A existência de Deus

Table of contents :
Prefácio à edição brasileira......Page 9
Prefácio à segunda edição......Page 43
Introdução......Page 48
1. Argumentos Indutivos......Page 53
2. A natureza da explicação......Page 93
3. A justificação da explicação......Page 155
4. Explicação completa......Page 203
5. A probabilidade intrínseca do teísmo......Page 246
6. O poder explicativo do teísmo: considerações gerais......Page 283
7. O argumento cosmológico......Page 333
8. Argumentos teleológicos......Page 372
9. Argumentos da consciência e moralidade......Page 455
10. O argumento da providência......Page 517
11. O problema do mal......Page 557
12. Argumentos com base na história e nos milagres......Page 643
13. O argumento da experiência religiosa......Page 688
14. O balanço de probabilidade......Page 761
Nota adicional 1: A Trindade......Page 793
Nota adicional 2: Argumentos recentes em favor do design a partir da Biologia......Page 799
Nota adicional 3: O argumento de Plantinga contra o naturalismo evolucionário......Page 806

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Richard Swinburne

A existência de Deus

Copyright @ 2004, de Richard Swinburne Publicado originalmente em inglês sob o título The Existence of God pela Oxford University Press, Great Clarendon Street, Oxford, OX2 6DP, Reino Unido.

The Existence of God was originally published in English in 2004. This translation is published by arrangement with Oxford University Press. Editora Monergismo is solely responsible for this translation from the original work and Oxford University Press shall have no liability for any errors, omissions or inaccuracies or ambiguities in such translation or for any losses caused by reliance thereon. Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

ACADEMIA MONERGISTA Caixa Postal 2416 Brasília, DF, Brasil - CEP 70.842-970 Telefone: (61) 8410-6700 - Sítio: www.monergista.com.br 1a edição, 2015 1000 exemplares Tradução: Agnaldo Cuoco Portugal Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto e Rodrigo Rocha Silveira Capa: Luís Henrique P. de Paula

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Swinburne, Richard

A existência de Deus / Richard Swinburne, tradução Agnaldo Cuoco Portugal – Brasília, DF: Academia Monergista, 2015. Título original: The Existence of God

1. Filosofia 2. Filosofia da religião I. Título. CDD 201

Sumário

Prefácio à edição brasileira Prefácio à segunda edição Introdução 1. Argumentos Indutivos 2. A natureza da explicação 3. A justificação da explicação 4. Explicação completa 5. A probabilidade intrínseca do teísmo 6. O poder explicativo do teísmo: considerações gerais 7. O argumento cosmológico 8. Argumentos teleológicos 9. Argumentos da consciência e moralidade 10. O argumento da providência

11. O problema do mal 12. Argumentos com base na história e nos milagres 13. O argumento da experiência religiosa 14. O balanço de probabilidade Nota adicional 1: A Trindade Nota adicional 2: Argumentos recentes em favor do design a partir da Biologia Nota adicional 3: O argumento de Plantinga contra o naturalismo evolucionário

Prefácio à edição brasileira Esta é primeira vez que se traduz The Existence of God de Richard Swinburne para o português. Publicado originalmente em 1979, com uma edição revista em 1990, mas substancialmente ampliado em 2004, trata-se, segundo os especialistas internacionais na área de filosofia da religião, de um “clássico contemporâneo”. O amplo reconhecimento da obra, mesmo fora dos círculos filosóficos anglófonos (com traduções para o alemão, o francês, o russo, o espanhol e o árabe), justificam o esforço aqui concretizado pela Associação Brasileira de Filosofia da Religião (ABFR), com o generoso apoio da Fundação John Templeton. A presente tradução – que toma o texto de 2004 como base – é a primeira iniciativa da linha editorial que a ABFR está abrindo de publicações em filosofia da religião em língua portuguesa. Mas não é só como um texto

internacionalmente reconhecido que A existência de Deus adquire importância para a filosofia no Brasil. Além de permitir acesso a leitores lusófonos de uma obra discutida em várias partes do mundo, esse livro abre perspectivas interessantes de discussão para os filósofos brasileiros dentro do que eles já estão fazendo. Por um lado, ela permite colocar em questão aspectos da história da filosofia moderna que parecem tranquilamente assentados na comunidade filosófica brasileira, e pouca coisa é mais filosófica do que questionar o que é tido como dado. Por outro lado, traz novidades não apenas para a filosofia da religião (especialmente em subáreas como a epistemologia da crença em Deus e a metafísica teológica racional), mas também para a teoria da explicação científica e o problema da indução. Neste breve estudo introdutório, pretendo levantar esses aspectos, com o objetivo de chamar a atenção para o proveito que a filosofia acadêmica em nosso país pode tirar da obra que vem aqui a público. Pretendo apresentar, como tema integrador, o modo pelo qual as ideias de Swinburne neste livro se colocam frente às concepções sobre religião de

David Hume – um autor fundamental da filosofia moderna que tem ampla influência direta ou indireta sobre o modo como nossos filósofos pensam esse assunto em nosso país. Com essa motivação, exponho sua teoria da indução em termos probabilísticos bayesianos e sua compreensão da explicação científica, como possíveis contribuições para a teoria do conhecimento e a filosofia da ciência. Por fim, indico como suas posições em história da filosofia e epistemologia levaram a uma contribuição original em filosofia da religião e que podem estimular a reflexão filosófica nacional.

1) Elementos da Filosofia da Religião de David Hume David Hume foi, sem dúvida, um dos mais influentes autores da filosofia moderna. A rigor, sua apresentação do problema da indução, sem contar várias outras contribuições importantíssimas em teoria do conhecimento, ética e filosofia política permitem considerá-lo um dos filósofos mais importantes de toda a história. É inegável sua

influência no pensamento de Immanuel Kant — admitida explicitamente por este, aliás — e o enorme papel que os dois tiveram na forte tendência que teve a filosofia do século XIX e início do século XX de considerar a crença religiosa algo não fundamentável em termos de razão argumentativa. Religião seria uma questão de opção pessoal privada, não defensável por razões publicamente apresentáveis e, portanto, a crença em Deus se daria por motivos não racionais, explicáveis em termos antropológicos, econômicos, sociais ou psicológicos. Em outras palavras, a crítica que fez Hume, com a ajuda de Kant, da possibilidade de se argumentar racionalmente em favor da existência de Deus teve um enorme alcance na filosofia da religião dos séculos posteriores. Assim, ao menos como pano de fundo, a tese de que a crença em Deus não é defensável racionalmente teve como resultado na história da filosofia recente as críticas de Feuerbach,

Marx, Nietzsche e Freud à religião. Sendo assim tão fundamental, vale a pena investigarmos os principais elementos da teoria filosófica da religião de Hume. Se nos concentrarmos apenas nos Enquiry Concerning Human Understanding (1748) e nos Dialogues Concerning Natural Religion (1779), podemos identificar dois dos temas principais da filosofia da religião do filósofo escocês: a irracionalidade da crença em milagres (com base numa negação do valor epistemológico do testemunho em comparação com a indução empírica) e a crítica à tentativa de fundamentar argumentativamente a crença no teísmo (a tese de que há um Deus pessoal onipotente, onisciente, infinitamente bom, criador e mantenedor do universo e digno de adoração religiosa). Numa das passagens mais famosas e representativas da filosofia da religião do século XVIII, Hume dedica a seção X de An Enquiry Concerning Human Understanding (1748) a uma análise da crença em milagres conforme os princípios de teoria do conhecimento estabelecidos

até então em seu tratado. Segundo Hume, estaria bem estabelecida a ideia de que, para a maioria das pessoas, a crença em eventos milagrosos se fundamenta não nos sentidos, mas no relato de outras pessoas que o alegam ter presenciado, ou seja, a crença em milagres se baseia no testemunho. No entanto, a credibilidade de um testemunho é inferior à dos sentidos, pois estes são a fonte daquele e à medida que o testemunho é passado adiante, menor é sua confiabilidade, pois mais distante ele fica de sua fonte. Para Hume, o grau de admissão de uma crença em uma ideia deve ser proporcional aos indícios (evidence em inglês) que a fundamentam, uma posição que é hoje classificada como “evidencialismo”. Em questões de fato, quanto mais numerosos são os indícios em favor de uma ideia, mais forte deve ser nossa crença nela, ainda que se aceite a possibilidade de que ela seja falsa, dado que não há necessidade em questões empíricas. É graças à constância observável pelos sentidos que o testemunho tem credibilidade, para Hume, pois é a experiência que mostra que, na maioria das vezes,

nossa memória não erra, que as pessoas tendem a não se enganar em seus relatos e que tendem a dizer a verdade por temer a censura em caso de serem descobertas (Enquiry, seção X, 88). Por outro lado, a experiência mostra várias razões para duvidar do testemunho como fundamento de uma crença. Entre tais razões temos a existência de relatos contraditórios, que se anulam entre si, e o interesse de quem relata o testemunho em que aquela ideia seja aceita. O que se tem, no caso dos milagres é uma oposição entre a força de um testemunho, de um lado, e a força da experiência, de outro lado. Segundo Hume, Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como uma experiência firme e inalterável estabeleceu essas leis, a prova contra um milagre, a partir da natureza mesma do fato, é tão completa quanto se pode imaginar poder sê-lo qualquer argumento com base na experiência (Hume, Enquiry, seção X, 90. Tradução própria). Para Hume, portanto, a questão da racionalidade da crença em milagres é claramente desfavorável à religião. Para ele, Deve haver,

portanto, uma experiência uniforme contra todo evento miraculoso, pois de outro modo o evento não mereceria esse nome. E como uma experiência uniforme equivale a uma prova, há aqui uma prova direta e completa, a partir da natureza do fato, contra a existência de qualquer milagre; nem uma prova assim pode ser destruída nem se pode tornar o milagre crível a não ser por uma prova oposta que seja superior (Hume, Enquiry, seção X, 90). Para Hume, assim, a crença racional em milagres não pode ser estabelecida, devido à irremediável fraqueza do testemunho em comparação com a força da experiência constante, que fundamenta a verdade das leis naturais. Consequentemente, a crença cristã, tão centralmente baseada em milagres, não pode ser aceita por quem, como toda pessoa racional, se pauta por princípios do hábito e da experiência (Hume, Enquiry, seção X, 101). Além da rejeição aos milagres, a filosofia da religião de Hume é também famosa por suas críticas

à teologia natural. Publicados postumamente, os Dialogues Concerning Natural Religion (1779) analisam três dos principais argumentos sobre a existência de Deus: o teleológico (partes II a VIII), o cosmológico (parte IX) e o problema do mal (partes X e XI). Apesar das últimas palavras do livro serem favoráveis a Cleantes (o personagem do diálogo que defende o argumento teleológico), o tom predominante do livro é de ceticismo quanto à possibilidade de se fundamentar racionalmente a crença em Deus — tese defendida por Filo, que os comentadores de Hume geralmente entendem ser o porta-voz do próprio filósofo escocês. O argumento de Cleantes tenta inferir da ordem complexa e sutilmente encadeada do universo a existência de um Ser Inteligente, tendo como base uma analogia entre os artefatos humanos e a intenção dos que os produziram. Filo formula várias alternativas a essa explicação: o universo pode ter resultado da ação não de um, mas de vários deuses em colaboração, como no politeísmo; pode ter sido objeto da intenção de um deus limitado em seus poderes, incapaz de criar um universo realmente perfeito; pode ser como um corpo do qual Deus seja

a alma, ao modo de um panteísmo; pode ser antes como um organismo, que tem em si mesmo o princípio de geração e desenvolvimento, ou seja, que o universo não se deva a qualquer inteligência externa a ele, mas a causas materiais imanentes. Em outras palavras, a tese de um Deus único, infinitamente bom e inteligente é apenas uma das opções para se explicar um fenômeno que tem um número potencialmente infinito de explicações. A principal crítica contra a tentativa de fundamentar a crença em Deus num argumento racional é de que se trata aqui de uma área na qual a razão não tem mais o apoio da experiência para avaliar se uma hipótese é mais provável do que outra. Nesse caso, tem-se um campo fértil para a elucubração sem limite. Segundo Filo: O que você atribui à fertilidade de minha invenção, replicou Filo, deve-se inteiramente à natureza do assunto. Em assuntos adaptados ao estreito compasso da razão humana, há geralmente apenas uma determinação que traz em si probabilidade ou convicção; e para um homem de juízo sólido, todas as outras suposições, a não ser aquela, parecem inteiramente absurdas e quiméricas (Hume,

Dialogues, parte viii). O problema com esse tipo de assunto está no fato de que seu conteúdo está muito além da experiência, pois: E onde está a dificuldade, respondeu Filo, dessa suposição? Todo evento antes da experiência é igualmente difícil e incompreensível; e todo evento, após a experiência, é igualmente fácil e inteligível (Hume, Dialogues, parte viii). Em outras palavras, na medida em que esse assunto foge muito ao âmbito da experiência imediata, a melhor opção em termos racionais é a suspensão do juízo, ou seja, é melhor não considerar que haja uma base racional para a crença teísta.

2) Richard Swinburne e a credibilidade intelectual do teísmo Richard Grenville Swinburne foi professor catedrático na área de filosofia da

religião cristã na Universidade de Oxford entre 1985 e 2002. Juntamente com Alvin Plantinga, é considerado o mais importante filósofo analítico da religião contemporâneo. O propósito de sua filosofia da religião é tentar responder o desafio colocado pela filosofia moderna à racionalidade da crença religiosa, particularmente o cristianismo. Insatisfeito com o que considerou uma admissão muito fácil da acusação de irracionalidade e com o abandono, por parte dos intelectuais cristãos mais proeminentes, do intento de apresentar argumentos filosoficamente sustentados em favor da crença cristã, Swinburne se propôs o seguinte programa de pesquisa: … usar os critérios da ciência natural moderna, analisados com o rigor cuidadoso da filosofia moderna, para mostrar o significado e a justificação da teologia cristã. (Swinburne, 1994, p. 8) Esse programa rendeu uma obra filosófica considerável, com livros sobre os mais importantes temas de metafísica, teoria do conhecimento, ética, filosofia da ciência, filosofia da mente, antropologia filosófica e, particularmente, filosofia da religião. Os livros

principais se agrupam em dois conjuntos de obras. Primeiramente, ele publicou uma trilogia sobre a crença teísta em geral: The Coherence of Theism (1993, sobre o conceito de Deus do monoteísmo), The Existence of God (1979, 1991 e 2004, com argumentos sobre a crença em Deus analisados de modo probabilístico) e Faith and Reason (1981 e 2005, sobre a relação entre a racionalidade da crença em Deus e a fé religiosa). Além disso, Swinburne escreveu uma tetralogia sobre filosofia da doutrina cristã: Responsibility and Atonement (1989), Revelation: from Metaphor to Analogy (1991, 2007), The Christian God (1994) e Providence and the Problem of Evil (1998). São muitas as facetas da contribuição de Swinburne para a filosofia da religião, mas, conforme já anunciado acima, este texto pretende se concentrar em dois aspectos apenas: sua resposta à crítica de Hume aos milagres e sua versão indutiva dos argumentos sobre a existência de Deus, que também rebatem objeções céticas humianas. Swinburne defende o valor epistêmico da crença em milagres com razões em favor da credibilidade do testemunho e com uma compreensão diferente da

proposta por Hume acerca do papel da experiência na fundamentação de uma crença. Vejamos como se apresentam cada um desses temas. Swinburne aceita a definição humiana de milagre como “violação das leis naturais”, mas dá a ela um sentido diferente. Leis naturais podem ser determinísticas ou probabilísticas. No sentido determinístico, um milagre é uma exceção à determinação taxativa da lei. No sentido probabilístico, o evento é apenas altamente improvável, mas não impossível. Nos dois casos, um milagre é tido como um evento que, para ser incorporado ao conjunto de situações previsíveis pela lei natural, exigiria uma complicação teórica tão grande desta e a tornaria tão dissonante do restante do conhecimento estabelecido sobre o mundo, que já não confiaríamos mais na sua capacidade preditiva (Swinburne 2004, p. 281). Mas, o que permitiria aceitar uma ocorrência como milagrosa? Para Hume, como vimos, o simples fato de que é algo contrário à uniformidade descrita numa lei natural já parece uma boa razão para pensar que coisas assim não aconteçam. No entanto, esse ponto de partida desfavorável pode ser

revertido por outras razões que confirmem que um fato assim inesperado realmente ocorreu. Indícios de memória do próprio sujeito de crença, do testemunho de outros sujeitos acerca do que presenciaram e se lembram, e vestígios deixados pela ocorrência extraordinária que são coerentes com seu caráter inusual são modos de confirmar a crença num fato que, a princípio, é muito pouco provável em relação ao conhecimento que temos do mundo. Assim, diz Swinburne, não há por que concordar com Hume que o simples fato de contrariar uma lei natural já é suficiente para rejeitar a crença em milagres. Não só os indícios alternativos citados podem ser fortes o bastante para tornar provável essa crença, mas também a probabilidade de existir um Deus pessoal como o postulado pelo teísmo seria um elemento a mais a dar razão para se crer que milagres podem acontecer (cf. Swinburne 2004: 284). Se Deus existisse, ele poderia se valer de milagres para responder a ações humanas livres, como uma prece ou um clamor e, mesmo que fossem raras e excepcionais, essas ocorrências não seriam sem razão. Além disso, Deus poderia se valer

de um milagre para assinalar sua aprovação ao trabalho ou ensinamento de um profeta, por exemplo. Essa questão, no entanto, remete ao segundo tópico principal da crítica de Hume à religião — a rejeição aos argumentos da teologia natural – que será visto mais adiante. Antes, porém, vejamos como Swinburne lida com a teoria humiana acerca do testemunho. O autor do livro que está traduzido neste volume considera o testemunho não apenas uma fonte importantíssima de informação, mas também fundamental para todo o conjunto de crenças que formamos. Ele contesta a tese de Hume de que nosso fundamento para crer no relato dos outros está na observação de que as pessoas frequentemente falam a verdade. Segundo Swinburne, a razão para crer com base no testemunho é muito mais profunda do que essa, pois a crença no testemunho é condição para o próprio aprendizado da linguagem. Em outras palavras, não teríamos como relacionar ideias e coisas, bem como ideias entre si, a não ser que partíssemos da crença de que aqueles que nos ensinam ou servem de modelo para a comunicação verbal são verídicos.

“Mas”, afirma Swinburne, “se é assim, eu não poderia descobrir pela experiência que os outros normalmente dizem o que é verdadeiro — porque tenho uma crença acerca do que eles querem dizer por suas palavras apenas no pressuposto anterior de que eles normalmente estão dizendo a verdade” (Swinburne, 2001, p. 124). Isso significa que a crença no conteúdo do testemunho é condição fundamental para o conhecimento humano e não apenas um atalho para a experiência direta do sujeito. Não é por acaso que uma proporção significativa de nossas crenças, talvez mesmo a imensa maioria das que julgamos verdadeiras, tenham como fonte o testemunho. Um exemplo trivial é a crença que cada um de nós tem acerca da veracidade do próprio nome, uma crença que não temos razão para duvidar. E como cada um de nós sabe do próprio nome? Apenas e tão somente pelo testemunho, seja porque as pessoas que presenciaram nosso batizado ou registro civil nos dizem isso, seja porque um documento (que é apenas uma forma de testemunho, de fonte de informação com base na declaração de alguém) nos mostra isso. Assim, a atitude mais racional não é a

de inicialmente duvidar do testemunho ou de entendê-lo como uma fonte secundária de crenças, mas a de tomar o fato de que alguém afirma a proposição p como razão para pensar que p é verdadeiro. Em outros termos, segundo Swinburne, o fato de que uma proposição p é afirmada por um sujeito S torna p provavelmente verdadeiro a princípio, sendo esse então um princípio indutivo perfeitamente razoável de ser seguido (cf. Swinburne, 2005, p. 27). A esse princípio de que o que alguém afirma – na falta de razões positivas para duvidar — é provavelmente verdadeiro, nosso autor chama de “princípio de testemunho”. Com a noção de princípio indutivo, chegamos ao elemento mais importante da contribuição de Richard Swinburne à filosofia da religião. Como vimos acima, seu propósito era mostrar o significado e justificação racional da religião cristã com base nos critérios de fundamentação argumentativa da ciência moderna. Para Swinburne, as ciências naturais modernas são fundamentalmente indutivas, mas o sentido de indução não é o de enumeração simples, pelo qual se conclui uma tese geral a partir da observação de

casos individuais (“o urubu 1 é preto, o urubu 2 é preto, o urubu n é preto, logo todo urubu é preto”). Segundo nosso autor, o melhor modo de entender o raciocínio científico indutivo nas ciências empíricas modernas é interpretá-lo em termos probabilísticos, com o auxílio do cálculo de probabilidades, tendo como ferramenta principal o Teorema de Bayes. Talvez a contribuição mais significativa de Swinburne para a filosofia da religião esteja no uso da interpretação bayesiana do raciocínio científico — ou seja, baseada no Teorema de Bayes – para apresentar e fazer um balanço de argumentos sobre a existência de Deus. No restante desta parte, pretendo esclarecer as principais ideias deste parágrafo. Na interpretação bayesiana do raciocínio indutivo, a relação entre uma hipótese explicativa e os indícios empíricos se dá entre proposições: a hipotética e as proposições empíricas. Essa relação é expressa em termos de grau de probabilidade, pelo qual uma proposição empírica que se torna mais provável em vista da hipótese em questão aumenta a probabilidade da hipótese, especialmente se a proposição empírica for pouco explicada em vista do

conhecimento que já se tem. Dito de outro modo, quanto menos provável for a proposição empírica em vista do que já se conhece anteriormente à hipótese formulada e quanto mais provável a proposição empírica se torna em vista da hipótese, maior é o poder explicativo da hipótese, ou sua verossimilhança (likelihood em inglês). Além do poder explicativo entendido nesses termos, a confirmação indutiva de uma hipótese depende também de sua probabilidade prévia, que é também avaliada em termos do conhecimento anterior à formulação da hipótese. “Anterior” aqui se refere àquilo que se conhece excluindo-se a própria hipótese. A probabilidade prévia de uma hipótese mede, então, seu grau de plausibilidade, com base naquilo que já se conhece na área e em critérios não empíricos, como simplicidade e abrangência. Em termos formais, na sua formulação mais simples, o Teorema de Bayes permite a seguinte formalização dos termos principais do raciocínio indutivo:

Probabilidade posterior de h Poder explicativo de h

Probabilidade prévia de h P(h/e.k) (lê-se “a probabilidade de h dado e e k”) é o valor a que se quer chegar. Quanto maior a probabilidade posterior de uma hipótese h, mais confirmada ela é pelos dados empíricos e que foram considerados para o seu teste. O poder explicativo de h é dado pela verossimilhança de h [P(e/h.k)] e o grau de expectativa de e [P(e/k)]. Quanto maior for a verossimilhança de h, ou seja, quanto maior for a probabilidade do evento e em vista da hipótese h em questão (quanto mais explicado ficar e em vista de h), maior tenderá a ser a probabilidade posterior de h. Por outro lado, quanto menor for o grau de expectativa de e [P(e/k)], ou seja, quanto menos e ficar explicado em vista do que já se conhece (k), maior tenderá a ser a probabilidade posterior de h. Por fim, a probabilidade prévia de h é o grau de plausibilidade da hipótese em vista do conhecimento já estabelecido. Desse modo, na interpretação bayesiana do raciocínio científico, a avaliação de hipóteses rivais como opções de explicação de um conjunto de fenômenos não se dá apenas em vista das

proposições empíricas que ela pretende explicar, mas de outros fatores também. Assim, para Swinburne, Deve haver um critério para se escolher entre o infinito número de teorias que são igualmente bem sucedidas em predizer as observações já feitas, de modo a sermos capazes de fazer predições justificadas sobre o futuro. A história da ciência revela que, na falta de conhecimento de fundo, esse critério é basicamente o critério de simplicidade (Swinburne, 2004, p. 59). Dito de outra maneira, há sempre mais de uma teoria capaz de explicar um mesmo conjunto de fenômenos, o que significa que, em certos casos, a experiência não consegue resolver sozinha a questão acerca de que explicação é a mais justificada. Nesses casos, que a filosofia da ciência contemporânea chama de subdeterminação da teoria pela experiência, a escolha racional precisa lançar mão de critérios não empíricos. Para Swinburne, a simplicidade seria o principal desses critérios a tornar provável uma hipótese, no sentido de que quanto mais simples for uma teoria, mas provável ela será a priori. Explicar um determinado fenômeno e,

portanto, envolve a consideração de duas probabilidades que são combinadas formalmente pelo teorema de Bayes: a plausibilidade prévia e o poder explicativo da hipótese que pretende explicar e. A explicação mais justificada será a mais provável no fim das contas, considerando-se o produto das duas. Essa avaliação é normalmente comparativa, ou seja, considerando-se as alternativas rivais de entendimento de um mesmo fato. Uma explicação de um fenômeno e pode ser explicada por uma teoria mais ampla, mas explicar algo não exige que seja impossível seguir na sequência explicativa. Por exemplo, posso explicar minha atitude de me levantar e me dirigir à cozinha por minha vontade de beber água. Apesar de não ser uma explicação final, ela é satisfatória, não exigindo normalmente acrescentar uma teoria da fisiologia da sede ou das razões bioquímicas ou biofísicas que me levaram a ter vontade de beber água. É verdade, porém, que se podem acrescentar níveis mais amplos de explicação, quando novas questões vão se colocando, após a explicação ser oferecida. Minha atitude pode, então, ser explicada por teorias gerais da biologia, da química e da física que deem conta

da sensação de sede de animais do gênero no qual se enquadram os seres humanos. No entanto, diz Swinburne, apesar de minha atitude de me levantar e ir à cozinha beber água poder ser explicada também por fatores ambientais e bioquímicos, além das leis da física e da química, isso não significa que intenções sejam redutíveis a explicações materiais. Explicar uma ocorrência é dizer o que causou esse fenômeno e por que ele ocorreu. No caso de explicações científicas, usandose o esquema proposto por Carl Hempel, um fato e se explica por suas condições iniciais e pelas leis naturais que lhe dizem respeito. No entanto, para Swinburne, ações de seres dotados de capacidade de deliberação intencional não são explicadas somente por causas e leis naturais. Para se explicar a ação de escrever um livro, exige-se não apenas dar conta dos fatos físicos, químicos e biológicos que permitem esse acontecimento ocorrer, mas também a postulação de poderes, crenças e intenções do agente que realizou aquela ação. A essa postulação de causas (poderes e crenças) e razões (intenções conscientes) para explicar e, Swinburne denomina “explicação pessoal”. A explicação pessoal seria um

tipo diferente da explicação material ou científica e não redutível a esta, embora as duas possam ser combinadas. É possível dizer que a aplicação feita por Swinburne da interpretação bayesiana do raciocínio científico ao problema da justificação da crença na existência de Deus responde às principais críticas de Hume aos argumentos da teologia natural. Em primeiro lugar, esses argumentos não precisam ser vistos de forma separada apenas, mas podem ser tomados como indícios particulares de um mesmo argumento cumulativo. Assim, a hipótese de que Deus existe pode ser avaliada quanto a sua probabilidade em relação a indícios como a existência do universo, a ocorrência de ordem no universo, o fato de haver seres conscientes, o mal e a experiência religiosa. Cada um desses indícios, que eram tomados como argumentos separados contra ou a favor da existência de Deus podem ser integrados num mesmo argumento indutivo, com a ajuda da formalização provida pelo Teorema de Bayes, de modo a confirmarem ou infirmarem essa hipótese. Ao final de The Existence of God, Swinburne defende que o balanço em favor do

teísmo em vista desses indícios tomados em conjunto é favorável, ou seja, que eles tornam a crença em Deus provável. Por outro lado, como vimos, além do poder explicativo, uma hipótese precisa ser avaliada quanto a sua probabilidade prévia. Swinburne defende que aqui, como na ciência em geral, o principal critério a ser levado em conta é o de simplicidade (cf. Swinburne, 2004, p. 145ss.). Com base nesse critério, ele propõe que a hipótese teísta seja superior a todas as suposições alternativas sugeridas pelo personagem Filo dos Dialogues de Hume. Diferentemente do politeísmo, o monoteísmo sugere uma única entidade e não várias, sendo mais simples no sentido de postular menos entidades. Diferente da tese de um deus com poderes limitados, o monoteísmo seria mais simples no sentido de que postular um grau infinito requer menos explicações adicionais que postular qualquer grau limitado, pois neste último caso é preciso dizer por que foi sugerido aquele grau e não um imediatamente superior ou inferior. Pelo mesmo princípio de simplicidade é possível rejeitar hipóteses mais bizarras, como a do universo como um imenso ser

orgânico. É verdade que não postular princípio exterior ao universo físico nenhum seria mais simples que postular a existência de Deus. No entanto, afirma Swinburne, o problema passa a ser como explicar a existência do próprio universo e de várias de suas características, que parecem ser ou pressupostas pela atividade científica ou implicariam um aumento de complexidade inaceitável do arcabouço teórico científico para poderem ser explicadas. Em suma, além de uma boa resposta à rejeição humiana da crença em milagres[1], a filosofia da religião de Swinburne mostra que as objeções de Hume não são suficientes para rejeitar a possibilidade da teologia natural como parte de uma concepção metafísica geral racionalmente justificada. Na concepção de Swinburne, ao invés de se opor à atividade científica, a teoria geral acerca da realidade pressuposta nas religiões monoteístas, especialmente o cristianismo, pode ser tida como complemento à ciência, inclusive até justificável nos termos mais amplos do próprio raciocínio científico. Ao contrário do que pensava Hume, a concordância com a experiência imediata não é o único modo de

se justificar uma hipótese, pois, por vezes, várias teorias explicam os mesmos fenômenos mesmo nas ciências empíricas. O desenvolvimento da ciência moderna, que recorre constantemente a conceitos não observáveis, mostra ser inadequado impor como estrito limite do conhecimento aquilo que pode ser reduzido a uma observação direta, tal como propunha Hume (e, num certo sentido pelo menos, também Kant). Se for com base nesses limites inadequados do conhecimento que se deva rejeitar a possibilidade de justificação racional da crença em Deus, então não há por que aceitar essa rejeição. Por outro lado, Swinburne postula o teísmo como uma explicação pessoal (com base em crenças, poderes e intenções) para esses fenômenos que ou são grandes demais ou estranhos demais para as ciências naturais explicarem. Fenômenos que são supostos pela atividade científica (a existência de um universo e de ordem inteligível neste) ou que exigiriam uma explicação científica complexa demais (a existência de consciência ou de eventos como experiências religiosas) parecem ficar mais bem explicados pela ação intencional de um agente. E como Deus é um ser incorpóreo, caso exista, sua

intenção não é sequer explicável pela ação das leis naturais. O que se teria, nesse caso, é um tipo de explicação que não pode ser explicada de modo mais amplo, não cabendo perguntar: “e o que fez surgir Deus?”, uma vez que ele é postulado como onipotente, eterno, perfeitamente livre e fora do alcance da explicação científica.

3) Perspectivas para a Filosofia da Religião contemporânea É claro que o bayesianismo é apenas uma das interpretações possíveis do raciocínio científico e, como toda teoria interessante em filosofia, é criticado em suas pretensões.[2] Entretanto, a proposta de Swinburne mostra que não é assim tão claro que não se possa mais argumentar racionalmente em favor da existência de Deus em vista do tipo de raciocínio exemplificado pela ciência moderna, como teriam dito Hume e Kant. A relação entre ciência moderna e religião cristã é mais

complexa do que a tese popular do conflito, como mostram autores como John Brooke (1991) e R. Hooykaas (1972), por exemplo. Casos de diálogo e colaboração são também notáveis e frequentes. A filosofia da religião de Richard Swinburne contribui para restabelecer a credibilidade epistêmica da crença religiosa cristã mostrando que ela pode ser reconstruída e argumentada em termos de padrões de raciocínio científico moderno. Abre-se, então, a perspectiva de lidar com crenças religiosas não apenas como referências para a ação e como sentido existencial em termos subjetivos, tal como parece ser a concepção predominante entre os filósofos do século XVIII em diante. Juntamente com outros pensadores importantes da chamada filosofia analítica da religião, Swinburne ajuda a estabelecer uma instigante linha de pesquisa, que vê a crença religiosa em termos realistas e racionais.[3] Em certo sentido, isso é algo que já havia sido feito anteriormente, por pensadores como Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Duns Scotus, mas que é proposto agora num tempo de enorme prestígio da pesquisa científica, nos termos mesmos dessa nova

forma de pensar. The Existence of God aqui traduzida para o português pode ser criticada de vários modos. Podese, por exemplo, rejeitar o dualismo explicativo que distingue explicação pessoal de explicação material ou científica. Mas, nesse caso, será preciso arcar com a dificuldade de lidar em termos naturais apenas com ações que parecem provir de decisão intencional. Pode-se questionar a noção de simplicidade e sua relevância para a avaliação comparativa de hipóteses explicativas, mas isso implicará oferecer um sentido para essa ideia que parece tão presente na história da ciência em momentos de se escolher a teoria mais provável. Pode-se também questionar a aplicação da noção de simplicidade e do esquema de raciocínio indutivo bayesiano ao problema da racionalidade da crença em Deus.[4] O importante de um bom texto filosófico não é trazer respostas que não possam ser questionadas, mas fazer pensar as questões de modo mais aprofundado e criativo. The Existence of God, agora traduzido para o português, tem tudo para dar essa contribuição para a filosofia brasileira.

— Dr. Agnaldo Cuoco Portugal Universidade de Brasília

Bibliografia BROOKE, John H. Science and Religion — Some historical perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. EARMAN, John. Hume’s Abject Failure. Oxford: Oxford University Press, 2000. HOWSON, Colin & URBACH, Peter. Scientific Reasoning: The Bayesian Approach — second edition. Chicago: Open Court, 1993. HUME, David. Enquiry Concerning Human Understanding. 3a. ed., Oxford: Clarendon, 1975 [1748]. HUME, David. Dialogues Concerning Natural Religion. Londres: Penguin, 1990 [1779]. HOOYKAAS, R. Religion and the Rise of

Modern Science. Edimburgh: Scottish Academic Press, 1972. (Tradução em português: A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Paulo/Brasília: Polis/Ed. UnB, 1988).

São

MAYO, Deborah. Error and the Growth of Experimental Knowledge. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1996. PORTUGAL, Agnaldo. Filosofia Analítica da Religião como Pensamento Pós-“Pós-Metafísico”. Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 80-98, jan./mar. 2010 PORTUGAL, Agnaldo. Como usar o Método Probabilístico na Discussão da Crença em Deus. Episteme (Porto Alegre), Porto Alegre, v. 18, p. 4155, 2004. SWINBURNE, Richard. Epistemic Justification. Oxford: Oxford University Press, 2001. SWINBURNE, Richard. The Existence of God —

Second Edition. Oxford: Clarendon, 2004. SWINBURNE, Richard. Faith and Reason — Second Edition. Oxford: Clarendon, 2005.

Prefácio à segunda edição A existência de Deus é o livro central dentre todos os que escrevi sobre filosofia da religião. Ele foi publicado originalmente em 1979. A “edição revista” foi publicada em 1991, mas a revisão consistiu meramente do acréscimo de dois apêndices; o texto principal permaneceu intacto. A presente revisão é muito mais substancial. Reescrevi minhas descrições, nos capítulos 6, 7 e 8 dos argumentos cosmológico e teleológico, incorporando neles o material dos apêndices de 1991, desenvolvendo o argumento a partir das leis da natureza com uma discussão da natureza dessas (dependente de um Capítulo 2 reescrito) e melhorando minha descrição do argumento da sintonia fina. Alterei o capítulo 9 em vista de meu trabalho subsequente acerca da consciência; e os Capítulos 10 e 11 em vista de meu trabalho subsequente acerca do problema do mal. Acrescentei três notas adicionais — uma para mostrar como os argumentos em favor da existência

de um Deus são compatíveis com a doutrina cristã da Trindade (Deus como “três pessoas de uma substância”), e duas discutindo recentes variações influentes do argumento do design. Rearranjei amplamente o material do Capítulo 12 a fim de tornar o argumento mais claro. Há também alterações menores em vários outros pontos do livro. No curso dessas várias alterações, conectei o que tenho a dizer com novos livros e artigos recentes importantes. Embora minhas visões acerca de muitos pequenos pontos envolvidos no argumento da primeira edição de A Existência de Deus tenham mudado, continuo convencido da correção de sua abordagem geral do tópico, e de sua conclusão resultante. Um estudioso diligente das edições anteriores detectará, contudo, uma simpatia ligeiramente maior pelo argumento do mal contra a existência de Deus, balanceada por uma confiança ligeiramente maior na força do argumento da consciência moral em favor da existência de Deus (e também considerável confiança na força de um argumento com base no milagre da Ressurreição de Jesus, ao qual, por razões de espaço, eu meramente aludo neste livro, mas em favor do qual argumentei

pormenorizadamente em meu livro The Ressurrection of God Incarnate (Clarendon Press, 2003). A primeira edição foi baseada em duas séries das Wilde Lectures apresentadas na Universidade de Oxford, no Hilary Term [período letivo entre janeiro e março] de 1976 e no Hilary Term de 1977; e em duas Forwood Lectures proferidas na Universidade de Liverpool em fevereiro de 1977. Sou grato àqueles que me escolheram originalmente para essas palestras e a todos os que me ajudaram posteriormente em meu entendimento dos problemas em discussões orais e em publicações críticas. Meus críticos são muitos e me deram muita ajuda. Sou grato aos editores e editoras dos respectivos periódicos pela permissão de reusar material que foi incorporado em edições anteriores destes artigos: “Whole and Part in Cosmological Arguments”, Philosophy, 44 (1969) 339-40; “The Argument from Design”, Philosophy, 43 (1968) 199-212; “The Argument from Design — A Defence”, Religious Studies, 8 (1972) 193-205; “The Problem of Evil”, in S. C. Brown (ed.),

Reason and Religion (Cornell University Press, 1977); “Natural Evil”, American Philosophical Quarterly, 15 (1978), 295-301; “Mackie, Induction, and God”, Religious Studies, 19 (1983), 385-91; “The Argument from the Fine-Tuning of the Universe”, in J. Leslie (ed.), Physical Cosmology and Philosophy (Collier MacMillan, 1990). Obrigado a editores e editoras pela permisssão de usar material mais recente dos seguintes artigos: “The Argument from Laws of Nature Reassessed”, in M. Stone (ed.), Reason, Faith and History: Essays in Honour of Paul Helm (Ashgate, 2004), “The Argument to God from Fine-Tuning Reassessed” in N. A. Manson (ed.), God and Design: The Teleological Argument and Modern Science (Routledge, 2003); “What is so Good about Having a Body?”, in T. W. Bartel (ed.), Comparative Theology (SPCK, 2003); e “Prior Probabilities in the Argument from Fine-Tuning”, que está para sair num suplemento da Faith and Philosophy. Obrigado à Oxford University Press pela permissão em reusar inteiramente no Capítulo 9 uma grande seção do meu livro mais curto Is There a God? (Oxford University Press, 1996); e, no

Capítulo 11, passagens de meu livro Providence and the Problem of Evil (Clarendon Press, 1998). E, finalmente, muito obrigado a Sarah Barker por sua digitação e redigitação paciente das muitas versões desta nova edição.

Introdução A existência de Deus é uma sequência de A coerência do teísmo [The Coherence of Theism], publicado originalmente em 1977. A coerência do teísmo discutiu o que significa dizer que Deus existe e se a afirmação de que Deus existe é internamente coerente. A existência de Deus discute se esta afirmação é verdadeira; está preocupado em avaliar o peso dos argumentos a partir da experiência em favor e contra esta afirmação e em chegar a uma conclusão quanto a se, num balanço final, os argumentos indicam que Deus existe ou que não existe. O presente livro assume que a afirmação de que Deus existe não é demonstrativamente incoerente (isto é, logicamente impossível), e assim que é adequado procurar por indícios de sua verdade ou falsidade. Para argumentos que justifiquem esse pressuposto, devo referir ao meu trabalho anterior. Contudo, não é de modo algum necessário para um leitor ter lido o trabalho anterior a fim de entender este; nem, com a exceção que se acabou de descrever, este trabalho pressupõe os

resultados do anterior. Os problemas discutidos em A existência de Deus são de uma preocupação mais geral que os discutidos em A coerência do teísmo. A maior parte das pessoas geralmente supôs que elas entendiam de algum modo muito vago o que queria dizer que Deus existia; e, na medida em que eles supunham que as palavras humanas eram apenas um guia imperfeito para o que era afirmado, que a afirmação não era demonstrativamente incoerente. Intensa discussão do sentido exato da afirmação e se é incoerente, tem sido primariamente a preocupação de teólogos e filósofos profissionais. Mas o que preocupa as pessoas comuns ao longo dos séculos é se os indícios da experiência humana mostram que a afirmação é verdadeira ou se é falsa. Esse problema é o tópico deste livro. O livro visa discutir esse tópico em profundidade e com rigor. O livro é escrito com a profunda convicção da possibilidade de se alcançar uma conclusão bastante bem justificada por argumento racional acerca desse problema, talvez o mais importante de todos os assuntos profundos que inquietam a mente humana. É uma convicção que foi explicitamente reconhecida pela vasta maioria dos filósofos cristãos

(e não cristãos) dos séculos treze ao dezoito e, creio eu, partilhada, embora discutida apenas brevemente, pela maioria dos filósofos cristãos (e não cristãos) do século primeiro ao doze. No século dezenove, porém, a teologia filosófica começou a sentir a poderosa influência cética de Hume e Kant. Esses filósofos apresentaram princípios que visavam mostrar que a razão não poderia nunca alcançar conclusões justificadas acerca de assuntos muito além do alcance da experiência imediata e, acima de tudo, que a razão nunca poderia alcançar uma conclusão justificada acerca da existência de Deus. Em anos recentes, muitos outros argumentaram no mesmo sentido, de modo que tanto entre os filósofos profissionais e fora de seu círculo restrito, há hoje profundo ceticismo quanto ao poder da razão de alcançar uma conclusão justificada acerca da existência de Deus. À medida que construo meus argumentos positivos, darei brevemente minhas razões para pensar que os princípios de Hume e Kant estão errados e que a razão pode alcançar conclusões justificadas fora dos limites estreitos delineados por estes filósofos. Aqueles que acreditam na capacidade

da ciência moderna de alcançar conclusões justificadas (e excitantes) acerca de coisas muito além da experiência imediata, como partículas subatômicas, e forças nucleares, o “Big Bang” e a evolução cósmica devem ser altamente simpáticos ao meu empreendimento; Hume e Kant não deveriam, com base em seus próprios princípios, ter tido uma atitude muito simpática em relação às afirmações da ciência física moderna. Eu defenderei, contudo, que embora a razão possa alcançar uma conclusão bastante bem justificada acerca da existência de Deus, ela pode chegar apenas a uma conclusão provável, não indubitável. Por essa razão, há espaço abundante para a fé na prática da religião e minha trilogia acerca da filosofia do teísmo termina com um volume sobre Fé e razão. Desenvolvimentos recentes em Filosofia que eu descreverei, especialmente desenvolvimentos em Lógica Indutiva, frequentemente chamada de Teoria da Confirmação, fornecem instrumentos de grande valor para a investigação de meu tópico. A teoria da confirmação envolve algum uso ocasional de símbolos. Eu introduzo esses símbolos no texto e

explico seu significado com a ajuda de exemplos. Não há necessidade, para qualquer leitor não familiarizado com esses símbolos, de temê-los. Meu uso da teoria da confirmação me permite expressar meus argumentos com o rigor apropriado a qualquer apresentação pormenorizada dos argumentos a favor e contra uma teoria em larga escala do universo e também me permite mostrar as fortes similaridades que existem entre teorias religiosas e teorias científicas de larga escala. Eu devo realmente, contudo, um pedido de desculpas, bem como uma explicação, para aqueles que acham difícil lidar com símbolos. Os símbolos não são frequentes e tomei o cuidado de exprimir em palavras também o argumento principal das passagens em que os símbolos ocorrem.

1. Argumentos Indutivos Um argumento começa com uma ou mais premissas, que são proposições tomadas como dadas para o propósito do argumento, e fundamentam uma conclusão. Um argumento é dedutivamente válido se é incoerente supor que suas premissas são verdadeiras, mas sua conclusão é falsa. Por exemplo, o argumento seguinte é dedutivamente válido: (Premissa 1) Nenhum corpo material anda mais rápido que a luz (Premissa 2) Meu carro é um corpo material (Conclusão) Meu carro não anda mais rápido que a luz

Num argumento dedutivo válido, as premissas tornam a conclusão certa. Há argumentos que não são dedutivamente válidos, mas nos quais as premissas em algum sentido “sustentam” ou “confirmam” ou “dão força” à conclusão, e alguns ou todos os argumentos deste tipo geral são com frequência caracterizados como argumentos

indutivos “bons” ou “corretos” ou “fortes”. Contudo, precisamos aqui distinguir cuidadosamente entre dois tipos diferentes de argumento. Há argumentos nos quais as premissas tornam a conclusão provável, ou seja, mais provável do que não, por exemplo:

P1: 70% dos habitantes de Bogside são católicos P2: Doherty é uma habitante de Bogside C: Doherty é católica

A conjunção das premissas faz a conclusão provável. Contudo, muitos argumentos que são chamados de argumentos indutivos “corretos” dificilmente deveriam ser encarados como tais. Tome o seguinte argumento:

P: Todos os 100 corvos observados em diferentes partes do mundo são pretos. C: Todos os corvos são pretos.

O modo normal de interpretar essa conclusão, no contexto de uma discussão de argumentos indutivos, é supor que ela é acerca de todos os corvos em todos os momentos do tempo e pontos do espaço — e, mesmo que você suponha que nada num planeta distante possa ser tido como um corvo, ela se refere a todos os corvos em todos os tempos na história da terra e em todos os lugares de sua superfície. Mas, quando a conclusão é interpretada deste modo, fica implausível supor que P torna C mais provável do que não. Pois não é improvável supor que a cor preta dos corvos observados advém de uma característica particular dos corvos modernos, uma característica particular de sua aparência que não esteja presente em corvos mais antigos. Supor que todos os corvos sejam sempre pretos parece ir muito além dos dados registrados em P. C pode, contudo, ser verdadeiro; e a maioria de nós supõe que P aumente a probabilidade de que ele seja verdadeiro, mas P não torna C provável. A maior parte dos argumentos dos cientistas a partir seus dados observacionais para embasar conclusões acerca de quais são as leis verdadeiras da

natureza ou predições sobre os resultados de experimentos ou observações futuras não são dedutivamente válidos, mas são, poder-se-ia concordar em geral, argumentos indutivos de um dos dois tipos acima (não quero dizer que eles tenham o padrão simples dos exemplos fáceis dados acima, mas apenas que eles são argumentos que têm as características definidoras de um dos dois tipos). As várias observações astronômicas feitas por Tycho Brahe, Kepler, Galileu e outros homens do século dezessete foram observações que favoreceram a teoria do movimento de Newton, no sentido de que elas a fizeram mais verossímil, mais provável, do que seria caso contrário. Os vários dados botânicos, geológicos e reprodutivos descritos por Charles Darwin na Origem das Espécies aumentaram a probabilidade de sua teoria da evolução das espécies animais pela seleção natural de variações. É uma questão interessante, à qual precisarei aludir num estágio posterior, se, num argumento científico típico a partir de vários dados de observação e de experimento para embasar uma conclusão acerca de quais são as leis fundamentais da física ou química, as premissas tornam a conclusão provável ou apenas

acrescentam-lhe probabilidade. Supõe-se normalmente que leis da natureza são generalizações que não apenas se mantêm em todos os tempos e lugares, mas que continuariam a valer sob circunstâncias não realizadas ou não realizáveis (por exemplo, como quer que os seres humanos interfiram no universo). A teoria do movimento de Newton consiste de suas três leis do movimento e de sua lei da atração gravitacional. Será que as várias observações do século dezessete tornaram mais provável do que não que sua teoria fosse verdadeira? Prefiro não emitir juízo sobre este assunto nesse momento. Contudo, com base no nosso modo normal de encarar esses assuntos, claramente dados observacionais tornam mais provável que não uma predição particular acerca do futuro. Todos os dados observacionais sobre o comportamento passado do sol, lua, planetas etc. tornam mais provável que não que a Terra continuará a girar em seu eixo pelas próximas vinte e quatro horas e, assim, que o sol aparecerá sobre a superfície da terra amanhã. Chamemos um argumento no qual as premissas tornam a conclusão provável, um

argumento correto P-indutivo. Chamemos um argumento no qual as premissas adicionam probabilidade à conclusão (ou seja, tornam a conclusão mais verossímil ou mais provável do que seria de outro modo) um argumento correto Cindutivo. Neste último caso, digamos que as premissas “confirmam” a conclusão. Dentre os argumentos corretos C-indutivos, alguns serão obviamente mais fortes que outros, no sentido de que em alguns as premissas aumentarão a probabilidade da conclusão mais do que elas o fazem em outros argumentos. A razão de um argumento é fazer com que as pessoas, na medida em que forem racionais, aceitem conclusões. Para esse propósito, não é suficiente que suas premissas devam em algum sentido tornar necessárias ou prováveis suas conclusões. É também necessário que as premissas sejam tidas como verdadeiras por aqueles que discutem acerca da conclusão. Há vários argumentos válidos em favor da existência de Deus que são bastante inúteis porque, embora suas premissas possam ser verdadeiras, elas não são tidas como verdadeiras por aqueles que debatem sobre religião,

por exemplo:

P1: Se a vida tem sentido, então Deus existe. P2: A vida tem sentido C: Deus existe

Este argumento é certamente válido. Se as premissas são verdadeiras, a conclusão deve ser verdadeira. As premissas podem ser verdadeiras, mas os ateus negariam ou a primeira premissa ou a segunda. Uma vez que as premissas não são de conhecimento comum entre aqueles que debatem sobre religião, elas não constituem uma boa plataforma de lançamento para este argumento. O que é claramente de interesse das pessoas numa época de ceticismo religioso são argumentos em favor da existência (ou não existência) de Deus nos quais as premissas sejam tidas como verdadeiras por pessoas de todas as persuasões teístas ou ateias. Eu, portanto, defino argumentos com base em premissas tidas como verdadeiras por aqueles que debatem acerca da conclusão que são argumentos dedutivamente válidos, P-indutivos corretos, ou C-

indutivos corretos, respectivamente como bons argumentos dedutivos, bons argumentos P-indutivos, e bons argumentos C-indutivos. Ao investigar argumentos a favor ou contra a existência de Deus, precisamos investigar se algum deles é um bom argumento de tipo dedutivo, P-indutivo ou Cindutivo. Tomo a proposição “Deus existe” (e a proposição equivalente “há um Deus”) como logicamente equivalente a “existe necessariamente uma pessoa[5] sem um corpo (isto é, um espírito) que necessariamente é eterno, perfeitamente livre, onipotente, onisciente, perfeitamente bom e o criador de todas as coisas”. Uso “Deus” como o nome da pessoa abrangida por esta descrição. Entendo por Deus ser eterno que Ele sempre existiu e sempre existirá. Há um entendimento alternativo de “eterno” na tradição cristã como “atemporal” ou “fora do tempo”. Este entendimento, contudo, não chegou à tradição cristã antes do século quarto a.C., é muito difícil entender o que ele queira dizer e, por razões que eu apresentei em outro lugar,[6] parece bastante desnecessário para o teísta carregar o fardo desse entendimento de eternidade. Por Deus ser

perfeitamente livre, entendo que nenhum objeto, evento ou estado (inclusive estados passados de si mesmo), de modo algum influencie causalmente suas ações apenas sua própria escolha no momento da ação determina o que ele faz. Por Deus ser onipotente, eu entendo que Ele é capaz de fazer tudo o que for logicamente possível (isto é, coerente supor) que ele possa fazer. Por Deus ser onisciente, entendo que ele saiba o que for logicamente possível que ele saiba. Por Deus ser perfeitamente bom, entendo que ele sempre faz a melhor ação em termos morais (quando há uma) e não faz nenhuma ação moralmente má. Por ele ser o criador de todas as coisas, entendo que tudo que existe em cada momento do tempo (a não ser ele mesmo) existe porque, naquele momento do tempo, ele faz existir ou permite que exista. O sentido desta afirmação de que existe um Deus será desenvolvida em um pouco mais de pormenor em certos momentos de capítulos posteriores, especialmente no capítulo 5.[7] A afirmação de que Deus existe é chamada de teísmo. O teísmo é, obviamente, a crença central dos credos do Cristianismo, Judaísmo e Islamismo. Ao longo da história humana, muitas pessoas

tomaram por dada a existência de Deus e muitas outras, sem dúvida, tomaram por dada a sua não existência. Eles não tinham razões conscientemente formuladas para suas crenças. Eles apenas acreditaram. Contudo, outros que acreditaram tinham razões para suas crenças. Do mesmo modo que se dá com a maioria das razões das pessoas para a maior parte de suas crenças, essas razões têm sido frequentemente vagas e incipientes. Às vezes, contudo, as pessoas formularam algumas de suas razões para crença numa forma clara e explícita. É então que temos algo claramente reconhecível como um argumento a favor ou contra a existência de Deus. Aqueles argumentos que têm sido frequentemente discutidos receberam nomes — e daí temos o “argumento cosmológico” ou “o argumento com base na experiência religiosa”. Existem outros argumentos que não foram discutidos com a frequência suficiente para receberem um nome. E as pessoas tiveram outras razões para crer ou descrer que nunca foram formuladas explicitamente o bastante para constituir um argumento. Ao longo deste livro, discutirei várias das

razões que as pessoas tiveram para acreditar na existência de Deus ou na não existência de Deus, algumas das quais já receberam uma forma suficientemente precisa para ser codificados em argumentos nomeados e outros que precisarão ser colocados numa forma clara. Discutirei apenas os argumentos nos quais as premissas relatem o que são (num sentido muito geral) características da experiência humana — por exemplo, verdades gerais evidentes acerca do mundo ou características da experiência humana privada. A tais argumentos, chamarei argumentos a posteriori. Eles afirmam que algo que os seres humanos experienciam é base para acreditar que Deus existe ou que Deus não existe. Não vou discutir argumentos a priori — estes são argumentos nos quais as premissas são verdades logicamente necessárias — nomeadamente, proposições que seriam verdadeiras houvesse ou não um mundo de seres físicos ou espirituais. Dentre as verdades logicamente necessárias estão verdades da Matemática ou da Lógica. Assim, não vou discutir o tradicional argumento ontológico[8] em favor da existência de Deus ou qualquer das variantes do mesmo. Tampouco discutirei argumentos contra a

existência de Deus que afirmem que há algo incoerente ou auto-contraditório na afirmação de que Deus existe. Penso que argumentos ontológicos para a existência de Deus são, na verdade, apenas argumentos de filósofos e não codificam qualquer das razões que as pessoas comuns têm para acreditar que Deus existe. Os maiores filósofos teístas da religião em geral rejeitaram argumentos ontológicos e se apoiaram em argumentos a posteriori.[9] Argumentos contra a existência de Deus que afirmam que o teísmo é incoerente, contudo, têm realmente, eu admito, uma base no pensamento das pessoas comuns. Não poderei, no entanto, obviamente discutir todas as razões a posteriori que as pessoas têm para acreditar que Deus existe ou não. Mas vou considerar aqueles, a meu ver, que são os mais plausíveis e foram os mais atraentes na história humana. Ao chegar a minha conclusão final acerca de quão provável é a tese de que Deus existe, vou assumir que nenhum argumento a priori de qualquer espécie[10] e nenhum a posteriori diferente dos que eu discuto têm qualquer força significativa. Embora meu tema sejam os argumentos a

favor e contra a existência de Deus, parecerá que eu me concentro nos argumentos a favor da existência de Deus. Eu, de fato, discuto num capítulo à parte o principal argumento contra a existência de Deus — o argumento do mal, que afirma que a existência de dor e sofrimento no mundo mostra que não há um ser perfeitamente bom e todo poderoso. Contudo, à exceção daquele argumento (e o argumento do ocultamento, a ele associado, que eu também discuto ali), a principal razão que os ateus têm para acreditar que Deus não existe tem sido sua afirmação de que não há indícios suficientes, que os argumentos teístas não tornam a existência de Deus provável em qualquer grau significativo. Os argumentos ateus, à exceção do argumento do mal, têm sido em grande parte na forma de críticas dos argumentos teístas. Eu, portanto, discuto tais argumentos no curso da discussão de cada um dos principais argumentos em favor da existência de Deus. Ao discutir argumentos em favor da existência de Deus, vou considerar formas do argumento cosmológico e teleológico, o argumento com base na existência de consciência, o argumento moral, argumentos com base no milagre e na revelação e o

argumento a partir da experiência religiosa. Um argumento cosmológico sustenta que o fato de que existe um universo precisa de explicação e que a tese de que Deus o fez e o mantém existindo explica sua existência. Um argumento do design sustenta que o fato de que há um design no mundo precisa de explicação e que a ação de Deus dá essa explicação. Há várias formas de argumento do design, de acordo com o tipo de design ao qual ele chame atenção. Eu discuto dois diferentes gêneros do argumento sob o título “argumentos teleológicos” e “o argumento da providência” e diferentes espécies de cada gênero. O argumento a partir da existência de consciência sustenta que o fato de que há seres conscientes é misterioso e inexplicável a não ser pela ação de Deus. Argumentos do milagre e da revelação citam vários fenômenos públicos ao longo da história humana como indícios da existência e atividade de Deus. O argumento da experiência religiosa afirma que várias experiências privadas são experiências de Deus e assim mostram sua existência. Alguns dos problemas que eu discuto são tratados em mais profundidade em outros trabalhos; mas a discussão neste livro é, espero eu, adequada

— dados os limites impostos pela dimensão do livro — para sustentar as conclusões extraídas aqui. Por exemplo, eu discuti o problema do mal em um livro inteiramente dedicado ao assunto: Providence and the Problem of Evil;[11] mas espero que a discussão dele nos capítulos 10 e 11 do presente livro seja suficiente para tornar plausível que o tipo e quantidade de mal que encontramos na Terra não conte significativamente contra a existência de Deus. Há, porém, um aspecto no qual minha discussão neste livro é manifestamente incompleta. Quando eu discuto argumentos dos milagres, tenho espaço apenas para discutir quais fenômenos públicos estranhos (por exemplo, um homem morto voltando a viver), se eles ocorressem, seriam indícios da existência de Deus, mas eu não tenho espaço para discutir os dados históricos a favor e contra a ocorrência de fenômenos públicos particulares. Assim, efetivamente, eu discuto aqui apenas a forma de um argumento que precisa ser preenchido com material histórico pormenorizado.[12] Kant propôs uma classificação em três tipos dos argumentos em favor da existência de Deus que teve uma influência permanente e, a meu ver, longe

de benéfica, sobre a subsequente discussão deste tópico. Ele escreveu: Há apenas três modos possíveis de provar a existência de Deus por meio da razão especulativa. Todos os caminhos que levam a esse objetivo começam ou com uma experiência determinada e a constituição específica do mundo dos sentidos tal como conhecido por eles e ascendem a partir daí, de acordo com as leis da causalidade, para a causa suprema fora do mundo; ou eles começam de uma experiência puramente indeterminada, a experiência da existência em geral; ou, finalmente, eles abstraem de toda experiência e argumentam completamente a priori, com base em simples conceitos, em favor da existência de uma causa suprema. A primeira prova é a físico-teológica, a segunda, a cosmológica, a terceira, a ontológica. Não há nem pode haver outras.[13]

A distinção é feita em termos da natureza das premissas. Ou se começa de uma verdade conceitual — em cujo caso se tem um argumento ontológico; ou da “existência em geral” — em cujo caso se tem o argumento cosmológico; ou dos pormenores do que Kant chama “experiência determinada”, como as coisas são no mundo — em cujo caso se tem o argumento “físico-teológico”. Minha razão para defender que essa doutrina

de Kant teve uma influência longe de benéfica na discussão deste assunto é que, por seu uso da palavra “o”, Kant tende a assumir que pode haver apenas um argumento de cada tipo — enquanto que, de fato, pode haver claramente muitos diferentes argumentos sob cada um daqueles títulos que são tão diferentes uns dos outros que seria enganoso chamá-los sequer de formas do mesmo argumento. Não há, por exemplo, razão nenhuma para supor que todos os argumentos a partir de como as coisas são no mundo precisam ter a mesma forma do argumento que Kant chama de “físico-teológico” e foi chamado em outro lugar de argumento do design. Este último argumento pode, por sua vez, ter várias formas. Posso argumentar, por exemplo, a partir do comportamento regular dos objetos no mundo codificado nas leis da natureza ou a partir da pronta disponibilidade no mundo das coisas que os homens e os animais precisam para sobreviver. Em ambos os casos, há um argumento a partir de uma ordem bem geral na natureza. Mas há argumentos também, como notamos, a partir de milagres particulares, a partir do desenvolvimento da história humana ou a partir de experiências religiosas

particulares. Pode ser que nenhum desses sejam particularmente bons argumentos, mas eles merecem ser considerados em seus méritos próprios — a classificação de Kant obscurece a existência deles. Sendo assim, consideraremos o valor de vários argumentos a posteriori e não de apenas de dois, como listados por Kant. Quando tivermos nossos argumentos numa forma clara, precisaremos perguntar: eles são bons argumentos dedutivos ou bons argumentos P-indutivos ou bons argumentos C-indutivos? Às vezes, os proponentes de tais argumentos não são claros se pretendiam que estes fossem dedutivos ou indutivos, quanto mais que tipo de argumento indutivo eles deveriam ser. Uma característica desafortunada da filosofia da religião recente tem sido a tendência de tratar os argumentos em favor da existência de Deus de forma isolada uns dos outros. Certamente, não pode haver objeção em considerar cada argumento inicialmente de forma isolada em relação aos outros, para fins de simplicidade da exposição. Mas claramente os argumentos podem dar sustento uns aos outros ou, alternativamente, enfraquecer uns aos outros e precisamos considerar se isso se dá ou não.

Às vezes, contudo, os filósofos consideram os argumentos para a existência de Deus de forma isolada uns dos outros da seguinte forma: o argumento cosmológico não prova a conclusão, o argumento teleológico não prova a conclusão, etc., etc., portanto, os argumentos não provam a conclusão. Mas essa técnica de “dividir para governar” com os argumentos é inadmissível. Mesmo se o único tipo de bom argumento fosse um argumento dedutivo válido a partir de premissas tidas como verdadeiras, isso seria inadmissível. Um argumento de p para r pode ser inválido, um outro de q para r pode ser inválido. Mas se você puser os dois juntos, você pode muito bem obter um argumento dedutivo válido; o argumento de p e q para r pode ser válido. O argumento de “todo estudante tem cabelo comprido” para “Smith tem o cabelo comprido” é inválido e também o é o argumento de “Smith é um estudante” para “Smith tem o cabelo comprido”; mas o argumento de “todo estudante tem o cabelo comprido e Smith é estudante” para “Smith tem o cabelo comprido” é válido. Que os argumentos possam dar apoio e

enfraquecer uns aos outros é ainda mais evidente quando estamos lidando com argumentos indutivos. Que Smith tenha sangue em suas mãos dificilmente tornará provável que Smith assassinou a Sra. Jones, tampouco (por si mesmo) o fato de que Smith tinha a ganhar com a morte da Sra. Jones, tampouco (por si mesmo) o fato de que Smith estava perto da cena do assassinato na hora em que ele foi cometido, mas todos esses acontecimentos juntos (talvez junto com outros fenômenos também) podem com certeza tornar a conclusão provável.[14] A fim de levar em conta o efeito cumulativo dos argumentos, vou considerá-los, então, um a um, começando com o argumento cosmológico e incluindo os argumentos do mal e do ocultamento contra a existência de Deus, e perguntando o quanto as premissas de cada argumento acrescentam ou subtraem à força dos argumentos anteriores. Para adiantar algumas de minhas conclusões, defenderei que (nem separadamente, nem em conjunção) nenhum dos argumentos que considero a favor ou contra a existência de Deus são bons argumentos dedutivos. Há, é claro, como indiquei, argumentos dedutivos válidos sobre a existência de Deus, mas

eles começam com premissas que estão longe de serem aceitas em geral. Por outro lado, defenderei que a maior parte dos argumentos (tomados separadamente e em conjunto) em favor da existência de Deus são bons argumentos C-indutivos — ou seja, suas premissas tornam mais provável (ou verossímil) que Deus existe do que seria de outro modo. Alguns desses argumentos, é claro, confirmam a existência de Deus muito mais fortemente do que outros. Admitirei que o argumento com base no mal contra a existência de Deus é um bom argumento C-indutivo de força muito limitada. Afirmarei que o argumento do ocultamento em favor da não existência de Deus não é um bom argumento C-indutivo. O problema crucial, contudo, é se todos os argumentos tomados em conjunto tornam provável que Deus existe, se o balanço de todos os indícios relevantes favorece a afirmação do teísmo ou não. Isso porque, certamente, na medida em que a probabilidade de uma hipótese é relevante quanto a se devemos ou não agir em função dela, devemos agir em função de uma hipótese na medida em que esta for mais provável em vista de todos os indícios disponíveis

para nós — tudo o que sabemos sobre o mundo, não apenas uma parte limitada de conhecimento. A pessoa religiosa afirma que seu ponto de vista religioso dá sentido à totalidade de sua experiência; e seu rival ateu pode fazer uma afirmação similar. No capítulo final, chegarei a uma conclusão quanto a se o cômputo de todos os indícios relevantes favorece ou não o teísmo. Serei bastante breve ao rejeitar as sugestões de que qualquer dos argumentos separadamente ou todos os argumentos tomados em conjunto constituem um bom argumento dedutivo. Serei bastante breve porque muitos outros filósofos devotaram suas habilidades técnicas a essa tarefa e relativamente poucos deles hoje aceitariam que há bons argumentos dedutivos para se encontrar aqui. Devotarei a maior parte do meu tempo à avaliação da força indutiva desses argumentos. Considerarei de cada argumento se é um bom argumento Cindutivo, mas apenas quando nós tivermos todos os argumentos é que vou perguntar se, tomados em conjunto, eles perfazem um bom argumento Pindutivo. Procedo dessa maneira porque, como ficará manifesto, é muito mais fácil ver quando temos um bom argumento C-indutivo do que

quando temos um bom argumento P-indutivo. É útil introduzir neste momento os símbolos da teoria da confirmação que usarei de tempos em tempos nos capítulos seguintes. Represento proposições por letras minúsculas como e, h, p e q. P(p/q) representa a probabilidade de p dado q. Assim, p pode representar a proposição “o próximo lançamento desta moeda vai dar cara” e q pode representar a proposição “505 dos últimos 1000 lançamentos desta moeda deram cara”. Assim P(p/q) representa a probabilidade de que o próximo lançamento da moeda vai dar cara dado que 505 dos últimos 1000 lançamentos deram cara (o valor de P(p/q), então, seria supostamente 0,505). Contudo, a relação entre p e q pode ser de um tipo muito mais complexo, e certamente nós normalmente avaliamos a probabilidade de afirmações em vista de indícios de modo diferente ou adicional ao da análise de frequências relativas. p pode ser alguma hipótese científica — digamos, a Teoria da Relatividade Geral de Einstein — e q pode ser a conjunção de todos os relatos de indícios da observação e experimentos relevantes para a teoria que os cientistas recolheram. Assim, P(p/q) representa a

probabilidade indutiva da Teoria Geral de Einstein dados todos os relatos de observações e experimentos relevantes. A probabilidade indutiva deve, assim, ser distinguida da probabilidade estatística, que é uma propriedade de classes de coisas (por exemplo, os habitantes de uma cidade, digamos Tunbridge Wells) e é uma medida da proporção das coisas na classe que tenham alguma outra propriedade (por exemplo, ter votado nos Conservadores nas eleições de 2001). A probabilidade de um habitante de Tunbridge Wells ter votado nos Conservadores em 2001 é simplesmente a proporção dos habitantes de Tunbridge Wells que votaram nos Conservadores em 2001 (em português, o artigo indefinido — por exemplo, “a probabilidade de um habitante…” — em geral indica que a probabilidade é estatística). As classes podem ser de coisas reais (por exemplos, os habitantes de Tunbridge Wells) ou de coisas hipotéticas, coisas que poderiam ser geradas por certo processo (por exemplo, os lançamentos de uma moeda, se se fosse lançá-la por um tempo muito longo). Probabilidade indutiva também deve ser

distinguida de probabilidade física. A probabilidade física ou natural de um evento (e também a proporção que a registra) é uma questão da medida em que, num tempo anterior, o evento era predeterminado por suas causas. Um evento cuja ocorrência é inevitável dado o estado precedente do mundo tem uma probabilidade física de 1 — sua ocorrência é fisicamente necessária; e um evento cuja não ocorrência é inevitável dado o estado precedente do mundo tem uma probabilidade física de 0 — sua ocorrência é fisicamente impossível. Um evento tem probabilidade física entre 1 e 0 se não é predeterminado que ele vá ou não acontecer, mas o estado precedente do mundo tende a favorecer seu acontecimento na proporção medida pelo valor da probabilidade: valores maiores de probabilidade indicam uma tendência maior em favor de seu acontecimento.[15] Probabilidades físicas e estatísticas podem por si mesmas constituir indícios que tornam alguma hipótese indutivamente provável; ou outro indício pode tornar provável indutivamente que elas tenham um certo valor. Minha preocupação com probabilidade indutiva é uma preocupação com o quão provável q

torna p, independentemente de quem está fazendo o cálculo, quão esperto ele é e do seu grau de confiança na força confirmatória de q. Certamente, na ciência e na história e em todas as investigações empíricas pensamos que há modos corretos de avaliar se e (dentro de limites imperfeitos) o quanto certos indícios sustentam uma hipótese. Estabelecerei esses critérios no capítulo 3. A fim de enfatizar o caráter objetivo do valor de P(p/q) com o qual estou preocupado e de distingui-lo de medidas de apoio confirmatório que medem os graus de confiança dos sujeitos ou são em parte funções das habilidades dos sujeitos de encontrar a medida verdadeira do apoio confirmatório,[16] chamarei no futuro P(p/q) a probabilidade lógica de p dado q. Esta é claramente uma questão a priori. Se q representa todos os indícios relevantes, o valor de P(p/q) não pode depender de indícios posteriores — ela mede o que mostram os indícios que você já tem. É uma questão a posteriori se, em 1000 lançamentos, 505 deram cara; mas é uma questão a priori se esses fatos dão uma probabilidade de 0,505 para que o próximo lançamento dê cara. Uma hipótese sob investigação é geralmente

representada por h. Assim P(h/e&k) representa a probabilidade de uma hipótese h dados os indícios (e&k).[17] É frequentemente útil dividir os dados disponíveis a um observador em duas partes — novos dados e dados de fundo; se se faz isso, o primeiro é geralmente representado por e e o último por k. Dados de fundo (ou conhecimento de fundo, como é às vezes chamado) é o conhecimento que tomamos por certo antes que novos dados apareçam. Assim, suponha que detetives estejam investigando um assassinato. h poderia representar a hipótese de que Jones cometeu o assassinato; e poderia representar a proposição que relata todos os dados novos que os detetives descobrem — por exemplo, que as impressões digitais de Jones foram encontradas na arma, que ele estava perto da cena do assassinato na hora em que esse foi cometido, etc., etc. k poderia representar a proposição que relata o conhecimento geral dos detetives acerca de como o mundo funciona — por exemplo, que cada pessoa tem um único conjunto de impressões digitais, que as pessoas que tocam metal e madeira com suas mãos nuas usualmente deixam suas impressões digitais neles, etc., etc. Assim, P(h/e&k)

representa a probabilidade de que Jones cometeu o assassinato, considerando-se todos os dados dos detetives. Para toda proposição p e q P(p/q)=1 se (e somente se) q torna p certa — por exemplo, se q acarreta p (ou seja, há um argumento dedutivamente válido de q para p); e P(p/q)=0 se (e somente se) q torna ~p certa — por exemplo, se p acarreta ~p.[18] P(p/q)+P(~p/q)=1. Assim, se P(p/q)>1/2, então P(p/q)>P(~p/q) e é mais provável p do que ~p, considerando-se q. Assim, (para um conhecimento de fundo k), um argumento de e para h será um argumento C-indutivo correto se (e somente se) P(h/e&k)>P(h/k) e um argumento P-indutivo correto se (e somente se) P(h/e&k)>1/2. A divisão entre dados novos e dados de fundo pode ser feita onde quer que você queira — frequentemente é conveniente incluir todos os dados derivados da experiência em e e tomar k como sendo o que é chamado em teoria da confirmação meros “dados tautológicos”, ou seja, efetivamente, todos os nossos outros conhecimentos que são irrelevantes. Minha estratégia será como se segue. Considere h como nossa hipótese — “Deus existe”.

Considere e1, e2, e3 e assim por diante, as várias proposições que se propõem como indícios a favor ou contra a sua existência, cuja conjunção constitui e. Considere e1 como “existe um universo físico”. Então, temos o argumento de e1 para h, um argumento cosmológico. Ao considerar este argumento, assumirei que não temos outro indício relevante e assim, k será mero indício tautológico. Assim, P(h/e1&k) representa a probabilidade de que Deus existe dado que existe um universo físico e dados também meros indícios tautológicos, que poderão mais tarde ser ignorados. Se P(h/e1&k)>1/2, então o argumento de e1 para h será um bom argumento P-indutivo. Se P(h/e1&k)>P(h/k), então o argumento é um bom argumento C-indutivo. Mas, quando considerar o segundo argumento, a partir de e2 (que será a conformidade do universo à ordem temporal), usarei k para representar a premissa do primeiro argumento e1; e assim P(h/e2&k) representará a probabilidade de que Deus exista dado que existe um universo físico e que este está sujeito a ordem temporal. E, quando considerar o terceiro argumento, a partir de

e3, k representará a premissa do segundo argumento (e1 & e2) e assim por diante. Deste modo, todo indício relevante será no fim das contas incluído em nossa avaliação. Considerarei onze argumentos. Vou afirmar que para a maior parte desses en, onde n= 1, …11, P(h/en&k)>P(h/k) — quer dizer, o argumento é um bom argumento C-indutivo em favor da existência de Deus, que dois dos argumentos (um a favor e outro contra) não têm força (P(h/en&k)=P(h/k) nesses casos) e que um argumento contra tem força (P(h/en&k)1/2. Ao usar os símbolos da teoria da confirmação, não assumo que uma expressão da forma P(p/q) tenha sempre um valor numérico exato. Ela pode simplesmente ter relações de maior ou menor valor em relação a outras probabilidades, incluindo algumas com valor numérico, sem que ela mesma tenha um valor numérico. P(h/e1&k), por exemplo, pode ser maior que P(h/e2&k) e menor que que P(h/k) e menor que ½ sem que haja algum número ao qual equivalha. Claramente, por

exemplo, podemos julgar uma teoria científica como mais provável do que uma outra com base nos mesmos dados e ao mesmo tempo negar que sua probabilidade tenha um valor numérico exato; ou podemos julgar que uma predição seja mais provável que não e assim ter uma probabilidade maior que ½, enquanto negamos, novamente, que aquela probabilidade tenha um valor numérico exato. Algumas vezes se diz que os diferentes argumentos em favor da existência de Deus mostram coisas diferentes. O argumento cosmológico mostra no máximo a existência de algum tipo de ser necessário; o argumento do desígnio mostra no máximo, algum tipo de superarquiteto[19]; o argumento dos milagres mostra no máximo algum tipo de fantasma — então o que elas têm em comum? Essa objeção toma as coisas pelo avesso. Não há apenas uma coisa que as premissas mostram. Num argumento dedutivo, há muitas conclusões diferentes que podem ser tiradas de um conjunto de premissas. E em argumentos indutivos, as premissas sustentam diferentes conclusões com diferentes graus de força.

O que “há uma marca com a forma de um pé humano na areia” mostra? Mostra, em diferentes graus de força, muitas coisas — que a areia é moldável, que alguma criatura esteve na areia, que um homem caminhou na areia. O indício torna provável as diferentes proposições em diferentes graus. Nossa preocupação é com o efeito dos vários indícios sobre a proposição na qual estamos interessados — “Deus existe”. Será que cada uma a confirma (quer dizer, aumenta sua probabilidade)? Isso a torna provável? Nossa preocupação é com os vários indícios en (incluindo qualquer k) e com h=“Deus existe” com o valor de P(h/en). Isso pode bem ser para algum en menos que o valor de alguma outra proposição interessante h1, digamos, “há uma causa impessoal do universo”, de P(h1/en). Quer dizer, en pode tornar h1 mais provável do o faz com h. Contudo, mesmo que P(h1/en)>P(h/e1), não se segue certamente que P(h1/e1… e7)> P(h/e1... e7)[F]. Ou seja, “Deus existe” pode obter como acréscimo apenas uma pequena probabilidade de e1, uma pequena de e2, uma pequena de e3, e assim por diante. Para cada e1, e2, e3, pode haver alguma outra

proposição h1, h2, h3, que, em algum sentido é uma rival de “Deus existe” para a qual P(hn/en)>P(h/en); no entanto, com base na totalidade dos indícios, h pode ser mais provável qualquer um de seus rivais. Uma situação similar normalmente ocorre com qualquer teoria científica ou histórica de longo alcance. Cada indício em separado não torna a teoria muito provável e, na verdade, tomado em si mesmo pode tornar alguma teoria mais limitada muito mais provável. Mas a força cumulativa dos indícios tomados em conjunto confere grande probabilidade para a teoria ampla. Assim, cada um dos vários indícios que foram citados como dados em favor da Teoria da Relatividade Geral não a faz muito provável, mas em conjunto eles realmente a dão um bom grau de probabilidade. Cada um sozinho (dado o conhecimento geral de fundo disponível no começo do século vinte) era indício em favor de alguma hipótese rival embora muito menos abrangente que a Teoria Geral da Relatividade. Assim, o movimento do periélio de Mercúrio tomado em si mesmo sugeriria que havia um planeta desconhecido até então orbitando entre Mercúrio e o sol ou que o sol teria uma forma incomum ao invés

de sugerir que a Relatividade Geral era verdadeira. Tomado em si mesmo, ele não conferiria muita probabilidade à Relatividade Geral, mas considerado junto com outros indícios, ele realmente dava sua contribuição na fundamentação desta última. É nesse sentido que o teísta pode responder a acusação de que um argumento como o cosmológico não demonstra a existência do Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Não por si mesmo, ele pode responder, mas o argumento cosmológico faz sua pequena parte junto com alguns outros muito diferentes que dão sua pequena contribuição, para chegar a essa conclusão. Note que não é uma objeção para um argumento P-indutivo ou C-indutivo de e para h que alguma hipótese contrária h seja também compatível com e, como alguns autores em filosofia da religião parecem pensar. Eles parecem pensar que se, por exemplo, a ordem do universo é compatível com “Deus não existe”, então não há um bom argumento com base nela para “Deus existe”. Mas basta que se pense sobre o assunto para se dar conta de que isso não é assim. Em qualquer argumento não dedutivo de e para h, nãoh será compatível com e; e ainda assim, alguns argumentos não dedutivos

serão bons argumentos. Note também uma outra característica interessante de bons argumentos C-indutivos. Em tais argumentos P(h/e&k)>P(h/k). Pode também ser o caso para alguma hipótese contrária h que haja um bom argumento C-indutivo com base em e, ou seja, que também P(h /e&k)>P(h*/k). O fato de que certo indício confirma uma hipótese não significa que não confirme também uma hipótese rival. Novamente, isso deveria ser imediatamente claro para quem pensa nisso. Suponha que um detetive tenha um conjunto de informações de fundo k de que ou Smith, ou Brown ou Robinson cometeram o crime e que só um deles o fez. Então, surge o indício e de que Robinson estava em outro lugar na hora em que o crime foi cometido. e acrescenta probabilidade à hipótese de que Brown cometeu o crime, mas também à probabilidade de que Smith o fez. Apesar disto, às vezes se leem autores em filosofia da religião descartando qualquer consideração que seja aduzida como indício em favor da existência de Deus, com base no fato de que ela sustenta uma hipótese rival igualmente bem. Assim, nossa tarefa será avaliar o valor de

diferentes argumentos quanto à conclusão “Deus existe”. Como vamos fazer isso? No caso de argumentos dedutivos, os filósofos têm uma ideia relativamente clara de o que torna válido um argumento e assim estão em condição de examinar vários argumentos e ver se eles são válidos. Mas nossa preocupação principal vai ser com argumentos indutivos. Como faremos para avaliar a probabilidade de “Deus existe” com base em diferentes tipos de indício? Para fazê-lo, precisaremos saber com que conteúdos de p e q P(p/q) se torna alto ou baixo. Afortunadamente, contudo, não há necessidade de realizar qualquer exame muito geral desta questão. Isso é porque todos os argumentos a posteriori em favor da existência de Deus têm uma característica comum. Eles todos se propõem a serem argumentos de uma explicação (causal) dos fenômenos descritos nas premissas em termos da ação de um agente que causou intencionalmente aqueles fenômenos. Um argumento cosmológico vai da existência do mundo para uma pessoa, Deus, que intencionalmente o causou. Um argumento do design vai do desígnio do mundo para uma pessoa, Deus, que

intencionalmente o fez assim. Todos os outros argumentos são argumentos que vão de características particulares do mundo para um Deus que fez intencionalmente o mundo com aquelas características. Nem todos os argumentos indutivos são argumentos para uma explicação. Quando argumentamos do fato de que o sol surgiu em intervalos de aproximadamente vinte e quatro horas ao longo dos últimos muitos milhares de anos em favor da afirmação de que ele vai surgir amanhã, não estamos argumentando para uma explicação. Seu surgimento amanhã não explica seu surgimento prévio. Porém, quando o geólogo argumenta a partir de várias deformações para a ocorrência de um terremoto milhões de anos atrás, ele está argumentando para uma explicação; ele está argumentando a partir de fenômenos para um evento que causou outros fenômenos. Contudo, nem todos os argumentos para uma explicação são argumentos com base na ação intencional de um agente. Uma ação intencional é uma ação que algum agente perfaz tencionando fazê-la. Portanto, é uma ação que o agente tem alguma razão ou propósito

para fazer — ou o propósito mínimo de fazê-la por si mesma ou algum propósito posterior que é promovido pela execução da ação. Uma vez que ele age por razões ou propósitos com base nos quais ele escolhe agir, podemos chamar um agente assim de racional. Pessoas são agente racionais;[20] mas elas não são as únicas — animais também perfazem ações intencionais frequentemente. Por outro lado, contudo, objetos inanimados e eventos não têm propósitos com base nos quais eles possam agir e que eles tentem realizar, e sim causam seus efeitos de modo não pensado. O argumento do geólogo das deformações para a ocorrência de um terremoto é um argumento para uma explicação das deformações, mas não um argumento para uma explicação em termos da ação intencional de um agente racional. Contudo, quando um detetive argumenta, das várias manchas de sangue nos objetos de madeira, das impressões digitais no metal, do cadáver de Smith no chão, do dinheiro que falta no cofre e de Jones ter muito dinheiro extra, para a tese de Jones ter matado intencionalmente Smith e roubado seu dinheiro, ele está argumentando para uma explicação dos vários fenômenos em termos da

ação intencional de um agente racional. Uma vez que pessoas são os casos paradigmáticos de agentes racionais, vou chamar a explicação em termos da ação intencional de um agente racional de explicação pessoal. No capítulo 2, vou analisar a natureza da explicação pessoal mais completamente e vou contrastá-la com o outro padrão aceito de explicação de fenômenos mundanos, que chamarei de explicação científica.[21] No capítulo 3, continuarei considerando quando é correto invocar uma explicação pessoal e quando é correto invocar uma explicação científica. Um problema crucial que surge ali é o de quando é razoável supor que os fenômenos têm realmente uma explicação (causal) e quando, por outro lado, é razoável supor que os fenômenos são apenas fatos brutos, coisas que explicam outras coisas, mas que não têm elas mesmas uma explicação. Esse problema de qual é o término adequado de uma explicação será discutido no capítulo 4. É um problema crucial para o teísmo, pois o teísta afirma que os vários fenômenos que constituem seus indícios — por exemplo, a existência do mundo e sua conformidade à ordem — precisam de explicação; e que a mesma é dada

pela ação de Deus, cuja existência e ação não precisam de explicação. Assim, o Capítulo 2 vai pôr em discussão a natureza das explicações teístas e os Capítulos 3 e 4 proporcionarão instrumentos essenciais para responder à questão de quando é correto invocá-las. Com esses instrumentos, estaremos então em condição de examinar em pormenor os argumentos teístas.

2. A natureza da explicação Considerações gerais Quando o teísta argumenta com base em fenômenos como a existência do universo ou alguma característica do universo em favor da existência de Deus, ele está argumentando, como vimos, em favor de uma explicação causal dos fenômenos em termos da ação intencional de uma pessoa. Explicação em termos da ação intencional de uma pessoa é o caso normal do que chamei de explicação pessoal. Damos uma explicação pessoal de eu estar em Londres pelo fato de eu ter vindo aqui dar uma conferência; ou da carta estar em cima da mesa pelo fato de minha esposa tê-la posto lá a fim de mandá-la pelo correio. Contudo, como vimos, nem todas as explicações são explicações pessoais. Outras explicações da ocorrência de fenômenos parecem ter uma estrutura comum distinta e essas eu chamo de explicações científicas. Este capítulo se ocupará da análise da estrutura desses dois tipos de explicação e o próximo

vai considerar quando cada uma deve ser invocada. Quando se diz que alguém deu uma explicação da ocorrência de algum fenômeno (ou seja, um evento ou um estado de coisas), isso é ambíguo. Isso pode significar que ele deu uma explicação verdadeira do fenômeno ou pode ser apenas que ele sugeriu uma explicação possível do fenômeno. Nosso interesse nas explicações é um interesse em explicações verdadeiras. O que é dar uma explicação verdadeira da ocorrência de um fenômeno E? É afirmar verdadeiramente o que (objeto ou evento) levou E a ocorrer (ou causou E) e por que ele foi eficaz. Explicar a ocorrência da maré alta é afirmar o que levou a maré a ocorrer — a lua, água e o resto da terra estando em tal e tal localização em tal e tal tempo e por que a lua, etc. teve aquele efeito — devido à lei de atração segundo o inverso do quadrado estar atuando entre todos os corpos. Podemos, então, detectar dois componentes da explicação de um fenômeno E — o “o quê” fez E acontecer e o “por quê” ele fez E acontecer. O “o quê” será o que chamarei alguns outros fatores independentes reais — outros eventos, processos, estados, objetos e suas propriedades em certos

momentos. Ao dizer que esses fatores são independentes, quero dizer que o “o quê” não é o mesmo evento ou processo que E nem parte dele; tampouco é um objeto que seja um participante em E no tempo em que E ocorre nem é um estado ou propriedade de E ou dos objetos que participam em E no momento em que E ocorre. Apenas algo diferente de E pode fazer E ocorrer. Ao dizer que os fatores são reais, quero dizer apenas que quaisquer eventos, processos e estados citados ocorreram; que qualquer objeto citado existiu e teve as propriedades citadas. Dizer que certos fatores A…D levaram a efeito E acarreta ao menos que cada um, nas condições de sua ocorrência, tornou mais fisicamente provável que E ocorresse, que influenciou a ocorrência de E. Normalmente, talvez, cada um dos fatores seja necessário, dada a ocorrência dos outros e o mundo sendo em outros aspectos o mesmo, para a ocorrência de E — ou seja, dada a ocorrência deles, E deve necessariamente ocorrer. Podemos chamar todos os fatores conjugados que constituem o “o quê” de a causa de E. Alternativamente ou mais usualmente,

distinguimos um fator como a “causa” de E (o efeito) e chamamos os outros de as condições que foram necessárias para a causa ter aquele efeito (ou ao menos feito fisicamente provável que tivesse o efeito); o que chamamos a causa é às vezes uma questão um tanto arbitrária. Normalmente, será o membro mais inesperado do conjunto de fatores ou aquele cuja ocorrência envolve a mudança mais profunda em relação ao estado prévio do mundo. Assim, suponha que alguém acenda um fósforo perto de gasolina a certa temperatura e certa pressão e que tudo isso produza uma explosão. Podemos descrever a ignição do fósforo e o fato de a gasolina estar naquela temperatura e pressão como sendo a causa conjunta da explosão. Mas seria mais natural descrever a ignição do fósforo como a causa da explosão e o fato de a gasolina estar naquela temperatura e pressão, as condições necessárias para a causa ter aquele efeito. Minha terminologia será como se segue. Chamarei o conjunto de fatores que foram conjuntamente suficientes para a ocorrência de um evento E uma causa plena de E. Qualquer membro de um conjunto de fatores que contribua para levar E a efeito eu chamarei de uma causa de

E. Estabelecer o “porquê” de uma explicação é dizer por que a causa, sob as condições especificadas, teve o efeito que teve. Nesse caso, pode ser citar a lei natural de que todos os eventos de certo tipo exemplificado pela causa leva a efeito eventos de um certo outro tipo exemplificado pelo efeito. Citar o “porquê” é citar o que eu chamarei de razão pela qual a causa sob as condições de sua ocorrência teve o efeito que teve. Estou, então, usando a palavra “razão” num sentido amplo, mas natural — num sentido mais amplo do que aquele em que a razão para algo é sempre a razão de alguém para levar esse algo a efeito. Ora, se há uma causa plena C de E e uma razão R que garante a eficácia de C, haverá o que eu chamarei de uma explicação plena de E, pois, dados R e C, não ficará nada sem ser explicado acerca da ocorrência de E. Neste caso, o “o quê” e o “por quê” conjuntamente vão acarretar dedutivamente a ocorrência de E. Mas se não há uma causa plena de E, (por exemplo, ocorrem fatores que facilitam a ocorrência de E, mas não a tornam necessária) ou não há uma razão que assegure que a causa tivesse o

efeito que teve, haverá, no máximo, o que chamarei de uma explicação parcial de E. Qualquer explicação envolvendo fatores ou razões que não tornem a ocorrência de E fisicamente necessária mas a fazem fisicamente mais provável do que teria sido de outro modo, eu chamarei de uma explicação parcial. Pode-se dar uma explicação parcial de E porque não há uma explicação plena de E. Alternativamente, pode ser o caso de que, mesmo quando existe uma explicação plena, as pessoas não estejam em posição de dá-la, mas mesmo assim alguma explicação elas podem dar — elas podem apresentar algumas das causas que constituem o “o que” e algumas das razões de sua eficácia. Nesse caso, elas estão dando uma explicação, mas apenas parcial. Além disso, é claro, as pessoas podem tomar por dados ou não estar interessadas em certos aspectos de uma definição plena e, por essa razão, dão apenas uma explicação parcial. Um geólogo interessado em história das formações geológicas pode explicar uma formação atual apresentando a história geológica dos estágios sucessivos de sua evolução. Ao apresentar essa história, ele pode não se interessar em citar as leis físico-químicas que são

responsáveis por um estágio suceder ao outro, simplesmente porque não está interessado nelas. Por essa razão, sua explicação é apenas parcial. O contexto com frequência determina que respostas para nossas questões sobre a “explicação” de alguns fenômenos vão nos satisfazer. Mas, enquanto em outros contextos de discussão nós podemos não precisar de explicações plenas mesmo quando elas estão disponíveis, nos contextos de discussão científica e metafísica é frequentemente de importância crucial saber se há uma explicação plena de algum fenômeno e qual é o seu caráter. Explicação científica Explicações têm diferentes padrões segundo diferentes tipos de causa e razão que figuram nelas. Explicações do tipo usado na ciência eu chamarei de explicações científicas. A descrição clássica da natureza da explicação científica é feita cuidadosamente por C. G. Hempel e P. Oppenheim e posteriormente defendida por Hempel.[22] Na descrição hempeliana, as causas são grupos de eventos (estados de coisas ou mudanças deles) C

conhecidos como “condições iniciais”, uma das quais nós podemos arbitrariamente selecionar como “a” causa. O “porquê” é um conjunto de leis naturais L. No caso normal, estas serão generalizações universais, tendo a forma “todo A é tal e tal” — por exemplo, “todo cobre posto em ácido nítrico dissolve sob tais e tais condições de temperatura e pressão”. C e L, então, explicam plenamente E, se E se segue dedutivamente deles. Explicamos uma determinada explosão pela ignição de certo volume de pólvora em certas condições de temperatura, pressão e umidade e a generalização de que, sob certas circunstâncias, pólvora acendida explode. Explicamos o fato de um determinado pedaço de papel de tornassol ficar vermelho pelo fato de este ter sido imerso em ácido e a generalização de que papel tornassol sempre fica vermelho quando é imerso em ácido. Explicações científicas sofisticadas invocam muitas leis ou generalizações e uma descrição completa de eventos prévios dos quais é uma consequência dedutiva um tanto remota que o evento ou estado a ser explicado ocorra. É uma consequência da Lei de Newton e do arranjo do sol e dos planetas milhares de anos atrás

que eles estejam nas posições que eles estão hoje e o anterior explica o fato deles estarem naquelas posições. Esse padrão normal de explicação científica é chamado por Hempel de explicação nomológicodedutiva ou explicação D-N — “dedutiva” porque E é deduzida de L e C e “nomológica”, do grego nomos, “lei”, porque leis estão envolvidas na explicação. Uma explicação D-N de um evento é uma explicação plena. Contudo, às vezes, a lei envolvida pode ser uma lei probabilística — ou seja, afirmar que “n por cento de A são B”, onde n é um intermediário entre 100 e 0. Pode ser uma lei da genética que “90 por cento dos filhos de tal e tal casal tenham olhos azuis” (ou “há uma probabilidade de 0,9 de um filho de tal e tal casal ter olhos azuis”. A probabilidade neste caso é uma probabilidade estatística). Em tais casos, de acordo com Hempel, uma lei L junto com condições iniciais C explicará E se L e C tornam altamente provável que E (a alta probabilidade é nesse caso uma probabilidade indutiva, uma medida do quanto os indícios sustentam uma hipótese, neste caso, de que E ocorra). Assim, se um indivíduo a é um filho do

casal citado, isso, junto com a lei sugerida acima, torna provável que a tenha olhos azuis; assim, defende Hempel, a lei e as condições iniciais conjuntamente explicam que a tenha olhos azuis. Contudo, a noção de que a probabilidade indutiva seja “alta” é muito vaga; e, plausivelmente, a lei e as condições iniciais podem dar algum tipo de explicação de um evento mesmo que a probabilidade não seja muito alta — desde que a lei e as condições iniciais tornem a ocorrência do evento mais provável do que ele seria em outro caso. Assim, seguindo outros[23], corrigirei a descrição de Hempel da explicação estatística como se segue: uma lei L e condições iniciais C explicam um evento E se eles fazem crescer a probabilidade da ocorrência de E. É claro que uma explicação que envolve leis probabilísticas é apenas uma explicação parcial. Há ainda algo não explicado quanto a por que as condições iniciais eram eficazes nessa ocasião. A ciência não explica apenas eventos particulares, mas pode também explicar leis. Se é uma consequência de L1 que, talvez, sob condições particulares C, L2 opere, então, L1 (junto com C) explica a operação de L2 (se a consequência é

dedutiva, a explicação é plena; se L1 apenas torna a operação de L2 provável, a explicação é apenas parcial). Leis mais fundamentais explicam a operação de leis menos fundamentais. Dada uma certa suposição acerca da constituição dos gases, as leis do movimento de Newton explicam a operação da lei Van der Waals sobre os gases. Diz-se com frequência que um conjunto de leis explica um outro também quando uma relação um pouquinho mais frouxa se dá. L1 (talvez com algum C) pode acarretar e tornar provável que aqueles fenômenos se dessem conforme predito por L2 — num alto grau de aproximação. Segue-se, então, que as leis verdadeiras da natureza no âmbito de L2 são muito pouco diferentes de L2, mas que L2 é uma aproximação muito grande delas. As leis do movimento de Newton têm a consequência de que, dada a distribuição do sol e dos planetas no espaço, as leis de Kepler do movimento planetário valerão num alto grau de aproximação. Seguirei o uso comum direi que em tais circunstâncias L2 opera num alto grau de aproximação e que L1 explica a operação de L2.

Hempel afirmou que a explicação que não parecia à primeira vista encaixar-se nesse padrão científico podia, na verdade, ser acomodada a ele bastante facilmente. Assim, usamos esse padrão científico de explicação não apenas quando fazemos ciência com algum grau de sofisticação, mas em muitas explicações cotidianas de acontecimentos. Explicamos o fato de o queijo ter ficado mofado por ter sido deixado num lugar quente por duas semanas e pela generalização de que quase sempre o queijo fica mofado dentro de duas semanas se ficar num lugar quente. Nossa explicação pode frequentemente tomar a forma de explicar algum fenômeno como levado a efeito, não por um evento, mas por um objeto. Podemos dizer que o fato de a janela ter quebrado foi levado a efeito por um tijolo, mas o que estamos dizendo aqui de modo enfático é que a quebra foi causada por um evento envolvendo o tijolo — por exemplo, seu movimento rápido; e essa redução ao padrão científico parece inicialmente plausível o bastante. Esta descrição, contudo, precisa de ampliação para se distinguir entre generalizações universais ou probabilísticas que são verdadeiras de

modo meramente acidental e verdadeiras leis da natureza que intuitivamente envolvem algum tipo de necessidade ou probabilidade física. Uma generalização universal “todo corvo é preto” e “isto é um corvo” não explicariam “isto é preto” a menos que a generalização fosse uma afirmação de que há algum tipo de conexão causal entre ser um corvo e ser preto — nomeadamente, que corvos devem ser pretos — por necessidade física. De modo semelhante, precisamos acrescentar que uma generalização estatística “n por cento de A são B” (uma probabilidade estatística de n/100 de um A ser B) não explica que um determinado A seja B a menos que afirme algum tipo de conexão causal entre ser A e ser B. Isso se dará se for afirmado que cada A tenha n/100 de probabilidade física de ser B. Por probabilidade física de um evento, cabe lembrar, quero dizer uma certa propensão ou tendência na natureza. Se a natureza for determinística, as únicas probabilidades físicas na natureza serão probabilidades de 1 (necessidade física) ou 0 (impossibilidade física). Mas, se houver certa quantia de indeterminismo na natureza, então há probabilidades físicas entre 1 e 0. Quando as

generalizações probabilísticas dizem respeito a estas, então podemos chamá-las leis probabilísticas — a maior parte dos intérpretes da Teoria Quântica, por exemplo, afirma que suas fórmulas básicas são leis fundamentais deste tipo. No último caso “n por cento de A são B” junto com “isto é um A” explicaria (parcialmente) “este A é um B” se ser um A tornasse fisicamente provável num grau n/100 que aquela coisa seria um B. Apenas assim haveria algum tipo de conexão causal entre ser A e ser B, a qual precisamos se formos explicar que um A é B por “n por cento de A são B”. Por outro lado, o fato de John votar nos Conservadores não deve ser explicado pelo fato de que seu nome aparece na página 591 da lista telefônica e que 70 por cento das pessoas nesta página votam nos Conservadores. Isso porque esta última generalização apenas afirma como as coisas são de fato; não deve ser entendida como dizendo que estar naquela página obriga as pessoas a votarem nos Conservadores. Chamarei a descrição de Hempel, corrigida quanto à explicação por leis probabilísticas no modo descrito e ampliada de um modo ou de outro de maneira a distinguir entre generalizações verdadeiras

e leis que envolvem necessidade ou probabilidade física, de “descrição hempeliana corrigida”. Mas o que esse modelo significa depende de como analisemos a noção de uma lei da natureza como também a de necessidade ou probabilidade física envolvida numa lei. Uma concepção, que se originou com Hume, é a visão da regularidade. Nessa visão, “leis da natureza” são apenas os modos pelos quais as coisas se comportam — comportaram-se, estão se comportando e se comportarão. “Todo cobre posto em ácido nítrico se dissolve sob tais e tais condições de temperatura e pressão” é uma lei da natureza verdadeira e universal se e somente se todos os pedaços de cobre, quando postos em ácido nítrico sob aquelas condições sempre se dissolveram, se dissolvem agora e vão se dissolver. “50 por cento de átomos de C14 decompõem-se em 5.600 anos” é uma lei estatística verdadeira se e somente se, tomando toda a história do universo, metade dos átomos de C14 se decompuseram em 5.600 anos. Contudo, nós realmente precisamos da distinção entre leis da natureza e generalizações acidentais que são verdadeiras meramente por acaso[24]. “Todas as

esferas de ouro têm menos de um quilômetro de diâmetro” pode ser uma generalização verdadeira, mas ela só vale em virtude do fato acidental de que nenhuma civilização em qualquer lugar do universo ter feito ou se propor a fazer qualquer esforço para construir uma esfera assim. A teoria da regularidade alcançou uma forma desenvolvida que tenta levar em conta esta distinção, no trabalho de David Lewis. Para Lewis, “regularidades ganham sua legalidade não de si mesmas, mas dos esforços conjuntos de um sistema no qual elas figuram ou como axiomas ou como teoremas”[25]. O melhor sistema é o sistema de regularidades que tem (relativamente aos seus rivais) a melhor combinação de força e simplicidade. Força é uma questão de o quão bem sucedido ele é em prever (ou seja, se torna prováveis muitos eventos reais, passados, presentes ou futuros — sejam observados ou não — e improváveis, muito poucos eventos reais); simplicidade é uma questão das regularidades se adequando umas às outras e, sem dúvida, tendo cada uma delas uma simplicidade interna de um modo que Lewis não esclarece, embora poderia sem dúvida tê-lo feito. As leis verdadeiras são as

regularidades do melhor sistema. Generalizações acidentais são as regularidades que não se encaixam em um sistema como esse. Elas flutuam frouxamente, sem serem deriváveis de regularidades mais fundamentais. Assim, “todas as esferas de ouro têm menos de um quilômetro de diâmetro”, mesmo se for verdadeira, provavelmente não é uma lei, pois não se segue do melhor sistema — como é evidenciado pelo fato de que ela certamente não se segue de nossa melhor aproximação atual do melhor sistema derradeiro — uma conjunção da Teoria da Relatividade e da Teoria Quântica. Algo parecido se dá com as leis probabilísticas — “90 por cento de A são B” seria uma lei da natureza se e somente se fosse uma consequência do melhor sistema de regularidades. Se (e somente se) ela se seguir de um melhor sistema assim é que um A em particular vai se seguir de um B em particular (e se se derem algumas dadas outras condições complicadas), então aquele A causa aquele B. A descrição de Lewis das leis da natureza é parte de sua campanha em nome da “superveniência humiana”, que tudo que há sobrevém (em termos lógicos) a “um vasto mosaico de questões locais de fato particular”, que ele

interpreta como um arranjo espaço-temporal de propriedades intrínsecas ou “qualidades”[26]. Leis da natureza e causação estão, para Lewis, entre as coisas que são supervenientes assim. Parece haver, contudo, objeções avassaladoras contra qualquer descrição humiana, inclusive a de Lewis, se se supõe que as leis da natureza explicam algo — e em particular quanto ao modo de explicar se e por que uma coisa causa a outra, como os humianos supõem que elas o fazem. Isso porque, dado que o fato de que alguma regularidade constitui uma lei depende, segundo esta descrição, não apenas do que aconteceu, mas do que acontecerá em todo o futuro da história do universo, segue-se que o fato de A causar B depende agora de toda aquela história futura. Contudo, como o que ainda está para acontecer (talvez em dois bilhões de anos) pode fazer ser o caso que A agora causa B e assim explique por que B acontece? Se A causa B é certamente uma questão de o que acontece agora e se o mundo termina em dois bilhões de anos não pode fazer qualquer diferença em relação a se A causa B agora. O que ainda está para acontecer não pode fazer qualquer diferença em relação a qual é a

verdadeira explicação de por que B ocorre (ou seja, que A ocorreu e causou B) — embora, é claro, possa fazer uma diferença em relação a o que nós justificadamente acreditamos ser a verdadeira explicação (dito de outra maneira, que alguma explicação proposta é a explicação mais simples dos dados passados e futuros é indício de que ela é a verdadeira explicação, mas isso não a constitui como a verdadeira explicação). Além disso, é por causa de seu papel na causação que se diz que as leis da natureza geram contrafactuais. Suponha que “todo cobre se expande quando aquecido” seja uma lei da natureza, mas que eu não aqueço certo pedaço de cobre; é bastante evidente que é o caso do mesmo modo que “se aquele cobre tivesse sido aquecido, ele teria expandido”. Mas, se uma lei simplesmente afirma o que acontece (ou aconteceu ou acontecerá) como ela pode dar alguma base para afirmar o contrafactual? Ela faria isso apenas se houvesse algum tipo de necessidade inserido nela que fosse mais profundo que o que é dado pelo fato dela se adequar a um sistema. Encaixar-se num sistema poderia ser indício apenas daquele tipo mais profundo de necessidade.

Assim, descartando descrições humianas das leis por boas razões, consideremos descrições alternativas da necessidade (e probabilidade) física envolvida nas leis da natureza que não a analisam em termos de padrões de eventos reais. Necessidade física pode ser pensada ou como separada dos objetos que são governados por ela ou como um aspecto constitutivo daqueles objetos. A primeira abordagem leva a uma imagem do mundo como consistindo de eventos (constituídos de substâncias que têm, ganham ou perdem propriedades), por um lado, e leis da natureza (envolvendo necessidade ou probabilidade física), por outro lado; e isso pode ser desenvolvido de modo a permitir a possibilidade de haver universos nos quais não há quaisquer eventos, mas apenas leis da natureza.[27] Leis da natureza são assim, entidades ontologicamente concretas. A versão desta descrição que tem sido muito discutida recentemente é a versão que afirma que leis da natureza são relações entre universais[28] (universais são propriedades que podem ser inteiramente instanciadas em muitos objetos diferentes. Assim, “marrom” é um universal, pois inumeráveis coisas diferentes podem ser marrons).

Sendo uma lei fundamental da natureza que “todos os fótons andam a 300.000 km/seg relativos a todo quadro inercial de referência”, ela consiste de haver uma conexão entre o universal “ser um fóton” e o universal “andar a 300.000 km/seg relativos a todo quadro inercial de referência”. Esses universais estão ligados, mas a ligação não é logicamente necessária — ou seja, não é, nesta concepção, parte do que deve ser um fóton que anda naquela velocidade. Mas é fisicamente necessária e a necessidade física é uma questão de dois universais estarem ligados. Talvez se possa começar a dar sentido a essa sugestão se se pensar na causação de estados de coisas (por exemplo, o que faz um fóton passar a existir) como o fazer propriedades, que são universais, serem instanciadas; e isso envolve trazêlos de um céu eterno para a terra bem como o que estiver envolvido nesses universais — nomeadamente, outros universais conectados a eles (por exemplo, andar a 300.000 km/seg). Mas, por que deveríamos acreditar que há um céu platônico no qual os universais estejam ligados? E como os universais podem agir no mundo? Essa é uma relação causal muito misteriosa entre o mundo não

espaço-temporal e o nosso mundo, para a qual não temos qualquer coisa análoga. A alternativa a pensar a necessidade física envolvida nas leis da natureza como separada dos objetos governados por ela é pensá-la como um aspecto constitutivo daqueles objetos. O modo pelo qual isso é normalmente desenvolvido é o que podemos chamar de descrição das leis da natureza em termos de substâncias, poderes e suscetibilidades (S-P-SS). Os “objetos” (o “o quê”) que causam são substâncias individuais — este planeta, estas moléculas de água. Eles causam efeitos em virtude de seus poderes o fazerem e de suas suscetibilidades (determinísticas ou probabilísticas) de exercer esses poderes em certas condições, em geral quando levados a fazê-lo por outras substâncias. Poderes e suscetibilidades (o “porquê”) estão, então, entre as propriedades das substâncias. Leis da natureza são, assim, apenas regularidades — não de mera sucessão espaço-temporal (como com Hume), mas regularidades nos poderes causais (manifestos e não manifestos) de substâncias de vários tipos. Que o cobre aquecido se expande seja uma lei é apenas uma questão de cada pedaço do cobre ter o poder

causal de se expandir e a suscetibilidade de exercer esse poder quando aquecido. Enquanto uma questão de fato contingente, substâncias se encaixam em espécies, tais que todos os objetos da mesma espécie têm os mesmos poderes e suscetibilidades. Os poderes e suscetibilidades de coisas em larga escala (montes de cobre) derivam dos poderes e suscetibilidades de coisas em pequena escala que os compõem (átomos e, em termos últimos, quarks, elétrons, etc.). E dada uma teoria satisfatória integrando toda a ciência, todas as particularidades últimas terão exatamente os mesmos poderes e suscetibilidades (por exemplo, o poder de causar um efeito proporcional de certo modo à sua massa, carga, rotação, etc. e a suscetibilidade de exercê-lo em condições que variam com a massa, carga, rotação, etc. de outros objetos). Essa descrição dos determinantes últimos do que acontece como meramente substâncias e seus poderes causais e suscetibilidades dá uma explicação do que acontece em termos familiares. Como considerarei mais plenamente em breve, nós mesmos temos poderes causais que nós, diferentemente dos objetos inanimados, podemos

escolher exercer. O modo S-P-SS de explicar as coisas foi o modo familiar ao mundo antigo e medieval, antes que a discussão em termos de “leis da natureza” se tornasse comum no século dezesseis. Ele foi revivido por Rom Harré e E. H. Madden em Causal Powers.[29] Quando a discussão em termos de “leis da natureza” se tornou comum no século dezesseis, supunha-se que elas eram leis de Deus para a natureza, e um linguajar como esse tem seu lugar natural numa visão de mundo teísta. Mas se Deus existe e ele fez as coisas no mundo agirem do modo como agem, ele certamente não as opera diretamente, mas ao sustentar as leis da natureza — o que significa, nessa descrição, por meio da determinação de que poderes e suscetibilidades as substâncias têm e pela conservação desses poderes e suscetibilidades nas substâncias. A estrutura básica da explicação em termos de substâncias, poderes e suscetibilidades não pressupõe que exista um Deus que opere desse modo. Com a descrição S-P-SS, diferentemente da descrição humiana e daquela em termos de universais, afastamo-nos da estrutura hempeliana de

explicação científica num aspecto crucial. Isso porque “leis da natureza” não desempenham mais qualquer papel causal na explicação de fenômenos particulares. O que causa a expansão de um pedaço particular de cobre é aquele pedaço de cobre, seu poder de expandir e sua suscetibilidade de exercer aquele poder quando aquecido. A regularidade envolvida no fato de outros pedaços de cobre terem poderes e suscetibilidades similares não faz parte da explicação. Enquanto a causação está essencialmente envolvida nas leis, as leis não estão essencialmente envolvidas na causação. A descrição S-P-SS das leis da natureza e da explicação de eventos particulares me parece mais satisfatória que as outras descrições. As regularidades nos poderes causais e suscetibilidades de substâncias particulares, bem como em seu comportamento, que constituem as “leis da natureza”, acarretam realmente que substâncias particulares terão poderes e suscetibilidades particulares; e assim, qualquer indício que tornar provável que tal e tal (por exemplo, “todo A faz isso e aquilo em circunstâncias C”) é uma lei da natureza, é um indício que torna (indutivamente) provável que uma determinada

instância da mesma se dê (por exemplo, que este A tenha o poder de fazer tal e tal e a suscetibilidade de exercê-lo em circunstâncias C). Mas a lei não explica por que estas substâncias têm esses poderes e suscetibilidades. E assim a descrição S-P-SS suscita a questão de por que muitas substâncias têm poderes e suscetibilidades semelhantes umas às outras (por que cada substância no universo tem o poder de atrair uma à outra no modo estabelecido, por exemplo, nas “leis” de Newton). Retornaremos a essa questão no capítulo 8. Mas, como veremos, uma questão essencialmente igual aparece também em outras descrições das leis da natureza; e o argumento deste livro não depende de minha preferência por uma descrição das leis da natureza e, assim, da explicação científica. Assim, operarei normalmente apenas com o modelo hempeliano corrigido sem pressupor como este deve ser pormenorizado ou emendado. Contudo, em pontos cruciais, chamarei a atenção do leitor para descrições alternativas das leis da natureza e da explicação científica, especialmente da descrição SP-SS. Passo agora a contrastar explicação científica e explicação pessoal.

Explicação pessoal O outro padrão de explicação que usamos todo o tempo na explicação de fenômenos mundanos é o que chamarei de explicação pessoal. Na explicação pessoal, a ocorrência do fenômeno E é explicada como levada a efeito por um agente racional P perfazendo alguma ação intencionalmente. O caso central em questão aqui, com o qual estaremos preocupados primariamente, é quando P leva E a efeito intencionalmente — ou seja, leva a efeito E querendo fazê-lo. O outro caso é quando P leva a efeito E não intencionalmente em consequência de fazer uma outra coisa intencionalmente — chegaremos a este caso brevemente a seguir. No caso central, E ocorreu porque P queria que E ocorresse por meio do que ele estava fazendo. O que um agente quer que ocorra por meio de sua ação pode ser chamado de intenção (ou propósito — usarei estes termos de modo intercambiável) J na ação do agente, por exemplo, de que E ocorra. E é então explicado por P ter a intenção J. E pode ser o movimento da

minha mão, P pode ser eu mesmo e J, minha intenção de que E ocorra. E é então o que chamarei de resultado de uma ação intencional A de levar a efeito E[30]. No exemplo citado, A é meu movimento de minha mão. Contudo, E só é parcialmente explicado pela intenção J de P. Isso porque uma pessoa pode ter a intenção de provocar um efeito e contudo não conseguir. Posso querer que minha mão se mova por meio de minha ação e contudo a mão não se mover porque alguém a está segurando; em consequência, a única ação que eu efetuo é a de tentar mover minha mão. Se E resulta realmente de P e J, uma explicação plena vai nos dizer por que e como a intenção de P foi eficaz. Isso nos leva a uma distinção bem conhecida[31] dentre as ações intencionais, entre ações básicas e ações mediadas. Em linhas gerais, uma ação básica é algo que um agente apenas faz e não a realiza fazendo nenhuma outra coisa. Uma ação mediada é uma ação que não é básica, que um agente realiza fazendo outra coisa. Eu faço um sinal movendo minha mão. Eu derrubo a porta dando-lhe um chute. A primeira é uma ação mediada; a segunda é uma ação básica. Ora, se levar E a efeito

é uma ação básica, a resposta para a questão de como a intenção de P foi eficaz será simplesmente de que levar E a efeito estava entre as ações básicas que P poderia realizar por vontade (ou seja, teria sucesso em fazer se ele formasse a intenção de fazêla). Efetuar o movimento de nossos braços ou pernas, lábios, olhos ou sobrancelhas, etc., está para a maioria de nós, na maior parte do tempo, dentro de nossos poderes básicos. E é plenamente explicada quando citamos o agente P, sua intenção J de que E ocorra e seus poderes básicos X, o que inclui o poder de efetuar E, pois, dados todos os três, E não pode deixar de ocorrer. É claro que, em tais casos com frequência é tão óbvio por que E ocorreu que não nos importamos com dar a explicação, mas a explicação é verdadeira mesmo assim. Podemos não nos dar ao trabalho de comentar, quando alguém está caminhando, que suas pernas se moveram porque ele as moveu (ou seja, que ele efetuou seu movimento querendo fazê-lo), mas é verdadeiro mesmo assim. Algumas vezes, contudo, esse tipo de explicação não é óbvio de modo algum — pode ser, ocasionalmente, a explicação das orelhas de uma pessoa estarem se movendo ou de seu coração estar

parando de bater que ela provocou essas coisas intencionalmente. Se efetuar E é uma ação mediada, a resposta para a questão de como a ação de P foi eficaz será mais complicada. Será de que E era a consequência intencional de alguma ação básica A de P — ou seja, uma consequência que P queria que ocorresse ao fazer A, que consiste em efetuar algum estado de coisas S. P tem a intenção J de que E ocorra como uma consequência da ocorrência de A (e assim, J continha dentro de si a intenção de que S ocorresse). Isso porque para que P tivesse esta última intenção, ele deveria acreditar que o fato de fazer A provocará (não menos provavelmente do que ao fazer qualquer outra ação básica) a efetivação de E como uma consequência (normalmente, talvez, pelo fato de S causar E). A explicação de como a intenção de P foi eficaz é de que levar a efeito S está entre os poderes básicos X de P e que a efetivação de S teve como uma consequência a ocorrência de E. Frequentemente, haverá uma explicação científica desta última. S pode causar E de acordo com leis naturais L porque é uma consequência de L que em circunstâncias D (que de fato se dão) E segue-se a S.

Assim, neste caso, P, J, X, D e L explicam plenamente a ocorrência de E. E é levado a efeito pelo fato de P ter certa intenção J, que, em consequência de seus poderes básicos X, leva a efeito algum estado de coisas S em circunstâncias D, cujas leis da natureza L então asseguram que levarão a efeito E. Assim, uma explicação plena do fato de que a porta está derrubada no chão é que eu, exercendo meus poderes básicos, fiz com que meu pé se movesse rapidamente na direção do contato com a porta, querendo que isso ocorresse e causasse a queda da porta. As dobradiças da porta, a massa da porta, a massa e velocidade de meu pé foram de fato tais que foi uma consequência das leis da mecânica que o impacto de meu na porta se seguisse da queda da mesma. Nas análises acima, uso a palavra “consequência” num sentido amplo. A conexão entre A e E pode ser causal ou lógica. Ela pode ser como no exemplo acima, pois S, o resultado de A, causa E. Pode ser também porque, dadas as circunstâncias atuais D, a efetivação de A se constitui em levar a efeito E. Assim, dadas as convenções nas transações bancárias e no trânsito, o fato de eu escrever meu nome num certo lugar tem

como uma consequência que um cheque tenha minha assinatura e o fato de pôr meu braço para fora da janela do carro tem como consequência que é feito um sinal indicando virar à direita. Assim, para resumir, no caso central de explicação pessoal, explicamos um fenômeno E como levado a efeito intencionalmente por um agente racional P. Se a efetivação de E é uma ação básica A, precisamos citar adicionalmente uma intenção J de P de que E ocorra e afirmar que levar a efeito E está entre as coisas que P é capaz de fazer por sua vontade — nomeadamente, dentre os poderes básicos X de P. P, J e X dão uma explicação plena de E. É claro que podemos frequentemente ir além e explicar como é que P tem a intenção J (por exemplo, afirmando que ele formou sua intenção a fim de dar cabo a uma intenção mais ampla, como quando explicamos que ele formou a intenção de assinar um cheque porque ele tinha a intenção de lhe dar dinheiro). Ou podemos explicar como é que P tem aquelas propriedades (por exemplo, descrevendo quais nervos e músculos são necessários para que P possa por seus poderes em operação). Mas P, J e X são suficientes para explicar

E — caso possamos ou não explicar como é que J e X se dão. Se a efetivação de E é uma ação mediada, as coisas são mais complicadas. Citamos P e sua intenção J de efetuar E como consequência de uma ação básica A; explicamos que a execução de A estava dentre os poderes básicos de P e explicamos como a execução de A teve como consequência E. Novamente, a ocorrência e operação dos fatores citados aqui podem elas mesmas ser mais bem explicadas; mas isso não é necessário para que tenhamos uma explicação plena. Quando há apenas uma ação básica envolvida, o agente P é a causa do efeito; sua intenção e poderes dão a razão da eficácia da causa. Onde a ação é mediada, outros fatores se acrescentam. As duas figuras no topo do diagrama da p. 89[32] resumem esses resultados para ações básicas e para ações mediadas nos casos nos quais uma lei natural L leva a efeito que S tenha E como consequência. Causas e condições para sua operação (o “o quê”) são mostradas à esquerda das flechas, razões (o “porquê”) são mostradas em cima das flechas; efeitos são mostrados à direita das flechas. Existe, como afirmei anteriormente, um

segundo tipo de explicação pessoal. Aqui, explicamos a ocorrência de E como levada a efeito não intencionalmente pelo agente racional P que executa outra coisa não intencionalmente; E é uma consequência não intencional de uma ação intencional. Por exemplo, ao levantar, posso, não intencionalmente, derrubar uma caneca. Aqui, a derrubada da caneca é causada pelo fato de eu ocupar certa posição em pé, que foi um estado de coisas levado a efeito intencionalmente por mim. Não queria que a caneca fosse derrubada, mas, dadas as circunstâncias (a posição original da caneca, etc.), o fato de eu ocupar a posição de pé causa a derrubada da caneca em virtude das leis da mecânica L. Minha preocupação doravante será apenas com o caso central da ação intencional na qual o efeito é causado intencionalmente. A explicação pessoal não analisável em termos da explicação científica A explicação pessoal parece muito diferente da explicação científica. Na explicação científica, no modelo hempeliano corrigido, explicamos um

evento E por meio de eventos ou estados passados C e leis naturais L. Na explicação pessoal, explicamos E como levada a efeito por um agente P (não por um evento ou estado) a fim de realizar intenções para o futuro. Apesar da aparente diferença, contudo, tem sido defendido por alguns filósofos — inicialmente por Donald Davidson[33] e por muitos outros de modo mais extensivo — que, na realidade, a explicação pessoal se conforma ao padrão científico. Em minha terminologia e usando o modelo hempeliano de explicação científica, uma sugestão como a de Davidson significa o seguinte. Suponha, primeiro, que E é o resultado de uma ação básica. Então, dizer que P levou a efeito E intencionalmente é o mesmo que dizer que um evento envolvendo P, ou seja, a intenção de P que E ocorra (J) levou-o a efeito. Dizer que P teve o poder de levar a efeito E é o mesmo que dizer que a condição corpórea Y de P (estados cerebrais, estados musculares, etc.) e as condições ambientais Z (o fato de ninguém prender o braço de P, etc.) e as leis L1 são tais que uma intenção[34] tal com J é seguida por um evento tencionado E. Temos então um explicação científica tal como representada no

diagrama. Estrutura do caso central de Estrutura do caso central de explicação explicação pessoal de E, quando pessoal de E, quando E é o resultado de E é resultado de uma ação básica uma ação mediada (um esquema)

JJ Y

Y

ZZ Tentativa de análise do padrão acima Tentativa de análise do padrão acima em termos do padrão “científico”. em termos do padrão “científico”.

Suponha, em seguida, que E é o resultado de uma ação mediada. Então, dizer que P a levou a efeito é dizer que um evento envolvendo P — ou seja, a intenção J de P — sob as condições corpóreas e ambientais Y e Z levou a efeito (de acordo com leis L1) o resultado de uma ação básica S, que teve a consequência E. Vimos que há diferentes modos pelos quais S pode ter E como consequência. Um modo é que S possa levar a efeito E de acordo com o padrão científico normal de causação — ou seja, em virtude de alguma lei da natureza L. Este é o esquema representado no diagrama. O outro modo pelo qual S pode ter E como uma consequência pode também facilmente se

adequar ao padrão científico de explicação pessoal, alguns sugerem. Assim, nessa visão reducionista, a explicação pessoal é em essência realmente uma explicação científica. Não há explicação de eventos de dois tipos — apenas explicações de um tipo. Eventos levados a efeito por ações são apenas aqueles que incluem intenções entre suas causas. A fim de mostrar o que há de errado com isso, quero fazer duas observações — primeiro, que a intenção numa ação que o agente está executando não é o mesmo que qualquer evento cerebral que possa estar conectado com ela; e, em segundo lugar, que ter uma intenção (no sentido com o qual estamos preocupados[35]) não é um estado passivo de um agente, mas apenas o agente exercendo a influência causal (a qual causará o efeito pretendido se e somente se o agente tiver o poder requerido). Entendo por substância uma coisa (diferente de uma propriedade) que tem propriedades; mesas, planetas, átomos, seres humanos e outras pessoas são todos substâncias (às vezes, quando não há perigo de mal-entendido, uso “objeto” como sinônimo de “substância”). Substâncias têm propriedades, ou seja, características que podem

defini-las, bem com a outras substâncias também. Nesse sentido, todas as propriedades são universais; marrom é uma propriedade e coisas diferentes podem ser marrom. Propriedades incluem tanto propriedades monádicas, que caracterizam substâncias individuais e propriedades relacionais, que ligam duas ou mais substâncias. “Ser quadrado”, “pesar 10 kg” ou “ser maior que” são propriedades, sendo que as duas primeiras são monádicas e a última, uma propriedade relacional que liga duas substâncias (uma coisa é mais alta que a outra coisa). Com base nessas definições, não há nada mais na história do mundo do que substâncias que passam a existir, ganham e perdem propriedades (incluindo relações com outras substâncias) e assim, deixam de existir. É útil ter uma palavra de modo tal que não haja nada na história do mundo além de todas essas coisas e uma palavra natural para aquela categoria de coisa é a palavra “evento”. Proponho usá-la no seguinte sentido: que um evento consiste na instanciação de uma propriedade em uma substância (ou substâncias ou em um evento) num certo tempo, ou o vir a ser ou deixar de existir de uma substância. Eventos incluem a mesa sendo

quadrada agora ou John sendo mais alto que James em 30 de março de 2001 às 10h da manhã ou eu passando a existir no dia 26 de dezembro de 1934. A fim de realizar o propósito da definição de “evento”, precisamos individuar propriedades que, se você soubesse que propriedades tinham sido instanciadas em que e quando, você saberia (ou poderia deduzir) tudo que tinha acontecido. Isso envolveria, por exemplo, perceber algo como vermelho e refletir luz de tal e tal cumprimento de onda como propriedades diferentes — pois você poderia (apenas ao vê-la sob luz normal) saber que algo era vermelho sem saber (ou ser capaz de deduzir) que ela refletia luz de tal e tal cumprimento de onda e vice-versa. Disso se segue imediatamente que ter uma intenção não pode ser o mesmo evento que ter qualquer evento cerebral, pois você poderia saber que alguém estava pretendendo fazer tal e tal em sua ação sem saber que ele estava num determinado estado cerebral ou em qualquer estado cerebral e vice-versa. Estes são dois diferentes eventos conectados com um sujeito, mesmo que, talvez por necessidade física, eles sempre estejam juntos. É

verdade que outros critérios para dois eventos serem tidos com o mesmo possam levar a um resultado diferente, ou seja, que os dois eventos eram o mesmo; mas, então, para contar toda a história do mundo com base nesses outros critérios, não seria suficiente saber que algum evento (por exemplo, algum estado cerebral) teve lugar; você precisaria saber que ele teve duas coisas diferentes, digamos “características” — uma característica cerebral e uma característica de intenção — associada a ele. Algum tipo de dualismo é inevitável aqui e eu sugiro que meu uso proposto da palavra “evento” proporciona um sistema claro de categorias cujo uso permite que descrevamos o mundo plenamente, um sistema de categorias não muito distante do uso comum. Assim, intenções não são eventos cerebrais, embora sejam fortemente conectadas a eventos cerebrais. No sentido a ser definido no capítulo 9, elas são eventos mentais. Nosso próximo problema é definir que tipo de evento mental elas são. Será que ter uma intenção é estado passivo, um estado no qual o agente se encontra, como ter uma sensação ou uma crença? Davidson pensa que intenções são

como “desejos” e o entendamos (apesar do que ele escreve em outros lugares) como supondo que estes são eventos mentais diferentes de eventos cerebrais. Estes desejos podem precisar de algum evento como a percepção ou um evento neural para torná-los causas de outros eventos. Assim, afirma ele, ações são eventos que têm estados mentais passivos — os desejos pela sua ocorrência — dentre as suas causas. A explicação pessoal é analisável em termos da produção de efeitos por tais desejos. Apesar do fato de que é a forma mais plausível de teoria reducionista, a teoria de Davidson, como todas as outras, está aberta a uma objeção fatal. A ideia básica de todas as teorias assim é que o fato de um agente executar algo intencionalmente — ou seja, querendo fazê-lo, que o modo pelo qual definimos o fato de um agente causar um efeito tendo a intenção de fazê-lo, deve ser analisado como a causação daquele efeito por meio de algum estado passivo do agente ou algum evento envolvendo o próprio agente. Mas análises assim falham porque, se uma intenção (ou querer ou desejo) de P de levar a efeito E fosse algum estado passivo ou evento, P poderia fazê-lo sem que o

tivesse feito intencionalmente. Causação por uma intenção (assim entendida) não garante a ação intencional. A clássica objeção à teoria reducionista foi formulada assim por Richard Taylor. Aqui, o fator causal é chamado de “desejo”, mas poderia igualmente bem ser chamada de um “querer” ou uma “intenção”. Suponha ... que um membro de uma audiência deseje fortemente atrair a atenção do orador mas, sendo tímido, apenas se agite desconfortavelmente em sua cadeira e fique corado. Podemos supor, além disso, que ele realmente atraia a atenção do orador com sua própria inquietação; mas ele não se inquietou a fim de obter a atenção do orador, embora ele desejasse aquele resultado e pudesse muito bem se dar conta de que tal comportamento iria levar a isso.[36]

Aqui temos o caso de um desejo de E causando E e ainda assim não havendo qualquer ação. A ideia básica é que desejos, quereres, etc. podem ocorrer e ainda assim o agente, por alguma razão, pode não agir para realizar seu desejo ou querer. Contudo, num caso assim, possivelmente sem o conhecimento do agente, o desejo pode causar o efeito pretendido sem que o agente provoque o efeito intencionalmente. Que um agente

leve a efeito algo intencionalmente não é analisável como sendo sua intenção que provocou esse algo se a intenção é suposta como um evento ou estado mental passivo. O mesmo se aplica se substituímos “intenção” por “desejo”, “querer” ou qualquer termo semelhante[37]. Assim, uma análise do tipo de Davidson parece falhar. Dizer que P levou algo a efeito intencionalmente não é dizer que algum estado passivo de P ou evento envolvendo P, como uma intenção, levou a efeito aquele algo. Não parece haver qualquer outro modo plausível pelo qual explicações pessoais possam ser analisadas em padrões científicos e assim pareceria que a explicação pessoal é de um tipo diferente da explicação científica, segundo o modelo hempeliano corrigido desta última (note que no futuro entenderei por um “desejo” de fazer uma ação uma inclinação causalmente influente de fazer uma ação, que pode ou não coincidir com um juízo do agente de que é em geral bom executar a ação. Se não coincide, o agente tem de escolher entre resistir ao seu desejo ou dar vazão ao mesmo). Se intenções não são estados ou eventos que acontecem com um agente, elas próprias devem ser

ações. Ter uma intenção não é algo que aconteça a um agente, mas algo que ele faz. O fato de eu ter a intenção de agir movendo minha mão é fazer o que (se eu não conseguisse ou achasse difícil mover minha mão) seria chamado “tentar” mover minha mão. No passado, deu-se ao fato de ter uma intenção assim o nome de técnico de ter uma “volição” de mover minha mão. O erro básico que a análise reducionista comete é (na terminologia apresentada no começo do capítulo) o de tratar intenções como pertencendo ao “o quê” ao invés de ao “porquê” da explicação. Quando se explica uma ocorrência como levada a efeito pelo fato de um agente ter alguma intenção, não se está descrevendo pela palavra “intenção” algum estado que ocorre ou evento que causou a ocorrência, mas se está afirmando que o agente levou a efeito aquela ocorrência e o fez porque queria fazê-lo. Agir intencionalmente é exercer uma ação causal numa certa direção, que será bem sucedida em produzir o efeito pretendido se o agente tem o poder requerido. Uma intenção — digamos, de evitar uma poça d’água — explica por que num certo momento um homem com poderes básicos normais (e isso

envolve, fisicamente, um cérebro normal e a operação de leis psicofísicas normais) comportou-se do modo como o fez: executou tais movimentos de modo a de fato levarem seus pés a ultrapassar a poça. Que essa descrição seja correta é manifesto pelo fato linguístico de que explicações em termos de intenções podem facilmente ser parafraseadas em termos de explicações nas quais não ocorrem quaisquer substantivos que jamais se pudesse encarar como denotando estados ou eventos. Dizer que a intenção de uma pessoa ao fazer certos movimentos era evitar a poça é dizer que ele os fez a fim de evitar a poça ou de modo a evitar a poça. Mas uma paráfrase assim não é possível para as condições que são citadas em explicações científicas normais. Embora intenções, tanto quanto leis da natureza, pertençam ao “porquê”, as razões da explicação, há enormes diferenças entre leis da natureza e intenções. Intenções são tais que o agente a quem elas pertencem as “acompanha”, é consciente delas e tem acesso privilegiado a elas, no sentido de que ele está numa posição melhor que os que estão de fora para saber delas. Leis da natureza

não são necessariamente conhecidas de ninguém nem “acompanham” ninguém ou são passíveis de acesso privilegiado de ninguém. Mas que o “porquê” seja assim conhecido e adotado por um agente é uma das diferenças entre a explicação científica e a pessoal. A outra diferença principal é que, na explicação pessoal, o linguajar acerca de uma substância que explica, ou seja, uma pessoa, não é redutível ao linguajar acerca de estados que ocorrem naquela pessoa ou eventos que a envolvem. O contraste entre a explicação científica e a pessoal permanece até mesmo na descrição S-P-SS da primeira, embora os dois padrões estejam muito mais um do outro nesta descrição. Essa é uma razão para preferir o modelo S-P-SS; ele mostra que tanto a explicação pessoal quanto a científica são espécies do mesmo gênero: explicação causal. Em ambos, a causa é uma substância ou substâncias. Em ambos, a substância tem certos poderes e produz o efeito em virtude de seus poderes. A diferença é que, na explicação científica, a substância é suscetível de exercer seus poderes em certas circunstâncias; é, ou fisicamente necessário, ou provável que ela o fará e ela não tem nenhuma intenção ou propósito de fazer

o que faz; na explicação pessoal, por sua vez, a substância (a pessoa) age intencionalmente, fazendo a ação que — dadas suas crenças — vai mais provavelmente realizar suas intenções. Não há paralelo para isso no caso científico. Em consequência, mesmo se a explicação científica puder ser expressa em termos de um evento (o fato de a substância estar em certas circunstâncias), ao invés de a substância mesma estar causando o efeito, a explicação pessoal não pode ser expressa deste modo. Uma pessoa causando um efeito não é analisável como um estado passivo daquela pessoa ou um evento envolvendo aquela pessoa causando um efeito.

Pode haver duas explicações de um fenômeno?

Até aqui neste capítulo, estive preocupado em caracterizar as estruturas dos dois tipos de explicação que usamos para explicar a ocorrência dos fenômenos e em mostrar como elas diferem

uma da outra. Volto-me agora para a questão de se pode haver apenas uma explicação verdadeira de algum fenômeno, pois, se for assim, então, se houver uma explicação pessoal de algum fenômeno, não pode haver uma explicação científica e viceversa. Sugiro que possa haver duas explicações distintas de algum fenômeno E se uma ou outra de três condições for satisfeita, mas que de outro modo não possa haver. Certamente, pode haver duas explicações distintas de E quando uma ou outra ou ambas são explicações parciais de E, pois uma pode se combinar com a outra para proporcionar uma explicação mais completa. Assim a morte de alguém por câncer pode ser explicada por (1) o fato de ele fumar e uma lei acerca da proporção de fumantes que morrem de câncer, e por (2) o fato de seus pais terem morrido de câncer e uma lei acerca da proporção daqueles cujos pais morrem de câncer e que morrem de câncer eles próprios. Uma vez que (1) e (2) apenas tornam provável, mas não necessária a morte da pessoa por câncer, elas são apenas explicações parciais. Elas podem com certeza ser combinadas numa explicação mais completa em

termos do fato de a pessoa fumar, seus pais terem morrido de câncer e a proporção daqueles que morrem de câncer e que fumam e cujos pais morreram de câncer. Mas, pode haver duas explicações plenas diferentes de um fenômeno? A resposta é ainda sim, desde que a ocorrência de causas (o “o quê”) e a operação das razões (o “por quê”) citadas em uma explicação devam ser explicadas ao menos em parte pela ocorrência de causas e a operação de razões citadas na outra explicação. Por exemplo, a posição atual de Marte é explicada pela sua posição nos últimos dias e as leis do movimento planetário, formuladas mais ou menos corretamente por Kepler. Onde Marte esteve recentemente e as leis estabelecendo como os planetas se movem determinam onde ele estará hoje. Contudo, a posição atual de Marte também é explicada por sua posição e velocidade no ano passado, as de todos os outros corpos celestes e as leis do movimento de Newton. As leis de Newton estabelecem como os corpos materiais mudam suas velocidades sob a influência de outros corpos. Ambas são explicações plenas e ainda assim são claramente compatíveis.

Isso é assim porque as leis de Newton e as posições e velocidades dos planetas explicam sua conformidade (aproximada) com as leis de Kepler. As leis de Kepler operam porque as leis de Newton operam, o sol e os planetas têm as posições iniciais e velocidades que têm e estão bem distantes de outros corpos massivos. É por essa razão que o movimento de uma mão humana é frequentemente explicável tanto pela explicação pessoal quanto pela científica. O movimento da minha mão pode ser explicado plenamente pelo que acontece nos nervos e músculos do meu braço e pelas leis fisiológicas. Ele também pode ser explicado plenamente pelo fato de eu levá-lo a efeito tendo a intenção e poder de fazêlo. Ainda assim, nesse caso, as causas e razões citadas em cada explicação dão uma explicação parcial da ocorrência e operação das causas e razões citadas no outro. O que acontece em meus nervos e músculos é levado a efeito não intencionalmente pelo fato de eu causar o movimento da minha mão intencionalmente. Além disso, a operação das leis fisiológicas proporciona parte da explicação do fato de eu ter poder de mover a minha mão — apenas porque as descargas nervosas são propagadas do

modo que são é que eu sou capaz de mover minha mão. Assim, há uma razão dupla pela qual duas explicações plenas podem cada uma explicar plenamente o movimento da minha mão. Mas será que pode haver duas explicações plenas distintas de algum fenômeno E quando nenhuma delas de modo nenhum explica a ocorrência ou operação das causas e razões envolvidas na outra? Sim, do mesmo modo, desde que haja sobredeterminação. Na sobredeterminação, cada uma das explicações plenas dá causas e razões suficientes para a ocorrência do efeito, mas nenhum par sozinho é necessário, uma vez que o outro par teria produzido o efeito por si mesmo. Temos uma sobredeterminação desse tipo se alguém morre por causa de envenenamento provocado por A ao mesmo tempo em que é baleado por B. Mas tal coordenação será uma coincidência, a não ser que haja uma causa comum das ações de A e B (por exemplo, C que empregou tanto A quanto B para matar a mesma vítima a fim de garantir que ela morresse mesmo). Não pode ser necessário para a produção do efeito ter duas explicações plenas distintas quando nenhuma, de modo nenhum,

explica a ocorrência ou operação das causas e razões envolvidas na outra; a menos que a ocorrência e operação das causas e razões envolvidas em ambas sejam explicáveis, ao menos em parte, pelas causas e razões de uma terceira explicação plena (uma causa comum). Disso se segue que, dado que a explicação científica e a explicação pessoal são os únicos tipos possíveis de explicação[38] e excetuando-se sobredeterminação acidental, pode haver uma explicação pessoal plena e uma explicação científica plena de algum fenômeno apenas se uma em parte explica a ocorrência e operação dos componentes da outra — ou a explicação científica ao menos em parte explica as causas e razões na explicação pessoal ou vice-versa; ou há uma explicação plena adicional (pessoal ou científica) que explique as causas e razões operativas em ambas as outras explicações. Explicação pela ação de Deus Neste capítulo até agora, tenho me concentrado em analisar a estrutura da explicação pessoal e em mostrar sua relação com a explicação

científica. Fiz isso porque, quando o teísta afirma que a ação de Deus explica vários fenômenos como a existência e ordem do mundo, ele está propondo uma explicação pessoal desses fenômenos. Contudo, explicações pessoais de fenômenos pela ação de Deus diferem da maioria das explicações pessoais mundanas em dois aspectos importantes, os quais devo agora comentar ao concluir este capítulo. O primeiro é que a explicação pessoal da ocorrência de um fenômeno E em termos de Deus levá-lo a efeito, querendo fazê-lo, não pode nem em parte ser explicável cientificamente. Vimos que uma explicação pessoal pode, com frequência, ao menos em parte, ser explicada por uma explicação científica e vice-versa. Assim, uma pessoa que tenha os poderes que ela tem pode se explicada em parte por ter nervos e músculos e pela operação de várias leis fisiológicas. O fato de ela ter as intenções que tem pode ter uma explicação científica e talvez uma existência humana possa também ser explicada deste modo. O fato de que a explicação pessoal não possa ser analisada em termos de explicação científica não significa que seu funcionamento numa ocasião particular não possa ter uma explicação científica.

Contudo, parece coerente supor que deva haver uma explicação pessoal da ocorrência de algum evento E pela ação de um agente P ter a intenção J de levar a efeito E e ter o poder de fazê-lo, sem que tudo isso seja de algum modo suscetível de uma explicação científica. Para começar, um agente pode ter o poder de executar certas ações básicas sem que o fato de ter aquele poder ser dependente de quaisquer estados físicos ou leis naturais. Sua capacidade de executar essas ações pode ser um fato bruto último (ou apenas explicável por outra explicação pessoal). Do mesmo modo, o fato de um agente ter intenção de agir do modo como age, sua escolha de ações intencionais, pode não ser suscetível de explicação científica. Para verificar o que foi dito acima, note que não há no momento, com respeito a algumas das intenções que formamos, nenhuma explicação científica plausível de por que formamos estas intenções ao invés de outras. E, mesmo assim, nossas explicações de outras coisas em termos dessas intenções ainda seriam explicações, mesmo que não houvesse explicação de por que nós formamos estas intenções. Assim, temos poderes

básicos de levar a efeito imagens de diferentes formas geométricas. Pode haver uma explicação científica parcial do fato de eu ter esse poder em termos do meu cérebro estar num certo estado dando-me esse poder. Contudo, não há contradição em supor que poderes de visualização não são dependentes do cérebro ou de qualquer outra coisa. Talvez nós simplesmente tenhamos tais poderes. Mas isso não mudaria o fato de que eu ter uma certa imagem mental poderia ser explicado pelo meu poder básico de produzir tais imagens. E, embora nós normalmente suponhamos (corretamente) que há uma explicação científica da existência deste corpo que é meu, não há uma explicação científica da existência deste corpo que é meu, não há uma explicação científica de como veio a ser que este corpo seja meu (ao invés de pertencer a outra pessoa) e assim, simplesmente não há qualquer explicação científica da minha existência. Isso porque este mundo poderia ter sido igual em todos os seus aspectos físicos e ainda uma pessoa diferente poderia ter agido por meio do seu corpo (desenvolverei melhor essa ideia no capítulo 9). E, contudo, o fato de que a ciência não pode explicar

minha existência não significa que não haja nenhuma explicação verdadeira das coisas em termos de eu levá-las a efeito. A explicação pessoal pode explicar sem que haja uma explicação científica da ocorrência e operação dos fatos envolvidos nela. Quando o teísta afirma que a existência do mundo e suas várias características devem ser explicadas pela ação de Deus levando-as a efeito intencionalmente, ele afirma que a ação de Deus não pode ser explicada cientificamente nem mesmo em parte. Supõe-se que Deus seja perfeitamente livre. A existência e os poderes de Deus não dependem dos estados do mundo físico ou das leis de sua operação, mas exatamente o contrário. Tampouco as intenções de Deus são explicáveis cientificamente. Mas nada disso, como vimos agora, enfraquece de modo algum o valor explicativo da explicação pessoal. O fato de Deus levar a efeito algum evento pode ser explicável por uma explicação pessoal mais ampla. Ele pode levar a efeito E a fim de deste modo causar F; F pode ser um evento que leve um período de tempo considerável e E pode ser o primeiro estágio de F. Mas o teísta afirma que esse tipo de explicação é o

único tipo de explicação das ações de Deus que pode ser dado. As próprias intenções de Deus por si mesmas explicam que ele faça o que faz. Supõe-se que as ações básicas de Deus incluam criar o universo ex nihilo (ou seja, não de matéria existente), mantê-lo existindo, fazer as coisas se comportarem de acordo com leis naturais e ocasionalmente intervir no universo (às vezes, colocando aquelas leis de lado). Criar matéria ex nihilo não é algo que os seres humanos sejam capazes de fazer, mas é fácil o bastante concebê-los fazendo-o. É logicamente possível que eu fosse capaz de fazer aparecer na minha frente um tinteiro ou fazer crescer um sexto dedo, do mesmo modo que sou presentemente capaz de mover minha mão. Vários testes (por exemplo, isolar a sala e pesar seu conteúdo cuidadosamente) poderiam mostrar que o tinteiro ou o dedo não foram feito de matéria existente. Criar ex nihilo é um ato básico perfeitamente concebível. O outro importante aspecto no qual as explicações de fenômenos pela ação de Deus diferem da maior parte das explicações pessoais mundanas é que se supõe que Deus seja uma pessoa

sem corpo, ou seja, um espírito. É importante esclarecer neste estágio o que significa que uma pessoa não tenha corpo. O melhor modo de fazê-lo é perguntar uma questão diferente: o que estou dizendo quando falo que este corpo, o corpo detrás da escrivaninha, é o meu corpo? Primeiro, que eu posso mover, enquanto ações básicas minhas, várias partes deste corpo, ao passo que posso fazer alguma diferença em qualquer outra coisa apenas movendo partes deste corpo. Para mover o braço para lá (o seu braço), eu tenho de pegá-lo com este braço, mas eu posso mover este braço diretamente. Segundo, o fato de eu ter uma vida mental de pensamento, sentimento e intenção depende causalmente da operação deste corpo e, em medida considerável, de que eventos mentais eu tenho (em particular, minhas sensações, sentimentos e crenças perceptuais) que são causados por eventos neste corpo. Na medida em que estes eventos são causados, são eventos neste corpo que os causam; e outros eventos (por exemplo, ocorrências na sala) causam meus eventos mentais apenas ao causar eventos neste corpo que causam os eventos mentais. Terceiro, consequentemente, enquanto estou consciente do

que se passa neste corpo sem influências causais que se fazem nele de fora (sei da posição destes membros e sinto o vazio deste estômago), posso vir a saber de coisas fora do corpo apenas por meio de seus efeitos neste corpo. Vejo a escrivaninha e assim sei onde ela está apenas porque os raios da escrivaninha atingem estes olhos. Sei o que você me diz apenas porque, ao falar, você emite vibrações que atingem o meu ouvido. Quarto, eu observo o mundo desde onde o meu corpo está. São coisas ao redor deste corpo que eu vejo bem, coisas para além dele que eu vejo menos bem. É claro que uma pessoa tem um corpo se há um objeto físico (ou seja, uma substância) à qual ela esteja relacionada em todos os quatro modos acima. E, certamente, uma pessoa não tem um corpo se não há um objeto físico ao qual ela esteja relacionada em nenhuma daquelas maneiras. Se uma pessoa é relacionada a diferentes objetos físicos em cada uma daquelas maneiras, teremos de dizer que seu corpo é de um tipo diferente ou mais amplamente estendido do que o nosso. E se ele for relacionado a um objeto físico apenas (ou apenas em algum grau) de algum desses modos, teremos que dizer que ele é corpóreo

apenas num certo grau.[39] Segundo a compreensão tradicional, supõese que Deus não é corpóreo em nenhum desses modos. Não há um objeto físico, nem mesmo o universo físico como um todo, por meio do qual ele tenha de agir a fim de fazer diferença às outras coisas. Ele poderia abolir este universo físico num só golpe e criar outro e ele poderia exercer influência causal em criaturas não corpóreas sem precisar operar por meio de qualquer coisa física a fim de fazê-lo. Tampouco Deus depende de qualquer coisa física ou outra coisa para sua vida de pensamento. E ele sabe de tudo sem ser dependente de qualquer processo físico para a aquisição de seu conhecimento. Tampouco Deus tem qualquer perspectiva particular sobre o mundo. Ele sabe como as coisas são sem ser dependente para o seu conhecimento de um padrão particular de sensações emergindo de um ponto de vista particular. Assim, Deus não é corpóreo de modo algum. Ele, pode, é claro, mover qualquer parte do universo como uma ação básica e sabe, sem inferência, do estado de cada parte do universo, mas isso não faz do universo físico o seu corpo, pois ele não depende do universo

para essa habilidade e conhecimento. Assim, nos argumentos em favor da existência de Deus, o teísta argumenta a partir da existência e ordem do mundo e várias características do mesmo em favor de uma pessoa, Deus, que levou a efeito essas coisas de modo intencional. Neste capítulo, ocupei-me da análise do que é explicar um evento como levado a efeito por uma pessoa intencionalmente e, como conclusão, chamei a atenção para duas características especiais das explicações pessoais em termos da ação de Deus. Tendo investigado neste capítulo a estrutura da explicação pessoal, considerarei no próximo capítulo os indícios que justificam a sua apresentação, os indícios que tornam provável que uma explicação de tipo pessoal, ao invés de tipo científico, seja a verdadeira explicação de algum fenômeno. Estaremos então em condição de ver se os indícios contidos nas premissas dos argumentos sobre a existência de Deus constituem indícios como esses.

3. A justificação da explicação Quais são as bases para acreditar que alguma explicação proposta de um fenômeno E é uma explicação verdadeira? Escrevo “uma” explicação verdadeira ao invés de “a” explicação verdadeira, pois, como vimos, pode haver várias explicações verdadeiras do mesmo fenômeno. A justificação da explicação científica Para começar, quais são as bases para supor que uma explicação científica proposta é verdadeira? Ao responder isso, assumo, inicialmente, a interpretação hempeliana corrigida da explicação científica (delineada nas páginas 69-74 ss.). Minha resposta será bastante breve, uma vez que minha preocupação é mais com a explicação pessoal, mas eu penso que ela é suficientemente geral para ser aceitável pela maioria dos filósofos da ciência. Na descrição hempeliana corrigida, a ocorrência de um fenômeno E é explicada se as leis da natureza L e

outros fenômenos particulares C chamados de condições iniciais, tornam fisicamente necessária (ou mais provável) a ocorrência de E. Uma explicação proposta será verdadeira se a suposta lei L que ela cita é de fato uma lei da natureza e as condições iniciais citadas de fato ocorreram (e L e C realmente acarretam que é fisicamente necessário ou fisicamente mais provável que E ocorra). Uma explicação proposta será provavelmente verdadeira na medida em que (dado o acarretamento que acabei de mencionar) é provável que L seja uma lei da natureza e provável que C ocorreu. É provável que uma proposição universal do tipo “todos os corpos materiais se atraem com forças proporcionais ao produto de suas massas e inversamente proporcionais ao quadrado de suas distâncias” seja uma lei da natureza na medida em que ela pertença a uma teoria científica que tenha uma alta probabilidade prévia e um grande poder explicativo[40]. A probabilidade prévia de uma teoria é sua probabilidade antes de considerarmos os indícios pormenorizados de observação citados em seu apoio. A probabilidade prévia de uma teoria depende

do grau de sua adequação ao conhecimento de fundo (uma questão a posteriori) de sua simplicidade e amplitude (características internas à teoria e, assim, questões a priori). Uma teoria se encaixa em nosso conhecimento de fundo geral de como o mundo funciona na medida em que os tipos de entidades e leis que postula são semelhantes aos que provavelmente (em vista de nossos indícios) existem e operam em outros campos. Assim, uma teoria sobre o comportamento do argônio em baixas temperaturas se encaixaria bem em nosso conhecimento de fundo na medida em que postulasse para o argônio comportamento semelhante ao postulado por outras teorias consideradas prováveis segundo os mesmos critérios para substâncias similares — por exemplo, outro gás inerte, neon, a temperaturas baixas. Seu grau de simplicidade e amplitude determina a probabilidade intrínseca de uma teoria, sua probabilidade independente de sua relação com qualquer indício. Quanto mais simples for a teoria, mais provável ela será. A simplicidade de uma teoria, na minha perspectiva, é uma questão de postular poucas entidades (logicamente

independentes), poucas propriedades de entidades, poucos tipos de entidades, poucos tipos de propriedades, propriedades mais prontamente observáveis, poucas leis separadas com poucos termos relacionando poucas variáveis, sendo a formulação mais simples de cada lei aquela que for matematicamente a mais simples. Uma teoria de partículas fundamentais, por exemplo, seria simples na medida em que postulasse apenas uns poucos tipos de partículas com propriedades tais (por exemplo, massa e carga elétrica) que pudéssemos observar outras instâncias em escala maior cujo comportamento fosse governado por fórmulas matemáticas simples. Uma teoria será mais simples e, portanto, terá maior probabilidade prévia na medida em que esses critérios forem satisfeitos. Mas, é claro, é frequentemente o caso que apenas uma teoria que seja menos que perfeitamente simples possa satisfazer os outros critérios (por exemplo, poder explicativo) de verdade provável. A melhor teoria pode ser menos que perfeitamente simples; mas, permanecendo o restante o mesmo, quanto mais simples, mais provavelmente verdadeira.

Considero uma propriedade P como mais prontamente observável que uma propriedade Q se se pode descobrir se ou não um objeto é P sem se descobrir se ou não é Q, mas não vice-versa (entendo “observabilidade” como incluindo “experienciabilidade”). O bem conhecido exemplo filosófico de “verdul” vai ilustrar esse critério. Podemos definir um objeto como sendo “verdul” num tempo t se e somente se ou é verde e t é anterior a 2050 d.C ou é azul e t é 2050 d.C. ou posterior. Assim, todos os objetos observados até agora (antes de 2050 d.C.) que são verdes também são verdul e vice-versa. Mas nossa descoberta de que grandes números de esmeraldas são verdes e, assim, também são verdul, não tornaria muito mais provável uma lei segundo a qual toda esmeralda é verdul, mas tornaria muito mais provável a lei de que toda esmeralda é verde e o citado critério explica por que é assim. Um objeto pode ser observado como verde ou não sem saber em que data se está, mas para descobrir se um objeto é verdul, precisamos observar sua cor (no sentido comum) e também descobrir a data. Neste sentido, “verdul” é mais distante da observação do que

“verde”. Se fosse sugerido que uma tribo pode aprender o sentido de “verdul” não por meio de sua definição, mas por exemplos de coisas que se diz serem “verdul”, então “verdul” vai significar o mesmo que “verde” — uma vez que ambos seriam definidos pelos mesmos exemplos e assim não haveria conflito entre “toda esmeralda é verde” e “toda esmeralda é verdul”[41]. É claro que é provável, como a física nos ensinou, que as leis fundamentais da natureza se referem a propriedades que estão longe de serem prontamente observáveis (por exemplo, hipercarga e isospin); mas isso se deve ao fato de que leis postuladas deste último tipo provaram ter poder explicativo maior do que leis postuladas em termos de propriedades observacionais. Todo o resto sendo o mesmo (o que frequentemente não é o caso), as leis em termos de propriedades observáveis são, como tais, mais provavelmente verdadeiras. Uma formulação de uma lei é matematicamente mais simples que outra na medida em que esta última use termos definidos por termos usados na primeira, mas não vice-versa. Operações matemáticas podem, então, ser ordenadas em termos

de simplicidade — adição é mais simples que multiplicação, multiplicação mais que potência; escalas mais que vetores, vetores mais que tensores e assim por diante. Esse requisito também tem a consequência de que teorias mais simples usam números inteiros pequenos ao invés de números inteiros grandes e números inteiros ao invés de números inteiros seguidos de uma fração complicada. Assim, para fenômenos igualmente prováveis (num grau que possamos fazer medidas), deveríamos preferir a hipótese de uma força atrativa entre objetos inversamente proporcional a r2 (o quadrado da distância entre eles) em vez de uma inversamente proporcional a r20…(100 zeros)…01. É interessante, contudo, que hipóteses atribuindo valores infinitos de propriedades a objetos são mais simples do que as que atribuem grandes valores finitos, pois podemos entender, por exemplo, a noção de uma velocidade infinita (a velocidade sendo maior que qualquer número de unidades finitas de velocidade) sem precisar saber o que é um googleplex ( ). E a prática científica mostra essa preferência por valores infinitos ao invés de grandes valores finitos de uma propriedade. Ela preferiu

postular que a luz tinha uma velocidade infinita ao invés de uma grande velocidade finita determinada — por exemplo, 301.000 km/s — até que os dados que fossem encontrados fossem muito improváveis em relação à hipótese anterior. Mas note que a preferência pelo infinito sobre o finito grande se aplica apenas a graus de propriedades e não a números de propriedades independentes. Essa diferença surge, eu suponho, porque graus de propriedade se fundem de modo a não agirem independentemente — você não pode dividir uma velocidade de 2 m/s em duas velocidades individualizáveis de 1m/s. Uma velocidade é um todo num sentido que, digamos, um número de planetas separáveis e individualizáveis não são. Assim, por exemplo, não devemos postular um número infinito de planetas a fim de explicar o movimento de estrelas observáveis se podemos explicar aquele movimento igualmente bem por meio de um número finito grande de planetas. Ao avaliar a simplicidade de uma teoria científica em termos da simplicidade matemática de suas equações, a prática científica mostra que devemos usar a formulação mais simples daquela

teoria. Uma teoria que nos diga quais entidades existem, quais propriedades elas têm e como elas interagem pode ser formulada de muitos modos diferentes, ou seja, por meio de muitas equações diferentes, mas logicamente equivalentes. “x=y” é equivalente a “ ” e, de modo mais geral, à conjunção deste com o teorema matemático mais complicado. Mas é pela sua formulação mais simples (por exemplo, a primeira no caso citado) que julgamos a simplicidade de uma teoria. Ela deixa claras as forças em operação. Contudo, a probabilidade intrínseca de uma teoria é diminuída na medida em que sua amplitude for grande. O que quero dizer com isso é que, na medida em que se propõe a aplicar a mais e mais objetos e a lhe dizer mais e mais acerca destes, ela será menos provável. Claramente, quanto mais você afirma, mais provável é que você cometa um erro. A força desse critério é tornar teorias menos prováveis na medida em que elas se referirem a todos os corpos materiais ao invés (por exemplo) de apenas aos corpos perto da terra, ou sobre todos os metais ao invés de apenas sobre o cobre. Mas, tipicamente, se uma teoria perde amplitude, ela perde

simplicidade também, pois qualquer restrição de amplitude é, em geral, arbitrária e complicadora. Por que uma restrição arbitrária a todos os corpos perto da terra? Uma afirmação acerca do comportamento de todos os corpos materiais parece mais simples. Por esta razão, não penso que o critério de pequena amplitude seja de grande importância na determinação da probabilidade prévia e assim vou me concentrar em grande parte nos outros dois critérios de probabilidade prévia, referindo-me a este apenas em momentos cruciais. Uma teoria tem poder explicativo na medida em que acarreta ou torna provável a ocorrência de muitos fenômenos diversos que se observam ocorrer e cuja ocorrência não é de outro modo esperável. Assim, a teoria do movimento de Newton, tal como apresentada em seu Principia em 1686, consistindo de três leis do movimento e sua lei da atração gravitacional, satisfez esses critérios muito bem, o que tornou provável que cada uma das leis propostas fosse mesmo uma lei da natureza. A teoria era simples porque havia apenas quatro leis muito gerais, de simplicidade matemática muito grande, estabelecendo as relações mecânicas que valem entre

todos os corpos materiais (ou seja, corpos que têm massa, uma propriedade que sentimos na escala humana). Assim, a lei de gravitação estabeleceu que todos os corpos se atraem mutuamente em pares com forças proporcionais ao produto das massas de cada um, m e m’ e inversamente proporcional ao quadrado de suas distâncias (r), F=mm’/r2. As relações são simples porque a distância não é elevada a uma potência complicada (por exemplo, não temos r2,003 ou rlog2), há apenas um termo (por exemplo, não temos mm’/r4+mm’/r6) e assim por diante. Uma vez que a teoria pretendia cobrir todo o comportamento mecânico de corpos terrestres e celestes, não havia em 1689 muito conhecimento científico ao qual ela pudesse se adequar. Sua amplitude é muito grande na medida em que nos fala de todos os corpos materiais, mas se ocupa apenas de suas interações mecânicas e não, por exemplo, de suas interações elétricas. A teoria tinha também um poder explicativo enorme porquanto tornava muito provável o comportamento observado dos corpos de tipos muito diferentes e circunstâncias muito diferentes — os movimentos dos planetas, a subida e a baixa das marés, as interações entre

corpos em colisão, os movimentos dos pêndulos, etc. Esse aspecto do poder explicativo de uma teoria, eu chamarei, no futuro, o seu poder preditivo. Contudo, para uma teoria ter um poder explicativo grande, os fenômenos que ela prevê devem ser tais que, a não ser em vista dela, eles não seriam esperáveis. Ela valerá na medida em que quaisquer outras teorias com probabilidade prévia significativa não os prevejam tão bem quanto a teoria em questão; e assim, os indícios terão baixa probabilidade prévia, de vez que apenas uma teoria (a nossa teoria) o torna provável de algum modo. Se outra teoria igualmente simples tivesse predito tudo o que a teoria de Newton previu em todo seu pormenor, os indícios não sustentariam a teoria de Newton tão fortemente. Mas nenhuma outra teoria simples podia prevê-los. Uma teoria tem alto poder explicativo na medida em que ela tiver alto poder preditivo e os indícios tiverem probabilidade prévia baixa. Assim, exceto pelo problema acerca de sua enorme amplitude, a teoria de Newton satisfez muito bem os critérios apresentados. O fato de que ela era tida como, em geral, enormemente provável ilustra minha ideia de que o critério de amplitude é de

muito menos importância que os outros critérios. Nossas bases para acreditar que as condições iniciais C ocorreram são ou que se observou que elas ocorreram ou, menos diretamente, que a suposição de que C ocorreu tem ela mesma uma grande probabilidade prévia e poder explicativo. É por uma razão do segundo tipo que supomos existirem entidades não observadas, como planetas distantes. Observamos uma estrela distante se movendo de certo modo e podemos explicar isso se supomos que há perto dela um planeta grande que, de acordo com as leis de Newton, está exercendo atração sobre ela de modo a fazê-la se mover daquela maneira. Se supusermos que as leis de Newton operam (para o que há uma vasta quantidade de indícios, que eu acabei de apontar), podemos explicar de modo simples o comportamento da estrela, postulando ao menos um corpo não observado que esteja exercendo uma força gravitacional na estrela. Não fosse assim, tal comportamento seria muito improvável.[42] É claramente mais simples supor que há apenas um corpo assim e, consequentemente esta é a suposição com probabilidade prévia e poder explicativo

máximos. É também por uma razão desse tipo que supomos que entidades não observáveis como átomos, moléculas, fótons e prótons existam, interajam e tenham efeitos. Podemos explicar a ocorrência de certos barulhinhos nos contadores de Geiger e pontos em discos de fotografia pela suposição de que certas partículas assim as produziram[43]. Assim, então, para resumir, nossas bases para julgar se é provavelmente verdadeira uma explicação científica h de um fenômeno E, onde e é nosso conhecimento observacional, que inclui E, são a probabilidade prévia de h e seu poder explicativo em relação a e. Enfatizo a enorme importância do critério de simplicidade, uma importância que nem sempre é considerada. Às vezes, as pessoas a ignoram e dizem que o que torna uma teoria provável é apenas o seu poder explicativo ou, pior ainda, apenas o fato de que podemos deduzir dela proposições relatando fenômenos que foram observados, nossos dados ou indícios. O problema com essa afirmação é que, para qualquer coleção finita de fenômenos, sempre haverá um número infinito de teorias de amplitude

igual tal que de cada uma (junto com proposições sobre condições iniciais) podem ser deduzidas proposições relatando os fenômenos observados com acuidade perfeita (e pode ser que, a não ser em função de alguma dessas teorias, estes fenômenos não sejam esperáveis) As teorias são iguais no tocante a nos levarem a esperar o que já foi observado até agora, mas diferem em suas predições subsequentes. Podemos esperar por novas observações de fenômenos para nos possibilitarem escolher entre teorias. Contudo, não importa quantas teorias eliminemos por considerá-las incompatíveis com as observações, sempre ficaremos com um número infinito de teorias para escolher com base apenas no poder explicativo. Se não há teorias de campos vizinhos com as quais algumas teorias possam se encaixar melhor do que outras, a questão crucial será de simplicidade, e quando nossas teorias são de escala muito ampla, há pouco no que diz respeito a teorias de campos vizinhos. Essa ideia pode ser ilustrada pelo que ficou conhecido como o problema da “adequação da curva”. Pense em Kepler estudando o movimento de Marte. Suponha que ele tem como dados um grande

número de posições passadas de Marte.[44] Ele quer conhecer a órbita na qual Marte está se movendo, conhecimento que o possibilitará predizer suas posições futuras. Ele pode marcar num mapa do céu as posições passadas, mas por meio dessas posições ele pode traçar um número infinito de curvas diferentes, que divergirão entre si no futuro. Uma teoria, é claro, é de que Marte se move numa elipse. Outra é de que Marte se move numa espiral que pouco diverge de uma elipse durante o período estudado até aqui, mas que divergirá significativamente de agora em diante. Outra é que Marte se move numa órbita que descreve elipses cada vez maiores e que, no final, torna-se uma parábola, e assim por diante. É claro que muito poucas teorias dessas teriam sido estabelecidas e consideradas seriamente por Kepler ou qualquer outro investigando na área. Mas minha tese é que, se o único critério para se julgar dentre essas teorias fosse sua habilidade de predizer, todas elas seriam igualmente prováveis, pois todas teriam sido até agora igualmente bem sucedidas em predizer. O fato que muitas das teorias não foram consideradas seriamente é fundamento para supor que algum

outro critério estava em funcionamento e claramente, este era o de simplicidade. A maioria das teorias que predizem os dados são teorias que descrevem Marte como se movendo numa curva muito contorcida que só pode ser descrita por uma equação muito complicada. A teoria de que Marte se movia numa elipse era muito simples. Deve haver um critério para se escolher dentre o número infinito de teorias que são igualmente bem sucedidas em predizer as observações já feitas para que sejamos capazes de fazer qualquer predição justificada do futuro. A história da ciência revela que, na falta de conhecimento de fundo, este critério é basicamente o de simplicidade. Sem usar o critério de simplicidade, não poderíamos fazer qualquer progresso em qualquer investigação racional. Simplex sigullum veri (“o simples é sinal do verdadeiro”) é um tema dominante deste livro, como ficará claro no momento devido. Tudo que me preocupei em mostrar aqui é a influência crucial do critério de simplicidade na ciência. Se formos adotar em nossas investigações em religião os critérios da investigação racional que são usados na ciência e na

vida comum, devemos usar ali este critério. Enfatizo que, na medida em que lidamos com teorias de amplitude cada vez maior, haverá cada vez menos conhecimento de fundo ao qual essas teorias devem se adequar. Uma quantidade cada vez maior dos indícios observacionais cai na categoria de dados que a teoria tem que explicar ao invés de dados que ela toma por conhecidos na explicação de outras coisas. Newton buscou uma teoria geral da mecânica num tempo em que havia pouco em termos de dados relevantes sobre fenômenos não mecânicos. Desde sua época, na medida em que mais dados foram adquiridos e mais teorias foram desenvolvidas sobre eletricidade, magnetismo, radiação e assim por diante, os cientistas tentaram desenvolver uma teoria mais fundamental de amplitude cada vez mais amplo para explicar todas estas teorias de nível mais baixo. Ao avaliar candidatas a teorias fundamentais, a “adequação ao conhecimento de fundo” tornou-se cada vez menos importante. Uma “Teoria de Tudo” não terá indícios contingentes de fundo por meio dos quais determinar a probabilidade prévia. A probabilidade prévia tem então de ser determinada

por considerações puramente a priori. Mas note que isto não torna teorias de amplitude limitada mais “empíricas”, menos dependentes do critério a priori de simplicidade do que teorias de amplitude grande. Isso porque a questão de se uma teoria limitada “se encaixa” no conhecimento de fundo é uma questão da simplicidade da conjunção da teoria postulada com aquele conhecimento de fundo. A teoria acerca do comportamento do argônio, num certo respeito, a temperaturas baixas, se acomoda à teoria sobre o comportamento do neon e outros gases inertes a baixas temperaturas se a conjunção destas teorias é simples — por exemplo, afirmar que todos os gases inertes se conformam em seu comportamento a certa equação simples a baixas temperaturas —, mais simples que a conjunção de alguma outra teoria sobre o argônio com a teoria sobre o neon e outros gases inertes. A simplicidade é um critério altamente importante e inevitável na avaliação da probabilidade de qualquer teoria científica. Uma consequência da relevância cada vez menor do conhecimento de fundo à medida que lidamos com teorias de amplitude cada vez maior é

que há cada vez menos razão para postular entidades e propriedades similares àquelas que desempenham um papel em teorias de áreas vizinhas. Uma teoria a respeito do comportamento do argônio a baixas temperaturas deve postular que o argônio consiste de moléculas que têm massa e são sujeitas às leis da mecânica e da atração gravitacional — pois é isso o que supomos acerca de outros gases. Contudo, quando passamos a grandes teorias de grande amplitude que se propõem a explicar muito mais, podemos (contanto que elas satisfaçam os critérios de simplicidade) postular novos tipos de entidades e propriedades diferentes daquelas que ocorrem nas teorias de nível mais baixo que a grande teoria se propõe a explicar. Você não pode supor que o argônio é composto de quarks, enquanto outros gases são compostos de moléculas que não são feitos de quarks. Mas você pode apresentar uma teoria da constituição de todos os prótons e nêutrons, que eles são feitos de quarks, um tipo bem novo de entidade com estranhas propriedades, de uma espécie não observada até aqui.

Justificação da explicação pessoal Veremos que os mesmos critérios de probabilidade prévia (determinados pela simplicidade, amplitude e adequação ao conhecimento de fundo, se houver) e poder explicativo valem para a avaliação da probabilidade de uma hipótese de explicação pessoal, uma hipótese de que certo agente produziu um efeito em virtude de certas crenças, intenções e poderes. Atribuímos efeitos às ações de outros seres humanos na medida em que é possível atribuir-lhes os mesmos poderes de realizar ações básicas, de terem intenções e modos de adquirirem crenças tão similares quanto possíveis aos nossos próprios (princípio de caridade) e tão simples quanto possível (princípio de simplicidade), uma imagem que nos leva a esperar o comportamento público que de fato encontramos. Assim, nós supomos que, mantendose todo o resto igual, outros seres humanos que recebem as mesmas sensações visuais que nós chegarão a ter as mesmas crenças: por exemplo, que alguém que tem as sensações que temos quando vemos um avião pousando chegará a ter a crença de

que um avião pousou (embora, é claro, é possível que ele possa não o ter, caso nunca tenha visto ou ouvido um avião antes). Nós supomos, mantendo-se todo o resto igual, que outros seres humanos têm os mesmos poderes de mover braços, pernas, boca, olhos, lábios, etc. que nós. Nós supomos, mantendo-se todo o resto igual, que outras pessoas têm intenções semelhantes a nós — por exemplo, de transmitir informação correta por meio do que eles dizem, quando não é inconveniente demais. É fazendo essa suposição[45] que aprendemos a interpretar línguas estranhas. Tudo isso envolve aplicar o princípio de caridade. E supomos que as pessoas não mudam suas intenções e crenças repentina e aleatoriamente — que suas intenções permanecem constantes durante certo período e que suas crenças mudam perante a recepção de estímulos sensoriais de maneiras regulares. Essa é uma aplicação do princípio de simplicidade, mas a imagem que construímos das pessoas deve ser tal que nos leve a esperar o comportamento que encontramos. Se supusermos que um homem tem a intenção única de postar uma carta e acredita que a caixa do correio fica na rua acima à esquerda, nossa

suposição deve ser alterada se ele for rua para a rua abaixo à direita. O princípio de caridade é realmente uma aplicação do princípio de simplicidade tal como o defini, pois, ao fazer a suposição de que as intenções dos outros e seus modos de adquirir crenças são semelhantes aos nossos, fazemos uma suposição mais simples do que a suposição de que eles diferem. Estendemos esta compreensão geral de modo a incluir animais, para animais com aparatos (por exemplo, boca, pernas, etc.) semelhantes aos nossos, na medida em que podemos atribuir-lhes poderes semelhantes para mover esses aparatos. Do mesmo modo, na medida em que podemos, atribuímos a animais intenções e modos de adquirir crenças semelhantes aos nossos — por exemplo, a intenção de obter comida quando o animal já não tiver comido por algum tempo; e se estímulos visuais de comida num armário ficarem atingindo o olho do animal, uma crença de que há comida naquele armário. Novamente, contudo, nossa imagem deve nos levar a esperar o comportamento que encontramos e deve ser modificado ou estendido a fim de fazê-lo. Atribuímos aos animais poderes

diferentes dos nossos — por exemplo, o movimento de mover o rabo como uma ação básica, e lhes negamos intenções similares às nossas — por exemplo, a intenção de emitir um pronunciamento complicado — a fim de ter uma imagem simples de seus poderes, intenções e crenças que nos levem a esperar os movimentos animais que observamos. Nos casos de seres humanos e animais, assumimos que podemos reconhecer corpos humanos e animais, os veículos das ações básicas de agentes racionais, mas também estamos prontos a explicar outros fenômenos como devidos às ações de agentes racionais com poderes, crenças e intenções na medida em que tais explicações satisfaçam os critérios de probabilidade prévia e poder explicativo que vimos funcionando na avaliação das explicações científicas. Para começar, estamos prontos a acreditar que um objeto físico de um tipo bastante novo e estranho é o corpo de um agente racional, na medida em que podemos dar uma descrição simples de seu comportamento em termos pessoais. Podemos descobrir num outro planeta algum objeto físico P que passe por várias mudanças de estado corpóreo e faça movimentos,

tal como o movimento de algum membro E, mas que seja uma questão em aberto se P é um agente racional. Se formos supor que P é um agente racional e que E é o resultado de uma ação, estamos claramente fazendo uma suposição que não se encaixa muito bem em nosso conhecimento de fundo acerca do mundo. Iremos supor a existência de um agente racional que, em sua história, aparência e fisiologia, é muito diferente daqueles com os quais estamos familiarizados. Podemos precisar supor também que P tenha poderes básicos, intenções e modos de adquirir crenças (por exemplo, não via estímulos impingindo a órgãos sensórios semelhantes aos nossos) muito diferentes do têm os seres humanos. As suposições acerca de P podem também ter de ser complexas — por exemplo, podemos ter de supor que P tenha intenções inconsistentes e que mudam rapidamente. Ora, é claro que, quanto maiores as diferenças que supusermos entre P e agentes racionais conhecidos e menos simples for nossa imagem de P, menos provável será que P seja um agente racional. Contudo, embora nossa sugestão seja inicialmente improvável, seu poder explicativo poderia ser tão

grande que a tornaria provável ainda assim. Se certa suposição acerca de P, quanto ao modo que ele adquire crenças e quais são seus poderes e intenções, torna muito provável certos movimentos em ou de seu corpo que de outro modo seriam muito improváveis, então teríamos boas razões para tomá-la como verdadeira. Assim, dentre as suposições acerca das intenções, crenças e poderes básicos de P podem estar suposições pormenorizadas acerca da linguagem de P — nomeadamente, que ele emite certas sílabas com a intenção de, por meio delas, transmitir certa informação e que ele acredita que a emissão daquelas sílabas vai transmitir aquela informação e assim do mesmo modo para várias outras sílabas. Se esta suposição torna provável sua emissão de várias sílabas ao invés de outras sílabas em outras circunstâncias, e ele realmente emite aquelas sílabas e não estas, então, isso aumenta a probabilidade da suposição acerca de P. Muitos indícios deste tipo aumentariam a probabilidade fortemente. É possível que venhamos a encontrar certos fenômenos que de outro modo seriam inexplicáveis e que poderiam ser explicados pela ação de um

agente não corpóreo, tal como um fantasma ou um espírito. Os fenômenos a serem explicados podem ser que livros, cadeiras, tinteiros, etc. começam a voar em minha sala. Postulamos como o responsável um espírito P com certas intenções, crenças e poderes. Certamente, devemos supor que P é muito diferente de outros agentes racionais conhecidos por nós, tanto em seus poderes quanto em seus modos de adquirir crenças (estes podem não ser, por exemplo, por meio de órgãos dos sentidos). Mas, podemos supor que P tem crenças que sejam influenciadas, como são as nossas, pelo modo como as coisas são e que tenha intenções do tipo que temos — por exemplo, intenções de uma espécie típica de seres humanos com certo caráter e história. Por exemplo, podemos supor que P foi antes uma pessoa corpórea que tivesse sido fortemente ferida por X e que tivesse amado intensamente Y, enquanto X e Y ainda eram vivas. Então supomos que P é igual a muitos de nós se o supomos com uma história tal para ter a intenção de ferir X, de evitar que Y se machuque e de se comunicar com Y. Se supomos que P é semelhante a nós nesses modos, a suposição de que P existe se enquadra em certa

medida em nosso conhecimento de fundo, embora, ao postular uma pessoa não corpórea, ela não se enquadre em grande medida. A suposição é mais provável na proporção de sua simplicidade — ou seja, se postula algumas poucas intenções constantes, modos simples de obter crenças e poderes não mutáveis. Acima de tudo, a suposição ficará provável se tiver um alto poder explicativo. Ela teria isso se, por exemplo, os livros, cadeiras, tinteiros etc. atingissem X ou se dispusessem em palavras que avisassem Y de perigo iminente e assim por diante. Poderíamos esperar que esse tipo de coisa aconteceria se P fosse como supusemos, muito mais do que esperaríamos que elas acontecessem ordinariamente. É crucial que não haja uma explicação científica mais provável dos acontecimentos (a não ser alguma que explique ou que seja explicada pelas intenções dos espíritos). É necessário que os fenômenos de livros, cadeiras e tinteiros voando não sejam mais prováveis devido a um furacão ou ao fato de eu ter subitamente adquirido grande massa e grande poder de atração gravitacional, sendo essas características compreensíveis pela explicação científica normal. É

também crucial que não exista uma explicação pessoal provável em termos da ação de um agente corpóreo (diferente do que seja explicável ou que explique a ação de um espírito). Se um agente corpóreo moveu as cadeiras por telecinesia, então um espírito não o fez. Os exemplos que venho tomando até aqui de casos nos quais podemos afirmar que algum fenômeno é o resultado da ação de um agente racional diferente de um ser humano usando poderes normais são casos nos quais afirmamos que o fenômeno é resultado de uma ação básica. Se formos afirmar que um fenômeno é o resultado de uma ação mediada, temos de encontrar uma ação básica da qual ela seja uma consequência propositada. Assim, se formos descobrir os resultados de ações mediatas de agentes não humanos, devemos primeiro descobrir os resultados de suas ações básicas. Uma vez que encontramos ações básicas diferentes das normais, podemos usar critérios do tipo ao qual me referi antes para determinar se suas consequências eram propositadas pelo agente e, assim, se elas deveriam ser consideradas como resultados de ações mediatas.

Em tudo isso, vemos o investigador usar os critérios de probabilidade prévia e poder explicativo para julgar o valor de hipóteses propostas de explicação pessoal, tal como se dá com teorias propostas de explicação científica. A probabilidade prévia de uma hipótese é, como vimos, uma questão de sua adequação ao conhecimento de fundo, sua simplicidade e sua falta de amplitude. Adequação ao conhecimento de fundo no caso das hipóteses de explicação pessoal consideradas até agora é uma questão de postular pessoas semelhantes a conhecidas quanto a sua história e fisiologia, seus poderes básicos, suas intenções e seus modos de obter crenças. Vimos que quanto menos as pessoas postuladas forem semelhantes a pessoas conhecidas (nomeadamente, humanas), menos será provável que elas existam. Simplicidade no caso de hipóteses de explicação pessoal é uma questão, primeiro, de postular poucas pessoas. Você não postula que vinte pessoas causaram vários fenômenos — por exemplo, vinte pegadas na praia — se você pode explicar os fenômenos postulando que apenas uma pessoa os causou — que as pegadas foram feitas por uma pessoa caminhando. Além disso, ela envolve

postular poucas propriedades, poucas intenções constantes, poderes básicos contínuos e leis simples — modos constantes e previsíveis pelos quais as pessoas adquirem crenças de seu ambiente. Uma hipótese terá amplitude menor e assim será mais verossímil na medida em que lhe fale sobre as causas de menos fenômenos ou dê menos pormenor sobre as intenções, poderes, etc. da pessoa. Mas, mesmo se for uma hipótese minuciosa, poderíamos ter indícios suficientes para torná-la verossímil. O poder explicativo de uma hipótese de explicação pessoal é, primeiramente, uma questão de sua habilidade em prever os fenômenos que de fato nós observamos. Assim, uma teoria de que P tem o poder de dobrar colheres à distância e a intenção de fazer o que as pessoas lhe pedem para fazer leva-nos a prever que, quando lhe pedirmos para dobrar colheres, as colheres ficarão dobradas. Se nossas predições acontecem, isto é, de fato, indício em favor da teoria. Mas, como notei em relação à explicação científica, o poder explicativo de uma hipótese depende também de os indícios em seu favor serem de tal modo que “não seriam esperáveis de outro modo”. Ou seja, os indícios não devem ser

prováveis em vista de outras hipóteses com probabilidade prévia e poder preditivo relativamente alto. É por esta última razão que era de grande importância que, se fôssemos aceitar teorias acerca de espíritos ou homens com a habilidade de dobrar colheres à distância, não deveria haver outras explicações prováveis destes fenômenos. A hipótese do teísmo, que busca explicar a existência do universo e suas várias características é, como vimos, uma hipótese de explicação pessoal e, assim, deve ser avaliada segundo estes critérios. Contudo, note que é uma hipótese de amplitude enorme. Uma “Teoria Física de Tudo” pretende explicar tudo que há de físico; o teísmo se propõe a explicar tudo que for logicamente contingente (fora ele mesmo). Consequentemente, não haverá conhecimento de fundo ao qual ele tenha de se adequar. Não será, portanto, uma desvantagem para ele se ele postular uma pessoa que, de muitas maneiras, for bastante diferente das pessoas humanas corpóreas tão familiares a nós. Ao considerar os argumentos em favor da existência de Deus, começaremos com uma situação de conhecimento de fundo tautológico e, assim, as

discrepâncias entre as pessoas humanas e o Deus postulado não afetarão, enquanto tais, a probabilidade prévia do teísmo. O fato, por exemplo, de que os seres humanos normalmente executam suas intenções por meio de uma cadeia de eventos neurais culminando em eventos corpóreos não faz parte de nosso conhecimento de fundo quando julgamos a probabilidade da existência de Deus, para o qual aquilo não se dá. Mas, é claro, o argumento em favor do teísmo deve levar em conta esse fato acerca dos seres humanos, não como conhecimento de fundo, mas como indícios a serem explicados pela hipótese. O proponente do teísmo precisa explicar porque um Deus sem corpo deveria criar seres humanos corpóreos e eu procuro fazê-lo no capítulo 6. O fato de que todos os corpos materiais que observamos têm diâmetros de mais de 1 mm não é normalmente interpretado como conhecimento de fundo, tornando improvável que existam partículas fundamentais de diâmetros muito menores, mas sim como algo que requer explicação em parte por meio desta última hipótese.

O teorema de Bayes Podemos colocar agora em forma simbólica nossas ideias acerca da probabilidade de uma hipótese h com base em indícios e, dependendo diretamente da probabilidade prévia de h e o poder preditivo de h e inversamente da probabilidade prévia de e. Onde k é nosso conhecimento de fundo geral acerca do que há no mundo e como este funciona, e representa nossos fenômenos a serem explicados e outros indícios observacionais relevantes e h é nossa hipótese. P(h/e&k) é uma função da probabilidade prévia de h, P(h/k), e de seu poder explicativo com respeito a e. Este último é um fator que aumenta com o poder preditivo de h, P(e/h&k), e decresce com a probabilidade prévia de e, P(e/k). P(e/h&k) é uma medida de quão provável é que os fenômenos observados e devam ocorrer se a hipótese h for verdadeira (dado nosso conhecimento de fundo k). Assim, quanto mais h tornar e provável, esperável, maior será . P(e/k) mede a probabilidade prévia de e, o quão provável é que e ocorrerá em todo caso, aconteça o

não h, dado apenas k. Certamente, quanto mais indícios nós tivermos, quanto mais diversos e de outro modo inexplicáveis forem nossos indícios, mais baixo será P(e/k) (relativo a P(e/h&k)) e assim, novamente, maior será . Essas ideias ficam explícitas num teorema básico da teoria da confirmação, o teorema de Bayes[46], que tem a seguinte fórmula:

Este teorema se segue diretamente dos axiomas do cálculo matemático da probabilidade, para cuja verdade há boas bases independentes[47]. Mas, ao apresentá-lo, não apelo muito a essas bases independentes, mas principalmente às que foram dadas até agora neste capítulo (embora o modo particular pelo qual P(h/e&k) aumenta com P(h/k) e P(e/h&k), mas decresce com P(e/k) não dependa de nada que eu tenha dito até aqui, mas deva depender dessa derivação).

P(h/k), a probabilidade prévia de h, depende, como vimos, no caso normal, tanto da simplicidade interna de h (e sua limitação de amplitude) quanto também do quanto h se encaixa em nosso conhecimento de fundo geral do mundo contido em k. Contudo, como vimos no capítulo 1, qualquer divisão dos indícios entre e e k será de algum modo arbitrária. Normalmente, é conveniente chamar as partes mais recentes dos indícios observacionais de e e o resto de k, mas às vezes é conveniente deixar e como todos os indícios observacionais e k como meros “indícios tautológicos”. Neste último caso, a probabilidade prévia P(h/k) é o que chamarei de probabilidade intrínseca de h e dependerá principalmente da simplicidade de h (tanto quanto, em menor proporção, de sua limitação de amplitude). Contudo, se k contém indícios logicamente contingentes do que há no mundo e de como este funciona, P(h/k) dependerá também de quão bem h se encaixa naqueles indícios. Onde k for um conjunto de meros “indícios tautológicos”, P(e/k) será o que chamarei de probabilidade intrínseca de e. Afirmei que o teorema de Bayes é

verdadeiro, mas eu deveria esclarecer o que quero dizer com isso. Quero dizer que, na medida em que, para vários e, h e k, as probabilidades que ocorram neles possam receber um valor numérico, o teorema estabelece as relações numéricas que valem entre eles. Na medida em que não se possam atribuir valores numéricos precisos, minha afirmação de que o teorema de Bayes é verdadeiro é simplesmente de que todas as declarações de probabilidade comparativa que forem acarretadas pelo teorema serão verdadeiras. Por declarações de probabilidade comparativa, quero dizer proposições sobre uma probabilidade ser maior que ou igual a ou menor que alguma probabilidade (tais proposições são às vezes tudo o que se pode justificadamente asserir sobre algumas probabilidades — vide pp. 17-18). Assim, segue-se do teorema de Bayes que, se há duas hipóteses h1 e h2 tal que P(e/h1&k)=P(e/h2&k), então P(h1/e&k)>P(h2/e&k) se e somente se P(h1/k)>P(h2/k). Isso diz que se tanto h1 quanto h2 tornam igualmente provável que encontraremos o indício e, dado conhecimento de fundo k, então um deles, h1, será mais provável que o outro em vista da

totalidade dos indícios e e k, se e somente se h1 for mais provável que h2, dados apenas os indícios de fundo. Falando mais tecnicamente, se h1 e h2 têm igual poder preditivo, h1 terá maior probabilidade posterior (isto é, probabilidade em relação aos indícios totais e e k) do que h2 se e somente se ele tiver uma probabilidade prévia maior. Assim, se há duas teorias científicas igualmente bem sucedidas em predizer certas observações, uma delas será mais provável que a outra se e somente se ela for mais provável antes de se fazerem as observações. Ou, novamente, segue-se do teorema de Bayes que, se P(h1/k)=P(h2/k), então P(h1/e&k)>P(h2/e&k) se e somente se P(e/h1&k)>P(e/h2&k). Isto diz que, se duas hipóteses forem igualmente prováveis antes de certos indícios e serem obtidos, uma das duas será mais provável que a outra em vista da totalidade dos indícios se e somente se, dada aquela hipótese, for mais provável que e será encontrado do que o seria dada a outra hipótese (num caso extremo, h1 pode acarretar e — pode ser uma consequência dedutiva de h1 que e ocorra — e h2 pode acarretar ~e, que e não ocorra).

Aqui vai outro exemplo, ligeiramente diferente daqueles usados até agora, para ilustrar o funcionamento do teorema de Bayes. Seja h a hipótese de que Jones roubou o banco Barclays, seja e os indícios de que ele estava perto do banco na hora do crime e seja k o conhecimento de fundo de que Jones roubou outro banco, o banco Lloyds, em outra ocasião. Então, P(h/e&k) é determinado pelo poder explicativo de h, , e a probabilidade prévia de h, P(h/k). P(e/h&k) é a probabilidade de e, dados tanto h quanto k. Neste caso, ela é 1, pois, se Jones roubou o banco, ele deve ter estado perto da cena naquela hora. P(e/k) é a probabilidade de que ele estaria perto da cena naquela hora, dado que ele roubou o banco Lloyds. Esta será maior do que P(h/k), a probabilidade, dado que ele roubou o banco Lloyds, de que ele roubou o banco Barclays, uma vez que ele poderia ter razões bastante inocentes para estar onde ele estava. A probabilidade de que ele roubou o banco Barclays é, então, a probabilidade prévia de que ele o fez, multiplicada pela medida em que a hipótese que ele o fez torna e mais esperável do que seria de outra maneira. Será útil neste estágio, antes de continuar

com o argumento principal, apresentar outra ideia importante sobre confirmação que pode ser ilustrada pelo teorema de Bayes. Diz-se às vezes que estamos justificados em aceitar uma hipótese apenas se a testamos ao identificarmos que ela prediz certos eventos e então esperamos para ver se aqueles eventos acontecem ou não; e apenas se eles acontecem é que estamos justificados em aceitar a hipótese. A meu ver, parece que, embora nós frequentemente testemos hipóteses deste modo, não temos de fazê-lo caso estas se tornem prováveis por nossos indícios e deste modo estamos justificados em aceitá-las. A sugestão de que as hipóteses devem predizer de modo bem sucedido (interpretado no sentido literal acima) para que se tornem prováveis pelos indícios certamente não está contida no teorema de Bayes. É uma questão indiferente, em relação àquele teorema, se e é observado antes ou depois da formulação de h. Tudo que importa são as relações de probabilidade valendo entre e e h, e certamente o teorema está certo a esse respeito. O fato de eu chamar P(e/h&k) de “poder preditivo” de h não tencionava implicar que e foi descoberto apenas após a postulação de h que o predizia.

A teoria do movimento de Newton foi tida como altamente provável, dados os indícios disponíveis no final do século dezessete, embora não fizesse nenhuma predição imediatamente testável, a não ser as que já eram feitas pelas leis que já eram conhecidas e que ela explicava (por exemplo, as leis de Kepler do movimento planetário e a lei da queda de Galileu). Sua alta probabilidade vinha apenas do fato de ser uma teoria fundamental muito simples, da qual aquelas leis distintas eram dedutíveis. Em termos mais gerais, o fato de e tornar h provável, certamente não pode depender crucialmente de se pensamos em h antes de virmos e. Se fosse assim, probabilidade se tornaria uma questão altamente subjetiva ao invés de uma relação objetiva entre indícios e hipótese. O teorema de Bayes, contudo, é capaz de explicar por que frequentemente, na verdade, normalmente, estamos interessados em predições que podemos testar subsequentemente à formulação da teoria. Isto é assim porque apenas quando temos a teoria (h) é que sabemos qual exatamente é o indício que poderia tornar muito alto; apenas então é que sabemos de que indício podemos precisar a fim de que a teoria se

torne altamente provável. Não é muito provável que já tenhamos aquele indício em nossas mãos — nós normalmente temos de procurá-lo. Ainda assim, nós podemos tê-lo já em nossas mãos. Assim, não é em si mesma uma objeção à hipótese de que Deus existe que ela não produza predições que só possamos saber se elas vão se concretizar amanhã e não hoje. Os indícios do teísta podem tornar sua hipótese provável sem que esta condição seja satisfeita[48]. Segue-se imediatamente do teorema de Bayes que P(h/e&k)>P(h/k) se e somente se P(e/h&k)>P(e/k). Este importante princípio é o que Mackie chamou de “critério da relevância”[49]. Segue-se dele por um passo de lógica bastante curto que P(h/e&k)>P(h/k) se e somente se P(e/h&k)>P(e/~h&k). Isto diz que uma hipótese h é confirmada pelo indício e se e somente se aquele indício for mais provável de ocorrer se a hipótese for verdadeira do que se a hipótese for falsa. O resultado é certamente correto. Ele está implícito em muitos juízos que fazemos na vida comum. As impressões digitais de Jones no cofre confirmam a suposição de que ele o roubou se e somente se for mais provável que elas estivessem no cofre se ele

cometeu o crime do que se não. Se for igualmente provável que elas estivessem no cofre caso Jones tivesse ou não o roubado (por exemplo, porque Jones é o gerente da loja na qual o cofre está situado e com frequência o abre), elas não confirmam a suposição de que ele roubou o cofre. Segue-se que um argumento de e em favor de h é um argumento C-indutivo correto se (e somente se) e for mais provável de ser encontrado se h for verdadeiro do que se h for falso. Se a teoria mais simples (dentre aquelas de amplitude e adequação com os indícios de fundo iguais) tem a probabilidade intrínseca mais alta, quão provável ela é em relação a teorias ligeiramente menos simples? A prática de cientistas, historiadores, etc. mostra que eles julgam que uma teoria muito simples é muito mais provável do que teorias menos simples. Se você pode explicar muitas pistas pela hipótese de que um agente os as causou, isso é muito mais provável do que uma teoria, com o mesmo poder explanatório de explicar as pistas, que postule que dois agentes causaram as pistas. E uma teoria que postula uma lei de atração do inverso do quadrado é intrinsecamente muito mais provável do

que uma que postule uma lei de atração variando com a potência de 2,01 das distâncias. E uma teoria que relacione apenas umas poucas variáveis postuladas e ainda seja capaz de explicar tanto quanto uma teoria que relacione muitas variáveis é muito mais preferível. Contudo, quando nos deparamos com teorias nem tão simples (o que podemos precisar fazer quando teorias muito simples acabam tendo poder explicativo baixo), a probabilidade intrínseca da teoria mais simples que restou não é muito maior do que a da próxima teoria menos simples. A teoria de que a força de atração varia com a potência de 2,01 é ligeiramente mais provável intrinsecamente do que a teoria de que ela varia com a potência de 2,012. Contudo, a prática de cientistas e outros investigadores sugere que, embora sempre haja um número infinito de teorias muito complexas, eles sempre julgam mais provável, em vista dos dados disponíveis num certo tempo que a explicação fique num grupo de teorias mais simples. Teorias muito complexas são encaradas como improváveis demais para serem verdade se há teorias mesmo moderadamente simples com poder explanatório

significativo. O teísta argumenta a partir do mundo, o fato de sua existência e suas características pormenorizadas, em favor de um Deus que o levou a efeito. Uma vez que a estrutura de seu argumento é a mesma de um argumento a partir de um âmbito mais estreito de fenômenos em favor de uma pessoa não corpórea, tal como um espírito, que os levou a efeito como resultados de suas ações, nós temos de usar os mesmos critérios incorporados no teorema de Bayes — tendo em vista, como enfatizei, as diferenças no âmbito dos fenômenos. O teísta argumenta a partir de todos os fenômenos da experiência, não de um pequeno grupo deles. Devemos tomar e como representando, por sua vez, as diferentes facetas do mundo que o teísta traz como indícios em favor da existência de Deus e as facetas que o ateu traz como indícios contra a existência de Deus. h será a hipótese de que Deus existe e, para começar, k será mero indício tautológico. A fim de avaliar P(h/e&k) em cada caso, precisaremos, então, avaliar e P(h/k). A probabilidade, dados os indícios, da existência de Deus dependerá do quanto a hipótese da existência

de Deus é capaz de explicar a ocorrência de fenômenos que de outro modo seriam altamente improváveis, e de sua probabilidade prévia, que (uma vez que não haverá conhecimento de fundo) significa sua probabilidade prévia, em vista de sua amplitude e de sua simplicidade. O teísmo é uma hipótese de grande amplitude como qualquer outra visão de mundo — por exemplo, o fisicalismo. E assim, a fim de compará-la com outras visões de mundo, podemos ignorar o problema de sua amplitude. Além disso, como sugeri anteriormente com o exemplo da teoria científica — a teoria de Newton — a amplitude é, em todo caso, um critério de muito menos importância que a simplicidade na determinação da probabilidade intrínseca. O determinante crucial da probabilidade prévia do teísmo deve ser a simplicidade. Vou avaliar a simplicidade e assim a probabilidade intrínseca do teísmo no capítulo 5. O poder explicativo do teísmo vai variar, como vimos, em função dos diferentes e. Contudo, antes de discutir a força comprobatória dos diferentes e — ou seja, os diferentes argumentos — nós precisaremos considerar os princípios gerais envolvidos na determinação dos valores de duas

probabilidades, P(e/h&k) e P(e/k), que determinam o poder explicativo. P(e/k) é uma questão de quão provável é que os vários fenômenos ocorram em todo caso — ou seja, caso Deus os leve a efeito ou não. Segue-se do cálculo que:

P(e/k)=P(e/h&k) P(h/k)+P(e/~h&k) P(~h/k)

O primeiro grupo no lado direito (P(e/h&k) P(h/k)) simplesmente repete a linha de cima do lado direito do teorema de Bayes. Assim, pelo teorema, P(h/e&k) ficará perto de 1 se e somente se o segundo grupo (P(e/~h&k) P(~h/k)) for baixo (relativo ao primeiro grupo). Este segundo grupo mede o quão provável é que e ocorrerá se Deus não existir. Este será baixo se não for provável que qualquer outra causa levaria a efeito e ou que e ocorreria sem causa. Discutirei no capítulo 4 os princípios gerais envolvidos na avaliação deste último e, especialmente, quais são as bases para se afirmar que algum fenômeno ocorreu sem causa (ou

seja, não tem explicação). No capítulo 6, vou considerar em termos gerais como P(e/h&k) deve ser avaliada, ou seja, que tipo de e Deus provavelmente levaria a efeito. Note que eu tomo h simplesmente como “Deus existe”. Em si mesma, ela dá apenas uma explicação parcial de e. Ela precisa ser conjugada a uma intenção de levar a efeito e a fim de dar uma explicação plena de e. O valor de P(e/h&k) dependerá, para vários e, do quanto for provável que Deus terá aquela intenção.

4. Explicação completa Defendi no último capítulo que as bases para postular uma explicação pessoal de fenômenos estão na probabilidade prévia e no poder explicativo daquela explicação. O poder explicativo de uma explicação depende crucialmente da probabilidade prévia dos fenômenos, do quanto é provável que os fenômenos ocorreriam não importando se a explicação proposta é correta. Assim, um fator crucial na determinação da força de um argumento com base em fenômenos em favor da existência de Deus é se aqueles fenômenos seriam de algum modo prováveis que ocorressem se não fosse pela ação de Deus. Eles poderiam existir sem o concurso da ação de Deus se alguma outra coisa os tivesse feito vir a ser — nomeadamente, se houvesse uma explicação científica (ou outra explicação pessoal) de sua existência — ou se eles pudessem existir sem causa, sem que houvesse qualquer explicação para sua existência. Neste capítulo, vou considerar que tipo de fenômenos não poderia receber uma explicação

científica (ou pessoal) e, então, analisar que tipo de fenômeno poderia existir sem causa. Este último problema refere-se a qual é o término apropriado de uma explicação, de quando temos bases para supor que chegamos ao fim do trajeto explicativo e quando não. Este capítulo está preocupado em desenvolver princípios gerais, que podem posteriormente ser aplicados a argumentos em favor da existência de Deus. O teísta afirma que os fenômenos que ele cita — por exemplo, a existência do universo — não poderiam existir sem causa, mas que Deus poderia existir sem ser causado. Precisaremos investigar se a existência de Deus é um término de explicação mais satisfatório do que a existência do universo com suas várias características. Se Deus existe, segue-se que, como vou mostrar brevemente no capítulo 5, a explicação se encerra nele — um ser não seria Deus se algo diferente de Deus pudesse explicar sua existência. Mas o que precisa ser mostrado é que a existência de Deus forma um ponto mais natural de parar a explicação que, digamos, a existência do universo. O cientificamente inexplicável

Para começar, quais são as bases para supor que fenômenos não têm explicação científica? Podese mostrar que fenômenos de dois tipos não são explicáveis cientificamente. Primeiro, há fenômenos que são estranhos demais para caberem no padrão estabelecido de explicação científica e, em segundo lugar, há fenômenos que são grandes demais para caberem em qualquer padrão de explicação científica. Para mostrar que um fenômeno é estranho demais para ser explicável cientificamente, o teísta precisa mostrar que há bons indícios para um sistema científico h que cubra certa gama de fenômenos, mas que não é uma consequência de h que certos fenômenos (dentro do âmbito geral de h) ocorram, e que qualquer tentativa de corrigir ou expandir h para permitir que este prediga e, tornaria h tão complexo que seria muito improvável que ela fosse verdadeira. Os teístas afirmaram que vários fenômenos particulares são estranhos demais para serem explicáveis cientificamente. Dentre eles, se assumimos que eles ocorrem, estão violações de leis da natureza tais como levitações ou pessoas se

curando de pólio em um minuto ou sangue repentinamente se liquefazendo ou pessoas caminhando sobre a água, eventos que os teístas afirmam serem milagres. Eu discutirei o problema dos milagres no capítulo 12. Mas a estranheza dos eventos não precisa estar confinada ao particular; pode haver eventos de certos tipos que não podem ser explicados pela ciência. Pode haver muitos indícios para um sistema científico e ainda ser uma consequência deste sistema que uma explicação científica de certos tipos de evento seja excluída. Os teístas afirmaram algumas vezes que a ocorrência de organismos vivos ou a ocorrência de seres humanos conscientes era inexplicável cientificamente. Não penso que se possa argumentar muito com base na primeira, mas penso que realmente se pode fazê-lo com base na segunda e vou discutir este argumento no capítulo 9. Vou analisar em pormenor e ilustrar com exemplos nestes dois últimos capítulos, 9 e 12, o tipo de argumento usado para mostrar quais fenômenos são estranhos demais para serem explicáveis cientificamente. Aqui, eu apenas o delineei num esboço esquemático. Os outros fenômenos que não podem ser

explicados cientificamente são fenômenos que são grandes demais para a ciência e grande demais não apenas para algum sistema científico particular bem estabelecido, mas para qualquer sistema científico. Ao considerar, no capítulo 2, a natureza da explicação científica, vimos que a ciência explica por que algum evento ou estado de coisas ocorre. Ela o faz, no modelo hempeliano, em termos de um estado anterior de coisas e alguma lei natural. Ela também explica por que certas leis naturais operam e o faz em termos de leis da natureza mais fundamentais — por exemplo, explica a operação da lei de Galileu em termos da operação das leis de Newton. Mas, como mostrarei mais precisamente no capítulo 7, o que a ciência não poderia explicar é por que há quaisquer estados de coisa afinal; ela pode explicar apenas por que, dado que há tais estados, este estado é seguido por aquele estado. Tampouco ela pode explicar, como mostrarei mais precisamente no capítulo 8, por que valem as leis naturais mais fundamentais de todas. Ou estas são fatos brutos sobre o mundo ou elas têm uma explicação de um tipo diferente. Nós veremos que o cientificamente

inexplicável, o estranho e o grande, formam os pontos de partida normais para argumentos em favor da existência de Deus. O argumento cosmológico e a maioria dos argumentos teleológicos raciocinam com base em fenômenos alegadamente grandes demais para a ciência explicar, enquanto a maior parte dos outros argumentos raciocina a partir de fenômenos supostamente estranhos demais para a ciência explicar. Os argumentos precisam mostrar também que não há explicação pessoal em termos da ação de um agente corpóreo. Feito isso, o que foi mostrado é que uma explicação em termos de um agente muito poderoso e não corpóreo é a única explicação possível dos fenômenos. Segue-se, então, que ou o teísmo ou algo como ele é verdadeiro, ou que os fenômenos são apenas fatos brutos inexplicáveis, o ponto de parada da explicação. Explicação plena, completa, última e absoluta O principal problema deste capítulo é, então, quais são os pontos de parada adequados para a explicação, quando é que temos bases para supor

que certos fenômenos constituem pontos de parada assim e quando é que temos base para supor que eles próprios têm uma explicação. Havendo estabelecido princípios gerais, podemos então perguntar se é correto supor que o universo físico ou a operação regular das leis científicas ou eventos particulares como (assumindo que aconteceram) a ressurreição de Cristo dos mortos, são apenas fatos brutos ou se eles são fenômenos que é razoável supor que têm uma explicação além. Antes de lidar propriamente com o problema central, preciso primeiro fazer certas distinções. A questão do que é um “término” de explicação precisa de uma explicação mais técnica. Já introduzi no capítulo 2 os conceitos de explicação plena e explicação parcial de algum fenômeno. Uma explicação de E por F é plena se F inclui tanto uma causa, C e uma razão, R, que juntas tornam necessária a ocorrência de E (lembre que na interpretação hempeliana da explicação científica, C refere-se às condições iniciais e R às leis naturais, enquanto na explicação pessoal, C é uma pessoa e R as intenções, crenças e poderes básicos daquela pessoa). Se C e R juntos dão uma explicação plena

de E, nada mais logicamente contingente além de C e R é preciso para que a ocorrência de E seja garantida, e assim, uma proposição que se refira a C e R acarreta uma proposição referente a E. Assim, uma explicação científica de um eclipse da Lua E é plena se citar as leis naturais envolvidas L (as leis do movimento de Newton e as leis da propagação da luz) e os estados precedentes do mundo C necessários para a ocorrência de E (as posições e massas da Lua, Sol e Terra e a ausência de outros corpos celestes na região) e se L e C juntas acarretarem E. Uma explicação de E é apenas parcial se a explicação incluir fatores que contribuíram para se levar a efeito a ocorrência de E (que a fez fisicamente mais provável), mas esses fatores não tornam necessária a ocorrência de E. Ora, uma explicação plena realmente explica por si mesma por que algo aconteceu. Ela o faz de modo bastante independente de se há ou não uma explicação de como quaisquer estados que ela cite vieram a ser (por exemplo, por que o sol estava onde estava) ou por que qualquer das razões que ela cite opera (por exemplo, por que certas leis naturais valem). Afirmar o contrário é cometer uma falácia

que podemos chamar de “falácia completista”. Trata-se claramente de uma falácia, pois se fosse realmente o caso que F não pudesse explicar E a não ser que houvesse uma explicação de F, nada no universo poderia ser explicado, a não ser que houvesse explicações para coisas como a origem de nossa galáxia, o que é absurdo. Trata-se, porém, de uma falácia comum. Assim, Hume objeta nos Diálogos à postulação de um Deus que planejou o mundo como uma explicação para sua ordem com base na ideia de que a existência postulada de um agente racional que produz a ordem do mundo precisaria ela mesma de explicação. Figurando um agente assim como uma mente e uma mente como um arranjo de ideias, Hume elabora a objeção assim: “um mundo mental ou um universo de ideias requer uma causa tanto quanto um mundo material ou universo de objetos”.[50] O próprio Hume oferece a resposta óbvia para isso — que não é objeção a explicar E por F que não se possa explicar F. Mas ele então sugere que F, neste caso, a mente, é tão misteriosa quanto o universo ordenado. Os seres humanos nunca “acharam satisfatório explicar um efeito particular por uma causa particular que

não fosse mais explicada que o próprio efeito”[51]. Porém, isto é simplesmente falso. Podemos dar uma explicação perfeitamente boa de como Jones perdeu sua fortuna em termos do modo como a roleta do cassino de Monte Carlo girou, ao mesmo tempo em que não haja explicação de como a roleta girou, estando isto muito para além da explicação. Ainda assim, embora uma explicação plena de E (no sentido de “explicação plena” que eu delineei) não deixa qualquer faceta de E sem explicação, explicações posteriores podem ser dadas frequentemente — pode haver explicações de por que os fatores citados no explanans são operativos e como eles vieram a existir. Concentremo-nos, no momento, nas explicações dos fatores no tempo[52] t no qual eles levaram a efeito E. Admita que os fatores sejam C, a causa que leva a efeito E no tempo e R, a razão da eficácia de C. Admita que C leva a efeito E no tempo t. A existência de C em t pode depender de algum outro fator B, que faz C existir no tempo t. Assim, suponha que meu braço ao mover faça uma alavanca se mover naquele tempo e o movimento da alavanca faça a pedra se mover naquele tempo. O movimento da pedra (E) é

levado a efeito pelo movimento da alavanca (C) que, por sua vez, é levado a efeito pelo movimento do meu braço (B). Então, a existência presente de uma causa é dependente da operação presente de sua própria causa. Do mesmo modo, a operação da razão R pode depender de alguma razão S de nível mais alto, que no tempo da operação de R faz R operar. Assim, a lei da queda de Galileu opera na Terra porque a Terra tem tal e tal massa e porque as leis de Newton valem ali. Defino agora uma explicação completa da ocorrência de E como se segue. Uma explicação completa da ocorrência de E é uma explicação plena de sua ocorrência na qual todos os fatores citados são tais que não há explicação (seja plena seja parcial) de sua existência ou operação em termos dos fatores operativos no tempo de sua existência ou operação. Assim, suponha que uma maré alta é levada a efeito pelo Sol, a Lua, a Terra, a água, etc. estarem em certas posições e pela operação das leis de Newton. Há aqui, suponhamos, uma explicação plena. Suponha também que as leis de Newton operam aqui porque esta região do universo é relativamente vazia de matéria e as leis de Einstein

da Relatividade Geral valem. Esses fatores agem ao mesmo tempo para fazer as leis de Newton operarem. Suponha também que nada neste tempo faz o Sol, a Lua, etc. estarem onde estão (embora alguma causa passada fosse responsável por eles estarem onde estão) e tampouco que algo nesse tempo faça as leis de Einstein operar ou que essa região fique relativamente vazia. Então há uma explicação completa da maré alta em termos da operação das leis de Einstein, do universo nesta região ser relativamente vazio de matéria e do Sol, a Lua, a Terra, a água, etc. estarem onde estão[53]. A explicação completa é um tipo especial de explicação plena. Delinearei agora, como um tipo especial de explicação completa, o que chamarei de explicação última. Falando informalmente para começar, temos uma explicação última de um fenômeno E se podemos estabelecer não apenas que fatores C e R operaram no tempo para levar a efeito E e que fatores contemporâneos fizeram C e R existirem e operarem naquele tempo e assim por diante até que cheguemos a fatores para a existência e operação contemporânea da qual não há explicação, mas também estabeleçamos os fatores

que originalmente levaram a efeito C e R e que fatores originalmente levaram esses fatores a efeito e assim por diante até que cheguemos aos fatores para sua existência e operação dos quais não haja explicação. Menos frouxamente, defino uma explicação última de E como uma explicação completa de E, na qual os fatores C e R citados são tais que sua existência e operação não tenham explicação plena ou parcial em termos de quaisquer outros fatores. Aqueles fatores são fatos brutos últimos. Suponha que Deus não exista, que o universo começou com uma explosão num estado X num tempo t, que é governada por leis determinísticas L (cuja operação não é explicável para além disso); e que, de acordo com L, X levou a efeito um estado Y e Y levou a efeito um estado Z e Z levou a efeito E. Assim, (X e L), (Y e L) e (Z e L) são, cada um, explicações completas de E, mas apenas (X e L) é uma explicação última de E. Por fim, delineemos como um tipo especial de explicação última o que eu vou chamar de explicação absoluta. Uma explicação absoluta de E é uma explicação última de E na qual a existência e a operação de cada um dos fatores citados é ou

autoexplicativa ou logicamente necessária. Outras explicações citam fatos brutos que formam os pontos de partida das explicações; não há fatos brutos nas explicações absolutas — aqui tudo é realmente explicado. Não acredito que possa haver qualquer explicação absoluta de fenômenos logicamente contingentes, pois certamente nada explica a si mesmo. A existência de P em t2 pode ser explicada em parte pela existência de P em t1. Mas a existência de P em t1 não poderia explicar a existência em t1. A existência em t1 pode ser o fato bruto último acerca do universo, mas não explicaria a si mesmo nem algo logicamente necessário pode representar uma explicação de algo logicamente contingente. Isso porque uma explicação plena é, como vimos, tal que o explanandum (ou seja, o fenômeno que requer explicação) é dedutível daquela, mas você não pode deduzir algo logicamente contingente de algo logicamente necessário. E uma explicação parcial é em termos de algo que no contexto tornou a ocorrência do explanandum mais provável, sem o que as coisas teriam, muito provavelmente, seguido outro curso (logicamente possível). No entanto, um

mundo no qual alguma verdade logicamente necessária não valesse é uma suposição incoerente, mas não o é um mundo no qual as coisas teriam provavelmente seguido outro curso. Esta é uma das muitas razões pelas quais se deve defender que Deus é um ser logicamente contingente, embora talvez seja necessário de outros modos. Assim, por essas razões, deixemos de lado considerações sobre explicação absoluta e voltemos para explicações dos outros tipos. Sugiro que os argumentos sobre a existência de Deus com os quais estamos preocupados são argumentos para uma explicação completa dos fenômenos. Eles todos afirmam que a intenção de Deus num certo tempo leva a efeito certos fenômenos num certo tempo; e que nada mais naquele tempo explica seja sua existência seja o fato de ele formar aquela intenção. Sua intenção envolvida numa explicação completa não tem qualquer explicação causal, de vez que ele é perfeitamente livre. Que sua existência naquele tempo tenha uma explicação ou não em termos de algo anterior depende apenas do quão sujeito ao tempo é o ser de Deus. Se Deus for um ser que, por sua intenção em cada momento de tempo se

mantém existindo no momento seguinte, então sua existência num dado momento, que dá parte de uma explicação completa de algum fenômeno mundano, teria ela mesma uma explicação posterior em termos de suas intenções anteriores. Apenas uma explicação completa em termos da intenção de Deus num tempo, sua existência por algum período sem começo no tempo e sua intenção em cada momento da existência de continuar existindo é que daria uma explicação última daqueles fenômenos. Se, por outro lado, Deus é o tipo de ser que é necessariamente eterno no sentido de que, se ele existe em qualquer tempo, ele existe em todos os tempos, sua existência em qualquer tempo não teria qualquer explicação além. No próximo capítulo, argumentarei em favor da tese de que a essência de Deus é necessariamente eterna[54]. Neste caso, qualquer explicação completa em termos da intenção de Deus num tempo também será uma explicação última. Assim, consideremos agora as bases para supor que alguma explicação é uma explicação completa. Justificando uma alegação de explicação

completa As considerações básicas para se julgar uma explicação proposta como provável são, como vimos, a probabilidade prévia e o poder explicativo da hipótese explicativa proposta. Na medida em que a hipótese proposta torna provável, ou melhor, torna necessário, o fenômeno a ser explicado e também a ocorrência de outros fenômenos que se observa ocorrerem, e na medida em que a ocorrência dos fenômenos é de outro modo muito improvável, ela tem grande poder explicativo. Ela tem probabilidade prévia, basicamente, na medida em que for simples e se adequar ao nosso conhecimento geral do mundo. É simples na medida em que postular poucas entidades e razões (ou seja, leis ou intenções) de um tipo simples. Ela se encaixa em nosso conhecimento de fundo geral do mundo na medida em que as entidades e razões que ela postular forem do mesmo tipo que entidades e razões que temos motivo para acreditar que existam e operem em outras esferas. Eu sugeriria que nossas bases para acreditar que objetos (eventos, estados, etc.) ou razões não têm uma explicação além em termos de fatores agindo

no tempo — e assim que qualquer explicação dada por aqueles objetos ou razões é uma explicação completa — são bases para acreditar que estes poderiam ser explicados apenas pela postulação de causas e razões (agindo no tempo) que não tivessem mais poder explicativo ou probabilidade prévia que o explananda — ou seja, as coisas a serem explicadas — ou que tivessem mais de uma apenas se tivessem correspondentemente menos da outra. Vou agora ilustrar esta afirmação com exemplos de casos nos quais as pessoas acreditaram com razão que, na medida em que se pode falar de explicação científica, eles haviam chegado a uma explicação completa. No modelo hempeliano, explicamos um fenômeno E pelas condições iniciais C e as leis científicas L. Uma explicação científica completa de E vai citar as leis mais fundamentais da natureza e condições iniciais que não têm explicação em termos de estados ou eventos contemporâneos. Eu ilustro minha tese sobre minhas bases para acreditar que chegamos a um término de explicação ao considerar as bases para acreditar que chegamos às leis mais fundamentais da natureza. Nós frequentemente explicamos a operação

de uma lei pela operação de outra — por exemplo, a lei da queda de Galileu é explicada pela operação das leis de Newton. Nossas bases para aceitar uma explicação assim serão de que há um ganho ou de poder explicativo ou de probabilidade prévia sem uma grande perda do outro. Em meu exemplo, há um ganho de poder explicativo no fato de que as leis de Newton predizem com sucesso tanto a operação da lei de Galileu (com um alto grau de precisão) e a ocorrência de outros fenômenos. É uma consequência dedutiva das leis de Newton e de certas proposições verdadeiras de condições iniciais (por exemplo, de que a Terra tem tal e tal massa e raio) que a lei de Galileu opera com um alto grau de aproximação. As leis de Newton também predizem com sucesso os movimentos dos planetas, o comportamento das marés, a interação de corpos em colisão, etc. Além disso, as leis de Newton têm alta probabilidade prévia. Como vimos anteriormente também, elas são extremamente simples. A questão de adequação com o conhecimento de fundo dificilmente se coloca, pois a teoria de Newton se propõe a cobrir um campo tão largo que não há muito fora dele com o qual comparar as entidades e

leis que ela postula. Contudo, a descoberta posterior das leis do inverso do quadrado na atração eletrostática e magnetostática (ou seja, leis do mesmo tipo matemático das leis de Newton da atração gravitacional) deram à teoria de Newton alguma probabilidade prévia por essa razão também. Assim, a tentativa de explicar a lei de Galileu pelas leis de Newton foi passo que resultou em ganho de poder explicativo que não foi anulado por qualquer perda de probabilidade prévia. Assim, a lei da queda de Galileu é realmente explicada pelas leis de Newton. As leis de Newton, por sua vez (ou melhor, sua operação em caso dos corpos terem massa relativamente grande e velocidade relativamente baixa) são explicadas pelas equações de campo de Einstein da Relatividade Geral. Na passagem das leis de Newton para as de Einstein há talvez uma perda de simplicidade (embora o próprio Einstein considerasse que suas leis tivessem uma forma simples). Mas há algum ganho considerável de poder explicativo. Podemos derivar das leis de Einstein não apenas as leis da mecânica de Newton, mas várias predições precisas sobre o comportamento da luz e outras radiações

eletromagnéticas, além de algumas predições bem sucedidas sobre o comportamento mecânico dos corpos que são diferentes das feitas pelas leis de Newton. Minha tese é de que estaríamos justificados em acreditar que alguma lei ou leis fossem o término da explicação, que não deveria ser mais explicada, se tivéssemos bases para acreditar que qualquer ganho de poder explicativo seria compensado por uma perda correspondente de probabilidade prévia e que qualquer ganho de probabilidade prévia seria compensado por uma perda correspondente de poder explicativo. Nós teríamos essas bases se já tivéssemos leis simples que se adequassem bem ao nosso conhecimento de fundo e se tivéssemos base para crer que qualquer tentativa de corrigir nossas leis ou derivá-las de leis mais fundamentais, a fim de aumentar o poder explicativo da ciência, iria tornálas ou outras leis científicas muito complicadas, ou diminuir sua adequação ao nosso conhecimento de fundo às custas de pouco ganho de poder explicativo. Eu sugiro que os cientistas do final do século dezoito que defenderam que as leis de Newton eram as leis mais fundamentais da natureza

tinham exatamente essas bases. Isso porque os fenômenos que as leis de Newton não explicavam eram a luz, fenômenos químicos e biológicos e alguns poucos fenômenos variados, tais como a atração elétrica e magnética. Newton tinha delineado uma interpretação plausível de como suas leis poderiam explicar a luz. Nos fenômenos químicos e biológicos e também nos fenômenos de atração elétrica e magnética havia obviamente alguma força ou forças em ação que tinham efeitos significativos apenas a distâncias muito curtas. Parecia como se pudéssemos lidar com estes fenômenos acrescentando-se às outras quatro uma quinta lei voltada para essas forças sem se corrigir aquelas. [55] A quinta lei estabeleceria a equação que governa a operação dessas forças que seriam sujeitas às proposições gerais acerca das forças contidas nas primeiras três leis. Pelo fato dessas forças serem operativas apenas em distâncias muito curtas e de serem, em consequência disso, diferentes da força gravitacional que mostrava seu poder em distâncias longas, não havia razão par supor que a lei da gravidade requereria qualquer correção. Assim, parecia como se não pudesse haver qualquer ganho

de poder explicativo com a retificação das leis de Newton ou com a derivação destas de leis mais fundamentais. Tampouco, em vista de sua incrível simplicidade (e, na medida em que fosse o caso, boa adequação ao conhecimento de fundo), parecia que elas pudessem melhorar nesses aspectos. Por estas razões, os cientistas do século dezoito estavam, eu sugiro, justificados em acreditar que a ciência havia chegado a um término com as leis de Newton[56]. Contudo, muitos fenômenos novos, descobertos pela ciência inicialmente no século vinte não podiam ser submetidos ao tipo de interpretação que se adequaria à teoria de Newton. Toda uma gama de fenômenos ligados ao comportamento da luz e outras radiações eletromagnéticas, bem como fenômenos subatômicos, mostraram-se bem diferentes do que a teoria de Newton levava a esperar. Em consequência, uma teoria como a Teoria da Relatividade Geral de Einstein, que nos levou a esperar muitos destes fenômenos, inclusive os fenômenos gravitacionais, seria uma teoria de poder explicativo muito maior que a de Newton e assim alguma perda de simplicidade seria tolerável a fim de se obter uma teoria global. Ainda assim fica

de pé minha tese de que os cientistas do século dezoito tinham uma crença razoável quando acreditavam que as leis de Newton não eram suscetíveis de maiores explicações. Vimos assim os critérios de probabilidade prévia e poder explicativo funcionando para nos dar bases, dentro da explicação científica, para crer que chegamos a um término no regresso da explicação por leis. As mesmas considerações valem, penso eu, para nos dar bases para crer que, dentro da explicação científica, localizamos condições iniciais C que não são dependentes para sua existência atual de nenhum estado de coisas posterior B. Assim, usando o mesmo exemplo empregado no capítulo 3, podemos explicar alguns fenômenos pelo movimento de alguma estrela S. Contudo, S estará se movendo de um modo que deve ser esperado se as leis de Newton (ou leis semelhantes a ela) forem as leis verdadeiras do movimento apenas se houver um planeta P não observado que esteja exercendo uma força de atração sobre S. A ciência ficaria enormemente complicada se supuséssemos que as leis do movimento fossem de algum modo diferentes das leis de Newton apenas de modo a podermos

explicar o movimento de S. É muito mais simples postular P. Supomos que chegamos a condições iniciais que não dependem de outros estados de coisas se, tanto quanto podemos ver, não houvesse qualquer ganho em poder explicativo em geral ou em probabilidade prévia ao se postularem outros estados. Postular P aumenta o poder explicativo da ciência (ao possibilitar que ela explique o movimento de S) ao mesmo tempo em que mantém as leis simples e, embora aumente o número das entidades que se postula, a nova entidade (planeta) é de um tipo bem conhecido na ciência — a suposição de sua existência se encaixa bem em nosso conhecimento de fundo. Contudo, a ciência contemporânea nunca postula entidades cuja ação seja responsável pela existência atual de corpos materiais distintos (diferentemente, por exemplo, dos movimentos destes). Nada diferente de S mantém S sendo por sua ação presente. Mas a ciência contemporânea afirma isso apenas porque não haveria qualquer ganho em probabilidade prévia ou poder explicativo se ela afirmasse algo diferente (é claro, como sugere este livro, que pode haver razões de fora da ciência para se fazer uma afirmação assim).

Considerações parecidas surgem com o problema de determinar os tipos de constituintes dos objetos materiais. A ciência postula que objetos materiais observáveis são feitos de constituintes não observáveis — por exemplo, de moléculas de vários tipos ligadas de vários modos. Ela postula entidades que compõem objetos materiais e a interação entre elas que explicam o comportamento dos objetos materiais observáveis. Ao observarem milhares de substâncias macroscópicas se combinando em diferentes proporções para produzirem outras substâncias, os químicos postularam que estas substâncias foram feitas de átomos de apenas cem tipos diferentes e postularam certas leis de sua interação suficientes para explicarem o comportamento das substâncias macroscópicas. A teoria atômica era tal que nos levava a esperar toda uma gama de fenômenos químicos, alguns dos quais já eram conhecidos e alguns dos quais foram posteriormente descobertos, fenômenos que não havia outra razão para esperar. Além disso, ao postular que substâncias macroscópicas eram feitas apenas de átomos de cem tipos diferentes, ela explicava os fenômenos em termos de uma

perspectiva mais simples. Ao buscarem maior simplicidade, os cientistas naturalmente buscavam dar uma interpretação de como os átomos de tipos diferentes distintos uns dos outros em termos de serem feitos de números diferentes de blocos constituintes ainda mais elementares de, digamos, dois ou três tipos distintos. Eles esperavam que uma interpretação assim fosse explicar a valência de diferentes átomos, por que eles entraram justamente naquelas combinações químicas que eles assumiram. Muito da história posterior da física fundamental é a história do fracasso de tentativas assim, o fracasso em achar um ou dois blocos constituintes elementares diferentes tais que o mundo observável pudesse ser plausivelmente visto como composto deles e seu comportamento como constituído pela interação destes. Inicialmente, no começo do século vinte uma imagem simples e bela começou a emergir — os átomos pareciam ser feitos de elétrons e prótons apenas. Porém, infelizmente, novos fenômenos apareceram de modo que a ciência teve de postular nêutrons, fótons e pósitrons, neutrinos, -mésons, K-mésons, múons e assim por diante, a fim de explicar os fenômenos. A variedade

de partículas fundamentais se tornou quase tão grande quanto a variedade de átomos. E assim a física buscou um ganho em simplicidade ao postular que algumas partículas (por exemplo, prótons e nêutrons) eram feitos de partículas ainda menores, os quarks. Mas então acabaram aparecendo muitos tipos diferentes de quarks. É claro que havia um ganho em poder explicativo envolvido na postulação de várias partículas fundamentais — vários fenômenos físicos recentemente descobertos eram agora previsíveis. Mas não havia ganho em simplicidade ou adequação a conhecimento de fundo — embora, como vimos, este último dificilmente seja levado em consideração em teorias que pretendam explicar tudo. A Física ainda dedica sua atenção à busca de padrões subjacentes à variedade das partículas fundamentais. Embora a Física não tenha ainda chegado à situação na qual fique satisfeita, sugiro que os físicos estariam prontos a reconhecer bases para crer que não houvesse outras entidades responsáveis por alguma atividade observada ou postulada. Suponha que a física houvesse tido o sucesso que os físicos do início do século vinte esperavam. Suponha que

toda atividade química e física pudesse ser predita pela postulação de um tipo positivo e um tipo negativo de partícula, de massa igual, mas de carga oposta, dentre diferentes números e arranjos dos quais todos os corpos foram feitos e cujas interações constituíram seus modos de agir. A postulação de outras entidades poderia, então, não resultar em ganho nenhum de poder explicativo, tampouco, ao que parece, poderia resultar em ganho de simplicidade, o elemento crucial na determinação da probabilidade prévia. Isso porque, eu desafio qualquer um a imaginar um tipo de explicação científica mais simples de dados do tipo com que esses físicos lidavam. Isso não significa dizer que não pudesse haver uma, mas apenas que não seria razoável supor que pudesse haver uma. Teríamos aqui um ponto final de explicação razoável (dentro da ciência). Sabemos o que seria razoável em termos de um ponto final, tanto quanto de tipos de entidades e leis. Até aqui, tenho expressado minhas ideias em termos da interpretação hempeliana da explicação científica. Permita-me expô-las em termos da interpretação de substâncias, poderes e

susceptibilidades. Para explicar a existência e o modo de agir de objetos observáveis, a ciência postula que objetos (substâncias) de vários tipos têm certos poderes e susceptibilidades. Ela postula que os objetos têm vários poderes (por exemplo) de atrair e repelir outros objetos e várias susceptibilidades de sofrerem ação de outros objetos de modo a serem forçados a exercerem seus poderes. Ela postula que há objetos além dos que podem ser vistos — por exemplo, planetas distantes conhecidos apenas por seus efeitos em estrelas observáveis — e que objetos observáveis são compostos de vários objetos não observáveis com certos poderes e susceptibilidades. Ela faz isso apenas de modo a explicar o que é observado. O que é postulado tem de ter um poder considerável para explicar o que é observado e deve haver uma probabilidade prévia maior na suposição de que os objetos, poderes e susceptibilidades existem do que na suposição de que as coisas a serem explicadas existem sem serem explicadas. A consideração básica aqui é a simplicidade. A explicação deve ser aceita (como vimos no capítulo 3) na medida em que postular poucas entidades (o menor número de

planetas não observados quanto possível), entidades de poucos tipos (poucos tipos de partículas fundamentais), poucos tipos simples de poderes e susceptibilidades (por exemplo, todos os corpos materiais e não apenas átomos de nitrogênio na Terra tendo certos poderes e tendo poderes descritíveis por fórmulas simples — por exemplo, o poder de atrair de acordo com a fórmula de Newton mm’/r2). Aceitamos uma explicação com entidades e propriedades postuladas na medida em que ela nos levar a esperar os fenômenos a serem explicados e outros fenômenos que não puderem ser explicados de outra maneira na medida em que ela dê ou que seja parte de uma imagem de mundo mais simples que aquela em termos dos fenômenos apenas. Superamos uma explicação em vista de uma nova apenas se podemos conseguir um poder explicativo maior (novas coisas são explicadas) ou quando a imagem de mundo total se torna mais simples. Se não há nenhum fenômeno além para ser explicado e as entidades e propriedades postuladas têm uma simplicidade que seria difícil aperfeiçoar nos modos mostrados por nossos exemplos, temos bom motivos para acreditar que chegamos a uma explicação

completa. Considerações semelhantes se aplicam à explicação pessoal. Lembremo-nos que aqui explicamos um evento E como levado a efeito por uma pessoa P com certos poderes básicos, crenças e intenções. Os poderes, crenças e intenções pertencem ao “por quê” da explicação. Do mesmo modo que em relação às explicações científicas, procuramos explicar cada um destes fatores em termos de fatores mais simples que se encaixem no conhecimento de fundo com maior poder explicativo. Assim, ao explicar um comportamento de um ser humano, embora possamos começar postulando uma intenção separada para cada ação, buscamos postular um número de intenções de amplo alcance do tipo que outros seres humanos tenham que, dadas essas intenções, seria possível prever que aquele ser humano — dadas suas crenças — teria a intenção mais específica que ele tenha num determinado tempo. Assim, podemos explicar a intenção de alguém de abrir a porta em termos de sua crença de que abrir a porta é uma condição necessária para que ele saia de onde está e sua crença de que sair de onde está é uma condição

necessária para postar uma carta e sua intenção de postar uma carta. Esta última intenção explicará (junto com certas crenças) não apenas a intenção anterior, mas muitas outras intenções que a pessoa tenha no seu caminho para postar a carta (por exemplo, uma intenção de descer a escada, uma intenção de atravessar a rua, etc.). Do mesmo modo, explicamos crenças por crenças mais amplas e mais simples — uma crença de que este corpo que parece pesado cairá rapidamente se eu o soltar, em termos de uma crença de que todos os corpos que parecem pesados cairão rapidamente se eu os soltar e esta última crença em termos de uma crença de que todos os corpos que parecem pesados cairão rapidamente se as pessoas os soltarem. O mesmo tipo de ideia pode ser pensada acerca dos poderes. Além disso, ao explicar fenômenos inusitados (por exemplo, livros que voam ao redor da sala, como no exemplo discutido ao final do capítulo 3), procuramos atribuí-los, na medida do possível, à ação de uma pessoa (um espírito) ao invés de muitas. Buscamos, na medida do possível, postular intenções, crenças e poderes que sejam similares ou em algum grau formados de modo similar aos de

outras pessoas e que assim sejam adequados ao nosso conhecimento de fundo. Dentro dos limites da explicação pessoal, procuramos então uma explicação completa de fenômenos em termos da ação do menor número de pessoas com as intenções, crenças e poderes mais gerais dentro da imagem mais simples que possamos ter dos agentes, tal que tudo isso nos leve a esperar os fenômenos que encontramos e que não teríamos outro fundamento para esperar. É claro que para agentes humanos nós chegamos com frequência a uma situação na qual temos toda a razão para supor que alcançamos o fim do caminho explicativo: intenções, crenças e poderes básicos não deriváveis de outros mais simples ou mais amplos. Uma vez que, dentro da explicação científica e pessoal, certas explicações explicam outras explicações e é correto que se pense assim na medida em que elas satisfaçam critérios de probabilidade prévia (determinada pela simplicidade e adequação ao conhecimento de fundo) e de poder explicativo, e uma vez que, com vimos no capítulo 2, explicações pessoais e científicas estão no mesmo nível — ou seja, são rivais na explicação dos

fenômenos — conclui-se, ao que parece, que uma explicação científica poderia explicar uma explicação pessoal e vice-versa; e que os critérios que elas usam para fazê-lo são qualquer ganho de probabilidade prévia e poder explicativo que pudesse resultar dessa suposição. Com uma explicação científica explicando uma explicação pessoal não quero dizer um ser analisado em termos do outro — vimos no capítulo 2 que uma explicação pessoal não pode ser analisada em termos de uma explicação científica e é certamente igualmente plausível supor que uma explicação científica não possa ser analisada em termos de uma explicação pessoal. O que quero indicar com uma explicação científica explicando uma explicação pessoal é a existência e a operação de fatores envolvidos numa explicação pessoal sendo explicados pela existência e operação de fatores envolvidos numa explicação científica. Uma explicação científica pode ser dada sobre como as pessoas passam a existir e têm as intenções, crenças e poderes básicos que têm. O programa do fisicalismo é o de fazer uma redução deste tipo. O teísta, que tenta explicar por que o mundo é e funciona do modo que o faz, está tentando o

programa inverso — dar uma explicação pessoal em termos da ação de Deus, da existência e operação dos fatores envolvidos na explicação científica. De nossa consideração minuciosa dos critérios operativos na explicação científica ou pessoal para supor que objetos (substâncias, eventos, estados, etc.) ou razões não têm uma explicação posterior em termos de fatores agindo no tempo e assim que qualquer explicação em termos dos anteriores é completa, podemos razoavelmente concluir que os critérios para supor que fatores não têm uma explicação (pessoal ou científica) posterior em termos de fatores agindo no tempo e assim que qualquer explicação é uma explicação completa em geral (não apenas uma explicação completa dentro de uma explicação pessoal ou dentro de uma explicação científica) são que qualquer tentativa de ir além dos fatores que temos resultariam em nenhum ganho de poder explicativo ou probabilidade prévia. Você chega a uma teoria tal que, se você tenta explicar a existência e operação dos fatores existentes nela, você sempre chega a uma teoria que não explica nada além e que não tem uma probabilidade prévia maior (e em particular não

é mais simples) que a teoria que você já tem; ou se ela tem mais de um desses fatores, ela tem menos do outro. Explicitemos agora o significado dessas ideias, exprimindo-as em nossa notação simbólica. Temos como nossos indícios fenômenos e. e vai inclui algumas coisas e1 que, é provável, explicam outras coisas e2 e talvez também algumas coisas e3 que não foram explicadas. Postulamos explicações em termos de novas causas e razões apenas para coisas que ainda não as têm em termos dos fenômenos que constituem nossos indícios. Assim, não postulamos novas coisas para explicar e2, apenas para explicar e1 (e e3). Podemos postular h como uma explicação de e1. h deve ser tal que nos leve a esperar e1 (e assim, e2) — P(e1/h&k) deve ter um grau significativo de probabilidade (sendo k conhecimento de fundo de tipo tautológico). Haverá um ganho de poder explicativo na medida em que h nos leve a esperar e3 também — P(e/h&k)>P(e/e1&k). Haverá ganho de probabilidade prévia na medida em que postular a nova explicação levar a uma visão de mundo mais

simples — P(h/k)>P(e1&e3&~h/k). Na medida em que houver razão para supor que h é falso, isso levará a um aumento ou de poder explicativo ou de probabilidade prévia sem uma perda correspondente do outro, devemos postular o h para a qual o ganho for maior. Este h é provavelmente verdadeiro.

APÊNDICE Tomás de Aquino e Duns Scotus quanto ao regresso em explicação A essa altura, pode ser uma ajuda contrastar a terminologia que tenho apresentado e os resultados aos quais tenho chegado com os de Tomás de Aquino e Duns Scotus, que estão entre os poucos filósofos do passado que devotaram muita reflexão à questão de explicar uma explicação por outra e esta última por sua vez por outra. Para começar, Tomás de Aquino e Scotus estão preocupados apenas com o “o quê”, as causas, e não com o “porquê”, as razões; e por causas eles querem dizer não eventos, mas objetos (substâncias), os estados nos quais os eventos acontecem. Eles, então, consideram casos

nos quais podemos ordenar causas em série. A sendo causado por B, B por C, C por D e assim por diante. Eles distinguem séries de dois tipos — causas essencialmente ordenadas e causas acidentalmente ordenadas. Scotus explica que “em causas essencialmente ordenadas, a segunda depende da primeira precisamente em seu ato de causação. Nas causas acidentalmente ordenadas, este não é o caso, embora a segunda possa depender da primeira para sua existência, ou de alguma outra maneira”[57]. Tomás de Aquino e Scotus dão-nos um exemplo de uma série de causas essencialmente ordenadas: a pedra, a alavanca e a mão, quando a mão (o seu movimento) faz a alavanca mover a pedra. A alavanca depende da mão não para sua existência, mas para sua operação de fazer a pedra se mover. Eles nos dão como um exemplo de causas acidentalmente ordenadas a série de ancestrais — filho, pai, avô, bisavô, etc. Aqui, cada membro depende do último para chegar a existir, mas não para sua ação de gerar — o avô não faz o pai gerar o filho. Assim, as causas que ocorrem em qualquer série de explicações plenas serão uma série de causas essencialmente ordenadas e vice-versa. Uma

série de causas acidentalmente ordenadas na explicação dos primórdios da existência não explicam plenamente a existência presente ou sua ação. Scotus afirmava que qualquer série de causas essencialmente ordenadas devem ser uma série de causas simultâneas. Mas isto não é intuitivamente óbvio de modo algum. Por que não pode haver causas que ajam à distância no tempo? Por que A não pode fazer com que B faça algo dois segundos depois? Tomás de Aquino afirmava que a razão natural não poderia mostrar que não pode haver regresso infinito de causas ordenadas e assim não poderia mostrar que o universo teve um começo no tempo. Concordo com ele que não pode haver um bom argumento dedutivo com esse resultado, mas pode haver ainda assim um bom argumento indutivo[58]. Contudo, nossa preocupação, tal como a de Tomás de Aquino, em argumentos sobre a existência de Deus é com séries de causas essencialmente ordenadas (e neste caso, com séries nas quais outros membros dependem do primeiro membro, Deus, não apenas para alguma operação, mas para suas existências). Tomás de Aquino afirmava que não pode

haver um regresso infinito de causas essencialmente ordenadas. A presente operação de A pode ser devida à ação de B, que pode, por sua vez, ser devida à operação de C, mas esta série não pode prosseguir, ele sustentava, ad infinitum. Presumivelmente, Tomás de Aquino defendia, como Scotus, que quaisquer causas plenamente responsáveis por E são contemporâneas a E. Ele não levava muito em consideração, como eu disse, séries de razões, mas ele poderia defender uma tese parecida com respeito a elas. Neste caso, podemos pôr tudo isso numa forma elegante, na forma de uma tese que, creio eu, já estabelecemos como a tese de que todo fenômeno que tem uma explicação plena tem uma explicação completa. A tese é que, se há uma explicação plena de E por C e R, então, se há muitos fatores responsáveis pela ação atual de C e R, você pode encontrar um conjunto de tais fatores tais que eles mesmos não tenham explicação em termos de fatores contemporâneos. Tomás de Aquino afirmava ser capaz de provar sua tese de que não pode haver um regresso infinito de causas essencialmente ordenadas em bases a priori, mas não é inteiramente claro que

argumento é esse. Patterson Brown[59] afirma que é como se segue. A causação essencialmente ordenada[60] é transitiva. Se W causa X e X causa Y, então W causa Y. Se V por sua vez causa W, então V causa Y e assim por diante. Brown sugere que o argumento é que, na medida em que esta série V, W, X, Y continuar regredindo, não teremos encontrado a causa real de E. A menos que cheguemos à primeira causa, não encontramos a “explicação aristotélica” de E. Se este é o argumento de Tomás de Aquino, ele parece sofrer da falácia completista à qual aludi anteriormente. Certamente, se C causa E, C realmente explica a ocorrência de E, mesmo que o próprio C precise de explicação. Considere um longo trem de ferro no qual cada vagão faz mover o próximo vagão. O movimento do último vagão é certamente inteiramente explicado pelo movimento do penúltimo vagão, mesmo que haja outras coisas para serem explicadas. Não sei de qualquer bom argumento a priori para a tese de Tomás de Aquino de que não pode haver um regresso infinito de causas essencialmente ordenadas e, assim, para a tese de que qualquer fenômeno que tenha uma explicação plena tenha

uma explicação completa. A tese ainda assim pode ser verdadeira, mas até que se mostre que ela seja verdadeira, não deveríamos assumir que ela o seja. O trem de ferro infinitamente longo, no qual cada vagão por seu próprio movimento faz mover o próximo simultaneamente, parece uma suposição coerente. No entanto, embora possa não haver um bom argumento a priori para mostrar que fenômenos que têm explicações plenas tenham sempre uma explicação completa, pode ser possível mostrar em casos particulares que seja provável que seja assim. Este capítulo foi dedicado à defesa desta última tese e a estabelecer as bases para se julgar num caso particular que uma explicação seja uma explicação completa.

5. A probabilidade intrínseca do teísmo Vimos que o teísta afirma que os vários fenômenos que ele cita em favor do teísmo requerem explicação e ele afirma que o teísmo nos permite entender por que eles ocorrem e é um ponto de parada para a explicação muito mais natural do que os fenômenos originais. O argumento do último capítulo mostrou que a correção dessa afirmação depende de quão alta é a probabilidade prévia do teísmo e seu poder explicativo com respeito aos fenômenos. Neste capítulo, vou considerar a probabilidade prévia do teísmo. Se assumirmos que todos os nossos dados empíricos estão entre as coisas a serem explicadas, então nosso conhecimento de fundo será mero indício tautológico e assim nossa preocupação será com a probabilidade intrínseca do teísmo, a qual, como vimos, é basicamente uma questão de quão simples é uma hipótese.

Vou agora apresentar a hipótese do teísmo em muito mais pormenor do que o fiz no capítulo 1 e examinarei apenas quão simples é uma hipótese[61].

A natureza de Deus A definição de teísmo dada nas pp. 41-2 envolve o seguinte. Existe agora, sempre existiu e sempre existirá Deus, um espírito, ou seja, uma pessoa não corpórea que é onipresente. Considerei no final do capítulo 2 o que significa dizer de Deus que ele não é corpóreo. Essencialmente, dizer que Deus não é corpóreo é negar que haja qualquer volume de matéria tal que por suas ações básicas ele possa apenas controlar esta mesma quantidade de matéria e tal que ele saiba de acontecimentos em outra parte apenas pelos efeitos naquela. Ao contrário, dizer que Deus é um espírito onipresente é dizer que ele sabe de acontecimentos em todo lugar sem depender para aquele conhecimento de nada e que pode controlar por ações básicas todos os estados de coisas em todo lugar (neste ou qualquer outro universo) sem depender de nada para este poder. Deus é criador de todas as coisas no sentido de que, para todas as coisas logicamente contingentes que existam (à exceção dele mesmo) ele próprio as leva a efeito ou faz ou permite outros seres levarem a efeito sua existência. Ele é, assim, a

fonte do ser e do poder de todas as outras substâncias. Ele é, por exemplo, responsável pela existência passada, presente e futura dos objetos materiais e das leis naturais que eles seguem, das pessoas e de seus poderes. E tudo o mais que for logicamente contingente que possa haver — demônios e anjos e outros universos — ele os faz existir e agirem do modo como o fazem ou mantém em outros seres o poder de fazê-lo. Alguns pensadores defenderam que Deus criou o mundo num primeiro momento de sua história e impôs a ele então as leis de sua operação futura e dali em diante o deixou a si mesmo. Esta é a visão do deísta. Ao contrário, ao defender a posição do teísta, eu postulo a posição mais ortodoxa de que é, a cada momento da história do mundo, responsável por sua operação naquele momento de sua história. É claro que o teísta mais ortodoxo realmente defende que, se o universo ou qualquer outra coisa teve um começo na existência, foi Deus que levou aquele começo a efeito ou permitiu que algum outro ser o fizesse. Deus é perfeitamente livre no sentido (que eu apresento por definição) de que nada de modo algum influencia causalmente suas escolhas. Que

escolhas ele faz, ou seja, que intenções ele adota, depende dele mesmo no momento da escolha apenas (embora ele possa formar uma intenção particular — curar o seu câncer — a fim de cumprir outra intenção — de responder minhas orações). Deus é onipotente no sentido (em linhas gerais) de que ele pode fazer o que é logicamente possível que ele faça. A qualificação na última parte da frase é importante. Há alguns estados de coisas aparentes cuja descrição envolve uma contradição lógica — por exemplo, eu existir e não existir ao mesmo tempo. Deus não pode levar a efeito estados aparentes assim, não porque ele seja fraco, mas porque a descrição “eu existir e não existir ao mesmo tempo” não descreve realmente qualquer estado de coisas no sentido de que algo que seja coerente supor possa ocorrer. Há também estados de coisas que é coerente supor que pudessem ocorrer, mas que não é coerente supor que Deus pudesse levar a efeito, pois a própria descrição dele levandoo a efeito não descreve realmente uma ação. Um exemplo seria “um estado de coisas não causado”. É logicamente possível que tal estado ocorra, mas não é coerente supor que Deus possa levá-lo a efeito, ou

seja, causar um estado não causado[62]. Ele é onisciente, no sentido de que ele sabe em qualquer tempo o que seja logicamente possível que ele conheça naquele tempo (pode ser que haja proposições verdadeiras que não seja logicamente possível que uma pessoa possa conhecer em algum tempo t — por exemplo, proposições acerca das ações livres futuras de alguma outra pessoa. Então, afirmar que Deus é onisciente não é afirmar que ele sabe essas proposições em t). Ele é perfeitamente bom. Entendo por isso (em linhas gerais — de modo a que possa torná-lo mais exato em breve) que ele seja um ser que sempre faz a melhor ação moral (onde há alguma) e não faz qualquer ação moralmente má. O teísta defende que Deus possui as propriedades descritas de modo necessário de alguma maneira e ele é, em algum sentido, um ser necessário. Isso quer dizer que Deus não poderia repentinamente deixar de ser onipotente (por exemplo). Enquanto Deus é Deus, ele será onipotente; tampouco ele poderia deixar de ser Deus ao mesmo tempo em que permanece o mesmo indivíduo (como, por exemplo, o Primeiro Ministro

pode deixar de ser o Primeiro Ministro ao mesmo tempo em que continua sendo a mesma pessoa). Além disso, enquanto outras coisas existem por acaso ou por causa da ação de outras coisas ainda, Deus não poderia não existir. Sua existência não depende de nenhum outro ser nem é uma questão de acaso. Mas que tipo de “não poderia” é esse? De que tipo de “necessidade” se trata? Parece-me que um teísta, se o Deus que ele adorar for digno de adoração, deve defender que a necessidade de Deus é uma necessidade do tipo mais forte que o ser descrito até agora pode possuir. Minha descrição do que isto significa é como se segue. Dizer que um ser necessariamente ou essencialmente tem certas propriedades é dizer que sem essas propriedades ele não poderia existir. A razão pela qual Deus necessariamente tem as propriedades que eu acabei de descrever é que ter aquelas propriedades é essencial para ser o tipo de ser que Deus é. Digamos que φ é um tipo essencial se um indivíduo que é φ não pode deixar de ser φ enquanto continuar a existir. Para usar o bem discutido exemplo de Kripke[63], uma pessoa é um tipo essencial. Se John é uma pessoa, ele não poderia ser nada mais,

pois se John deixa de ser uma pessoa, ele deixa de existir. Chamemos uma pessoa que é onipotente, onisciente, perfeitamente livre, perfeitamente boa e criadora de todas as coisas um ser divino. O teísta deve afirmar que Deus é um ser que pertence ao tipo essencial de ser divino[64]. Ele não poderia cessar de ser divino sem cessar de ser Deus. Não há incoerência óbvia em supor que um tipo dentro do tipo de pessoa é também um tipo essencial no sentido em que é uma pessoa. Isso é o bastante acerca da necessidade das propriedades divinas que pertencem a Deus. Uma descrição ligeiramente diferente deve ser feita da necessidade da existência de Deus. Dizer que “Deus existe” é necessário é, creio eu, dizer que a existência de Deus é um fato bruto que é inexplicável — não no sentido de que não sabemos sua explicação, mas no sentido de que ela não tem uma. Como vimos no capítulo 4, qualquer término de explicação de coisas logicamente contingentes deve ser ele mesmo algo logicamente contingente. Contudo, como vimos ali também, há duas maneiras pelas quais o fato de a existência de Deus ser um fato bruto inexplicável pode ser

compreendido. A primeira posição é dizer que a essência de Deus é uma essência eterna. Deus é um ser de um tipo tal que, se ele existe em qualquer tempo, ele existe em todos os tempos; sua existência em todo caso permanece o fato logicamente contingente. A posição alternativa é dizer que a essência divina é uma essência temporal; o fato bruto último não é Deus existir como tal, mas o fato de sua existência ser por um período de tempo sem começo. Sua existência subsequente seria devida a sua escolha intencional a qualquer momento do tempo de continuar a existir subsequentemente. O teísmo tradicionalmente assumiu a posição anterior e eu vou argumentar em favor dela em breve. Neste caso, Deus terá o tipo de necessidade mais forte compatível com o fato dele ser um ser contingente. Tal existência necessária nós podemos chamar de existência factualmente necessária (em contraste com existência logicamente necessária). Defendi no capítulo anterior que, se a existência de Deus é uma essência eterna, qualquer explicação completa dos fenômenos em termos de Deus levá-los a efeito é também uma explicação última.

A simplicidade do teísmo Assim é a hipótese do teísmo tal como a entendo. Quão simples é essa hipótese? Proponhome defender que é uma hipótese muito simples mesmo. Começarei a fazer isso mostrando como as propriedades divinas que eu delineei se encaixam umas nas outras. Uma explicação teísta é uma explicação pessoal. Ela explica fenômenos em termos da ação de uma pessoa. A explicação pessoal explica fenômenos como resultado da ação levada a efeito em virtude de seus poderes básicos, crenças e intenções. O teísmo postula Deus como uma pessoa com intenções, crenças e poderes básicos, de um tipo muito simples, tão simples que postula o tipo mais simples de pessoa que poderia haver. Para começar, o teísmo postula um Deus que é apenas uma pessoa[65], não muitas. Postular uma substância é fazer uma postulação bastante simples. Ele é infinitamente poderoso, onipotente. Esta é uma hipótese mais simples que a hipótese de que existe um Deus que tem tal e tal poder limitado (por exemplo, o poder de reordenar a matéria, mas não o poder de criá-la). É mais simples exatamente

do mesmo modo que a hipótese de que alguma partícula tem massa zero ou velocidade infinita é mais simples que a hipótese de que tem massa 0,34127 de alguma unidade ou uma velocidade de 301.000 km/seg. Uma limitação finita exige uma explicação de por que há apenas aquele limite particular, num modo que a não limitação não exige. Como notei no capítulo 3, os cientistas sempre preferiram hipóteses de velocidade infinita a hipóteses de velocidade finita muito grande quando ambas eram igualmente compatíveis com os dados. E eles sempre preferiram hipóteses de que alguma partícula tinha massa zero a hipóteses de que elas tinham alguma massa bem pequena quando ambas eram igualmente compatíveis com os dados. Há uma limpidez acerca de zero e infinidade que números particulares finitos não têm. No entanto, uma pessoa com poder zero não seria pessoa alguma. Assim, ao postular uma pessoa com poder infinito, o teísta está postulando uma pessoa com o tipo mais simples de poder possível. As crenças de Deus têm uma qualidade infinita similar. Pessoas humanas têm algumas poucas crenças finitas, algumas verdadeiras, algumas

falsas, algumas justificadas, algumas não. Na medida em que elas são verdadeiras e justificadas (ou em alguma medida justificada num certo modo), crenças significam conhecimento. Pareceria o mais consoante com sua onipotência que um ser onipotente tivesse crenças que significassem conhecimento, pois, sem crenças verdadeiras acerca das consequências de suas ações, você deixa de se dar conta de suas intenções. Crenças verdadeiras deixam de significar conhecimento apenas se elas são verdadeiras por acidente. Mas se as propriedades divinas são possuídas de modo necessário, as crenças de Deus não poderiam ser falsas e assim, não poderiam ser verdadeiras por acidente. E se um ser onipotente tem conhecimento, a suposição mais simples é postular que o ser onipotente é limitado em seu conhecimento, bem como em seu poder, apenas pela lógica. Neste caso, ele teria todo o conhecimento que é logicamente possível que uma pessoa tenha — ou seja, ele seria onisciente. Para uma pessoa agir, ela deve ter intenções. Uma pessoa poderia ser onipotente no sentido de que qualquer ação (logicamente possível) que ele

formasse a intenção de realizar, ela seria bem sucedida em fazer. Do mesmo modo, ela seria onisciente de modo que soubesse quais eram todas as ações (logicamente possíveis) disponíveis a um ser onipotente em sua situação e ainda estar predeterminada a formar certas intenções. Suas intenções podem ser determinadas por fatores causais fora de seu controle ou, em alguma medida, como são as dos seres humanos, grandemente influenciadas por aqueles. Mas se uma pessoa está pré-determinada (ou tem uma tendência probabilística inata) a agir de certos modos específicos, isso significa que uma tendência para agir de um modo particular está dada dentro dela. Mas uma pessoa com uma especificação inata minuciosa acerca de como agir é uma pessoa muito mais complexa do que uma cujas ações são determinadas apenas por sua escolha não causada no momento da escolha. Tal ser eu denomino um ser perfeitamente livre. Ao postular que Deus é perfeitamente livre, o teísmo faz a suposição mais simples acerca de sua escolha de intenções. Uma substância que é essencialmente onipotente, onisciente e perfeitamente livre é

necessariamente um término de explicação completa. Isso porque, se algum estado de coisas E é explicado como levado a efeito por Deus em virtude de seus poderes, crenças e intenções de levar a efeito E, como poderia a ação ser explicada para além disso? Os poderes de Deus derivam de sua onipotência, suas crenças de sua onisciência e suas intenções, se derivam de alguma coisa, podem derivar apenas de alguma intenção sua mais ampla. A intenção mais ampla de Deus não tem explicação, exceto a de que ele escolheu esta intenção — seguese de sua liberdade perfeita que apenas a razão o influencia a fazer aquela escolha. O fato de Deus ser onipotente, onisciente e perfeitamente livre está envolvido em sua existência, dado que, como supusemos, essas qualidades pertencem à essência divina. Mas sua existência não pode ser devida a qualquer fator contemporâneo que o faça existir ou o permita existir, pois, se sua existência dependesse de algum fator fora ele mesmo, aquele fator poderia não depender de si mesmo para existir (pois não se pode ter causação em círculo.[66] Mas, se este fator não depende de Deus, então Deus não seria capaz de fazê-lo existir ou não existir e assim não seria

onipotente. Ele é necessariamente um término de explicação completa. É claramente mais simples supor que o princípio último de explicação, a fonte última das coisas, sempre foi o mesmo, e assim, supor que Deus existiu eternamente, ao invés de supor que apenas, por exemplo, em 4004 a.C. Deus passou a existir e reinar. Mas, a menos que a essência de Deus seja uma essência eterna, sua eternidade vai constituir não apenas do fato de Deus existir, mas do fato de existir ao longo de um período de tempo sem começo. Esta é uma suposição mais complicada — ela traz para a explicação dos fenômenos o problema de quando é que Deus existe. Mas se a essência de Deus é eterna, então qualquer explicação completa de fenômenos em termos da ação de Deus é também uma explicação última, pois a existência de Deus num tempo é acarretada pelo simples fato dele existir e não requer ser explicada em termos de sua existência prévia e suas escolhas prévias. Assim, o tipo mais simples de Deus é um que seja factualmente necessário, no sentido definido anteriormente. Eu defendo em seguida que a posse por Deus das outras propriedades atribuídas a ele — ser

um espírito onipresente, ser o criador de todas as coisas e (dada certa suposição altamente plausível) ser perfeitamente bom — se seguem do fato de ser onipotente, onisciente e perfeitamente livre. Sua posse das primeiras duas propriedades é fácil o bastante de mostrar. Se Deus for onipotente, então ele deve ser capaz de controlar por seus poderes básicos todos os estados de coisas em todo lugar. Se Deus é onisciente, ele deve saber o que está acontecendo em todo lugar. Se ele dependesse para o seu conhecimento da ação de nervos ou olhos, então, se estes fossem funcionar de modos não usuais, ele não teria conhecimento. Mas, uma vez que, por hipótese, a onisciência de Deus pertence à sua essência, isso não poderia acontecer. Assim, Deus é um espírito onipresente. Uma vez que Deus é onipotente, então, ele poderia evitar qualquer coisa de acontecer se ele assim o escolhesse. Assim, o que quer aconteça, acontece porque ele faz ou permite que aconteça. Assim, ele é o criador de todas as coisas no sentido que eu delineei. Além disso, se se adota certa visão acerca da condição dos juízos morais, a bondade perfeita de Deus se segue dedutivamente de sua onisciência e de

sua perfeita liberdade. A visão em questão é a visão de que juízos morais, ao afirmarem que esta ação é moralmente boa e aquela outra é moralmente má, são proposições que são verdadeiras ou falsas. A verdade desta visão é, certamente, um problema filosófico controverso,[67] mas é altamente plausível. Certamente, a pessoa que diz que não havia nada moralmente errado com o fato de Hitler exterminar os judeus está dizendo algo falso. Por razões de espaço eu vou assumir, ao invés de argumentar em favor da visão de que juízos morais têm valores de verdade. Mas se eles não têm valores de verdade, seria enganoso chamar a perfeita bondade de uma propriedade de Deus, pois não seria nem verdadeiro nem falso dizer sobre ele que (por exemplo) ele não faz nenhum ato moralmente mal. Se minha visão for correta, segue-se que um ser onisciente saberá o valor de verdade de todos os juízos morais, ou seja, saberá, quanto a todos os juízos, se eles são ou não verdadeiros ou falsos. Sigo adiante para argumentar que, necessariamente, um agente que é perfeitamente livre (ou seja, livre no sentido de que nada de modo algum influencia causalmente quais escolhas ele faz) fará aquilo que

ele acredita ser moralmente a melhor ação ou uma de ações igualmente melhores e não fará qualquer ação que ele acredite ser moralmente ruim. Disso se segue que, se este agente é também onisciente, ele fará a melhor ação moralmente falando (se houver uma) ou uma das igualmente melhores ações em termos morais (se houver algo assim) e nenhuma ação moralmente má — pois necessariamente suas crenças acerca das condições daquelas serão verdadeiras. Para fazer uma ação, um agente tem de ter uma razão para agir. Um movimento levado a efeito por um agente não seria uma ação a menos que o agente tivesse alguma razão para levá-la a efeito. A razão pode ser simplesmente fazer aquela ação, mas normalmente um agente terá algum propósito além, ao fazer uma ação. Ter uma razão para uma ação consiste em encarar algum estado de coisas como uma coisa boa e o fazer uma ação como modo de se chegar àquele estado, portanto, como uma coisa boa também. Se minha razão para ir a Oxford for dar uma conferência, eu devo encarar como uma coisa boa de algum modo que eu dê a conferência e, assim como uma boa coisa que eu vá a Oxford. Se

eu não encarasse dar uma conferência como uma coisa boa de modo algum, se eu pensasse que dar uma conferência fosse um evento que não servisse a qualquer função útil, dar a conferência não poderia ter sido minha razão para ir a Oxford. A ideia de que para fazer uma ação eu devo (por necessidade lógica) ver a efetivação da mesma como, de algum modo, uma coisa boa, é bastante antiga, é devida a Aristóteles, enfatizada por Tomás de Aquino e de novo enfatizada, atualmente, por Stuart Hampshire[68], entre outros. Deus, como os homens, não pode simplesmente agir. Ele deve agir por um propósito e ver sua ação de algum modo como uma boa coisa. Assim, ele não pode fazer o que ele faz sem encará-lo como uma coisa boa de algum modo. Este não é um limite físico, mas lógico. Nada contaria como uma ação de Deus a menos que Deus, de algum modo, visse o que ele estivesse fazendo como uma boa coisa. Ora, para muitas ações há razões para realizá-las e razões para não levá-las a efeito; de certo modo seria bom que o agente as fizesse e de certa maneira seria bom que ele se recusasse a realizá-las. É bom que eu assista televisão, pois eu

me entreteria ao fazê-lo; no entanto, é ruim, pois vai me impedir de ler um livro. É bom para os governos diminuírem os impostos, pois isso deixará mais dinheiro para as pessoas gastarem; no entanto, é ruim, pois diminuir impostos vai aumentar a inflação e promover desigualdade social. Frequentemente, talvez normalmente, não há escala objetiva pela qual se possam pesar razões rivais; não se pode dizer que fazer A é, no fim das contas, melhor do evitar fazer A ou vice-versa. Num caso assim, uma pessoa que faz A precisa ser não menos sensível a valores objetivos que uma que se recusa a fazer A. Mas, às vezes, razões rivais podem ser comparadas objetivamente; claramente, às vezes, fazer A é em geral melhor do que se recusar a fazer A (melhor quando todas as razões são levadas em conta) ou vice-versa. Eu entendo por uma ação sendo moralmente melhor do que outra que seja em geral melhor fazê-la do que evitá-la, que há insuperáveis razões para fazê-la; e entendo por uma ação ser moralmente má que é em geral melhor se recusar a fazê-la do que realizá-la, que há razões insuperáveis para a recusa. Dado que às vezes um balanço de razões torna melhor fazer uma ação do que recusá-

la, melhor recusar outra ação do que fazê-la, melhor fazer uma terceira do que uma quarta, haverá verdades acerca de que ações são moralmente boas, moralmente más ou melhores que outras (uma vez que toda minha discussão subsequente se ocupa com valor moral bom e mau, omitirei no futuro, com frequência, o “moralmente”). Às vezes, há uma ação que é a melhor fazer. Hoje, fazer uma caminhada pode ser a melhor coisa a fazer para mim, tanto porque isso me agrada quanto porque isso fará meu trabalho posterior ter uma qualidade melhor. Às vezes, a melhor ação é que é também moralmente obrigatória, da qual seria culpado se não realizasse. Manter promessas e dizer a verdade são (ao menos em circunstâncias normais) algo obrigatório; e normalmente é a melhor ação realizar uma obrigação.[69] Mas, a melhor ação não precisa ser obrigatória. Pode ser a melhor coisa a fazer para um soldado, dar sua vida para salvar seu colega, mas ele não é obrigado a fazê-lo — é um ato que vai além da obrigação. Agentes são meritórios por fazerem coisas que vão além de suas obrigações, mas não são culpáveis por não fazê-los. Às vezes, não há uma ação melhor única. Pode ser uma ação melhor dar

1.000 libras (tudo que eu pude economizar) para uma obra de caridade educacional, mas outra ação igualmente boa é dar para uma obra de caridade de saúde, e eu posso doar para ambas. Um agente cujo poder, diferentemente do nosso, é de algum modo ilimitado, pode frequentemente estar numa situação na qual não há apenas uma ação que seria a melhor ou na qual há várias ações igualmente boas para ele realizar, mas, para cada boa ação que ele realizar, há uma ação melhor incompatível que ele poderia fazer no lugar. Considere um artista que pode criar tantas boas telas quanto ele quiser. Plausivelmente, não importa quantas ele crie, seria melhor que ele criasse mais. Mesmo se ele criasse um número infinito, ele ainda poderia criar mais. Tudo que ele pode fazer nessa situação é uma boa ação, embora haja uma melhor. Mas pode ser que a série infinita de ações possíveis caia num desses tipos, tal que seja melhor que o agente faça alguma ação de um tipo (talvez acima de algum grau mínimo de bem) do que se ele fizer alguma ação de algum outro tipo incompatível. Suponha que o pintor possa compor sinfonias tão bem quanto é capaz de pintar quadros e que, em

relação às sinfonias, tanto quanto com as pinturas, quanto mais, melhor. E suponha também que seria melhor para o pintor criar ao menos algumas sinfonias tanto quanto quadros, ao invés de apenas um número qualquer de quadros. Neste caso, ele pode fazer um tipo melhor de ação, criar tanto sinfonias quanto quadros, mesmo se não houver uma melhor ação daquele tipo. Ou pode ser que há dois ou mais tipos de ação (nenhuma melhor que a outra) tal que é melhor que o agente faça uma ação de um desses tipos (talvez acima de algum grau mínimo de bem) do que fazer qualquer ação de qualquer outro tipo incompatível. Então, os tipos anteriores serão igualmente tipos melhores de ação, dentre os quais pode não haver uma ação melhor. Suponha que o pintor pode pintar tantos quadros quantos ele quiser e ou componha tantas sinfonias quantas ele quiser ou escreva tantos romances quanto ele escolher, mas que não possa escrever romances ao mesmo tempo em que compõe sinfonias. Então ele tem a escolha de três tipos de ação — apenas pintar quadros, pintar quadros e compor sinfonias e pintar quadros e escrever romances. Suponha agora que é melhor que ele faça

alguma ação de um dos dois últimos tipos que qualquer ação do primeiro tipo; mas nunca é melhor fazer alguma ação de um dos últimos tipos do qualquer do outro dos últimos tipos. Nesse caso, haverá duas ações igualmente melhores, mas nenhuma ação de qualquer tipo que seja a melhor. Vimos que um agente tem de ter alguma razão se ele for realizar uma ação A, tem de ver a realização de A como, de algum modo, uma boa coisa. Será que o agente ainda pode realizar a ação A, mesmo se ele julgar que, no fim das contas, seria melhor evitar fazer A? O que fazer com a sugestão de que alguém possa ver a realização de A como uma boa coisa de certo modo (por exemplo, por lhe dar prazer sensual), evitar fazer A como uma boa coisa por outro motivo (por exemplo, por contribuir para a tranquilidade permanente de outra pessoa) e evitar fazer A como em geral uma coisa a fazer melhor que fazer A e, ainda assim, fazer A. Quando se sugere que um caso é deste tipo, podemos bem suspeitar que não o é, que o agente não via realmente o evitar fazer A como em geral uma coisa melhor do que fazer A. No entanto, estamos às vezes prontos a aceitar que uma situação seja deste

tipo. Nós realmente parecemos admitir a possibilidade de que alguém possa fazer uma ação que ele encarasse como uma coisa boa apenas em algum aspecto, mas, no geral, uma coisa ruim. Porém, embora admitamos esta possibilidade, nós realmente sentimos que alguma explicação adicional seja necessária. Se alguém realmente aceita que evitar fazer A seria, no fim das contas, melhor do que fazer A, ele reconhece que ele tem razão adequada para evitar fazer A, mas uma razão inadequada para fazer A. Considerações racionais apontam claramente numa direção e ainda sim o agente vai na outra direção. Porém, dizer que alguém reconhece que ele tenha uma razão para fazer algo é dizer que, se não há razões igualmente boas para não fazer aquela coisa e se nenhum fator além de razões o influencia, ele fará aquela coisa. Nós não entenderíamos um agente que afirmasse reconhecer uma “razão insuperável” para evitar fazer A ao invés de realizar A e também afirmasse não estar influenciado por nada a não ser as razões que ele reconhecia e ainda sim fizesse A. Isso porque, se esta última afirmação for tomada por seu valor de face, o que afinal o agente teria querido

dizer quando ele afirmava reconhecer “razões insuperáveis” para evitar de fazer A? Não o que nós normalmente queremos dizer, pois, normalmente, reconhecer uma razão para fazer algo envolve admitir uma inclinação ceteris paribus [mantendo-se iguais as outras circunstâncias] de fazer aquela coisa. Assim, dizer de alguém que ele reconhece que tem razões insuperáveis para evitar fazer (ou para fazer) alguma ação A é dizer que, na medida em que nenhum fator além de razões o influencie, ele vai evitar fazer A (ou vai fazer A, conforme o caso). Se você disse que você reconheceu que em geral seria melhor para você ir para casa ao invés de ir ao cinema, mas então você foi ao cinema, deveríamos ter de supor que ou você estava mentindo ou que você mudou de ideia ou que outros fatores além de razões influenciaram o que você fez. Uma explicação de seu comportamento se faz necessária, não apenas em termos do que você acreditava acerca dos méritos relativos das ações, ou seja, em termos de razões, mas também em termos de desejos, inclinações passivas para agir que levaram você a fazer aquilo que você não reconheceu razões adequadas para fazer. Se alguém tem desejos fortes,

faz sentido supor que ele reconheça que evitar A como em geral melhor do que fazer A, mas ainda assim intencionalmente faça A. Tais fatores não racionais sobre os quais o agente não tem controle explicam a “fraqueza de vontade”, o fato de uma pessoa agir “contra seu melhor juízo”. Mas é incoerente a sugestão de que alguém possa ver o fato de evitar A como uma coisa em geral melhor do que fazer A, não seja sujeito a influências não racionais que o inclinem na direção de fazer A e, ainda assim, ele faz A. Segue-se de tudo isso que um agente não sujeito a influências não racionais, ou seja, um agente perfeitamente livre, nunca pode fazer uma ação se ele julga que no geral seria pior realizar a ação do que se recusar a fazê-la. Assim, ele nunca pode fazer uma ação que ele julgue ser no geral uma ação má e, especialmente, uma que ele julgue ser uma ação moralmente ruim. Um agente perfeitamente livre sempre fará uma ação que ele acredite ser a melhor ação possível para ele. Se ele acredita que há um número de ações igualmente incompatíveis abertas para ele, todas melhores que quaisquer outras ações incompatíveis que ele

pudesse realizar, ele fará uma das anteriores. Elas são ações que ele acredita serem ações igualmente boas. Mas quando o agente tem diante de si um número infinito de ações possíveis, cada uma das quais ele acredita que seja menos boa que a outra, mas se ele acredita que não há uma que seja a melhor ou igualmente melhor, sua perfeita liberdade não implica que ele vá fazer uma delas ou qual delas. Contudo, pode ser que ele acredite que as ações incompatíveis nesta série infinita pertençam a tipos tais que seja melhor que ele faça qualquer ação de algum desses tipos (ao menos acima de algum grau mínimo de bem) embora não haja uma ação que seja a melhor daquele tipo ou melhor do que a de qualquer outro tipo incompatível. Nesse caso, eu sugiro que ele fará alguma ação daquele tipo melhor acima do nível mínimo, pois ele tem mais razão para realizar uma ação assim do que para fazer qualquer ação de qualquer tipo incompatível com ela. Fazer uma ação do tipo anterior seria um exemplo de um tipo qualitativamente superior de bondade; não seria melhor do que outras ações meramente num aspecto quantitativo. Se não há, ele acredita, qualquer tipo melhor único de ação, mas dois ou mais tipos de

ação, tal que não seja melhor que ele realize alguma ação de um destes tipos (acima de um nível mínimo) do que ele faça qualquer ação de um outro destes tipos; mas que realizar alguma ação de um desses outros tipos (acima de um nível mínimo) seja melhor do que fazer qualquer ação incompatível de qualquer outro tipo, então eu sugiro — pelas mesmas razões — que ele fará alguma ação de um dos tipos (igualmente bons) anteriores (acima de um nível mínimo). Tudo isso constitui o conjunto de limites lógicos dentro dos quais pode atuar um agente perfeitamente livre (no sentido em que defini esta expressão). Se é sugerido que um agente realmente livre pode fazer o que ele considerou como mal tanto quanto o que ele considerou como bom, a resposta deve ser que neste caso o que ele fez não seria uma ação intencional, não seria algo que ele fez e quis fazer por uma razão, mas simplesmente uma reação sem causa. Ao escrever anteriormente acerca das intenções de Deus como não tendo uma explicação, devo ser entendido como dizendo que elas não têm qualquer explicação causal — nenhuma outra entidade de nenhum modo influencia sua escolha, tampouco o faz qualquer

estado anterior dele mesmo; mas ainda sim Deus será guiado pelos méritos das escolhas possíveis — ou seja, pela razão. Porém, muito frequentemente, talvez quase sempre, a razão não oferece uma ação melhor única para Deus realizar. Dado que os juízos morais têm valores de verdade, uma pessoa onisciente os conhecerá. Seus juízos acerca de que ações são moralmente más e que ações são moralmente boas serão juízos verdadeiros. Assim, um ser perfeitamente livre e onisciente nunca pode realizar ações que são moralmente más e sempre fará a melhor ação ou uma ação igualmente boa ou um tipo melhor ou um tipo de ação igualmente bom (se é que estes existem). Mas, de outro modo, tudo que se segue de sua natureza é que ele fará uma boa ação. Uma vez que não poderia haver um ser moralmente melhor que um ser de seu tipo, é certamente correto chamar um ser assim de um ser perfeitamente bom. Assim, a perfeita bondade de Deus (no sentido que eu agora tornei preciso) se segue de sua onisciência e de sua perfeita liberdade. Eu concluo que o teísmo postula uma pessoa de um tipo muito simples — uma pessoa que é essencialmente onipotente, onisciente,

perfeitamente livre e eterna. Tal ser será necessariamente um espírito onipresente, criador de todas as coisas e perfeitamente bom. A hipótese do teísmo postula não meramente o ponto de partida mais simples que possa haver de uma explicação pessoal (mais simples que o de muitos deuses ou de deuses fracos), mas o ponto de partida de explicação mais simples para a existência do universo com todas as características que analisarei. Veremos isso em pormenor nos próximos capítulos, mas a ideia básica é a seguinte. Uma explicação científica terá que postular como um ponto de partida de explicação uma substância ou substâncias que causaram ou ainda causam o universo e suas características. Postular muitas substâncias ou substâncias extensas (um universo que existe desde sempre ou um volume extenso de matéria-energia do qual, sem a interferência de Deus, tudo começou) é postular mais entidades do que o teísmo. O ponto de partida científico mais simples seria um ponto não extenso. Este, contudo, teria de ter uma quantidade finita ou outra de poder ou suscetibilidade para exercê-la (uma vez que o que ela criaria não seria limitado por considerações

racionais) e assim, não possuiria a simplicidade da infinidade. Além disso, se alguma entidade real ou postulada diferente de Deus for a base de uma explicação completa (ou última) dos fenômenos, ela precisa ter junto (no caso de uma pessoa) poderes específicos, crenças e intenções ou (no caso de substâncias inanimadas) poderes e suscetibilidades específicos para exercê-los. Nós precisamos tanto do “o quê” quanto do “porquê” que ela cause. A vantagem do teísmo é que a mera existência de Deus oferece quase tudo daquele “porquê” extra. Os poderes e crenças de um Deus são parte de sua natureza simples e sua bondade perfeita limita as intenções que ele irá formar — e vai, como vimos, sempre fazer a melhor ação ou uma igualmente boa ou o melhor tipo de ação na medida em que houver uma, e nenhuma ação ruim. Deus escolhe levar a efeito o que ele faz em virtude de ver a bondade das coisas; e, na medida em que isso ainda lhe dá uma enorme escolha do que levar a efeito, ele escolhe por “um jogo de dados mental”. Assim, para o teísta, a explicação para naquele que, intuitivamente, é o tipo mais natural de ponto de partida para a

explicação — a escolha de um agente. Nós mesmos fazemos escolhas e nos parece que, quando o fazemos, nós somos a fonte de um estado de coisas acontecer ao invés de outro. É claro que pode haver alguma explicação de por que fazemos as escolhas que fazemos, mas nós entendemos o que está acontecendo sem ter de fazer aquela suposição. Assim, temos um conceito familiar de um agente levando a efeito sua escolha dentre uma diversidade de coisas, o que é natural para usar neste contexto. Segue-se que a própria existência de Deus acarreta a maioria dos outros elementos envolvidos numa explicação pessoal plena dos fenômenos, requerendo apenas o acréscimo de sua intenção naquele momento (os limites de suas intenções possíveis sendo dados por sua existência como um ser necessariamente bom de modo perfeito). Tal explicação plena também será, nós vimos, uma explicação última. No caso de uma substância inanimada existente ou postulada, não há razão para esperar que ela tenha a suscetibilidade de exercer quaisquer poderes que ela possa ter de uma maneira ou de outra. Ou seja, não há razão para esperar que um

universo que existe sempre ou que uma entidade criadora do universo seja de um modo ao invés de outro, que crie um universo de um tipo ao invés de outro tipo. Ao contrário, a bondade de Deus (que se segue de suas outras propriedades) nos leva a esperar encontrar um universo de um tipo ao invés de outro. E se, como defenderei, o universo que temos é de um tipo que esperaríamos encontrar, então o teísmo terá um poder explicativo considerável. Para postular uma hipótese rival que tenha o mesmo poder explicativo, teríamos de complicar as hipóteses básicas que eu tenho discutido (um universo sempre existente ou um ponto não extenso a partir do qual tudo começou) com a suposição de que elas tinham as propriedades extra requeridas (ser sempre de um certo tipo ou criar um universo de um certo tipo) sem nenhuma razão muito boa — simplesmente porque é assim. Assim, mesmo que alguma substância rival existente ou postulada fosse como tal tão simples quanto o teísmo, ela teria de ter sido elaborada de um modo muito mais complicado de modo a ter tanto poder explicativo quanto o teísmo. Note a natureza da conexão que o teísta

postula entre a causação pessoal de Deus e a causação científica. Deus é onipotente, seu poder não é dependente de cérebro ou nervos, suas intenções são imediatamente operativas — pois assim é que as coisas são em termos últimos. Disso se segue a existência da matéria e a operação das leis naturais.[70] Há uma conexão simples entre os fatores citados nessa explicação pessoal e os seus efeitos — a intenção de Deus de levar a efeito é seguida por . Dentre as coisas que Deus leva a efeito estão a existência de pessoas humanas com cérebros, nervos, músculos, etc. e as leis naturais que determinam quando, por qual caminho e dentro de que âmbito suas intenções são eficazes. Há uma conexão simples semelhante entre o conhecimento de Deus e o mundo. Se p é uma proposição verdadeira que é logicamente possível que uma pessoa conheça, então Deus conhece p. Embora certas condições físicas do cérebro precisem ocorrer para que os agentes humanos tenham conhecimento do mundo externo e para que as intenções sejam eficazes, o modelo humano sugere um modelo mais simples no qual tais limitações são removidas. Uma característica final de grande

importância da hipótese do teísmo é a seguinte. O que está em questão nos vários argumentos que estaremos considerando é se nós deveríamos ir além dos vários fenômenos para postular um Deus que os leva a efeito. Esta é uma questão de se a hipótese do teísmo tem probabilidade prévia e poder explicativo suficientes. Mas se ele os tiver, não há um problema como esse de se deveríamos ir além do teísmo a fim de oferecer uma explicação completa. Isso porque, se o teísmo for verdadeiro, então, por necessidade lógica, a ação de Deus dará uma explicação completa e última daquilo que ela explica, pois, como vimos antes, segue-se da onipotência e da perfeita liberdade de Deus que todas as coisas dependem dele, enquanto que ele não depende de nada[71]. Se Deus não aparece de modo algum na explicação do mundo, então claramente a explicação termina em Deus. Assim, o teísmo tem uma simplicidade considerável. Simplicidade é o principal determinante da probabilidade intrínseca. Vimos que o outro determinante é a limitação da amplitude. Não é muito claro como devemos avaliar o teísmo segundo este critério. Assim como seu rival, o

fisicalismo, o teísmo é uma teoria de amplitude bastante grande, que pretende explicar o universo e todas as suas características. Contudo, defendi anteriormente que é claro, com base nos exemplos que a grande simplicidade de uma hipótese ampla supera em muito a grandeza da amplitude na determinação da probabilidade prévia. Talvez pareça a priori imensamente improvável, se formos pensar no assunto, que exista mesmo qualquer coisa logicamente contingente. Mas, dado que existe realmente alguma coisa, o simples é mais provável de existir que o complexo. Assim, tendo k como mero indício tautológico e h como a hipótese do teísmo, mesmo que P(h/k), a probabilidade intrínseca do teísmo, seja baixa, não será nunca tão baixa quanto P(hn/k) para muitas outras hipóteses hn acerca do que existe. A probabilidade intrínseca do teísmo é, relativamente a outras hipóteses acerca do que existe, muito alta, por causa da grande simplicidade da hipótese do teísmo.

6. O poder explicativo do teísmo: considerações gerais Resumo do argumento até agora Defendi no capítulo 3 a tese de que a probabilidade de uma hipótese h com base em indícios e e conhecimento de fundo k é uma função de sua probabilidade prévia (P(h/k)) e seu poder explicativo,

. Pelo teorema de Bayes: .

Tomemos h como a hipótese do teísmo, de que Deus existe; assumamos que k é mero indício tautológico (e assim P(h/k) é a probabilidade intrínseca do teísmo) e que e representa os indícios citados nos argumentos a favor e contra o teísmo. Vimos no capítulo 3 que, pelo critério de “relevância”, um argumento de e para h é um bom

argumento C-indutivo se (e somente se) P(e/h&k)>P(e/k) e que isso será o caso se (e somente se) P(e/h&k)>P(e/~h&k). Assim, a ocorrência de certos fenômenos confirmará — isto é, aumentará a probabilidade — da existência de Deus se e somente se for mais provável que aqueles fenômenos ocorrerão se Deus existir do que se não existir. O quão provável os fenômenos tornarão a existência de Deus dependerá apenas do quão altas ou baixas forem as probabilidades (no lado direito do teorema de Bayes) que estaremos discutindo. A força do argumento de e para h dependerá, tanto do fator constante (P(h/k)) quanto do poder explicativo do teísmo com respeito a aqueles fenômenos; quão mais provável a existência de Deus torna a ocorrência daqueles fenômenos do que seria se nós não assumíssemos a existência de Deus. Vimos no capítulo 3 que o principal determinante da probabilidade intrínseca de h era sua simplicidade. Vimos no último capítulo que, embora P(h/k) possa ser baixa, ela é significativamente maior do que a de tantos outros conteúdos alternativos para h. O teísmo postula um Deus de poder, conhecimento e liberdade infinitos.

Assim, o teísmo constitui um ponto de parada natural para a explicação, um candidato natural para um fato bruto que explica outras coisas, mas que em si mesmo não tem explicação. Um ponto de parada para a explicação é, obviamente, uma coisa altamente misteriosa. Que possa haver qualquer coisa (logicamente contingente) é avassaladoramente estranho quando pensamos sobre isso. Mas existe algo logicamente contingente. O problema é se o mundo e suas operações são o ponto de parada ou se devemos ir além do mundo para encontrar o ponto de parada de explicação; ou se, apesar de irmos além do mundo para encontrar uma explicação do mundo, não há ponto de parada de explicação para se encontrar. Pelo argumento dos dois últimos parágrafos, o Deus do teísmo é um bom candidato para um ponto de parada, na medida em que o mundo e suas operações (e), se não forem sustentados por Deus (P(e&~h/k)), têm uma probabilidade intrínseca significativamente mais baixa do que a existência de Deus (P(h/k)), de modo que aqueles precisam muito mais de explicação do que este último e, se a hipótese do teísmo torna mais provável que e ocorra do que seria se o teísmo fosse

falso, (P(e/h&k)) excede (P(e/~h&k)). Mais formalmente, P(e/k), a probabilidade intrínseca de e, constitui a soma de duas outras probabilidades: P(e/k)=P(e/h&k)P(h/k)+P(e/~h&k)P(~h/k).

O primeiro produto no lado direito desta equação (P(e/h&k)P(h/k)) simplesmente repete a linha de cima do teorema de Bayes. O segundo produto (P(e/~h&k)P(~h/k)) é a probabilidade de que Deus não exista e ainda assim e ocorra. Se este segundo produto tem algum valor maior do que 0, a linha de baixo do lado direito do teorema de Bayes será inevitavelmente maior em valor que a linha de cima e assim o todo (linha de cima dividida pela de baixo) será menos do que 1 — ou seja, não será certo que h com base em e. Se P(h/e&k) será muito grande (muito perto de 1) ou muito pequeno (0 ou muito perto de 0) vai depender de se o segundo produto é muito pequeno ou muito grande em relação ao primeiro produto. Será muito grande se ambos os termos (P(e/~h&k) e P(~h/k)) forem grandes e menor na medida em que eles forem

menores. P(~h/k), a probabilidade intrínseca de que Deus não existe, é 1—P(h/k). Se, como eu sugeri, P(h/k) pode ser muito pequena (tão improvável que é a priori que deva existir alguma coisa), P(~h/k) pode ser muito grande. Assim, o valor de P(e/k) vai depender crucialmente de P(e/~h&k), a probabilidade de que, se Deus não existe, nós teremos os indícios que temos. Estarei considerando o valor daquela probabilidade com respeito a diferentes e nos capítulos subsequentes. e poderia ocorrer mesmo se ~h, se ou algum ser ou seres inanimados ou pessoais, embora menores que Deus levaram a efeito e ou e ocorreu sem causa, como um fato bruto. A equação anterior expressando a probabilidade prévia de e pode ser reelaborada para expressar a ideia de que esta probabilidade é a soma das probabilidades prévias das várias teorias na área, cada uma multiplicada pela probabilidade de e dada aquela teoria. Assim: P(e/k)=P(e/h&k)P(h/k)+P(e/h1&k)P(h1/k) +P(e/ h2&k)P(h2/k)+...

onde h, h1, h2, etc. são tais que uma e apenas uma teoria assim deve ser verdadeira. Dentre estas teorias estará a teoria de que e não tem causa. Argumentarei nos próximos capítulos, com respeito a diferentes e, que há uma probabilidade bastante baixa de que e ocorreria sem causa ou causada por algum ser ou seres menores (alguma singularidade inicial no espaço-tempo ou algum comitê de deuses menores). Os fundamentos em cada caso serão aqueles discutidos no capítulo 4 — ambos seriam complicados demais (“não-simples” em demasia) para formar (com toda probabilidade) um ponto de parada para a explicação. E por essa razão de simplicidade, quanto maior for P(h/k), relativa à probabilidade prévia de hipóteses rivais que admitem a existência de coisas logicamente contingentes, maior será a probabilidade posterior do teísmo — P(h/e&k). Tudo depende do quanto mais provável é intrinsicamente que, se existe algo, Deus existe ao invés de que Deus não existe ou que existe algo que o substitua. Que mundos é provável que Deus crie

O termo restante é P(e/h&k), a probabilidade de que se existe um Deus nós encontraríamos os indícios que encontramos. Ora, se existe um Deus, e pode ocorrer ou porque Deus leva a efeito e ou porque Deus cria alguma criatura cujo comportamento não é predeterminado e tem o poder de levar a efeito e. O caso óbvio do último é quando aquela criatura tem um livre-arbítrio libertário, ou seja, a liberdade de escolher ou produzir algum efeito (tal como e), onde a totalidade das causas que o influenciam (tornando mais difícil ou mais fácil para ele fazer uma escolha particular) não determina totalmente como ele vai escolher. Deus é por definição onipotente; ele pode levar a efeito qualquer estado de coisas que seja logicamente possível para ele levar a efeito. Dentre os estados de coisas que não são logicamente possíveis para Deus levar a efeito está o de que os seres humanos sempre façam livremente o que é bom, quando eles têm o livre arbítrio no momento de escolha de escolher entre bom e mau, independentemente das causas que os influenciam. O fato de Deus levar a efeito qualquer estado de coisas que seja logicamente possível para ele levar a efeito depende de se ele

escolhe fazê-lo assim. Segue-se da discussão acerca de Deus que eu desenvolvi a partir da definição no último capítulo que ele fará qualquer ação que for a melhor ação a fazer, dentre qualquer conjunto de melhores ações alternativas, ou — se não houver uma ação melhor ou ações igualmente melhores — alguma ação de um melhor tipo ou igualmente melhor; ou — se não houver qualquer uma dessas — alguma boa ação e nenhuma ação má. Nosso entendimento do que seja bom e mal é muito limitado. Algumas ações podem ser boas ou más por causa de qualidades intrínsecas que elas possuam, às quais nós, como seres moralmente imperfeitos, somos totalmente insensíveis. Algumas ações podem ser boas ou más por causa das consequências que elas tenham, mas das quais nós, como seres de conhecimento e inteligência muito limitados, não temos a menor noção. No entanto, claramente, a maioria de nós tem alguma compreensão de valores morais. Quando julgamos que é bom para nós alimentar os famintos e ajudar os fracos, que seja errado dizer mentiras e quebrar promessas (tudo isso, em alguma medida, sob circunstâncias normais), estamos fazendo

julgamentos morais verdadeiros. E somos capazes de julgar, em alguma medida, se seria bom ou mau para nós fazermos estas ações, conforme o caso, se fôssemos seres de tipos diferentes — se fôssemos muito poderosos ou tivéssemos criado as pessoas que agora estão passando fome. Chegamos a juízos de princípio moral geral ao refletir sobre casos particulares e considerando em que bases julgamos que esta ação foi má e que aquela outra foi desnecessária. E assim, podemos ver se a bondade (ou outra qualidade) da ação depende de certas características das circunstâncias do agente e do tempo de sua ação ou se a ação seria boa para algum agente fazer em qualquer tempo. Podemos ver, por exemplo, que, embora possa ser bom para mim e talvez para você punir um filho meu por quebrar a sua janela, não seria bom para um mero estranho assumir essa tarefa. Podemos ver também que minha obrigação de manter uma promessa que eu fiz a você não seria minimamente afetada pelo quão poderoso eu fosse; a obrigação permaneceria mesmo se eu fosse onipotente. Mesmo em tais assuntos, no plano individual, poderíamos estar errados. Nosso entendimento da maioria das outras coisas discutidas

neste livro e na maioria dos livros acerca da maioria das coisas é muito limitado e passível de erro, mas é tal que nós podemos melhorar. Temos de fazer julgamentos tentativos à luz de nosso entendimento no momento de nossa investigação — neste assunto e em todos os assuntos — levando em consideração a possibilidade de revisão futura. Mas é enormemente implausível supor que nosso conhecimento do que é moralmente bom ou mal esteja totalmente errado. E, se o fosse, não posso ver como teríamos sequer um conceito de bem moral[72]. Assim, dada alguma ideia de bem moral, temos alguma ideia dos tipos de mundo que Deus, se existe um Deus, provavelmente levaria a efeito. Se há em alguma situação uma melhor ação única, ele a faria. Deus vai, portanto, eu sugiro, sempre manter suas promessas e dizer a verdade. Mas eu sugiro que não seja geralmente o caso que haja diante de Deus uma ação melhor única ou um conjunto de ações melhores igualmente incompatíveis. Se pudesse haver um único melhor de todos os mundos possíveis que (fosse logicamente possível) Deus pudesse criar, seria um

ato único melhor criá-lo. Mas, contrariamente a Leibniz[73], não poderia haver um mundo assim[74]. Mas suponha que exista um mundo W assim. W presumivelmente vai conter um número finito ou infinito de seres conscientes. Será que um mundo seria pior se, ao invés de um destes seres conscientes, ele contivesse outro com as mesmas propriedades — se, ao invés de Swinburne, ele contivesse um sósia de Swinburne que escrevesse um livro exatamente similar e em outros aspectos tivesse propriedades exatamente similares e fizesse ações exatamente similares? Certamente não. Mas então não haverá um único melhor de todos os mundos possíveis que Deus pudesse criar. Se pudesse haver um melhor de todos os mundos possíveis que Deus pudesse criar, ou seja, um mundo tal que nenhum mundo fosse melhor que ele (embora outros mundos pudessem ser igualmente bons), então seria um ato igualmente melhor criar um mundo assim. Mas parece quase igualmente implausível supor que pudesse haver um mundo assim. Isso porque, se tomarmos novamente qualquer mundo W, presumivelmente o bem de tal mundo, tal como defenderei mais

pormenorizadamente em breve, consistirá em parte no fato de conter um número finito ou infinito de seres conscientes que vão desfrutá-lo. Mas se o desfrute do mundo da parte de cada um é uma coisa valiosa, certamente um mundo com um pouco mais de seres conscientes nele seria uma coisa ainda mais valiosa — pois não haveria razão porque a existência destes últimos seria em detrimento do desfrute do mundo por outros — eles sempre poderiam se por em distância considerável de outros, de modo que não houvesse interferência mútua. Eu concluo que não é plausível, por razões conceituais, supor que possa haver um mundo melhor ou alguns igualmente melhores de todos os mundos possíveis que Deus pudesse criar e, em consequência, Deus não poderia, ao criar um mundo, estar fazendo a melhor ação ou uma ação igualmente melhor.[75] Mas é altamente implausível supor que apenas por aquela razão um Deus não teria criado absolutamente nada. Podemos também concluir que Deus não fará qualquer ação que seja no todo má. Se ele causa sofrimento ou permite que outros agentes o façam, deve ser porque causar ou permitir tal sofrimento serve para um bem maior que não

poderia ser atingido sem aquele e Deus deve ter o direito de impor esse sofrimento naquele que sofre. Argumentarei no capítulo 11 que o sofrimento às vezes serve realmente a um bem maior e que Deus realmente tem direitos limitados de impor ou permitir sofrimento. Mas eu também afirmarei que ele não tem o direito de impor ou permitir sofrimento ilimitado (por exemplo, sofrimento sem fim) a ninguém contrariando a escolha dele ou dela. Embora com frequência possa não haver uma ação melhor que Deus possa fazer, pode às vezes ser o caso de que há um tipo melhor de ação ou uma ação igualmente melhor nos sentidos definidos no capítulo anterior. Nesse caso, pela razão dada no capítulo anterior, a perfeita bondade de Deus vai requerer que ele faça uma ação melhor ou de um tipo igualmente melhor. Com frequência, em relação tanto a ações quanto a tipos de ações, não há o melhor ou o igualmente melhor para Deus fazer. Suponha, por exemplo, que Deus tenha diante de si a escolha de criar várias espécies diferentes de animal superior. Ele pode criar apenas leões ou apenas leões e tigres. Plausivelmente, não importa quantos leões ele crie, seria melhor se ele criasse

também um número mínimo de tigres. Ele poderia também criar apenas leões, tigres e pumas. E, de novo plausivelmente, seria melhor se ele criasse um número mínimo de pumas além de um número mínimo de leões e tigres ao invés de um número qualquer de leões e tigres. E assim, plausivelmente ad infinitum, pois plausivelmente há um número infinito de espécies possíveis.[76] Não importa quantas espécies Deus crie (com qualquer número de membros), seria melhor se ele tivesse feito mais espécies ao invés de mais membros nas espécies existentes — pois não há um melhor tipo de ato de criar exatamente este número de membros ou exatamente este número de espécies. A perfeita bondade de Deus não implica necessariamente quantas espécies de animais ele vai criar. Será que existe algum modo de dividir ações em tipos de ações incompatíveis abertas a Deus de tal modo que haja um melhor tipo de ação? Se for assim, ele fará uma ação daquele tipo. Plausivelmente, é melhor para Deus causar a existência de algo além de si mesmo do que fazer qualquer ação de uma ação incompatível com isso (ou seja, recusar-se a levar a efeito qualquer coisa).

Assim, o tipo de ação de causar a existência de outra coisa é um tipo melhor. Deus deve causar a existência de outras coisas. Isto é afirmado por um princípio que Tomás de Aquino invoca com frequência e às vezes atribui a Dionísio, de que “A bondade é por sua própria natureza difusora de si mesma e (por isso) do ser”. Norman Kretzmann[77] analisou e justificou este princípio, entendendo-o como o princípio de que um ser bom para cujo poder não há limite vai inevitavelmente continuar fazendo mais coisas boas. Assim, Deus necessariamente deve causar a existência de coisas além de si mesmo, uma consequência da qual Tomás de Aquino se afasta quando esta se torna explícita, em vista de seu desejo de defender a concepção cristã normal, que é a de que Deus não tem de criar nada além de si mesmo. Será que podemos dizer alguma coisa a mais sobre o que Deus deve criar? Isso depende de se há algum modo de dividir substâncias em um número finito de tipos que, diferentemente das espécies animais que considerei antes, são tais que criar membros de certas espécies destas além de certo grau de bem (por exemplo, ao menos certo número

de membros ou membros de certo grau de bem) é melhor ou igualmente bom em relação à possibilidade de criar qualquer número de tipos com qualquer grau de bem de um tipo que não inclui todos aqueles tipos. Penso que tal divisão pode ser feita. Substâncias são ou inanimadas ou animadas (ou seja, às vezes conscientes). Substâncias animadas diferem de acordo com sua possibilidade de terem apenas as sensações mais primitivas ou se elas podem ter desejos, crenças, pensamentos e intenções de vários graus de sofisticação. Embora ter qualquer intenção de fazer alguma ação envolva considerar aquela ação como boa de se fazer, animais podem não ser capazes de fazer muitos julgamentos de valor comparativo. Eles podem não ser capazes de comparar os valores de diferentes ações ou ter qualquer concepção do valor verdadeiro de ajudar membros de outras espécies. Assim, é uma característica a mais para substâncias ter crenças morais verdadeiras significativas, que eu chamarei de consciência moral. E elas também podem ter livre arbítrio libertário de diferentes graus de liberdade. Livre arbítrio é uma questão de grau;

agentes podem ser totalmente imunes a influências não racionais, como Deus o é, ou sujeitos a influências (desejos) de diferentes intensidades impedindo-os de buscar o bem. Por fim, eles podem ter diferentes graus de poder e conhecimento. Pessoas, tal como as defini no capítulo 1, nota 16, têm ao menos graus moderados de todas as qualidades que tenho apresentado (com a possível exceção do livre arbítrio). Este espectro de substâncias possíveis incluirá substâncias de quatro tipos importantes — inanimadas; animadas sem consciência moral ou livre arbítrio; animadas com consciência moral e com poder, conhecimento e livre arbítrio limitados; e animadas com poder, liberdade e conhecimento ilimitados. As substâncias animadas sem consciência moral e livre arbítrio são os animais. Aqueles com consciência moral e com conhecimento, poder e livre arbítrio limitados são o que chamarei de “agentes humanamente livres”. Eu os chamarei assim porque, como defenderei no momento apropriado, provavelmente os seres humanos são substâncias deste tipo. Uma substância com poder, conhecimento e liberdade ilimitadas é uma substância divina. Uma vida consciente é uma

coisa boa. Substâncias animadas são substâncias de um tipo melhor do que inanimadas. É uma boa coisa que deva ficar a cargo da substância individual fazer uma escolha livre à luz de crenças morais acerca do valor de diferentes ações. Assim, agentes humanamente livres são substâncias de um tipo melhor do que animais. No entanto, uma vez que a liberdade de agentes humanamente livres é limitada e eles estão sujeitos a influências irracionais, eles podem escolher o que é mal. A melhor de todas é um ser divino, não sujeita a esta limitação e capaz de controlar todas as coisas para o bem. Ao hierarquizar os tipos de substância na ordem inanimadas, animais, humanamente livres e divinas, podemos dizer que qualquer substância de um destes últimos tipos é melhor que qualquer substância de um dos tipos anteriores. Deus deve levar a efeito algo. Será que ele pode dar origem a outros seres divinos? Eu discuto esse problema na Nota Adicional 1. Neste caso, a inevitabilidade de Deus levar algo a efeito poder ser satisfeita, dentro da doutrina cristã da Trindade, por um primeiro ser divino (“O Pai”) dando origem “desde toda a eternidade” — que eu entendo como

“em cada momento de um tempo perpétuo” — ao Filho e ao Espírito. Neste caso, não haveria necessidade de Tomás de Aquino rejeitar o princípio de Dionísio. A necessidade de criação contínua poderia também ser satisfeita pelos seres divinos mantendo continuamente uns aos outros em existência.[78] E, se Deus pode dar origem a outros seres divinos, ele certamente deve fazê-lo. Um Deus solitário seria um estado de coisas ruim. Deus precisa partilhar, interagir, amar e ele pode fazê-lo de modo mais pleno com iguais. Mas, se ele não pode gerar outros seres divinos, ele deve criar mais seres conscientes limitados com os quais interagir no amor — talvez seres semidivinos de poder limitado mas de liberdade e conhecimentos perfeitos ou talvez apenas agentes humanamente livres. Contudo, se Deus pode criar tantos seres semidivinos quanto ele escolher, será que ele deve também criar agentes humanamente livres?[79] Agentes que têm consciência moral com poder e liberdade limitados estarão sujeitos, em virtude de seu poder limitado, a influências não racionais, tentações de fazer algo que não é o bem. Assim, eles terão escolha livre significativa no

sentido de uma livre escolha que possa fazer diferença real às coisas para o bem ou para o mal. O bem que há em uma escolha livre significativa é, espero, evidente. Pensamos que é um dom positivo para nossos filhos que eles possam escolher seu próprio caminho na vida para o bem ou para o mal e influenciar os tipos de pessoas (em relação a que tipos de caráter e poderes) elas e outros devem ter. Fazemos isso na crença de que, ou em todo caso, na esperança de que nada mais vai levá-los a fazer suas escolhas; que eles vão fazê-las em alguma medida de modo independente das influências sobre eles. Queremos que eles escolham livremente (neste sentido) nos demonstrar amor. Agentes humanamente livres, conforme vou afirmar no próximo capítulo, são criaturas capazes de amar a Deus e assim, são capazes de escolher livremente lhe mostrar amor e assim de formar em seu caráter a disposição de amá-lo naturalmente. Que possa haver criaturas assim é uma coisa muito boa. Mas isso envolve que eles sejam livres também para rejeitar Deus. E por melhor que seja o livre arbítrio de escolher entre o bem e o mal, há o risco de que aqueles que o têm façam escolhas ruins, formem

más disposições por si mesmos, firam os outros e influenciem suas disposições na direção do mal. Por esta razão, sugiro que não seria uma boa ação criar seres com poder ilimitado para usar esta liberdade limitada de formar más disposições por si mesmos, ferir os outros e influenciar suas disposições na direção do mal. Isso porque eles poderiam escolher exercer seus poderes para causar mal plenamente, e se eles o fizessem, o estado de coisas resultante seria tão terrível que Deus não poderia correr o risco de que ele pudesse ocorrer. E, como veremos nos capítulos 10 e 11, certos estados ruins não causados por seres humanos são necessários se seres humanos devem ter mesmo escolhas profundamente significativas. Como nosso criador e a fonte de tanto bem para nós, Deus tem, vou propor, o direito de requerer de nós algum sofrimento para tornar possível bem para outros e bem adicional para nós mesmos. Mas certamente há um máximo na quantidade de sofrimento que um Deus bom permitiria qualquer um sofrer (contrariamente a sua vontade) por estas razões. Se Deus cria seres com a liberdade de escolher entre bem e mal, eles devem ser criaturas finitas e limitadas. Mesmo assim, como

bem sabemos, deve-se esperar que ocorra muito mal se se der às criaturas esta escolha perigosa; e assim, eu sugiro que Deus não criaria inevitavelmente tais criaturas. No entanto, há um grande mérito num mundo que contenha criaturas assim, pois ele conteria um tipo muito especial de bem. Deus estaria criando um tipo de liberdade de escolha que ele mesmo não possui, pois Deus não pode fazer o mal. Assim, estou inclinado a sugerir que não seria pior (ou melhor) que Deus criasse alguns agentes humanamente livres (com algum número mínimo e algum grau mínimo de suas liberdades, poderes, etc.) do que criar ao invés disso qualquer número de outros seres divinos ou semidivinos, animais ou coisas inanimadas (e qualquer grau dos mesmos). Criar alguns agentes humanamente livres e não criar alguns agentes humanamente livres (além de qualquer outra coisa que ele leve a efeito) seriam atos de tipos igualmente bons. Deus também tem razão de criar animais, seres mais simples que agentes humanamente livres, que espontaneamente façam o bem sem ter o livre arbítrio de escolher entre bem e mal; seres conscientes que queiram (ou seja, tenham desejos)

ter várias sensações e fazer várias ações; e assim, ter prazer ou alegria de ter suas vontades satisfeitas. Seria bom que eles pudessem aprender o que os beneficie ou prejudique e usem seu conhecimento e capacidades espontaneamente (não por meio da escolha livre) para cuidarem de si mesmos e prolongar suas vidas e para cuidar uns dos outros e especialmente de seus filhotes. Sem dúvida, cobras e peixes têm sensações de prazer com comida e sexo. E pássaros e coelhos se alegram em controlar seus corpos ao voar e correr. Eles aprendem qual comida eles devem comer e quais perigos devem ser evitados, e por meio do esforço eles com frequência conseguem comida e evitam o perigo. À medida que subimos na escala evolutiva, encontramos animais cujas ações são menos uma questão de instinto e mais uma questão de aprendizado e, portanto, de conhecimento. É bom que haja seres que fazem diferença no mundo por meio de seu conhecimento acerca de como ele é e de quais são seus poderes sobre ele e que eles devam buscar conhecimento (por exemplo, acerca de onde encontrar comida) a fim de saber como fazer diferença. Mas o tipo de bem possuído pelos animais é simplesmente o bem

de um grau mais baixo do que o tipo de bem possuído por agentes humanamente livres e certamente que Deus mesmo. Eles são conscientes como Deus e têm, como Deus, bons desejos; mas obviamente lhes falta muito do que Deus tem. Diferentemente de agentes humanamente livres, eles não têm um tipo de bem que falta a Deus; mas eles não sofrem (como os agentes humanamente livres) com a possibilidade de fazerem livremente o que é errado. Ainda assim, é claramente bom que eles existam. Deus tem razão de criar animais. Argumentarei no capítulo 11 que para os animais superiores (gatos e macacos, ao contrário de vermes e insetos), que são os únicos que podem fazer ações significativas, algum sofrimento é necessário. Assim, para o caso dos animais, assim como para os agentes humanamente livres, deve haver um limite para a quantidade de sofrimento que Deus está justificado em permitir ocorrer para tais bons propósitos, e um limite inferior ao limite relativo aos agentes humanamente livres, cuja vida em geral tem muito mais de bem. E por fim, é claro, Deus tem razão em criar um belo mundo inanimado — ou seja, um belo

universo físico. O que quer que Deus crie será um bom produto; e assim, qualquer universo físico que ele crie será belo, tal como o são os seres humanos e os animais. Considere as estrelas e os planetas se movendo de modo ordenado e as plantas crescendo das sementes em flores coloridas e se reproduzindo. Mesmo se ninguém além de Deus mesmo vê um mundo assim, é bom que ele exista. E talvez o tipo de beleza que ele exemplifica seja diferente da beleza dos seres finitos ou de Deus mesmo. Mas eu não considero óbvio que ele exemplifique quanto à sua beleza um tipo de bem que Deus mesmo não possui ou que criaturas de outros tipos não possam possuir, ou que ele possua qualquer outro tipo de bem peculiar aos seres inanimados. Contudo, defenderei em breve que agentes (e animais) humanamente livres precisam ter corpos e viver num universo mais amplo a fim de que eles tenham as propriedades pelas quais eles sejam valiosos em algum grau significativo e assim, se Deus os cria, ele criará um universo físico belo. Se Deus cria realmente um tipo de substância que tem seu próprio valor especial, embora possa não haver um número melhor de tais

substâncias ou o melhor grau no qual elas instanciem o que é valioso nelas, deve haver uma alta probabilidade de que ele vá instanciar um significativo número delas ou graus ou extensões delas — dado que há tantos outros números possíveis, extensões e graus. Em geral, será sempre um ato melhor criar mais — mais agentes humanamente livres, animais e um universo físico maior (ou mais universos físicos). No entanto, uma vez que sempre pode haver algo a mais, a bondade perfeita de Deus não requer dele criar qualquer número particular de seres assim. No entanto, em um aspecto há um máximo. Como falei anteriormente, deve haver um máximo para o grau de poder que Deus dê aos agentes humanamente livres devido ao mal que eles possam fazer; e um máximo da quantidade de mal produzido por quaisquer processos que sejam requeridos a fim tornar possível o exercício de livre arbítrio significativo por parte de agentes assim. Eu concluo que, embora qualquer ato de criar que não incluísse agentes humanamente livres deixasse o mundo sem certo tipo de bem, não é de modo algum óbvio que não criar animais ou (se não

houver agentes humanamente livres ou animais) não criar um universo físico deixaria o mundo sem certo tipo de bem. Isso porque o tipo de bem que animais ou o inanimado têm é possuído por Deus ou poderia ser possuído por outros seres divinos ou semidivinos. Assim, não será um ato melhor ou um tipo igualmente melhor de ato criar animais ou um universo físico sem seres animais, uma vez que seria sempre melhor criar mais substâncias de outros tipos[80] (Deus sempre poderia mais do que compensar pela ausência de animais pela criação de mais anjos). Mas isso não significa que não é um bom ato criar animais, uma vez que, para qualquer ato de criar outras coisas, o ato de criar aquelas mesmas coisas mais o ato de criar animais também seria um ato melhor. Contudo, com relação aos animais, haverá sempre também um ato melhor de criar um mundo sem eles, o que não é o caso para agentes humanamente livres. A probabilidade de que, se Deus existe, ele fará a melhor ação ou uma ação do melhor tipo (quando houver uma) é 1. A probabilidade de que ele fará uma ação ruim é 0. Se houver diante de Deus uma escolha de n ações incompatíveis

igualmente melhores (ou tipos de ação), a probabilidade de que ele fará qualquer ação dessas em particular é 1/n. Assim, a probabilidade de que, se Deus existe, haverá seres racionais diferentes de uma pessoa divina única é 1. A probabilidade de que existirão agentes humanamente livres (e assim, um universo físico) é ½, sujeito a um máximo de poder, devido ao máximo de quantidade de sofrimento que Deus estaria justificado em permitir aqueles agentes ou outros sofrerem em consequência. E embora o que há de bem nos animais nos leve a esperar que Deus os criasse, eu não penso — por razões dadas acima — que possamos atribuir uma probabilidade tão grande assim a essa possibilidade. Contudo, as intuições morais nesses assuntos que eu estou induzindo em meus leitores devem inevitavelmente ser de algum modo tentativas e mesmo se elas forem corretas, valores numéricos muito precisos podem não capturar as probabilidades resultantes acerca do que Deus irá criar. Meus argumentos não dependem de dar valores muito precisos para as probabilidades envolvidas. Tudo que estou afirmando é que é razoavelmente provável que Deus criará agentes humanamente livres (ou poder até certo limite, ideia

que discutirei no capítulo 11) e assim, (por razões ainda a serem dadas) um universo físico belo; e que também não é muito improvável que ele também vá criar animais. Agentes humanamente livres precisam de corpos Defini “agentes humanamente livres” como seres animados com consciência moral e liberdade, poder e conhecimento limitados. Eles são pessoas de um tipo limitado. Afirmei também que Deus provavelmente não instanciaria o tipo de bem que eles possuem num grau mínimo. Se ele faz agentes humanamente livres, ele lhes dará uma quantidade significativa de liberdade, poder e conhecimento. Para que a liberdade limitada deles tenha grande valor, esta deverá ser uma liberdade de escolher entre bem e mal no exercício do poder de fazer diferenças profundamente significativas a eles, uns aos outros e ao mundo físico por meio de suas escolhas (inclusive o poder de aumentar seus poderes e liberdade de escolha). Eles precisam ser capazes de causar sensações prazerosas e dolorosas, neles mesmos e nos outros, investigar o mundo,

adquirir conhecimento e falar aos outros sobre isso. Mas responsabilidade significativa também envolve um poder de influência duradoura sobre aqueles poderes mesmos. Eles devem ser capazes por meio de escolha de influenciar os poderes deles mesmos e de outros de adquirir estas crenças e causar sensações, e de influenciar o que eles achem prazeroso ou doloroso, e de influenciar os modos (para o bem ou para o mal) pelos quais eles estejam naturalmente inclinados a usar seus poderes. Eles devem ser capazes de ajudar uns aos outros a crescer em conhecimento factual e moral; em seu poder de influenciar as coisas e no desejo de usar seus poderes e conhecimento para o bem. E eles devem também, a fim de terem responsabilidade significativa, serem capazes, ou por negligência ou por escolha deliberada, de restringirem o conhecimento, os poderes e o desejo tanto deles próprios quanto uns dos outros, para sempre. Assim, estas criaturas devem começar a vida com (ou adquirir por processos naturais) poder, conhecimento e desejo para o bem ou para o mal que sejam limitados e não escolhidos, e também com a possibilidade de escolha de estender aquele

poder e conhecimento e melhorar aqueles desejos ou simplesmente de não se importar. E para aquela escolha ser séria, ela deve implicar alguma dificuldade — tempo e esforço — e nenhuma garantia de sucesso deve estar suposta na busca por novos conhecimentos e poderes e por desejos melhores. Assim, criaturas precisam ter a seu dispor um âmbito inicial de ações básicas. Podemos chamar os tipos de efeitos que uma criatura pode (num certo tempo) levar a efeito intencionalmente por suas ações básicas de sua região de controle básico. Criaturas precisam de uma região inicial de controle básico. E sendo o conhecimento um grande bem e necessário para o controle, as criaturas precisam também de um âmbito inicial dentro do qual elas possam adquirir crenças em grande parte verdadeiras acerca do que é o caso. Chamemos os tipos de tais crenças que uma criatura pode adquirir de sua região de percepção básica. A região de controle básico terá de ficar dentro da região de percepção básica, pois criaturas não podem produzir efeitos intencionalmente a menos que elas saibam que efeitos elas estão produzindo. Para nós seres humanos, certos estados de nossos corpos são nossa

região de controle básico e nossa região de percepção básica consiste de estados observáveis de coisas numa região ampla que inclua nossos corpos. Estender nossa região de controle para além da região básica envolverá descobrir (ou seja, adquirir crenças verdadeiras) que ações básicas têm efeitos outros. Para a possibilidade de uma grande extensão de nossa região de controle, é necessário ser o caso que nossas ações básicas tenham efeitos diferentes para além da região básica que varia com as circunstâncias nas quais aquelas são feitas. O que são essas circunstâncias deve ser alterável por nossas ações básicas e, para para afetarmos a região de controle de outros, devemos ser capazes de alterar as circunstâncias nas quais aqueles outros devem ser encontrados. Efeitos “para além” da região básica significam, em algum sentido, efeitos mais “distantes” do que esta; e alterar “as circunstâncias” envolve em algum sentido “movimento”. Podemos saber que efeitos temos quando mudamos as circunstâncias se nossa região de percepção básica se move com nossa região de controle básico — embora isso possa nem sempre ser necessário se a região anterior é muito maior que esta última.

Podemos saber como produzir algum efeito em outra sala ao nos movermos para esta sala e, quando estivermos lá (mas não aqui), podemos ver os efeitos de nossas ações ali — nossa região de percepção básica se moveu com nossa região de controle básico. Ao irmos ver onde nossa bala vai parar quando disparamos nosso revólver em diferentes ângulos, podemos aprender os efeitos distantes de disparar uma arma em diferentes direções e, deste modo, novamente estender nossa região de controle. Mas podemos aprender como atingir uma pessoa à distância com uma pedra sem alterar nossa região de percepção básica, pois esta é grande o bastante para descobrirmos sem nos movermos, os efeitos de jogar pedras de diferentes modos. Podemos afetar a região de controle de outros ao mover estes outros por nossas ações básicas — tomamos alguém e o pomos numa cadeia ou num trem. A região de nossa percepção pode ser aumentada ao descobrirmos (por meio de movimento prévio) que percepções básicas são normalmente indício de fenômenos mais distantes. Podemos aprender a ver coisas distantes por meio de um telescópio uma vez que descobrimos (ao irmos ver) a correlação de coisas

que estão próximas com suas imagens no telescópio e extrapolamos disso para uma conexão semelhante entre suas imagens no telescópio e coisas à grande distância. O controle pode ser ampliado de modo a incluir eventos no futuro remoto e a percepção pode ser ampliada de modo a incluir eventos no passado distante. Assim, a fim de ter liberdade e responsabilidade significativas, as criaturas precisam estar situadas num “espaço” no qual haja uma região de controle básico e percepção e uma região mais ampla na qual eles possam estender sua percepção e controle ao aprenderem quais das suas ações básicas tem quais efeitos mais distantes quando eles estão estacionários e quais de suas ações básicas causam movimento em qual parte da região mais ampla, e quais de suas percepções básicas são causadas por quais eventos mais remotos. Para que eles sejam capazes de desempenhar ações mediatas — ou seja, para que suas ações básicas intencionalmente tenham efeitos distantes (incluindo aqueles que os movam em partes de uma região mais ampla) e para que eventos distantes tenham basicamente efeitos perceptíveis — o mundo espacial (desenvolverei

mais plenamente esta ideia no capítulo 8) deve ser governada por leis da natureza. E se criaturas simplesmente não devem ter crenças verdadeiras, acerca do que são esses efeitos, mas aprender por inferência racional a partir da observação, e ter escolha quanto a adquirir tais crenças por meio de investigação racional, aquelas leis da natureza devem incluir leis governando propriedades que eles possam observar e as leis devem ser suficientemente simples para que as criaturas entendam. Além disso, se as criaturas não devem apenas ter crenças casuais acerca das crenças e propósitos umas das outras (das quais elas precisarão para serem capazes de influenciá-las), mas sim serem capazes de escolher aprender acerca das crenças e propósitos umas das outras e de se comunicarem de modo público necessário para a ação e a discussão racional cooperativa (que envolverão linguagem), eles precisam manifestar suas crenças e propósitos de modo público — ou seja, por meio de suas regiões de controle básico, que devem, portanto, ser regiões físicas. Essas regiões precisam se comportar de tal modo que a explicação mais simples daquele comportamento se

dá em termos das crenças e propósitos (ou seja, intenções) das criaturas em cujas regiões elas estão. Consequentemente, por exemplo, devemos ser capazes de atribuir uns aos outros (pelo fato de ser a explicação mais simples do comportamento dos outros) crenças sensíveis a estímulo (input) — por exemplo, atribuir a alguém uma crença de que algum objeto está presente quando luz vem deste objeto e atinge seus olhos; e propósitos que — embora não inteiramente determinados por estados cerebrais — demonstram realmente alguma constância. Por exemplo, só podemos vir a entender a linguagem de outro ser humano se assumimos que ele normalmente busca dizer a verdade e tem constantes linguísticas ao longo do tempo, por meio das quais ele expressa suas crenças e que suas crenças são muitas vezes sensíveis a estímulos externos, de modos semelhantes às nossas próprias. Assim, podemos notar que muitas vezes, quando está chovendo e seus olhos estão apontados para fora de casa ou ele está na rua e os pingos de chuva caem em seu rosto, ele diz “google”. Se supomos que suas crenças são sensíveis a estímulos do mesmo modo que as nossas, e que ele tem o

propósito de dizer a verdade, é uma hipótese simples explicar seu comportamento verbal supondo que ele queira dizer com “google” que está chovendo. Ou, em todo caso, é uma hipótese inicial simples que precisaria ser combinada com muitas outras hipóteses acerca do que ele quer dizer com outras palavras para formar uma teoria simples em geral de seu comportamento linguístico, que o esclarecesse em termos de um sistema de crenças e propósitos que explicassem todo seu comportamento (linguístico e não linguístico). Seria bom que as criaturas tivessem o poder não apenas de estender suas regiões de controle e percepção além do básico, mas que tivessem o poder de estender ou restringir (ou impedir de ser restringido por outros ou por processos naturais) as regiões de percepção e controle básico (incluindo a habilidade de mover) de si mesmas e dos outros, e de estender ou restringir o âmbito das sensações e desejos de fazer isso ou aquilo que elas venham a ter. É preciso que haja ações básicas que as criaturas possam fazer ou ações não básicas que elas aprendam a fazer, que em várias circunstâncias farão diferença para suas capacidades de ação básica e

percepção e para suas sensações e desejos. Isso envolve que haja processos naturais que elas possam descobrir e sobre os quais influir que as capacitem a desempenhar suas ações básicas, adquirir e reter na memória percepções básicas e diminuir ou aumentar a dor ou o prazer. Além disso, para que esses processos sejam manipuláveis não apenas por aquele que de fato o usar, mas por outros seres humanos também, tais processos devem ser públicos. Para que esta última situação seja possível, é preciso que haja um lugar público no qual nós ou outros possamos agir de modo a interferir, melhorar ou prejudicar a qualidade de nossas sensações e desejos e a extensão de nossa capacidade para ações e percepções básicas. Não precisamos apenas de uma região de controle básico e uma região de percepção básica, mas daquilo que eu chamarei de uma sala das máquinas. Este é um lugar público no qual nossas intenções são traduzidas em ações básicas e estímulos externos são traduzidos em sensações e crenças, e processos ensejam desejos e pensamentos. Onde houver um objeto físico assim, nós e outros podemos prejudicar ou melhorar esses processos. Em todas essas áreas, precisamos de uma

região pública controlável na qual estamos. E assim, a existência de agentes humanamente livres com liberdade significativa requer a existência de um universo físico. Tudo isso significa que, a fim de haver o tipo de liberdade e responsabilidade limitadas que eu analisei, as criaturas precisam de corpos, no sentido em que esta noção foi analisada no capítulo 2. Elas precisam desempenhar ações básicas por meio de algum objeto público. Suas habilidades, sensações e crenças precisam depender do funcionamento de um objeto público. Este também é o caso em relação a suas percepções básicas, que serão causadas por eventos fora daquele objeto. E, a fim de haver uma região de percepção mais ampla que uma região de percepção básica (ou seja, a fim de ser capaz de estender seu conhecimento perceptual, ao aprender quais eventos além da região de percepção básica estão conectados com quais eventos dentro daquela região) é preciso que haja um centro — a região de percepção básica, a partir da qual eles vejam o mundo. Nos corpos humanos, todas essas regiões se encaixam umas nas outras. O corpo de um ser

humano consiste de um objeto público estendido e conectado espacialmente, no qual muitos dos estados formam a região de controle básico e da qual muitas partes formam a sala das máquinas daquele ser humano. Muitos estados da sala das máquinas são causados por eventos fora da região de controle básico e assim fazem o ser humano ter uma região de percepção básica. Para nós, nossa região de controle básico é o que podemos fazer com nossos membros, bocas e línguas — de modo direto, sem fazer nada além. A região de controle básico varia com a idade de um ser humano e aumenta e então diminui de novo com o tempo, em grande parte sem a ajuda de outros seres humanos — o quão rápido podemos mover nossos braços e pernas não depende muito de aprender ou da ajuda de outros. Mas podemos descobrir ou ser ensinados a aumentar aquela região de controle em muitos aspectos — acima de tudo, quanto a como influenciar os outros por meio da enunciação de frases de uma linguagem. E temos um espectro de percepção básica, aumentando ou diminuindo com a idade de um ser humano independentemente de qualquer ação intencional. Reconhecer objetos

inanimados de muitos tipos é uma capacidade perceptual que se desenvolve sem muita ajuda; aprender a entender as palavras das pessoas precisa de mais em termos de ajuda dos outros. Aprendemos por nossas ações básicas a prejudicar ou beneficiar os outros, a usar instrumentos, construir casas ou cortar árvores. Utilizamos princípios acerca do que é indício para o que a fim de detectar a presença prévia de outros a partir de suas pegadas e restos de fogueiras, e da passagem de partículas elementares em circuitos de aceleradores. Por meio do crescimento de nosso conhecimento e controle, aprendemos como causar prazer e dor, a passar conhecimento e controle a outros ou nos recusar a fazê-lo. Podemos nos permitir entrar em situações nas quais é difícil fazer o bem e assim adquirir maus hábitos e desenvolver naturalmente maus desejos — ou, alternativamente, impedir que isso aconteça. E, por meio do aprendizado, podemos adquirir a habilidade de influenciar os modos pelos quais outros desejem usar seus poderes — podemos educá-los moralmente ou imoralmente. Contudo, assim como podemos aprender como estender a região de controle e percepção, (de

nós mesmos e dos outros) além do básico, podemos também aprender como estender ou restringir (ou impedir que seja restrita) a região de controle básico e de percepção mesma. Ao fazermos passar fome a nós mesmos ou a outros, podemos restringir nossos poderes básicos e habilidades perceptuais, como podemos fazê-lo ao cortar nossos braços, línguas ou olhos. Sem que nós mesmos ou outros queiram, nossos poderes podem diminuir por meio de doença, mas podemos aprender a evitar os efeitos da doença com remédios e cirurgias, ou podemos simplesmente não nos importamos em descobrir como fazê-lo. E nossas habilidades atuais de interferir em nossos poderes básicos e habilidades perceptuais parecem bastante pequenas se comparadas com o que a ciência médica vai certamente nos oferecer no curso dos próximos mil anos. A intervenção médica certamente nos possibilitará, mesmo num período de cem anos, fazer crescer novos membros e órgãos sensoriais e retardar a perda de memória. O fato de que nossos corpos são espacialmente extensos significa que a superfície da interação entre cérebro e mente fica no corpo (ou seja, no cérebro), e isso também envolve eventos em outras partes no corpo

afetando o que percebemos basicamente e como basicamente podemos agir. Poderia haver tipos de corpos muito diferentes dos corpos humanos ou animais. O corpo de alguma criatura racional em outro mundo poderia consistir de duas partes ou mais não conectadas espacialmente. Uma parte poderia ser sua casa das máquinas e outra parte, aquele pedaço de matéria cujos estados formam sua região de controle básico. Para aperfeiçoar esta última, você precisaria adulterar a anterior, que poderia estar uma milha ou duas de distância. Ou ambas as partes poderiam ser tais que a criatura pudesse controlar e que fossem também partes de sua sala de máquinas. Nossos corpos não têm meramente uma locação espacial, mas são espacialmente extensos. Também seria possível para as capacidades básicas de percepção e ação das criaturas dependerem de processos públicos se elas tivessem um “corpo-partícula” como sua sala de máquinas. Os processos públicos precisariam então consistir de estímulos temporariamente extensos dirigidos a um objeto espacialmente não extenso. Este último seria como uma caixa preta totalmente impenetrável. Criaturas

poderiam descobrir como melhorar ou prejudicar sua visão, fortalecer ou enfraquecer suas memórias ao darem certo estímulo à caixa por um longo período de tempo. Mas a caixa não poderia ser aberta, pois, de fato, ela não teria extensão espacial. Suas memórias, então, não dependeriam de um cérebro, elas dependeriam de um estímulo ao longo do tempo, que afetasse a memória por meio de ação distante no tempo. Isso nos daria um tipo menos imediato de corporeidade — pois a dependência do mental em relação ao físico não seria instantânea. Mas poderia parecer, ainda assim, ser um modo alternativo no qual as criaturas pudessem ter a habilidade de afetar as capacidades básicas delas mesmas e umas das outras sem o tipo normal de corporeidade. Em um ou outro desses modos, para eles terem o grande bem de afetarem a si mesmos e uns aos outros significativamente para o bem ou para o mal, as criaturas finitas precisam de corpos. Os anjos são tradicionalmente considerados criaturas finitas, mas não podemos cegá-los ou abraçá-los, porque não há um espaço ao qual possamos dirigir nossa atividade, não podemos alcançá-los a fim de

causar-lhes efeito. A simples comunicação telepática com espíritos individuais não permite a discussão pública com muitos seres humanos e espíritos. E se você começa a acrescentar a estas situações características que realmente ensejam a habilidade de capturar anjos ou ter discussões públicas com espíritos, você verá que está começando a lhes dar corpos no sentido que estou falando. Para Deus criar criaturas com escolha livre limitada para fazer diferenças profundamente significativas para si mesmas, umas às outras e ao mundo físico, para o bem ou para o mal, ele deve fazê-los corpóreos. Agentes humanamente livres precisam de corpos e, deste modo, estar localizados num universo físico feito por Deus. Se os seres humanos têm livre arbítrio (um problema que eu vou discutir brevemente no momento apropriado), eles são então, evidentemente, um tipo de agente humanamente livre. Uma vez que agentes humanamente livres têm desejos e consciência moral, eles serão capazes de amor e gratidão e, uma vez que eles são capazes de significativo crescimento de conhecimento, eles serão capazes de desenvolver os conceitos

metafísicos que os permitem ter o conceito de Deus e assim amá-lo se eles vierem a acreditar que ele existe. Se Deus cria realmente tais criaturas capazes de amá-lo, ele deve ser fazer conhecido a elas e ajudá-las a lidar com seus problemas — especialmente se elas o pedem e elas se encontram em dificuldades grandes demais para que elas possam resolvê-las por si mesmas. Ou ao menos ele deve fazê-lo, a não ser que tornar-se conhecido e ajudá-los fizer com que fique mais difícil para eles fazerem escolhas morais livres por si mesmos. Defenderei no capítulo 11 que existem tais limites para o bem de Deus se tornar conhecido para os seres humanos e nos ajudar. Porém, excluindo-se tais limites, minha posição é de que Deus tem uma obrigação de se tornar conhecido (pais que deixam de considerar interesses evidentes de seus filhos são maus pais). Assim, há uma probabilidade de 1 de que ele o fará. Contudo, novamente, nada pode ser expresso com valor exato. Assim, digamos apenas que há uma alta probabilidade de que Deus se fará conhecer a criaturas capazes de amá-lo, a não ser que isso as prive de sua liberdade. Seres humanos são capazes de amar a Deus, pois eles podem ter o

conceito de Deus e a habilidade de amar. Contudo, em vista das desvantagens de sua revelação aos seres humanos, eu defenderei que há também uma alta probabilidade de que sua própria manifestação a eles será limitada. Pelas mesmas razões que os agentes humanamente livres, os animais precisam de corpos a fim de terem uma localização no espaço no qual eles possam influenciar uns aos outros, aprender uns dos outros e serem afetados uns pelos outros. Conclusão do capítulo Argumentei neste capítulo que há uma probabilidade modesta, no intervalo entre 1 e 0, à qual darei o valor artificialmente preciso de ½, de que um Deus criará agentes humanamente livres localizados num universo físico belo, contendo talvez animais também. Na sequência, eu vou discutir várias características particulares do universo que são necessárias para a existência de agentes humanamente livres e mostrarei que é altamente improvável que elas ocorram a menos que Deus as leve a efeito. Capítulos posteriores discutirão outras características com as quais podemos esperar que

Deus dote essas criaturas e seu universo, e também que não há razão para esperá-las se Deus não as criar. As considerações deste capítulo e dos dois anteriores agora me permitem fazer face a uma objeção importante a argumentos probabilísticos, que é posta numa forma bastante precisa num artigo de D. H. Mellor.[81] O argumento de Mellor se dirige contra o argumento do desígnio, mas poderia ser igualmente dirigido contra quase todo argumento em favor da existência de Deus. Vou dar ao argumento de Mellor, que é apenas um de um número de argumentos interconectados em seu artigo, uma forma de certo modo mais precisa do que a que tem ali. Espero que não o represente incorretamente. Mellor imagina que encontramos as cartas numa mão de bridge que acabou de ser colocada num certo tipo de ordem (e) e ele considera o valor do argumento a partir desta ordem para a hipótese (h) de que houve desonestidade ao se estabelecer aquela ordem (ou seja, de que o baralhamento foi feito de modo marcado). Ele afirma corretamente que podemos avaliar a probabilidade desta hipótese apenas se, antes de ver o resultado, pudéssemos ter

escrito em qual ordem (ou ordens) seria provavelmente o modo desonesto de dispor as cartas. Em nossa terminologia, a fim de avaliar P(h/e&k), precisamos saber, antes de observar e, P(ei/h&k) e P(ei/k) para diferentes ei. Esta parte do argumento me parece indubitavelmente correta. Mellor então propõe que não podemos fazer isso se h for a hipótese do teísmo e ei forem diferentes mundos possíveis, uma vez que não temos ideia de quais são as intenções de Deus, se ele existe. As respostas à objeção de Mellor devem agora estar claras daquilo que foi dito anteriormente neste capítulo e nos capítulos 4 e 5. Primeiro, contrariamente a Mellor, nós temos realmente uma ideia de que tipos de mundo é provável que Deus crie e assim uma ideia do quanto P(ei/h&k) vai diferir para diferentes ei; e, segundo, diferentemente da analogia com o bridge, nem todos os ei são a priori igualmente prováveis. Alguns ei, alguns mundos, têm tamanha complexidade que a priori deve ser esperar que eles não existam — provavelmente apenas o poder e a escolha de Deus pode levá-los a efeito. Assim, podemos saber que

P(ei/h&k) excede P(ei/k) não apenas por causa do conhecido caráter de Deus (porque sabemos que Deus deve levar a efeito alguns ei mais do que outros), mas também por causa da conhecida improbabilidade a priori de certos estados do mundo de ocorrerem sem causa.

7. O argumento cosmológico Os capítulos anteriores se preocuparam em elucidar os princípios gerais de julgamento do valor de argumentos de fenômenos empíricos para a existência de Deus. Com este capítulo, eu começo a aplicá-los à consideração de argumentos particulares, começando com o argumento que tem a premissa mais geral de todas — o argumento cosmológico. A natureza dos argumentos cosmológicos Kant definiu um argumento cosmológico como aquele que começa de uma “experiência que é puramente indeterminada” ou “experiência da existência em geral”. Digamos, mais precisamente, que é aquele que começa com a experiência de um objeto finito — ou seja, um objeto de poder, conhecimento ou liberdade limitados — ou seja, qualquer objeto diferente de Deus. Contudo, outros argumentos chamados cosmológicos têm de fato começado de algo um pouco mais específico: a

existência de um universo físico complexo, e eu vou restringir minha discussão principalmente a estes. Entendo por universo físico um objeto físico que consiste de objetos físicos relacionados espacialmente uns com os outros e com nenhum outro objeto físico (por “espacialmente relacionados uns com os outros”, entendo “a alguma distância em alguma direção um do outro”). Nosso universo físico, o universo, é o objeto físico que consiste de todos os objetos físicos, incluindo a Terra, coisas nela e os gases entre eles. O universo é o único universo físico do qual temos certo conhecimento, mas eu o defino de modo tal a não excluir a possibilidade lógica de outros universos físicos,[82] ou de objetos que não são parte de qualquer universo físico (por exemplo, Deus ou algum espírito finito, dos quais nenhum seja um objeto físico). Por um universo físico complexo, eu entendo um universo que consista de muitos objetos físicos de diversos volumes, formas, massas, etc. Pressupondo que nosso universo físico é o único, eu elaboro o argumento cosmológico como um argumento a partir deste universo; mas se houver mais de um universo, o argumento deveria ser

tratado como um argumento a partir de todos os universos físicos que há (o “multiverso”, como é às vezes chamado, o qual, em vista da complexidade de nosso universo, será ele mesmo evidentemente complexo). Para os propósitos deste capítulo, nada depende de quantos universos existem, mas precisaremos levar um pouco mais a sério no próximo capítulo a possibilidade de que exista mais de um universo. De tempos em tempos, vários autores[83] têm nos dito que não podemos chegar a nenhuma conclusão sobre a origem ou desenvolvimento do universo, dado que é apenas um do qual temos conhecimento e que a investigação racional pode chegar a conclusões apenas acerca de objetos que pertencem a espécies. Por exemplo, pode-se chegar a conclusões acerca do que vai acontecer com este pedaço de ferro apenas porque há outros pedaços de ferro, cujo comportamento pode ser estudado. Esta objeção tem a consequência surpreendente — e para a maioria destes autores, indesejável — de que a cosmologia física não poderia chegar a conclusões justificadas acerca de assuntos como tamanho, idade, taxa de expansão e densidade do universo

como um todo (pois este é o único do qual temos conhecimento); e também que a antropologia física não poderia chegar a conclusões sobre a origem e desenvolvimento da raça humana (pois, até onde nosso conhecimento alcança, ela é a única de sua espécie). A implausibilidade dessas consequências nos leva a duvidar da objeção original, que é mesmo totalmente equivocada. A singularidade é relativa à descrição. Todo objeto físico é único sob certa descrição, se você admitir descrições que identifiquem um objeto por sua posição espacial — ou seja, por sua distância e direção em relação a denominados objetos. Assim, minha escrivaninha é a única escrivaninha em determinado apartamento; e esse apartamento é o penúltimo à esquerda num certo corredor. Além disso, se você admite apenas descrições em termos qualitativos — por exemplo, a única escrivaninha existente de tal e tal formato, tal e tal peso, com tal e tal alto-relevo em suas pernas e ranhuras na sua tampa, situada num apartamento que é o penúltimo num corredor -, fica ainda plausível supor que a maior parte dos objetos físicos tem uma descrição única[84]. Quanto ao primeiro aspecto, o universo

é, como todo objeto físico, identificável por uma descrição única — “o universo físico que consiste de todos os objetos físicos inclusive a Terra, espacialmente relacionados uns com os outros e com nenhum outro objeto. Quanto ao segundo aspecto também, o universo pode bem parecer apresentável por uma única descrição — por exemplo, “o objeto físico que consiste de objetos físicos que estão todos espacialmente relacionados uns com os outros e com nenhum outro objeto físico e que é governado por leis da natureza L e que partem de condições iniciais I” (onde L e I estão especificadas em pormenor). Em tudo isso, o universo não é mais “único” que os objetos que ele contém. Contudo, todos os objetos dentro do universo são caracterizados por certas propriedades, que são comuns a mais que um objeto. Minha escrivaninha tem em comum com vários outros objetos o fato de ser uma escrivaninha; e com vários diferentes objetos o fato de pesar menos de uma tonelada, e assim por diante. O mesmo se aplica ao próprio universo. Ele é, por exemplo, como objetos dentro dele, como o sistema solar, um sistema de corpos materiais distribuídos no espaço vazio. É um objeto físico e, como outros

objetos físicos, tem densidade e massa. A objeção deixa de fazer qualquer distinção crucial entre o universo e outros objetos, e assim, acaba falhando em seu intento de impedir no início uma investigação racional sobre o problema de se o universo tem uma origem fora de si mesmo. Assim, para voltar ao fio condutor principal, um argumento cosmológico é um argumento em favor da existência de Deus a partir da existência de algum objeto finito ou, mais especificamente, um universo físico complexo. Houve várias versões do argumento cosmológico apresentadas nos últimos dois milênios e meio; as mais citadas são a segunda e terceira das cinco vias de Tomás de Aquino para mostrar a existência de Deus[85]. Contudo, as cinco vias de Tomás de Aquino, ou melhor, as primeiras quatro de suas cinco vias, parecem-me uma de suas menos bem sucedidas propostas em filosofia[86]. Em minha opinião, as duas versões mais persuasivas e interessantes do argumento cosmológico são dadas por Leibniz em seu texto “Sobre a Origem Última das Coisas” e por seu contemporâneo Samuel Clarke, nas suas Conferências Boyle de 1704 e publicadas com o título Uma Demonstração do Ser

e dos Atributos de Deus[87]. O primeiro parece ser o argumento criticado por Kant na Crítica da Razão Pura e o último, o criticado por Hume nos Diálogos. Ao considerar um exemplo de argumento cosmológico em pormenor, vou considerar a versão de Leibniz, mas a maior parte de minhas observações se aplicação à maioria das versões do argumento. Os pontos de partida dos argumentos cosmológicos são facetas evidentes da experiência. Não há dúvida acerca da verdade das afirmações que as apresentam. Parece-me igualmente evidente que nenhum argumento a partir de pontos de partida assim, em favor da existência de Deus, é dedutivamente válido, pois se um argumento que parte, por exemplo, ,da existência de um universo físico complexo para a existência de Deus fosse dedutivamente válido, então seria incoerente afirmar que um universo físico complexo existe e Deus não existe. Haveria uma contradição escondida ao se fazerem as duas afirmações. O único modo de se mostrar que uma proposição é incoerente é deduzir dela uma proposição obviamente incoerente (por exemplo, uma proposição autocontraditória)[88],

mas, notoriamente, tentativas de derivar proposições obviamente incoerentes de tais asserções conjugadas falharam pelo cometimento de algum erro lógico elementar. Além disso, parece bastante fácil desenvolver de um modo obviamente coerente, um modo pelo qual afirmações associadas seriam verdadeiras. Haveria um universo complexo, mas Deus não existiria se a matéria existente desde sempre se rearranjasse em várias combinações e as únicas pessoas fossem pessoas corpóreas; se jamais houvesse uma pessoa que soubesse tudo ou pudesse fazer tudo, etc. O ateísmo parece realmente ser uma suposição consistente com a existência de um universo físico complexo como o nosso universo. É claro que as coisas podem não ser do modo como parecem, mas, na falta de qualquer argumento válido que seja de meu conhecimento, assumirei que a não existência de Deus é logicamente compatível com a existência do universo e, assim, que o argumento cosmológico não é dedutivamente válido e, por isso, não é um bom argumento dedutivo. Nossa preocupação principal é, contudo, investigar se ele é um bom argumento C-indutivo ou Pindutivo e quanta força ele tem.

A inexplicabilidade científica do universo Ora, poderia haver um universo hoje para cuja existência atual não houvesse qualquer explicação científica. Mas, é claro, há uma explicação científica plena da existência de nosso universo atual em termos do fato de ele existir num certo estado ontem (por exemplo, tendo aproximadamente a mesma quantidade de matériaenergia que tem hoje) e leis da natureza (inclusive a lei de conservação da matéria-energia) operando neste estado ontem para produzir um universo hoje. No momento, expresso esta explicação em termos do modelo hempeliano corrigido que fala de causas como estados de coisas prévios, que, junto com leis, explicam eventos subsequentes. O estado do universo ontem certamente também tem uma explicação plena em termos de seu estado no dia anterior e tem uma explicação plena em termos de seu estado anteontem e a operação das mesmas leis da natureza. E certamente podemos voltar no tempo deste modo, dando explicações plenas do estado (e assim da existência) do universo, por muitos milhões

de anos. Denotando um estado do universo num tempo n por Sn, onde um n maior indica um período anterior de tempo, por S1 o estado do universo hoje e por L as leis da natureza, temos a seguinte ilustração:

...

Esta ilustração toma os “estados” como estados temporalmente estendidos, estados que duram um período de tempo e não meramente um instante[89]. Entre quaisquer dois instantes de tempo (por exemplo, 14h e 15h hoje) haverá um número infinito de períodos temporais (por exemplo, os períodos de ½ hora, ¼ de hora, 1/8 de hora, 1/16 de hora, etc.). A questão interessante acerca de se o universo existe a uma quantidade finita ou infinita de tempo é a questão acerca de se o universo existe apenas há não mais que um número finito de períodos de duração igual (por exemplo, um número finito de anos) ou se ele existe há um

número infinito de períodos assim[90]. Se a série é finita e vamos em direção ao seu início, chegaremos a um estado primeiro do universo (enquanto governado por leis que operam hoje); se a série é infinita, vamos em direção ao seu início para sempre.[91] Não sabemos se o universo é finita ou infinitamente antigo, mas a ciência pode ser capaz de nos mostrar qual alternativa é a mais provável. A ciência pode mostrar que (supondo-se que as mesmas leis operaram no passado como operam hoje) a extrapolação para o passado de S1 via L no final leva a um estado fisicamente impossível ou um estado sem matéria num tempo t; daí poderíamos concluir que provavelmente o universo passou a existir num tempo depois de t e não como resultado da operação de leis científicas. Minha avaliação do estado presente da ciência é que é isso que ela tende a mostrar. Ela sugere a explicação mais simples da atual recessão mútua de galáxias (os grupos de estrelas que ficam cada vez mais distantes umas das outras) é que esta é uma consequência de leis fundamentais agindo em matéria-energia produzida por uma explosão enorme, o Big Bang, quinze milhões de anos atrás. À medida que voltamos no

tempo, a matéria se revela cada vez mais densa. Mas, se, como parece, se fosse um estado fisicamente impossível para a matéria se concentrar num ponto com uma densidade infinita, a matéria tem de ter passado a existir e a explosão causou sua recessão quando estava concentrada muito densamente, mas não de modo infinitamente denso. Contudo, novos dados científicos ou reflexão posterior acerca de dados existentes podem levar os cientistas a concluir que a melhor (ou seja, a mais simples) explicação das leis que operam no universo relativamente espaçado de hoje é em termos de uma lei mais fundamental que tem a consequência de que diferentes leis menos fundamentais teriam operado num universo anterior e mais denso. Extrapolando retroativamente, de acordo com essas leis, pode-se chegar à conclusão de que qualquer Big Bang teria ocorrido num estado muito denso produzido por uma contração prévia do universo. Mas não podemos ter dados da operação de leis bem diferentes no passado, a menos que sua operação seja uma consequência da explicação mais simples do que está acontecendo no presente. Na medida em que a ciência mostre que as leis fundamentais[92] da

natureza são L e que extrapolar de L retroativamente leva a um estado fisicamente impossível, temos de concluir que houve um começo para o universo governado pelas leis atuais e que não podemos conhecer nada anterior a ele. Pode ter existido um universo físico governado por leis bem diferentes ou pode não ter existido universo algum. Mas é sempre mais simples não postular nada que algo; e assim, na ausência de dados observáveis que fossem prováveis pela hipótese de que leis bem diferentes e não fundamentais estivessem operando no passado, a hipótese de que o universo passou a existir num tempo finito atrás ficará como a hipótese mais provável. Mas é certamente possível que a ciência possa vir a mostrar que as leis fundamentais que governam nosso universo são tais que podemos extrapolar retroativamente para sempre do estado presente do universo. Assim, os dados sustentariam a afirmação de que o universo é infinitamente antigo. Se nos confinamos à explicação científica, seguir-se-á então que a existência do universo (pelo tempo que este existiu, seja um tempo finito ou infinito) não tem explicação. Tem sido

frequentemente assumido e às vezes defendido por filósofos, inclusive Hume, que, se temos uma explicação científica de cada um de uma coleção de estados, então temos uma explicação do conjunto inteiro. Assim, diz Hume: Numa... cadeia... ou sucessão de objetos, cada parte é causada pela parte que a precedeu e causa a que a sucedeu. Onde está, então, a dificuldade? Mas o todo, você diz, requer uma causa. Eu respondo que a união de várias partes num todo, como a união de vários países diferentes num reino, ou vários membros distintos num corpo é feita apenas por um ato arbitrário da mente e não tem influência na natureza das coisas. Se eu lhe mostrei as causas particulares de cada indivíduo numa coleção de vinte partículas de matéria, eu acharia muito irrazoável se você me perguntasse qual era a causa de todos os vinte. Isto está suficientemente explicado ao se explicar a causa das partes.[93]

Para se avaliar a afirmação de Hume, precisamos desenvolver princípios gerais acerca da relação de causas de partes com causas de todos. Um princípio que pode ser proposto a esse respeito é o de que uma causa da ocorrência de uma coleção de estados é qualquer coleção de causas de cada um. Mais particularmente, uma causa plena da ocorrência de uma coleção de estados é qualquer coleção de causas plenas de cada um. Este princípio

claramente vale para qualquer conjunto finito de efeitos no qual nenhuma das causas de qualquer membro da coleção de efeitos seja ela mesma um membro da coleção de efeitos. Se uma causa plena de a é a’, de b é b’, de c é c’ e de d é d’, sendo a, b, c, d, a’, b’, c’e d’ estados distintos, então uma causa plena de a+b+c+d é a’+b’+c’+d”. Se uma causa plena do acendimento de uma lâmpada é o fato desta estar conectada a uma pilha e uma causa plena do acendimento de uma segunda lâmpada for estar conectada a uma pilha diferente, então a causa plena do acendimento de de duas lâmpadas é a conexão das duas às pilhas. Este princípio parece também valer no caso da coleção de efeitos ser infinita e quando nenhuma das causas de qualquer membro da coleção de efeitos ser ela mesma um membro da coleção de efeitos. Se uma causa plena da existência de todo sistema de estrelas duplas no universo for a separação de uma estrela única, então uma causa plena da existência de sistemas de estrelas duplas ainda é a separação de estrelas únicas, mesmo se o número de sistemas de estrelas duplas for infinito. Contudo, o princípio deve ser modificado se se for dar conta de casos nos quais a causa de algum

membro de uma coleção de efeitos for ela mesma um membro daquela coleção. Isso porque, quando b é a causa de a e c é a causa de b, a causa de a+b é c e não b+c. Se c é o acendimento de um detonador, b é uma explosão causada por c e a é uma explosão causada por b, então a causa de a+b é apenas c. Para levar em conta esta ideia, o princípio anterior deve ser expresso mais geralmente como se segue: uma causa (plena) da ocorrência de uma coleção de estados é qualquer coleção de causas (plenas) de cada um, que não são membros da coleção anterior. Assim, se uma causa plena de a é b, de b é b’, de c é d e de d é d’, então uma causa plena de a+b+c+d é b’+d’. Se uma causa plena de a for b, de b for c, de c for d, e de d for e, então uma causa plena de a+b+c+d será e. Na medida em que algum membro da coleção não tiver uma causa, será nesta proporção que a coleção de estados não terá uma causa. Se a não tem uma causa, mas c é uma causa plena de b, então não há uma causa plena de a+b, mas c será uma causa parcial. Assim, na medida em que uma coleção finita de estados tiver uma causa, ela terá sua causa fora da coleção. Dado tudo isso, segue-se do princípio acima

que, se o universo tem uma idade finita e assim sua existência ao longo do tempo consiste de nada mais que a ocorrência de uma coleção finita de estados passados, cada um durando pelo mesmo tempo finito (por exemplo, um número finito de anos), e as únicas causas destes estados passados forem estados passados anteriores (ou seja, se apenas a causalidade científica funcionar), a coleção inteira de estados passados não terá causa e, assim, não terá explicação. O mesmo resultado se segue se o universo for infinitamente antigo (e assim sua história consiste da ocorrência de uma coleção infinita de estados passados, cada um durando o mesmo tempo finito). A série infinita inteira não terá uma explicação plena de forma alguma, pois não haverá causa dos membros da série que esteja fora da série. Neste caso, a existência do universo num tempo infinito será um fato bruto inexplicável. Haverá uma explicação (em termos de leis) de por que, uma vez existente, ele continua a existir. Contudo, o que será inexplicável é sua existência mesma ao longo do tempo infinito. A existência de um universo físico complexo ao longo do tempo finito ou infinito é algo “grande demais” para a

ciência explicar. Contudo, mesmo para o caso infinito o resultado se segue apenas se se supõe que apenas a causalidade infinita funciona. Não se segue apenas do fato de que cada estado do universo tem uma explicação plena de um tipo científico, pois isso deixa aberta a possibilidade de que possa haver uma explicação mais profunda, na qual os próprios fatores explicativos sejam explicados por uma causa pessoal operando no momento em que eles agem. Particularmente, a operação das leis da natureza pode ser devida a uma causa externa cuja ação, junto com o estado de coisas prévio, dá uma explicação completa de qualquer estado dado. Este será o caso se uma pessoa G leva a efeito por uma ação básica a cada período de tempo que as leis da natureza L operem e assim cause que Sn+1 cause Sn. Temos então a seguinte ilustração:

GGG ↓↓↓

LLL S5 → S4 → S3 → S2

G, então, assegura, por uma intenção contínua ao longo do tempo infinito, que toda a série infinita de estados exista. Se o universo tiver apenas uma idade finita e assim tiver um primeiro estado, então há a possibilidade de que uma pessoa G cause seu primeiro estado como uma ação básica e, subsequentemente, ao fazer as leis da natureza operarem continuamente (sempre por uma ação básica), manter o universo no ser. Em qualquer caso, por meio de sua intenção ao longo de todo o tempo enquanto o universo existir, G teria fornecido — dado que sua própria existência e intenções em cada momento do tempo não eram causadas — não apenas uma explicação completa, mas uma explicação última da existência do universo. Em sua exposição do argumento cosmológico, Leibniz propõe a ideia de que uma série retroativamente infinita de estados do universo, cada uma explicada por um estado anterior sem que qualquer causa atuasse desde fora, deixaria a

existência do realmente.

universo

totalmente

inexplicada

Nem em qualquer coisa única nem no agregado inteiro e na série de coisas pode ser encontrada a razão suficiente da existência. Suponhamos que o livro dos elementos da geometria fosse eterno, uma cópia sempre tendo sido escrita a partir de uma anterior; é evidente que, embora uma razão possa ser dada para o livro atual a partir de um passado, ainda assim, a partir de qualquer número de livros tomados em ordem retroativa, nunca chegaremos a uma razão plena; embora possamos bem perguntar sempre porque teria havido livros assim desde sempre — por que há livros afinal e por que eles foram escritos daquela maneira. O que é verdadeiro para livros é também verdadeiro para estados diferentes do mundo: pois o que se segue é de algum modo copiado do que o precede (embora haja certas leis de mudança). E assim, não importa quão distante você retorne para estados anteriores, você nunca encontrará naqueles estados uma razão plena pela qual deveria haver um mundo ao invés de nenhum e por que ele deveria ser tal como é. Na verdade, mesmo se você supõe que o mundo é eterno, como você estará supondo apenas uma sucessão de estados, e não encontrará em nenhum deles uma razão suficiente, nem avançará um único passo dando uma razão, não importa quantos estados você assuma...[94]

Como Leibniz, eu concluo que a existência do universo num tempo finito ou infinito seria um

fato bruto inexplicável, se permitíssemos apenas explicações científicas. E, tal como Leibniz também, concluo que há a possibilidade de uma explicação daquela existência em termos pessoais. A existência do universo (físico) no tempo entra na minha categoria de coisas grandes demais para a ciência explicar. Para explicarmos a existência do universo, devemos recorrer à explicação pessoal e a uma explicação dada em termos de uma pessoa que não é parte do universo e que age de fora. Este argumento precisará ser refeito para ser posto em termos da descrição substâncias-poderese-suscetibilidades da explicação científica, na qual as causas são objetos (substâncias) com poderes e suscetibilidades. O princípio relativo à causa de uma coleção de estados se torna então: “uma causa (plena) da ocorrência de uma coleção de estados é qualquer coleção de causas (plenas) de cada um, estados estes que, enquanto causam, não são membros da coleção anterior”. Mas a descrição S-PSS tem um entendimento diferente do modelo hempeliano acerca do que são os estados dos objetos. Para a descrição S-P-SS, o “porquê” numa explicação é constituído pelos poderes e

suscetibilidades das substâncias (objetos) que são propriedades das substâncias, e não por leis independentes das substâncias que elas governem. Assim, uma explicação plena da existência de uma substância vai mencionar uma substância (ou a mesma substância ou outra) e seus poderes e suscetibilidades; e uma explicação plena desta última também envolverá uma substância, seus poderes e suscetibilidades. E os mesmos fatores que explicam a existência de substâncias, o “por quê” da explicação (neste modelo, poderes e suscetibilidades), tornam-se agora explicáveis nos mesmos termos que o “o quê”. Segue-se ainda, como antes, que, se cada estado do universo tiver uma causa plena no universo num tempo anterior que o cause, então não haverá explicação dentro do padrão científico acerca de por que tem existido um universo ao longo de toda a história, mas apenas de por que ele existe em algum momento particular. Mas a questão se coloca novamente quanto a se as operações de cada causa plena dependem elas mesmas de uma causa mais fundamental. Como antes, esta última não pode ser uma causa física, pois não há causas fora do

universo mesmo e de partes deste. Assim, a questão é se uma causa pessoal agindo desde fora do universo faz com que as causas dentro do universo causem o que causam. Mais precisamente, o problema é se o poder do universo continuar a existir no próximo momento e sua obrigação/suscetibilidade de exercer aquele poder não tem explicação no tempo em questão ou se sua existência e operação dependem de uma pessoa que os mantém existindo e operando. Será que a explicação científica não é apenas uma explicação apenas plena, mas também completa; ou será que ela mesma tem uma explicação em termos de uma pessoa G que escolhe usar o próprio universo para manter o universo existindo (tanto quanto trazê-lo para a existência, caso ele tenha tido um começo)? Se for assim, G, por sua intenção contínua, é a causa última de haver um universo ao longo do tempo infinito. Assim, de qualquer maneira, há a possibilidade de uma pessoa G ser a causa última de haver um universo em todo caso; e sendo uma causa completa de sua existência em qualquer momento particular. O problema é, na verdade, o mesmo nos

dois modelos de explicação (seja se pensarmos em leis como separadas dos objetos que elas governam ou como propriedades destes); mas será mais simples, para os propósitos de exposição, por a questão inicialmente em termos do modelo hempeliano corrigido e então apresentá-la subsequentemente no modelo S-P-SS. O argumento em favor de Deus Pelas razões dadas no capítulo 3, a explicação mais simples é, sendo iguais os outros fatores, a mais provável. Assim, é mais provável que, se há um G assim, que haja o tipo mais simples de G e que — por razões já discutidas no capítulo 5 — seja um G de poder, conhecimento e liberdade infinitos, ou seja, Deus. Postular um G de poder muito grande, mas finito, muito, mas não todo conhecimento, etc., levantaria as questões inevitáveis de por que ele tem exatamente aquela quantidade de poder e conhecimento e o que o impede de ter mais. Questões que não surgem com a postulação de Deus. E ainda menos simples e assim menos provável é o politeísmo, a suposição de que o

universo foi criado e é conservado por um comitê de deuses de poder limitado. Nos Dialogues, Hume sugeriu que o politeísmo era pelo menos uma explicação tão boa da existência do universo quanto o teísmo: “Um grande número de homens se juntam para construir uma casa ou um navio, edificar uma cidade, estruturar uma comunidade: por que não podem várias deidades combinarem-se para planejar e estruturar um mundo?”[95]. Hume novamente está ciente da objeção óbvia a sua sugestão. “Multiplicar causas sem necessidade é… contrário à verdadeira filosofia”.[96] Ele afirma, contudo, que a objeção não se aplica aqui, pois (na minha terminologia), embora a suposição de que há uma causa seja em si uma suposição mais simples do que a suposição de que há muitas, ao postular muitos deuses de poderes limitados como responsáveis pela ordem do universo, estamos postulando deuses mais semelhantes aos humanos em seu poder e conhecimento que o Deus do monoteísmo — ou seja, estamos apresentando uma hipótese que se encaixa melhor com nosso conhecimento de fundo acerca do que há no mundo. Mas esta última ideia

só tem força dependendo do modo como construímos o argumento. Ao apresentar o argumento cosmológico, eu assumi que não temos conhecimento de fundo contingente (temos apenas conhecimento “tautológico”) e estamos procurando apenas pela explicação mais simples dos dados. Devemos, é claro, levar em conta todos os indícios que temos, incluindo o indício quanto a como são os seres humanos. Mas, eu trago este indício como dado a ser explicado pela hipótese quando continuar a considerar (nos capítulos 8 e 9) se é provável que existam seres humanos corpóreos finitos, caso Deus exista. E este será o lugar apropriado para considerar este indício, uma vez que o teísmo se propõe a explicar por que existem seres assim. Segundo o teísmo, a existência deles não é parte de uma estrutura do mundo que existiria mesmo se não houvesse um Deus. Repetindo uma ideia que apresentei no capítulo 3 — não é objeção nenhuma a uma teoria física que postule partículas fundamentais e se proponha por meio delas explicar o comportamento físico e, a partir deste, o comportamento químico de objetos de tamanho médio, a acusação de que ela esteja postulando

partículas bem diferentes daqueles objetos de tamanho médio (que tenham diâmetros muito pequenos, etc.). O problema é apenas se o que ela postula seja relativamente simples e se o que é postulado torna provável que observaremos o que observamos. Contudo, pode ainda ser argumentado que, embora qualquer hipótese particular de um deus finito ou de muitos deuses finitos seja menos provável que o teísmo, há ainda tantas hipóteses possíveis de deuses finitos com diferentes graus de poder e conhecimento e diferentes números de deuses que certamente é mais provável que uma destas seja correta e não o teísmo[97]. Porém, como afirmei no capítulo 3, a consideração do peso que damos à simplicidade em outras áreas da investigação indutiva sugere que nós normalmente ponderamos as coisas de tal modo que uma hipótese realmente simples seja intrinsecamente mais provável que uma disjunção de muitas hipóteses mais complexas. Por exemplo, será que um detetive realmente pensaria que alguma hipótese que falasse que Jones cooperou com ao menos um dos bilhões de habitantes da Terra para cometer certo crime

fosse mais provável que a hipótese de que Jones o fez sozinho quando ambas as hipóteses dão probabilidade igual aos dados observados? E, para ir um pouquinho mais adiante, há dois problemas adicionais com o politeísmo como explicação da existência não apenas de um universo, mas de um universo governado ao longo do espaço e do tempo pelas mesmas leis naturais (um fenômeno que eu discutirei no próximo capítulo). Para explicarmos esta ordem no mundo com a tese da existência de muitos deuses alguma explicação é requerida para como e por que eles cooperam na produção dos mesmos padrões de ordem em todo o universo. Este se torna um novo ponto a exigir explicação pela mesma razão que o próprio fato da ordem. A necessidade de explicação adicional termina quando postulamos um ser que é a causa da existência de todos os outros e o ser mais simples que se pode conceber — eu insisto — é Deus. Além disso, o poder do politeísmo de explicar esta ordem no mundo talvez não seja tão grande quanto o do teísmo. Se houvesse mais que uma deidade responsável pela ordem do universo, esperaríamos ver marcas características da obra de diferentes

deidades em diferentes partes do universo, do mesmo modo que vemos tipos diferentes de habilidade humana nas diferentes casas de uma cidade. Esperaríamos encontrar uma lei de gravitação do inverso do quadrado sendo obedecida em uma parte do universo e em outra parte uma lei que era um pouquinho diferente desta — sem que a diferença fosse explicável em termos de uma lei mais geral[98]. Por estas razões, que se aplicam a todos os argumentos positivos em favor da existência de Deus que estaremos considerando, a probabilidade do teísmo é significativamente maior que a da hipótese de um ou mais deuses limitados e assim, ao discutir estes argumentos no futuro, eu ignorarei em grande medida esta última hipótese. Assim, a escolha é entre o universo como um ponto de parada e Deus como ponto de parada. No último caso, a existência e intenção de Deus sobre toda a história do universo proporcionará não apenas uma explicação plena, mas uma explicação completa e última da existência do universo. Será que podemos nos dar por satisfeitos com o universo como um fato bruto e inexplicável? Leibniz não pode, pois o Princípio da Razão

Suficiente o leva adiante. Ele afirma: As razões do mundo, então, estão em algo extramundano, diferente da cadeia de estados ou série de coisas, cujo agregado constitui o mundo. E assim devemos passar da necessidade física ou hipotética, que determina as coisas subsequentes do mundo pelas anteriores, para algo que é de necessidade absoluta ou metafísica, para a qual não se pode dar nenhuma razão. Pois o mundo presente é necessário física ou hipoteticamente, mas não absoluta ou metafisicamente. Em outras palavras, admitindo-se que o mundo será tal e tal, segue-se que tais e tais coisas virão a ser. Uma vez então que a raiz última deve estar em algo que seja de necessidade metafísica, e uma vez que não haja razão de qualquer coisa existente exceto numa coisa existente, segue-se que deve haver existir algum Ser de necessidade metafísica, ou seja, a cuja essência pertence a existência; e assim deve existir algo diferente da pluralidade de seres, ou seja, o mundo, que, como já admitimos e já mostramos, não é de necessidade metafísica.[99]

Leibniz desenvolveu aqui o Princípio da Razão Suficiente como uma verdade “metafisicamente necessária”. O princípio se reduz à afirmação de que tudo que não for “metafisicamente necessário” tem uma explicação em algo “metafisicamente necessário”. Um ser tem “necessidade metafísica”, segundo Leibniz, se a

“essência pertence à existência” — ou seja, ele não poderia senão existir. Se este “não poderia” é um “não poderia” lógico, contudo, não é claro. Se o “não poderia” for um “não poderia” lógico, então o ser metafisicamente necessário com o qual se supõe que a explicação termina é um ser logicamente necessário. Mas eu insisto, contra esta afirmação de que a explicação termina com um ser logicamente necessário, na ideia que apresentei no capítulo 4 — de que o logicamente necessário não pode explicar o logicamente contingente. Além disso, como argumentei no início deste capítulo, parece coerente supor que existe um universo físico complexo mas que Deus não exista, do que se segue que é coerente supor que Deus não exista, do que segue por sua vez que Deus não é um ser logicamente necessário. Não pode haver uma “explicação absoluta” da existência do universo.[100] Se, contudo, o ser metafisicamente necessário de Leibniz não é um ser logicamente necessário, mas o fato bruto supremo, então seu princípio se reduz à simples afirmação de que há um término para a explicação, que tudo que tem uma explicação plena tem uma explicação última ou ao

menos uma explicação completa. Num capítulo anterior, não vimos qualquer razão geral para aceitar essa afirmação. Se é racional supor que os fenômenos têm explicações completas é uma questão de se temos explicações potenciais para eles de grande simplicidade e poder explicativo. Leibniz afirma que o universo não é metafisicamente necessário e assim que sua existência precisa de explicação. Ele pode estar certo, mas eu não posso ver como você pode argumentar em favor desta ideia a não ser em termos da simplicidade e do poder explicativo relativamente maiores de uma hipótese explicativa potencial. Leibniz não oferece um argumento assim. Assim, eu preciso considerar a força de um argumento em favor da existência de Deus com base nesses critérios. Vimos anteriormente que P(h/e&k) excederá P(h/k) e assim haverá um argumento correto Cindutivo de e para h se (e apenas se) P(e/h&k) exceder P(e/k) — ou seja, se e for mais esperável dado h do que de outro modo. Admita que h seja a hipótese do teísmo e que k seja mero dado tautológico. Admita que e seja a existência ao longo do tempo de um universo físico complexo. e não

poderia, como vimos, ter uma explicação científica. Ou e ocorre sem explicação ou é devido à ação de uma pessoa, sendo que a pessoa mais provável é Deus. É agora razoável ignorar a alternativa que mostramos ser a priori muito menos provável, que e foi levado a efeito por uma pessoa ou pessoas de poder muito grande, mas finito, conhecimento muito considerável, mas limitado, etc. Assim, podemos considerar P(e/~h&k) como a probabilidade de que há um universo físico sem qualquer coisa que o tenha causado. Um universo físico complexo (existente no tempo infinito ou começando a existir num tempo finito) é mesmo uma coisa bastante complexa. Basta olharmos para o nosso universo e meditar sobre ele e a complexidade se mostra aparente. Há muitos e muitos pedaços separados deste universo. Cada pedaço tem um volume, forma, massa[101] diferente, finito e não muito natural — considere a vasta diversidade das galáxias, estrelas e planetas e das pedrinhas na praia. A matéria é inerte e não tem poderes que ela escolha exercer; ela faz o que ela tem de fazer. Há apenas uma quantidade finita de matéria, ou em certa medida, uma densidade finita

desta, manifesta nos pedaços particulares, e certa quantidade finita de energia, momento, spin, etc., ou em certa medida, uma densidade finita destas. Há uma complexidade, particularidade e finitude acerca do universo que clama por explicação, que Deus não tem. Ou, ao contrário, este é o caso do universo como ele está agora. Mas, como discutimos antes, todos os indícios sugerem que o universo evoluiu de um estado muito mais simples de acordo com leis da natureza assegurando que tal universo se desenvolveria num grande universo complexo. Mas o estado anterior ainda precisava ter tido alguma complexidade — ou tinha de consistir de matériaenergia estendida ou de um ponto inextenso com leis da natureza que eram tais que deram origem a um universo material complexo. Pondo isto no modelo S-P-SS — ou cada pedaço de matéria-energia estendido tinha de ter poderes para se manter existindo ou o ponto inextenso tinha de ter poderes para produzir um grande número de pedaços de matéria, com a obrigação/suscetibilidade (em cada caso) de continuar a exercer estes poderes. Em todo caso, este ponto de partida seria uma coisa finita com certos modos de desenvolvimento embutidos

nele e nenhuma razão pela qual aqueles modos particulares de desenvolvimento devessem estar embutidos nele, ao invés de outros modos quaisquer. Poderia não haver quaisquer leis da natureza e assim existir um caos completo ou leis que logo levassem à completa eliminação do universo. Quando o universo começou, ele tinha de ter certo tipo de complexidade embutido em si para que resultasse num universo físico complexo. E, se o universo não começou a existir, ele sempre teria de ter tido certo tipo de complexidade (sua matéria-energia sempre teria de ter os poderes relevantes). Vimos no capítulo 5 em alguma profundidade a suposição de que a existência de Deus é uma suposição extremamente simples; a postulação de um Deus de poder, conhecimento e liberdade infinitos é a postulação do tipo mais simples de pessoa que poderia haver. Deus é um objeto não extenso, as propriedades divinas se encaixam e elas são propriedades de grau infinito. Vimos no capítulo 3 que graus infinitos de uma propriedade têm uma simplicidade que falta em grandes graus finitos da mesma propriedade. A priori a existência mesmo de algo logicamente

contingente, mesmo Deus, pode parecer altamente improvável ou ao menos não muito provável (daí o “mistério da existência”). Contudo, seja isto assim ou não, a existência do universo é menos simples, e assim menos esperável a priori que a existência de Deus. Assim, se Deus não existe, a existência de um universo físico complexo não é muito esperável; ela não é a priori muito provável realmente — tanto porque (pode bem parecer) é altamente improvável a priori que sequer existisse algo, e por que, se houver algo, é mais provável que seja Deus do que um universo físico complexo não causado. P(e/~h&k) é baixa. Porém, se Deus existe, é claro que ele pode criar um universo e ele o fará na medida em que sua bondade perfeita tornar provável que ele agirá assim. Argumentei no capítulo 6 que Deus tem boa razão para criar agentes humanamente livres — ou seja, criaturas com escolha livre limitada entre bom e mal, e poderes limitados de fazer diferença profundamente significativa a elas mesmas, umas às outras e ao mundo físico por meio de suas escolhas e também (por causa do mal que elas podem produzir) tem razão de não criar criaturas assim.

Argumentei que seria uma ação igualmente melhor criar ou não criar criaturas assim e assim deveríamos estimar a probabilidade lógica de que Deus criaria criaturas assim em ½. Argumentei que estas criaturas precisariam ter corpos e assim, deveria haver um mundo físico. Assim, por esta razão apenas, a probabilidade de que um Deus criaria um mundo físico seria não menos que ½. E Deus pode criar um universo físico, mesmo que ele não crie agentes humanamente livres. E assim, talvez a probabilidade de que Deus criaria um mundo físico pode ser maior que ½. Contudo, é claro, nossos juízos acerca do que um Deus perfeitamente bom pode fazer podem estar errados, pois nossas visões da bondade moral são limitadas e, como eu enfatizei ao longo deste livro, muitas vezes não podemos dar mais que valores muito vagos às probabilidades que eu discuto. Ainda assim, se as intuições morais acerca do que um Deus perfeitamente bom faria que eu estou sugerindo aos meus leitores forem de algum modo próximas da verdade, devemos concluir que a probabilidade lógica de que, se Deus existe, haverá um universo físico, é bastante alta. Uma vez que P(e/h&k)>P(e/~h&k) e assim >P(e/k), pelo

critério de relevância P(h/e&k)>P(h/k) e assim, o argumento da existência de um universo físico complexo em favor de Deus é um bom argumento C-indutivo. O argumento das últimas páginas pode agora ser posto nas palavras simples que se seguem. Há uma boa probabilidade de que, se Deus existe, ele fará algo da finitude e complexidade de um universo. É muito improvável que um universo existiria sem causa, mas muito mais provável que Deus existiria não causado. Assim, o argumento com base na existência do universo em favor da existência de Deus é um bom argumento C-indutivo.

8. Argumentos teleológicos Entendo por um argumento do desígnio aquele que parte de um padrão geral de ordem no universo ou da provisão pelas necessidades dos seres conscientes em favor de um Deus responsável por estes fenômenos. Um argumento que parte de um padrão geral de ordem eu chamarei de argumento teleológico (o nome “argumento teleológico” tem sido geralmente usado para caracterizar também argumentos como os “argumentos do desígnio”. Estou dando a “argumento teleológico” um uso mais estrito). Vou lidar com argumentos teleológicos neste capítulo. No capítulo 10, tratarei do argumento a partir da ocorrência de provisão para as necessidades dos seres conscientes e chamarei a este argumento de um argumento da providência. Na definição de “argumento teleológico”, eu enfatizo as palavras “padrão geral”; não contarei como argumento teleológico um argumento em favor da existência de Deus a partir de algum padrão particular de ordem manifestada numa ocasião única.

Começo com a distinção entre ordem espacial e ordem temporal, entre o que chamarei de regularidades de copresença e regularidades de sucessão. Um exemplo de uma regularidade de copresença seria uma cidade com todas as suas ruas arranjadas em ângulos retos ou uma seção de livros numa biblioteca dispostos em ordem alfabética de autores. Regularidades de sucessão são padrões simples de comportamento de objetos tal como alguém movendo suas pernas de acordo com os movimentos padronizados de uma dança. Em ambos os casos as regularidades são produzidas por seres humanos. O universo é caracterizado por regularidades de ambos os tipos não produzidos por seres humanos ou outros seres corpóreos. Há primeiro a ordem temporal de sucessões regulares de eventos, codificadas em leis da natureza. Em livros de Física, Química e Biologia, nós podemos aprender como quase tudo no mundo se comporta. As leis de seu comportamento podem ser explicitadas por fórmulas relativamente simples que os seres humanos podem entender e por meios das quais eles podem predizer de modo bem sucedido o futuro. A ordem do universo à qual eu chamo

atenção aqui é sua conformidade a fórmulas, a leis científicas simples, formuláveis. A ordem do universo nesse respeito é um fato muito impressionante sobre esse mesmo universo. Ele poderia muito naturalmente ter sido caótico, mas não é — é muito ordenado. E então há a ordem espacial de intrincado ordenamento de partes nos corpos humanos (e animais). Nós temos membros, fígado, coração, rins, estômago, órgãos sensórios, etc. de tipo tal que, dadas as regularidades da ordem temporal, nossos corpos são veículos apropriados para nos proverem com uma enorme quantidade de conhecimento do mundo e executar uma enorme variedade de propósitos nele (como é descrito de modo mais completo no capítulo 6). Isso é semelhante ao modo pelo qual partes das máquinas são arranjadas de modo a produzir um resultado global a partir da operação da máquina, embora — até agora — as máquinas construídas intencionalmente pelos seres humanos sejam muito menos intrincadas que os corpos humanos. Um argumento teleológico, seja da ordem temporal seja da ordem espacial, é, creio eu, uma codificação por parte dos filósofos de uma reação ao

mundo fortemente arraigada na consciência humana. Os seres humanos veem a compreensibilidade do mundo como indício de um criador que compreende. O profeta Jeremias viveu num tempo no qual a existência de um deus criador ou deuses de algum tipo era tida como certa. O que estava em questão era se havia apenas um deus e qual a extensão de sua bondade, conhecimento e poder. Jeremias argumentou com base na ordem do mundo que havia um deus poderoso e confiável e este deus era Deus. Ele argumentou em favor do poder do criador com base na extensão da criação “A multidão dos astros do céu não pode ser enumerada nem a areia do mar medida”; ele argumentava que seu comportamento regular mostrava a confiabilidade do criador e falava do “pacto do dia e da noite” pelo qual eles se sucedem regularmente e “das leis do céu e da Terra”;[102] e usou a existência deles como um argumento para a confiabilidade do Deus judaico. O argumento com base na ordem temporal tem estado presente entre nós desde então.

O dado da ordem temporal Encontramos o argumento com base na ordem temporal também na quinta via de Tomás de Aquino, que afirma o seguinte: A quinta via é baseada no governo das coisas. Algumas coisas às quais falta consciência buscam um fim, o que é aparente pelo fato de que sempre ou no mais das vezes elas se comportam do mesmo modo, o que leva ao melhor resultado. Disso fica evidente que não é por acaso, mas por intenção que elas alcançam seu fim. Nada, contudo, a que falte consciência tende a um fim, exceto sob a direção de alguém com consciência e com entendimento; a flecha, por exemplo, requer um arqueiro. Tudo na natureza, portanto, é dirigido a um fim por alguém com entendimento e a este damos o nome de “Deus”.[103]

Tomás de Aquino argumenta que o comportamento regular de cada coisa inanimada mostra que algum ser animado está dirigindo-a (fazendo-a mover de modo a atingir algum propósito, chegar a um fim) e disso ele chega — bastante rápido — à conclusão de que um “ser com entendimento” é responsável pelo comportamento regular de todas as coisas inanimadas (exceto, talvez, pelo comportamento pelo qual os seres humanos e

os animais são responsáveis). Parece-me bastante claro que nenhum argumento a partir da ordem temporal, seja a quinta via de Tomás de Aquino seja qualquer outro argumento, pode ser um bom argumento dedutivo, pois, embora a premissa seja indubitavelmente correta — uma ordem vasta e universalmente difundida que caracteriza o mundo — o passo da premissa para a conclusão não é dedutivamente válido. Embora a existência de ordem possa ser bom indício de um planejador, ela é certamente compatível com a não existência de um, pois dificilmente se pode considerar como uma verdade lógica que toda ordem seja causada por uma pessoa. E embora, como eu proponho, a suposição de que uma pessoa seja responsável pela ordem do mundo seja muito mais simples e assim mais provável que a suposição de que muitas pessoas o seja, ainda sim esta última suposição parece logicamente compatível com os dados. Assim, devemos nos voltar para a questão mais substancial de se o argumento da ordem temporal do mundo em favor de Deus é um bom argumento C-indutivo ou P-indutivo. Uma vez que o mesmo tipo de consideração se aplica a todas

as outras afirmações de que um argumento com base numa característica observável do mundo em favor da existência de Deus seja um argumento dedutivo válido, não vou mais perder tempo no futuro em repeti-la quando chegarmos a novos argumentos. Vou assumir que nenhum argumento assim seja dedutivamente válido. Contudo, antes de considerar se o argumento a partir da ordem temporal é um bom argumento indutivo, eu preciso lidar com três questões preliminares. Primeiro, há uma objeção de que esta ordem temporal não é uma característica objetiva do mundo, mas um mero artefato humano. A ordem que parecemos ver no mundo é a ordem que impomos neste e não está lá independentemente de nossa imposição. Dizendo de outra maneira, tudo o que esta ordem temporal significa, poder-se-ia dizer, é uma coincidência entre o modo como as coisas têm sido até agora no mundo e os padrões que os seres humanos podem reconhecer e descrever. De fato, porém, a ordem temporal do mundo é algo mais profundo que isso. Nós corretamente explicamos até agora nossas observações em termos de leis da natureza que envolvem uma necessidade

física na natureza (tal como analisei nas pp. 28-9), que determinam como as coisas se comportam e que nos permitem predizer como estas se comportarão no futuro. É a operação dessas leis naturais simples que este argumento procura explicar. Há também a objeção de que não há nada para ser explicado no fato de que encontramos um universo ordenado — já que não poderíamos mesmo encontrar outra coisa, pois, a menos que o universo fosse um lugar ordenado, nós não estaríamos aqui para comentar esse fato (se não houvesse leis naturais, não haveria organismos que funcionassem regularmente e assim, não haveria seres humanos). Assim, não há nada surpreendente no fato de que os seres humanos encontrem ordem — não poderíamos mesmo encontrar outra coisa. Esta conclusão é certamente um pouco forte demais. Para que nós existíssemos e observássemos o mundo, seria necessário que houvesse uma boa medida de ordem no nosso corpo e ao redor dele, mas poderia haver caos fora da Terra, desde que a Terra não fosse, em grande medida, afetada por esse caos. Há muito mais ordem no mundo do que o que é necessário para a existência de seres humanos.

Assim, seres humanos ainda poderiam estar aqui para comentar acerca do fato da existência de ordem, mesmo se o mundo fosse um lugar muito menos ordenado do que o é. Mas, além dessa consideração menos importante, o argumento ainda fracassa totalmente por uma razão diferente, que pode ser aduzida por uma analogia. Suponha que um louco sequestre uma vítima e a prenda num quarto com uma máquina de baralhamento de cartas. Esta máquina embaralha dez baralhos de cartas ao mesmo tempo e então tira uma carta de cada baralho e exibe simultaneamente as dez cartas. O sequestrador diz para a vítima que ele em breve vai ligar a máquina e ela exibirá seu primeiro conjunto de cartas, mas que, a menos que este conjunto seja um ás de copas de cada baralho, a máquina irá acionar uma explosão que matará a vítima, razão pela qual esta não verá que cartas a máquina tirou. A máquina, então, é posta para funcionar e para espanto e alívio da vítima, a máquina exibe um ás de copas de cada baralho. A vítima pensa que este fato extraordinário precisa de uma explicação em termos da máquina ter sido manipulada fraudulentamente. Porém, o

sequestrador, que então reaparece, põe esta sugestão em dúvida. “Você não deveria ficar surpreso”, ele diz, “que a máquina tire apenas ases de copas. Você não poderia mesmo ver outra coisa, pois você não estaria aqui para ver o que quer que fosse se qualquer outra carta tivesse sido tirada”. Mas é claro que a vítima está certa e o sequestrador está errado. Há mesmo algo extraordinário e que necessita explicação em que sejam tirados dez ases de copas. O fato de que esta ordem peculiar seja uma condição necessária para que o conjunto de cartas seja percebido não torna o que é percebido menos extraordinário e precisando de explicação. O ponto de partida de quem defende o argumento teleológico não é de que percebemos ordem ao invés de desordem, mas que o que há em questão é ordem e não desordem. Talvez apenas se houver ordem é que podemos saber o que há, mas isso não torna menos extraordinário o que há e com menos necessidade de ser explicado. A terceira questão preliminar refere-se aos tipos de regularidades para as quais o argumento aponta. As regularidades de sucessão temporal em nosso universo são de dois tipos. Há as

regularidades de fenômeno que são leis probabilísticas muito toscas acerca do que acontece em talvez noventa e sete por cento das vezes e há as regularidades fundamentais que explicam estas. As regularidades de fenômeno são macroscópicas, pelas quais os seres humanos (e os animais superiores) guiam sua vida diária e que são evidentes para pessoas sem muita educação científica. Elas incluem regularidades como as de que as sementes quando regadas frequentemente crescem como plantas, que pessoas que não comem ou bebem por um mês ou dois morrem, que alguns cogumelos alimentam, mas que outros são venenosos, que flechadas penetram na pele humana rapidamente, que o dia é seguido pela noite e a noite pelo dia em intervalos aproximadamente semelhantes (tais como os medidos por relógios pendulares), e assim por diante. Mas, os cientistas descobriram que essas regularidades de fenômeno são causadas por regularidades mais fundamentais. As regularidades de fenômeno vêm de leis da química acerca de combinações possíveis de átomos em moléculas e da estabilidade resultante de objetos sólidos e esta é causada por leis da física que regem elétrons,

prótons e nêutrons, dos quais os átomos são feitos, e estas leis decorrem de leis que governam os quarks, dos quais são feitos os prótons e nêutrons, e assim por diante. As leis neste último nível incluem as leis das quatro forças (gravidade, eletromagnetismo, força forte e força fraca) que são limitadas pelos requisitos gerais da Teoria Quântica e da Teoria Geral da Relatividade. Provavelmente, as leis do eletromagnetismo e da força fraca derivam de leis mais gerais de uma teoria “eletrofraca”. E há razão para supor que, no devido tempo, os físicos descobrirão uma “teoria de tudo”, cujas leis (dentro da ciência) não terão mais uma explicação completa[104] e que explicarão todos os fenômenos físicos. Assim, o mundo físico é governado por leis fundamentais relativamente simples (determinísticas ou — mais provavelmente, probabilísticas) acerca dos blocos do mundo minúsculos e não observáveis, de tipo tal que elas com frequência levam a leis acerca do comportamento observável das entidades de tamanho médio. Nem todo comportamento de objetos físicos no nível do fenômeno é regido por regularidades simples — o comportamento do pêndulo o é, mas o comportamento da água não. E

as regularidades de fenômeno não dizem respeito ao que sempre acontece, mas ao que quase sempre acontece e nesse sentido elas são bastante confiáveis, mas não totalmente confiáveis. Prédios, construções e árvores normalmente ficam imóveis, mas ocasionalmente eles caem. Amendoim normalmente alimenta, mas muito ocasionalmente é venenoso. São as (quase que inteiramente confiáveis) regularidades de fenômeno o que observamos e usamos a fim de levar a efeito nossos objetivos. Regularidades (fundamentais ou de fenômeno) devem existir para que sejamos capazes de fazer alguma diferença nas coisas além de nossos corpos. Para cultivarmos plantas, deve ser o caso que certas ações básicas nossas terão este resultado. Mas, a menos que fôssemos destinados a ser criaturas não racionais, precisamos ser capazes de observar regularidades de fenômeno e aprender com elas. Os seres humanos (e muitas vezes também, os animais superiores) podem observar sementes sendo regadas ou o dia sendo seguido pela noite e extrapolar para as regularidades descritas como a compreensão mais simples daquilo que eles observam (ou seja, eles podem inferir que o que vale para as sementes que

eles observaram vale para as sementes geralmente e assim por diante). Eles podem, então, confiar nessas regularidades para produzir efeitos. Eles podem regar sementes e cultivar plantas. Querendo percorrer uma longa distância facilmente, eles podem viajar de dia e não de noite (uma vez que eles saibam que o dia virá novamente logo). O conhecimento de tais regularidades dá escolhas aos seres humanos. Descobrindo que há cogumelos venenosos, eles podem escolher envenenar alguém ao encorajá-lo a comer tais cogumelos. Ou eles podem evitar o envenenamento acidental por cogumelos venenosos ao desenterrá-los e avisar às pessoas que eles são venenosos. Ou eles podem escolher não fazer nada. Ora, a fim de que seus habitantes atinjam seus objetivos, o universo precisa mostrar regularidade num nível ou noutro. Nesse caso, esses habitantes precisarão ter órgãos sensoriais capazes de sentir como as cosas são naquele nível para detectarem e usar as regularidades. Em nosso universo, tanto as regularidades fundamentais quanto as muitas regularidades menos fundamentais são relativamente simples. Eu chamei estas últimas

de regularidades de fenômeno, pois — tanto quanto sabemos — estas são as únicas regularidades às quais as criaturas racionais de nosso universo são sensíveis. Contudo, se há criaturas cujos sentidos as informam sem a ajuda de aparatos ou de inferência da locação de átomos individuais, elas podem usar as regularidades no comportamento desses átomos para atingir seus objetivos. Não há, contudo, garantia de que a regularidade num nível fundamental (no comportamento das partículas fundamentais) assegurará uma regularidade útil num nível menos fundamental. Se ela realmente o assegura dependerá do que são as leis fundamentais e das condições limite do universo. Mesmo em nosso universo, se a temperatura nunca ficasse baixa o bastante para os átomos se combinarem a fim de formarem objetos sólidos de tamanho médio, haveria apenas nuvens de gás ou líquido que, enquanto tais, não se comportariam de maneiras muito simples. É também possível que haja leis da natureza muito complexas em pequena escala, que produzam muitas regularidades bastante simples em larga escala, pois pode ser que as condições limite do universo fossem tais que as partículas

fundamentais fossem normalmente encontradas apenas em estados que facilmente as permitissem se combinar em objetos maiores e o comportamento das partículas na combinação fosse restrito a padrões muito simples. Mas, certamente o caos total num nível fundamental levará ao caos em qualquer outro nível. O argumento com base na ordem temporal é um argumento a partir da regularidade em um nível ou noutro. E, enquanto a operação de leis não fundamentais pode ser explicada pela operação de leis fundamentais, o fato de que estas são as leis fundamentais da natureza é, como a própria existência de um universo físico complexo, de onde a ciência começa a fim de explicar outras coisas. Trata-se de algo “grande demais” para a própria ciência explicar. A probabilidade da ordem temporal num universo sem Deus Quão intrinsicamente provável é que, num universo sem Deus, haverá leis da natureza em algum nível garantindo que as coisas se comportem

num modo em grande parte previsível? A resposta a esta questão depende em certa medida de quais são as leis da natureza. Eu discuti no capítulo 2 três teorias destas. Há primeiro a descrição humiana, imensamente implausível, desenvolvida por Lewis — de que a conformidade de todos os objetos às leis da natureza é apenas o fato de que eles de fato se conformam deste modo, ou seja, não há uma explicação mais fundamental desta conformidade. É apenas um fato bruto que (tanto num nível fundamental e num nível de fenômeno) objetos (substâncias) se classifiquem em tipos (elétrons, pósitrons, pêndulos, sementes) de modo tal que a extrapolação mais simples de seu comportamento passado leve a generalizações que predigam seu comportamento futuro mais ou menos corretamente. No passado recente, tanto quanto no passado mais remoto, cada pósitron continuou a atrair cada elétron com exatamente a mesma força inversamente proporcional ao quadrado de suas distâncias. Há inúmeras outras maneiras nas quais os objetos se comportaram, quase todas tais que a extrapolação mais simples de seu comportamento passado não teria predito corretamente seu

comportamento subsequente. É apenas se houver uma causa explicativa comum do comportamento dos objetos que haverá razão para supor que eles se comportarão do mesmo modo. E num universo sem Deus, na teoria humiana das leis da natureza, não há explicação mais fundamental da coincidência nos modos pelos quais os objetos se comportam. Nesta perspectiva, as “leis” não explicam realmente o comportamento dos objetos, elas simplesmente o descrevem. Descrições alternativas das leis da natureza significam que falar de “leis” como expressão de uma característica do mundo adicional à mera sucessão de eventos, uma característica da necessidade física que é parte do mundo. Como vimos no capítulo 2, esta característica da necessidade física pode ser pensada ou como separada dos objetos (substâncias) que são regidos por ela ou como um aspecto constitutivo daqueles objetos. A abordagem anterior leva a uma imagem do mundo como consistindo de eventos (constituído talvez de substâncias com suas propriedades), de um lado, e de leis da natureza, de outro. A versão mais comum desta visão afirma que as leis da natureza

são relações logicamente contingentes entre universais. A conformidade de todos os objetos a leis simples da natureza consiste, nesta perspectiva, da instanciação de poucos universais, cada um conectado de modos simples a um ou dois outros universais. Se, apesar das dificuldades levantadas no capítulo 2, adotamos esta perspectiva, a primeira questão é por que deveria haver universais conectados uns aos outros antes deles serem instanciados e por que — se existe um universo e, portanto, alguns universais devem ser instanciados — alguns poucos universais deveriam ser instanciados num modo tal que formasse todo um sistema de leis da natureza. Poderia haver muitos universais que fossem instanciados sem trazerem quaisquer universais com eles, de modo que não houvesse qualquer efeito previsível da instanciação. Mas, nessa perspectiva, virtualmente todos os universais são conectados a outros universais. E poderia haver universais, mas apenas aqueles dos tipos instanciados uma vez ou duas na história do universo, ao invés daqueles como “fóton” ou “cobre”, que são instanciados com frequência e que, por isso, podem ser usados para predição útil. E,

novamente, as conexões matemáticas entre os universais — por exemplo, entre massas de corpos, suas distâncias e a atração gravitacional entre eles — podem ser de tal complexidade que nunca sejam passíveis de inferência a partir do comportamento passado dos objetos. Eu sugiro que um universo sem conexões entre universais seria mais simples que um universo com conexões e que um com padrões mais simples de conexão seria mais simples que um universo com padrões tão complicados de conexão que os seres racionais não seriam capazes de inferir o comportamento futuro dos objetos por meio da extrapolação mais simples de seu comportamento passado. Dentre as teorias do universo como um todo (que, portanto, terão amplitude igual), a simplicidade é o único indicador de probabilidade intrínseca. Segue-se, então, que, se damos a ela o peso que insisti que deveríamos dar (de modo que uma teoria muito simples seja mais provável que a disjunção de muitas teorias mais complexas), seria muito provável que não houvesse conexões entre universais de modo algum — que o universo fosse caótico. Mas note que, se damos à simplicidade

muito menos peso e supomos que uma teoria mais simples seja apenas um pouco mais provável que uma teoria mais complexa, pode ser que seja mais provável que um dentre uma disjunção de conjuntos alternativos de conexões bastante simples valha, ao invés de nenhuma conexão. Mas neste caso, uma vez que há um grande número de maneiras complexas pelas quais os universais poderiam estar associados e que estamos dando à simplicidade apenas um peso moderado, então será ao menos igualmente provável que uma das conexões complexas entre universais ou que uma das conexões simples valerá — havendo tantas mais da primeira (infinitamente mais). De qualquer maneira, será improvável que num universo sem Deus haja conexões simples entre universais e, portanto, que haja leis simples da natureza. Os mesmos problemas surgem na descrição de leis natureza como substâncias, poderes e suscetibilidades. Nesta perspectiva, poderes e suscetibilidades estão entre as propriedades das substâncias. As leis da natureza são, então, apenas regularidades contingentes — não da mera sucessão temporal (como com Hume), mas da sucessão

causal, regularidades nos poderes causais (manifestos ou não manifestos) das substâncias de vários tipos. A conformidade de todos os objetos a leis simples da natureza consiste, nesta perspectiva, de todas as substâncias se enquadrando em muito poucas espécies com os mesmos poderes e suscetibilidades em relação umas às outras. Por que acontece isto? O modelo S-P-SS tem uma resposta inicial a esta questão: ele oferece uma explicação deste fato num modo que os outros dois modelos não podem. A resposta do modelo S-P-SS se dá termos da antecedência causal de substâncias. Uma substância tem os poderes e suscetibilidades que tem porque foi produzida por outra substância exercendo (em virtude de alguma suscetibilidade de fazê-lo) seu poder de produzir uma substância com exatamente aqueles poderes e suscetibilidades. Se um próton é produzido (junto com um elétron e um neutrino) pela queda de um nêutron, então os poderes do próton e as suscetibilidades são causadas pelo nêutron, em virtude de seus poderes e suscetibilidades. Há então modos diferentes pelos quais poderia ter sido o caso de que todas as substâncias se enquadrem num pequeno número de

espécies do modo descrito, considerando-se que esse processo teve um começo e que tipo de começo ele foi. Suponha primeiro que o universo teve mesmo um começo. Há dois tipos diferentes de teorias de um começo. O primeiro estado pode ter sido um estado espacialmente extenso ou estado como de um ponto. No primeiro caso, poderíamos ter ainda um grande número de substâncias, mas talvez aglomeradas num espaço muito pequeno. Em termos do modelo do Big Bang, não teria havido literalmente uma singularidade, teria apenas acontecido que, à medida você se aproxima do primeiro instante, numa direção retroativa, você encontraria estados cada vez mais densos, mas tudo começou realmente com um estado muito denso, mas não infinitamente denso. Para que aquele estado desse origem ao nosso universo atual de muito poucas espécies de substância, ele próprio deveria consistir de um número muito grande de substâncias de muito poucas espécies. O primeiro estado alternativo seria literalmente igual ao de um ponto. No primeiro instante da história do universo nessa teoria, havia um ponto não extenso, dotado do

poder de se desmembrar em inúmeras substâncias de muito poucas espécies e uma suscetibilidade de exercer aquele poder em algum tempo ou outro. Suponha, em segundo lugar, que o universo tenha uma idade infinita. As propriedades (de poderes e suscetibilidades) de cada substância são então causadas pelas da substância precedente. Assim, pode haver substâncias com exatamente essas mesmas propriedades (incluindo os poderes de produzir substâncias das espécies existentes) apenas se sempre as houve. O estudo dos dados atuais da Física e da Cosmologia nos permitirá dizer aproximadamente quão prováveis, com base nesses dados, são as três teorias diferentes — com base em quão provável é que nós encontraríamos aqueles dados, considerando-se cada uma das teorias e de quão simples são as diferentes teorias. Minha avaliação do estado presente da Cosmologia é que a ocorrência de um começo é mais provável que a existência desde um tempo infinito e que a evolução a partir de um estado muito denso é mais provável que a evolução a partir de um estado infinitamente denso (a ideia de toda a matéria-energia ocupando um

ponto inextenso não é, como sugeri no capítulo anterior, uma possibilidade permitida pela atual teoria da matéria-energia, que requereria complicação considerável a fim de permitir isso ao mesmo tempo em que continuasse a tornar prováveis os dados atuais). Contudo, é claro, dados novos poderiam mudar as probabilidades. O problema para nós, contudo, não é quais são as probabilidades posteriores, com base nos dados físicos, de que as diferentes teorias sejam verdadeiras, mas quão provável é a priori, se Deus não existe, de que a teoria verdadeira será tal que leve a substâncias de muito poucos tipos. Isto dependerá apenas da simplicidade relativa das três teorias (uma vez que elas têm amplitude igual) e da probabilidade com base em cada uma destas teorias de que as substâncias desses tipos resultariam. Não há dúvida de que a teoria de que o universo começou a partir de um ponto é mais simples, e portanto intrinsicamente mais provável do que qualquer teoria particular de que ele começou com muitas substâncias, tão mais simples que eu sugiro que ela é mais provável que a disjunção de todas as teorias que afirmam que ele começou ou sempre

conteve muitas substâncias. Mas se ele começou mesmo de um ponto não extenso, a teoria mais simples de tal começo pareceria ser a de que aquele ponto não teria tido poder de produzir substâncias extensas. Se ele teve esse poder, pareceria mais simples supor que ele teria o poder de produzir apenas uma substância extensa. A teoria de que ele teria o poder de produzir substâncias extensas que se enquadram em poucas espécies, elas mesmas com o poder de produzir mais dessas substâncias, todas com a suscetibilidade de exercer estes poderes de tempos em tempos, parece apenas uma de um número de teorias igualmente simples, menos simples que a teoria de que o ponto inextenso não tinha poder algum ou apenas o poder de produzir uma substância extensa. Mas qualquer teoria de que, no começo ou sempre houve muitas substâncias, que se enquadram em tipos com poderes e suscetibilidades idênticos, é de novo uma teoria de uma coincidência muito improvável. Uma tal coincidência clama por explicação em termos de uma origem comum única com o poder de produzi-la. Tal como procuraríamos explicar o fato de todas as moedas do país terem um

padrão idêntico em termos de sua origem de um molde comum ou todos os muitos quadros terem um estilo comum em termos deles terem sido pintados pelo mesmo pintor, também procuraríamos explicar o fato de todos os objetos terem os mesmos poderes em termos da derivação deles de uma origem comum. Assim, no modelo S-P-SS de leis da natureza, e no modelo dos universais (e a fortiori, no modelo humiano), é muito improvável que houvesse, num universo sem Deus, leis da natureza suficientemente simples para que seres racionais extrapolassem do passado para o futuro com sucesso normal. A probabilidade da ordem temporal dado o teísmo O teísmo nos leva a esperar (com probabilidade significativa) que Deus vá dar origem a agentes humanamente livres, tal como descrito no capítulo 6. Eles serão criaturas corpóreas e começarão com poder e conhecimento limitados. Para eles exercerem seu poder, eles devem descobrir quais dos suas ações básicas terão quais outros

efeitos remotos em quais circunstâncias — por exemplo, que sequencia de ações básicas feitas em que circunstâncias farão que uma casa seja construída e que sequencia levará a que seja fabricada uma bomba. Apenas com este conhecimento é que eles terão uma escolha entre construir casas ou bombas. Pelo fato de haver tais receitas para produzir diferentes efeitos que as criaturas podem descobrir é que se faz necessário existirem regularidades simples no comportamento das coisas que as criaturas possam notar e usar. Deve ser o caso de que este tijolo posto em cima do cimento que está em cima de outro tijolo ficará ali e resistirá à pressão, e assim por diante. O teísmo nos leva a esperar um mundo em algum nível de fenômeno que seja simples e confiável. Isso nos leva a esperar que Deus levará a efeito uma singularidade inicial do tipo certo ou um arranjo inicial de substâncias com os mesmos poderes e suscetibilidades do tipo certo e os manterá existindo ou que ele sempre manteve essas substâncias existindo (ou, no modelo de leis da natureza de universais, o teísmo nos leva a esperar que Deus produzirá os tipos corretos de conexões entre os

universais. No modelo humiano de leis da natureza, o teísmo nos leva a esperar que Deus fará as coisas se comportarem de modos regulares simples). Eu tenho assumido até agora que há apenas um universo, mas pode haver muitos universos. Se fossem realmente existentes todos os universos possíveis, alguns deles seriam regidos por leis e se poderia esperar que nos encontrássemos em tal universo. Contudo, seria o cúmulo da irracionalidade postular inúmeros universos apenas para explicar as características particulares de nosso universo quando podemos fazê-lo postulando apenas uma entidade adicional — Deus. A ciência nos requer que postulemos a explicação mais simples dos dados e uma entidade é mais simples que um trilhão. A fim de postular racionalmente outros universos, precisaríamos encontrar novos dados em nosso universo que fossem mais bem explicados pela postulação de que há também outros universos. Em particular, precisaríamos ter dados tais que, extrapolando retroativamente do estado presente de nosso universo, de acordo com a suposição matematicamente mais simples acerca de quais são suas leis que explicariam estes dados,

levar-nos-iam a um estado no qual houvesse uma divisão do universo, um estado no qual aquelas leis teriam ditado que um outro universo seria “expelido” de nosso universo. Mas neste caso, o outro universo seria regido pelas mesmas leis fundamentais que regem o nosso universo e assim, podemos considerar os dois universos (ou quantos universos nós venhamos a conhecer) como um multiverso e toda a estrutura precedente do argumento dá os mesmos resultados de antes. Assim, isso não afeta o problema de por que as coisas são governadas por leis se nós supomos (com base em bons indícios) que há mais que um universo[105]. E eu argumentei que se falar de “leis” é falar de sucessões regulares de eventos, de entidades concretas determinando o comportamento de substâncias ou dos poderes e suscetibilidades de substâncias, é a priori improvável que um universo sem Deus fosse regido por leis simples, mas há uma probabilidade bastante significativa de que um universo criado por Deus seria governado por leis simples. Assim, a operação de leis da natureza é indício — uma camada de um argumento cumulativo — em favor da existência de Deus.

Representemos por e esta conformidade do mundo à ordem e por h a hipótese do teísmo. Não é possível tratar um argumento teleológico de modo completamente isolado do argumento cosmológico. Não podemos perguntar o quanto a premissa do argumento teleológico torna o teísmo provável independentemente da premissa do argumento cosmológico, pois a premissa do argumento teleológico acarreta a premissa do argumento cosmológico. Que existe ordem do tipo descrito acarreta que há um universo físico complexo. Assim, admitamos agora que k seja, não mero indício tautológico, mas a existência de um universo físico complexo (a premissa da versão do argumento cosmológico à qual eu devotei atenção). Perguntemos agora o quanto a ordem de tal universo torna a existência de Deus mais provável que considerando-se apenas a existência do universo. Como vimos, P(h/e&k) será maior que P(h/k) se e apenas se P(e/h&k)>P(e/~h&k). Em linguagem natural, com os nossos conteúdos atuais para h, e e k, a existência de ordem no mundo confirma a existência de Deus se e somente se a existência desta ordem no mundo é mais provável se Deus existe do

que se não existe. Os argumentos das páginas anteriores procuraram mostrar exatamente isto, que a probabilidade de ordem do tipo certo é muito maior se Deus existe e, portanto, que a existência de uma ordem assim aumenta grandemente a probabilidade de que Deus existe. O argumento com base na ordem espacial Aqueles que se maravilham com a ordem do universo podem se impressionar ou com as regularidades de copresença ou de sucessão, ou com ambas. Os pensadores do século dezoito, para os quais o argumento teleológico parecia tão atraente, foram tocados quase que exclusivamente pelas regularidades de copresença. Eles tomavam as regularidades de sucessão em grande parte por dadas. O que os impressionava era o arranjo sutil e coerente das partes nos corpos animais e humanos, e nas plantas, que permitiam aos seres humanos e animais adquirir uma quantidade enorme de conhecimento e executar um enorme variedade de propósitos, inclusive de reproduzir sua espécie, e que possibilitava às plantas crescerem e se

multiplicarem (sem escolherem fazê-lo). O Natural Theology de Paley se dedica principalmente aos pormenores da anatomia comparativa, aos olhos, ouvidos, músculos e ossos arranjados com minuciosa precisão de modo a operarem com alta eficiência e nos Dialogues de Hume, Cleantes dá o mesmo tipo de exemplo: “Considere, anatomize o olho, investigue sua estrutura e projeto e diga-me a partir de seu próprio sentimento se a ideia de um projetista não vem imediatamente a você com uma força igual à de sua sensação”[106]. O argumento do século dezoito com base na ordem espacial parece funcionar como se segue. Os seres humanos, os animais e as plantas têm o poder de reproduzir sua espécie e assim, dada sua existência passada, sua existência futura é esperável. Mas, o que é enormemente surpreendente é a existência mesma de seres humanos, animais e plantas. Por processos naturais, eles podem vir a existir, apenas por meio da geração de organismos da mesma espécie. Mas, era afirmado, o mundo não tem existido desde sempre, e assim o grande enigma é a existência dos primeiros seres humanos, animais e plantas em 4004 a. C. ou quando quer exatamente

que eles começaram a existir[107]. Uma vez que eles não poderiam ter passado a existir por processos naturais científicos, e uma vez que eles são muito semelhantes às máquinas que certos agentes racionais (por exemplo, os seres humanos) constroem, é muito provável que eles foram feitos por um agente racional, mas que certamente era muito mais poderoso e conhecedor que os seres humanos. As objeções de Hume nos Dialogues (por meio da fala de Filo) a um argumento teleológico são dirigidas contra o argumento da ordem espacial, embora — se elas funcionassem — algumas delas também tivessem força contra o argumento da ordem temporal e foi com esta conexão que eu as considerei. Apesar das objeções de Hume, o argumento é, a meu ver, bastante plausível — dadas as suas premissas. Mas Darwin e seus sucessores mostraram que uma de suas premissas era claramente falsa. Os seres humanos podem ser produzidos por meio de geração a partir de animais complexos e animais complexos e plantas podem ser produzidos por meio de geração a partir de animais e plantas menos complexos — as espécies não são

eternamente distintas. E animais e plantas simples podem ser produzidos por processos naturais a partir de matéria inorgânica. Esta descoberta levou ao virtual desaparecimento do argumento teleológico da apologética popular — erradamente, a meu ver, pois ele pode ser facilmente reconstruído numa forma que não depende de premissas que Darwin mostrou serem falsas. O erro básico daqueles que viram as descobertas de Darwin como destrutivas do argumento da ordem espacial é que eles ignoraram o fato de que apenas certos processos agindo numa certa espécie inicial de matéria orgânica teriam produzido corpos humanos (e animais e plantas); e que é a priori improvável que os processos e a matéria inicial fossem do tipo certo, mas que isto é esperável se o teísmo for verdadeiro. O argumento é, a meu ver, mais bem tratado não como um argumento a partir da analogia (à maneira típica do século dezoito), mas no modo como outros argumentos são tratados neste livro, como um argumento com base em indícios que seriam prováveis de ocorrer se o teísmo fosse verdadeiro, mas não de outra forma. O argumento deve ser construído como um argumento a partir dos

corpos humanos, não dos seres humanos. O argumento a partir dos corpos humanos serem conectados a uma vida mental é um argumento separado, a ser analisado no próximo capítulo. Nós temos também o indício dos corpos animais e plantas. A fim de tornar a exposição mais simples, vou ignorar em grande parte estes últimos até perto do fim deste capítulo. O argumento a partir de corpos humanos deve ser construído como um argumento com base na existência de corpos que têm certas características típicas dos corpos humanos. Elas são características que o corpo de um agente humanamente livre, tal como definido no capítulo 6, precisaria ter. Para ser o corpo de um agente humanamente livre, um corpo precisa estar adaptado para a aquisição de crenças verdadeiras acerca do meio ambiente, a formação de propósitos à luz de desejos e a expressão destes por meio de ações básicas escolhidas destinadas a afetar o agente, outrem e o mundo, para o bem ou para o mal. Para cumprir esta tarefa, um corpo precisa: (1) órgãos sensoriais com uma enorme variedade de estados possíveis, variando com uma enorme variedade de diferentes estímulos causados por

estados do mundo diferentes e distantes; (2) um processador de informação que possa transformar os estados dos órgãos sensoriais em estados cerebrais que deem origem a crenças de importância moral ou prudencial; (3) um banco de memória, para arquivar estados correlatos com as experiências passadas (não poderíamos raciocinar conscientemente sobre o que quer que fosse a não ser que pudéssemos recordar nossas experiências passadas e o que outras pessoas nos disseram); (4) estados cerebrais que deem origem a desejos, bons e maus (desejos de comer e beber, de ajudar os outros ou de machucá-los; e de descobrir se Deus existe ou não); (5) estados cerebrais causados por muitos propósitos diferentes que nós temos; (6) um processador que transformasse esses estados em movimento dos membros e outros movimentos voluntários (para transformar, por exemplo, meu propósito de lhe dizer que hoje é sexta-feira naqueles movimentos da língua e dos lábios que produzirão uma frase em português com esse significado); e (7) estados cerebrais que não são inteiramente determinados por outros estados físicos (na medida em que isso disser respeito a leis físicas, é necessário que exista certa

dose de indeterminismo no cérebro para que escolhas humanas indeterminadas possam determinar o que acontece no cérebro). Claramente os corpos humanos têm as características de (1) a (6). Bastante claramente também, há uma pequena dose de indeterminismo no cérebro, pois, se as leis da Teoria Quântica que regem a matéria na escala menor não têm explicação determinística mais profunda (como afirmam muitos físicos), então o comportamento dos objetos em pequena escala não é inteiramente determinado. As leis da Mecânica Quântica apenas nos dizem acerca das probabilidades físicas de vários resultados. Em geral, o comportamento indeterminístico em pequena escala acaba se dividindo proporcionalmente para produzir comportamento virtualmente determinístico em maior escala. Se cada moeda tivesse uma probabilidade física de ½ de dar cara e ½ de dar coroa, haveria uma probabilidade muito grande, próxima de 1 de que o número de moedas que dariam cara em 1000 lançamentos não diferiria muito de 500. Assim, mesmo se houvesse uma probabilidade significativa de que átomos individuais se comportassem de

modos diferentes da norma, é muito pouco provável que os tijolos e bolas de bilhar o fizessem. Mas é possível haver instrumentos que multipliquem as indeterminações de pequena escala, de modo que uma pequena variação no comportamento de um átomo possa ter um efeito de larga escala. O cérebro é um sistema extremamente complicado, no qual pequenas diferenças causam grandes diferenças. Mas nós não sabemos ainda o suficiente acerca do cérebro a fim de sabermos se diferenças muito pequenas do tipo que a Teoria Quântica parece nos falar não são determinadas fisicamente de modo a assegurar que não sejam determinadas fisicamente que ações os seres humanos farão. É evidente, contudo, que o cérebro é um sistema físico bastante diferente de qualquer sistema físico, no sentido de que causa eventos conscientes e seus estados são causados por eventos conscientes e que, portanto, certamente as leis que regem o cérebro são de um tipo muito diferente das leis que regem todos os outros estados físicos (como eu defendo de modo mais completo no capítulo 9). Assim, pode muito bem ser o caso de que haja indeterminação do cérebro, suficiente para que as escolhas humanas

livres produzam efeitos físicos, por causa de alguma característica do cérebro diferente da multiplicação de indeterminações dentro do limite quântico. Eu concluo que, considerando os indícios atuais, não há boa razão para supor que o cérebro não tem a característica (7). Neste caso, as intenções humanas vão causar o comportamento humano sem serem causadas a fazê-lo por eventos físicos. Os seres humanos terão, portanto, livre arbítrio libertário a menos que algo não físico os cause a formar as intenções que eles formam. O mais plausível “algo” desse tipo é Deus. Contudo, se estou correto em minha afirmação no capítulo 11 de que um Deus perfeitamente livre vai permitir que os seres humanos sofram nas mãos de outros seres humanos apenas na medida em que eles tiverem livre arbítrio libertário, Deus não vai formar suas intenções para eles. Assim, se Deus existe, os seres humanos terão livre arbítrio libertário e assim eles serão agentes humanamente livres. Assim, caso Deus exista ou não, não parece haver razão no presente para negar que os seres humanos têm livre arbítrio. Contudo, parece a cada um de nós no momento de escolher que estamos fazendo nossa

escolha independentemente das forças agindo em nós (se nos sujeitamos a algum desejo, estamos escolhendo nos sujeitar àquele desejo; e se resistimos ao desejo, estamos escolhendo resistir a ele) e estamos justificados em acreditar nisso na falta de argumento contrário[108] (isto se segue do princípio de credulidade que eu discuto no capítulo 13). Assim (na falta de algum novo indício da neurofisiologia), os seres humanos são provavelmente agentes humanamente livres e eu vou entendê-los assim no futuro. Sabemos que os corpos humanos evoluíram por processos naturais a partir da matéria inorgânica, mas certamente a evolução pode ter tido lugar apenas dadas certas leis físicas. Estas são, primeiramente, as leis químicas estabelecendo como, em certas circunstâncias, moléculas inorgânicas se combinam para produzir moléculas orgânicas e moléculas orgânicas se combinam para produzir organismos. E, em segundo lugar, há as leis biológicas da evolução estabelecendo como organismos complexos evoluem a partir de organismos mais simples. Não desejo desafiar o modo como Darwin descreve como isto acontece.

Organismos têm muitos descendentes, alguns dos quais diferem de seus pais em pequenos aspectos quanto a uma ou mais características — alguns descendentes são um pouco mais altos, alguns um pouco mais baixos, alguns mais gordos, alguns mais magros que seus pais, alguns têm uma parte extra que cresce, outros perdem uma pequena parte e assim por diante. As novas características, por sua vez, são passadas adiante para os descendentes do próprio descendente, o qual, por sua vez, também exibe algumas variações das características de seus pais. Dados os predadores e a carência de alimento, haverá competição para sobrevivência e aqueles organismos cujas características lhes dão uma vantagem na luta pela sobrevivência sobreviverão. Dentre os organismos muito bem adaptados para a sobrevivência (caso eles evoluam), estarão organismos que podem ver como seu meio está mudando em aspectos cruciais (pela presença de predadores, falta de presas ou outro tipo de alimento, etc.) e encontram uma solução (usando os critérios acerca do que é indício para o que de modos mais sofisticados que os animais não humanos) à luz da experiência do passado acerca de

como sobreviver e ajudar seus filhos a sobreviver. Estes organismos terão corpos humanos do tipo descrito. Foi mostrado por trabalhos posteriores a Darwin que o principal mecanismo pelo qual essas pequenas variações são causadas é o das “mutações” em genes de cromossomos; não há um padrão regular nas mutações — elas podem ocorrer a qualquer tempo em qualquer gene que afete qualquer característica[109]. Assim, surge a questão de por que a matéria inorgânica da qual a Terra foi feita era de um tipo tal que, sob a operação de leis da Química e Biologia, poderia ser convertida em corpos humanos. Conforme notamos, a Física nos diz que houve um Big Bang há quinze bilhões de anos que produziu matéria-energia que se condensou em partículas fundamentais que se juntaram para formar os elementos químicos que terminaram por se condensar para formar a matéria inorgânica no começo da história do planeta Terra. Contudo, por que havia leis da física que levaram isto a efeito, e as leis da Química e da Biologia que levaram a matéria inorgânica a constituir corpos humanos? Presumivelmente, porque estas leis se seguiram das

leis fundamentais da Física. Assim, nossa questão se torna — por que não há simplesmente quaisquer leis da natureza, mas leis de um tipo particular tal que junto com a matéria-energia inicial no tempo do “Big Bang” levariam à evolução de corpos humanos. Que existem as leis da natureza que existem, e que as condições limite do universo fossem o que elas eram é, novamente, de onde a explicação científica começa: é algo “grande demais” para a própria ciência explicar. Eu vou argumentar que as leis e condições iniciais sendo tais que levem à evolução de corpos humanos é algo muito improvável a priori, mas bastante provável se existe um Deus que os levou a efeito, e assim temos outro argumento Cindutivo substancial em favor da existência de Deus.

Sintonia fina Nem todas as condições iniciais ou leis da natureza levariam ou mesmo permitiriam a existência de corpos humanos em algum lugar ou em algum tempo no universo. Assim, podemos dizer que o universo está “sintonizado para a evolução de corpos humanos se as leis e condições iniciais conduzem a isso (no sentido de que elas causam de modo pleno esta evolução se as leis forem determinísticas ou a tornam significativamente provável se as leis forem probabilísticas). Apenas uma gama muito estrita de leis e condições iniciais permitem uma evolução assim, daí que podemos dizer que o universo é “finamente sintonizado” para essa evolução. Se as leis fundamentais e condições iniciais forem, como supomos, as leis da Teoria Quântica e da Teoria da Relatividade com as quatro forças (força forte, força fraca, força eletromagnética e gravidade) regendo o rol básico de partículas fundamentais (fótons, léptons, incluindo os elétrons, mésons, e bárions, incluindo prótons e nêutrons) — que eu chamarei de teoria padrão — e as condições iniciais forem tais como a velocidade,

densidade e grau de isotropia da matéria-energia do universo, imediatamente após o momento do Big Bang, e estes forem medidos nos modos normais, então — trabalhos recentes mostraram — o universo é finamente sintonizado. As constantes de suas leis e as variáveis de suas condições iniciais precisavam ficar dentro de intervalos muito estreitos para que os corpos humanos sequer fossem existir um dia provavelmente. Um dos conjuntos de intervalo estreito são os centrados nos valores atuais (que acreditamos que sejam) das constantes de leis e variáveis de condições iniciais. Vale a pena neste contexto expor como isto acontece[110], por que qualquer constante ou variável que ficar fora do intervalo (enquanto as outras fiquem dentro deste) impediriam a evolução de corpos humanos. Esta seção pode não ser inteiramente compreensível para aqueles que não tenham alguma formação científica. Eu sugiro, ainda assim, que estes leitores leiam estas páginas todas. Eles captarão a mensagem principal. Uma vida baseado no carbono, em combinação com certos outros elementos, especialmente hidrogênio, oxigênio e nitrogênio é bem adaptada para a formação de corpos com as

sete características listadas acima. Com uma valência de 4, o carbono pode entrar em muitas combinações químicas diferentes. Os compostos de carbono são estáveis por longos períodos de tempo, mas também são metaestáveis, no sentido em que em certas situações eles podem ser facilmente induzidos a interagir com outros compostos para produzir novos compostos. Assim, “mais informação pode ser armazenada nos compostos de carbono do que nos de qualquer outro elemento”.[111] Junto com o hidrogênio, o nitrogênio e o oxigênio, o carbono pode formar longas e complexas cadeias moleculares e junto com o cálcio que dá a rigidez do esqueleto, tal sistema de processamento de informação pode se tornar um componente independente contínuo do universo. A vida baseada no carbono requer para sua estabilidade limites moderados de temperatura e pressão e — se o propósito dos organismos for fazer muita diferença para as coisas — um planeta sólido no qual essa vida possa se dar. Dada a teoria padrão com constantes e variáveis de condições iniciais tendo seus valores atuais, é altamente duvidoso que pudesse haver qualquer outro tipo de vida inteligente. Foi às vezes

sugerido que o silício poderia ter substituído o carbono no seu papel central, mas isto parece duvidoso, uma vez que compostos de silício não têm a estabilidade de compostos de carbono[112]. Outra sugestão recente foi de que sistemas inteligentes de partículas que se baseiem na interação “forte” para sua organização possam existir no interior do nêutron das estrelas. Mas parece duvidoso que elas pudessem ter sequer perto da mesma capacidade de processamento de informação que a vida baseada no carbono da Terra.[113] Assim, vamos supor, bastante plausivelmente, que a vida baseada no carbono é o único tipo possível de vida (dada a teoria padrão e os valores atuais de suas constantes e as variáveis das condições iniciais). Se a vida baseada no silício for possível, o argumento abaixo não precisaria de muita alteração (pois as condições necessárias para a evolução de vida baseada no silício são muito semelhantes às necessárias para a evolução da vida baseada no carbono) e a vida no nêutron de uma estrela é uma sugestão especulativa demais para ser levada em conta. Dadas as quatro forças fundamentais e o rol básico de partículas fundamentais, as potências das forças e as massas

das partículas têm de ter razões em relação umas às outras dentro de certas bandas restritas para que os elementos químicos maiores, incluindo o carbono e o oxigênio (necessários para a vida baseada no carbono), ocorram. E o princípio de exclusão de Pauli deve valer. Este princípio (aplicando-o a todos os férmios — por exemplo, elétrons e prótons) diz que em qualquer sistema (por exemplo, um átomo), apenas uma partícula do mesmo tipo pode estar num dado estado quântico. Consequentemente, há apenas um pequeno número de estados de energia possível para os elétrons de um átomo e apenas um pequeno número de elétrons pode estar em cada estado de energia. Enquanto as leis básicas da Teoria Quântica garantem a estabilidade do átomo — elétrons não caem nos núcleos — o princípio de Pauli implica que os elétrons são arranjados em “conchas”. Assim, átomos de um número finito de tipos diferentes podem ser formados por diferentes números de elétrons ao redor do núcleo e as moléculas podem ser formadas por ligações entre elétrons de diferentes átomos. Sem o princípio de exclusão não há Química, mas não muita Química a menos que haja possibilidades suficientes de se construir

estruturas diferentes, de serem relativamente estáveis, de interagirem e de formarem novas estruturas. Para isso, precisamos que os átomos sejam estruturas grandes com espaço vazio suficiente entre núcleos centrais bem definidos e elétrons. A construção de átomos requerida para a vida baseada no carbono requer que as quatro forças tenham certas potências, relativas umas às outras. Para haver núcleos estáveis, a força forte que mantém os prótons e nêutrons juntos no núcleo tem de ser forte o bastante para superar a repulsão eletromagnética entre os prótons. Um decréscimo de 50 por cento na força forte “rebaixaria a estabilidade de todos os elementos essenciais para a vida baseada no carbono, e com um decréscimo ligeiramente maior, eliminaria todos os elementos, exceto o hidrogênio”.[114] Mas o processo pelo qual o carbono e o oxigênio são formados a partir das condições iniciais atuais do universo requer um grau muito maior desta sintonia para levar a produção destes. Um acréscimo ou decréscimo de mais de 0,5 por certo na potência da força forte ou mais de 4 por cento na potência da força eletromagnética

levaria a uma produção tão pequena de carbono e oxigênio que tornaria a produção de vida inteligente muito pouco provável[115]. Um decréscimo de trinta vezes da força fraca levaria as estrelas a serem feitas quase que inteiramente de hélio e, portanto, terem uma vida curta (de cerca de 300 milhões de anos), que de modo algum conduziria à evolução de vida inteligente[116]. Um acréscimo na potência da força gravitacional em 3000, faria com que as estrelas tivessem uma vida de não mais que um bilhão de anos (comparados aos dez bilhões de anos da vida do nosso Sol), o que tornaria o desenvolvimento de vida inteligente muito menos provável[117]. A mais fraca das quatro forças é a força gravitacional, cujos efeitos são significativos apenas a grandes distâncias. A distâncias pequenas, quando a força forte tem influência significativa, sua potência é da ordem de 1040 vezes a da força da gravidade. Segue-se que os tipos acréscimo ou decréscimo nas potências das forças mencionados acima (50 por cento, 4 por cento, etc.), compatíveis com a produção de vida baseada no carbono representam um intervalo muito pequeno mesmo de valores das potências das forças envolvidas no

âmbito dos valores reais de qualquer das forças, e um intervalo infinitesimal dentro do âmbito dos valores logicamente possíveis de forças. Por exemplo, G tem de ficar entre 0 e 3000G, o que representa uma parte em 1036 do intervalo de valores das constantes de força. E assim por diante para as outras constantes.[118] A expansão do universo é regida pela força do Big Bang inicial e o efeito restritivo da gravidade possivelmente diminuiu ou aumentou pelo valor (positivo ou negativo) da constante cosmológica ( ), a qual pode ser considerada como determinando uma quinta força. Esta precisa estar extremamente perto do zero para que o espaço não se expanda tão rapidamente que todo objeto no universo se despedace ou caia tão rapidamente que todo objeto no universo seja esmagado.[119] Além disso, dadas as leis atuais da natureza ou as leis de qualquer modo semelhantes a estas, as condições limite terão de ficar dentro de um intervalo de condições atuais para que a vida inteligente evolua (ou talvez elas terão de ficar fora daquele intervalo; esta ideia será discutida depois). Se o universo teve um começo, as condições limite

são os arranjos e propriedades da matéria-energia do universo no tempo que o universo teve se início. Os indícios atuais mostram, como já disse antes, que o universo começou num estado muito denso há cerca de quinze bilhões de anos. Para a formação de vida inteligente num universo que se expandia a partir de tal estado, as condições no momento do Big Bang tinham de ser (dentro de intervalos estreitos) muito exatas. A taxa inicial de expansão é crítica. Se (para o valor atual das constantes gravitacional e cosmológica) a velocidade inicial de expansão tivesse sido ligeiramente maior que a velocidade inicial real, o efeito teria sido que o resultante de uma constante cosmológica significativa positiva — as estrelas e, portanto, os elementos mais pesados, não se formariam. Se tivesse sido ligeiramente menos, o efeito teria sido o mesmo que o produzido por uma constante cosmológica negativa significativa — o universo teria entrado em colapso antes que fosse frio o bastante para que os elementos se formassem[120]. Foi calculado que (excetuando-se uma possível qualificação a partir da “teoria da inflação” à qual chegaremos em breve) uma redução na taxa de expansão de uma parte em um milhão

levaria a um colapso prematuro e um acréscimo de uma parte em um milhão teria impedido a evolução de estrelas e elementos mais pesados[121]. Alguma heterogeneidade inicial na distribuição de matériaenergia é necessária para que as galáxias e, portanto, as estrelas, sejam produzidas. Quantidade em demasia faria com que os buracos negros se formassem antes que as estrelas[122]. No começo havia um ligeiro excesso de bárions em relação a anti-bárions, mas o excesso de bárions se tornou matéria-energia. Se o número a mais tivesse sido ligeiramente maior, não teria havido matéria o bastante para as galáxias ou estrelas se formarem. Se tivesse sido muito maior, teria havido radiação demais para que os planetas se formassem,[123] e assim por diante. O universo tem de começar com a densidade, quantidade de heterogeneidade de radiação e velocidade de expansão corretas e isto significa (dentro de um intervalo muito estreito) a quantidade atual. Estou até agora apresentando a tese geralmente aceita de que, se alguma das constantes das leis e das variáveis das condições iniciais estivessem fora de um âmbito estreito, os corpos

humanos não evoluiriam. Um trabalho recente sugeriu[124] que, se um número de constantes e variáveis fossem todas significativamente diferentes, cada uma dentro de um pequeno intervalo diferente, os corpos humanos ainda evoluiriam. Ou seja, há várias pequenas ilhas dentro do espaço de valores possíveis de constantes e variáveis dentro do qual a vida humana poderia evoluir. Mas isto não altera significativamente a ideia de que essas ilhas são as exceções e a sintonia precisa ser sintonia fina para esta evolução. Se a teoria padrão oferece a explicação última do universo (e assim, Deus é a causa da operação da teoria padrão), esta sintonia fina é um a priori muito improvável, pois a forma na qual qualquer teoria, inclusive a teoria padrão, é apresentada pelos cientistas em seus livros e artigos é a maneira mais simples — os cientistas não tentam complicar as coisas para eles mesmos e seus leitores de forma desnecessária. Esta forma envolve variáveis e constantes sendo medidas do modo normal. É a forma na qual nós julgamos a simplicidade da teoria que determina (para teorias de amplitude igual) a probabilidade intrínseca de sua

verdade. Versões da teoria padrão expressas em sua forma mais simples vão diferir apenas quanto aos valores de constantes de leis e de variáveis de condições limites naquelas. Dado tudo isso, uma versão que afirma que uma constante ou variável fica dentro de um intervalo não vai diferir muito[125] em simplicidade das teorias que afirmam que ela fica dentro de outro intervalo de tamanho igual; e assim cada versão será aproximadamente de igual probabilidade a priori. Mas uma vez que apenas umas poucas versões da teoria padrão nas quais as constantes variem dentro de um intervalo muito pequeno são sintonizadas para a evolução de corpos humanos, tal evolução é a priori muito improvável. Em termos ligeiramente mais técnicos, a afirmação é de que a densidade de probabilidade para constantes e variáveis medidas do modo normal é aproximadamente constante (ou seja, a probabilidade de que estas ficarão perto de um dado valor é aproximadamente constante para todos os valores de constantes e variáveis da teoria padrão) [126] Vale a pena notar o efeito de não se escolher a formulação mais simples de uma teoria sobre a

densidade probabilística de constantes e variáveis diferentes. Eu tomo um exemplo muito fácil. A lei da atração gravitacional de Newton

poderia

ser expressa como na qual d é definido como . Uma distribuição de densidade de probabilidade constante para d (ou seja, o pressuposto de que é igualmente provável que d fique dentro de qualquer intervalo de dado tamanho) não levará a uma distribuição de densidade de probabilidade constante para G e vice-versa. Uma distribuição de probabilidade constante para d levará ao resultado de que é igualmente provável que d fique entre 1 e 0,5 quanto entre 0,5 e 0 e, portanto, que seja igualmente provável que G fique entre 1 e 8 quanto entre 8 e o infinito (ou seja, que tenha qualquer valor acima de 8). Ao expressar as leis de nossa teoria padrão em fórmulas muito complicadas, logicamente equivalentes às suas formas mais simples, e assumindo uma densidade de probabilidade constante para as constantes e variáveis destas formas, poderia haver a consequência de que uma variação muito maior destas (muito menos “sintonia fina”) seria

compatível como o universo ser compatível com corpos humanos. Contudo, as leis são julgadas simples e assim como tendo maior probabilidade prévia em virtude das características de suas formas mais simples. Uma vez que uma constante seja mais simples que uma constante à potência (- 1/3), a forma tradicional da lei de Newton é a forma mais simples e, portanto, a mais fundamental. E, mais geralmente, a insistência na forma mais simples de uma lei deveria levar a uma distribuição única de densidade de probabilidade para as constantes e variáveis das leis daquele tipo (ou, no máximo, se há um número de formas igualmente simples de uma lei, umas poucas distribuições de densidade de probabilidade diferentes que provavelmente não farão muita diferença ao grau de necessidade de sintonia fina). Assim, dada uma teoria padrão, e nenhuma explicação fundamental da mesma (física ou teísta), a sintonia é a priori imensamente improvável. A Cosmologia Física é uma área muito instável da Física. Novas teorias são produzidas a cada ano. São possíveis mudanças que teriam a consequência de que constantes e variáveis possam

variar dentro de um intervalo muito mais amplo e mesmo assim a vida ainda evoluiria. Uma mudança possível, embora em meu juízo amadorístico seria bastante improvável, é que possa ser estabelecido que as condições limite sejam significativamente diferentes das que se tem suposto — por exemplo, que o universo evoluiu não de uma singularidade inicial, mas de um estado muito denso, resultante talvez de um colapso anterior ou talvez de uma flutuação mecânica quântica do “vácuo”.[127] Tal mudança, que provavelmente aconteceria com a adoção da visão de que o universo é infinitamente antigo, teria a consequência de que um intervalo muito mais amplo de condições limite faria surgir a vida. O papel das “condições limite” num universo retroativamente eterno (ou seja, infinitamente antigo) pode precisar de esclarecimento. Imagine uma mesa de bilhar isolada numa redoma de vidro na qual as bolas se movem num vácuo (e que qualquer transferência de energia para ou do lado de fora possa ser descontada). As leis de colisão governam a interação entre as bolas, que se chocam umas com as outras e nas paredes da redoma ao

longo do tempo indefinidamente. Poderia ter sido que este processo fosse começado por alguém ordenando as bolas e lhes dando um empurrão inicial antes da mesa ser isolada. Naquele caso, as condições limite seriam as condições iniciais (ordenamento e velocidade das bolas) e elas, junto com as leis de colisão determinariam todo o comportamento subsequente das bolas. Algumas condições iniciais permitiriam que as bolas se ordenassem em todas as combinações (logicamente) possíveis durante o curso de um tempo infinito subsequente. Contudo, algumas condições iniciais (por exemplo, as bolas se moverem inicialmente com velocidades paralelas umas às outras e às paredes) assegurariam que as bolas ocupassem apenas umas poucas composições possíveis, mesmo ao longo de um tempo infinito. Suponha, agora, que esse processo tem acontecido desde sempre (ou seja, não é apenas infinito no futuro, mas também com respeito ao passado). Neste caso, este cenário pode ainda ter certas características num dado tempo que ocorreriam apenas se um conjunto limitado de composições possíveis ou sempre foram ou sempre serão ocupadas (por exemplo, isso pode também ser

o caso se, num certo momento, as bolas estiverem se movendo paralelas umas às outras e às paredes); ou, muito mais provavelmente, ter características que ocorreriam apenas se, no curso do tempo infinito para trás ou para frente, todas as composições possíveis daquelas bolas ocorressem. Contudo, o isolamento da mesa ainda assegura que as únicas composições possíveis são composições daquelas bolas — não pode haver mais ou menos bolas no passado ou no futuro. As “condições limite” de um universo infinito são aquelas características de sua condição em qualquer tempo dado (por exemplo, num universo newtoniano, a quantidade de energia) que (junto com as leis que o governam) restringem seus estados futuros e passados possíveis. Ora, se o universo for eterno tanto no passado quanto no futuro, seu estado presente pode ser tal que podemos inferir que ele tem de passar por tal e tal intervalo de estados ao longo de um tempo infinito. Estes podem incluir todos os estados de matéria-energia logicamente possíveis. Contudo, isto não é muito provável, pois algum tipo de princípio de conservação de energia (dentro de limites quânticos) assegurará que os estados

passados (e futuros) são limitados a rearranjos da quantidade de energia existente. Contudo, embora tudo isso tivesse que ser resolvido, é altamente plausível supor que (para leis científicas dadas) a vida seja muito mais provável de evoluir em algum tempo ao longo da história de nosso universo caso este tenha um passado infinito do que se ele tem apenas um passado finito. Há mais tempo para mais arranjos possíveis dos constituintes do universo. Ainda assim, os indícios atuais sugerem uma idade finita de uns 15 bilhões de anos. Uma mudança alternativa na Física pode ser a descoberta de que as leis são diferentes das que foram supostas anteriormente, de um modo tal que elas também dessem origem à vida inteligente a partir de um intervalo muito mais amplo de condições limite que tinham sido supostas até agora. A “teoria inflacionista” sugere exatamente isto. A teoria inflacionista nos diz que regiões do universo com certas características podem ter sido submetidas, logo após o Big Bang, a uma expansão mais rápida do que a luz, levando-as muito rapidamente a se tornarem regiões frias, homogêneas e isotrópicas.[128] Assim, é de se

esperar que — de acordo com a teoria inflacionista — características como homogeneidade e isotropia, para as quais se pensava que fosse vital um intervalo estreito de condições iniciais, surjam de um intervalo mais amplo de condições iniciais, dadas certas leis. Porém, pode muito bem ser o caso que a teoria inflacionista possa ser bem sucedida, em alguma de suas muitas variações, em remover a necessidade de sintonia fina de condições iniciais apenas colocando mais sintonia fina nas leis.[129] Permanece entre os físicos, contudo, um consenso de que os valores das constantes das leis da teoria padrão (em oposição às variáveis das condições iniciais) devem ficar dentro de intervalos estreitos para que a vida se desenvolva em algum lugar do universo — intervalos que incluem os valores atuais das constantes e provavelmente alguns outros pequenos intervalos nos quais os valores de várias das constantes sejam diferentes dos atuais. E há também consenso de que, dado um Big Bang inicial, variáveis como as de velocidade inicial de recessão têm (mesmo na teoria inflacionista) que ficar dentro de um intervalo estreito. Pode haver, contudo, uma teoria física mais fundamental que

explique a teoria padrão e uma densidade de probabilidade constante para as constantes, e as variáveis das condições limite da forma mais simples daquela teoria fundamental podem ter consequências um tanto diferentes para a probabilidade intrínseca da sintonia (por exemplo, que as variáveis mais diretamente observáveis possam tomar apenas certos valores).[130] Contudo, em termos mais gerais, há inúmeras teorias científicas possíveis diferindo em forma umas das outras e inúmeros tipos diferentes de condições limite diferindo no número de entidades que elas postulam (universos grandes e pequenos), cada uma considerando muitos conjuntos diferentes de constantes e variáveis de condição limite. Uma densidade de probabilidade acerca destas últimas (quando cada teoria for expressa em sua forma mais simples) trará para cada teoria uma probabilidade diferente de que o universo de acordo com ela seja sintonizado. As teorias (embora de amplitude igual — ao nos falar de tudo) diferirão quanto à simplicidade e, portanto, quanto à probabilidade intrínseca. Assim, dado um modo preciso de medir a simplicidade, haverá um valor verdadeiro para a

probabilidade intrínseca, a probabilidade de que, se Deus não existe, algum universo será sintonizado. Contudo, o que, sugiro eu, é bastante óbvio é que nenhum universo relativamente simples seria sintonizado. Isso porque, considere as sete características requeridas para um corpo humano listadas anteriormente neste capítulo. Um corpo assim tem partes, mas as partes têm de formar um corpo distinto de outros corpos e do mundo inanimado. No nosso mundo, isto é assegurado por uma química pela qual apenas alguns pequenos pedaços de matéria se ligam a outros pedaços de matéria — se eu ponho minha mão num banco de areia, minha mão não vai absorver a areia, mas se eu como pão, este se tornará parte do meu corpo. Os órgãos sensoriais requerem uma enorme variedade de estímulos atingindo um lugar, que variam de acordo com sua fonte distante. Em nosso universo, o melhor de todos os estímulos são ondas de luz — uma enorme variedade de diferentes ondas de luz chega a cada segundo aos nossos olhos, que variam com os estados dos objetos a muitos metros de distância. Os órgãos sensoriais respondem diferentemente a cada intervalo muito pequeno de

estímulos que chegam. Mas nós, seres humanos, estamos interessados apenas em certos aspectos dos estados de objetos distantes — sejam eles os corpos de predadores ou presas ou parceiros e assim para um milhão de diferenças possíveis. Os estímulos têm que causar estados cerebrais que nos dão informação de importância moral ou prudencial. Nosso processador de informação utilizará estados causados por experiências passadas para tornar os estados dos órgãos sensoriais em estados cerebrais úteis. E, para não sermos apenas autômatos, mas raciocinarmos conscientemente a partir de experiências passadas, precisamos de um banco de memória para arquivar aqueles estados numa forma recuperável. Isto requer uma química de estados estáveis (de modo que a memória permaneça a mesma à medida que o tempo passe) e estados metaestáveis, de modo que certos tipos de dado de entrada moverão um elemento do cérebro de um estado para outro (à medida que aprendemos que alguma crença prévia era errônea). E para um dado de saída, precisamos novamente de uma variedade enorme de estados cerebrais correspondentes aos diferentes propósitos que pudéssemos formar, um

processador para tornar estes propósitos em movimentos dos membros relevantes (por exemplo, se quero lhe dizer que hoje é sexta-feira, produzir os movimentos de língua e lábios que causarão os sons apropriados da língua inglesa). E precisamos de um mundo inorgânico estável ao qual possamos fazer diferença permanente, pois não há sentido em tentar construir uma casa se os tijolos liquidificam imediatamente. Um modo pelo qual tudo isso poderia ser conseguido seria por corpos compostos de apenas umas poucas partículas, cada uma capaz de existir em um trilhão de trilhão de trilhão de estados diferentes. Mas uma física que permitisse a existência de algo assim seria de uma complexidade inacreditável. O outro modo, o modo operativo em nosso universo, é de ter corpos extensos, cada um composto de muitas partículas fundamentais de um número de tipos diferentes, sendo cada partícula capaz de existir em uns poucos estados discretos diferentes, sendo as diferenças entre os corpos uma questão de número e arranjo de unidades e dos estados discretos de cada uma. Para resolver a questão desta maneira, você precisa de um universo

com um número muito grande de partículas para compor muitos corpos e um meio ambiente inanimado pelo qual as pessoas possam influenciar umas às outras. A mudança tem de ser afetada por uma partícula (ou grupo de partículas) mudando seus estados, causando outras partículas mudarem seus estados. Para assegurar corpos estáveis que são, ainda assim, capazes de existir em muitos estados diferentes, você precisa de mais que uma força simples. Uma força de atração simples levaria a amontoados de matéria incapazes de reação sensível; e uma força simples de repulsão levaria a que não houvesse corpos extensos quaisquer. Minimamente, requer-se uma combinação de duas forças simples diferentes (possivelmente, ambas derivadas de uma força mais complicada). Uma força de atração entre partículas inversamente proporcional ao quadrado da distância entre as partículas exigiria ser contrabalançada, por exemplo, por uma força de repulsão inversamente proporcional ao cubo da distância entre elas. Forças desses tipos com a força correta levariam a que partículas se juntassem, mas não caíssem umas sobre as outras. Contudo, para preservar intactos os estados (de correlatos cerebrais

das crenças, por exemplo), temos de excluir variações pequenas. Precisamos de metaestabilidade — sistemas que não mudem dadas forças de certa potência, mas que mudem de um estado discreto para outro estado discreto quando a potência da força exceda certa quantidade. Isso é assegurado em nosso universo pelas leis da Teoria Quântica, que garantem a estabilidade do átomo. E, para haver corpos distintos que não se fundem uns com os outros e estados cerebrais distintos que estão abertos à mudança apenas dados certos tipos de estímulo, precisamos de algo como uma química que permita substâncias se combinarem facilmente com algumas substâncias, mas não com outras substâncias. Isto é assegurado em nosso universo por substâncias químicas diferentes umas das outras pela carga em seu núcleo e os arranjos de elétrons de cargas em equilíbrio em cápsulas ao redor do núcleo — em outras palavras, prótons, nêutrons e o princípio de Pauli. E assim por diante. Assim, precisamos de grandes números de partículas de uns poucos tipos diferentes e de forças de alguma complexidade agindo entre elas. Mas, universos são mais simples quanto menos objetos

(por exemplo, partículas) eles contêm e quanto menos tipos de forças matematicamente simples que operem entre eles. Nenhum universo muito simples poderia ser sintonizado, não importa como sejam suas condições limite. É claro que tipos mais complicados de universos possíveis (por exemplo, o nosso) podem ser sintonizados e talvez normalmente a sintonia precise ser uma sintonia fina. Talvez também alguns tipos complicados de universo produzissem corpos humanos para a maior parte de valores de constantes e variáveis de condições limite. Mas o considerável peso a priori da simplicidade sugere que, num universo sem Deus, é a priori improvável que qualquer universo seja sintonizado de modo a dar origem a corpos humanos.[131] Sendo e a existência de corpos humanos, h o teísmo e k o indício de um universo que se conforma a leis naturais, P(e/~h&k) é muito baixa. É claro que, se houvesse um número infinito de universos, cada um com diferentes leis e diferentes condições limite, poder-se-ia esperar que ao menos um fosse sintonizado (lembre-se de minha definição anterior — vide p. 231 — de um universo como uma coleção de objetos físicos, todos

relacionados espacialmente uns com os outros. Um universo diferente do nosso seria uma coleção de objetos físicos espacialmente relacionados espacialmente uns com os outros, mas não com a nossa Terra). Já afirmei anteriormente neste capítulo que é o cúmulo da irracionalidade postular um número infinito de universos que nunca fossem causalmente conectados uns com os outros apenas para evitar a hipótese do teísmo. Dado que a simplicidade determina a probabilidade prévia e uma teoria é mais simples quanto menos entidades ela postular, é muito mais simples postular um Deus que um número infinito de universos, cada um diferindo do outro de acordo com fórmulas regulares, não causado por qualquer outra coisa.[132] Pode haver, contudo, características particulares de nosso universo (diferentes de sua sintonia) que são mais simplesmente explicadas pela suposição de que elas foram acrescentadas a partir de um outro universo em consequência de uma lei pela qual universos produzem universos filhos diferentes deles em termos de condições limite e leis; e assim, nosso universo é explicado como uma coleção de um número infinito de universos (originalmente,

conectados causalmente uns com os outros) diferindo uns dos outros em condições limite e leis. Porém, isto significa postular um multiverso que tem leis e condições limite tais que ele conterá num determinado momento um universo sintonizado. Mas, nesse caso, há um número infinito de multiversos logicamente possíveis que não têm esta característica e a forma do problema não mudou de forma alguma, pois o problema que nos concerne não é realmente por que existe (no meu sentido) um universo que é sintonizado para a vida, mas por que, dentre todos os universos, há (um ou muitos) universo(s) sintonizado(s) para a vida. Um modo pelo qual isto pode acontecer é existindo apenas um universo assim. Mas outro modo é havendo um mecanismo gerador que produza universos de vários tipos, inclusive um universo sintonizado para a vida. Porém, embora a existência desta possibilidade não mude a forma do problema, ela chama nossa atenção para o modo pelo qual um universo sintonizado para a vida poderia vir a existir. E assim, a fim de avaliar a probabilidade intrínseca de que haja um universo sintonizado para a vida, precisamos avaliar a probabilidade de que isso viria a

acontecer de um modo ou de outro, e levar isto em conta pode nos levar a reavaliar a estimativa daquela probabilidade. Pode parecer que o valor terminasse por ser muito maior que nós supusemos originalmente. Comecemos por individuar mecanismos de geração de universos pelo multiverso (a coleção de universos) que eles geram (num dado tempo). Em seguida, se consideramos todos os multiversos possíveis, cada um consistindo de r universos, escolhidos de n tipos logicamente possíveis de universo, dos quais apenas um tem sintonia para a vida, segue-se matematicamente que uma proporção de destes multiversos conterá um universo com sintonia para a vida. Para cada r >1 (r =1 sendo o caso de haver apenas um universo), isto excederá 1/n (a proporção de universos sintonizados para a vida). E quanto mais universos num multiverso, (quanto maior for r) mais perto este valor será de 1. Assim, pode parecer que, à medida que consideramos mais e mais mecanismos possíveis de geração de universo (gerando mais e mais universos) (ficando r cada vez maior), a proporção total de mecanismos geradores de universos que

gerarão um universo com sintonia para a vida se aproximará de 1. Assim, se fosse igualmente provável que existisse qualquer mecanismo possível de geração de universo (a maior parte deles gerando muito mais universos que o número de tipos logicamente possíveis de universo), pareceria ser muito provável que ocorresse ao menos um universo com sintonia para a vida. Contudo, não podemos calcular a probabilidade intrínseca (num mundo sem Deus) de um mecanismo de geração de universo sendo tal que produza um universo sintonizado para a vida apenas contando a proporção de mecanismos que têm esta característica dentre o número total de mecanismos possíveis desse tipo. Para começar, haverá um número infinito de mecanismos possíveis dos quais um número também infinito terá a característica requerida. E infinito dividido por infinito não tem um valor definido. Nós temos de dividir mecanismos num número finito de tipos de mecanismos e então pesar cada tipo pela probabilidade prévia do mecanismo ser daquele tipo — o que será uma função da simplicidade das leis envolvidas no mecanismo. Ora, certamente, mecanismos que

produzam universos que variem uns dos outros apenas nas constantes envolvidas serão muito mais simples que mecanismos que produzam universos diferentes quanto aos tipos de leis que eles tenham. Um mecanismo que produzisse universos com leis de tipos totalmente diferentes umas das outras precisaria ele mesmo ser governado por leis muito complicadas. Contudo, se formos confinados a mecanismos que produzam leis apenas de um tipo, meus argumentos anteriores sugerem que muito poucos desses mecanismos que produzam apenas leis de tipos relativamente simples (ou seja, leis não mais complexas que as de nosso universo) produzirão um universo com sintonia para a vida. Em segundo lugar, mecanismos que produzam universos com leis simples são mais simples e assim, também intrinsicamente mais prováveis que mecanismos que produzam universos com leis cada vez mais complexas. Em terceiro lugar, a existência de um multiverso com um mecanismo gerador de universo é uma suposição mais complexa que a existência de um universo sem um mecanismo assim. Desse modo, mesmo que haja um grande

número de multiversos possíveis sintonizados para a vida (no sentido de produzirem um universo sintonizado para a vida) e a proporção do número de multiversos possíveis sintonizados desta maneira, isso só vale porque o espectro de possibilidades anterior inclui multiversos muito complexos que são intrinsicamente muito improváveis. Assim, eu continuo com minha tese de que é intrinsicamente muito improvável que haja um universo sintonizado para a vida (seja ele um único universo ou um universo produzido por um mecanismo gerador de universos). Porém, pode muito bem ser que a esta improbabilidade seja menor que a improbabilidade de um único universo seja sintonizado para a vida. A probabilidade da ordem espacial dado o teísmo Um Deus, contudo, defendi anteriormente, tem boa razão para levar a efeito agentes corpóreos humanamente livres, tais como os seres humanos parecem ser; e assim, em vista da hipótese do teísmo, é moderadamente provável que o universo seja sintonizado — ou seja, de modo tal a permitir e de fato tornar significativamente provável a

existência de corpos humanos. Deus poderia chegar a isso, ou criando e mantendo em existência um universo feito para originá-los por um longo processo evolucionário, ou mesmo um multiverso feito para levar a efeito um universo assim. Que razão Deus teria para percorrer um caminho evolutivo? Se seu único objetivo ao criar o universo fosse povoá-lo com seres humanos, não haveria sentido produzi-los por um processo evolutivo longo. Mas há outras boas características do universo que Deus tem boa razão de levar a efeito. Eu já comentei a respeito da beleza do universo inanimado mostrada no desenvolvimento de galáxias, estrelas e planetas. Deus tem toda razão de levar a efeito de desenvolvimento a partir do Big Bang por sua beleza — mesmo que ele fosse a única pessoa observá-lo. Mas, é claro, ele não é a única pessoa a observá-lo. Nós podemos observá-lo por meio de nossos telescópios alcançando estágios cada vez mais iniciais de nosso universo. E Deus tem a mesma razão de dar origem a plantas e animais — sua beleza. E animais são também bons, como argumentei, não só por sua beleza, mas também por sua habilidade de ter sensações prazerosas, crenças

verdadeiras e fazer boas ações (mesmo que não sejam escolhidas livremente). Em vista de tudo isso, não é tão surpreendente que Deus tenha tomado o longo (segundo nossa escala de tempo) caminho evolutivo para produzir corpos humanos. E semelhantemente, argumentos mostrariam ser surpreendente que Deus produzisse corpos humanos por um caminho ainda mais longo através de mais de um universo para chegar a este objetivo. Pode ser que, mesmo dadas as condições iniciais do universo em todos os seus pormenores, as leis da natureza como tais não tornam necessária a evolução de corpos humanos, mas apenas a fazem bastante provável. Como afirmei anteriormente, pode ser que o modo pelo qual Deus as escolhas livres humanas façam diferença no mundo seja fazendo que as leis fundamentais da natureza sejam probabilísticas e não inteiramente determinísticas. E certamente Deus pode guiar o modo pelo qual as leis probabilísticas operam de modo a assegurar que corpos humanos evoluam realmente, sem que isso impeça de modo algum sua operação, mas apenas assegurando que o resultado mais provável de fato ocorra. Contudo, haverá um argumento da

existência de corpos humanos (e animais) em favor da existência de Deus de uma força considerável, através do caminho da “sintonia fina”, apenas se disso segue que um universo em sintonia fina vai (não apenas possivelmente, mas com probabilidade significativa) levar a seres humanos e animais corpóreos. Há, contudo, um ponto de vista científico, muito considerável, mas não unânime de que as leis e condições iniciais de nosso universo tornam muito provável que a vida humana evoluirá em mais do que um lugar no universo e que a vida animal evoluirá em vários lugares. E isso é o bastante para tornar o argumento cogente.[133] Assim, é bastante provável que, se Deus existe, as leis e condições limite do universo serão tais que tornarão provável a evolução de corpos humanos. De outro modo, é bastante improvável que eles terão esta característica. Eu represento este indício da natureza das leis e condições limite por e, com h sendo a hipótese do teísmo e k como conhecimento de fundo que constituiu os indícios dos dois argumentos considerados previamente — que existe um universo regido por leis simples da natureza. A probabilidade, então, se Deus não

existe, de que as leis e condições limite serão tais que terão esta característica a mais de originar corpos humanos é P(e/~h&k). A probabilidade de que tudo isto acontecerá se Deus existe é P(e/h&k). Tenho argumentado aqui que P(e/h&k)>>P(e/~h&k), e assim, pelo teorema de Bayes — P(h/e&k)>>P(h/k). Nós temos aqui um argumento C-indutivo poderoso em favor da existência de Deus.

O argumento da beleza A força do argumento do universo e sua ordem espacial e temporal em favor de Deus é aumentada quando levamos em conta a beleza desse universo. Como notamos, o universo é belo nas plantas, rochas e rios, corpos animais e humanos na Terra e também no giro das galáxias, no nascimento e morte das estrelas. Mark Wynn comenta que a natureza é “uniformemente bela enquanto os produtos dos seres humanos são raramente belos na ausência de uma intenção artística”. Argumentei no capítulo 6 que, se Deus cria um universo, como um bom artista, ele criará um universo belo. Por outro lado, se o universo veio a existir sem ser criado por Deus, não há razão para supor que ele será um universo belo. O argumento tem força com base na suposição, com a qual concordo e recomendo aos meus leitores, de que a beleza é uma questão objetiva, que há verdades acerca do que é belo e do que não é. Se isto é negado e a beleza é vista como algo que projetamos na natureza ou nos artefatos, então o argumento poderia ser refeito como um argumento a partir de seres humanos tendo

sensibilidades estéticas que os permitem ver o universo como belo. Neste caso, não há certamente nenhuma razão particular por que, se o universo surgiu sem causa, leis psicofísicas (do tipo que considerarei no próximo capítulo) dariam origem a sensibilidades estéticas em seres humanos. Contudo, embora seja bom que seres humanos tivessem estas sensibilidades, seria preciso que se mostrasse que isto estaria envolvido no tipo igualmente bom de ato que constituiu a criação de agentes humanamente livres de modo a dotá-los com sensibilidades estéticas. Isso porque, não o fazer não privaria o universo de um tipo de sensibilidade, uma vez que Deus mesmo poderia tê-la, enquanto que a habilidade de fazer escolhas significativas entre bem e mal não é um tipo de bem que Deus mesmo poderia ter. Pelo fato de que o argumento da beleza precisa, suspeito eu, de um entendimento objetivista do valor estético do universo a fim de que ele tenha uma força significativa e o estabelecimento de um entendimento assim demandaria um argumento bastante considerável, eu vou omitir discussões adicionais por razões de espaço.[134]

Eu deveria acrescentar que essa ideia não inviabiliza a tese anterior de que a beleza do universo físico (seja objetivo ou subjetiva em sua percepção pelas pessoas) oferece uma boa razão para Deus produzir corpos humanos pelo caminho evolutivo; minha tese aqui é simplesmente de que é preciso mais discussão para mostrar que a beleza do universo físico fornece um argumento positivo de força significativa para a existência de Deus.

9. Argumentos da consciência e moralidade Ao examinar os argumentos sobre a existência de Deus, estou passando daqueles com premissas mais gerais para aqueles com premissas menos gerais. O argumento cosmológico apela para a existência do universo como seu ponto de partida. Argumentos teleológicos apelam para o fato de o universo ter algumas características bastante gerais e abrangentes: o fato de ter leis da natureza e de que estas leis e condições limite serem tais que produzam corpos humanos. Os argumentos subsequentes que considerarei apelam para características mais específicas do universo e, em particular, para a natureza, experiências e história dos seres conscientes que habitam o universo. O principal argumento que considerarei neste capítulo é um argumento da natureza de seres humanos. Argumentei no Capítulo 6 que há uma probabilidade significativa de que Deus criaria agentes

humanamente livres corpóreos, e afirmei no Capítulo 8 que provavelmente os seres humanos são agentes humanamente livres corpóreos. Também argumentei no Capítulo 8 que, se Deus não existe, é improvável que o universo fosse “sintonizado” de modo a permitir a existência de corpos humanos. Mas o valor dos corpos humanos está no fato de serem veículos para a aquisição de conhecimento e a execução de propósitos por parte de seres humanos. O valor dos humanos está em sua vida consciente — no fato de adquirirem crenças, terem pensamentos e sensações, terem desejos e (por meio de suas escolhas livres) executarem propósitos. Quão provável é que, se Deus não existe, os corpos humanos ensejariam a vida consciente típica dos humanos? Argumentarei que é muito improvável. O argumento da consciência em favor de Deus não foi desenvolvido por nenhum filósofo clássico em grande profundidade. John Locke faz uma afirmação bem breve da tese de que a matéria é algo tão diferente do “pensamento” que ela não poderia nunca produzir “pensamento” por seu próprio poder. Divida a matéria em tantas partes quantas você

queira...varie a figura e o movimento desta tanto quanto você queira... e você pode tão racionalmente esperar produzir sensação, pensamento e conhecimento ao pôr junto, numa certa figura e movimento, partículas grandes de matéria quanto esperaria se o fizesse com as menores de todas, que existam em qualquer parte. Elas se chocam, impelem e resistem uma à outra tanto quanto as maiores o fazem e isto é tudo que elas podem fazer.[135]

Apenas um ser pensante poderia produzir pensamento, afirma Locke; dado que, como sustenta ele ter estabelecido em outra passagem, deve haver uma causa suprema perpétua das coisas, segue-se que essa causa deve ser um “ser cogitativo”, nomeadamente, Deus. Mas não se pode dizer que há muito de um argumento nesta passagem, meramente um apelo à aparente obviedade de que “matéria não pode produzir pensamento”. Penso que muitos outros sentiram que matéria não pode produzir pensamento e que isso formou uma vaga razão que as pessoas têm para procurar por uma causa diferente para o “pensamento”, ou seja, Deus. Penso que esse sentimento pode ser posto na forma de um argumento poderoso ao qual os filósofos quase não deram atenção suficiente. Neste capítulo, proponho desenvolver e defender um argumento

desses.

Os dados mentais Mas antes delineemos cuidadosamente os dados que precisam de explicação, que Locke chama de “pensamento”. Para esse propósito, precisaremos da terminologia de substâncias, propriedades e eventos, que eu introduzi no Capítulo 2. Um evento consiste da instanciação de uma propriedade numa substância num tempo; e precisamos agora distinguir entre propriedades, substâncias e eventos mentais e físicos. Embora esta distinção possa ser feita de mais de um modo, penso que será melhor, a fim de articular o argumento da consciência, fazê-lo da seguinte maneira. Entenderei por uma propriedade mental aquilo a cuja instanciação a substância no qual é instanciada necessariamente tem acesso privilegiado em todas as ocasiões de sua instanciação e por propriedade física aquilo a cuja instanciação a substância na qual é instanciado não tem necessariamente acesso privilegiado. Alguém tem acesso privilegiado a se uma propriedade P é instanciada nele próprio no sentido de que, quaisquer que sejam os modos que outros tenham de saber isso, é logicamente possível

que ele possa usá-los, mas ele tem um modo adicional (ao experimentá-la) que não é logicamente possível que outros possam usar. Uma propriedade mental pura pode então ser definida como aquela cuja instanciação não acarreta a instanciação de uma propriedade física. Assim, “tentar levantar meu braço” é uma propriedade mental pura, enquanto “levantar meu braço intencionalmente” não é, pois a instanciação desta última acarreta que meu braço se levante. Um evento mental é aquilo que envolve (ou acarreta) a instanciação de uma propriedade mental, e um evento mental puro é aquilo que envolve (ou acarreta) a instanciação apenas de uma propriedade mental pura. (Propriedades mentais incluirão tanto propriedades conscientes quanto propriedades mentais contínuas. Propriedades conscientes são aquelas de cuja instanciação num sujeito o sujeito é necessariamente consciente enquanto elas são instanciadas — por exemplo, ter o pensamento de que hoje é terça-feira. Propriedades mentais contínuas são aquelas das quais o exercício do acesso privilegiado do sujeito depende de sua escolha de investigar por introspecção, mas que continuam a caracterizá-la enquanto ela escolher não

se perguntar sobre elas — por exemplo, as crenças que temos enquanto estamos dormindo ou pensando acerca de outras coisas, e os desejos que não estão influenciando nosso comportamento atualmente.) Um evento físico é aquele que envolve (ou acarreta) a instanciação de uma propriedade física (e nenhuma propriedade mental). Meu argumento em favor de Deus neste capítulo será um argumento com base em eventos mentais em vez de se basear numa classe mais limitada de eventos conscientes. Entenderei por substância física uma substância na qual todas as propriedades essenciais são propriedades físicas (e quaisquer propriedades acarretadas por estas). Uma propriedade de uma substância é uma propriedade essencial (vide Capítulo 5) se necessariamente a substância não existiria sem aquela propriedade. Assim, ocupar espaço é uma propriedade essencial da minha escrivaninha; ela não poderia continuar a existir se não ocupasse volume de espaço. Mesas, cadeiras, cérebros, planetas, casas e células nervosas são todas substâncias físicas. As únicas propriedades que elas precisam ter a fim de existir são propriedades físicas. Uma substância mental é aquela que tem como uma

propriedade essencial ao menos uma propriedade mental. Uma substância mental pura é aquela na qual todas as propriedades essenciais são propriedades mentais puras (e quaisquer propriedades acarretadas por estas). (Tal substância pode ter, contingentemente — ou seja, não essencialmente — também propriedades físicas.) Defenderei no tempo devido que nós, eu e meus leitores, somos substâncias mentais puras. Evidentemente — mais evidentemente que qualquer outra coisa — realmente há eventos mentais puros, como sabemos de nossa própria experiência. Eles incluem padrões de cor em meu campo visual, dores e calafrios, crenças, pensamentos e sentimentos. Eles também incluem as intenções que eu tento realizar por meio do meu corpo ou de algum outro meio, que eu discuti no Capítulo 2. O fato de estar com dor ao meio-dia ontem ou de ter uma imagem vermelha em meu campo visual ou de pensar no almoço ou de formar a intenção de ir a Londres são tais que, se outros podem descobri-las por algum método, eu poderia fazê-lo usando os mesmos métodos. Os outros podem saber de minhas dores e pensamentos ao

estudarem meu comportamento e talvez também ao estudarem meu cérebro. Sim, eu também poderia estudar meu comportamento — poderia assistir a um filme de mim mesmo; poderia estudar meu cérebro — por meio de um sistema de espelhos e microscópios — tal como qualquer outra pessoa poderia. Mas, é claro, tenho um modo de saber de minhas dores, pensamentos e coisas do tipo de um modo distinto do que está disponível ao melhor dos outros estudiosos do meu comportamento ou cérebro: eu realmente os experimento. Consequentemente, eles devem ser distintos de eventos cerebrais ou de quaisquer outros eventos corpóreos, pois ter um evento cerebral (a instanciação numa pessoa de alguma propriedade físico-química) não acarreta ter um evento mental puro (ter alguma sensação, pensamento ou algo assim). Um neurofisiólogo não pode observar a qualidade da cor em meu campo visual ou a pungência do aroma de roast beef que eu cheiro. Um marciano que viesse à Terra, capturasse um ser humano e esquadrinhasse seu cérebro poderia descobrir tudo que estivesse acontecendo naquele cérebro, mas ainda se perguntaria “Será que esse

humano realmente sente algo quando eu dou uma agulhada em seu dedo do pé?”. É um fato adicional, para além da ocorrência de eventos cerebrais que há dores e imagens posteriores, pensamentos e intenções. Do mesmo modo, tais eventos devem ser distintos do comportamento que eles ensejam tipicamente. As pessoas têm sensações às quais elas não dão expressão — dores que elas escondem ou sensações oníricas que elas não contam para ninguém — e, se as sensações ensejam comportamento, o sujeito é consciente de uma sensação como um evento separado do comportamento que ele enseja. Eu enfatizo minha definição do mental como aquilo ao qual o sujeito tem acesso privilegiado. Há muitas propriedades que atribuímos a pessoas e que poderíamos às vezes chamar de “mentais”, mas que não são mentais no meu sentido e sim meramente propriedades de comportamento público. Quando dizemos que alguém é generoso ou irritável ou uma fonte útil de informação, pode ser que estejamos apenas dizendo (196) algo sobre o modo como ele se comporta em público, e não algo sobre a vida de pensamento e sentimento que fica por trás de tal

comportamento. Podemos naturalmente descrever o ser irritável como uma propriedade “mental”, mas não é uma propriedade mental no sentido que defini. Minha preocupação é mostrar a ideia de que há eventos mentais no meu sentido, diferentes de eventos cerebrais. Ao apresentar esta ideia, não quero negar, é claro, que a maior parte dos meus eventos mentais são causados por meus eventos cerebrais. Certamente, a maior parte dos eventos mentais passivos — aqueles que acontecem em nós, sensações, pensamentos, crenças e desejos — são causados ao menos em parte por eventos cerebrais, eles mesmos causados frequentemente por eventos corpóreos adicionais; enquanto alguns eventos mentais são causados, ao menos em parte, por outros eventos mentais. Minha dor de dente é causada por um evento cerebral causado por cárie dentária. Um pensamento que representa a conclusão de uma inferência indutiva é causado (ao menos em parte) por outros pensamentos englobando as premissas daquela inferência. E, é claro, como considerei no Capítulo 2, há também causação na outra direção. Eventos mentais ativos

— nossas intenções (ou seja, propósitos) — elas mesmas causam eventos cerebrais que por sua vez causam outros eventos corpóreos. Nossa corporeidade consiste em haver essas conexões físico-mentais. Um ser humano não existiria a menos que tivesse a capacidade de ter uma vida mental (uma capacidade de ter sensações, pensamentos, etc.); e ter tal capacidade é por si mesmo uma propriedade mental (a cuja instanciação no sujeito este tem acesso privilegiado). Assim, seres humanos são substâncias mentais. Mas há mais nos humanos do que apenas ter essencialmente uma capacidade de vida mental, conectada a um corpo. Aquela própria vida mental, defendo agora, é um estado da substância mental que é o ser humano corpóreo em virtude de ser um estado de uma substância mental pura, a alma humana, que é conectada ao seu corpo. Isso porque o que faz de mim eu mesmo é a continuidade da minha vida mental, não a continuidade de um corpo ao qual ela está conectada. Mesmo que normalmente esta última continuidade seja fisicamente necessária para a primeira, há duas continuidades diferentes. E por

continuidade da minha vida mental quero dizer simplesmente que os eventos mentais são tidos por mim, uma noção que não é analisável em elementos mais simples; mas cuja natureza não física podemos evidenciar dando-lhe o nome de minha “alma” à parte essencial de mim que tem os eventos mentais (e que está conectada à parte não essencial, meu corpo). Podemos começar a ver que essa abordagem da identidade pessoal é correta ao indicar que se você soubesse de todas as propriedades, físicas e mentais, associadas aos corpos, você ainda não saberia uma das coisas mais importantes de todas — se você ou qualquer outro humano continuou ao longo do tempo a viver uma vida consciente. Permita-me ilustrar isso com o exemplo de transplantes de cérebro. O cérebro consiste de dois hemisférios e um tronco cerebral. Há bons indícios de que os seres humanos podem sobreviver e se comportar como seres conscientes se muito de um hemisfério for destruído. Agora, imagine meu cérebro (hemisférios mais tronco cerebral) dividido em dois e cada meio cérebro tirado de meu crânio e transplantado no crânio vazio de um corpo do qual um cérebro acabou de ser removido, e que se junte

a cada meio cérebro de algum outro cérebro (por exemplo, o cérebro de meu irmão idêntico) quaisquer outras partes (por exemplo, mais troncos cerebrais) que sejam necessárias a fim de que o transplante aconteça e para que haja duas pessoas viventes com vidas de experiências conscientes. Ora, sei muito bem que uma operação dessa delicadeza não é presentemente possível em termos práticos e talvez nunca seja possível para simples cientistas humanos com meros recursos humanos; mas não posso ver que haja qualquer dificuldade teórica insuperável no caminho de uma operação assim. (Na verdade, essa é uma afirmação muito fraca — eu espero inteiramente que isso seja feito um dia.) Temos, então, condições de fazer a pergunta seguinte — se esta operação fosse feita e tivéssemos então duas pessoas viventes, ambas com vidas de experiências conscientes, qual seria eu? Provavelmente ambas em alguma medida se comportariam como eu e afirmariam ser eu e lembrariam ter feito o que eu fiz, pois comportamento e linguagem dependem, em grande parte, de estados cerebrais e há sobreposições muito consideráveis entre a “informação” levada pelos dois

hemisférios que ensejam comportamento e linguagem. Mas ambas pessoas não seriam eu, pois, se elas fossem ambas idênticas a mim, elas seriam a mesma pessoa (se a é o mesmo que b e b é o mesmo que c, então a é o mesmo que c) e elas não são. Elas agora têm experiências diferentes e levam vidas diferentes. Ficam ainda três outras possibilidades: que a pessoa com meu meio cérebro direito sou eu, ou que a pessoa com meu meio cérebro esquerdo seja eu ou que nenhuma seja eu. Mas não podemos saber qual delas vale. Segue-se que o simples conhecimento do que acontece com cérebros ou corpos ou qualquer outra coisa física não diz o que acontece com as pessoas. É tentador dizer que é uma questão de definição arbitrária qual das três possibilidades é correta. Mas essa tentação deve ser resistida. Há uma questão factual crucial aqui, que pode ser mostrada se imaginarmos que eu fui capturado por um cirurgião maluco que está prestes a realizar uma operação de separação de cérebro em mim. Ele me diz (e eu tenho toda razão de acreditar) que a pessoa que será formada de meu meio cérebro esquerdo deverá ter uma vida agradável e que a pessoa a ser

formada do meu meio cérebro direito será sujeita a uma vida de tortura. Se minha vida futura será feliz ou dolorosa ou se eu sequer sobreviverei à operação são claramente questões factuais. (Apenas alguém sob a pressão de um dogma filosófico muito forte negaria isso.) Contudo, enquanto espero o transplante e sei exatamente o que acontecerá ao meu cérebro, não estou em posição de saber a resposta à questão acerca de qual deles serei eu. Talvez nenhuma dessas pessoas futuras será eu — pode ser que se cortando o tronco cerebral destruase a pessoa original de uma vez por todas e que, embora ao se recuperar o tronco danificado criem-se duas novas pessoas, nenhuma delas serei eu. Talvez eu seja a pessoa do meio cérebro esquerdo ou talvez seja a do meio cérebro direito. Mesmo que uma pessoa subsequente se pareça com o que eu era anteriormente em caráter e memória mais que a outra, esta não serei eu. Talvez eu sobreviva a operação, mas mude meu caráter e perca muito da minha memória como consequência daquela, resultando que a outra pessoa subsequente se parecerá comigo mais em seu comportamento público do que eu mesmo.

Se refletirmos acerca desse experimento mental, veremos que, não importa o quanto saibamos acerca do que aconteceu com meu cérebro — podemos saber exatamente o que aconteceu com cada átomo dele — e com cada outra parte física de mim, não saberemos necessariamente o que aconteceu comigo. Disso se segue que deve haver mais de mim que a matéria da qual meu corpo e cérebro são feitos, outra parte não física essencial, cuja continuidade na existência faça o cérebro (e assim o corpo) ao qual este esteja conectado meu cérebro (e corpo), e a esse algo dou o nome tradicional de “alma”. Tome um exemplo um pouco diferente. Eu morro de uma hemorragia cerebral que os médicos de hoje não podem curar, mas meus parentes pegam meu cadáver e o colocam imediatamente num congelador na Califórnia. Pouco depois, há um terremoto e meu cérebro congelado acaba se dividindo em muitas partes, algumas das quais se perdem. Contudo, cinquenta anos depois, quando a tecnologia médica se aperfeiçoou, meus descendentes pegam as partes do meu cadáver dilacerado, aquecem-nas e as juntam, substituindo as

partes perdidas com outras fontes. O corpo se torna o corpo de uma pessoa viva que se comporta mais ou menos com eu e parece se lembrar bastante da minha vida passada. Será que eu voltei a viver ou não? Talvez sim, talvez não. De novo, temos uma verdade aqui, acerca de se eu sobrevivi à hemorragia conforme eu queria, porém, é uma verdade que não podemos saber com certeza, não importa o quanto saibamos acerca da história do meu cérebro. Assim, minha sobrevivência consiste na continuação de outra coisa, que eu chamarei de minha alma, ligada ao meu corpo anterior, e eu sobrevivo neste novo corpo se e somente se aquela alma está conectada com ele. E note que essa verdade a mais não é uma verdade acerca das propriedades mentais, acerca de quais pensamentos, sentimentos e propósitos a pessoa que reviveu tem. Ao invés disso, a verdade a mais, a verdade acerca de se eu sobrevivi, é uma verdade acerca de QUEM é aquela pessoa, que substância é aquela na qual aquelas propriedades estão instanciadas. Uma vez que nos damos conta de que a existência humana continuada não acarreta logicamente a existência continuada de nenhuma parte particular de seu corpo, podemos também

chegar a ver que isso não acarreta a existência daquele corpo de forma alguma. Isso porque podemos contar uma história coerente de um ser humano que chega a adquirir um novo corpo (como normalmente seria admitido tanto pelos teístas que dizem que isso algumas vezes acontece quanto pelos ateus que negam que isso aconteça) e uma vez que a continuidade de minha existência não acarreta que meu corpo continue a existir e vice-versa, a história completa do mundo deve incluir a história do meu corpo e a história da parte essencial de mim, uma substância mental pura, minha alma. Dualismos do físico e mental não são posições filosóficas populares hoje em dia. No capítulo 2, eu defendi o dualismo explicativo (duas maneiras diferentes de explicar eventos); e neste capítulo eu defendi dois tipos de dualismo ontológico — há tanto eventos físicos e mentais quanto substâncias puras mentais e físicas. Eu acho os argumentos em favor deste último dualismo (como também os argumentos em favor do primeiro) inescapáveis. Você deixa algo de suma importância de fora da história do mundo se você conta apenas a história de quais eventos físicos são

sucedidos por quais outros eventos físicos. O que as pessoas fizeram intencionalmente (em oposição ao que simplesmente aconteceu com elas) e o modo pelo qual elas pensaram e sentiram é de suma importância. Do mesmo modo, é igualmente importante saber quem teve aqueles pensamentos e sentimentos — quando uma pessoa parou de existir e outra veio a ser. Certamente, como já afirmei, nós normalmente sabemos as respostas a essas questões. Nossa observação dos corpos normalmente nos diz quando as pessoas são as mesmas e o que elas estão sentindo. É claro, se um bebê chora quando perfurado com uma agulha, ele está sentindo dor. Mas não é assim tão óbvio, quando um organismo que parece humano feito numa fábrica ou uma criatura de outro planeta é perfurada com uma agulha e emite o mesmo som, que aquela coisa esteja sentindo dor. E, é claro, a pessoa com este corpo hoje, que não foi submetida a uma operação de cérebro e partilha dos mesmos padrões de comportamento que a pessoa com este corpo ontem é a mesma pessoa que a última. Mas, depois que seres humanos, sem falar de criaturas de algum

planeta distante, tiveram operações cerebrais profundas, não é de modo algum claro se estamos lidando com a mesma pessoa de antes. O que esses exemplos mostram é que alguém sentindo dor é um evento diferente de ser perfurado por uma agulha e esta pessoa ser a mesma pessoa que aquela pessoa é diferente deste corpo ser o mesmo corpo que aquele, mesmo que normalmente um evento do último tipo acompanhe um evento do primeiro tipo. Uma história completa do mundo irá contar a história tanto dos sentimentos quanto a dos eventos cerebrais, e das pessoas (e assim de suas partes não físicas essenciais, as almas) quanto de seus corpos. Esses argumentos que mostram que os seres humanos têm duas partes — corpo e alma — mostrarão que qualquer criatura que tenha uma vida mental também terá duas partes. Se um gato passar por uma operação cerebral profunda, põe-se a questão de se o gato tem razão de temer as más experiências e ansiar pelas boas experiências que o gato pós-operação terá. Essa questão não pode necessariamente ser respondida apenas se sabendo o que aconteceu com cada molécula do cérebro do gato. Assim, devemos postular uma alma felina que

seja parte essencial do gato e cuja continuação possibilite a continuação do gato. Apenas quando falamos de animais sem pensamento ou sentimento é que essa questão não se levanta e então não há necessidade de postular uma parte imaterial do animal. Certamente, almas humanas têm diferentes capacidades das almas de animais superiores (as primeiras podem ter tipos de pensamento — pensamentos acerca de moralidade ou lógica — que as últimas não podem ter, e formar tipos de propósito — por exemplo, resolver uma equação — que as últimas não podem). Mas meus argumentos mostram que animais que têm pensamento e sentimento têm como sua parte essencial uma alma não física. Assim como não quero negar que eventos cerebrais causam eventos mentais (ou seja, eventos na alma, uma vez que esta exista) e vice-versa, não quero necessariamente negar que eventos no cérebro desempenham um papel nas causas da existência de almas. Talvez, em algum estágio da evolução animal, um cérebro animal se tornou tão complexo que causou a existência de uma alma conectada a ele, o desenvolvimento contínuo e a operação daquele

cérebro sustentaram a existência da alma, e que, à medida que a evolução prosseguiu, uma complexidade semelhante causou a ocorrência de almas semelhantes. A conexão entre uma alma e um cérebro que fica estabelecida é causal. São eventos neste cérebro particular que causam eventos nesta alma particular e eventos nesta alma particular que causam eventos neste cérebro particular; é disso que trata a conexão entre este cérebro e esta alma. Em qual estágio do processo evolutivo os animais começaram a ter almas e assim uma vida mental? Nós não sabemos. Mas, com bastante clareza seu comportamento mostra que os mamíferos têm mesmo uma vida mental. Minha posição é de que provavelmente todos os vertebrados têm uma vida mental, porque todos eles têm um cérebro semelhante ao cérebro humano, o qual, nós sabemos, causa a vida mental em nós. Do mesmo modo, o comportamento deles também é melhor explicado em termos de terem sentimentos e crenças. Cachorros e pássaros e (provavelmente) peixes sentem dor, mas não há razão para atribuir vida mental a vírus e bactérias, tampouco, penso eu, a formigas e besouros. Eles não têm o tipo de

cérebro que nós temos nem precisamos atribuir sentimentos e crenças a eles a fim de explicar seu comportamento. Segue-se que em algum momento particular da história evolutiva apareceu algo totalmente novo — consciência, uma vida mental, a ser analisada em termos de almas tendo propriedades mentais.[136] Meu argumento neste capítulo é um argumento de eventos mentais como instanciação de propriedades mentais em almas, e a respeito disso ele difere do “argumento” de Locke. A inexplicabilidade científica das almas e de sua vida mental Dadas as leis científicas tais como acreditamos que elas sejam, que operaram regendo o mundo inanimado pelos primeiros nove dos quinze bilhões de anos iniciais desde o Big Bang, não há a menor base para supor que a vida consciente evoluiria. As leis da Teoria da Relatividade e da Teoria Quântica, integradas talvez numa “Grande Teoria Unificada” ou “Teoria de Tudo” pela qual tudo que é físico pode ser explicado (inteira ou parcialmente mesmo se não completamente), não dão a menor razão para supor

que algum estado cerebral causaria uma sensação de verde ou um aroma de café que sentimos. Mas talvez haja mais em leis da natureza do que sistemas integrados relativamente simples de leis considerados numa vasta teoria física. Talvez haja também leis psicofísicas conectando cérebros e seus estados com almas e seus estados, que produziriam efeitos experimentados apenas quando os cérebros tivessem chegado a certo estágio de desenvolvimento. Uma vez que eventos cerebrais frequentemente causam eventos mentais, e eventos mentais frequentemente causam eventos cerebrais, os cientistas talvez pudessem estabelecer uma longa lista de conexões causais dessas nos seres humanos. A lista diria que os eventos cerebrais de certo tipo causam imagens azuis e que os eventos cerebrais de certo tipo causam imagens vermelhas; eventos cerebrais de outro tipo causam um forte desejo de beber chá; e que o propósito de comer torta junto com uma crença de que a torta está no armário causam os eventos cerebrais que causam movimentos das pernas na direção do armário, e assim por diante. Do mesmo modo, apenas possivelmente, os cientistas poderiam listar que

cérebros primitivos deram origem à consciência — ou seja, às almas. A razão pela qual eu escrevi “apenas possivelmente” é que nossas únicas razões para acreditar que qualquer outro organismo — seja algum animal cujo corpo foi formado por processos sexuais normais na Terra ou alguma criatura de outro planeta, ou alguma máquina feita numa fábrica — é consciente são dadas pela similaridade entre seu comportamento e organização cerebral e os nossos próprios. Não temos uma instância de averiguação independente de se ele é consciente. E quando as semelhanças não são fortes — como entre, digamos, sapos e seres humanos — não é de modo algum óbvio se o animal é consciente. Mas, deixemos de lado as dificuldades acerca de como essas coisas poderiam ser estabelecidas e suponhamos que temos listas de conexões causais nos humanos entre eventos cerebrais e eventos mentais e listas de que tipos de cérebro primitivo dão origem à consciência — ou seja, almas — nas quais eventos cerebrais subsequentes causam eventos mentais subsequentes e eventos mentais causam eventos cerebrais. Essas conexões causais constituem generalizações bastante pormenorizadas,

semelhantes a generalizações descritivas da Química acerca de que substâncias particulares se combinam sob que circunstâncias com que outras substâncias para formar que novas substâncias. Assim, a verdadeira teoria científica do universo consiste da esperada teoria física integrada somada a esses trilhões mais ou menos de conexões causais. Isso é imensamente improvável. Pelos critérios estabelecidos no Capítulo 3, uma teoria científica (de uma dada amplitude) é provavelmente verdadeira na medida em que tiver poder explicativo considerável e na medida em que for simples. Tal teoria psicofísica imaginada teria o poder explicativo requerido. (Ela nos levaria a esperar as correlações que encontramos — uma vez que elas seriam parte da teoria.) Mas seria tão complicada que seria imensamente improvável que ela fornecesse uma explicação plena da interação entre mente e corpo. Por isso, precisamos de uma explicação dessas conexões causais em termos de sua derivabilidade de uma teoria que consista de umas poucas leis relativamente simples que se encaixam (num modo em que as leis de nível baixo da Química se mostraram deriváveis da teoria atômica da Química).

A teoria precisaria explicar por que a formação de um cérebro com a complexidade tão grande quanto ou maior que a de certo animal (talvez a de um vertebrado primitivo) dá origem à consciência — ou seja, a uma alma com estados mentais. E a teoria precisaria explicar por que eventos cerebrais dão origem aos eventos mentais particulares que eles ensejam — por que um evento cerebral deste tipo causa uma imagem azul e um daquele tipo causa uma imagem vermelha e não vice-versa; por que comer chocolate causa os eventos cerebrais que causam o gosto que nós chamamos de chocolate ao invés do gosto que chamamos abacaxi? Ela precisaria explicar por que este evento cerebral causa o pensamento de que a Rússia é um país grande e que aquele outro causa o pensamento de que todo homem tem uma vocação; e por que este evento mental causa o evento cerebral que causa meus lábios proferirem esta frase e aquele evento mental causa o evento cerebral que causa meus lábios proferirem aquela frase. Uma mera lista de conexões causais seria como uma lista de frases de uma língua estrangeira que traduza frases de inglês, sem qualquer gramática

ou dicionário de palavras para explicar por que aquelas frases são traduções corretas. Na ausência de uma gramática e dicionário, você não está em posição de saber se a frase oferece a tradução correta em circunstâncias menos usuais (por exemplo, quando você está falando com uma criança ao invés de um adulto); e você não pode traduzir nenhuma nova frase. Analogamente, sem uma teoria psicofísica, você não pode predizer se as mesmas conexões ainda valerão quando alguma parte do cérebro estiver num estado menos usual, quanto mais predizer que eventos cerebrais de um novo tipo ensejariam que eventos mentais de um novo tipo e que novos tipos de máquina teriam sentimentos e quais não. Uma teoria da mecânica postulada com alto poder explicativo, que nos levasse a esperar um conjunto diferente de fenômenos mecânicos que não seriam esperáveis de outra maneira, será provavelmente verdadeira na medida em que for simples, tendo poucas leis, todas lidando com o mesmo tipo de coisa — objetos materiais, sua massa, forma, tamanho e posição e sua mudança de massa, forma, tamanho e posição. Objetos físicos

diferem uns dos outros quanto a estas propriedades de forma mensurável (um tem duas vezes mais massa que outro ou é três vezes mais longo que o outro). Pelo fato dessas propriedades serem mensuráveis, podemos ter leis gerais que relacionam duas ou mais quantidades medidas em todos os corpos por uma fórmula matemática. Não temos apenas que dizer que quando um objeto desta massa e nesta velocidade colide com um objeto daquela massa e naquela velocidade tal resultado acontece; e assim para inúmeros outros objetos. Podemos ter uma fórmula geral, uma lei dizendo que, para cada par de objetos materiais em colisão, a quantidade da soma da massa do primeiro multiplicada por sua velocidade mais a massa do segundo multiplicada por sua velocidade é sempre conservada. Mas isso só pode valer se a massa pode ser medida numa escala — por exemplo, de gramas ou libras; e do mesmo modo em relação à velocidade. Assim, uma teoria de mecânica pode facilmente ter simplicidade suficiente para torná-la provavelmente verdadeira se ele predisser suficientemente bem. Contudo, uma teoria psicofísica lidaria com coisas de tipo muito diferente. A massa, a

velocidade, a carga elétrica e outras propriedades físicas de objetos materiais são inteiramente diferentes de propriedades mentais de pensamento e sentimento que pertencem às almas. Propriedades físicas são mensuráveis. Assim, eventos cerebrais diferem uns dos outros nos elementos químicos envolvidos neles (os quais por sua vez diferem uns dos outros em maneiras mensuráveis) e na velocidade e direção da transmissão de carga elétrica. Mas, pensamentos não diferem uns dos outros com base em escalas. Um pensamento não tem duas vezes mais de algum tipo de significado que outro. Assim, não poderia haver uma fórmula geral mostrando os efeitos das variações nas propriedades de eventos cerebrais em eventos mentais, pois os primeiros diferem em aspectos mensuráveis enquanto os últimos não. E o que se dá com pensamentos se dá com eventos mentais de outros tipos. Um desejo por rosbife não se distingue de um desejo por chocolate por ter duas vezes mais de alguma coisa (é claro que as causas subjacentes de um podem ter duas vezes mais de algo que as de outro, mas isso não é a mesma coisa). Assim, não poderia haver uma fórmula geral mostrando como

certas variações nos eventos cerebrais produzem mudanças de desejos; apenas uma lista de que variações no cérebro causam que mudanças de desejo. E uma vez que sensações, pensamentos e outros não diferem de outras sensações, pensamentos e outros de modo mensurável, mais ainda obviamente sensações não diferem de pensamentos, ou propósitos não diferem de crenças de modos mensuráveis; e assim não pode haver uma explicação derivada de alguma fórmula geral simples de por que esse evento cerebral foi causado por um propósito e aquele causou uma crença e outro causou um gosto de chocolate. Não apenas os tipos de propriedade possuídos ocasionalmente pelos objetos físicos e pelas almas são diferentes, mas, ainda mais obviamente, os objetos físicos são tipos de coisas totalmente diferentes das almas. As almas não diferem umas das outras ou de qualquer outra coisa por serem feitas de mais ou menos quantidade de algo. Assim, seria apenas um fato bruto, na uma consequência de uma teoria mais profunda que nos humanos e animais conhecidos este grau de complexidade não dará origem a uma alma e aquele outro grau um pouco maior, dará. Pelo fato de que

não poderia haver uma explicação disso, não poderíamos dizer se um robô feito num laboratório seria ou não consciente. Acima de tudo, não poderia haver uma fórmula que tivesse a consequência de que este cérebro daria origem à minha alma e que aquele outro, à sua e não vice-versa. Por essas razões, não poderia haver uma explicação da correlação cérebro-alma, uma teoria cérebro-alma que fosse suficientemente simples para ser provavelmente verdadeira, mas apenas uma longa lista de conexões causais inexplicáveis. Poderíamos descobrir no máximo que havia tais conexões, não por que havia essas conexões. Mas, a ciência não nos surpreende sempre com novas descobertas? A história da ciência é pontuada com muitas “reduções” de uma área inteira da ciência a uma outra que parece totalmente diferente, ou “integração” de ciências aparentemente muito diferentes numa superciência. A Termodinâmica, ao lidar com calor, foi reduzida a Mecânica Estatística, que lida com velocidades de grandes grupos de partículas de matéria e colisões entre eles; a temperatura de um gás mostrou ser a energia cinética média dessas moléculas. As ciências

separadas da eletricidade e magnetismo se juntaram para formar uma superciência do eletromagnetismo. E então a Ótica foi reduzida ao Eletromagnetismo, pois a luz se mostrou ser uma onda eletromagnética. Como é que tais grandes integrações podem ser conseguidas se for correto meu argumento de que não poderia haver uma superciência simples e assim provavelmente verdadeira que prediga as conexões que encontramos entre eventos mentais e eventos cerebrais? Há uma diferença crucial entre esses casos. Toda integração anterior numa superciência com entidades e propriedades aparentemente muito distintas foram conseguidas afirmando-se que na verdade algumas dessas entidades e propriedades não eram como pareciam ser. A distinção era feita entre as entidades físicas subjacentes (não imediatamente observáveis) e as propriedades físicas, de um lado, e as propriedades sensoriais às quais elas deram origem. A Termodinâmica se ocupava originalmente das leis de troca de temperatura; e se supunha que a temperatura era uma propriedade inerente num objeto que você sentia quando tocava o objeto. O calor sentido de

um corpo quente é realmente qualitativamente distinto de velocidades de partículas e colisões. A redução da Mecânica Estatística foi conseguida pela distinção entre a causa subjacente do calor (o movimento das moléculas) e a sensação que o movimento das moléculas causa nos observadores e ao se dizer que, na verdade, temperatura era esse movimento e que aquela sensação era apenas o efeito da temperatura nos observadores. Feito isto, a temperatura fica naturalmente dentro do âmbito da Mecânica Estatística, pois moléculas são partículas; as entidades e propriedades não são agora de tipos distintos. Uma vez que as duas ciências agora lidavam com entidades e propriedades do mesmo tipo (mensurável), a redução de uma à outra se tornou uma perspectiva prática. Mas a redução foi conseguida ao preço de separarem-se o calor sentido de suas causas e só se explicarem estas últimas. Todas as outras “reduções” de uma ciência a outra e “integrações” de ciências separadas que lidam com propriedades aparentemente muito distintas foram conseguidas por este recurso de negar que as propriedades aparentes (como as “qualidades secundárias” de cor, calor, som, gosto)

com as quais uma ciência lidava realmente pertenciam ao mundo físico. Elas são relegadas ao mundo do mental. Mas, então, quando você vai enfrentar o problema dos próprios eventos mentais, isso não pode ser feito. Para explicar os eventos mentais, você não pode distingui-los entre eles e suas causas subjacentes e apenas explicar estas. O sucesso enorme da ciência em produzir uma físicoquímica integrada foi conseguido ao custo de banir do mundo físico as cores, cheiros e gostos e encarálos como fenômenos sensoriais puramente privados. O que os dados da história da ciência mostram é que o modo de se obter integração de ciências é ignorar o mental. O próprio sucesso da ciência em conseguir suas amplas integrações em Física e Química é aquilo mesmo que aparentemente excluiu qualquer sucesso final em se integrar o mundo da mente e o mundo da física. Como vimos no Capítulo 8, a teoria darwinista da evolução é capaz de oferecer a estrutura de uma explicação da evolução dos corpos humanos e animais, embora não, como sugeri, uma explicação completa ou última. Mas a explicação darwinista explicaria igualmente bem a evolução de

robôs inanimados. Não poderia o darwinismo nos dizer algo também sobre como os corpos vieram a se conectar com a consciência — ou seja, com as almas? A seleção natural é uma teoria de eliminação; ela explica por que tantas variações lançadas pela evolução foram eliminadas — elas não estavam adaptadas para a sobrevivência. Mas isso não explica por que elas foram lançadas inicialmente. No caso das variantes físicas (como o comprimento do pescoço da girafa), não há dúvida de que há uma explicação adequada em termos de uma mutação (uma mudança química casual) produzindo um novo gene com propriedades que causaram a nova variante aparecer de acordo com leis básicas da Química. Mas nosso problema é explicar por que algum estado físico causa e sustenta a existência de almas com propriedades mentais como crenças, desejos, propósitos, pensamentos e sensações, conectadas causalmente de um modo regular com estados cerebrais. O darwinismo não tem qualquer utilidade na solução deste problema. A teoria darwinista poderia, contudo, ser útil na solução de um problema diferente e certamente é útil na solução de um terceiro problema; mas

nenhum desses problemas deve ser confundido com o problema original. O primeiro desses problemas adicionais é por que, tendo uma vez aparecido na história evolutiva, os animais conscientes sobreviveram. A teoria darwinista pode ser capaz de mostrar que organismos conscientes têm alguma vantagem na luta pela sobrevivência em relação a organismos não conscientes programados a reagir ao meio de modos semelhantes. É difícil ver o que isso seria, mas talvez haja uma vantagem. O segundo problema adicional refere-se a algo ao qual o darwinismo poder oferecer uma resposta clara e, a meu ver, bastante obviamente correta. O problema é como se segue. Dada a existência de conexões mente-cérebro, e dado que organismos com uma vida mental serão favorecidos na luta pela sobrevivência, por que os eventos cerebrais que causam e são causados por eventos mentais são conectados com outros eventos corpóreos e extracorpóreos do modo como o são. Tomemos as crenças. Um evento cerebral causa a crença de que há aqui uma mesa. Esse evento cerebral é causado pelo impulso de um nervo que passa por um nervo ótico desde o olho quando a

imagem de uma mesa é formada no olho pelos raios de luz que chegam da mesa. Mas um animal poderia ter evoluído no qual o evento cerebral que causou a crença na mesa fosse causado por eventos bem diferentes no mundo externo. Por que essas conexões particulares entre o cérebro e o mundo externo? A resposta é evidente: animais com crenças têm mais probabilidade de sobreviver se suas crenças são em grande parte verdadeiras. Crenças falsas — por exemplo, acerca da localização de comida, predadores ou obstáculos — levariam à rápida eliminação na luta para se conseguir alimento e se evitar predadores. Se você acredita que não há uma mesa aqui quando de fato há uma, você se chocará contra ela e assim por diante. Aqueles nos quais os estados cerebrais que dão origem a crenças são conectados por ligações causais com o mundo externo num modo tal que a ligação causal é normalmente ativada apenas por um estado de coisas que causa o estado cerebral, que por sua vez causa crença de que aquele estado de coisas vale, irão normalmente ter crenças verdadeiras acerca do mundo e em consequência terão mais probabilidade de sobreviver. E assim como há uma vantagem

evolutiva se as crenças perceptuais estão conectadas com o mundo externo no modo certo, também haverá uma vantagem evolutiva se os procedimentos para formar novas crenças com base em crenças verdadeiras prévias usualmente levarem a novas crenças verdadeiras. É altamente improvável que esses procedimentos levassem a essa característica a menos que as criaturas usassem critérios corretos quanto a o que é indício para o que. Adquirimos nossas crenças sobre o mundo pela observação de características do mundo e então elaboramos teorias para explicar essas características que satisfazem os critérios de uma explicação provavelmente verdadeira, que eu analisei no Capítulo 3. O caso mais simples de aplicação desses critérios é a generalização simples. Ao observarmos várias pessoas ficando doentes após haverem comido certa fruta (quando a dieta e as circunstâncias de cada pessoa diferem da de outras em outros aspectos e ninguém que não comeu aquela fruta fica doente daquela maneira), pensamos como uma explicação provável da doença que ela foi causada pela ingestão da fruta. Isso permite uma extrapolação para “essa fruta sempre envenena”. É altamente provável que a

seleção natural assegure a sobrevivência dos organismos que usam critérios corretos de inferência e apenas desses organismos. Mas tudo isso requer que haja cérebros que originem várias crenças diferentes conectadas de vários modos com outras crenças e então a natureza selecione aquelas criaturas nas quais os procedimentos inferenciais corretos estejam incorporados. Do mesmo modo, dado que terei desejos causados por eventos cerebrais, há vantagens evolutivas em que eu tenha alguns em certas circunstâncias ao invés de outros sob outras circunstâncias — por exemplo, um desejo por alimento quando preciso comer ao invés de quando eu não preciso comer. O mesmo tipo de abordagem pode ser dado ao problema de por que os eventos cerebrais produzidos por intenções dão origem aos movimentos corpóreos pretendidos. Se, quando eu tentasse mover meu pé o que se movesse fosse minha mão, os predadores rapidamente me alcançariam. Mas essa explicação correta de por que (dado que as intenções causam eventos cerebrais) o cérebro é conectado pelos nervos ao resto do corpo no modo como o é não explica por que temos

intenções de mover nossos corpos e por que eles causam eventos cerebrais, o que é um problema bem diferente. Eu concluo que existência das características mais impressionantes e novas de animais e, acima de tudo, de humanos (sua vida consciente de sentimento, escolha e razão, causalmente conectadas com seus corpos) parece ficar imensamente fora do alcance da explicação científica bem sucedida. O argumento em favor de Deus E ainda assim há essas conexões causais regulares. Estas são conexões causais (em ambas as direções) entre tipos de evento cerebral e tipos de evento mental, tão detalhadas e específicas que é muito improvável que elas ocorram sem explicação; e, no entanto, é imensamente improvável que possa haver uma explicação científica das conexões. Conexões mente-cérebro são “estranhas” demais para a ciência explicar; elas não podem ser consequências de uma teoria científica mais fundamental e há simplesmente conexões diversas demais para se constituírem em leis. Porém, mais

uma vez, há a disposição uma explicação pessoal: sendo onipotente, Deus pode juntar almas a corpos. Ele pode causar as conexões entre eventos cerebrais e eventos mentais que há. Ele pode fazer isso ao causar as moléculas que se formam nos cérebros terem poderes de produzir eventos mentais nas almas às quais elas estão conectadas e as susceptibilidades de executar as intenções de almas assim conectadas (novos poderes e susceptibilidades não derivados dos comuns, que a Química analisa). E ele pode fazer as próprias almas em primeiro lugar e escolher a que cérebro (e, portanto, que corpo) cada alma deve se conectar quando eventos cerebrais do feto requerem que uma alma seja conectada ao cérebro. Deus tem boas razões para causar a existência de almas e juntá-las a corpos dado o que há de bom (acerca do que eu comentei no Capítulo 6) na existência de agentes humanamente livres que precisariam ter corpos por meio dos quais teriam sensações agradáveis, formariam crenças verdadeiras em geral sobre o mundo e estabeleceriam seus próprios propósitos à luz dessas crenças, e que fariam diferença no mundo. Eu argumentei que

havia uma probabilidade significativa de que Deus faria criaturas assim. Sua existência envolve a existência de conexões causais regulares entre eventos mentais e eventos em seus corpos. Dado que os humanos são agentes humanamente livres, isso envolve conexões causais regulares entre eventos mentais e eventos nos cérebros humanos. Não podemos fazer diferença no mundo se, a cada vez que tentamos mover nossa perna, outro efeito diferente é causado no cérebro e deste no corpo — uma hora o braço se move, noutra hora nos vemos espirrar, e assim por diante. Do mesmo modo, para discriminarmos entre um objeto e outro, eles devem parecer (serem sentidos, etc.) diferentes, e assim, deve haver uma conexão causal regular entre eventos cerebrais causados por objetos de cada tipo e as impressões visuais mentais deles. E para termos o admirável poder de reprodução, deve haver conexões regulares entre nossos atos sexuais, o feto ao qual eles dão origem e alguma alma ou outra ligada a esse feto. Deus tem razão de estabelecer todas essas conexões. Ele pode ter uma razão de fazer este estado cerebral causar uma sensação de vermelho e aquele outro, uma sensação de azul ao

invés do contrário, mas, se não há razão particular para que uma conexão seja melhor que uma rival, Deus tem razão de produzir uma conexão ou outra por uma escolha aleatória. Ele pode ter uma razão de juntar esta alma a este corpo em particular, mas, novamente, se não há razão para juntar uma alma a um corpo ao invés de a um corpo diferente, ele tem razão de produzir uma conexão ou outra por escolha aleatória — ou seja, de fazer com que seja uma questão de acaso qual conexão vale. Assim, porque temos toda razão de acreditar que não pode haver teoria científica e, portanto, leis científicas correlacionando estados cerebrais com almas e seus estados, temos toda razão de acreditar que as conexões causais que existem entre eles não têm uma explicação científica em termos das propriedades de estados cerebrais; elas são conexões causais adicionais independentes do conjunto de leis científicas que governam o mundo físico. Nada no mundo físico torna minimamente provável que haja tais conexões. Admita que e represente a existência de almas com estados mentais conectados com estados cerebrais em modos que vimos analisando; seja k as premissas dos argumentos dos capítulo

anterior — que há um mundo físico governado por leis do tipo analisado no capítulo 8 com leis e condições limite sintonizadas de modo a permitir a existência de corpos humanos; e seja h como antes a hipótese do teísmo. Então P(e/~h&k) é muito baixa. Mas, por todas as razões analisadas no Capítulo 6, um Deus tem boa razão de criar seres humanos (e boa razão de criar animais); assim, P(e/h&k) tem um valor moderado. Assim, o argumento da consciência é um bom argumento C-indutivo em favor da existência de Deus. O argumento da consciência que apresentei agora com algum rigor, espero eu, captura numa forma precisa o sentimento de assombro que muitas pessoas têm quando, conscientes da teia de leis físicas que governam objetos físicos inanimados como elétrons, prótons e fótons, operando através do espaço e do tempo sem fim, são também conscientes de algo bastante diferente, interagindo com objetos físicos em regiões bem limitadas do espaço (tal como os corpos humanos na Terra) num período bastante limitado de tempo. Aqui, sentiram elas, há algo fora daquela teia de leis físicas — que precisa de explicação de um tipo diferente —

explicação em termos da ação de um agente em certos aspectos semelhante aos agentes humanos cuja existência precisa de explicação. Aqui, sentiram elas, há pegadas evidentes do divino. Eu tenho argumentado que esse sentimento é justificado.[137] Agentes humanamente livres precisam, a fim de desenvolverem uma ciência e uma metafísica, primeiro da habilidade de formarem conceitos metafísicos e científicos; e então da habilidade de formular teorias científicas e metafísicas. Dado tudo isso, eles têm então a escolha de propor e testar tais teorias ou de não se importarem em fazê-lo. É bom entender o mundo e usar a ciência para melhorar a condição humana. A descoberta científica e metafísica é uma atividade comunal e nem todos precisam ter a habilidade de fazer as descobertas necessárias desde que outros possam usar os resultados dessas descobertas e assim, numa medida pequena, testá-las por si mesmos. Mas realmente é preciso que haja gênios para haver progresso. Além disso, para que todos os humanos sejam capazes de adorar a Deus, eles precisarão ser capazes de desenvolverem alguns conceitos bastante sofisticados (onipotência, onisciência, etc.). Defendi

no capítulo 6 que é bastante provável que Deus crie agentes humanamente livres com essas habilidades. Assim, mais uma vez, há boa razão para supor que, se Deus existe, haverá agentes desse tipo e nenhuma razão para supor que eles evoluirão se Deus não existe — por que a evolução não pararia no nível dos macacos? Dado que os humanos começaram a evoluir, tal desenvolvimento conceitual deve ter-lhes dado uma vantagem seletiva que asseguraria sua sobrevivência. Mas sem um tipo particular de bioquímica não ocorrerão os tipos de mutação que vão permitir progressos posteriores. Não há razão particular para esperar que qualquer bioquímica permitirá mutações daquele tipo a não ser que Deus exista, que tem razão de dar à base bioquímica da mente este poder causal particular.

O argumento da verdade moral A consciência moral está confinada aos mesmos seres conscientes que têm consciência metafísica. Muitos teístas sustentaram que por meio da moralidade Deus se faz conhecido intimamente aos seres humanos. Classicamente, encontramos um argumento da moralidade em favor de Deus em Kant — embora ele negasse vigorosamente que estava formulando algo que pudesse ser propriamente chamado um argumento[138]; encontramo-lo também em autores do final do século dezenove e início do século vinte que, quando os argumentos do desígnio saíram de moda, apreciavam esse como seu argumento favorito. É crucial distinguir dois argumentos distintos da moralidade. Primeiro, há o argumento do fato de que há verdades morais e em segundo lugar há o argumento da consciência humana das verdades morais. Eu começo com o primeiro. Ele, obviamente, toma como dado em sua premissa o objetivismo moral — que os juízos morais têm valores de verdade. Se não há verdades morais, então não há verdade sobre o mundo a partir da qual

esse argumento possa partir. O problema então surge, dado que os juízos morais são proposições com valores de verdade, se as proposições morais verdadeiras são logicamente necessárias ou logicamente contingentes. Um argumento que afirma que a melhor explicação da existência da moralidade é a ação de Deus que a criou deve afirmar que muitas verdades morais são (logicamente) contingentes, pois a existência dos fenômenos descritos pelas verdades (logicamente) necessárias não precisa de explicação. Não é necessário explicação de que todos os solteiros são não casados ou que, se você adicionar dois a dois você terá quatro. Essas coisas valem inevitavelmente e necessariamente, exista Deus ou não. Ora, certamente, se há verdades morais, muitas dessas verdades morais são contingentes. Que qualquer ação feita por Hitler às 10h da manhã no dia 3 de dezembro de 1940 era moralmente má, se verdadeira, é assim claramente contingente; pois é coerente supor que Hitler pudesse ter feito uma boa ação naquele momento. E se é verdadeiro que é bom dar £10 para algum mendigo, é claramente uma verdade contingente, cuja verdade depende de

se ele vai gastá-las com drogas que vão lhe matar ou com alimento que evitará que ele morra de fome. E, plausivelmente, se matar certo humano é errado pode também depender de circunstâncias contingentes tais como se ele está tentando matar você ou se ele é simplesmente uma pessoa inocente qualquer. Geralmente, ações podem ser descritas simplesmente por suas coordenadas espaçotemporais ou pela descrição que deixe em aberto seu status moral. Contudo, ações não podem ser apenas obrigatórias ou corretas ou erradas. Elas podem ser obrigatórias, ou corretas ou erradas em virtude de possuírem certas propriedades naturais (ou seja, propriedades que poderiam ser reconhecidas por alguém sem conceitos morais). E, uma vez que se descreveu uma ação em termos de todas as propriedades naturais que ela possui (em termos de todas as suas circunstâncias e efeitos) então — se ela for errada — ela será necessariamente errada; e — se for correta — será necessariamente correta. Isso porque, se uma ação for correta e outra ação imaginada for errada, deve haver alguma característica natural que a segunda ação tenha e que a primeira ação não tenha que faça a segunda ação

errada. Não é coerente afirmar que a é errado e que b não difere de a em qualquer propriedade natural, mas que, diferentemente de a, b é correta. Não poderia haver um mundo que fosse diferente do nosso apenas no fato de que homicídio fosse errado aqui, mas correto lá. Deveria haver alguma característica natural do outro mundo que fizesse o homicídio ser correto lá — por exemplo, que as pessoas assassinadas lá rapidamente recuperam a vida. Segue-se, dado o objetivismo moral, que afirmações contingentes de que algumas ações são corretas (ou erradas) valem em virtude de verdades contingentes de que a ação tem certas propriedades naturais e verdades necessárias de que ações com aquelas propriedades são corretas (ou erradas, conforme o caso). Princípios morais fundamentais devem ser (logicamente) necessários.[139] Ora, se os princípios morais básicos são necessários, a existência do que eles descrevem não pode fornecer um argumento para a existência de Deus. Um argumento poderia se originar apenas da verdade de uma ou todas as verdades morais contingentes (por exemplo, do fato de que é errado jogar bombas atômicas no Japão ao invés do fato de

que é errado matar pessoas que certamente não voltarão a viver de novo). O fato de que certas verdades morais valem pode confirmar, aumentar a probabilidade da existência de Deus apenas se for mais provável que essas verdades morais valham se Deus existe do que se Deus não existe. As verdades contingentes de que as ações a, b, c, d são obrigatórias (ou corretas ou erradas, conforme o caso) dependem de a, b, c, d possuírem certas propriedades naturais Q, R, S, T, que de forma logicamente necessária as farão obrigatórias (ou o que quer que seja). Assim, para haver um argumento em favor da existência de Deus com base no fato de certas ações serem obrigatórias, ele terá uma estrutura mais o menos como se segue: as ações a, b, c, d, são obrigatórias; elas não seriam obrigatórias a menos que fossem Q, R, S, T. É mais provável que elas sejam Q, R, S, T se Deus existir do que se não existir; portanto, a obrigatoriedade de a, b, c, d confirma a existência de Deus.[140] Os candidatos mais plausíveis para ações que não seriam obrigatórias a não ser que Deus existisse são ações como manter promessas e dizer a verdade, para cuja obrigatoriedade não há uma justificação

utilitária fácil. Partindo da obrigatoriedade de tais ações, poderíamos construir um argumento kantiano conforme a seguinte estrutura. (Embora este argumento esteja bastante no espírito da Crítica da Razão Prática de Kant, ele próprio nega que esteja formulando um argumento em favor da existência de Deus — vide minha nota 4, p. 349). “Manter promessas é sempre obrigatório. Mas uma ação é obrigatória se e somente se conduz à perfeição do universo — o que Kant chama de summum bonum. É mais provável que manter promessas vá conduzir ao summum bonum se Deus existe do que se Deus não existe (Isso é assim, é necessário dizer, porque manter promessas secretas a pessoas à morte seria sem sentido se não existisse vida após a morte, na qual aquele ao qual se prometeu possa perceber que a promessa foi mantida; e é mais provável que haja vida após a morte se Deus existe do que se Deus não existe.) Portanto, a obrigatoriedade de manter promessas confirma a existência de Deus”. Esse argumento é válido, mas suas premissas primeira e terceira são altamente questionáveis. Alguns negarão a primeira premissa — que manter promessa seja sempre obrigatório. Outros negarão a terceira

premissa — que é mais provável que manter promessas levará ao summum bonum se Deus existe do que se Deus não existe, pois eles diriam que o próprio ato de manter promessas com o tal contribui para o summum bonum e quaisquer consequências adicionais são irrelevantes. Um moralista de tendência teleológica tenderá a negar a primeira premissa e outras semelhantes a ela; e um moralista de tendência deontológica tenderá a negar a terceira premissa e outras semelhantes a ela. O que acontece para o argumento particular que eu descrevi é passível de acontecer com argumentos semelhantes (por exemplo, aqueles que apelam em sua primeira premissa para o caráter invariavelmente errado de mentir). É claro que tanto a primeira quanto a terceira premissas podem ser verdadeiras mesmo que a maior parte das pessoas tenha uma inclinação inicial de negar uma ou outra. Mas, para fazer o argumento funcionar, você precisaria de argumentos para mostrar que a primeira e a terceira premissas são verdadeiras. Como está, o argumento não é bom (pelo fato de que as premissas não são aceitas pelas partes em disputa). Sou muito pessimista acerca das perspectivas para se devotar mais tempo na tentativa

de suplementar o argumento com bons argumentos para sustentar suas premissas. Uma razão para isso é que eu não posso ver como alguém que sustenta ou a primeira ou a terceira premissas, mas não a outra vai se persuadir por um processo de argumento racional a sustentar a que falta, a menos que ele primeiro seja persuadido por algum outro argumento de que Deus existe. Por essa razão, não posso ver força nenhuma num argumento em favor da existência de Deus com base na existência da moralidade. O argumento da consciência moral Muito diferente do argumento a partir do fato de que há verdades morais é o argumento da consciência humana de verdades morais significativas. Para que os seres humanos façam mesmo escolhas significativas eles devem ter os conceitos de bem e mal moral (no meu sentido de bem e mal em geral). Eles devem ser capazes de ver algumas ações como boas de serem feitas e, dentre estas, devem ser capazes de ver algumas como obrigatórias; e de ver

algumas ações como más e, dentre estas, algumas como erradas. Argumentei anteriormente no sentido de que, a fim de se fazer qualquer ação, um agente deve vê-la em algum sentido como uma boa ação; e assim, segue-se meramente do fato do agente ter intenções que ele terá o conceito de uma ação ser boa (e assim o conceito de uma ação ser má). Mas o seu entendimento do bem poderia ser extremamente limitado. Ele poderia ver o bem de uma ação meramente em termos de a ação ser boa de ser feita, simplesmente por si mesma (ele apenas quer fazê-la e não sabe por que) ou por que produz sensações prazerosas. Ele poderia não ter nenhum conceito da distinção entre o que ele desejasse fazer e o que seria (em geral) desejável (bom) de se fazer; e assim nenhuma concepção quanto a uma ação seria boa porque faz outras pessoas felizes, aumenta suas vidas ou cumpre uma promessa, ainda que ele não deseje (queira) fazer a ação. Para Deus nos dar escolhas significativas, ele deve nos assegurar que desenvolvamos esse tipo de consciência moral. Mas se Deus não existe, quão provável é que criaturas corpóreas com uma vida mental progredirão até esse estágio? Se mutações genéticas

produzem criaturas naturalmente inclinadas a se comportarem altruisticamente em relação a outras de sua comunidade (embora não pareça haver qualquer razão particular por que a bioquímica animal devesse ser de tipo tal que essas mutações ocorressem), então pode muito bem haver uma boa explicação darwinista para a sobrevivência delas. [141] Isso porque uma comunidade de criaturas que ajudem umas às outras (defendem os outros da comunidade contra os predadores, dividem as tarefas de modo que alguns cuidam dos mais novos enquanto outros vão a busca de comida e assim por diante) pode bem ter mais probabilidade de sobreviver que um grupo de criaturas que não ajudam umas à outras. Tais criaturas podem ajudar umas à outras espontaneamente e naturalmente, como o fazem muitos grupos de animais. Mas, ter o entendimento de tais ações como moralmente boas (mesmo quando não as desejamos) é algo para além do simples comportamento altruísta.[142] E não parece haver qualquer razão particular pela qual algum mecanismo de interação mente-corpo que leve criaturas a ter crenças deva produzir crenças morais. As criaturas precisariam de estados cerebrais

com o poder de produzir crenças morais ou da habilidade de adquiri-las; e assim seus genes precisariam produzir mutações que causariam tais estados cerebrais e por esse propósito eles precisariam de tipos especiais de gene. Assim, embora Deus dê a algumas criaturas crenças morais como características essenciais do fato de serem agentes humanamente livres, não há qualquer razão particular pela qual qualquer processo que dê às criaturas crenças deva lhes dar crenças morais. Isso se mostra pelo fato de que, tanto quanto sabemos, há muitas espécies de animais que são naturalmente inclinadas a ajudar outros de sua espécie e ainda assim não têm crenças morais — não há razão para supor que leões e tigres tenham crenças morais ou mesmo que possam desenvolvê-las. Um tigre pode desejar e assim crer que é uma coisa boa ajudar outro tigre em dificuldade sem acreditar que seja de suma importância ajudar outros tigres em dificuldade quando ele não quisesse fazê-lo.[143] Contudo, se Deus aliasse a algum gene produzido por mutação de criaturas de alguma comunidade o poder causal de produzir crenças morais ou a habilidade de adquiri-las, então tais crenças

reforçariam qualquer vantagem seletiva presente numa inclinação natural para o comportamento altruísta. Isso porque as crenças morais moveriam essas criaturas para o comportamento altruísta quando faltasse a inclinação natural. Ao passo que ter um desejo de fazer uma ação que é de fato moralmente boa não requer que a crença seja moralmente boa, a crença de que alguma ação é moralmente boa de fato requer um desejo, embora fraco, de fazer aquela ação — conforme sustentei no capítulo 5. Você não poderia realmente acreditar que é moralmente bom confortar alguém em dificuldade a menos que você tivesse um mínimo desejo de ajudá-lo, mesmo que você tenha forte desejo de fazer outras coisas ao invés disso. E, como também defendi no capítulo 5, ter uma escolha livre entre fazer o que você acredita ser bom e o que você acredita ser mal requer ter um desejo forte pelo último. Sem tentação, um desejo forte de fazer o que é mal, não haveria escolha livre entre bem e mal. A escolha moral requer consciência moral e desejos bons e maus. E, é claro, nosso mundo é cheio de bons e maus desejos. Há um amor natural dos pais pelos filhos, de homem por mulher, de

amigo por amigo que inclui desejos de eliminar o sofrimento e promover o bem-estar dos outros. E há também desejos por fama e fortuna maiores que os outros têm e desejos de matar e mutilar os outros. Minha proposta é que, igual a outros fenômenos discutidos nos capítulos 7 e 8 e no começo deste capítulo, não há grande probabilidade de que a consciência moral ocorrerá num universo sem Deus e uma probabilidade cada vez maior, quanto mais fenômenos consideramos, de que eles todos ocorrerão — por exemplo, não apenas existirá um universo, mas ele será governado por leis simples, etc., etc., e conterá seres conscientes com consciência moral. Contudo, defendi no capítulo 6, um Deus tem razão significativa de dar origem a seres conscientes com consciência moral (e com outras características que ainda serão discutidas) e assim, levar a efeito todos os fenômenos discutidos previamente que sejam necessários para sua existência. A razão para Deus dar consciência moral aos humanos é de lhes dar uma escolha livre entre bem e mal. Eu defendi brevemente no capítulo anterior que há razão para supor que nós realmente temos livre arbítrio. Essa “razão significativa” tornou

significativamente provável que Deus produziria um universo no qual houvesse agentes humanamente livres (assim como as condições necessárias para sua existência); e eu dei a essa probabilidade o valor um tanto arbitrário de ½. Essa probabilidade acarreta que haverá uma probabilidade muito maior do que ½ de que Deus criará cada uma das condições necessárias particulares (um universo físico, governado por leis físicas, que são tais que, junto com condições limite, levam à existência de corpos humanos, os quais são corpos de seres conscientes que têm consciência moral) para tanto. Isso porque a probabilidade de que Deus criará agentes humanamente livres é igual ao produto das probabilidades de que ele criará cada uma dessas condições necessárias. Ao mesmo tempo, à medida que consideramos mais e mais fenômenos, a probabilidade de que eles todos ocorrerão se Deus não existe diminui cada vez mais. Assim, o fato da consciência moral oferece mais um argumento Cindutivo em favor da existência de Deus.

10. O argumento da providência Se tivéssemos escolha entre formar intenções de fazer boas ações e intenções de fazer más ações, mas nossas intenções nunca fizessem qualquer diferença no que acontece, estaríamos vivendo num mundo enganador. Um Deus bom não nos sujeitaria a um engano tão radical. E um Deus que quisesse nos dar escolhas livres significativas nos daria escolhas eficazes, escolhas que fizessem diferença importante para nós mesmos, de uns para os outros e para o mundo físico. Defendi no Capítulo 6 que Deus teve muito boas razões para criar agentes humanamente livres com responsabilidades significativas por si mesmos, uns pelos outros e pelo mundo. Neste capítulo, eu descrevo o enorme âmbito de responsabilidades possuídas pelos seres humanos. Este argumento das oportunidades que temos para fazer diferenças significativas eu chamo de argumento da providência. O mundo no qual estamos é, neste sentido muito importante,

providencial. O argumento ecoa ideias sugeridas por muitos pensadores nos últimos dois ou três milênios, mas eu não conheço ninguém que os tenha reunido na forma de um argumento preciso em favor da existência de Deus. Contudo, estas oportunidades de fazer diferenças significativas a ocorrência de males reais[144] e a ocorrência possível de muito mais males. A questão que inevitavelmente surge é a de se Deus teria direito de nos dar estas oportunidades em vista dos males que elas trazem consigo. Eu vou brevemente chamar a atenção neste capítulo aos muitos males necessários para que tenhamos estas oportunidades e então considerar no próximo capítulo se permitir estes e alguns outros males também necessários para aqueles e outros propósitos compatíveis com a bondade de Deus. A oportunidade do ser humano de prover por si mesmo É um grande bem para os seres humanos serem capazes de causarem efeitos em si mesmos — de escolher como devem viver, se vão adquirir conhecimento do mundo e de ter a oportunidade de

formar seu próprio caráter, ou seja, de ter o que posso chamar de uma escolha de destino. O simples fato de ter um corpo (como o defini no capítulo 6) envolve ter uma sala de máquinas por cuja manutenção nós somos responsáveis. Temos a escolha de continuar a existir (dando a nós mesmos alimento e bebida), de proporcionar prazer e dor a nós mesmos pelo que fazemos com nossos corpos, prejudicando ou aumentando os poderes de nossos corpos (pelo descanso, exercício e sono). Mas o âmbito de escolha é grandemente alargado pelo fato de vivermos num meio no qual a geografia oferece perigos, o alimento é limitado, há predadores e outros seres humanos competem conosco pelas coisas que satisfarão nossos desejos. O meio geográfico é perigoso — há rios e mares onde podemos nos afogar, abismos dos quais podemos cair, florestas onde podemos nos perder e climas nos quais podemos congelar. O alimento é limitado — plantas comestíveis crescem em alguns lugares, mas não em outros e animais que podemos comer precisam ser capturados. Existem predadores — os primeiros seres humanos tiveram de evitar

tigres e cobras. E outros seres humanos também desejaram comida, bebida, abrigo e parceiros; eles estavam competindo uns com os outros. Neste meio, os seres humanos tiveram de aprender a sobreviver e florescer e isso se tornou um assunto complicado, com uma faixa de escolhas de ações de curto e longo prazo. Os seres humanos tiveram de aprender a caçar animais terrestres, pescar peixes, cultivar plantas e escolher o método de obter alimento que mais provavelmente produziria os melhores resultados em seus meios específicos. Tivemos de aprender a construir abrigos, em lugares onde outros homens teriam dificuldade de destruí-los a fim de usar o material para construir seus próprios abrigos, e assim por diante. Deus que procura assegurar nosso bem-estar e quer o melhor para nós, tem razão de nos dar um âmbito de escolhas no qual objetivos mais valiosos possam ser obtidos com mais esforço e políticas de longo prazo. Mas a simples operação de algumas leis da bioquímica que produziram corpos humanos poderia tê-los colocado num meio mais fácil. Os rios poderiam ser todos rasos, poderia não haver abismos, a comida poderia ser abundante, poderia não haver predadores para os

seres humanos, poderia haver abrigo para todos e poderíamos todos ter poucos filhos de modo a que houvesse pouca competição por abrigo e outros bens. Para que os seres humanos tivessem escolha significativa de aprender (ou não se importar em aprender) várias coisas necessárias para sua sobrevivência e florescimento num meio perigoso, eles tinham de começar sem conhecê-las. Para que eles pudessem mesmo sobreviver até terem adquirido conhecimento, eles precisariam de desejos e aversões naturais que os guiassem. E, é claro, a natureza os provê. Há desejos naturais por comida, sono, bebida e relação sexual que asseguram nossa própria sobrevivência e a de nossa raça até aprendermos as consequências de comer e não comer, de dormir regularmente ou de ficar sem dormir, e assim por diante. E há aversões naturais — ao escuro e à altura. E há sensações dolorosas biologicamente úteis que sentimos quando tocamos em objetos quentes ou pontiagudos, que nos levam instintivamente a não fazer essas coisas novamente. Porém, à medida que aprendemos como o mundo funciona, temos a escolha de assumir o risco de

caminhar no escuro ou em caminhos próximos a um precipício ou de evitar o perigo. Já chamei a atenção, nos capítulos 8 e 9, às duas características cruciais do mundo que tornam possível para nós descobrir os efeitos de nossas ações — as regularidades no comportamento das coisas; e o nosso adquirir crenças sobre essas regularidades e usar aqueles padrões de inferência a partir delas que se mostrem bem sucedidos e, assim (dada a seleção natural), sobreviver na raça humana. É altamente improvável que nossas inferências sejam bem sucedidas a menos que usemos critérios corretos acerca do que é indício para o que. Notei no capítulo 9 que precisamos de tipos particulares de habilidade mental a fim de fazer ciência. Porém, há duas características particulares de nosso universo que, respectivamente, tornam essa tarefa desafiadora e também possível. A primeira característica, para a qual chamei a atenção no capítulo 8, é de que as leis fenomênicas nas quais naturalmente confiamos e cujo conhecimento nós naturalmente estendemos por generalização simples dependem de leis fundamentais. É essa característica que torna a busca de conhecimento científico mais do que mera

questão de descobrir relações entre fenômenos observáveis, mas uma questão de propor e testar teorias profundas. Isso torna a escolha quanto a se fazer ciência fundamental uma escolha muito significativa para indivíduos e sociedades quanto ao uso de tempo, energia e dinheiro. A segunda característica é que a inteligência humana seria incapaz de descobrir as leis fundamentais a menos que estas leis fossem tais que permitissem a construção de instrumentos que nos permitissem detectar o que estivesse acontecendo em pequena escala e a uma longa distância. Para fazer a ciência progredir, precisaríamos de microscópios e telescópios; a menos que a luz (e outra radiação magnética) pudesse ser refratada e refletida por vários materiais (inicialmente, o vidro), a natureza não teria revelado seus segredos. À medida que descobrimos as leis fundamentais, podemos escolher se construímos bombas atômicas, se mandamos foguetes para a lua, se curamos o câncer ou se não ligamos para nada. Um Deus generoso procuraria dar aos seres humanos uma gama de escolhas. Contudo, a não ser por Deus, não teríamos razão particular para esperar que devesse haver essa

sempre crescente variedade de escolhas. É uma escolha adicional altamente significativa a de ser capaz de gradualmente ir mudando o caráter — de fazer com que algumas ações heroicas que não podemos agora escolher fazer se tornem, ao fim das contas, naturais para nós; ou, alternativamente, de ser capaz de formar o caráter como consequência de uma característica contingente crucial de sua natureza — de que fazer uma boa ação quando é difícil torna mais fácil fazer uma boa ação na vez seguinte; e que fazer uma má ação quando não é muito difícil resistir fazê-la torna mais natural fazê-la na vez seguinte. Cada escolha, para bem ou para mal, muda um pouco a gama de ações que se abrem para nós — escolhas boas frequentes tornam ações heroicas sérias possibilidades para nós, quando anteriormente não eram opções reais; ações más frequentes tornam ações realmente ruins parte da gama de possibilidades psicológicas. Os seres humanos podem, desse modo, formar seu caráter. Num mundo sem Deus não há razão para esperar que, mesmo dado que criaturas façam escolhas morais, essas escolhas afetem seu caráter dessa maneira. Poderia ser tão difícil mostrar coragem

depois de ter mostrado coragem em inúmeras ocasiões anteriores quanto numa ocasião na qual você nunca tenha mostrado coragem antes. Porém, um Deus que nos queira dar escolhas realmente significativas nos daria essa escolha de formar nosso caráter, para bem ou para mal. Contudo, eu sugiro, ele asseguraria que nosso caráter se formasse apenas por meio de uma série de escolhas ao longo do tempo, expressando uma determinação firme, e não meros impulsos repentinos de nos tornarmos ou nos deixar tornar certo tipo de pessoa. Tudo isso, é claro, se aplica ao nosso universo. A oportunidade do ser humano de prover pelos outros Até aqui falei sobre agentes individuais e o quanto é desejável que eles tenham controle sobre seu próprio destino. Tenho os considerado como se cada um vivesse como Robinson Crusoé em sua própria ilha. Porém, em nosso mundo, certamente as coisas não são assim. Os seres humanos são interdependentes num grau enorme. O próprio nascimento de um ser humano requer a cooperação

de um homem e uma mulher. E quando uma sociedade se organiza ao ponto de haver especialização de trabalho (um é carpinteiro, outro é pedreiro, outro é oleiro, outro é fazendeiro e assim por diante), atinge-se um padrão de vida para todos que seria difícil senão impossível alcançar se cada pessoa fizesse sozinha todas as tarefas. E, é claro, construir aviões, cíclotrons e radiotelescópios, e mandar pessoas para a lua é algo bastante impossível sem cooperação. Um mundo no qual coisas boas só podem ser conseguidas por cooperação é um mundo que Deus tem razão de fazer — pois cooperação numa tarefa valiosa é uma coisa boa; e é bom que tenhamos a oportunidade de cooperar quando a cooperação faz diferença. Nosso mundo é desse jeito. Tudo aquilo que tenho sugerido até agora é que é bom que o mundo seja de modo que A possa beneficiar B, e que B possa também beneficiar A, caso eles possam concordar em trabalhar juntos. Num mundo assim, porém, beneficiar os outros sempre trará sua recompensa para o beneficiador. Dependência pode ir muito além disso. Podemos, por exemplo, ter uma situação na qual A pode

beneficiar B, mas B não pode beneficiar A, embora ele possa beneficiar C. Um mundo com a oportunidade de benefício não retribuído é uma coisa boa? Claro que sim, pois, para mim, é um grande bem beneficiar você, ser capaz de dar coisas a você e fazer coisas por você. Pense em como seria mal se nunca pudéssemos ser úteis para ninguém. E se Deus cria um mundo no qual podemos beneficiar outros sem recompensa, então ele cria um mundo no qual podemos partilhar seu trabalho criativo nos mesmos termos (não recompensados) que ele mesmo. Nosso mundo é cheio de oportunidades para esse benefício. Um caso óbvio é proporcionado pela relação pai-filho. Em sua infância, um ser humano depende muito fortemente para sua existência e saúde, para seu conhecimento do mundo e para o encorajamento de desenvolver seu caráter, de seus pais e outros, incluindo médicos e professores. À medida que pais e filhos envelhecem, os pais podem se tornar dependentes de seus filhos. Mas os pais podem morrer antes de precisar que seus filhos cuidem deles. Porém, nossos filhos, por sua vez, podem dar coisas boas para seus próprios filhos. É especialmente bom que as pessoas tenham

a oportunidade de ajudar outras e mostrar sua preocupação com os outros quando os outros estão em má situação. É um privilégio para alguém ser capaz de cuidar dos fracos, ajudar os doentes e conversar com os solitários. É uma boa coisa não apenas que os agentes possam precisar cooperar uns com os outros e que dependam dos outros, mas que eles gostem de fazer isso e, mais geralmente, que eles tenham prazer em colaborar no trabalho com os outros, em ajudar os outros e na simples companhia deles. Mais uma vez, nosso mundo tem fartura desse tipo de prazer. De fato, é um mundo no qual as criaturas têm uma variedade de tipos de prazer pela satisfação de suas necessidades. Há a necessidade de ter pais, de ter filhos, de ter uma companhia permanente, de amigos, de conhecidos casuais, de colegas com os quais colaborar nas horas de trabalho em um projeto comum. O mundo é tal que a colaboração, o companheirismo e o serviço de tipos variados é útil, dá prazer e é querido por si mesmo. É bom também que o mundo seja tal que haja oportunidade para um tipo de cooperação entre muitas pessoas, ao longo de várias gerações, no sentido de construir o

conhecimento humano e estender o poder humano. Essa cooperação na aquisição de conhecimento tem, em alguns casos, acontecido há muitas gerações — às vezes, gerações de investigadores (especialmente cientistas) ajudaram um ao outro e trabalharam conscientemente a fim de acrescentar seu pouco ao corpus do conhecimento. Contudo, as pessoas parecem apenas começar a assumir as oportunidades que existem para cooperação em finalidades de longo prazo. O planejamento de cidades, escolas e populações de modo a prover pelo bem-estar de pessoas com antecedência de muitas décadas é algo ao qual os políticos só deram muita atenção recentemente. Contudo, na medida em que o conhecimento e o poder crescem, a oportunidade e o poder para esse tipo de planejamento crescem radicalmente. Ao mesmo tempo em que é bom que as pessoas tenham a oportunidade de se beneficiarem umas às outras, é bom que elas tenham oportunidade de prejudicar umas às outras? Sugeri no capítulo 6 que é. Um Deus tem o poder de beneficiar ou de prejudicar. Se outros agentes devem ter uma parcela em seu trabalho criativo, elas devem

ter esse poder também (embora, talvez, num grau menor). Um mundo no qual agentes possam beneficiar uns aos outros, mas não prejudicar uns aos outros, é um mundo no qual eles têm apenas responsabilidade muito limitada uns pelos outros. Se minha responsabilidade por você é limitada a se posso ou não dar a você uma filmadora, mas não posso fazer você infeliz, ou impedir seu crescimento, ou limitar sua educação, então não tenho uma grande responsabilidade por você. O seu bem-estar não vai depender muito de mim. Deus tem razão de ir além disso. Um Deus que desse aos agentes apenas uma responsabilidade tão limitada sobre seus semelhantes não teria dado muito. Ele seria como um pai que pedisse a seu filho mais velho para cuidar do mais novo e dissesse que ele prestaria atenção em cada movimento do mais novo e interviria no momento que o mais velho fizesse algo errado. O filho mais velho poderia retrucar corretamente que, embora ele ficasse contente em compartilhar com o trabalho de seu pai, ele só poderia fazê-lo se pudesse fazer seus próprios juízos acerca do que fazer dentre de uma gama significativa de opções disponíveis para o pai. Um

Deus bom, como um pai bom, delegaria responsabilidade. A fim de permitir que as criaturas partilhassem na criação, ele os permitiria ter a escolha de machucar e mutilar, de frustrar o plano divino. Nosso mundo, é claro, é um mundo no qual as criaturas têm exatamente essa profunda responsabilidade umas pelas outras. Não posso apenas beneficiar, mas também prejudicar meus filhos. Um modo pelo qual posso prejudicá-los é pelo poder de infringir-lhes dor física. Mas há muito mais coisas danosas que posso fazer a eles. Posso impedir-lhes de ter comida, brincadeira, e, acima de tudo, afeto adequados. Eles são feitos de modo a precisar de certas coisas para seu bem-estar. Se Deus me fez, ele me deu oportunidade de lhes privar daquilo que eles precisam muito. Um modo crucial pelo qual um agente B pode depender de outro A é quanto a se e como B crescerá de modo livre, com poder e conhecimento, e vai depender de A para isso; e, para que A tenha uma responsabilidade muito profunda por B, ele deverá ter aquele tipo de responsabilidade. Isso permite que A impeça o crescimento de B de modo livre e com poder, dê a este crenças falsas ao invés

de conhecimento e, em geral, o torne retardado. Comentei anteriormente acerca da habilidade humana de melhorar seu próprio caráter ou de deixá-lo deteriorar ao mudar o tipo de ações que lhe vêm naturalmente na direção do bem ou na direção de um mau final no espectro de ações possíveis. Contudo, podemos influenciar uns aos outros para o bem ou para o mal nesse processo de formação de caráter; em particular, podemos influenciar nossos amigos, vizinhos e família e, acima de tudo, nossos filhos. Podemos ensinar nossos filhos com ações que são boas e podemos encorajá-los a fazer essas ações com palavras e exemplos, reforçados por uma preocupação amorosa evidente. Ou podemos não mostrar nenhuma preocupação por seu bem-estar, mentir para eles, ser violentos com eles, o que vai influenciá-los a se comportarem de modo parecido conosco e com outros. A influência que podemos ter no caráter de nossos filhos é assustadora em enormidade, mas — graças a Deus — não total. Eles são sujeitos a outras influências além das de seus pais, e têm alguma liberdade de resistir a influências. Um modo óbvio pelo qual Deus pode dar

aos agentes a oportunidade de prejudicar ou beneficiar uns aos outros no longo prazo é produzindo um mundo de decadência. Seres humanos corpóreos poderiam ter sido de modo tal que, para florescerem, não precisassem fazer nada a fim de viver uma vida razoavelmente agradável ou para sempre ou até que eles morram repentinamente. Porém, de fato, nossos corpos são sujeitos a acidentes e à morte; precisamos agir continuamente para impedir que coisas ruins aconteçam com nossos corpos. E precisamos agir para limpar as ervas daninhas, de modo a permitir que nossas plantas produzam alimento, e precisamos consertar nossas casas à medida em que caem suas vigas e tijolos. Nossas máquinas tendem a parar de funcionar e, assim, precisamos também consertá-las. Tudo isso nos dá três escolhas quanto a como usar nosso conhecimento das regularidades que produzem maus efeitos no mundo. Podemos usá-lo deliberadamente para produzir maus efeitos; podemos inibir ativamente sua operação; ou podemos simplesmente não nos importar em fazer coisa alguma, o que vai levar a alguns maus efeitos (mas não tantos quanto temos ao usar as

regularidades para, deliberadamente, causar maus efeitos). Se soubermos que é perigoso nadar num certo rio, então ou podemos tentar impedir as pessoas de nadar ali, ou podemos encorajar nossos inimigos a nadar nele, ou ainda podemos não fazer nada, o que vai tornar bastante provável que algumas pessoas se afoguem. Essa maior variedade de escolha disponível num mundo decadente nos permite fazer o mal seja maliciosamente seja por negligência. A tentação de ser negligente sempre existe, uma vez que somos todos sujeitos, no fim das contas, a um desejo forte de não fazer nada — a indolência. Fazer o mal por negligência não é uma coisa tão má quanto fazer o mal por malícia, e assim temos ter a escolha de fazer o mal em modos de seriedade diferentes. A escolha de usar ou não processos naturais para o bem ou para o mal existe desde que saibamos o que são esses processos e como tantos deles produzem más consequências. Outros desses processos ainda não entendemos, e, mesmo assim, temos uma escolha grandemente significativa — de investir tempo e dinheiro em tentar entender esses processos ou de não dar atenção. Nosso mundo é um mundo no qual a dor

de A dá razão para a pesquisa de B o qual, em cooperação com C, usando o dinheiro dado por D, pode levar à descoberta da causa da dor, para cujo alívio E produz uma droga, com dinheiro financiado por F. Nossas ações de ajudar os outros são reforçadas pelos bons desejos pelo bem-estar destes, algo para o qual chamei a atenção anteriormente. Porém, há uma questão a ser discutida no fato de que esses desejos nem sempre ocorrem com força suficiente em circunstâncias relevantes, de modo que as pessoas às vezes têm a escolha heroica de forçarem a si mesmas no sentido de fazerem o que é bom quando têm pouca inclinação natural para fazêlo. Eles podem, então, ao fazer essa escolha, manifestar sua dedicação ao bem de maneira particularmente completa. Além disso, se os desejos não são automáticos, eles podem ser cultivados ou reprimidos; e isso dá aos agentes um modo adicional de controlar seu caráter e, dessa maneira também, influenciar seus semelhantes. Nosso mundo é, certamente, um mundo no qual tal controle é possível. O amor que vem naturalmente em algumas circunstâncias pode ser encorajado ou inibido.

Podemos cultivar amor por uma criança ao interagir com ela, ou inibir a afeição por uma mulher ao evitá-la e ao nos relacionarmos com outra mulher. Tais métodos não são infalíveis, é claro, mas eles funcionam frequentemente. Nós de fato temos controle limitado sobre desejos assim. Desejos por fins específicos são ajudados por emoções mais gerais de afeição e compaixão. E, na medida em que podemos cultivar boas emoções, podemos permitir que más emoções sejam desenvolvidas, tais como inveja e ciúme, que acontecem conosco passivamente. Elas são apenas outro aspecto de nossa situação de tentação, de ter maus desejos, que é necessária para que sejamos seres morais. Por causa das oportunidades que os outros têm para nos prejudicar (tanto quanto por outras razões, das quais vou falar no próximo capítulo), inevitavelmente as coisas podem ir muito mal para nós. Nossos planos podem falhar, nossos entes queridos podem ser retirados de nós pelas circunstâncias ou por outro agente. Como um Deus vai fazer para nós reagirmos a infortúnios assim? Ele poderia, é claro, fazer com que nos voltássemos diretamente para outras coisas, fazer-nos ficar

insensíveis acerca das coisas que estão indo mal. Mas, certamente, o mundo é melhor quando os agentes dão a devida atenção a suas perdas e falhas, quando eles ficam tristes com os fracassos de suas empreitadas, quando eles ficam de luto pela morte de uma criança ou com raiva pela sedução de uma esposa, e assim por diante. Tais emoções envolvem sofrimento e angústia, mas, ao ter esses sentimentos apropriados, uma pessoa mostra seu respeito por ela mesma e pelos outros. Um homem que não sente dor profunda pela morte de seu filho ou pela sedução de sua esposa é corretamente rotulado de insensível, pois ele deixou de dar o devido respeito ao sentimento dos outros, de mostrar em seu sentimento o quanto ele os valoriza e, desse modo, deixou de valorizá-los adequadamente — porque valorizá-los adequadamente envolve ter reações apropriadas de sentimento diante dessas perdas. E apenas um mundo no qual as pessoas sentem comiseração pelas perdas vividas por seus amigos será um mundo no qual o amor tem seu sentido pleno. Mais uma vez, um Deus não tornaria a expressão de emoções assim necessariamente inevitável. Seria bom se tivéssemos a oportunidade

de cultivá-las ou reprimi-las. Outras emoções que têm um lugar apropriado são emoções de remorso e penitência em vista de nossas ações erradas; emoções que também é bom que os agentes tenham a oportunidade de cultivar ou reprimir. Defendi nas últimas páginas que um Deus teria razão de fazer um mundo no qual agentes tivessem a oportunidade de beneficiar ou prejudicar uns aos outros. Há uma variedade de diferentes mundos possíveis, de acordo com a escala de tempo e com a natureza da dependência mútua envolvida. Primeiro, você poderia ter o que vou chamar de Mundo 1. Aqui, haveria um conjunto imutável de agentes humanamente livres imortais. O mundo e seus habitantes teriam seus males e imperfeições, mas o mundo seria aperfeiçoável pela cooperação dos agentes dentro de um tempo finito. Por mundo aperfeiçoável, quero dizer que todos os males seriam removíveis e que o mundo e a sociedade poderiam ser levados a um estado muito feliz e belo de modo que nenhum esforço dos agentes poderia torná-lo mais belo. Para o resto da eternidade, tudo o que eles precisariam fazer seria manter o mundo funcionando. Haveria razão para Deus fazer um

mundo assim — a felicidade dos agentes é uma coisa boa e cada agente (depois de sofrer um pouco) seria capaz de obtê-la num mundo assim. Contudo, o problema de um mundo assim é que, depois de um tempo finito, os agentes não teriam mais nada de exigente para fazer. Embora eles sempre pudessem ficar remendando o mundo, não seria (uma vez terminados seus trabalhos iniciais) um mundo melhor do que era antes do trabalho de remendo; e, tendo conquistado muito conhecimento, os agentes se dariam conta disso. Por essa razão, parece-me haver mais razão em fazer o que vou chamar um Mundo II. Aqui, mais uma vez, há um conjunto imutável de agentes humanamente livres, mas nesse caso há um número infinito de tais agentes, e não haveria limite para o quanto eles poderiam continuar aperfeiçoando um ao outro e seu mundo. Haveria um contingente considerável de aperfeiçoamento a ser feito em cada agente e no mundo, além de uma quantidade infinita de conhecimento e liberdade a ser adquirida; e tudo isso no Mundo II exigiria um tempo infinito. Contudo, pela própria descrição do Mundo II, uma coisa boa os agentes seriam impedidos de fazer — dar à luz novos agentes e

formá-los desde o início de sua existência. Certamente é bom que os agentes tenham esse poder. No que eu vou chamar de Mundo III, o número de agentes imortais pode aumentar por meio da atividade de agentes existentes. Se Deus tiver razão de fazer um Mundo II, ele terá, a fortiori, razão de fazer um Mundo III. Nascer é bom, mas o que dizer da morte? Deus tem razão de fazer um mundo no qual, seja por causas naturais seja pela ação dos agentes, exista morte? Eu acredito que ele realmente tem várias razões de fazer agentes mortais. A primeira é que, se todos os agentes são imortais, há certo tipo de má ação (de um tipo qualitativamente diferente de outras ações más) que os agentes não podem fazer seja contra eles mesmos seja contra outros — não podem tirar-lhes a existência. Contudo, por mais que eu odeie você ou eu mesmo, não tenho como evitar você ou eu próprio. Nesse sentido vital, agentes humanamente livres não partilhariam o poder criativo de Deus. Ao recusar lhes dar esse poder, um Deus recusaria confiar em suas criaturas num sentido crucial. Permitir que uma pessoa tenha uma arma é sempre uma marca de confiança profunda.

Em segundo lugar, um mundo sem morte é um mundo sem a possibilidade de coragem e autosacrifício supremo em vista do desastre absoluto. O sacrifício último é o sacrifício de si mesmo e isso não seria possível num mundo sem morte (“ninguém pode amar mais do que dar a vida pelos seus semelhantes”). A generosidade suprema seria impossível, do mesmo modo que a disposição e a paciência em face do desastre absoluto. Isso porque, num mundo sem morte, as alternativas sempre envolveriam a continuação da vida e, assim, também a possibilidade de que outros nos tirem de nossos infortúnios. Não haveria desastre absoluto para ser encarado com alegria e paciência. Em terceiro lugar, o mundo com morte natural seria um mundo no qual as contribuições do próprio agente teriam seriedade pelo fato de serem irreversíveis por parte do agente. Se passar todos os meus setenta anos fazendo o mal, não haverá mais tempo disponível para desfazer isso. Contudo, se eu viver para sempre, então, o que quer que eu faça, sempre poderei desfazer. É bom que o que as pessoas façam tenha importância e suas ações têm mais importância quando elas têm apenas um tempo

limitado para revertê-las. Em quarto lugar, um mundo com nascimento, mas sem morte natural, seria um mundo no qual os jovens nunca teriam iniciativa. Eles sempre seriam inibidos pela experiência e influência dos mais velhos. O maior valor da morte, contudo, parece-me estar numa quinta consideração, que é, de certo modo, oposta à minha segunda. Falei anteriormente do grande valor que há nos agentes terem o poder de fazer mal uns aos outros. Apenas agentes que podem fazer isso têm poder significativo. Contudo, para o bem do sofredor potencial, deve haver um limite para o sofrimento que um agente pode infligir a outro. Creio que todos considerariam moralmente errado para um ser muito poderoso dar poder ilimitado para um agente fazer mal a outro. Dar aos agentes o poder de matar é dar um poder vasto de uma qualidade diferente de outro poder. É muito diferente do poder de provocar sofrimento sem fim. Certamente, a analogia dos pais sugere que seria moralmente errado dar um poder ilimitado para causar sofrimento. Um pai, acreditando que seu filho mais velho dever ter responsabilidade, pode lhe dar poder para o bem ou para o mal sobre seu filho

mais novo. Porém, um bom pai vai intervir no fim das contas se o mais novo sofrer demais — para o bem do filho mais novo. Um Deus que não pusesse limite na quantidade de sofrimento que uma criatura pudesse receber (por qualquer boa causa, inclusive a da responsabilidade dos agentes) não seria um bom Deus. É preciso haver limites para a intensidade do sofrimento e para o tempo de sofrimento. Uma morte natural após certo pequeno número finito de anos dá o limite para o período de sofrimento. Trata-se de um limite para o poder de um agente sobre outro agente. Isso porque a morte remove os agentes daquela comunidade de agentes interdependentes na qual é bom que eles façam sua parte. É verdade que um Deus poderia dar um limite temporal para o prejuízo que os agentes poderiam fazer uns aos outros sem removê-los da companhia uns dos outros. Porém, isso significaria que os agentes estivessem em relação mútua uns com os outros e ao mesmo tempo fossem imunizados da responsabilidade de uns pelos outros, além de tirarlhes a possibilidade de fazer as escolhas de grande seriedade descritas acima. Concluo que Deus teria razão de fazer o que

eu vou chamar de um Mundo IV. Num Mundo IV, os agentes nascem e morrem e, durante suas vidas, dão à luz, em parte por sua própria escolha, a outros agentes. Eles podem fazer diferença no mundo; mas há espaço sem fim para o melhoramento deste, e cada geração pode adiantar ou retardar seu bemestar um pouco. Os agentes podem fazer uns aos outros felizes ou infelizes, e podem aumentar ou diminuir o poder, o conhecimento e a liberdade uns dos outros. Desse modo, eles podem afetar a felicidade e a moralidade de gerações distantes no tempo. Nosso mundo é claramente um Mundo IV. Um Deus tem razão de fazer um mundo assim. Nele, há a possibilidade de agentes fazerem mal uns aos outros por um número de gerações até que eles desçam fortemente na escada que leva à divindade. Muitos, talvez todos, os males morais de grande escala dos últimos séculos — os genocídios, os ódios, as escravidões em larga escala, tal como o Arquipélago Gulag, o Comércio Escravista e o Holocausto — não são resultados apenas da má decisão de algum líder moderno. Eles são o produto de inúmeros atos de membros individuais de um grupo contra os membros de outro grupo; o que cria

um clima no qual algum líder pode motivar alguns outros a instituir o mal em maior escala e, ainda assim, os outros podem ignorar seu chamamento. Porém, num Mundo IV, há a possibilidade de subida gradual na escala evolucionária, do homem desenvolver gradualmente sua consciência moral e religiosa, e de cada geração passar à seguinte alguma nova faceta dessa consciência. O homem pode crescer no entendimento de verdades morais e na aplicação destas ao cuidado dos menos afortunados; ele pode crescer em sensibilidade quanto à beleza estética e na criação e apreciação de obras de arte; na aquisição de conhecimento científico e na aplicação deste para o melhoramento da condição humana e da explicação e compreensão do universo. Dado isso, conforme defendi no capítulo 6, podemos esperar que Deus crie agentes humanamente livres com um amplo grau de escolha livre e responsabilidade, sujeito a um limite de dano (ou seja, mal positivo) que eles possam fazer uns aos outros, e é moderadamente provável que Deus vá fazer um Mundo IV, incluindo a morte natural para todos e com agentes livres tendo o poder de causar morte. Contudo, um mundo assim é muito

insatisfatório no aspecto crucial de que vidas capazes de florescer felizes por vários anos, senão para sempre, são cortadas, destituídas de escolhas e experiências futuras. Deus poderia ter razão de intervir no processo de manter existindo em alguma outra parte deste mundo os agentes que deixam de existir em nossa parte (e, é claro, o teísmo cristão e outras formas de teísmo dizem que ele intervém desta maneira). Contudo, se é para as vantagens de um mundo com morte permanecerem, a evidente interdependência mútua neste mundo deve cessar após um período finito de tempo (para dar um limite ao sofrimento permitido nele) e a existência futura não deve, de modo algum, ser tida antecipadamente como certa por seus agentes (de outro modo, não haveria oportunidade para certas escolhas de grande seriedade em nossa parte do mundo). Se Deus realmente intervém dessa maneira, nossa parte do mundo ainda será, no que parece aos seus habitantes, muito parecida com um Mundo IV.

O lugar dos animais Até aqui, este capítulo se preocupou com a natureza e as circunstâncias que um Deus teria razão de oferecer a agentes humanamente livres. Contudo, sugeri no capítulo 6 que Deus teria razão também de criar seres conscientes sem a carga da controversa vantagem de ter consciência moral e vontade livre — ou seja, os animais superiores. Sugeri que era bom que houvesse seres que aprendessem aquilo que era bom e prejudicial para eles e procurassem o que era bom e evitassem o prejudicial, e ao fazê-lo, desfrutassem do mundo e tivessem sensações prazerosas. Os resultados deste capítulo acerca da natureza que Deus teria razão de oferecer aos seres humanos e das circunstâncias nas quais ele teria razão de colocá-los têm aplicação limitada para o caso dos animais superiores. Na medida em que lhes falta vontade livre e consciência moral, Deus teria razão de lhes dar menos responsabilidade e, portanto, menos poder e conhecimento que ele daria aos seres humanos. Isso porque uma razão substancial para dar grande responsabilidade para os seres humanos, e com isso o poder e o

conhecimento sobre como produzir grande prejuízo, era que eles não estavam predeterminados em suas escolhas, mas sim eram fontes independentes de como o mundo deveria ser, cientes em certa medida do bem e mal das escolhas alternativas. Já que falta vontade livre aos animais, não se deve dar a eles um poder assim de fazer mal; e em nosso mundo percebemos que eles não têm um poder assim. Animais podem ferir e matar outros animais, mas eles não podem chegar ao ponto de realizar genocídios ou guerras atômicas, de cometer falso testemunho perante tribunal ou de quebrar acordos solenes ou de aprisionar injustamente seus semelhantes ou de formas mais sutis de torturar e humilhar seus semelhantes. Há, contudo, razões, que vou discutir no próximo capítulo, para dar aos animais poder limitado de ferir. Uma é a possibilidade de eles exercerem virtudes de ordem superior. Outra é o conhecimento que isso dá aos outros animais e aos humanos acerca de como evitar o dano. No próximo capítulo, vou defender que só se pode adquirir conhecimento por meio de inferência e investigação racional acerca de como se deve evitar o dano por meio da experiência das

circunstâncias nas quais ele ocorre. Com esse conhecimento e apenas com ele, os animais podem fazer muitas das coisas que vimos neste capítulo que é bom que eles sejam capazes de fazer — preservar do mal a si mesmos e suas crias, e também talvez outros de sua espécie. Quando a gazela vê outras gazelas serem mortas pelos tigres, isso lhe dá conhecimento de como usar seu poder para outros fins — para seu próprio benefício e de suas crias — de modo a poder escapar de outros tigres e ajudar suas crias a escapar deles. Em geral, Deus tem razão em dar aos animais algum poder e conhecimento, com oportunidade de usá-lo para boas finalidades — para o próprio benefício deles e de outros e para o conhecimento acerca de como fazer isso. Claramente os animais estão nesta posição. Assim como os humanos, eles têm a oportunidade de continuar sua existência ao escapar de predadores, andar em locais seguros, comer, beber e cuidar da saúde. Por lhes faltar livre arbítrio, eles não pode decidir se vão buscar essas finalidades. Assim, se eles tiverem que fazê-lo, então eles precisarão receber os desejos de fazê-lo, incluindo o desejo de

sair de circunstâncias fatais para o seu bem-estar — e isso significa, como vimos antes, sentir dor biologicamente útil. Os animais superiores, tais como os humanos, também devem ter a oportunidade de cuidar dos outros, particularmente de suas crias, seus parceiros e, num grau menor, de outros membros de sua espécie. O cuidado das crias é uma atividade muito central na vida dos animais. Como já dissemos, uma vez que lhes falta livre arbítrio, eles não podem escolher se vão buscar esses fins, mas é necessário que se lhes dê o desejo de fazê-lo. E, é claro, eles são abundantemente abençoados como o instinto parental. Há exceções — animais que são maus pais –, mas vamos chegar a eles no próximo capítulo. Deus poderia ter colocado os animais num mundo separado do nosso, ou poderia tê-los posto no nosso mundo e os dado como uma responsabilidade adicional aos seres humanos. Por centenas de milhões de anos houve na terra animais e não humanos, mas posteriormente passou a haver ambos. Há um risco claro em haver ambos pertencendo ao mesmo mundo — de que os humanos vão abusar dos animais, causando-lhes

muito sofrimento ou dor. Contudo, há vantagens. Para tanto animais quanto seres humanos há a oportunidade de responsabilidade e um novo tipo de cooperação e amizade. O cavalo, por exemplo, tem a oportunidade de realizar trabalhos interessantes com o homem, que não teria como fazê-los sem ele, além da amizade com um tipo diferente de ser. Em troca, o homem tem um ajudante e um amigo. Ao ver o quanto o bem-estar dos animais agora depende dele, o homem se deu conta de que os animais são sua responsabilidade. E a responsabilidade pelos animais não é apenas uma responsabilidade de curto prazo por animais individuais que possuímos ou que encontramos casualmente. Esta é agora reconhecida como uma responsabilidade por preservar as espécies animais e por garantir que haja ambientes apropriados para animais de diferentes espécies, nos quais estas possam ser felizes (a doutrina de Gênesis 1: 28 é de que Deus deu ao homem esta responsabilidade). Assim como têm esta responsabilidade pelo bem-estar dos animais, os humanos com certeza, é claro, têm responsabilidade pelo mundo físico — pelas plantas, rios e rochas desta terra e da lua; e no

devido tempo, sem dúvida, pelas plantas, rios e rochas de outros planetas e suas luas. Está dentro do poder dos seres humanos preservar espécies e grandes regiões de beleza natural; e temos a escolha de fazê-lo ou de não nos importarmos. Conclusão Defendi no capítulo 6 que há uma probabilidade significativa, à qual dei o valor um tanto artificial de ½, de que um Deus criaria agentes humanamente livres — ou seja, seres que poderiam escolher como fazer diferenças importantes para si mesmos, uns aos outros e para o mundo. Eu comentei, naquela ocasião e posteriormente, que uma escolha livre assim traz com ela males significativos; e, é claro, quanto maior o âmbito de escolha, maior o âmbito de males possíveis e reais. Certamente há um limite para extensão temporal e a intensidade do sofrimento que um Deus bom permitiria que seres conscientes suportassem (exceto por sua própria escolha). E há muito espaço para discussão acerca de se este mundo contém mais males e de grau mais intenso que um bom Deus

permitiria, e vamos falar deste assunto no próximo capítulo. Contudo, se supomos por enquanto que não há estados assim em demasia ou muito intensos, pareceria bom que o mundo tivesse agentes humanamente livres, que tivessem grande poder sobre si mesmos, sobre os outros e sobre o mundo físico, além de grande poder de aumentar seu poder, conhecimento e liberdade. Esses agentes somos nós mesmos, seres humanos. Se Deus nos tivesse dado mais poder, o mal resultante teria sido plausivelmente grande demais. Na suposição (que, conforme defendi, é provável) de que nós realmente temos livre arbítrio, Deus dificilmente poderia ter sido mais generoso. Se Deus existe, poderíamos esperar um mundo que contivesse criaturas assim com probabilidade significativa. E não seria inesperado que Deus tivesse criado criaturas não livres com poderes e conhecimento menores, os animais superiores. Existem, contudo, muitos outros mundos que, se Deus não existisse, seriam tão prováveis de vir a existir quanto este, caracterizados por muitas características gerais diferentes. A título de exemplos mais significativos — poderia haver mundos nos

quais os agentes com a natureza analisada no capítulo 9 não pudessem melhorar suas características, não corressem muito risco em seus meios, não pudessem aumentar seu conhecimento sobre como o mundo funciona, não dependessem ou amassem uns aos outros (acima de tudo, não dependessem uns dos outros para viver). Poderíamos todos viver em cápsulas, incapazes de falar uns com os outros ou de ferir uns aos outros, restringindo-nos a fazer contato no momento da reprodução (se tanto). Ou, embora pudéssemos ser capazes de ferir uns aos outros fisicamente, nossas características poderiam ser inalteráveis, inteiramente dependentes de nossos genes. Ou poderíamos ser incapazes de fazer quaisquer mudanças de longo prazo em nossa raça e no meio ambiente em que vivemos. Ou poderíamos viver para sempre e ter o poder de causar sofrimento sem fim uns aos outros, e assim por diante. Na maioria desses mundos, os seres humanos não teriam muita responsabilidade e neste último mundo eles teriam demais. Que as leis e condições limite do mundo sejam tais que confiram aos humanos tais naturezas e os coloquem em tais circunstâncias, de modo a

lhes dar o tipo de responsabilidade descrita neste capítulo, é algo “grande demais” para a ciência explicar. Mais uma vez, isso depende das qualidades com as quais a ciência começa. E, em vista da diversidade dos mundos possíveis nos quais poderiam ser postos os agentes com as naturezas analisadas no capítulo 9, não parece haver qualquer probabilidade intrínseca muito grande de que as leis naturais e condições limite devessem ser tais que lhes dessem a natureza e as circunstâncias de vida descritas neste capítulo. Porém, se estou certo, pode-se esperar com significativa probabilidade que Deus produza um mundo do nosso tipo e assim produza as condições limite e as leis naturais de tal modo que levem a um mundo desse tipo. As características dos seres humanos e do mundo descritas neste capítulo constituem, assim, indício a mais em favor da existência de Deus. Com k representando a existência de corpos humanos conectados a uma vida mental descrita no último capítulo, h como “Deus existe” e com e representando leis da natureza e condições limite do universo, bem como as conexões mente-corpo tais que levem a efeito as características descritas neste

capítulo, postulo que

.

11. O problema do mal Defendi no capítulo 6 que Deus tem razões substanciais para criar agentes humanamente livres. Eles terão corpos do tipo analisado no capítulo 8, uma vida mental como analisado no capítulo 9 e algo como a natureza e as circunstâncias da vida consideradas no capítulo 10. Ao que tudo indica, os seres humanos são agentes humanamente livres. Num mundo do tipo descrito no capítulo 10, haverá inevitavelmente males, no sentido de maus estados ou ações.[145] Eu divido os males do mundo no modo tradicional entre males morais (aqueles levados a efeito pela escolha intencional humana ou que os seres humanos sabidamente permitem ocorrer, bem como os males de suas ações intencionais ruins ou negligência) e males naturais (todos os outros males, tais como maus desejos que não podemos evitar, doença e acidentes). Se Deus existe, ele permite que ocorram males morais e aparentemente ele mesmo causa males naturais (ao criar os processos naturais que causam maus

desejos, doença e acidentes). Os males morais e naturais incluem a dor em animais, seja causada pelos humanos, seja por outros animais ou por processos naturais. Contudo, uma vez que a complexidade do cérebro e a sofisticação do comportamento decrescem à medida que nos afastamos da espécie humana na escala evolutiva, parece razoável supor que a dor animal é menos intensa que a dor humana e que animais sentem dor cada vez menos à medida que descemos na escala evolutiva desde os primatas na direção dos vertebrados menos desenvolvidos. E uma vez que os cérebros dos invertebrados são de tipos diferentes do que os dos vertebrados, vejo pouca razão para supor que os invertebrados sequer sintam dor. Eu já mencionei razões para supor que, num mundo providencial nos modos descritos no capítulo 10, haverá males de certos tipos. Haverá inevitavelmente sensações desagradáveis úteis, tais como a dor que alguém sofre até que escape de um incêndio ou o sentimento de sufoco que se tem numa sala cheia de gás venenoso e a emoção de medo em circunstâncias perigosas. Do mesmo modo, uma vez que os seres humanos têm o poder

de causar uns aos outros danos significativos e não são causalmente determinados a fazer o que fazem, é altamente provável que num mundo assim haverá uma boa dose de sofrimento adicional, infligido pelos seres humanos uns aos outros. E haverá também o mal moral de pessoas que escolhem fazer o que elas pensam ser errado ao infligir tal sofrimento; um mal que existirá mesmo que elas não consigam infligir o sofrimento. Haverá o mal de desejos ruins, tentações de fazer o errado, conseguindo ou não realizá-los, que torna possível a escolha entre bem e mal. E quando acontecem coisas ruins conosco ou são feitas por nós, ou quando coisas boas terminam, haverá sentimentos de pesar, comiseração e arrependimento. Mas pode parecer que a maior parte dos males naturais do mundo não sejam de modo algum necessários para assegurar os bons propósitos descritos até agora. E pode parecer a alguns que, embora o fato dos seres humanos terem uma escolha livre entre causar dano ou beneficiar uns aos outros requeira logicamente a possibilidade dos seres humanos sofrerem por causa de outros, um Deus bom não estaria justificado em permitir esses males morais em nome do bem que a

possibilidade de sua ocorrência não evitada por Deus torna possível. Certamente, contudo, algumas vezes pessoas perfeitamente boas permitirão que ocorram males quando eles poderiam facilmente evitá-los. Isso porque às vezes algum bem maior pode ser alcançado apenas por um caminho que envolve sofrimento; e é correto tentar alcançá-lo apesar do sofrimento. Os pais corretamente consentem que seus filhos sofram dor na cadeira do dentista a fim de que tenham dentes saudáveis como resultado. Mas Deus, diferentemente dos pais humanos, poderia produzir dentes saldáveis sem a necessidade da dor do tratamento dentário. Porém, como vimos no Capítulo 5, mesmo Deus não pode fazer o que é logicamente impossível. E isso torna plausível supor que um Deus perfeitamente bom pode permitir que ocorra um mal E ou levá-lo a efeito se não for logicamente possível ou moralmente permissível levar a efeito algum bem G a não ser permitindo que ocorra E (ou um mal igualmente mal) ou levando-o a efeito. Eu sugiro que há três outras condições adicionais que devem ser satisfeitas para que, compativelmente com sua perfeita bondade, Deus

permita que ocorra um mal E. A segunda condição é que Deus também de fato leve a efeito o bem G. Em terceiro lugar, Deus não deve ser injusto com o sofredor ao causar ou permitir o mal. Ele deve ter o direito de fazer ou permitir que aquele indivíduo sofra. E finalmente, algum tipo de condição comparativa deve ser satisfeita. Ela não pode ser tão forte quanto a condição de que G seja um estado de bem maior do que E seja um mal estado, pois obviamente estamos com frequência justificados, a fim de assegurar a ocorrência de um bem substancial, de arriscar a ocorrência muito improvável de um mal maior. Um modo formal plausível de capturar essa condição é dizer que o valor esperado da ocorrência de E — dado que Deus realmente leve a efeito G — deve ser positivo; que seja provável que o bem exceda qualquer mal necessário para alcançá-lo. Eu resumirei a afirmação, com respeito a algum mal E, de que, se Deus existe, ele poderia, compativelmente com sua perfeita bondade, permitir que esse mal ocorra a fim de promover um bem G, como a tese de que E serve a um bem maior. Eu ilustrarei o que essas condições querem dizer com exemplos e defenderei a tese de

que todos os males do mundo realmente servem provavelmente a um bem maior — ao menos quando adicionamos ao teísmo uma ou duas hipóteses adicionais. Meu tratamento dos males, até a seção final deste capítulo, preocupa-se apenas com aqueles males que seriam males caso Deus existisse ou não. Eu discuto certos estados que seriam males apenas se Deus existe na seção final, intitulada “O Argumento da Ocultação”. Como os males servem a bens maiores Eu começo com a primeira condição. Esta é evidentemente satisfeita no caso do mal moral, como indiquei anteriormente. Para que os seres humanos tenham a escolha livre de levar a efeito bem ou mal e a escolha livre de, dessa maneira, gradualmente irem formando seu caráter, então é logicamente necessário que haja a possibilidade da ocorrência de mal moral não impedido por Deus. Se Deus normalmente interviesse para impedir que nossas escolhas ruins tivessem seus efeitos pretendidos, nós não teríamos responsabilidade significativa pelo mundo. E, conforme indicado anteriormente, para

que tenhamos uma escolha livre entre bem e mal, devemos (por necessidade lógica) ter alguma tentação de fazer mal e daí decorre o mal natural dos maus desejos. Mas e quanto aos grandes males naturais da doença e do acidente? Devo começar comentando brevemente três defesas bem conhecidas mas imperfeitas que os teístas ofereceram ao problema do mal natural. Primeiro, há a defesa de que muito do mal sofrido por um ser humano é uma punição de Deus pelos pecados daquele; tal punição é um bem e o sofrimento é necessário para alcançá-lo. Embora isso possa explicar algum mal natural, é claramente incapaz de dar conta do sofrimento de bebês ou animais. Em segundo lugar, há a tese de que Deus liga às escolhas de alguns seres humanos o bemestar de humanos (e animais) de gerações futuras por caminhos diferentes dos processos causais normais (tais como o da influência que temos sobre nossos filhos). Deus dá aos nossos ancestrais uma grande responsabilidade pelo nosso bem-estar. Se eles se comportaram bem, nós florescemos. Se eles pecam, sofremos por seus pecados. O bem da responsabilidade deles, pode-se afirmar, requer a

possibilidade de nosso sofrimento quando eles exorbitam daquela. Novamente, embora essa segunda defesa possa dar conta de algum mal natural, ela claramente não oferece uma boa descrição de todo mal desse tipo. Há a dificuldade maior de que o bem de agentes tendo uma escolha entre bem e mal depende deles saberem as consequências boas e más que se seguem de suas diferentes ações. É implausível supor que nossos primeiros ancestrais tinham qualquer concepção de que suas ações poderiam causar o tipo de males naturais que seus descendentes sofrem. E, em todo caso, essa defesa não pode explicar o sofrimento de animais muito antes dos homens chegarem à Terra. [146] Mais substancial é a terceira defesa, usada por muitos autores teístas ao longo dos séculos[147], de que males naturais têm sido causados por agentes livres não humanos — nomeadamente, anjos caídos. Se há razão, como defendi que há, para permitir que agentes humanamente livres causem dano a outros agentes, então há razão para permitir que agentes livres não humanos causem mal — se, como pode ser

postulado para os anjos, mas não pode ser aceito com plausibilidade acerca de nossos ancestrais, eles são agentes com liberdade e consciência moral significativa[148] plenamente conscientes das consequências de suas ações. Esta defesa, diferentemente das duas primeiras, é adequada para lidar com males naturais de todos os tipos, mas ela tem o grande defeito de que salva do teísmo da refutação acrescentando a ele uma hipótese extra, uma hipótese para a qual não parece para mim haver muitos indícios independentes — a hipótese de que anjos desse tipo existam, tendo sido criados por Deus e com poder limitado sobre o resto da criação de Deus. Essa hipótese não é acarretada pelo teísmo nem o teísmo a torna especialmente provável; qualquer necessidade para que Deus crie criaturas com escolhas livres entre bem e mal que façam grande diferença a outras criaturas é satisfeita pela criação de seres humanos. Uma hipótese adicionada a uma teoria complica a teoria e por essa razão diminui sua probabilidade prévia e, desse modo, sua probabilidade posterior. Eu vou argumentar, contudo, que não precisamos adicionar essa hipótese a mais ao teísmo, uma vez que há outras duas outras

razões pelas quais, sem males naturais, nossa capacidade de fazer as escolhas livres significativas que a “defesa do livre arbítrio” corretamente vê como um coisa boa seriam gravemente diminuídas. Ou seja, Deus mesmo tem duas razões substanciais para causar males naturais; e assim não precisamos postular que anjos caídos sejam responsáveis por eles. Mas argumentarei depois que nós realmente precisamos adicionar uma ou duas hipóteses a mais ao teísmo para justificar a afirmação de que Deus tem o direito de impor o grau de sofrimento que alguns indivíduos sofrem. A primeira das razões substanciais pelas quais nossa habilidade de fazer escolhas livres significativas seria gravemente diminuída na ausência de mal natural é o que é conhecido como a defesa de “ordem superior”. Esta afirma que o mal natural oferece oportunidades para tipos especialmente valiosos de resposta emocional e escolha livre. Ela começa apontando que o grande bem da compaixão (a resposta emocional natural ao sofrimento dos outros) pode ser sentida apenas se os outros sofrem. É bom que possamos nos envolver com os outros emocionalmente, tanto quando eles

estão na pior quanto na melhor situação. Mas, obviamente, a objeção propõe, mesmo se a dor é boa por causa da resposta da compaixão, melhor ainda é que não haja qualquer dor. Ora, obviamente, seria loucura Deus multiplicar dores a fim de multiplicar a compaixão. Mas eu sugiro que um mundo com alguma dor e alguma compaixão é ao menos tão bom quanto um mundo sem dor e assim sem compaixão, pois é bom ter uma grande preocupação pelos outros; e a preocupação pode ser profunda e séria apenas se as coisas estiverem mal com o sofredor. Não se pode preocupar com a condição de alguém a menos que haja algo mal ou provavelmente mal acerca disso. Se as coisas sempre corressem bem com alguém, não haveria amplitude para a preocupação profunda de alguém. É bom que o âmbito de nossa compaixão seja amplo, estendendo-se longe no tempo e no espaço. A tristeza de alguém num país distante que realmente se importa com os que passam fome na Etiópia ou com os cegos na Índia ou as vítimas de dinossauros carnívoros milhões de anos atrás é compaixão por uma criatura próxima, mesmo que esta última não o sinta; e o mundo é melhor por haver uma

preocupação assim. A fim de oferecer a primeira razão pela qual o mal natural torna possível se fazerem escolhas livres significativas, o argumento dos “bens de ordem superior” continua do seguinte modo. Ele aponta para o fato de que certos tipos de escolha livre especialmente valiosa são possíveis apenas como respostas ao mal. Eu posso (logicamente) mostrar coragem em suportar meu sofrimento apenas se estou sofrendo (um estado mal). Eu posso “mostrar” comiseração por você (um termo que usarei para designar desenvolver uma ação, por oposição a ter o sentimento passivo da compaixão), e ajudá-lo de várias maneiras, apenas se você estiver sofrendo e precisar de ajuda. Se eu faço as escolhas erradas e ignoro ou rio do seu sofrimento, ou fico com pena de mim mesmo por causa do meu sofrimento, outras possibilidades de escolha ficam disponíveis — você pode resistir o impulso de ressentir minha falta de comiseração ou tentar delicadamente me estimular a mostrar coragem ao invés de autopiedade. Mais geralmente, cada má ação ou estado de coisas dá às vítimas, algozes e observadores uma escolha livre de como reagir com

ações, boas ou más (e isso também vale para cada boa ação e estado de coisas). É bom que tenhamos a oportunidade (ocasionalmente) de fazer ações como mostrar coragem ou comiseração, ações que frequentemente envolvem resistir a grande tentação, pois por meio delas manifestamos nosso total compromisso com o bem. (Um compromisso que não fazemos quando a tentação de fazer de outro modo não é forte não é um compromisso total.) A ajuda é tanto mais significativa quanto mais é necessária e é mais necessária quando aquele que a recebe está sofrendo e carente. Mas eu posso (logicamente) ajudar os outros que estão sofrendo apenas se há o mal do qual eles estão sofrendo. Nesses casos, se Deus existe, ele torna possível o bem das escolhas livres de tipos particulares entre bem e mal, as quais — logicamente — ele não poderia nos dar sem permitir que males (ou males igualmente ruins) nos acontecessem. Ou ainda, esta é a única maneira moralmente permissível de nos dar a escolha livre, pois Deus poderia criar um mundo basicamente enganador no qual as outras pessoas parecessem estar sofrendo grande dor quando na verdade elas não estivessem. Então,

teríamos a escolha entre ajudá-las ou não ajudá-las (ou, em todo caso, a escolha entre tentar ajudá-las ou nos recusar a fazê-lo). Mas, a meu ver, não seria moralmente permissível para Deus criar um mundo no qual as pessoas fossem motivadas a ajudar as outras a um grande custo quando as outras não precisassem realmente de ajuda nenhuma. Deus, para não nos enganar e ainda assim nos dar uma escolha livre real entre ajudar e não ajudar os outros, deve criar um mundo no qual os outros realmente sofram. Mas será que a falta de um bem (da capacidade de andar, digamos, ou de falar francês) não dá à vítima uma oportunidade igual: ou de suportar com paciência ou de lamentar a sua situação, ou de mostrar, em relação ao próximo, comiseração ou insensibilidade? Para responder a essa questão, é importante considerar por que a dor é um estado ruim e assim, se não for causada pelos humanos (e não negligentemente permitida por eles), por que se constitui um mal natural. A dor é uma sensação de um tipo que não incomoda se a temos num grau muito fraco; na verdade, podemos com frequência gostar dela — podemos gostar de

uma sensação de tepidez, que nos incomoda se se torna muito mais forte e vira uma sensação de calor forte. E há umas poucas pessoas fora do normal que não parecem se incomodar de modo algum com as sensações que nós chamamos de “dor”. Uma sensação é uma dor e assim um mal natural apenas na medida em que incomoda fortemente. Qualquer estado de coisas não causado (ou negligentemente permitida por humanos), que incomode no mesmo grau, seria tão ruim quanto. Algumas pessoas se sentem incomodadas com suas limitações tanto quanto com a dor; elas então se incomodam tanto com sua incapacidade de andar que tomam parte num programa para conquistar essa habilidade que envolve sua “superação da barreira da dor”. É verdade, seria incomum para qualquer um não gostar de algo num mesmo grau em que não gosta de algumas das dores causadas pela doença ou acidente (e chamar essas dores de “intensas” é apenas dizer o quanto elas incomodam). E, por essa razão, a dor normalmente oferece mais oportunidade para ensejar paciência ao invés de autopiedade do que qualquer outra coisa. Mas qualquer estado de coisas não gostado igualmente

seria igualmente ruim e assim ofereceria tanta oportunidade quanto. E a escolha entre ser compassivo ao invés de insensível é mais importante nesse caso do que quando o sofrimento é menor. Se a ausência do bem não é tão aversiva quanto as sensações causadas pela doença e pelos acidentes, então, é claro, é ainda muito bom mostrar coragem em suportar essa ausência de bem, mas a coragem não se dá em virtude de uma aversão tão forte pelo estado de coisas existente. Pode-se sugerir, contudo, em segundo lugar, que a oportunidade adequada para emoções boas de nível superior e tipos especialmente valiosos de escolha livre seria oferecida pela ocorrência de mal moral sem qualquer necessidade de que o sofrimento fosse causado por processos naturais. Você pode mostrar coragem quando ameaçado por um atirador, tanto quanto quando ameaçado pelo câncer; e mostrar comiseração para aqueles prestes a serem mortos por um atirador tanto quanto por aqueles prestes a morrer de câncer. Ainda assim, imagine todo o sofrimento da mente e do corpo causado pela doença, por terremotos e morte não imediatamente evitáveis pelos humanos, tudo isso

removido de uma vez de nossa sociedade. Nenhuma doença, nenhuma inevitável diminuição de poderes na velhice, nenhum nascimento com deformidades, nenhuma loucura, nenhum acidente. Nesse caso, não apenas nenhum de nós tem a oportunidade de responder com comiseração ou coragem ou zelo reformador, etc. diretamente, mas também muito da opressão de um grupo por outro estimulado por tal sofrimento seria também removida. Fome e doença em um grupo têm muito frequentemente servido de motivação que o leva a oprimir outro grupo cujos bens ele busca possuir. (Ou seja, esses males naturais reforçaram então os desejos do primeiro grupo de ter alimento e uma vida mais fácil do que eles lhes renderam, apesar de sua fraca consciência de que eles não tinham o direito de oprimir o outro grupo.) Assim, tantas oportunidades de lidar com circunstâncias difíceis seriam removidas que muitos de nós teriam uma vida tão fácil que simplesmente não teríamos muita oportunidade de mostrar coragem ou mesmo qualquer tipo de bondade. São necessários aqueles processos insidiosos de acidentes (atualmente) inevitáveis e de dissolução, que o dinheiro e a força não podem evitar por muito

tempo, para nos dar as oportunidades, tão facilmente evitáveis de outro modo, de nos tornarmos heróis. É verdade, Deus poderia nos compensar pela falta de mal natural sujeitando os humanos a tanta tentação, deliberadamente (ou em algum grau sabidamente), a fim de causar sofrimento uns aos outros de modo a que houvesse novamente muita oportunidade para coragem. Ele nos tornaria tão naturalmente maus que nos faltaria muita afeição natural e teríamos pulsões inatas de torturar uns aos outros (ou em algum grau de deixar que o outro sofresse), em vista do que poderíamos mostrar coragem e comiseração. Mas, espero eu, não é de modo algum óbvio que seria melhor que Deus substituísse a doença por um aumento assim de depravação inata (ou seja, um sistema de desejos fortes pelo que é sabido ser mau ou que causa o que é mau). Ao invés disso, o melhor é o contrário, penso eu. Um mundo no qual faltasse aos humanos (e animais) muita afeição natural pelos pais, filhos, vizinhos, etc. seria um lugar horrível. Assim, ao ensejar o mal natural da dor e outro sofrimento, Deus provê um mal que, ao ser permitido, torna possível, e é a única forma

moralmente admissível na qual ele possa tornar isso possível, muitos estados bons. É bom que as ações intencionais de resposta séria ao mal natural que eu tenho descrito estejam ao alcance também de criaturas simples que não têm livre arbítrio. Como vimos antes, muitas ações boas podem ser boas sem serem escolhidas livremente. É bom que haja animais que mostrem coragem diante da dor, que consigam alimento, encontrem e salvem seus companheiros e filhotes e que mostrem preocupação pelos outros animais. Uma vida animal é tão mais valiosa pelo heroísmo que ela mostra. E se o animal não escolhe livremente a boa ação, ele a fará apenas porque, no fim das contas, ele deseja fazê-la; e quando seu desejo de agir não é complicado por impulsos conflitantes, a boa ação será espontânea. E (mesmo se complicada por desejos conflitantes), as ações animais de simpatia, afeição, coragem e paciência são grandes bens. Ainda assim, um animal não pode procurar por um(a) parceiro(a) que se perdeu, apesar de não conseguir encontrá-lo(a) a não ser que ele(a) esteja perdido e que ele(a) esteja sentindo sua falta; nem espantar predadores ou investigar as imediações

apesar do risco de perda da vida a menos que haja predadores, e a menos que haja risco de perda da vida. Não haverá predadores a menos que às vezes os animais sejam pegos. Uma caçada seria apenas um jogo a menos que fosse provável que terminasse com um animal sendo capturado e morto; e os animais não estariam então envolvidos num assunto sério. E não haverá um risco de perda de vida a menos que às vezes alguma vida seja perdida. Tampouco um animal pode intencionalmente evitar o perigo de um incêndio na floresta ou levar seus filhotes para fora dele a menos que o perigo exista objetivamente. E isso não pode se dar a menos que alguns animais, como os gamos,[149] que às vezes são pegos por um incêndio na floresta. Isso porque você não pode evitar incêndios na floresta intencionalmente ou se dar ao trabalho de resgatar seus filhotes de incêndios na floresta a menos que exista um risco sério de ficar preso em incêndios. A ação intencional de resgatar apesar do perigo simplesmente não poderia ser feita a menos que existisse e que se acreditasse que existisse. O perigo não existirá a menos que haja uma probabilidade natural significativa de ficar preso num incêndio; e

na medida em que o mundo é determinístico, isso implica que as criaturas fiquem de fato presas em incêndios; e na medida em que o mundo for indeterminístico, isso implica uma propensão na natureza de produzir esse efeito não evitado por Deus. É verdade que as forças determinísticas que levam os animais a fazerem boas ações os levam às vezes a fazerem ações más intencionais — eles podem rejeitar seus filhotes ou ferir seus companheiros da mesma espécie — e neste caso, a ação má não pode ser atribuída ao livre arbítrio. Ainda assim, porém, tais más ações, como a dor física, oferecem oportunidades para boas ações serem feitas em resposta a elas; por exemplo, a persistência, apesar da rejeição, do filhote em buscar o amor da mãe ou o amor de um outro animal; a coragem do animal ferido na busca por alimento, especialmente para seus filhotes, apesar do ferimento. E assim por diante. O mundo seria muito mais pobre sem a coragem de um leão ferido continuando a lutar apesar de seu ferimento, a coragem do cervo fugindo do leão, a coragem do gamo atraindo o leão para caçar a ele e não seu

filhote, o pesar do pássaro pela perda da consorte. Deus poderia ter feito um mundo no qual os animais não tivessem outra coisa a não ser calafrios de prazer na vida; mas a vida deles é mais rica pela complexidade e dificuldade das tarefas que eles enfrentam e os apuros aos quais eles reagem apropriadamente. O argumento da necessidade de conhecimento A segunda razão substancial pela qual sem males naturais como doença e acidentes nossa habilidade de fazer escolhas livres significativas seriam grandemente diminuídas é que males naturais nos dão o conhecimento requerido para fazer essas escolhas. Males naturais são necessários para os agentes terem o conhecimento de como fazer mal ou evitar sua ocorrência, conhecimento que eles devem possuir para terem uma escolha genuína entre fazer mal e fazer bem. Ou ainda, eles são necessários para os agentes terem este conhecimento sem ficarem privados do bem da resposta racional aos fatos e à investigação racional. Vimos nos capítulos 6 e 8 que é preciso

haver conexões regulares entre os estados corpóreos de um agente e os eventos para além de seu corpo para que ele seja capaz de perfazer essas ações mediadas por meio de inferência racional a partir da observação de regularidades no mundo e para que ele tenha escolha quanto a tentar adquirir esse conhecimento pela investigação racional (ou seja, por meio da procura por tais regularidades), essas regularidades devem ser simples e observáveis e o agente precisará extrapolar do que ele observa para uma teoria segundo critérios, e assim essas predições serão provavelmente verdadeiras, tal como descrito no Capítulo 3 — o que eu chamarei de inferência indutiva normal. O caso mais simples de inferência indutiva normal é quando eu infiro que um estado presente de coisas C será seguido de um estado futuro E, com base na generalização de que, no passado, estados de coisa iguais a C em todas as ocasiões as quais eu conheço foram seguidas de estados iguais a E. Porque nas muitas ocasiões que eu conheço, um pedaço de giz que eu solto caiu no chão, eu posso inferir que na próxima vez que giz for solto, cairá no chão. Contudo, como vimos no Capítulo 3, a indução normal pode ter uma forma

mais complicada. De uma vasta coleção de dados acerca de posições do Sol, Lua e planetas, um cientista pode inferir uma consequência de tipo diferente — por exemplo, de que haverá uma maré muito alta na Terra quando a Lua estiver em tal e tal posição. Aqui os dados tornam provável a teoria científica da qual a previsão acerca da maré é mais ou menos uma remota consequência: as similaridades entre os dados e a predição são mais remotas que nos casos mais simples. (Mas as similaridades existem e são a base da predição. Tanto nos dados quanto nas predições há corpos materiais atraindo-se uns aos outros.) Não importa se a inferência indutiva normal é simples ou complicada,[150] certas ideias gerais podem ser ditas acerca da afirmação quanto ao conhecimento do futuro que resulta disso. A primeira é que quanto mais dados passados há, melhor estabelecida é a postulação de tal conhecimento. Isso porque os dados confirmam uma afirmação acerca do futuro pela confirmação de uma teoria ou uma generalização universal (ou probabilística) simples (por exemplo, “estados iguais a C são sempre seguidos de estados iguais a E”),

que, por sua vez, autorizam a afirmação acerca do futuro. Quanto mais dados há, mais eles mostram que a teoria ou a generalização vale em muitas circunstâncias diferentes e assim é mais provável que valha no exemplo futuro em questão. (Não importa quão semelhante em muitos aspectos sejam as circunstâncias sob as quais os dados foram observados, eles são quase necessariamente diferentes entre si em algum aspecto observável ou não observável; se a generalização funcionou até agora apesar de tais diferenças, isso lhe dá ainda mais probabilidade.) Em segundo lugar, quanto mais certo for meu conhecimento, de que os dados passados ocorreram como afirmado, mais fundamentada será minha postulação de conhecimento acerca do futuro. Se os dados forem experiências mentais minhas ou eventos que eu mesmo vi, então meu conhecimento de sua ocorrência é certo. Se eles forem experiências que outros relatam ou eventos que outros afirmam ter visto, então meu conhecimento de sua ocorrência é menos certo. Meu conhecimento de sua ocorrência será ainda menos certo se eu precisar fazer uma inferência complicada de outros dados para provar a

ocorrência delas. É claro que, a dúvida acerca de se uma inferência é justificada depende da medida em que uma inferência é autorizada por certos dados, e então da proporção em que esses dados forem corretos. Em terceiro lugar, na medida em que os dados são qualitativamente bem diferentes do que é predito e é preciso uma teoria científica complicada para gerar a predição, a postulação de conhecimento será menos solidamente fundamentada. Assim, suponha que por um processo complicado de extrapolação de um número n de dados astronômicos eu chego a uma teoria de mecânica muito complexa, da qual eu concluo que, num conjunto muito incomum de circunstâncias (quando os planetas estão exatamente em tal e tal configuração), se eu soltar um pedaço de giz, ele irá para cima. E suponha que essas circunstâncias deverão se manifestar unicamente no meu gabinete durante a presente hora. Será que eu sei que que quando eu soltar o giz em breve ele subirá? É duvidoso. É claro que eu o sei, e sei muito melhor, se já deixei realmente o giz cair n vezes nessa hora e ele subiu. Em quarto lugar, se é preciso uma inferência complicada a fim de se conseguir uma

predição, então, na medida em que a inferência é de um tipo que se mostrou bem sucedido no passado ou a inferência é feita por pessoas com conhecido sucesso preditivo nesse tipo de situação, isso é fundamento para acreditar na predição. Esses quatro pontos acerca da força do conhecimento obtido por indução normal podem ser resumidos dizendo-se que nossas postulações de conhecimento são melhor justificadas quanto mais próximas elas estiverem de nossa experiência. Ora, para que os agentes levem a efeito estados de coisas ou permitam que estados de coisas aconteçam pela negligência em evitá-los, eles devem saber que consequências se seguirão de suas ações. Segue-se do que acabou de ser dito que o conhecimento indutivo normal das consequências deve ser obtido da seguinte maneira. Considere uma ação A, que eu me vejo fazendo em circunstâncias X. Suponha que A consista de levar a efeito estados de coisas C, o resultado de A (veja p. 83 para a definição de “resultado”). Como saberei quais serão seus efeitos, o que se seguirá disso? Muito certamente, pelo fato de eu mesmo ter feito uma ação assim muitas vezes antes em circunstâncias

semelhantes e por ter observado os efeitos de seu resultado. Eu poderia chegar a conhecer muito certamente o que vai resultar do fato de eu beber oito whiskies duplos — que eu não conseguirei dirigir meu carro com segurança, ao ter feito tal ação com frequência antes. Eu sei dos efeitos com menos certeza ao ter visto os efeitos de outros fazendo a ação ou ao ter visto os efeitos do resultado da ação quando ela foi levada a efeito não intencionalmente, sempre em circunstâncias semelhantes àquelas nas quais estou considerando fazer a ação, ou por outros dizendo-me o que aconteceu em diferentes ocasiões quando eles beberam oito whiskies duplos. Eu sei com menos certeza que isso vai me levar à impossibilidade de dirigir, pois eu suspeito que eu sou diferente dos outros (eu tenho mais força de vontade, sou mais consciente dos perigos ou sou um motorista melhor que os outros). Um conhecimento ainda menos certo é obtido pela observação do resultado que ocorre em circunstâncias de algum modo diferentes (por exemplo, quando se bebem os whiskies muito mais rapidamente, ou quando estão cansados). Conhecimento ainda menos certo se obtém pela

observação de ocorrências apenas um pouco semelhantes e tendo de levar em consideração a diferença — por exemplo, eu posso apenas ter visto os efeitos de pessoas bebendo quantidades diferentes de cerveja ou gim. Ou meu conhecimento pode depender de relatos dados por outros; nesse caso, ele será ainda menos certo. A testemunha pode ter exagerado, não notado as diferenças nas circunstâncias, etc. O conhecimento menos certo de todos é o que é conseguido por um processo de inferência mais complicada de acontecimentos apenas remotamente semelhantes a A. Contudo, é difícil ver como uma teoria que prediga a ocorrência de um mal como uma dor possa ter qualquer justificação a menos que os dados nos quais a teoria foi construída fossem casos de dor. Se você não tem nenhum conhecimento de alguma coisa que causa dor, como é que outros tipos de dado poderiam fundamentar predições acerca de dor? Isso porque a dor é tão diferente de outros tipos de acontecimentos e não tem uma conexão natural com condições particulares de nervo e cérebro ao invés de outras. (Como argumentei no Capítulo 9, não há razão para supor que o estímulo desse nervo causará

dor e que a daquele causará prazer, a não ser o conhecimento de que isso foi o que aconteceu no passado.) Assim, a proximidade da experiência leva a um conhecimento mais certo. É notório que as pessoas são muito mais inclinadas a tomarem precauções contra algum desastre se um desastre semelhante aconteceu a elas anteriormente ou a alguém próximo a elas do que se elas foram advertidas da necessidade de precaução por alguma autoridade impessoal distante. Alguém está muito mais inclinado a tomar precauções contra incêndio e roubo se ele ou seus vizinhos foram anteriormente vítimas de incêndio ou roubo do que se a polícia a adverte de que essas coisas aconteceram no povoado ao lado. Minha tese é de que esta não é só uma perversidade irracional. É o máximo da racionalidade ser influenciado mais pelo que é conhecido melhor. As pessoas conhecem melhor o que pode acontecer com elas se elas sabem que isso aconteceu com elas ou com outros iguais a elas. Com uma simples advertência da polícia, elas sempre têm razão para suspeitar de que a polícia exagera ou que as coisas são diferentes no povoado

ao lado. O que é irracional é não ser influenciado de modo algum pelo aviso da polícia; o que não é irracional é ser influenciado mais pelos acontecimentos mais próximos, dos quais temos experiência mais íntima. Ora, para que as pessoas sabidamente inflijam umas nas outras, deve ter havido uma primeira vez na história humana na qual isso foi feito. Deve ter havido um primeiro assassinato, um primeiro assassinato por envenenamento com cianeto, uma primeira humilhação deliberada, e assim por diante. O agente malévolo em cada caso sabe a consequência do resultado de sua ação (por exemplo, que fazer alguém ingerir cianeto levará à sua morte). Ex hypothesi, ele não pode saber isso por ter visto um agente dar cianeto a outra pessoa com esse propósito. Seu conhecimento de que de que o envenenamento por cianeto causa morte deve vir de ele ter visto ou de outros terem lhe dito que em outras ocasiões tomar cianeto acidentalmente levou à morte. (Se, em meu exemplo, você pensa que o conhecimento dos efeitos de ingerir cianeto pode ser obtido ao se ver os efeitos de tomar substâncias químicas semelhantes, o argumento

pode ser apresentado de modo mais geral. Uma pessoa deve ter tomado um veneno semelhante por acidente anteriormente.) O que se aplica ao agente malévolo também se aplica à pessoa que sabidamente se recusa a infligir mal a outra ou evita que o mal ocorra com outra. Deve haver males que ocorrem naturalmente (ou seja, males não sabidamente causados por humanos) para que os humanos saibam como causar males eles mesmos ou para evitarem que males ocorram. E deve haver muitos males assim para que os humanos tenham um conhecimento seguro pois, como vimos, conhecimento seguro do que acontecerá no futuro vem apenas por meio de indução de muitos exemplos passados. Um exemplo solitário de uma pessoa morrendo após ter tomado cianeto não dará às outras um conhecimento muito seguro de que em geral o cianeto causa morte — pode ser que a morte na ocasião estudada teve uma causa diferente e que o envenenamento por cianeto não tinha nada a ver com ela. E, a menos que as pessoas venham causando males de um certo tipo recentemente, deve haver acontecido recentemente males que ocorreram naturalmente para que as pessoas atualmente tenham

conhecimento seguro do como causar ou evitar tais males. Tomemos outro exemplo — sabemos que a raiva causa uma morte terrível. Com esse conhecimento, temos a possibilidade de evitar uma morte assim (por exemplo, controlando a entrada de animais de estimação no país) ou negligentemente permitir que isso ocorra ou mesmo deliberadamente causar seu acontecimento. Apenas com o conhecimento dos efeitos da raiva é que temos essas possibilidades. Mas para que ganhemos conhecimento por indução normal do efeito da raiva, é necessário que outros morram dessa doença (no tempo em que a raiva não era evitável pelos humanos) e sejam vistos morrendo assim. Em termos gerais, podemos ter a oportunidade de evitar doenças afetando nós mesmos ou outros ou negligenciando isso, ou a oportunidade de disseminar a doença deliberadamente (por exemplo, por meio de armas biológicas), apenas se houver doenças que ocorram naturalmente. E podemos ter a oportunidade de evitar doenças incuráveis ou deixálas acontecer apenas se houver doenças incuráveis que ocorram naturalmente.

O que se aplica aos indivíduos no curto prazo aplica-se no longo prazo às raças. Para que os humanos tenham a oportunidade por meio de suas ações ou negligência de levar a efeito consequências más no futuro distante ou evitar fazê-lo, eles devem saber das consequências de longo prazo de suas ações e o conhecimento indutivo mais certo daquelas consequências só pode vir da história humana passada. Como teremos a oportunidade de evitar que as próximas gerações peguem asbestose a não ser por meio do conhecimento do que causa asbestose e como o obteremos a não ser por meio dos registros que mostram que as pessoas em contato com asbesto azul muitos anos atrás morreram de asbestose trinta anos depois? Ou — para usar um tipo de exemplo ligeiramente diferente — suponha que as pessoas devem ter a escolha de construir cidades ao longo de regiões de terremoto e assim arriscando a destruição de cidades inteiras e suas populações centenas de anos depois ou de evitar fazê-lo. Como pode uma escolha assim estar disponível a eles a não ser que eles saibam onde é provável que terremotos ocorram e quais são suas consequências prováveis? E como eles chegarão a

saber isso, a menos que terremotos (não preditos) tenham acontecido no passado e que as circunstâncias de sua ocorrência sejam estudadas e forneçam informação que torne provável uma teoria acerca da ocorrência de terremotos? E se os seres humanos no passado não podiam prever terremotos, é altamente provável que às vezes os terremotos pudessem ocorrer onde os humanos haviam construído cidades. E assim (embora num modo ligeiramente diferente), o mal natural nos dá uma gama mais ampla de escolha de ações pelas quais podemos nos afetar, uns aos outros e ao mundo físico. O que aconteceu com criaturas sensitivas diferentes das humanas também permite termos conhecimento do que acontecerá conosco, embora um conhecimento muito menos certo. De fato, uma grande medida de nosso conhecimento dos desastres para o homem que se seguirão a alguma ação vem do estudo de desastres de fato que aconteceram com animais. Por um longo tempo, foi normal descobrir os efeitos das drogas ou da cirurgia ou de circunstâncias inusitadas para o homem pela sujeição deliberada de animais àquelas drogas,

cirurgias ou circunstâncias. Antes de se colocarem seres humanos no espaço, os humanos mandaram animais e viram o que acontecia com eles. Tais experimentos não dão um conhecimento muito seguro do que aconteceria com humanos — devido à natureza do caso, há diferenças muito consideráveis entre animais e seres humanos -, mas eles de fato dão um conhecimento considerável. Os males que aconteceram naturalmente com animais oferecem um enorme banco de informações para os seres humanos adquirirem conhecimento das escolhas abertas a eles, um banco de dados ao qual eles frequentemente recorreram — ao verem o destino de um carneiro, os seres humanos aprenderam acerca da presença de tigres perigosos; ao verem vacas afundando num atoleiro, eles aprenderam a não passar por ali, e assim por diante. E os males que dão informação não precisam ser só físicos e os modos pelos quais eles são produzidos podem ser pela ação de outros animais não dotados de livre arbítrio. Os efeitos de descuido parental de gorilas podem nos ajudar a ver os efeitos de descuido parental entre os seres humanos. A amplitude de escolha de longo prazo

disponível a gerações futuras não deve ser subestimada. Eles podem ter a escolha não apenas acerca de construir cidades de modo a evitar terremotos, mas quanto a mover a Terra para mais perto do Sol ou para mais longe dele, quanto a retirar ar e água de Marte ou ir viver lá, quanto a estender o tempo de vida, quanto a produzir em laboratório organismos parecidos com os humanos, e assim por diante. Mas escolhas racionais nesses assuntos podem ser feitas apenas à luz do conhecimento das consequências de ações alternativas. Ao passo que a informação acerca dos desastres e benefícios que aconteceram às gerações humanas passadas pode ser de grande uso para aquele conhecimento, quando estamos consideramos as consequências de muito longo prazo das mudanças de circunstâncias, meio ambiente ou clima, a história da evolução animal é nossa principal fonte de informação. A história humana é curta demais para dar muito conhecimento útil. Por exemplo, os registros fósseis indicam que o campo magnético da Terra passa por uma mudança repentina a cada centenas de milhares de anos. (Partes de metal magnetizadas que antes apontavam

para o norte apontam a partir de então para o sul e vice-versa). Precisamos saber como isso afetará os seres humanos e quando isso ocorrerá na próxima vez; e caso seus efeitos sejam danosos, se há medidas de precaução que podemos tomar para minimizar o dano. Nossa principal informação acerca dos efeitos de longo termo de uma reversão como essa só pode vir do registro fóssil acerca de como isso afetou os animais. Mas em todo caso, a história da natureza pré-humana “com mancha de sangue nas presas e nas garras” já dá alguma informação muito geral que é crucialmente relevante para nossas escolhas possíveis. Isso porque, suponha que os animais passaram a existir ao mesmo tempo que os seres humanos (por exemplo, 4004 a. C.), sempre em situações nas quais os homens pudessem tê-los salvado de qualquer sofrimento. Naturalmente, então, pareceria uma teoria bem confirmada que (ou por meio de um ato de Deus ou pela natureza) os animais nunca passassem por sofrimento, a não ser aquele que os humanos pudessem evitar naquele dado tempo. Assim, os humanos não pareceriam ter de se importarem muito com agir agora para evitar sofrimento dos animais

no futuro. Mas a história da evolução nos diz que esse não é o caso — os animais podem muito bem sofrer em circunstâncias nas quais os homens não estão disponíveis ou são capazes de evitar isso, pois isso já aconteceu no passado. Esse conhecimento nos dá uma escolha de agir agora para evitar o sofrimento de animais no futuro ou de não nos importarmos com isso. A história da evolução préhumana revela ao homem o quanto que o destino subsequente dos animais está em suas mãos — pois ele dependerá do que ele faz com o meio ambiente e com os genes, que o homem pode induzir à mutação. Tal como com exemplos anteriores, o argumento acima ilustra a ideia mais geral de que, para que os agentes tenham conhecimento do mal que resultará de suas ações ou negligência, as leis da natureza devem operar regularmente. Assim, eu mencionei no último capítulo que, entre as vantagens da dor causada pelo fogo está a de que ela leva a que o sofredor escape do incêndio. Mas a dor ainda ocorre quando o sofredor está fraco demais ou paralisado para escapar do incêndio. Não seria melhor que apenas aqueles que pudessem escapar

sofressem a dor? Mas, se esse fosse o caso, então outros saberiam que importaria muito menos que eles ajudassem as pessoas a escapar de incêndios e que elas devessem evitar incêndios. E assim as oportunidades para os humanos de escolher quanto a ajudar os outros e tomar precauções para evitar seu sofrimento futuro irá diminuir correspondentemente. E, em geral, se Deus normalmente ajudar aqueles que não puderem ajudar a si mesmos quando outros não puderem ajudar, então os outros não se darão ao trabalho de ajudar os necessitados na próxima vez e eles serão racionais em não fazê-lo, pois eles saberão que uma ajuda mais poderosa sempre estará disponível. Meu argumento até aqui tem sido o de que, para que os seres humanos tenham a oportunidade de causar sérios males por si mesmos ou através de outros por meio de ações ou negligência, ou para evitar a ocorrência desses males, e dado que todo conhecimento do futuro é obtido por indução normal, ou seja, por resposta racional à informação — então deve haver sérios males naturais acontecendo ao homem ou aos animais. Eu argumentei anteriormente que é bom que nos

tenhamos a oportunidade mencionada acima. E quanto à possibilidade de Deus nos dar o conhecimento necessário por um caminho diferente? A inferência normal indutiva do passado não é a única rota possível para o conhecimento do futuro. Por que precisamos adquirir esse conhecimento por resposta racional às informações? Por que Deus não poderia assegurar que nós simplesmente nos encontrássemos tendo crenças verdadeiras básicas de que essa ação causaria dor e essa outra causaria prazer para ações de vários tipos e prazeres e dores de várias espécies?[151] Uma crença básica é aquela que temos não com base na inferência de outras crenças, e da qual nós podemos inferir outras coisas que nós cheguemos então a acreditar. Por exemplo, para a maioria de nós, os resultantes imediatos da percepção — que eu estou olhando uma árvore ou assistindo uma conferência — chegam a nós como crenças básicas. Pelo Princípio de Credulidade, que eu defendo no Capítulo 13, todas as crenças básicas com as quais os agentes se encontram são — na ausência de indício contrário — provavelmente verdadeiras; o simples fato de que você tenha uma crença é base

para acreditar nela. Esse caminho para o conhecimento do futuro seria indutivo, mas não usa a indução do tipo normal. Dado que (pela boa razão aduzida na p. 371-72) nosso mundo é um mundo de corruptibilidade, nossas crenças básicas precisariam incluir crenças acerca do que acontecerá se nós não fizermos nada — por exemplo, acerca de quando uma doença epidêmica se espalhará a não ser que comecemos um programa de inoculação. Não seria possível, contudo, para nenhum de nós saber com qualquer certeza razoável todas as consequências de longo prazo de nossas ações, dado que aquelas consequências de longo prazo dependem de se outros agentes livres ajudam ou atrapalham nossas ações atingirem as consequências que nós pretendemos. Assim, o máximo que seria possível para nós é conhecer aquelas consequências que são independentes das ações dos outros e também as consequências condicionais (por exemplo, “se ninguém mais interferir, a ação A terá a consequência C”). Mas, se Deus nos deu crenças básicas verdadeiras acerca das consequências de todas as nossas ações sujeitas àquelas restrições, nós saberíamos o que seria todo o futuro do mundo se

os homens não interferisse nele e o que aconteceria se eles interferissem nele de várias maneiras determinadas. E assim, dentre outras coisas que nós saberíamos estariam os resultados de todos os experimentos que pudéssemos fazer para tentar confirmar qualquer teoria científica ou metafísica. Poderíamos ainda decidir entre teorias rivais com base nos critérios a priori de simplicidade e amplitude. Mas a decisão seria limitada a uma decisão entre teorias que tivessem exatamente as mesmas consequências observáveis que a outra (mesmo no futuro distante); e, em consequência, o interesse e importância de uma decisão assim seriam extremamente baixos. Isso porque uma grande razão pela qual a conclusão de que uma certa teoria é mais provável que uma outra é de grande interesse e importância deve-se ao fato de que a teoria mais provável faz predições que a menos provável não faz. Mas na situação postulada, não precisaríamos fazer ciência a fim de conhecer o futuro. Do modo como as coisas são no mundo real, a maior parte das decisões morais são decisões tomadas na incerteza acerca das consequências de nossas ações, mesmo se descontamos a possibilidade

de interferência de outros agentes. Eu não sei com certeza que, se eu fumar eu terei câncer; ou que, se eu me negar a dar dinheiro para a Oxfam[F], uma outra pessoa morrerá de fome. Talvez eu serei um daqueles que não terá câncer e talvez, ao deixar de fazer minha pequena doação à Oxfam não fará diferença no número de pessoas que morrem de fome, pois suponha que a única diferença feita pela falta da minha doação seja de que cada pessoa faminta tenha uma porção de alimento um pouquinho menor do que a que eles teriam em todo caso; e eu sei que isso terá efeito imediato sobre a minha ação. Mas o que eu posso não saber é se essa diferença é tão pequena a ponto de fazer diferença à condição futura do faminto. Assim, temos de tomar nossas decisões morais com base em quão provável é que nossas ações terão vários resultados — quão provável é que eu terei câncer se eu continuar a fumar (no caso de eu não vir a ter câncer de outra maneira) ou que alguém passará fome se eu não fizer minha doação (no caso dessa pessoa não vir a passar fome por outra razão). Essas decisões tomadas na incerteza não são meramente decisões morais, elas são também decisões difíceis. Uma vez

que as probabilidades são difíceis de obter, é muito fácil persuadir a você mesmo de que vale a pena apostar que nenhum dano resultará da decisão menos exigente (ou seja, da decisão que você tem um forte desejo de tomar). E mesmo que você enfrente uma correta avaliação das probabilidades, a dedicação verdadeira ao bem é mostrada ao se fazer a ação que, embora seja provavelmente a melhor ação, pode não ter qualquer consequência boa. Mas se estamos com frequência nessa situação (e pelas razões acima é bom que estejamos), então é bom (porque nós corretamente buscamos fazer boas ações) que tenhamos a oportunidade de conseguir conhecimento mais certo das consequências de nossas ações — o que significará conseguir mais dados acerca das consequências dos eventos, por exemplo, dados do passado acerca do que aconteceu com as pessoas que fumaram sem saber da possibilidade de que fumar cause câncer. Buscar mais conhecimento certo, em outras palavras, envolve, uma vez mais, confiar na indução normal. Acima de tudo, dado que nosso conhecimento das consequências de nossas ações é

limitado, nós temos a escolha muito importante de se vamos realizar ou não investigações científicas para estender nosso conhecimento e de se vamos ou não ensinar aos outros os resultados dessa investigação. A racionalidade necessária para que façamos escolhas morais sérias é, independentemente de seu valor por esse propósito, um grande bem em si mesma. Uma das maiores glórias humanas é a habilidade de se posicionar em vista de informações e chegar a conclusões prováveis acerca dos efeitos de suas ações, acerca de como o mundo funciona e de qual é nossa origem e destino. A racionalidade é uma qualidade pela qual vale a pena pagar um preço considerável. Nós corretamente temos em grande conta o cientista que investiga as causas e efeitos das coisas e que se propõe a aplicar critérios objetivamente corretos para descobrir como a natureza opera e quais eventos causam dor e quais causam prazer. E é uma outra glória dos seres humanos que eles possam cooperar na atividade de chegar a conclusões prováveis; alguns humanos ensinam outros e os outros contribuem com base nesses fundamentos. E os humanos têm a escolha de investigar ou não, de

cooperar na investigação e de ensinar os resultados da investigação. Para ter essas várias escolhas morais sérias, precisamos inicialmente ser (mais ou menos) ignorantes das consequências de nossas ações, para o bem ou para o mal. A ocorrência do mal natural nos dá a escolha de aperfeiçoar nosso conhecimento dessas consequências, o qual não podemos obter de nenhum outro modo sem uma séria perda de bem. Os próprios animais superiores também têm de adquirir conhecimento por indução normal, conhecimento de como obter alimento, bebida e companhia; e também conhecimento das causas da dor, da perda de saúde e da perda da vida. Ao passo que os animais não têm a escolha livre de investigar as causas e efeitos, os animais superiores de fato aprendem (ou seja, adquirem conhecimento) com o uso de critérios objetivos acerca do que é indício para o que — por generalização, o tipo mais simples de inferência indutiva normal. Ao verem o sofrimento, doença e morte de outros em certas circunstâncias, eles aprendem a evitar essas circunstâncias. Ao ver um gamo pego por um incêndio numa mata espessa, outros animais aprendem a evitar essa mata. (Animais,

especialmente os inferiores, obviamente evitam muitas situações e fazem muitas ações instintivamente; mas nesses casos, eles não fazem a ação ou evitam a situação por meio de conhecimento racionalmente adquirido dessas consequências.) E alguns dos animais (mesmo não livremente) de fato investigam as consequências das ações antes de executá-las. Um gato com frequência testa a firmeza do galho de uma árvore antes de colocar todo o seu peso nela. Sua racionalidade nesse aspecto simples é uma de suas glórias, um outro aspecto limitado no qual eles têm algumas semelhanças com os seres humanos. É bom que eles também salvem suas vidas e a de seus filhotes por meio do aprendizado das consequências das coisas por meio de observação e investigação. Mesmo assim, outros animais devem sofrer para que alguns animais aprendam a evitar o sofrimento de si mesmos e de seus filhotes. Podemos não saber exatamente quando e onde os males naturais ocorreram, mas o simples conhecimento de que o sofrimento de um certo tipo ocorreu com certos tipos de criatura sob certas condições nos dá muito boas razões para evitar

ações que possam levar a essas condições. De fato, uma vez que todos os males naturais ocorrem como resultado de processos naturais em grande parte determinísticos (não há tipos de mal natural que ocorram num modo totalmente ao acaso), todo esse conhecimento ajuda a construir o conhecimento de processos naturais que podemos utilizar para produzir ou evitar males futuros. Todos os males naturais presentes e passados, humanos e animais dos quais saibamos, assim, contribuem para a ampliação da escolha humana, quando chegamos a conhecê-los. Não se pode ter o grande bem da escolha entre atos bons e maus sem o conhecimento das consequências de nossas ações. Para que ganhássemos esse conhecimento na forma de crenças básicas, seríamos privados do grande bem da resposta racional à informação, da investigação racional e da escolha quanto a buscar o conhecimento. Ter todo esse conhecimento dado diretamente diminuiria radicalmente a gama de escolhas que temos. O mal natural torna possível para nós fazer muito mais escolhas morais sérias, incluindo a escolha de nos dedicarmos ou não à investigação racional.

Ao desenvolver a defesa dos bens de ordem superior e o argumento da necessidade de conhecimento, eu venho defendendo que, ao levar a efeito males naturais, Deus torna possível vários bens e que, fazer aqueles é a única maneira logicamente possível e moralmente admissível de assegurar esses bens. Argumentei que o teísmo pode afirmar justificadamente que esta primeira condição para Deus permitir a ocorrência de males é satisfeita sem a necessidade de invocar qualquer hipótese extra, como a hipótese do anjo caído, discutida anteriormente. Todos os males que sabemos de nosso mundo ordenado são tais que podemos escolher reagir do modo certo — minimamente por compaixão e ao aprender com eles e, frequentemente de muitas outras maneiras também. Mas, para que Deus seja justificado em levar a efeito ou permitir que outros causem esses males, ele também deve levar a efeito o bem que eles tornam possível; os seres humanos que escolhem entre bem e mal devem fazê-lo de livre e espontânea vontade. Sendo a natureza má e os maus efeitos das escolhas livres humanas muito piores que natureza má e os efeitos das reações animais instintivas, a

natureza livre de suas escolhas é, sugiro eu, necessária para justificar que um Deus bom lhes permita causar o mal que eles podem causar. Argumentei brevemente que não há razão para negar que as coisas são como parecem ser nesse aspecto e que os humanos têm realmente o livre arbítrio necessário. A segunda condição para que Deus seja justificado em levar a efeito males naturais também está satisfeita. O direito de Deus infligir dano Tenho defendido que, ao permitir o mal moral e ao levar a efeito o mal natural, Deus dá a nós (e aos animais) um bem que ele não poderia nos dar de nenhuma outra maneira moralmente permissível. Mas será que Deus tem o direito de nos impor dano em nome de um bem resultante; e, em particular, será que ele tem o direito de permitir que alguns sofram em benefício de outros? Deus como o autor de nosso ser teria direitos sobre nós que nós não temos sobre os outros seres humanos. Para permitir que alguém sofra pelo seu próprio bem ou o bem de uma outra pessoa,

precisamos estar em algum tipo de relação parental com ele. Eu não tenho o direito de forçar um estranho, fulano, sofrer pelo bem de sua alma ou pela alma de sicrano, mas eu tenho algum direito desse tipo com respeito aos meus próprios filhos. Eu posso permitir que o filho mais novo sofra de algum modo pelo bem de sua própria alma mesmo ou da alma de seu irmão. Eu tenho esse direito porque, numa pequena proporção, eu sou responsável pela existência do filho mais novo, de sua criação e continuidade; eu o alimentei e o eduquei. Eu tenho o direito de exigir algo em troca, que ele esteja aberto à possibilidade de que seu irmão mais velho inflija dano (limitado) a ele. Se isso é correto, então, a fortiori, um Deus que é, ex hypothesi, muito mais o autor de nosso ser do que são nossos pais, tem direitos muito maiores a esse respeito. É por essa razão que não é uma boa objeção ao meu argumento a ideia de que, se a dor serve a vários propósitos bons (tais como dar oportunidade a ação comiserativa e corajosa e ao conhecimento de como a dor é causada), seria um bem para nós humanos podermos causar mais dor uns aos outros e aos animais. Não somos a causa primeira da

existência de outros seres humanos e animais e assim nós não temos em geral esse direito. Deus tem esse direito e, em circunstâncias muito específicas e num grau muito limitado os humanos envolvidos em relações parentais também o têm. Eu sugiro que possamos generalizar essas intuições com o seguinte princípio. Um benfeitor tem o direito de tomar de volta ou de juntar alguns maus aspectos aos benefícios que ele dá a alguém na medida em que ele permaneça, no fim das contas, um benfeitor. Deus, que dá tanto, tem o direito de tomar de volta alguma coisa; embora ele, que é perfeitamente bom, nunca o fará a menos que isso seja logicamente necessário a fim de dar algum bem a esse beneficiário ou a uma outra pessoa. Pode-se ter a impressão de que as pessoas deveriam ser consultadas quanto a se elas querem receber o benefício, especialmente um benefício com maus aspectos a ele vinculados (por exemplo, dor). Certamente, ninguém tem o direito de infligir dano a uma pessoa para um bem maior desta, sem contar um bem maior de uma outra, sem o consentimento daquela pessoa. Pensamos que os médicos que usam as pessoas como cobaias

involuntárias para experimentos médicos estão fazendo uma coisa errada. A diferença crucial, contudo, é que os médicos poderiam ter pedido permissão aos pacientes; e os pacientes, sendo agentes livres de algum poder e conhecimento, poderiam ter feito uma escolha esclarecida quanto a permitirem ou não serem usados. A escolha de Deus não diz respeito a como usar pessoas já existentes, mas quanto a que tipo de pessoas criar e o tipo de mundo no qual colocá-las. Na situação de Deus, não há ninguém para ser consultado. Assim, no capítulo anterior eu argumentei que seria bom que uma pessoa A tivesse uma responsabilidade verdadeira por uma outra B. Será que Deus não deveria ter perguntado a B se ele queria as coisas assim? Mas isso não é possível, pois para que A seja responsável pelo crescimento de B no tocante à liberdade, conhecimento e poder, não deverá haver um B com liberdade e conhecimento bastante para fazer qualquer escolha antes de Deus ter de decidir dar ou não responsabilidade por ele a A. O criador tem de fazer a escolha independentemente de suas criaturas e ele tem razões para escolher torná-los profundamente interdependentes. Como vimos,

Deus tem razão de criar um mundo no qual alguns sofram, a fim de dar a outros conhecimento por meio de investigação racional. Mas os humanos não podem escolher em que tipo de mundo e por qual caminho eles devem obter conhecimento, pois até que eles tenham adquirido conhecimento, eles não podem escolher nada. Deus tem de fazer a escolha por eles. E, se Deus existe, ele provavelmente assume o pressuposto de que, se tivéssemos a escolha, nós quereríamos que nossas vidas fossem úteis aos outros. Pode parecer que minha condição de que Deus não pode impor males a nós que (igualem ou) superem as coisas boas que ele nos dá não é satisfeita em muitos casos. Não parece que muitos seres humanos vivem vidas tais que era melhor que aquele indivíduo nunca tivesse vivido? Creio que isto se dá em situações muito menos frequentes do que parece inicialmente por duas razões. Primeiro, porque é um grande bem simplesmente estar vivo, mesmo que a vida envolva uma grande quantidade de sofrimento, talvez muitos períodos nos quais o mal supera o bem. Espero que o leitor não me tome como insensível ao fazer o comentário de que, se

muitas pessoas realmente pensassem que era melhor que elas nunca tivessem vivido, haveria muito mais suicídios do que há. O interlocutor pode dizer que a razão pela qual não há mais suicídios do que de fato há é que as pessoas sentem ter obrigações em relação aos seus pais, filhos, cônjuges, etc. que as fazem permanecer vivas. Isso é verdade, e elas estão certamente frequentemente corretas de sentirem essas obrigações. Mas isso me leva à segunda razão pela qual é tão errada a tese de que seria melhor para alguns seres humanos nunca terem vivido. Ela ignora o grande bem que é ser útil. Que ajudar é um imenso bem para quem ajuda sempre foi difícil para os seres humanos verem, mas é especialmente difícil para o homem secularizado do século vinte e um. Mas, pense apenas o quão horrível a vida seria se nós não fôssemos úteis, se nós nunca pudéssemos ajudar os outros de um modo ou de outro. E muitos de nós podem ver isso às vezes: quando, por exemplo, buscamos ajudar prisioneiros, não ao lhes dar melhores acomodações, mas permitindo-lhes ajudar deficientes físicos; ou quando sentimos pena ao invés de inveja daquela “pobre garotinha rica” que

tem tudo e não faz por ninguém. E um fenômeno prevalente na Europa atual chama especialmente nossa atenção quanto a isso — o mal do desemprego. Graças aos sistemas de bem-estar social comuns na Europa ocidental, o desempregado em geral tem dinheiro o bastante para viver sem muito desconforto; certamente eles estão muito melhor de vida do que muitos desempregados na África, Ásia ou na Grã-Bretanha do século dezenove. O que é mal acerca do desemprego na Europa ocidental não é tanto qualquer pobreza resultante dele, mas a inutilidade do desempregado. Eles muitas vezes afirmam se sentirem desvalorizados pela sociedade, sem nenhum valor, “no ferro velho”. Eles corretamente pensam que seria bom para eles contribuir; mas eles não podem. Não são apenas as ações intencionais livremente escolhidas, mas também aquelas feitas involuntariamente que têm boas consequências para os outros, que constituem um bem para aqueles que as fazem. Se os desempregados fossem compelidos a trabalhar por algum propósito útil eles ainda — a maioria deles — viriam isso como um bem para eles em comparação com ser inúteis. Ou, se eles não o

vissem assim, sugiro que a maioria de nós que somos empregados e não estamos diretamente envolvidos na situação deles, podemos ver isso como bom para eles. Ou considere o recruta morto numa guerra justa e, ao final, bem sucedida em defesa de seu país contra um agressor tirânico. Quase todos os povos, exceto os do mundo ocidental em nossa geração, reconheceram que morrer pelo próprio país é um grande bem para aquele que morre, mesmo se ele fosse um recruta. E não são apenas atos, mas também experiências vividas involuntariamente (ou a interrupção involuntária de boas experiências, como a devida à morte) têm boas consequências — na medida em que essas experiências são estreitamente conectadas com suas consequências — que constituem um bem para aquele que as vive (mesmo que seja um bem menor que o de uma ação intencional livre que causou aquelas consequências e um bem frequentemente superado pelo mal da experiência em questão). Considere alguém ferido ou morto num acidente que leve a reformas que evitem a ocorrência de acidentes semelhantes no futuro (por exemplo, alguém morto num acidente de

trem, que leve à instalação de um novo sistema de sinalização de ferrovias que evitem acidentes semelhantes no futuro). Os parentes com frequência comentam numa situação assim que, em todo caso, a vítima não sofreu ou morreu em vão. Eles teriam visto o acidente como um infortúnio maior para a vítima se seu sofrimento ou morte não servissem a nenhum propósito útil. É um bem para nós se nossas experiências não são desperdiçadas, mas são usadas para o bem dos outros, se elas são os meios de um benefício que não aconteceria a outros sem elas, que irão ao menos em parte compensar aquelas experiências. Segue-se dessa noção que é uma benção para um ser humano (ou um animal) se a possibilidade de seu sofrimento torna possível o bem para outros de ter a escolha livre de lhe ferir ou causar dano; e se seu sofrimento real provê conhecimento para outros, e lhes permite sentir compaixão por ele e lhes dar a escolha de mostrar ou não comiseração por ele. Assim, é um bem para o gamo pego na mata fechada de uma floresta em chamas que seu sofrimento sirva para o conhecimento do cervo e outros animais que o veem fugir do fogo e evitar que seus filhotes sejam pegos

nele. (Devo esclarecer aqui novamente que — por razões apresentadas anteriormente — eu não estou dizendo que os humanos têm qualquer direito de causar acidentes de trem ou incêndios em florestas do tipo que acabei de descrever. Somente Deus tem esse direito.) É muito melhor se o fato de ser útil é escolhido voluntariamente, mas isso é bom mesmo se não for voluntário. Alguém pode objetar que o bem não está em (por exemplo) morrer pelo próprio país, mas morrer pelo próprio país conscientemente, quando se acredita que é bom fazê-lo — tendo a experiência de estar de bem consigo mesmo ao se sacrificar. Mas isso não pode ser certo. Poderia ser bom ter a experiência em questão apenas se as próprias crenças fossem corretas. Não haveria nada de bom quanto a se acreditar que se estava morrendo por uma boa causa, quando de fato ela fosse uma causa torpe. Pensemos na seguinte analogia: é uma boa coisa ficar contente de que você passou nos suas provas apenas se for uma coisa boa (independentemente de se você acredita nisso ou não) que você passou nas provas. Acreditar que é bom que algo aconteceu não pode fazer com que

seja bom que isso tenha acontecido; será bom ter a crença apenas se for bom em todo caso que aquela coisa aconteceu. Assim, ao passo que crer corretamente que é bom que se esteja morrendo pelo próprio país é um bem, isso só será um bem se morrer pelo próprio país for bom em todo caso (caso se acredite ou não nisso). Uma consequência de tudo isso é que, se alguém se recusa a cometer suicídio porque sabe que alguém que o ama ficará muito pesaroso com isso, então ele é muito afortunado. Ser amado e ter sua vida como valiosa para uma outra pessoa são enormes benefícios para você. E se o provável suicida não vê isso, ele está simplesmente errado. Se Deus existe, o maior bem de todos a esse respeito deve ser útil para Deus mesmo; e todo sofrimento humano que seja útil para os outros será também útil para Deus, que fez o mundo de modo tal que o sofrimento seja mesmo benéfico aos outros. Assim como um médico, ao ajudar uma criança pequena a mover seus membros acidentados, está ajudando tanto a criança quanto os pais da criança, para os quais um dos maiores objetivos na vida é que a criança floresça, assim,

todo sofrimento humano que ajude os outros é útil para Deus na execução de seus propósitos. E quem for útil para a fonte perfeitamente boa de todo ser é mesmo afortunado. Se, contudo, quando mesmo esse grande bem de ser útil é levado em consideração, há seres humanos cujas vidas na Terra são tais que, no fim das contas teria sido melhor para elas nunca terem vivido, então Deus tem uma obrigação de lhe prover com uma boa (em quantidade e qualidade) vida depois da morte, de modo que sua vida total (na Terra e depois disso) seja, no fim das contas, uma boa vida. Sendo onipotente, ele pode fazer isso e não temos razão para supor que (se Deus existe) ele não o faça. Não há nada errado em que um benfeitor conceda uma vida que (dentro de certos limites) é em geral má no seus primeiros estágios, desde que no final do período inteiro ela seja, no fim das contas, boa. Podemos ver isso no fato de que médicos e pais estão seguramente corretos em permitir que um feto ou uma criança pequena sofra uma cirurgia séria ou alguma intervenção médica, desde que esse seja o meio para uma boa vida em geral.

A esse respeito, o que vale para os humanos, vale para os animais também. Deus deve dar a cada um deles, no fim das contas, uma boa vida; o bem de suas vidas deve superar os males nela. Mas para eles também ser útil para os outros — ou aos seres humanos ou a Deus mesmo — é um grande bem, não importa se eles o reconheçam ou não. E eu estou inclinado a pensar (embora possa estar errado) que, devido ao fato de que as dores dos animais são menores que as nossas, quando o grande bem de ser útil é levado em conta, a obrigação de Deus de dar a cada animal uma boa vida seria satisfeita sem qualquer necessidade de vida após a morte. Contudo, se os males deste mundo são tais que, a fim de salvar a hipótese do teísmo de refutação eu precise acrescentar a ela a hipótese de que Deus dá um período de vida boa após a morte para quem quer que tenha uma vida na Terra que, no fim das contas, é ruim (que seria melhor que eles nunca a tivessem vivido), eu estarei complicando o teísmo e desse modo diminuindo sua probabilidade — do mesmo modo que se eu tivesse que acrescentar a ela a hipótese do anjo caído. Eu voltarei a esse ponto em breve.

No entanto, dado esse pressuposto crucial de uma vida compensadora após a morte para aqueles cujas vidas na Terra foram, no fim das contas, ruins, eu afirmo que Deus tem o direito de permitir que os humanos (e os animais) sofram por um período limitado e numa proporção limitada. Mas, em vista do fato de que ele é muito mais um benfeitor do que os homens o são, seus direitos a esse respeito são muito maiores dos que os dos homens. E, é claro, há limites — de tempo (aproximadamente oitenta anos) e de intensidade (sofrer além de um certo ponto leva à morte). (Mais uma vez, espero que o leitor não me tome como insensível ao defender essas ideias. Elas não são ideias que eu apresentaria para uma vítima em seu momento de sofrimento, quando a necessidade é de conforto e não de teodiceia; mas as ideias são corretas e precisam ser levadas em conta por quem quer que queira investigar esse assunto com rigor lógico adequado.) O problema crucial, contudo, é se os limites reais são amplos demais.

A quantidade de mal Pode-se insistir em que, apesar dos bons fins aos quais serve sua ocorrência de fato ou possível, há mal demais no mundo. Minha quarta condição para que um Deus perfeitamente bom permitisse ou levasse a efeito algum mal é de que seja provável que o bem superará qualquer mal necessário para se atingi-lo. E, mesmo que ele de fato o supere, há limites — como notamos — para o direito de Deus de impor o mal. Assim, — será que há no mundo mal demais para um que Deus perfeitamente bom o tenha imposto? Um crítico pode concordar que é necessária uma quantidade substancial de vários tipos de mal a fim de dar oportunidade para bens maiores e em particular uma escolha de destino para os seres humanos — mas ele pode sentir que há simplesmente mal demasiado no mundo e que menos mal produziria um benefício adequado. Pode ser dito que um Deus poderia dar ao homem escolha o bastante ao lhe permitir infligir um pouco de dor aos seus próximos e poderia impedir os humanos de ações danosas por meio de umas dores de cabeça terríveis. Em nosso mundo, continua a objeção, as

coisas são sérias demais. Há mal demais que os seres humanos podem fazer ao próximo e males naturais demais e desagradáveis demais para servirem ao bem de se ter oportunidade para respostas corajosas e de comiseração, e para inferência racional e investigação que esses males dão aos humanos. O sofrimento de crianças e animais é algo que corretamente nos aterroriza. Esse, creio eu, é o ponto crucial do problema do mal. Não é o fato do mal ou os tipos de mal que são a ameaça real ao teísmo: é a quantidade de mal — tanto o número de pessoas (e animais) que sofrem e o quanto eles sofrem. Se Deus existe, o crítico diz, na verdade ele deu aos humanos escolha demais Ele infligiu sofrimento demais a pessoas demais (e animais) para o propósito de tornar possível a eles ter uma escolha livre e fazer diferença muito significativa para eles mesmos, uns aos outros e para o mundo, com base no conhecimento obtido por meio da investigação racional. Nenhum Deus deveria ter permitido Hiroshima, o Holocausto, o terremoto de Lisboa ou a Peste Negra, diz o crítico. Pela objeção de que, se Deus existe, ele exagerou no tocante ao mal, eu sinto simpatia inicial considerável. A objeção parece

contar contra a afirmação de que Deus existe. Mas, então, pode-se dizer também que cada estado ruim ou possível estado ruim eliminado elimina por sua vez um bem real. Cada pequeno acréscimo ao número de estados ruins possíveis ou reais faz um pequeno acréscimo ao número de estados bons possíveis ou reais. Suponha que uma pessoa a menos tenha sido queimada pela bomba de Hiroshima. Então, teria havido uma oportunidade a menos para coragem e comiseração; menos informação acerca dos efeitos da radiação atômica, menos pessoas (parentes da pessoa queimada) que teriam um forte desejo de fazer campanha pelo desarmamento nuclear e a expansão imperialista, e assim por diante. É claro que a remoção de um estado ruim ou da possibilidade de um estado ruim não removerá muito bem, não mais que a remoção de um grão de areia fará muita diferença ao fato de que você ainda tem um monte de areia. Mas a remoção de um grão de areia fará um pouco de diferença, tanto quanto o fará a remoção de um estado ruim. O que, de fato, o crítico está pedindo é que Deus diminua em grande quantidade o número de

sofredores e a intensidade do sofrimento produzido por processos naturais, e o dano que os humanos podem causar uns aos outros. O que isso significa é que, tudo bem, deve haver doenças, mas não que mutilem e matem; acidentes que tornem as pessoas incapazes por um ano ou dois, mas não para a vida toda; nós poderíamos causar dor uns aos outros ou não ajudar uns aos outros a adquirir conhecimento, mas não piorar o caráter, nosso próprio ou dos outros. E nossa influência seria limitada àqueles com os quais temos contato, não haveria a possibilidade de influenciar para o bem ou para o mal as gerações distantes. E a maioria das nossas crenças acerca de como causar efeitos, bons ou maus, seriam crenças com as quais nós já nasceríamos. Um mundo assim, seria um mundo de brinquedo; um mundo no qual as coisas importam, mas não muito; onde podemos escolher e nossas escolhas fazem uma pequena diferença, mas as escolhas reais continuariam sendo de Deus. O crítico está pedindo com esse mundo que Deus não fosse generoso nem confiasse em nós e nem que nos desse oportunidades ocasionais de mostrarmos o que temos de mais heroico. Eu já sugeri que Deus não teria o direito de

dar a ninguém uma vida terrena que fosse, no fim das contas, ruim, a não ser que ele provesse para essas pessoas um período compensatório de vida boa após a morte. Acrescentar ao teísmo a hipótese de que ele o faz é complicar o teísmo. Eu estou também inclinado a sugerir que, se Deus fizesse humanos (e animais) sofrerem na medida em que ele os faz, apesar dos bons propósitos, ele mesmo partilharia conosco nosso sofrimento em virtude de sua bondade perfeita. (Ele reconheceria isso com a melhor ação a fazer.) Nós pensamos que bons pais, que fazem seus filhos comerem uma dieta sem graça por causa de alguma doença, frequentemente comerão a mesma dieta com eles (embora eles mesmos não sofram da doença); ou que, se eles fazem seus filhos brincarem com as crianças da vizinhança que estão precisando muito de amizade, eles procurarão ser amigos dos pais dessas crianças da vizinhança (mesmo que os pais estejam precisando menos de amizade). Bons reis e rainhas partilham o sofrimento que eles exigem de seus súditos por bons propósitos (por exemplo, ganhar uma guerra contra um opressor), mesmo que o sofrimento do rei ou da rainha não fosse por si

mesmo levar adiante aquele bom propósito em particular. Para que ele nos faça sofrer o quanto nós sofremos, Deus deve se fazer encarnado e partilhar o nosso sofrimento. Mas acrescentar ao teísmo a hipótese de que ele o fez é complicar ainda mais o teísmo. Isso porque, ao passo que o fato dele permitir os tipos de mal que ele permite é, como tal, compatível com sua bondade perfeita e não é inesperado em vista dos bons estados que ele torna possível, minha preocupação (como a da maioria das pessoas preocupadas com o problema do mal) é com o grau desse mal (a quantidade que os indivíduos particulares têm de sofrer). Minha ideia é que Deus estaria justificado em permitir esse grau de mal se ele provê um período compensatório de boa vida após a morte (quando necessário) e talvez também partilhe o sofrimento dos humanos e animais ao se tornar encarnado. Apesar de não estar muito convencido de que há humanos para os quais seria melhor não terem vivido, permita-me ainda assim conceder ao crítico sua afirmação de que há casos assim. Sendo assim, o teísmo precisa de uma ou talvez duas hipóteses adicionais complicadoras. Dadas estas, e assim o bem adicional que o mal

adicional torna possível, o grau de mal não é inesperado, pois é bem possível que se espere de Deus que ele peça bastante de nós a fim de nos dar bastante. Assim, dadas essas duas hipóteses adicionais, consciente do período muito curto da vida humana e animal (e numa medida menor, dos limites à intensidade da dor e do sofrimento que pode ser experimentado nessa vida), meu próprio veredito final é de que um Deus não seria menos que perfeitamente bom se ele levasse a efeito ou permitisse ocorrer a quantidade de mal que existe em nome do bem maior que resulta. Porém, a necessidade de hipóteses adicionais a fim de salvar o teísmo torna a teoria teísta resultante mais complicada que o teísmo em si mesmo (teísmo básico) e assim reduz a probabilidade do teísmo básico. Em outras palavras, o teísmo básico torna menos provável que encontremos mal num grau tão grande quanto o seria em vista do conhecimento de fundo apenas, pois o teísmo é compatível com esse indício apenas se adicionarmos a ele uma ou mais hipóteses. Assim, o mal constitui um bom argumento C-indutivo contra a existência de Deus.

Mas ele não constitui um argumento muito forte, pelo fato de que o prover uma vida após a morte para muitos humanos (não apenas aqueles que precisam de compensação) e o tornar-se encarnado para partilhar o sofrimento deles são tipos de ato que um bom Deus poderia muito bem fazer em todo caso — pois eles são bons atos (e talvez atos bons de tipos diferentes dos outros atos de Deus que viemos discutindo e talvez mesmo atos dos melhores tipos), sendo ou não necessários para Deus permitir justificadamente a quantidade de mal que ocorre. (Veja a p. 379-80 para o bem de um ato do tipo anterior e pp. 468-72 para razões adicionais que Deus pode ter para se tornar encarnado.) Assim, com e como a ocorrência de males morais e naturais conhecidos por nós, h como a hipótese do teísmo e k como os indícios considerados nos capítulos anteriores, P(h/e&k)P(h/k). Vai depender da força do testemunho o grau no qual P(h/e&k) será maior que P(h/k). Na medida em que os indícios sugerirem que Deus não existe, o testemunho da ocorrência dessas violações será provavelmente enganoso — mas o quanto isso é provável dependerá do quanto é improvável começar com a tese de que Deus existe e do quão forte for o testemunho (ou seja, de quantas testemunhas de reconhecida honestidade e precisão no relato testemunharam o evento). Hume comentou que “todo milagre… pretendeu ter sido operado em qualquer dessas religiões [da Roma antiga, da Turquia, do Sião e da China”] tendo seu escopo direto estabelecer o sistema particular ao qual ele é atribuído; assim, ele tem a mesma força... para derrubar qualquer outro sistema”.[159] Ou seja, posto na minha terminologia e usando um exemplo particular, o indício de uma violação que, se ocorreu, mostraria que a aprovação

de Deus de uma doutrina islâmica seria desse modo indício contra a ocorrência de qualquer violação que, se tivesse ocorrido, mostraria a aprovação de Deus de alguma doutrina cristã incompatível com a doutrina islâmica e vice-versa. Se a produção do Corão foi realmente um milagre, a Ressurreição não poderia ter acontecido e vice-versa. Contudo, embora essa tese seja formalmente correta, note que muitos poucos supostos milagres têm esse caráter. A maioria é simplesmente resposta a prece por necessidades de indivíduos particulares.; e é compatível tanto com as doutrinas cristã e islâmica quanto com as doutrinas da maioria das outras religiões que Deus pode responder a preces de membros de todas as religiões. E muitas doutrinas de uma religião são compatíveis com doutrinas de outra religião. O cristianismo incorpora a maior parte do judaísmo e certamente reconhece sem problema a ocorrência dos milagres fundadores deste. Mas há casos de conflito e para esses casos a tese de Hume está correta. Segue-se disso que a religião (se é que alguma) que tem os milagres mais bem autenticados tem os melhores indícios dessa fonte em seu apoio.

Encarnação Seria apropriado, antes de concluir este capítulo, ilustrar com mais pormenor o papel do milagre fundador do cristianismo, a religião dentre as grandes religiões nas quais os milagres tiveram o papel mais importante. O cristianismo alegou que há um evento especial que Deus tem razão de levar a efeito, uma intervenção particular dele mesmo no mundo que ele fez, uma encarnação. Suponha que a raça humana entre numa confusão realmente ruim. Suponha que as pessoas nesse caso abusem tanto de sua liberdade que ensinem às outras o mal e não o bem. Elas não sabem de modo nenhum que ações são corretas e que ações são erradas, e elas escondem delas mesmos até o que de fato sabem. Elas mostram pouco interesse sobre de onde vêm (por exemplo, se têm um criador ao qual gratidão e ritual são devidos), ou se existe algum sentido na vida delas e se há um destino para a raça humana. Elas não se importam com seus irmãos, mas vivem por si mesmas. Ora, a visão cristã é de que a condição humana era mais ou menos assim no

começo da civilização; e que, apesar de várias influências externas, especialmente a cristã, ainda é assim. É claro que é uma questão controversa se a visão cristã nesse caso é correta, algo que vai desembocar em assuntos de história, psicologia e moral; e, mais uma vez, não há espaço para aprofundar nesses temas. Contudo, poucos no começo do século vinte e um negariam que essa visão tem certa plausibilidade. Suponha que essa visão cristã da condição humana é correta. O que Deus tem razão de fazer quanto a isso? Pode haver mais de uma coisa que Deus pode fazer quanto a essa condição humana; mas um tipo de resposta que Deus tem razão de dar é o seguinte. Ele pode concluir que as coisas foram tão mal que era necessária uma expiação; que a raça humana deveria mostrar sua contrição a seu criador pela ação sacrificial. Contudo, ele também poderia concluir que não estava dentro da capacidade de uma raça decaída fazer esse tipo de expiação; e que, se deveria ser feita uma expiação, ela deveria ser feita em nome da raça por um ser humano preservado das piores influências às quais a humanidade era normalmente sujeita. Porém, não

seria correto por parte de Deus escolher algum ser humano comum para fazer um sacrifício assim. Deus não poderia insistir no sacrifício de ninguém mais além dele mesmo. Assim, Deus tem razão em realizar uma encarnação de algum tipo ao tornar-se humano ele mesmo a fim de fazer uma expiação. Mais uma vez, há grandes pressupostos cristãos aqui que não há espaço para discutir — por exemplo, se a expiação desse tipo é moralmente boa ou se é melhor para as pessoas simplesmente esquecerem os erros; e há também um grande pressuposto filosófico — que é coerente supor que um Deus pode se encarnar (talvez haja uma autocontradição em supor que um Deus pode se tornar um ser humano) e não há espaço para discutir esse assunto tampouco. Contudo, a fim de prosseguir com o argumento, suponhamos que a visão moral cristã da adequação da expiação é correta, e que o conceito de uma encarnação é coerente. Assim como Deus poderia concluir que uma encarnação para fazer uma expiação seria uma coisa boa, Deus poderia também concluir que a raça humana precisaria de um novo começo com um líder supremo e um inspirador para fundar uma sociedade na qual seu

trabalho fosse continuado. O líder precisaria ensinar à raça humana verdades morais que ela teria percebido apenas de modo imperfeito; talvez, em virtude de seu status, e também para dar a ela novas leis morais e para mostrar pelo exemplo como se comportar. Contudo, novamente, para preservar a liberdade humana, os poderes do líder e da sociedade não devem ser evidentes demais ou por demais “sobrenaturais”. Além disso, em terceiro lugar, e mais importante de tudo, Deus poderia decidir impor à raça humana um considerável fardo de mal por causa do considerável bem que isso torna possível. Nesse caso, como falei no último capítulo, não seria apenas muito bom, mas obrigatório para Deus tornar-se encarnado para dividir o fardo conosco. Por essas razões, dados os pressupostos apresentados, se Deus existe e se a condição humana decai muito, podemos muito bem esperar que apareça na terra um ser humano que viveu uma vida humilde e de sacrifício e que sofreu o mal que os seres humanos fazem para outras pessoas (por exemplo, sofrer uma morte injusta nas mãos destes), que ensinou grandes verdades morais e religiosas,

que até mesmo sugeriu que ele era Deus e que fundou uma sociedade para continuar seu trabalho. Ele poderia demonstrar a compaixão divina pela cura e o poder divino por violar aparentemente as leis naturais a fim de realizar isso. Ele poderia mostrar às pessoas, por meio da violação de leis naturais num modo supremo, por sua ressureição dos mortos, que sua expiação valeu e que era possível para elas, em sua nova sociedade, reformarem o mundo. Contudo, nada disso seria muito óbvio, a fim de que pudesse ficar como opção genuína para os seres humanos rejeitar essa alegação de encarnação divina. Se tivermos indícios de que as coisas aconteceram desse jeito, como na história cristã da vida, morte e ressureição de Jesus de Nazaré, e se também tivermos razão para acreditar que a moral ensinada e que outros pressupostos são verdadeiros, então tudo isso vai confirmar a afirmação de que Deus existe, pois Deus tem razão de levar a efeito um estado de coisas assim — ou seja, o bem dos humanos. A analogia do bom pai ou do bom cônjuge que faz um sacrifício supremo para salvar seu filho ou cônjuge perdidos também sugere que algo assim pode ser esperado. É claro que Deus

pode ter razões para não levar a efeito um estado assim. Pode haver estados de coisa alternativos que ele teria razão de levar a efeito em vez daquele. Porém, há certamente estados de coisas que ele pareceria ter razão predominante para não levar a efeito — por exemplo, deixar a raça humana eternamente fazer a si mesma infeliz por meio das más escolhas meio conscientes dos pecadores nos séculos anteriores a Cristo. Assim, a ocorrência de eventos do tipo descrito é mais provável se Deus existe do que se não existe, e assim sua ocorrência seria indício de sua existência. Existe claramente algum indício histórico em favor de tudo isso, inclusive o relato de testemunhas do evento crucial da ressurreição corpórea de Jesus que, se ocorreu, seria uma violação de leis naturais, para além de qualquer dúvida razoável. Não há espaço neste livro para discutir se esses indícios são muito bons, nem há espaço para discutir os pressupostos metafísicos e morais que são requeridos para que esse evento (se aconteceu) possa por sua vez ser indício das doutrinas centrais da religião cristã[160]. Minha preocupação aqui foi apenas apontar o tipo de indício que é relevante para

essa questão e indicar que esse indício seria também indício para a existência de Deus, ofereceria um bom argumento C-indutivo em favor de sua existência. É claro que é muito improvável que eu ou o leitor fôssemos pensar que seria muito provável que Deus fosse fazer esse tipo de coisa a menos que nós tivéssemos tido contato com a tradição cristã ou alguma tradição religiosa semelhante a esta, e viéssemos assim a acreditar que a condição da raça humana era ruim e que havia necessidade de expiação, por exemplo. Porém, não há razão para pensar que o que pensamos não é verdadeiro. A menos que eu tivesse sido criado na tradição da matemática ocidental, eu provavelmente não acreditaria que não existe um número primo maior de todos, pois eu sequer teria o conceito de número primo. Contudo, uma vez que eu retirei da tradição os conceitos relevantes, estou em posição de avaliar a prova de que não existe o maior número primo. Do mesmo modo, a fim de acreditar no sistema religioso cristão (ou qualquer outro), precisamos primeiro que nos ensinem os componentes do sistema; só então estaremos em posição de avaliar se ele é verdadeiro ou não.

Conclusão Defendi no início deste capítulo que há certos eventos na história humana cuja ocorrência não há dúvida de que Deus teria razão para levar a efeito, e que são mais prováveis de acontecer se Deus existe do que se ele não existe. Até o quanto sabemos a ocorrência deles pode ser causada pela operação normal das leis da natureza. Contudo, na medida em que, se Deus não existe, não há razão para supor que as leis naturais teriam esse caráter, isso oferece indício adicional da existência de Deus, fazendo, a meu ver, um pequeno acréscimo à probabilidade da existência de Deus. Porém, argumentei que há outros eventos, cuja ocorrência é discutida, que são tais que, se ocorreram, terão sido violações das leis da natureza de um tipo que Deus teria razão para levar a efeito; e assim, um indício de tal modo significativo pela ocorrência deles certamente confirmaria o teísmo. Por razões de espaço, porém, não discuti se algum desses eventos alegados realmente ocorreu. E, ao discutir um fenômeno particular — a vida, morte e alegada

ressurreição de Jesus de Nazaré — passei por cima de questões morais e filosóficas cruciais, bem como de historicidade. Essas questões são, infelizmente, controversas e grandes demais para serem discutidas nos limites deste livro. Há lacunas inevitáveis e cruciais no argumento deste capítulo, o que não ocorreu nos capítulos anteriores. Contudo, precisamos de algum resultado para levar para o próximo capítulo. Assim, sugiro que, em vista de que alguns poucos eventos que ocorreram (que não são necessariamente violações de leis naturais) de fato confirmam o teísmo, e de que há claramente algum pequeno indício (na forma de muitos testemunhos) da ocorrência de violações de leis naturais (de um tipo que Deus teria razão de levar a efeito), dizemos que há um argumento Cindutivo fraco a partir de vários indícios particulares na história em favor da existência de Deus. Se algum leitor, após consideração mais pormenorizada dos indícios históricos, pensar que há um argumento C-indutivo mais forte ou que não há nenhum argumento C-indutivo aqui, ele vai precisar reforçar (ou enfraquecer) minhas conclusões subsequentes.

13. O argumento da experiência religiosa Se Deus existe, pode-se bem esperar que ele não vai se ocupar apenas com o progresso da raça humana ao dar oportunidades para os humanos fazerem coisas que valem a pena ou se revelar num momento particular da história ou se preocupar com indivíduos particulares, atendendo suas preces; mas talvez também mostrando-se e falando individualmente, de algum modo, com algumas das pessoas que ele criou e que são capazes de pensar em Deus e adorá-lo. Certamente, não se esperariam manifestações públicas e muito evidentes, pela razão que eu dei no Capítulo 11. Se a existência de Deus e suas intenções se tornassem elementos de conhecimento comum evidente, então nossa liberdade de escolher entre bem e mal seria enormemente reduzida. Contudo, podem-se esperar manifestações ocasionais e privadas de Deus a algumas pessoas, embora talvez não a todos,

também pelas razões dadas no Capítulo 11. O argumento da experiência religiosa afirma que isso aconteceu com frequência; muitos tiveram experiência de Deus (ou alguma coisa sobrenatural ligada a Deus) e assim sabem e podem nos falar acerca de sua existência. A natureza da experiência religiosa Comecemos investigando a premissa. O que são as “experiências religiosas” cuja ocorrência se supõe ser indício da existência de Deus? Uma experiência é um evento mental consciente. Ela pode ser descrita de modo a acarretar a existência de alguma coisa externa particular afora o sujeito, para além do fluxo de sua consciência, normalmente a coisa da qual ela é uma experiência; ou pode ser descrita de modo tal a não levar a tal consequência. Assim, “ouvir o ônibus lá fora” não é despropositadamente descrito como uma experiência; mas se eu tenho essa experiência, se eu realmente ouço o ônibus lá fora, então se segue que há um ônibus lá fora. Contudo, se eu descrevo minha experiência como “tendo uma sensação

auditiva que me parecia vir de um ônibus lá fora”, minha descrição não acarreta a existência de algo externo, do qual a experiência era alegadamente uma experiência (ou alguma outra coisa externa). Ao primeiro tipo de descrição, eu chamarei uma descrição externa e a este último, descrição interna. Ora, quando as pessoas falam a respeito de experiências religiosas, elas com frequência dão descrições externas destas. Tais descrições externas podem ser bastante precisas — “eu falei com Deus ontem à noite”, ou “eu vi Poseidon perto da janela” ou, um pouco mais vagamente, “eu me vi consciente de uma realidade atemporal além de mim mesmo”. O problema de tomar qualquer descrição externa como premissa de um argumento da experiência religiosa é que haverá consideráveis dúvidas acerca da verdade da premissa; mas, uma vez que você aceite a premissa, você estará muito obviamente a um bom caminho andado, senão todo ele, da sua conclusão. Se você aceita que Joe falou com Deus ontem à noite, então, obviamente, Deus existe — isso quase não precisa de um argumento para mostrá-lo. Se você aceita que Joe se fez consciente de uma realidade atemporal além dele mesmo,

então, é preciso reconhecer, isso não demonstra a existência de Deus, mas você terá percorrido um bom caminho na direção dessa demonstração. Assim, parece natural dizer que, para serem úteis, todos os argumentos da experiência religiosa devem ser apresentados como argumentos de experiências que têm uma descrição interna. Há vários modos de dar uma descrição interna da experiência de alguém, mas no caso da maioria das experiências, incluindo aquelas que o sujeito acredita ser de algo além dele mesmo, um modo normal é descrever como as coisas “parecem” ou “assemelham-se” para o sujeito — alguém pode dizer “a sala parecia estar dando voltas”, ou “o tapete parecia azul” ou “ele parecia estar indo embora de onde eu estava”. Ou, ao dar tais descrições, podemos usar verbos que descrevem como as coisas se assemelham para o sujeito, cujo uso se restringe ao relato das resultantes de modos particulares dos sentidos — verbos como “parece”, “dar a sensação” ou “ter o gosto de”; eu posso dizer “parecia que o ônibus estava indo embora de onde eu estava” ou “dava a sensação de algo macio” ou “tinha o gosto de abacaxi”. Há uma distinção crucial devida a Chisholm

entre os usos epistêmico e comparativo de verbos como “parecer”, “assemelhar-se”, “dar a impressão”, etc.[161] Usar essas palavras em seu uso epistêmico é descrever o que o sujeito está inclinado a acreditar com base em sua experiência sensorial presente. Se eu digo “o navio parece estar se movendo”, estou dizendo que estou inclinado a acreditar que o navio está se movendo e que é minha experiência sensória presente que me leva a ter essa inclinação a crer. Se eu estou usando “parece” deste modo quando digo “a moeda parece empenada”, estou dizendo que estou inclinado a pensar que ela está empenada e que minha inclinação de acreditar vem de minha experiência visual presente. Por outro lado, usar “parece”, etc., no uso comparativo é comparar o modo como um objeto parece com o modo pelo qual outros objetos normalmente parecem. Nesse uso, “a moeda parece empenada” significa “a moeda parece do modo que coisas empenadas normalmente parecem”. O falante não está dizendo e não quer dizer que ele está inclinado a acreditar que a moeda está empenada; ele pode muito bem saber que ela não está. Do mesmo modo, no uso comparativo de “daqui parece vermelho” significa “daqui parece da

maneira como coisas vermelhas normalmente se assemelham”. Quando eu descrevo uma experiência em termos do modo como as coisas parecem (epistemicamente) para o sujeito, eu direi que eu a descrevo epistemicamente. Uma descrição interna plena das experiências de um sujeito pareceriam envolver ambos tipos de descrição interna. Quando eu olho para uma moeda na mesa desde um determinado ângulo, ela usualmente parece (no sentido comparativo) empenada e (no sentido epistêmico) redonda — e minha experiência é da moeda aparecer para mim das duas maneiras. É o bastante para o que seja “experiência” e os modos pelos quais podemos descrevê-la. Mas o que constitui uma “experiência religiosa”? O conceito de uma “experiência religiosa” no uso comum tem um limite tão indefinido quanto o conceito de religião e, a fim de falar de argumentos nesse campo, precisamos torná-lo um pouco mais preciso. Para nossos propósitos presentes, será útil defini-la como uma experiência que parece (epistemicamente) ao sujeito ser uma experiência de Deus (ou dele apenas estar ali ou dele dizendo ou fazendo algo) ou de alguma outra coisa

sobrenatural.[162] A coisa pode ser uma pessoa, como Maria ou Poseidon; ou o Céu, ou uma “realidade atemporal para além de mim mesmo” ou algo igualmente misterioso e difícil de descrever. Para a maior parte da discussão, eu estarei preocupado com experiências que parecem ser simplesmente da presença de Deus e não com as dele parecer falar ao sujeito uma determinada coisa ou fazer algo específico. Mas, onde for relevante, eu vou contrastar experiências de Deus com experiências de outros seres sobrenaturais. Eu discutirei experiências mais específicas no final do capítulo. A característica crucial da definição à qual eu chamo atenção é que o que torna religiosa uma experiência é o modo pelo qual ela parece ao sujeito. Essa definição dá conta daquelas experiências que são mais importantes para o propósito deste livro. Supõe-se que elas manifestem claramente sua origem religiosa. O que deve haver para que o sujeito esteja correto, de fato tenha uma experiência de Deus, ou seja, esteja consciente de Deus e assim, num sentido muito geral perceber Deus (acreditando que ele o está fazendo)? (Eu falo de tal consciência

de Deus como uma percepção sem implicar que a consciência é necessariamente mediada pelos sentidos normais. “Perceber” é o verbo geral para consciência de algo além de si mesmo, o que pode ser mediado por qualquer um dos sentidos comuns — por exemplo, pode ser uma questão de ver ou ouvir ou sentir o gosto — ou por nenhum destes.) A mim parece, por razões que outros apresentaram profundamente, que a teoria causal da percepção é correta — que S percebe x (acreditando que o está percebendo)[163] se e somente se uma experiência de parecer (epistemicamente) a S que x está presente é causada pelo fato de x estar presente.[164] Assim, S tem uma experiência de Deus se e somente se o fato de parecer a ele que Deus está presente é de fato causado por Deus estar presente. Antes de continuar a descrever os diferentes tipos de experiência religiosa, eu preciso apresentar duas ideias preliminares adicionais. Primeiro, eu preciso distinguir entre percepções públicas e privadas. Um objeto x pode ser tal que cause — em todas as pessoas corretamente posicionadas com certos órgãos sensoriais e certos conceitos e que prestam um certo grau de atenção — a eles terem a

experiência de lhes parecer que x está presente.[165] Nesse caso, nós diremos que a percepção de x é uma percepção pública. Quase todas as nossas percepções — por exemplo, o fato de eu ver um objeto material como uma escrivaninha — são, nesse sentido, percepções públicas, pois uma escrivaninha é um objeto tal que causa — a todas as pessoas perto dele (sem quaisquer objetos materiais entre elas e ele), cujos olhos estão voltados para ela, que estão atentas e que têm visão normal e o conceito de uma escrivaninha — ter-se a experiência de parecer a elas que há ali uma escrivaninha. Mas podem haver objetos o que causam certas pessoas terem a experiência de lhes parecer que o está presente sem que eles tenham esse efeito em qualquer outra pessoa atenta que ocupe posições semelhantes e tenham órgãos sensoriais e conceitos semelhantes. Isso poderia se dar apenas porque as cadeias causais que causam as percepções de o não são todas determinísticas — por exemplo, as leis da ótica podem ser tais que não haja garantia de que um observador convenientemente equipado sempre veria o que há ali. Ou poderia ser porque o é uma pessoa que pode escolher a quem causar ter uma

experiência de seu parecer que o está ali. o pode ser uma pessoa normalmente invisível com o poder de se permitir que você, mas não eu, o veja. Se S tem a experiência de lhe parecer que o está ali, mas ou por causa da escolha de o ou por alguma outra razão, nem toda pessoa atenta corretamente posicionada e equipada necessariamente teria a experiência, então S tem, eu direi, uma percepção privada de o. Se as experiências religiosas são de algo — ou seja, são percepções — elas são normalmente percepções privadas. Quando uma pessoa tem uma experiência religiosa, alguém ao seu lado, igualmente atento e igualmente bem equipado com órgão sensoriais e conceitos, não tem. A explicação da pessoa religiosa para isso é que Deus, ou os deuses, confere tais experiências àqueles que ele escolhe dar, não a todos indiscriminadamente. Em segundo lugar, chamo a atenção para a relação entre experiências. Frequentemente, percebe-se uma coisa percebendo-se uma outra. Ao ver um homem vestido de tal e tal modo, eu posso ver John Smith. Ao ver a impressão e tal e tal forma na areia, eu posso ver a pegada de um urso. Ao ver uma estrela especialmente brilhante no céu, posso

ver Vênus perto da Terra. Nesses casos, minhas próprias mesmas sensações visuais ou outras (descritas comparativamente) que dão origem à minha percepção da primeira coisa também dão origem à minha percepção da segunda. Ao perceber a segunda coisa, não se vê nada além no sentido de um novo elemento que tinha escapado do alcance antes; ao invés disso, percebe-se a primeira coisa como a segunda coisa. Nesses casos, uma pessoa pode perceber ambas coisas e uma outra pessoa, perceber apenas a primeira coisa e, no entanto, ambos terem as mesmas sensações visuais. Essa relação que vale entre percepções pode também valer entre experiências descritas epistemicamente. Ao me parecer (epistemicamente) ver o homem vestido de tal e tal maneira, eu posso ver John Smith. Em tais casos, as mesmas sensações (descritas comparativamente) que dão origem a primeira experiência também dão origem à segunda. Duas pessoas podem ambas ter as mesmas sensações visuais ou outras (descritas comparativamente) (por exemplo, um ponto brilhante no meio de seus campos visuais) e embora por meio dessas sensações um possa ter uma certa

experiência descrita epistemicamente (por exemplo, parecer ver um farol ao longe) e o outro pode não tê-la. Ou, é claro, as mesmas sensações visuais ou outras podem dar origem a experiências totalmente diferentes (descritas epistemicamente) em pessoas diferentes. Cinco tipos de experiência religiosa Com essas ideias em mente, será útil classificar os diferentes tipos de experiência religiosa. No tempo devido, apresentarei ideias semelhantes acerca de todas elas, mas vale a pena nesse momento apontar para a diversidade das experiências que são abarcadas por nossa definição. Primeiro, temos experiências que parecem (epistemicamente) ao sujeito serem experiências de Deus ou alguma outra coisa sobrenatural, mas quando ele parece perceber o objeto sobrenatural ao perceber um objeto comum não religioso. Assim, alguém pode olhar para o céu estrelado e de repente “vê-lo” como obra de Deus, algo que Deus está levando a efeito (no modo como alguém pode ver um rastro de fumaça no céu como traço da

passagem de um avião). Ela tem, pode-se dizer, uma experiência de contingência. Em segundo lugar, há experiências que as pessoas têm ao perceberem objetos públicos muito inusitados. (A ocorrência do objeto inusitado pode ou não constituir uma violação da lei natural.) As experiências tidas por aqueles que testemunharam “as aparições do Jesus ressurreto” ou a “aparição de Maria” em Fátima ou a experiência de São Paulo no caminho para Damasco (como uma grande luz que brilhou sobre ele, segundo Atos 22:9) estão nessa categoria, se os relatos desses eventos são minimamente confiáveis. Um homem que se parece e fala como Jesus que tinha sido crucificado três dias antes de repente apareceu dentre eles e comeu peixe (pareceu e falou como Jesus no sentido comparativo — ou seja, parecendo e falando do modo como Jesus costumava parecer e falar). Porém, ao perceberem esse evento público, os discípulos tiveram a experiência religiosa de tomarem aquele homem como Jesus Cristo ressurreto. A experiência religiosa deles era de que ele parecia com Jesus no sentido epistêmico e eles o acreditaram sê-lo. Um cético pode ter tido as mesmas sensações visuais (descritas

comparativamente) e ainda não terem a experiência religiosa. As outras três classes de experiências religiosas não envolvem tomar fenômenos públicos religiosamente. Nelas, o divino é apreendido por meio de algo privado ao sujeito. Em terceiro lugar, temos casos nos quais o sujeito tem uma experiência religiosa ao ter certas sensações privadas a ele mesmo, sensações de um tipo descritível pelo vocabulário normal usado para descrever sensações que resultem do uso de nossos cinco sentidos. Em seu sonho descrito em Mt 1: 20-1, José sonhou que viu um anjo que lhe disse certas coisas. Aqui, não havia fenômenos públicos, mas José teve certas sensações privadas que ele poderia ter sido capaz de descrever por meio de vocabulário sensorial normal — por exemplo, ele teve a sensação visual igual à sensação que ele teria tido se estivesse olhando um homem vestido de branco e as sensações auditivas que ele teria tido se alguém estivesse falando isso e aquilo para ele. (Ele pode ter sido capaz de nos dizer as palavras mesmas que o anjo pareceu estar dizendo a ele.) O que tornou o sonho uma experiência religiosa foi que, ao ter sensações e após

ter acordado, parecia a José que um anjo estava falando com ele — ou seja, ele tomou aquele homem no sonho como sendo um anjo real e não apenas um anjo num sonho e as palavras no sonho como as palavras faladas pelo anjo. (O que o autor bíblico queria dizer ao afirmar que era um sonho é presumivelmente que a experiência era tal que o sujeito a teve quando, segundo critérios públicos normais, ele estava dormindo e que a experiência não era de um fenômeno público, mas que, naquele momento, mas não depois, parecia a José que era de um fenômeno público.) Em quarto lugar, temos o caso no qual o sujeito tem uma experiência religiosa ao ter certas sensações privadas a si mesmo e no entanto estas não são descritíveis por vocabulário normal. O sujeito tem algumas sensações análogas às sensações de tipos normais — por exemplo, sensações auditivas ou visuais, mas apenas análogas — tais que, se sua experiência era de um fenômeno público, ele poderia dizer que era a experiência de um sexto sentido.[166] Presumivelmente, estão tendo experiências desse tipo, os místicos e outros que acham difícil, senão impossível, descrever suas

experiências religiosas e ainda assim sentem que há algo para ser descrito caso eles tivessem as palavras para as descrever. Finalmente, em quinto lugar, temos experiências religiosas que o sujeito não tem ao ter sensações. Parece ao sujeito, talvez muito fortemente, que ele está consciente de Deus ou de uma realidade atemporal ou alguma coisa assim e ainda assim não porque ele está tendo certas sensações — assim como pode parecer fortemente para mim que minha mão atrás de mim está virada para cima ao invés de estar para cima, e no entanto, não por causa de qualquer sensação. Muitos místicos que afirmam ter experiência de Deus via “nada” ou “escuridão” podem estar afirmando que sua experiência de Deus se dá não mediada por qualquer sensação. Casos mais comuns, contudo, também caem nessa categoria. Alguém pode estar convencido de que Deus está lhe dizendo para fazer isso e aquilo (por exemplo, seguir tal e tal vocação) e no entanto, não estar ocorrendo nenhuma sensação auditiva ou outra. Se se pergunta ao sujeito “o que havia na sua experiência que a fez parecer a você que você estava tendo uma experiência de Deus?” no caso das

experiências do terceiro e quarto tipos (como também com experiências dos dois primeiros tipos), há uma resposta parcial, embora no caso das experiências do quarto tipo possamos não ter o vocabulário para dar essa resposta. No caso de experiências do terceiro tipo, a resposta parcial será “por causa de tais e tais sensações auditivas ou visuais ou de outro tipo descritível que eu tive”. A resposta será parcial porque o mero fato de que alguém estava tendo tais e tais sensações não faz a experiência parecer ser de Deus; alguma outra pessoa poderia ter aquelas sensações sem por meio dela ter uma experiência religiosa. No caso de experiências do quarto tipo, a resposta à questão será “por causa das sensações inusitadas e virtualmente indescritíveis que eu tive”. Mas no caso de experiências do quinto tipo, a resposta para “o que havia na sua experiência que a fez parecer-lhe que você estava tendo uma experiência de Deus?” será “ela simplesmente pareceu. Não havia sensações visuais, auditivas ou quaisquer outras sensações que a fizeram parecer desse modo a mim”. É o bastante para minha classificação das

experiências religiosas. Ela é, creio eu, tanto exclusiva quanto exaustiva. Isso porque, certamente, uma experiência que parece ser de Deus pode ou não ser mediada por algo sensorial (ou seja, pode haver ou não uma resposta à questão “o que havia na sua experiência que a fez parecer-lhe que você estava tendo uma experiência de Deus?”). Se for mediada por algo, esse algo pode ser público ou privado. Se for privado, ele pode ou não ser descritível por vocabulário sensorial normal. Se for público, pode ser fenômeno comum e bem conhecido ou algo muito estranho, cuja ocorrência pode ser discutida. Contudo, embora a classificação seja exclusiva e exaustiva, pode às vezes não ser de modo algum óbvio, mesmo para o sujeito, a que classe uma dada experiência pertence. Por exemplo, suponha que eu esteja só e pareça ver e falar com uma figura vestida de branco, que eu penso ser um anjo. A classificação correta da experiência depende do que outros teriam experimentado se eles tivessem estado lá — isso eu posso não saber ou não ter qualquer meio de descobrir. Se outros também tivessem visto uma figura vestida de branco, então a experiência seria do segundo tipo; se não, seria do

terceiro tipo. Não há dúvida nenhuma de que milhões de seres humanos ao longo dos séculos tiveram experiências religiosas de um ou mais dos tipos acima. De fato, essa afirmação parece mesmo avaliar por baixo a situação. Para muitas pessoas, a vida é uma vasta experiência religiosa. Muitas pessoas veem quase todos os eventos de sua vida não meramente a partir de sua descrição comum, mas como obra de Deus. Ou seja, para muitas pessoas, muitos dos fenômenos públicos da vida são vistos religiosamente e assim constituem experiências religiosas do primeiro tipo. O que é visto por uma pessoa como simplesmente um dia chuvoso é visto por outra como Deus nos lembrando de sua generosidade em nos prover constantemente com comida ao regar as plantas. O que é visto por uma pessoa como meramente uma doença grave é vista por outra como Deus a punindo pelos pecados de sua juventude. Que Deus está agindo não é uma inferência para essas pessoas, mas o que parece (epistemicamente) estar acontecendo. John Hick chamou-nos a atenção para esse fenômeno em vários de seus trabalhos, mas

especialmente em Faith and Knowledge. Ele observa que: Os profetas do Antigo Testamento, por exemplo, experimentavam sua situação histórica como uma na qual eles estavam vivendo sob o clamor soberano de Deus e na qual o modo apropriado de agir era como agentes de Deus; ao passo que para a maior parte de seus contemporâneos, que estavam “experimentando como” num modo diferente, a situação não tinha essa significação religiosa. A interpretação dos profetas da história hebraica, tal como esta está incorporada no Antigo Testamento, mostra que eles estavam “experimentando como” num modo característico e consistente. Onde um historiador secular veria operando vários fatores econômicos, sociais e geográficos causando o surgimento e queda de cidades e impérios, os profetas viram por trás disso tudo a mão de Deus erguendo e subjugando, e gradualmente atingindo um propósito. Quando, por exemplo, os caldeus estavam às muralhas de Jerusalém, o profeta Jeremias experimentou esse evento não simplesmente como uma ameaça política estrangeira, mas também como o julgamento de Deus sobre Israel... É importante considerar que essa não era uma interpretação no sentido de uma teoria imposta retrospectivamente sobre fatos lembrados. Era o modo pelo qual o profeta de fato experimentava e participava nesses eventos naquele momento.[167]

Assim como as experiências do primeiro tipo, muitas pessoas, tanto as que são boa parte do

tempo crentes religiosas quanto aquelas que não são, tiveram muitas experiências religiosas de outros tipos.[168] A questão que deve ser enfrentada agora se refere ao valor indiciário de tudo isso. Será o fato de todas essas experiências terem ocorrido indício da existência de Deus (ou alguma outra realidade sobrenatural)? O princípio de credulidade Ao discutir a experiência religiosa, alguns filósofos às vezes afirmaram que uma experiência não é indício de coisa alguma além dela mesma e que, portanto, a experiência religiosa não tem valor indiciário. Essa observação reflete uma atitude filosófica que esses filósofos não adotariam ao discutir experiências de nenhum outro tipo. Muito obviamente, ter a experiência de parecer (epistemicamente) a você que há uma mesa aí (ou seja, de você parecer ver uma mesa) é bom indício para supor que há aí uma mesa. Ter a experiência de parecer (epistemicamente) a você que eu estou aqui dando uma aula (ou seja, de você parecer me ouvir

dando uma aula) é bom indício para supor que eu estou aqui dando aula. Assim, geralmente, ao contrário da afirmação filosófica original, eu sugiro que é um princípio de racionalidade que (na falta de considerações especiais), se parece (epistemicamente) a um sujeito que x está presente (e tem algumas características), então provavelmente x está presente (e tem aquela característica); o que alguém parece perceber provavelmente é daquele modo. Do mesmo modo, eu sugiro que (na ausência de considerações especiais) deve-se confiar na memória aparente. Se parece a um sujeito que no passado ele percebeu algo ou fez alguma coisa, então (na ausência de considerações especiais) provavelmente ele a fez. O modo como as coisas parecem ser (em aspectos contingentes),[169] ou seja, como nós parecemos percebê-las, experimentálas ou lembrá-las são boas bases para uma crença acerca de como as coisas são ou foram. Quanto mais forte a experiência, mais forte a memória, mais provável é que o que parecemos perceber ou lembrar é verdadeiro — se não houver outros problemas. A memória, é claro, é menos forte que a experiência presente e às vezes tão fraca que só

torna um pouco provável que aquilo parecemos lembrar é verdadeiro. Esse princípio, que eu chamarei de Princípio de Credulidade e a conclusão tirada dele, parecem-me corretos. Parece-me, e espero que aos meus leitores também, que é intuitivamente certo, na maioria dos casos como os que eu acabei de mencionar, tomar o modo como as coisas parecem como sendo o modo como as coisas são. Disso se seguiria que, na falta de considerações especiais, todas as experiências religiosas deveriam ser tomadas por seus sujeitos como genuínas e assim como bases substanciais para a crença na existência de seu objeto aparente — Deus ou Maria ou a Realidade Última ou Poseidon.[170] Note que o princípio está formulado de forma que o modo como as coisas parecem positivamente ser é indício de como são elas, mas o modo como as coisas não parecem ser não é um tal indício. Se me parece que há uma mesa na sala ou uma estátua no jardim, então provavelmente há. Mas, se me parece que não há uma mesa na sala, então isso só é razão para supor que não há se há bons fundamentos para supor que eu olhei em todo lugar na sala e (tendo meus olhos em bom

funcionamento, sendo capaz de reconhecer uma mesa quando eu vejo uma, etc.) teria visto uma se houvesse alguma ali. Uma alegação do ateu de ter tido uma experiência de lhe parecer que Deus não existe poderia ser indício de que Deus não existe apenas se restrições semelhantes fossem satisfeitas. Mas, admitindo-se que minha rejeição no Capítulo 11 do “Argumento da Ocultação” seja correta, não há bons fundamentos para supor que, se Deus existe, necessariamente o ateu o teria percebido. Eu argumentarei agora que tentativas de restringir o princípio em modos destinados a eliminar sua aplicação à experiência religiosa não são bem sucedidas. Considerarei duas tentativas desse tipo para defender que, ao passo que parecer-me que há mesas, cadeiras, casas, etc. é um bom fundamento para supor que essas existem (ou seja, o fato de parecer a mim que eu as estou vendo é bom fundamento para supor que as estou vendo), o fato de parecer a mim que o mundo diante de mim está sendo sustentado por Deus ou de que anjos ou a Realidade Última estão presentes não é bom fundamento para supor que as coisas são assim. O primeiro argumento é de que supor que o

modo como as coisas parece é o modo como as coisas são não é um princípio fundamental da racionalidade, mas que ele mesmo requer uma justificação indutiva e que essa justificação indutiva está disponível em casos comuns, mas não nos casos de experiência religiosa.[171] Mais particularmente, um filósofo pode alegar que o fato de parecer que x está presente é um bom fundamento para supor que x está presente apenas se temos indícios de que, quando no passado pareceu que x estava presente, isso se mostrou assim; ou, em todo caso, o pressuposto de que x está presente provou-se uma suposição bem sucedida, a partir da qual se pode trabalhar. Assim, o filósofo pode argumentar, está correto tomar o que parece uma mesa como uma mesa, pois nossa experiência passada mostrou que tais aparências não são enganadoras; mas ele pode continuar no sentido de questionar se tivemos o tipo de indício indutivo que era necessário para justificar que se levasse as experiências religiosas a sério. Um problema com essa perspectiva é que comumente se supõe que as pessoas estão justificadas em tomar o que parece uma mesa como sendo uma, mesmo que elas não fiquem o tempo

todo lembrando de suas experiências passadas com mesas e mesmo que elas não possam imediatamente fazê-lo. Assim, o princípio teria que dizer que nossa justificação para tomar o que parece uma mesa ser mesmo uma mesa era o fato de que podíamos lembrar esse tipo de experiência passada se tivéssemos tentado o bastante. Não adiantará dizer que o fato de que nós meramente tivemos as experiências é suficiente para justificar nossa inferência presente, não importa que possamos lembrar tais experiências. Isso porque, para uma afirmação ser justificada indutivamente, devemos em algum sentido “ter” o indício de acontecimentos passados a fim de estarmos justificados em fazer a inferência. Mas então, uma indução a partir de experiências passadas para experiências futuras é justificada apenas se lembramos de nossas experiências corretamente. E que fundamento temos para supor que as lembramos corretamente? Certamente, não são fundamentos indutivos — uma justificação indutiva da confiabilidade de afirmações de memória seria obviamente circular. Aqui, certamente devemos nos fiar no princípio de que as coisas são do modo como parecem, como um

princípio básico, que não pode ser justificado adicionalmente; o fato de parecer termos tido tais e tais experiências é em si mesmo um bom fundamento para acreditarmos que as tivemos. Se você exige que outras pessoas também deverão ter tido a experiência de lhes parecer que havia uma mesa diante delas antes de você estar justificado em confiar naquilo que seus próprios sentidos lhe trazem nesse assunto, então qual é sua justificação para acreditar que outras pessoas tiveram essa experiência? Claramente (além de assumir que outras pessoas provavelmente dizem a verdade a você), você mais uma vez confia aqui no princípio de que as coisas são como elas parecem ser (que outras pessoas parecem a você ter dito que elas tiveram essas experiências dá a você justificação para acreditar que elas de fato disseram isso). Para o princípio de que a pessoa racional supõe que, na ausência de considerações especiais em casos particulares, as coisas são do modo como parecem ser ou ter sido, pode-se dar justificação indutiva com base nas experiências passadas apenas se estas últimas são tomadas como confiáveis com base no próprio Princípio de Credulidade. O Princípio de

Credulidade é um princípio fundamental da racionalidade. E embora o grau de probabilidade que a experiência ou a memória aparente conferem ao que é aparentemente experimentado ou lembrado varie com a força da experiência ou da memória, certamente, a menos que a maior parte e das memórias mais fortes conte (na falta de considerações em contrário) como provavelmente verdadeiras, nós teríamos muito pouco do conhecimento comum do mundo que pensamos que temos. A menos que aceitemos que esse princípio tenha força considerável, nós rapidamente nos achamos num atoleiro cético, no qual nós dificilmente sabemos algo. Outra dificuldade com a visão do primeiro argumento é que seu princípio sugerido claramente precisa de modificação para lidar com casos nos quais o sujeito não tem experiência passada de x, mas tem experiência das propriedades em termos das quais x é definido. Assim, um centauro é definido como um ser com cabeça, tronco e membros de um ser humano e o corpo e os membros inferiores de um cavalo. Um sujeito viu seres humanos e cavalos, mas nunca viu antes um

centauro. Parece então a ele que um centauro está presente. É essa uma boa razão para supor que está? Certamente que é. Assim, o princípio por trás do primeiro argumento ficaria melhor se fosse modificado assim: o fato de que parece que x está presente é um bom fundamento para supor que x está presente apenas se tivemos indícios de que, quando no passado pareceu que x ou quaisquer propriedades pelas quais x é definido estavam presentes, isso provou ser assim, ou em alguma medida os pressupostos de que eles estavam presentes se mostraram pressupostos bem sucedidos a partir dos quais operar. Porém, mesmo assim, o argumento é bastante inadequado para se evitar levar a sério a experiência religiosa. Pois “Deus”, como “centauro” é definido em termos de propriedades das quais a maior parte de nós teve experiência. Deus é definido como “pessoa” sem um “corpo” que é ilimitado em seu “poder”, “conhecimento” e “liberdade”, e em termos de outras propriedades semelhantes, das quais tivemos experiências mundanas. Alguém pode muito bem, por meio de experiência visual, auditiva, tátil, etc. de reconhecimento de vários graus de poder,

conhecimento e liberdade, ser capaz de reconhecer quando ele estiver na presença de uma pessoa de poder, conhecimento e liberdade ilimitados. De fato, é plausível supor que alguém possa reconhecer graus extremos dessas qualidades, mesmo se ele não puder reconhecer tão facilmente graus menores diretamente sem justificação indutiva. Assim, mesmo que a modificação inevitável seja feita no primeiro argumento, quaisquer que sejam seus méritos, ele não tem força contra as alegações da experiência religiosa. A segunda tentativa de restringir a aplicação do Princípio de Credulidade aceita que o princípio valha para características e relações “sensíveis” (sem precisar de justificação indutiva), mas nega que (na ausência de justificação indutiva) ela valha em quaisquer outros casos. Um autor que restringiu assim o princípio foi Chisholm. Ele alega que, quando tomamos algo como tendo certa característica (na minha terminologia “propriedade”) ou relação sensível, temos indício adequado para a tese de que ele realmente tem essa característica (ou relação); mas o fato de tomarmos algo como tendo alguma característica (ou relação) não sensível não é

em si mesmo indício adequado para supor que ele a tenha. E quais são essas características e relações “sensíveis”? Chisholm afirma: As características incluem ser azul, vermelho, verde ou amarelo; ser duro, mole, áspero, macio, pesado, leve, quente ou frio; e de ser sonoro ou de fazer um barulho. As relações incluem: ser o mesmo ou diferente com respeito a alguma das características em questão; ser mais parecido com um objeto do que com outro, com respeito a alguma das características, ou com respeito a matiz, saturação e brilho, ou com respeito a volume, altura e timbre. A classe de características e relações também incluem os “sensíveis comuns” — ou seja, “movimento, repouso, número, figura, magnitude” — e também o que se pretende com termos como “acima”, “abaixo”, “direita”, “esquerda”, “perto”, “longe”, “seguinte”, “depois”, “antes”, “simultâneo” e “durar” ou “resistir”. Em resumo, as características e relações em questão são co-extensivas com aquilo ao que os aristotélicos se referiam como “objetos próprios dos sentidos” e “sensíveis comuns” e o que Reid descreveu como objetos de percepção “original”.[172]

Assim, de acordo com Chisholm, se algo parece (epistemicamente) para S ser marrom ou quadrado ou sólido, isso é uma boa razão para acreditar que é. Mas se algo parece ser uma mesa, ou uma mesa vitoriana ou um navio ou um navio russo, isso não é por si mesmo uma boa razão para

acreditar que é. Você pode ter boas razões para acreditar que algo é uma mesa apenas em termos desta parecer marrom, quadrada e sólida e em termos de coisas que se parecem com esse objeto, tendo parecido (no passado) ser usado para se escrever nela (sendo a noção de “escrever” talvez explicada em termos de características “sensíveis”). Digamos que, se parecer que um objeto (ou característica) x está presente é razão para supor que é sem necessidade de maior justificação, então você tem uma experiência real de x. Mas se isso não acontece, então parecer que um objeto x está presente é uma interpretação de sua experiência e que precisa de justificação. Se você tem uma experiência real de x e se de fato x causa a sua experiência, então você realmente percebe x; se você conclui que x está presente sem realmente experimentar x, então (mesmo que sua conclusão esteja correta e justificada) você meramente inferiu x. Tentativas de traçar limites como o que Chisholm traça entre experiência real e interpretação, percepção real e mera inferência são, é claro, tão antigas quanto a tradição empirista na filosofia. É admitido pela maioria daqueles que traçam esse tipo

de limite que mesmo a experiência real pode enganar. Você pode ter uma experiência real de x e, portanto, estar justificado em supor que x está presente, que x causa a sua experiência e assim que você percebe x, quando de fato x não está presente de modo nenhum. Nesse caso, você tem um delírio, alucinação ou ilusão de x ou você está meramente sonhando que x está presente ou algo assim. Contudo, casos assim devem, nesta visão, ser distintos de casos nos quais, embora pareça que um objeto x está presente e você o toma por estar quando ele não está, seu erro é de má interpretação da experiência — um erro que você estaria justificado em fazer apenas se você tivesse outras razões para acreditar que o objeto x estava presente. Que existe um limite assim para ser estabelecido é um pressuposto comum e raramente argumentado em muitas discussões da experiência religiosa. Uma vez que o limite é traçado, as consequências são evidentes. Isso porque a linha sempre deixa os objetos típicos da experiência religiosa como questões de interpretação ao invés de verdadeiros objetos de experiência real. Segue-se que, mesmo se parece fortemente a você que você

está falando com Deus ou contemplando a Realidade Última, esse fato não é razão em si mesmo para supor que você está. Você está tendo uma experiência que deve propriamente ser descrita de um modo muito mais mundano — por exemplo, como experiência de ouvir certos ruídos — que você interpreta como a voz de Deus, mas, que você não tem boa razão para fazê-lo, a não ser que mais indícios estejam disponíveis. Contudo, nenhum limite como esse que Chisholm pretende traçar pode ser estabelecido entre experiência real e interpretação. Isso porque certamente estamos justificados em ter muitas crenças perceptuais sobre objetos terem características não sensíveis que não podem ser baseadas em termos de crenças sobre objetos terem características “sensíveis”. Poucos duvidariam de que estou justificado em acreditar que certa mulher que eu vejo no outro lado da sala é minha esposa. Contudo, se me perguntarem o que há na mulher que eu entendo ser minha esposa que me faz acreditar que ela é minha esposa, eu seria em grande medida incapaz de dar uma resposta satisfatória. Eu poderia apenas dar uma descrição muito vaga das

características “sensíveis” chisholmianas pelas quais eu a reconheço, uma descrição que se adequaria a dezenas de milhares de outras mulheres que eu, nem por um minuto, tomaria por engano como minha esposa. O fato de que se pode reconhecer não significa que se pode descrever; e não implica que (mesmo se não se pode descrever) se sabe quais são as características pelas quais se reconhece. Eu posso estar justificado em dizer que você está cansado ou com raiva apenas ao olhar para o seu rosto e, no entanto, não saber o que há no seu rosto que faz você parecer cansado ou com raiva. Do mesmo modo, posso reconhecer a voz de minha esposa ao telefone, embora certamente não possa dizer o que há naqueles ruídos que vêm pelo telefone que são especialmente característicos da voz dela. Para sentidos como olfato e paladar, a maioria de nós não tem vocabulário para descrever características sensíveis, a não ser em termos dos objetos que os causam (por exemplo, “um gosto de chá”, ou “o cheiro de rosas”). Se perguntados acerca do líquido que estamos tomando “o que há nele que faz ter gosto de chá?”, ficaríamos sem saber responder. Mas esse fato não põe dúvida nenhuma sobre nossa

justificação em acreditar que estamos tomando uma xícara de chá. O fato de que tem gosto de chá é uma boa razão em si mesma para supor que é — possamos ou não dizê-lo em termos mais primitivos o que há nele que faz ter gosto de chá. Seres humanos diferem nos tipos de objetos e propriedades que aprendem a captar. Às vezes, eles podem captar e mesmo descrever as “características sensíveis” desses objetos e às vezes eles não podem; e, mesmo se eles podem, o reconhecimento de objetos de algum tipo e suas propriedades mais sofisticadas pode ser um processo mais natural que a descrição de suas características sensíveis. Não há razão de princípio pela qual nós não deveríamos ficar tão hábeis em identificar navios russos ou mesas vitorianas ou estrelas anãs azuis ou galáxias elípticas que pudéssemos reconhece-los de imediato, sem sermos capazes de dizer o que eles são ao modo das características sensíveis chisholmianas acerca do que vemos que nos faz identifica-los do modo como o fazemos. Assim, esse segundo argumento contra o Princípio de Credulidade original não funciona e o princípio se mantém. Se parece (epistemicamente)

para S que x está presente, isso é boa razão para S acreditar que x está presente, na falta de considerações especiais — o que quer que x possa ser. E também é boa razão para outra pessoa acreditar que x está presente. Isso porque, se e é indício para h, essa é uma relação que se mantém de modo bastante independente de quem sabe de e. Contudo, o modo como as coisas parecem a S é claramente algo do qual S sabe sem inferência, enquanto que outros precisam do testemunho de S acerca de como as coisas parecem para ele a fim de aprender com suas experiências. Nossa justificativa para acreditar no testemunho de S acerca de suas experiências é uma questão à qual vou retornar depois neste capítulo. De tudo isso se segue que, se me parece que tenho uma visão rápida do Paraíso ou uma aparição de Deus, isso é razão para mim e outros suporem que o tive. E, mais geralmente, a ocorrência de experiências religiosas é razão prima facie para todos acreditarem naquilo do qual a experiência relatada era uma experiência. Considerações especiais que limitam o

princípio de credulidade É hora de listar considerações especiais que funcionam em casos particulares e dão ao sujeito ou a outros razões para pensar que, embora sua experiência fosse de que parecia a ele que x estava presente (e assim ele estava inclinado a acreditar que x estava presente), realmente x não estava presente. Elas são considerações que, quando acrescentadas ao relato da experiência, impedem-na de tornar provável que x estava presente. Posto simbolicamente, com e como “parece a S que x está presente”, h como “x está presente”, e k como conhecimento de fundo irrelevante, elas são considerações c tais que, embora P(h/e&k)>1/2, P(h/e&k&c)≤1/2. Se parece a S que x está presente, S está inclinado a dizer que, ao menos para ele mesmo, ele percebe x. Vou descrever o que estou fazendo ao listar as considerações que derrubam a afirmação perceptual que S está inclinado a fazer para si mesmo. Tendo listado essas considerações, poderemos então ver se elas normalmente poderão mostrar que as experiências religiosas não deviam ser tomadas em seu valor de face.

Há basicamente quatro tipos de consideração especial que derrubam afirmações perceptuais. As duas primeiras mostram que a percepção aparente era do tipo de outras que no passado se mostraram não serem percepções genuínas. Primeiramente, pode-se mostrar que a percepção aparente foi feita em condições ou por um sujeito que se mostraram inconfiáveis no passado. Assim, pode-se mostrar que as afirmações perceptuais de S são geralmente falsas, ou que afirmações perceptuais são geralmente falsas quando feitas sob a influência de LSD, o que é uma boa razão indutiva para acreditar que uma nova afirmação perceptual particular feita por S ou feita sob a influência de LSD é falsa. Em segundo lugar, pode-se mostrar que a afirmação perceptual era de haver percebido um objeto de certo tipo, em circunstâncias nas quais afirmações perceptuais semelhantes se mostraram falsas. Assim, se parece a S que ele leu letras de tamanho comum a uma distância de cem jardas, podemos testá-lo em outras ocasiões e ver se ele é capaz de ler o que está escrito naquela distância e, se ele não for, temos um bom indício indutivo de que a afirmação original era falsa.

Uma variação do segundo tipo de consideração se dá quando se mostra que S não teve o tipo de experiência que se descobriu ser empiricamente necessária para tornar provavelmente verdadeira uma afirmação perceptual do tipo em questão. Pode-se, por exemplo, ter indícios de que apenas aqueles que antes provaram de fato chá e souberam o que estavam bebendo podem (exceto por acidente) fazer afirmações verdadeiras acerca de provar chá. Não é de forma nenhum evidente a priori que tipos de experiência as pessoas precisam a fim de tornar provavelmente verdadeiras afirmações perceptuais de diferentes tipos; e certamente as pessoas variam enormemente a esse respeito. Talvez alguns de nós que apenas tenhamos sentido o cheiro de chá, mas nunca o tomado antes, pudéssemos, em consequência disso, reconhecê-lo por seu sabor na primeira prova. Alguns de nós podem reconhecer pessoas por descrições. Alguns de nós podem reconhecer pessoas apenas quando as viram antes. A terceira e quarta considerações dizem respeito à afirmação perceptual particular que não envolve inferência indutiva a partir do erro de

afirmações semelhantes. Uma vez que perceber x é ter a experiência de parecer que x está presente causada por x estar presente, pode-se questionar uma afirmação perceptual de ter percebido x ou ao se mostrar que é muito, muito provável que x não estava presente ou ao se mostrar que, mesmo se x estivesse presente, a presença de x provavelmente não causaria a experiência de parecer que x estava presente. A terceira consideração que derruba a afirmação de haver percebido x envolve mostrar que, com base em indícios de fundo, é muito, muito provável que x não estava presente. Ora, eu sugiro que nesse caso não é suficiente que o indício de fundo torne mais provável que não que x não estava presente. Ele tem de tornar muito, muito improvável que x estava presente para superar a força da experiência de S o bastante para ficar mais provável que não que x não estava presente. Isso porque, no fim das contas, a maioria das coisas que pensamos que vemos são, com base em indícios de fundo, menos prováveis do que não. Pode me parecer que, quando vou a Londres, que vejo John andando do outro lado da Rua Charing Cross. Posso acreditar que a priori que é mais provável que não que ele

esteja em Dover, onde ele mora; e que, mesmo se ele estivesse em Londres, é baixa a probabilidade de que ele esteja na Rua Charing Cross naquele momento particular. Mas minha experiência é suficiente para esses indícios de fundo. Nós estaríamos na verdade presos no círculo de nossas crenças atuais se a experiência não tivesse normalmente essa força. Contudo, indícios de fundo podem tornar muito, muito improvável que x esteja presente — por exemplo, porque torna muito improvável que x sequer exista, ou muito, muito provável que ele esteja em outro lugar. Se é muito provável, dados indícios de fundo, que John esteja morto, então é muito, muito improvável que ele esteja andando do outro lado da Rua Charing Cross neste momento; e minha experiência não é por si mesma suficiente para empurrar essa crença para a categoria do provável. Uma questão semelhante surge com respeito a alguém que afirma ter observado uma entidade de um tipo bastante diferente daqueles já conhecidos. Se você alega ter visto um Dodô em Maurício então, se a priori é provável, embora não muito, muito provável que os Dodôs tenham se extinguido no

século XVII, sua afirmação perceptual permanece provável no geral. No entanto, se você afirma ter visto um homem de seis metros de altura saindo de uma nave espacial, então o que você afirma ter visto tem uma improbabilidade prévia tão alta que sua afirmação precisa ser fundamentada antes de se tornar provável. Há vários modos pelos quais se pode mostrar que muito, muito provavelmente x não estava presente. Pode-se mostrar que muito provavelmente x não existe, ou que estava em algum outro lugar naquela hora, ou mostrar que muito, muito provavelmente x não estava no lugar em questão mais diretamente, em particular ao se mostrar que outros observadores que muito provavelmente teriam tido a experiência de lhes parecer que x estava lá, se x tivesse estado lá, não a tiveram. Se eu afirmo ter visto John no corredor, minha afirmação pode ser derrubada ao se mostrar que, embora houvesse muitos outros no corredor com os olhos em perfeito estado, que estivessem procurando por John e soubessem como ele aparentava, eles não tiveram a experiência de lhes parecer que John estava lá. A aplicação desse teste exige de nós saber

quais órgãos sensoriais e treinamento você precisa, e quão atento você precisa estar, para perceber o objeto em questão. Nós normalmente temos ou podemos obter esses indícios como consequência de ver o que é necessário para a detecção de objetos semelhantes. Contudo, mesmo quando sabemos que tipo de observador teria muito provavelmente tido a experiência necessária se x tivesse estado ali, o fato dele não ter a experiência não prova conclusivamente que x não estava lá. Sempre haverá dúvida se os observadores foram suficientemente atentos, se seus órgãos sensoriais estavam funcionando corretamente, etc. Mas, claramente, quanto mais observadores aparentemente posicionados de modo correto, com aparentemente os órgãos sensórios e os conceitos corretos, e que não observem x, menos provável será que x estava lá. Porém, se vários observadores tiverem a experiência requerida, mesmo se muitos outros não a tenham tido, isso torna provável que x estava lá. Se x é um objeto muito diferente do tipo de outros que tenham sido investigados, não saberemos quais os órgãos sensórios, conceitos e grau de atenção são necessários para perceber x; e assim, não poderemos

ter indícios contra a afirmação, por parte daqueles que teriam tido certas experiências se x tivesse estado presente, mas não tiveram essas experiências. Mas, claramente, na medida em que alguns de fato tiveram a experiência requerida, isso torna provável que x está lá, mesmo se alguns outros não tiveram a experiência, e não sabemos por que eles não têm a experiência (desde que não temos razão positiva para supor que eles a teriam tido se x tivesse estado lá). Há sempre a possibilidade de que, em tais casos, o objeto não é público de modo algum. Contudo, estou inclinado a acrescentar que, se não sabemos que observadores supostamente teriam tido uma experiência aparentemente de x se x tivesse estado lá, isso em algum grau diminui a força indiciária de uma percepção aparente — mas apenas em algum grau. Isso é porque, nesse caso, não podemos ter como indício confirmador em favor da afirmação perceptual o fato de que todas as testemunhas que tivessem tido a experiência requerida, se o objeto estivesse presente, tiveram-na realmente. Se sua afirmação pudesse ter sido infirmada por certos fenômenos, mas se é mostrado que os fenômenos não ocorrem, esse fato mesmo

confirma a afirmação. Se não sabemos que observações contam contra uma afirmação, não pode haver falha em fazer essas observações, o que conta em favor da afirmação. Contudo, eu reforço as palavras “apenas em algum grau”. Isso porque, claramente, se três testemunhas viram o homem àquela distância, ou o arco-íris, ou ouviram a nota aguda ou sentiram o tremor e três não, isso é indício substancial em favor da ocorrência do objeto relatado, mesmo se não soubermos por que outros não foram capazes de detectá-lo. Em quarto lugar, a afirmação de S de ter percebido x pode ser questionada com base em que, não importa se x estivesse presente ou não, x não era provavelmente a causa da experiência de parecer a S que x estava lá. Uma maneira óbvia pela qual isso pode ser feito (sem pôr em dúvida outra afirmação perceptual minha) é mostrando que (provavelmente) outra coisa causou a experiência. Nós questionamos a afirmação ao oferecer uma explicação por que pareceu a S que x estava presente, o que não envolve x em qualquer estágio. Se você me mostra que o ator que estava vestido para parecer com John e passou pelo corredor, dou-me conta de que a

experiência de me parecer que tinha visto John foi provavelmente causada pelo ator, e assim não tenho razão para acreditar que John estava no corredor. Essas quatro maneiras que listei são todas modos pelos quais nós ou outros questionamos afirmações perceptuais. Consideremos outro exemplo de como isso funciona. Suponha que eu acorde assustado e, porque tive essa impressão, afirmo ter visto um homem vestindo uma toga olhando para a chaminé, que desapareceu assim que eu olhei para ele. Você pode negar minha afirmação, dizendo (1) que eu me tornei viciado em LSD, o que me levou recentemente a dizer que vejo coisas que não estão presentes de modo nenhum; ou (2) que testes em outras ocasiões mostraram que eu não posso reconhecer uma toga quando eu vejo uma; ou (3) que minha esposa estava acordada, mas não viu o homem, e que, assim, provavelmente, ele não estava lá; ou que eu tenho boa razão indutiva de longa experiência para acreditar que homens não podem simplesmente desaparecer e, assim, que é improvável que as coisas aconteceram conforme eu falei; ou (4) que havia nas paredes um padrão de sombras que poderiam naturalmente ter sido

interpretados como um homem numa toga e, assim, que havia uma causa de minha experiência de “parecer-me que havia um homem numa toga” diferente de um homem numa toga. Contudo, se nenhum desses questionamentos pode ser feito, minha afirmação deve ser aceita. Se um desses questionamentos funciona, o ônus da prova muda. O sujeito agora precisa provar que sua experiência é genuína (ou seja, que ele percebe o que ele pensa que percebe). Ele pode fazer isso ao mostrar indícios positivos em apoio a suas afirmações perceptuais dos tipos aduzidos em algum dos outros questionamentos possíveis. Assim, voltando ao exemplo da toga, tenho bons indícios de uma longa experiência que mostram que homens em togas não desaparecem simplesmente do alto de chaminés. Assim, um questionamento do tipo (3) conta substancialmente contra minhas afirmações perceptuais. Contudo, posso mostrar (1) que sou geralmente uma testemunha muito confiável, (2) que sei como togas se parecem, e que sou confiável em relatar coisas imediatamente ao acordar, (3) que minha esposa também viu o homem e (4) que não havia nada mais que pudesse plausivelmente ser

tomado por engano como um homem numa toga. Em tais casos, devemos pesar os indícios conflitantes. Nossos critérios para fazê-lo (por exemplo, acerca de quanto peso deveríamos dar a considerações do tipo (4) contra considerações do tipo (3)) não são claras de modo nenhum. Há uma grande região fronteiriça de casos possíveis nos quais não é claro para onde tende o balanço de probabilidades, mas, claramente, se há indícios positivos suficientes do tipo descrito, é suficiente contrabalançar um questionamento inicialmente bem sucedido a uma afirmação perceptual. Note que algumas experiências são muito mais forçosas que outras — algumas experiências são muito claras e inevitáveis, e deixam uma impressão muito forte: pode ter parecido que um objeto estava muito perto e que eu não poderia estar errado acerca dele. Na medida em que uma experiência tem um caráter assim, ela claramente precisa de um questionamento mais forte para derrubá-la. Se eu estiver realmente convencido de que vi John no corredor, é preciso que seja muito provável que era o ator quem causou minha experiência, antes de minha afirmação perceptual se

tornar improvável. Por outro lado, algumas memórias aparentes são tão fracas que elas levam a uma probabilidade muito menor que ½ que o que é aparentemente lembrado é verdadeiro; elas precisam de indícios de apoio. Questionamentos dessas considerações especiais às experiências religiosas Em que medida os questionamentos apresentados acima derrubam as alegações daqueles que afirmam ter tido a experiência de Deus, ou Poseidon ou da Realidade Última? O primeiro questionamento pode derrubar algumas dessas afirmações, mas ele normalmente não se põe em geral. A maior parte das experiências religiosas é tida por pessoas que geralmente fazem afirmações perceptuais confiáveis e não tomaram drogas recentemente[173]. O segundo questionamento consistiria em mostrar que, normalmente, afirmações perceptuais religiosas seriam inconfiáveis. Se houvesse uma boa prova da não existência de Deus ou algo parecido, então, isso poderia ser feito, é claro. Mas a questão aqui é que

o ônus da prova é do ateu; se ele não puder defender sua posição, a afirmação da experiência religiosa permanece. A questão que surge com alegações de experiência religiosa e também de milagres é se há uma prova geral de sua inconfiabilidade no fato de que tantas delas conflitam umas com as outras. Assim, Flew: Experiências religiosas são enormemente variadas, autenticando ostensivamente inúmeras crenças, muitas das quais estão em contradição umas com as outras… As variedades da experiência religiosa incluem não apenas aquelas que seus sujeitos estão inclinados a interpretar como visões da Virgem Maria ou sensações da presença orientadora de Jesus Cristo, mas também outras mais bizarras, apresentando-se como manifestações de Quetzalcoatl ou Osíris ou Dionísio ou Shiva.[174]

Ora, é claro que devotos de diferentes religiões descrevem suas experiências religiosas no vocabulário religioso que lhe é mais familiar. Contudo, em si mesmo, isso não significa que suas diferentes descrições estão em conflito — Deus pode ser conhecido por diferentes nomes para diferentes culturas (tal como tanto o Antigo quanto o Novo Testamento reconhecem — ser Êxodo 6: 2-

3 e Atos 17: 23). Do mesmo modo, a afirmação de um grego de haver falado com Poseidon não está necessariamente em conflito com a alegação de um judeu de haver falado com o anjo que toma conta do mar; haveria conflito se admitir a existência de Poseidon comprometer alguém com toda uma teologia politeísta, e não há necessidade de supor que geralmente é assim. É de se admitir, porém, que às vezes dar uma descrição ao objeto da experiência religiosa realmente leva a um compromisso com uma doutrina vista como falsa por outra religião. Alegar ter tido a experiência do Cristo divino faz comprometer com a crença em uma Encarnação, que um judeu ortodoxo não admitiria. Mas nesses casos, se o oponente da doutrina consegue mostrar boas razões para ver a doutrina como falsa, isso é boa razão para o sujeito da experiência retirar sua afirmação original. Entre essas razões podem estar a de que outros tiveram experiências conflitantes e que suas experiências são mais numerosas e mais bem autenticadas; e pode haver muitas razões de outros tipos também. O sujeito da experiência religiosa não precisa nesse caso retirar totalmente sua alegação

original; ele precisa apenas descrevê-la num modo menos comprometido — por exemplo, afirmar ter tido contato com algum ser sobrenatural, não necessariamente Dionísio (como alegado originalmente). O fato de que às vezes (e de modo nenhum tão frequentemente quanto Flew sugere) descrições do objeto de uma experiência religiosa estão em conflito com o objeto de outra experiência religiosa significa apenas que temos uma fonte de questionamento de uma afirmação detalhada particular, não uma fonte de ceticismo acerca de todas as afirmações de experiência religiosa. Astrônomos babilônios relataram movimentos de buracos no firmamento; astrônomos gregos relataram os movimentos de corpos físicos nos céus. O conflito entre eles não significava que não havia coisas no céu dos quais ambos os grupos estavam dando mais descrições. Mas significava que as alegações perceptuais de cada grupo eram argumentos contra as afirmações perceptuais do outro grupo; e, dado que as afirmações perceptuais de ambos os grupos eram igualmente fortes em número e convicção, mais argumentos seriam necessários para adjudicar entre eles. No final, os

astrônomos babilônios tiveram de admitir que eles tinham descrito mal em algum grau o que eles viram. Mas esse processo não precisa levar a ceticismo geral acerca de observação astronômica; nem precisa isso acontecer na religião.[175] Contudo, disso realmente se segue que, se houvesse um número substancial de experiências religiosas que levassem à não existência de um determinado ser sobrenatural, isso traria dúvida significativa para afirmações de haver percebido esse ser. Certamente não há indícios desse tipo para levar a dúvida significativa acerca da credibilidade de alegações de haver percebido Deus. Experiências religiosas em tradições não cristãs são experiências aparentemente de seres que se supõe terem propriedades semelhantes às de Deus ou experiências aparentemente de seres menores, ou experiências aparentemente de estados de coisas, mas dificilmente são experiências aparentemente de qualquer pessoa ou estado de coisas cuja existência é incompatível com a de Deus. Se houvesse um número imenso de experiências aparentemente de um Diabo onipotente, então esse tipo de indício existiria; mas não existem essas experiências.

Outra objeção geral que se pode fazer dentro desse segundo questionamento é a de que aqueles que fazem afirmações de experiência religiosa não tiveram o tipo de experiência que é necessária para fazer afirmações desse tipo que sejam provavelmente verdadeiras. O argumento pode ser de que sua alegação de ter reconhecido uma pessoa só é provavelmente correto se você percebeu anteriormente aquela pessoa (e lhe disseram quem ela é) ou se lhe deram anteriormente uma descrição pormenorizada de sua aparência (apropriada para a modalidade de sentido pelo qual você afirma tê-la reconhecido — por exemplo, você precisaria primeiro ter tido uma descrição de sua aparência visual antes de sua afirmação que a viu ser provavelmente correta).[176] Mas esse argumento parece claramente errado. Eu posso vir a reconhecer pessoas que eu nunca encontrei antes ao me darem descrições delas que dificilmente seriam vistas como descrições de suas aparências apropriadas para a modalidade de sentido envolvido. Assim, podem me dizer que Smelinowski é o único ruritano com um senso de humor realmente inglês, ou que o General Walters tem a personalidade mais forte que eu

provavelmente vou encontrar em toda minha vida; e essas descrições podem ser perfeitamente adequadas para que eu seja capaz de reconhecer tanto Smelinowski quanto o General Walters. A descrição de Deus como a única pessoa onipotente, onisciente e perfeitamente livre pode de fato ser suficiente para reconhecê-lo — ao ouvir sua voz, ou sentir sua presença ou ver suas obras, ou por algum sexto sentido. E, como falei antes, mesmo que alguns de nós não sejamos muito bons em reconhecer poder, conhecimento ou liberdade nas pessoas humanas que encontramos, podemos muito bem ser capazes de reconhecer graus extremos dessas qualidades quando não podemos reconhecer graus menores. Nem, é claro, se alguém tem a habilidade de reconhecer algo, segue-se disso que ele pode imaginar antes como seria a experiência de reconhecimento. O que você me diz de uma cor inteiramente nova pode me capacitar a reconhecer essa cor quando a vir, mesmo se não puder visualizar a experiência antes. Essa objeção certamente não tem força persuasiva, mas me parece ter alguma força realmente. Grande poder, conhecimento e liberdade não são características que

podemos facilmente aprender a reconhecer ao ouvir uma voz, ou ver algum objeto que possa ser a obra de um agente, ou ao sentir. E alguma leve suspeita pode ser lançada sobre a alegação de um sujeito de ter reconhecido um agente com essas qualidades pelo distanciamento qualitativo de suas experiências prévias em relação ao que ele afirma ter detectado — mas, por razões que já dei, apenas uma leve suspeita. O terceiro questionamento a uma afirmação de experiência religiosa consistiria, no caso de uma alegada experiência de Deus, de uma demonstração de que, muito provavelmente, Deus não estava presente para ser percebido e, assim, que o sujeito não pode tê-lo percebido. Mas se Deus existe, ele está em todo lugar. Ele só não estará presente se não existir. Assim, a fim de usar esse questionamento (excetuando a consideração abaixo), você tem de provar que muito provavelmente Deus não existe e, tal como dito acima, o ônus disso é do ateu. (Para experiências religiosas de pessoas ou coisas menores, como Maria ou Poseidon, você precisa apenas mostrar que, muito provavelmente, a pessoa não está onde o sujeito disse que ela estava). Como

vimos, não vai adiantar mostrar que algumas pessoas, com aparatos e conceitos semelhantes aos daqueles que de fato têm experiências de Deus não têm essas experiências. Isso porque nós não sabemos se poderíamos esperar que todas as pessoas com certo aparato e conceito teriam experiências de Deus se ele estivesse ali. Claramente, se ele quisesse, um Deus onipotente poderia causar uma experiência privada, ao modo que uma mesa não poderia. Claramente também, algumas pessoas com aparato e conceitos semelhantes realmente têm experiências que parecem ser de Deus. Mas, como também vimos, o fato de que a ausência de percepções aparentes de Deus por outros não tem a tendência de mostrar que Deus não está presente tem a consequência de que a afirmação perceptual original é, em si mesma, um indício de alguma forma menor da existência de Deus. O quarto questionamento consistiria em mostrar que a experiência religiosa teve provavelmente uma causa diferente do que seu objeto alegado — por exemplo, Deus. Mas esse é um questionamento particularmente estranho a ser feito quando estamos lidando com uma alegada

experiência de Deus — ao contrário de, digamos, Maria ou Poseidon. Minha experiência religiosa pode ou não ser causada imediatamente por algum evento cerebral. Em todo caso, uma experiência aparente de x é uma experiência de x se x pertence à cadeia causal que leva a efeito aqueles eventos por sua presença, quando parece ser. Uma vez que Maria não é onipresente, ela vai parecer estar aqui ao invés de lá; e uma vez que ela não é a sustentadora do mundo, ela só pode ser responsável por alguns dos processos causais dentro deste. É possível mostrar que a cadeia causal que produziu minha experiência envolveu eventos apenas em lugares diferentes dos que ela pareceu estar ou envolveu processos causais que teriam acontecido mesmo se ela não tivesse estado ali. É possível mostrar ela não estava envolvida no processo sem mostrar com isso que ela não existe. No entanto, se Deus existe, ele é onipresente e todos os processos causais acontecem apenas porque ele os sustenta. Assim, qualquer processo causal que cause minha experiência terá Deus entre suas causas; e qualquer experiência dele será dele como presente num lugar onde ele está. E assim, se Deus existe, qualquer

experiência que pareça ser de Deus será genuína — será de Deus. Ele pode causar essa experiência seja ao intervir na operação das leis naturais (produzindo um evento diferente do que as leis naturais produziriam normalmente) ou ao sustentar a operação normal destas. Essas leis naturais seriam as que produzem experiências religiosas em pessoas com certas crenças ou estados cerebrais em certas circunstâncias — por exemplo, ao jejuar ou em igrejas escuras. Se jejuar ou algo assim tem uma tendência de causar experiências religiosas, isso pode ser ou porque, como um colírio, esse ato nos ajuda a ver o que está lá ou porque nos faz ver o que não está lá. O simples fato de que uma experiência religiosa aparentemente de Deus foi levada a efeito por processos naturais não tende a mostrar que não era verídica. Para mostrar isso, você precisa mostrar que Deus não causou esses processos. Isso só pode ser conseguido ao mostrar que Deus não existe — pois, se ele existe como definido, claramente ele é responsável tanto pela operação normal das leis naturais quanto por qualquer violação ocasional.[177] O desfecho de tudo isso é que há duas

qualificações que de algum modo diminuem a força indiciária da experiência religiosa aparentemente de Deus. Uma é o caráter remoto das experiências passadas dos sujeitos em relação o que eles alegam haver reconhecido — nomeadamente, Deus. A outra é o fato de que a ausência de percepções aparentes de Deus por outros, não importa como estejam posicionados, não tendem a mostrar que uma particular percepção do sujeito aparentemente de Deus deva ser tomada por seu valor de face, a menos que se possa mostrar, em outras bases, que muito provavelmente Deus não existe. As qualificações me levam a modificar o “muito provavelmente” e sugerir que uma experiência religiosa aparentemente de Deus deva ser tomada como verídica, a menos que se possa mostrar em outras bases ser significativamente mais provável que Deus não existe. Será muito mais difícil responder questionamentos de alegações de experiências religiosas aparentemente de pessoas sobrenaturais ou coisas menos poderosas que Deus. Como vimos, elas são mais abertas ao quarto questionamento. E são muito mais abertas ao terceiro questionamento

de que muito provavelmente o ser aparentemente experimentado não existe; uma vez que não há teologia natural disponível para dar alguma probabilidade à existência de seres sobrenaturais diferentes do que sustenta o universo inteiro. Do mesmo modo, afirmações de haver experimentado uma fonte impessoal de todas as coisas são, dados meus argumentos de que uma causa pessoal do universo tem maior simplicidade e assim maior probabilidade intrínseca do que uma impessoal, mais abertas ao terceiro questionamento do que afirmações de haver experimentado Deus. Retomando o fio da meada — a questão a respeito da força indiciária de experiências aparentemente de Deus é apenas de quão improvável é a existência de Deus, dado conhecimento de fundo, ou seja, dado o conhecimento geral do mundo, suas operações, sua história, além de relatos de milagres considerados nos capítulos 7 a 12. A existência de Deus é tão improvável que uma experiência aparentemente de Deus não deveria ser tomada por seu valor de face? Mesmo que a resposta a essa questão fosse sim, há uma consideração ulterior crucial. Vimos

que qualquer percepção aparente daquilo que, dados indícios de fundo, é improvável demais para se acreditar (ou seja, para o que é aparentemente percebido ser improvável em geral, em vista de todos os indícios) pode se tornar crível se baseada em indícios positivos de que a experiência é genuína. Esses indícios positivos podem tomar a forma outros terem experiências corroborantes. Outro importante princípio de racionalidade é de que, na falta de razões em contrário, deveríamos acreditar no que as pessoas nos falam sobre suas experiências. O princípio de testemunho O Princípio de Credulidade concerne às bases de um sujeito para acreditar que as coisas são do modo como parecem a ele. Claramente, na vida comum, usamos também um princípio mais amplo. Outras coisas sendo iguais, acreditamos que aquilo que outros nos dizem que eles perceberam provavelmente aconteceu. Por “outras coisas sendo iguais”, quero dizer na ausência de bases positivas para supor que os outros relataram ou lembraram

mal suas experiências, ou que as coisas não eram de fato como pareciam ser a esses outros. Claramente, a maior parte de nossas crenças sobre o mundo está baseada naquilo que outros alegam ter percebido — crenças sobre geografia, história, ciência e tudo o mais que estiver fora do alcance de nossa experiência imediata são embasadas assim. Nós normalmente não conferimos se um informante é uma testemunha confiável antes de aceitar seus relatos. O pressuposto de as coisas são (provavelmente) como os outros alegam ter percebido tem dois componentes. Um é o Princípio de Credulidade — que (na ausência de considerações especiais) as coisas são (provavelmente) como os outros estão inclinados a acreditar que eles as perceberam. O outro componente é o princípio de que (na ausência de considerações especiais) as experiências dos outros são (provavelmente) como estes as relatam. Esse último princípio eu vou chamar de Princípio de Testemunho[178]. Eu usei esse princípio ao afirmar (com base no que elas nos disseram) que um grande número de pessoas tiveram experiências religiosas.

As considerações especiais que nos levam a duvidar dos relatos de um sujeito sobre suas experiências são indícios de que geralmente ou em assuntos de um tipo particular e lembra mal, exagera ou mente. Porém, na ausência desses indícios positivos, nós temos bons fundamentos para acreditar no que os outros nos dizem sobre suas experiências. Em geral, não há considerações especiais para duvidar do que as pessoas relatam acerca de suas experiências religiosas, embora às vezes haja essas considerações especiais. Pode haver indícios daquilo que ele diz sobre outros assuntos em outras ocasiões de que uma pessoa é um mentiroso contumaz, ou de que diz uma mentira toda vez que ele consegue chamar atenção ao fazê-lo, ou que exagera, ou que lembra mal. Nesses casos, seus relatos de suas experiências religiosas devem ser vistos com ceticismo. Mas essa não é a situação normal. Um teste antigo que pode ser usado quando há dúvida sobre a veracidade do relato de um sujeito sobre alguma experiência religiosa é ver se o estilo de vida do sujeito passou por alguma mudança. Suponha que Jones alegue ter tido uma experiência

avassaladora que lhe parecia fortemente ser de Deus. Se ele realmente teve essa experiência, seria de esperar que sua fé em Deus fosse muito mais profunda e que isso fizesse uma grande diferença em seu modo de viver. Nossos fundamentos para essa expectativa são de que, se realmente parece a você que você viu x, então você vai acreditar que x existe. Se você acredita que x existe, isso vai fazer diferença para seu comportamento em circunstâncias apropriadas. Se realmente parece a você que você falou com Deus, então será muito mais natural para você agir como se Deus existisse; (a menos que você tenha um forte desejo de ofender a Deus) oração, louvor e autossacrifício serão ocupações mais naturais. Uma vez que (provavelmente) outros têm as experiências que eles relatam, e uma vez que (provavelmente) as coisas são como a experiência de uma pessoa sugere que elas são, então (com algum grau de probabilidade), as coisas são como os outros relatam. Contudo, o grau de probabilidade é menor na conclusão do que em qualquer das premissas. Se p é indício para q e q é indício para r, então p é normalmente menos indício para r do que o é para

q. se a impressão digital é indício da presença de Jones na cena do crime, e a presença de Jones na cena é indício de que ele cometeu o crime, a impressão digital é menos indício para Jones ter cometido o crime do que o é para sua presença na cena do crime. Assim, se S relata que parece (epistemicamente) a S que x está presente, então isso é razão para outros também acreditarem que x está presente, embora não tão boa razão quanto o é para S se ele de fato ele está tendo a experiência que ele relata. Entretanto, claramente é uma boa razão. Como vimos, todo nosso sistema de crenças sobre o mundo além de nossa experiência imediata está baseado em acreditar nos relatos dos outros. E, é claro, na medida em que um bom número de outros dão relatos semelhantes, isso aumenta muito sua credibilidade. Há grande número de pessoas tanto hoje quanto no passado que tiveram experiências religiosas aparentemente da presença de Deus e isso deve tornar significativamente mais provável que a experiência de qualquer pessoa seja verídica. Experiências mais específicas

As experiências de muitas pessoas são não apenas da presença aparente de Deus ou de alguma coisa sobrenatural, mas de Deus ou dessa coisa aparentemente fazendo ou lhes dizendo algo. Tal como antes, o Princípio de Credulidade se aplica. Essas afirmações perceptuais, como todas as outras, devem ser acreditadas na ausência de considerações especiais. Tal como antes, o primeiro e segundo tipos de considerações devem muito provavelmente ser capazes de derrubar apenas algumas dessas afirmações, mas não todas. Contudo, a terceira e a quarta considerações devem provavelmente ser muito mais capazes em geral. Pode haver argumentos que mostrem que é muito improvável que, se Deus existe, ele teria dito ou feito o que o sujeito afirma ter experimentado Deus dizendo ou fazendo. Isso seria assim normalmente porque dizer ou fazer essas coisas seria (muito provavelmente) incompatível com a perfeita bondade de Deus. Afirmações de que Deus disse a pessoas para mentir, estuprar, ou torturar serão imensamente improváveis. E o indício contrário de uma afirmação de um sujeito de que Deus revelou a ele alguma verdade pode muito bem consistir na afirmação de

outro sujeito de que Deus revelou a ele alguma verdade incompatível com a anterior. E a quarta consideração está também disponível agora. Não precisamos defender que Deus não existe a fim de manter que processos causais que ele sustenta levem pessoas a ter crenças falsas acerca do que ele as disse para fazer. Talvez ele venha a ter essas crenças como resultado de uma decisão livre de seus instrutores religiosos humanos de lhes dar certo entendimento do que Deus é, que lhes leva a ter experiências de que Deus lhes disse para fazerem certas coisas. Assim, Deus lhes dizer para fazerem certas coisas não seria parte da causa deles terem a experiência dele lhes ter dito para fazerem essas coisas.[179] Chamei a atenção anteriormente para o valor indiciário menor (em comparação com experiências aparentemente de Deus) de experiências aparentes de seres sobrenaturais e coisas diferentes de Deus; e agora chamei a atenção para o valor indiciário menor de experiências religiosas mais específicas. Contudo, experiências de ambos esses tipos podem ter força indireta de dar indício para a existência de Deus. Uma experiência aparentemente de Deus

fazendo algo contém um elemento (a presença aparente de Deus) que não está aberto a objeções mais fortes contra sua verossimilhança. E algumas das experiências de outros seres e coisas são experiências de pessoas e coisas que são mais prováveis de existir se Deus existe do que se não existe. Assim, uma experiência da Santa Virgem Maria é uma experiência de uma pessoa presente que é muito mais provável de estar presente se existe um Deus que a preservou na existência após a morte do que se Deus não existe. Na medida em que uma experiência é desse tipo, sua ocorrência é indício para a existência de algo que é, por sua vez, indício para a existência de Deus — mas claramente muito menos indício do que uma experiência aparentemente de Deus. Tendo essas ideias em mente, volto agora para o principal tipo de experiência religiosa, uma experiência aparentemente da presença de Deus (que pode ser um elemento numa experiência mais específica). Conclusão Quem

teve

uma

experiência

religiosa

aparentemente de Deus tem, pelo Princípio de Credulidade, boa razão para acreditar que Deus existe — outras coisas estando iguais — especialmente se for uma experiência forçosa. Vimos que o único modo de derrubar um ato desses é mostrar que é significativamente mais provável que não que Deus não existe. Se a probabilidade prévia da existência de Deus segundo os indícios discutidos nos capítulos 7 a 12 for significativamente menor que meio, então uma experiência religiosa de um indivíduo vai precisar do apoio do testemunho de outros que tiveram experiências similares. Esse testemunho está evidentemente disponível. Apenas se a probabilidade prévia da existência de Deus for mesmo muito baixa é que esse peso combinado do testemunho vai ser insuficiente para superá-lo. Tudo depende do quão improvável em vista de indícios de fundo é a existência de Deus. Chegarei a essa questão no capítulo final. Quem não tiver tido por si mesmo uma experiência de Deus não está numa posição tão forte quanto aqueles que tiveram. Ele terá menos indícios para a existência de Deus; mas não muito menos, pois ele terá o testemunho de muitos que tiveram tais experiências.

Minha conclusão sobre a considerável força indiciária da experiência religiosa depende de meu Princípio de Credulidade de que percepções aparentes devem ser tomadas por seus valores de face na ausência de razões positivas para questionamento. Esse princípio é muito fundamental e muito simples para a interpretação da experiência. É por causa de seu caráter fundamental e simples que eu não preciso interpretar as questões deste capítulo por meio do aparato do Teorema de Bayes. Contudo, uma vez que meu argumento deste capítulo, tendo h como “Deus existe”, e como o indício de muitas diversas experiências religiosas e k como os fenômenos considerados nos capítulos anteriores, P(h/e&k)>P(h/k), podemos usar o critério de relevância ao reverso para inferir que P(e/h&k)>P(e/k), e assim >P(e/~h&k). Experiências religiosas aparentemente de Deus podem ser causadas pela operação normal das leis da natureza, derivadas de leis mais fundamentais. Que as leis fundamentais são tais que produzem essas experiências religiosas em certas circunstâncias será então “grande demais” para a ciência explicar. Se essas experiências não são produzidas pela operação

de leis, elas serão algo “muito estranho” para a ciência explicar. Existe certa probabilidade de que (num mundo ordenado contendo humanos, animais, etc.) as leis da natureza possam ser tais que levem as pessoas a terem essas experiências de qualquer modo. Mas se Deus existe, há uma probabilidade maior de que elas terão essas experiências ou por meio de Deus criando leis tais que produzam essas experiências ou causando as experiências diretamente. Existe essa maior probabilidade porque, se as pessoas têm uma habilidade básica de detectar como as coisas são, é mais provável que elas terão uma experiência aparentemente de x (ou seja, uma experiência que os incline a acreditar que x está presente) se x estiver presente do que se x não estiver presente. E que elas realmente têm essa habilidade básica é o que de fato o Princípio de Credulidade está afirmando. Além disso, vimos no início deste capítulo, há alguma razão para supor que Deus daria a algumas pessoas experiências aparentemente de si mesmo.[180]

14. O balanço de probabilidade Em capítulos anteriores, defendi que vários fenômenos que ocorrem são tais que são mais esperáveis, mais prováveis, se Deus existe do que se não existe. A existência do universo, sua conformidade à ordem, a existência de animais e humanos com consciência moral, o fato dos humanos terem grandes oportunidades de cooperação na aquisição e moldagem do universo, o padrão da história e a existência de alguma evidência de milagres, e finalmente a ocorrência de experiências religiosas são tais que temos razão de esperá-los se Deus existe e menos razão de esperálos de outra maneira. Para cada um desses fenômenos , onde h é a hipótese do teísmo, k são os fenômenos levados em conta previamente (ou seja, tautologias onde en é a existência do universo; a existência do universo onde en é sua conformidade à ordem e assim por diante). Assim, pelos princípios de probabilidade que eu discuti no Capítulo 3, para cada e

assim cada argumento de en para h foi um bom argumento C-indutivo para a existência de Deus. Também defendi que um fenômeno — a existência de moralidade — que foi considerado um dado confirmador da existência de Deus não é nada disso. Discuti no Capítulo 11 o principal argumento contra a existência de Deus a partir da existência do mal e também o argumento do ocultamento de Deus. Argumentei então que a existência da quantidade e tipo de mal que há no mundo (males de tipos que seriam males caso Deus existisse ou não) eram tais que um Deus perfeitamente bom permitiria que ocorresse apenas se Ele também provesse uma vida compensatória depois da morte e (talvez) se tornasse encarnado para partilhar nosso sofrimento. O fato de que o mal (en) requeria hipóteses adicionais a serem acrescentadas à hipótese do teísmo (h) para salvá-la da infirmação significava que o mal diminuía a probabilidade do teísmo como tal (teísmo reduzido) de sua probabilidade em vista de dados levados em conta previamente (k) — . O fato do ocultamento divino não conta, contudo, contra a existência de Deus. Acredito que apresentei em linhas gerais

quais os principais dados a favor e contra a existência de Deus. Contudo, só pude analisar em pormenor e avaliar a força apenas de indícios gerais públicos evidentes. Com respeito a indícios importantes de fenômenos do tipo considerado no capítulo 12, pude considerar apenas o que poderia ser a força indiciária de vários fenômenos se eles ocorreram, e não se de fato os indícios históricos pormenorizados (de testemunhas, etc.) mostram que eles realmente ocorreram. Crucial entre esses fenômenos cuja força indiciária eu não tive espaço para considerar estava o indício acerca do milagre central do cristianismo, a ressurreição de Jesus Cristo. Assim, não pude chegar a uma conclusão final acerca da força de um possível argumento Cindutivo nesse caso. Eu também notei no capítulo 13 que, dentro de limites, a força exata de um argumento da experiência religiosa dependeria de se o sujeito teve ele mesmo experiências religiosas e da força deste. No entanto, creio que explorei com algum rigor a força indiciária dos fenômenos evidentes mais relevantes acerca da questão da existência de Deus e agora chegou a hora de unir os fios do meu argumento e tirar uma conclusão. A

questão crucial que fica para discutir é o quanto os indícios que considerei tornam provável a hipótese do teísmo. Considerando todos os indícios factuais relevantes incluídos em e, h é a hipótese do teísmo, e k é mero indício tautológico, qual é o valor de P(h/e&k)? É possível que não consigamos dar a ele um valor numérico exato, mas a questão importante é se P(h/e&k)>P(~h/e&k) e assim >1/2. Temos um bom argumento P-indutivo em favor da existência de Deus? Parece-me bastante evidente que um argumento a partir da ocorrência de todos os fenômenos que descrevi, considerados juntos, em favor da existência de Deus, não é um bom argumento dedutivo, pela mesma razão que as razões que dei para que um argumento cosmológico não seja um bom argumento dedutivo (pp. 236-3) e por que um argumento teleológico não é um bom argumento dedutivo (p. 263-65). A razão é simplesmente que a descrição de um mundo no qual todos os fenômenos descritos ocorram, mas Deus não exista, parece, com aparente obviedade, ser uma descrição coerente, e não conter nenhuma autocontradição escondida. E nesse caso, não há

argumento dedutivo válido a partir da ocorrência desses fenômenos em favor da existência de Deus. É verdade que o que parece ser coerente, pode de fato não o ser, mas a descrição de um mundo assim parece ser uma descrição coerente. Tentativas de descobrir autocontradições internas a ele fracassam notoriamente, e parece bastante fácil apresentar um ou mais modos pelos quais nosso mundo poderia ser um mundo desses. Assim, assumindo que não existe um bom argumento dedutivo em favor da existência de Deus, retorno à questão de o quanto os indícios todos tomados em conjunto tornam provável a hipótese do teísmo. Eu tomei como dados nossos critérios comuns acerca do que confirma o que (ou seja, que aumenta sua probabilidade) e acerca do que torna o que provável como um todo, critérios que nos parecem ser intuitivamente corretos; e me preocupei em aplicar esses critérios para investigar a probabilidade do teísmo. Deduzi nossos critérios comuns ao meditar sobre o que pensamos ser correto dizer em casos na ciência, na história ou outras áreas comuns de discurso. Por exemplo, defendi que uma teoria é mais provavelmente

verdadeira na medida em que for simples. Cheguei a essa conclusão apontando para exemplos científicos e outros, nos quais vemos uma teoria h1 como mais provável que outra teoria h2 de amplitude igual (ou seja, que nos dá uma quantidade semelhante de informação acerca do mundo), sendo que ambas são igualmente bem sucedidas em nos levar a esperar os fenômenos que observamos (P(e/ h1&k) = P(e/ h2&k), mas numa situação na qual h1 é mais simples que h2 (por exemplo, no número de entidades ou de relações matemáticas entre estas que a hipótese postula). Um estudo do que parece intuitivamente a coisa certa a dizer quando indícios confirmam uma teoria, ou confirmam uma teoria mais que outra, permite-nos extrapolar critérios que podemos aplicar ao problema do teísmo. Foi isso que me permitiu concluir que esses e aqueles indícios confirmaram o teísmo. Contudo, quando se trata de juízos acerca de se uma hipótese é mais provável que não, há uma carência de exemplos adequados da ciência e outras áreas dos quais extrapolar critérios sobre quando os indícios tornam uma teoria mais provável que não. Há certamente casos nos quais é

intuitivamente óbvio (e quase todo mundo concordaria) que os indícios tornam a hipótese avassaladoramente provável ou avassaladoramente improvável em qualquer caso em que a hipótese se refere a uma ocorrência particular no passado ou no futuro. Com base nos indícios disponíveis para nós, é avassaladoramente provável que o sol vai nascer de novo dentro das próximas vinte e quatro horas, que meu gabinete de trabalho não vai desintegrar de repente, que houve realmente um império romano, e assim por diante. Tribunais consideram prisioneiros culpados, quando os indícios apontam para a culpa destes “além de dúvida razoável”. Do mesmo modo, há casos nos quais as hipóteses são altamente improváveis. Contudo, quando chegamos perto da linha divisória entre o provável e o improvável, há poucos exemplos: exemplos de hipóteses nas quais seja intuitivamente óbvio que sejam mais prováveis que não sem serem avassaladoramente prováveis; ou menos prováveis que não sem serem avassaladoramente improváveis. Uma vez que haja dúvida autêntica acerca de, digamos, alguma teoria histórica, os historiadores raramente vão concordar se a teoria é mais provável do que não. E quando há

dúvida genuína acerca da correção das predições de uma teoria científica, os cientistas raramente vão concordar se aquelas predições são mais prováveis do que não. A situação é ainda pior quando estamos lidando não com hipóteses acerca de eventos particulares sobre o passado ou o futuro, mas com teorias científicas universais — ou seja, teorias que fazem afirmações sobre todas as regiões do espaço e do tempo, incluindo o infinitamente distante. A teoria quântica é mais provável do que não? E a Teoria Geral da Relatividade? A resposta não é clara de modo nenhum. Alguns filósofos afirmaram que todas as teorias científicas universais têm probabilidade zero em vista de qualquer indício. Não há, contudo, nenhum argumento forçoso em favor dessa afirmação e ela parece ir de encontro ao que os cientistas e outros naturalmente dizem acerca de teorias científicas. A maioria dos cientistas do século dezoito teria dito, com base nos indícios disponíveis na época, que a teoria da gravitação de Newton era avassaladoramente provável. Hoje talvez a maioria dos cientistas dissesse que eles acham que, com base nos indícios atuais, a Teoria Quântica é provável.

Além disso, quase todos os cientistas estariam dispostos a dizer que, dentre as teorias compatíveis com os indícios, algumas são mais prováveis que outras; e frequentemente que uma delas é mais provável que qualquer outra. Contudo, claramente uma teoria pode ser mais provável que uma segunda apenas se a primeira não tem probabilidade zero. Quase todos os cientistas afirmam que eles acreditam que a Teoria Quântica é verdadeira, que os indícios apontam para sua verdade ao invés de sua falsidade. Porém, você só pode acreditar em algo se você também acredita que essa coisa não é totalmente improvável (ou seja, se você acredita que sua probabilidade não é zero); e você pode defender que os indícios apontam para a verdade ao invés da falsidade de uma teoria apenas se você defende que, dados os indícios, a teoria é mais provável do que não. Falar de teorias científicas sendo prováveis ou improváveis não parece estar incluído ou implicado no modo pelo qual nós naturalmente falamos acerca desses assuntos.[181] Mary Hesse sustentou que, embora cientistas não falem de teorias científicas como sendo prováveis, esse modo de falar não deveria ser

tomado literalmente. Falar de uma teoria científica sendo provável deveria, ao invés disso, ser interpretado como falar de uma teoria operando provavelmente em nossa região espaço-temporal. Contudo, a discussão de Mary Hesse acerca de argumentos positivos para sua tese é muito breve e parece principalmente se basear no apelo à afirmação de que “não é razoável supor que qualquer generalização em termos de lei... na ciência atual ou futura permanecerá para sempre verdadeira de modo não qualificado em qualquer instância”[182]. Mas por que não é razoável? Nenhuma resposta adequada é dada. A ciência tem sido uma atividade séria por apenas algumas centenas de anos, e nós podemos não ter encontrado ainda as leis verdadeiras da natureza que valem em todo o espaço e tempo infinitos. Porém, por que não é razoável supor que em alguns poucos milhões de anos nós possamos encontra-las, e que elas ou algumas delas possam ser prováveis em vista dos indícios disponíveis da região espaço-temporal então acessível? Eu não conheço nenhum argumento positivo pelo qual nós deveríamos entender nosso falar de teorias como sendo prováveis no modo

como sugere Hesse. Mesmo se um leitor aceitar a visão de Mary Hesse, isso não dá nenhum fundamento para assumir uma visão semelhante sobre a probabilidade do teísmo. Isso porque sua afirmação significa alegar que, para toda teoria científica T que descobrimos valer dentre de uma região espaço-temporal S, há sempre uma teoria mais fundamental T’ que vale numa região mais ampla e que explica a operação de T na região limitada. Contudo, se o teísmo explica fenômenos em uma região, então explica fenômenos em todas as regiões (se existe um ser eterno e onipotente em um lugar e tempo, haverá um ser assim em todos os lugares e tempos); e, se isso for verdadeiro, nada mais vai explicar por que é verdadeiro (ver p. 194). E assim, se ele vale provavelmente em nossa região espaço-temporal, ele provavelmente valerá universalmente. Contudo, a tese se mantém de que, dada a dificuldade em chegar a uma conclusão acerca de se qualquer teoria é mais provável que não, não é descrédito especial do teísmo se houver alguma dificuldade de chegar a uma conclusão sobre se ele é mais provável que não. Contudo a situação não é de

modo algum desesperadora; e assim continuemos, porém, conscientes da dificuldade considerável de fazer juízos desse tipo. O leitor vai se lembrar de que, pelo teorema de Bayes, a probabilidade de uma hipótese h dado indício empírico e e conhecimento de fundo k é uma função de seu poder explicativo e sua probabilidade prévia.

O poder explicativo de uma hipótese é P(e/h&k), que eu denomino seu poder preditivo, dividido por P(e/k), a probabilidade prévia do indício. P(e/h&k) é uma questão de o quão provável é que, se h for verdadeiro (e k vale), que e vai ocorrer. P(e/k) é uma questão de quão provável é que e vai ocorrer em todo caso, independente se h é verdadeiro ou não. P(h/k) é a probabilidade prévia de h, o quão provável é h a priori — ou seja, independente de se e vale ou não. Tomemos agora h como a hipótese do

teísmo “Deus existe”. Seja k mero conhecimento tautológico, e assim seja P(h/k) a probabilidade intrínseca do teísmo. Vimos no capítulo 3 que a probabilidade prévia depende da simplicidade, da adequação a conhecimento de fundo contingente e abrangência. No caso em que a probabilidade prévia é probabilidade intrínseca, o segundo fator não desempenha qualquer papel, pois k não inclui nenhum conhecimento de fundo contingente; não há nenhuma teoria aceita por áreas vizinhas à qual h deva se adequar. Nós vimos também, pelo exemplo da teoria de Newton, que, no caso em que estamos lidando com uma teoria de grande amplitude, a abrangência é de muito menos importância que a simplicidade na determinação da probabilidade prévia. A probabilidade intrínseca do teísmo parece depender principalmente apenas de quão simples enquanto teoria é o teísmo. Defendi nos capítulos 4 e 5 que o teísmo é uma teoria extremamente simples. Ele postula que toda explicação é redutível à explicação pessoal, explicação em termos de ação livre intencional de Deus ou de algum agente finito com a permissão de Deus para exercer essa ação. De acordo com o

teísmo, explicações de outro tipo — ou seja, explicações científicas — são redutíveis a explicações pessoais no sentido de que a operação dos fatores citados nas explicações científicas deve ser explicada em termos pessoais. As leis de Newton funcionam porque Deus as mantém em operação. Há planetas porque Deus é responsável pela operação da lei que levou a efeito sua evolução de matéria pré-existente e assim por diante. O teísmo é simples ao postular que nesse modo a explicação completa é toda de um tipo. Além disso, como causa da existência e poderes de todas as outras coisas, o teísmo postula a existência de apenas uma pessoa, o tipo mais simples de pessoa que poderia haver. Uma pessoa é um ser com poderes, crenças e intenções. O teísta postula que Deus tem os maiores poderes que são logicamente possíveis. Ele é infinitamente poderoso — isto é, onipotente. O poder de uma pessoa é o de fazer uma ação intencionalmente. Tal pessoa é onipotente se e somente se qualquer ação (logicamente possível) que ela quiser fazer ela consiga fazer. Que existe um Deus onipotente é uma hipótese mais simples que a hipótese de que existe um Deus com tal e tal poder limitado (por exemplo,

o poder de rearranjar a matéria, mas não o poder de cria-la). Isso é mais simples no mesmo modo em que a hipótese de que uma partícula tem massa zero ou velocidade infinita é mais simples do que a hipótese de que ela tem massa de 0,34127 de alguma unidade, ou uma velocidade de 301.000 km/s. Uma limitação finita exige uma explicação de por que há esse limite particular, num modo que o ilimitado não exige. Existe uma simplicidade acerca do zero e da infinidade que números finitos particulares não têm, uma simplicidade reconhecida por cientistas como indício de verdade nos juízos que eles fazem sobre a probabilidade relativa de teorias científicas. De acordo com o teísta, as crenças de Deus têm uma qualidade infinita semelhante. Pessoas humanas têm algumas poucas crenças finitas, algumas verdadeiras, outras falsas, algumas justificadas, algumas não. Na medida em que são verdadeiras e justificadas (ou pelo menos justificadas de certo modo), as crenças são conhecimento. Pareceria muito mais de acordo com sua onipotência que um ser onipotente tivesse crenças que fossem conhecimento. Isso porque sem crenças verdadeiras

sobre as consequências de suas ações, você pode não realizar suas intenções. Crenças verdadeiras não são conhecimento apenas se são verdadeiras por acidente. Porém, se (ver abaixo) as propriedades divinas são possuídas necessariamente, as crenças de Deus não poderiam ser falsas e assim não poderiam ser verdadeiras por acidente. E, se um ser onipotente tem conhecimento, a suposição mais simples é postular que o ser onipotente é limitado em seu conhecimento, tal como em seu poder, apenas pela lógica. Nesse caso, ele teria todo conhecimento que é coerente supor que uma pessoa poderia ter — ou seja, ele seria onisciente. Uma pessoa poderia ser onipotente no sentido de que qualquer ação (logicamente possível) que ela formasse a intenção de fazer, ela teria sucesso em fazer, e também onisciente no sentido de saber quais eram todas as ações (logicamente possíveis) disponíveis para um ser onipotente em sua situação e, no entanto, ser predeterminado a formar certas intenções. Suas intenções podem ser determinadas por fatores fora de seu controle ou, pelo menos, tal como as dos humanos, fortemente influenciadas por esses fatores. Contudo, se uma

pessoa é pré-determinada (ou tem uma tendência probabilística embutida) a agir de certo modo, isso significa que uma tendência a agir de um modo particular está embutida nela; ele não escolhe como agir apenas com base no bem das ações possíveis que ela poderia fazer. Uma pessoa com uma especificação embutida pormenorizada de como agir é uma pessoa muito mais complexa que uma perfeitamente livre. E o teísmo faz a mais simples das suposições, que Deus não é meramente onipotente e onisciente (e assim que sabe quais são todas as ações possíveis), mas também que é perfeitamente livre. Ele escolhe entre ações apenas em virtude de considerações a priori acerca de se há boas ações e quão boas elas são. É claramente mais simples supor que o princípio último de explicação, a fonte final das coisas, sempre foi o mesmo — ao invés de supor que apenas, por exemplo, em 4004 a.C. Deus surgiu e reinou — e assim que Deus existe eternamente. O teísmo, então, postula uma pessoa de um tipo incrivelmente simples — uma pessoa com poderes, crenças e intenções tais que não tem limite (além dos da lógica), para os seus poderes, para a extensão de sua crença verdadeira

justificada, e para a escolha de sua intenção; e não tem limite para o tempo de sua existência. É mais simples supor que essas propriedades de onipotência eterna, onisciência, e perfeita liberdade se conectem essencialmente — por isso retira a necessidade de explicar por que Deus existe agora em termos de ter existido muito tempo atrás e posteriormente ter escolhido manter sua onipotência ou algo assim. Defendi no capítulo 5 que as outras propriedades definidoras de Deus, e especialmente a propriedade da perfeita bondade, são possuídas necessariamente por um ser que possui as propriedades que acabei de considerar. Eu concluo que o teísmo é uma hipótese muito simples. Resta para mim, tal como para muitos que pensaram sobre o assunto, uma fonte de perplexidade: por que deveria existir algo em todo caso? E talvez por essa razão P(h/k) é baixa. Porém, de fato existe algo. E se deve existir algo, parece impossível conceber algo mais simples (e, portanto, a priori mais provável) que a existência de Deus. O tipo mais simples de explicação científica de nossos dados seria, conforme argumentei nos capítulos 7 e 8, que tudo começou de um ponto físico inextenso.

Muito menos simples seriam as hipóteses de que tudo começou de um volume extenso de matériaenergia, ou que sempre houve um volume extenso de matéria-energia. Vamos considerar, para fins de argumentação (apesar de minhas dúvidas sobre isto), que o ponto inextenso é uma hipótese tão simples quanto o teísmo; e que uma ou duas das outras hipóteses científicas não são muito menos simples que o teísmo. A questão entre elas e o teísmo como explicação completa (ou última) dos fenômenos se remete ao problema de seus poderes explicativos relativos. Isso é uma questão de quão mais provável é que os indícios ocorreriam dada a hipótese do que de outro modo. Nossos indícios e são os fenômenos que eu descrevi nos capítulos 7 a 13; mas eu vou, por conveniência, excluir no momento o indício da experiência religiosa, que eu descrevi no capítulo 13, e me restringir aos indícios da existência e do caráter geral do mundo, descritos nos capítulos 7 a 11, juntamente com o indício da ocorrência de certos eventos históricos indubitáveis, além de alguns indícios confirmando a ocorrência de violações de leis naturais, descritos no capítulo 12. Permita-me

resumir os indícios. Existe um universo, no qual, ao longo da vasta região espaço-temporal da qual temos conhecimento, os corpos físicos têm poderes idênticos. Eles atraem ou repelem uns aos outros de modos idênticos na terra ou em Marte e, tanto quanto sabemos, nas mais distantes galáxias, neste ano, no ano passado e milhões de anos atrás. Os poderes das coisas são iguais. O universo é belo. Nele há muitos seres conscientes e, dentre esses, humanos, agentes de poder e conhecimento limitados e, tanto quanto sabemos, de livre arbítrio limitado, no sentido que defini essa ideia. Eles têm o poder de melhorar essas qualidades ou de abandonálas. Eles são capazes de se maravilhar diante da ordem da natureza e de adorar a Deus. Os humanos são sujeitos a desejos, inclusive alguns biologicamente úteis; esses desejos são às vezes maus, o que significa que os humanos são sujeitos à tentação de fazer o que é moralmente errado (ou mal). Eles são, portanto, capazes de escolher por si mesmos se vão fazer ou não a ação moralmente correta e podem, ao longo do tempo, criar um bom caráter. Humanos são altamente interdependentes, capazes de aumentar o poder, o conhecimento e a

liberdade uns dos outros, fazendo uns aos outros felizes ou infelizes e, desse modo, sendo sujeitos a nascimento e morte, ser capazes de influenciar gerações distantes. Seres humanos são, assim, na minha terminologia, agentes humanamente livres aparentemente. O mundo é, portanto, providencial, tanto no sentido de que os humanos frequentemente conseguem satisfazer seus desejos corpóreos, quanto, o que é ainda mais importante, no sentido de que o mundo satisfaz suas necessidades mais profundas. O mundo contém muito mal, mas o mal não é sem fim e é ou um mal causado por humanos, ou o mal é de um tipo que é necessário para que os humanos (e os animais) tenham os vários benefícios descritos nos capítulos 10 e 11. Tudo isso forma o caráter geral do mundo no qual vivemos — a condição humana. O mundo é moldável, ou seja, ele é passível de transformação pelos humanos, e os seres humanos podem nele construir a si mesmos e se tornarem adaptados para um tipo diferente de mundo se esse fosse o caso. Dentro do nosso mundo há outros fenômenos particulares relevantes: há o esforço dos profetas incentivando os humanos à adoração e conhecimento de Deus, bem como a

conhecerem o universo e ajudarem o próximo, encorajando-os a uma “marcha para cima”, especialmente quando o egoísmo domina. E há também algum pequeno indício de violações das leis naturais de tempos em tempos em contextos religiosos, para fins religiosos e bons. Com esse e, qual é o poder preditivo do teísmo? O quanto é provável que essas coisas sejam assim se o teísmo for verdadeiro? Ora, a existência de Deus não acarreta que haverá um universo do tipo descrito. Defendido no capítulo 6 que, caso sua bondade exigisse ou não que ele fizesse um universo de algum tipo, sua bondade perfeita certamente não tornaria inevitável que ele fizesse um universo desse tipo. Deus não poderia fazer um mundo melhor dentre todos os possíveis, pois não poderia haver um mundo assim. Porém, talvez ele pudesse fazer um mundo de um tipo melhor de todos. Qualquer mundo desses conteria todos os tipos de bem; e outros mundos seriam melhores do que ele apenas na medida em que contivessem mais exemplares de cada um desses tipos ou mais intensos graus desses tipos. Ao terem liberdade para escolher entre bem e mal, agentes

humanamente livres têm um tipo único de bem que mesmo Deus não tem. Todos os outros tipos de bem no mundo (consciência, poder, beleza, racionalidade e assim por diante) são possuídos por Deus; ou, se alguns desses tipos (amor e cooperação) requerem outros seres com os quais Deus interaja, eles podem ser exemplificados no mundo por Deus criando seres bem diferentes de nós. Contudo, é claro, dar a agentes humanamente livres essa liberdade de escolher entre bem e mal é arriscar o mal que resultaria de tomar as decisões erradas. Como resultado dessa desvantagem, eu sugeri que levar a efeito um mundo no qual, tanto quanto outras coisas, houvesse agentes humanamente livres, haveria um tipo igualmente excelente de ação, igualmente excelente à ação de levar a efeito um mundo do melhor tipo, mas de modo diferente, sem esses agentes. Contudo, se deve haver um mundo contendo agentes assim, eles devem ser corpóreos e o universo deve ser governado por leis naturais simples. E seria de se esperar todas as outras características gerais de nosso universo que eu acabei de descrever. A ordem do universo provavelmente leva este a ser belo no tocante ao

modo como se comportam os objetos físicos que ele contém. É de se esperar que Deus leve a efeito um universo belo, e nesse respeito, e também por conta das plantas que ele contém, nosso universo é belo. Se Deus cria agentes morais livres assim, eles serão seres capazes de conhece-lo e Deus vai buscar (sem indevidamente limitar a liberdade deles), em alguma medida, tornar-se conhecido a eles; e, se eles fizerem muitas escolhas ruins e se corromperem, Deus vai precisar lhes ajudar a retomar o caminho do bem. Assim, podemos esperar o padrão de história e alguns indícios de violações de leis naturais do tipo descrito no capítulo 12. Embora muito mal seja necessário para se atingir muitos desses propósitos, há um limite na quantidade que Deus deveria permitir que homens (e animais) sofram por causa do bem que esse mal torne possível. Mesmo assim, se ele nos permite sofrer tanto quanto sofremos, ele precisaria dar um período compensatório de vida após a morte para quem sofreu demais e talvez se encarnar para partilhar nosso sofrimento. Adicionar à hipótese do teísmo que ele faz essas coisas torna-a mais complicada, mas não muito mais — como afirmei no capítulo 11.

Na ausência desse mal extra, a probabilidade de que Deus criaria um mundo como o que eu descrevi seria, como aleguei, um tipo igualmente excelente de ação, e assim haveria uma probabilidade de ½ de que ele faria isso. Mas se precisamos complicar o teísmo um pouco a fim de explicar a quantidade de mal, precisamos colocar um pouco mais baixa a probabilidade de que Deus levaria a efeito nosso tipo de universo. Tendo e como todos os indícios listados até agora, k como indícios tautológicos de fundo e h como a hipótese do teísmo, digamos que P(e/h&k)=1/3. De modo menos formal e mais preciso, minha tese é simplesmente que nosso universo é de um tipo que, dado o caráter de Deus, este poderia muito bem tê-lo criado. (Eu argumentei que, embora a existência de animais seja — apesar do mal necessário para tornar possíveis alguns de seus estados bons — um bom estado que Deus tem razão para levar a efeito, o fato de ele fazê-lo não seria inteiramente ou parte de um tipo excelente ou igualmente excelente de ação, e assim não podemos dar uma probabilidade tão alta a Deus criar animais.) O que dizer finalmente da probabilidade intrínseca de e (com e e k tal como acima), ou seja,

qual a probabilidade de que e ocorreria independente de se o teísmo é verdadeiro ou não? Segue-se dos axiomas do cálculo de probabilidade que a probabilidade de qualquer proposição dada qualquer outra proposição é a soma das probabilidades dos diferentes modos pelos quais a primeira proposição poderia ser verdadeira dada o indício da segunda proposição — por exemplo, P(p/r)=P(p&q/r)+P(p&~q/r). Alguns exemplos podem tornar essa ideia intuitivamente óbvia. A probabilidade, dados alguns indícios, de que Jones cometeu o crime é a probabilidade de que Jones cometeu o crime junto com Smith somada à probabilidade de que Jones cometeu o crime, mas não junto com Smith. Assim, para os já indicados h, e, e k, P(e/k) é a soma da probabilidade intrínseca de que e acontece e Deus não existe. P(e/k)=P(e&h/k)+P(e&~h/k). Ora, P(e&h/k) é o produto dos dois fatores cujos valores nós já consideramos, P(e&h/k)=P(h/k)P(e/h&k). Isso simplesmente repete a linha de cima do lado direito do teorema de Bayes. Assim, tudo depende do outro componente de P(e/k), ou seja, P(e&~h/k), o que é igual a P(e/~h&k)P(~h/k). Assim, podemos

reescrever o teorema de Bayes deste modo:

P(e/~h&k)P(~h/k), a probabilidade de que houvesse um universo do tipo do nosso e Deus não existisse, é a soma das probabilidades dos vários modos pelos quais isso poderia acontecer. Seja h1 a hipótese de que há muitos deuses ou deuses limitados; h2 seja a hipótese de que não existem Deus ou deuses, mas um estado físico inicial (ou perpétuo) do universo, diferente do presente estado, mas de um tipo tal que leve a efeito o estado atual; e h3 seja a hipótese de que não explicação nenhuma (o universo é e sempre foi do modo como é). Então

P(e/~h&k)P(~h/k)=P(e/h1&k)P(h1/k)+P(e/h2&k)P(h

A hipótese do teísmo difere de outras hipóteses que pretendem dar uma explicação completa (ou última) de nossos dados no fato de que

não temos de incluir em Deus uma propensão a levar a efeito um universo de um tipo, ao invés de um de qualquer outro tipo. Há uma probabilidade significativa de que ele fará isso, meramente em virtude de suas propriedades essenciais, e especialmente de sua perfeita bondade. Para que algum deus menor tenha a mesma propensão de levar a efeito esse universo como Deus teria, é preciso supor que esse deus menor tenha certa característica que não é acarretada, como é acarretada no caso de Deus, pela extensão de seu conhecimento e liberdade. Além disso, em outra direção, eu defendi que a hipótese do teísmo é de fato muito simples, mais simples que as hipóteses de muitos deuses ou deuses limitados. Argumentei nos capítulos 3 e 7 que nossos critérios normais de probabilidade dão a uma hipótese muito simples uma probabilidade intrínseca maior do que a uma disjunção de muitas hipóteses mais complexas alternativas. Nesse caso, o teísmo será mais provável que h1, a disjunção das hipóteses de muitos deuses ou deuses limitados; e há muito menos razão pela qual eles deveriam sequer levar a efeito algum universo ou um com as características do nosso —

eles podem não ser capazes de fazê-lo e, não sendo perfeitamente bons, podem não ter muita razão de fazê-lo (a menos que compliquemos ainda mais essas hipóteses ao incluir nelas essa propensão requerida). P(e/h&k)P(h/k) P(e/h1&k)P(h1/k). Voltemo-nos agora para h2. Essa é a hipótese de que não existem deuses ou Deus, mas um estado físico inicial ou perpétuo do universo, diferente do presente, mas tal que pudesse levar a efeito o estado atual. Contudo, não há razão qualquer para que ponto físico não extenso ou qualquer de outros pontos de partida possíveis do universo, ou de um universo extenso perpétuo, deveriam ter, como tais, o poder e a suscetibilidade de levar a efeito todas as características que eu descrevi. De fato, mostrei capítulo a capítulo que, para cada uma dessas características, é bastante improvável que qualquer mecanismo físico (descrito em termos bastante gerais) levaria a efeito aquelas características ao invés de quaisquer outras. Só se tornará provável que haverá um universo de nosso tipo se incluirmos nas hipóteses uma enorme quantidade de complexidade. E, desse modo, pelo princípio acima, uma disjunção de hipóteses muito complexas assim

será intrinsicamente menos provável que uma hipótese muito simples. Ou P(e/h2&k) será muito menor que P(e/h&k) ou P(h2/k) será muito menor que P(h/k). E é inacreditável que nosso universo deva ter todas as características descritas (sobretudo o fato esmagador, codificado em “leis da natureza”, de que cada partícula de matéria em meio a vastas extensões de espaço deva se comportar exatamente do mesmo modo que todas as outras partículas) sem haver alguma explicação para isso. Enquanto P(e/h3&k)=1 (ou universo não ser explicado acarreta ele ser do modo que é), P(h3/k) é infinitesimalmente baixa. Eu concluo que P(e/h1&k)P(h1/k)+P(e/h2&k)P(h2/k) +P(e/h3&k)P(h3/k)=P(e/~h&k)P(~h/k)

Não vai exceder P(e/h&k)P(h/k), a linha de cima do lado direito do teorema de Bayes. E assim, P(h/e&k), a probabilidade posterior do teísmo dados

os indícios considerados até aqui, não será menor que ½. Eu enfatizo de novo que é impossível dar algo como valores exatos às probabilidades envolvidas nesses cálculos. Tentei mostrar a força de meus argumentos aos lhes dar alguns valores arbitrários que, espero eu, realmente capturam os tipos de probabilidades envolvidos, dentro das margens mais aproximadas possíveis. Contudo, na verdade, tudo o que minhas conclusões até aqui querem dizer é algo como que é tão provável quanto não que o teísmo é verdadeiro, dados os indícios considerados até aqui. Porém, até aqui neste capítulo eu ignorei um indício crucial, o indício da experiência religiosa. Eu concluí o último capítulo (p. 525) com a afirmação de que, a menos que a probabilidade do teísmo em vista de outros indícios seja muito baixa, o testemunho de muitas pessoas que relataram experiências religiosas aparentemente de Deus é suficiente para fazer muitas dessas experiências provavelmente verídicas. Ou seja, o indício da experiência religiosa é, nesse caso, suficiente para fazer do teísmo provável no fim das contas. O argumento do capítulo 13 era que o testemunho de muitas pessoas que relataram

experiências aparentemente de Deus torna a existência de Deus provável se esta já não é muito improvável em vista de outros indícios. Eu acredito que mostrei que essa condição está mais do que adequadamente satisfeita e, portanto, que a conclusão do capítulo 13 se aplica. Com base na totalidade de nossos indícios, o teísmo é mais provável que não[183]. Um argumento com base em todos os indícios considerados neste livro em favor da existência de Deus é um bom argumento Pindutivo. A experiência de tantas pessoas em seus momentos de visão religiosa corrobora o que a natureza e a história mostram ser muito provável — que existe um Deus que fez e sustenta o homem e o universo.

Nota adicional 1: A Trindade Os argumentos deste livro são alegadamente “argumentos em favor da existência de um Deus”, definido como necessário, necessariamente eterno, onipotente, onisciente e perfeitamente livre (do que se seguem as outras propriedades divinas). Denomino um ser assim uma pessoa ou ser divino. Há um argumento nas pp. 178-79 no sentido de que pode haver apenas um ser assim: que, se houvesse um segundo ser divino, e assim que o primeiro ser divino dependesse para sua existência de um segundo ser divino (que permitisse que ele exista), aquele segundo ser não poderia depender para sua existência do primeiro ser (pois não pode haver causação em círculo), e o primeiro ser não seria divino. Duns Scotus apresenta este argumento.[184] Se, contudo, a eternidade de Deus for entendida como sempiternidade (como existir em todo período de tempo), e se causação literalmente simultânea for logicamente impossível (ou seja, se causação levar tempo), e assim uma causa “agindo no tempo” para

levar a um efeito dever ser entendida no modo analisado na p. 147 nota 3, o argumento não funciona. Pois um primeiro ser divino poderia causar (ativa ou passivamente — isto é, permitir existir), em cada período do tempo sem fim, a existência de um segundo ser divino em cada período de tempo virtualmente idêntico, mas ligeiramente posterior, e este, por sua vez, necessariamente causaria (ativa ou passivamente) a existência do primeiro ser divino num tempo ligeiramente posterior àquele, e assim cada um dependeria sempiternamente do outro para sua existência. A causação teria de ser necessária — uma consequência de suas naturezas que cada um assim causou a existência do outro. A liberdade perfeita de um ser divino é sempre limitada por sua bondade perfeita e a perfeita bondade de cada um asseguraria que nenhum destruísse o outro. Há, contudo, outra objeção à possibilidade de existência de dois seres divinos, também levantada por Scotus, de que “se dois seres onipotentes existem, cada um fará o outro impotente, não na verdade por destruí-lo, mas porque um por sua vontade positiva poderia manter como não existente o que o outro quisesse que

existisse”. Assim, um poderia querer que a terra se movesse no sentido horário ao mesmo tempo em que o outro quisesse que ela se movesse no sentido anti-horário ao redor do sol. Isso, contudo, é evitável se um ser divino vê como parte de sua perfeita bondade que ele devesse confinar sua causação a uma esfera de atividade, enquanto o outro confinasse sua causação a uma esfera diferente. Isso pode ser assegurado se um dos seres divinos causa ativamente a existência do outro em cada período de tempo naquela condição, enquanto que o segundo ser causa apenas passivamente a existência do primeiro (ou seja, não o impede de existir), em cada período de tempo. Em virtude dessa assimetria de dependência, o segundo ser reconhece a autoridade do primeiro ser em delimitar suas esferas de atividade. A existência de mais que um ser divino é possível dada a assimetria de dependência, e eu não consigo ver de que outra maneira isso seria possível, pois apenas assim cada ser divino reconheceria quem tinha o direito de definir as esferas de atividade de cada um. Certamente, este mesmo processo poderia ser repetido para permitir a existência de mais de dois

seres divinos. Para uma descrição mais completa deste tópico, veja meu The Christian God (Clarendon Press, 1994), especialmente capítulos 7 e 8. Os argumentos deste livro são, portanto, mais precisamente descritos como argumentos em favor da existência de um ser divino, uma pessoa da qual tudo o mais depende. Isso é teísmo, a visão comum ao cristianismo, judaísmo e islamismo. O teísmo é, contudo, compatível com a doutrina cristã da Trindade de que há mais de uma pessoa divina, dado que qualquer outra pessoa divina depende da primeira pessoa divina para sua existência e para a delimitação da esfera na qual seria bom para ela atuar. Ao descrever meus argumentos como argumentos em favor “da existência de Deus”, estou, assim, simplificando demais, pois o Deus cristão consiste de Pai, Filho e Espírito Santo. Em termos cristãos, meus argumentos são argumentos em favor da existência de Deus Pai, embora sejam compatíveis com parte de sua atividade ser mediada por Deus Filho e Deus Espírito Santo. Em The Christian God, defendo a verdade dessa doutrina cristã em bases a priori. Defendo ali

que sua perfeita bondade requer um primeiro ser divino para produzir um segundo e, em cooperação com o segundo, produzir um terceiro; mas que não há necessidade de produzir um quarto. Qualquer quarto ser divino não existiria, portanto, necessariamente (no sentido examinado nas pp. 17677 deste livro) e, assim, não seria um ser divino. Assim, haverá três e apenas três seres divinos. Os argumentos deste livro não dependem, contudo, destas últimas afirmações. Se eu estiver certo em supor que a existência de um ser divino implica a existência de dois outros, então, ao argumentar no presente livro em favor da existência de um ser divino, meus argumentos são, com efeito, argumentos em favor da existência da trindade cristã. Contudo, se estiver errado nesta suposição, então eles são argumentos apenas em favor de um ser divino, que o judaísmo e o islamismo supõem ser o único ser divino. Eu de fato, contudo, simplifico demais (na p. 41 e seguintes) ao definir Deus no modo judaico-islâmico. Isso pode ser facilmente reformulado pelo cristão do seguinte modo: Deus é a Trindade inteira, consistindo de três pessoas divinas; os argumentos são argumentos em favor da

existência de uma pessoa divina, da qual as outras duas necessariamente dependem.

Nota adicional 2: Argumentos recentes em favor do design a partir da Biologia De tempos em tempos, vários autores afirmam que a evolução por seleção natural de variações pequenas não pode explicar a emergência de algumas características ou, mais geralmente, de algumas espécies. Mais recentemente, Michael Behe afirmou que há na natureza “sistemas complexos irredutíveis, ou seja, sistemas compostos de muitas partes interativas bem combinadas que contribuem para a função básica [do sistema] e nos quais a remoção de qualquer das partes causa que o sistema efetivamente pare de funcionar”. Nesses sistemas, cada parte por si mesma não traz vantagem evolutiva nenhuma para o organismo; apenas se todas estão presentes é que há essa vantagem. Contudo, seria necessária a ocorrência simultânea de várias mutações de genes separados para produzir o sistema e isso é extremamente improvável. A

ocorrência de sistemas assim, argumenta Behe, mostra a inadequação das explicações científicas do processo evolutivo, e a necessidade de invocar um projetista. Há muita dúvida quanto a se Behe mostrou que existem sistemas assim. Pode muito bem ser que, nos exemplos que ele cita de sistemas irredutivelmente complexos, tais como o flagelo bacterial, as partes separadas de fato trazem uma vantagem evolutiva (embora não necessariamente a mesma vantagem que o sistema inteiro) para os organismos que as têm.[185] Mas mesmo se há esses sistemas, esse fato não faz diferença para a força do argumento a partir da ordem espacial (ou seja, o argumento a partir da existência de corpos humanos e animais) apresentado no capítulo 8; ele pode nem aumentar nem diminuir sua força. Se as leis físicas, exceto as que se referem ao cérebro humano (ver p. 287-88) fossem totalmente deterministas (contrário à interpretação mais usual da Teoria Quântica), então — dadas as condições limite do universo (por exemplo, as condições iniciais na hora do Big Bang), seria inevitável que corpos animais e humanos evoluiriam na terra e

talvez em outros planetas também. Tudo que a descoberta de sistemas irredutivelmente complexos mostraria é que os mecanismos pelos quais isso foi levado a efeito não era sempre o da seleção natural de pequenas variações e de vantagem evolutiva. Ela mostraria as condições iniciais e as leis são tais que às vezes há mutações simultâneas que constituem sistemas complexos inteiros (não apenas mutações singulares, causando pequenas diferenças) que então são selecionadas pela vantagem que elas dão a quem as possui na luta pela sobrevivência. Mas isso não faria diferença para o grau em que o universo foi finamente sintonizado e, assim, não tornaria mais ou menos provável que ele foi projetado por um projetista poderoso. Se, contudo, as leis físicas forem meramente probabilísticas, então é bem possível que a descobertas de sistemas assim possa ser relevante. Mas para isso ser o caso, duas outras teses teriam de ser estabelecidas. Primeiro, precisaríamos mostrar que — dadas as atuais leis físicas, e dadas as condições iniciais da vida na terra (ou seja, os arranjos exatos das partículas fundamentais nos primeiros organismos a viver na terra), e dadas todas

as influências dos meios ambientes nos organismos, é improvável que ocorressem mutações simultâneas constituindo sistemas irredutivelmente complexos possuindo uma vantagem seletiva. Isso me parece implausível. É claro, normalmente, não há dúvida que mutações não se correlacionam desse modo, mas não é improvável que ocasionalmente isso possa acontecer. E, em segundo lugar, seria necessário mostrar que, sem tais mutações correlacionadas, é improvável que corpos humanos e animais evoluiriam. Seria necessário mostrar não apenas que certas espécies não evoluiriam, mas que (mesmo que as mesmas espécies não evoluíssem), o processo evolutivo que levou aos corpos humanos não teria ocorrido. Isso me parece bastante duvidoso. Contudo, na medida em que os indícios tornam ambas essas teses prováveis, e dado que, como eu suponho, os indícios tornam provável (por razões da Teoria Quântica e outras) que as leis físicas sejam indeterminísticas, então a descoberta de “sistemas irredutivelmente complexos” (se descobertas assim fossem estabelecidas) seria crucialmente relevante para o argumento da ordem espacial. Isso porque, em primeiro lugar, ela teria

mostrado, que a não ser por intervenção sobrenatural, não é provável que a vida humana e animal evoluíssem e, assim, que a sintonia fina do universo não constitui um argumento tão forte assim para a existência de Deus. Pois o fato de que as leis e condições limite do universo não impedem a evolução de humanos e animais não é o bastante para mostrar que o universo é o tipo de universo que Deus teria feito a fim de produzir humanos e animais; isso porque, se esse era seu propósito, ele poderia ter feito um universo que conduzisse muito mais a essa evolução. E assim, em segundo lugar, ela teria mostrado que precisamos de descobertas de sistemas irredutivelmente complexos como indícios da intervenção divina num processo que, de outro modo, seria muito improvável que produzisse vida inteligente. Assim, tais descobertas constituiriam um bom argumento C-indutivo em favor da existência de Deus. Porém, a meu ver, a ciência atual parece sugerir que nenhuma das duas teses dos parágrafos anteriores (e especialmente a primeira tese) é muito provável. Eu deveria acrescentar que Behe e outros autores no mesmo espírito afirmam que seus

argumentos mostram apenas design por um projetista e não por Deus. Contudo, qualquer fenômeno só pode ser indício de design se for o tipo de coisa que um projetista teria buscado levar a efeito. Diferentes projetistas têm diferentes propósitos. Poderia haver um projetista que tivesse (do nosso ponto de vista) os propósitos mais estranhos — por exemplo, produzir feios universos caóticos. É apenas se temos alguma razão a priori para supor que certos tipos de projetistas com certos tipos de propósitos têm mais probabilidade de existir que outros que qualquer argumento do design pode funcionar. Eu argumentei que a priori a existência de um Deus com as propriedades tradicionais é uma hipótese mais simples que a hipótese de qualquer outro tipo de projetista, e assim que é mais provável a priori que exista um projetista assim. Ele buscará (para simplificar o argumento do capítulo 6) levar a efeito estados de coisa muito bons. Assim, dado — como defendi — que a existência de humanos é um estado muito bom, seria de esperar encontrarmos um estado assim se Deus existisse e desse modo a existência de um estado assim é indício da existência de Deus. Nenhum fenômeno mostra design

enquanto tal sem ao mesmo tempo mostrar algo do tipo de ser que o projetou. O argumento de Behe deve ser interpretado ou como um argumento em favor da existência de Deus, ou como um argumento em favor da existência de um projetista menos poderoso, mas basicamente benevolente. Contudo, ele mostrará apenas essa segunda ideia ao invés da primeira, se a priori (devido a razões de simplicidade e amplitude, ou por razões de conhecimento de fundo) a existência de uma divindade menor (sem a existência de Deus) for mais provável que a existência de Deus. Eu argumentei no sentido inverso no capítulo 6.

Nota adicional 3: O argumento de Plantinga contra o naturalismo evolucionário Alvin Plantinga desenvolveu recentemente um argumento que vai em sentidos parecidos ao da minha exposição do argumento da consciência.[186] Ele diz que entende por naturalismo (N) “a crença de que não há seres sobrenaturais — não há pessoas como Deus, por exemplo”.[187] Ele entende por evolução (E) “a crença de que os humanos evoluíram de acordo com a doutrina evolutiva atual” — ou seja, presumivelmente, a teoria darwinista da seleção natural por variações aleatórias de genes que causam características fenotípicas (incluindo comportamento) que conduzem à sobrevivência do organismo. Ele entende por “confiabilidade de nossos processos cognitivos (R) a afirmação de que a maioria das crenças que adquirimos sobre o presente, o futuro e o passado, e a natureza do mundo são mais ou menos verdadeiras”. Ele então

afirma que, dados apenas N e E, a probabilidade de R é “baixa ou inescrutável”,[188] e assim que um naturalista evolucionário não pode acreditar racionalmente que as faculdades cognitivas são confiáveis, e assim não pode acreditar racionalmente em qualquer crença que elas produzam, inclusive as crenças N e E. (N & E) é uma crença autoanuladora; ninguém pode acreditar racionalmente que N e E são ambos verdadeiros. Assim, embora Plantinga não ponha a questão deste modo (presumivelmente por causa de suas dúvidas acerca de E), dado R, E torna provável que N é falso. Se encaramos E como estabelecido, há um argumento P-indutivo correto a partir de E e R em favor da falsidade de N e assim em favor da existência de Deus (ou ao menos de algum deus menor), que criou nossas faculdades cognitivas e as tornou confiáveis. Tal como originalmente apresentado, o argumento tem quatro passos, mas ele pode ser facilmente reduzido a dois.[189] Primeiro, defende Plantinga, o naturalismo evolucionário como tal não dá razão para supor que nós teríamos crenças cujo conteúdo guia nossos “desejos” de causar nosso comportamento.

(Plantinga quer dizer por “desejo” o que eu quero dizer por intenção ou propósito. Eu vou seguir a terminologia dele nesta Nota Adicional). Ou seja, que nós fazemos o que fazemos em parte por causa do que acreditamos. Por exemplo, quando vemos um tigre e fugimos, nós fugimos porque acreditamos que o tigre é perigoso e “desejamos” não ser mortos. É muito mais provável, dado o naturalismo evolucionário, que nosso comportamento seria causado por nossos eventos cerebrais em si mesmos, sem serem causados por crenças, e que quaisquer crenças seriam meros epifenômenos. Assim, não haveria vantagem seletiva em ter crenças verdadeiras ao invés de crenças falsas; e, uma vez que há muito mais possíveis crenças falsas que verdadeiras, é improvável que, quaisquer que sejam os processos que gerem crenças que eles gerariam principalmente crenças verdadeiras. Esse estágio do argumento me parece correto por razões que são, essencialmente, as mesmas que dei no capítulo 9. A priori é improvável (excetuando o teísmo) que eventos cerebrais produziriam quaisquer crenças (sobre nosso meio ambiente) — por causa da complexidade das leis que estão inevitavelmente envolvidas nisso.

A priori, e pela mesma razão, é improvável (excetuando o teísmo) que (junto com outros propósitos) as crenças afetariam eventos cerebrais e, desse modo, o comportamento. Uma teoria naturalista da evolução que exclua o teísmo torna muito improvável que haja crenças correlacionadas nesses modos com eventos cerebrais. O segundo estágio do argumento de Plantinga é afirmar que, mesmo que as crenças (junto com “desejos”) realmente causassem comportamento, e assim organismos, que tivessem crenças (com “desejos”) que causassem comportamento que levasse a sua sobrevivência, teriam uma vantagem seletiva e assim tenderiam a sobreviver, não há razão (na ausência de Deus ou deuses) para supor que isso daria uma vantagem seletiva para organismos terem crenças verdadeiras. Isso porque crenças falsas poderiam ser combinadas com “desejos” de modo tal que produza comportamento que dê a mesma vantagem seletiva. Plantinga dá dois tipos bem diferentes de exemplo para mostrar como isso poderia ocorrer. No primeiro tipo de exemplo, processos de formação de crença causam uma crença falsa ao invés da crença

verdadeira que (acreditamos) eles normalmente causam, e assim, se nós tivéssemos tido nosso desejo normal, nós nos comportaríamos de um modo tal que não nos levaria à sobrevivência; mas um processo de formação de desejo ao mesmo tempo forma um desejo anormal de que (junto com a crença falsa) leva ao mesmo comportamento que (o que cremos ser) o par crença verdadeira-desejo normal. Paul vê um tigre e se afasta, mas isso não precisa ser causado por sua crença de que ele está diante de um tigre perigoso e seu desejo de continuar vivo. Talvez, afirma Plantinga, ao invés disso, Paul “acredita que o tigre é um gatinho amigável e carinhoso e quer adota-lo como animal de estimação; mas ele também acredita que a melhor maneira de adotá-lo é correr dele... ou talvez ele pense que ele está prestes a tomar parte numa corrida de seiscentos metros, queira vence-la e acredite que o aparecimento do tigre é o sinal de partida...”.[190] E assim por diante. Tudo isso é logicamente possível, mas requereria um mecanismo muito complicado de produção de crença e desejo por nossos cérebros para levar isso a efeito. De

longe os mecanismos mais simples (embora sejam pouco simples por razões dadas no capítulo 9) de produzir crenças e desejos serão dois mecanismos separados, um dos quais produz crenças e o outro produz desejos. Assim, para dadas crenças, diferentes desejos levariam a diferentes comportamentos; e, respectivamente, para dados desejos, diferentes crenças levariam a diferentes comportamentos. Cenários do tipo de Plantinga não são compatíveis com isso. A razão disso é que, se Paul deixa de desejar adotar o animal na frente dele e tem as crenças que Plantinga postula, Paul será eliminado. Suas crenças teriam de mudar ao mesmo tempo (por exemplo, ele teria de parar de acreditar que há aqui um grande gatinho amigável e carinhoso) para poder sobreviver. E do mesmo modo se ele parasse de querer ganhar a corrida. Os mecanismos que causam as crenças teriam de causar crenças totalmente diferentes à medida que mudam nossos desejos. Contudo, dados mecanismos (em grande parte) independentes que causam crenças e desejos e dado que nós temos um desejo de sobreviver (como o naturalista supõe que nós temos normalmente), temos muito mais probabilidade de

sobreviver se tivermos crenças verdadeiras sobre como satisfazer nossos outros desejos de modo compatível com a sobrevivência do que se tivermos crenças falsas. Se processos bioquímicos causam crenças e desejos e estes causam comportamento, é muito mais provável que aqueles processos gerarão mecanismos simples do que mecanismos complicados, nos quais as crenças variem com desejos num modo tal que causem comportamento que mimetize os causados por mecanismos simples. Assim, dada a interação física e mental, dado (N & E), é provável que nossos processos de formação de crença serão confiáveis. Defendo no capítulo 9 que é altamente improvável que nossos processos de formação de crença serão confiáveis, a menos que usemos critérios indutivos corretos do que é indício para o quê. O segundo tipo de exemplo de Plantinga para mostrar que crenças falsas poderiam ser ligadas a desejos num modo tal que produza comportamento com uma vantagem seletiva é de casos nos quais crenças sobre assuntos mundanos expressos em termos de uma teoria metafísica falsa têm a mesma consequência para o comportamento

do que aqueles expressos em termos de uma teoria metafísica verdadeira: “Talvez Paul é um tipo de leibniziano e pense que tudo é consciente (e suponha que isso é falso); além disso, todos os seus modos de se referir a coisas envolvem descrições definidas que acarretam a consciência, de modo que todas as suas crenças são da forma “que esse ser consciente é assim e assado”. Talvez ele seja um animista e pense que tudo está vivo.[191] Ora, é claro que esse tipo de coisa pode acontecer e de fato acontece. Contudo, não há linha divisória precisa entre crenças sobre o mundano e crenças sobre o metafísico. As últimas são apenas crenças no final de um espectro de crenças sobre assuntos mais amplos e mais profundos. Há, como vimos, uma vantagem seletiva em ter mecanismos que fazem inferências sobre assuntos mundanos de acordo com critérios corretos sobre o que é indício para quê. Os animais superiores, tanto quanto os humanos, podem fazer predições possibilitadas por generalizações simples a partir de dados observáveis de interesse particular para eles. Se foi oferecida comida toda manhã neste lugar há vários dias, eles esperam encontra-la aqui hoje também. Mas os

humanos são capazes de raciocínio mais sofisticado; e eles têm a vantagem seletiva de poderem aumentar seu estoque de crenças verdadeiras pela reflexão e o experimento. A continuidade de assunto entre o mundano e o metafísico vai nos levar a usar os mesmos critérios em metafísica. Como eu ilustro no capítulo 3, crenças sobre o inobservável são tidas como corretas pelos mesmos critérios que as crenças sobre o observável; e as leis fundamentais e explicações últimas são tidas como corretas pelos mesmos critérios que as explicações de algum evento em termos de alguma causa imediatamente precedente. Assim, espera-se (dado N & E) que vamos buscar melhorar nossas crenças metafísicas por critérios corretos — tal como este livro está tentando fazer; e de modo que, ao longo do tempo, elas vão realmente melhorar. A seleção natural estimula a emergência de crenças metafísicas verdadeiras — não porque elas mesmas confiram alguma vantagem seletiva, mas porque são produzidas por mecanismos do mesmo tipo que produz crenças mundanas verdadeiras. Contudo, quanto mais metafísica for a crença, mais nossa aplicação dos critérios precisará ser consciente,

cuidadosa, explícita e sofisticada. Generalizações simples geralmente requerem pouco pensamento. E humanos que formam falsas crenças metafísicas não têm probabilidade de sofrer eliminação rápida em consequência disso. Ao contrário, ter crenças metafísicas falsas pode às vezes dar uma vantagem de sobrevivência de curto prazo. Se nos tempos romanos você acreditasse que professar a verdade era pouco importante, ou alternativamente acreditasse que César era um deus, você iria oferecer incenso a César. Desse modo, você teria mais probabilidade de sobreviver do que aqueles que não tivessem essas crenças falsas. Assim, teorias metafísicas falsas podem provavelmente florescer por muito mais tempo que generalizações mundanas falsas simples, tal como ilustra o exemplo de Plantinga. Contudo, os humanos têm os critérios indutivos corretos para elimina-las e, quando combinadas com um desejo em geral de ter crenças verdadeiras — sem o qual os humanos não sobreviveriam por muito tempo — os humanos terão uma tendência a adquirir crenças metafísicas corretas ao longo do tempo. Eu concluo que o argumento de Plantinga

contra o naturalismo evolucionário não dá uma razão adicional para o teísmo além da que é dada por meu argumento da consciência. [1] Para uma crítica em bases bayesianas da abordagem de Hume ao problema dos milagres, adicional às objeções de Swinburne aqui expostas, ver Earman (2000). [2] A obra mais influente de filosofia bayesiana da ciência é de Howson & Urbach (1993). Uma crítica importante aparece em Mayo (1996). [3] Para um desenvolvimento da ideia de que parte da filosofia analítica da religião se opõe ao chamado “pensamento pósmetafísico”, permita-me modestamente sugerir um artigo meu: Portugal (2010). [4] Eu mesmo faço esse questionamento em Portugal (2004).

[5]

Ao entender Deus como uma pessoa, ao mesmo tempo em que faço jus à visão judaica e islâmica de Deus, estou simplificando demais a visão cristã. Ver minha Nota adicional 1. [6] Vide The Coherence of Theism (Clarendon Press, 1993), cap. 12. [7] Para uma análise mais profunda, devo referir o leitor a The Coherence of Theism e meu livro The Christian God (Clarendon Press, 1994). [8] A versão tradicional do argumento ontológico foi apresentada por Descartes e, provavelmente, originalmente por Santo Anselmo. Ele se segue basicamente assim: “Deus é por definição o ser mais perfeito. Um ser que exista é mais perfeito que um que não exista. Portanto, Deus, o ser mais perfeito, existe”. Para antigas e

modernas versões do argumento e críticas a ele, vide (por exemplo) a coleção editada por A. Plantinga The Ontological Argument (MacMillan, 1968). Para uma análise bastante cuidadosa que leva à rejeição do argumento, vide J. Barnes, The Ontological Argument (MacMillan, 1972). [9] Por exemplo, Santo Tomás de Aquino. Vide sua Summa Theologiae, Ia2.1. [10] Tento provar isso para argumentos que visam mostrar que o teísmo é incoerente em The Coherence of Theism. [11] (Clarendon Press, 1998).

[12]

Eu apresento esse preenchimento com respeito ao milagre crucial para a religião cristã, a suposta ressurreição de Jesus Cristo, em meu livro The Resurrection of God Incarnate (Clarendon Press, 2003). [13] I. Kant, Critique of Pure Reason, B618-19, trad. N. Kemp Smith (MacMillan, 1964). [14] Dentre aqueles que parecem ter assumido que não há bons argumentos que não sejam dedutivos e que argumentos não são cumulativos estão tanto (o primeiro) Alasdair MacIntyre quanto Antony Flew. Assim, MacIntyre: “Ouve-se ocasionalmente professores de teologia declararem que, embora as provas não confiram bases conclusivas para a crença em Deus, elas são, ao menos, setas, indicadores. Mas um argumento falacioso não aponta para lugar algum (exceto para a falta de perspicácia lógica da parte daqueles que o aceitam). E três argumentos falaciosos não são melhores do que um” (A. MacIntyre, Difficulties in Christian Belief (SCM Press, 1959), 63). Essa passagem é citada com aprovação por Flew em seu God and Philosophy (Hutchinson, 1966), 167, no qual ele mesmo nota em outra passagem algo muito similar: “É ocasionalmente sugerido que alguma candidata a prova,

embora se admita que falhe como prova, pode às vezes prestar um serviço útil como um indicador. Este é um falso exercício da generosidade tão característica dos examinadores. Uma prova fracassada não pode servir como indicador de nada, exceto, talvez, das fraquezas daqueles que as aceitaram. Tampouco, pela mesma razão, elas podem ser colocadas para funcionar junto com outros rejeitos como parte de uma acumulação de indícios. Se um balde furado não vai segurar água, não há razão para pensar que dez irão” (ibid. 62-3). Mas, é claro, argumentos que não são dedutivamente válidos são frequentemente indutivamente fortes; e se você põe três argumentos fracos juntos, você com frequência pode conseguir um forte, talvez até um dedutivamente válido. [15] Chamarei probabilidade deste tipo “probabilidade física” porque este termo tem uma certa aceitação corrente, mas não quero que se conclua que ela se aplica apenas a objetos ou estados físicos. Pode haver, no sentido definido, alguma probabilidade física de que algum evento mental ocorra. [16]Para a elucidação da distinção entre probabilidade lógica e outros tipos de probabilidade indutiva, que eu chamo de “probabilidade epistêmica” e “probabilidade subjetiva”, vide meu Epistemic Justification (Clarendon Press, 2001), cap. 3. [17] “e&k” é a conjunção de e e k, a proposição “tanto e quanto k”. [18] “~p” é a negação de p, a proposição “não é o caso que p”. “>“ significa “é maior que”. “ P(h/e1... e11)” e não o que acabou impresso. [N. do T.] [20] Entendo por uma pessoa um agente racional que tem ao menos a complexidade de sensações, desejos, crenças, etc., típica de seres humanos. Vide The Coherence of Theism, 102-3. [21] Este termo é um pouco enganoso, pois, ao contrastar “explicação científica” com “explicação pessoal” pareço implicar que não possa haver uma “ciência” das pessoas no sentido de uma teoria integrada de como as pessoas se comportam. Não é isso que quero dizer. Mas dou ao tipo de explicação que analiso no Capítulo 2 esse nome de “explicação científica” porque é a explicação do tipo que se usa na maioria das ciências. Em outra parte (em meu livro Is there a God? (Oxford University Press, 1996)) usei, ao invés, a expressão “explicação inanimada”, mas esta também tem uma implicação enganosa que eu quero evitar, a de que não pode haver leis científicas conectando eventos físicos e mentais. [22] Para uma exposição simples, vide C. G. Hempel Philosophy of Natural Science (Prentice-Hall, 1966), cap. 5. O artigo original que lida apenas com a explicação nomológico-dedutiva é C. G. Hempel e P. Oppenheim, “Studies in the Lógic of Explanation”, Philosophy of Science, 15 (1948), 135-75. [23]Essa correção é uma versão simplificada da correção proposta por Wesley Salmon. Vide seu texto “Statistical

Explanation” em Wesley C. Salmon (ed.) Statistical Explanation and Statistical Relevance (University of Pittsburgh Press, 1971). As considerações que levaram Salmon a propor uma teoria um pouco mais complicada foram, creio eu, levadas em conta em meu requisito subsequente de que a probabilidade na lei deva ser uma probabilidade física. [24] Hempel faz a distinção em termos de “leis” que são generalizações que estão baseadas numa teoria aceita. Mas isto é insatisfatório, uma vez que algumas leis podem nunca ser descobertas e, portanto, podem nunca fazer parte de uma teoria aceita. [25] David Lewis, “A Subjectivist’s Guide to Objective Chance”, Postscript, in Philosophical Papers (Oxford University Press, 1986), ii. 122. [26] Ibid., pp. ix-x.

[27]

Assim “Eu sustento…que muitos universos [possíveis] vazios existem. Do modo como vejo, há um mundo desprovido de todos os objetos e eventos materiais nos quais os princípios gerais da mecânica newtoniana são leis; há um outro mundo vazio no qual os princípios gerais da física aristotélica são leis” (John W. Carroll, Laws of Nature (Cambridge University Press, 1994), 64, n.4). [28] Vide, por exemplo, D. M. Armstrong, A World of States of Affairs (Cambridge University Press, 1997), Michael Tooley, “The Nature of Laws”, Canadian Journal of Philosophy, 7 (1977), 66798, and F. I. Dretske, “Laws of Nature”, Philosophy of Science, 44 (1977), 248-68. Ao expor essa descrição, faço-o em termos da visão de Tooley de que as ligações entre os universais existem num céu platônico antes e independentemente de qualquer instanciação em objetos mundanos, ao invés da visão de Armstrong de que

universais existem apenas na medida em que são instanciados. Segundo esta última concepção, parece inexplicável por que qualquer ligação em particular seria instanciada ao invés de outra. [29] (Blackwell, 1975).

[30]

A ocorrência do resultado de uma ação é então acarretada pela efetivação da ação. O resultado de uma ação deve ser distinto de uma consequência da ação. Uma consequência de uma ação é algo levado a efeito, mas não acarretado pela efetivação da ação. Esta distinção é devida a von Wright. Vide G. H. von Wright, Norm and Action (Routledge & Kegan Paul, 1963), 39ff. [31] Estabelecida primeiramente por A. C. Danto em seu “Basic Actions”, American Philosophical Quarterly, 2 (1965), 141-8. [32] As referências de páginas correspondem à versão impressa em português. [N. do E.] [33] D. Davidson, “Actions, Reasons and Causes”, Journal of Philosophy, 60 (1963), 685-700. [34] Davidson defende que eventos mentais tais como “intenções” são idênticos a eventos cerebrais e que as leis envolvidas são leis conectando esses eventos cerebrais (segundo uma descrição física e não uma descrição mental como “intenções”) com outros eventos físicos. Em breve a seguir, darei razões para adotar um sistema de categorias que exclui essa identidade postulada, do que se segue que se há leis envolvidas aqui, elas são leis psicofísicas. [35] É importante distinguir a intenção numa ação do agente ou a intenção com a qual ele age, que é o que nos interessa aqui, de uma intenção de fazer algo em alguma data futura. Esta última não é algo manifestado na ação é pode ser um estado de algum tipo. A primeira existe apenas enquanto um agente executa alguma ação

intencional — mesmo se for apenas a ação mínima de tentar fazer alguma coisa. A descrição no texto pretende se aplicar apenas a intenções em ações. [36] R. Taylor, Action and Purpose (Prentice-Hall, 1966), 248-9.

[37]

Uma resposta de Alvin Goldman (A Theory of Human Action, (Prentice-Hall, 1970)) é admitir que atos intencionais têm de ser causados por “planos de ação” ou desejos “de um certo modo característico” e afirmar que no exemplo de Taylor não temos um caso desse modo. E o que é esse modo característico? Goldman escreve: “Para essa questão, confesso, eu não tenho uma resposta plenamente pormenorizada, mas tampouco penso que seja minha incumbência, enquanto filósofo, dar uma resposta a essa questão. Uma explicação completa de como quereres e crenças levam a atos intencionais requereria informação neurofisiológica intensiva e eu não penso que seja justo se pedir de uma análise filosófica que ela dê essa informação” (ibid. 62). Mas isso realmente não resolve o problema. Por centenas e centenas de anos as pessoas têm sido capazes de distinguir, dentre os casos nos quais o querer causa os eventos queridos, aqueles casos nos quais as ações foram executadas. Temos conceitos distintos aqui que sabemos como aplicar. É mesmo da incumbência de um filósofo analisar a diferença — embora não seja problema seu dizer que ocorrências neurofisiológicas são fisicamente necessárias para produzir um caso de uma ação sendo executada. [38] Três autores recentes sugeriram que há um terceiro tipo possível de explicação causal de fenômenos (explicação axiárquica) e que os fenômenos que vou discutir nos capítulos subsequentes devem ser explicados em termos de uma explicação desse tipo. Esta consiste em que os fenômenos passam a existir porque é bom que eles devam existir. Vide John Leslie, Value and

Existence (Blackwell, 1979); Derek Parfit, “The Puzzle of Reality: Why does the universe exist?”, Times Literary Supplement, 3 July 1992, reimpr. em P. Van Inwagen e D. W. Zimmerman (eds.) Metaphysics: The Big Questions (Blackwell, 1998); e Hugh Rice, God and Goodness (Oxford University Press, 2000). Neste livro, estou propondo uma explicação pessoal da existência do universo com as suas várias características em termos de uma pessoa, Deus, que os levou a efeito porque ele acreditava que eles eram bons. Mas a sugestão de Leslie e de outros não é essa, mas de que há um princípio impessoal funcionando e que leva a efeito coisas boas porque elas são boas. Esta não é uma explicação pessoal e tampouco é uma explicação científica, pois (no modelo hempeliano) as leis da natureza operam em estados de coisas já existentes e (no modelo S-P-SS) se as substâncias forem causar estados de coisas, essas substâncias já devem existir. A sugestão de Leslie e outros é de que o princípio axiárquico opera para fazer surgir coisas boas do nada. O problema com esta sugestão é que, enquanto há inúmeros fenômenos mundanos explicados corretamente por uma explicação científica ou pessoal (ou seja, em termos da ação de pessoas comuns ou substâncias inanimadas), não há qualquer exemplo mundano de algo que venha a existir porque é bom que ela devesse. Comida nunca aparece nas mesas dos famintos porque é bom que ela apareça, mas apenas porque alguma pessoa a põe lá porque acredita que seja bom que ela esteja ali. Assim, não temos critério dos quais possamos extrapolar de situações mundanas para julgar quando uma explicação desse tipo é provavelmente verdadeira e quando não é. Temos critérios para julgar quando supostas explicações científicas ou pessoais são ou não são provavelmente verdadeiras, os quais eu estabeleço no capítulo 3. Mas na falta de critérios para julgar o valor de uma explicação axiárquica da existência do universo, não podemos ter bases para supor que tal explicação é provavelmente verdadeira.

[39]

Os diferentes modos pelos quais uma pessoa pode ser corpórea serão analisados mais completamente no capítulo 6. [40] Para uma discussão completa desses critérios, que eu descrevo nas próximas páginas, vide meu Epistemic Justification (Clarendon Press, 2001), cap. 4. [41] Para as fontes e discussão adicional do problema “verdul”, vide Epistemic Justification, 88-9. [42] Se fôssemos, por exemplo, postular que alguma força de atração diferente da força gravitacional estivesse atuando, deveríamos postular a operação de uma força determinando o movimento da estrela diferente da força que determinou todo o outro movimento da estrela e isso levaria a uma compreensão do mundo mais complicada que a suposição no texto. [43] Estes e exemplos semelhantes, que serão discutidos no cap. 4, apontam para o fato óbvio que a ciência é frequentemente capaz de identificar a causa dos fenômenos em alguma entidade ou processo não observável. Tanto Hume quanto Kant escreveram num tempo em que a ciência não tinha tido o sucesso que ela tem hoje em descobrir as causas não observáveis de eventos observáveis; e sua filosofia da religião é frequentemente viciada pelo princípio implícito ou explícito de que só podemos estar justificados em postular uma causa de algum evento observável se essa causa for também algo observável. Assim, segundo Kant: “Se a lei empiricamente válida da causalidade deve levar ao ser original, este último deve pertencer à cadeia de objetos da experiência” (Crítica da razão pura, A636). Basta refletir sobre o evidente sucesso da Química e da Física em fornecer boas bases para acreditar na existência de átomos, elétrons, fótons, etc. para se dar conta de que este princípio está bastante enganado. [44] Esta suposição, é claro, dá a Kepler muito mais informação

do que o Kepler histórico teve. O Kepler histórico conheceu apenas a posição de Marte em relação à Terra em vários momentos, mas não a sua distância em relação à Terra. Contudo, faço minha suposição para tornar a exposição mais fácil. [45] Eu desenvolvo esta ideia em pormenor nas pp. 221-22.

[46]

significa, é claro, P(e/h&k) multiplicado por P(h/k) e o resultado dividido por P(e/k). [47] A meu ver, os melhores argumentos para esses axiomas são os de que eles codificam os juízos acerca do que é indício do que, os quais parecem a nós intuitivamente corretos. A respeito disto, vide meu Epistemic Justification, caps. 3 e 4. [48] Para a discussão completa da irrelevância da predição em sentido literal, vide Epistemic Justification, apêndice, “Preditivism”. [49] Vide J. L. Mackie, “The Relevance Criterion of Confirmation”, British Journal for the Philosophy of Science, 20 (1969), 27-40. [50] David Hume, Dialogues Concerning Natural Religion (publicado inicialmente em 1779, ed. H. D. Aiken (Hafner, 1948)), 33. [51]Ibid. 36.

[52] Uma causa C agindo “no tempo” de modo a levar a efeito E precisa ser interpretada cuidadosamente de modo a não acarretar literalmente causação simultânea (sendo o período da ação de C exatamente o mesmo da duração de E), nem de modo a excluí-la. Isso porque alguns pensadores (incluindo eu mesmo) acreditam que causação literalmente simultânea é logicamente impossível, pela mesma razão que causação reversa (uma causa causando um efeito anterior) é logicamente impossível (para minhas razões para

esta crença, vide meu The Christian God (Clarendon Press, 1994), 82). Uma causa agindo “no tempo” também precisa ser interpretada de modo tal que leve em consideração o fato de que as ações das causas e a ocorrência dos efeitos são eventos que levam tempo (que duram um período de tempo, não importa o quão curto). Assim, sugiro que entendamos C agindo em t para levar a efeito E em t como todo segmento (não importa o quão pequeno) da ação de C num período de tempo incluindo t causando um segmento de E, onde a ação de C e E terminam no mesmo instante (então, não importa o quão pequeno seja qualquer segmento final da ação de C, haverá algum segmento de E — ainda menor — que ele cause, e nenhum segmento inicial da ação de C, não importa o quão pequeno, ficará sem efeito sobre algum segmento de E). [53] Pode ser que, enquanto C e R dão uma explicação plena de E, ou C ou R ou ambos não têm uma explicação plena em termos dos fatores operativos no tempo de sua efetivação, mas apenas uma explicação parcial deste tipo. Na medida em que há um fim para qualquer regresso de explicação parcial, haverá, ainda assim, em minha definição, uma explicação completa de E. Isso porque suponha que o evento B (em virtude de uma lei S) explique parcialmente a ocorrência contemporânea de C, mas que nem B nem S tenha uma explicação (seja plena seja parcial) em termos de fatores operativos no tempo de sua ocorrência, então se dá uma explicação completa da ocorrência de E por B, C, R e S conjuntamente. [54] Estou entendendo “eterno” no sentido de “perpétuo”. Uma terceira possibilidade é tomar Deus como existindo fora do tempo, mas neste caso é difícil ver como ele possa ser entendido como agindo. Dou razões para encarar essa terceira visão como incoerente e desenvolvo as outras duas visões num modo profundo nos quatro últimos capítulos de The Coherence of

Theism (Clarendon Press, 1993). [55] Para as especulações de Newton acerca deste assunto, vide I. Newton, Ótica, Questões 29, 30 e 31. [56] E, é claro, muitos deles acreditavam mesmo nisso. Recorde a Ode de Halley colocada no início do Principia e os famosos versos de Pope: Nature and Nature’s laws lay hid in the night God said, Let Newton be, and all was light.

[57] Vide Duns Scotus, Opus Oxoniense, I, Dist. II, Q1, trad. em Duns Scotus:Philosophical Writings, ed. A. Wolter (Hackett, 1987), 40-1. Devo esta citação e a análise cuidadosa dos termos escolásticos que discuto neste parágrafo a P. Brown, “Infinite Causal Regression”, Philosophical Review, 75 (1966), 510-25. [58] Para discussão desse problema, vide meu Space and Time (2ª ed. MacMillan, 1981), cap. 15. [59] Brown, “Infinite Causal Regression”, 522.

[60] Brown considera em pormenor apenas o caso de “mover” — ou seja, “causar o movimento” — mas afirma que sua interpretação se aplica a outros tipos de causação. Assim, formulo minha descrição de Brown em termos de “causar’ ao invés de “mover”. [61] Este capítulo em grande parte resume as ideias apresentadas mais completamente e com maior rigor em The Coherence of Theism (Clarendon Press, 1993) e em The Christian God (Clarendon Press, 1994), caps. 6, 7. [62] Esta é uma descrição muito inadequada de um conceito difícil. Para uma descrição mais adequada, vide The Coherence of

Theism, cap. 9. [63] Vide (por exemplo) seu “Naming and Necessity”, em D. Davidson e G. Harman (eds.), Semantics of Natural Language (D. Reidel, 1972). [64] Eu uso a expressão “ser divino” no lugar da desajeitada expressão “fundamento pessoal do ser” usada em edições anteriores e em The Coherence of Theism. “Divino” é agora usado num sentido ligeiramente diferente do que é usado em The Coherence of Theism. [65] Se a existência daquela pessoa acarreta a existência de outras pessoas divinas, uma possibilidade discutida na Nota adicional 1, a hipótese original não é menos simples por isso. Uma hipótese simples não é menos simples porque acarreta consequências complicadas. Mas uma hipótese de três seres divinos independentes seria muito mais complicada que o teísmo. [66] Este argumento está sujeito a uma qualificação discutida na Nota adicional 1. [67] Eu o defendo em The Coherence of Theism, cap. 11.

[68] “Um homem não pode ser sincero em aceitar a conclusão de que algum curso de ação é inteiramente errado se ele, ao mesmo tempo, compromete-se com esse curso de ação” (S. Hampshire, Freedom of the Individual (Harper & Row, 1965), 7). [69] Ocasionalmente, um agente pode estar sujeito a obrigações incompatíveis, das quais ele pode cumprir apenas uma. Assim, ele pode ser obrigado a pagar duas dívidas, quando só tem dinheiro para pagar uma. Nestas circunstâncias, haverá uma obrigação de cumprir uma das duas, o que não será a melhor ação, pois será igualmente bom ou melhor cumprir a outra obrigação. Para discussão desta situação, vide meu Responsibility and Atonement

(Clarendon Press, 1989), 35-7. Deus, contudo, nunca estará numa situação como essa, pois obrigações são obrigações para outros seres; e Deus, como a fonte da existência de todos os outros seres, assegurará (como uma ação melhor) que ele nunca se ponha numa situação na qual ele esteja sob uma obrigação em relação aos outros seres que ele não possa cumprir. [70] O teísmo certamente não se compromete com a visão (para mim, inteiramente falsa) do ocasionalismo, de que as condições físicas ou as substâncias nunca produzem efeitos, mas que todos os efeitos são levados a efeito por agentes racionais, normalmente Deus. O ocasionalista afirma que a ignição da pólvora não causa realmente explosões; o que acontece é que, quando as pessoas acendem a pólvora, é Deus quem realmente provoca as explosões. A visão muito mais plausível, defendida no texto, é de que Deus causa a operação da causalidade científica; ele na verdade causa a ignição da pólvora causar explosões. O ocasionalismo não apenas parece contrariar dados óbvios da experiência — que objetos físicos (ou seus estados) com frequência causam eventos; mas ele seria autocontraditório para um teísta que desejasse argumentar em favor de Deus a partir do universo físico e de suas características para negar que os objetos físicos com frequência causam eventos. Isso porque derivamos nosso entendimento acerca do que é indício de que um objeto causa um evento da extrapolação de inúmeras situações mundanas nas quais alguns objetos físicos aparentemente causam algum evento. Se não há realmente uma causação do tipo que supomos, nessas situações, nossos critérios acerca do que é indício para a causação são enganosos e assim, estaríamos errados em usá-los para concluir que Deus é a causa da existência do universo ou de qualquer outra coisa. [71] Exceto talvez algo que, por sua vez, dependa dele — vide Nota adicional 1 acerca da Trindade.

[72]

Vide meu Responsibility and Atonement (Clarendon Press, 1989), cap. 1. [73] “Ora, esta suprema sabedoria, unida a uma bondade que não é menos infinita, não pode senão ter escolhido o melhor… Se não houvesse o melhor entre todos os mundos possíveis, Deus não teria produzido nenhum. Eu chamo ‘mundo’ a sucessão inteira e a aglomeração completa de todas as coisas existentes... Há uma infinidade de mundos possíveis dentre os quais Deus deve necessariamente escolher o melhor” (G. W. Leibniz, Theodicy, trad. E. M. Huggard (Routledge & Kegan Paul, 1951), 128). Tal como Leibniz, tenho usado a palavra “mundo” num sentido bastante geral. Neste sentido, Deus é parte do mundo. Assim ao falarmos que Deus faz este ou aquele mundo, eu e Leibniz devemos ser lidos como Deus levando a efeito que o mundo no qual ele existe é de certo modo em outros aspectos. Por outro lado, estou usando a palavra “universo” como sinônimo de “universo físico” num sentido mais estrito, definido na página 133. [74] Leibniz assume (erradamente, a meu ver) que qualquer mundo melhor dentre os possíveis seria aquele que fosse logicamente possível para Deus criar (por exemplo, um no qual o bem não dependesse das boas escolhas não causadas das criaturas livres). Que há um mundo melhor que o mundo que Deus criou era a visão de Tomás de Aquino. Vide Summa Theologiae, Ia. 25.6 ad 3: “Deus poderia fazer outras coisas ou adicionar outras coisas às que ele fez e haveria um outro e melhor universo”. [75] Mesmo que houvesse um melhor de todos os mundos possíveis que Deus pudesse criar, Deus não estaria sob qualquer obrigação de criar um. Vide R. M. Adams “Must God Create the Best?”, Philosophical Review, 81 (1972), 317-32. Pois Deus não precisa fazer mal a ninguém ao criar um mundo que não fosse um

melhor. Pode haver certos seres num melhor dos mundos possíveis que não existem no mundo que Deus realmente crie. Contudo, segundo Adams aponta, Deus não faria mal àqueles seres ao não criá-los — pois você não pode fazer mal algum a um ser que nunca existiu e nunca existirá. Pode haver outros seres no mundo que Deus realmente crie que não existiriam num melhor dos mundos possíveis — Deus dificilmente faria algum mal a eles criando-os, na medida em que ele os criasse para viver uma vida que fosse melhor viver do que não viver vida alguma. Por fim, pode haver alguns seres que são menos perfeitos no mundo que Deus realmente cria do que eles seriam num melhor dos mundos possíveis. Será que Deus estaria fazendo mal a eles ao criá-los assim? Na medida em que Deus os criou agora em uma condição que é melhor para eles existir do que não existir, de que modo ele os prejudicaria se os faz menos perfeitos do que ele poderia tê-los feito? Isso porque ele ainda os dá uma existência razoável que eles não teriam de outro modo. Mesmo se supomos que um dado embrião, se se interferisse nele cedo o bastante, poderia se tornar um coelho ao invés de um peixe dourado e que esta técnica esteja disponível a um criador, não há certamente nada de errado em gerar um peixe dourado. Embora, ex hypothesi, o criador pudesse ter tornado aqueles peixes dourados em coelhos, o criador não faz nenhum mal aos peixes dourados se não os transforma em coelhos. [76] Platão sustentou que havia um mundo de formas de todas as “criaturas vivas inteligíveis” com base no qual este universo foi copiado (Timeu 30c): e foi consequentemente entendido por Aristóteles como afirmando que todo tipo possível de coisa existia (Metafísica 990b). Aristóteles sensatamente negou essa afirmação: “não é necessário que tudo que seja possível devesse existir na realidade” (Metafísica 1003a). Para o desenvolvimento da

perspectiva de Platão, a qual Lovejoy chama de “O Princípio da Plenitude” nos séculos seguintes, vide A. O. Lovejoy, The Great Chain of Being (Harvard University Press, 1936). [77] Vide Norman Kretzmann, The Metaphysics of Theism (Clarendon Press, 1997), esp. 223-5, para esta justificação e para referências do uso deste princípio por Tomás de Aquino. [78] O ato do Pai dar origem ao Filho e ao Espírito não é normalmente denominado ato de “criação”. Teólogos cristãos usualmente entenderam a palavra “criar” como designando o ato livremente escolhido de causar a existência de um ser finito, não a partir de matéria previamente existente ou de outro material. Veja a Nota adicional 1 (e discussão concernente a este assunto em meu livro The Christian God (Clarendon Press, 1994), cap. 8) para o argumento de que o Deus Pai só pode dar origem a duas substâncias divinas adicionais — ou seja, duas pessoas divinas. [79] Se Deus não é trino e então deve criar seres conscientes divinos diferentes dele mesmo, eles não precisariam ter o livre arbítrio de rejeitá-lo. Anjos criados como perfeitamente bons de modo essencial desde o momento de sua primeira existência satisfariam a necessidade de haver seres conscientes finitos com os quais interagir. Assim, não haveria inevitabilidade em que Deus criasse agentes humanamente livres. Se existem anjos como se representam tradicionalmente, eles não são — em todo caso, não mais que — agentes humanamente livres. Isso porque suas características são fixas para o bem ou para o mal (na visão tradicional, como o resultado de uma escolha inicial no momento inicial de sua criação). [80] Não se segue, é claro, que ele vá criar mais substâncias de outros tipos, uma vez que, para qualquer número de substâncias de qualquer tipo assim que ele crie, será sempre melhor que ele

criasse mais. [81] “God and probability”, Religious Studies, 5 (1969), 223-34.

[82] Outro universo físico seria um objeto físico que consiste de objetos físicos, espacialmente relacionados uns com os outros, mas não aos objetos de nosso universo, tal como a Terra. [83] Incluindo-se, por exemplo, Hume. Nos Dialogues concerning Natural Religion (publicado inicialmente em 1779, ed. H. D. Aiken, Filo rejeita argumentos que falem da causa do universo como um objeto que é “único, individual, sem paralelo ou semelhança específica”. Vide também as Enquiry concerning Human Understanding de Hume, seção XI. [84] A afirmação de que isto é necessariamente assim para todos os objetos é uma versão do princípio da identidade dos indiscerníveis. Eu não me baseio neste princípio, mas apenas na afirmação empírica plausível feita no texto. [85] Vide S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, Ia2.3. A primeira via de Tomás de Aquino é tida às vezes como uma versão do argumento cosmológico, mas eu não a tomo como tal na minha definição de um argumento cosmológico, pois ela parte não da existência de objetos físicos, mas da mudança nestes. Ela afirma, na verdade, que, dado que há objetos físicos, a mudança neles é tão surpreendente que precisamos invocar Deus como sua origem. Não consigo ver que a mudança nesses objetos seja assim tão surpreendente que precisemos invocar Deus como sua origem. Dada a existência de objetos físicos, não me parece mais surpreendente que eles devessem mudar do que eles devessem ficar sempre do mesmo modo. A suposição de Tomás de Aquino vem da física aristotélica que é tão fortemente imbricada em sua filosofia. É mais plausível supor que a existência de mudança ordenada seja surpreendente, mas o argumento com base na

mudança ordenada é a quinta via e é um argumento teleológico que eu vou discutir no próximo capítulo. [86] Para uma crítica minuciosa das cinco vias de Santo Tomás, remeto à discussão completa e cuidadosa de A. Kenny, The Five Ways (Schocken Books, 1969). [87] O argumento de Clarke, tratado como um argumento dedutivo, teve um tratamento completo e interessante dado por W. L. Rowe em The Cosmological Argument (Princeton University Press, 1975). [88] Argumento em favor dessa afirmação acerca de como a incoerência deve ser provada em The Coherence of Theism (Clarendon Press, 1993), cap. 3. Também defendo que a principal maneira de provar a coerência de uma afirmação é desenvolver um modo obviamente coerente no qual ela pudesse ser verdadeira — ou seja, uma conjunção obviamente coerente de proposições que acarretam a afirmação. [89] Eu argumento em “The Beginning of the Universe and of Time” (Canadian Journal of Philosophy, 26 (1996), 69-89) que toda fala em termos de eventos acontecendo em instantes (por exemplo, 14h) é redutível a eventos acontecendo em períodos de tempo; que instantes são apenas os limites de períodos (14h e 15h são os dois limites da hora entre eles); e que períodos não são feitos de instantes. Dizer que um objeto é marrom às 14h significa dizer que ele é marrom por um período que inclui 14h. [90]Falar que o universo é finita ou infinitamente antigo só faz sentido se tivermos um universo governado por leis ao longo de seu passado, no qual os intervalos temporais podem ser medidos (vide “The Beginning of the Universe and of Time”). Num universo com um passado caótico, não haveria diferença entre ser infinitamente antigo e ser finitamente antigo. O fato de um

universo ser finitamente antigo, argumentei naquele artigo, acarreta que ele teve um começo (no sentido de haver um tempo vazio antes do universo vir a existir). Mas, eu sustento no artigo que ser infinitamente antigo não acarreta que ele tenha um começo nesse sentido. E se ele era caótico em algum período anterior, embora ele não fosse então nem finita nem infinitamente antigo, ele ainda poderia ter tido um começo ou não. Meu argumento neste livro defende que Deus é a causa de existência do universo, tenha este uma idade finita ou infinita (ele poderia ser estendido a um argumento em favor de Deus como a causa de um universo que não era nem finito nem infinito, porque teve um período caótico. Contudo, eu sustento, não temos nem podemos ter conhecimento de que foi assim). Podemos ignorar o problema de se um universo infinitamente antigo teve um começo. Se meu argumento no artigo citado é correto, alguém que sustente que o fato do universo ter um começo ser uma questão de revelação pode racionalmente fazê-lo independentemente de se a ciência sugere que o universo tem uma idade finita ou infinita. [91]Ao apresentar seu “argumento cosmológico Kalam”, William Craig afirma (1) que uma “série sem começo de eventos no tempo nào pode existir” (vide, por exemplo, seu “The Kalam Cosmological Argument”, em W. L. Craig (ed.), Philosophy of Religion (Edinburgh University Press, 2002). Seu argumento para (1) é que ele se segue de (2), “um número realmente infinito de coisas não pode existir”. Seu argumento para (2) é que o sistema de Cantor de matemática para operar com números infinitos inclui o princípio de correspondência de que dois conjuntos (tais como o conjunto infinito de inteiros 1, 2, 3, 4, ... e o conjunto de inteiros pares 2, 4, 6, 8 …) têm o mesmo número de membros se (como no seu exemplo) eles podem ser colocados numa correspondência um a um entre si. Este princípio tem consequências paradoxais tal

como a de que num hotel com um número infinito de quartos, todos ocupados, você pode acomodar um outro número infinito de hóspedes, movendo cada hóspede existente para o quarto cujo número é o dobro de seu quarto atual e assim preencher o (número infinito) de quartos vazios de número ímpar. Mas eu sugiro que podemos admitir o que para mim parece a possibilidade lógica óbvia de haver um número infinito de coisas (por exemplo, estrelas), sem adotar a matemática de Cantor ou esse tipo de maneira de aplicá-lo. Além disso, (1) acima se segue de (2) apenas se se supõe que os eventos que estão todos no passado agora são em algum sentido existentes. Mas neste caso, todos os membros das séries infinitas de períodos de duração desigual, de ½ hora, ¼ de hora, 1/8 de hora, etc. que já ocorreram na hora que passou são também existentes agora, o que, segundo a tese (2) de Craig, não é possível. Assim, ou (2) é falso ou (1) não se segue. O argumento Kalam de Craig em favor de Deus requer não apenas (1), mas também que “o que quer que comece a existir tenha uma causa”. Porém, a mim parece, por razões dadas neste capítulo, que isso , tanto quanto “o universo começou a existir” só pode ter uma justificação indutiva. Kant também afirmava (1) — vide sua Crítica da Razão Pura, B454. Seu argumento é que uma série infinita não pode ter um membro que seja o último, e que uma série sem começo, e portanto infinita, que terminasse num evento presente teria um último membro. Mas a afirmação de Kant de que uma série infinita não pode ter um último membro apenas vale para séries infinitas com um primeiro membro — o que uma série sem começo não teria. [92]Vide p. 158 nota 3 para o problema de que pode não haver as leis mais fundamentais da natureza, que toda lei pode ser explicável pela operação de uma lei ainda mais ampla (a lei de Galileu pela lei de Newton, as leis de Newton pelas leis de Einstein

e esse processo pode não ter fim). Eu argumentarei que, se fosse assim a situação seria equivalente à de haver uma série infinita de leis igualmente fundamentais, cada uma aplicável a regiões do universo em condições físicas diferentes. Nesse caso, L no texto deste capítulo deveria ser tido como uma série infinita assim. [93] Hume, Dialogues, parte IX, pp. 59-60.

[94] G. W. Leibniz, Sobre a Origem Última das Coisas (1697) [95] Hume, Dialogues, parte V, p. 39. [96] Ibid. part V, p. 40. [97] Para esta objeção, vide Mark Wynn, “Some Reflections on Richard Swinburne’s Argument from Design”, Religious Studies, 29 (1993), 325-35. [98] Kant viu que, na medida em que funcionasse, o argumento “físico-teológico”, como ele chamou o argumento teleológico, este apontava para uma deidade e não para muitas. Ele não tinha nenhuma crítica contra esta parte do argumento. “A unidade desta causa pode ser inferida da unidade das relações recíprocas existentes entre as partes do mundo, como membros de uma estrutura habilmente trabalhada — inferida com certeza na medida em que nossa observação é suficiente para sua verificação e além destes limites com probabilidade, de acordo com os princípios da analogia” (Crítica da razão pura, A625-6). [99] Leibniz, Da Origem Primeira das Coisas.

[100]

É claro, se isto é correto, então, o tradicional argumento ontológico (vide p. 8 nota 4), que tenta provar que Deus existe por necessidade lógica, fracassa redondamente. Kant acusou o argumento cosmológico de ser o argumento ontológico disfarçado. Suas críticas têm força apenas se supomos que o ser necessário em favor do qual o argumento cosmológico pretende argumentar é um

ser logicamente necessário. Vide Kant, Crítica da Razão Pura, seção 5: o Ideal da Razão Pura. Para uma discussão pormenorizada do tratamento de Kant ao argumento cosmológico, vide J. Bennett, Kant’s Dialectic (Cambridge University Press, 1974), cap. 11 e as referências ali contidas. Kant defende que toda necessidade seja ou necessidade lógica ou, mais amplamente, necessidade para o pensamento humano. De qualquer modo, para Kant, não há necessidade nas coisas, mas apenas em nosso pensamento acerca destas (“O conceito de necessidade deve ser encontrado apenas em nossa razão, como uma condição formal do pensamento; ele não permite que possa ser hipostasiado como uma condição material de existência” (Crítica da razão pura, A620). Este é um outro dos princípios gerais da filosofia de Kant que ele aplica à filosofia da religião e que estraga seu tratamento desta. O princípio de Kant está muito errado. Certamente que há uma necessidade na conformidade dos corpos materiais a leis da natureza que existe nas coisas e não em nosso pensamento. Vide meu capítulo 2. Isto sugere que podem haver outros tipos de necessidade nas coisas e isso me levou a sugerir no capítulo 5 que a necessidade de Deus significa que ele é o fato bruto último. Para discussão mais extensa dos tipos de necessidade, vide The Coherence of Theism (Clarendon Press, 1993), cap. 13. [101] No capítulo 8, abordarei a ideia de que os blocos de construção dos quais os pedaços são feitos — ou seja, as partículas fundamentais — são de apenas alguns tipos diferentes. [102] Jer. 33.20 e 25.

[103] S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae,

Ia2.3, tradução

livre.

[104] Pode-se enfatizar que não

temos razão para supor que há uma lei mais fundamental da natureza. Talvez a lei L opere em

circunstâncias C porque se segue de L’ que assim ocorra e L’ opere em circunstâncias C’ (que incluem C) porque se segue de L” que assim ocorra, L”’ opere em circunstâncias C”’ (que incluem C”) porque se segue de L” que ela o faça e assim ad infinitum. Esta dificuldade pode, contudo, ser evitada do modo como se segue. Ou esta série termina com uma lei mais fundamental que vale em todas as circunstâncias ou não. Neste último caso, representemos as leis mais fundamentais como conjunções de leis que valem sem exceção dentro de circunstâncias especificáveis como C. Assim, dizer que L’ vale em C’ será dizer que L vale em C e L1 em C1 . Dizer que L” vale em C” será o mesmo que dizer que L2 vale em C2. Assim, a afirmação de que há uma série infinita L, L’, L”, etc. é a afirmação de que existe uma série infinita de leis não fundamentais L, L1, L2, etc. que vale sem exceção nas circunstâncias C, C1, C2, etc. e que, embora haja uma explicação da operação de qualquer subsérie finita, não há explicação para a operação da série inteira. O fato de que a série inteira opere será então o ponto de partida para um argumento teleológico. O fato de que ela opere mostra a conformidade do mundo à ordem de modo semelhante à mostrada pela conformidade do mundo às leis mais fundamentais da natureza que se consegue descrever e que formam o ponto de partida para o argumento mais simples. De agora em diante, lidarei com o argumento mais simples com base no pressuposto não implausível de que existem as leis mais fundamentais da natureza. [105] Hume, Dialogues concerning Natural Religion, parte VIII, pp. 53-5 sugeriu um versão temporal de muitos universos — que talvez este universo ordenado seja um mero acidente dentre os arranjos casuais da matéria eterna. No curso da eternidade, a matéria se organiza de todos os tipos de maneira. Nós por acaso

vivemos num período que é caracterizado por ordem e erroneamente concluímos que a matéria é sempre ordenada. Hume está certamente certo ao afirmar que esta é uma possibilidade lógica, mas a ideia apresentada acima se mantém — que é irracional postular outros universos, a menos que características deste universo deem apoio a leis que tenham como consequência de que há outros universos; do que se seguiria que eles são governados pelas mesmas leis fundamentais do nosso universo. [106] Hume, Dialogues, parte II, p. 28.

[107] Mesmo se tivesse sido suposto que o mundo tem existido desde sempre e contivesse seres humanos, animais e plantas desde sempre, os pensadores do século dezoito ainda poderiam ter construído um argumento com base na existência eterna de um universo que os contivesse ao invés de um universo que não os contivesse. Porém, o argumento teria de ter sido mais sutil que este que estamos considerando. [108] Para um argumento mais completo de que os seres humanos realmente têm livre arbítrio libertário que faz uma diferença para o seu comportamento no mundo físico, vide meu The Evolution of the Soul (2nd ed., Clarendon Press, 1997), cap. 13. [109] Vide a Nota adicional 2 para desafios recentes a esta interpretação darwinista que, afirma-se, são indícios de vários passos do processo evolucionário que requer a intervenção de um “planejador”. [110]A análise física clássica original da medida da sintonia fina no universo é de J. D. Barrow e F. J. Tipler, The Anthropic Cosmological Principle (Clarendon Press, 1986), que foi cuidadosamente reanalisado e atualizado em Robin Collins, ‘Evidence for Fine-Tuning’, in N. A. Mason (ed.), God and

Design (Routledge, 2003). Devo muito a este último artigo por sua apresentação do estado mais recente da Física que nos concerne aqui. [111] Barrow e Tipler, Anthropic Cosmological Principle, 547.

[112] Ibid. 545-8. [113] Barrow e Tipler, Anthropic Cosmological Principle, 343-6. [114] Collins, ‘Evidence for Fine-Tuning’, 183. [115] Ibid. 183-6. [116] Ibid. 188-9. [117] Ibid. 189-90, 192-4. [118] Ibid. 190. [119] Ibid. 180-2. [120] Barrow e Tipler, Anthropic Cosmological Principle, 41012.

[121]Papers de S. W. Hawking e de R. H. Dicke e P. J. E. Peebles citados em J. Leslie, Universes (Routledge, 1989), 29. [122] Barrow e Tipler, Anthropic Cosmological Principle, 41419. [123] Ibid. 401-8.

[124]

Por exemplo, vide Collins, “Evidence for Fine-Tuning”,

185.

[125]

Vai diferir um pouco se a formulação mais simples da teoria conduz a um ponto zero único para a medida de alguma variável ou constante (um ponto único no qual alguma quantidade tem seu valor mais baixo) como, por exemplo, o faz a escala Kelvin para a medição de temperatura (0o K é a temperatura na qual um gás ideal não exerceria pressão e da qual nenhuma

temperatura mais baixa é possível). Isso porque, neste caso, será uma questão não arbitrária se o valor da constante ou variável fica dentro de um intervalo menor ou maior de valores possíveis. Será um pouco mais provável que ele fique dentro do primeiro, pelo fato de que leis que contêm números inteiros menores são mais simples que as que contêm números maiores (vide p. 54). [126] As constantes e variáveis da teoria padrão com as quais estamos preocupados realmente têm pontos zero únicos (vide nota 24 acima). Ao medir a densidade da matéria-energia, ou a velocidade da recessão relativa das galáxias, por exemplo, a velocidade e a densidade têm zero ponto único no modo mais simples de medi-los. Assim, valores menores que estes são um pouco mais prováveis que valores maiores. Isto tem a consequência de que, embora haja um intervalo infinito de valores possíveis destas constantes e variáveis, pode haver uma probabilidade finita de que alguma constante desta terá um valor que fique dentro de algum dado intervalo. Contudo, se a constante ou variável que tem um valor dentro de um intervalo de certo tamanho for a mesma ao longo de um intervalo infinito (como seria o caso de constantes e variáveis sem um ponto zero único), a probabilidade de que esta fique dentro de qualquer intervalo finito seria infinitesimal (para a necessidade do uso de infinitesimais na avaliação de probabilidades, vide meu Epistemic Justification (Clarendon Press, 2001), Nota Adicional G). Assim, ou por estimar probabilidades intrínsicas maiores para valores menores de constantes e variáveis ou por usar infinitesimais, eu evito o que é conhecido como o “problema da normalizabilidade” (vide, por exemplo, Timothy McGrew et al., “Probabilities and the FineTuning Argument”, in N. A. Manson, God and Design). [127] Barrow e Tipler, Anthropic Cosmological Principle, 440-1.

[128]

Barrow e Tiper, Anthropic, Cosmological Principle, 430-

40.

[129]

Vide J. Earman e J. Mostevin, ‘A Critical Look at Inflationary Cosmology’, Philosophy of Science, 66 (1999), 1-49. [130] É possível que a derivação das leis fundamentais da natureza da teoria da corda pudesse reduzir muito a necessidade de sintonia fina. Isso foi defendido em G. L. Kane et al., ‘The Beginning and End of the Anthropic Principle’, astro-ph/0001197. Eles sugerem que todas as teorias das cordas são equivalentes; e que diferentes “vácuos” possíveis determinem unicamente todas as constantes e valores iniciais das variáveis de leis da natureza. Eles reconhecem que é preciso trabalhar muito antes da teoria da corda ser estabelecida (se é que será) e de seu resultado ser demonstrado. Contudo, mesmo que se conceda toda essa especulação tentativa, eles reconhecem que “haverá um grande número de vácuos possíveis”; e isto significa que para que os humanos evoluam, o universo precisa ter sintonia fina no sentido de que ele se desenvolva de um único vácuo, com exclusão de qualquer outro vácuo dentre aquele grande número deles. [131] A fim de mostrar a improbabilidade da sintonia, não é o bastante mostrar que a sintonia é improvável dada a teoria padrão — ou seja, dada a área local de mundos possíveis. John Leslie comparou essa sintonia fina com um dardo acertando uma cereja num muro, num caso em que não há outras cerejas naquela área do muro. Ele afirma que (supondo-se que atingir a cereja seja algo que o lançador do dardo queira fazer) o fato de que o dardo atinge a cereja é indício de que ele foi lançado intencionalmente por um lançador de dardo — embora haja muitas cerejas em outras áreas do muro (vide p. 143 do seu ‘Anthropic Principle, World Ensemble, Design’, American Philosophical Quartely, 19 (1982), 141-52). Sua afirmação parece depender de uma característica de sua analogia à qual não há paralelo no caso da sintonia fina do

universo. Um lançador de dardo naturalmente tentaria atingir uma cereja numa área do muro que estivesse distante de outras cerejas, sendo seu objetivo atingir uma cereja em caso disso ser difícil para o lançador de dardo comum. Assim, ele mira na cereja isolada ao invés das cerejas perto de outras cerejas. Um Deus sintonizando um universo busca produzir corpos humanos; ele não tem uma preocupação particular de produzi-los num mundo possível onde todos os mundos possíveis próximos (exceto os mais próximos) não permitiriam sua existência. Ele não se preocupa em mostrar suas habilidades de sintonizar universos, mas apenas de levar a efeito um produto final. Assim, para que o fato de que há um universo sintonizado seja indício para um Deus ser seu criador, o que se deve mostrar que é improvável a priori não é que haja um universo sintonizado em nossa área local de mundos possíveis, mas que haja um universo sintonizado dentre todos os mundos possíveis. Eu apresentei um argumento nesse sentido — da impossibilidade de qualquer universo muito simples (e assim, qualquer universo intrinsicamente provável) ser sintonizado. [132] Max Tegmark, contudo, afirmou que é mais simples postular um número infinito de universos do que apenas um. Vide Max Tegmark, ‘Is “The Theory of Everything” merely the Ultimate Ensemble Theory?’, Annals of Physics, 270 (1998), 1-51, na 38. “Nossa TOE [teoria de tudo]... postula que todas as estruturas que existem em sentido matemático existem em sentido físico também. A elegância desta teoria está em sua extrema simplicidade, uma vez que não contém qualquer parâmetro livre nem quaisquer suposições arbitrárias acerca de quais equações matemáticas são assumidas como ‘as reais’”. Ele explicitamente (p. 44) assume uma descrição de simplicidade segundo a qual uma teoria é tanto mais simples quanto menor o número de símbolos computacionais necessários para expressar aquela teoria. Esta descrição

“algorítmica” tem a consequência de que, por exemplo (p. 44), o “conjunto de todas as soluções fluidas para as equações de campo de Einstein tem uma complexidade algorítmica menor que uma solução genérica particular, uma vez que a primeira é especificada apenas ao se darem umas poucas equações e a última requer a especificação de grandes quantidades de dados iniciais em alguma hipersuperfície”. Assim, o mais simples de tudo é postular que todo universo possível existe, uma vez que isso precisa mesmo de muito poucos símbolos computacionais para se enunciar! A descrição de simplicidade de Tegmark me parece produzir neste caso um resultado bizarro, em total desacordo com toda nossa prática indutiva. Se estamos postulando entidades para explicar fenômenos, postulamos o menor número de entidades necessárias para cumprir esta tarefa. Se precisássemos adotar a abordagem de Tegmark, necessitaríamos corrigir e ampliar esta teoria em dois aspectos cruciais. Primeiro, precisaríamos corrigi-la para lidar com o problema de que a suposição de que todas as entidades possíveis existem é incoerente, pois a existência de algumas entidades exclui a existência de outras. Assim, a existência de um Deus onipotente e infinitamente bom exclui a existência de um Diabo onipotente (em qualquer universo atual). E, dado Deus, ele certamente não escolherá levar a efeito a existência de certos outros estados — por exemplo, sofrimento interminável e não escolhido pelo sofredor. Em segundo lugar, a descrição da simplicidade de uma teoria em termos de poucos símbolos computacionais necessários para expressá-la, o que leva à afirmação de que é simples supor que todo universo possível existe, precisa de uma considerável amplificação. Isso porque, quantos símbolos você precisa para expressar algo depende da linguagem que você usa. Todas as teorias podem ser expressas na forma “a=b”, para o caso de a e b representarem tensores multidimensionais altamente complicados. Contudo, é claro, é preciso uma linguagem muito distante da

linguagem da observação para exprimir a teoria desse modo. A descrição da simplicidade de Tegmark não é clara e sua consequência no presente caso de nosso interesse é bizarra e contém uma contradição. [133] Se, contudo, a evolução dos corpos humanos fosse muito improvável, dadas as leis e condições iniciais reais, mas mesmo assim ocorresse, então haveria um argumento de tipo diferente em favor da existência de Deus. Esse seria (como os argumentos considerados na Nota Adicional 2) um argumento a partir do fato de que as leis e condições iniciais são de amplitude estreita a ponto de não impedir a evolução de corpos humanos, e a partir do fato de que, mesmo assim, a evolução ocorreu, embora ela fosse muito improvável. A conjunção desses dois fenômenos seria muito mais esperável se Deus existisse do que se Deus não existisse.

[134] Um argumento

em favor de Deus com base na beleza do mundo foi apresentado por F. R. Tennant em seu Philosophical Theology, vol. 2, The World, the Soul, and God (Cambridge University Press, 1930). Há uma boa apresentação curta deste argumento e a resposta a objeções a ele em Mark Wynn, God and Goodness (Routledge, 1999), cap. 1. Para a citação de Wynn, vide ibid. p. 20. [135] John Locke, An Essay concerning Human Understanding (first published 1690), ed. A. C. Fraser (Dover Publications, 1959), 4.10.10. [136] Meus argumentos nesta seção que mostram que a vida mental consiste na instanciação de propriedades mentais é bastante sucinto. Eu forneço argumentos muito mais pormenorizados nos

capítulos 1-9 do meu livro The Evolution of the Soul (Clarendon Press, 1997), onde eu também considero uma grande variedade de objeções a eles. [137] Alvin Plantinga desenvolveu recentemente um “argumento contra o naturalismo evolucionista” que faz uso de algumas das mesmas ideias que a minha exposição do argumento da consciência. Eu examino o argumento de Plantinga na Nota adicional 3. [138] Vide I. Kant, Crítica da Razão Prática, livro 2, especialmente cap. 2, seção 5. Kant afirma que a existência de Deus é um “postulado da razão pura prática” — ou seja, que a existência de Deus acarreta que o summum bonum, a perfeição do universo que a lei moral nos obriga a buscar, é atingível; e que não seria atingível de outra maneira. Assim, afirma ele, a obrigação imperativa sobre nós de manter a lei moral é algo que faz sentido. Kant, contudo, negaria vigorosamente que isso constitui um argumento em favor da existência de Deus, uma vez que ele negava que a obrigação imperativa de manter a lei moral pudesse de qualquer maneira ser formulada como uma verdade teórica. Nós simplesmente nos vemos sentindo a força da lei moral e tentamos encontrar o sentido de como podemos estar sob a lei moral. Mas não posso ver como pode ser racional para nós nos conformarmos à lei moral (como Kant crê que é), a menos que acreditemos que o que a verdade moral afirme seja verdadeiro — por exemplo, que o homicídio é errado e que manter promessas é obrigatório. Assim, na verdade, Kant parece estar formulando um argumento do fato de que há verdades morais imperativas. [139] Para argumentos adicionais acerca dessas ideias, vide The Coherence of Theism (Clarendon Press, 1993), cap. 11. [140] O argumento poderia ter variações tal como o de fazer a

passagem de a, b, c, d ser obrigatória para o fato de serem Q, R, S, T uma passagem meramente probabilística e tornar o passo seguinte dedutivo. [141] Tal como argumentaram Elliott Sober e David Sloan Wilson, Unto Others: The Evolution and Psychology of Unselfish Behaviour (Harvard University Press, 1998). E veja as correções ao modelo deles sugerida em ‘The Evolution of Altruism: The Sober/Wilson Model’, Philosophy of Science, 70 (2003), 27-48. [142] “Assim como um indivíduo pode ser altruísta sem ser movido por princípios morais, o contrário é também possível” (Sober e Wilson, Unto Others, 239). [143] Por essa razão, eu gostaria de retirar meu endosso nas edições anteriores deste livro e em outras oportunidades, da afirmação de Darwin de que “qualquer animal dotado com instintos sociais bem demarcados... inevitavelmente adquirirá um senso moral ou consciência assim que seus poderes intelectuais se tornem tão desenvolvidos ou quase tão desenvolvidos quanto os do homem” (Charles Darwin, The Descent of Man (2a. ed. John Murray, 1875), 98). Para consciência moral, a criatura necessita ser capaz de contrastar o que ele deseja fazer e o que é desejável; e ela precisa também, eu sugiro, ter um entendimento do desejável (do bem em geral) como incluindo o bem de outras criaturas. Uma vez que ele tenha esse entendimento, ele terá o conceito de bem moral e estará em condições de estender seu entendimento de que coisas são moralmente boas — por exemplo, em virtude de seus outros “poderes intelectuais”, ele será capaz de reconhecer o bem de ajudar membros de outras comunidades agindo de forma suficientemente semelhante ao modo como age na ajuda de membros de sua própria comunidade, de modo que tanto a primeira quanto a última sejam ações moralmente boas. Acerca da naturalidade desse processo, vide meu The Evolution of the Soul,

cap. 11 e 12. Mas eu defendo agora, diferentemente do que fiz então, que o estágio inicial desse processo realmente requer a aquisição de um novo conceito, talvez como resultado de uma mutação genética. [144] Tudo o que se quer dizer ao chamar um evento ou estado de coisas de “mal” é que ele é um estado tal que em si mesmo, afora suas circunstâncias, causas e consequências, seja ruim que ele ocorra. Não suponho que levá-lo a efeito ou permitir que ele ocorra seja (o que comumente se chama) de um ato mal ou mesmo um ato ruim. Defendo no Capítulo 11 que é às vezes um ato bom permitir ou mesmo levar a efeito um estado ruim. Eu chamo tais estados ruins “males” simplesmente para adequar ao uso filosófico geral. [145] Os capítulos 10 e 11 resumem meus argumentos em Providence and the Problem of Evil (Clarendon Press, 1998), onde discuto o problema do mal com a profundidade de um livro inteiro. Eu alterei aqui, porém, mais uma vez, e espero ter melhorado minha versão do “argumento a partir da necessidade de conhecimento”. [146] Ambas essas defesas foram rejeitadas por Jesus, segundo o Evangelho de São João (Jo 9:3), como formas de explicar por que uma determinada pessoa nasceu cega. [147] Essa defesa foi usada recentemente por, entre outros, Alvin Plantinga. Vide seu The Nature of Necessity (Clarendon Press, 1974), 191-3. [148] Dada a visão tradicional (veja Capítulo 6 nota 8) de que os anjos têm um caráter fíxo (bom ou mau) como resultado de uma escolha original livre, teríamos de supor que eles fizeram aquela escolha sabendo que Deus tinha lhes prometido poder limitado sobre sua criação e que sua escolha livre envolvia uma escolha de

como eles usariam aquele poder. [149]Aqueles que têm familiaridade com a literatura filosófica recente acerca do problema do mal se darão conta de que eu escolho o exemplo de um gamo pego num incêndio na floresta por causa de sua prevalência nesta literatura. Esse exemplo foi sugerido por William Rowe (‘The Problem of Evil and Some Varieties of Atheism’, American Philosophical Quartely, 16 (1979), 335-41) como um exemplo de mal aparentemente sem sentido. Eu indicarei em vários pontos os propósitos bons aos quais serve o sofrimento do gamo. [150] Note que a complexidade de um processo inferencial não faz, por si mesmo, com que suas conclusões se tornem menos prováveis, enquanto que a complexidade de uma hipótese postulada a faz menos provavelmente verdadeira. [151] Um terceiro modo, além da inferência indutiva normal e de prover esse conhecimento na forma de crenças básicas, pelo qual Deus poderia nos dar o conhecimento das consequências de nossas ações é nos dizer ele mesmo o que seriam essas consequências e tornar evidente o que ele está nos dizendo. Mas isso tornaria sua presença tão evidente para nós que estaria sujeita a todas as desvantagens do que eu discutirei brevemente quando chegar ao “argumento da ocultação”, além de nos privar da oportunidade de inferência racional e investigação. [F] N.T: Oxfam é uma instituição filantrópica britânica.

[152]

A função mais central de uma boa vida após a morte no sistema cristão é dar uma recompensa para o virtuoso ao invés de ser uma compensação para o sofredor. Mas há alguma coisa na tradição da Igreja posterior que ensina que aqueles que morrem ainda bebês têm uma vida basicamente boa após a morte (na tradição medieval católica, o Céu é para bebês batizados e o Limbo

para os não batizados). Se existem vidas que, no fim das contas são vidas ruins, as vidas de bebês que sofrem são talvez o exemplo mais óbvio. E a parábola de Jesus sobre Lázaro (Lc 16.19-31) vê a vida boa de Lázaro após a morte como uma compensação direta por sua vida adulta de sofrimento na Terra. [153] Afora uma breve menção no Capítulo 12 acerca da possibilidade de indícios de que Deus encarnou-se em Jesus Cristo, o presente livro não se ocupa com os fatos em favor de teses especificamente cristãs. Para isso, veja meu The Resurrection of God Incarnate (Clarendon Press, 2003). [154] Essa objeção foi recentemente apresentada de modo muito completo num livro dedicado apenas a ela: John Schellenberg, Divine Hiddennes and Human Reason (Cornell Univesity Press, 1993). A tese positiva de Schellenberg é de que um Deus perfeitamente bom ofereceria “indícios que confeririam probabilidade” (p. 35) à sua existência (seja pela experiência de Deus ou pela disponibilidade de argumento objetivo público) para todos os seres humanos capazes de serem conscientes de Deus “em todos os tempos” (p. 25); e que, uma vez que não temos sempre esses indícios, Deus não existe. [155] Tomás de Aquino escreveu que um “milagre” num sentido amplo é qualquer evento levado a efeito por um agente racional em virtude de poderes maiores do que os poderes humanos normais; e assim muitos eventos levados a efeito por demônios ou anjos contariam como milagres. Contudo, num sentido estrito, ele afirma, um milagre é o que ocorre fora do sistema inteiro da natureza criada; é algo que nenhum outro agente exceto Deus tem o poder de levar a efeito. Ver Suma Teológica, Ia.114. Hume definiu um milagre como “uma transgressão da lei da natureza por uma vontade particular da deidade ou pela interposição de algum agente invisível” (Ensaio sobre o Entendimento Humano (1777), ed. L.

A. Selby-Bigge, 2ª. Ed. (Clarendon Press, 1902), 10.1.90 nota). Observe a mudança de definir milagre em termos de uma exceção nos poderes das substâncias para defini-lo em termos de uma exceção a leis da natureza agora pensadas como mais fundamentais que os primeiros. [156] Ver o argumento inteiro da seção 10 de seu Investigação sobre o entendimento humano. [157] Ibid. 10.2.98.

[§]

N.T.: o texto original é na afirmativa, mas o contexto claramente mostra que o sentido é negativo, ou seja, pelas leis da natureza apenas, o evento E, provavelmente não ocorreria. [158] Ver a descrição de Agostinho do incidente em suas Confissões, 8.12. Ver a análise completa de Nicholas Wolterstorff em seu Divine Discourse ((Cambridge University Press, 1995), capítulos 1-2 e subsequentes) e como as palavras ouvidas por Agostinho pode ser vistas como uma ordem de Deus para ele. [159] Investigação acerca do entendimento humano, 10.2.95

[160]

Discuti o indício histórico em favor da encarnação e da ressurreição em meu livro The Ressurrection of God Incarnate (Clarendon Press, 2003). [161] R. M. Chisholm, Perceiving (Cornell University Press, 1957), cap. 4. Chisholm tentou distinguir um terceiro (“nãocomparativo”) uso desses verbos, mas há alguma dúvida quanto a se há tal uso e eu estou preocupado apenas com os usos epistêmico e comparativo. [162] Essa definição elimina muito do que frequentemente foi chamado de “experiência religiosa”. Por exemplo, muita “experiência religiosa” não se propõe a ser experiência de algo externo. Ao passo que muitas experiências nas tradições religiosas

do Cristianismo, Judaísmo e Islamismo são o que Ninian Smart, seguindo Otto, chama de “numinoso”, muitas experiências profundas chamadas de “religiosas” na tradição budista não o são. (Smart define a experiência numinosa como uma “experiência de uma presença dinâmica externa”. Veja seu artigo em “História do Misticismo” em P. Edwards (ed.) Encyclopaedia of Philosophy (Collier-MacMillan, 1967).) R. M. Gimello (“Mysticism and Meditation” em S. T. Katz (ed.) Mysticism and Philosophical Analysis (Sheldon Press, 1978)), afirma (p. 193) que “é certo que os budistas não dão forma ontológica aos conteúdos de suas experiências místicas nem povoam o cosmo com entidades místicas, uma vez que seu propósito mesmo ao tê-las é ‘discernir’ seu caráter ilusório”. Peter Moore (‘Mystical Experience, Mystical Doctrine, Mystical Technique’ em Katz (ed.), Mysticism and Philosophical Analysis) também enfatiza quanto à variedade de “afirmações místicas”, que elas incluem tanto afirmações “subjetivas” quanto “existenciais”. Apenas experiências religiosas do tipo que minha definição alcança têm valor indiciário indicando a existência de Deus e é por isso que estou preocupado com elas apenas. [163] Há um uso de “perceber” e outros verbos de percepção (por exemplo, “ver”, “ouvir”) no qual pode-se dizer que um sujeito percebe algo que ele não acredita que ele está percebendo, por exemplo, pode-se dizer que eu percebi John sem me dar conta que era John que eu estava percebendo. Eu não estou preocupado com percepção desse tipo, mas apenas com percepção de coisas que o sujeito acredita que ele está percebendo. [164] A melhor apresentação dessa teoria que eu conheço é a de P. F. Strawson em seu ‘Causation in Perception’ em seu Freedom and Resentment (Methuen, 1974). Contudo, tendo dado as condições apresentadas acima, ele sustenta que elas ainda são

insuficientes, embora necessárias, para a percepção. Ele afirma (pp. 79-80) que há outras restrições para os diferentes sentidos, por exemplo, que “alguém só pode ver o que está dentro do arco de sua visão” ou “não importa o quão alto seja o tiro de canhão, se ele está distante o bastante, ele estará fora da percepção auditiva”. Mas tais restrições apenas parecem corretas se supomos que o sentido de tais expressões como “dentro do arco de sua visão” é definido por elas. Se houver um critério independente de (por exemplo) “arco de visão” — digamos, um critério geométrico — então a mencionada restrição não parece de modo algum uma verdade necessária. Não há nada incoerente em supor que algumas pessoas possam ver esquinas arredondadas. Eu sugiro, portanto, que minha análise dá condições suficientes e necessárias para a percepção. [165] É claro que aquilo que constituirá o estar “corretamente posicionado” e quais órgão sensoriais e conceitos são necessários vai variar com o sentido e o tipo de objeto e são questões de investigação empírica; e assim também é o grau de atenção que é necessário. [166] Para modos de distinguir entre os sentidos e assim, bases para dizer que temos um novo sentido, vide H. P. Grice, ‘Some Remarks about the Senses’, em seus Studies in the Way of Words (Harvard University Press, 1989). [167] J. Hick, Faith and Knowledge (2a. ed. MacMillan, 1967), 142-3. [168] Para algumas “experiências religiosas” modernas (embora de sujeitos quase inteiramente de formação protestante inglesa), veja, por exemplo, o volume que resume mil relatos de tais experiências, feitos em resposta a um apelo público — T. Beardsworth, A Sense of Presence (The Religious Experience

Research Unit, Manchester College, Oxford, 1977). Algumas são experiências religiosas conforme o meu critério, outras não. O autor está inclinado a concluir dessas experiências algo que é discutível em vista da alguns dos argumentos apresentados neste capítulo. [169] Para uma abordagem mais completa do Princípio de Credulidade e uma explicação de por que se requer a expressão “em aspectos contingentes”, veja meu Epistemic Justification (Clarendon Press, 2001), 141-50. [170] C. D. Broad defende deste modo a justificação prima facie das alegações de experiência religiosa em ‘Arguments for the Existence of God’ em seu Religion, Philosophy and Psychical Research (Routledge & Kegan Paul, 1953). Muitos filósofos sustentaram a ideia óbvia de que nenhuma experiência acarreta a existência de seu objeto alegado, mas eles parecem ignorar a questão de se ela é indício prima facie para ele. Aqueles que discutem essa questão geralmente concluem que não é indício prima facie. Por exemplo, T. Penelhum em Religion and Rationality (Random House, 1971) afirma (p. 168) que “um argumento começando com a ocorrência, como um fato psicológico, de uma da experiência ou conjunto de experiências e terminando com a atribuição a elas de uma causa divina é ou uma hipótese explicativa pobre ou um argumento circular”. Tais autores não me parecem estar conscientes do atoleiro cético no qual a não aceitação do Princípio de Credulidade para outras experiências vai lhes levar. E se é correto usá-lo para outras experiências, eles precisam de bons argumentos para mostrar que não é correto usálo para experiências religiosas. [171] “A fim de inferir o divino de uma aparição, deveríamos ter a experiência de uma conexão entre eles do mesmo modo que temos a experiência da conexão entre fumaça e fogo” (A.

MacIntyre, “Visions”, em A. Flew e A. MacIntyre (eds.), New Essays in Philosophical Theology (SCM Press, 1955), 257). [172] Chisholm, Perceiving, 83.

[173] Para uma justificação

pormenorizada de minha afirmação de que esse primeiro questionamento não se põe em geral para derrubar as alegações de experiência religiosa, ver C. Franks Davis, The Evidential Force of Religious Experience (Clarendon, 1989), capítulo 8. [174] A. Flew, God and Philosophy (Hutchinson, 1966), 126-7.

[175]

Havia uma tradição na descrição da experiência mística, tipificada por W. T. Stace (ver seu Mysticism and Philosophy (MacMillan, 1961)), que afirmava que todas as experiências místicas eram essencialmente o mesmo. Era simplesmente que cristãos, muçulmanos, budistas, etc. liam nelas suas próprias interpretações diferentes (ou às vezes as descreviam sem interpretação). Nós vimos (pp. 497-98) que qualquer distinção entre experiência real e interpretação imposta a aquela é difícil de justificar, se é suposto que a experiência é de um objeto externo. Contudo, o modo natural de interpretar a afirmação de Stace é de que todos os sujeitos têm essencialmente os mesmos tipos de experiências sensoriais, isto é, os mesmos tipos de experiência descritos comparativamente (ver pp. 476-79), que fazem surgir diferentes tipos de experiência descritos epistemicamente, ou seja, levam os sujeitos a terem diferentes crenças. Stace distinguiu experiências místicas de outras experiências religiosas, tais como vozes e visões, mas mesmo assim sua afirmação é questionável. (Ver a discussão de S. T. Katz ‘Language, Epistemology and Mysticism’ em Katz (ed.), Mysticism and Philosophical Analysis). Contudo, mesmo se a alegação estivesse correta, haveria apenas uma situação de experiências conflitantes, dando origem à situação

descrita no texto, se os sujeitos fossem descrever suas experiências como experiências aparentemente de objetos que não poderiam existir ao mesmo tempo (por exemplo, um Deus onipotente e um Diabo onipotente). O fato de que um sujeito descreve sua experiência apenas em termos comparativos (“eu tive um tipo de experiência que você tem quando olha para uma luz muito brilhante”) e outro descreve sua experiência de um modo mais comprometido (“eu tive a experiência aparentemente de um Ser muito Puro”) não leva a essa situação. Podemos aceitar as afirmações dos sujeitos de ambas as experiências. O Princípio de Credulidade sugere que devamos tirar uma conclusão ontológica da segunda descrição, mas não da primeira — isto é, sugerem que há algum objeto que o primeiro sujeito não reconhece, mas que o segundo consegue reconhecer. [176] No caso de visões de pessoas agora mortas e que viveram na terra anteriormente, tais como os santos, deve-se ser cauteloso em não supor sempre que a pessoa vai continuar se parecendo do modo como ela parecia na terra, em seus aspectos mais superficiais. Sem dúvida, pode-se esperar que o caráter e alguma memória que continuem, pois são mais intimamente conectados com a identidade pessoal; mas não se esperaria que as roupas fossem necessariamente as mesmas e que a competência linguística ficasse confinada que a pessoa falava na terra. Assim, céticos tendem a negar a alegação de alguns camponeses portugueses de terem visto Maria, com base em que a descrição que o camponês dá do modo como Maria estava vestida não se ajusta ao modo como Maria costumava se vestir na Palestina, mas sim que corresponde fortemente ao modo pelo qual ela é retratada nas paredes das igrejas portuguesas. Isso não me parece contar contra a afirmação do camponês de modo nenhum. Isso porque, se Maria sobreviveu à morte, por que razão supor que ela tem agora de se

vestir do modo como se vestia na Palestina? Se ela for se manifestar na forma corpórea, o modo óbvio de se vestir é de um modo pelo qual ela possa ser reconhecida por aqueles a quem ela aparece. [177] Essa tese simples é bem defendida em W. J. Wainwright, “Natural Explanations and Religious Experience”, Ratio, 15 (1973), 98-101. [178] Ver meu Epistemic Justification, 123-7, para discussão do problema se o Princípio de Testemunho é um princípio fundamental a priori, ou se é uma consequência da aplicação de outros critérios indutivos mais fundamentais a indícios contingentes acerca do que as pessoas dizem. [179] Embora um Deus perfeitamente bom não possa mentir e, portanto, não vá proferir proposições incompatíveis (por exemplo, dizer a uma pessoa que ele se encarnou em Cristo e a outra pessoa que ele não se encarnou em Cristo), disso não se segue que ele não vá dar a diferentes pessoas comandos que não podem ser ambos executados com sucesso. O simples fato de que um sujeito A tem uma experiência aparentemente de Deus lhe dizendo para fazer X e o sujeito B tem uma experiência aparentemente de Deus lhe dizer para impedir A de fazer X não automaticamente implica que uma ou outra experiência não seja verídica. Assim, um muçulmano pode ter uma experiência de Deus lhe ter dito para defender Jerusalém do infiel, enquanto um cristão tem a experiência de Deus lhe ter dito para ataca-la. Isso pode ser explicado compatibilizando Deus realmente dando os dois comandos pelo fato de que, ao longo da história humana, como consequência de fatores dos quais os humanos são muito culpados, muçulmanos e cristãos vieram a ter entendimentos muito limitados de Deus. Deus anseia muito para que o entendimento humano de Deus se desenvolva pela experiência, esforço e cooperação humanos, e não

deva sempre ser resultado de intervenção divina; contudo, ele também anseia muito que, a qualquer momento na história, as pessoas devam viver e morrer pelos ideais que elas tenham então. Ele, portanto, diz a muçulmanos e cristãos para viver cada um conforme seus ideais correntes, sabendo que a experiência de fazêlo pode leva-los a um entendimento mais profundo. Em um nível humano, um sábio pode muito bem às vezes dar a cada uma das duas pessoas que o procuraram o conselho de se oporem à outra, pensando que seria bom para ambas que elas devessem desenvolver sua independência e autoridade. [180] Perceiving God de William Alston (Cornell University Press, 1991) constitui-se numa defesa sustentada da racionalidade de acreditar naquilo que parecemos experimentar (ou seja, num sentido amplo, perceber) no curso da “Prática Mística Cristã” (PMC) — isto é, no curso de uma vida de oração guiada por crenças cristãs, que nos permita detectar que experiências são verídicas e quais são ilusórias. Alston deseja colocar as experiências religiosas numa prática particular por causa de seu compromisso com o confiabilismo, a tese de que uma crença é justificada se a “prática doxástica” (por exemplo, percepção sensorial normal, indução, memória, etc.) que a produz usualmente produz crenças verdadeiras; e assim ele tem de identificar a prática antes da questão da justificação se torne resolvível. Nessa visão, podemos mostrar apenas que uma crença particular é justificada se pudermos mostrar que a pratica que a produz usualmente produz crenças verdadeiras. Isso não podemos fazer por PMC ou por qualquer outra prática sem confiarmos na própria prática (e talvez também, em menor medida, em outras práticas) para mostrar que crenças são verdadeiras. Porém, ele afirma que o fato de que a PMC é uma prática socialmente aceitável, que não temos razão suficiente para mostrar que é inconfiável, significa que ela adquiriu

seu direito de ser levada a sério. E isso significa, ele afirma, que confiar em seus produtos é “razoável” ou “racional”; ou seja, é razoável acreditar que seus produtos são epistemicamente justificados. Contudo, crucialmente, a racionalidade é de “um tipo que não acarreta uma probabilidade de verdade” (ibid. 181). Assim, apesar de algumas coisas que ele parece estar dizendo, a abordagem de Alston não deu nenhum fundamento para supor que experiências religiosas (as nossas próprias, sem falar nas dos outros) são, de algum modo, provavelmente verdadeiras. Seu erro básico, eu sugiro, é supor que existe uma teoria verdadeira da “justificação” — o confiabilismo. Argumentei em Epistemic Justification que há muitas teorias diferentes da “justificação”; mas que há critérios a priori corretos para o que torna algo provável captados por uma teoria internalista objetiva, e que esses incluem o Princípio de Credulidade, o qual nos permite chegar a uma conclusão (à luz de indícios de fundo) acerca de quão provável é que experiências religiosas são verídicas. [181] A afirmação de que todas as teorias científicas têm probabilidade zero em vista de qualquer indício não é de modo nenhum forçosa se supomos como eu suponho que os axiomas do cálculo de probabilidade e, portanto, o teorema de Bayes tem aplicação ao modo como falamos da probabilidade de teorias científicas. É verdade que, se assumimos que cada uma de um número infinito de teorias científicas universais incompatíveis tivesse probabilidade prévia zero, teríamos que concluir que a probabilidade prévia de cada uma era zero, ou infinitesimal. Isso é assim porque (pelo princípio de aditividade contável) a probabilidade de um número de alternativas exclusivas (ou seja, mutuamente exclusivas) e exaustivas (isto é, com uma delas tendo de ser verdadeira) deve totalizar 1. E se um número infinito de teorias assim tiver cada uma a mesma probabilidade, esta tem de

ser menor que qualquer número finito — isso significa 0; ou, se aceitarmos infinitésimos, um valor infinitesimal. (Acerca dessa consequência do princípio de aditividade contável e se deveríamos dizer que a probabilidade de cada um dos disjuntos é zero ou infinitesimal, ver meu Epistemic Justification (Clarendon Press, 2001), Additional Note G.) Contudo, não há necessidade de fazer a suposição implausível de que cada uma dessas teorias tem a mesma probabilidade prévia. Se simplicidade é indício de verdade como afirmei neste livro, quanto mais simples a teoria maior a sua probabilidade prévia; e assim as probabilidades prévias diferem como difere a simplicidade. E um número infinito de probabilidades prévias, cada uma das quais tem um valor finito e que não são iguais uns aos outros, podem totalizar 1. Por exemplo, a série infinita ½ + ¼ + 1/8 +1/16... etc. soma o total de 1. [182] Mary Hesse, The Structure of Scientific Inference (MacMillan, 1974), 182. [183] Eu defendo em The Ressurrection of God Incarnate (Clarendon Press, 2003) que, quando levamos em conta os indícios históricos pormenorizados da vida, morte e Ressurreição de Jesus, a probabilidade de que Deus existe se torna muito maior do que isso. [184] Opus Oxoniensis, I, Dist. 11, Q1, 7ª via, trad. Em Duns Scotus: Philosophical Writings, ed. A. Wolter (Hackett, 1987), 8991. [185] Quanto aos pormenores dessas questões biológicas, ver os textos de Michael Behe e Kenneth R. Miller em Neil A. Manson (ed.), God and Design (Routledge, 2003). [186] A formulação mais recente do argumento e a defesa mais plena contra um grande número de objeções está na coletânea de J. Beilby (ed.), Naturalism Defeated? (Cornell University Press,

2002). Minhas citações de Plantinga e as objeções a ele são todas desse volume. [187] Ibid. 1-2.

[188] Em ibid. 5 nota 11, Plantinga admite a possibilidade de que possamos não conseguir calcular essa probabilidade (ou outras que ele discute). Portanto, o “ou inescrutável”. Se ele afirma que a probabilidade é inescrutável, ele pode talvez dizer que, dados apenas N e E, não temos razão para acreditar que R; mas não que R é provavelmente falsa. Contudo, a primeira ideia admite a possibilidade de que nós tenhamos, além de N e E, muitas outras razões para acreditar que R. O argumento de Plantinga tem força significativa apenas contra o naturalismo e assim em favor da existência de Deus, se toma-lo como afirmando que a probabilidade de R, dados N e E, é baixa (e que outras probabilidades que tenham consequências para essa probabilidade tenham valores tais que elas tenham a consequência de que essa probabilidade é baixa). Por essa razão, eu vou, no futuro, ignorar o “ou inescrutável”. [189] E foi assim reduzido por Plantinga (ibid. 9-10).

[190]

Naturalism Defeated?, p. 8. Plantinga aqui cita um trabalho anterior seu. [191] Ibid. 9.