m o t e r m o douté c o m o s i n ó n i m o de vodunon

ou d i r i g e n t e d o t e m p l o . 1 3 Já J o h n D u n c a n , em P e q u e n o P o p o ,

m e n c i o n a "o c a b e c e i r a , o u dootay,

considerado c o m o um dirigente, magis-

trado ou chefe hereditário".14 O u t r o t í t u l o c o n h e c i d o nos terreiros jejes de C a c h o e i r a é o de obajigan bajigan, agbajigan,

ou

a s e g u n d a pessoa d o pejigã. 1 5 Talvez se t r a t e de u m a c o r r u p t e l a de t í t u l o u t i l i z a d o n o B o g u m , q u e e m f o n g b e significa chefe d o p á t i o

interior (agbaji = p á t i o interior, varanda). T a m b é m f o r a m d o c u m e n t a d o s o u t r o s t e r m o s d e o r i g e m gbe, c o m o : ganto, responsável pelo gã o u i d i o f o n e sagrado; ogã kutó, responsável pela casa dos eguns o u ancestrais d o terreiro ( k ú = m o r t e ) e ogã minazon,

responsável "pela a r t i l h a r i a do c a n d o m b l é , os a p a r e l h o s dos

tabaques". 1 6 O u t r o s t í t u l o s sobre os quais n ã o o b t i v e m a i o r e s i n f o r m a ç õ e s são oganvi, ogã senevi, alavi, agosun e ogã tenequites.17 cutei o t e r m o hundeva,

E m C a c h o e i r a t a m b é m es-

d a d o a u m t o c a d o r d e a t a b a q u e . N o B e n i m esse t e r m o

designa aquela pessoa q u e não "recebe" o v o d u m na cabeça, mas q u e , s e n d o iniciada, a j u d a em várias atividades rituais. E m relação às e q u e d e s o u assistentes f e m i n i n a s , e m b o r a p o s s a m ter f u n ções d i f e r e n c i a d a s , relativas ao p r e p a r o d e c o m i d a s r i t u a i s , a t e n d i m e n t o d o s v o d u n s etc., n ã o c o n s e g u i d o c u m e n t a r t í t u l o s e s p e c í f i c o s p a r a elas. Sei a p e nas q u e , n o B o g u m , a responsável pelo p r e p a r o de c o m i d a s rituais é a

dogan.ls

C a b e n o t a r q u e t a n t o ogãs c o m o e q u e d e s , além de ter a sua p r ó p r i a d i v i n d a d e " d o n a d a cabeça", estão g e r a l m e n t e c o n s a g r a d o s t a m b é m aos v o d u n s q u e os e s c o l h e r a m p a r a esses cargos. Por e x e m p l o , u m i n d i v í d u o d e O g u m p o d e ser s u s p e n s o ogã pela O x u m de d e t e r m i n a d a v o d ú n s i e, desse m o d o , vira ogã de O x u m , d e v e n d o a j u d a r sua v o d ú n s i n o q u e f o r preciso. O u s o de t o d a essa c o m p l e x a t e r m i n o l o g i a h i e r á r q u i c a c o n t r i b u i , assim, para d i f e r e n c i a r a n a ç ã o jeje de o u t r o s r i t o s de C a n d o m b l é . C o m o já foi n o t a d o p o r vários a u t o r e s , a o r g a n i z a ç ã o h i e r á r q u i c a da c o n g r e g a ç ã o religiosa e a divisão d o t r a b a l h o p o r g é n e r o são de f u n d a m e n t a l i m p o r t â n c i a p a r a o f u n c i o n a m e n t o d o c u l t o . C o m o coloca m ã e Stella de Oxóssi, d o Axé O p ô A f o n j á , " h i e r a r q u i a é t u d o : p r i n c í p i o , m e i o e fim. Sem ela o caos" o u "a h i e r a r q u i a é a disciplina". 1 9 N o e n t a n t o , t a m b é m se c o n s t a t a q u e m u i t a s vezes a "hierarquia oficial" expressa em base aos d i f e r e n t e s títulos e ao p r i n c í p i o de s e n i o r i d a d e

319

LUIS NICOLAU

PA R É S

não c o r r e s p o n d e necessariamente com a hierarquia do p o d e r real, e que indivíduos com títulos relativamente p o u c o significativos, c o m o equedes ou ogãs, p o d e m , às vezes, exercer grande influência nas decisões t o m a d a s o u sancionadas pela c ú p u l a dirigente. E m outras palavras, ao lado da "hierarquia oficial" há sempre u m a "hierarquia oficiosa" q u e é a q u e r e a l m e n t e d e t é m o poder.

INSTRUMENTOS E RITMOS DE TAMBOR NOS TERREIROS JEJES O s i n s t r u m e n t o s percussivos e a l i n g u a g e m musical (ritmos, toques, jeitos de bater) são c o n s i d e r a d o s o u t r o s â m b i t o s de diferenciação litúrgica e n t r e as nações de C a n d o m b l é , especialmente entre o rito angola e o rito jeje-nagô, sendo q u e e n t r e os terreiros jejes e k e t u s existe m a i o r i n t e r p e n e t r a ç ã o e s e m e l h a n ç a de estilos. A o r q u e s t r a do C a n d o m b l é b a i a n o c o n t e m p o r â n e o se c o m p õ e do ferro (gã ou agogô) e de três atabaques de t a m a n h o s diferentes c h a m a d o s , i n d o do m a i o r para o m e n o r , "rum, e humpevi,

rumpi

e lé, d e f o r m a ç ã o das palavras f o n hum

p a r a os dois p r i m e i r o s , e da palavra n a g ô orneie, para o terceiro". 2 0

N o s terreiros jejes de C a c h o e i r a , o gã é u m a sineta de ferro p e r c u t i d a c o m u m pedaço de ferro o u madeira. Nos terreiros ketus e de outras nações, o agogô é g e r a l m e n t e u m a d u p l a c a m p â n u l a o u sineta. A t é a virada do século XIX, a o r q u e s t r a do C a n d o m b l é incluía t a m b é m a cabaça c o b e r t a p o r u m a rede de fios, em c u j o s nós se p r e n d e m c o n t a s o u búzios {gò em f o n ou xequere em nagô), a que Rodrigues a t r i b u í a u m "notável papel". Seu uso, que n o M a r a n h ã o é a i n d a i m p o r t a n t e , na Bahia foi aos p o u cos d e s a p a r e c e n d o , ficando restrito, nos terreiros jejes, ao ritual d o

zandró

(ver a d i a n t e ) . C a r n e i r o m e n c i o n a a i n d a o chocalho — c i l i n d r o o u espécie de maracá de f o l h a de f l a n d r e s c o m seixos d e n t r o — , h o j e t a m b é m quase esquecido. A p e n a s nos cultos de Sogbo e X a n g ô se utiliza o xeré, c h o c a l h o ritual de c o b r e ou f e i t o em cabaça, p a r a a invocação e s a u d a ç ã o da d i v i n d a d e . Por o u t r o lado, o adjá — c a m p a i n h a de metal utilizada para reverenciar e invocar as d i v i n d a d e s — , q u e nos anos de 1960 C a r n e i r o m e n c i o n a c o m o " m e n o s usado", é h o j e u m i n s t r u m e n t o m u i t o c o m u m e e m b l e m á t i c o d o p o d e r d o pai o u m ã e - d e - s a n t o . 2 1 O s a t a b a q u e s e o f e r r o são c o n s i d e r a d o s "seres d o t a d o s de a l m a e personalidade". 2 2 Eles são b a t i z a d o s e c o n s a g r a d o s a d e t e r m i n a d a s e n t i d a d e s espirituais, o ferro n o r m a l m e n t e a Legba o u Exu. O s a t a b a q u e s n o B o g u m , p o r e x e m p l o , são de Sogbo, O x u m e I e m a n j á . 2 3 Eles recebem o f e r e n d a s a l i m e n tícias p e r i o d i c a m e n t e , na liturgia j e j e - m a h i , d u r a n t e o ritual d o zandró.

No

B o g u m , os a t a b a q u e s e r a m "feitos de j a q u e i r a e sem e m e n d a " e, a p a r t i r dos

320

O

RITUAL

t e m p o s de R u n h ó , f o r a m e n v e r n i z a d o s . N o Seja H u n d é utiliza-se m a d e i r a de d e n d e z e i r o , de m u l u n g u ou c o q u e i r o . A fabricação dos t a m b o r e s é r e s p o n s a b i l i d a d e de c e r t o s ogãs. Para c o r t a r o t r o n c o da á r v o r e , a pessoa t e m h o r a c e r t a e se s u b m e t e a a b s t i n ê n c i a sexual. A m e m b r a n a é c o n f e c c i o n a d a c o m o c o u ro d o b o d e s a c r i f i c a d o nas o b r i g a ç õ e s rituais. 2 ' 1 S e g u n d o Verger, "as f o r m a s e os sistemas de t e n s ã o d o c o u r o dos a t a b a q u e s são d i f e r e n t e s , de a c o r d o c o m as nações dos terreiros. O sistema de t e n s ã o p o r c u n h a é f r e q u e n t e nos c a n d o m b l é s de origem b a n t o (congo e angola). O sistema de t e n s ã o por cavilhas enfiadas n o c o r p o do a t a b a q u e é característico, n o Brasil, das nações n a g ô e djèdje". 2 ^ O ú l t i m o sistema é u t i l i z a d o no B o g u m e n o H u n t o l o j i , o n d e o c o u r o é estirado c o m cordas a m a r r a d a s a t o r n o s inseridos no c o r p o do t a m b o r . N o Seja H u n d é , o n d e essa técnica era aplicada a n t i g a m e n te, h o j e , c o m o n a m a i o r i a de terreiros nagôs, utilizam-se "tensores" metálicos. O u t r a d i f e r e n ç a e n t r e as diversas n a ç õ e s diz r e s p e i t o ao j e i t o de tocar. N a nação jeje, o huntó ( t o c a d o r ) d o t a m b o r m a i o r b a t e , de m ã o , c o m a e s q u e r d a , e n q u a n t o na d i r e i t a segura u m a g u i d a v i ( t e r m o f o n para d e s i g n a r a vareta de g o i a b e i r a , t a m a r i n d e i r o o u c i p ó d u r o de 25 a 30 c m ) , q u e usa para b a t e r n ã o só na m e m b r a n a , m a s t a m b é m n o c o r p o do i n s t r u m e n t o . O s t o c a d o r e s d o r u m p i e d o lé u t i l i z a m d o i s a g u i d a v i s . N a n a ç ã o n a g ô - k e t u é a m e s m a c o i sa, e m b o r a as p a n c a d a s c o m o a g u i d a v i n o c o r p o d o hun s e j a m u m a c a r a c t e r í s t i c a d i s t i n t i v a d o jeje. Já na n a ç ã o c o n g o - a n g o l a e ijexá se b a t e n o r m a l m e n t e de m ã o , c o m o t a m b é m se fazia n o s a n t i g o s t e r r e i r o s de n a ç ã o n a g ô do Recôncavo. O s d i f e r e n t e s r i t m o s o u t o q u e s são apelos o u " l o c u ç õ e s r i t m a d a s " , "palavras de c h a m a d o " , invocações. 2 6 O s o m d o s a t a b a q u e s é c o n s i d e r a d o u m a ling u a g e m q u e estabelece a c o m u n i c a ç ã o c o m o m u n d o invisível das d i v i n d a d e s . C o m o explicava gaiaku

Luiza, é através d o v e n t o q u e circula n o i n t e r i o r dos

t a m b o r e s na h o r a d o t o q u e q u e as d i v i n d a d e s se m a n i f e s t a m . O e l e m e n t o rítm i c o da m ú s i c a é c r i a d o pelos a t a b a q u e s e agogô, e nos c a n t o s se expressa o e l e m e n t o m e l ó d i c o . S e g u n d o ogã J o ã o z i n h o , é o c a n t o q u e m a r c a a velocid a d e d o r i t m o — em suas palavras, "eu t o c o s e g u n d o o t o m d o c a n t o " — e o b s e r v a : " n e m t u d o é ligeiro, é u m a q u e s t ã o de e d u c a ç ã o : N a n ã d a n ç a l e n t o ; O i á , p o n t u a d o ; O g u m , ligeiro". S e g u n d o ele, o hun i m p r o v i s a variações sobre o r u m p i e o lé, q u e d e v e m c o m b i n a r seus r i t m o s d i f e r e n c i a d o s c o m o se fossem os d e d o s e n t r e l a ç a d o s das m ã o s . 2 7 C a b e ao ferro m a r c a r a m é t r i c a e o tempo d o ciclo r í t m i c o , o q u e a q u i c h a m a r e i time

line.is

O e t n o m u s i c ó l o g o Xavier Vatin i d e n t i f i c a n o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o 20 " f ó r m u l a s r í t m i c a s " ; 8 s e r i a m o r i g i n á r i a s d a n a ç ã o n a g ô - k e t u ( a g a b i , aguerê, a l u j á , b a t á , daró, igbí, o p a n i j é , t o n i b o b e ) , 7 da n a ç ã o jeje ( a d a r r u m ,

321

L U I S N I C O L A U PA R É S

avaninha,

ramunha,

bravum,

sató, jicá, vassa), 4 da n a ç ã o a n g o l a (arrebate,

b a r r a v e n t o , c a b u l a , c o n g o ) e 1 da n a ç ã o n a g ó - i j e x á (ijexá). C a b e n o t a r q u e , c o m o e m o u t r o s a s p e c t o s l i t ú r g i c o s , h á nesse â m b i t o u m a f o r t e i n t e r p e n e tração e n t r e as diversas nações, assim c o m o variações t e r m i n o l ó g i c a s e c o n t r o vérsia e m relação à possível o r i g e m d e a l g u m desses r i t m o s . 2 9 A q u i v o u apenas i d e n t i f i c a r o time Une e c o m e n t a r a l g u m a s das características dos r i t m o s mais i m p o r t a n t e s c o n s i d e r a d o s jejes. O time line d o (,avamunia,

hamunyia,

ramunha),

t a m b é m c o n h e c i d o p o r avaninha

avamunha (avanía),

consiste em 12 pulsos c o m 5 batidas, "/x.x.x..x.x../". Esse time line é s u t i l m e n t e d i f e r e n t e d o clave c u b a n o , d e 16 pulsos e 5 batidas, "/x..x..x...x.x.../". Vatin identifica o p r i m e i r o c o m o avaninha,

e o s e g u n d o c o m o ramunha.

O

avamunha

"é u m t o q u e de m a r c h a , mas u m a m a r c h a rápida", u t i l i z a d o p a r a c h a m a r os v o d u n s ao salão ou para dar-lhes a saída ou retirada. Nesses casos, não vai acomp a n h a d o de cantiga, mas t e m avamunha

c o m c a n t i g a p a r a vários v o d u n s . E m

a l g u n s terreiros, esse r i t m o t a m b é m p o d e ser u t i l i z a d o (sem cantiga) p a r a invocar a m a n i f e s t a ç ã o das d i v i n d a d e s . O a d a r r u m é, talvez, o r i t m o jeje mais c o n h e c i d o e c i t a d o na literatura afrobrasileira. Trata-se de u m t o q u e de c h a m a d a m u i t o a c e l e r a d o e sem cantiga, a d o t a d o para i n d u z i r a "possessão" nas d a n ç a n t e s , q u a n d o as d i v i n d a d e s dem o r a m a se m a n i f e s t a r . C o m o diziam os i n f o r m a n t e s de R a m o s , "não há santo q u e resista ao t o q u e a d a r r u m " , ou, c o m o ouvi dizer, "toca o a d a r r u m q u e aí vira t o d o o m u n d o " . A d a r r u m é u m a d e f o r m a ç ã o da palavra f o n adahun

que

p o d e ser t r a d u z i d a c o m o o " r i t m o da cólera". N o C a n d o m b l é se toca só em ocasiões especiais, mas atravessou f r o n t e i r a s de n a ç ã o e p o d e ser e s c u t a d o nos terreiros n a g ô - k e t u s e mais r a r a m e n t e nos c o n g o - a n g o l a s . O seu time line é de o i t o pulsos c o m q u a t r o batidas, "/x.x.x.x./", i n c r e m e n t a n d o d e p o i s para sete, "/x.xxxxxxx/", o q u e s o m a d o a u m rapidíssimo r e p i q u e das varas nos a t a b a q u e s gera u m a sensação de aceleração. 3 0 O sató (variante huntó)

e o bravum

(variante brarrum)

são o u t r o s dois rit-

m o s u n a n i m e m e n t e r e c o n h e c i d o s c o m o jejes. O sató é o r i t m o "oficial" de Bessen, mas se toca t a m b é m e m cantos de Azonsu, N a n ã e Iemanjá. 3 1 O

bravum,

sem cantiga, p o d e ser utilizado c o m o " t o q u e de e n t r a d a " , " t o q u e de saída" e c o m o " t o q u e de s a u d a ç ã o " p a r a salvar as pessoas de alta h i e r a r q u i a q u a n d o c h e g a m a u m terreiro; mas t a m b é m p o d e a c o m p a n h a r c a n t i g a s para várias divindades. A m b o s os r i t m o s c o m p a r t i l h a m ciclos m é t r i c o s d e seis pulsos. Segund o Vatin, os dois t ê m q u a t r o batidas, "/x.xxx./", c o m a d i f e r e n ç a de q u e n o bravum os seis pulsos estariam a g r u p a d o s de f o r m a b i n á r i a (dois p o r três) e n o sató estariam agrupados de f o r m a ternária (três p o r dois). Essas divisões dos pulsos e m pares ou tríades a f e t a m os passos de dança, e n ã o n e c e s s a r i a m e n t e o t o q u e .

322

O

RITUAL

O r a , nas casas p e s q u i s a d a s o bravum

apresenta n o r m a l m e n t e apenas duas

b a t i d a s , " / x . x . . . / " , p a d r ã o n ã o r e g i s t r a d o p o r Vatin n a sua classificação. 3 2 N o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i de C a c h o e i r a fala-se d o quebrado ( v a r i a n t e kevioso o u voduvi)

e do

mundubi

c o m o os t o q u e s mais c a r a c t e r í s t i c o s dessa n a ç ã o .

N a v e r d a d e , t r a t a - s e d e r i t m o s c u j o s time Unes p r i n c i p a i s c o r r e s p o n d e m , resp e c t i v a m e n t e , ao sato e ao bravum

(o ú l t i m o de d u a s b a t i d a s ) , m a s q u e alter-

n a m c o m variações r í t m i c a s e t ê m c o r e o g r a f i a s p a r t i c u l a r e s . Esses t o q u e s e d a n ç a s a c o m p a n h a m i n v a r i a v e l m e n t e o r e p e r t ó r i o de cantigas c o r r e s p o n d e n t e à p r i m e i r a p a r t e d o zandró,

q u a n d o se salvam os v o d u n s jejes, e c o n s t i t u e m ,

p o r t a n t o , u m dos e l e m e n t o s rituais d i s t i n t i v o s dessa liturgia. O quebrado t e n t a c a n t i g a s de Bessen, A z o n s u e o u t r o s . O mundubi,

sus-

como o n o m e indica,

está na base de m u i t o s dos c a n t o s de v o d u n s da família H e v i o s o , mas t a m b é m é u s a d o e m c a n t o s d e o u t r o s v o d u n s , c o m o Bessen. O s t o q u e s e d a n ç a s d o quebrado

e mundubi

d i v i d e m - s e em d u a s partes ou

m o v i m e n t o s a l t e r n a d o s . D u r a n t e o p r i m e i r o m o v i m e n t o , o time line d o quebrado é "/x.xxx./" (sató), e o d o mundubi

" / x . x . . . / " (bravum).

A d a n ç a coinci-

de c o m o d e s l o c a m e n t o da v o d ú n s i da posição inicial d i a n t e dos t a m b o r e s até a p o r t a d o barracão, da p o r t a ao e x t r e m o o p o s t o d o salão ( o n d e está s e n t a d a a gaiaku)

e daí de n o v o até os t a m b o r e s , f o r m a n d o u m i t i n e r á r i o t r i a n g u l a r q u e

segue o s e n t i d o inverso dos p o n t e i r o s d o relógio. N o m o m e n t o em q u e a d a n ç a n t e está d i a n t e d o s t a m b o r e s , da p o r t a o u d a gaiaku, d o time line.i3

p r o d u z - s e a variação

Nesse s e g u n d o m o v i m e n t o , a d a n ç a t a m b é m m u d a ; as m ã o s são

agitadas c o m o se estivessem b a t e n d o u m t a m b o r n o baixo v e n t r e ou, alternat i v a m e n t e , o t o r s o se d o b r a p a r a a f r e n t e , ao t e m p o q u e os b r a ç o s e p e r n a s se a b r e m e f e c h a m para os lados, c o m gesto de a p a r ê n c i a pesada. As t r a n s i ç õ e s d o s e g u n d o p a r a o p r i m e i r o m o v i m e n t o são n o r m a l m e n t e m a r c a d a s pelo c h a m a d o jiká,

gesto q u e consiste n u m a leve g e n u f l e x ã o e u m

e s t r e m e c i m e n t o das o m o p l a t a s . N o C a n d o m b l é é u m s i g n o d i s t i n t i v o d o s v o d u n s , p o r vezes c o n s i d e r a d o sua s a u d a ç ã o , e só as v o d ú n s i s mais experientes c o n s e g u e m realizá-lo c o m graça. O jiká p o r vezes ijika o u jinká,

dá n o m e a o u t r o r i t m o jeje c h a m a d o

c u j o time line seria "/x.xx../", q u e p o r sua vez corres-

p o n d e ao d o r i t m o ilú, t o c a d o p a r a I e m a n j á . T a m b é m ouvi falar d o t o q u e azakun (azançu,

azanhuna),

p r o v a v e l m e n t e d e f o r m a ç ã o de azanhun,

q u e seria u m

t o q u e " p r i n c i p a l m e n t e para a c h a m a d a " , mas t a m b é m utilizado para a retirada. 3 4 O ú l t i m o r i t m o i d e n t i f i c a d o c o m o jeje p o r Vatin, o vassa, é u m dos m a i s p o p u l a r e s e m t o d a s as religiões a f r o - b r a s i l e i r a s . O seu time line c o n s i s t e e m 12 p u l s o s c o m 7 b a t i d a s , " / x . x . x x . x . x . x / " . N o s t e r r e i r o s jejes é t a m b é m c h a m a d o n a g ô o u a l u j á e a c o m p a n h a g e r a l m e n t e c a n t i g a s p a r a d i v i n d a d e s da categoria n a g ô - v o d u m ( O g u m , O x u m etc.). E m terreiros de o u t r a s nações esse

323

L U I S N I C O L A U PA R É S

time line é c o n h e c i d o t a m b é m c o m o vassi ou toque de ketu, e n o T a m b o r de M i n a do M a r a n h ã o , c o m o dobrado.

Essas d e n o m i n a ç õ e s , s o m a n d o - s e o fato

de sustentar grande n ú m e r o de cantigas de orixás, q u e s t i o n a m a suposta origem jeje desse r i t m o , que, aliás, está d o c u m e n t a d o de f o r m a extensiva em t o d a a Africa ocidental. H á , f i n a l m e n t e , u m a série de r i t m o s n a g ô - k e t u s q u e p o d e m ser e s c u t a d o s nos terreiros jejes. Por exemplo, o a l u j á associado a X a n g ô , q u e a rigor tem u m time line de 12 pulsos e 4 batidas, "/x..x..x..x../", e m b o r a possa apresentar variações q u e c o i n c i d e m c o m o vassa (daí o uso do t e r m o "alujá" para designar o vassa, nos terreiros jejes). O u t r o s t o q u e s são o d r a m á t i c o opanije O m o l u , " / x x x . x x x . x x . x . x x . / " ; o vivaz aguerê,

de

a s s o c i a d o a O x ó s s i , O i á ou

O g u m , "/xx..xxx./", o u o igbí, t o c a d o para O x a l á , "/x.xx.x.xx.xx/". P o d e m o s c o n c l u i r que, e m b o r a n o discurso do p o v o - d e - s a n t o se fale freq u e n t e m e n t e dos t o q u e s de t a m b o r c o m o u m dos fatores q u e d i s t i n g u e m a l i t u r g i a das várias nações, a t u a l m e n t e eles c i r c u l a m de u m terreiro p a r a o u tro c o m g r a n d e fluidez. N ã o o b s t a n t e haja t o q u e s e coreografias específicas dos terreiros jeje-mahis, c o m o o quebrado e o mundubi

de C a c h o e i r a , as f r o n -

teiras "rítmicas" e n t r e as nações jeje e ketu são ténues, e n q u a n t o as d i f e r e n ças em relação à nação angola são mais n o t ó r i a s , p o r esta ú l t i m a n a ç ã o tocar os i n s t r u m e n t o s com a m ã o , em vez de com varetas. E s t a r i a m , p o r t a n t o , no nível das cantigas e de sua língua os p o n t o s nos quais se p o d e estabelecer u m a d e m a r c a ç ã o mais clara entre as d i f e r e n t e s tradições religiosas.

A L G U M A S CONSIDERAÇÕES SOBRE A INICIAÇÃO DAS VODÚNSIS A iniciação de a d e p t o s para sua consagração às d i v i n d a d e s c o n s t i t u i u m a das características centrais do C a n d o m b l é e c o m p o r t a u m a m u d a n ç a do papel e status do i n d i v í d u o em relação ao g r u p o social. Seguindo T u r n e r , que a m p l i o u os conceitos desenvolvidos por Van G e n n e p para analisar os ritos de passagem, p o d e m o s dividir o processo de iniciação em três estágios: separação, transição (oposição, m a r g i n a l i d a d e ou liminaridade) e posterior reintegração social. N o s cultos de v o d u m da área gbe, a iniciação de u m a v o d ú n s i s u p õ e u m a r u p t u r a radical c o m o seu passado; o ser a n t i g o "morre" p a r a "renascer" sob os auspícios da d i v i n d a d e , com u m a nova personalidade. Esse processo de transf o r m a ç ã o "existencial" é expresso em diversos estágios r i t u a i s e na t e r m i n o logia a eles associada. 3 1 Primeiro, a n e ó f i t a ou c a n d i d a t a e x p e r i m e n t a u m a " m o r t e ritual", da qual se fala vodun hu asi (o v o d u m m a t o u a m u l h e r ) , e ela p e r m a n e c e vários dias

324

O

RITUAL

p r o s t r a d a n o c h ã o . Nesse m o m e n t o , a v o d ú n s i é c h a m a d a hun ciò (o c a d á v e r d o v o d u m ) . Esse e s t a d o é s e g u i d o de u m a "ressurreição r i t u a l " , c o n h e c i d a com o hun fínfòn

( a c o r d a r d o v o d u m ) , q u e i n a u g u r a a n o v a vida e s p i r i t u a l da

v o d ú n s i . Esse estágio é s e g u i d o de u m p e r í o d o de t r e i n a m e n t o , n o q u a l , através d a e x p e r i ê n c i a d e vários p r o c e s s o s r i t u a i s e de a p r e n d i z a d o , a v o d ú n s i a d q u i r e u m a nova p e r s o n a l i d a d e o u " i d e n t i d a d e e s p i r i t u a l " . D u r a n t e esse p e r í o d o , a v o d ú n s i p o d e a l t e r n a r estados de "possessão" pelo v o d u m c o m u m e s t a d o p s i c o l ó g i c o e c o m p o r t a m e n t a l d e difícil d e f i n i ç ã o , c o n c e i t u a l m e n t e a s s o c i a d o ao e s t á g i o i n f a n t i l e a m o r f o d a n o v a p e r s o n a l i d a d e , q u e Verger c h a m o u de " e s t a d o de e m b o t a m e n t o " . 3 6 N o B e n i m , existe a i n d a u m estágio p o s t e r i o r n o qual a v o d ú n s i é p r e p a r a da para a t u a r c o m o m e n d i c a n t e (nubyoduto).

Esse estado t e m características

c o m p o r t a m e n t a i s i n f a n t i s e é c h a m a d o ahwansi,

tobosi, agamasi, yomu ou

s e g u n d o os diversos cultos, mas é preciso d i s t i n g u i r esse estado d e

kuvi,

nubyoduto

d o "estado de e m b o t a m e n t o " referido acima, m e s m o q u e os dois p o s s a m ser associados a u m e s t a d o i n f a n t i l . N o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o esses dois estados t e n d e m a se c o n f u n d i r com o estado d o erê, a criança o u a d j u n t o da divindade. O estado de erê p e r m i t e à n e ó f i t a s u p o r t a r os longos p e r í o d o s de reclusão n o huncó e, n o passado, estava t a m b é m ligado à atividade de m e n d i c â n c i a ritual. A iniciação c u l m i n a c o m a a p r e s e n t a ç ã o p ú b l i c a da v o d ú n s i à c o m u n i d a d e , n u m a o b r i g a ç ã o e m q u e o v o d u m "dá o n o m e " , o huin n o jeje o u orunko

no

ketu. H o j e e m dia, a volta da v o d ú n s i à vida secular é quase consecutiva ao "dar o n o m e " , m a s n o passado a reintegração social era u m processo mais l e n t o . A d u r a ç ã o d o p e r í o d o de iniciação t e m sido reduzida de f o r m a progressiva. N o s terreiros jejes fala-se q u e , a n t i g a m e n t e , d u r a v a dois anos, u m a n o e m e i o , o u u m a n o . E m O Alabama,

na d é c a d a de 1860, fala-se n o r m a l m e n t e de seis

meses. H o j e em dia, o t e m p o de r e c o l h i m e n t o é variável e, e m b o r a em a l g u n s casos ainda seja de seis meses ou mais, não é i n f r e q ú e n t e u m a d u r a ç ã o q u e oscila e n t r e três meses e três s e m a n a s . A iniciação é dividida n u m p r i m e i r o p e r í o d o , em q u e a v o d ú n s i p e r m a n e c e recolhida n o huncó ( c a m a r i n h a o u q u a r t o de iniciação), e u m s e g u n d o p e r í o d o em q u e ela p o d e sair do huncó mas p e r m a n e c e ainda no terreiro. Por exemplo, n u m a iniciação de seis meses ela passa três meses " d e n t r o " e três "fora". Vejamos com u m p o u c o mais de d e t a l h e alguns aspectos da iniciação nos terreiros j e j e - m a h i s . C o m o explicava gaiaku

Luiza, "no jeje n ã o se b o t a barco

[grupo de noviças] cada ano, se bota barco cada x anos. O jeje não c h a m a , espera cair, mas q u e m não vai b o t a n d o não colhe". 3 H á certas obrigações anuais, c o m o o boitá o u a f o g u e i r a de Sogbo, c o n s i d e r a d a s m o m e n t o s privilegiados para a ocorrência da "caída" o u da " m o r t e ritual". N o boitá, à m e d i d a q u e a procissão

325

L U I S N I C O L A U PA R É S

gira e m volta das árvores sagradas (atinsa), as novas c a n d i d a t a s p o d e m " b o l a r n o s a n t o " . O atinsa d i a n t e do q u a l u m a c a n d i d a t a i n c o r p o r a é g e r a l m e n t e tom a d o c o m o u m signo q u e i n d i c a a q u e v o d u m ela p e r t e n c e . N o b a r r a c ã o , a c a n d i d a t a joga-se no chão, expressando a " m o r t e ritual". Ela é c o b e r t a c o m u m p a n o b r a n c o (ala), p a r a ser d e p o i s "suspensa" pelos ogãs e m f r e n t e à p o r t a e aos t a m b o r e s , antes de ser r e c o l h i d a na c a m a r i n h a . C o m esse gesto a c a n d i d a t a está a p e n a s " p e d i n d o a feitura", sem n e c e s s a r i a m e n t e i m p l i c a r q u e ela vai ser e f e t i v a m e n t e iniciada. A decisão final c o r r e s p o n d e aos especialistas religiosos. O e s t a d o p r o d u z i d o pela " m o r t e r i t u a l " p o d e p r o l o n g a r - s e p o r vários dias, e fala-se q u e n o p a s s a d o d u r a v a sete n o i t e s e sete dias, m a s h o j e d u r a n o r m a l m e n t e de u m a três dias. Nesse p e r í o d o , a c a n d i d a t a fica n u m e s t a d o de a t o n i a t o t a l , "sem c o m e r , beber, o u realizar suas n e c e s s i d a d e s . O v o d u m está n a m a téria [...] fica p e g a d o m e s m o " . Se a c a n d i d a t a resiste a essa p r o v a ela é s u b m e t i d a a certos ritos iniciais de f e i t u r a , se "afirma o santo", mas, se "desperta", a f e i t u r a p o d e ser s u s p e n s a . N o r m a l m e n t e , u m a s e m a n a t r a n s c o r r i d a à caída, celebra-se o s a p o c ã o u s a r a p o c ã , u m a o b r i g a ç ã o s e m i p ú b l i c a e m q u e a n o v i ça q u e s u p e r o u t o d a s essas p r o v a s é a p r e s e n t a d a n o b a r r a c ã o . O s a r a p o c ã m a r c a a " e n t r a d a " f o r m a l da v o d ú n s i n o p r o c e s s o d e i n i c i a ç ã o , e t a m b é m i n d i c a q u e a f a m í l i a d a n o v i ç a a c e i t o u o c o m p r o m i s s o . S e g u n d o ogã B o b o s o e gaiaku

Luiza, o s a p o c ã é " u m a d e s p e d i d a da f a m í l i a " e a v o d ú n s i "não t e m

n a d a f e i t o " , isto é, ela a i n d a n ã o foi r a s p a d a n e m p i n t a d a . 3 8 A p a r t i r d o s a r a p o c ã , inicia-se o p e r í o d o de r e c o l h i m e n t o e i n s t r u ç ã o e m q u e a noviça é " a c u l t u r a d a c o m o religioso jeje". H á u m a p r e n d i z a d o c o m p o r t a m e n t a l p a r a comer, sentar, falar, rezar etc. " O s a n t o a p r e n d e a ralar na p e d r a para fazer acaçá, a e n f i a r c o n t a s , as danças, o dialeto." C o m o dizia gaiaku

Lui-

za, "jeje t e m escola" e envolve u m a p r e n d i z a d o d e m o r a d o , "sem livros", baseado n a i m i t a ç ã o e r e p e t i ç ã o d a q u i l o q u e f a z e m os mais velhos. N o e n t a n t o , a i n i c i a ç ã o varia de i n d i v í d u o p a r a i n d i v í d u o . C a d a pessoa recebe as suas " m a r cas" (escarificações) d i f e r e n c i a d a s , e as f o l h a s e o u t r o s e l e m e n t o s u t i l i z a d o s nos diversos r i t o s d e f e i t u r a t a m b é m v a r i a m de a c o r d o c o m o v o d u m p a r a q u e m a p e s s o a esta s e n d o c o n s a g r a d a . A p ó s esse p e r í o d o d e r e c o l h i m e n t o , q u e p o d e d u r a r v á r i o s m e s e s , realiza-se u m a s e g u n d a a p r e s e n t a ç ã o r i t u a l d a v o d ú n s i n o b a r r a c ã o . T r a t a - s e de u m a c e r i m ó n i a i n t e r n a , p r i v a d a , q u e m a r c a a saída da c a m a r i n h a o u huncó e i n a u g u r a o s e g u n d o p e r í o d o da iniciação, o p e r í o d o "de fora". A v o d ú n s i p o d e circular por certas áreas do terreiro, mas sem ultrapassar os seus limites, exceto em ocasiões especiais. N o p a s s a d o , p o r e x e m p l o , as n o v i ç a s saíam p a r a v e n der n o m e r c a d o a c a r a j é o u q u a l q u e r o u t r a coisa, s e g u n d o era i n d i c a d o pelo p r ó p r i o v o d u m , e c o m os b e n e f í c i o s p a g a v a m as o b r i g a ç õ e s da sua i n i c i a ç ã o .

326

O

Gaiaku

RITUAL

Luiza l e m b r a v a c o m s a u d a d e os t e m p o s antigos nos terreiros jejes.

D u r a n t e a iniciação "o v o d u m v i n h a n o d o m i n g o d e m a n h ã e só desligava na q u i n t a - f e i r a de n o i t e [...]. Sexta-feira n ã o desce s a n t o n o jeje". E dia de p r e ceito e t a m b é m n ã o se b a t e t a m b o r ; c o m o dita a tradição, "em sexta-feira n e m p a g o n e m r e c e b o " . O s a n t o , a l t e r n a n d o c o m seu erê, "ficava na m a t é r i a d u r a n t e m a i s d e c i n c o dias p a r a d a r i n s t r u ç ã o . H o j e já m u d o u , h o j e as m a t é rias n ã o t ê m s a ú d e " . S e g u n d o gaiaku

Luiza, o a p r e n d i z a d o das noviças é

m a i s fácil q u a n d o " d e s p e r t a s " (no seu e s t a d o n o r m a l ) d o q u e q u a n d o c o m o erê o u o v o d u m . S e g u n d o humbono

V i c e n t e , o erê, p o r ele c h a m a d o em d a d o s

m o m e n t o s d e esin ( d o i o r u b á esin orisa = cavalo da d i v i n d a d e ) , v e m " s e m p r e d e p o i s d o s a n t o , eles estão aí até c o m p l e t a r o d i a d o n o m e [i.e., d u r a n t e t o d a a i n i c i a ç ã o ] [...] a c a n t i g a d e erê é d i f e r e n t e da c a n t i g a d o v o d u m [...] o erê d o jeje é d i f e r e n t e d o erê d o n a g ô , são c a n t i g a s d i f e r e n t e s [...] t e m a s s e n t a m e n t o [de erê] p a r a c a d a pessoa". 3 9 A r o t i n a c o t i d i a n a das noviças era i n t e n s a . D e m a d r u g a d a , p o r volta das 5 h o r a s , as v o d ú n s i s , já i n c o r p o r a d a s p e l o s a n t o , t o m a v a m u m b a n h o n o rio (to) e i n i c i a v a m as p r i m e i r a s rezas. N u m a o b r i g a ç ã o c h a m a d a kpole,

realiza-

v a m u m a procissão ao r e d o r dos atinsa, e m fila i n d i a n a . "A d o f o n a tira as rezas [...] s o m m a i s de 30 c a n t o s , três p o r v o d u m [...] a d o f o n a tira o c a n t o e os v o d u n s ficam a p o n t a n d o . " D e p o i s d o kpole s e g u i a m o u t r a s rezas até as 9 h o r a s d a m a n h ã . Por v o l t a d e 11 h o r a s , os v o d u n s " t o m a v a m o r u m " e d a n ç a v a m ao s o m dos a t a b a q u e s ; "esse r u m , pela m a n h ã , é s i m p l e s : são três c a n t i g a s " . Seguia u m d e s c a n s o até as 3 h o r a s da t a r d e , q u a n d o as v o d ú n s i s t o m a v a m u m n o v o b a n h o de p u r i f i c a ç ã o . Às 4 horas se iniciava de n o v o o t o q u e e os v o d u n s " t o m a v a m o r u m " até a p r o x i m a d a m e n t e as 6 h o r a s , m o m e n t o d e novas rezas. N o C a n d o m b l é , 6 d a t a r d e e 6 d a m a n h ã são h o r a s p a r a rezar. N e s s e m o m e n t o as v o d ú n s i s n ã o p o d e m s e n t a r e m b a i x o das árvores sagradas, p o i s a c r e d i t a - s e q u e e n t ã o os v o d u n s estão ali p r e s e n t e s . D e p o i s as n o v i ç a s desc a n s a v a m , " r e v i r a v a m u m p o u q u i n h o p a r a reviver a m a t é r i a " , m a s o erê p e r m a n e c i a i n c o r p o r a d o . E m o u t r a ocasião, gaiaku

c o m e n t o u que, com o t e m p o

e p o r i n f l u ê n c i a da t r a d i ç ã o k e t u , o "ensaio" das 4 h o r a s da t a r d e ( q u a n d o as v o d ú n s i s " t o m a m o r u m " ) f o i t r a n s f e r i d o p a r a a n o i t e , das 9 à 1 h o r a d a madrugada.40 É através desse i n t e n s o r e g i m e de a t i v i d a d e s , e s p e c i a l m e n t e n o s "ensaios" diários, q u e a v o d ú n s i a p r e n d e as cantigas e as danças dos v o d u n s , assim c o m o o "dialeto" o u " l i n g u a j a r " , pois "não se fala n a d a em p o r t u g u ê s " . N o p a s s a d o , d u r a n t e t o d o o t e m p o e m q u e a n o v i ç a vivia n a roça ela se vestia de b a i a n a , d e b r a n c o , n ã o se p i n t a v a n e m utilizava b i j u t e r i a , relógio, s a p a t o s altos o u q u a l q u e r o u t r o e l e m e n t o p r o f a n o . Só a p ó s sete a n o s se l e v a n t a v a a p r o i b i ç ã o

327

L U I S N I C O L A U PA R É S

de vestir q u a l q u e r o u t r a coisa q u e n ã o fosse o v e s t u á r i o de b a i a n a , e só d e p o i s desse t e m p o a pessoa a d q u i r i a o grau d e v o d ú n s i . G r a n d e d i f e r e n ç a c o m os tempos presentes. E c l a r o q u e d u r a n t e o p e r í o d o de i n i c i a ç ã o t e m l u g a r t o d a u m a série de o b r i g a ç õ e s i n t e r n a s e e x t e r n a s e n v o l v e n d o o c o r p o da v o d ú n s i e o seu a s s e n t o n o peji, q u e v ã o " f i x a n d o " p r o g r e s s i v a m e n t e o axé da d i v i n d a d e n o altar e na cabeça da devota. Alguns praticantes do rito ketu a f i r m a m que a iniciação jeje se c a r a c t e r i z a pela a u s ê n c i a d o oxu ou adoxu,

o c o n e de cera, ervas etc.,

q u e c o b r e o c o r t e ritual n o alto d o c r â n i o da n o v i ç a . Esses são a s p e c t o s s o b r e os q u a i s p o u c o posso dizer e q u e os jejes se o r g u l h a m d e m a n t e r e m segredo. U m a o b r i g a ç ã o d i s t i n t i v a da i n i c i a ç ã o jeje é o c h a m a d o " t o m a r hunvé" " t o m a r ajauntó"

ou

associado ao v o d u m A j a u n t o (var. J u n t o , J a u n t o , U j a u n t o ) ,

o a n c e s t r a l m í t i c o d o s agassuvi (ver c a p í t u l o a n t e r i o r ) . S e g u n d o

humbono

V i c e n t e , "sem ele n ã o se p o d e fazer s a n t o , é s a c r a m e n t o " , "para p o d e r e n t r a r no peji, só q u e m já t o m o u ele; n ã o t o m o u , n ã o e n t r a " . Essa o b r i g a ç ã o q u e c o m p o r t a a b e b i d a de u m l í q u i d o é p r o v a v e l m e n t e u m a p e r s i s t ê n c i a d o r i t u a l enon kpe vodun

nuye ( b e b e r o v o d u m ) , p r a t i c a d o n o s c u l t o s de v o d u m d o

B e n i m . A i n g e s t ã o da b e b i d a sagrada é c o m o u m a a l i a n ç a c o m a d i v i n d a d e , de c o n s e q u ê n c i a s fatais se o p a c t o f o r t r a n s g r e d i d o . 4 1 U m a d a s o b r i g a ç õ e s e x t e r n a s (isto é, realizadas n o t e m p o ) c a r a c t e r í s t i c a s da i n i c i a ç ã o jeje é o c h a m a d o gra, grau o u tomar grau. A c o n t e c e g e r a l m e n t e n o ú l t i m o p e r í o d o da i n i c i a ç ã o , a p ó s a quitanda

das iaõs (ver m a i s a d i a n t e ) ,

e consiste em u m a "penitência" o u "prova d o v o d u m " em q u e a v o d ú n s i , incorp o r a d a pelo gra, passa e n t r e três e sete dias n o m a t o , p a r t e d o t e m p o s o z i n h a , mas v i g i a d a de l o n g e pela m ã e - d e - s a n t o , os ogãs o u e q u e d e s . O gra, t a m b é m c h a m a d o "o b i c h o " , é c o n c e b i d o ora c o m o u m e s p í r i t o e l e m e n t a r da n a t u r e za, o r a c o m o u m a m a n i f e s t a ç ã o agressiva d o erê, o u até c o m o u m a f o r m a de E x u . Por isso, h á u m a c e r t a m i s t i f i c a ç ã o d o p e r i g o e d a d i f i c u l d a d e dessa "prova do m a t o " . Q u a n d o a v o d ú n s i r e t o r n a o c a s i o n a l m e n t e às i m e d i a ç õ e s da casa, os m e m b r o s da c o n g r e g a ç ã o , n u m a p r o v o c a ç ã o q u e m i s t u r a a b r i n c a d e i r a c o m o m e d o , x i n g a m - n a p a r a excitar a a g r e s s i v i d a d e dela. A v o d ú n s i t e n t a c u s p i r e b a t e r c o m u m p a u nas pessoas, ao t e m p o q u e estas se e s c o n d e m n o interior d a casa o u se d e f e n d e m , b a t e n d o c o m força n o chão os respectivos c a j a d o s . 4 2 N e s s a a t i t u d e colérica d a v o d ú n s i e nas relações de e v i t a ç ã o e b r i n c a d e i r a da c o m u n i d a d e , h á u m a p e r s i s t ê n c i a clara, e m b o r a a l t e r a d a , de u m s e g m e n t o ritual a f r i c a n o . N o B e n i m , o final d a i n i c i a ç ã o e o i n í c i o da p r o g r e s s i v a r e i n t e g r a ç ã o social das v o d ú n s i s são expressos pela m e t á f o r a da c a p t u r a de escravos. D i z - s e q u e o vodunon,

n u m a guerra simbólica assinalada por vários

328

O

RITUAL

d i s p a r o s de c a n h ã o , r a p t o u as noviças d o "país d o v o d u m " , t r a z e n d o - a s c o m o escravas ( k a n u m o ) p a r a o m u n d o p r o f a n o . N o s e g m e n t o r i t u a l c h a m a d o "a g u e r r a vai c a p t u r á - l a s " ( a h w a n wa uliye),

as noviças e x t e r i o r i z a m r i t u a l m e n t e

sua f r u s t r a ç ã o e raiva — p o r t e r e m sido a f a s t a d a s d o "país d o v o d u m " , o n d e d e s f r u t a v a m de t o d a s o r t e de regalias — , t e n t a n d o b a t e r n o s v i z i n h o s d o t e m plo c o m p e d r a s e paus, ao t e m p o q u e estes as x i n g a m , d i z e n d o q u e n u n c a mais v o l t a r ã o "ao país d o v o d u m " . N a Bahia p e r s i s t i u a m e s m a d i n â m i c a e c o m p o r t a m e n t o r i t u a l , p o r é m m u d o u a lógica da sua s i g n i f i c a ç ã o . A m e t á f o r a d a g u e r r a d e escravos foi e s q u e c i d a , talvez p o r q u e essa p r á t i c a n ã o f o r m a v a p a r te d a r e a l i d a d e social c o l o n i a l , s e n d o q u e a cólera da v o d ú n s i p a s s o u a ser e x p l i c a d a c o m o m a n i f e s t a ç ã o d a agressividade de u m a d e t e r m i n a d a e n t i d a de e s p i r i t u a l . O p r e c e i t o d o gra é t a m b é m c o n h e c i d o n o r i t o a n g o l a , s o b a d e n o m i n a ção d e inkita

o u enquite.

Para B i n o n C o s s a r d , "a o r i g i n a l i d a d e d a i n i c i a ç ã o

a n g o l a residia p r i n c i p a l m e n t e n o inkita, realizar-se nos a n o s 1950".

43

essa p r o v a d o m a t o q u e d e i x o u de

N ã o é possível especificar se n o Brasil h o u v e u m a

a s s i m i l a ç ã o a n g o l a d e p r á t i c a s jejes o u se foi u m caso de c o n v e r g ê n c i a . E m q u a l q u e r caso, trata-se de u m o u t r o e x e m p l o da a n t i g a i n t e r p e n e t r a ç ã o de práticas religiosas jeje e a n g o l a . T o d a v i a , nas casas jejes de C a c h o e i r a c o m espaço de m a t o o gra c o n t i n u a a realizar-se. O p r o c e s s o de i n i c i a ç ã o c u l m i n a c o m u m a terceira a p r e s e n t a ç ã o da vod ú n s i no b a r r a c ã o , a "obrigação de dar o n o m e " ( h u i n ) . A festa é p ú b l i c a e das mais c o n c o r r i d a s e i m p o r t a n t e s em q u a l q u e r terreiro. D e a l g u m a f o r m a , é u m a d e m o n s t r a ç ã o de t u d o o q u e a v o d ú n s i a p r e n d e u d u r a n t e a i n i c i a ç ã o e, ao m e s m o t e m p o , é u m teste para calibrar a c o m p e t ê n c i a da l i d e r a n ç a q u e s u p e r visou o processo. A o b r i g a ç ã o é parecida nas várias nações de C a n d o m b l é , m a s p o d e a p r e s e n t a r d i f e r e n ç a s em d e t a l h e s . N o r m a l m e n t e , d i v i d e - s e e m três saídas o u a p r e s e n t a ç õ e s da v o d ú n s i i n c o r p o r a d a n o salão. Ela a p a r e c e r a s p a d a e p i n t a d a em várias p a r t e s d o c o r p o , d e f o r m a d i f e r e n t e e m cada ocasião, c o m efun ( t i n t u r a b r a n c a ) , wuaje ( t i n t u r a azul) e ossum ( t i n t u r a v e r m e l h a ) . Finalm e n t e , o v o d u m aparece p a r a m e n t a d o c o m suas vestes e e m b l e m a s rituais e, após ser p e r g u n t a d o várias vezes, dá s u b i t a m e n t e u m p u l o n o ar e exclama em alta voz o seu n o m e , g e r a n d o g r a n d e e n t u s i a s m o entre os assistentes e a manifestação de o u t r a s d i v i n d a d e s nos filhos da casa. Segue d e p o i s u m a c e r i m ó n i a c o m u m c o m c a n t o s e d a n ç a s p a r a t o d a s as divindades. 4 ' 1 Existe certa c o n t r o v é r s i a em relação à c a p a c i d a d e q u e t ê m os v o d u n s e orixás p a r a falar. D e m o d o geral, d u r a n t e a iniciação, q u a n d o p o s s u í d a pela sua d i v i n d a d e , a v o d ú n s i n ã o fala, e seria só no final da i n i c i a ç ã o , a n t e s de d a r o n o m e , q u e se realiza u m rito p a r a "abrir a fala" d o v o d u m . A l g u n s especialistas

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L U I S N I C O L A U PA R É S

religiosos a p o n t a m q u e , "no jeje, o s a n t o tira a c a n t i g a dele a p ó s o n o m e " , isto é, os v o d u n s p o d e m falar e, nos rituais, eles m e s m o s p u x a m os seus cantos, u m c o m p o r t a m e n t o t a m b é m o b s e r v a d o n o s c u l t o s v o d u n s d o M a r a n h ã o e da área gbe. N o e n t a n t o , na Bahia, essa regra t e m exceções, s e n d o q u e a l g u n s v o d u n s n ã o f a l a m e o u t r o s só c a n t a m . N o C a n d o m b l é n a g ô - k e t u , em

geral,

o orixá n ã o c a n t a , e os seus c a n t o s são p u x a d o s p o r terceiros. O r a , o u t r o s especialistas religiosos d i z e m q u e o r i t o d e "abrir a fala" é p r ó p r i o d o k e t u e q u e é r e a l i z a d o a n t e s de d a r o n o m e ; o u t r o s d i z e m q u e a fala n o k e t u se abre só p a r a as e b o m e s ( d a n ç a n t e s c o m m a i s de sete a n o s d e i n i c i a d a s ) . 4 5 A p ó s " d a r o n o m e " , inicia-se a p a u l a t i n a i n c o r p o r a ç ã o d a v o d ú n s i à vida secular e a sua r e i n t e g r a ç ã o à f a m í l i a biológica. N o B e n i m , esse processo p o d e d u r a r meses e é m a r c a d o p o r u m a c o m p l e x a s e q u ê n c i a de r i t u a i s . A p ó s a terceira e ú l t i m a a p r e s e n t a ç ã o p ú b l i c a , c h a m a d a hun su dide ("o l e v a n t a m e n t o d a s p r o i b i ç õ e s " ) , segue u m a s e m a n a de festas p ú b l i c a s , n o f i n a l d a q u a l a vod ú n s i r e c e b e o seu nome

r i t u a l . Realiza-se d e p o i s o ahwan

tua uliye

(a g u e r r a

vai c a p t u r a r elas), r i t u a l d o q u a l já falei ao descrever a o b r i g a ç ã o d o gra. N a s u a c o n d i ç ã o de escravas, as v o d ú n s i s p e r m a n e c e m a i n d a três dias n o t e m p l o . C o m o p e s s o a s q u e r e n a s c e r a m n u m a n o v a v i d a e s p i r i t u a l , elas e s q u e c e r a m t u d o a r e s p e i t o da v i d a dos m o r t a i s e d e v e m r e a p r e n d e r as a t i v i d a d e s m u n d a n a s , e s p e c i a l m e n t e o c o m é r c i o e os deveres c o n j u g a i s . Para isso, c e l e b r a m - s e várias obrigações, c o m o a c h a m a d a v o d ú n s i lè na sa gi (as v o d ú n s i s vão v e n d e r acaçá), e m q u e elas v ã o ao m e r c a d o v e n d e r acaçá; e a e na da asu (as n o v i ç a s v ã o casar), t a m b é m c h a m a d a zan kpíkpé

(o e n c o n t r o da esteira), e m q u e as

v o d ú n s i s realizam u m a p a n t o m i m a d o a t o sexual c o m u m a c r i a n ç a d o sexo o p o s t o n u m a esteira. A p ó s esse p r o c e s s o , a f a m í l i a deve p a g a r u m a q u a n t i d a d e s i m b ó l i c a ao vodunon

p a r a c o m p r a r a l i b e r d a d e das escravas, n u m r i t u a l c h a m a d o

kanumò

xl xò (a c o m p r a d o s escravos), e, assim, a v o d ú n s i r e t o r n a a sua casa, e m b o r a n o r m a l m e n t e m o s t r e resistência. A p ó s três meses, celebra-se u m a c e r i m ó n i a c h a m a d a du lè gbe e, seis meses m a i s t a r d e , o u t r a c h a m a d a ^ ô g ^ e (jogar a líng u a ) , q u e p e r m i t e à v o d ú n s i falar de n o v o a l í n g u a c o m u m e n ã o mais a l í n g u a r i t u a l d o v o d u m . O u t r a s c e r i m ó n i a s c o m sacrifícios v o t i v o s p o d e m o c o r r e r n o s a n o s s e g u i n t e s . V e m o s , assim, c o m o a r e i n t e g r a ç ã o social da v o d ú n s i é u m processo paulatino. N a B a h i a , e m b o r a de m o d o f r a g m e n t a d o , e n c o n t r a m o s várias c o r r e s p o n d ê n c i a s e r e s s o n â n c i a s dessas p r á t i c a s a f r i c a n a s , q u e v ê m c o n f i r m a r a i m p o r t â n c i a d o s c u l t o s de v o d u m c o m o m o d e l o o r g a n i z a c i o n a l d o C a n d o m b l é . N o caso d o gra, c o m o já n o t e i , p e r s i s t i u o c o m p o r t a m e n t o c o l é r i c o d o r i t u a l abwan

wa uli ye, e m b o r a a m e t á f o r a e x p l i c a t i v a d a g u e r r a fosse e s q u e c i d a .

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O

C o n t u d o , se a r e f e r ê n c i a à captura

RITUAL

de escravos se p e r d e u , n ã o a c o n t e c e u o

m e s m o c o m a m e t á f o r a d a e s c r a v i d ã o . O Alabama

já r e g i s t r a v a c o m o as

v o d ú n s i s , " f i n d o este t e m p o [de i n i c i a ç ã o ] , s a e m e a i n d a vão servir c o m o escravas à pessoa q u e as c o m p r a n o s a n t o " . 4 6 C o m e f e i t o , o r i t u a l a f r i c a n o kanumò

xi xò (a c o m p r a dos escravos), e m q u e a v o d ú n s i era r e s g a t a d a pela

f a m í l i a , p e r s i s t i u até r e c e n t e m e n t e n a B a h i a , p o r é m sob o n o m e d e a compra das iaôs. Essa o b r i g a ç ã o c o n s i s t i a n u m a p a n t o m i m a d e u m leilão em q u e a m ã e o u p a i - d e - s a n t o v e n d i a a n o v i ç a a u m m e m b r o da c o n g r e g a ç ã o religiosa, a q u e m a iaô passava a servir. N a a u s ê n c i a d e c o m p r a d o r , a n o v i ç a ficava suj e i t a à m ã e o u p a i - d e - s a n t o . 4 7 Gaiaku Luiza l e m b r a v a q u e a v o d ú n s i era c o n s i d e r a d a u m a "escrava" e q u e só após sete a n o s "ficava liberada, alforriada". 4 8 E m m u i t o s casos, era d u r a n t e esse p e r í o d o de "escravidão" q u e a v o d ú n s i , de igual m o d o q u e as antigas escravas de g a n h o , ia à r u a v e n d e r acarajé o u o u t r a s iguarias para p o d e r pagar os custos da iniciação, o u seja, a sua e m a n c i p a ç ã o . 4 9 T o d a v i a , n a s casas jejes o p a p e l de q u i t a n d e i r a é r e p l i c a d o n o b a r r a c ã o , n o c o n t e x t o d e u m a o b r i g a ç ã o c h a m a d a quitanda

das iaôs. Sem ser a m e s m a

coisa, esse r i t u a l evoca a o b r i g a ç ã o a f r i c a n a da venda do acaçá a c i m a m e n c i o n a d a . Já C a r n e i r o falava da quitanda,

"essa c e r i m ó n i a e m q u e se v e n d e m ( o u

se f u r t a m ) a l i m e n t o s o u f r u t a s p r e p a r a d o s o u a d q u i r i d o s pelas iaôs, a l g u m a s s e m a n a s a n t e s de c o m p l e t a d a a sua i n i c i a ç ã o " . N o B o g u m e n o Seja H u n d é a quitanda

era c e l e b r a d a d e p o i s de a v o d ú n s i dar o nome.

C o m o explicava

hum-

bono V i c e n t e , " b o t a v a esteira e lençol n o c h ã o " e os erês c h a m a v a m as pessoas p a r a vir c o m p r a r as f r u t a s , d i z e n d o aemi lé ó; e alejo hun bo". N o m e a v a m as f r u t a s e os d o c e s e m l í n g u a a f r i c a n a e, n u m c l i m a b e m d e s c o n t r a í d o , "o p e s soal faz a c o m p r a ; m e t e a m ã o e faz q u e r o u b a , aí ele [o erê] ogo jo, m e t e o cipó [...] b a t e c o m c i p ó " . D a v a g r a n d e c o n f u s ã o , até e n t r a r "o aniban,

o solda-

d o , a pessoa se veste de s o l d a d o " e, s i m u l a n d o disparos n o ar, t e n t a pôr o r d e m na sala. É nesse m o m e n t o d e p â n i c o q u e o erê foge p a r a o m a t o , d a n d o i n í c i o à o b r i g a ç ã o d o gra ( o u o inkita, C a b e n o t a r q u e a quitanda

n o r i t o angola). 5 0 é t a m b é m u m segmento ritual distintivo da

n a ç ã o a n g o l a , o q u e v e m i n d i c a r a a n t i g a s i m b i o s e j e j e - a n g o l a já a p o n t a d a e m relação a o u t r o s e l e m e n t o s . B i n o n C o s s a r d f o r n e c e u m a descrição da o b r i g a ç ã o nessa n a ç ã o e c o n f i r m a q u e a quitanda

" t a m b é m n ã o existe n o s c a n -

d o m b l é s k e t u " . 5 1 N e s s e d i s c u r s o de s e m e l h a n ç a s e c o n t r a s t e s , a l g u n s especialistas religiosos t a m b é m i n s i s t e m q u e n a n a ç ã o jeje " n ã o h á p a n ã c o m o n o k e t u " . O p a n ã é u m a o b r i g a ç ã o q u e nas casas dessa n a ç ã o p r e c e d e ao leilão o u à compra das iaôs e c o n s i s t e na s i m u l a ç ã o de u m a série de ações c o t i d í a n a s , c o m o levar á g u a n a cabeça, passar a f e r r o , coser, c o z i n h a r etc. O erê t e n t a d e m o n s t r a r suas h a b i l i d a d e s , p o r é m g e r a l m e n t e c o m m u i t a b r i n c a d e i r a e

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L U I S N I C O L A U PA R É S

p o u c o sucesso. Essa o b r i g a ç ã o t a m b é m inclui imitações da venda d e a l i m e n t o s n o m e r c a d o e de u m a missa, c o m a s u b s e q u e n t e e n c e n a ç ã o d o s deveres c o n j u g a i s . D e f a t o , e m b o r a b o j e e m dia seja c o n s i d e r a d o u m r i t u a l k e t u , o p a n ã inclui claros e l e m e n t o s de r i t u a i s da área gbe c o m o o e na da asu (as noviças vão casar). O caso exemplificaria c o m o sinais diacríticos de u m a n a ç ã o p o d e m ter s i d o e m p r é s t i m o s d e o u t r a q u e já os e s q u e c e u c o m o p r ó p r i o s . Seja c o m o for, o a p r e n d i z a d o da v o d ú n s i se p r o l o n g a p o r t o d a a v i d a , n o c o n v í v i o c o t i d i a n o da c o n g r e g a ç ã o religiosa. A i d e n t i d a d e e s p i r i t u a l da pessoa irá se c o n f i g u r a n d o e c o n s t r u i n d o a p a r t i r d o a s s e n t a m e n t o sucessivo das entidades espirituais secundárias, que a c o m p a n h a m o "dono da cabeça". N o r m a l m e n t e , esses rituais o c o r r e m d u r a n t e as o b r i g a ç õ e s q u e a v o d ú n s i deve realizar 1, 3, 7 e 21 a n o s após a i n i c i a ç ã o . C o m sete a n o s a v o d ú n s i a d q u i r e a s e n i o r i d a d e . É a p a r t i r desse m o m e n t o q u e , n o k e t u , a e b o m e p o d e receber o d e c á , t í t u l o q u e lhe c o n f e r e o d i r e i t o p a r a a b r i r u m n o v o t e r r e i r o . E m b o r a esse t e r m o seja de o r i g e m gbe, a l u d i n d o à c a b a ç a (ka) na q u a l são e n t r e g u e s os u t e n s í l i o s p a r a a n o v a m ã e - d e - s a n t o i n i c i a r os

filhos-de-santo,

n o jeje se

diz q u e não h á decá. A o r t o d o x i a reza q u e "no j e j e n ã o t e m posse, é p o r h i e r a r q u i a " , isto é, q u a n d o m o r r e a doné o u d i r i g e n t e de u m t e r r e i r o , ela é s u b s t i t u í d a pela v o d ú n s i m a i s a n t i g a , e em teoria n ã o haveria p o s s i b i l i d a d e d e a b r i r casas

filiais.

U m a v o d ú n s i c o m sete a n o s p o d e r i a a p e n a s "raspar e p i n t a r " n o v o s

filhos,

m a s n ã o a b r i r casa p r ó p r i a . C o m o v i m o s , esse d i s c u r s o — r e c o r r e n t e e m Salvador, C a c h o e i r a e São Luís — p o d e r i a ter s i d o e l a b o r a d o e l e g i t i m a d o pelos líderes das casas jejes mais antigas, para evitar d i s s i d ê n c i a s i n t e r n a s n o s processos de sucessão, e explicaria t a m b é m a d i f i c u l d a d e de e x p a n s ã o dos terreiros jejes. N o e n t a n t o , as exceções à n o r m a são n u m e r o s a s , e a f u n d a ç ã o d e novos t e r r e i r o s q u e se a u t o d e n o m i n a m jejes c o n t i n u a até h o j e . C o n c l u i n d o , e m relação à i n i c i a ç ã o , a n a ç ã o j e j e - m a h i caracteriza-se p o r realizar u m a série de r i t u a i s , c o m o o s a r a p o c ã , o kpole o u o " t o m a r

hunvé",

q u e são e s p e c i f i c a m e n t e jejes, e p o r c o m p a r t i l h a r o u t r o s c o m os angolas, c o m o o gra o u a quitanda,

q u e n ã o são p r a t i c a d o s no rito k e t u . O f a t o r d i f e r e n c i a l

d o rito jeje p o r c o n t r a s t e c o m o k e t u é t a m b é m expresso n o d i s c u r s o dos seus p r a t i c a n t e s , i n s i s t i n d o na a u s ê n c i a do p a n ã ou d o decá, rituais que, n o e n t a n to, p a r e c e r i a m e n c o n t r a r a n t e c e d e n t e s n o s c u l t o s de v o d u m da área gbe. O s e x e m p l o s do p a n ã e d o d e c á m o s t r a m c o m o u m a n a ç ã o p o d e acabar p o r assim i l a r e a d a p t a r s e g m e n t o s r i t u a i s a l h e i o s , q u e c o m o t e m p o p a s s a m a ser c o n s i d e r a d o s c o m o p r ó p r i o s . Nesse caso, os sinais d i a c r í t i c o s n ã o são necess a r i a m e n t e r e s u l t a d o de c o n t i n u i d a d e s h i s t ó r i c a s , mas c o n s e q u ê n c i a d o p r o cesso de c o n t r a s t e d i a l ó g i c o q u e se p r o d u z i u e n t r e c o n g r e g a ç õ e s religiosas

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O

RITUAL

c o n c o r r e n t e s n o Brasil. Esses f o r a m alguns dos aspectos i d e n t i f i c a d o s na pesquisa, mas é claro q u e existem o u t r o s q u e só um c o n h e c i m e n t o i n t e r n o das práticas iniciáticas das várias nações de C a n d o m b l é p o d e r i a revelar.

A E S T R U T U R A D O CICLO D E FESTAS: C A L E N D Á R I O S E S E G M E N T O S R I T U A I S C o m p l e m e n t a r m e n t e às obrigações de iniciação, os terreiros celebram a cada ano u m ciclo de cerimónias que c o m p o r t a u m a série de obrigações privadas e outras públicas. As obrigações privadas giram em volta d o c o m p l e x o "assentoebó" e consistem, p r i n c i p a l m e n t e , em rituais de limpeza dos assentos (ossé) e em oferendas animais e alimentícias aos v o d u n s , no peji ou nos atinsa.

Atra-

vés dessas o f e r e n d a s p r o p i c i a t ó r i a s , visa-se regenerar o axé das d i v i n d a d e s e, em d e c o r r ê n c i a disso, regenerar o axé d a congregação religiosa. Ê o p r i n c í p i o de troca, dar para receber. N ã o é por acaso q u e essas obrigações são consideradas as mais i m p o r t a n t e s . As obrigações públicas, os t o q u e s de t a m b o r c o m danças e m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s n a cabeça das vodúnsis, celebradas no barracão, c o n s t i t u e m a parte social da atividade ritual e visam m o s t r a r e c o m p a r tilhar a "força" das divindades com a c o m u n i d a d e mais ampla. As festas públicas c o n t r i b u e m , desse m o d o , para a visibilidade social da congregação religiosa n o â m b i t o da sociedade mais a b r a n g e n t e e, além da sua d i m e n s ã o religiosa, elas têm u m a d i m e n s ã o de espetáculo a u s e n t e nas obrigações privadas. C o m o nos processos de iniciação, no â m b i t o d o ciclo de festas anuais os terreiros j e j e - m a h i s se d i s t i n g u e m pela celebração de u m a série de s e g m e n t o s rituais q u e lhes são p r ó p r i o s , c o m o as obrigações de Aizan, Legba e O g u m X o r o q u e , o zandró,

o boitá,

a o b r i g a ç ã o de Aziri T o b o s i e, n o B o g u m , a

obrigação de A z o n o d o . O s p r a t i c a n t e s jejes t a m b é m i d e n t i f i c a m sua liturgia pela ausência de certas obrigações típicas da nação k e t u , c o m o o padê o u as obrigações da C a b e ç a de Boi de Oxóssi, do o l u b a j é de O m o l u e das águas de Oxalá. O ciclo de festas anuais nos terreiros j e j e - m a h i s acontece e n t r e d e z e m b r o e fevereiro, c o m p l e m e n t a d o p o r u m a obrigação c h a m a d a Fogueira de Sogbo, no p e r í o d o de São João, em j u n h o . D u r a n t e o resto do ano p o d e ser realizada alguma obrigação ocasional em f u n ç ã o das necessidades dos m e m b r o s da congregação ou clientela, e m b o r a , c o m o na maioria dos terreiros, d u r a n t e a Q u a resma, após o carnaval, as atividades sejam suspensas por várias semanas. A c o n c e n t r a ç ã o da a t i v i d a d e ritual j e j e - m a h i de d e z e m b r o a fevereiro t a m b é m coincide c o m o p e r í o d o em que, no B e n i m , a maioria de t e m p l o s v o d u n s realiza suas festas, s e n d o d e z e m b r o o m a r c o d o fim da t e m p o r a d a das chuvas. A

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L U I S N I C O L A U PA R É S

a t i v i d a d e r i t u a l jeje p a r e c e , assim, a d a p t a r - s e ao c a l e n d á r i o c a t ó l i c o i m p o s t o pelo c o n t e x t o c o l o n i a l , ao t e m p o q u e preserva traços d o a n t i g o c a l e n d á r i o africano. A T a b e l a 8 m o s t r a u m e s q u e m a básico d o ciclo de o b r i g a ç õ e s a n u a i s seg u n d o são realizadas n o s terreiros Seja H u n d é e H u n t o l o j i de C a c h o e i r a . Cabe n o t a r q u e a o r d e m , h o r á r i o s e d u r a ç ã o das a t i v i d a d e s r i t u a i s estão s u j e i t o s ao r i t m o de cada casa, e h á u m a relativa f l e x i b i l i d a d e p a r a m u d a r s e g u n d o as c i r c u n s t â n c i a s e as n e c e s s i d a d e s d o m o m e n t o . N o s ú l t i m o s a n o s , p o r exemp l o , o c a l e n d á r i o foi r e d u z i d o e m a m b o s os t e r r e i r o s , c o n c e n t r a n d o - s e as a t i v i d a d e s em d u a s o u três s e m a n a s , m o d i f i c a ç ã o q u e p o d e ser a t r i b u í d a à a v a n ç a d a i d a d e dos líderes religiosos e à sua n e c e s s i d a d e d e e c o n o m i z a r energias. N o p a s s a d o , q u a n d o as o b r i g a ç õ e s se e s t e n d i a m p o r m a i s d e u m mês, as " m a t a n ç a s " , nas p r i m e i r a s s e m a n a s , c o m p o r t a v a m g e r a l m e n t e a p e n a s sacrifícios de a n i m a i s de p e n a , e n q u a n t o n a s e m a n a q u e p r e c e d i a ao boitá e r a m i m o l a d o s a n i m a i s de q u a t r o pés. C o n t u d o , a c o n c e n t r a ç ã o r i t u a l e a relativa brevidade do calendário t a m b é m constituem u m a i m p o r t a n t e característica da l i t u r g i a jeje. E n q u a n t o n a m a i o r i a de t e r r e i r o s d e C a n d o m b l é os c a l e n d á r i o s estão org a n i z a d o s n u m a série d e festas sucessivas, cada u m a delas d e d i c a d a a u m a d i v i n d a d e p a r t i c u l a r , n a n a ç ã o j e j e - m a h i de C a c h o e i r a t o d a s as d i v i n d a d e s são c e l e b r a d a s c o n j u n t a m e n t e . E m o u t r a s palavras, d u r a n t e a " m a t a n ç a " são feitas o f e r e n d a s a t o d o s os v o d u n s na m e s m a o b r i g a ç ã o , e d u r a n t e as festas p ú b l i c a s são l o u v a d a s t o d a s as d i v i n d a d e s . Essa e s t r u t u r a r i t u a l de sacrifícios e c e l e b r a ç ã o coletivos r e f o r ç a a h i p ó t e s e d e q u e o c u l t o de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s esteve a r r a i g a d o n o C a n d o m b l é jeje d e s d e a sua c o n s t i t u i ç ã o . C o n t u d o , o c a l e n d á r i o d e festas d o B o g u m se afasta d o m o d e l o de C a choeira para seguir u m a e s t r u t u r a similar à dos terreiros n a g ô - k e t u s , c o m obrigações específicas para c a d a d i v i n d a d e , c e l e b r a d a s e m s e m a n a s c o n s e c u t i v a s . O a n o l i t ú r g i c o inicia-se c o m o ossé ( l i m p e z a d o altar) e a festa de Olissá, em clara c o r r e s p o n d ê n c i a c o m o ciclo das A g u a s de O x a l á , c e l e b r a d o nas casas k e t u s " t r a d i c i o n a i s " . A s e q u ê n c i a de festas t a m b é m está d i v i d i d a , c o m o nessas casas, n u m a p a r t e d e d i c a d a às d i v i n d a d e s " b r a n c a s " (Olissá, D a n ) , e o u tra p a r t e d e d i c a d a às d i v i n d a d e s " v e r m e l h a s " ou d o azeite (Sogbo, O j o n s u ) . 5 2 A i m p o r t a n t e d i f e r e n ç a n o c a l e n d á r i o e na e s t r u t u r a r i t u a l o b s e r v a d a e n t r e as casas de C a c h o e i r a e B o g u m talvez t e n h a sido c o n d i c i o n a d a pelos c o n t e x t o s r u r a l e u r b a n o desses t e r r e i r o s e p e l o m a i o r c o n t a t o d o B o g u m c o m os terreiros n a g ô - k e t u s de Salvador. Esse caso é t a m b é m u m b o m e x e m p l o da possib i l i d a d e d e processos d e m u d a n ç a d i v e r g e n t e s d e n t r o d a p r ó p r i a n a ç ã o jeje, f a t o q u e d i f i c u l t a falar d e u m a ú n i c a l i t u r g i a .

334

O

Tabela S —

RITUAL

E s t r u t u r a b á s i c a do ciclo de

o b r i g a ç õ e s n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i de

Dia

Semana Sábado

Domingo 1

Horário Após as 18 horas

Obrigação de Aizan 5 3

Zondró

Manhã

Obrigação de Legba e Ogum Xoroque jSocrilícios votivos (matança) e oferendas

Noile Segunda a quinto



Sexta



Festa público [ Rezas e outros obrigações internas Descanso

Sábodo

Noite

Zanilró

Domingo

Tarde

Boitá

Noite

Festa pública

2

Quarta

3

Obrigação

Noite



Terça

Cachoeira

1 j Encerramento do

— Manhã

boitá

Obrigação de Aiiti Tobosi

Sexta



Descanso

Domingo de Carnaval



Limpeza da casa e encerramento

LEGBA, O G U M X O R O Q U E E AIZAN: OBRIGAÇÕES DE ABERTURA N o s terreiros j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a observa-se q u e , apesar de possíveis inversões de o r d e m , o ciclo de festas anuais se inicia c o m as obrigações para Aizan, O g u m X o r o q u e e Legba, d i v i n d a d e s características e exclusivas da nação jeje. N e n h u m a dessas e n t i d a d e s "raspa n i n g u é m " e, p o r t a n t o , não se m a n i f e s t a m em c o r p o h u m a n o . 5 4 Aizan está ligado aos ancestrais da c o m u n i d a d e , e O g u m X o r o q u e e Legba são os mensageiros q u e a b r e m o c a m i n h o para os d e m a i s v o d u n s , p o r isso são h o m e n a g e a d o s e m p r i m e i r o lugar. Esses três v o d u n s t a m b é m a t u a m c o m o os guardiões do terreiro. Legba corresponde a Exu ou Elegbará na nação nagô. Trata-se de u m a figura multifacetada, c o m diversos atributos e funcionalidades que t o r n a m difícil uma definição. Legba, c o m o Exu, é considerado o princípio d i n â m i c o d o universo,

335

LUIS NICOLAU

PA R É S

o a g e n t e que ativa q u a l q u e r processo. Ele é o m e n s a g e i r o e n t r e os h o m e n s e os deuses, q u e m leva os recados e traz de volta a resposta, ele é o i n t e r m e d i á r i o , o l i n g u i s t a , o t r a d u t o r , e foi ele q u e m revelou os segredos da a d i v i n h a ç ã o aos h u m a n o s . Legba é t a m b é m o d o n o dos c a m i n h o s , ele os abre e os fecha, ele vem s e m p r e n a f r e n t e dos o u t r o s v o d u n s e orixás q u a n d o se m a n i f e s t a m na terra. Ele é o trickster

por excelência, jovial, a s t u c i o s o , v a i d o s o , susceptível, iras-

cível, c a p r i c h o s o , grosseiro, i n d e c e n t e ; p o d e a j u d a r e solucionar q u a l q u e r prob l e m a , o u a t r a p a l h a r e p r o v o c a r d e s o r d e m , brigas e a c i d e n t e s ; p o d e reunir i n i m i g o s ou s e p a r a r a m i g o s , t r a b a l h a r p a r a o b e m o u p a r a o m a l . Esquecer dele traz as p i o r e s c o n s e q u ê n c i a s . Legba t a m b é m simboliza o p r i n c í p i o masculino e p o d e ser r e p r e s e n t a d o , c o m o n o B e n i m , p o r u m a figura c o m u m falo de g r a n d e s p r o p o r ç õ e s . Já e m 1741, na Obra nova da língua geral de mina, Peixoto i d e n t i f i c a "Leba" com " D e m ó n i o " . " Em Salvador, em 1871, O Alabama

denuncia u m africano

m o r a d o r em S ã o M i g u e l , q u e t i n h a "um q u a r t o p r e p a r a d o e m f o r m a de t e m plo c o m imagens idolatras de diversas espécies" e, e n t r e elas, "a figura do d i a b o (Lebal) vestido de c a p o n a , o qual é u m dos mais milagrosos". 5 6 Essa i d e n t i f i cação de Legba c o m o diabo, e m b o r a errada e preconceituosa, persiste até nossos dias. D e v e m o s esperar a o b r a de N i n a R o d r i g u e s para e n c o n t r a r a p r i m e i r a r e f e r ê n c i a a E s ú (Esú Bará ou Elegbará) na Bahia. A t u a l m e n t e , nos terreiros jejes são c o n h e c i d o s e c u l t u a d o s , além de Legba, u m a p l u r a l i d a d e de " q u a l i d a d e s " referidas c o m o Exus, o q u e i n d i c a u m a p r o gressiva p e n e t r a ç ã o dos r e f e r e n t e s nagôs e m relação a essa f i g u r a . D e m o d o i l u s t r a t i v o p o d e m ser c i t a d o s : L a l u , T i r i r i , Birigui, A g b o , q u e " t o m a c o n t a das folhas", O b a r á , " d o n o d o d i n h e i r o " , M i r i m , "dos Ibeji", e V e r e k e t u (talvez u m a evolução fonética de Averekete), que a c o m p a n h a Legba e O g u m Xoroque.^ O g u m X o r o q u e é u m a o u t r a d i v i n d a d e m u i t o c o n h e c i d a nos terreiros jejes. Tem o a s s e n t o l o c a l i z a d o s e m p r e n a e n t r a d a da roça, c e r c a d o de u m a série de paus p l a n t a d o s na terra em f o r m a de c í r c u l o , q u e s o b r e s s a e m u n s 30 c e n t í m e t r o s e estão e n t r e l a ç a d o s c o m c i p ó . O g u m X o r o q u e c u m p r e u m a f u n ç ã o s e m e l h a n t e à de Legba o u E x u e, em certa m e d i d a , à de O g u m , nos t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s . Ele é o " o r d e n a n ç a d o s a n t o , d o n o da roça e d o n o dos c a m i n h o s , a b r e e f e c h a os c a m i n h o s " e está a s s o c i a d o c o m B e s s e n , O g u m e o u t r o s v o d u n s . O g u m X o r o q u e n ã o aparece d o c u m e n t a d o na e t n o g r a f i a da área gbe, o q u e sugere q u e p o d e r i a ser u m a e n t i d a d e a s s i m i l a d a de o u t r a n a ç ã o e post e r i o r m e n t e t r a n s f o r m a d a ; talvez u m a j u s t a p o s i ç ã o d o n o m e d o orixá O g u m c o m o de iami O x o r o n g a ( m ã e a n c e s t r a l ) , o u c o m o d o orixá O l o r o q u ê , p e r tencente à nação efon.,s

336

O

RITUAL

O papel de Aizan, Legba e O g u m X o r o q u e c o m o " e n t i d a d e s q u e v ê m na f r e n t e " fica expresso, pelo m e n o s , e m três níveis: 1) n o lugar de p r e c e d ê n c i a q u e o c u p a m suas o b r i g a ç õ e s na o r d e m das festas; 2) na c e r i m ó n i a d o

zandró,

em q u e seus c a n t o s t a m b é m a n t e c e d e m àqueles dos d e m a i s v o d u n s ; e 3) n a localização de seus assentos n o espaço físico, o c u p a n d o a z o n a f r o n t a l da casa o u d o terreiro. N o caso d e Legba e O g u m X o r o q u e , essa localização nas e n t r a d a s e p o r t a s está em c o n s o n â n c i a c o m o seu papel de guardiões. As o b r i g a ç õ e s d e d i c a d a s a essa t r í a d e d e " m e n s a g e i r o s " t ê m p o r o b j e t i v o p r i n c i p a l p r o p i c i a r a a b e r t u r a dos c a m i n h o s e, a p a r t i r da sua m e d i a ç ã o , veicular a c h a m a d a e o f e r e n d a s às o u t r a s d i v i n d a d e s . N o caso de Legba, c o m o a c o n t e c e c o m o E x u n a g ô , p o r vezes se fala e r r o n e a m e n t e q u e ele é " d e s p a c h a d o " ( a f a s t a d o ) p a r a g a r a n t i r a sua n ã o - i n t e r v e n ç ã o c o n f l i t u o s a n o d e s e n v o l v i m e n t o das c e r i m ó n i a s p o s t e r i o r e s . J á s e g u n d o os especialistas religiosos, Legba fica o t e m p o t o d o p r e s e n t e e ele é " d e s p a c h a d o " ( a t e n d i d o ) p a r a q u e proteja e afaste do terreiro qualquer outra entidade espiritual p e r t u r b a d o r a . N o seu c o n j u n t o , a f u n c i o n a l i d a d e d e a b e r t u r a das o b r i g a ç õ e s dessas três ent i d a d e s l e m b r a c e r t o s aspectos d o p a d ê , o u " d e s p a c h o de Exu", c e l e b r a d o n o s t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s , mas n ã o se t r a t a da m e s m a coisa. E l b e i m dos S a n t o s descreve e m d e t a l h e o p a d ê ( d o i o r u b á ipàdé,

reunião)

n o Axé O p ô A f o n j á . A c e r i m ó n i a é o f i c i a d a pela i a m o r ô e suas assistentes, a dagã e a sidagã. E x u , nas suas q u a l i d a d e s d e I n á (o f o g o ) , O j i s é (o m e n s a g e i ro o u e x e c u t o r ) e A g b o (o g u a r d i ã o ) , é i n v o c a d o p a r a levar o f e r e n d a s aos ancestrais m a s c u l i n o s ( b a b a e g u n s ) , os f u n d a d o r e s d o t e r r e i r o (esa) e os a n c e s t r a i s f e m i n i n o s ( i a m i ) . C a d a u m desses g r u p o s r e c e b e a t r a v é s d e E x u o f e r e n d a s d i f e r e n c i a d a s . Por l i d a r c o m os e g u n s e, s o b r e t u d o , c o m i a m i O x o r o n g a — r e p r e s e n t a n t e das mães ancestrais, associada c o m as ajés (feiticeiras) e as forças f e m i n i n a s mais agressivas — , o padê é c o n s i d e r a d o c o m o carreg a d o de perigo. E m terreiros ketus de f u n d a ç ã o mais recente o p a d ê p o d e apres e n t a r f o r m a s m a i s simples, mas a i n v o c a ç ã o de E x u e a solicitação p a r a t r a n s p o r t a r a o f e r e n d a p r o p i c i a t ó r i a aos a n c e s t r a i s s e m p r e e n v o l v e o g e s t o de d e r r a m a r água n a terra, n u m l u g a r a p r o p r i a d o n o exterior. 5 9 O g e s t o de d e r r a m a r á g u a n o c h ã o é t a m b é m r e p e t i d o n o r i t u a l j e j e d u r a n t e o zandró,

q u a n d o se c a n t a p a r a L e g b a e O g u m X o r o q u e , e a h o m e -

n a g e m aos a n c e s t r a i s f u n d a d o r e s d o t e r r e i r o c o r r e s p o n d e , n o jeje, à o b r i gação de Aizan. Portanto, embora existam ressonâncias do padê na liturgia jeje, o u vice-versa,

t a n t o a i d e n t i d a d e das d i v i n d a d e s m e d i a d o r a s c o m o as prá-

ticas rituais a elas associadas são d i f e r e n t e s , de m o d o q u e a a u s ê n c i a d o p a d ê , c o m o a p o n t a m os p r a t i c a n t e s jejes, c o n s t i t u i u m d o s t r a ç o s d i s t i n t i v o s da l i t u r g i a jeje.

337

L U I S N I C O L A U PA R É S

A o b r i g a ç ã o de Aizan é de f u n d a m e n t a l i m p o r t â n c i a n a liturgia j e j e - m a h i de C a c h o e i r a , e m b o r a Verger c o m e n t e q u e "no Brasil, q u a s e n ã o se fala mais desse v o d u n " . Aizan, o u Ayizan, c o m o é c h a m a d o n o B e n i m , é u m v o d u m m u i to antigo, p r o v a v e l m e n t e originário de Aliada. Verger d o c u m e n t a d u a s tradições sobre a sua o r i g e m . S e g u n d o ele, alguns "dizem q u e foi levado para lá [Aliada] p o r A d j a h u t o , q u a n d o ele c h e g o u de T a d o . O u t r o s a f i r m a m q u e Ayizan já se e n c o n t r a v a na região antes de sua chegada". Le Herissé parece sustentar a segunda versão q u a n d o diz q u e os h a b i t a n t e s originários de Aliada f o r a m os ( h a b i t a n t e s Aizo),

Aizonou

e q u e o e t n ô n i m o derivaria "do n o m e d o fetiche d a terra",

o u seja, Aizan. J á em 1668, D a p p e r descreve as o f e r e n d a s realizadas n o reino de A r d r a a u m Fetisi " c o b e r t o p o r u m p o t e c o m orifícios", através d o qual o s a c e r d o t e realiza c o n s u l t a s oraculares. C o m o a p o n t a Verger, "parece corresp o n d e r a Ayizan", pois a i n d a a t u a l m e n t e o assento desse v o d u m "é c o n s t i t u í d o p o r u m m o n t í c u l o de terra [e areia de diversas p r o c e d ê n c i a s ] , em c i m a d o qual se c o l o c a u m a jarra c o m p e q u e n o s orifícios, r o d e a d a p o r f r a n j a s de folhas de dendezeiro (azan)". A y i z a n é u m v o d u m e s t r e i t a m e n t e ligado ao e l e m e n t o terra. D e fato, ayi, o u àí, a raiz d o seu n o m e , e m f o n g b e significa t e r r a o u chão. Verger diz q u e ele é "o d o n o d a terra" e q u e representa "a esteira d a terra", "a c r o s t a terrestre". D e m o d o s e m e l h a n t e a Legba, Ayizan é t a m b é m c o n s i d e r a d o o p r o t e t o r das cidades e do país, assim c o m o , s o b r e t u d o , o " g u a r d i ã o ou, mais e x a t a m e n t e , o s e n h o r d o m e r c a d o " . Ele é e n c o n t r a d o n o m e r c a d o das g r a n d e s cidades, tais c o m o A b o m e y e U i d á . A l é m da sua d i m e n s ã o p ú b l i c a , "certas famílias t ê m u m Ayizan p a r t i c u l a r , q u e as apoia, as dirige e castiga o m a u p r o c e d i m e n t o d o s filhos".

L e v a n d o em c o n t a esses cultos d o m é s t i c o s o u familiares, Verger c o n -

clui q u e Ayizan "é u m a espécie d e ancestral" i d e n t i f i c a d o c o m "a terra". 6 0 Nesse s e n t i d o se p o d e r i a p e n s a r q u e Ayizan foi m a i s u m a v a r i a n t e regional dos a n t i g o s c u l t o s da terra e dos ancestrais, c o m o i n i c i a l m e n t e o f o r a m a q u e les de S a k p a t a e S h a p a n a a n t e s de serem i d e n t i f i c a d o s c o m as e p i d e m i a s d a varíola (ver cap. 7). C o n s i d e r a r a terra u m a "espécie de ancestral" r e s p o n d e à c o m b i n a ç ã o de d u a s ideias associadas e r e c o r r e n t e s e m várias partes da Africa o c i d e n t a l . A p r i m e i r a é a crença de q u e os ancestrais m í t i c o s f u n d a d o r e s da coletividade f a m i l i a r (hennu) — os c h a m a d o s tohwíyo

no Benim — surgiram

o u n a s c e r a m d a terra. H e r s k o v i t s c o m e n t a que, às vezes, se c o n s i d e r a q u e o tohwíyo t e m p o r p r o g e n i t o r s o b r e n a t u r a l Aizan. 6 ' A s e g u n d a é a crença de q u e a terra é a m o r a d i a dos ancestrais d e f u n t o s , já q u e é na terra q u e eles são sep u l t a d o s e nela se realizam suas o f e r e n d a s . Essa a n t i g a v i n c u l a ç ã o d e Aizan c o m a terra e os ancestrais é a q u e persiste n a B a h i a , pois n o i n í c i o d a sua o b r i g a ç ã o são i n v o c a d o s os n o m e s d o s ances-

338

O

RITUAL

trais f u n d a d o r e s d o t e r r e i r o e d o s d e f u n t o s m a i s ilustres da c o n g r e g a ç ã o religiosa. D e v i d o , talvez, a essa ligação de Aizan c o m os kuvito

(espíritos d e f u n t o s

o u eguns), t a m b é m se fala q u e "Aizan é a m o r t e " , m a s , e m p r o p r i e d a d e , além de g u a r d i ã o da roça, esse v o d u m a t u a c o m o m e d i a d o r e n t r e os vivos e a a n cestralidade do t e r r e i r o , e aí, c o m o já sugeri, e n c o n t r a m o s u m p a r a l e l i s m o e n t r e a o b r i g a ç ã o d e Aizan e o p a d ê d o r i t o n a g ô - k e t u . 6 2 Vejamos alguns d o s a s p e c t o s m a i s i m p o r t a n t e s da o b r i g a ç ã o de Aizan. 6 3 E m b o r a o seu ritual possa ser c e l e b r a d o antes d o p ô r - d o - s o l ( c o m o a c o n t e c e n o H u n t o l o j i ) , Aizan é o ú n i c o v o d u m q u e p o d e t a m b é m " c o m e r " (receber o f e r e n d a s ) de n o i t e , e a c e r i m ó n i a r e a l i z a - s e e m v o l t a d e u m e s p i n h o de m a n d a c a r u (Cereus jamacaru),

o n d e está a s s e n t a d o o v o d u m . D e p o i s da lim-

peza ou ossé ào altar e acender u m a vela, a luz para i l u m i n a r o c a m i n h o da divindade, procede-se à c o n s u l t a oracular. A o tempo

que as d u a s partes d o o r o b ô

(tipo de noz-de-cola) são esfregadas entre si, o ogã impé, o u o m e s t r e de c e r i m ó nia, invoca todos os ancestrais do terreiro (i.e., "ago L u d o v i n a Pessoa, ago M a r i a Agorinsi, ago Abalha, etc."). F i n a l m e n t e , joga-se o o r o b ô p e d i n d o licença para realizar o ritual. Finalizada essa parte, os assistentes são "sacudidos", por o r d e m hierárquica, c o m u m n ú m e r o variável de animais de p e n a , q u e o ogã impé faz passar repetidas vezes sobre a cabeça e o corpo de cada pessoa. Trata-se de u m a f o r m a de purificação ou limpeza dos corpos p o r transferência, q u e é c o m u m t a m b é m nos cultos de v o d u m d o B e n i m . D e p o i s procede-se ao sacrifício dos animais. Aizan s e m p r e "come" galinha e o corte realiza-se de u m a f o r m a específica. Segue-se u m a série de três c a n t i g a s . A p r i m e i r a i n i c i a - s e c o m a f r a s e " E A i z a n , v o d u n A i z a n bereo...", p e d i n d o ao v o d u m q u e aceite o sacrifício. 6 4 Após a imolação, o ogã impé p r o c e d e às o f e r e n d a s a l i m e n t í c i a s (feijão, m i l h o , c a r u r u e o u t r o s ) . A p ó s uns 45 m i n u t o s , os p a r t i c i p a n t e s r e c o l h e m os utensílios e v o l t a m ao barracão. Mais tarde, as galinhas cozidas são "arriadas" o u a p r e s e n t a d a s n o pé de Aizan. As obrigações para O g u m X o r o q u e e Legba são c o n s e c u t i v a s e c o n s i s t e m t a m b é m em oferendas alimentícias e sacrifícios realizados nos seus assentos, mas celebram-se s e m p r e de m a n h ã , pois diz-se q u e n ã o se dá c o m i d a a Legba de t a r d e . N o Seja H u n d é , a o b r i g a ç ã o a c o n t e c e n o d o m i n g o a p ó s o p r i m e i r o zandró,

e n q u a n t o n o H u n t o l o j i ela a c o n t e c e n o s á b a d o , p r e c e d e n d o a obriga-

ção de Aizan e o zandró.

N o Seja H u n d é , o ritual inicia-se n o barracão c o m o

" s a c u d i m e n t o " d e t o d o s os m e m b r o s da c o n g r e g a ç ã o , u t i l i z a n d o os a n i m a i s sacrificiais, n o r m a l m e n t e f r a n g o s novos, pretos e v e r m e l h o s . A p r i m e i r a obrigação é a de O g u m X o r o q u e e, p e r t o d o seu assento, na e n c r u z i l h a d a d o camin h o de e n t r a d a à roça, p o d e realizar-se t a m b é m u m a s e g u n d a o f e r e n d a para Exu Tiriri. E m a m b o s os casos, "deixa-se a carne lá".

339

L U I S N I C O L A U PA RÉS

A o b r i g a ç ã o de Legba, realizada na raiz de u m a i m p o n e n t e gameleira ou pé de L o k o localizado na f r e n t e d o b a r r a c ã o , é s e m e l h a n t e à de O g u m Xoroq u e . Inicia-se c o m a limpeza d o assento, u t i l i z a n d o água e folhas. Acende-se u m a vela e c o l o c a m - s e as p r i m e i r a s o f e r e n d a s a l i m e n t í c i a s (acaçá, cachaça e d e n d ê ) . Feitos os p e d i d o s necessários, s u s s u r r a n d o palavras n o o u v i d o dos a n i m a i s , procede-se à m a t a n ç a dos f r a n g o s (às vezes galos). Nesse m o m e n t o , iniciam-se as cantigas jejes para Legba, V a r a k e t u , O g u m X o r o q u e e a l g u m a em língua n a g ô para Exu. A p ó s certas operações c o m as partes d o c o r p o dos bichos, os seus restos são d e p o s i t a d o s n o assento. E m seguida procede-se à colocação dos o u t r o s a l i m e n t o s (farofa, m i l h o t o r r a d o , d e n d ê , mel, cachaça, m i l h o b r a n c o , água e o u t r o s ) . A o b r i g a ç ã o finaliza a n t e s do m e i o - d i a , m o m e n t o em que se p r o d u z u m a pausa antes de iniciar a obrigação da "matança". E n t r e a obrigação de Legba e O g u m X o r o q u e e a de Aizan observa-se certo paralelismo, p o r consistirem a m b a s e m o f e r e n d a s a n i m a i s e alimentares n u m d e t e r m i n a d o assento e p o r c o m p a r t i l h a r e m certos gestos rituais, c o m o a l i m peza prévia d o assento ou o s a c u d i m e n t o dos p a r t i c i p a n t e s . O r a , essas o b r i gações t a m b é m a p r e s e n t a m significativas diferenças nos cantos, nos alimentos o f e r e c i d o s e n o seu p r e p a r o , assim c o m o n o t i p o de c o r t e e na cor dos animais sacrificiais.

0

ZANDRÓ:

A C H A M A D A Q U E A N U N C I A AS O F E R E N D A S A N I M A I S

O zandró é obrigação jeje que abre o ciclo de toques no barracão. A t u a l m e n t e , o zandró é celebrado sempre na n o i t e do sábado, iniciando-se a p r o x i m a d a m e n t e às 22 o u 23 h o r a s . N o passado, p r o l o n g a v a - s e até o a m a n h e c e r d o d o m i n g o , mas h o j e finaliza n o r m a l m e n t e p o r volta das 2 o u 3 h o r a s da m a d r u g a d a . Zandró

é u m n o m e f o n c o m p o s t o do t e r m o zan (noite), q u e designa a vela-

da ou vigília n o t u r n a antes de u m a c e r i m ó n i a religiosa. O ritual d o zandró é o convite, a c h a m a d a ou invocação dos v o d u n s , realizado c o m rezas, c a n t o s e t o q u e s percussivos, c u j a f i n a l i d a d e seria a n u n c i a r aos v o d u n s as o f e r e n d a s animais a serem realizadas no dia seguinte. Essa m e s m a f i n a l i d a d e é e n c o n trada n o B e n i m , o n d e o zandró

t a m b é m t e m caráter de a b e r t u r a d o ciclo de

festas anuais e está ligado a esse a n ú n c i o dos sacrifícios a n i m a i s . Esse sinal diacrítico da liturgia jeje estaria, p o r t a n t o , baseado na c o n t i n u i d a d e de u m s e g m e n t o ritual da área gbe. N o j e j e - m a h i da Bahia essa o b r i g a ç ã o p o d e repetir-se em várias ocasiões, p r e c e d e n d o as festas mais i m p o r t a n t e s da casa, em especial o boitá. Nesse caso, não existiria u m vínculo claro entre o zandró e a "matança", já que a obrigação

340

O

RITUAL

do boitá n ã o c o m p o r t a sacrifícios a n i m a i s , apesar de estar r e l a c i o n a d a c o m eles (ver a d i a n t e ) . E m q u a l q u e r caso, os diversos zandró

não apresentam en-

tre eles d i f e r e n ç a s i m p o r t a n t e s . A o b r i g a ç ã o divide-se em várias partes n o m e a das c o m t e r m o s e s p e c í f i c o s pelos p r ó p r i o s p a r t i c i p a n t e s : o jogo de o b i , a com i d a d o s a t a b a q u e s ("são b a t i z a d o s os a t a b a q u e s " ) e os c a n t o s de zandró,

divi-

d i d o s n u m a p r i m e i r a p a r t e c o m c â n t i c o s jejes e x c l u s i v a m e n t e para v o d u n s e n u m a s e g u n d a p a r t e , às vezes c h a m a d a dorozan,

c o m c a n t o s para v o d u n s e ori-

xás (o l a d o n a g ô - v o d u m ) . Ao s o m d o r i t m o avania, vários o b j e t o s .

65

as v o d ú n s i s e n t r a m n a sala e m fila, t r a z e n d o

A p r i m e i r a m u l h e r leva n u m a m ã o u m p r a t o c o m u m a n o z -

de-cola (obi o u o r o b ô ) , p i m e n t a m a l a g u e t a ( a t a k u n ) , a l g u m a s m o e d a s

(akwé)

e u m a vela, e n a o u t r a u m a q u a r t i n h a c o m água lustral (esin o u a b ô ) ; as o u tras t r a z e m q u a t r o p e q u e n a s g a r r a f a s c o m azeite de d e n d ê ( o m i o u e p ô ) , m e l (oi), v i n h o e c a c h a ç a ( a h é m ) , u m p r a t o f u n d o ( a b a n ) c o m f a r i n h a b r a n c a m i s t u r a d a c o m á g u a 6 6 e seis p r a t o s c o m f e i j ã o p r e t o , f e i j ã o f r a d i n h o o u mulatinho

(aikun),

f a r o f a , m i l h o t o r r a d o o u p i p o c a (dobu o u d o b u r u ) , f a r i n h a

b r a n c a (de n y a m e o u m i l h o ) ( i f u n ) e m i l h o b r a n c o c o z i d o (ebô). D e p o i s de d e p o s i t a r t o d o s os a l i m e n t o s n o c h ã o , as v o d ú n s i s p e r m a n e c e m a j o e l h a d a s em l i n h a d i a n t e dos a t a b a q u e s . N o r m a l m e n t e , a l g u é m d a casa a n u n c i a e m p o r t u g u ê s o m o t i v o d o (i.e. "este zandró

zandró

é p a r a o boitá") e o ogã impé, o u o o f i c i a n t e d o ritual, a c e n d e

u m a vela a n t e s d e i n i c i a r o j o g o d o o b i . A c o n s u l t a o r a c u l a r se inicia e n u m e r a n d o os v o d u n s da casa e suas s a u d a ç õ e s r i t u a i s ("este zandró

é p a r a Bessen,

O g u m , O d é , O k é , A g u é . . . " ) , e v o c a n d o os p r e s e n t e s e d e s c u l p a n d o os a u s e n tes. Q u a n d o as d u a s m e t a d e s d o f r u t o caem v o l t a d a s p a r a c i m a , i n d i c a n d o u m a r e s p o s t a p o s i t i v a , dá-se c o n t i n u i d a d e à c e r i m ó n i a . P r o c e d e - s e , e n t ã o , à o b r i g a ç ã o d e d a r c o m i d a aos i n s t r u m e n t o s m u s i c a i s , o gã (ferro) e os t a m b o r e s , r i t o p o r vezes r e f e r i d o c o m o "dar c o m i d a ao c o u ro". C o m o já f o i d i t o , os i n s t r u m e n t o s estão c o n s a g r a d o s a certas d i v i n d a des e p r e c i s a m de o f e r e n d a s a l i m e n t í c i a s p e r i ó d i c a s p a r a r e n o v a r a sua " f o r ça". O ogã i n t r o d u z u m a p e q u e n a q u a n t i d a d e de cada l í q u i d o e s ó l i d o d e n t r o d o f e r r o e d e p o s i t a iguais q u a n t i d a d e s n u m e x t r e m o d a b o c a s u p e r i o r d o s t a m b o r e s . C a d a u m d o s a l i m e n t o s está r e l a c i o n a d o c o m certas e n t i d a d e s esp i r i t u a i s . A o r d e m e m q u e são o f e r e c i d o s segue a p r o x i m a d a m e n t e a s e q u ê n cia e m q u e são l o u v a d o s os v o d u n s d u r a n t e as o b r i g a ç õ e s . Por e x e m p l o , o m i l h o b r a n c o de O x a l á é n o r m a l m e n t e o ú l t i m o a l i m e n t o a ser c o l o c a d o , d o m e s m o m o d o q u e O x a l á é s e m p r e r e v e r e n c i a d o e m ú l t i m o lugar n a s e q u ê n c i a de c a n t o s . N o e n t a n t o , essa o r d e m p o d e variar de u m a o b r i g a ç ã o para o u t r a . T o d a a o p e r a ç ã o se realiza em g r a n d e silêncio e c o n c e n t r a ç ã o , só i n t e r r o m -

341

LUIS NICOLAU

PA R É S

p i d a p e l o s o c a s i o n a i s p e d i d o s d e b ê n ç ã o , r e a l i z a d o s pelas v o d ú n s i s à

gaiaku,

aos o g ã s o u às e q u e d e s . D e p o i s d o " b a t i z a d o d o s a t a b a q u e s " , o ogã c o r t a o o b i e m p e q u e n o s p e d a ç o s e, n u m a s o r t e d e c o m u n h ã o , os r e p a r t e , p o r r i g o r o s a o r d e m h i e r á r q u i c a , e n t r e os m e m b r o s d a c o n g r e g a ç ã o . A l g u n s t a m b é m b e b e m u m p o u c o d ' á g u a lustral da q u a r t i n h a e p o d e m c o m e r uns grãos de p i m e n t a malagueta. Nesse m o m e n t o , r e p e t e m - s e os p e d i d o s d e b ê n ç ã o s . C a b e n o t a r q u e o b a t i z a d o d o s a t a b a q u e s n ã o é u m r i t u a l e x c l u s i v o d o s t e r r e i r o s jejes e se p r a t i c a t a m b é m no candomblé ketu, embora com variantes. Finalizada essa p a r t e e a p ó s breve pausa, as v o d ú n s i s r e a p a r e c e m n a sala e senx a m - s e s o b r e várias esteiras e s t e n d i d a s n o c h ã o . C a d a pessoa t o m a u m a c a b a ç a r e c o b e r t a de c o n t a s [go) e, a c o m p a n h a n d o o r i t m o d o s t a m b o r e s e d o f e r r o , com e ç a a c a n t a r . A s e q u ê n c i a de c a n t o s d o zandró

segue sempre a e s t r u t u r a de

s o l o - c o r o e inicia-se c o m c i n c o c a n t o s , d o s q u a i s t r a n s c r e v o os três p r i m e i r o s . 6 7 1 Olu Valu Valu Valu Olu Valu

Baba n u kwé n u kwé nu kwé Baba nu kwé

Valu vava Valu no quelo Valu no quelo

ée lo ée lo le dí

U) Valu vava Valu no quelo

ée lo

O l u Baba H u n t ó mona vale mixó H u n t ó m o n a valê mixó M o n a valê h u n t ó é O l u Baba

Valu vava h u n t ó maian valê [...] é, mixó é maian, maian, é mixó maian maian h u n t ó Valu vava h u n t ó

H u n t ó m o n a valê mixó 3 Xen xen xen M o n a valê du kia Avalê du kia M o n a valê du kia S e g u n d o gaiaku

Q u e qué o que qué, maian valê do kia, do kia [...] maian valê L u i z a , esses c a n t o s são p a r a B e s s e n , m a s o u t r o s e s p e c i a -

listas r e l i g i o s o s n ã o os a s s o c i a m d i r e t a m e n t e c o m essa e n t i d a d e e f a l a m q u e s ã o p a r a t o d o s os v o d u n s . S e g u e m , d e p o i s , c a n t o s p a r a L e g b a , O g u m X o r o q u e e V a r a k e t u ( A v e r e k e t e ) . D u r a n t e esses c a n t o s , u m a e q u e d e o u v o d ú n s i j o g a ,

342

O

RITUAL

por três vezes, c o m u m a cuia, u m p o u c o d água na terra da p a r t e externa d o barracão, em o f e r e n d a similar à realizada no p a d ê k e t u . D u r a n t e essa s e q u ê n cia, n i n g u é m p o d e sair da sala. D e p o i s desses cantos, as v o d ú n s i s a j o e l h a m - s e em fila d i a n t e dos t a m b o r e s e canta-se para Aizan. As d a n ç a s realizadas de joelhos são u m a c a r a c t e r í s t i c a i m p o r t a n t e dessa d i v i n d a d e . Segue, d e p o i s , u m a d a n ç a de r o d a coletiva antes de as v o d ú n s i s se s e n t a r e m n o v a m e n t e nas esteiras para, e n t ã o , iniciar u m a série de danças individuais, em q u e cada v o d ú n s i " t o m a o r u m " d u r a n t e u m c a n t o . Esses c a n t o s de zandró

são iniciados c o m u m a série

d e d i c a d a a Tobosi e o u t r a s , e n t r e elas, especialmente,

cantos

para a f a m í l i a de

Hevioso, c o m o Sogbo, Badé, A k o l o m b é , K p o e Averekete. Essa p a r t e d o

zandró

é c o n c l u í d a c o m u m a d a n ç a de r o d a e o c a n t o "ago, ago, ago nilé o", p e d i n d o licença ao d o n o da n a ç ã o H e v i o s o p a r a e n t r a r na p a r t e de n a g ô - v o d u m . Esse canto marca a virada do tambor.68 E m s e g u i d a , inicia-se u m n o v o s e g m e n t o ritual c o m c a n t o s de s a u d a ç ã o em l o u v o r de v o d u n s e orixás, s e m e l h a n t e à s e q u ê n c i a d o xirê dos n a g ô - k e t u s . N o s t e r r e i r o s j e j e s , a l g u m a s p e s s o a s c h a m a m esse s e g m e n t o r i t u a l n a g ô v o d u m , e o u t r a s , a i n d a , dorozan utilizam o t e r m o dorozan

(dorosan o u dorozu).

A l g u n s especialistas jejes

p a r a referir-se, de m o d o geral, aos c a n t o s d o

zandró,

sem aplicá-lo e s p e c i f i c a m e n t e ao s e g m e n t o n a g ô - v o d u m , o q u e pareceria mais c o r r e t o . D e f a t o , dorozan

é u m a e v o l u ç ã o f o n é t i c a de drozan,

inversão das sílabas d o t e r m o zandró.

Se e m f o n g b e zandró

q u e d e s i g n a a vigília n o t u r n a , drozan

p o r sua vez u m a é o substantivo

é o v e r b o q u e d e s i g n a a ação de velar,

de ficar a c o r d a d o e m c e r i m ó n i a religiosa n o t u r n a . 6 9 Por c o n v e n i ê n c i a expositiva e, p a r a d i s t i n g u i r esse s e g m e n t o r i t u a l dos c a n t o s de zandró virada d o t a m b o r , n o p r e s e n t e t r a b a l h o utilizo o t e r m o dorozan

prévios à

para designar

essa s e q u ê n c i a n a g ô - v o d u m . Nessa p a r t e , c a d a v o d u m o u orixá é l o u v a d o c o m três c a n t o s e os mais i m p o r t a n t e s , c o m seis o u m ú l t i p l o s de três. N o j e j e - m a h i de C a c h o e i r a a seq u ê n c i a inicia-se c o m O g u m e finaliza c o m Bessen, e n ã o c o m O x a l á c o m o é h a b i t u a l n o xirê n a g ô - k e t u . A o r d e m é n o r m a l m e n t e a s e g u i n t e : O g u m , A g u é ( O s s a i m ) , O d é ( O x ó s s i ) , A z o n s u (Azoani, S a k p a t a , O m o l u ) , O x u m , I e m a n j á , Iansã, S o g b o (Badé, L o k o , K p o s u ) , N a n ã , O x a l á e Bessen. 7 0 E i m p o r t a n t e n o t a r q u e é p r e c i s a m e n t e essa s e q u ê n c i a d o dorozan

a que constitui

a e s t r u t u r a básica das festas p ú b l i c a s q u e s u c e d e m ao zandró

nos dias s e g u i n -

tes. O zandró

p o d e c o n c l u i r - s e a p ó s o dorozan

s e q u ê n c i a de c a n t o s c h a m a d a mundubi, viono. Há,

finalmente,

ou pode prolongar-se com a

l o g i c a m e n t e d e d i c a d a à f a m í l i a ka-

u n s c a n t o s para f e c h a r a c e r i m ó n i a e dar a retirada às

r o d a n t e s . N o H u n t o l o j i o ú l t i m o c a n t o é n o r m a l m e n t e o koro koro, e m alusão ao c a n t o d o galo e à c h e g a d a d o a m a n h e c e r .

343

L U I S N I C O L A U PA R É S

N o s terreiros jejes d e C a c h o e i r a , c o m o t a m b é m n o B o g u m , já n ã o se canta mais e x c l u s i v a m e n t e e m l í n g u a jeje e m u i t o s d o s c a n t o s d o dorozan

(i.e. das

festas p ú b l i c a s ) são p u x a d o s e m n a g ô . Só q u a n d o se salvam e n t i d a d e s jejes c o m o A z o n s u , Sogbo o u D a n e s c u t a m - s e cantos em l í n g u a jeje. O s p a r t i c i p a n tes jejes alegam q u e já se p e r d e u o c o n h e c i m e n t o , q u e o p ú b l i c o n ã o sabe resp o n d e r às c a n t i g a s jejes e, p o r isso, são o b r i g a d o s a c a n t a r em n a g ô . O u t r a s explicações a r g u m e n t a m q u e se t r a t a d e u m a estratégia d e p r e c a u ç ã o e discrição, p a r a evitar q u e os c a n t o s jejes s e j a m r e p l i c a d o s e m casas de c u l t o n ã o jejes o u em c o n t e x t o s p r o f a n o s c o m o o c a r n a v a l . D o p o n t o de vista c o r e o g r á f i c o , c a b e n o t a r q u e , e m b o r a p o s s a m ser exec u t a d a s a l g u m a s d a n ç a s de r o d a coletivas, c o m o n o xirê k e t u , a m a i o r i a d o s c a n t o s são d a n ç a d o s i n d i v i d u a l m e n t e o u p o r u m g r u p o r e d u z i d o d e v o d ú n s i s p e r t e n c e n t e s à m e s m a c a t e g o r i a d e v o d u m . Se n ã o tiver v o d ú n s i p e r t e n c e n t e ao v o d u m p a r a o qual se está c a n t a n d o , o u t r a s v o d ú n s i " t o m a m o r u m " o u , mais e x c e p c i o n a l m e n t e , toca-se sem d a n ç a . O r a , c o n t r a r i a m e n t e ao rito k e t u , n o j e j e deve t o c a r - s e s e m p r e p a r a t o d a s as e n t i d a d e s , h a j a o u n ã o v o d ú n s i s na sala. N a a b e r t u r a d e u m a série d e c a n t o s p a r a u m a n o v a e n t i d a d e , t o d a s as v o d ú n s i s realizam s a u d a ç õ e s aos t a m b o r e s , à p o r t a d o b a r r a c ã o e aos altos d i g n i t á r i o s . Para isso, a j o e l h a m - s e t o c a n d o o c h ã o c o m a c a b e ç a e p e d i n d o a b ê n ç ã o . O u t r a s p o d e m levar a m ã o ao c h ã o , t o c a n d o d e p o i s l e v e m e n t e a f r e n t e e a o r e l h a d i r e i t a c o m os d e d o s . N o jeje c a c h o e i r a n o n ã o se o b s e r v a o d o b a l e t í p i c o d o k e t u , e m q u e as d a n ç a n t e s se p r o s t r a m n o c h ã o . As c o r e o g r a f i a s são variadas, c o m diversos passos e gestos a d e q u a d o s aos r i t m o s i n s t r u m e n t a i s e ao c o n t e ú d o d o s c â n t i c o s , q u e p o d e m fazer r e f e r ê n c i a a f r a g m e n t o s da m i t o l o g i a das d i v i n d a d e s . N o e n t a n t o , m u i t a s dessas d a n ç a s a p r e s e n t a m u m a c o r e o g r a f i a q u e p o d e ser c o n s i d e r a d a c o m o c a r a c t e r í s t i c a da t r a d i ç ã o jeje e q u e c o n t r a s t a c o m as d a n ç a s de r o d a coletivas p r ó p r i a s da nação n a g ô - k e t u . Essa c o r e o g r a f i a , q u e já descrevi ao falar d o s r i t m o s d e t a m b o r quebrado

e mundubi

(ver a c i m a ) , além d a g e s t u a l i d a d e e r i t m o característicos,

t e m u m i t i n e r á r i o " t r i a n g u l a r " e n ã o c i r c u l a r ; a v o d ú n s i se d e s l o c a d o s atab a q u e s à p o r t a d o b a r r a c ã o , da p o r t a ao e x t r e m o o p o s t o d a sala e, de lá, de n o v o a t é os a t a b a q u e s . O zandró

p o d e t r a n s c o r r e r sem q u e n e n h u m a das v o d ú n s i s i n c o r p o r e o

seu s a n t o . N o e n t a n t o , q u a n d o isso acontece, os v o d u n s n ã o são p a r a m e n t a d o s c o m as suas vestes rituais típicas das festas p ú b l i c a s , h a v e n d o a p e n a s a l g u m a m u d a n ç a s i m p l e s de v e s t u á r i o , c o m o a c o l o c a ç ã o de u m ojá, p o r e x e m p l o . As possíveis i n c o r p o r a ç õ e s p o d e m a c o n t e c e r q u a n d o se está c a n t a n d o p a r a o v o d u m d a pessoa, p o r é m n o H u n t o l o j i o b s e r v e i em m a i s d e u m a ocasião elas o c o r r e r e m a p ó s os ú l t i m o s c a n t o s d e Bessen, n a p a r t e

344

mundubi.

O

RITUAL

A l g u m a s das c a r a c t e r í s t i c a s d o zandró,

c o m o o "batizado dos tambores" e

o uso das cabaças pelas v o d ú n s i s e n q u a n t o p e r m a n e c e m s e n t a d a s nas esteiras, t ê m clara a s c e n d ê n c i a na área gbe. N o s c u l t o s de v o d u m d o B e n i m , previam e n t e ao zandró

se realiza u m a o b r i g a ç ã o c h a m a d a hun do dji, q u e é para sus-

p e n d e r o u abrir o t a m b o r . M e s m o sem envolver as o f e r e n d a s a l i m e n t í c i a s praticadas n o s t e r r e i r o s jejes, o hun do dji p a r e c e ter u m a f u n c i o n a l i d a d e similar ao r i t u a l i z a r os p r i m e i r o s t o q u e s d o s i n s t r u m e n t o s percussivos. 7 1 D e p o i s d o hun do dji e, p a r a d a r i n í c i o ao zandró, vodunons

o daa o u c h e f e de f a m í l i a e n t r e g a aos

u m a série de o b j e t o s para o ritual, e n t r e eles u m c o n j u n t o de esteiras

d o t i p o kplakpla.

As esteiras são e s t e n d i d a s e t o d o s os o f i c i a n t e s se s e n t a m

nelas. Nesse m o m e n t o , fala-se "e do zan nu dohué", a esteira p a r a o dohué",

s e n d o q u e dohué,

e x t e n s ã o , a c e r i m ó n i a d o zandró.

q u e significa "ele e s t e n d e u

o n o m e de um ritmo, designa, por

As d a n ç a s e os c a n t o s , q u e se p r o l o n g a m

até as 4 h o r a s d a m a n h ã , são i n v a r i a v e l m e n t e a c o m p a n h a d o s pelo s o m d o s asogwes, as cabaças recobertas de fios de c o n t a s o u búzios. C a b e n o t a r q u e o zandró

n o B e n i m n ã o envolve a m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s . N o p a s s a d o , essa

c e r i m ó n i a n o t u r n a era c o m p l e m e n t a d a p o r u m a p a r t e c h a m a d a dohué na cò kanlin

(o dohué vai velar o a n i m a l ) . O s vodunons

passavam o resto da n o i t e

velando os a n i m a i s q u e seriam sacrificados pela m a n h ã , i n d i c a n d o a ligação d o zandró

com a "matança".72

O sacrifício a n i m a l , n a sua d i m e n s ã o s i m b ó l i c a de t r a n s f e r ê n c i a e regeneração d o axé das d i v i n d a d e s (e p o r e x t e n s ã o da c o n g r e g a ç ã o religiosa), é o ato m a i s i m p o r t a n t e d o " c o m p l e x o a s s e n t o - e b ó " e, p r o v a v e l m e n t e , d a religião c o m o u m t o d o . A o b r i g a ç ã o da " m a t a n ç a " q u e s u c e d e ao zandró

é pri-

v a d a e r e s t r i t a aos m e m b r o s i n i c i a d o s d o g r u p o e, p o r t a n t o , s o b r e ela m e lim i t a r e i a fazer a p e n a s a l g u n s c o m e n t á r i o s g e n é r i c o s . Já m e n c i o n e i o f a t o de q u e n o r i t o jeje d e C a c h o e i r a , d i f e r e n t e m e n t e d o r i t o k e t u , se "dá c o m i d a " a t o d a s as d i v i n d a d e s na m e s m a o b r i g a ç ã o . As d i v i n d a d e s c e n t r a i s d o p a n t e ã o , A z o n s u , S o g b o e Bessen, recebem o f e r e n d a s de a n i m a i s de q u a t r o pés, n o r m a l m e n t e b o d e s e cabras, s e n d o o c a r n e i r o u m a n i m a l p r o i b i d o n o s terreiros jejes, o q u e c o n s t i t u i u m a o u t r a d i f e r e n ç a c o m o rito n a g ô - k e t u , e m q u e esse a n i mal é a o f e r e n d a v o t i v a m a i s e m b l e m á t i c a ( s o b r e t u d o em relação a X a n g ô ) . E m ocasiões e x c e p c i o n a i s , na " m a t a n ç a " p o d e - s e t a m b é m i m o l a r u m boi. O m o m e n t o d o "corte" é o m o m e n t o privilegiado p a r a a m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s nas cabeças dos seus d e v o t o s . Ao ser d e r r a m a d o o s a n g u e a n i m a l n o s assentos, é a b e r t o o canal de transferência entre o m u n d o sensível dos h u m a n o s e o m u n d o invisível das d i v i n d a d e s e, c o m o prova d a c o n s u m a ç ã o dessa c o m u nicação e aceitação das o f e r e n d a s , os v o d u n s se m a n i f e s t a m nos seus receptáculos h u m a n o s . U m a vez i n c o r p o r a d a s d u r a n t e essa o b r i g a ç ã o d a " m a t a n ç a "

345

L U I S N I C O L A U PA R É S

(celebrada d e m a d r u g a d a no H u n t o l o j i e por volta do meio-dia n o Seja Hundé), as vodúnsis p e r m a n e c e m nesse estado de santo até a noite, q u a n d o , no contexto d o t a m b o r p ú b l i c o , se a p r e s e n t a m à c o m u n i d a d e . Essa c o n s t i t u i uma característica do rito jeje que mais u m a vez contrasta com a tradição nagô-ketu. C o n q u a n t o n o rito k e t u o sacrifício t a m b é m seja u m dos m o m e n t o s privilegiados p a r a a possessão, u m a vez finalizada a o b r i g a ç ã o as iaôs, p o r regra geral, d e s i n c o r p o r a m , r e c u p e r a n d o o seu estado n o r m a l . O t a m b o r público, celebrado de noite, inicia-se c o m o xirê, n o qual são i n v o c a d o s os orixás, e é d u r a n t e essa d a n ç a de r o d a q u e os orixás vão m a n i f e s t a r - s e . As iaôs q u e "bolam no s a n t o " são retiradas, p a r a reaparecer na s e g u n d a p a r t e da festa, param e n t a d a s c o m suas vestes rituais. C o n t r a r i a m e n t e , n o j e j e - m a h i , as vodúnsis i n c o r p o r a m d u r a n t e a " m a t a n ç a " e p e r m a n e c e m nesse estado até o início da festa p ú b l i c a , q u a n d o já a p a r e c e m p a r a m e n t a d a s . N o rito jeje, a c h a m a d a ou invocação das divindades, q u e na liturgia n a g ô - k e t u se dá d u r a n t e o xirê, realiza-se d u r a n t e o zandró,

c e l e b r a d o u m dia antes.

As i m o l a ç õ e s dos a n i m a i s estão sujeitas a c o m p l e x a s regras rituais; o tipo de animal, a sua cor e sexo d e p e n d e r ã o da d i v i n d a d e à qual vão ser oferecidos. A faca o u o i n s t r u m e n t o utilizado para a imolação, assim c o m o o tipo de corte e os cantos associados, t a m b é m variam s e g u n d o as divindades. Alguns v o d u n s c o m o O g u m X o r o q u e r e c e b e m a carne crua, mas a m a i o r i a das d i v i n d a d e s exige processos específicos para o p r e p a r o das suas partes. Essa atividade está t a m b é m s u j e i t a a diversas regras. H á , por exemplo, pessoas e lugares p r ó p r i o s p a r a tirar o c o u r o dos a n i m a i s de q u a t r o pés, ou i t i n e r á r i o s e f o r m a s específicas de levar a c a r n e d o peji até a c o z i n h a . C a d a a n i m a l é e s q u a r t e j a d o e c o z i n h a d o de f o r m a d i f e r e n t e s e g u n d o a d i v i n d a d e p a r a a qual foi oferecido. O s chamados exés (partes) do animal, c o m o a cabeça, coração, pulmões, moela, patas, cauda, asas o u testículos, estão carregados c o m axé e são associados a certas propriedades, recebendo t r a t a m e n t o s especiais. Depois das oferendas no peji, p a r t e do sangue e das vísceras é oferecida às divindades nos atinsa

ex-

teriores, e n q u a n t o outros exés dos animais de q u a t r o pés, c o m o cabeça e patas, são reservados para u m a o u t r a obrigação de f u n d a m e n t o , que c u l m i n a n o ritual do boitá.

0

BOITÁ:

A G R A N D E FESTA P Ú B L I C A D A L I T U R G I A J E J E - M A H I

A obrigação d o boitá é a g r a n d e festa pública da liturgia jeje-mahi e realiza-se n o d o m i n g o seguinte à "matança" dos bichos de q u a t r o patas. Já que envolve o preparo de certos exés, o boitá só p o d e ser celebrado após as c o r r e s p o n d e n t e s

346

O

i m o l a ç õ e s . O boitá

RITUAL

é u m a h o m e n a g e m a Bessen, o v o d u m d o n o da n a ç ã o

j e j e - m a h i , m a s t a m b é m p o d e ser d e d i c a d o a o u t r o s v o d u n s . E u m a f e s t a s e m pre m u i t o c o n c o r r i d a e n t r e o pessoal da casa e visitantes de fora. A p a r t e pública da obrigação consiste n u m a procissão em que o f u n d a m e n t o do boitá,

carregado na cabeça de u m a v o d ú n s i de O g u m , orixá q u e é conside-

r a d o o " o r d e n a n ç a " d e B e s s e n , 7 3 é l e v a d o e m v o l t a d e v á r i o s atinsas

e apre-

sentado r i t u a l m e n t e nos assentos de Bessen e Azonsu. O carrego do

boitá

consiste n u m a g r a n d e b a n d e j a , cesto ou gamela coberta por u m p a n o b r a n c o [ala),

o r n a m e n t a d a c o m f l o r e s d e a n g é l i c a e f o l h a s d e mariwo.

A prepara-

ç ã o d e s s e c a r r e g o é u m r i t o s e c r e t o d e f u n d a m e n t o e, u m a v e z c o n c l u í d o , j o g a - s e o o b i p a r a c o n f i r m a r o b e n e p l á c i t o d o s v o d u n s . O t e r m o boitá d e r i a ser u m a c o r r u p t e l a d e gbota,

po-

parte de u m a expressão utilizada nos

c u l t o s v o d u n s d o B e n i n (gbota gbigbd)

para designar uma obrigação envol-

v e n d o o f e r e n d a s aos a n c e n t r a i s . Assisti a o boitá

em várias ocasiões, e m anos e terreiros distintos, e aqui

apresento u m a descrição de síntese n o "presente etnográfico", mas é claro que essa c o n v e n i ê n c i a e s t i l í s t i c a n ã o s u p õ e u m a p r á t i c a u n i f o r m e e s e m m u d a n ças. 7 4 O s v o d u n s i n c o r p o r a m n o b a r r a c ã o a o s o m d o t o q u e a d a r r u m p o r v o l t a d a s 14 h o r a s , " h o r a d o s v o d u n s c h e g a r à t e r r a " . L o g o d e p o i s , eles d e s c e m ao r i o p a r a t o m a r u m b a n h o , a n t e s d e ser p a r a m e n t a d o s c o m as suas vestes rit u a i s . Por v o l t a d a s 17 h o r a s , c o n c l u í d o s t o d o s os p r e p a r a t i v o s , o c o r t e j o e n t r a n o b a r r a c ã o . O s a t a b a q u e s e o gã t o c a m , e o buntó

canta:

Aê a ito, aê ba ito, aê a aito aê aba ito. Esse c a n t o , r e s p o n d i d o p e l o s p a r t i c i p a n t e s , r e p e t e - s e h i p n ó t i c o e m o n ó t o n o d u r a n t e a m a i o r p a r t e d a o b r i g a ç ã o . E m fila i n d i a n a a p a r e c e m os o g ã s , a gaiaku,

os v o d u n s e as e q u e d e s . T o d o s v e s t e m r i g o r o s o b r a n c o — os ogãs c o m

u m a t o a l h a b r a n c a a m a r r a d a n a c i n t u r a , c a i n d o n a p a r t e f r o n t a l a t é os p é s d e s c a l ç o s . Q u a t r o ogãs v ê m n a f r e n t e , o p r i m e i r o leva u m a g a m e l a c h e i a d e amasi,

o s e g u n d o , u m a com farofa, o terceiro, u m a com farinha de m a n d i o -

ca e o q u a r t o , u m a c o m m i l h o t o r r a d o o u p i p o c a . A m e d i d a q u e a v a n ç a a p r o c i s s ã o , o p r i m e i r o vai a s p e r g i n d o o amasi

com u m ramalhete de folhas, e

os o u t r o s v ã o j o g a n d o n o c h ã o p e q u e n a s q u a n t i d a d e s d o s a l i m e n t o s . A t r á s d o s ogãs v e m a gaiaku o g ã impé,

c o m o adja,

s e g u i d a d e O g u m , q u e c a r r e g a o boitá.

O

q u e d i r i g e o s é q u i t o , a c o m p a n h a de p e r t o o f u n d a m e n t o . D e p o i s

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L U I S N I C O L A U PA RÉS

v ê m os d e m a i s v o d u n s , t o d o s descalços e d e b r a n c o , c o m o "avô f u n f u n " , c o m o d i z e m n o k e t u . V á r i a s e q u e d e s a s s i s t e m aos v o d u n s e f e c h a m a p r o c i s s ã o . D e p o i s d e d a r t r ê s v o l t a s n o b a r r a c ã o (e a p r e s e n t a r o f u n d a m e n t o d i a n t e d o s a t a b a q u e s ) , o c o r t e j o sai ao e x t e r i o r e i n i c i a o s e u p e r c u r s o p e l o t e r r e i r o , d a n d o u m a , d u a s o u três v o l t a s e m t o r n o d e várias á r v o r e s s a g r a d a s ( a t i n s a ) . N a c h e g a d a do cortejo na frente d o assento de Bessen (ou D a n g b e ) que, no c a s o , n ã o é u m atinsa,

mas u m m o n t e de terra recoberto de pedaços de louça,

o boitá é d e s c a r r e g a d o da c a b e ç a d e O g u m e a p r e s e n t a d o ao v o d u m . C a n t a - s e , então, u m novo canto: Eta jero ita kaia beta besi Eta jero ita kaian beta besi 75 A p ó s u n s m i n u t o s , a p r o c i s s ã o r e i n i c i a o seu p e r c u r s o a t é c h e g a r ao ass e n t o d e A z o n s u , o n d e se r e p e t e a m e s m a p a r a d a e c a n t o . O c o r t e j o c o n t i n u a d e p o i s ao s o m d o p r i m e i r o c a n t o e, r e t o r n a n d o a o b a r r a c ã o a p ó s u m a meia hora, conclui a parte exterior da obrigação que deve sempre acabar antes d o p ô r - d o - s o l . O f u n d a m e n t o d o boitá é l o g o a p r e s e n t a d o n o p e j i o u d e p o s i t a d o n o c e n t r o do b a r r a c ã o , o n d e os v o d u n s d a n ç a m e m r o d a d u r a n t e alguns cantos, podendo-se produzir a virada d o t a m b o r para entrar no nagôv o d u m , a n t e s d e o s v o d u n s se r e t i r a r e m . C o m o já f o i d i t o , o boitá é u m d o s m o m e n t o s privilegiados para recolher novos iniciados e não é infreqiiente a " c a í d a " d e c a n d i d a t a s ao n o v i c i a d o . Por volta das 20 horas, reinicia-se a festa c o m u m t o q u e p ú b l i c o e m q u e os v o d u n s , d e s t a vez p a r a m e n t a d o s c o m suas v e s t e s r i t u a i s c o l o r i d a s , d a n ç a m a t é a p r o x i m a d a m e n t e as 2 3 h o r a s . N e s s e t o q u e s e g u e - s e a o r d e m d e c a n t o s t í p i c a d o dorozan

ou da parte n a g ô - v o d u m , c o m e ç a n d o por O g u m e acaban-

d o c o m as d a n ç a s d e B e s s e n . D o i s o u três d i a s a p ó s a o b r i g a ç ã o d o boitá g u e - s e u m p r e c e i t o " p a r a d e s a m a r r a r o boitá": m e n t o n o q u a l o boitá

se-

trata-se do ritual de encerra-

é desfeito. Considera-se que nesse intervalo n e n h u m

m e m b r o da c o m u n i d a d e religiosa p o d e a b a n d o n a r o terreiro sob risco de m o r t e , m a s esse r e s g u a r d o já n ã o se p r e s e r v a . 7 6 O boitá t a m b é m se c e l e b r a n o s t e r r e i r o s B o g u m e O x u m a r é d e S a l v a d o r , m a s c o m a l g u m a s d i f e r e n ç a s . N a ú l t i m a casa, p o r e x e m p l o , é u m a o b r i g a ç ã o p r i v a d a , q u e m c a r r e g a o f u n d a m e n t o é u m a filha d e O x u m e, a p a r e n t e m e n te, d u r a n t e o c o r t e j o n ã o p a r t i c i p a m os v o d u n s , q u e só se m a n i f e s t a m n o b a r r a c ã o n o fim d a p r o c i s s ã o . 7 7 S e g u n d o os p r a t i c a n t e s jejes, o r i t u a l d o

boitá

é t a m b é m d i f e r e n t e e m a i s c o m p l e x o q u e o r i t u a l c h a m a d o ita, o u C a b e ç a

348

O

SITUAI

d e B o i , o b r i g a ç ã o e m h o m e n a g e m ao o r i x á O x ó s s i , r e a l i z a d a n o s t e r r e i r o s ketus mais antigos, c o m o o E n g e n h o Velho, Gantois, Axé O p ô Afonjá, e outros de f u n d a ç ã o mais recente, c o m o o Portão d'Águas Claras, no Recôncavo. Essa o b r i g a ç ã o k e t u , c e l e b r a d a n o dia de C o r p u s C h r i s t i , e n v o l v e o sacrifício de u m boi em h o m e n a g e m a Oxóssi, assim c o m o a p r e p a r a ç ã o de u m carrego com a cabeça do animal, que é depois apresentado no barracão. N o e n t a n t o , até o n d e sei, essa o b r i g a ç ã o n ã o c o m p o r t a a p r o c i s s ã o e a p r e s e n t a ç ã o d o c a r r e g o e m v o l t a d a s á r v o r e s sagradas c o m o a c o n t e c e nas casas jejes.

Gaiaku

%

L u i z a c o m e n t a "Itá é p a r t e d e Q u e t o . N ó s t e m o s o boitá" J As p r o c i s s õ e s p ú b l i c a s l e v a n d o d i v e r s o s c a r r e g o s são p r á t i c a s h a b i t u a i s n o s c u l t o s d e v o d u m d o B e n i m e os c u l t o s d e o r i x á d a área i o r u b á , p o r é m , ao q u e m e c o n s t a , n ã o h á n e n h u m r i t u a l q u e p o s s a ser c l a r a m e n t e i d e n t i f i c a d o c o m o a n t e c e d e n t e d o boitá j e j e .

A O B R I G A Ç Ã O D E A Z O N O D O : A FESTA DAS FRUTAS N O B O G U M Se o boitá é a g r a n d e festa d o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a , a o b r i g a ç ã o de A z o n o d o ( A z o a n o d o , A z o n a d o , A z a u n o o d o r , Z a n o d ô , A z a n o d ô , O z a n a d o ) é u m a das g r a n d e s festas d o B o g u m . D e f a t o , essa c e r i m ó n i a é p r ó p r i a e e x c l u siva desse t e r r e i r o , d e m o n s t r a n d o c o m o a p r o c u r a d e s i n g u l a r i d a d e n ã o se rest r i n g e ao â m b i t o d a s n a ç õ e s , m a s m a i s p r e c i s a m e n t e ao â m b i t o das c o n g r e g a ções. Ao lado direito de q u e m desce a Ladeira M a n o e l B o m f i m , o v o d u m A z o n o d o estava a s s e n t a d o n u m a á r v o r e i m e n s a — d u a s o u três pessoas e m círc u l o n ã o c o n s e g u i a m r o d e a r o t r o n c o . E m s e t e m b r o c a í a m t o d a s as f o l h a s e p a recia q u e ia m o r r e r , m a s , aos p o u c o s , d o s e s p i n h o s q u e c o b r i a m o t r o n c o e os g a l h o s n a s c i a m f l o r e s b r a n c a s . E m j a n e i r o , n o t e m p o d a o b r i g a ç ã o , a i n d a estava t o d o b r a n c o . C o m o c o m e n t a ogã A i l t o n , "o pessoal v i n h a t i r a r r e t r a t o , n ã o t i n h a outra árvore igual em Salvador". D u r a n t e o Primeiro E n c o n t r o de N a ções d e C a n d o m b l é , c e l e b r a d o e m j u n h o de 1981, J e h o v á d e C a r v a l h o r e l a t a va a i m p o r t â n c i a d o v o d u m A z o n o d o n o t e r r e i r o jeje e d e n u n c i a v a a e s p e c u l a ç ã o i m o b i l i á r i a q u e e m 1978 r e s u l t o u na m o r t e da á r v o r e s a g r a d a : Nós temos Z o n o d ô ou Azanodô que, segundo me é i n f o r m a d o , não se manifesta nos h u m a n o s [...] Essa árvore tinha perto de 200 anos. E o que se presume [...] E devido a u m p r o b l e m a m u i t o grave que é o sacrifício do solo sagrado do c a n d o m b l é da Bahia, devido a esse problema de especulação daquela área, para efeito de construção de grandes prédios [...] essa árvore foi minada [minaram-lhe o tronco com agentes químicos predatórios]. Essa árvore, há cerca de dois anos atrás, pouco antes da grande festa de Azanodô, t o m b o u . Antes, fizemos nós uma d e n ú n c i a nesse sentido, de que

349

L U I S N I C O L A U PA RÉS

a á r v o r e p o d e r i a cair, q u e era u m p a t r i m ô n i o c u l t u r a l d a B a h i a . Era u m p a t r i m ô n i o sagrado do c a n d o m b l é da Bahia.79

O g ã A i l t o n e x p l i c a q u e "a á r v o r e c a i u b e m d e v a g a r , g r u n h i n d o , como

um

d o e n t e , e f o i cair n o m e i o d a e s t r a d a , s e m d a n i f i c a r n e n h u m a casa". Q u a n t o à idade dessa árvore, a estimativa de 200 anos parece exagerada. Segundo d e c l a r a ç õ e s d e e q u e d e S a n t a , a á r v o r e o r i g i n a l foi t r a z i d a d a Á f r i c a , p l a n t a d a n u m a b a r r i c a p e l o avô d e E s c o l á s t i c a d a C o n c e i ç ã o N a z a r e t h , a f a m o s a M e n i n i n h a d o G a n t o i s . O a v ô d e M e n i n i n h a , d e n o m e S a l a c o , d e v i a ser u m liberto que, c o m o outros africanos naquela época, provavelmente viajou entre as d u a s costas a t l â n t i c a s . Se c a l c u l a r m o s q u e n a s c e u a p r o x i m a d a m e n t e 50 a n o s a n t e s d a n e t a (c. 1 8 4 4 ) , e q u e a v i a g e m à A f r i c a d e v e ter o c o r r i d o n a j u v e n tude, podemos especular que a chegada da árvore aconteceu na segunda m e t a d e d o s é c u l o XIX, t a l v e z n a d é c a d a d e 1 8 6 0 . 8 0 N e s s a é p o c a , c o m o já vim o s , e s t a v a m f u n c i o n a n d o t a n t o o B o g u m c o m o o M o i n h o ( G a n t o i s ) , e esse f a t o m a i s u m a vez c o n f i r m a as e s t r e i t a s r e l a ç õ e s d e c o m p l e m e n t a r i d a d e e n t r e as casas k e t u s e o B o g u m . A f e s t a d e A z o n o d o é c e l e b r a d a n o d i a 6 d e j a n e i r o , dia d o s Reis M a g o s . O v o d u m A z o n o d o é a s s o c i a d o ao rei n e g r o M e l c h o r (ou Baltazar) e, c o m o a p o n t a C a r v a l h o , trata-se de u m a " m a n i f e s t a ç ã o p a r t i c u l a r í s s i m a d o s i n c r e t i s m o religioso da B a h i a " . 8 1 A r e l a ç ã o d e A z o n o d o c o m a e p i f a n i a d o s Reis M a g o s e a i d é i a d e q u e esse v o d u m n ã o i n c o r p o r a em c o r p o h u m a n o n e m r e c e b e s a c r i f í c i o d e s a n g u e são f a t o s u n a n i m e m e n t e r e c o n h e c i d o s . 8 2 O r a , o v í n c u l o d e A z o n o d o c o m as g r a n d e s c a t e g o r i a s d e v o d u n s a p r e s e n t a d i s p a r i d a d e d e o p i n i õ e s . M u i t a s pessoas, talvez a m a i o r i a , a c r e d i t a m q u e A z o n o d o é u m D a n , u m a cob r a da f a m í l i a de Bessen. Humbono

V i c e n t e m e n c i o n a u m a c a n t i g a q u e expres-

s a r i a esse v í n c u l o : " B e s s e n A z o n a d o ; [ p a r a ] B e s s e n n o g u e r é d é u á ; B e s s e n A z o n a d o ; Bessen n o g u e r é d é u á " . 8 3 Já o u t r a s p e s s o a s p a r e c e m ter c o n f u n d i do Azonodo com Azoani, o v o d u m da família de Azonsu.84 Embora o povo j e j e d i s t i n g a c l a r a m e n t e e n t r e esses d o i s v o d u n s , a c o m u m raiz f o n é t i c a

azon,

q u e e m f o n g b e significa e n f e r m i d a d e e que constitui a base de m u i t o s n o m e s de v o d u n s da categoria Sakpata, sugere u m a ligação inicial de A z o n o d o c o m o p a n t e ã o d a t e r r a . S e g u r o l a r e g i s t r a o n o m e Azowano S a k p a t a . P a r a R e g o , Azon

como

um apelido de

non do s i g n i f i c a a p l a n t a q u e p r o v o c a a e n f e r m i d a -

de. 8 5 E m U i d á , u m s a c e r d o t e d e S a k p a t a , a p ó s d e s c r i ç ã o d a á r v o r e de A z o n o d o , que é de folha perene, espinhos e flores brancas, a identificou c o m o a árvore clontin,

a s s o c i a d a a o v o d u m S o d j i , d a c a t e g o r i a S a k p a t a . S u a f o l h a , cloma,

u t i l i z a d a p a r a o p r e p a r o d e amasi

é

e está a s s o c i a d a a u m r i t u a l d e p u r i f i c a ç ã o

p a r a a f a s t a r a e n f e r m i d a d e {eno nyi azòn).86

350

Já Everaldo D u a r t e , em viagem

O

SITUAI

realizada ao B e n i m e m 2002, i d e n t i f i c o u a árvore de A z o n o d o c o m o s e n d o da m e s m a espécie q u e a f a m o s a "árvore d o e s q u e c i m e n t o " (l'arbre de l'oublie),

que

cresce n o c a m i n h o q u e vai de U i d á à praia. S e g u n d o a legenda, a n t e s d e e m barcar para o N o v o M u n d o , os escravos e r a m o b r i g a d o s a dar várias voltas em t o r n o dessa árvore p a r a esquecer q u a l q u e r m e m ó r i a d o seu passado. 8 7 M a s v e j a m o s c o m o t r a n s c o r r i a a festa de A z o n o d o n o B o g u m . A o b r i g a ç ã o se iniciava nas p r i m e i r a s h o r a s da m a n h ã d o d i a 6 de janeiro, c o m lavagem d e seu t r o n c o e a c o l o c a ç ã o d e u m a faixa b r a n c a na p a r t e e m q u e saíam seus p r i m e i r o s galhos. Ao l o n g o d o dia i n t e i r o , pais e m ã e s - d e - s a n t o das várias nações de C a n d o m b l é traziam seus t a b u l e i r o s de f r u t a s aos pés d o t r o n c o d a árvore de A z o n o d o . Por volta das 17 horas, antes de o sol se pôr, essas f r u t a s e r a m d i s t r i b u í d a s e n t r e os m e m b r o s do B o g u m e os visitantes. 8 8 Raul Lody, ogã d o B o g u m , descreve a c e r i m ó n i a da s e g u i n t e f o r m a : N e s s a f e s t a t o d o s os i n i c i a d o s t r a j a m o b r a n c o e l e v a m c o n t a s e m cores claras. As mulheres e m procissão carregam gamelas e tabuleiros repletos de f r u t a s das mais v a r i a d a s q u a l i d a d e s . M a i s t a r d e essas f r u t a s são c o l o c a d a s n o s g a l h o s e raízes d o "Azan o d ô " , a árvore sagrada. Nesse dia não há imolação de animais e o único sacrifício o f e r e c i d o a A z a n o d ô s ã o as p r ó p r i a s f r u t a s . E n c e r r a n d o a f e s t a , u m a m e s a d e f r u t a s é oferecida aos p a r t i c i p a n t e s e c o n v i d a d o s . O b s . : A festa de A z a n o d ô está p r a t i c a m e n te e s q u e c i d a m e s m o nas casas m a i s t r a d i c i o n a i s d o s c u l t o s A f r o - B r a s i l e i r o s . 8 9

S e g u n d o e q u e d e S a n t a , n o passado a e n t r a d a ao r e c i n t o o n d e estava p l a n t a d a a á r v o r e de A z o n o d o , u m l u g a r " f e c h a d o d e m a t o , n a t i v o de p e r e g u n , c o m m u i t o segredo", estava r e s t r i t o às v o d ú n s i s m a i s velhas. Só elas p a r t i c i p a v a m da o b r i g a ç ã o na q u a l e r a m a p r e s e n t a d a s as f r u t a s n o atinsa c o n s a g r a ç ã o , e só u m a vez,

finalizado

p a r a sua

esse rito, u m a delas saía para r e p a r t i r

as f r u t a s e n t r e o pessoal q u e esperava fora. E q u e d e S a n t a a i n d a acrescenta que, d u r a n t e a o b r i g a ç ã o , o S o g b o de R u n h ó p e r m a n e c i a r o d a n d o p o r lá "e levava u m a c o b r a p o r f o r a d a cerca; a g o r a q u e e n t r a t o d o esse p o v ã o " . 9 0 C o m o fica claro nas descrições de C a r v a l h o e Lody, em t e m p o s mais recentes a o b r i gação d e i x o u de ser p r i v a d a , e a r e p a r t i ç ã o das f r u t a s se p r o d u z i a n o m e s m o recinto do

atinsa.

E v e r a l d o D u a r t e c o m e n t a q u e A z o n o d o é " u m a á r v o r e q u e dá f r u t o s , é v e n t o e p r o t e t o r das safras". Sua o b r i g a ç ã o realizava-se p a r a c o m e m o r a r a prim e i r a safra de f r u t a s de d e z e m b r o . " N i n g u é m p o d i a c o m e r f r u t a s a n t e s dessa o b r i g a ç ã o " , m a s esse " r e s g u a r d o " , q u e se m a n t e v e v i g e n t e até a d é c a d a de 1960, já n ã o é m a i s r e s p e i t a d o . 9 1 Essa p r o i b i ç ã o l e m b r a p r e c e i t o s d e o u t r o s r i t u a i s a s s o c i a d o s aos ciclos agrícolas, c o m o a festa d o n y a m e , c e l e b r a d a e m s e t e m b r o n o B e n i m e e m n o v e m b r o n a Bahia. L e m b r e m o s o comentario

351

de

L U I S N I C O L A U PA R É S

O Alabama

e m r e l a ç ã o à festança

do nyame

novo n o t e r r e i r o d o M o i n h o

( G a n t o i s ) , e m 1871: " C o n s i s t e na c o n s a g r a ç ã o dos p r i m e i r o s f r u t o s da colheita de cada ano às d i v i n d a d e s africanas. A n t e s da celebração dessa c e r i m ó nia é vedado aos prosélitos das seitas africanas comer dele". 9 ' S e g u n d o D u a r t e , a festa do n y a m e não se praticava no B o g u m n e m na nação jeje de m o d o geral. C o m o t o m b a m e n t o da árvore de A z o n o d o , em 1978, os restos d o seu l e n h o f o r a m i m p l a n t a d o s sob u m flamboyant

amarelo, plantado por Nicinha

com a assistência de D u a r t e e e q u e d e Santa, na p a r t e f r o n t a l d o b a r r a c ã o do B o g u m , e ali c o n t i n u a m a ser realizadas suas obrigações até h o j e .

A OBRIGAÇÃO DE AZIRI TOBOSI: 0 VODUM DAS ÁGUAS AGONLI Voltamos de n o v o a C a c h o e i r a . A obrigação de Aziri Tobosi, no passado c o m o hoje, m a r c a o final d o ciclo de festas anuais d o c a l e n d á r i o j e j e - m a h i de C a choeira, mas n ã o n e c e s s a r i a m e n t e de o u t r o s terreiros jejes de Salvador, c o m o o B o g u m ou o Poço Beta. 9 3 Aziri Tobosi e n c o n t r a um claro a n t e c e d e n t e n o B e n i m , em Azili ou Azili Tobo, u m tòvodun,

v o d u m das águas ou v o d u m que h a b i t a nas águas. Essa

d i v i n d a d e está d i r e t a m e n t e relacionada com o lago do m e s m o n o m e , Azili, na margem oriental do rio O u e m é , a uns 18 quilómetros a nordeste de Z a g n a n a d o , no país Agonli. Alguns vodunons dizem q u e o v o d u m Azili vem d o rio W o ou W o g b o (o g r a n d e Wo), n o m e a u t ó c t o n e d o rio O u e m é . C o m o o país Agonli está localizado ao n o r t e d o rio Z o u , f r o n t e i r a d o país M a h i , Azili é t a m b é m considerado u m v o d u m mahi. 9 4 O s e g u n d o t e r m o do n o m e , Tobo, poderia ser u m c o m p o s t o dos vocábulos bô (complexo material consagrado c o m propriedades sobrenaturais) e tò (água, ou q u a l q u e r curso d'água: rio, f o n t e , lagoa). Tobo seria, p o r t a n t o , o preparo o u sortilégio cujo p o d e r é i n f u n d i d o pelos espíritos das águas, n o r m a l m e n t e contido n u m a cabaça. 95 Paralelamente, outras pessoas acreditam que tobo é u m a c o n t r a ç ã o de tògbo, o g r a n d e {gbo) curso d'água (tò) que, por sua vez, seria u m a alusão ao rio W o ( O u e m é ) o u ao lago Azili. Nas d u a s interpretações o vínculo com a água é reconhecido. Práticas rituais mahis associadas às divindades dos rios c o m o Azili foram assimiladas ou a p r o p r i a d a s pelos fons, já n o século XVIII, c o n t r i b u i n d o em grande m e d i d a para a institucionalização d o culto real dos N e s u h u e , em Abomey. O culto dos tohosu (príncipes das águas) e o ritual de iniciação c h a m a d o Yivodo, p o r exemplo, dois i m p o r t a n t e s c o n s t i t u i n t e s do culto N e s u h u e , estão estreitamente relacionados com o lago Azili. É p r e c i s a m e n t e n o final do ritual Yivodo q u e as v o d ú n s i s dos N e s u h u e são p r e p a r a d a s , com a presença de u m

352

O

RITUAL

especialista religioso do país de Azili, para a t u a r c o m o tobosi. T r a t a - s e de u m a m b í g u o estado de transição entre a possessão do v o d u m e o e s t a d o n o r m a l da pessoa (não c o n f u n d i r com a manifestação de u m a segunda d i v i n d a d e ) , q u e pode d u r a r vários dias e se caracteriza por u m c o m p o r t a m e n t o i n f a n t i l e f e m i n i n o (semelhante mas não idêntico ao estado de erê). Após as festas públicas, as tobosi vão ao m e r c a d o e o u t r o s lugares para m e n d i g a r . As tobosi s e r i a m u m a característica exclusiva d o c u l t o N e s u h u e e d o c u l t o d e D a n . N a Casa das M i n a s de São Luís d o M a r a n h ã o são b e m c o n h e c i d a s as tobosi c o m o d i v i n d a d e s i n f a n t i s e f e m i n i n a s , e vários a s p e c t o s r i t u a i s a t e s t a m u m claro v í n c u l o dessas "princesas" aristocráticas c o m o c u l t o N e s u h u e . O r a , esse n ã o p a r e c e ser o caso d o v o d u m A z i r i T o b o s i n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a , nos q u a i s essa d i v i n d a d e p a r e c e e n c o n t r a r seus a n t e c e d e n t e s n ã o n o c u l t o dos N e s u h u e , m a s no c u l t o p r e t é r i t o do v o d u m Azili T o b o da área agonli. Aziri Tobosi é u m a e n t i d a d e e s p i r i t u a l jeje d e s c o n h e c i d a n o s c a n d o m b l é s n a g ô - k e t u s ou a n g o l a s da Bahia. O s especialistas jejes f a l a m de Aziri T o b o s i (ou T o b o s i Aziri) e Aziri Kaia (ou T o b o s i Akaia) c o m o d u a s e n t i d a d e s espirituais f e m i n i n a s associadas às águas, s e n d o a p r i m e i r a mais c o n h e c i d a . C o m o declarava a falecida Aguesi d o Seja H u n d é , "toda água t e m d o n o " , e Aziri Tobosi "é u m a e n t i d a d e d o f u n d o " , ela m o r a nas p r o f u n d e z a s das águas. Aziri T o b o s i é n o r m a l m e n t e a s s o c i a d a às á g u a s doces e, p o r isso, vez p o r o u t r a c o m p a r a d a , mas não identificada, c o m a orixá n a g ô dos rios, O x u m . Por o u t r o lado, Aziri Kaia é n o r m a l m e n t e associada a I e m a n j á e às águas salgadas. Seg u n d o gaiaku

Luiza, Aziri T o b o s i estaria r e l a c i o n a d a t a n t o c o m a água d o c e

c o m o c o m a água salgada e t a m b é m c o m e n t a v a q u e Aziri veste b r a n c o e usa contas d e cristal e de prata c o m o I e m a n j á . C o m o com o v o d u m Azili n o Benim, em t o d o s os casos a associação c o m as águas é explícita. 9 6 O g é n e r o d o v o d u m é s e m p r e u m a s p e c t o difícil de se d e t e r m i n a r , c o n t u do, apesar de a f i n a d a Aguesi d e c l a r a r q u e Aziri T o b o s i é seis meses m u l h e r e seis meses h o m e m ; n a m a i o r i a d o s casos, n a B a h i a ela é c o n s i d e r a d a u m v o d u m f e m i n i n o . Esse é o caso t a m b é m n o H a i t i , o n d e Azili, c o n h e c i d a c o m o Ezili o u Erzulie, é tida p o r m u l h e r . E m A b o m e y foi d o c u m e n t a d o o n o m e de Azili N y ò h o A w u i , d o n d e nyòho p o d e ser t r a d u z i d o c o m o " m u l h e r velha", s u g e r i n d o q u e a n a t u r e z a f e m i n i n a de Azili n o H a i t i e n a Bahia t e m p r e c e d e n t e s n o B e n i m . N o e n t a n t o , na C a s a das M i n a s d o M a r a n h ã o Azili é c o n s i d e r a d o u m v o d u m m a s c u l i n o , aliás, c l a r a m e n t e d i f e r e n c i a d o das tobosi, estas sim c o n s i d e r a d a s e s p í r i t o s f e m i n i n o s . 9 E m n e n h u m lugar na Bahia a palavra tobosi designa o e s t a d o i n f a n t i l e de transição após a possessão, característico do B e n i m , n e m u m a categoria espi-

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L U I S N I C O L A U PA R É S

r i t u a l de m e n i n a s p r i n c e s a s , c o m o na C a s a das M i n a s . E m 1 9 1 6 , M a n u e l Q u e r i n o e s c r e v e u : " S a n t a A n a , e m n a g ô é A n a m b u r u c ú , em d a h o m é a n o , T o b o s s i " . 9 8 P o d e m o s p e n s a r q u e , na Bahia, tobosi v i r o u u m t e r m o g e n é r i c o dos jejes para designar v o d u n s f e m i n i n o s e / o u das águas, c o m o Aziri ou N a n ã . A m i n h a h i p ó t e s e é q u e , c o m o n o H a i t i , o uso inicial p a r a d e s i g n a r e n t i d a d e s das águas foi p a u l a t i n a m e n t e s u b s t i t u í d o pela r e f e r ê n c i a à " q u a l i d a d e " f e m i n i n a das d i v i n d a d e s , a t r i b u t o q u e f i c o u p r e d o m i n a n t e . O r a , o r i t u a l de Aziri T o b o s i , c o n f o r m e se p r a t i c a n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a , c o n s t i t u i a última

o b r i g a ç ã o q u e f e c h a o c a l e n d á r i o a n u a l de a t i v i d a d e s r i t u a i s , e essa

posição final na e s t r u t u r a d o ciclo de c e r i m ó n i a s l e m b r a a c o r r e s p o n d e n t e p o sição f i n a l q u e o c u p a a m a n i f e s t a ç ã o das tobosi o u m e n d i c a n t e s n o s rituais a f r i c a n o s . Essa c o i n c i d ê n c i a p o d e n ã o ser f o r t u i t a e t r a t a r - s e de u m vestígio d o c u l t o a g o n l i d o v o d u m Azili T o b o . E m C a c h o e i r a , a o b r i g a ç ã o de Aziri T o b o s i , q u e c o n s i s t e b a s i c a m e n t e e m "dar c o m i d a " a essa d i v i n d a d e , é u m r i t u a l e x t e r n o e d i u r n o , c e l e b r a d o a o ar livre, n o r m a l m e n t e pela m a n h ã . O assento de Aziri está s e m p r e e n t e r r a d o n u m atinsa l o c a l i z a d o p e r t o d e u m r i a c h o , p o ç o o u f o n t e . A p r o x i m i d a d e da á g u a é significativa e n o Seja H u n d é ele está " p l a n t a d o " d e n t r o d ' á g u a , na m a r g e m d o rio C a q u e n d e , sob u m pé de d e n d e z e i r o . As o b r i g a ç õ e s n o Seja H u n d é e n o H u n t o l o j i a p r e s e n t a m variações, seja n o s h o r á r i o s , na o r d e m d o s s e g m e n tos r i t u a i s , nas o f e r e n d a s a l i m e n t a r e s o u e m o u t r o s e l e m e n t o s . N o e n t a n t o , c o m p a r t i l h a m s e m e l h a n ç a s na e s t r u t u r a geral, q u e se divide em d u a s partes. 9 9 C o m o em o u t r a s obrigações, n o início se a c e n d e u m a o u várias velas e realiza-se u m a c o n s u l t a o r a c u l a r c o m o obi p a r a c o n f i r m a r a a c e i t a ç ã o da cerim ó n i a p o r p a r t e d o v o d u m . D e p o i s , r e a l i z a m - s e as p r i m e i r a s o f e r e n d a s alim e n t a r e s . C o m o sacrifício de galinhas, ao som dos p r i m e i r o s cânticos, dá-se a m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s nos seus a d e p t o s . N u m a g a m e l a o u n o pé d o atinsa vão s e n d o colocados a l i m e n t o s c o m o f a r o f a , acaçá, mel, a z e i t e - d e - d e n d ê , água e o u t r o s . Nessa p r i m e i r a p a r t e h á c a n t o s para Aziri T o b o s i , e n t r e eles: Aé, aé, T o b o ; T o b o s i lé, T o b o . Makobo,

makobo

T o b o s i lé m a k o b o

N o Seja H u n d é , p r o s s e g u e - s e c o m a s e q u ê n c i a de c a n t o s d o zandró,

com

c a n t o s p a r a vários v o d u n s , e n q u a n t o q u e n o H u n t o l o j i se c a n t a a s e q u ê n c i a d o dorozan

(ou a p a r t e n a g ô - v o d u m ) . O s v o d u n s , em g r u p o , d a n ç a m na f r e n -

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O

RITUAL

te do atinsa p o r u m a h o r a , mais o u m e n o s . Assim, conclui-se a p r i m e i r a p a r t e da c e r i m ó n i a , q u a n d o os v o d u n s r e t o r n a m para d e n t r o da casa, e n q u a n t o as e q u e d e s c o z i n h a m os a n i m a i s sacrificiais. A p ó s essa pausa, t o d o s os p a r t i c i p a n t e s r e t o r n a m ao atinsa e realiza-se u m a s e g u n d a o f e r e n d a , agora c o m a c a r n e c o z i d a e o u t r o s a l i m e n t o s , c o m o feijão, abara, c a r u r u , b a n a n a f r i t a , p i p o c a , m i l h o b r a n c o etc. O s m e s m o s a l i m e n t o s o f e r e c i d o s à d i v i n d a d e são em seguida d i s t r i b u í d o s em f o l h a s de b a n a n e i r a e n t r e os assistentes. Nessa s e g u n d a p a r t e , n o Seja H u n d é , os v o d u n s d a n ç a m ao s o m dos c a n t o s d o dorozan,

e só c o m p a r t i l h a r ã o a c o m i d a r i t u a l ao

final

da o b r i g a ç ã o , u m a vez r e c u p e r a d o o seu e s t a d o " n o r m a l " . C o n t r a r i a m e n t e , n o H u n t o l o j i , nessa s e g u n d a p a r t e , as v o d ú n s i s a p a r e c e m i n c o r p o r a d a s p o r seus erês e, s e n t a d a s em esteiras, c o m p a r t i l h a m a c o m i d a d e o b r i g a ç ã o c o m os d e m a i s p a r t i c i p a n t e s . I n i c i a l m e n t e , tal f a t o , nesse c o n t e x t o ritual, m e levou a p e n s a r e m algum a possível relação e n t r e os erês e as tobosi, mas, c o m p a r a n d o - o c o m o r i t u a l d o Seja H u n d é , e m q u e n ã o há q u a l q u e r p r e s e n ç a d o s erês, tive q u e c o n c l u i r q u e a m a n i f e s t a ç ã o dos m e s m o s n o H u n t o l o j i é, p r o v a v e l m e n t e , m e r a estratégia f u n c i o n a l para p e r m i t i r às v o d ú n s i s c o m p a r t i l h a r a c o m i d a ritual, já q u e o erè, ao c o n t r á r i o do v o d u m , está c a p a c i t a d o p a r a c o m e r . N a v e r d a d e , essa c o m u n h ã o a l i m e n t a r , a c o m p a n h a d a de p e d i d o s pessoais à d i v i n d a d e , gera u m m o m e n t o de communitas

e c o n s t i t u i a v e r d a d e i r a essência d o r i t u a l .

V e m o s , assim, nessa o b r i g a ç ã o de Aziri T o b o s i , q u e as tobosi c o m o são conhecidas no c u l t o N e s u h u e e na Casa das M i n a s n ã o e n c o n t r a m n e n h u m a corr e s p o n d ê n c i a . A p e n a s a n a t u r e z a f e m i n i n a e a q u á t i c a de Aziri Tobosi e talvez a sua posição final na o r d e m ritual p a r e ç a m m a n t e r u m a c o n t i n u i d a d e c o m as tobosi d o culto N e s u h u e . Esse fato, j u n t o c o m a evidente s e m e l h a n ç a dos n o mes, sugere u m a m a t r i z c u l t u r a l c o m u m d o c u l t o de Aziri T o b o s i c a c h o e i r a n o e d o c u l t o N e s u h u e , q u e , c o m o foi a p o n t a d o a c i m a , c o r r e s p o n d e r i a ao c u l t o agonli de Azili T o b o . Esse e x e m p l o sugere q u e as d i f e r e n ç a s r e g i o n a i s q u e se c o n s t a t a m e m relação a Aziri e às tobosi em São Luís e e m C a c h o e i r a deriv a m , e m p a r t e , de d i f e r e n ç a s n o s seus a n t e c e d e n t e s a f r i c a n o s . E m o u t r a s palavras, a d i f e r e n t e o r i g e m é t n i c a e a f i l i a ç ã o religiosa d o s a g e n t e s sociais responsáveis pela t r a n s f e r ê n c i a t r a n s a t l â n t i c a estaria na base de certas variações regionais brasileiras. Esse f a t o v e m salientar q u e , m e s m o d e n t r o da trad i ç ã o jeje, h a v i a já u m a h e t e r o g e n e i d a d e de p r á t i c a s religiosas, até a g o r a pouco conhecida.

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LUIS NICOLAU

PA R É S

A A N T I G A FESTA D E F E C H A R O B A L A I O E A F O G U E I R A D E S O G B O Para c o n c l u i r o c a p í t u l o e x a m i n a r e i o encerramento,

a obrigação q u e fecha o

ciclo d e festas anuais, a n t i g a m e n t e c o n h e c i d a c o m o a festa de fechar o balaio. N ã o é u m a obrigação exclusiva dos jejes e, nesse sentido, não c o n t r i b u i para a discussão sobre o fator diferencial dessa nação. N o e n t a n t o , a sua análise contribui para destacar, ao lado da m a n u t e n ç ã o das diferenças, a persistência d o c o n s e n s o e das obrigações c o m p a r t i l h a d a s pelas congregações de C a n d o m blé, além da p a r t i c u l a r i d a d e das nações. C o n f o r m e p u b l i c a v a O Alabama

em 16 de fevereiro de 1869, "nestes três

dias d e e n t r u d o , o t a b a q u e está b a t e n d o ; f o r a m fechar

o balaio q u e a quares-

ma v e m aí". E m o u t r a notícia fala-se q u e "o e n c e r r a m e n t o das festanças da seita d u r a n t e as semanas da q u a r e s m a d u r a 11 dias, p r i n c i p i a n d o n o sábado a n t e r i o r ao e n t r u d o " . 1 0 0 A i n t e r r u p ç ã o das atividades litúrgicas d u r a n t e o período d a Q u a r e s m a ( r e p r o d u z i d a t a m b é m , por e x e m p l o , no T a m b o r de M i n a do M a r a n h ã o ) , s e g u i n d o o c a l e n d á r i o católico, sugere tratar-se de u m segm e n t o ritual "inventado" ou institucionalizado no Brasil, sem u m a vinculação direta c o m práticas africanas. Essa c e r i m ó n i a é indicativa da c a p a c i d a d e de reajuste e dos processos de adaptação do C a n d o m b l é às condições locais da sociedade escravista. Na década de 1860, o fechar o balaio já era u m a festa de grande i m p o r t â n c i a no calendário litúrgico, envolvendo vários dias de t o q u e de tabaques, m a t a n ças de boi, carneiro e outras obrigações. Praticava-se em grande n ú m e r o de terreiros e constituía uma ocasião para a reunião de especialistas religiosos de vários lugares. A i m p o r t â n c i a dessa festa "criada" no Brasil, celebrada de f o r m a recorrente n u m a pluralidade de terreiros e envolvendo u m a dinâmica de cooperação e c o m p l e m e n t a r i d a d e entre as diversas nações, é indicativo d o alto grau de consolidação institucional q u e o C a n d o m b l é t i n h a a t i n g i d o em princípios da seg u n d a m e t a d e do século XIX. H o j e em dia, fala-se com f r e q u ê n c i a que d u r a n t e o p e r í o d o da Q u a r e s m a os v o d u n s e orixás r e t o r n a m à África, mas esse não parece ter sido o sentido original dado à i n t e r r u p ç ã o das atividades religiosas. A c e r i m ó n i a dç. fechar o balaio estava associada à idéia de que nesse t e m p o as divindades iam para a guerra. Assim, em 1867, em relação a u m a m u l h e r q u e estava sendo iniciada n o B o g u m , fala-se que "o santo a tiou pelo e n t r u d o , t e m p o que ele retira-separa guerra, e só volta pela páscoa". N a Rua do Sodré, o jornalista de O

a

Alabama

relata a presença de um "verdadeiro quilombo" de africanos, onde "fervem const a n t e m e n t e os tabaques" para celebrar o fato de o "santo ter ido a guerra, ora p o r q u e voltou da guerra". 1 0 1

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O

Fechar o balaio

RITUAL

é expressão já e s q u e c i d a pelo p o v o - d e - s a n t o , m a s parece

ter sido u m a a l u s ã o à a b s t i n ê n c i a sexual f e m i n i n a , e alguns velhos, n u m interessante giro s e m â n t i c o , a i n d a a l e m b r a m c o m o s i g n i f i c a n d o "não p r o c u r a r m u l h e r na Quaresma". 1 0 2 A t u a l m e n t e , a obrigação q u e assinala o e n c e r r a m e n t o das atividades d u r a n t e o p e r í o d o da Q u a r e s m a é mais c o n h e c i d a pelo t e r m o n a g ô loroogun (ou olorogun),

t r a d u z i d o p o r Francisco V i a n a c o m o "aquele q u e

faz o ritual da g u e r r a " . M a n t e n d o a velha t r a d i ç ã o d o c u m e n t a d a e m O Alabama, o loroogun a i n d a simboliza a p a r t i d a para a g u e r r a das d i v i n d a d e s . Nesse r i t u a l , "as c o r t e s d e O x a l á ( S e n h o r d o B o m f i m ) e X a n g ô (São J e r ô n i m o ) lut a r ã o n o s t e r r e i r o s de c a n d o m b l é ao s o m dos a t a b a q u e s e c â n t i c o s religiosos. P e r d e r á a l u t a o g r u p o q u e p r i m e i r o deixar ' b a i x a r ' u m orixá n o terreiro". 1 0 3 N o s c a n d o m b l é s j e j e - m a h i s o a n t i g o fechar

o balaio é h o j e g e r a l m e n t e ci-

t a d o c o m o o " e n c e r r a m e n t o " o u "o fecha". Trata-se de u m a o b r i g a ç ã o m e n o r , restrita a u n s p o u c o s m e m b r o s da c o n g r e g a ç ã o e c e l e b r a d a n o d o m i n g o de carnaval (ou n o p r i m e i r o d o m i n g o depois do carnaval). O s a n t o r e s p o n d e pela m a n h ã , e até u n s a n o s a t r á s t i n h a t o q u e pela t a r d e . U t i l i z a n d o p a l m a de peregun

p r o c e d e - s e a u m a l i m p e z a geral da casa. M o l h a - s e o chão d o b a r r a c ã o

c o m m u i t a á g u a e d e f u m a - s e o espaço. T i r a m - s e das p o r t a s e janelas as folhas d e mariwo

e outras decorações do barracão. O s voduns carregam umas

capangas c o m dois quilos de m i l h o b r a n c o (associado à d i v i n d a d e celeste O x a lá o u Olissá), q u e são j o g a d o s n o t e l h a d o , e dois q u i l o s de m i l h o t o r r a d o o u p i p o c a (associado ao v o d u m da t e r r a A z o n s u ) , q u e são j o g a d o s n o c h ã o . D u r a n t e a p r o c i s s ã o é t o c a d o o r i t m o avania,

a c o m p a n h a d o de u m c â n t i c o d e

d e s p e d i d a q u e a n u n c i a a p a r t i d a dos v o d u n s . S e g u n d o expressão de

gaiaku

Luiza, "eles s a b e m q u e n ã o vão v o l t a r [...] é c o m o se eles f o s s e m p a r a a g u e r ra". As c a p a n g a s são p o s t e r i o r m e n t e p e n d u r a d a s nos atinsas o u árvores sagradas das d i v i n d a d e s e só a p ó s a Q u a r e s m a , c o m a r e a b e r t u r a das a t i v i d a d e s , serão r e t i r a d a s . Essa u t i l i z a ç ã o das c a p a n g a s seria c a r a c t e r í s t i c a d o s t e r r e i r o s jejes e n ã o é p r a t i c a d a nas casas n a g ô s . A c e n d e m - s e velas de sete dias p a r a cada u m dos v o d u n s n o s assentos d o p e j i e nos atinsas

("se a c e n d e de f o r a e

de d e n t r o " ) , b e m c o m o nos pontos dos filhos da casa. O s assentos d o peji são c o b e r t o s c o m alas e os atinsas,

a m a r r a d o s c o m p a n o s de cor. D o i s dias a p ó s

esse r i t u a l , p r o c e d e - s e ao d e s p a c h o d o s restos da l i m p e z a ( m i l h o b r a n c o , m i lho t o r r a d o , peregun,

mariwo

e t c . ) . O carrego é levado pela t a r d e a u m l u g a r

d i s t a n t e n o m a t o e a b a n d o n a d o na s o m b r a . D u r a n t e o p e r í o d o da Q u a r e s m a o s a n t o n ã o r e s p o n d e . Fica só O l i s s á (e talvez a l g u m a o u t r a e n t i d a d e , c o m o N a n ã ) p a r a s o c o r r e r e m caso de q u a l q u e r e m e r g ê n c i a . 1 0 4 C o m p r o v a m o s dessa f o r m a a progressiva p e r d a de i m p o r t â n c i a da a n t i g a festa de fechar

o balaio, q u e a t u a l m e n t e , pelo m e n o s nos t e r r e i r o s jejes, pare-

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LUIS NICOLAU

PA R É S

ce r e d u z i d a a u m ritual i n t e r n o de limpeza da casa, sem sacrifícios a n i m a i s e p a u l a t i n a m e n t e sem t o q u e s e m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s . E m casas q u e a s s u m e m o processo de reafricanização fala-se q u e o lorogum

foi u m a t r a d i ç ã o i m p o s t a

pela h e g e m o n i a católica, e n ã o é i n f r e q i i e n t e a i n t e r r u p ç ã o dessa festa, p o d e n d o h o j e em dia p r a t i c a r e m - s e diversas atividades rituais d u r a n t e a Q u a r e s m a . D e p o i s da Q u a r e s m a a ú n i c a o b r i g a ç ã o i m p o r t a n t e nos terreiros jejes é a c h a m a d a fogueira de Sogbo, celebrada em j u n h o , d u r a n t e as festas de São João. E m b o r a essa cerimónia apresente singularidades que a diferenciem de obrigações h o m ó l o g a s praticadas por c a n d o m b l é s de o u t r a s nações, c o m o o

encerramento,

ela não constitui u m s e g m e n t o ritual q u e os praticantes i d e n t i f i q u e m c o m o exclusivo da nação jeje. Porém, devido à i m p o r t â n c i a q u e essa festa t e m n o calendário jeje, n ã o gostaria de concluir este capítulo sem u m breve c o m e n t á r i o . A f o g u e i r a de São J o ã o , u m a t r a d i ç ã o d e o r i g e m ibérica, n o R e c ô n c a v o está t a m b é m associada às festas da colheita d o m i l h o verde, u m a p l a n t a e lavoura de o r i g e m a m e r í n d i a . C o m o n o resto d o país, em C a c h o e i r a a festa t e m g r a n d e p o p u l a r i d a d e e todas as famílias o r g a n i z a m fogueiras na véspera de São João. Essa t r a d i ç ã o , q u e p r o v a v e l m e n t e r e m o n t a aos p r i m ó r d i o s da época colonial j u n t a m e n t e com o u t r o s elementos p r ó p r i o s das festas juninas, c o m o , p o r exemplo, a p r e p a r a ç ã o de c a n j i c a e o c o n s u m o de licores de j e n i p a p o e m a r a c u j á , foi t a m b é m a p r o p r i a d a pela c o m u n i d a d e religiosa de C a n d o m b l é sem distinção de n a ç ã o . N o e n t a n t o , nas casas jejes a festa v i r o u u m a das obrigações de p r e c e i t o m a i s i m p o r t a n t e s d o c a l e n d á r i o ritual, s e n d o associada aos v o d u n s Sogbo e Badé, q u e na hagiologia jeje são d i v i n d a d e s associadas ao f o g o . O 24 de j u n h o , dia de São João, é n o r m a l m e n t e associado a Badé, e n q u a n t o o 29 de j u n h o , d i a de São Pedro, é associado a Sogbo. H á u m a possível e interessante ligação de Badé c o m a festa d e São João, q u e derivaria n ã o t a n t o da sua associação c o m o fogo, m a s do seu v í n c u l o c o m o m i l h o . D e fato, c o m o a p o n t a Segurola, G b a d é , além de ser u m v o d u m da f a m í lia H e v i o s o , em f o n g b e significa m i l h o , "em U i d á se diz gbadé-, em Abomey, se utiliza a f o r m a agbadé".

Já e m 1741, Peixoto m e n c i o n a o t e r m o abádê

como

m i l h o . C o n f o r m e c o m e n t a C o r r e i a Lopes, "Keibiossô, o X a n g ô gêge, passou a Badé, Badé é o m i l h o , e n a d a mais natural q u e se ter ligado o culto de Keibiossô ao cultivo da gramínea, n u m a daquelas festas agrícolas de escravos c o m o a simp á t i c a festa dos a m e n d o i n s de q u e cedo e n c o n t r a m o s notícia em G a b r i e l Soares".

Se as festas j u n i n a s c o r r e s p o n d e m à colheita d o m i l h o verde, não é im-

provável q u e esse f a t o c o n t r i b u í s s e para a celebração de Badé d u r a n t e as festas de São J o ã o . Eis u m a descrição sintética da festa c o n f o r m e n a r r a d a p o r gaiaku

Luiza. N a

véspera de São João, antes de acender a fogueira, prepara-se a canjica de Bessen,

358

O

RITUAL

feira c o m m i l h o v e r d e r a l a d o — d o q u a l se r e t i r a a " p a l h a " — , á g u a , a ç ú c a r , c r a v o , m a n t e i g a , c a n e l a e m p a u e leite d e c o c o à v o n t a d e . A p r e p a r a ç ã o d a c a n j i c a d e B e s s e n n o d i a d e São J o ã o faz c o m q u e a l g u m a s p e s s o a s i d e n t i f i q u e m a f o g u e i r a desse dia c o m o v o d u m - c o b r a . A p r e p a r a ç ã o d a f o g u e i r a , feita c o m l e n h a d e á r v o r e s s a g r a d a s , é de p r e c e i t o e r e s p o n s a b i l i d a d e d o o g ã . U m a vez aceso o f o g o , o q u e às vezes d e m o r a p o r c a u s a d a c h u v a , o pessoal d a casa d á t r ê s v o l t a s e m t o r n o d a f o g u e i r a c o m a c a n j i c a e as f r u t a s , e s p e c i a l m e n t e l a r a n j a s , p a r a l o g o s e r e m os a l i m e n t o s a p r e s e n t a d o s n o "pé d o s a n t o " . D u r a n t e a f o g u e i r a , a n t i g a m e n t e , b a t i a - s e t a m b o r e os v o d u n s , e m e s p e c i a l S o g b o , seja d u r a n t e o t o q u e o u e m m e i o aos s a c r i f í c i o s p r é v i o s , " a r r i a v a m " o u " r e s p o n d i a m " . U m a vez m a n i f e s t a d o s , " t o m a v a m o r u m " , d a n ç a n d o em v o l t a d o f o g o . N o p a s s a d o essa o b r i g a ç ã o , j u n t o c o m o boitá, era u m d o s m o m e n t o s privilegiados para recolher na c a m a r i n h a novas v o d ú n s i s a serem inic i a d a s . N o f i n a l d a o b r i g a ç ã o , r e p a r t i a - s e a c a n j i c a e as f r u t a s e n t r e o p ú b l i c o a s s i s t e n t e . Humbono

V i c e n t e a c r e s c e n t a q u e a n t e s se d a n ç a v a c o m a c a n j i c a

e m v o l t a d o f o g o e t a m b é m se j o g a v a n e l e m i l h o e l a r a n j a . 1 0 6 N o Seja H u n d é a f o g u e i r a de S ã o J o ã o é m a n t i d a acesa a t é o d i a de São P e d r o , q u a n d o se homenageia a Sogbo. Se Azili T o b o s i é u m e x e m p l o q u e m o s t r a c o m o d i f e r e n ç a s de c u l t o n a área g b e p o d e m p e r s i s t i r c o m o v a r i a n t e s r e g i o n a i s d o r i t o jeje n o Brasil e, se a o b r i gação d e A z o n a d o m o s t r a c o m o a d i f e r e n c i a ç ã o ritual p o d e localizar-se n o â m b i t o r e s t r i t o de u m só t e r r e i r o , a f e s t a de fechar

o balaio e a f o g u e i r a de São J o ã o ,

ao c o n t r á r i o , c o m o o b r i g a ç õ e s c r i a d a s n o Brasil e, p o r t a n t o , r e s u l t a d o d o c o n s e n s o , t e n d e m a ser e s p a ç o s r i t u a i s o n d e as p a r t i c u l a r i d a d e s d a s n a ç õ e s n ã o se e x p r e s s a m de f o r m a e v i d e n t e . A c o n c l u s ã o m a i s a m p l a q u e d e r i v a dessa evid ê n c i a é q u e os s i n a i s d i a c r í t i c o s e s c o l h i d o s p a r a a r t i c u l a r o f a t o r d i f e r e n c i a l d a s n a ç õ e s , e m b o r a e m a l g u n s casos p o s s a m ser e l e m e n t o s " c r i a d o s " n o B r a sil, m a i s f r e q u e n t e m e n t e e s t ã o a n c o r a d o s , a i n d a q u e r e a d a p t a d o s o u ressignificados, em elementos africanos diferenciados.

NOTAS 1

Seu Geninho, 5/3/2000; ogã Boboso, 5/9/2002. Rodrigues, Os a f r i c a n o s . . . , p. 137, 139. Sobre a confusão entre jeje e ewe, ver, por exemplo, as notas de Raul Lody na obra de Querino, C o s t u m e s . . . , p. 81. Carneiro, C a n d o m b l é s . . . , p. 44. ' No Bogum de Salvador, no entanto, as vodúnsis podem realizar o dobale diante da d o n é . Para comentários sobre o dobale e o i k d k ò , os f o r í b a l è (gestos de louvor e respeito) dos orixás homens e dos orixás mulheres, respectivamente, ver M. S. A. Santos, M e u t e m p o . . . , pp. 54-57.

2

359

L U I S N I C O L A U PA RÉS

Cossard, "Concribution...", p. 12. Algumas pessoas, ainda, podem responder colofe' mi ou, se forem de nação angola, colofé muzambi, expressões que certos especialistas religiosos jejes acham erradas. A resposta Olorum modokwí parece ser uma adaptação de Olorun mo dupe (graças a Deus), uma resposta clássica a todo tipo de "votos" em iorubá (Felix Ayoh Omidire, 13/9/2003). No enranto, o uso do vocábulo fon kwé (casa) faz com que a expressão seja também traduzida como "Deus te receba na sua casa". Benoi talvez decorre de gbenò, que em fon significa "dono da vida, criador do mund o ' . Para a nação jeje-savalu recolhi duas possíveis bênçãos: 1) se mina ho (gaiaku Luiza, 17/12/1998); 2) imbaloim, resposta: son fosu nafó, ou, mais provavelmente, so kposu apo (humbono Vicente, 14/12/1999, 16/5/2001). No ketu é corrente a expressão motubá (matubá), resposta: morubaxe (matubaxe')-, ou túmbá mi, resposta túmbá ase, o. Gaiaku Luiza, em CEAO, 2- Encontro..., p. 77; e 17/12/1998. Segurola, Dictionnaire..., p. 384. Rodrigues, Os africanos..., p. 236; Segurola, Dictionnaire..., p. 408. Carneiro, mais acertadamente, aponta para os termos nagôs "ialorixá" e "babalorixá" como antecedentes das expressões mãe e pai-de-santo (Religiões..., p. 56). Gaiaku Luiza, em CEAO, 2" Encontro..., p. 79. Segurola, Dictionnaire..., p. 249. Humbono Vicente, 19/2/1999. J. de Carvalho, " M u n d o Jeje comemora cinquentenário de sua mãe-de-santo", A Tarde,

26/7/1988.

Akindele e Aguéssy, Contribution..., p. 114, apud Lima, A família..., p. 134. Duncan, Traveis..., vol. I. p. 101. Na Bahia, O Alabama menciona um "papai Dothé", olowo ou adivinho de Fa (O Alabama, 2/3/1867, p. 3). No culto Nesuhue de Abomey, utiliza-se o termo "vodúnsi hundoté" (literalmente a vodúnsi da divindade em pé) para designar aquelas vodúnsis consagradas ao vodum, porém relativamente inexperientes (Adoukonou, Jalons..., vol. II, pp. 68, 191-95). Gaiaku Luiza, em CEAO, 2a Encontro..., p. 77; pai-pequeno, ficha n" 48, CEAO, 1966. Os dois últimos termos são conhecidos em Cachoeira (ogá Boboso, 7/8/2001). Bernard i n h o c o n f i r m a o ogã minazon como tocador de atabaque (18/8/2001). O termo minazon provavelmente deriva de binàzõn, que em tongbe significa "quem t u d o ordena = ministro das finanças e dos bens do rei" (Segurola, Dictionnaire...). Pai-pequeno, filho-de-santo do Pó Zerrem, mencionava ainda os títulos citoi e sinoi como equivalentes de babalaxé e ialaxé (sic), respectivamente, na nação jeje (pai-pequeno, ficha n A 48, CEAO, 1966). Um outro título conhecido em Cachoeira, ogã perê, o fiscal da sala, talvez seja de origem nagô. Everaldo Duarte, 30/9/2002. Nos terreiros ketus, dagan designa a auxiliar da iamorô (responsável pelo ritual d o padê). M. S. A. Santos, Meu tempo..., pp. 26, 28. Para uma análise da organização hierárquica e o princípio de senioridade no Candomblé, ver Lima, "A família...", pp. 49-118. Verger, Notas..., p. 28. O termo fon hun é polissêmico e, além de atabaque, significa coração (pois também bate como ele) e qualquer tipo de veículo (embarcação ou outros). O termo hunpevi significa o filho (vi) pequeno (kpe) do tambor (hun) (ou o tambor filho pequeno). Nos terreiros angola os tambores podem ser chamados rum, contra-rum e rum pi (Cossard, La musique..., pp. 160-79). Rodrigues, Os africanos..., p. 160; idem, O animismo..., pp. 80-81. Carneiro, Religiões..., p. 75. Sobre o uso de chocalhos e agogõs, ver ainda Rodrigues, Os africanos..., pp. 240, 248.

360

O RITUAL

22 23

24

Verger, Notas..., p. 25. Nos tempos de Runhó, um atabaque era de O x u m , e outro de Bogum (ficha n 2 1, CEAO, 1961). F i c h a n 2 1, CEAO, 1961; E v e r a l d o D u a r t e , 3 1 / 8 / 0 2 ; B e r n a r d i n h o , 1 4 / 8 / 1 9 9 9 , 9 / 1 / 2 0 0 0 ; humbono

Vicente, 29/11/2000.

25

Verger, Notas..., p. 28. 26 Ortiz, La africania..., pp. 374, 376, apud Verger, Notas..., pp. 25, 28, 29. r Joãozinho, 7/1/1996. 28 "Os 'time line' constituem uma categoria especial de padrões de percussão, caracterizados por uma estrutura interna assimétrica como 5 + 7 ou 7 + 9. São padrões de uma nota só, executados num instrumento musical com uma qualidade de som penetrante, como uma sineta" (Kubik, Theory...). Para transcrever os time Unes, sigo o sistema de anotação convencional utilizado por Kubik, em que "/" marca o início do ciclo rítmico, e em que "x" (a batida) e "." (o silêncio) têm a mesma duração. 29 Vatin, Étude.... Fico grato a Xavier Vatin pela esclarecedora entrevista que me concedeu em 27/6/2001. 30 Ramos, O negro..., p. 163; Segurola, Dietionnaire..., p. 4. O adahun era um ritmo utilizado para encorajar os guerreiros antes ou durante as guerras e ainda é tocado nos cultos v o d u m do Benim. Ver t a m b é m Cossard, La musique..., pp. 160-79; Vatin, Étude... 31 Em fongbe satã designa um tambor grande que faz parte de certas orquestras fúnebres ou de divertimento, já satò designa o quintal diante dos conventos vodum ou do palácio real (Segurola, Dietionnaire..., p. 457). 32 Vatin, Étude...; Sodré, "Música sacra do Candomblé...". 33 No Seja H u n d é , a variação do quebrado apresenta mudança na estrutura de batidas, mas no H u n t o l o j i o time line muda para o avamunha (ou uma versão mais rápida), passando de um ciclo de 6 pulsos a um de 12. Já no mundubi, no Seja H u n d é o time line incrementa uma batida "/x.x.x./", enquanto no Huntoloji há outra sequência mais complexa que não consegui identificar com precisão. 34 Olga de Alaketo, entrevista 3/1/1996; Waldeloir Rego, 31/12/1995. 33 Van G e n n e p , Rites..., Turner, The Ritual... Para descrições de diversos rituais de iniciação na área gbe, ver Verger, Notas..., pp. 81-118; Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 1 1 1-26, 162-66, 178-90. Utilizo o feminino para referir-me à pessoa iniciada, por serem as mulheres maioria entre os devotos do Candomblé e da religião vodum, mas cabe notar que os homens também podem ser iniciados como vodúnsis. 36 Verger, Notas..., pp. 82, 105. 3 " Gaiaku Luiza, 25/12/1994, 20/8/1996. 38 Gaiaku Luiza, 17/8/2002; ogã Boboso, 7/9/2002. Contrariamente, em O Alabama, documenta-se o caso de uma mulher do Bogum que estava sendo iniciada, "no ato de fazer o sapocan, cerimónia que consiste em cortar os cabelos e poder transpor o limiar da tal casinha, depois de seis meses" (grifo nosso) (O Alabama, 14/4/1869, p. 1). Outras notícias de O Alabama (i. e., 6/3/1867, pp. 2-3; 24/12/1870, p. 5; 11/11/1871, p. 4) descrevem de forma bastante preconceituosa aspectos da iniciação em outros terreiros jejes, denunciando condições higiénicas, exploração sexual, maus tratos, e até eventuais mortes causadas pelos castigos. w Gaiaku Luiza, 25/12/1994; humbono Vicente, 4/5/1999, 16/5/1901. 40 Gaiaku Luiza, 25/12/1994.

361

L U I S N I C O L A U PA RÉS

Humbono Vicente, 13/11/1999, 20/10/2000. Glèlè, Le Danxome..., p. 75; Hazoume, Le pacte.... No Benim, hunve, literalmente "divindade vermelha", designa uma categoria de voduns representados por um aciná (um tipo de assento) e chamados atinmevodun. Inclui os voduns-pantera Ajahunto e Agassu, e outros como Loko, Massé etc. Gaiaku Luiza, 20/8/1996; humbono Vicente, 29/11/2000; Everaldo Duarte, 21/4/1999. Cossard, "Contribution...", p. 206. Em ritual semelhante observado em Uidá (templo de Avimanje, jul.-set., 1995), foi o sacerdote quem pronunciou o nome das novas vodúnsis e náo o vodum. A apresentação pública das noviças aconteceu em três cerimónias, separadas por intervalos de mais de um mês. Humbono Vicente, 29/11/2000; Waldeloir Rego, 31/12/1995. • O Alabama, 1 l / l 1/1871, p. 4. Para uma descrição da compra das iaôs numa casa de Porto Alegre, nos anos 1940, ver Herskovits, " T h e Panan...", pp. 133-40. Ver também Marques, O feiticeiro..., p. 109. Um ano após a iniciação, a vodúnsi pode remover o quelê, colar que, amarrado ao pescoço, simboliza a submissão à entidade (gaiaku Luiza, 25/12/1994). Para uma análise sobre a memória da escravidão no ritual religioso, ver Parés, "Memories...". Carneiro, Candomblés..., p. 141. Humbono Vicente, 22/8/1999- Ogo é cacete em iorubá. Para outros comentários sobre a quitanda, ver Bastide, Imagens..., pp. 61-62. Cossard, "Contribution...", pp. 188, 207. Em 1961, Runhó dava a seguinte sequência (entre parênteses a data): Oxalá ( l / l ) ; Azana Odo (6/1); Sogbo (domingo seguinte); Bessen (oito dias depois). No meio da semana festejavam-se as yabas e outros santos: ficha n a 1, CEAO, 27/1/1961. O calendário em 1973 foi: Olissá ( l / l ) ; Azounoodor (7/1); Bafono Decá (10/1); Obessein (14/1); O g u m é Agangatolú (18/1); Loco ( 2 l / l ) ; Sogbô (23/1); Tobosse (28/1); Badé (4/2); Ojonsu (Azonsu) ( l l / 2 ) ; J. de Carvalho (jornal não identificado), 31/12. Já o calendário em 2003 foi: Olisá (l a 5/1); Z o n o d o r (7/1); Bessem (12/1); Loko (19/1); O g u m , Agangatolú, Ague (26/1); Sogbo (29/l); Tobossi (2/2); Ibeji (9/2); Ojonsu, Nana (16 a 18/2). No Huntoloji, as atividades rituais iniciam-se na manhã do sábado, com obrigações para Legba e O g u m Xoroque, seguidas pela obrigação de Aizan, que ocorre normalmente antes das 18 horas. A "matança" acontece de madrugada, por volta das 6 horas do domingo, após o zandró. Segundo algumas pessoas, no passado também no Seja H u n d é a "matança" era realizada de madrugada. Contrariamente, nos cultos de vodum na área gbe, Legba tem devotos a ele consagrados (Legbasi). Para uma análise sobre essa questão em relação a Exu no Brasil, ver Capone, La quête..., pp. 81-87. Peixoto, Obra..., p. 32. Pruneau de Pommegorge, que permaneceu em Uidá de 1743 a 1765, dá a primeira referência a Legba, falando do "deus Príapo" (Description..., p. 201). Em 1804, o rei daomeano Adadozan escreve sobre "o meu grande Deos Leba" (Verger, Os libertos..., p. 106; Fluxo..., pp. 273, 288). Em 1845, D'Avezac, menciona a Elegwa em relação à região de Ijebu ("Notice...", p. 84, apud Verger, Notas..., pp. 133-34). Bowen, em 1852, fornece a p r i m e i r a referência a Esu, em A b e o k u t a (A grammar...,

p . 16).

O Alabama,

21/1 1/1871.

Humbono Vicente, 30/6/1999, 28/12/1999, 20/10/2000.

362

O RITUAL

Verger cita e n t r e as árvores em que as iamis vão e m p o l e i r a r - s e o Ògúti bèrèke (Delonix regia, Leguminosae) ("Grandeza...", p. 71). C a p o n e d o c u m e n t a o orixá O l o q u e ou O l o r o q u ê , d i v i n d a d e patroa da nação efon (La quête..., pp. 126-27 e ilustração n a 5). Para c o m e n t á r i o s mais detalhados sobre o padê, ver ]. E. dos Santos, Os nagô..., pp. 184-95; Capone, La quête..., pp. 76-79. Para informações sobre as iamis Oxoronga, ver Verger, "Grandeza...", pp. 13-72; Capone, La quête..., pp. 78-81. Verger, Notas..., pp. 49, 553; Le Herissé, L'Anciên..., pp. 274-77; Segurola, Dictionnaire..., p. 32. Herskovits, Dahomey..., vol. I, p. 208. Humbono Vicente, 28/12/1999. Alguns consideram Aizan uma mulher doente, que se ocupa das pessoas mortas (gaiaku Luiza, 3/1/2000). Acompanhei a obrigação no Seja H u n d é em 25/12/1999 e 6/1/2001, e no Huntoloji em 20/1/2001.

Brice Sogbosi, comunicação pessoal, 6/1/2001. A descrição do zandró é baseada nas observações realizadas no Seja H u n d é (6/1/1996, 8/1/1999, 25/12/1999, 8/1/2000, 6/1/2001) e no Huntoloji (23/1/1999, 30/1/1999; 20/1/2001). Designando esse liquido me foram dados vários nomes: degué, padé, amia, ifun ou eko (o último seria acaçá misturado com água). Para a nação efon, ver Capone, La quête..., p. 77.

Versões fonéticas livremente transcritas a partir dos cantos de humbono Vicente (entrevista 13 /1 /1999), e do zandró do boitá no Huntoloji (30/1/1999). O time line do gã é "/x.xxx./", correspondente ao ritmo sató. No Seja H u n d é , escutei outra variante, talvez "/xxx.xx.xx./". A sequência de cantos no H u n t o l o j i apresenta algumas variações na ordem e também observei algumas coreografias não identificadas no Seja H u n d é . Segurola, Dictionnaire..., pp. 626-27. Fico grato a Brice Sogbossi por ter chamado a minha atenção sobre esse particular. No H u n t o l o j i , às vezes se canta para Nanã antes de Sogbo, na parte das yabas (divindades femininas). No jeje savalu do terreiro Inlegedá Jigemin, a ordem é: Ogum, Oxóssi (Agangatolu), Agué, Bessen, Azonsu, Sogbo, Oiá, Tobosi, Nanã, Oxalá. O hun do dji ou e no do hun ji (vamos colocar o tambor acima) é o segmento ritual no qual se solícita ao huntó (chefe dos tocadores) que inicie os toques do tambor, mas o termo, por extensão, designa também a complexa série de rituais privados que precedem ao zandró ou dohué (Basil Semasu, Abomey, 11/8/1995; Olivier Semasu, Uidá, 18/9/1995). Basil Semasu, Abomey, 1 1/8/1995. No passado, no Seja Hundé, o boitá era carregado por Aguesi (Geninho, 28/1/2001). Mas o vodum Agué "vai sempre com Ogum". Fui testemunha do boitá no Seja H u n d é , em 9/1/1999 e 9/1/2000, e no Huntoloji, em 31/1/1999 e 28/1/2001. Versão transcrita a partir do boitá celebrado no Huntoloji em 31/1/1999. Variantes do primeiro verso dessa cantiga; "hena hero eta kaio" ou "hena heno eta va yo": Huntoloji, 28/1/2001. O u , ainda, "ena ero ita kaia" ou "eno du vodun ita, eno beto esi": humbono Vicente, 4/2/1999, 28/4/1999. Gaiaku Luiza, em CLAO, 2°- Encontro..., pp. 77, 78; humbono Vicente, 4/2/1999.

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L U I S N I C O L A U PA RÉS

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Milton Moura, l E /9/2001. Gaiaku Luiza, em CEAO, 2- Encontro..., p. 80. J. de Carvalho, "Nação...", p. 53. Ver também "Locose toma assento na cadeira de Ruinho", A Tarde, 6/1/1979; "Mundo Jeje comemora cinquentenário de sua mãe-desanto", A Tarde, 26/7/1988. Equede Santa, Salvador, entrevista de 1981. Menininha nasceu em 10 de fevereiro de 1894 (D. F. da Silva, "A morte..."). A informação sobre o nome Salaco é de Vivaldo da Costa Lima, comunicação pessoal, 10/8/1999. J . d e C a r v a l h o , " N a ç ã o . . . " , p . 53.

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Lody, Ao som..., p. 47; gaiaku Luiza, 17/2/98; Nenem de Mello, 7/1/2003. Humbono Vicente, 13/11/1999. 84 Lima, "A família...", pp. 21, 43. Everaldo Duarte também sugere uma possível relação de Azonodo com Azoani, mas sem identificá-los (21/4/1999). 85 Waldeloir Rego, "Mitos...", p. 186. Segurola, Dietionnaire..., p. 84. Outras interpretações mais questionáveis associam Azonodo como um vodum dos astros, ou Sogbo. Ogã Boboso, 18/12/1998; J. de Carvalho, "Nação...", p. 53. sf ' Avimanjenon, Uidá, 24/11/2001. 87 Everaldo Duarte, 31/8/2002. 88 "Mataram árvore africana adorada no terreiro Gêge", jornal e data não identificados, 1978; J. de Carvalho, "Nação...", p. 54. 89 Lody, Ao som..., p. 47. 90 Equede Santa, Salvador, entrevista 1981. 91 Everaldo Duarte, 21/4/1999. 92 O Alabama, 24/11/1871, p. 4. 93 Para um estudo em detalhe do tema desta seção, ver Parés, "O triângulo...". 94 Semasusi, Uidá, entrevista 4/10/1995. Azilinon, Uidá, entrevista 20/9/1995. 95 Para uma análise dos bo na área gbe, ver Blier, African..., pp. 2-4, e cap. 2. 96 Aguesi, 10/8/1996; gaiaku Luiza, 28/11/1998, 17/12/1998. Indicando, mais uma vez, a interpenetração jeje-angola, alguns consideram Kaia ou Kaiala o nome angola de Iemanjá. 97 Aguesi, 10/8/1996. Sobre Azili no Haiti: Gleason, "Report...", p. 28; Metraux, Le vaudou..., pp. 78, 97. 98 Querino, Costumes..., p. 37. 99 A descrição baseia-se nos rituais celebrados em 2/2/1999, no Huntoloji, e em 12/1/2000, no Seja Hundé. 100 O Alabama, 6/3/1867; 16/2/1869, pp. 2-3. 101 O Alabama, 10/5/1867; 19/3/1869, pp 2-3. 102 Ogã Boboso, 25/9/2000; Everaldo Duarte, 30/8/2003. 103 Francisco Viana, "Ritual da guerra fecha candomblés após o carnaval", A Tarde, 17/2/1973. Caciattore apresenta duas possíveis etimologias: 1) partiu (lo), está pronto para a guerra (rogun), ou 2) festival (olórò) da guerra (ogun) (Dicionário..., p. 165). 104 Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 14/2/1999, 2/4/2000; humbono Vicente, 19/2/1999. 105 Segurola, Dietionnaire..., p. 200; Peixoto, Obra..., p. 18; Lopes, "O pessoal...", p. 47. 106 Gaiaku Luiza, 20/8/1996, 22/6/1999, 25/6/1999; humbono Vicente, 22/8/1999. 83

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CONCLUSÃO

C h e g a m o s , assim, ao final d o n o s s o p e r c u r s o . C a b e n o t a r q u e , apesar d o detal h e c o m q u e f o r a m a b o r d a d o s c e r t o s aspectos de l i t u r g i a jeje, o t e x t o q u e a n t e c e d e está l o n g e de ser e x a u s t i v o . H á a i n d a o u t r a s o b r i g a ç õ e s i m p o r t a n t e s , a e x e m p l o dos ritos f u n e r á r i o s d o zelim,

q u e a p r e s e n t a m s i n g u l a r i d a d e s q u e as

d i f e r e n c i a m de o b r i g a ç õ e s h o m ó l o g a s p r a t i c a d a s n o s c a n d o m b l é s d e o u t r a s nações. N o e n t a n t o , elas n ã o c o n s t i t u e m s e g m e n t o s rituais q u e os p r a t i c a n t e s i d e n t i f i q u e m c o m o exclusivos da n a ç ã o jeje e, p o r esse m o t i v o , f o r a m deixadas de l a d o para s e r e m a b o r d a d a s em f u t u r o s t r a b a l h o s . U m a das c o n c l u s õ e s de o r d e m mais geral é q u e os processos de i d e n t i d a d e religiosa, q u e se a r t i c u l a m n o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o a p a r t i r das d i f e renças litúrgicas, a p r e s e n t a m u m claro p a r a l e l i s m o c o m os processos d e i d e n t i d a d e é t n i c a q u e o p e r a v a m e n t r e os a f r i c a n o s e seus d e s c e n d e n t e s n o s séculos X V I I I e XIX. E m a m b o s os casos t r a t a - s e de processos de i d e n t i d a d e relacionais, isto é, processos de d i f e r e n c i a ç ã o baseados n o c o n t r a s t e c o m o " o u t r o " e na d i c o t o m i z a ç ã o de sinais d i a c r í t i c o s . A d i f e r e n ç a se expressa n u m d u p l o m o v i m e n t o pela v a l o r i z a ç ã o de s i n g u l a r i d a d e s n ã o c o m p a r t i l h a d a s pelos o u tros, assim c o m o pela a u s ê n c i a d e c e r t o s valores e p r á t i c a s característicos d o s o u t r o s . Aliás, os p r o c e s s o s de i d e n t i f i c a ç ã o religiosa q u e o b s e r v a m o s h o j e n o C a n d o m b l é f o r a m , no p a s s a d o , p a r t e i n t e g r a n t e d o s p r o c e s s o s d e i d e n t i f i c a ção é t n i c a , e x i s t i n d o e n t r e a m b o s u m a certa relação de c o n t i n u i d a d e . T o d a v i a , os p r o c e s s o s de i d e n t i f i c a ç ã o r e l i g i o s a a p r e s e n t a m u m a n a t u reza m u l t i d i m e n s i o n a l , p a r a l e l a à q u e l a q u e a p o n t e i e m r e l a ç ã o aos p r o cessos d e i d e n t i d a d e é t n i c a . O u s e j a , u m m e m b r o de u m t e r r e i r o jeje d i s p õ e d e v á r i a s c a t e g o r i a s p a r a e x p r e s s a r o seu p e r t e n c i m e n t o r e l i g i o s o . N o nível m a i s g e n é r i c o , ele p o d e q u a l i f i c a r a sua r e l i g i ã o c o m o " a f r i c a n a " , alin h a n d o - s e aí c o m u m a c a d a vez m a i s p r i v i l e g i a d a i d e n t i d a d e n e g r a de ca-

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r á t e r é t n i c o - r a c i a l . Esse t i p o de i d e n t i f i c a ç ã o se dá, s o b r e t u d o , em i n t e r a ç õ e s c o m p e s s o a s p e r t e n c e n t e s a religiões q u e n ã o p o s s u e m r e f e r e n t e s a f r i c a n o s , o u q u e , t e n d o - o s , n ã o os v a l o r i z a m d o m e s m o m o d o , c o m o p o r e x e m p l o p r a t i c a n t e s de C a n d o m b l é d e C a b o c l o , U m b a n d a , E s p i r i t i s m o o u igrejas evangélicas. N u m nível i n t e r m e d i á r i o , o n o s s o m e m b r o de t e r r e i r o p o d e utilizar c a t e g o r i a s d e c a r á t e r " m e t a é t n i c o " e q u a l i f i c a r a sua casa c o m o s e n d o d e n a ç ã o j e j e . Esse t i p o de q u a l i f i c a ç ã o - i d e n t i f i c a ç ã o se p r o d u z i r á n o r m a l m e n t e e m i n t e r a ç õ e s c o m m e m b r o s de o u t r o s t e r r e i r o s n a g ô s o u a n g o l a s , e h a v e r á c o n s c i ê n c i a d e d i f e r e n ç a s l i t ú r g i c a s , assim c o m o de g e n e a l o g i a s esp i r i t u a i s . N u m t e r c e i r o nível, d e n t r o d e c a d a n a ç ã o , h á u m a série d e c a t e gorias c o m r e f e r ê n c i a s m a i s específicas a t e r r a s o u c i d a d e s a f r i c a n a s . N o caso d o jeje, c o m o já v i m o s , s e r i a m m a h i , s a v a l u , d a g o m e , m u n d u b i e t c . Essas c a t e g o r i a s n ã o t ê m h o j e e m dia u m e m b a s a m e n t o r i t u a l t ã o f o r t e c o m o o d a s n a ç õ e s " m e t a é t n i c a s " , m a s p e r s i s t e m c o m o sinais d i a c r í t i c o s de c o n g r e gações p a r t i c u l a r e s . N o caso da n a ç ã o jeje, a v a r i a n t e m a h i p a r e c e ter persistido com mais visibilidade do que outras "subnações" que foram progressiv a m e n t e e s q u e c i d a s . N o caso da n a ç ã o n a g ô , k e t u é a " s u b n a ç ã o " q u e desb a n c o u as c a t e g o r i a s c o n c o r r e n t e s . C o m p r o v a m o s , assim, q u e a m u l t i d i m e n s i o n a l i d a d e da i d e n t i f i c a ç ã o étn i c a dos n e g r o s d o século XVIII e XIX e n c o n t r a c o r r e s p o n d ê n c i a s n o â m b i t o r e l i g i o s o , e m b o r a a i m p o r t â n c i a e v i s i b i l i d a d e social d o s v á r i o s níveis i d e n titários seja d i n â m i c a e h i s t o r i c a m e n t e variável. E n q u a n t o h o u v e africanos n a B a h i a e n v o l v i d o s n o s c a n d o m b l é s , o t e r c e i r o n í v e l das " s u b n a ç õ e s " devia a i n d a t e r u m a r e l e v â n c i a s i g n i f i c a t i v a ; à m e d i d a q u e esses a f r i c a n o s f o r a m m o r r e n d o e s e n d o s u b s t i t u í d o s p o r c r i o u l o s , as d e n o m i n a ç õ e s " m e t a é t n i c a s " de n a ç ã o f o r a m privilegiadas. N a s ú l t i m a s d é c a d a s o nível m a i s genérico da a f r i c a n i d a d e parece t o r n a r - s e o mais r e i v i n d i c a d o d e v i d o à i m p o r t â n c i a que adquiriu a ideologia da negritude c o m o identidade étnico-racial. T o d a s essas d i m e n s õ e s i d e n t i t á r i a s a s s o c i a d a s ao C a n d o m b l é , b a s e a d a s e m d i f e r e n ç a s c o n c e i t u a i s e r i t u a i s m a i s o u m e n o s r e c o n h e c i d a s , são o p e r a t i v a s e n q u a n t o h á u m c o n s e n s o d e b a s e , i s t o é, e n q u a n t o elas o c o r r e m d e n t r o o u e m r e l a ç ã o a u m a m e s m a i n s t i t u i ç ã o r e l i g i o s a . C o m o já a p o n t e i r e p e t i d a s vezes, a d i f e r e n ç a é possível s o m e n t e a p a r t i r de u m m í n i m o nível d e s e m e l h a n ç a , e essa s e m e l h a n ç a — r e s u l t a d o d e l o n g o s p r o c e s s o s d e s i m b i o s e — se r e f l e t e t a m b é m n o s i s t e m a c l a s s i f i c a t ó r i o . A s s i m , a e x p r e s s ã o " n a g ô - v o d u m " (ou, na versão intelectualizada, "jeje-nagô") — e x p r e s s a n d o a i n t e r p e n e t r a ç ã o dessas duas g r a n d e s tradições étnico-religiosas — é u m t e r m o f r e q u e n t e m e n t e u s a d o pelos p r a t i c a n t e s jejes para se referir a suas p r á t i c a s .

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CONCLUSÃO

T o d a v i a o s i s t e m a c l a s s i f i c a t ó r i o a c i m a e s b o ç a d o n ã o deve ser e n t e n d i d o c o m o rígido o u e s t r a t i f i c a d o e m níveis e s t a n q u e s . H á i n ú m e r a s possibilidades c o m b i n a t ó r i a s dessa t e r m i n o l o g i a de n a ç õ e s p a r a d e s i g n a r os ritos das casas de C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e a s , f o r m a n d o expressões c o m o , p o r e x e m p l o , k e t u - a n g o l a - c a b o c l o o u i j e x á - k e t u - a n g o l a etc. A p l a s t i c i d a d e e o e c l e t i s m o n o uso dessas i d e n t i f i c a ç õ e s religiosas s u g e r e m o c o n s t a n t e m o v i m e n t o de p r á ticas e valores de u m g r u p o p a r a o o u t r o e i n d i c a m q u e tais i d e n t i f i c a ç õ e s r e s p o n d e m , f r e q u e n t e m e n t e , a t e n t a t i v a s de l e g i t i m a ç ã o de d e t e r m i n a d o s grupos perante outros, e nem t a n t o a continuidades diretas com tradições a f r i c a n a s específicas. N o caso d o B o g u m e d o Seja H u n d é , n o e n t a n t o , t r a t a n d o - s e d e c o n g r e g a ç õ e s c o m u m p a s s a d o q u e r e m o n t a ao s é c u l o XIX, é possível e x a m i n a r essas q u e s t õ e s n u m a p e r s p e c t i v a h i s t ó r i c a m a i s a m p l a . A n a l i s a n d o a a t i v i d a d e r i t u a l e a c o n f i g u r a ç ã o d o s p a n t e õ e s , é possível a t e n t a r p a r a u m a avaliação d o g r a u de c o n t i n u i d a d e o u d e s c o n t i n u i d a d e d o s sinais d i a c r í t i c o s q u e m a r c a m a f r o n t e i r a da n a ç ã o j e j e - m a h i . N ã o se t r a t a de u m e x e r c í c i o fácil d e v i d o à f a l t a d e i n f o r m a ç õ e s h i s t ó r i c a s p r e c i s a s , e a p a r t i r d e e t n o g r a f i a s c o n t e m p o r â n e a s fica m u i t o d i f í c i l fazer p r o j e ç õ e s n o p a s s a d o . A l é m d o m a i s , as p e r s i s t ê n c i a s e m u d a n ç a s d e r a m - s e e m a s p e c t o s s e p a r a d o s e, às vezes, a p e n a s p a r c i a i s das p r á t i c a s r i t u a i s . C o n t u d o , c o m base nas e v i d ê n cias d i s p o n í v e i s foi possível a p r e s e n t a r a l g u m a s h i p ó t e s e s s o b r e as t e n d ê n c i a s gerais. O s sinais d i a c r í t i c o s da l i t u r g i a j e j e m a i s visíveis são a i d e n t i d a d e das d i v i n d a d e s , os v o d u n s , assim c o m o a l í n g u a u t i l i z a d a nas c a n t i g a s e rezas a eles a s s o c i a d o s . Esses e l e m e n t o s , apesar das possíveis t r a n s f o r m a ç õ e s s o f r i d a s ao l o n g o d o t e m p o , p a r e c e m a p r e s e n t a r u m a clara r e l a ç ã o de c o n t i n u i d a d e c o m a n t e c e d e n t e s da área gbe, q u e n u m a m a i o r i a de casos r e m o n t a m à é p o ca da e s c r a v i d ã o . E m relação às d i v i n d a d e s v i m o s a d i n â m i c a de a g r e g a ç ã o q u e p a r e c e o r g a n i z á - l a s em g r u p o s p r o g r e s s i v a m e n t e m a i s a b r a n g e n t e s , ao t e m p o q u e u m a d i n â m i c a paralela e seletiva d i s c r i m i n a e e s q u e c e d i v i n d a d e s menores. V i m o s o caso das o f e r e n d a s s a c r i f i c i a i s a L e g b a e O g u m X o r o q u e , q u e , e m b o r a c o m p a r t i l h e m a e s t r u t u r a " a s s e n t o - e b ó " c o m u m ao C a n d o m b l é e t e n d o a l g u m a s características f u n c i o n a i s s e m e l h a n t e s às d o p a d ê n a g ô , c o n s t i t u e m n o s e u c o n j u n t o u m a s i n g u l a r i d a d e d a l i t u r g i a jeje. Essas d i v i n d a des são d i f e r e n c i a d a s das suas h o m ó l o g a s n a g ô s c o m o E x u o u E l e g b a r a , a partir da especificidade n o m i n a l . P o d e existir u m a h o m o g e n e i z a ç ã o das p r á t i c a s r i t u a i s — L e g b a recebe azeite, f a r o f a e acaçá c o m o E x u — , m a s essa

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L U I S N I C O L A U PA R É S

h o m o g e n e i z a ç ã o d e r i v a e m p a r t e da Á f r i c a , o n d e essas d i v i n d a d e s já c o m p a r t i l h a v a m a t r i b u t o s . Aliás, a f r o n t e i r a n o m i n a l e n t r e essas d u a s c a t e g o rias de e n t i d a d e s (ou d e v e r í a m o s falar d e u m a só c a t e g o r i a ? ) p o d e ser tén u e e, p e l a s u p r e m a c i a d o s r e f e r e n t e s n a g ô s , a l g u m a s p e s s o a s , m e s m o das casas j e j e s , p o d e m c h a m a r L e g b a d e E x u . P o r é m , a i n d a a s s i m , n o d i s c u r s o d o p o v o - d e - s a n t o , L e g b a e O g u m X o r o q u e são c o n s i d e r a d o s " d o l a d o d o jeje". Logo, cabe notar q u e a d i c o t o m i z a ç ã o entre Legba e Exu, que cont r i b u i a d e m a r c a ç ã o da f r o n t e i r a e n t r e a l i t u r g i a j e j e e n a g ô , d e r i v a d e u m a o p o s i ç ã o já e x i s t e n t e na Á f r i c a , e t e r í a m o s assim u m caso d e r e t e n ç ã o m a i s ou menos adaptada. T a m b é m n o caso de A z i r i v i m o s c o m o v a r i a n t e s locais d e c u l t o s de vod u m da área g b e p e r s i s t e m c o m o v a r i a n t e s r e g i o n a i s d e n t r o d a l i t u r g i a j e j e n o Brasil, o q u e i n d i c a u m a c o n t i n u i d a d e n ã o a p e n a s d o c o m p l e x o c o n c e i tuai e ritual associado a v o d u n s específicos, mas t a m b é m u m a c o n t i n u i d a d e das suas d i f e r e n ç a s r e l a t i v a s . E m o u t r a s p a l a v r a s , n o Brasil n ã o h o u v e a p e n a s a m a n u t e n ç ã o das f r o n t e i r a s e n t r e os c u l t o s d e v o d u m e os c u l t o s d e o r i x á , m a s em a l g u n s casos h o u v e p e r s i s t ê n c i a de d i f e r e n ç a s e n t r e d i s t i n t o s c u l t o s d e v o d u n s , o q u e é i n d i c a t i v o da i m p o r t â n c i a d e a g e n t e s sociais p a r t i c u l a r e s n a t r a n s f e r ê n c i a , r e a t u a l i z a ç ã o e t r a n s m i s s ã o de p r á t i c a s religiosas a f r i c a n a s n o Brasil. V i m o s , t o d a v i a , em r e l a ç ã o a c e r t o s s e g m e n t o s r i t u a i s c o m o o zandró,

a

c o n t i n u i d a d e de f o r m a s c o m p l e x a s de a t i v i d a d e r i t u a l q u e , a p e s a r das m u d a n ç a s , a c r é s c i m o s o u e s q u e c i m e n t o s , e n c o n t r a m claros a n t e c e d e n t e s n a s p r á t i c a s v o d u n s d a área g b e . P o d e m o s , a s s i m , dizer q u e u m a p a r t e i m p o r t a n t e d o s sinais d i a c r í t i c o s q u e e s t a b e l e c e m as f r o n t e i r a s d a n a ç ã o j e j e está ancorada em práticas dos cultos de v o d u m i m p o r t a d a s d u r a n t e a época do tráfico. Ora, em relação a outros elementos rituais q u e hoje c o n s t i t u e m singul a r i d a d e s d a n a ç ã o jeje, n ã o é t ã o fácil e n c o n t r a r tais a n t e c e d e n t e s . C o m e n t a m o s o caso d o boitá,

essa h o m e n a g e m às á r v o r e s s a g r a d a s q u e , até o n d e

e u sei, n ã o e n c o n t r a u m a c o r r e s p o n d ê n c i a clara nas p r á t i c a s v o d u n s a f r i c a n a s . T a m b é m o c u l t o de A z o n a d o n o B o g u m , e m b o r a p r o v a v e l m e n t e fosse u m a á r v o r e i m p o r t a d a da área gbe, a s s o c i a d a a a l g u m c u l t o d o v o d u m Sakp a t a , c o m o s u g e r e o seu n o m e , n ã o h á n a Á f r i c a u m a n t e c e d e n t e d a "festa d a s f r u t a s " c o m o é r e a l i z a d a em Salvador. E claro q u e as e t n o g r a f i a s religiosas da área g b e a p r e s e n t a m g r a n d e s l a c u n a s , e q u e o q u e c o n s i d e r o f a l t a de a n t e c e d e n t e s talvez seja a p e n a s d e s c o n h e c i m e n t o d e c u l t o s n ã o d o c u m e n t a d o s . T o d a v i a é p o s s í v e l q u e p r á t i c a s q u e p e r s i s t i r a m n o Brasil t e n h a m

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CONCLUSÃO

d e s a p a r e c i d o p o s t e r i o r m e n t e na área gbe. H á , n o e n t a n t o , t a m b é m a p o s s i b i l i d a d e de t r a t a r - s e de s e g m e n t o s r i t u a i s q u e f o r a m aos p o u c o s s e n d o " c r i a d o s " n o Brasil, n o caso d o gra, p o r e x e m p l o , p o r s i m b i o s e c o m p r á t i cas angolas o u , n o caso d o boitá,

c o m o c o n s e q u ê n c i a da o r g a n i z a ç ã o dos

c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s , s e n d o q u e a e s t r u t u r a p r o c e s s i o n a l da o b r i gação parece d e s e n h a d a para p r e s t i g i a r essa m u l t i p l i c i d a d e de assentos. A m e s m a falta de d a d o s e t n o g r á f i c o s i m p e d e de se p r o c e d e r a u m a avaliação s o b r e o g r a u de c o n t i n u i d a d e de o u t r o s e l e m e n t o s r i t u a i s , c o m o as cor e o g r a f i a s e os r i t m o s mundubi

e quebrado

do jeje-mahi cachoeirano, em-

b o r a de f o r m a i n t u i t i v a p e r m i t a p e n s a r - s e em a l g u m t i p o de c o n t i n u i d a d e . E m relação a c o m p l e m e n t o s de vestuário e, c o n s i d e r a n d o apenas aqueles dist i n t i v o s d o j e j e c o m o , p o r e x e m p l o , a p a l h a da C o s t a t i n g i d a de v e r m e l h o , a c h a m o s a n t e c e d e n t e s na área gbe. N o e n t a n t o , a u t i l i z a ç ã o desse e l e m e n to em relação ao v o d u m S a k p a t a p a r e c e ter sido u m a criação e s s e n c i a l m e n te brasileira. Esses casos sugerem q u e certos sinais diacríticos da liturgia jeje são r e s u l t a d o d e e l e m e n t o s o r i g i n á r i o s da área gbe q u e s o f r e r a m c o m p l e xos processos d e m u d a n ç a e a d a p t a ç ã o às novas c o n d i ç õ e s r i t u a i s . Por o u t r o l a d o , c o m p r o v a m o s q u e s e g m e n t o s r i t u a i s e l a b o r a d o s n o Brasil — c o m o a festa de f e c h a r o b a l a i o o u a f o g u e i r a de São J o ã o , r e s u l t a d o s da i n t e r p e n e t r a ç ã o das p r á t i c a s a f r i c a n a s c o m t r a d i ç õ e s católicas o u ibéricas e, p o r t a n t o , r e s u l t a d o s d o c o n s e n s o de a f r i c a n o s de p r o c e d ê n c i a h e t e r o g é n e a e n ã o de q u a l q u e r n a ç ã o p a r t i c u l a r — se c o n s t i t u í r a m e m espaços rituais p o u c o favoráveis para sustentar sinais diacríticos d i f e r e n c i a d o r e s , e m b o r a , claro está, cada casa possa ter d e s e n v o l v i d o d e t a l h e s p a r t i c u l a r e s . F i n a l m e n t e , a p o n t e i o caso de s e g m e n t o s rituais c o m o o decá e o p a n ã , que p o d e r i a m ter sido o r i g i n a r i a m e n t e práticas dos cultos de v o d u m , aos p o u cos esquecidas pelos jejes até o p o n t o de q u e h o j e em dia eles n o t e m a sua ausência c o m o traço distintivo da sua liturgia. Paralelamente, os m e s m o s elem e n t o s f o r a m a p r o p r i a d o s , reelaborados e valorizados pelos nagôs nos cultos de orixá, c h e g a n d o a se converter nos seus sinais diacríticos. Esse m o v i m e n t o de práticas de u m g r u p o para o u t r o e a sua p o s t e r i o r reelaboração até t r a n s f o r m a r - s e e m sinais de i d e n t i d a d e d o g r u p o r e c e p t o r seria o caso mais e m b l e m á t i c o da p l a s t i c i d a d e e da d i n â m i c a de m u d a n ç a h i s t ó r i c a a q u e estão sujeitos os e l e m e n t o s c u l t u r a i s escolhidos nos processos de i d e n t i d a d e é t n i co-religiosa. S u m a r i a n d o , a análise dos sinais d i s t i n t i v o s da l i t u r g i a jeje sugere q u e eles r e s u l t a m de u m a m u l t i p l i c i d a d e de processos, i n c l u i n d o simples sobrevivências, mas em m a i o r m e d i d a r e t e n ç õ e s p a r c i a l m e n t e r e a d a p t a d a s e res-

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LUIS NICOLAU

PA R É S

significadas, ou ainda "criações" idiossincráticas surgidas da bricolagem c u l t u r a l d e s e n v o l v i d a n a s n o v a s c o n d i ç õ e s d o Brasil. E m d e f i n i t i v o , o caso jeje i n d i c a a rica i n t e r f a c e e n t r e c o n t i n u i d a d e s e d e s c o n t i n u i d a d e s e a n a tureza híbrida e heterogénea das práticas e valores de q u a l q u e r nação de Candomblé. D e o u t r a f o r m a , a análise h i s t ó r i c a da c o n s t i t u i ç ã o d o C a n d o m b l é n o s p e r m i t i u c o n s t a t a r a i m p o r t â n c i a crítica das t r a d i ç õ e s d o c u l t o d e v o d u n s — e m relação, p o r e x e m p l o , à c e n t r a l i d a d e d o c o m p l e x o " a s s e n t o - e b ó " , à e s t r u t u r a d a i n i c i a ç ã o , à o r g a n i z a ç ã o c o n v e n t u a l d o g r u p o o u ao c u l t o d e m ú l t i plas d i v i n d a d e s — , e m b o r a essa c o n t r i b u i ç ã o p e r m a n e ç a s u b t e r r â n e a , a p a g a d a n a m e m ó r i a d o p o v o - d e - s a n t o q u e h o j e p r i v i l e g i a , s o b r e t u d o , as t r a d i ç õ e s d o s c u l t o s de o r i x á s da n a ç ã o n a g ô - k e t u . C o m o a d v e r t i n o P r e f á c i o , n e s t e t r a b a l h o t e n d i a v a l o r i z a r o jeje, n ã o n o i n t e n t o d e " p u r i f i c a r " o u reificar essa t r a d i ç ã o , m a s c o m o i n t u i t o d e r e c o n h e c e r e c a l i b r a r n a s u a j u s t a m e d i d a a sua c o n t r i b u i ç ã o n o p r o c e s s o f o r m a t i v o d o C a n d o m b l é . A p e r s p e c tiva d i a c r ó n i c a o u h i s t ó r i c a q u e a d o t e i é i m p o r t a n t e n a m e d i d a e m q u e p e r m i t e e n t e n d e r o u avaliar o j o g o das c o n t i n u i d a d e s e m u d a n ç a s . I n s i s t o , n ã o foi a m i n h a i n t e n ç ã o utilizar a H i s t ó r i a de f o r m a ideológica, para justificar ou legitimar qualquer hierarquia. O m e u p r o p ó s i t o d e e n t e n d e r o f a t o r d i f e r e n c i a l jeje p a r t e t a m b é m d a c o n s t a t a ç ã o d e q u e se t r a t a de u m a d i n â m i c a o p e r a t i v a e n t r e os p r ó p r i o s praticantes. N o processo relacional de contraste c o m grupos concorrentes, as c o n g r e g a ç õ e s jejes, c o m o as a n g o l a s , d e v e m i n e v i t a v e l m e n t e m e d i r - s e c o m os t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s , s o c i a l m e n t e m a i s visíveis. Essa c o m p a r a ç ã o p o d e r e s u l t a r e m a t i t u d e s o u r e a ç õ e s v a r i a d a s d e p e n d e n d o das p e s s o a s e d o l a d o r e l i g i o s o a q u e elas p e r t e n ç a m . L o g i c a m e n t e , os m e m b r o s das casas n a g ô k e t u s " t r a d i c i o n a i s " ( o u a q u e l e s q u e c o m elas se i d e n t i f i c a m ) n ã o g o s t a m d e falar e m h e g e m o n i a n a g ô , o u e m n a g o c e n t r i s m o e, cientes da sua i n f l u ê n cia g e n e r a l i z a d a n o C a n d o m b l é , t e n d e m a u m c e r t o e c u m e n i s m o i n t r a - a f r i cano, d e s t a c a n d o a semelhança entre orixás, v o d u n s e inquices. D o o u t r o l a d o , os m e m b r o s de t e r r e i r o s d e o u t r a s n a ç õ e s , se b e m c o n s c i e n t e s e aceit a n d o a p r e d o m i n â n c i a d o s r e f e r e n t e s n a g ô - k e t u s , p o d e m ter a n s e i o s d e i n s i s t i r n a sua d i f e r e n ç a e, q u a n d o esta é i g n o r a d a o u m a r g i n a l i z a d a , p o d e m r e c o r r e r à i d é i a de u m a h e g e m o n i a n a g ô . Essas a t i t u d e s a n t a g ó n i c a s d i f i c i l m e n t e são p ú b l i c a s , p r e v a l e c e n d o e m geral as d i n â m i c a s de c o o p e r a ção e c o m p l e m e n t a r i d a d e entre terreiros de nações diferentes. N o e n t a n t o , de f o r m a privada, persiste t a m b é m u m a dinâmica competitiva que não pode ser i g n o r a d a .

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CONCLUSÃO

N ã o é m i n h a i n t e n ç ã o p o l e m i z a r c o m essa " h e g e m o n i a " n a g ô , m a s t a m b é m é c e r t o q u e , d i a n t e da a v u l t a d a l i t e r a t u r a q u e e s t u d a o c a n d o m b l é n a g ô - k e t u , este t r a b a l h o s o b r e a n a ç ã o j e j e se p o s i c i o n a c o m o u m o l h a r a l t e r n a t i v o . Sou p l e n a m e n t e c o n s c i e n t e de q u e se t r a t a d e u m a c o n t r i b u i ção l i m i t a d a , a p e n a s u m a t e n t a t i v a , p a r c i a l e p r o v i s ó r i a , q u e vai p r e c i s a r d e f u t u r a s p e s q u i s a s p a r a c o r r i g i r o u r e f i n a r as suas h i p ó t e s e s . N o e n t a n t o , se c o n s e g u i a p o n t a r p a r a a p l u r a l i d a d e de i n f l u ê n c i a s q u e i n t e r v i e r a m n a f o r m a ç ã o h i s t ó r i c a d o C a n d o m b l é e, nesse q u a d r o , se c o n s e g u i d i m e n s i o n a r a c o n t r i b u i ç ã o jeje, m e d a r e i p o r satisfeito. Humbono

V i c e n t e falava q u e "o jeje

já foi", p o r é m d e s c o n f i o q u e as t r a d i ç õ e s dos c u l t o s de v o d u m , através das suas c o n s t a n t e s t r a n s f o r m a ç õ e s , s e g u e m c o m o seiva a n t i g a , f i l t r a d a s e a t u a n t e s na d i n â m i c a c o n t e m p o r â n e a d o C a n d o m b l é .

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