A escrita da história de um lado a outro do Atlântico 9788579839252

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico
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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Conselho Editorial Acadêmico Carlos Margaça Veiga Universidade de Lisboa – UL Ricardo Alexandre Ferreira Universidade Estadual Paulista – UNESP Teresa Cristina Kirschner Universidade de Brasília – UnB Vânia Leite Fróes Universidade Federal Fluminense – UFF

Maria Eurydice de Barros Ribeiro Susani Silveira Lemos França (Organizadoras)

A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

 

© 2018 Maria Eurydice de Barros Ribeiro   & Susani Silveira Lemos França      Cultura Acadêmica  Praça da Sé, 108  01001‐900 – São Paulo – SP  Tel.: (0xx11) 3242‐7171  Fax: (0xx11) 3242‐7172  www.culturaacademica.com.br                Ribeiro, Maria Eurydice de Barros. A escrita da história de um lado a outro do Atlântico / Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Susani Silveira Lemos França (organizadoras). – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2018. 292 p. ISBN: 978‐85‐7983‐925‐2 1. Portugal ‐ História. 2. Brasil ‐ História. 3. Historiografia. I. Título. II. França, Susani Silveira Lemos. CDD – 946.9 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773

 



Capa e imagem: Gabriela Cristina Carvalho Viotti Projeto Gráfico: SaHis – Serviços Avançados em História

 

 

E como a Historia é um agro e campo, onde esta semeada toda a doutrina Divina, Moral, Racional e Instrumental, quem pastar o seu fruto, convertê-lo-á em forças de entendimento e memória, para uso de justa e perfeita vida, com que apraz a Deus e aos homens. João de Barros. Décadas da Ásia

 

 

 

Sumário

Introdução

11

Maria Eurydice de Barros Ribeiro Susani Silveira Lemos França

A história: saber e discursos correlatos

História Genealogica da Casa Real Portugueza desde a sua origem até o presente

21

Manuela Mendonça

As cortes no reino de Portugal: antecedentes e concretizações

43

Maria Helena da Cruz Coelho

A retórica nos prólogos da escrita científica Ibérica (século XIII)

61

Dulce O. Amarante dos Santos

Os Manuais de Confissão e a difusão do catolicismo Tridentino (séculos XVI a XVIII)

81

Francisco José Silva Gomes

Medicina da mulher em Portugal: discursos e profissionais do parto. Rumos da historiografia

93

Maria de Fátima Reis

A Adoração dos Magos no Livro de Horas de Dom Manuel I

105

Cintia Maria Falkenbach Rosa

Operários do evangelho: construindo a espiritualidade franciscana no Brasil Maria Eurydice de Barros Ribeiro

 

123

  Os historiadores: seus feitios e seus limites

O elogio do contraditório. Reflexões sobre a cronística de Zurara

143

Margarida Garcez Ventura

Investidas moralizantes na história da expansão portuguesa

167

Susani Silveira Lemos França

Narrativas portuguesas sobre a Costa da Guiné: Séculos XV-XVII

191

José Rivair Macedo

A hagiografia na escrita da História Medieval: convergência e divergência de dois modelos de discurso

213

Armando Martins

Fernão Lopes, o rei D. João I e a historiografia luso-brasileira: algumas considerações

227

Adriana Zierer

A diplomacia portuguesa quatrocentista: notas historiográficas

251

Douglas Mota Xavier de Lima

“Das cousas do Brasil”. As cartas e relações dos jesuítas como género narrativohistoriográfico

271

João Marinho dos Santos

Sobre os autores

 

285

 

Introdução

C

om a recente pulverização e acirramento das discussões sobre as identidades de grupos, certas categorias, que outrora serviram para o reconhecimento dos povos e dos indivíduos, vêm sendo por vezes esquecidas e tornadas obsoletas em favor de outras que, nascidas sob o argumento da diversidade, têm, ao contrário e lamentavelmente, ganhado força de universais. O presente livro, visando resgatar e mensurar as faces de um processo de identificação construído ao longo de séculos, envolvendo os dois lados do Atlântico e os diálogos entre duas sociedades assemelhadas, traz algumas discussões de pesquisadores experientes sobre as histórias que delas se quis lembrar na forma escrita. Com foco no que o mar uniu, mais do que no que separou – para lembrar a feliz síntese de Fernando Pessoa –,1 os estudos deste livro retomam discussões e lançam novas a propósito de uma questão que esteve na origem da formação do grupo de pesquisa “Raízes Medievais do Brasil

1

PESSOA, Fernando. Mensagem. Segunda Parte - Mar Portuguez. In: Arquivo Pessoa. Obra édita. Disponível em: . Consultado em: 01 dez. 2017.

   

11 

 

A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Moderno”: como uma dada formação histórica se alimenta de outra e ao mesmo tempo se singulariza? Ao longo de uma década de existência, a comemorar o que reconhecemos como um legado,2 muitos foram os livros e dossiês de revistas que resultaram das discussões do grupo em torno dos traços institucionais e culturais de Portugal do período imediatamente anterior à expansão; discussões que não perderam de vista as relações entre o poder monárquico, a sociedade portuguesa e os povos e instituições dos territórios conquistados, sobretudo do Brasil, mas avançando muito frequentemente pela África. Geografia e duração abrangentes têm sido, pois, alguns dos trunfos a garantir a perenidade do grupo e a plasticidade das pesquisas em torno da referida interrogação. Por buscarem confluir mais de uma linha de abordagem, os trabalhos que vieram a público não se restringem ao campo das causalidades da expansão, tão bem exploradas por historiadores como Salvador Dias Arnaut, A. H. de Oliveira Marques, Humberto Baquero Moreno, Frédéric Mauro, Vitorino Magalhães Godinho, entre outros. Tampouco se pode dizer que é a ênfase sobre os aspectos políticos e administrativos da expansão ultramarina ou da sociedade portuguesa do período – cujos pilares foram lançados por historiadores como Jorge Borges de Macedo, Charles Boxer ou Joaquim Veríssimo Serrão, para ficarmos por apenas alguns – que caracteriza inteiramente as linhas de interesse. Composto por pelo menos três gerações de historiadores, o grupo vem se conduzindo, pode-se dizer, por uma premissa da história portuguesa que lhe permite avançar do político e do econômico para o social e o cultural: o autoreconhecimento do povo como marítimo, melhor, como afeito ao mar e atraído por terras não contíguas e povos dessemelhantes. Uma premissa, contudo, que não deixa enfraquecidos os seus elos

2

Pelos sentimentos que temos ou devamos ter em relação aos produtos do trabalho realizado. Cf. ANKERSMIT, Frank R. Commemoration and national identity. Memória, identidade e historiografia. Org. de Estevão de Rezende Martins. Textos de História, 10, p. 15-37, 2002, p. 15. Disponível em: . Consultado em: 02 dez. 2017.

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Introdução

com o ocidente cristão e as suas bases culturais longínquas; ponto examinado em vários dos estudos. É nesse terreno de múltiplas ramificações que os investigadores de reconhecidas instituições de ensino e pesquisa portuguesas e brasileiras têm procurado transitar, sob a coordenação de Manuela Mendonça e Maria Eurydice de Barros Ribeiro. No Brasil, os pesquisadores são provenientes da Universidade de Brasília (UNB), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP); da Universidade Federal de Goiás (UFG); da Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS); da Universidade Federal Fluminense (UFF); da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Em Portugal, os participantes são provenientes da Universidade de Lisboa (UL) e da Universidade de Coimbra e são membros da Academia Portuguesa da História; instituição científica que é o pilar de sustentação do grupo luso-brasileiro em Portugal. As raízes que os estudiosos têm buscado trazer à superfície nas suas abordagens, vale destacar, não são apenas as europeias em terras americanas e africanas, mas igualmente as três grandes fontes de conhecimento que ajudaram a definir o mundo português: a greco-romana, a judaico-cristã e a árabe. É este vasto patrimônio comum, difuso e multiforme, algumas vezes não harmonizado, que tem sido interrogado nas pesquisas realizadas. É este patrimônio que só alcança inteligibilidade quando lançamos luz sobre alguns pactos que foram se firmando ao longo do tempo, nem sempre de forma contínua,3 que vêm nutrindo as investigações e mantendo vivos os debates. Mas esta coletânea que ora vem a público, é preciso esclarecer, embora pretenda ser mais comemorativa de uma década de existência do grupo do que propriamente uma síntese do que se tem realizado, deixa entrever um eixo do trabalho conjunto que persiste a despeito das diferenças: a atenção aos percursos de uma produção escrita e iconográfica (cronística, cartográfica, epistolar, tratadista e legislativa) que ajudou a definir valores e práticas de longa duração

3 VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 113.

13

A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

no reino de Portugal e nos territórios tomados como suas extensões. Escritos que, para recordar a precisa sinopse de Manuela Mendonça em um dos prefácios de coletânea anteriormente publicada, permitem percorrer “os caminhos que, ao longo dos séculos, foram rasgados por Portugal e Brasil, na certa convicção que as respectivas Histórias, profundamente ligadas até o século XIX, impõem um conhecimento mútuo para que, nos mais variados aspectos, possam ser compreendidas”.4 No plano do que se viu e do que se verá, de histórias que não se confundem, mas também não se separam, de histórias que a gente comum dos dois lados do Atlântico ainda hoje ajuda a manter unidas – nas expressões idiomáticas, no preparo dos alimentos, nas desilusões políticas semelhantes, nos modos e tons de exprimir-se –, as abordagens recaem sobre o papel dos escritos e saberes que atravessaram o mar e de instituições trasladadas que assumiram novas formas e funções.5 Alguns eixos dessas abordagens permitem, a propósito, ao mesmo tempo refletir sobre a presente coletânea e sobre o trabalho de mais uma década do grupo. Desses saberes e instituições, um destaque merecido é dado aos cuidados com o corpo, cuja saúde estava imbricada com a saúde da alma.6 Em mais de um ensaio, os tratados que incidem sobre os elementos, as qualidades, os humores e as compleições do corpo e prescrevem práticas a serem evitadas e outras a serem seguidas, nomeadamente no que se refere à higiene e aos alimentos, são explorados ao mesmo tempo por suas articulações circunscritas e pelos diálogos que estabelecem com o pensamento médico anterior. Em outras palavras, o saber medieval é interrogado tanto por aquilo 4 MENDONÇA, Manuela. Prefácio. In: MENDONÇA, Manuela; REIS, Maria de Fátima. Raízes medievais do Brasil Moderno – Do Reino de Portugal ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2016, p. 13. 5 GOMES, Francisco José Silva. Cristandade medieval e cristandade colonial: permanências e rupturas. In: MACEDO, José Rivair (Org.). A Idade Média Portuguesa e o Brasil: reminiscências, transformação, ressignificações. Porto Alegre: Vidráguas, 2011. p. 169-176. 6 SANTOS, Dulce O. Amarante dos. A medicina monástica em Portugal na Idade Média (Aproximações). In: MENDONÇA, Manuela; SANTOS, João Marinho dos. Raízes medievais do Brasil Moderno – Ordens religiosas entre Portugal e o Brasil. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2012. p. 131-156, p. 145.

    14

 

Introdução

que apropria do saber antigo quanto pelo sentido religioso que se impõe ao que retoma.7 Uma medicina fundada na noção de natureza como obra de Deus, e por isto mesmo dependente ao fim e ao cabo de sua vontade, emerge em estudos que, entretanto, não deixam de denunciar um paulatino movimento de desvio das práticas médicas dos meios estritamente monásticos e clericais para uma esfera mundana. Do mesmo modo que os saberes, segundo os estudiosos do grupo que se dedicaram ao tema, as instituições ou lugares estruturados para cuidar dos enfermos não se montam sem a inspiração antiga, mas igualmente não se mantêm sem se adaptar às necessidades e condições presentes. No Portugal medieval, as instituições monásticas definiram espaços específicos para cuidar dos doentes e dos pobres – por vezes associados –, mas começaram logo a sofrer a concorrência do poder régio, com a construção ou reforma de hospitais e misericórdias.8 A atenção aos cuidados com o corpo não legou ao abandono aqueles em prol da alma. Esquadrinhando ora escritos monásticos,9 ora escritos que circularam no âmbito da corte,10 ora escritos sobre o conhecimento dos animais como fonte de exempla,11 ora escritos sobre as ações de religiosos em terras estrangeiras,12 diversos dos estudos realizados esquadrinham os modelos de educação, os manuais de disciplina clerical e monástica, as diferenças e 7 SANTOS, Dulce O. Amarante dos. A medicina monástica em Portugal na Idade Média (Aproximações). In: MENDONÇA, Manuela; SANTOS, João Marinho dos. Raízes medievais do Brasil Moderno – Ordens religiosas entre Portugal e o Brasil, p. 155. 8 SANTOS, Dulce O. Amarante dos. Políticas de saúde para o Brasil Colonial e Reino Unido. In: MENDONÇA, Manuela; REIS, Maria de Fátima. Raízes medievais do Brasil Moderno – Do Reino de Portugal ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, p. 247. 9 MARTINS, Armando. Saberes e sabedoria: A potencialidade das circunstâncias num manual de educação do século XII. História Revista, Goiânia, v. 18, n. 1, p. 9-35, jan./jun. 2013, p. 9. Disponível em: . Consultado em: 02 dez. 2017. 10 MENDONÇA, Manuela. O espelho de Cristina (séc. XV). História Revista, Goiânia, v. 18, n. 1, p. 53-68, jan./jun. 2013, p. 53-55. Disponível em: . Consultado em: 02 dez. 2017. 11 RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Entre saberes e crenças: o mundo animal na Idade Média. História Revista, v. 18, n. 1, p. 135-150, jan./jun. 2013, p. 141. Disponível em: . Consultado em: 02 dez. 2017. 12 SANTOS, João Marinho. A missão jesuíta para o Brasil na estratégia imperial de D. João III. In: MACEDO, José Rivair (Org.). A Idade Média Portuguesa e o Brasil.

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

aproximações da educação para homens e mulheres, os meios para instruir povos a serem cristianizados,13 em suma, os instrumentos escritos que contribuíram para criar condutas virtuosas e boas maneiras,14 forjando, assim, ideais éticos que estiveram na base de um “sistema de valores da sociedade ocidental de que ainda hoje somos devedores”.15 Estudos, pois, que contemplam a dimensão mais ampla da educação ou da formação, não restrita à esfera intelectual e, sim, assumidamente aberta à muito mais difusa esfera moral.16 É com papel semelhante que entram, no rol dos estudos enfatizados, os escritos sobre o passado, que não perdem de vista nem o corpo individual nem o coletivo, nem a alma de cada um nem a alma no seu sentido cristão essencial. Escritos ou saberes que, retomando a síntese de Maria Helena da Cruz Coelho, podem ser chamados “um poder e ao serviço dos poderes”.17 Entre as reflexões, emergem aquelas sobre a construção da identidade do reino a partir do legado cronístico;18 outras sobre as crônicas como fonte de ensinamentos;19 outras ainda sobre essas como articuladoras de

13 SANTOS, João Marinho. A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista. História (São Paulo), v. 34, n. 1, p. 109-127, jan./jun. 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2013; FERNANDES, Raul Mendes. André d’Almada: um certo olhar ‘renascentista’. Disponível em: . Acesso em: 18 dez. 2013. 53 Alguns aspectos particulares desses escritos foram ressaltados nos seguintes estudos: HORTA, José da Silva. Evidence for a luso-african identity in ‘portuguese’ accounts on Guinea of Cape

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

menos superficialmente a dinâmica interna das sociedades africanas, notam os pontos de aproximação entre as populações senegambianas que antes fizeram parte do Estado do Grão Jolof (nomeados de Grão Fulo), o movimento migratório e comercial dos povos mandingas rumo ao Oeste e sua vinculação com a difusão do islã e, sobretudo, a instalação dos povos manes e sumbas em Serra Leoa a partir de 1550, o que reconfigurou a ocupação daquele território. Quanto a Descrição da Costa da Guiné desde o Cabo Verde athe Serra Leoa com todas ilhas e rios que os brancos navegam, redigida pelo mercador Francisco de Lemos Coelho em 1669, e depois reescrita em 1684,54 como nos demais, a abundância de informação sobre os povos e sociedades locais tinha a finalidade de instruir os interessados a tirar melhor proveito dos contatos comerciais. O foco principal da narração envolve os contatos estabelecidos na negociação de produtos de interesse, como tecidos, bebidas alcoólicas, noz de cola, objetos de metal, artefatos de uso doméstico, ouro e “presas” para o tráfico de cativos. Mas aqui também se pode vislumbrar um amplo painel das vivências sociais em espaço atlântico, onde os africanos, embora não sejam detentores da palavra narrada, ganham protagonismo e aparecem em traços menos estereotipados. ***

Eis, em síntese, um breve balanço do conjunto da documentação portuguesa nos dois primeiros séculos de contato na área guineense, período em que a coroa portuguesa pretendeu exercer o monopólio nos encontros com os povos do litoral atlântico africano. Neste trabalho não se teve a pretensão de fornecer uma avaliação precisa das possibilidades de estudo e pesquisa, mas apenas o propósito de identificar a variedade de testemunhos históricos, Verde, sixteeenth-Seventeenth centuries. History in Africa, ASA - Nova Jersey, v. 27, p. 93-130, 2000; SANTOS, Beatriz Carvalho dos. Os escritos do ultramar: o aporte do olhar luso-africano nos relatos sobre a “Guiné de Cabo Verde (séculos XVI-XVII). Cultura Histórica & Patrimonio, Alfenas, v. 1 n. 2, p. 152-173, 2013. 54 ANDRÉ DONELHA. Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde (1625).

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Narrativas portuguesas...

quando se sublinharam os mais conhecidos ou os mais significativos e foram verificados seus diferentes condicionamentos históricoculturais. Em sua diversidade de gênero, forma e composição, tais fontes podem fornecer ao pesquisador importantes registros acerca das experiências dos povos africanos, contribuindo dessa forma para lhes devolver a consciência histórica de sua antiguidade e singularidade.

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  A hagiografia na escrita da História Medieval: convergência e divergência de dois modelos de discurso

Armando Martins Universidade de Lisboa

Ao P. Benoît Lacroix, OP (1915-2016)

E

m um dos seus mais belos diálogos, Platão refere o mito da invenção da escrita. Põe Sócrates a dizer ao seu amigo Fedro que deseja contar-lhe uma história transmitida pelos antigos, avisando-o, porém, de que se ela é verdadeira ou não só Deus sabe; mas, se nós pudermos conhecer a verdade, porquê preocuparnos com o que dizem os homens?! Havia no Egipto um deus, de nome Toth que inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de damas e os dados e também a escrita. O país era governado pelo rei Tamuz que residia no sul, na cidade de Tebas. Toth foi ter com ele e mostrou-lhe as suas artes, dizendo-lhe que elas deveriam ser ensinadas aos egípcios. O rei, porém, quis saber da utilidade de cada

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

uma e, à medida que o inventor explicava, ele aprovava ou criticava, conforme lhe pareciam boas ou más. Quando chegaram à escrita, disse Toth: “Esta arte, caro rei, fornecerá aos egípcios mais saber, mais ciência e mais memória; portanto, com a escrita, inventei um grande remédio – pharmakon. Para a ciência e para a memória, o remédio está encontrado! Depois de pensar um pouco, logo o rei lhe replicou: “Grande artista, Toth! Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercerem! Tu, como ‘pai da escrita’, esperas dela, com o teu entusiasmo, precisamente o oposto do que ela pode fazer. A verdade é que, ao contrário do que dizes, tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas no que estiver escrito, só se lembrarão de um assunto por meio de sinais e não por si mesmos. Logo, tu não inventaste um remédio para a memória, inventaste foi um seu veneno”!1 Permitamo-nos, como fez o filósofo Paul Ricoeur, a transposição do mito da invenção da escrita para o plano das relações entre memória e a história, a história escrita, na Idade Média. Tal operação é-nos autorizada na medida em que a história também é escrita. Exorcizemos, primeiro, toda a suspeita de que a história seja prejudicial para a memória, mas não ignorando que pharmakon, sendo sinónimo de “remédio” e de “veneno”, também o é de “cosmético”! Podíamos citar, como prova, muitos prólogos dos diplomas exarados nos cartulários, das vitae ou das crónicas. Demos, porém, a palavra a cronistas ou historiadores. Num manuscrito de 1176, proveniente do mosteiro cisterciense de Alcobaça, em Portugal, afirma-se, confiadamente, que a escrita além de guardiã fiel da memória, inova, confirma e transmite: “Fida memoriae custos est scriptura; haec enim, antiqua inovat, nova confirmat, confirmata ne in posterum notitiae temporum diuturnitate oblivioni tradantur representat”.

1 PLATÃO. Fedro. Lisboa: Guimarães Editores, 2000, p. 120-121. Aqui adaptada a partir de Platon. Phèdre. Paris: Flammarion, 1997.

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A hagiografia na escrita...

Richard de Bury, em Inglaterra, ao falar dos livros escritos, saúda-os como antídoto salutar contra todo o esquecimento: “O dirae cladis antidotum salutare”!2 2. Tem-se designado, tradicionalmente, com o nome de “hagiografia” um conjunto de textos nos quais se conta a vida e milagres dos santos. Etimologicamente, o vocábulo significa precisamente “escrita sobre os santos”, embora tal matéria tenha sido também conhecida como “hagiologia” ou “hagiológica”. Hagiógrafos eram os seus autores. Depois, começou a entender-se como um género literário próprio, visto ter um objecto preciso (os santos) e visar uma finalidade concreta: a edificação (por actos exemplares). Enquanto “género” era devedor da biografia, do panegírico, do elogio fúnebre romano e da lição de moral. Alguns autores preferem hoje dizer que, mais que género literário, a hagiografia é antes “um feixe convergente de modos narrativos complexos, tendo por objecto comum exaltar a recordação e o poder de um santo” (A. Boureau).3 Nascida com alguma dificuldade com os primeiros calendários litúrgicos e praticada nos meios cristãos desde a Antiguidade Tardia, com a redacção das primeiras vitae (Vita Antonii, Vita Martini), o conceito evoluiu semanticamente, quer com a extensão da sua finalidade ao longo da Idade Média, quer com o trabalho crítico exercido sobre seu o corpus constituinte, levado a cabo, em Bruxelas, pela Sociedade dos Bolandistas4 desde o século XVII – época em que o vocábulo se forjou. 2 BURY, Richard de (1286-1345). Philobiblon ou O Amigo do livro. Ed. bilíngue, tradução e notas de Marcelo Cid. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007, p. 43 e 168. 3 Certos autores contemporâneos utilizam “hagiologia” para se referirem ao campo de estudo que toma como objecto o corpus hagiográfico. Ver: SOBRAL, Cristina. O modelo discursivo hagiográfico. In: Colóquio da secção portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, 2005, Porto. Modelo: actas do V Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005. p. 97. 4 A sociedade dos ‘Bolandistas’ nasceu em Bruxelas, formada por um grupo de jesuítas, em torno de Jean Bolland, no século XVII, com o objectivo de proceder a estudos críticos sobre as obras

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

A hagiografia crítica afirma-se assim como um ramo da história, na medida em que os seus métodos não diferem dos que são aplicados a qualquer outro assunto embora, como ramo especial, tenha procedimentos próprios derivados do objecto e do carácter especial dos seus documentos. Neste segundo sentido, hagiografia é, hoje, o trabalho científico feito por um investigador (filólogo, linguista, historiador, etnólogo) sobre os textos hagiográficos, sua tradição, o culto dos santos, as vivências sociais e o carácter histórico das repercussões à sua volta! Sintetizemos: as formas mais conhecidas do primeiro sentido, praticadas na Idade Média, são as vidas de santos (vitae, legenda, historia), mas também certos episódios que os notabilizaram (actas de martírio, passiones) ou colectâneas de milagres e narrativas de trasladações das suas relíquias. O leque é mais vasto se lhe acrescentarmos martirológios, martirológios históricos, calendários, catálogos episcopais, sermões, livros litúrgicos, relatos de peregrinações e outros. Até final do período medieval (e um pouco para além dele) caracterizou-as um modelo discursivo de narrativas, com várias versões, quase sempre romanescas, com recurso ao maravilhoso, onde a imaginação é mais fértil que o rigor histórico; obedece a lugares comuns da retórica de exaltação, tornando-as uma linguagem codificada que exige cuidados especiais por parte do historiador de hoje, do arqueólogo e do historiador da Arte. Aparentemente repetitiva e monótona, sempre dramática, esta literatura conheceu grande evolução especialmente nos séculos XII e XIII, em ligação com as novas concepções de santidade, a sua

hagiográficas. Trata-se de um trabalho que começou a realizar-se no quadro da Contra-Reforma, para responder aos Protestantes que atacavam o culto dos santos. Assim nasceu a publicação das Acta Sanctorum, edição erudita de todos os textos conhecidos acerca de santos, segundo a ordem do calendário. Publicaram-se 68 grandes volumes de entre 1 de janeiro a 10 de novembro, detendose aqui na impossibilidade de estudar todos os textos hagiográficos acerca de S. Martinho de Tours (11 de novembro). A colecção dos textos foi acompanhada de um trabalho crítico que analisava a santidade da personagem e justificava o culto que lhe era dirigido. Este aspecto deu origem a amplos comentários colocados na introdução do texto de cada santo. Inicialmente apologética esta hagiografia deu origem, nos séculos seguintes a um procedimento crítico mantido pelos seus continuadores. A obra de padre Hippolyte Delehaye, SJ., Cinq leçons sur la méthode hagiographique, Bruxelles, 1934, define esta hagiografia crítica como um ramo da ciência histórica, importante também no domínio da história das mentalidades.

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A hagiografia na escrita...

utilização e a sua difusão. Permanecendo herói, o santo, em relação à ideia que dele se fazia no passado, deixa de ser uma figura só admirável, para se tornar um modelo imitável. Se os santos da alta Idade Média eram nobres ou tidos como tal, por uma questão de princípio simbólico, desde o século XII começam a ser canonizados homens comuns, tal como Omobono, um obscuro alfaiate de Cremona, na Itália, em 1199. Esta mutação conceptual foi favorecida pelo desenvolvimento da espiritualidade penitencial: ao contrário do que enunciavam os textos anteriores, o santo não era um predestinado desde a sua origem, não nascia como tal, mas fazia-se através de uma conversão de vida, tanto mais notável quanto antes mais conhecido era como pecador. Esta é uma das razões por que o culto de santas antigas como Maria Madalena ou Maria Egipcíaca começou a conhecer desde então, uma extraordinária difusão em todo o Ocidente. Sob a influência dos Cistercienses, mas sobretudo das Ordens Mendicantes, a dimensão pastoral da hagiografia não deixa de aumentar sendo a sua finalidade apresentar aos fiéis, através da vida dos santos, modelos de comportamento e ortodoxia numa época em que heresias como o catarismo e a pregação valdense se difundiam e seduziam muitos crentes. O apelo mais directo era à conversão de vida pela prática dos sacramentos, em especial da Eucaristia. Neste sentido vemos surgir narrativas de milagres de tipo novo, já não ligados a um santuário mas a um santo e à frequência sacramental: por toda a parte se fala de milagres eucarísticos, como em Santarém em 1266 ou, dois anos antes, em Bolsena, que Rafael imortalizou num fresco célebre. Por outro lado os hagiógrafos começam a organizar legendários breves para colocar à disposição do clero paroquial textos até então pouco acessíveis e que lhes pudessem ser de utilidade nas festas dos santos ao longo do ano litúrgico. Sabemos que o principal instrumento de difusão dessas compilações foi a obra Legenda Dourada ou Áurea, do dominicano Tiago de Varazze (ou Voragine), composto entre 1260-1265 na Itália, de que existem mais de mil manuscritos latinos e viria a conhecer extraordinário sucesso até meados do século XVI, sendo logo traduzida nas principais línguas vernáculas. Com a invenção da imprensa foi um dos livros mais 217

A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

editados, conhecendo-se 49 edições nos últimos trinta anos do século XV (1470-1500) e treze, nos primeiros do século XVI (1531-1560).5 O conhecido Flos Sanctorum em linguagem português, de 1513, com ilustrações em xilogravuras, acrescentado com mais alguns santos dispersos, então ditos “extravagantes”, foi em Portugal o nosso modelo hagiográfico, por excelência. É possível, hoje, estabelecermos relações próximas entre os modelos de discurso da história, da hagiografia e da arte? Ou poderemos continuar a dizer que a hagiografia se situa na extremidade da história, é a sua tentação, a sua traição e que aos artistas como aos poetas são lícitas outras liberdades?! Que método utilizar para o averiguar? Numa óptica tradicional, o medievalista francês, Pierre-André Sigal, há uns quarenta anos, ainda entendendo a hagiografia como género literário, propunha um procedimento em duas etapas: Primeiro, tentar ver o que as fontes hagiográficas trazem ao historiador enquanto material de história e questionar-se, criticamente, para saber se elas nos fornecem elementos válidos para a reconstituição do passado ou não. Em seguida, podemos examinar as relações entre o “género histórico” propriamente dito e o “género hagiográfico”, isto é, a maneira como os autores de obras históricas e os autores de obras hagiográficas conceberam e organizaram o seu trabalho de escrita. Acerca da primeira atitude, sabemos hoje, depois de muitos anos de controvérsias e debates, ultrapassada a fase de atitude hipercrítica ligada com a escola metódica ou positivista, e especialmente com o advento da prática da história das mentalidades, como muitos textos hagiográficos contêm informações fidedignas sobre factos que reportam e da época da sua escrita, em geral, pormenores e dados da vida quotidiana.6 Mas, a sua leitura exige do historiador de hoje o exercício da arte da descodificação.

5 LE GOFF, Jacques. À la recherche du temps sacré Jacques de Voragine et la Légende dorée. Paris: Parrin, 2011, p. 7-8. 6 SIGAL, Pierre-André. Histoire et hagiographie: les miracula aux XIe et XIIe siècles. In: L'historiographie en occident du Ve au XVe siècle, n. 8, 1977, Tours. Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l'enseignement supérieur public. Tours, 1977. p. 237.

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A hagiografia na escrita...

Apoiando-se em alguns autores muito seguidos há meio século, Sigal mostrava como as opiniões sobre esta matéria eram divergentes, sendo difícil de traçar uma fronteira nítida entre os dois tipos de escritos. Faria a hagiografia parte da historiografia? Deveriam distinguir-se claramente? Porquê? Para responder a estas questões, Sigal socorria-se dos argumentos e da autoridade de autores como Dom Jean Leclercq, OSB (1911-1993), Baudouin de Gaiffier (1897-1984), Hippolyte Delehaye (1859-1941) e Benoît Lacroix (1915-2016), entre outros. Para Leclercq, nos anos 50, a hagiografia era, efectivamente, uma forma de historiografia, aplicando-se-lhe simplesmente os métodos de um domínio específico.7 Hippolyte Delehaye, bolandista, marcara posição muito tempo antes, especialmente com o seu trabalho Les Légendes hagiographiques, cuja primeira edição datava de 1905, especificando que “a obra hagiográfica pode ser histórica mas não o é necessariamente”8 e precisava o seu pensamento: o hagiógrafo inspira-se em ideias correntes sobre a história, mas escreve a história com uma finalidade especial e bem definida que não fica sem influência sobre o carácter da sua obra. De facto, ele não conta apenas para interessar mas, antes de tudo, para edificar. Um género novo se criou que tem parte de biografia, de panegírico e de lição de moral.9

Por sua vez, o historiador canadiano Benoît Lacroix, na conhecida obra L’historien au Moyen Age, distinguiu nitidamente hagiografia e história e decidiu afastar do estudo desta as Vitae ou outros textos do género, justificando essa separação pela submissão a critérios da própria Idade Média que via na história e na hagiografia dois géneros distintos10! Sigal, colocando-se ao lado da posição de Leclercq precisava, sublinhando a importância do tempo: 7 LECLERCQ, Dom Jean. Initiation aux auteurs monastiques du Moyen Age. L’Amour des lettres et le désir de Dieu, Paris: Les éditions du cerf, 1963, p. 154. 8 DELEHAYE, Hippolyte. Les Légendes hagiographiques, Bruxelles: [s.d.], 1905, p. 2. 9 DELEHAYE, Hippolyte. Les Légendes hagiographiques, p. 77. 10 LACROIX, Benoît, p. 44-55.

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Quando a intenção moralizadora domina o desejo de reconstituir o passado no seu desenrolar cronológico, o hagiógrafo afasta-se do historiador. Pelo contrário, quando a proximidade dos eventos, a exigência dos arquivos ou de tradições torna possível um plano cronológico, o autor comporta-se como historiador – historiador do culto prestado ou do poder taumatúrgico atribuído: é este elemento que opera a ligação entre os factos individuais e isolados, que lhes permite serem notados e, por isso, tornarem-se factos históricos.11

Os temas hagiográficos têm, tradicionalmente, encontrado pouco eco na historiografia portuguesa contemporânea, mesmo a medieval. É certo que, desde os anos 40-50 do século XX, alguns autores, dispersos vinham fazendo estudos notáveis: Miguel de Oliveira e Mário Martins estão entre os principais.12 Investigavam e escreviam numa linha herdada da Academia Real da História Portuguesa (1721) que começara a estudar de forma crítica certas tradições que se tinham introduzido na liturgia e importava expurgar santos imaginários, como Pedro de Rates (45-60 d.C.), suposto primeiro bispo de Braga do qual não havia documento algum! Porém, só desde finais do século passado estes estudos, no que à Idade Média se referia, encontrariam eco na Universidade, com trabalhos pioneiros não propriamente de historiadores (com excepções, como Pierre David em Coimbra ou José Mattoso em Lisboa) mas, de especialistas em estudos de filologia românica, na FLUL, como Aires do Nascimento ou Maria Clara de Almeida Lucas e, mais recentemente, Cristina Sobral,13 ou a historiadora

11 SIGAL, Pierre-André. Histoire et hagiographie: les miracula aux XIe et XIIe siècles. In: L'historiographie en occident du Ve au XVe siècle, n. 8, 1977, Tours. Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l'enseignement supérieur public, p. 256-257. 12 Ver: NASCIMENTO, Aires do. Hagiografia. In: TAVANI, Giuseppe; LANCIANI, Giulia (org.). Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa, Caminho, 1993. 13 SOBRAL, Cristina. O modelo discursivo hagiográfico. In: Colóquio da secção portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, 2005, Porto. Modelo: actas do V Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, p. 97-105; SOBRAL, Cristina.

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A hagiografia na escrita...

Maria de Lurdes Rosa, da UNL e da UC.14 No Porto, afirmaram-se os modernistas José Adriano de Carvalho, Maria de Lurdes Fernandes e Pedro Vilas Boas Tavares. Também nos domínios da História da Arte, têm sido feitos trabalhos especialmente com Vitor Serrão e Luís Afonso, ambos da Faculdade de Letras da UL. Nos últimos anos, estudos de historiadores, linguistas e filólogos, sobre a especificidade da hagiografia – enquanto género literário ou género histórico – e sobre a sua validade documental, mostram que a tentativa de enquadrá-la num sector exclusivo não contribui para a compreensão adequada dos seus textos! Conhecendo as distinções conceptuais acima referidas e a prática tradicional dos historiadores, admite-se que quase todos os traços definidores da hagiografia (incluindo os de carácter edificante e pedagógico ou o recurso a modelos bíblicos e litúrgicos) se encontram também na historiografia medieval e que, concretamente, uma distinção rigorosa não é fácil.15 Aires do Nascimento, em edições de certos textos do século XII redigidos no mosteiro de S. Cruz de Coimbra, como as Vita Tellonis, Vita Theotonii e Vita Martini Sauriensis, que em 1998 publicou com o nome de Hagiografia de Santa Cruz, manifestou mais recentemente dúvidas sobre aquela designação, inclinando-se, sem optar pela sua classificação historiográfica, para uma elaboração no que chama de “registo paralitúrgico”.16 Filólogos e linguistas, como já o fizera em França o historiador modernista Michel de Certeau (1925-1986), propõem a substituição do conceito de “género” pelo de “discurso”: não é a atenção a factos da história política nem de marcos cronológicos ou a

Hagiografia em Portugal, balanço e perspectivas. Revista Medievalista on line, Lisboa, n. 3, p. 118, 2007. 14 Maria de Lurdes Rosa. Hagiografia e Santidade. In: AZEVEDO, Carlos A. Moreira. Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. v. C-I, p. 326-335. 15 GUENÉE, Bernard. Histoire et culture historique dans l’Occident médiéval. Paris: Aubier Montaigne, 1980, p. 53 e 55. 16 NASCIMENTO, Aires do. O Júbilo da vitória: celebração da tomada de Santarém aos Mouros (a.D. 1147). In: Congrés internacional de l'Associació Hispánica de Literatura Medieval, n. 10, 2005, Alicante. Actes del X Congrés Internacional de l'Associació Hispánica de Literatura Medieval. Alicante, 2005, p. 1217-1232.

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interpolação de documentos jurídicos que impede a formalização hagiográfica do discurso que os integra, desde que além destas características este apresente as que definem o discurso hagiográfico: “Uma narrativa hagiográfica é histórica por ser um emblema da consciência colectiva num dado lugar e num dado tempo e por ter modelado o posterior entendimento do seu objecto, o santo”.17 Ou seja, propõem que a hagiografia se inscreva no mesmo campo epistemológico da historiografia, se inclua numa história sagrada, ao considerar o santo como objecto de um culto, porque há entre as duas formas uma permeabilidade enquanto modelos de discurso, lugares de fixação da memória e de construção simbólica do passado! Assim: se é verdade que “o devir histórico e a modificação das condições cultuais formam e alteram modelos de comportamento cujo cumprimento os textos demonstram (os textos imitam a realidade);” também é certo que “a tradição literária enquanto tal, também determina e condiciona o devir histórico: os santos imitam os santos dos textos que conhecem (a realidade imita os textos)”.18 Conclusão Condenadas, como fantasias, pela Igreja logo nas origens (objecto de um decreto gelasiano, 492-496, qual primeiro Index), as narrativas hagiográficas, Gesta Martyrum e especialmente as Passiones Sanctorum, só tardiamente e com reticências foram aceites na liturgia (séc. VIII). Com o “renascimento carolíngio”, nos séculos VIII e IX, nas frequentes ‘translationes’ de relíquias, muitas vitae foram re-escritas, (ou seja, re-interpretadas, visto que o contexto histórico tinha mudado, sendo agora rica a comparação dos dois planos de escrita).19 Os séculos IX e X foram igualmente de

17 Thomas Hefferman apud SOBRAL, Cristina. Hagiografia em Portugal, balanço e perspectivas. Revista Medievalista on line, p. 99. 18 SOBRAL, Cristina. O modelo discursivo hagiográfico. In: Colóquio da secção portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, 2005, Porto. Modelo: actas do V Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, p. 100. 19 SOT, Michel. Hagiographie. In: GOUVARD, Claude; SIRINELLI, Jean-François (dir.). Dictionnaire de l’historien. Paris, PUF, 2015, p. 326.

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A hagiografia na escrita...

criatividade hagiográfica, mas a sua idade de ouro seria nas centúrias centrais da Idade Média, como dissemos. A partir do século XVI a hagiografia conhece dois caminhos divergentes: por um lado é combatida como idolatria nos meios da Reforma protestante, vindo depois a ser severamente condenada, como literatura de superstição, pelos coriféus do Iluminismo. O século XIX romântico redescobriu-a como literatura destinada ao povo, e seguidamente entrada no folclore, “onde representaria esse fundo ‘natural’ do homem de que uma elite erudita de folcloristas e etnólogos seria agora intérprete e espécie de consciência”.20 Poderia esta via perceber o que ela tinha de fundo próprio e característico, verdadeiramente? O segundo caminho foi inaugurado no século XVII com o trabalho e selecção crítica dos bolandistas – “esses ourives da hagiografia”, no dizer de Jacques Fontaine – preocupados com a restituição dos textos, a historicidade dos relatos, a influência do e sobre o culto dos santos pelo público leitor ao longo dos séculos. No século XX os progressos da linguística, da história literária e da história das mentalidades medievais vieram a contribuir, naquela via crítica, para uma aproximação mais distante e mais científica na busca do seu significado mais profundo. Hagiografia e história? Consciente da diferença, no século XII, o historiador Orderico Vital lamentava-se de não poder ser hagiógrafo para poder narrar apenas factos edificantes! “Gostava mais de nos meus escritos falar apenas dos santos e dos seus encantadores milagres”!21 Como a ele, a Guilherme de Tiro era-lhe dramático ter de falar mal da pátria, não poder celebrar a terra natal e mostrar-se orgulhoso dos seus compatriotas,22 porque o tema do historiador é uma coisa concreta, narrar verdade é muitas vezes arriscado e, como já dissera Salústio, mesmo entre os perigos, o historiador devia sentir-se espicaçado a servir a sua terra com a pena, como outros a serviam com as armas,

20

CERTEAU, Michel de. Hagiographie. In: Encyclopédie Universalis. Paris, 1980. v. 8, p. 208. ORDERICO VITAL. Historia ecclesiastica, VIII apud LACROIX, p. 146. 22 ORDERICO VITAL. Historia ecclesiastica, VIII apud LACROIX, p. 145. 21

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arriscando a vida: “Inter tot higitur periculorum (…) urgentissimus instat amor patriae (…) si id necessitatis articulus exigat, vitam tenetur impendere”.23 Assim, se entendermos como D. Jean Leclercq, história e hagiografia como dois géneros distintos, devemos reconhecer que eles têm características comuns, mas não uniformidade, nem no estilo nem nos métodos. Quanto ao objecto, os historiadores monásticos medievais inscreviam a história particular na história geral da salvação e a finalidade última de ambas confluía.24 Ao contrário do que hoje fazemos, pois como diz H. Marrou: “a verdade da história não é a verdade da hagiografia”! Também não é a da Arte! Se, porém, entendermos hagiografia e história como dois modelos de discurso, afastado o hipercriticismo positivista, os traços comuns permitem-nos situá-las ambas no mesmo campo epistemológico.25 Com efeito, o modelo hagiográfico é mais do que mera retórica de edificação ou de transmissão de uma intenção didáctica. “Não é discurso inocente”.26 Sob um aparente conservadorismo e monotonia de lugares comuns há um dinamismo de apelo à mudança através da evocação de um passado, em parte imaginário e eivado de maravilhoso. “A narrativa quer dizer outra coisa diferente de si mesma: transmite a verdade da fé; ilustra o dogma, figura a santidade. Oferece um princípio de sentido”.27 A hagiografia que, nos séculos XI a XIII, se tornou elemento central da vida religiosa, na dimensão pastoral de acesso à prática sacramental, organizara o seu cânone cujo melhor exemplar foi a Legenda Dourada, obra de uma verdadeira ‘teologia alternativa’, mais lida e de maior influência nas massas do que as obras dogmáticas dos grandes teólogos!

23

Guilherme de Tiro. Historia rerum apud LACROIX, p. 167. Tem directa ressonância medieval o lema que os eruditos editores alemães escolheram, em 1826, para os MGH: ‘Sanctus amor patriae dat animum’! 24 Ver LECLERCQ. Dom Jean. Initiation aux auteurs monastiques du Moyen Age. L’Amour des lettres et le désir de Dieu. Paris: Editions du Cerf, 1963, p. 151. 25 Bernard Guenée refere que sendo em princípio géneros distintos, em 1338 na biblioteca da Sorbonne as hagiografias estavam agrupadas numa secção de crónicas. GUENÉE, p. 53 e 55. 26 LE GOFF, 1984, p. VII. 27 BOUREAU, p. 253.

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A hagiografia na escrita...

Os seus consumidores não eram passivos. Pedro Valdo (c.1140-c. 1220) iniciou as suas pregações depois de ter ouvido um jogral cantar a história de S. Aleixo e Inácio de Loyola (1491-1556), ligou a sua conversão à leitura de vidas de santos que lhe deram, na falta de romances da cavalaria! O seu potencial era de facto “subversivo”. Tais histórias, embora não tendo explicações lógicas em si mesmas tinham, no dizer do historiador Aviad Kleinberg, como que ‘um poder mágico que consistia em expulsar o terror, dando nomes: permitiam nomear o mundo. Se o acto criador de Deus é descrito no começo do evangelho de S. João na frase: “E o Verbo se fez carne”, a forma discursiva da história dos santos como que obedecia a um movimento de retorno e, segundo este autor, não menos criativo: “a carne se fez verbo”!28 Já o dizia José Mattoso, referindo-se à função do historiador na escrita da história: “Porque a palavra recria o mundo, elevando-o do caos ao cosmos”!29 E tudo, através desse pharmakon divino que, no Antigo Egipto, o deus Toth inventara: a escrita! Estruturas comparadas de textos históricos e textos hagiográficos medievais Estrutura de um texto histórico

Estrutura de um texto hagiográfico

Contar, narrar : ‘historia est narratio’,

Narrar, vita, legenda, etc. [objectivo:

impedir perda de ‘grandes’ feitos e

aedificare]

«grandes’

personagens;

remedium

peccati

O

herói

(personagem

mais

que

indivíduo) Obsessão das datas (ano mil, origens, genealogias)

Discurso de virtudes e milagres

Sentido relativo do espaço; espaço

Circularidade do tempo (fechado, de

cósmico!

calendário, ciclo festivo) Geografia do sagrado: predomínio das

Cuidados dos números

precisações do espaço sobre as do

28 KLEINBERG, Aviad. Histoires de saints leur rôle dans la formation de l’Occident. Paris: Gallimard, 2005, p. 357-358 (tradução do hebraico). 29 MATTOSO, José. A Escrita da história teoria e métodos. Lisboa: Estampa, 1988, p. 27.

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Estrutura de um texto histórico

Estrutura de um texto hagiográfico tempo; primado das manifestações e

Paixão da etimologia

irrupções

Funcionalidade do texto

Composição do lugar:

Apoio em autoridades; cópia, imitatio,

Viagem: ida e volta

citações imprecisas Da cidade ao deserto (exílio, prova), Importância

do

estilo;

pedem

regresso à cidade

desculpas Coincidência dos opostos ou Séc. XII: mudança estrutural [história

justaposição dos contrários

das Cruzadas: novos heróis, dúvidas das autoridades tradicionais, outro

Simbolização

público leitor, fama em vez de moral] O sentido da hagiografia é o discurso Ex.

Beda

Venerável,

Historia

B.

Guenée,

Histoire

et

Ex. ‘Havia um homem: Bento, de nome e de graça…’ (Gregório Magno, Diálogos)

Ecclesiastica Gentis Anglorum culture

historique dans l’Occident medieval,

Michel de Certeau, ‘Hagiographie’, Encyclopédie Universalis, 1980

1980; Benoît Lacroix, L’historien au Moyen Age, 1971 Tabela 1 – Elaborada pelo autor.

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  Fernão Lopes, o rei D. João I e a historiografia lusobrasileira:algumas considerações

Adriana Zierer

O

objetivo deste artigo é discutir alguns elementos da historiografia contemporânea luso-brasileira relacionados a Fernão Lopes e ao rei D. João I. Os estudos aqui tratados se referem à chamada Nova História Política, na esteira do Movimento dos Annales, e buscam relacionar História e Poder.1

1 Sobre essa discussão, importantes historiadores a serem mencionados são: Marc Bloch, com a sua obra fundamental até os dias atuais, publicada originalmente em 1924: BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; passa-se também pelo importante artigo de Jacques Le Goff: A História Política Continua a ser a Espinha Dorsal da História? In: LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 357-367. Em Portugal, é possível citar, sobre as possibilidades de relações entre o político e o simbólico: GOMES, Rita Costa. A Reflexão Antropológica na História da Realeza Medieval. Etnográfica, Portugal, v. II, n. 1, p. 133-140, 1988, p. 137-138. Ainda sobre o Movimento dos Annales e a Nova História Política, nos remetemos a ZIERER, A. M. S. Forças Diabólicas e Cristãs: confronto e poder na Crónica de D. João I. Signum, Londrina, v. 16, n. 1, p. 103-104, 2015. Outros autores lusos da Nova História Política serão discutidos ao longo deste trabalho.

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Neste sentido, é possível afirmar que, no período medieval, o poder está muitas vezes relacionado ao sagrado. Não se pretende aqui realizar um panorama completo dos trabalhos sobre o cronista nem sobre o fundador da Dinastia de Avis.2 A ideia é focalizar alguns estudos produzidos principalmente a partir dos anos 80 do século XX e que influenciaram a historiografia brasileira, bem como o papel de alguns pesquisadores e grupos de estudo brasileiros e portugueses sobre o assunto. Também buscamos mostrar que, embora seja um tema recorrente, a figura do filho natural do rei D. Pedro e o papel de Fernão Lopes na construção da imagem de D. João I na crônica a ele dedicada é ainda um tema rico e interessante para os estudos históricos da atualidade. Em primeiro lugar, faremos uma breve exposição sobre o momento histórico da ascensão do primeiro monarca avisino ao poder. D. João, nascido em 1357, era filho do rei D. Pedro com uma dama galega chamada Teresa Lourenço, da qual e de cuja família, segundo as palavras do historiador Armindo de Sousa, “não se sabe dizer nada”.3 Havia entrado para a Ordem de Avis e, por essa condição, não podia contrair matrimônio. A morte do rei D. Fernando (1367-1383), seu meio-irmão e sucessor do rei D. Pedro (1357-1367), sem herdeiros masculinos, abriu a possibilidade para que D. João pleiteasse o poder político. A sucessão tinha como possibilidades as seguintes: 1. o trono passar para a viúva, D. Leonor Teles; 2. ir para o rei de Castela, D. João, casado com a filha de D. Fernando, D. Beatriz, na época com apenas dez anos de idade; 3. ser transmitido a um dos filhos de D. Pedro e Inês de Castro, considerados ilegítimos; 4. ser ocupado pelo meio-irmão de D. Fernando, D. João, o Mestre de Avis, opção que acabou por se realizar. 2 Neste sentido, não serão discutidos trabalhos importantes, como, por exemplo: ARNAULT, Salvador Dias. A Crise Nacional dos Fins do Século XIV: I – a sucessão de D. Fernando. Coimbra: Universidade de Letras, 1959 e COELHO, António Borges. A Revolução de 1383: tentativa de caracterização. Lisboa: Portugália, 1965, entre outras obras relevantes, uma vez que o recorte deste artigo se volta a um período um pouco posterior da historiografia contemporânea, com algumas incursões pontuais a trabalhos mais antigos. 3 SOUSA, Armindo. D. João I. In: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, s/d, p. 496.

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Fernão Lopes, o rei D. João I....

Este último, com o apoio de membros da nobreza secundogênita (como o seu comandante militar, Nuno Álvares Pereira), de comerciantes e outros citadinos, além de pessoas pobres da cidade de Lisboa, conseguiu, inicialmente, ser nomeado regedor de Portugal, em 1383. Neste meio tempo, a rainha abdicou em favor de sua filha, e o rei de Castela, apoiado por boa parte da nobreza tradicional portuguesa, veio ocupar o trono.4 Seguiram-se conflitos como o cerco de Lisboa (1384) e várias batalhas. D. João obteve êxito e foi eleito rei nas Cortes de Coimbra, em 1385. Para isso contribuíram suas primeiras vitórias contra Castela nos conflitos bélicos (como em Atoleiros, em abril de 1384, e Trancoso, maio de 1385), as justificativas do jurista João das Regras sobre a não realização do casamento entre o rei D. Pedro e Inês de Castro, daí os outros pretendes ao trono serem ilegítimos, e ainda a “atitude ameaçadora” do comandante militar de D. João em favor deste último.5 A ascensão de D. João I de fato como rei foi coroada com a vitória na batalha de Aljubarrota, em agosto de 1385, contra o exército castelhano. A par de problemas econômicos e sociais, de a paz com Castela só haver sido assinada em 1411, o reino luso saiu rumo às Grandes Navegações, conquistando Ceuta em 1415 e desviando para fora do reino a atenção de nobres descontentes. A nova dinastia percebeu a importância da legitimação deste novo grupo político, e coube a Fernão Lopes – homem de origem humilde, filho de pessoas pobres, que chegou a ser guarda-mor do Torre do Tombo, uma espécie de chefe do Arquivo Geral do Estado – escrever a Crónica de D. João I entre 1440 e 1448.6 D. Duarte, em 4 A Crónica de D. João nos mostra que ainda não existia sentimento de nacionalidade em Portugal na época do Movimento de Avis, daí o fato de as linhagens tradicionais terem apoiado D. João de Castela. Até então a nobreza ibérica portuguesa se via como um grupo único, como aparece, por exemplo, na Crónica Geral de Espanha de 1344 e no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro (1340). 5 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de O. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Presença, 1986, p. 529-530. 6 Embora só tenha sido publicada em 1644, a historiografia considera ser muito provável que o seu conteúdo fosse conhecido muito antes disso. A Crónica pode ter sido lida em locais públicos das cidades, onde havia grande circulação de pessoas, como nas praças, mercados, feiras, entre outros; também pode ter sido utilizada para a educação de nobres e príncipes. O texto mostra a constante presença do vocativo e o autor parece se dirigir a um público ouvinte, além do fato de a oralidade

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

1418, encomendou a Lopes que escrevesse as crônicas de todos os reis de Portugal até os dias do cronista, garantindo-lhe uma tença anual para realizar esta atividade. Os seguintes relatos lhe são atribuídos: Crónica de D. Pedro, Crónica de D. Fernando e Crónica de D. João I, primeira e segunda partes. Além disso, teria reunido material para uma terceira parte da Crónica de D. João I, material este que foi absorvido por Zurara na Crónica da Tomada de Ceuta. Também parece ser Fernão Lopes o autor da Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal ou Crónica de 1419, que é anônima, mas considerada de sua autoria por muitos filólogos.7 O fato é que este cronista exerceu grande papel na legitimação da Dinastia de Avis, bem como na cronística portuguesa. Fernão Lopes e a legitimação política de D. João I

Um elemento interessante a ser ressaltado sobre a figura do cronista é que ele, diferentemente dos outros de seu tempo, agia com preocupação em encontrar documentos verdadeiros e buscava atestar a veracidade das fontes – ia a locais para verificar dados, conferia o nome em túmulos e consultava a documentação a que teve acesso na Torre do Tombo. Isso não quer dizer que seus escritos fossem “neutros”, uma vez que escreveu como funcionário contratado da Dinastia de Avis e com o objetivo de legitimar esta dinastia. Desta forma, segundo Ferreira, seu “discurso [...] se revelava abertamente partidário”.8 Outro aspecto interessante dos seus escritos, além da preocupação com a documentação, foi dar espaço às pessoas pobres no seu relato, o que não era feito por outros cronistas. Talvez isso esteja ligado ao fato de que ele próprio também ser bastante presente no período em questão. Desta forma, acreditamos que o conteúdo da crônica auxiliou a formação uma memória positiva sobre D. João que se prolongou no tempo. 7 LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe (org. e coord.). Dicionário de Literatura Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993, p. 186. 8 FERREIRA, Maria da Conceição. Imagens dos Reis na Cronística Medieval. In: MORENO, Humberto Baquero (coord.). História de Portugal Medievo. Lisboa: Universidade Aberta, 1995, p. 17.

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Fernão Lopes, o rei D. João I....

provinha de origem humilde, como já foi mencionado.9 Na Crónica de D. João I, particularmente, a participação popular dá vivacidade ao relato e tem grande papel na narrativa, quando ele chama de “miúdos” e “arraia-miúda” os apoiantes do Mestre de Avis, que são apresentados como os “verdadeiros portugueses”: Desta guisa que avees ouvido, se levamtarom os poboos em outros logares, seemdo gramde çisma e divisom amtre os gramdes e os pequenos./O quall, ajumtamento dos pequenos poboos, que sse estomçe assijumtava, chamavom naquell tempo arraya meuda. Os gramdes aa primeira escarneçemdo dos pequenos, chamavõ-lhe pobboo do Mexias de Lisboa, que cuidavom que os avia de rremiir da sogeiçõ delRei de Castela. 10

Estes esperavam que D. João os libertasse, de acordo com a citação, da “sujeição ao rei de Castela”. Com o intuito de afirmar a figura de D. João como rei, a crônica a ele dedicada dialoga com as escritas sobre seus predecessores, D. Pedro e D. Fernando, já buscando elementos de legitimação e de predestinação do Mestre de Avis como rei de Portugal.11 Outro elemento importante é que, em virtude de D. João ser filho natural, o cronista evita o tempo todo fazer esta afirmação e, ao contrário, diz que ele era “filho de rei”, ou ainda, “filho do rei D. Pedro”. Procura elaborar seu discurso buscando dar legitimidade a D. João. Além de ser filho do rei D. Pedro, ele teria o carisma do 9 Foi filho de um mesteiral e possuía uma sobrinha casada com um sapateiro. Mas foi nobilitado mais tarde pelo rei D. João I, em 1433. 10 FERNÃO LOPES. Crónica de D. João I. Ed. preparada por M. P. Lopes de Almeida e Magalhães Basto. Lisboa: Livraria Civilização, 1990, v. I, p. 86. (grifos nossos). Dorante será citada com a abreviação: CDJ. 11 A crônica dedicada a D. João dialoga com outras obras do cronista, como a Crónica de D. Pedro. Neste último relato, Lopes procura argumentar que o casamento do monarca com Inês de Castro nunca se efetivou, o que diminuiria as chances de que os filhos dessa união pleiteassem o trono após a morte de D. Fernando. ZIERER, A. M. S. Forças Diabólicas e Cristãs: confronto e poder na Crónica de D. João I. Signum, p. 108. Além disso, nessa mesma crônica é mencionado um sonho do rei D. Pedro com um filho seu, João, que apagaria um imenso fogo, o que pode estar associado ao fato de que o Mestre de Avis livraria Portugal da invasão castelhana. FERNÃO LOPES. Crónica do Rei Dom Pedro I. Porto: Liv. Civilização, 1977, p. 196.

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poder (segundo Lopes, seria apoiado pelo povo, os humildes, o que, segundo o relato, representava o apoio popular e um nascente “sentimento de nacionalidade”). De acordo com o cronista, os que apoiavam D. João eram os “verdadeiros portugueses”, ou a mansa oliveira portuguesa, em oposição aos “enxertos tortos” dessa árvore, cujo fruto dava “amargo licor”, representados pelos “maus portugueses”, em especial, a nobreza tradicional, que apoiava o rei de Castela no trono português.12 Ao comparar os dois grupos, Fernão Lopes considera os partidários do Mestre de Avis “mártires” a lutar para “defender o reino contra os mortais inimigos”, os castelhanos, os quais, conforme o cronista, eram “induzidos pelo espírito de Satanás”, adoravam “ídolos”, além de serem apoiados pelos “falsos portugueses”.13 Outro aspecto primordial para que D. João fosse o rei seria a escolha divina, o que está diretamente associado ao messianismo. Neste sentido, é apresentado pelo cronista como salvador de Portugal contra o domínio estrangeiro (representado pelo rei de Castela). O que provava a vontade divina na crônica são principalmente os milagres que ocorrem durante a narrativa, como o cerco de Lisboa, no qual apareceram anjos,14 houve chuva de cera,15 castelhanos eram infectados pela peste, mas esta não atingia os portugueses,16 entre outros elementos. Além disso, de acordo com Lopes, D. João tinha analogias com Cristo e era o “messias de Lisboa”. Ele e seu comandante militar, Nuno Álvares Pereira, conduziriam o povo ao Evangelho Português, que consistia em seguir o “verdadeiro” papa, o de Roma, enquanto que o rei de Castela seguia o papa de Avignon. Este era o momento do Cisma do Ocidente, quando a Cristandade chegou, em alguns momentos, a ter três papas. Além disso, o rei e D. Nuno, de

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CDJ, I, p. 343-344. CDJ, I, p. 343. 14 CDJ, I, p. 213. 15 CDJ, I, p. 213. 16 CDJ, I, p. 311. 13

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acordo com a Crónica, levariam a sociedade lusa à Sétima Idade, período de abundância e justiça iniciado com a Dinastia de Avis. Outro milagre importante seria, antes da eleição de D. João como monarca nas Cortes de Coimbra, a sua aclamação por crianças e depois disso por um bebê de sete meses, que bradou: “Portugal, Portugal, pelo Mestre de Avis!”17 Dentre todos os milagres, porém, o mais importante teria sido a vitória na Batalha de Aljubarrota, em que os portugueses foram vitoriosos apesar de um exército menor.18 De acordo com Maria Helena Coelho, representa na narrativa uma espécie de ordálio e a consagração da nova dinastia.19 As ações de D. João são reforçadas pelos discursos de dois franciscanos no relato do cronista, frei Rodrigo de Cintra e frei Pedro. Ambos explicam os milagres, comparam com eventos bíblicos e mostram o apoio de Deus a D. João e à causa portuguesa. Já os representantes do Anticristo são todos aqueles contrários à ascensão de D. João ao poder, como o rei de Castela, a rainha D. Leonor e a nobreza tradicional portuguesa, partidária do rei estrangeiro. A eles se opõem os modelos ideais de cristãos, D. João – como rei – e D. Nuno – como nobre – que, apoiados pelo povo português, segundo Lopes, conseguem a vitória abençoada por Deus, em Aljubarrota. Estudos sobre D. João I e Fernão Lopes no Brasil e em Portugal

O Scriptorium - Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos da UFF, um dos mais importantes e antigos laboratórios sobre o medievo atuando no Brasil, apresenta uma significativa produção relacionada à Dinastia de Avis e em especial sobre o fundador da Dinastia. Vânia Leite Fróes apresentou estudos pioneiros sobre a 17

CDJ, II, p. 125. Sobre a técnica do quadrado a pé utilizada por D. Nuno e sua estratégia guerreira ver OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Portugal na crise dos séculos XIV e XV, p. 530-531; COELHO, Maria Helena. D. João I: o que re-colheu Boa Memória. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 107-112. 19 COELHO, Maria Helena. D. João I, p. 336. 18

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questão do discurso do paço,20 elaborado por essa dinastia, que possibilitou a ascensão de D. João I ao poder. Este discurso era baseado no seguinte tripé: povo, sentimento de nacionalidade e rei. Pregava determinados modos de comportamento para a nobreza e monarquia, e foram compostos vários escritos que visavam a fortalecer o novo grupo político reinante. Dentre os trabalhos do Laboratório, Paulo Accorsi Jr. abordou a Crónica de D. João I e o Leal Conselheiro na construção do Discurso do Paço.21 O autor discutiu especialmente a dicotomia na Crónica de D. João I entre os “enxertos tortos” versus a “mansa oliveira portuguesa”, no sentido da construção do modelo de nobre ideal que auxiliaria a governança da nova dinastia, ligado ao sentimento de nacionalidade. Roberto Fabri Ferreira analisou a utilização do messianismo pela Dinastia de Avis na elaboração da imagem do primeiro monarca português, Afonso Henriques,22 e também a criação de uma nova temporalidade a partir do Movimento de Avis.23 Neste sentido, opõe o novo ao velho nobre, sendo o novo identificado com essa dinastia, e também D. João I e Afonso Henriques, associados a este “novo”. Sobre o papel feminino desempenhado pelas rainhas de Portugal, Miriam Coser opõe o modelo ideal, D. Filipa – esposa de D. João I, a qual possui, conforme os relatos cronísticos, uma série de atributos marianos –, a D. Leonor, consorte de D. Fernando, que

20 FROÉS, Vânia Leite. Espaço e Imaginário em Gil Vicente. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo. São Paulo, 1986. Cf. também: FROÉS, Vânia Leite. Teatro como Missão e Espaço de Encontro de Culturas. In: MISSIONAÇÃO PORTUGUESA E ENCONTRO ENTRE CULTURAS, v. 3, 1993, Braga. Actas. Igreja, Sociedade e Missionação. Braga: Fundação Evangelização e Cultura,1993, p. 180-202. 21 ACCORSI JR., Paulo. Do Azambujeiro Bravo à Mansa Oliveira Portuguesa: A Prosa Civilizadora da Corte do Rei D. Duarte (1412-1438). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1997. 22 FERREIRA, Roberto Fabri. O Papel do Maravilhoso na Construção da Identidade Nacional Portuguesa: Análise do Mito Afonsino (séculos XIII-XV). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1997. 23 FERREIRA, Roberto Godofredo Fabri. O tempo novo e a origem dos novos tempos a construção do tempo e da temporalidade nos primórdios da Dinastia de Avis (1370 a 1440). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2003.

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pretendia ocupar o poder depois da morte do marido.24 Esta última foi vinculada nas crônicas à figura de Eva e representava o contramodelo feminino régio. No caso desta pesquisa, buscamos analisar no Doutorado a ascensão de D. João I ao poder, ligada ao sentimento religioso do final da Idade Média e à incorporação de ideias milenaristas sobre a vinda do Messias no discurso de Fernão Lopes, numa conjuntura marcada pelo medo do fim do mundo, em virtude da Peste Negra, e o temor da morte. Neste sentido é que abordamos a dicotomia entre o Messias de Lisboa, D. João, e seu opositor, D. João de Castela, apresentado por Fernão Lopes como o Anticristo.25 Os termos Anticristo e Messias são explicitamente citados na crônica, respectivamente nos capítulos 63 e 123 da primeira parte. Sobre a vinda do Antagonista de Deus representado pelo rei de Castela: [...] bem sabees como este rreino por nossos pecados he ora deviso em duas partes, de guisa que a viimda do Amtechristo, nom podia em ell fazer moor devisom do que ora esta terra esta; ca os Castellaãos som todos comtra Portugall, e a moor parte dos Portugueses segumdo bem vedes.26

Assim, Fernão Lopes equipara a luta entre o Mestre de Avis e seus opositores como um conflito divino, e todos aqueles que eram contra ele como do lado do Anticristo. Analisamos narrativas literárias que circularam no período relacionadas ao modelo de rei (como A Demanda do Santo Graal) e os locais do Além-Túmulo (como a viagem imaginária Visão de Túndalo), relatos estes que circularam na Baixa Idade Média e nos auxiliam a compreender o imaginário religioso português. Na esteira destes trabalhos muitos 24 COSER, Miriam Cabral. Política e Gênero: o modelo de rainha nas crônicas de Fernão Lopes e Zurara (Portugal - sec XV). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2003. 25 ZIERER, Adriana M. de S. Paraíso, Escatologia e Messianismo em Portugal à época de D. João I (138385/1433). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004. 26 CDJ, I, cap. CXXIII, p. 240.

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outros foram e são desenvolvidos no Scriptorium, sob a orientação da docente Vânia Fróes, sobre a família real avisina, a diplomacia no tempo da Dinastia de Avis, entre outros.27 Outros laboratórios de pesquisa no Brasil desenvolvem pesquisas relacionadas ao estabelecimento da Dinastia de Avis no poder monárquico. É o caso do Nemed – Núcleo de Estudos Mediterrânicos, da Universidade Federal do Paraná, coordenado por Fátima Regina Fernandes. Originário deste grupo de estudos é, por exemplo, o trabalho de Marcella Lopes Guimarães, que dialoga com as três crônicas de Fernão Lopes (de D. Pedro, D. Fernando e D. João) e com documentação produzida em Castela no final da Idade Média, em especial as crônicas escritas por Pero Lopez de Ayala.28 Um trabalho que também faz um diálogo interessante com as três crônicas, preocupando-se com a sua circulação em Portugal, é o de Ana Carolina Delgado Vieira, desenvolvido junto ao GEMPO – Grupo de Estudos Medievais Portugueses, laboratório coordenado pelo professor Carlos Roberto Nogueira, da Universidade de São Paulo.29 Há outros laboratórios no Brasil em contato com Portugal dedicados aos estudos sobre a Dinastia de Avis, como é o caso da Rede Luso-Brasileira de Estudos Medievais, uma colaboração entre pesquisadores brasileiros e lusos, criada em 2012. Destacamos ainda o Grupo Luso-Brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno, fundado por iniciativa das docentes Manuela Mendonça (Universidade de Lisboa/Academia Portuguesa de História) e Maria Eurydice de Barros Ribeiro (Universidade de Brasília), que completou 10 anos de existência em 2016, por ocasião do XI Encontro Luso-Brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno, com o tema A Escrita da História nos dois lados do Atlântico, 27 Dentre alguns trabalhos desenvolvidos junto ao Scriptorium e concluídos no primeiro semestre de 2016, citamos as teses de: LIMA, Douglas M. X. A diplomacia portuguesa no reinado de D. Afonso V (1448-1481). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2016; TREVISAN, Mariana B. A primeira geração de Avis: uma família 'exemplar'. Tese (Doutorado em História): Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2016. 28 GUIMARÃES, Marcella Lopes. Estudo das Representações de Monarca nas Crônicas de Fernão Lopes (séculos XIV e XV). O Espelho do Rei: “Decifra-me e te devoro”. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2004. 29 VIEIRA, Ana Carolina Delgado. “Como he doçe cousa reinar”: a construção de uma dinastia sob a ótica de Fernão Lopes. Dissertação. (Mestrado em História). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011.

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coordenado pela fundadora brasileira e realizado na Universidade de Brasília (UnB). O Grupo Luso-Brasileiro congrega docentes brasileiros e portugueses, realiza eventos anuais, ora em Portugal, ora no Brasil, e publicações constantes, em que se debatem vários assuntos do Portugal Medievo e outros períodos, o que auxilia novas reflexões historiográficas. Ainda outros docentes que se dedicaram a D. João I e Fernão Lopes devem ser citados e influenciaram nossa produção. Maria do Amparo Maleval analisou a retórica utilizada por Fernão Lopes para compor o relato sobre D. João I, inspirando-se em autores da Antiguidade Clássica,30 os quais valorizavam a arte da palavra e do convencimento. De acordo com a autora, ao fazer a apologia do fidalgo na figura de Nuno Álvares Pereira, o cronista valorizaria virtudes como a coragem, lealdade, bondade, religiosidade e fé e, enfim, a Justiça que, de acordo com Aristóteles, contém em si todas as outras virtudes.31 Além disso, Lopes adotou elementos da persuasão da literatura clássica, não somente inspirado por Aristóteles, mas também por outros autores, como Cícero. Susani França voltou-se para a preocupação com a escrita, desde a Dinastia de Avis, com vistas a elaborar um discurso direcionado a ressaltar as virtudes dessa prática e ações para aumentar a produção de livros, vistos como essenciais à correta instrução dos dirigentes. Neste sentido analisou as crônicas de Lopes e os escritos de seus filhos, como D. Duarte e D. Pedro.32 Outros trabalhos importantes também têm sido produzidos, mas nos referimos principalmente aos que estão relacionados aos nossos estudos. Com relação à historiografia lusa, ela é essencial para embasar as pesquisas realizadas no Brasil, em virtude da maior proximidade dos portugueses com os arquivos e bibliografia especializada nas temáticas desenvolvidas. Assim, a historiografia brasileira busca dialogar com os colegas lusos.

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MALEVAL, Maria do Amparo T. Fernão Lopes e a Retórica Medieval. Niterói: Eduff, 2010. MALEVAL, Maria do Amparo T. Fernão Lopes e a Retórica Medieval, p. 133. 32 FRANÇA, Susani L. Os Reinos dos Cronistas Medievais. Século XV. São Paulo: Annablume, 2006. 31

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Uma importante investigação sobre Fernão Lopes, produzida nas últimas décadas do século XX, é a de Luís de Sousa Rebelo, na qual o autor trabalhou com a questão do messianismo ligado a D. João I e explica elementos como o carisma do poder, desenvolvido por Fernão Lopes acerca do primeiro monarca avisino.33 O autor explica que o cronista se baseou em pensadores, como João de Salisbury, ao mostrar que o carisma do poder (apoio popular a um governante) foi utilizado por Lopes para suprir a falta do carisma do sangue de D. João, em virtude da bastardia. Rebelo também analisou os elementos do Messias de Lisboa e a construção de uma nova temporalidade feita pelo cronista. Enquanto para a maior parte dos autores medievais, como Beda, o mundo, dividido em seis idades, entraria em decadência na sexta, a “idade decrépita”, anunciando-se logo a seguir o Juízo Final, para Lopes haveria ainda a Sétima Idade, período de felicidade na Terra após o estabelecimento da Dinastia de Avis no poder, e o Juízo Final ocorreria em data incerta.34 O autor também estuda a predestinação de D. João e sua relação com um religioso de origem castelhana, frei da Barroca, que vem a Portugal, fica emparedado e anuncia que D. João e seus descendentes seriam os reis de Portugal, agindo, segundo Rebelo, como uma espécie de profeta anunciador do messias português. Outro nome importante nos estudos relacionados ao messianismo e à figura de D. João I é Margarida Garcez Ventura.35 A autora analisa o aspecto simbólico deste rei, conhecido como o messias de Lisboa, e a influência dos franciscanos para dar legitimidade ao discurso do cronista Fernão Lopes. Ambos os estudos, de Rebelo e Garcez Ventura, foram importantes para nossas considerações acerca do messianismo relacionado a D. João, desenvolvidas em nossas pesquisas junto ao Scriptorium. Neste sentido, acreditamos que D. João é apresentado por Lopes inspirado pelas ideias milenaristas que circularam na 33

REBELO, Luís de Sousa. A Concepção do Poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983. REBELO, Luís de Sousa. A Concepção do Poder em Fernão Lopes, p. 61-71. 35 VENTURA, Margarida Garcez. O Messias de Lisboa. Um Estudo de Mitologia Política (13831415). Lisboa: Cosmos, 1992. 34

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sociedade portuguesa do final da Idade Média, como uma espécie de Imperador dos Últimos Dias, que vem trazer um novo período de felicidade na Terra. A primeira vinda do Anticristo pode ser interpretada como o cerco imposto a Lisboa em 1384. Já a segunda vinda teria ocorrido quando, na visão de Lopes, os castelhanos são desbaratados na Batalha de Aljubarrota, mesmo com um exército maior, o que indicaria o apoio divino ao eleito, D. João. Estudos derivados desta investigação começaram a ser desenvolvidos no Maranhão, junto ao Mnemosyne – Laboratório de História Antiga e Medieval –, inicialmente pelos nossos alunos de iniciação científica.36 As figuras de D. João I e seu comandante militar como modelos ideais e elementos-chave para o Movimento de Avis foram analisadas de forma instigante por Teresa Amado.37 A autora mostra que, embora louvando o povo, apresentado como um protagonista importante por ter escolhido o Mestre de Avis como governante e salvador de Portugal, os grandes heróis que decidem os destinos do reino são D. João e D. Nuno. A respeito, mostra a influência da Crónica do Condestabre, relato anônimo sobre este último, na escrita de Lopes e as características de cada um desses protagonistas.38 Enquanto D. João é apresentado na Crónica de D. João I com falhas humanas, com indecisão num primeiro momento ao pensar em se retirar de Portugal por ocasião da morte de D. Fernando, D. Nuno seria mais ativo e ousado. No entanto, as ações do monarca seriam mais ponderadas, fazendo com que ambos se complementassem na narrativa. Outro elemento analisado pela 36 Como exemplo dessas pesquisas, citamos ZIERER, A. M. S.; RIBEIRO, Josena N. L. Messianismo, Escatologia e Pedagogia Cristã na Crônica de D. João I, de Fernão Lopes. Imagens da Educação, Maringá, v. 3, p. 31-44, 2013; RIBEIRO, J. Messianismo e Poder no Reinado de D. João I, de Portugal. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação em História). Universidade Estadual do Maranhão. São Luís, 2014. Esta última desenvolveu estudos no Mestrado junto à docente Miriam Coser, na Universidade do Rio de Janeiro (UniRio), com o trabalho “Voz por Portugall”: construções de tempo e espaço na Crônica de D. João I, de Fernão Lopes (1383-1434). Dissertação (Mestrado em História) – UniRio, Rio de Janeiro, 2017. 37 AMADO, Teresa. Fernão Lopes, contador de História: sobre a Crónica de D. João I. Lisboa: Estampa, 1991. 38 Ainda sobre o heroísmo na Crónica de D. João I, há o estudo de PASSOS, Mária Lúcia. O Herói na Crónica de D. João I de Fernão Lopes. Lisboa: Prelo, 1974.

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autora é a personificação da cidade de Lisboa no relato do cronista. A cidade é “viúva de rei” e D. João é seu senhor e esposo. Amado mostra o papel não só dos dois heróis, como também de Lisboa personificada e seu apoio à eleição de D. João como o eleito para governar Portugal. Importante sobre as categoriais sociais que aparecem nas crônicas de Lopes é o estudo de Maria Angela Beirante.39 João Gouveia Monteiro também analisou a Crónica de D. João I e o momento de ascensão de D. João I ao poder.40 Mais recentemente, o autor tem se dedicado ao estudo da guerra ligada a D. João I, como, por exemplo, as batalhas enfrentadas por este rei contra Castela.41 Para uma visão mais geral sobre o momento histórico do início da nova dinastia, importantes estudos são os de A. H. de Oliveira Marques, que nos auxiliam a compreender o contexto e a sociedade portuguesa no período da Baixa Idade Média.42 Outro autor a ser mencionado sobre as contestações de grupos sociais no final da Idade Média é Humberto Baquero Moreno.43 Dentre as biografias, um importante trabalho foi publicado na Coleção Reis de Portugal, dirigida por Rodrigo Carneiro e editada pela Temas e Debates/Círculo de Leitores. Trata-se de uma biografia densa sobre o fundador da Dinastia de Avis elaborada pela professora Maria Helena Coelho.44 A autora faz um relato abrangente sobre D. João I, analisa aspectos políticos, propagandísticos, guerreiros e mesmo simbólicos acerca de seu governo, como a elaboração de uma memória pétrea da nova dinastia a partir do panteão construído no mosteiro da Batalha, erigido em 39 BEIRANTE, Maria Ângela. As Estruturas Sociais em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1984. 40 MONTEIRO, João Gouveia. Fernão Lopes. Texto e Contexto. Coimbra: Minerva, 1988. 41 MONTEIRO, João Gouveia. A guerra em Portugal nos finais da Idade Média. Lisboa: Notícias, 1998; MONTEIRO, João Gouveia (coord.). Aljubarrota Revisitada. Lisboa: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2001. 42 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de O. Portugal na crise dos séculos XIV e XV; MARQUES, A. H. de. A Sociedade Medieval Portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1981. 43 MORENO, Humberto Baquero. Exilados, Marginais e Contestatários na Sociedade Portuguesa Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1990. 44 COELHO, Maria Helena. D. João I. Foi publicada inicialmente em 2005, mas a edição que consultamos é de 2008.

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memória da Batalha de Aljubarrota e inaugurado com o túmulo de D. Filipa, consorte desse soberano. A obra é essencial a quem quer se dedicar aos estudos do fundador da Dinastia de Avis, bem como tem reconhecimento no meio historiográfico. Segundo Armando Luís de Carvalho Homem, a biografia de D. João I redigida por Coelho é um dos livros de destaque da coleção e uma “visão completa do rei e do período que ambos já mereciam”.45 Sobre as rainhas, também foi publicada uma importante coleção, Rainhas de Portugal,46 cujo volume dedicado a D. Filipa ficou a cargo da historiadora Manuela Santos Silva,47 e o de D. Leonor foi escrito por Isabel de Pina Baleiras.48 Outros relevantes trabalhos relacionados a D. João e à Dinastia de Avis têm chamado a nossa atenção. É o caso das investigações de Garcez Ventura sobre a figura de D. Duarte, filho e sucessor de D. João I,49 bem como a simbologia acerca do comandante militar do rei, D. Nuno, que a dinastia buscou sacralizar desde a morte deste,50 figura também valorizada nos tempos do Estado Novo Português.51 D. Nuno foi efetivamente canonizado em 2009, como São Nuno de Santa Maria, o que mostra as amplas possibilidades de relacionarmos a História entre o passado e o presente. Cabe refletir um pouco sobre a figura de D. João I, tecida por Fernão Lopes, e sua influência sobre a historiografia lusa. Em seu 45 HOMEM, Armando Luís de C. Central Power: Institutional and Political History in the thirteeth-fifteenth centuries. In: MATTOSO, José. (Dir.). The Historiography of Medieval Portugal, c. 1950-2010. Lisboa: IEM (Instituto de Estudos Medievais), 2011, p. 205. (grifo nosso). 46 Coleção com 28 volumes, coordenada pelas professoras Isabel dos Guimarães Sá, Manuela Santos Silva e Ana Maria S.A. Rodrigues. 47 SILVA, Manuela Santos. Filipa de Lencastre: A Rainha Inglesa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2012. 48 BALEIRAS, Isabel de Pina. Uma Rainha Inesperada: Leonor Teles. Lisboa: Círculo de Leitores, 2012. 49 VENTURA, Margarida Garcez. A Corte de D. Duarte: Política, Cultura, Afetos. Aveleda, Vila do Conde: Verso da História, 2013. 50 VENTURA, Margarida Garcez. Uma Lâmpada de Prata e Muito Mais. Testemunhos de D. Duarte sobre a Santidade de Nuno Álvares Pereira. Revista Portuguesa de História do Livro, Lisboa, Ano XIV, v. 27, p. 243-271, 2011. 51 MARTINHO, Francisco Carlos P. O Pensamento Autoritário no Estado Novo Português: algumas interpretações. Locus: revista de História, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 9-30, 2007, p. 14-15.

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verbete sobre D. João I, contido no Dicionário de História de Portugal, Oliveira Marques (1933-2007) apresenta algumas características físicas e psicológicas do monarca, de acordo com os documentos. Com relação às características físicas, estão baseadas em duas representações de D. João, o retrato chamado de Viena da Áustria e a estátua do rei existente no mosteiro da Batalha. Com base nelas, Oliveira Marques afirma que o primeiro rei avisino era de estatura média, entroncado e com tendência à obesidade (de acordo com a moda do tempo, segundo o autor), com lábios carnudos bem desenhados, olhos papudos e nariz corpulento.52 Quanto aos traços psicológicos, Oliveira Marques afirma têlos encontrado principalmente nas obras de Fernão Lopes, especialmente em relação à sua pusilanimidade, nos fatos que mostram sua indecisão quanto à morte do Conde Andeiro, isto é, se efetivaria ou não tal ação, e o desejo de fugir de Portugal por medo das perseguições do grupo de D. Leonor. Outras características seriam a habilidade política, mencionada, por exemplo, pelo fato de dar grandes terras a seus colaboradores, como D. Nuno, e depois retirar essas terras quando o poder do nobre tendeu a ameaçar o seu. D. João também teria como atributo a prudência, característica que o oporia a D. Nuno, este último, mais afoito nas coisas da guerra, enquanto D. João era mais prudente e comedido, aspectos do ofício da realeza. Outro atributo que vimos amplamente reforçado na Crónica de D. João I é a piedade, pois ele mandou construir o mosteiro da Batalha e deixou legados pios.53 Sobre a personalidade de D. João, Marques afirma que o rei tinha acessos de cólera com crises de violência, não gostava de ser contrariado nem pelos filhos e exerceu excessos e autoridade.54 Em seu retrato de D. João I, o mesmo autor oscila entre a crítica e o elogio. Critica o monarca quando diz que D. João foi: 52 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal, p. 385. 53 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal, p. 386. 54 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal.

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Rei de Portugal. Mas rei de Portugal talvez menos por mérito seu do que por um conjunto de circunstâncias favoráveis e pelo apoio de homens de coragem e de valor, como Nun’Álvares ou João das Regras.55

Em outro verbete do Dicionário de História de Portugal sobre o cronista Fernão Lopes, Marques faz a importante afirmativa de que os estudiosos não deveriam considerar o monarca segundo a visão da crônica, como faziam muitos historiadores portugueses.56 No entanto, mais adiante o medievalista rende-se ao rei da ‘Boa Memória’ e afirma que ele “de todos os monarcas medievais foi sem dúvida [...] o mais culto e o mais apto para gerir a república”.57 A cultura louvada do monarca deve-se ao fato de este ser o autor de um manual de caça, o Livro da Montaria, composto após o ano de 1415. Assim, pelo retrato de um pesquisador dos nossos dias († 2007) sobre D. João, é possível observar que o monarca exerce fascínio sobre os historiadores portugueses até hoje, os quais alimentam e propagam sua Boa Memória. Em sua importante obra Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, este historiador não consegue esconder a admiração pelo soberano: A popularidade do monarca ajudou, sem dúvida alguma, a superar muita coisa. D. João I era benquisto e deixou de si ‘Boa Memória’. Cercou-se de ministros e conselheiros competentes e hábeis. Chefiou uma família real que passou à História como família-modelo e que, mau grado todos os exageros dos cronistas, soube fazer-se respeitar e amar. Austeros, piedosos e destemidos, o Rei, a Rainha, os infantes, o Condestável e vários outros davam exemplo de moralidade e de protecção divina que se julgavam 55 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal, p. 384. 56 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Fernão Lopes. In: Dicionário de História de Portugal, p. 58. 57 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. D. João I. In: Dicionário de História de Portugal, p. 386. (grifo nosso).

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os melhores remédios quanto a adversidade dos tempos.58

A opinião de historiadores portugueses mais antigos, como Damião Peres (1889-1976), por exemplo, segue a visão de D. João que lhe apresentam os relatos cronísticos. Assim, em História de Portugal, coleção com vários volumes produzidos entre 1928 e 1954, o autor reproduz as opiniões de Rui de Pina ao falar do monarca, o qual – segundo o cronista – morreu em 1433, “com mui claros sinais de salvação de sua alma”. Segundo Peres, reproduzindo o cronista Rui de Pina: [...] era o dia quatorze de agosto de 1433, dia de júbilo e de tristeza. Completavam-se justamente quarenta e oito anos, que fora, ao cair da tarde, a inolvidável vitória de Ajulbarrota; e em dia de tam grata recordação agonizava e morria aquele grande português, que nesse entardecer já longínquo imorredouramente se cobrira de glória!”59

Estudiosos de literatura e da historiografia atual são influenciados pelos escritos de Lopes sobre a imagem de D. João. De acordo com Saraiva (1917-1993), sobre a relevância desse cronista: Deve-se notar que quase tudo o que sabemos sobre a chamada revolução de 1383-1385 o sabemos por Fernão Lopes, pois dela nos ficaram poucos documentos ‘autênticos’. Foi Fernão Lopes quem lhe deu o caráter de cataclismo social, o carácter ‘revolucionário’ que seduz os historiadores modernos.60

Além dessa concepção de Saraiva, importante estudioso da área de Literatura, outros historiadores contemporâneos também

58 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Ibid., p. 538. (grifos nossos). 59 PERES, Damião. História de Portugal. Porto: Portucalense, 1929. v. 3, p. 27. 60 SARAIVA, António José. O Crepúsculo da Idade Média Em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1988, p. 178. (grifo nosso).

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parecem compartilhar com ele de uma concepção favorável sobre D. João I. Quanto a Maria Helena Coelho, em sua biografia já citada sobre D. João I, ela termina o livro com um saldo que também parece positivo desse governante: “Rei da Boa Fortuna, de Boa Memória, Pai dos Portugueses, será a memória luminosa que, ultrapassando negros ou sombras, colheu em vida, e re-colheu para além do seu tempo, o rei que mais longamente se sentou em um trono em Portugal”.61 Porém, embora seja lembrado como o rei da Boa Memória, o período do governo de D. João foi dos mais difíceis para a população: guerra prolongada contra Castela, impostos, inflação. No seu governo as críticas contra os abusos dos poderosos continuaram. Além disso, lançou um novo imposto para custear a guerra, que antes era temporário, mas passou a ser definitivo, as sisas. Um dos autores com olhar mais crítico sobre o reinado do iniciador da dinastia de Avis foi Armindo de Sousa (1941-1998), que afirmou o seguinte: D. João I vai ficar na história como o rei da Boa Memória. Só por razões de propaganda dinástica ou por motivos patriótico-políticos isso pôde ter sucedido. É certo que essas razões e esses motivos contagiaram os povos, pois o recordam em 1451, 18 anos depois de falecido, como ‘pai dos portugueses’. A verdade, porém, é que no seu governo a vida dos portugueses não foi fácil./ Até 1411 andou-se praticamente em guerra; a inflação monetária atingiu níveis nunca antes igualados em nenhum governo até hoje; as tradicionais queixas do povo contra os privilegiados persistiram, tendo mesmo recrudescido, conforme se lê nos textos parlamentares; os impostos extraordinários, os ‘pedidos’, não se tornaram crónicos como até foram lançados à revelia das cortes e por finalidades diferentes da defesa nacional, e finalmente, coisa extremamente censurada e qualificada de roubo, as ‘sisas’, imposto indirecto municipal, só em situações muito graves

61

COELHO, Maria Helena. D. João I, p. 395. (grifo nosso).

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concedidas a reinantes, foram apropriadas como se se tratasse de direitos reais. De modo que é grandemente equívoca a ‘boa memória’ desse rei que a tem como cognome.62

Portanto, fica claro pela explicação deste historiador português que nem tudo foi bem no governo joanino, pelo contrário. Por isso, houve toda uma construção por parte da dinastia de Avis para que, pelas crônicas e outros documentos, o bastardo D. João fosse transformado numa figura modelar, cuja justificativa para ser o rei era a escolha divina, daí o messianismo ser o principal traço da Crónica de D. João I. É importante refletirmos como a Crónica referente a este monarca serviu para que fosse elaborada sobre D. João a imagem de que ele foi o Rei da Boa Memória. Como vimos, este manuscrito, embora não tenha sido o único documento produzido com esta função, tem um grande papel sobre a propagação de uma memória positiva sobre D. João, além de a construção do Panteão em Batalha e do início das Grandes Navegações ocorrerem em seu reinado, o que projetou Portugal para logo depois se tornar uma grande potência marítima e comercial. Esses fatores contribuíram para um saldo positivo do seu reinado, na visão dos então contemporâneos e das gerações que vieram logo a seguir. Temos, ao mesmo tempo, duas imagens sobre D. João. A primeira, positiva, com base no imaginário político, na qual a ação de Fernão Lopes foi bastante importante na fixação dos feitos do primeiro monarca avisino. A segunda, baseada na realidade social a partir dos dados que hoje conhecemos sobre seu governo, mostra que, na prática, a promessa de Lopes sobre os “novos tempos” para os humildes e de mais equidade social não veio, ou melhor, foi protelada somente para a outra vida, depois da morte. Apesar disso, a conclusão sobre a construção da imagem tecida por Fernão Lopes acerca de D. João é a seguinte: ainda que hoje em dia outros documentos além da crônica sejam consultados pelos historiadores – tais como chancelarias, cortes, cartas, 62 SOUZA, Armindo de. D. João I. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. v. II, p. 497498. (grifos nossos).

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legislações, tratados, entre outros –, a visão elaborada pelo cronista teve importância não somente no passado, mas no presente, contribuindo nas concepções sobre D. João I atualmente. O historiador do século XV teve papel fundamental nesse processo, e sua tarefa resultou vitoriosa na elaboração de D. João I como bom rei, cujos feitos devem continuar a ser lembrados, daí a permanência da sua “boa memória” na contemporaneidade.63 Considerações Finais

Buscamos neste artigo mostrar um percurso acerca de alguns estudos sobre Fernão Lopes e o rei D. João I, enfatizando o diálogo entre a historiografia brasileira e a lusa. Acreditamos que esse tema é instigante e pode ter muitas continuidades. Neste sentido, com a publicação das Chancelarias de D. João I, há nova documentação a ser analisada, que permite ampliar os estudos sobre o assunto. Outra possibilidade é analisar a chamada “memória pétrea” erigida no mosteiro da Batalha, já apontada por Maria Helena Coelho.64 Outras pesquisas possíveis são o aprofundamento nos livros escritos por D. João e seus filhos no sentido de formar o nobre e o rei ideal, segundo o olhar da Dinastia de Avis: o Livro de Montaria, de D. João I; o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, o Livro dos Conselhos de el-rei D. Duarte (Livro da Cartuxa) e o Leal Conselheiro, redigidos por D. Duarte, e o Livro da Virtuosa Benfeitoria, de D. Pedro.65 Além desses, uma vertente seria o estudo das crônicas relacionadas a D. João I e D. Duarte sobre diversos aspectos, como o modelo de rei, de nobre, a expansão portuguesa, a 63 ZIERER, A. M. S. Fernão Lopes e seu Papel na Construção da Imagem de D. João I, o rei da Boa Memória. Opsis, Catalão, (UFG), v. 12, n. 1, jan./jun 2012, p. 291. 64 COELHO, M. H. D. João I, p. 354. Ver também: MELO, Joana Ramôa; SILVA, José Custódio Vieira da. O Retrato de D. João I no Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Um novo paradigma de representação. Revista de História da Arte, Lisboa, n. 5, p. 77-95, 2008. 65 Sobre essas obras ver: MONGELLI, Lênia Márcia (coord.). A Literatura Doutrinária na Corte de Avis. Int. de A. H. de Oliveira Marques. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Membros do Scriptorium já desenvolveram alguns trabalhos sobre esses escritos, mas acreditamos que podem ser retomados e aprofundados, vinculados com os modelos de rei e nobreza ideal e comparados com as crônicas de Lopes e com outras obras, gerando novas investigações.

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simbologia religiosa, o que possibilita novas interpretações sobre a Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara, e a Crónica de D. Duarte, de Rui de Pina. A figura de D. Nuno como modelo de nobre cristão ideal também pode ser aprofundada nas Crónica do Condestabre e Crónica de D. João I, e os esforços para a santificação de D. Nuno desde a Dinastia de Avis podem seguir caminhos, por exemplo, da Chronica dos Carmelitas, do frei José Pereira de Sant’Anna (século XVIII), apontados por Margarida Garcez Ventura.66 Sobre a questão do messianismo ligado à Dinastia de Avis, um exemplo é analisar o Livro dos Arautos, em que aparece pela primeira vez a figura de Cristo crucificado diante de Afonso Henriques, além da Crónica de 1419 sobre este rei e também a Crónica de Afonso Henriques, de Duarte Galvão. Os aspectos messiânicos de Afonso I nessas obras podem ser problematizados e cotejados com outros reis, como D. João I e D. Sebastião. Embora alguns estudos já tenham sido feitos no Brasil no âmbito do Scriptorium, por exemplo, acreditamos que ainda mais pode ser analisado, relacionando-se os três reis, seus aspectos messiânicos e sua utilização no discurso legitimador da Dinastia de Avis. Pensando no messianismo relacionado a D. Sebastião, acreditamos que novos estudos podem ser efetivados.67 E o messianismo no Brasil também oferece amplas possibilidades, como seu papel nas terras brasileiras relacionado a uma série de movimentos sociais para uma vida melhor, especialmente em movimentos do século XIX e início do XX (como o Movimento da

66 VENTURA, Margarida Garcez. Uma Lâmpada de Prata e Muito Mais. Testemunhos de D. Duarte sobre a Santidade de Nuno Álvares Pereira. Revista Portuguesa de História do Livro, p. 243-271. 67 Sobre o messianismo associado a D. Sebastião, cf. Colóquio O Sebastianismo. Política, Doutrina e Mito (sécs XVI-XIX). Lisboa: Edições Colibri/Academia Portuguesa de História, 2004. Ver também: HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado. A Construção do Sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998; MEGIANI, Ana Paula. O Jovem Rei Encantado: Expectativas do Messianismo Régio em Portugal, Séculos XIII a XVI. São Paulo: Hucitet, 2003.

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Serra do Rodeador, Canudos e o Contestado),68 e também na crença de que D. Sebastião está encantado até hoje numa ilha no Maranhão e é recebido como entidade espiritual em terreiros da cultura afrobrasileira.69 Vale lembrar que os elementos ideais dos nobres e reis da Dinastia de Avis estão associados aos elementos bíblicos e também às novelas de cavalaria, influenciadas pela circulação de A Demanda do Santo Graal em Portugal do século XIII ao XVI, mas que tiveram vida longa no reino, inclusive moldando comportamentos, como o do rei D. Sebastião ou o de D. Nuno. Neste sentido seria positivo relacionar algumas novelas de cavalaria (como a Crónica do Imperador Clarimundo, de João de Barros, o Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, entre outras)70 e seus elementos com os modelos ideais de rei e nobreza, que vemos apontados nas crônicas e em outros documentos como indicação de normas comportamentais. Por fim, gostaríamos de concluir numa perspectiva otimista, pois acreditamos que os estudos sobre a Dinastia de Avis, em especial sobre D. João I, têm, na nossa visão, vida longa e muitos caminhos de desenvolvimento. A parceria do Grupo Luso-Brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno e os contatos constantes entre portugueses e brasileiros têm se mostrado frutíferos e, com certeza, continuarão contribuindo com novas reflexões acadêmicas.

68 QUEIROZ, Maria Isaura. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977. Dentre as obras sobre os vários movimentos sociais no nordeste brasileiro, citamos a seguinte: CABRAL, José Gomes. Paraíso Terreal: a Rebelião Sebastianista na Serra do Rodeador, Pernambuco, 1820. São Paulo: Annablume, 2004. 69 BRAGA, Pedro. O Touro Encantado na Ilha dos Lençóis. O Sebastianismo no Maranhão. Petrópolis: Vozes, 2001; GODOY, Marcio H. Dom Sebastião no Brasil: fatos da cultura e da comunicação em tempo/espaço. São Paulo: Khronos, 2005. Sobre a relação do “Encantado” com a cultura afro-brasileira e sua manifestação nos terreiros, cf. FERRETI, Sérgio. Encantaria Maranhense de D. Sebastião. Revista Lusófona de Estudos Culturais, Minho, v. 1, n.1, p. 262-285, 2013. 70 Além de A Demanda do Santo Graal, proveniente da França, ter tido circulação longa em Portugal, no reino luso foram produzidas várias obras de cavalaria no século XVI que mereceriam ser estudadas com mais profundidade na busca de modelos ideias de nobre e rei propostos pela nova dinastia. Megiani aponta a importância desses escritos literários para a formação do imaginário cavaleiresco português. MEGIANI, Ana Paula. O Jovem Rei Encantado, p. 51-78.

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  A diplomacia portuguesa quatrocentista: notas historiográficas

Douglas Mota Xavier de Lima

O

presente texto propõe retomar a reflexão sobre a diplomacia medieval, em especial, no século XV. Buscaremos discutir a produção historiográfica acerca do tema, levando em consideração a historiografia portuguesa. Com esta orientação, dividiremos a exposição em três etapas: primeiramente, uma breve caracterização da chamada “nova história da diplomacia medieval”; em seguida, os caminhos percorridos pela historiografia portuguesa; finalmente, apontamentos sobre a documentação a partir de nossas investigações. Uma nova história da diplomacia medieval

Em 1946, na revista dos Annales, Lucien Febvre (1878-1956) publicou o artigo “Contre l’histoire diplomatique en soi. Histoire ou

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politique? Deux méditations: 1930, 1945”, texto que em 1952 foi incorporado ao seu Combats pour l’histoire.1 Esse e outros artigos do fundador dos Annales são expressão da mudança de paradigma ocorrida no campo da História nas primeiras décadas do século passado. Em síntese, tal reorientação historiográfica, somada às contribuições do marxismo, da sociologia, da economia, etc., foi marcada pela crítica a estudos restritos aos documentos oficiais, aos acontecimentos, aos grandes nomes e ao Estado e passou a dar centralidade às coletividades, aos problemas econômico-sociais e aos processos históricos inseridos na média e na longa duração.2 Paralelamente – questão por vezes despercebida pelos medievalistas –, convém ter em vista que, nesse mesmo período e em meio às guerras mundiais, as Relações Internacionais se estruturaram como um campo do saber, caracterizando-se pela crítica à história diplomática, entendida como limitada, e voltandose aos problemas do mundo contemporâneo, mormente, ao desafio da guerra e da paz.3 No bojo desse duplo movimento, observa-se que a história política conheceu um recuo, acontecendo o mesmo processo com a história diplomática e o tema da diplomacia, classificada como tradicional, narrativa, alheia às profundidades tão caras aos primeiros Annales. Não obstante, constata-se que no limiar do processo de recuo da história política e de constituição da história política renovada, isto é, nos anos 1950 e 1960, foram publicados importantes estudos sobre a diplomacia medieval. Destacamos desse período as obras: English Diplomatic Administration (1259-1339) (1940), de George Cuttino; Le Moyen Âge (1953), de François Ganshof; Renaissance Diplomacy (1955), de Garrett Mattingly; The Congress of Arras, 1435. A Study in Medieval Diplomacy (1955), de 1 FEBVRE, Lucien. Contre l’histoire diplomatique en soi. Histoire ou politique? Deux méditations: 1930, 1945. In: Combats pour l’Histoire. Paris: Armand Colin, 1952, p. 60-69. 2 DELACROIX, Christian, DOSSE, François; GARCIA, Patrick. Correntes historiográficas na França, séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: FGV, 2012, p. 163-196. 3 MARTINS, Estevão de Rezende. História das relações internacionais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 75; MOREIRA, Adriano. Teoria das Relações Internacionais. Lisboa: Almedina, 2008, p. 37-39; NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 3-5.

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Joycelyne Gledhill Dickinson; The King's Messengers. 1199-1377. A contribution to the History of the Household (1961), de Mary Hill; The Office of Ambassador in the Middle Ages (1967), de Donald Queller. Chama atenção que, apesar das inúmeras contribuições, as fontes privilegiadas por tais estudos sejam os documentos “tradicionais” da história diplomática, como tratados, cartas de crença, memorandos e procurações. Além disso, em linhas gerais, a diplomacia medieval é discutida sob a referência da constituição da diplomacia moderna, expressa, por exemplo, no surgimento das embaixadas permanentes. Desta maneira, há uma distância clara entre essa produção e a historiografia ligada à nova história política dos anos 60 e 70. À procura dessas diferenças na abordagem, observa-se um cenário significativamente distinto a partir dos anos 90. Ressaltamse desse período obras como: La circulation de nouvelles au Moyen Âge (1994); Arras et la diplomatie européenne XVe-XVIe siècles (1999); Negociar en la Edad Media (2004); Faire la paix au Moyen Âge (2007), de Nicolas Offenstadt; English Diplomatic Practice in Middle Ages (2003), de Pierre Chaplais; Au nom du Roi. Pratique diplomatique et pouvoir durant le règne de Jacques II d’Aragon (12911327) (2009), de Stéphane Péquignot; Communication and conflict: Italian diplomacy in the Early Renaissance, 1350-1520 (2015), de Isabella Lazzarini. Em suma, consideramos que a mudança representada por tais obras resulta da conjunção de diversos fatores, em especial do revigoramento da história política, com bases renovadas e pautadas no diálogo com diferentes ramos das Ciências Sociais, desde a Antropologia à Ciência Política. Destarte, a nova história da diplomacia medieval4 avança sobre temas como rituais e gestualidade, mas não deixa de explorar o pessoal envolvido nas missões diplomáticas ou mesmo as instituições que assessoravam os monarcas. Analisa a dinâmica guerra/paz, porém investiga crônicas, narrativas de viagens e outras documentações até então colocadas em

4 A identificação de uma nova história da diplomacia medieval e moderna é a base, por exemplo, do artigo de WATKINS, John. Toward a New Diplomatic History of Medieval and Early Modern Europe. Journal of Medieval and Early Modern Studies, Winter, n. 38, p.1-14, 2008.

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segundo plano. Problematiza o uso da diplomacia pelo poder régio, mas não limita sua abordagem ao Estado como único agente das relações diplomáticas. Nesse sentido, parafraseando a clássica obra de Jacques Le Goff e Pierre Nora, consideramos que essa nova história da diplomacia medieval se constitui atualmente mediante “novos problemas, novas abordagens e novos objetos”. Caminhos da diplomacia na historiografia portuguesa

Tendo em vista esse cenário, passa-se a algumas considerações acerca da produção portuguesa. Ainda que a diplomacia medieval não tenha sido objeto de grandes sínteses e ponto de investigação dos principais estudos que marcaram a historiografia no último meio século, existe um conjunto de obras sobre o medievo que merece destaque. Em primeiro lugar, é necessário mencionar o clássico Quadro Elementar, de Visconde de Santarém, que permanece como peçachave da literatura lusitana sobre o tema.5 Com início em Paris, em 1842, os volumes recolhem notícias referentes às relações de Portugal com França, Espanha, Inglaterra, Roma e outros Estados europeus. O texto em questão, como lembram Maria João Branco e Mario Farelo, é marcado pela preocupação em traçar as origens da monarquia por meio da diplomacia, orientação que também caracterizou a produção do período do Estado Novo, inclinada aos temas da formação de Portugal e da exaltação nacional.6 Tendo a observação dos autores como referência, lembra-se que, no período anterior à Revolução dos Cravos (1974), foram publicadas algumas obras de destaque para a temática: D. João I e a 5 SANTARÉM, Visconde de. Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal com as diversas potências do mundo desde o princípio da Monarchia portugueza até os nossos dias. Paris: J. P. Aillaud, 1842-1853. v. I-VIII; continuados por Luís Augusto Rebelo da Silva: SANTARÉM, Visconde de. Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal com as diversas potências do mundo desde o princípio da Monarchia portugueza até os nossos dias. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1864-1876. v. IX-XVIII. 6 BRANCO, Maria João; FARELO, Mario. Diplomatic Relations: Portugal and the Others. In: MATTOSO, José (dir.). The Historiography of medieval Portugal, c.1950-2010. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2011, p. 232-233.

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Alliança Ingleza: investigações históricas e sociaes (1884), de Conde de Villa Franca; Portugal e Veneza na Idade Média (1933), de Conde de Tovar; O Papado e Portugal no primeiro século da História Portuguesa (1935), de Carl Erdmann; A Aliança Inglesa (1943), de Armando Marques Guedes; Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua História (1944), de João Martins da Silva Marques; Études historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XII siècle (1947), de Pierre David; Portugal na Bélgica (de Filipe de Alsácia a Leopoldo I), de Eduardo Brazão; Monumenta Henricina (1960-1974), dirigida por António Joaquim Dias Dinis; Monumenta Portugalia Vaticana (1968-1970), organizada por António Domingues de Sousa Costa. Identificam-se nesse conjunto duas tendências principais: a publicação de documentos ligados a grandes comemorações nacionais e o estabelecimento das relações entre Portugal e um determinado estado num longo período.7 Ambos os aspectos se aproximam das abordagens da história diplomática, esta que, como demonstramos, conheceu profundas críticas desde inícios do século passado e lentamente apresentou um recuo na produção historiográfica. Nota-se ainda o peso da referência nacional e da exaltação do período avisino expansionista, características marcantes da produção do governo Salazar.8 Maria João Branco e Mário Farelo discutem amplamente em “Diplomatic relations: Portugal and the others”9 como a historiografia portuguesa ampliou seu universo de investigação a partir dos anos 80 e como esse alargamento envolveu a revisão da história nacional e a inserção de Portugal no cenário ibérico e europeu, além de abranger temáticas relacionadas à “new diplomatic history”. O detalhado levantamento possibilita observar os caminhos

7 Entendemos que o estudo de Carl Erdmann é uma exceção por estar ligado aos interesses do autor alemão no tema da reconquista e das cruzadas, eixo central de sua grande obra: ERDMANN, Carl. The Origin of idea of Crusade (1977 [1935]). Nova Jérsei: Princeton University Press, 1977. 8 Cf. TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado; CATROGA, Fernando. História da História em Portugal, séculos XIX – XX. Lisboa: Temas e Debates, 1998. v. 2. 9 BRANCO, Maria João; FARELO, Mario. Diplomatic Relations: Portugal and the Others. In: MATTOSO, José (dir.). The Historiography of medieval Portugal, c.1950-2010, p. 231-259.

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de investigação da diplomacia em Portugal e, nesse sentido, permite constatar as temáticas privilegiadas. Entre elas, citam-se preocupações com as relações nobiliárquicas na Península Ibérica, as relações religiosas a partir de instituições eclesiásticas presentes em Portugal, as ordens militares, as relações comerciais no mar do Norte e no Mediterrâneo, entre outros temas que não excluem trabalhos dedicados a questões político-econômicas.10 Especificamente sobre o século XV, lembram-se os importantes trabalhos de Joaquim Veríssimo Serrão,11 Humberto Baquero Moreno,12 Luís Adão da Fonseca,13 Jorge Borges de Macedo14 e Manuela Mendonça,15 autores que investiram no estudo das relações entre Portugal e as demais regiões da Cristandade, com especial ênfase às relações peninsulares. Nesses estudos as preocupações da nova história política, em especial a questão da sociedade política e das redes de sociabilidade internas e externas, mostram-se como temáticas centrais na revisão sobre o século XV

10 Limitamo-nos a apresentar apenas alguns livros como exemplo da produção portuguesa: KRUS, Luís. A concepção nobiliárquica do espaço ibérico (1280-1380). Lisboa: FCG, 1994; OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Hansa e Portugal na Idade Média. Lisboa: Estampa, 1993 (1959); MARQUES, Maria Alegria Fernandes. O Papado e Portugal no tempo de D. Afonso III (12451279). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990; MATTOSO, José. Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Estampa, 1987; MATTOSO, José. Le monachisme ibérique et Cluny: les monastères du diocese de Oporto, de l’an mil à 1200. Louvain: Université de Louvain, 1968; MATTOSO, José. Portugal Medieval: novas interpretações. Lisboa: IN-CM, 1985; VELOSO, Maria Teresa. D. Afonso II: relações de Portugal com a Santa Sé durante o seu reinado. Coimbra: Archivo da Universidade de Coimbra, 2000. 11 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Relações históricas entre Portugal e a França. (1431-1481). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian. Centro Cultural Português, 1975. 12 MORENO, Humberto Carlos Baquero. A Batalha de Alfarrobeira. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1979. 2. v. 13 FONSECA, Luís Adão da. O Condestável D. Pedro de Portugal: a Ordem Militar de Avis e a Península Ibérica do seu tempo (1429-1466). Porto: INIC, 1982; FONSECA, Luís Adão da. O essencial sobre o Tratado de Windsor. Lisboa: Imprensa Nacional, 1986; FONSECA, Luís Adão da. O tratado de Tordesillas e a diplomacia luso-castelhana no século XV. Lisboa: Edições Inapa, 1991. 14 MACEDO, Jorge Borges de. História Diplomática Portuguesa. Constantes e linhas de força. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, 1987. 15 MENDONÇA, Manuela. Relações externas de Portugal nos finais da Idade Média. Lisboa: Colibri, 1994.

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português, porém a diplomacia é estudada quase exclusivamente no plano das relações diplomáticas.16 Os apontamentos anteriores podem sem percebidos e ampliados ao considerarmos as obras de síntese sobre a História de Portugal. Nos livros de José Mattoso e Armindo de Sousa, História de Portugal, vol. II, A Monarquia Feudal (1993), e de Bernardo Vasconcelos de Sousa, História de Portugal (2009), o tema pouco aparece, e mesmo a questão das relações diplomáticas passa praticamente despercebida. Outro cenário, mas não menos elucidativo, se encontra na obra de Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, vol. II, Formação do Estado moderno (1979). Nela, o autor destaca uma parte do livro para a “História política, diplomática e militar”, em que o próprio título já indica a abordagem escolhida. Por fim, a grande exceção é o livro de Oliveira Marques, Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, com um capítulo dedicado a “Estado e as Relações Diplomáticas”, no qual se apresenta uma análise mais detalhada da diplomacia medieval.17 Visando a observar outro aspecto relacionado ao tema da diplomacia, há um conjunto de trabalhos monográficos e artigos acerca de personagens da sociedade quatrocentista que tiveram uma participação acentuada em embaixadas. Citam-se os trabalhos: Dom Frey Gomes: abade de Florença, de Eduardo Nunes;18 D. Jorge da

16 Um exemplo emblemático dessa inclinação é o artigo de Luís Adão da Fonseca, no qual o autor analisa a questão cultural na diplomacia a partir do estudo das relações diplomáticas. FONSECA, Luís Adão da. Política e cultura nas relações luso-castelhanas no século XV. Península: revista de Estudos Ibéricos [da Universidade do Porto], Porto, p. 53-61, 2003. 17 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Presença, 1987, p. 279-334. Duas outras importantes obras de síntese, História de Portugal – A Monarquia Feudal, de José Mattoso e Armindo de Sousa, e História de Portugal, com a parte medieval de Bernardo Vasconcelos e Sousa, pouco deram espaço para a diplomacia. Acrescenta-se que coube ao mesmo autor escrever sobre a temática na obra A Gênese do Estado Moderno no Portugal do Tardo-Medievo (século XIII-XV), porém o texto, “Estado, fronteiras e relações exteriores”, limitase a tratar das embaixadas permanentes e do uso do latim como língua das relações diplomáticas. Cf. OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Estado, fronteiras e relações exteriores. In: COELHO, Maria Helena da Cruz e HOMEM, Armando Luis de Carvalho (coord.). A Gênese do Estado Moderno no Portugal do Tardo-Medievo (século XIII-XV). Lisboa: UAL, 1999, p. 189-197. 18 NUNES, Eduardo. Dom Frey Gomes: abade de Florença, 1420-1440. Braga: Livraria Editora Pax, 1963.

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Costa. Cardeal de Alpedrinha, de Manuela Mendonça;19 Dois embaixadores de el-Rei D. Afonso V, de Dias Dinis;20 Um grande diplomata português do século XV: o Doutor João Fernandes da Silveira, de Baquero Moreno;21 Diplomacia e burocracia nos finais da Idade Média: a propósito de Lourenço Anes Fogaça, chanceler-mor (1374-1395) e negociador do Tratado de Windsor, de Carvalho Homem;22 A Burocracia Régia como veículo para a titulação nobiliárquica. O caso do doutor João Fernandes da Silveira, de Pedro Caetano.23 Notam-se importantes aportes sobre a trajetória dos personagens (vínculos sociopolíticos, ofícios, formação, etc.), porém a atividade diplomática e o exercício da negociação tendem a ser um entre vários aspectos da análise. Outro elemento a ser destacado é o fato de os trabalhos se concentrarem nos “grandes embaixadores”, permanecendo ofuscada a atividade de homens que atuaram esporadicamente em missões, ainda que estes sejam a maior parcela dos embaixadores do período. Como último exemplo dos temas privilegiados entre os estudos portugueses, destacamos a análise dos casamentos régios. Nesse quadro, especificamente sobre o período quatrocentista, citamos: “A política matrimonial da dinastia de Avis: Leonor e Frederico III da Alemanha” (2003), de Maria Helena da Cruz Coelho, e “O casamento de D. Beatriz (filha natural de D. João I) com Thomas Fitzalan (Conde de Arundel) – paradigma documental

19

MENDONÇA, Manuela. D. Jorge da Costa. “Cardeal de Alpedrinha”. Lisboa: Colibri, 1991. DIAS DINIS, António Joaquim. Dois embaixadores de el-Rei D. Afonso V. Cadernos Históricos 1. Braga: Editora Franciscana, 1955. 21 MORENO, Humberto Baquero. Um grande diplomata português do século XV: o doutor João Fernandes da Silveira. In: A diplomacia portuguesa na história de Portugal, 1990, Lisboa. Actas do Colóquio A diplomacia portuguesa na História de Portugal. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1990. p. 93-103. 22 HOMEM, Armando Luís de Carvalho. Diplomacia e burocracia nos finais da Idade Média: a propósito de Lourenço Anes Fogaça, chanceler-mor (1374-1395) e negociador do Tratado de Windsor. In: Estudos e Ensaios em Homenagem a Vitorino Magalhães Godinho. Lisboa: Sá da Costa, 1988, p. 217-228 23 CAETANO, Pedro Nunes Pereira. A Burocracia Régia como veículo para a titulação nobiliárquica. O caso do doutor João Fernandes da Silveira. Dissertação (Mestrado). Universidade do Porto. Porto, 2011. 20

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da negociação de uma aliança” (2007), de Manuela Santos Silva.24 Além desses dois artigos, a preocupação com os casamentos régios aparece inserida em diferentes obras, como as relacionadas à coleção Reis e Rainhas de Portugal. No entanto, talvez o artigo de António Joaquim Dias Dinis “À volta do casamento de D. Duarte. (14091428)” seja aquele que mais enfatizou a atuação dos embaixadores no processo de negociação matrimonial. Essa breve exposição dos caminhos percorridos pela historiografia portuguesa tem por objetivo compreender, tal como Manuela Mendonça argumentou em 1994,25 que ainda existe um campo a ser explorado sobre a diplomacia medieval do reino português, lacuna que entendemos se encontrar, especialmente, na investigação do universo multifacetado que marca os estudos contemporâneos sobre o tema e que tem na diplomacia seu principal foco de pesquisa. Por mais que seja perceptível que os estudos citados tenham inserido Portugal no cenário ibérico e europeu, contribuindo para uma série de aspectos ligados à diplomacia medieval, sobretudo nos séculos XIV e XV, permanecem pouco analisados temas como as práticas de negociação, a circulação de informações, o perfil dos embaixadores esporádicos, a construção discursiva da paz, entre outras problemáticas presentes na “new diplomatic history”. Desta maneira, passa-se a considerações sobre os trabalhos que exploraram outros elementos da diplomacia medieval. Primeiramente, mesmo não sendo sobre o século XV, destacam-se os artigos de Armando Martins, “Diplomacia e gestos diplomáticos no reinado de D. Fernando (1367-1383)” (2008) e “Depois da guerra, a difícil arte de fazer a paz. D. Fernando (1367-1383)” (2009).26 Em 24 Para além desse texto, citamos: SILVA, Manuela Santos. Relações Internacionais na Idade Média: tratados de amizade, alianças dinásticas, movimentações territoriais. In: MENDONÇA, Manuela; REIS, Maria de Fátima (coord.). Do reino de Portugal ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2016, 95-109. Neste artigo, a autora analisa os contratos matrimoniais em suas implicações no plano das relações entre os reinos, afastando-se, assim, da ênfase na questão da política matrimonial. 25 MENDONÇA, Manuela. Relações externas de Portugal nos finais da Idade Média, 1994. 26 MARTINS, Armando. Diplomacia e gestos diplomáticos no reinado de D. Fernando (13671383). In: Raízes medievais do Brasil moderno. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2008, p.

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linhas gerais, o autor analisa o processo de construção e negociação da paz, assim como o papel negociador dos embaixadores do rei e a importância dos gestos de diplomacia na afirmação da identidade política do reino. Acrescenta-se que Martins apoia-se em variadas fontes e no diálogo com a Antropologia. As negociações comerciais relacionadas à diplomacia e a atuação dos embaixadores na construção de alianças externas foi estudada por Tiago Viúla de Faria na tese The Politics of AngloPortuguese Relations and its Protagonists in the Later Middle Ages (2012) e em artigos, como “Por proll e serviço do reino”? O desempenho dos negociantes portugueses do Tratado de Windsor e suas consequências nas relações com a Inglaterra (1384-1412)” (2009) e “‘Pur bone alliance et amiste faire’”. Diplomacia e comércio entre Portugal e Inglaterra no final da Idade Média” (2010), este, em coautoria com Flávio Miranda. Contudo, considera-se que é no artigo “Comunicação visual e relações externas: abordagens a partir do caso anglo-português”27 que o autor mais avançou nas possibilidades de pesquisa do campo das práticas diplomáticas, analisando-se os mecanismos visuais de que o poder régio tardomedieval dispunha para gerir suas ligações com o exterior. Destaca-se ainda a dissertação Discursos dos embaixadores portugueses no Concílio de Constança, 1416 (1999),28 de Reina Marisol Pereira. Defendida na área de latim medieval, a dissertação traz a documentação relacionada à participação portuguesa transcrita e traduzida, e explora a atividade da comitiva, em especial no plano dos discursos proferidos. Mesmo que não constitua um estudo de fôlego, leva às possibilidades existentes nessa via para a pesquisa da diplomacia medieval, caminho que tem, talvez, sua principal 137-154; MARTINS, Armando. Depois da guerra, a difícil arte de fazer a paz. D. Fernando (1367-1383). In: VI Jornadas Luso-espanholas de Estudos medievais. A Guerra e a Sociedade na Idade Média. Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais, 2009. v. 2, p. 69-76. 27 FARIA, Tiago Viúla de. Comunicação visual e relações externas: abordagens a partir do caso anglo-português. In: SEIXAS, Miguel Metelo de; Rosa, Maria de Lurdes (coord.). Estudos de Heráldica medieval. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 209-222. 28 PEREIRA, Reinal Marisol Troca. Discursos dos embaixadores portugueses no Concílio de Constança, 1416 (1999). Dissertação (Mestrado). Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Coimbra, 1999.

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expressão na tese Les réseaux d’alliance en diplomatie aux XIVe et XVe siècles: étude de sémantique, de Nathalie Nabert (1994). Também merece destaque a dissertação De olhar atento e ouvidos à escuta... A espionagem militar na cronística portuguesa de Quatrocentos: Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara (2015), de Vítor Manuel Pinto.29 Ligada ao campo da história militar, o trabalho discute as ações de exploração e comunicação de informação inteligente presentes nas crônicas de Fernão Lopes e Zurara, além de contribuir diretamente para a discussão da espionagem de finais da Idade Média, tema que foi tratado no clássico artigo de Christopher Allmand, “Les espions au Moyen Âge” (1983) e que tem sido revisitado por Santiago González Sánchez,30 Walter Bastian31 e Éric Denécé e Jean Deuve,32 por exemplo. Por fim, cita-se a tese A sociologia da representação políticodiplomática no Portugal de D. João I,33 de Maria Alice Pereira Santos. Tendo como referência os trabalhos de Stéphane Péquignot, a tese apresenta, como principal contribuição, a prosopografia dos diplomatas portugueses no reinado de D. João I, ao analisar os vínculos deste grupo com o poder régio, as relações familiares, a formação e a condição socioeconômica dos embaixadores. Notas sobre a documentação Com o intuito de direcionar o texto para as considerações finais, cabe apresentar algumas considerações breves sobre a 29 PINTO, Vítor Manuel da Silva Viana. De olhar atento e ouvidos à escuta... A espionagem militar na cronística portuguesa de Quatrocentos: Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara. Dissertação (Mestrado). Universidade de Coimbra. Coimbra, 2015. 30 GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Santiago. El espionaje en los reinos de la Península Ibérica a comienzos del siglo XV. En la España Medieval, Madrid, v. 38, p. 135-194, 2015. 31 WALTER, Bastian. Urban Espionage and Counterespionage during the Burgundian Wars (1468–477). In: CURRY, Anne; BELL, Adrian R. Journal of Medieval Military History: Soldiers, Weapons and Armies in the Fifteenth Century. Woodbridge: Boydell & Brewer, 2011. v. IX, p. 132-145. 32 DENÉCÉ, Eric; DEUVE, Jean. Les Services Secrets au Moyen Âge. Rennes: Éditions OuestFrance, 2011. 33 SANTOS, Maria Alice Pereira. A sociologia da representação político-diplomática no Portugal de D. João I. Tese (Doutorado). Universidade Aberta. Lisboa, 2015.

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documentação referente à diplomacia quatrocentista portuguesa. O critério que orienta tais apontamentos fundamenta-se em dois aspectos: a trajetória individual de pesquisa no trato com essas fontes e, principalmente, o objetivo de discutir documentações que tradicionalmente não são privilegiadas pelos estudos sobre a diplomacia. Em primeiro lugar, destacamos o Livro Vermelho do Senhor Rey D. Affonso V.34 Datado de 1471, sob o título “Dytados em lynguoajem d'ElRey Dom Affonso o Quynto nosso Senhor pera Rex e Primcipes e Senhores e todas as outras pessoas estrangeiras de fora de seus Reinnos[...]”, o documento 4 sistematiza as formas que deveriam ser usadas nos contatos diplomáticos com os monarcas e príncipes estrangeiros, além dos representantes destes e dos grandes senhores do próprio reino. Outro documento de relevante interesse é o número 6, que organiza o assento dos embaixadores na Capela real e em outras cerimônias. Sob o título de "Detriminaçaõ do Conselho d'ElRey acerqua da maneira que se aja de ter com os Embaixadores dos Rex e Principes estramjeiros, que a Sua Corte vierem, asy acerqua do asentamento em Sua Capela como das outras cerimonias",35 o texto indica a solenidade do cotidiano das embaixadas dentro do espaço da corte, além de informar acerca das distinções de estatuto. Por fim, há o documento 26, intitulado “Determinaçam, e Regimento d’ElRey, da maneira que se daquy em diante aja de ter acerqua dos mantimentos ordenados, e corregimentos que se ham de dar aos Embaixadores, e pesoas que ele por seu serviço mandar fora de seus Reinos, com embaixadas, ou recados a algua partes[...]”, datado de setembro de 1473, na cidade de Lisboa.36 Primeiramente, esse 34 Livro Vermelho do Senhor Rey D. Affonso V. In: Collecção de Livros Ineditos de História Portugueza dos reinados de D. João I, D. Duarte, D. Affonso V e D. João II. Publicados por José Corrêa da Serra. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1793, t. III, p. 391-540. No prólogo da edição é informado que o documento foi tirado da coleção de Manoel Severim de Faria, à época, em poder do conde de Vimieiro. O códex não é original, posto que este foi molhado e danificado, mas é uma cópia encomendada por D. João III. José Corrêa da Serra argumenta que o nome do livro foi tirado da cor da capa em que estava encadernado, visto que no período a cor vermelha estava frequentemente aplicada aos livros em que os príncipes mandavam registrar os estilos e ordens, e que precisavam consultar-se nas cortes. 35 LV, doc. 6, p. 420-421. 36 LV, doc. 26, p. 467-469.

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documento estabelece a distinção entre espaços diplomáticos: a “Espanha”, com Castela, Aragão e Navarra, etc; e “fora da Espanha”. Em segundo lugar, a fonte destaca elementos como vestimentas, mantimento do embaixador e meios de transporte necessários para a viagem diplomática e a condução das negociações. Além disso, o documento 26 aponta para a cristalização de um estatuto de embaixador, ainda que temporário, reforçando-se a identificação de doutores, cavaleiros e “outro senhor mayor”, por meio da designação “embaixador”. Observa-se que os três documentos presentes no Livro Vermelho são de suma importância, pois permitem a percepção de diferentes aspectos da estruturação diplomática durante o reinado de D. Afonso V. Neles encontramos a hierarquização e a distinção do quadro de relações externas, marcado por termos envoltos em categorias de parentesco e em relações de amizade; a normatização do procedimento de recepção de embaixadas, assim como o cerimonial diplomático presente no espaço da corte; e o estabelecimento de um estatuto provisório dos enviados diplomáticos. No plano das investigações, consideramos que o documento 26 e as temáticas diretamente a ele relacionadas, isto é, o estatuto do embaixador, os gastos com a diplomacia, a estruturação da comitiva e o próprio perfil do enviado diplomático, são aspectos que carecem de novos estudos, os quais poderão ser supridos, em grande parte, pelo detalhamento das missões diplomáticas quatrocentistas. De forma distinta, o regimento presente no documento 6 traz o investigador para o plano das normatizações cerimoniais,37 porém acreditamos que esse regimento pode ser confrontado com outras fontes que ofereçam indícios da prática cerimonial, como as narrativas de viagem. O documento 4 constitui um caso singular, pois é frequentemente utilizado como indicativo “do âmbito geral das relações diplomáticas de Portugal durante o século XV”,

37

Cf. GOMES, Rita Costa. A Corte dos Reis de Portugal no final da Idade Média. Lisboa: Difel, 1995.

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perspectiva que aparece, por exemplo, em Virgínia Rau,38 Oliveira Marques39 e Saul António Gomes.40 Todavia, pensamos que o mesmo documento pode ser objeto de reflexão tanto no campo das fórmulas de cortesia, sendo um exemplo dessa via o estudo de David Rincón,41 como para a discussão dos laços de amizade na documentação diplomática.42 Em nossa tese, apresentamos uma sistematização das fórmulas de cortesia presente no Livro Vermelho (Quadro 1):

38 RAU, Virgínia. Relações diplomáticas de Portugal durante o reinado de D. Afonso V. In: RAU, Virgínia. Estudos de história medieval. Lisboa: Presença, 1986. p. 66-80. 39 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Portugal na crise dos séculos XIV e XV, p. 279-334. 40 GOMES, Saul António. D. Afonso V. Lisboa: Círculo de Leitores, temas e debates, 2009. 41 RINCÓN, David Nogales. La cultura del pacto en las relaciones diplomáticas luso-castellanas durante el período Trastámara (1369-1504). En la España Medieval, Madrid, v. 35, p. 121-144, 2012. 42 Nesse campo indicamos os seguintes estudos: ALTHOFF, Gerd. Family, Friends and Followers: political and Social Bonds in Early Medieval Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2004; SÈRE, Bénédicte. Ami et alié envers et contre tous: etude lexicale et sémantique de l'amitié dans les contrats d'alliance. In: FORONDA, F. (dir.). Avant le contrat social... Le contrat politique dans l'Occident médiéval (XIIIe-XVe siècle). Paris: [s.n.], 2011. p. 245268; SÈRE, Bénédicte. Penser l’amitié au Moyen Âge. Étude historique des commentaires sur les livres VIII et IX de l’Éthique à Nicomaque (xiiie-xve siècle). Turnhout: Brepols, 2007; NABERT, Nathalie. Les réseaux d’alliance en diplomatie aux XIVe et XVe siècles: étude de sémantique. [S.I.: s.n.], 1994.

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Retórica do amor

Irmaaõ

Primo

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Chipre

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Mouros

Polônia

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Fonte: Elaboração própria a partir do documento 4 do Livro Vermelho.

X

X

Retórica familiar Tio

Dinamarca

X

Nápoles

Hungria

X

Navarra

X

Sicília

Muyto alto, muyto excelemte, (e) muyto poderoso Muyto alto, muyto excelemte, e poderoso Muyto alto, muyto excelemte Muito nobre, e muito honrado antre os mouros Mui(y)to amamos/muyto amado Amiguo

Inglaterra

Fórmulas

Aragão

Retórica de exaltação

França

Tipos de fórmulas de cortesia

Castela

Quadro 1. Fórmulas de cortesia presentes no documento 4 do Livro Vermelho

A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Levando-se em consideração listagem de 1471 a partir dos eixos propostos por David Rincón (a retórica familiar, que envolve vínculos decorrentes de matrimônios e da familiaridade simbólica; a retórica de exaltação; e a retórica de amor), destacamos uma fórmula de tratamento específica, “Irmaaõ per cunhadya, ho Irmaaõ primeiro, e depoys o primo”, utilizada para o rei de Castela.1 Ainda no campo da “retórica familiar”, apenas os reis mouros não são chamados de “Irmaaõ”, e o rei de Castela é o único que aparece de forma diferenciada entre os “irmãos”. Se este termo constitui uma fórmula de tratamento cortês sem representar laços de consanguinidade efetivos, indicando somente os vínculos de parentesco simbólico que uniam os membros da Cristandade, o mesmo não acontece com “Primo”, utilizado para os reis de Castela, Inglaterra e Nápoles, e “Tio”, referência ao rei de Aragão. A “retórica do amor” também oferece elementos para a análise, pois o único monarca cristão que não é citado como “amiguo” é o rei da França, ao passo que todos são tratados com “aquelle(s) que muyto amamos” ou ‘muyto amado”. É interessante lembrar que, no período, a relação luso-francesa era instável, situação então favorecida pelos laços que ligavam D. Afonso V a Borgonha, que estava em conflito com a França, e ainda pelos constantes casos de atividades corsárias contra os navios portugueses. Esta circunstância só mudaria efetivamente em 1475, após a assinatura de tratados entre os reinos, aliança que culminou na viagem de D. Afonso à França (1476-1477). Por fim, o conjunto da “retórica da exaltação” apresenta-se como o mais variado, sendo a fórmula “Muyto alto, muyto excelemte” a mais utilizada (Aragão, Sicília, Nápoles, Navarra, Dinamarca, Polônia, Chipre e Escócia). Os reinos de Castela e da Hungria aparecem pelo tratamento “Muyto alto, muyto excelemte, e poderoso”, ao passo que a França e a Inglaterra aparecem destacadas com “Muyto alto, muyto excelemte, (e) muyto poderoso”. Nota-se que os reis mouros recebem um ditado bem particular, "Muito nobre, e

1 Livro Vermelho do Senhor Rey D. Affonso V. In: Collecção de Livros Ineditos de História Portugueza dos reinados de D. João I, D. Duarte, D. Affonso V e D. João II. Publicados por José Corrêa da Serra, t. III, p. 402.

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A diplomacia portuguesa quatrocentista

muito honrado antre os mouros", e não participam da retórica familiar e do amor. Como indicamos, ainda estamos distantes de análises conclusivas sobre as fórmulas de cortesia, contudo sua sistematização nos revela que os códigos presentes na estruturação das relações diplomáticas tardo-medievais reafirmam a centralidade dos laços de parentesco e das relações de amizade que ligavam os monarcas cristãos, elementos fundamentais para a compreensão da diplomacia do período. Como segundo exemplo documental, citamos as narrativas de viagem. Estas constituem uma documentação ímpar para a compreensão da diplomacia medieval, ao possibilitar ao investigador problematizar os caminhos e meios de transporte utilizados pelas comitivas, as composições das embaixadas, os ritmos das viagens e dos tratos diplomáticos, as estratégias de negociação, as trocas de presentes, as recepções oferecidas aos embaixadores, os lugares do reino e da corte onde ocorriam as negociações, as festas e demais celebrações relacionadas à diplomacia e, no limite, a forma como o espaço estrangeiro ou do próprio reino foi descrito pelos viajantes. No caso das narrativas de viagem quatrocentista, elas permitem identificar as transformações ocorridas em Portugal ao longo do século, tanto no plano das cerimônias monárquicas e dos instrumentos do poder régio, como na própria dinâmica comercial e social do reino. Nesse quadro, o investigador dedicado ao estudo do reino português encontra narrativas que abarcam quase a totalidade do século XV: Livro de Arautos (1416); Voyage de Jehan van-Eick (1428-1430); Diário da Jornada do Conde de Ourém (1436-1438); Le livre des faits du bon Chevalier messire Jacques de Lalaing (14461453); Diário de viagem do embaixador alemão Nicolau Lanckman de Valckenstein (1451-1452); Viaje a España – George von Ehingen (1456-1459); Viaje del noble boemio León de Rosmital de Blatna, por España y Portugal, hecho del del año 1465 à 1467; Voyage à la côte occidentale d’Afrique, en Portugal et en Espagne (1479-1480); Viaje de Nicolas de Popielovo por España y Portugal (1484-1485); Journals of Roger Machado (1488-1489).

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Este corpus documental, formado pelo Livro Vermelho e pelas narrativas de viagem, serviu de base para nossa análise das cerimônias e festas na diplomacia afonsina. A partir dos documentos, identificamos que durante o reinado do Africano foram sistematizadas as cerimônias de recepção de embaixadas na Corte e estabelecidos em português os ditados a serem utilizados nas correspondências e no envio de missões diplomáticas. Tais documentos, presentes no Livro Vermelho, demonstram que o rei dava especial atenção aos cerimoniais, dentre eles, os específicos da prática diplomática. Numa época marcada pela ampliação das alianças externas e por uma maior projeção de Portugal na Cristandade, internamente a realeza preparava o reino para receber ilustres comitivas de embaixadores. Do mesmo modo, as narrativas de viagem indicam que ao longo do reinado o padrão cerimonial português ganhou novos contornos, transformando-se num complexo espetáculo que já apontava para as práticas quinhentistas e envolvia de forma crescente os elementos exóticos do ultramar. Nesse quadro, as recepções de embaixadas e os casamentos régios, essencialmente cerimônias relacionadas à diplomacia, constituíram momentos propícios para a propaganda externa da monarquia. Os apontamentos apresentados não buscam oferecer uma via única para a abordagem dos documentos, pelo contrário, procuramos contribuir para a ampliação dos estudos sobre a diplomacia medieval, em especial relacionada ao reino de Portugal, tendo como base documentações que consideramos relevantes para a constituição de novos olhares sobre o tema. Considerações finais

No que pesem as barreiras enfrentadas para o estudo da história medieval ou mesmo para a análise da historiografia estrangeira neste lado do Atlântico, com os recursos disponíveis, em grande parte, na internet (publicações de fontes, periódicos on-line etc.), consideramos possível desenvolver pesquisas criteriosas sobre o período medieval, e a produção crescente desde os anos 80 268

A diplomacia portuguesa quatrocentista

reafirmam tal perspectiva. Tentamos nessas breves palavras discutir uma temática tida, por vezes, como necessariamente tradicional, conservadora, ultrapassada, e demonstrar que nas últimas décadas ela vem conhecendo uma retomada pelos mais diferentes aspectos. Ao observar a historiografia portuguesa, consideramos ser possível identificar as linhas gerais das mudanças encontradas no plano mais amplo dos estudos acerca da diplomacia medieval. Passada uma etapa deveras associada à exaltação do Estado e à narrativa dos grandes acontecimentos da história político-militar, os estudos lusitanos, em grande parte fazendo uso da história política renovada, exploraram diversos aspectos da diplomacia, em que se privilegiam temas como as relações diplomáticas, os casamentos, os embaixadores com acentuada participação em missões. Este movimento de ampliação e enriquecimento das pesquisas por meio da incorporação de novas fontes, métodos e objetos, tem sido expresso principalmente por estudos que procuraram analisar as práticas de negociação, a gestualidade, os mecanismos visuais, os discursos dos embaixadores, a identificação do conjunto dos enviados diplomáticos, entre outros aspectos relacionados à nova história da diplomacia medieval. Que este caminho continue a ser trilhado em ambos os lados do Atlântico.

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  “Das cousas do Brasil”. As cartas e relações dos jesuítas como género narrativo-historiográfico

João Marinho dos Santos

N

as “Cartas” e “Relações” de Quinhentos-Seiscentos, particularmente nas que tiveram como autores os Padres e Irmãos da Companhia de Jesus que se dedicaram à missionação ultramarina, o conceito “cousas” tem por significado geral tudo quanto interessa aos homens e com eles tem relação. Abrange, portanto, as cousas ou os assuntos temporais e religiosos, se não mesmo as manifestações divinas. Com o progressivo e surpreendente alargamento da visão do Mundo e da Humanidade, como resultado das Conquistas e das Grandes Descobertas em espaços exteriores à Respublica Christiana ou à “Europa” emergente, as “cousas novas e estranhas” converteram-se em inesgotável objecto de narração, descrição, informação, notícia, enfim, de relato ou relação. Por curiosidade

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empírica e pré-científica umas, por interesse privado e oficial (por iniciativa da Coroa-Estado e da Igreja de Roma) outras, ou seja, no âmbito dos processos da emigração e da colonização modernas, mas quase sempre numa relação dominador (o “civilizado” ou o “cristão”) e dominado (o “bárbaro”/“selvagem” ou o “gentio”), não faltou a preocupação de unir o real e o ideal. Nesta perspectiva, o interesse comum dos Estados Cristãos e da Igreja Católica, balanceado para a construção de Impérios e do Reino universal de Deus, exigiu, além de instrumentos físicos de dominação, o conhecimento de outros mundos geográficos e dos “mundos” antropológicos dos outros. Logo, a circulação da informação, nos dois sentidos, entre centros (de dominadores) e periferias (de dominados) foi imprescindível, mais versátil, mas menos rigorosa, tratando-se de registos orais, mais formal, mas menos livre, tratando-se de registos escritos. Assinale-se a possível coexistência, em paridade (ou quase), do meio oral e do meio escrito na cultura de uma mesma sociedade (o que só a enriquecerá ou modernizará), ainda que a passagem da primazia do escrito sobre a oralidade ou a memória se afirme como importante e decisiva etapa para a construção da “história-realidade” e da “história-estudo”, sobretudo a partir do século XVI. João de Barros, em concreto, assinalará a pouca apetência dos Portugueses de Quinhentos pelo registo escrito (descurando, compreensível e logicamente, as grandes vantagens da imprensa), pelo que a Realeza se viu obrigada a encarregar os escassos naturais que dominavam as técnicas da escrita de elaborarem, oficialmente, crónicas e histórias às escalas nacional e imperial.1 Não se verificou o mesmo com a direcção e a maior parte dos agentes da Companhia de Jesus, já que, desde cedo, Inácio de Loiola deu ordens expressas aos seus companheiros de escreverem regularmente entre si e para os seus superiores, como forma de cimentar a coesão e a solidariedade na Instituição. Porém, nem todos cumprirão esta norma. Estando a Companhia particularmente empenhada na realização de um projecto espiritual de âmbito

1 Cf. Prólogo. Da Asia de João de Barros e de Diogo do Couto Nova Edição Offerecida a Sua Magestade D. Maria I, Rainha Fidelissima. Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1778.

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mundial, compreende-se o inconveniente do descuido e a insistência na informação sobre as novas terras e as novas gentes. Documentemos com este excerto de uma carta do P. Juan de Palanso, para o Prepósito ou Provincial Manuel da Nóbrega no Brasil: Hasta aqui tienense informaciones muy imperfectas de las cosas de allá [Ultramar], parte por que se dexa a los que estan en cada parte [região] el cuydado de scrivir, y así unos lo hazen y otros no, que son los más, parte porque aún los que scriven dan información de algunas cosas, y déxanse otras que se convendría se supiessen.2

Enfim, era preciso informar (narrando e descrevendo) sobre “cousas” com interesse para a ecuménica Companhia de Jesus e, em última instância, para a Cristandade, obedecendo a um modelo de registo para maior eficácia. O que é que resultou? Como é sabido, a narração ou o discurso dos factos constitui o esqueleto de qualquer texto literário e, também ou mais ainda, do texto historiográfico, já que a História, na sua essência, é uma narração factológica e acontecimental tida por verdadeira. Porém, no propósito de estabelecer o sentido dos factos, ou seja, de proceder à sua interpretação (como deve ser apanágio da História que pretende ser científica), é conveniente captar a interpenetração ou a dialéctica dos temas e dos motivos, ainda que a análise da narrativa tenda a separar as acções das situações. Deste modo, só o estudo da tematologia (dos temas e dos motivos) nos permite aceder à integralidade ou globalidade dos factos, com o objectivo de tornar completo e inteligível (“perfeito”, como se dizia no século XVI) o processo histórico. Assim, algumas Cartas e Relações dos primeiros jesuítas, designadamente dos que missionaram no Brasil, por satisfazerem tais requisitos, podem já integrar o género narrativohistoriográfico, quer no que concerne ao objecto, quer até ao método. Porém, também não faltaram os que, militando na Companhia, por razões catequéticas sobretudo se dedicaram aos géneros lírico e dramático, podendo dar-se o exemplo de José de Anchieta, autor da 2 LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae (1538-1553). Roma: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1956. v. I, p. 519-520.

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lírica intitulada De Beata Virgine Dei Matre Maria e de várias obras de teatro em português, castelhano, latim e tupi. Depois de assinalarmos a diversificação da produção literária dos primeiros jesuítas no Brasil, voltemos a focar o género narrativo. A designação explícita no início do texto ou implícita no decurso da narração das “Cartas” e das “Relações” dos jesuítas estabelece o tipo de mensagem principal, ou seja, o tema e as circunstâncias que o emissor deseja destacar e transmitir, não sendo, porém, alheia a tal escolha a qualidade do(s) destinatário(s). Por exemplo, para um companheiro jesuíta era natural que prevalecesse a natureza intimista ou quase exclusivamente pessoal da missiva. Foi, contudo, maior o número daquelas que procuravam informar e motivar, ainda que endereçadas ad hominem, muitas vezes com a observação de irem abertas e poderem ou deverem ser lidas por outras pessoas, para se verificar esta função. Documentemos com este excerto de uma carta de Francisco Xavier, datada de Cochim, a 27 de janeiro de 1545, para o P. Simão Rodrigues em Lisboa: “As cartas que screvo a Roma mando-as abertas, para que as leaes e saibaes as novas de quaa, e provejaes de mandar muita gente [da Companhia] todos os annos”.3 Sem deixarem de assumir a característica de carta longa ou “larga”, mas obedecendo a uma estrutura cronológica e temática para a descrição e a narração, as “Relações” ou “Informações” eram dirigidas, por regra, a destinatários mais ignotos ou anónimos, sendo as respectivas mensagens compreensivelmente também mais generalistas. Assim, uma Relação é, essencialmente, uma narração ainda que integre elementos descritivos e, como tal, procura reconstituir factos e acontecimentos tidos não só por verdadeiros e reais, mas de maior objectividade, aproximando-se, nesta vertente, da História e não tanto da Literatura. Mais: ao contrário da Carta, carregada, por regra, de subjectividade e visando predominantemente o singular (mesmo que institucionalizado), a “Relação”, sobretudo a composta ou sistematizada, tal como a História, tende a ter por objecto e objectivo o geral, o universal, o

3 SAINT FRANCIS XAVIER. Epistolae S. Francisci Xaverii aliaque eius scripta, por G. Schurhammer S. I. et Wicki S. I. Roma: Monumenta Historica Soc. Iesu, 1944. t. I, p. 279.

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regular, o repetitivo, o constante ou estrutural, sob a forma de “narração-explicação”, o que valoriza o papel científico do narrador. Lembremos que esta, a História-estudo, é a narração-descrição do que é específico ou compreensível nos acontecimentos humanos. Para adequada e concretamente inserirmos as “Cartas” e “Relações” dos jesuítas, em particular dos primeiros que missionaram no Brasil, no género narrativo-historiográfico, convirá pois distinguir entre História-realidade e História-estudo ou História-ciência. No âmbito da primeira, designadamente nas Cartas longas e/ou nas simples Relações e Informações, o objecto centra-se, por regra, em temas ou “cousas” temporais de substância geo-natural, antropológica (física e cultural) e etnográfica (com relevo para os costumes). Estas serão, de facto, já no século XVI matérias novas, como a abordagem da influência do clima na história (isto é, nos comportamentos humanos) ou o encontro da etnografia/etnologia com a história, revelado concretamente no interesse pelos costumes das etnias (“nações”). Em qualquer dos domínios (História natural, Etnografia e Antropologia), os jesuítas mostraram-se observadores e investigadores interessados, conferindo maior preferência ao passado recente e ao presente. Ou seja, os que estavam no terreno privilegiarão, à semelhança do conhecimento dos modernos ou renascentistas, o testemunho pessoal (com o eu “vi e ouvi”) ou recorrerão a relatos de testemunhas tidas por idóneas. De qualquer modo, esta objectividade vivida ou testemunhada directa e indirectamente tem apegada a subjectividade interpretativa, constituindo tal binariedade, como é sabido, um elemento imprescindível em qualquer ciência, incluindo a História. No entanto, convirá não perder de vista que, com os primeiros jesuítas, a informação das “cousas” do temporal teve por finalidade principal contextualizar a missão evangélica e os seus resultados ou “frutos”, pelo que, na narração, logicamente, o espiritual se sobrepõe ao temporal, o que não significa que assuma uma ordenação primeira. Mais, quer através dos temas, quer das circunstâncias ou dos motivos, independentemente da sua natureza, a edificação dos destinatários tem como sentido ou função tentar mobilizar mais agentes para a difusão da “Boa-Nova” em terras longínquas e estranhas, de que poderão servir de exemplo os seguintes apelos: 275

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“Acudi irmãos a estas criaturas [...], vinde a ver estas novas estrellas, e Reinos [...]”;4 ou “Manday muita gente à Índia, porque acrescentarão muito os limites da Sancta Madre”.5 Outra das vertentes em que as “Cartas longas” e as “Relações” se aproximam da História-estudo é a preocupação de datar e periodizar, normalmente por décadas. No que concerne à datação, paira já nesses registos uma certa ideia de historicismo ou de valorização das circunstâncias, ou seja, o que acontece deve ser explicado em função do momento em que aconteceu, podendo tal registo ser importante para a leitura que o destinatário fará. Da Baía e muito provavelmente da primeira quinzena de abril de 1549 (já que, pela narrativa, precede uma outra missiva datada do dia 15 dos mesmos mês e ano), o Padre Manuel da Nóbrega escreverá ao Padre-mestre Simão Rodrigues, em Lisboa, a sua primeira carta. Esta será também a primeira a ser enviada, pelos jesuítas, do “Novo Mundo” para o “Velho Mundo”. Outras do mesmo missionário e dos seus companheiros se seguirão, sendo curioso registar, quanto ao carácter divulgador destas missivas, que, já em 1551, em treslado do português para o castelhano, circulará Copia de unas cartas [em número de 6] enbiadas del Brasil por el Padre Nobrega dela Conpanhia [sic] de Jesus: y otros padres que estan debaxo de su obediẽcia al padre maestre Simon [...]. A primeira deste conjunto tem a designação Informação das Terras do Brasil, o que indicia sobre a sua finalidade ou função essencialmente descritiva. Releve-se que a preocupação com a divulgação, cumprindo ordens superiores, também concorria para aproximar estes conjuntos epistolares da História, ao torná-los mais inteligíveis na sua significação do que se se mantivessem singularmente. Quanto à contextualização temporal, espacial e substancial, ela é mais notória nas “Relações ordenadas” ou sistematizadas, segundo critérios subjectivos do compilador, ainda que satisfazendo, naturalmente, os

4 De uma carta do P. Gaspar Vilela, datada da Índia a 24 de abril de 1554, para os residentes no Colégio de Coimbra. In: Cartas que os Padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos de Japão e China aos da mesma Companhia da India e Europa desdo anno de 1549 até o de 1580. Ed. fac-similada. Maia: Castoliva Editora, 1997. t. I, f. 30-30 v. 5 De uma carta de Francisco Xavier, de Cochim, a 27 de janeiro de 1545. In: SAINT FRANCIS XAVIER. Epistolae S. Francisci Xaverii aliaque eius scripta, p. 281.

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objectivos da Companhia. No que concerne ao modelo expositivo que acabou por ser consagrado, trata-se de um processo já próprio do historiador, ou seja, de alguém que não interveio directamente na história-realidade, mas que pretende estudá-la pelo menos incipientemente, torná-la mais inteligível e divulgá-la. Neste sentido, ganharão primeva e notória projecção editorial as Cartas que os Padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos de Japão e China aos da mesma Companhia da Índia e Europa desdo anno de 1549 até o de 1580. Em 1598, a mando do Arcebispo de Évora, D. Teotónio de Bragança, foi publicada uma edição (Évora, por Manuel de Lira) com as 206 cartas que foram fac-similadas em 1997 (Maia, Castoliva Editora). É verdade que o que preside à formação deste “corpus” é a cronologia, contudo as missivas estão transcritas na íntegra e com cuidado. É nítida, de facto, a observação da linearidade temporal por anos, como o seguinte registo no fólio 47 v do Primeiro Tomo da edição de 1598 deixa perceber: “Carta que o Padre-Mestre Belchior escreveo da India aos Irmãos da Companhia de Iesu de Portugal depois que veo de Japão, escrita em Cochim, a 10 de janeiro de 1558. Poem-se aqui, porque as cousas della sam do anno de 1556 e de 1557”. Porém (insista-se), já se verifica alguma sistematização nestas Cartas de Japão e China [...], ao sumariar-se parte dos seus conteúdos e ao evitar-se repetições informativas. Exemplifiquemos, também, com este registo: “O que vay notado [numa carta datada de Cochim a 5 de outubro de 1559] com esta estrela [asterisco] se tirou de hũa do padre Baltasar Gago, que toca as mesmas cousas”.6 Mas, voltemos ao modelo. Singularmente, a epistolografia de natureza descritivonarrativa pelos anos 50/60 de Quinhentos parece obedecer a um modelo prévio, deste modo confirmado e sumariado numa carta do P. Cosme de Torres, escrita no Japão a 8 de outubro de 1561 e endereçada ao Provincial da Índia: “Nesta darey a V.R. algũas novas desta terra de Japão, que creo serão das melhores que della a essas 6 Cartas que os Padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos de Japão e China aos da mesma Companhia da India e Europa desdo anno de 1549 até o de 1580, t. I, f. 67.

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partes se tem escrito, e direi primeiro da terra, e de suas qualidades, e depois do fruito [espiritual] que se faz [...]”.7 Concretamente, no que diz respeito às “cousas” temporais, a informação centrar-se-á nas aptidões geoeconómicas, no clima dominante, nas produções, na alimentação, na troca e comercialização, nas especificidades etnolinguísticas, na governação e administração, na arrecadação fiscal. Confirma-se, pois, o interesse já pela climatologia, economia, política e fiscalidade, o que se afigura estar de acordo, como dissemos, com uma História nova, “plena” ou geral. Vinham, depois destes elementos ou motivos contextualizadores, as notícias sobre a evangelização (suas dificuldades e seus resultados) de acordo com as particularidades ao nível dos costumes e da linguística. Por regra, eram lentos os ritmos de evangelização, por razões culturais e civilizacionais, mas persistia a esperança do aumento do “fruto”. Demos outro exemplo do modelo informativo, observado noutro continente. Em 1594, por ordem do Visitador da “residência” dos Padres da Companhia de Jesus em Angola, o P. Pero Rodrigues, com base em informações de “pessoas dignas de fee”, como eram os padres jesuítas Baltasar Afonso e Jorge Pereira, proceder-se-á à elaboração de uma “Breve relação da conquista de Angola”. O 1º capítulo redigiu-o o próprio Pero Rodrigues, tendo os capítulos 6º, 7º, 8º e 9º saído da pena do P. Baltasar Afonso, com as matérias tratadas a dizerem respeito à geografia e história natural do Reino de Angola, à sua história política e administrativa (com particular destaque para a chegada definitiva de Paulo Dias Novais), à missionação primeva, às guerras entre os portugueses e o N’Gola, à escravaria, aos costumes dos negros ambundos, às vitórias (datadas) que Deus deu aos portugueses, bem como às derrotas e aos reveses sofridos, sem esquecer, por fim, o fruto espiritual conseguido sobretudo pelos jesuítas.8 Uma outra questão ou curiosidade sobre o modelo que foi sendo usado seria a de se saber se foi imposto superiormente ou se se 7 Cartas que os Padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos de Japão e China aos da mesma Companhia da India e Europa desdo anno de 1549 até o de 1580, t. I, f. 73 v. 8 Monumenta Missionaria Africana. África Ocidental (1469-1599) coligida e anotada pelo P. António Brásio, Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1954. v. IV de suplemento aos séculos XV e XVI, p. 546-581.

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foi estruturando sobretudo por influência de prestigiados secretários dos “Visitadores” enviados pela Companhia às suas missões, como foi o caso do célebre Fernão Cardim. Este embarcou em 1583, com a incumbência de secretariar o Visitador Cristóvão de Gouveia, e da sua pena saiu a conhecida Informação do Padre Cristóvão de Gouveia às partes do Brasil no ano de 83, publicada por Varnhagen, com o título Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica [...] desde o anno de 1583 ao de 1590, indo por Visitador o Padre Christovão de Gouvea. Escripta em duas cartas ao P. Provincial em Portugal [...], Lisboa, Imprensa Nacional, 1847. Posteriormente e porque continuou no Brasil, Cardim pôde escrever Do Clima e Terra do Brasil e de algumas cousas notaveis que se achão asi na Terra como no Mar; e Do Principio e Origem dos Indios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimónias. Outro secretário, no caso do Visitador Manuel Lima, que aliás procurou completar as “Informações” ou “Relações” de Cardim, foi o P. Jácome Monteiro, autor de uma Relação da Provincia do Brasil (1610), em que volta a sobressair a visão descritiva, mas com referências históricas sobre a colonização dos Portugueses e outras de natureza etnográfica sobre os costumes dos Índios.9 Estes são alguns exemplos de informadores directos, ligados à Companhia de Jesus, e que decidiram escrever “largo”, por vezes em estilo epistolográfico. Quanto ao passado sobre que farão incidir as suas descrições-narrações, como já foi dito, verifica-se ser de pouca espessura temporal, o que não surpreende, por serem recentes tanto o início da colonização, como o da missionação. Naturalmente, a visão diacrónica alongar-se à medida que aumentar a datação dos registos. Este tipo de “Relações directas” apresenta algumas diferenças das “Relações sistematizadas” com extractos de cartas enviadas por outros. A fim de melhor se compreender o começo deste processo, citamos esta passagem de uma carta do secretário do Provincial de Portugal, datada de 8 de agosto de 1561: “Al officio de secretario 9 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro – Ministério da Educação, 1949. v. VIII, p. 393-425.

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pertenece escrivir todas las cartas del P. Pronvincial asi para personas de la Compañia como [para] otras de fuera della, respondiendo de otra manera; sacar extratos de las que vienen, copiar en libros las que se enbian [...]”.10 Posteriormente, será tomada a decisão de aperfeiçoar este serviço de secretariado e de proceder, com mais cuidado e intensidade, ao registo dos factos e acontecimentos notáveis da Companhia, ao que se propuseram vários agentes internos, como foi o caso do P. Francisco Guerreiro. A primeira edição da Relação, organizada (estruturada e redigida em parte) pelo jesuíta P. Fernão Guerreiro, foi publicada em cinco volumes (é raríssima a colecção completa) nos anos de 1603, 1605, 1607, 1609 e 1611. Em 1930, foi reeditado o Tomo Primeiro (1600-1603) por Artur Viegas, com a chancela da Imprensa da Universidade de Coimbra. O novo título será: Relação Anual das Coisas que fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas suas missões Do Japão, China, Cataio, Tidore, Ternate, Ambóino, Malaca, Pegu, Bengala, Bisnagá, Maduré, Costa da Pescaria, Manar, Ceilão, Travancor, Malabar, Sodomala, Goa, Salcete, Lahor, Diu, Etiopia a alta ou Preste João, Monomotapa, Angola, Guiné, Serra Leoa, Cabo Verde e Brasil nos anos de 1600 a 1609 e do processo da conversão e cristandade daquelas partes: tirada das cartas que os missionários de la escreveram. Este título da nova edição tinha a vantagem de enunciar as proveniências geográficas do epistolário dos jesuítas na primeira década do século XVII e, deste modo, concorrer para cartografar as missões da Companhia. Porém, fora mais sucinto, logo menos específico, o frontispício do primeiro volume da edição princeps, a saber Relaçam Annual Das Cousas Que Fizeram os Padres da Companhia de Jesus na India, e Japão nos annos de 600, e 601, e do processo da conversão, e Christandade daquellas partes: tirada das cartas gẽrais que de la vierão pello Padre Fernão Guerreiro da Companhia de Jesus. Em Évora, por Manuel de Lira, ano 1603. Os temas ou as “cousas” concernentes ao Brasil na Relação do Padre Fernão Guerreiro são, logicamente, também de predominância espiritual e eclesiástica, a ponto de o motor da 10 LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae (1538-1553). Roma: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1958. v. III, p. 384.

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evolução histórica ser a própria divindade, como esta passagem evidencia: “[...] no que tudo se mostra bem o braço poderoso de Deus, que em tão breve tempo, de tão feros lobos [certos índios] está fazendo tão mansos cordeiros; e assim esperamos na sua misericórdia que o mesmo sucederá a todos os outros [...]”.11 Mas, para ele, os mediadores entre os homens e Deus no que concerne à missionação eram principalmente os agentes da Companhia, mesmo quando intervinha o trabalho de outro clero regular e secular. Assim, apoiado nas cartas que esses agentes no terreno escreviam, Guerreiro retirará excertos de provas recentes do muito que eles, maravilhosa ou milagrosamente, iam conseguindo junto dos índios “bárbaros”, pelo que a colonização, estruturada na economia do açúcar, ia progredindo e os decisores políticos, no Reino e na colónia, se obrigavam ao reconhecimento público do quanto, com sacrifício, era obrado pelos “Padres”. Eis a história-objecto a reflectir, sobremaneira, os interdependentes interesses do Estado e da Igreja, enquanto os particulares ou os não entendiam ou os não reconheciam. Muitos dos temas temporais, registados nesta Relação, dizem respeito, portanto, aos insucessos da governação e aos êxitos dos “Padres”, concretizados em vários casos, desde 1549 até começos do século XVII. “Relações” como esta, obedecendo, conforme se disse, a um modelo prévio, testemunham, além do mais, a ingente importância conferida pelos jesuítas ao movimento humanista do Renascimento, particularmente nas vertentes da afirmação do indivíduo e das instituições e na perenização do passado “através da memória e da história”, sem esquecer o presente repleto de “novas novidades”. Atentos e curiosos humanistas, é sobejamente conhecida a importância que os jesuítas conferiram às suas escolas, em particular, aos seus “colégios”. Só no que concerne ao século XVI, relembremos as datas fundacionais dos seguintes colégios brasileiros: 1551, “Colégio dos Meninos de Jesus”, de que terá derivado o “Colégio de Todos os Santos”, na Baía e em 1556; 1554, “Colégio de Santo Inácio 11 GUERREIRO, Fernão, S. J. Relação anual das coisas que fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas suas Missões do Japão, China, Cataio... Nos anos de 1600 a 1609 e do processo da conversão e cristandade daquelas partes; tiradas das cartas que os missionários de lá escreveram. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930. t. I, p. 395.

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ou de Piratininga”, em São Paulo; 1568, “Colégio de Santo Inácio”, no Rio de Janeiro; 1576, “Colégio de Pernambuco”. Em 1565, o secretário do Propósito geral da Companhia de Jesus ordenara ao responsável pela “Província de Portugal” que se compusesse a história de cada colégio, com referências expressas às suas origens e aos sucessos mais notáveis.12 Entre outros, nos anos de 1573 e 1574, viram registada a sua história os colégios de Santo Antão (em Lisboa), de Coimbra, Évora e Bragança, surgindo, pouco depois, a Historia Da Fundación del Collegio de la Compañia de Pernambuco hecha en el año de 1576. O manuscrito referente a este colégio acabou por integrar o espólio da “Biblioteca Pública Municipal do Porto”, a qual, em 1923, com a chancela da “Imprensa Portuguesa”, decidiu publicá-lo na Colecção de Manuscritos Inéditos Agora Dados à Estampa. Consta de 9 capítulos, o primeiro sob a epígrafe “De los primeros padres que fueron a Pernanbuco”, registando o ano de 1551 como o da chegada dos representantes da Companhia de Jesus. E, uma vez mais, a temática dominante é a do “fruto espiritual” que os “Padres” iam obtendo nas suas missões, a partir do colégio Pernambucano, em pequenas narrativas sobre as “cousas de edificação” que foram sucedendo anualmente, no período de 1572 a 1576. Este projecto da história da fundação dos colégios da Companhia acabou por suscitar outra produção historiográfica de contornos temporais mais vastos e de temas mais diversificados. É que, em 1587, a Congregação Provincial, reunida em Lisboa, decidiu que era conveniente [...] pôr em historia os sucessos dignos de lembrança, quais eram aqueles primeiros princípios da Companhia em Portugal, as fundações dos seus colégios, as navegações, os trabalhos e exemplos de virtude de seus religiosos e coisas semelhantes, como já nos anos atrás se principiara em Lisboa e Coimbra, e por desleixo se não continuara”.13

12

Cf. RODRIGUES, Francisco, S.J. História da Companhia de Jesus na Assistência em Portugal. Porto: Apostolado da Imprensa – Empresa Editora, 1931. t. I, v. I, p. XIV. 13 apud RODRIGUES, Francisco, S.J. História da Companhia de Jesus na Assistência em Portugal, p. XV.

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Mais: o contributo historiográfico de Portugal integraria a redacção de uma história universal ou geral da Companhia de Jesus. O que foi conseguido a este respeito em Portugal? Daremos exemplos de alguns títulos. O P. Álvaro Lobo escreveu, em 4 Tomos, os primeiros 17 anos da história da Província de Portugal, sob o título Crónica da Companhia de Jesus da Província de Portugal em que se contém sua fundação e progresso e os varoens insignes que nela floreceram.14 Faleceu a 28 de abril de 1608, pelo que o P. António Leite se encarregou de prosseguir a tarefa, tendo registado as matérias ou as “cousas” referentes aos anos de 1565 a 1570. Em 1662, por morte, deixou inacabado o seu trabalho, tendo-o retomado o P. Baltasar Teles, com a Chronica da Companhia de Jesu na Provincia de Portugal (Primeira parte, 1645 e Segunda parte, 1647), e o P. António Franco, com A Imagem do Primeiro Século da Companhia de Jesus em Portugal e a Imagem do Segundo Século.15 Também este último estudo ficou inédito e incompleto com o falecimento do autor em 1732.16 E, no Brasil, o que se ia conseguindo? Lembremos que serão registados dados biográficos sobre os agentes da Companhia, de que é exemplo o Catálogo dos PP. e Irmãos da Pronvincia do Brasil em janeiro de 600, elaborado pelo P. Pero Rodrigues (1542-1628), Provincial do Brasil durante nove anos. O mesmo missionário compôs, com a máxima fidelidade (segundo declara), uma Vida de José de Anchieta, V Provincial que foi da Companhia de Iesus, no estado do Brasil [...] e as cousas que escreve foram tiradas de originaes authenticos e jurídicos e com testemunhas juradas, na Bahia a 30 de janeiro de 1607. Não foi editado em português este trabalho historiográfico sobre o prestigiado Anchieta, durante o século XVII, mas o original suportou outras publicações em latim e francês 14

RODRIGUES, Francisco, S.J. História da Companhia de Jesus na Assistência em Portugal, p. XVI. Relativamente à Chronica, uma leitura dos subtítulos deixa perceber o interesse pelo registo da vida e acção do padre Simão Rodrigues, fundador e governador da Província de Portugal, e de outros jesuítas que serviram a Companhia em tempo de Inácio de Loyola, “Com o summario das vidas dos Serenissimos Reys Dom Ioam Terceyro, E Dom Henrique, Fundadores e Insignes bemfeytores desta Provincia”. 16 Abona também estas últimas informações bibliográficas RODRIGUES, Francisco, S.J. História da Companhia de Jesus na Assistência em Portugal, p. XVII-XXI. 15

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naquela centúria. Outra obra Seiscentista, extremamente rara, logo valiosa do ponto de vista bibliográfico, é a Vida do Veneravel Padre Ioseph de Anchieta da Companhia de Iesu, Taumaturgo do Novo Mundo, na Provincia do Brasil, da autoria do P. Simão de Vasconcelos (1597-1671) e também Provincial ali.17 Entretanto, convirá lembrar que não cessaram a redacção e a publicação de Cartas, Relações ou Informações tendo como autores os jesuítas em missão no Brasil. Exemplifiquemos, além do já citado, com a Relação das cousas do Rio Grande, do sítio e disposição da terra (1607);18 ou com a Informação do Rio do Maranhão e do grãde Rio Pará (1618).19 Do que fica dito, talvez se possa reter, como mais importante, que os primeiros jesuítas que escreveram do e sobre o Brasil foram mais memorialistas do que historiadores. No entanto, quer uns, quer outros, registaram, directa e indirectamente, múltiplos e diversificados temas e motivos que já foram ou poderão vir a ser matéria da história-realidade. Alguns poucos atingiram ou estiveram próximos de atingir níveis em que a história é menos o real do que o inteligível, ou seja, em que é História-ciência, revelando assim estarem em sintonia com a historiografia mais avançada da transição do século XVI para o XVII.

17

No título actualizou-se o emprego do u e do v. Foi publicada “Em Lisboa, na officina de Ioam da Costa, 1672”. De visita ao Brasil, em 1922, o Presidente da República Portuguesa, António José de Almeida, ofereceu uma cópia da obra ao seu par brasileiro. 18 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália, 1938. v. I, p. 557 – 558. 19 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, p. 425-426.

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  Sobre os autores

Adriana Zierer

Doutora em História Medieval na Universidade Federal Fluminense (2004). Realizou estágio Pós-Doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales, junto ao Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval (GAHOM). Docente da Graduação e do Mestrado em História da Universidade Estadual do Maranhão (PPGHIST-UEMA); professora do Mestrado em História da Universidade Federal do Maranhão (PPGHIS-UFMA). É uma das coordenadoras dos laboratórios de pesquisa Brathair – Grupo de Estudos Celtas e Germânicos e Mnemosyne - Laboratório de História Antiga e Medieval. Participa de vários periódicos, sendo atualmente diretora da revista Mirabilia e editora-chefe da Brathair. Coordenadora dos Encontros Internacionais de História Antiga e Medieval do Maranhão, realizados na UEMA desde 2005. É membro do Grupo LusoBrasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno. Foi contemplada com bolsa de Produtividade concedida pela UEMA no período 2016-2018.

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A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Armando Martins

Professor Agregado de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dos seus vários trabalhos destacam-se: O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média, Lisboa, 2003 (tese de doutoramento, distinguida em 2004 com o prémio ‘História Medieval’, pela Academia Portuguesa da História), e os livros Guerras Fernandinas (2006), D. Fernando, o Formoso (2009), D. Leonor Teles, flor de altura (2011), D. Beatriz a princesa enjeitada (2011). É Membro-fundador do Instituto Histórico Alexandre Herculano; Membro da Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais, Académico de Número (N.º 18) da Academia Portuguesa da História, Académico Efectivo da Academia de Marinha, além de Académico Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro. Cintia Maria Falkenbach Rosa

Professora adjunta no Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (1995). Artista visual; calcogravura, desenho e aquarela. Graduada em Licenciatura Plena em Educação Artística (1982). Mestre em Artes Visuais (2004) e Doutora em Teoria e História da Arte (2014) pelo Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Coordenadora da Oficina de Cutelaria Artesanal do Departamento de Artes Visuais. Membro colaborador do Programa de Estudos Medievais do Departamento de História. Publicações coletivas diversas em Encontros e Congressos de História Medieval e Artes Visuais. Douglas Mota Xavier

Professor Adjunto da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), campus Santarém, na área de História Antiga e 286

Sobre os autores

Medieval. Doutor (2016) e Mestre (2012) em História pelo PPGHUFF, com pesquisa financiada pela CAPES e pelo CNPq, respectivamente. Bacharel e Licenciado em História (2009) pela UFF. Pesquisa temas relacionados: ao poder e sociedade na Península Ibérica medieval; à diplomacia e às relações diplomáticas medievais; às viagens medievais; e às novas linguagens e tecnologias no ensino de História. Coordenador do Vivarium - Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo/Núcleo Norte e membro do Scriptorium - Laboratório de Estudos Medievais e ibéricos da UFF. Dulce Amarante dos Santos

Professora Titular da Universidade Federal de Goiás. Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1971) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1997). Realizou estágio de pós-doutorado na Universidade Complutense de Madri (2000) com bolsa de hispanista do Ministério de Asuntos Exteriores da Espanha; pós-doutorado em História da Medicina na Universidade de Navarra, em Pamplona, Espanha, em 2012 com bolsa estágio sênior da CAPES. Tem experiência em pesquisa e orientação, mestrado e doutorado, na área de História medieval ibérica, com ênfase em História das Mulheres e Gênero, Imaginário social e História social da Medicina. É Líder do PEM - Programa de Estudos Medievais da UFG (CNPq) e integra desde 2006 o Grupo Luso-brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno, que se reúne anualmente, em Portugal e no Brasil, sendo que em 2012, organizou o VII Encontro do grupo na UFG. Membro eleito em 2014 da Academia Portuguesa de História. Francisco José Silva Gomes

Possui Graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1972), Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1979) e Doutorado em História 287

A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

pela Université de Toulouse Le-Mirail (1991). Atualmente é Professor Associado IV da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Medieval e História da Igreja no Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: cristianismo - cristandade - igreja - poder, catolicismo, etnia - religiosidade - identidade - escravidão, milênio - calendário e catolicismo - irmandades - Rio de Janeiro. João Marinho dos Santos

Professor catedrático do Departamento de História da Faculdade de Letras e pesquisador da História dos Descobrimentos e da Expansão Ultramarina Portuguesa da Universidade de Coimbra. É autor e organizador de inúmeros livros, dentre os quais merece destaque o livro Santa Cruz do Cabo de Gue d´Agoa de Narba – Estudo e Crónica (edição em Português/Árabe e distinguido com o prêmio Calouste Gulbenkian em 2008, atribuído pela Academia Portuguesa de História), e de diversos artigos publicados em periódicos de Portugal e do exterior. José Rivair Macedo

Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (1993), Professor Titular no Departamento de História da UFRGS e professor do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS). É coordenador do livro O pensamento africano no século XX (Outras Expressões, 2016) e autor, entre outros estudos, de História da África (Ed. Contexto, 2013). É sócio da Academia Portuguesa da História e da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros.

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Sobre os autores

Manuela Mendonça

Presidente da Academia Portuguesa da História, desde 2006. Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi Diretora Geral do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Em sua vasta produção científica, destacam-se as edições de fontes fundamentais da história portuguesa, como a edição da Chancelarida de D. João II – Índice e Tratamento de dados (Lisboa, NA/TT, 1944, 2 vols) e do Livro de Montaria de D. João I. Introdução, leitura e notas (Ericeira, Edições Mar de Letras, 2003), além dos estudos: D. João II. Um percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal (Lisboa, Editorial Estampa, 1990, 2ª ed. 2005); A Guerra Luso-Castelhana no Século XV (Lisboa, 2006); As relações externas de Portugal no final da Idade Média (Lisboa, Colibri, 1994). Margarida Garcez Ventura

Pesquisadora medievalista da Universidade de Lisboa, é professora auxiliar, com agregação, da Faculdade de Letras; Membro do Centro de História da Faculdade de Letras de Lisboa (desde 1972), especialista em história das mentalidades políticas, Académica de Número da Academia Portuguesa da História, Membro Efectivo da Classe de História Marítima da Academia da Marinha; fundadora da Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais; Académica Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). Pesquisadora com vasta produção científica publicada em revistas da especialidade, destacam-se os livros: A Corte de D. Duarte. Política, cultura e afectos, Vila do Conde, Verso da História, 2013. (Prémio Fundação Engº Eugénio de Almeida / Joaquim Veríssimo Serrão, 2014); D. Leonor de Aragão. A Triste Rainha. 1402 (?) – 1445, (em colab. com Julieta Araújo), Matosinhos, QuidNovi / Academia Portuguesa da História, 2011; D. Duarte, o Eloquente, Matosinhos, QuidNovi / Academia Portuguesa da História, 2009; A Definição das Fronteiras 289

A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

(1096-1297), Matosinhos, Academia Portuguesa da História / QuidNovi, 2006; 1ª ed. 2004; Santo António, Lisboa, Planeta De Agostini, 2004 (– prémio de Dr. M. P. Laranjo Coelho (2005), instituído na Academia Portuguesa da História); Estudos sobre o poder (séculos XIV-XVI), Lisboa, Edições Colibri, 2003; A Colegiada de Santo André de Mafra (séculos XIV-XVIII). Transcrição paleográfica do Fundo Documental e Estudo Introdutório, Mafra, Câmara Municipal, 2002 – prémio de História Calouste Gulbenkian – “História Regional e Local” (2001); Igreja e poder no século XV em Portugal. Dinastia de Avis e Liberdades Eclesiásticas (1385-1450), Lisboa, Edições Colibri, 1997; O Messias de Lisboa Um Estudo de Mitologia Política (1383-1415), Prefácio de Martim de Albuquerque, Lisboa, Edições Cosmos, 1992. Maria de Fátima Reis

Doutora em História Moderna pela Universidade de Lisboa, onde é Professora Associada na Faculdade de Letras, investigadora do Centro de História, Directora dos cursos de Artes e Humanidades e de Estudos Gerais e Directora da Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da mesma Faculdade. É Secretária-Geral da Academia Portuguesa da História, Académica Efectiva da Academia de Marinha, Membro Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Membro do Conselho Científico do Centro de Investigação Joaquim Veríssimo Serrão e Delegada da Fundação para a Ciência e a Tecnologia na Aliança Internacional para a Memória do Holocausto. A investigação temse centrado na história da Assistência, Caridade, Saúde (Hospitais, Misericórdias, Outras Confrarias e Associações de Beneficência), na História Religiosa da Época Moderna, na história social das elites e nas questões de Património e Arquivo. Dos estudos publicados, destacam-se os livros: D. Estefânia, A Caridosa. 18371850. D. Maria Pia, O Anjo da Caridade. 1847-1911 (Colecção Rainhas e Infantas de Portugal coordenada por Manuela Mendonça, Matosinhos, Lisboa, Quidnovi, 2011); D. João V. O 290

Sobre os autores

Magnânimo. 1706-1750 (Colecção Reis de Portugal coordenada por Manuela Mendonça, Matosinhos, Lisboa, Quidnovi, 2009 [i. é 2010]); Campanhas do Norte de África. Conquista de Marrocos. 1415-1550 (Lisboa, Matosinhos, Quidnovi, 2006); Santarém no Tempo de D. João V. Administração, Sociedade e Cultura (Prefácio de Joaquim Veríssimo Serrão, Lisboa, Edições Colibri, 2005); Os Expostos em Santarém. A Acção Social da Misericórdia (1691-1710) (Prefácio de Joaquim Veríssimo Serrão, Lisboa, Edições Cosmos, 2001). Maria Eurydice Barros Ribeiro

Pesquisadora medievalista brasileira, é professora do Departamento de História e dos Programas de Pós-Graduação em História e em Arte da UNB, fundadora e coordenadora do Programa de Estudos Medievais (PEM), membro da Academia Portuguesa da História; especialista em estudos sobre a tradição manuscrita medieval portuguesa. É autora do livro Os símbolos do Poder (Editora UnB, 1994), organizadora do livro A vida na Idade Média (Editora UnB, 1997) e Arte e Temporalidades (Programa de Editora da Pós-graduação em arte / UnB, 2007), além de ser autora de inúmeros artigos, palestras e comunicações. Maria Helena da Cruz Coelho Professora e pesquisadora medievalista da Universidade de Coimbra desde 1971, tendo obtido a nomeação definitiva de Professora Catedrática de História em 1991. Ao longo destes anos regeu várias cadeiras e seminários de Licenciatura e Cursos de PósGraduação, Mestrado e Doutoramento no âmbito da História Medieval, das Ciências Documentais e de Política Cultural Autárquica, da História da Alimentação, do Património e Cultura. Tem publicados, entre livros, artigos, prefácios, recensões, notícias, entradas em Dicionários, mais de trezentos estudos, alguns traduzidos em russo, espanhol, francês, inglês, italiano e alemão. Recebeu o 291

A escrita da história de um lado a outro do Atlântico

Prémio Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian e os prémios Laranjo Coelho, Costa Veiga, Pedro Cunha Serra (duas vezes), História. Calouste Gulbenkian. História Regional e Local (duas vezes), Prémio Fundação António de Almeida. Prof. Doutor Joaquim Veríssimo Serrão da Academia Portuguesa da História, 3º Marquês de São Payo, a medalha de mérito, Grau Ouro, da Câmara Municipal de Arouca. Foi agraciada pelo Presidente da República com a Ordem do Infante D. Henrique. Grande Oficial em 2011. Dos livros publicados, destacamos: O Baixo Mondego nos finais da Idade Média. Estudo de História Rural (2 vols. Lisboa, 1989), Ócio e Negócio (Coimbra, 1998), Homens, Espaços e Poderes. Séculos XI-XVI (2 vols. Lisboa, 1990); D. João I (Lisboa, Círculo de leitores, 2005; Lisboa, Temas e Debates, 2008), D. Filipa de Lencastre (Vila do Conde, 2011). Susani Silveira Lemos França

Doutora em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa (1998) e professora Livre-Docente em História Medieval na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). É autora, entre outros estudos sobre viagens medievais e registros do passado, de Mulheres dos outros. Os viajantes cristãos nas terras a oriente (séculos XIII-XV) (Editora Unesp, 2015 Menção Honrosa - Prémio de História Calouste Gulbenkian, Academia Portuguesa da História); Peregrinos e Peregrinações na Idade Média (Vozes, 2017); Os reinos dos cronistas medievais (Annablume, 2006); e da edição e tradução de Viagens de Jean de Mandeville (EDUSC, 2007). É organizadora de Questões que incomodam o historiador (Alameda, 2013) e As cidades no tempo (Olho d'Água, 2005). A pesquisadora é Acadêmica Correspondente Brasileira da Academia Portuguesa da História, pesquisadora principal do grupo Escritos sobre os novos mundos, sediado na UNESP/Franca, financiado pelo CNPq e pela Fapesp (Auxílio Projeto Temático). É também uma das coordenadoras do Grupo Luso-Brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno.

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